A epidemia do cheque-em-branco

A epidemia do cheque-em-branco

É provável que você ainda não tenha ouvido falar da Nextdoor. Trata-se de uma rede social que oferece um espaço online para vizinhos discutirem assuntos de interesse comum, como eventos locais, avaliações de serviços do bairro etc. Essa empresa, que até outro dia era uma startup, se tornou uma companhia de capital aberto (com ações negociadas na bolsa de valores americana) após ser adquirida por empreendedores de São Francisco avaliada em US$ 4,3 bilhões.  Mas a história vai ficando mais interessante... os empreendedores californianos que compraram a Nextdoor coletaram todo o recurso necessário de vários investidores diferentes. E sem ter que explicar aos investidores o que, como e quando usariam todo aquele dinheiro.

Ou seja, o que poderia parecer uma simples fusão de empresas acabou se transformando em algo inusitado. Você consegue imaginar quais argumentos esses empresários utilizaram para convencer os investidores a passar verdadeiros “cheques-em-branco”? Ao contrário do que possa parecer, essas empresas não fizeram absolutamente nada fora da lei. Ainda mais perturbador é o fato que a californiana Khosla Ventures não é a única no mercado americano a fazer esse tipo de coisa. Inclusive, esse é um movimento que tem crescido de forma explosiva nos EUA.  

O fenômeno é movimentado pelas chamadas SPACs (Special Purpose Acquisition Company) –empresas abertas unicamente para adquirir startups e permitir que suas ações sejam negociadas na bolsa de valores. O modelo de uma SPAC é contrastante com todo o rigor imposto pelos órgãos reguladores às empresas que desejam lançar suas ações na bolsa de valores pelas vias tradicionais, visto que anula em boa parte a preocupação com a transparência e a proteção dos investidores.

E engana-se quem acha que isso é um pequeno nicho do mercado. As SPACs conseguiram arrecadar quase US $ 83 bilhões no mercado americano em 2020, com abertura de 248 operações (no mesmo período em que foram feitos apenas 202 IPOs convencionais).

Por um lado, é um veículo capaz de viabilizar projetos novos e complexos, com alto potencial de crescimento, mas que teriam muita dificuldade de serem financiados pelas vias tradicionais da economia. Exemplos? Tecnologias muito novas, como projetos espaciais, blockchain e aplicações mais sofisticadas de inteligência artificial.

Do outro lado, uma via obscura por onde investidores ficariam expostos a riscos raramente vistos em qualquer outra classe de ativos. Vulneráveis até mesmo a algum eventual desvio de conduta dos gestores da SPAC.

Entre as SPACs abertas recentemente, algumas atuam em temas muito interessantes como a Virgin Galatic, uma empresa de voos espaciais suborbitais para turistas; a Matterport,  empresa que projeta digital twins 3D de grandes edifícios; e a Otonomo: plataforma que a distribuição de produtos financeiros na jornada dos veículos autônomos.

Mas, de onde vieram?

As SPACs surgiram ainda na década de 80 e, diferentemente de como são hoje, operavam de forma quase que irrestrita. Essas empresas captavam dinheiro de investidores mais ambiciosos, sem dar a eles maiores satisfações e simplesmente aplicavam os recursos no que, quando e como entendessem melhor. E continuaram operando assim até quando a SEC (órgão que regula o mercado financeiro nos EUA), preocupada com casos de fraudes e abusos cada vez mais frequentes, no começo da década de 90, lançou uma série de regras.

Entre essas regras, a obrigação das SPACs executarem suas aquisições dentro de teses (ou propósitos) declaradas previamente aos investidores, e em um prazo máximo de 24 meses. A SEC ainda exigiu que todo o dinheiro captado dos investidores permanecesse protegido (livre de riscos) até o momento em que a SPAC fechasse a aquisição. Os investidores ainda passaram a ter o direito de “desistir” do empreendimento e receber seu dinheiro de volta, desde que isso fosse feito em sua fase inicial.

Passados alguns anos, já na era das “.COM”, as SPACs tiveram um novo impulso com a introdução de algumas inovações bem criativas da época. Passou a ser comum, por exemplo, o recrutamento de celebridades como “sponsors” de SPACs – fazendo com que muitos investidores acabassem levando em consideração justamente a imagem e reputação de pessoas por trás da operação para tomar decisões de investimento e aceitando, por fim, passar o tal “cheque-em-branco”.

A explosão SPAC em 2020

Logo após a crise de 2008, com todo o stress na economia, coisas exóticas como SPACs se tornaram mais raras. Mas, com o passar do tempo, os tais “cheques-em-branco” começaram a retomar gradativamente seu fôlego e voltaram a ser vistos com cada vez mais frequência. E foi em 2020 que a coisa explodiu e tomou uma dimensão sem precedentes.

E em 2021 a tendência é que o fenômeno seja ainda mais contundente. Já são 300 novas operações apenas no primeiro semestre, superando a marca de aberturas de SPACs dos 12 meses do ano anterior. Isso é maior que o volume de todas as SPACs abertas em 10 anos entre 2009 e 2018.

Essa explosão poderia ser explicada por algumas razões, entre elas, o prolongado período de valorização dos ativos mobiliários provocado pelo excesso de liquidez no mercado, dadas as baixas taxas de juros. Afinal, sabe-se que, nesse tipo de cenário, os investidores costumam aumentar a exposição ao risco de forma geral.

Outro combustível importante para essa explosão, assim como ocorreu há 20 anos atrás na bolha da internet, é a participação massiva de celebridades nesse processo. Influenciadores de redes sociais, investidores emblemáticos, atores famosos, contores e atletas de elite. Tudo isso eleva a amplitude da divulgação das SPACs para outro patamar.

Shaquille O'Neal (lenda do basquete), Stephen Curry (Golden State Warriors), Serena Williams (lenda do tênis), e Alex Rodriguez (ex-jogador de beisebol) são alguns exemplos celebridades notáveis que engordam essa lista. Sim, o marketing de influência chegou com força total no mercado financeiro.

Na notificação recente da SEC deste ano, percebe-se a clara a preocupação do regulador com o poder de influência das celebridades no mercado financeiro:

"Celebridades, como qualquer outra pessoa, podem ser atraídas a participar de um investimento arriscado ou podem ser mais capazes de sustentar o risco de perda. Nunca é uma boa ideia investir em um SPAC só porque alguém famoso patrocina ou investe nele ou diz que é um bom investimento."

O que está por trás das SPACs?

Para ter uma visão mais precisa dos pontos positivos e negativos das SPACs é importante desmembrá-las e entender algumas nuances do seu funcionamento. Quem são os idealizadores? Quem está investindo? Quanto está sendo investido? Quem está ganhando dinheiro? Quem está perdendo?

Uma forma simples de analisar a SPAC é compará-la a um grupo de profissionais (“sponsors & founders”) que, munidos de uma tese interessante, talento e experiência, oferecem seus serviços a certos investidores. Esses investidores fornecem os recursos necessários para tirar as ideias do papel (sem precisar saber em detalhes que ideias são essas). E, como remuneração pelas ideias e pelo trabalho, os sponsors tipicamente retém para si cerca de 20% do empreendimento.

Ou seja, o investidor que toma a decisão de aplicar seu dinheiro numa SPAC confia tanto nas pessoas e na tese por trás daquela operação que aceita renunciar a 20% do capital investido a favor dos sponsors (sem qualquer garantia de ganho).

Esse talvez seja o aprendizado mais importante: os sponsors são os participantes que sempre estarão em desproporcional vantagem. Seja porque iniciam o processo com uma enorme assimetria de informação, seja pelo simples fato de ficarem com uma parte substancial do empreendimento como remuneração, o que faz com que a sua perspectiva de retornos seja sempre maior do que a dos investidores.

Sem dúvida, existem algumas operações emblemáticas onde os ganhos foram substanciais para os investidores. É o exemplo da Draftkings, que valorizou mais de 500% em pouco mais de 1 ano. Mas, de forma geral, a lógica vem prevalecendo e os dados mostram que a grande maioria das histórias das SPACs não tem finais tão eletrizantes assim.

Ao procurar o tipo de negócio que vem sendo adquirido por SPACs, fica claro que os alvos das compras sejam empresas de alto potencial de valorização. E não poderia ser diferente, dado o nível de risco aos quais se sujeitam investidores e a grande porção do projeto retido pelos sponsors. Isso leva as SPACs a mirarem ativos que sejam capazes de se multiplicar facilmente ao longo do tempo, ou seja, starups altamente escaláveis e que poderiam dobrar ou triplicar de tamanho sem precisar dobrar ou triplicar o número de funcionários, máquinas e instalações físicas. Como é o caso, por exemplo, das plataformas digitais como Uber e Airb&b.

Em meio a todos esses negócios digitais, recebem uma atenção ainda mais especial aquelas starups que, por alguma razão, enfrentariam muitas dificuldades para financiar o seu crescimento pelas vias convencionais. Seja pelo custo ou tempo impraticáveis de um IPO tradicional; pelo histórico financeiro desfavorável; ou seja pelo fato de envolver um modelo ou tecnologia muito novos para o mercado em geral, fica claro que as startups beneficiadas com esse fenômeno tem teses mais complexas que só poderiam ser avaliadas por investidores que estejam dispostos a se aprofundar muito no assunto.

 Para onde vão?

Existem muitas oportunidades de melhorias na forma como as SPACs se arranjam atualmente. Uma ideia seria restringir o subsídio dos sponsors (ou vinculá-lo ao sucesso do projeto), visto que acabam sendo uma penalidade inicial muito dura para o business case.

Algo nessa linha talvez tenha já ocorrido mais recentemente e passado de forma despercebida pelo mercado. Foi o caso da SPAC patrocinada pelo grande investidor americano Bill Ackman, que reduziu muito o seu subsídio upfront mas, em contrapartida, reteve uma espécie de opção de compra que acabava garantindo a ele uma participação substancial no empreendimento caso fosse muito bem sucedido.

Essas melhorias no modelo certamente dificultarão a ocorrência em casos como, por exemplo, o da empresa de caminhões elétricos Nikola, que apesar de ter um modelo de negócios com viabilidade ainda questionada, tornou-se pública via SPAC em março de 2020. A Nikola não foi capaz de gerar receitas desde sua fundação, mas ainda assim foi adquirida com um valuation de US$ 29 bilhões (mais alto que o market cap da Ford). Pouco tempo depois, o CEO saiu da empresa, provavelmente muito rico, e abandonou a SPAC e seus investidores.

No Brasil, ainda não existe uma regulamentação específica para SPACs, o que impede de certa forma o atalho para uma startup chegar ao IPO, mas por outro lado, isso não impede que coisas próximas a “cheques-em-branco” ocorram. Recentemente, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) organizou uma audiência pública (SDM 02/21) na qual apresentou medidas para modernizar o processo brasileiro de ofertas públicas. É um debate que vem tratando, entre outras coisas, da necessidade ou dispensa de registro das ofertas junto à CVM, da exigência ou não de ritos que que atualmente ocorrem, das informações que devem ou não ser prestadas aos investidores. E isso deve levar o mercado brasileiro a definir a melhor forma de introduzir as SPACs na regulação local.

Conclusão

O mercado financeiro é um campo onde ocorrem dois jogos diferentes ao mesmo tempo. Os mesmos jogadores, dentro do mesmo campo, com os mesmos árbitros, mas com a opção de atuar em jogos diferentes, com regras e objetivos distintos.

Um é o jogo chamdo value-based onde ganha quem gera mais valor. E entenda por “gerar valor” a entrega de lucratividade, com sustentabilidade, transparência, desenvolvimento de talentos e clientes fidelizados.  Nesse jogo, os investidores analisam exaustivamente o histórico das companhias, suas estratégias, seus controladores e suas finanças antes de investir.

O outro é o princing-game no qual é premiado quem conseguir aumentar o preço de suas empresas, quase que de maneira independente aos meios. Vale quase tudo. Não precisa ser necessariamente lucrativo nem competitivo. Não precisa ser sustentável, tampouco se preocupar com transparência ou diversidade de seus talentos. Vale recrutar um artista pop do momento para passar mais credibilidade para o projeto. O mais importante aqui é ter uma história incrível e convincente para contar, e deixar com que o mercado cuide de fazer com que a oferta seja esmagada pela demanda. Nesse jogo, os investidores tentam se antecipar ao fluxo do dinheiro e trabalham para ter um balanço positivo entre compras e vendas de seus quinhões.

SPAC certamente é um dos ícones do pricing-game, ao lado de day-traders e de inúmeras empresas descoladas incapazes de gerar lucro recorrente e sustentável.

É provável que o crescimento das SPACs continue nos próximos anos, com um número ainda mais significativo de transações. Nessa escala, SPACs devem continuar encurtando cada vez mais o tempo de maturação de startups até o IPO. E isso, por um lado, permite que investidores em geral tenham o privilégio de acessar projetos incríveis muito mais cedo, mas não deixa de exigir dos mesmos investidores um nível de preparo e assessoria muito diferente do que tem sido prática até hoje.

Adriano Bottas.

Daniel Bottas

Partner and CCO at 20DASH

4 a

SPAC parece aquela vaquinha do churrasco que todo mundo contribui mas ninguém pergunta para quem vai no supermercado qual a carne ou cerveja q ele vai comprar.

Renato Rodrigues

Especialista em Produtos Digitais. Experiencia em Banco Digital, Seguros e Tecnologia - Business Agility | Tera, FGV, SAFe, PSM I, PSPO I

4 a

Adriano Bottas O seu artigo é interessante, conecta com esse índice “Non-Profitable Tech Index", onde a estratégia das BIG TECHs é crescer a base de clientes ao invés de distribuir o lucro. https://www.ft.com/content/9a19f41e-1fb6-451f-b0eb-02decf331592

Renato Rodrigues

Especialista em Produtos Digitais. Experiencia em Banco Digital, Seguros e Tecnologia - Business Agility | Tera, FGV, SAFe, PSM I, PSPO I

4 a

Muito interessante

A avalanche de modelos disruptivos está apenas começando…mas acredito que os fins não podem justificar os meios. Parabéns pelo texto Bottas👏🏼

Entre para ver ou adicionar um comentário

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos