Médicos e sua responsabilidade nos problemas da saúde

Médicos e sua responsabilidade nos problemas da saúde

O título pode parecer uma afronta, e apesar de ser sim o tema central deste texto, quero antes deixar claro a minha admiração e respeito por uma das profissões mais nobres da humanidade e que existe há tanto tempo. Coloco-me como um observador imparcial enquanto escrevo isto.

Quem é o médico? O médico começa sua carreira como um jovem que em certo momento da vida identificou em si mesmo uma boa facilidade em várias áreas acadêmicas, fez uma prova, ou talvez algumas, e entrou em um curso superior.

Por ser um vestibular extremamente concorrido, o aluno de medicina tem que ser aquele que foi treinado a saber tudo de tudo, de física clássica, rochas magmáticas e as batalhas de Peloponeso. O médico começa como alguém que, portanto, está acostumado a saber mais que as pessoas ao seu redor e isso não é um problema, ele foi treinado para isso e precisa ser.

Além dessa versatilidade que ganha no ensino médio, ele agora entra no que é provavelmente o curso mais extenso dos ensinos de graduação em termos de volume de conhecimento. São muitos anos de treinamento prático e teórico nas mais diversas áreas relacionadas ao corpo humano, seu funcionamento, doenças e tratamentos. Tudo isso para poder olhar uma situação clínica de diferentes ângulos, se adequando à complexidade do corpo humano.

A primeira característica do médico é, portanto, ter desde o começo da profissão uma relação íntima com o conhecimento, estar acostumado e ser treinado a saber mais academicamente que os outros.

Agora menos inerente da profissão em si, mas com certeza ainda muito atrelada à carreira médica vem uma palavra que é comum no seu contexto: responsabilidade. Se um paciente morre em um plantão, quem assina o óbito é o médico, se qualquer um da equipe comete um erro no hospital, chamamos de erro médico, se alguém passa mal no parque de diversões, "chamem um médico", não importa se ele está de férias, ele precisa atender.

Soldados ou super-heróis da vida real, sem folgas, sem férias, o médico deve ser sempre o protetor da vida, e de todas que estão a seu alcance prestarão contas, pelo menos essa é a impressão que nós mesmos passamos. Apesar de nobre esse lema traz sobre o médico um peso que nem sempre é fácil de carregar e o conduz a um papel natural de liderança em qualquer situação clínica.

Então a segunda característica do médico é o forte senso de responsabilidade sobre as vidas, que lhe direciona a liderar e assumir o controle em qualquer situação relacionada a saúde.

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Olhando agora nessa ótica do médico, podemos analisar seu comportamento em algumas esferas e ver como algumas características ajudam, mas também atrapalham.

1. Médico e profissionais da saúde

Um problema conhecido de gestores de saúde é a fila de pronto atendimentos. A maioria dos pronto atendimentos com problemas de superlotação utiliza protocolos de gestão de fila. Em teoria é simples, o paciente passa por uma triagem e é classificado com uma cor referente ao seu risco que se relaciona com o tempo de espera até um atendimento médico.

A média de um pronto socorro é que 75% dos pacientes são classificados como pouco ou não urgentes e esperam de duas a quatro horas para serem atendidos [1]. Essas pessoas poderiam ser atendidas em um ambulatório ou agendar uma consulta médica, mas em vez disso sobrecarregam a unidade de pronto atendimento.

Até aqui, um problema bem conhecido e nada novo. Se você falar isso com um médico, ele provavelmente irá te responder que é um problema cultural, as pessoas tem que aprender quando devem ir ou não a um pronto-socorro. Em parte isso é verdade, mas não é só isso.

A média de atendimento de triagem em um pronto socorro é em até 15 minutos desde que o paciente chega ao pronto socorro. Essa triagem geralmente é feita por outros profissionais de saúde que recebem de 20 a 10 vezes menos que o médico em um mesmo plantão. Por receber menos, a unidade pode contratar mais desses funcionários e portanto a triagem é bem mais eficiente que o atendimento.

O problema é que mesmo depois da triagem o paciente tem que passar por um atendimento médico. Mesmo classificado como nada urgente por um profissional da saúde. Porque o problema dessas pessoas não poderia ser resolvido aí e então irem para casa depois dos 15 minutos? O médico é o melhor para analisar casos complexos, mas esses casos rotineiros precisavam mesmo passar por ele? 

Um médico poderia responder que eles sabem melhor e que se for algo complexo pode passar sem ser notado ou que o paciente prefere mesmo passar por um atendimento médico, porque seu conhecimento passa mais confiança para o paciente.

É verdade, hoje vemos o médico assim, mas por exemplo, por quase toda a idade média as cirurgias eram realizadas por barbeiros, apenas porque eles tinham boa habilidade com a navalha. A medida que uma classe demonstra conhecimento e resolutividade, a confiança nela vai sendo estabelecida. Tirando um pouco do fardo e do trabalho dos médicos. 

Como o médico poderia ser na verdade o profissional que define bem os protocolos de triagem para que casos complexos não passem despercebidos na classificação e então só atendesse esses casos?

Ele poderia responder também que se acontecesse qualquer coisa com o paciente, a responsabilidade cairia sobre ele. Verdade também, mas precisa ser assim? Afinal médicos também erram, ainda mais sobrecarregados. Porque como sociedade colocamos toda essa responsabilidade sobre eles?

Quando um time está perdendo em um esporte de equipe, um dos erros mais comuns é quando o melhor jogador do time se revolta com os companheiros e tenta resolver tudo sozinho e se cansa. Mesmo com erros, em uma equipe todos tem que treinar e jogar e a responsabilidade da falha é de todos, assim como a glória.

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2. Médico e os pacientes

O que aconteceria se o conhecimento médico já começasse a ser ensinado em escolas? Alguns remédios de uso rotineiro ou mesmo mais complexos, primeiros socorros ou o funcionamento do sistema de saúde do país? Por que passar esse conhecimento para a população geral é importante?

Um trabalho nos Estados Unidos [2] fez uma pesquisa dos motivos que fazem as pessoas não irem ao médico. Ele mostra como pessoas mesmo tendo a impressão que teriam que ir ao médico, às vezes até com alguma enfermidade clara, evitam passar por algum atendimento.

A maioria apresenta motivos clássicos que incluem principalmente custos altos e falta de tempo para ir (56%). Mas depois desses, o principal motivo foram fatores relacionados ao médico (12%), desde problemas de comunicação até achar que médicos não se importam mesmo com a sua saúde. Vários motivos demonstram uma insegurança com o sistema de saúde como um todo, medo de ser cobrado ou ser orientado a fazer algo somente para que alguém lucre a mais.

A insegurança e o medo tem uma fonte primária única, a ignorância. O médico tem um papel fundamental em difundir e democratizar o conhecimento da medicina.

A medicina hoje para população geral é uma caixa preta onde em cada contato com ela o paciente é colocado na posição do fragilizado leigo, às vezes mais frágil por estar debilitado com alguma enfermidade, que deve aceitar sem questionar as orientações não tão claras do mestre a sua frente. Ser colocado na posição de frágil e ignorante não é agradável e, portanto, é naturalmente evitado pelas pessoas.

Claro que não é uma missão fácil ensinar em uma consulta o que se aprendeu em meses dentro da faculdade acrescentado a anos de prática. Mas o problema começa bem antes. Termos não familiares como nomes de remédios, especialidades médicas que você não tem certeza de que parte do corpo humano cuida (e.g. nefrologia, otorrinolaringologia).

O próprio tratamento com o nome de doutor, apesar de geralmente não ser explicitamente cobrado pelo profissional, cria um distanciamento na relação médico-paciente. Remete a uma hierarquia, muito útil em ambiente hospitalar e institucional, professores, doutores, chefes. Mas trazer isso para consulta cria um ambiente onde o paciente é o inferior. Em alguns casos, pode até ser importante que o paciente seja submisso às orientações, mas no geral acredito que quanto mais se busca tratar o paciente no mesmo nível, menos inseguro ele irá se sentir.

Talvez o nível de conhecimento médio da população devesse ser o suficiente para interpretar exames de rotina, conseguir tratar um dependente gripado, não depender tanto do sistema de saúde.

O médico pode responder que sabe melhor interpretar exames e tratar e que um leigo faria atrocidades. Que permitir a ele acesso claro às informações de um exame em vez de um conjunto de siglas e números trará histeria, como se mesmo sem isso já não houvesse pessoas que concluem na internet que tem câncer quando estão resfriadas. Que eles serão responsáveis por qualquer tratamento errado ou negligente

Da mesma forma que as pessoas inventavam teorias sobre os astros enquanto não foi demonstrado para elas que a terra girava em torno do sol, as pessoas continuarão investindo em tratamentos alternativos ou pseudociências enquanto não souberem a verdade de forma clara. Você só combate atrocidades feitas por ignorância difundindo o conhecimento.

Alguém pode não saber o nome de todas as peças do carro, ou entender exatamente o que cada parte do motor está fazendo. Mas verificar o óleo, trocar o pneu e fazer "chupeta" na bateria já resolve o problema dele do cotidiano e tira a dependência de um mecânico.

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3. Médico e a saúde

A medicina vem do latim ars medicina que significa a arte de curar. Talvez por isso hoje o médico e todo o sistema de saúde onde ele tem um papel central funcionem principalmente para tratar a doença o que não é necessariamente prover uma boa saúde. Hospitais, indústria farmacêutica, clínicas, todo o sistema de saúde investe em tratar a doença e, pode ser óbvio, mas se houvesse prevenção da doença a conta seria bem mais barata.

A medicina preventiva é a área de estudo médica que mais se aproxima do objetivo de dar uma boa saúde para os pacientes. Mas a própria teoria em que ela se baseia é no conhecimento de hábitos que causam doenças e que portanto devem ser evitados ou em avaliar indicadores de exames que se correlacionam com pacientes que desenvolvem enfermidades. Mas será que alguém tem boa saúde só porque estatisticamente não vá desenvolver doenças conhecidas?

Esse tópico talvez seja um pouco mais abstrato, pois o que é ter boa saúde? Eu não acho que o conhecimento que temos do corpo humano hoje consiga responder a essa pergunta, estamos sempre avançando nisso. Por isso eu vou mudar um pouco a pergunta para facilitar respondê-la. Se hoje alguém quisesse ter uma boa saúde, o que ele poderia fazer? Que profissional poderia auxiliar melhor: um clínico geral, um nutricionista, um profissional em educação física ou um psicólogo?

A resposta é clara, é um trabalho conjunto de todos esses e até de outros mais. O papel de liderança que o médico geralmente tem em contextos de saúde faz ele naturalmente não apoiar tudo que não tem o que chamam de respaldo médico. Será que pesquisas feitas por nutricionistas, profissionais de educação física não tem o mesmo valor se tão tiverem um médico por trás?

Novamente por se sentir superior em conhecimento e responsável a liderar todas as causas de saúde, o médico acaba minando o esforço complementar de outras áreas ao invés de incentivar.

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Por fim, quero novamente deixar claro que este não é um texto com um objetivo de apenas criticar a classe médica, mas sim de propor uma nova ótica que divida um pouco o fardo que está sobre eles e valorize outros profissionais perante a sociedade moralmente e até financeiramente. Acredito que todos e principalmente a sociedade se beneficiariam muito com isso.

Muitas das sugestões que faço nesse texto não são facilmente aplicáveis e talvez nem devessem, mas servem apenas para pensar que talvez seja possível fazer as coisas de forma diferente. O médico, por mais que se esforce para que a saúde das pessoas seja a melhor possível, dificilmente verá diferente do que ele foi tão bem treinado a ver e provavelmente também lhe dirá que nem tem tempo para isso.

Referências:

[1] ANZILIERO, Franciele et al. Sistema Manchester: tempo empregado na classificação de risco e prioridade para atendimento em uma emergência. Revista Gaúcha de Enfermagem, v. 37, n. 4, 2016.

[2] TABER, Jennifer M.; LEYVA, Bryan; PERSOSKIE, Alexander. Why do people avoid medical care? A qualitative study using national data. Journal of general internal medicine, v. 30, n. 3, p. 290-297, 2015.

Muito interessante, Tu! Parabéns!

Silvio Moreto

Working with technology to improve healthcare

4 a

Sensacional! Parabéns pelo texto Artur

Sérgio Luis Santos

Diretor de Controladoria na Athié Wohnrath

4 a

Parabéns Artur, muito bom!!!!

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