Descrição de chapéu
José Carlos Abissamra Filho

Quem pratica apologia ao crime?

Se existe delito, quem o comete não é o artista, mas a própria sociedade ao glamorizar a riqueza a qualquer custo num contexto de criminalidade lucrativa

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Jornais noticiaram a soltura de MC Poze do Rodo, que havia sido preso por apologia ao crime de tráfico e por envolvimento com a criminalidade. Eu não conhecia o cantor de funk até esses fatos serem noticiados por diversos veículos de comunicação. O que mais me impressionou foram as fotos que registraram a sua soltura: diversas pessoas ao seu redor; não sei dizer se uma multidão por conta do ângulo das imagens, mas certamente muita gente.

Não gosto muito desse estilo musical, não por conta dessa suposta apologia ao crime, mas porque prefiro o samba mesmo. Entretanto, reconheço a qualidade de muitas músicas de vários artistas que seguem mais ou menos o mesmo estilo. É arte e está dentro de um contexto econômico e social. Só não vê quem não quer.

A imagem mostra uma grande multidão reunida em uma rua, com pessoas levantando as mãos e fazendo gestos de celebração. No centro, uma pessoa em cima de um carro vermelho, cercada por seguranças e policiais. Há fumaça no ar, possivelmente de fogos de artifício ou sinalizadores. O ambiente parece festivo, com várias pessoas sorrindo e tirando fotos. Ao fundo, há lojas e uma faixa com o texto "DA CANCELA".
MC Poze do Rodo deixa penitenciária em Bangu, no Rio - Victor Chapetta/Agnews

De qualquer forma, se há a tal apologia ao crime, quem a pratica não é o artista, mas a própria sociedade ao glamorizar a riqueza a qualquer custo num contexto de criminalidade organizada altamente lucrativa.
Essas atividades derivam diretamente de políticas públicas absolutamente ineficazes sob a perspectiva de combate ao crime, como a guerra às drogas, mas absolutamente bem-sucedidas numa perspectiva foucaultiana sob o ângulo econômico numa economia em franca ascensão de ilegalidades. Só não vê quem não quer também.

O modelo internacional de guerra às drogas teve início na década de 1970, quando não havia esse mercado trilionário em torno do tráfico, e muito menos havia tantos entorpecentes nas ruas como há hoje.
O fato é que, passados mais de 50 anos da instalação desse modelo, o total de drogas nas ruas só aumentou e a lucratividade desse mercado ilegal também se expandiu —o que demonstra a absoluta ineficácia do formato no combate ao crime, muito embora continue em plena atividade.

Há indicativos de que a guerra internacional às drogas trouxe consigo a própria violência do tráfico. Antes, havia algum comércio ilegal de entorpecentes, mas não era em grande escala como hoje e muito menos violento tal qual é atualmente —e que caminha, também, para a riqueza, o sucesso e a glamorização da ilegalidade.

Estudos indicam a guerra às drogas como causa do tráfico profissional e violento; e, agora, dessa nova etapa social de glamorização da riqueza —de onde quer que ela venha.

Em outras palavras, a vitória e a instalação do tráfico em larga escala da forma como se vê hoje e a política de guerra às drogas originam-se de uma mesma fonte, com eclosão no mesmo período: anos 1970, quando este modelo internacional teve início. Ou seja, parecem ser faces da mesma moeda, caminhando juntos em uma simbiose em que a presença de um depende da existência do outro.

Diante disso, se alguém está fazendo apologia ao crime, certamente não é o cantor, mas a própria sociedade, que, por diversas razões, insiste num modelo de política pública criminal que já demonstrou claramente que dá mais força econômica e política a um tipo de criminalidade que, antes do modelo adotado, inexistia.

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