Cabecear. O lance mais perigoso do futebol?

Cabecear. O lance mais perigoso do futebol?

Eu não sou mais um fã de futebol, como no passado. Deixei esta diversão para o meu Xará.

Quando cheguei a Belo Horizonte para estudar, o futebol me ofereceu mais do que distração: ofereceu emprego.

Comecei como contínuo na Federação Mineira de Futebol, ali na rua Carijós. Função modesta que me permitia estudar de manhã, trabalhar à tarde e assistir aula à noite. Em pouco tempo, ganhei a confiança da chefia e assumi responsabilidades na chamada "Primeira Divisão", lidando com os clubes do interior.

Quando entrei na Faculdade de Medicina, mantive um pé no esporte por algum tempo, ajudando escolas com exames de saúde esportiva. Mas a vida me levou para longe dos campos e, anos depois, para muito perto do cérebro humano, ao me dedicar aos olhos. E é por essa via que reencontro hoje o futebol — não mais com o fascínio juvenil de outrora, mas com uma preocupação científica, e um desconforto que cresce à medida que leio, escuto, observo e busco resposta para a seguinte pergunta:

Por que um gesto comum no esporte mais amado do mundo pode estar silenciosamente danificando o cérebro — e o olhar — de crianças e adultos?

Um estudo da The Lancet (2025) mostrou que jogadores de futebol de linha têm até cinco vezes mais risco de Alzheimer e demência do que a população geral. Curiosamente, goleiros não compartilham esse risco elevado. E não é coincidência. O que poucos sabem e que este gesto de cabecear a bola descolou a retina do Tostão. E agora traz outros riscos que tardamos a nos conscientizar.

A diferença? Cabecear a bola.

O gesto que treinamos desde cedo, com bolas leves e campos improvisados, pode ser o ponto de partida para uma longa trajetória de sofrimento neurológico. É por isso que o Reino Unido e os EUA já proibiram o cabeceio para menores de 11 anos.

O que a história nos ensinou — e esquecemos

O The New Yorker resgatou recentemente arquivos do século XIX onde médicos já alertavam sobre os efeitos mentais de pancadas repetidas na cabeça. As mesmas do boxe e do futebol. Em 1920, o termo “síndrome do bêbado” descrevia boxeadores com demência precoce. A indústria esportiva respondeu com décadas de negação — uma negação que persiste, mas começa a ceder no norte.

A visão como espelho do cérebro

O movimento mais rápido e sofisticado do corpo humano e feito pelos nossos olhos. Acontecem 3 a 4 vezes por segundo. Ninguém escapa de uma fisgada do olhar. E como os olhos se movimentam revela muito sobre a integridade do cérebro. Usamos tecnologias como eyetrackers e eletroretinogramas para estudar padrões visuais alterados após lesões. Mas esses equipamentos ainda não chegaram aos campos de futebol para criar as evidencias necessárias ao convencimento da importância da prevenção destes traumas. Mas nos os demonstramos na clinica e no laboratório.

A criança que cabeceia a bola com oito anos pode desenvolver, anos depois, uma lesão. Geralmente uma sensibilidade à luz, um enjoo inexplicável, uma aversão ao ruído da sala de aula, uma dificuldade de leitura. Pode ser rotulada como ansiosa, medicada precocemente, e seguir pela vida carregando um distúrbio não diagnosticado, mas tratável — se reconhecido a tempo.

Mas como diagnosticar o que não queremos ver? Como convencer dirigentes, técnicos, torcedores e até pais apaixonados que proteger o cérebro de uma criança é mais importante que treinar o jogo aéreo?

Em nosso Laboratório de Neurociências Aplicadas à Visão - LAPAN, lidamos com sintomas bastante comuns: fotofobia, cefaleia, enjoo de movimento, irritabilidade sensorial, dificuldade de leitura. São chamados Distúrbios Neurovisuais e conhecidos como as comorbidades mais frequentes nas doenças das clínicas de oftalmologia, neurologia e psiquiatria.

Esses quadros, afetam tanto adultos quanto crianças. São silenciosos, persistentes e confundem até os clínicos mais experientes. Acontecem em acidentes no transito, na vida e, cada vez mais, têm origem no esporte.

Você não vai proteger seu filho das cabeçadas da vida. Mas pode evitar as cabeceadas.

Vivemos uma crise de saúde mental e estamos falando de uma condição com aparência de inocência, mas com grande potencial de agravamento de doenças mentais. Não custa eliminar a cabeceada — e limitar os traumas apenas às emoções do jogo, não aos golpes na cabeça. Enquanto não cuidam de proteger os atletas adultos, sugiro aos pais que cuidem da cabecinha de suas crianças por iniciativa própria.

Conclusão: só me resta apoiar as instituições que pedem por medidas que possam “minimizar e eliminar” golpes recorrentes na cabeça, especialmente entre crianças.

Tem um tesouro de cristal dentro desta cabecinha. Proteja este tesouro.

Referências para quem quiser se saber mais:

1. Burki, T. (2025, 26 de julho). The medicine of…football. The Lancet, 406(10501), 322–323.

2. Ueda, P., Pasternak, B., Lim, C.-E., Neovius, M., Kader, M., Forssblad, M., Ludvigsson, J. F., & Svanström, H. (2023). Neurodegenerative disease among male elite football (soccer) players in Sweden: A cohort study. The Lancet Public Health, 8(3), e123–e131

3. Se você tiver interesse científico nesta tema, envie um e-mail para RicardoGuimaraes@ufmg.br

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Este artigo é o episódio 193 da série Sentido Saúde que vai ao no jornal da rádio BandNews BH, às quartas-feiras. Para ouvir os programas da rádio, acesse o meu PERFIL NO INSTAGRAM


Maria Reggiani

Sócia Fundadora - Conselheira da Reggiani Hunting Consultores Associados - Executive Search

1 m

Agradeço por compartilhar isso, Dr. Ricardo! Esclarecimento necessário para a população em geral.

Marconi Rangel

Coordenador Administrativo | Líder em Processos de Saúde

1 m

Lembrei do filme: "Um Homem entre Gigantes" que traz a história sobre os danos cerebrais sofridos pelos jogadores profissionais de futebol americano (Encefalopatia traumática crônica - ETC).

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