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A DISSOLUÇÃO DO ANTAGONISMO LIBERDADE X DETERMINISMO:
A CONTRIBUIÇÃO COMPATIBILISTA DE NIETZSCHE
Leonardo Camacho de Oliveira1
RESUMO: O objeto do presente trabalho é apresentar o posicionamento de Nietzsche
com relação ao problema da liberdade, centrado, fundamentalmente, nos escritos tardios
(1885 – 1889) do autor. Defendo que o referido problema se apresenta como um
antagonismo que se forma entre: (i) as afirmações de cunho determinista de Nietzsche,
que negam a existência de uma liberdade de optar entre contrários na ação, e (ii) a
afirmação de noções de positivas de liberdade e responsabilidade. O problema coloca-se
dada a afirmação simultânea de (i) e (ii); como pode Nietzsche criticar veementemente
os conceitos de liberdade e responsabilidade e ainda assim utilizá-los em suas
colocações propositivas? Inspirado no método de Wolfgang Müller-Lauter, intentarei
mostrar que o antagonismo entre (i) e (ii) não é essencial mas aparente. Observar-se-á
que a noção de liberdade defendida por Nietzsche mostra-se compatível com o
determinismo, pois ressalta o papel ativo do “sujeito” enquanto “pedaço do destino”,
sendo simultaneamente determinado e determinante para o todo. Ao eliminar a
separação entre “sujeito” e mundo o filósofo dissolve o antagonismo entre determinismo
e liberdade, de modo que desse compatibilismo advém uma interessante noção de
“liberdade responsável”, pois o “sujeito” não mais é o “dono” de sua ação – nos moldes
da liberdade enquanto espontaneidade, mas é responsável por ela e por sua repercussão
no todo.
Palavras-chave: Compatibilismo, Liberdade da vontade, Responsabilidade moral,
Vontade de poder.
ABSTRACT: This paper analyzes the free will problem in Nietzsche’s philosophy,
especially in his later writings (1885-1889). I believe that such problem appears in the
form of an antagonism between: (i) the criticism and determinist approach towards the
existence of a freedom to do otherwise in human action; and, (ii) Nietzsche’s use of
positive notions of freedom and responsibility. The issue at stake comes from the
simultaneous statement of (i) and (ii), how can Nietzsche criticize so heavily the
concepts of freedom and responsibility and still use them in his positive agenda?
Nevertheless, inspired in Wolfgang Müller-Lauter methodology, I intent to show that
such antagonism is not essential, but merely an apparent one. It will be seen that
1 Bacharel em Direito e Filosofia e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. E-mail:
leocamacho@globo.com.
258 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
leonardo camacho de oliveira
Nietzsche’s notion of freedom is compatible with determinism, for it enhances the active
role of the “subject” as a “piece of fatefulness”, being himself at the same time
determined and determining for the whole. When Nietzsche eliminates the separation
between “subject” and world, he dissolves the antagonism between freedom and
determinism, and from such compatibilism arises an interesting notion of “responsible
freedom”, for the “subject” is no longer “the owner” of his actions – as it was under the
freedom to do otherwise paradigm – but is responsible for it, and for its repercussion in
the whole.
Keywords: Compatibilism, Free will, Moral responsibility, Will to power.
Para que o antagonismo que pretendemos analisar seja colocado
adequadamente se faz necessário investigar, ainda que brevemente, a questão do
determinismo no pensamento nietzschiano.
Posicionar o pensador alemão entre os deterministas talvez não seja a forma
mais apropriada de abordar a referida questão, isso nos levaria ao candente debate em
torno do estatuto da “cosmologia” de Nietzsche, desviando o nosso curso para outro
antagonismo, esse entre a epistemologia perspectivista defendida por ele em Para Além
do Bem e do Mal2
§ 22 e a interpretação cosmológica da vontade de poder em BM/JGB
§ 36. Reconhecendo o caráter hercúleo de abordar o antagonismo que tal desvio de curso
acarreta, optamos por modificar a questão, ao invés de indagarmos se o pensamento de
Nietzsche implica uma cosmologia determinista, questionaremos se uma noção de
liberdade enquanto abertura aos contrários – que permita ao agente escolher, dada uma
mesma conformação interna e circunstâncias externas, entre cursos alternativos de ação
– pode prosperar em sua visão de mundo; pois, para que o antagonismo que pretendemos
investigar seja colocado, basta a refutação de uma noção de liberdade nesses termos.
Com efeito, ao afirmarmos que Nietzsche é determinista nesse texto, não é nossa
intenção afirmar que ele defende uma cosmologia com uma noção forte de causalidade
determinista, mas sim que sua visão de mundo é incompatível com a liberdade enquanto
abertura aos contrários.
2 Doravante BM/JGB.
259 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
a dissolução do antagonismo liberdade x determinismo:
a contribuição compatibilista de nietzsche
Isto posto, voltemos nossa atenção para a obra Genealogia da moral3
onde
encontramos uma afirmação de grande importância: “Exigir da força que n ã o se
expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-
subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da
fraqueza que se expresse como força”4
. Grosso modo, o que a passagem nos diz é que
uma força – ou uma ordenação de forças – é incapaz de se expressar de forma contrária
ao que ela é5
. Ora, parece adequado pensarmos que dada uma determinada configuração
de forças, relacionando-se de uma determinada forma com o fluxo global de forças, só
pode advir um determinado evento. Em razão de Nietzsche compreender o sujeito
enquanto ordenação de forças, a dinâmica apresentada pode muito bem ser expandida
para o âmbito da ação humana, eliminando assim uma possível liberdade de escolha do
agente, pois ele age em conformidade com o que ele é e devido às circunstâncias que o
cercam.
O que é dito de forma comprimida e breve na obra publicada é
consideravelmente ampliado no seguinte fragmento póstumo do período do outono de
1885 ao outono de 1886, no qual Nietzsche, ao tratar da criação de leis a partir de
regularidades, nos diz o seguinte:
Mas precisamente esse “assim e não de outro modo” poderia ser
proveniente desse ser mesmo, que não se comportaria de uma
determinada maneira somente em função de uma lei, senão por
ser constituído de uma determinada maneira. Isto quer dizer
simplesmente: que uma coisa não pode ser diferente do que ela é,
não pode fazer isto ou aquilo, não é livre nem não livre, senão é
precisamente de determinada maneira6
.
3 Doravante GM/GM.
4 NIETZSCHE. Genealogia da moral, I §13.
5 Tal posição apresentada na GM/GM também pode ser vista no GD/CI, onde o pensador afirma:
“primeiro exemplo de minha ‘transvaloração de todos os valores’: um ser que vingou, um ‘feliz’, tem
de realizar certas ações e receia instintivamente outras, ele carrega a ordem que representa
fisiologicamente para as suas relações com as pessoas e as coisas”. NIETZSCHE. Crepúsculo dos
Ídolos, VI § 2. Além de reforçar a posição da GM, pois esse ser que vingou não possui possibilidade
alternativa de se comportar diferentemente, a passagem citada ilustra que tal postura permanece nos
escritos de 1888 e em consonância com o projeto da transvaloração de todos os valores.
6 “Aber gerade jenes So-und-nicht-anders könnte aus dem Wesen selbst stammen, das nicht in Hinsicht
erst auf ein Gesetz sich so und so verhielte, sondern als so und so beschaffen. Es heißt nur: etwas kann
nicht auch etwas anderes sein, kann nicht bald dies, bald anderes thun, ist weder frei, noch unfrei,
260 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
leonardo camacho de oliveira
O fragmento, apesar de confuso, reforça a ideia de que uma força manifesta-
se em conformidade com o que ela é; da mesma forma ocorre com o conjunto de forças
que forma o “sujeito”: tal conjunto atua em conformidade com o que ele é, não havendo,
portanto, espaço para que se comporte de outra maneira. Vemos, não obstante, reforçada
a postura determinista de Nietzsche, pois dado um determinado sujeito e uma
determinada relação deste com o exterior, temos apenas uma ação possível, não havendo
espaço para contingência. Podemos, portanto, afirmar com segurança que todos os
acontecimentos do mundo são necessários, uma vez que resultam de uma determinada
combinação de forças, sendo que tal combinação é determinante e dela só pode resultar
um determinado acontecimento; um evento contingente, desta forma, é um evento
impossível:
A absoluta necessidade de um mesmo acontecer em um processo
cósmico, como em todos os demais, por toda a eternidade, não é
um determinismo acerca do acontecer, mas meramente a
expressão de que o impossível não é possível... de que uma força
determinada não pode ser nenhuma outra coisa que não
precisamente essa força determinada; de que ante um quantum
de resistência de força não se expressa de outro modo que não
como o correspondente a sua própria força7
– acontecer e
acontecer necessário são uma tautologia8
.
sondern eben so und so”. NIETZSCHE, Sämtliche Werke: Kritische Studien-ausgabe, KSA 2 [142]
outono de 1885/ outono de 1886.
7 Discordamos, com efeito, da afirmação de Azeredo de que as forças combinar-se-iam de forma
fortuita: “Simultaneamente, o acaso e a necessidade estão presentes no agir em Nietzsche, pois o
acaso expressa o caráter fortuito das combinações de força. A multiplicidade de vontades de potência,
que o filósofo interpreta enquanto acontecer, corresponde ao céu acaso”. AZEREDO, 2008, p. 259.
Resta claro, diante das afirmações nas obras publicadas e reforçadas nos póstumos, que as forças
combinam-se no fluxo que é a efetividade de forma determinada, onde uma combinação condiciona as
demais. Não esqueçamos que os quanta de força não se ordenam aleatoriamente, mas em função de
um quale: a busca por poder. Ademais, admitir o caráter fortuito da vontade de poder é tornar inútil a
pretensão genealógica de Nietzsche, pois o que o pensador se esmera em constatar através de uma
análise dos acontecimentos históricos com a lente da luta pelo domínio, poderia ser simplesmente
resultado de uma combinação de forças aleatória. As menções do filósofo ao “céu acaso” ou o uso de
metáforas como “o jogar de dados” aponta apenas para a limitação humana perspectivista, sob cuja
visão certos eventos podem parecer aleatórios tais como um jogar de dados, mas não representa em
absoluto a afirmação de um caráter fortuito no fluxo de forças e suas respectivas combinações.
8 “die absolute Necessität des gleichen Geschehens in einem Weltlauf wie in allen übrigen in Ewigkeit,
nicht ein Determinismus über dem Geschehen, sondern bloß der Ausdruck dessen, daß das
Unmögliche nicht möglich ist… daß eine bestimmte Kraft eben nichts anderes sein kann als eben
261 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
a dissolução do antagonismo liberdade x determinismo:
a contribuição compatibilista de nietzsche
Vemos como a afirmação de GM/GM I § 13 é solidificada e
argumentativamente ampliada nos póstumos a tal ponto de o filósofo afirmar que não há
diferença alguma entre acontecer e acontecer necessário, restando óbvia a conclusão de
que todo o acontecer é necessário, sendo assim vemos sepultada a possibilidade de
eventos contingentes e, por consequência, uma liberdade enquanto abertura aos
contrários é incompatível com o pensamento de Nietzsche9
.
Uma vez tendo sido consolidada a refutação da liberdade enquanto abertura
aos contrários no pensamento nietzschiano, podemos esboçar o antagonismo que motiva
esse trabalho de forma definitiva. O problema é constituído pela tensão entre duas
afirmações presentes na obra de Nietzsche no período delimitado: (i) de um lado, vemos
a proposição de uma visão de mundo determinista, o mundo é apresentado como vir-a-
ser de forças em constante conflito, no qual não há espaço para acontecimentos
contingentes; (ii) por outro lado, vemos constantes afirmações de tarefas e projetos e
uma preocupação por parte do filósofo em alterar os rumos da humanidade, ele chega
mesmo a arrogar-se a prerrogativa de ter “partido a história da humanidade em duas” e
ainda clama por aqueles que possam carregar a “grande responsabilidade”. Resta a
questão fundamental, qual o sentido das propostas e afirmações de (ii) se a ação humana
é determinada, se não cabe ao sujeito escolha alguma, ou seja, se (i) também é afirmado?
A afirmação simultânea de (i) e (ii) coloca o nosso antagonismo, cabe, doravante,
investigá-lo, a fim de demonstrar sua natureza aparente ou sacramentá-lo.
* * *
diese bestimmte Kraft; daß sie sich an einem Quantum Kraft-Widerstand nicht anders ausläßt, als
ihrer Stärke gemäß ist — Geschehen und Nothwendig-Geschehen ist eine Tautologie”. NIETZSCHE,
Sämtliche Werke: Kritische Studien-ausgabe, KSA 10 [138] outono de 1887.
9 Soma-se a argumentação apresentada em favor do determinismo da ação em Nietzsche as várias
críticas do filósofo a noção de liberdade da vontade Freiheit des Willens. Por serem tais críticas
notórias e já significativamente trabalhadas optamos por apenas referendá-las; o leitor as encontrará
em passagens tais como JGB/BM § 21, onde a noção de causa sui é apresentada como disparate,
GM/GM I § 13 em que a noção de um substrato livre subjacente à ação é descontruído, em GD/CI
onde temos a liberdade da vontade colocada enquanto um dos quatro grandes erros, isto para
apresentar apenas um rol ilustrativo.
262 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
leonardo camacho de oliveira
Iniciemos a tentativa de dissolver esse antagonismo analisando uma
passagem do Crepúsculo dos Ídolos10
, na qual Nietzsche afirma uma interessante relação
entre “sujeito” e destino:
Cada um é necessário, é um pedaço de destino, pertence ao todo,
está no todo – não há nada que possa julgar, medir, comparar,
condenar nosso ser, pois isto significaria julgar, medir, comparar,
condenar o todo... Mas não existe nada fora do todo!11
Na passagem encontramos uma relação importante para a questão antes
colocada, qual seja a de que o “sujeito” é um pedaço do destino, de modo que cada um
de nós compõe o destino. Todavia, a afirmação citada está conectada com outra
afirmação que lhe é anterior no texto: “Ninguém é responsável pelo fato de existir, por
ser assim ou assado, por se achar nessas circunstancias, nesse ambiente. A fatalidade do
seu ser não pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e será”12
. Vemos que o
objetivo do pensador no § é descontruir a noção de responsabilidade, o que se coloca na
ordem do capítulo logo após da desconstrução da liberdade negativa, liberdade enquanto
abertura aos contrários. Essa liberdade pressupõe uma separação causal entre homem e
mundo, pois ele, para ser livre nesse sentido deve ser causa de si mesmo, o que sabemos
tratar-se de um absurdo. Com efeito, o homem enquanto necessariamente conectado com
o todo e por ele determinado é um destino. Mas na passagem citada tal afirmação parece
tornar incompatível o fato de o homem ser um destino com o fato de ele ser responsável,
pois o filósofo inicia afirmando justamente que ninguém é responsável. Contudo, a
afirmação desta total irresponsabilidade parece ir de encontro ao próprio conceito de
liberdade positiva defendido por Nietzsche, lembremos: “Pois o que é liberdade? Ter a
vontade de responsabilidade por si próprio”13
. Ora, mas como pode o homem ser um
destino, ser determinado pelo todo e, portanto, não responsável e ter a vontade de
responsabilidade por si próprio? Não parece justamente que tais noções são excludentes?
10 Doravante CI/GD.
11 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, VI, § 8.
12 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, VI, § 8.
13 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, IX, § 38.
263 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
a dissolução do antagonismo liberdade x determinismo:
a contribuição compatibilista de nietzsche
Que ser um destino é incompatível com ser responsável por si próprio?
Parece que quanto mais nos aproximamos do amago do problema da
liberdade, mais somos tomados por questões e confrontados por paradoxos, mas não nos
enganemos, é justamente neste ponto que a resposta para o problema da liberdade de
Nietzsche surge. Antes de mais nada, é preciso compreender que responsabilidade e
destino são incompatíveis apenas enquanto operamos com um conceito de
reponsabilidade específico, se compreendemos responsabilidade como conectada com a
noção negativa de liberdade, ou seja, que alguém só é responsável se for causa única e
original de suas ações, e para tal terá de ser também causa de si mesmo, então
responsabilidade e determinismo são incompatíveis. Mas não esqueçamos que tal noção
de liberdade já foi devidamente sepultada pela crítica nietzschiana. Logo, a noção de
reponsabilidade apresentada em GD/CI, IX, §38 não é a mesma que está presente em
GD/CI, VI, §814
.
Com relação ainda ao paradigma refutado de liberdade e reponsabilidade,
vejamos como essas noções funcionam. Lembremos que elas pressupõe um sujeito, um
“eu” verdadeiro, que deve estar apartado do mundo, pois ele não pode sofrer
determinação causal deste. Logo, de acordo com essa visão, o destino age enquanto
força externa que coage este “eu” e impede que ele aja livremente, de forma que temos
um antagonismo entre “sujeito” e destino. Notemos, é este antagonismo que está na base
do problema de nosso trabalho e que reside justamente na incompatibilidade entre
responsabilidade (e qualquer proposta positiva do pensamento nietzschiano) e o
determinismo.
A chave para resolvermos o tão fatídico antagonismo é notar que ele
14 Oswaldo Giacoia Junior já nos alerta para a oposição entre uma responsabilidade enquanto culpa e
uma responsabilidade enquanto inocência: “O jogo entre necessidade e liberdade, entre despertar do
verdadeiro Si-Próprio e ilusão onírica da pseudosubjetividade, tem como contrapartida ética a
oposição entre inocência e culpa ou responsabilidade. Em sentido moral, o autodespertar implicaria na
coincidência entre a absoluta autodeterminação libertária – com a mais irrestrita responsabilidade por
si, pelos próprios pensamentos, sentimentos e ações, por um lado – e a mais completa (auto)supressão
de toda perspectiva de culpa e responsabilidade”. GIACOIA JUNIOR, 2012, p. 247/248. Com efeito,
ao despertar-se da ilusão da pseudosubjetividade e compreender-se como parte do todo, o sujeito
livra-se da noção de culpa, ao mesmo tempo que se habilita a uma reponsabilidade irrestrita por si:
“somente eu, em cada aqui e agora, sou responsável por tudo aquilo que aqui e agora penso, sinto e
faço”. GIACOIA JUNIOR, 2012, p. 249.
264 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
leonardo camacho de oliveira
pressupõe uma noção de destino que age externamente e coage o “sujeito”, é ai que
reside o cerne do antagonismo. Não obstante, Nietzsche não vai defender uma noção de
determinismo nestes termos, chegando mesmo a criticá-la em um fragmento póstumo, de
suma relevância:
Para combater o determinismo
De que algo ocorra de forma regular e calculável não resulta que
ocorra necessariamente. Que um quantum de força se determine
e se comporte em cada caso determinado de uma maneira única
não faz dele uma “vontade não livre”. A “necessidade mecânica”
não é um fato: fomos nós que a introduzimos no acontecer por
meio de nossa interpretação. Interpretamos a formulabilidade do
acontecer como consequência de uma necessidade que impera
sobre o acontecer. Mas de que eu faça algo determinado não se
segue de nenhuma maneira que eu esteja constrangido a fazê-lo.
A coação não é demonstrável15
nas coisas: a regra só demonstra
que um e o mesmo acontecimento não é também outro
acontecimento16
.
Vemos que Nietzsche se insurge justamente contra a noção de um
determinismo que implique coação, em outras palavras, ele ataca a ideia de um destino
que força o agente. Contudo, a noção de determinismo enquanto ausência de eventos
contingentes é mantida e mesmo afirmada, os homens é que a interpretaram de forma
errônea e afirmam haver coação onde não há. Um sujeito com uma determinada
configuração, dada determinada circunstância, só poderá agir de uma única forma, não
obstante, age sem ser coagido, age de acordo com a sua própria constituição e não
contrariamente a ela.
Para que se dê o antagonismo entre “sujeito” e destino, todavia, é necessária
15 Reforçam essa postura os fragmentos KSA 1 [44] de outono de 1885/ primavera 1886 e KSA 1 [114]
do mesmo período.
16 “Zur Bekämpfung des Determinismus.Daraus, daß Etwas regelmäßig erfolgt und berechenbar erfolgt,
ergiebt sich nicht, daß es nothwendig erfolgt. Daß ein Quantum Kraft sich in jedem bestimmten Falle
auf eine einzige Art und Weise bestimmt und benimmt, macht ihn nicht zum „unfreien Willen“. Die
„mechanische Nothwendigkeit“ ist kein Thatbestand: wir erst haben sie in das Geschehn hinein
interpretirt. Wir haben die Formulirbarkeit des Geschehens ausgedeutet als Folge einer über dem
Geschehen waltenden Necessität. Aber daraus, daß ich etwas Bestimmtes thue, folgt keineswegs, daß
ich es gezwungen thue. Der Zwang ist in den Dingen gar nicht nachweisbar: die Regel beweist nur,
daß ein und dasselbe Geschehn nicht auch ein anderes Geschehn ist”. NIETZSCHE, Sämtliche Werke:
Kritische Studien-ausgabe, KSA 9 [91] outono de 1887.
265 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
a dissolução do antagonismo liberdade x determinismo:
a contribuição compatibilista de nietzsche
a afirmação de uma cosmologia dualista, pois temos um lado o mundo, ou seja, o destino
que coage e de outro o “eu” o “sujeito” que é coagido. Mas tal dualismo não existe
dentro da visão do mundo enquanto vontade de poder, nesta visão não há dualismos,
pois: “O mundo visto dentro, o mundo definido e designado conforme seu “caráter
inteligível” – seria justamente “vontade de poder”, e nada mais”17
. Logo, o destino deixa
de ser compreendido enquanto agente externo que determina o “sujeito” e é entendido
como vir-a-ser e fluxo constante de forças, do qual o “sujeito” é parte integrante
enquanto ordenamento momentâneo de forças18
. Com efeito, o antagonismo mostra-se
como sendo aparente e é justamente neste sentido que Nietzsche afirma que o homem é
um destino, pois o homem é um centro de forças dentro da dinâmica global das forças e
nesse sentido é determinante para ela, tanto quanto é determinado por ela: “O indivíduo
é, de cima a baixo, uma parcela de factum [fado, destino], uma lei mais, uma
necessidade mais para tudo o que virá e será”19
. O filósofo abraça uma cosmologia na
qual uma modificação em uma parte, por mais ínfima que seja, condiciona todo o
restante do cosmos20
: “Supondo que o mundo dispusesse de um determinado quantum de
força, é evidente que todo o deslocamento de força em um sítio qualquer condiciona o
sistema completo21
”. O que era colocado como suposição em 1885/1886 é afirmado em
fragmentos de 188822
:
17 NIETZSCHE. Além do Bem e do Mal, §36.
18 Cabe notar, todavia, que a dissolução do sujeito na totalidade não representa uma anulação da
singularidade do indivíduo: “Além disso, a pseudounidade do eu é dissolvida na fusão com o todo da
natureza ou do cosmos. Essa fusão da singularidade ao todo, entretanto, não anula ou elimina a
singularidade do indivíduo, antes a encerra numa vivência ainda mais radical”. GIACOIA JUNIOR,
2012, p. 227. A noção metafísica de um sujeito apartado do mundo e capaz de ser causa de si mesmo é
que é refutada, abrindo-se, com isso, espaço para se pensar o sujeito enquanto parte do todo e
permitindo que as tradicionais noções de liberdade e responsabilidade possam ser superadas.
19 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, V, § 6.
20 Não podemos fechar os olhos para cenários profundamente contra intuitivos compatíveis com a
cosmovisão nietzschiana, por exemplo, temos que admitir que um sentimento de felicidade, ainda que
mantido em absoluto segredo, consiste em uma alteração na disposição das forças de um sujeito e, por
consequência, representa uma alteração que irá repercutir no todo. Parece-nos, não obstante, que esse
é um preço a pagar pela postura cosmológica adotada por Nietzsche; em defesa do filósofo, pergunte-
se o quão intuitivas são as atuais concepções de mundo da física teórica, e ter-se-á mais simpatia pela
proposta nietzschiana.
21 “Gesetzt, die Welt verfügte über Ein Quantum von Kraft, so liegt auf der Hand, daß jede Macht-
Verschiebung an irgend einer Stelle das ganze System bedingt”. NIETZSCHE. Sämtliche Werke:
Kritische Studien-ausgabe, KSA 2 [143] outono de 1885/ outono de 1886.
22 Serve ainda de reforço o fragmento KSA 14 [31] primavera de 1888.
266 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
leonardo camacho de oliveira
Um quantum de poder se define pelo efeito que produz e pelo
efeito ao qual resiste. Falta a adiaforia [indiferença]: a qual, em
si, seria pensável. É essencialmente uma vontade de violação e
de defender-se de violações. Não é autoconservação: todo átomo
produz efeitos em todo o ser inteiro, - se ele é suprimido, se
suprime essa radiação de querer/poder23
.
Quanta de força, cuja essência consiste em exercer poder sobre
todos os outros quanta de forças24
.
Vemos então que o “sujeito”, enquanto ordenação de forças, exerce
influência (produz efeito) em todo o acontecer, ou seja, em todo o ordenamento global
de forças, que para Nietzsche é o mundo; restando incontestável o fato de o antagonismo
“sujeito” x destino ter se dissolvido, pois o “sujeito”, não só é parte, como exerce
influência no todo, ao invés de ser coagido pelo destino (fluxo global das forças) é co-
determinante para ele.
E a partir da dissolução deste antagonismo aparente que podemos
compreender a nova noção de responsabilidade que Nietzsche está propondo, noção esta
que não só é compatível com o destino mas é definida justamente pelo fato de o homem
ser um destino25
. O homem é responsável enquanto parcela de factum, enquanto centro
23 “Ein Machtquantum ist durch die Wirkung, die es übt und der es widersteht, bezeichnet. Es fehlt die
Adiaphorie: die an sich denkbar wäre. Es ist essentiell ein Wille zur Vergewaltigung und sich gegen
Vergewaltigungen zu wehren. Nicht Selbsterhaltung: jedes Atom wirkt in das ganze Sein hinaus, — es
ist weggedacht, wenn man diese Strahlung von Machtwillen wegdenkt”. NIETZSCHE. Sämtliche
Werke: Kritische Studien-ausgabe, KSA 14 [79] primavera de 1888.
24 “Kraft-Quanta, deren Wesen darin besteht, auf alle anderen Kraft-Quanta Macht auszuüben”.
NIETZSCHE, Sämtliche Werke: Kritische Studien-ausgabe, KSA 14 [81] primavera de 1888.
25 Barrenechea apresenta uma abordagem existencial do problema da liberdade no livro Nietzsche e a
liberdade; nele o autor defende que a liberdade é alcançada no momento da afirmação do pensamento
do eterno retorno, tendo como centro de gravidade de sua análise o Zaratustra de Nietzsche. Contudo,
afirma que o próprio Nietzsche logrou realizar o percurso de seu Zaratustra, tornando-se livre ao
“tornar-se o que ele é”, o que estaria documentado na autobiografia do filósofo Ecce homo: “A
liberdade para Nietzsche é um caminho único e singular a ser desvelado por cada corpo. A indicação
genérica – ‘chega a ser o que tu és’ – assinala que cada um deve dar-se a própria norma – ‘chega a ser’
–, atendendo a sua ‘natureza’ – ‘o que tu és’. Nietzsche mostrou, na análise de sua própria vida, como
conseguiu tornar-se livre, ao afirmar a necessidade”. BARRENECHEA, 2008, p. 138. Embora
concordemos que a liberdade para Nietzsche está ligada a uma libertação da moralidade cristã e a
uma, consequente, aceitação, por parte do homem, de sua natureza pulsional (do que ele é).
Acreditamos que o referido trabalho perde de vista os contornos cosmológicos fundamentais ao
problema da liberdade, pois o agir livre do homem constitui justamente na sua participação ativa no
mundo, pois ele também é um destino, fato que permite uma nova e interessante compreensão da
reponsabilidade e acaba por dar corpo ao compatibilismo nietzschiano e trazer respostas mais
267 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
a dissolução do antagonismo liberdade x determinismo:
a contribuição compatibilista de nietzsche
de forças dentro da dinâmica global das forças26
, não por ser causa de si mesmo ou ter
abertura aos contrários em seu agir, mas por ser determinante para o todo.
Portanto, podemos concluir que a atuação do “sujeito” (e mesmo a atuação
do próprio Nietzsche), embora determinada, não se confunde com uma mera reação
passiva; podemos observar isto quando Nietzsche recomenda ao homem: “subtrair-se a
situações e relações em que se estaria sujeito e como que suspender sua ‘liberdade’, sua
iniciativa, e tornar-se apenas reagente”27
. Logo, o homem não é apenas reagente, mas
lembremos, o homem é um destino e por tal razão ele é responsável; ele é responsável
pois será determinante para o todo, daí o pensador falar que: “conforme a altura, a vida
se torna mais dura – o frio aumenta, a responsabilidade aumenta”28
. Quanto mais forte o
“sujeito”, quanto mais forças consegue aglutinar em seu ser, mais impacto terá na
economia global das forças e, portanto, mais reponsabilidade.
Podemos concluir, não obstante, que Nietzsche tem uma postura que
atualmente poderíamos chamar de compatibilista, pois afirma noções de liberdade e
responsabilidade compatíveis com o determinismo. Acreditamos que ao mesmo tempo
que critica uma noção de liberdade enquanto abertura aos contrários, bem como uma
noção de responsabilidade a ela atrelada, o filósofo propõe uma noção de liberdade
responsável. Uma vez que a liberdade do “sujeito” consiste justamente no seu impacto
no todo, pelo qual ele não pode deixar de ser responsável. Abandona-se o paradigma do
sujeito apartado do mundo e dono de sua ação e passa-se a operar com uma noção de
sujeito parte do todo, determinante e determinado pelo todo e que, principalmente, é
responsável por ser determinante para o todo. Tal noção é capaz de fazer jus à liberdade
afirmada em CI/GD “Pois o que é liberdade? Ter a vontade de responsabilidade por si
próprio”29
.
concretas, de modo que “tornar-se o que se é” consiste em apenas uma parte do complexo problema
da liberdade em Nietzsche.
26 Como o próprio Nietzsche diz: “somos mais que o indivíduo, somos toda a cadeia, com a adição das
tarefas de todo o futuro da cadeia” “Wir sind mehr als das Individuum, wir sind die ganze Kette noch
mit den Aufgaben aller Zukünfte der Kette”. NIETZSCHE, Sämtliche Werke: Kritische Studien-
ausgabe, KSA 9 [7] outono de 1887.
27 NIETZSCHE. Ecce Homo – por que sou tão inteligente, §8.
28 NIETZSCHE. O Anticristo, §57.
29 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, IX, §38.
268 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
leonardo camacho de oliveira
* * *
Antes de encerrar essa investigação gostaria de mostrar em umas poucas
linhas sua importância para os nossos dias. Tenho consciência do caráter exegético de
minha pesquisa, procurei como meta a fidelidade aos escritos nietzschianos para tentar
chegar o mais próximo possível de uma resposta ao problema da liberdade. Assim o fiz
ao investigar a hipótese norteadora desse trabalho.
Não obstante, acredito que esse trabalho tem um potencial que transcende ao
mero valor exegético, dada a atualidade da questão em análise e a resposta inovadora
descoberta. A filosofia de Nietzsche é determinada, fortemente, pelo evento da “morte de
Deus”, ele foi possivelmente o primeiro30
a dar-se conta da seriedade desse evento, da
importância que representa a derrocada de uma moral metafísica fundacionalista de
inspiração platônico-cristã, que imperou por mais de vinte séculos. Não podemos negar
que ainda hoje, na aurora do século XXI, continuamos nos confrontando com o vazio
deixado pela queda desse soberbo edifício metafísico. Ainda estamos a nos aperceber do
quanto de crentes temos, ou seja, de quão metafísica é ainda nossa autocompreensão.
Possivelmente a esmagadora maioria dos mais de seis bilhões de pessoas que habitam
esse planeta ainda se vê como sujeito livre, acreditando ser a causa sui de suas ações.
Os mais recentes estudos de neurociência31
, no entanto, cada vez mais
apontam para a falsidade dessa crença, de modo que sua justificação seja apenas a força
de um costume de quase dois mil anos. Nietzsche estava consciente da magnitude que
30 Com relação a originalidade da crítica nietzschiana à metafísica platônico-cristã e a profundidade dada
a mesma, referimos ao leitor o texto “Nietzsche e a completude do ateísmo” de Karl Löwith.
31 Referente a tais estudos merece destaque o experimento de Benjamin Libet Unconscious cerebral
initiative and the role of conscious wil in voluntary action, de 1985 e o experimento publicado em
2008, feito por um grupo de pesquisadores e intitulado Unconscious determinants of free decisions in
the human brain. Ambos os estudos focam na comprovação empírica de atividades cerebrais que
antecipam a escolha consciente, chegando mesmo a tornar possível prever a decisão a ser tomada em
até 10 segundos antes de que a mesma torne-se consciente. Obras referendadas: BRASS; HAYNES;
HEINZE; SOON. Unconscious determinants of free decisions in the human brain. Nature
neuroscience. 2008, p. 1-3. Disponível em: http://www.nature.com/natureneuroscience/. LIBET, B.
Unconscious cerebral initiative and the role of conscious wil in voluntary action. The behavioral and
brain sciences. V. 8, 1985, p. 529-566.
269 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
a dissolução do antagonismo liberdade x determinismo:
a contribuição compatibilista de nietzsche
representa o abandono de um tal costume.
Tenho consciência que a “morte de Deus” é um evento que abrange uma
ampla gama de noções e crenças, não podendo ser reduzido à destruição da crença na
liberdade absoluta. Todavia, penso que essa liberdade é um elemento central, pois sobre
ela repousa a mais amplamente divulgada noção de responsabilidade, de modo que, todo
nosso sistema jurídico e nossas relações morais passam por uma noção de
reponsabilidade que, no mais das vezes, se atrela à “cem vezes refutada” crença na
liberdade da vontade. Portanto, não pode haver dúvida da atualidade e grandeza que tem
o problema da liberdade, não só para o Nietzsche do final do século XIX, mas para nós
na aurora do século XXI.
Em segundo lugar, creio que o filósofo alemão enfrentou tal problema, tendo
em vista toda uma série de variáveis fundamentais, que ainda hoje, talvez, não tenham
recebido a devida atenção. Nietzsche debruçou-se sobre a questão da liberdade pensando
o ser humano enquanto “carne e osso”, ou seja, ele estava a par das instigantes, e ao
mesmo tempo preocupantes, implicações da fisiologia sobre nós. Ao abrir as portas para
uma reflexão filosófica da fisiologia, permitiu questionar o quanto essa última é capaz
de influencia/determinar o que somos. Pensemos agora o quanto isso torna complexa a
questão da liberdade, pois que liberdade posso ter se minhas ações e mesmo minha
personalidade é afetada diretamente pelas relações fisiológicas de meu corpo, ou posto
de forma mais crua, até que ponto essa liberdade é algo mais que uma simples relação
físico-química no meu cérebro?
Mas não só relativamente a questão da fisiologia, Nietzsche elevou a questão
psicológica a outro patamar, ao desencravar das entranhas do “eu” toda uma gama de
impulsos inconscientes, cuja luta também é determinante para o que somos. E,
novamente a questão se aprofunda, como posso me dizer livre se toda minha atuação
racional e consciente não passa da superfície de um interior profundo de impulsos em
luta.
Por tudo isso é que acredito na importância que a resposta nietzschiana ao
problema da liberdade tem, foi com o pensamento de Nietzsche que o problema da
liberdade se confrontou com as variáveis fundamentais, as quais nos forçam a revisitar a
270 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
leonardo camacho de oliveira
nossa própria autocompreensão. Vemos nas considerações de Nietzsche sobre a
liberdade um guia inestimável para enfrentar o vazio da “morte de Deus”, juntando os
cacos de nossa “natureza humana” mais profunda e paradoxal e buscando, nas ruínas das
catedrais que dois mil anos de metafísica construíram, os fragmentos de nossos ser, que
quiçá permitam tornarmo-nos aquilo que somos.
Referências
AZEREDO, V. D. de. Nietzsche e a autora de uma nova ética. São Paulo: Editora
Unijuí, 2008.
BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche e a liberdade. Rio de Janeiro: Editora Sete
Letras, 2008.
GIACOIA JUNIOR, O. Nietzsche x Kant: uma disputa permanente a respeito da
liberdade, autonomia e dever. São Paulo: Editora Casa do Saber, 2012.
MÜLLER-LAUTER, W. Nietzsche: sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos
de sua filosofia. São Paulo: Unifesp, 2011.
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Trad. de Paulo C. de Souza. São Paulo:
Companhia de Bolso, 2007.
__________. Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo. Trad. de Paulo
C. de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2010.
__________. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. de Paulo C. de Souza.
São Paulo: Companhia de Bolso, 2008.
__________. Fragmentos póstumos (1885-1888) (Vol. IV). Edición española dirigida por
Diego Sánches Meca. Madrid: Editorial Tecnos (Grupo Anaya, S. A.), 2008.
__________. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. de Paulo C. de Souza. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2009.
__________. O Anticristo. Maldição ao cristianismo; Ditirambos de Dioniso. Trad. de
Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2007.
__________. Sämtliche Werke: Digitale Kritische Gesamtausgabe – Digital version of
271 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
a dissolução do antagonismo liberdade x determinismo:
a contribuição compatibilista de nietzsche
the German critical edition of the complete works of Nietzsche edited by Giorgio Colli
and Mazzino Montinari. Disponível em: <http://www.nietzschesource.org/>.
272 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015

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18 n2-leonardo-cmacho-de-oliveira

  • 1. dossiê orgs. daniel f. carvalho, vitor cei A DISSOLUÇÃO DO ANTAGONISMO LIBERDADE X DETERMINISMO: A CONTRIBUIÇÃO COMPATIBILISTA DE NIETZSCHE Leonardo Camacho de Oliveira1 RESUMO: O objeto do presente trabalho é apresentar o posicionamento de Nietzsche com relação ao problema da liberdade, centrado, fundamentalmente, nos escritos tardios (1885 – 1889) do autor. Defendo que o referido problema se apresenta como um antagonismo que se forma entre: (i) as afirmações de cunho determinista de Nietzsche, que negam a existência de uma liberdade de optar entre contrários na ação, e (ii) a afirmação de noções de positivas de liberdade e responsabilidade. O problema coloca-se dada a afirmação simultânea de (i) e (ii); como pode Nietzsche criticar veementemente os conceitos de liberdade e responsabilidade e ainda assim utilizá-los em suas colocações propositivas? Inspirado no método de Wolfgang Müller-Lauter, intentarei mostrar que o antagonismo entre (i) e (ii) não é essencial mas aparente. Observar-se-á que a noção de liberdade defendida por Nietzsche mostra-se compatível com o determinismo, pois ressalta o papel ativo do “sujeito” enquanto “pedaço do destino”, sendo simultaneamente determinado e determinante para o todo. Ao eliminar a separação entre “sujeito” e mundo o filósofo dissolve o antagonismo entre determinismo e liberdade, de modo que desse compatibilismo advém uma interessante noção de “liberdade responsável”, pois o “sujeito” não mais é o “dono” de sua ação – nos moldes da liberdade enquanto espontaneidade, mas é responsável por ela e por sua repercussão no todo. Palavras-chave: Compatibilismo, Liberdade da vontade, Responsabilidade moral, Vontade de poder. ABSTRACT: This paper analyzes the free will problem in Nietzsche’s philosophy, especially in his later writings (1885-1889). I believe that such problem appears in the form of an antagonism between: (i) the criticism and determinist approach towards the existence of a freedom to do otherwise in human action; and, (ii) Nietzsche’s use of positive notions of freedom and responsibility. The issue at stake comes from the simultaneous statement of (i) and (ii), how can Nietzsche criticize so heavily the concepts of freedom and responsibility and still use them in his positive agenda? Nevertheless, inspired in Wolfgang Müller-Lauter methodology, I intent to show that such antagonism is not essential, but merely an apparent one. It will be seen that 1 Bacharel em Direito e Filosofia e Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. E-mail: leocamacho@globo.com. 258 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
  • 2. leonardo camacho de oliveira Nietzsche’s notion of freedom is compatible with determinism, for it enhances the active role of the “subject” as a “piece of fatefulness”, being himself at the same time determined and determining for the whole. When Nietzsche eliminates the separation between “subject” and world, he dissolves the antagonism between freedom and determinism, and from such compatibilism arises an interesting notion of “responsible freedom”, for the “subject” is no longer “the owner” of his actions – as it was under the freedom to do otherwise paradigm – but is responsible for it, and for its repercussion in the whole. Keywords: Compatibilism, Free will, Moral responsibility, Will to power. Para que o antagonismo que pretendemos analisar seja colocado adequadamente se faz necessário investigar, ainda que brevemente, a questão do determinismo no pensamento nietzschiano. Posicionar o pensador alemão entre os deterministas talvez não seja a forma mais apropriada de abordar a referida questão, isso nos levaria ao candente debate em torno do estatuto da “cosmologia” de Nietzsche, desviando o nosso curso para outro antagonismo, esse entre a epistemologia perspectivista defendida por ele em Para Além do Bem e do Mal2 § 22 e a interpretação cosmológica da vontade de poder em BM/JGB § 36. Reconhecendo o caráter hercúleo de abordar o antagonismo que tal desvio de curso acarreta, optamos por modificar a questão, ao invés de indagarmos se o pensamento de Nietzsche implica uma cosmologia determinista, questionaremos se uma noção de liberdade enquanto abertura aos contrários – que permita ao agente escolher, dada uma mesma conformação interna e circunstâncias externas, entre cursos alternativos de ação – pode prosperar em sua visão de mundo; pois, para que o antagonismo que pretendemos investigar seja colocado, basta a refutação de uma noção de liberdade nesses termos. Com efeito, ao afirmarmos que Nietzsche é determinista nesse texto, não é nossa intenção afirmar que ele defende uma cosmologia com uma noção forte de causalidade determinista, mas sim que sua visão de mundo é incompatível com a liberdade enquanto abertura aos contrários. 2 Doravante BM/JGB. 259 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
  • 3. a dissolução do antagonismo liberdade x determinismo: a contribuição compatibilista de nietzsche Isto posto, voltemos nossa atenção para a obra Genealogia da moral3 onde encontramos uma afirmação de grande importância: “Exigir da força que n ã o se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer- subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força”4 . Grosso modo, o que a passagem nos diz é que uma força – ou uma ordenação de forças – é incapaz de se expressar de forma contrária ao que ela é5 . Ora, parece adequado pensarmos que dada uma determinada configuração de forças, relacionando-se de uma determinada forma com o fluxo global de forças, só pode advir um determinado evento. Em razão de Nietzsche compreender o sujeito enquanto ordenação de forças, a dinâmica apresentada pode muito bem ser expandida para o âmbito da ação humana, eliminando assim uma possível liberdade de escolha do agente, pois ele age em conformidade com o que ele é e devido às circunstâncias que o cercam. O que é dito de forma comprimida e breve na obra publicada é consideravelmente ampliado no seguinte fragmento póstumo do período do outono de 1885 ao outono de 1886, no qual Nietzsche, ao tratar da criação de leis a partir de regularidades, nos diz o seguinte: Mas precisamente esse “assim e não de outro modo” poderia ser proveniente desse ser mesmo, que não se comportaria de uma determinada maneira somente em função de uma lei, senão por ser constituído de uma determinada maneira. Isto quer dizer simplesmente: que uma coisa não pode ser diferente do que ela é, não pode fazer isto ou aquilo, não é livre nem não livre, senão é precisamente de determinada maneira6 . 3 Doravante GM/GM. 4 NIETZSCHE. Genealogia da moral, I §13. 5 Tal posição apresentada na GM/GM também pode ser vista no GD/CI, onde o pensador afirma: “primeiro exemplo de minha ‘transvaloração de todos os valores’: um ser que vingou, um ‘feliz’, tem de realizar certas ações e receia instintivamente outras, ele carrega a ordem que representa fisiologicamente para as suas relações com as pessoas e as coisas”. NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, VI § 2. Além de reforçar a posição da GM, pois esse ser que vingou não possui possibilidade alternativa de se comportar diferentemente, a passagem citada ilustra que tal postura permanece nos escritos de 1888 e em consonância com o projeto da transvaloração de todos os valores. 6 “Aber gerade jenes So-und-nicht-anders könnte aus dem Wesen selbst stammen, das nicht in Hinsicht erst auf ein Gesetz sich so und so verhielte, sondern als so und so beschaffen. Es heißt nur: etwas kann nicht auch etwas anderes sein, kann nicht bald dies, bald anderes thun, ist weder frei, noch unfrei, 260 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
  • 4. leonardo camacho de oliveira O fragmento, apesar de confuso, reforça a ideia de que uma força manifesta- se em conformidade com o que ela é; da mesma forma ocorre com o conjunto de forças que forma o “sujeito”: tal conjunto atua em conformidade com o que ele é, não havendo, portanto, espaço para que se comporte de outra maneira. Vemos, não obstante, reforçada a postura determinista de Nietzsche, pois dado um determinado sujeito e uma determinada relação deste com o exterior, temos apenas uma ação possível, não havendo espaço para contingência. Podemos, portanto, afirmar com segurança que todos os acontecimentos do mundo são necessários, uma vez que resultam de uma determinada combinação de forças, sendo que tal combinação é determinante e dela só pode resultar um determinado acontecimento; um evento contingente, desta forma, é um evento impossível: A absoluta necessidade de um mesmo acontecer em um processo cósmico, como em todos os demais, por toda a eternidade, não é um determinismo acerca do acontecer, mas meramente a expressão de que o impossível não é possível... de que uma força determinada não pode ser nenhuma outra coisa que não precisamente essa força determinada; de que ante um quantum de resistência de força não se expressa de outro modo que não como o correspondente a sua própria força7 – acontecer e acontecer necessário são uma tautologia8 . sondern eben so und so”. NIETZSCHE, Sämtliche Werke: Kritische Studien-ausgabe, KSA 2 [142] outono de 1885/ outono de 1886. 7 Discordamos, com efeito, da afirmação de Azeredo de que as forças combinar-se-iam de forma fortuita: “Simultaneamente, o acaso e a necessidade estão presentes no agir em Nietzsche, pois o acaso expressa o caráter fortuito das combinações de força. A multiplicidade de vontades de potência, que o filósofo interpreta enquanto acontecer, corresponde ao céu acaso”. AZEREDO, 2008, p. 259. Resta claro, diante das afirmações nas obras publicadas e reforçadas nos póstumos, que as forças combinam-se no fluxo que é a efetividade de forma determinada, onde uma combinação condiciona as demais. Não esqueçamos que os quanta de força não se ordenam aleatoriamente, mas em função de um quale: a busca por poder. Ademais, admitir o caráter fortuito da vontade de poder é tornar inútil a pretensão genealógica de Nietzsche, pois o que o pensador se esmera em constatar através de uma análise dos acontecimentos históricos com a lente da luta pelo domínio, poderia ser simplesmente resultado de uma combinação de forças aleatória. As menções do filósofo ao “céu acaso” ou o uso de metáforas como “o jogar de dados” aponta apenas para a limitação humana perspectivista, sob cuja visão certos eventos podem parecer aleatórios tais como um jogar de dados, mas não representa em absoluto a afirmação de um caráter fortuito no fluxo de forças e suas respectivas combinações. 8 “die absolute Necessität des gleichen Geschehens in einem Weltlauf wie in allen übrigen in Ewigkeit, nicht ein Determinismus über dem Geschehen, sondern bloß der Ausdruck dessen, daß das Unmögliche nicht möglich ist… daß eine bestimmte Kraft eben nichts anderes sein kann als eben 261 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
  • 5. a dissolução do antagonismo liberdade x determinismo: a contribuição compatibilista de nietzsche Vemos como a afirmação de GM/GM I § 13 é solidificada e argumentativamente ampliada nos póstumos a tal ponto de o filósofo afirmar que não há diferença alguma entre acontecer e acontecer necessário, restando óbvia a conclusão de que todo o acontecer é necessário, sendo assim vemos sepultada a possibilidade de eventos contingentes e, por consequência, uma liberdade enquanto abertura aos contrários é incompatível com o pensamento de Nietzsche9 . Uma vez tendo sido consolidada a refutação da liberdade enquanto abertura aos contrários no pensamento nietzschiano, podemos esboçar o antagonismo que motiva esse trabalho de forma definitiva. O problema é constituído pela tensão entre duas afirmações presentes na obra de Nietzsche no período delimitado: (i) de um lado, vemos a proposição de uma visão de mundo determinista, o mundo é apresentado como vir-a- ser de forças em constante conflito, no qual não há espaço para acontecimentos contingentes; (ii) por outro lado, vemos constantes afirmações de tarefas e projetos e uma preocupação por parte do filósofo em alterar os rumos da humanidade, ele chega mesmo a arrogar-se a prerrogativa de ter “partido a história da humanidade em duas” e ainda clama por aqueles que possam carregar a “grande responsabilidade”. Resta a questão fundamental, qual o sentido das propostas e afirmações de (ii) se a ação humana é determinada, se não cabe ao sujeito escolha alguma, ou seja, se (i) também é afirmado? A afirmação simultânea de (i) e (ii) coloca o nosso antagonismo, cabe, doravante, investigá-lo, a fim de demonstrar sua natureza aparente ou sacramentá-lo. * * * diese bestimmte Kraft; daß sie sich an einem Quantum Kraft-Widerstand nicht anders ausläßt, als ihrer Stärke gemäß ist — Geschehen und Nothwendig-Geschehen ist eine Tautologie”. NIETZSCHE, Sämtliche Werke: Kritische Studien-ausgabe, KSA 10 [138] outono de 1887. 9 Soma-se a argumentação apresentada em favor do determinismo da ação em Nietzsche as várias críticas do filósofo a noção de liberdade da vontade Freiheit des Willens. Por serem tais críticas notórias e já significativamente trabalhadas optamos por apenas referendá-las; o leitor as encontrará em passagens tais como JGB/BM § 21, onde a noção de causa sui é apresentada como disparate, GM/GM I § 13 em que a noção de um substrato livre subjacente à ação é descontruído, em GD/CI onde temos a liberdade da vontade colocada enquanto um dos quatro grandes erros, isto para apresentar apenas um rol ilustrativo. 262 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
  • 6. leonardo camacho de oliveira Iniciemos a tentativa de dissolver esse antagonismo analisando uma passagem do Crepúsculo dos Ídolos10 , na qual Nietzsche afirma uma interessante relação entre “sujeito” e destino: Cada um é necessário, é um pedaço de destino, pertence ao todo, está no todo – não há nada que possa julgar, medir, comparar, condenar nosso ser, pois isto significaria julgar, medir, comparar, condenar o todo... Mas não existe nada fora do todo!11 Na passagem encontramos uma relação importante para a questão antes colocada, qual seja a de que o “sujeito” é um pedaço do destino, de modo que cada um de nós compõe o destino. Todavia, a afirmação citada está conectada com outra afirmação que lhe é anterior no texto: “Ninguém é responsável pelo fato de existir, por ser assim ou assado, por se achar nessas circunstancias, nesse ambiente. A fatalidade do seu ser não pode ser destrinchada da fatalidade de tudo o que foi e será”12 . Vemos que o objetivo do pensador no § é descontruir a noção de responsabilidade, o que se coloca na ordem do capítulo logo após da desconstrução da liberdade negativa, liberdade enquanto abertura aos contrários. Essa liberdade pressupõe uma separação causal entre homem e mundo, pois ele, para ser livre nesse sentido deve ser causa de si mesmo, o que sabemos tratar-se de um absurdo. Com efeito, o homem enquanto necessariamente conectado com o todo e por ele determinado é um destino. Mas na passagem citada tal afirmação parece tornar incompatível o fato de o homem ser um destino com o fato de ele ser responsável, pois o filósofo inicia afirmando justamente que ninguém é responsável. Contudo, a afirmação desta total irresponsabilidade parece ir de encontro ao próprio conceito de liberdade positiva defendido por Nietzsche, lembremos: “Pois o que é liberdade? Ter a vontade de responsabilidade por si próprio”13 . Ora, mas como pode o homem ser um destino, ser determinado pelo todo e, portanto, não responsável e ter a vontade de responsabilidade por si próprio? Não parece justamente que tais noções são excludentes? 10 Doravante CI/GD. 11 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, VI, § 8. 12 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, VI, § 8. 13 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, IX, § 38. 263 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
  • 7. a dissolução do antagonismo liberdade x determinismo: a contribuição compatibilista de nietzsche Que ser um destino é incompatível com ser responsável por si próprio? Parece que quanto mais nos aproximamos do amago do problema da liberdade, mais somos tomados por questões e confrontados por paradoxos, mas não nos enganemos, é justamente neste ponto que a resposta para o problema da liberdade de Nietzsche surge. Antes de mais nada, é preciso compreender que responsabilidade e destino são incompatíveis apenas enquanto operamos com um conceito de reponsabilidade específico, se compreendemos responsabilidade como conectada com a noção negativa de liberdade, ou seja, que alguém só é responsável se for causa única e original de suas ações, e para tal terá de ser também causa de si mesmo, então responsabilidade e determinismo são incompatíveis. Mas não esqueçamos que tal noção de liberdade já foi devidamente sepultada pela crítica nietzschiana. Logo, a noção de reponsabilidade apresentada em GD/CI, IX, §38 não é a mesma que está presente em GD/CI, VI, §814 . Com relação ainda ao paradigma refutado de liberdade e reponsabilidade, vejamos como essas noções funcionam. Lembremos que elas pressupõe um sujeito, um “eu” verdadeiro, que deve estar apartado do mundo, pois ele não pode sofrer determinação causal deste. Logo, de acordo com essa visão, o destino age enquanto força externa que coage este “eu” e impede que ele aja livremente, de forma que temos um antagonismo entre “sujeito” e destino. Notemos, é este antagonismo que está na base do problema de nosso trabalho e que reside justamente na incompatibilidade entre responsabilidade (e qualquer proposta positiva do pensamento nietzschiano) e o determinismo. A chave para resolvermos o tão fatídico antagonismo é notar que ele 14 Oswaldo Giacoia Junior já nos alerta para a oposição entre uma responsabilidade enquanto culpa e uma responsabilidade enquanto inocência: “O jogo entre necessidade e liberdade, entre despertar do verdadeiro Si-Próprio e ilusão onírica da pseudosubjetividade, tem como contrapartida ética a oposição entre inocência e culpa ou responsabilidade. Em sentido moral, o autodespertar implicaria na coincidência entre a absoluta autodeterminação libertária – com a mais irrestrita responsabilidade por si, pelos próprios pensamentos, sentimentos e ações, por um lado – e a mais completa (auto)supressão de toda perspectiva de culpa e responsabilidade”. GIACOIA JUNIOR, 2012, p. 247/248. Com efeito, ao despertar-se da ilusão da pseudosubjetividade e compreender-se como parte do todo, o sujeito livra-se da noção de culpa, ao mesmo tempo que se habilita a uma reponsabilidade irrestrita por si: “somente eu, em cada aqui e agora, sou responsável por tudo aquilo que aqui e agora penso, sinto e faço”. GIACOIA JUNIOR, 2012, p. 249. 264 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
  • 8. leonardo camacho de oliveira pressupõe uma noção de destino que age externamente e coage o “sujeito”, é ai que reside o cerne do antagonismo. Não obstante, Nietzsche não vai defender uma noção de determinismo nestes termos, chegando mesmo a criticá-la em um fragmento póstumo, de suma relevância: Para combater o determinismo De que algo ocorra de forma regular e calculável não resulta que ocorra necessariamente. Que um quantum de força se determine e se comporte em cada caso determinado de uma maneira única não faz dele uma “vontade não livre”. A “necessidade mecânica” não é um fato: fomos nós que a introduzimos no acontecer por meio de nossa interpretação. Interpretamos a formulabilidade do acontecer como consequência de uma necessidade que impera sobre o acontecer. Mas de que eu faça algo determinado não se segue de nenhuma maneira que eu esteja constrangido a fazê-lo. A coação não é demonstrável15 nas coisas: a regra só demonstra que um e o mesmo acontecimento não é também outro acontecimento16 . Vemos que Nietzsche se insurge justamente contra a noção de um determinismo que implique coação, em outras palavras, ele ataca a ideia de um destino que força o agente. Contudo, a noção de determinismo enquanto ausência de eventos contingentes é mantida e mesmo afirmada, os homens é que a interpretaram de forma errônea e afirmam haver coação onde não há. Um sujeito com uma determinada configuração, dada determinada circunstância, só poderá agir de uma única forma, não obstante, age sem ser coagido, age de acordo com a sua própria constituição e não contrariamente a ela. Para que se dê o antagonismo entre “sujeito” e destino, todavia, é necessária 15 Reforçam essa postura os fragmentos KSA 1 [44] de outono de 1885/ primavera 1886 e KSA 1 [114] do mesmo período. 16 “Zur Bekämpfung des Determinismus.Daraus, daß Etwas regelmäßig erfolgt und berechenbar erfolgt, ergiebt sich nicht, daß es nothwendig erfolgt. Daß ein Quantum Kraft sich in jedem bestimmten Falle auf eine einzige Art und Weise bestimmt und benimmt, macht ihn nicht zum „unfreien Willen“. Die „mechanische Nothwendigkeit“ ist kein Thatbestand: wir erst haben sie in das Geschehn hinein interpretirt. Wir haben die Formulirbarkeit des Geschehens ausgedeutet als Folge einer über dem Geschehen waltenden Necessität. Aber daraus, daß ich etwas Bestimmtes thue, folgt keineswegs, daß ich es gezwungen thue. Der Zwang ist in den Dingen gar nicht nachweisbar: die Regel beweist nur, daß ein und dasselbe Geschehn nicht auch ein anderes Geschehn ist”. NIETZSCHE, Sämtliche Werke: Kritische Studien-ausgabe, KSA 9 [91] outono de 1887. 265 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
  • 9. a dissolução do antagonismo liberdade x determinismo: a contribuição compatibilista de nietzsche a afirmação de uma cosmologia dualista, pois temos um lado o mundo, ou seja, o destino que coage e de outro o “eu” o “sujeito” que é coagido. Mas tal dualismo não existe dentro da visão do mundo enquanto vontade de poder, nesta visão não há dualismos, pois: “O mundo visto dentro, o mundo definido e designado conforme seu “caráter inteligível” – seria justamente “vontade de poder”, e nada mais”17 . Logo, o destino deixa de ser compreendido enquanto agente externo que determina o “sujeito” e é entendido como vir-a-ser e fluxo constante de forças, do qual o “sujeito” é parte integrante enquanto ordenamento momentâneo de forças18 . Com efeito, o antagonismo mostra-se como sendo aparente e é justamente neste sentido que Nietzsche afirma que o homem é um destino, pois o homem é um centro de forças dentro da dinâmica global das forças e nesse sentido é determinante para ela, tanto quanto é determinado por ela: “O indivíduo é, de cima a baixo, uma parcela de factum [fado, destino], uma lei mais, uma necessidade mais para tudo o que virá e será”19 . O filósofo abraça uma cosmologia na qual uma modificação em uma parte, por mais ínfima que seja, condiciona todo o restante do cosmos20 : “Supondo que o mundo dispusesse de um determinado quantum de força, é evidente que todo o deslocamento de força em um sítio qualquer condiciona o sistema completo21 ”. O que era colocado como suposição em 1885/1886 é afirmado em fragmentos de 188822 : 17 NIETZSCHE. Além do Bem e do Mal, §36. 18 Cabe notar, todavia, que a dissolução do sujeito na totalidade não representa uma anulação da singularidade do indivíduo: “Além disso, a pseudounidade do eu é dissolvida na fusão com o todo da natureza ou do cosmos. Essa fusão da singularidade ao todo, entretanto, não anula ou elimina a singularidade do indivíduo, antes a encerra numa vivência ainda mais radical”. GIACOIA JUNIOR, 2012, p. 227. A noção metafísica de um sujeito apartado do mundo e capaz de ser causa de si mesmo é que é refutada, abrindo-se, com isso, espaço para se pensar o sujeito enquanto parte do todo e permitindo que as tradicionais noções de liberdade e responsabilidade possam ser superadas. 19 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, V, § 6. 20 Não podemos fechar os olhos para cenários profundamente contra intuitivos compatíveis com a cosmovisão nietzschiana, por exemplo, temos que admitir que um sentimento de felicidade, ainda que mantido em absoluto segredo, consiste em uma alteração na disposição das forças de um sujeito e, por consequência, representa uma alteração que irá repercutir no todo. Parece-nos, não obstante, que esse é um preço a pagar pela postura cosmológica adotada por Nietzsche; em defesa do filósofo, pergunte- se o quão intuitivas são as atuais concepções de mundo da física teórica, e ter-se-á mais simpatia pela proposta nietzschiana. 21 “Gesetzt, die Welt verfügte über Ein Quantum von Kraft, so liegt auf der Hand, daß jede Macht- Verschiebung an irgend einer Stelle das ganze System bedingt”. NIETZSCHE. Sämtliche Werke: Kritische Studien-ausgabe, KSA 2 [143] outono de 1885/ outono de 1886. 22 Serve ainda de reforço o fragmento KSA 14 [31] primavera de 1888. 266 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
  • 10. leonardo camacho de oliveira Um quantum de poder se define pelo efeito que produz e pelo efeito ao qual resiste. Falta a adiaforia [indiferença]: a qual, em si, seria pensável. É essencialmente uma vontade de violação e de defender-se de violações. Não é autoconservação: todo átomo produz efeitos em todo o ser inteiro, - se ele é suprimido, se suprime essa radiação de querer/poder23 . Quanta de força, cuja essência consiste em exercer poder sobre todos os outros quanta de forças24 . Vemos então que o “sujeito”, enquanto ordenação de forças, exerce influência (produz efeito) em todo o acontecer, ou seja, em todo o ordenamento global de forças, que para Nietzsche é o mundo; restando incontestável o fato de o antagonismo “sujeito” x destino ter se dissolvido, pois o “sujeito”, não só é parte, como exerce influência no todo, ao invés de ser coagido pelo destino (fluxo global das forças) é co- determinante para ele. E a partir da dissolução deste antagonismo aparente que podemos compreender a nova noção de responsabilidade que Nietzsche está propondo, noção esta que não só é compatível com o destino mas é definida justamente pelo fato de o homem ser um destino25 . O homem é responsável enquanto parcela de factum, enquanto centro 23 “Ein Machtquantum ist durch die Wirkung, die es übt und der es widersteht, bezeichnet. Es fehlt die Adiaphorie: die an sich denkbar wäre. Es ist essentiell ein Wille zur Vergewaltigung und sich gegen Vergewaltigungen zu wehren. Nicht Selbsterhaltung: jedes Atom wirkt in das ganze Sein hinaus, — es ist weggedacht, wenn man diese Strahlung von Machtwillen wegdenkt”. NIETZSCHE. Sämtliche Werke: Kritische Studien-ausgabe, KSA 14 [79] primavera de 1888. 24 “Kraft-Quanta, deren Wesen darin besteht, auf alle anderen Kraft-Quanta Macht auszuüben”. NIETZSCHE, Sämtliche Werke: Kritische Studien-ausgabe, KSA 14 [81] primavera de 1888. 25 Barrenechea apresenta uma abordagem existencial do problema da liberdade no livro Nietzsche e a liberdade; nele o autor defende que a liberdade é alcançada no momento da afirmação do pensamento do eterno retorno, tendo como centro de gravidade de sua análise o Zaratustra de Nietzsche. Contudo, afirma que o próprio Nietzsche logrou realizar o percurso de seu Zaratustra, tornando-se livre ao “tornar-se o que ele é”, o que estaria documentado na autobiografia do filósofo Ecce homo: “A liberdade para Nietzsche é um caminho único e singular a ser desvelado por cada corpo. A indicação genérica – ‘chega a ser o que tu és’ – assinala que cada um deve dar-se a própria norma – ‘chega a ser’ –, atendendo a sua ‘natureza’ – ‘o que tu és’. Nietzsche mostrou, na análise de sua própria vida, como conseguiu tornar-se livre, ao afirmar a necessidade”. BARRENECHEA, 2008, p. 138. Embora concordemos que a liberdade para Nietzsche está ligada a uma libertação da moralidade cristã e a uma, consequente, aceitação, por parte do homem, de sua natureza pulsional (do que ele é). Acreditamos que o referido trabalho perde de vista os contornos cosmológicos fundamentais ao problema da liberdade, pois o agir livre do homem constitui justamente na sua participação ativa no mundo, pois ele também é um destino, fato que permite uma nova e interessante compreensão da reponsabilidade e acaba por dar corpo ao compatibilismo nietzschiano e trazer respostas mais 267 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
  • 11. a dissolução do antagonismo liberdade x determinismo: a contribuição compatibilista de nietzsche de forças dentro da dinâmica global das forças26 , não por ser causa de si mesmo ou ter abertura aos contrários em seu agir, mas por ser determinante para o todo. Portanto, podemos concluir que a atuação do “sujeito” (e mesmo a atuação do próprio Nietzsche), embora determinada, não se confunde com uma mera reação passiva; podemos observar isto quando Nietzsche recomenda ao homem: “subtrair-se a situações e relações em que se estaria sujeito e como que suspender sua ‘liberdade’, sua iniciativa, e tornar-se apenas reagente”27 . Logo, o homem não é apenas reagente, mas lembremos, o homem é um destino e por tal razão ele é responsável; ele é responsável pois será determinante para o todo, daí o pensador falar que: “conforme a altura, a vida se torna mais dura – o frio aumenta, a responsabilidade aumenta”28 . Quanto mais forte o “sujeito”, quanto mais forças consegue aglutinar em seu ser, mais impacto terá na economia global das forças e, portanto, mais reponsabilidade. Podemos concluir, não obstante, que Nietzsche tem uma postura que atualmente poderíamos chamar de compatibilista, pois afirma noções de liberdade e responsabilidade compatíveis com o determinismo. Acreditamos que ao mesmo tempo que critica uma noção de liberdade enquanto abertura aos contrários, bem como uma noção de responsabilidade a ela atrelada, o filósofo propõe uma noção de liberdade responsável. Uma vez que a liberdade do “sujeito” consiste justamente no seu impacto no todo, pelo qual ele não pode deixar de ser responsável. Abandona-se o paradigma do sujeito apartado do mundo e dono de sua ação e passa-se a operar com uma noção de sujeito parte do todo, determinante e determinado pelo todo e que, principalmente, é responsável por ser determinante para o todo. Tal noção é capaz de fazer jus à liberdade afirmada em CI/GD “Pois o que é liberdade? Ter a vontade de responsabilidade por si próprio”29 . concretas, de modo que “tornar-se o que se é” consiste em apenas uma parte do complexo problema da liberdade em Nietzsche. 26 Como o próprio Nietzsche diz: “somos mais que o indivíduo, somos toda a cadeia, com a adição das tarefas de todo o futuro da cadeia” “Wir sind mehr als das Individuum, wir sind die ganze Kette noch mit den Aufgaben aller Zukünfte der Kette”. NIETZSCHE, Sämtliche Werke: Kritische Studien- ausgabe, KSA 9 [7] outono de 1887. 27 NIETZSCHE. Ecce Homo – por que sou tão inteligente, §8. 28 NIETZSCHE. O Anticristo, §57. 29 NIETZSCHE. Crepúsculo dos Ídolos, IX, §38. 268 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
  • 12. leonardo camacho de oliveira * * * Antes de encerrar essa investigação gostaria de mostrar em umas poucas linhas sua importância para os nossos dias. Tenho consciência do caráter exegético de minha pesquisa, procurei como meta a fidelidade aos escritos nietzschianos para tentar chegar o mais próximo possível de uma resposta ao problema da liberdade. Assim o fiz ao investigar a hipótese norteadora desse trabalho. Não obstante, acredito que esse trabalho tem um potencial que transcende ao mero valor exegético, dada a atualidade da questão em análise e a resposta inovadora descoberta. A filosofia de Nietzsche é determinada, fortemente, pelo evento da “morte de Deus”, ele foi possivelmente o primeiro30 a dar-se conta da seriedade desse evento, da importância que representa a derrocada de uma moral metafísica fundacionalista de inspiração platônico-cristã, que imperou por mais de vinte séculos. Não podemos negar que ainda hoje, na aurora do século XXI, continuamos nos confrontando com o vazio deixado pela queda desse soberbo edifício metafísico. Ainda estamos a nos aperceber do quanto de crentes temos, ou seja, de quão metafísica é ainda nossa autocompreensão. Possivelmente a esmagadora maioria dos mais de seis bilhões de pessoas que habitam esse planeta ainda se vê como sujeito livre, acreditando ser a causa sui de suas ações. Os mais recentes estudos de neurociência31 , no entanto, cada vez mais apontam para a falsidade dessa crença, de modo que sua justificação seja apenas a força de um costume de quase dois mil anos. Nietzsche estava consciente da magnitude que 30 Com relação a originalidade da crítica nietzschiana à metafísica platônico-cristã e a profundidade dada a mesma, referimos ao leitor o texto “Nietzsche e a completude do ateísmo” de Karl Löwith. 31 Referente a tais estudos merece destaque o experimento de Benjamin Libet Unconscious cerebral initiative and the role of conscious wil in voluntary action, de 1985 e o experimento publicado em 2008, feito por um grupo de pesquisadores e intitulado Unconscious determinants of free decisions in the human brain. Ambos os estudos focam na comprovação empírica de atividades cerebrais que antecipam a escolha consciente, chegando mesmo a tornar possível prever a decisão a ser tomada em até 10 segundos antes de que a mesma torne-se consciente. Obras referendadas: BRASS; HAYNES; HEINZE; SOON. Unconscious determinants of free decisions in the human brain. Nature neuroscience. 2008, p. 1-3. Disponível em: http://www.nature.com/natureneuroscience/. LIBET, B. Unconscious cerebral initiative and the role of conscious wil in voluntary action. The behavioral and brain sciences. V. 8, 1985, p. 529-566. 269 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
  • 13. a dissolução do antagonismo liberdade x determinismo: a contribuição compatibilista de nietzsche representa o abandono de um tal costume. Tenho consciência que a “morte de Deus” é um evento que abrange uma ampla gama de noções e crenças, não podendo ser reduzido à destruição da crença na liberdade absoluta. Todavia, penso que essa liberdade é um elemento central, pois sobre ela repousa a mais amplamente divulgada noção de responsabilidade, de modo que, todo nosso sistema jurídico e nossas relações morais passam por uma noção de reponsabilidade que, no mais das vezes, se atrela à “cem vezes refutada” crença na liberdade da vontade. Portanto, não pode haver dúvida da atualidade e grandeza que tem o problema da liberdade, não só para o Nietzsche do final do século XIX, mas para nós na aurora do século XXI. Em segundo lugar, creio que o filósofo alemão enfrentou tal problema, tendo em vista toda uma série de variáveis fundamentais, que ainda hoje, talvez, não tenham recebido a devida atenção. Nietzsche debruçou-se sobre a questão da liberdade pensando o ser humano enquanto “carne e osso”, ou seja, ele estava a par das instigantes, e ao mesmo tempo preocupantes, implicações da fisiologia sobre nós. Ao abrir as portas para uma reflexão filosófica da fisiologia, permitiu questionar o quanto essa última é capaz de influencia/determinar o que somos. Pensemos agora o quanto isso torna complexa a questão da liberdade, pois que liberdade posso ter se minhas ações e mesmo minha personalidade é afetada diretamente pelas relações fisiológicas de meu corpo, ou posto de forma mais crua, até que ponto essa liberdade é algo mais que uma simples relação físico-química no meu cérebro? Mas não só relativamente a questão da fisiologia, Nietzsche elevou a questão psicológica a outro patamar, ao desencravar das entranhas do “eu” toda uma gama de impulsos inconscientes, cuja luta também é determinante para o que somos. E, novamente a questão se aprofunda, como posso me dizer livre se toda minha atuação racional e consciente não passa da superfície de um interior profundo de impulsos em luta. Por tudo isso é que acredito na importância que a resposta nietzschiana ao problema da liberdade tem, foi com o pensamento de Nietzsche que o problema da liberdade se confrontou com as variáveis fundamentais, as quais nos forçam a revisitar a 270 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
  • 14. leonardo camacho de oliveira nossa própria autocompreensão. Vemos nas considerações de Nietzsche sobre a liberdade um guia inestimável para enfrentar o vazio da “morte de Deus”, juntando os cacos de nossa “natureza humana” mais profunda e paradoxal e buscando, nas ruínas das catedrais que dois mil anos de metafísica construíram, os fragmentos de nossos ser, que quiçá permitam tornarmo-nos aquilo que somos. Referências AZEREDO, V. D. de. Nietzsche e a autora de uma nova ética. São Paulo: Editora Unijuí, 2008. BARRENECHEA, M. A. de. Nietzsche e a liberdade. Rio de Janeiro: Editora Sete Letras, 2008. GIACOIA JUNIOR, O. Nietzsche x Kant: uma disputa permanente a respeito da liberdade, autonomia e dever. São Paulo: Editora Casa do Saber, 2012. MÜLLER-LAUTER, W. Nietzsche: sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia. São Paulo: Unifesp, 2011. NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Trad. de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. __________. Crepúsculo dos ídolos, ou, como se filosofa com o martelo. Trad. de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2010. __________. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2008. __________. Fragmentos póstumos (1885-1888) (Vol. IV). Edición española dirigida por Diego Sánches Meca. Madrid: Editorial Tecnos (Grupo Anaya, S. A.), 2008. __________. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2009. __________. O Anticristo. Maldição ao cristianismo; Ditirambos de Dioniso. Trad. de Paulo C. de Souza. São Paulo: Companhia das letras, 2007. __________. Sämtliche Werke: Digitale Kritische Gesamtausgabe – Digital version of 271 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015
  • 15. a dissolução do antagonismo liberdade x determinismo: a contribuição compatibilista de nietzsche the German critical edition of the complete works of Nietzsche edited by Giorgio Colli and Mazzino Montinari. Disponível em: <http://www.nietzschesource.org/>. 272 Outramargem: revista de filosofia, Belo Horizonte, n. 2, 1º semestre de 2015