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Andy robb   fator nerd
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Sobre a obra:
A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros,
com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos
acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando
por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo
nível."
Tradução
Alda Lima
1ª edição
Rio de Janeiro | 2013
R545f
13-04314
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Robb, Andy
Fator nerd [recurso eletrônico]: contatos imediatos do 1º amor / Andy
Robb; tradução Alda Lima. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Galera Record, 2013.
recurso digital
Tradução de: Geekhood: close encounters of the girl kind
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
ISBN 9788501100726 (recurso eletrônico)
1. Ficção infantojuvenil inglesa. 2. Livros eletrônicos. I. Lima, Alda. II.
Título.
CDD: 028.5
CDU: 087.5
Título original:
Geekhood: Close Encounters of the Girl Kind
Copyright © 2012 Andy Robb
Trecho de Spider-Man © e ™ Marvel e subs.
Cortesia adquirida de trecho de Lord of the Rings: The Return of the King, de New Line
Productions, Inc.
Letra e música de “You’re Beautiful”, de James Hillier Blount, Sacha Skarbek e
Amanda
Ghost © 2004. Reproduzido com permissão de EMI Music Publishing Ltd, W 8 5SW
e Bucks Music Group Ltd, W8 7TQ
Aproximadamente 15 palavras de Of Mice and Men, de John Steinbeck (Penguin,
2000). Copyright © John Steinbeck, 1937, 1965
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de
quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram assegurados.
Editoração eletrônica da versão impressa: Abreu’s System
Adaptação de capa original por Renata Vidal da Cunha
Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil
adquiridos pela
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que se reserva a propriedade literária desta tradução.
Produzido no Brasil
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Para minha mãe, por simplesmente ser quem é; meu pai, por seu entusiasmo inesgotável; e
para meu amigo Jim, por me ensinar o verdadeiro significado da amizade. E sempre
para meu filho, Hugh.
“Quem sou eu? Tem certeza de que quer saber?
Se alguém lhe dissesse que sou apenas um cara normal, sem nenhuma preocupação na
vida, alguém estaria mentindo.”
Peter Parker, Homem Aranha 2
“Rosie Cotton dançando. Ela tinha fitas nos cabelos. Se fosse me casar com alguém, teria
sido com ela. Teria sido com ela.”
Sam Gamgee, O Senhor dos Anéis:
O Retorno do Rei
MI
UM
Existem maneiras melhores de se acordar. Uma delas seria ser cutucado até a
consciência após uma noite de Paixão Sem Limites com Kirsty Ford. (Mas a não ser
que eu venda minha virgindade no eBay, por enquanto continuarei desacompanhado em
qualquer tipo de Paixão Sem Limites.) Outra forma seria com minha mãe e meu pai
gentilmente me chamando e me dizendo que estavam juntos de novo e que ia ficar tudo
bem. Mas eles não estão e nem vai ficar, então não faz sentido sequer pensar no assunto.
Existem inúmeras maneiras melhores do que a sofrida nesta manhã em especial.
Primeiro, ela começa com um nocivo cheiro que invade minhas narinas, ameaçando
fechar minha garganta e fazer meu estômago se rebelar contra o que eu possa ter
ingerido com o chá da noite anterior. Em seguida, vem aquela voz latida que interrompe
meu sono e me catapulta de volta à claridade matinal, que está subitamente
atravessando minhas cortinas. Basicamente, estou me livrando do pesadelo que estava
tendo durante a noite e entrando direto em outro.
— Arch! Acorda, amigo! Está quase na hora do almoço.
É o meu padrasto, Tony. Bem, tecnicamente ele não é meu padrasto, considerando
que mamãe e ele não são casados, mas é mais fácil que dizer “namorado da minha mãe”.
Ele está parado junto à janela e é como se estivesse concentrando os raios de sol com
uma lupa em meus olhos. Já tem um cigarro preso entre os lábios, com cinzas
penduradas na ponta, ameaçando caírem a cada palavra que diz. Desnecessário
mencionar, agora meu quarto está fedendo a fumaça de cigarro. Enquanto meu cérebro
tenta rapidamente reaprender tudo que absorveu durante os últimos 14 anos — a fala e
coordenação motora básica, como se sentar —, tenho uma sensação estranha de não
saber onde estou. Dura apenas uma fração de segundo, até me lembrar de que nos
mudamos para esta casa ontem. Isso explica a pilha de caixas na frente da minha cama.
Tony está parado olhando pela janela, uma xícara de chá para mim notavelmente
ausente de suas mãos. Ele é um cara grande em todos os sentidos: alto, barrigudo, voz
alta, um grande pé no saco. Apenas seus óculos indicam que possa ser humano afinal,
sugerindo uma fragilidade que, do contrário, pareceria estar completamente fora do
pacote. Ele vai até minha escrivaninha de pintura e pega uma de minhas miniaturas; é
um guerreiro goblin no qual tenho trabalhado, tentando pintar alguns detalhes no
escudo. Eu os desembrulhei ontem à noite, em busca de algum dano que pudesse ter
ocorrido durante a mudança. Tony o observa de perto e ri para si mesmo.
— Ficou bom — comenta.
Caso ainda não tenha percebido, Tony me deixa louco. É o companheiro de minha
mãe, e preciso conviver com ele durante os próximos quatro anos, até eu ir para a
universidade, ou ele se dar conta de que sua única função no planeta é me irritar, e então
explodir espetacularmente numa nuvem de culpa. Ou alguma coisa do tipo. Então eu o
tolero; preciso tolerar, pelo bem da mamãe. Ela odiaria se eu inventasse algum drama, e,
por algum motivo que simplesmente não consigo compreender, ele parece fazê-la feliz.
Para esconder esse conflito de emoções, desenvolvi um monólogo interior MUITO
ALTO, que funciona completamente desvinculado do que meu rosto e corpo estão
fazendo. Por exemplo, neste momento, enquanto Tony está examinando meu premiado
soldado goblin, meu rosto se enrugou em algo semelhante a um sorriso sonolento, e
minha mão coça minha cabeça numa pantomima de cansaço. Até mesmo minha voz,
apesar de um pouco rouca, tem um tom amigável.
— Legal, né? Só queria ver se sobreviveram à mudança.
No entanto, exatamente ao mesmo tempo em que meu exterior emite todos esses
sinais de alegria sem graça, meu monólogo interior (MI) está dizendo algo como:
Coloque essa porcaria de volta na mesa, seu Imbecil! Isso não está aí para fazer você
rir; está aí como uma expressão de minha necessidade de escapar deste mundo e abraçar
uma realidade onde tudo é possível! E da próxima vez apague esse maldito cigarro antes
de entrar! E pare de me chamar de “Arch”! É “Archie”! Ninguém além da mamãe pode
me chamar de “Arch” — isso não nos torna mais íntimos ou coisa assim! E O QUE É
MESMO QUE ESTÁ FAZENDO AQUI?!
Isso faz de mim um duas caras? Acho que não. Encaro mais como sendo uma forma
silenciosa de alívio. Se eu não desabafasse comigo mesmo, diria algo estúpido e magoaria
alguém. Admito que às vezes meu MI se deixa levar um pouco demais e talvez perca um
pouco de perspectiva, mas ninguém é perfeito.
— Vamos abrir as caixas da sala — declara Tony, como se ele fosse realmente fazer
parte daquilo. — Quer dar uma ajudinha?
MI: Que tipo de pergunta idiota é essa? É claro que não quero desempacotar as coisas
da sala, mas pelo bem de uma vida tranquila, irei.
— Tá, claro. Me dê um minutinho que já desço.
E Tony sai do quarto. Não diz nem obrigado. Eu mergulho de volta no travesseiro
e solto um longo suspiro.
Bem-vindos ao meu mundo.
Levanto da cama e cambaleio até o banheiro. Infelizmente, o espelho novo está exibindo
a mesma imagem do antigo: cabelos louros desgrenhados, que fariam mais sentido na
ponta de uma vassoura, emoldurando um rosto de adulto tentando se formar, um
pouco sem sucesso, na cabeça de uma criança. Comparado a alguns dos outros garotos
da minha turma, pareço jovem pra minha idade, mas ainda sinto uma onda de emoção
quando vejo um brilho do escasso ninho de pelos brotando de meu queixo. Há até
mesmo alguns ameaçando nascer em meu peito. Vamos parar por aí.
Vestido e de dentes escovados, desço as escadas devagar, passando a mão pela
madeira pouco familiar do balaústre. É uma casa grande — bem maior que a casa para
onde mamãe e eu havíamos nos mudado quando ela se separou de meu pai. Não há
dúvidas de que nossas vidas melhoraram financeiramente desde que minha mãe conheceu
Tony (ele tem seu próprio negócio — algum tipo de serviço de comercialização de
dados), mas isso não o torna menos Imbecil. De vez em quando, tento me distanciar e
olhá-lo de uma maneira objetiva, mas a resposta se mantém: Imbecil.
MI: Ah, sim. Extensas pesquisas finalmente nos permitem confirmar a existência do
gene da Imbecilidade...
Mamãe me recebe no fim da escada com uma xícara de chá. Ela sempre bebeu muito
chá, mas durante O Término, parecia estar bebendo ainda mais, e eu meio que me
juntei a ela. Era a única maneira que eu conhecia de oferecer algum tipo de apoio na
época. Nos filmes, você vê os caras afogando suas mágoas com cerveja ou uísque. Minha
mãe e eu fazíamos aquilo com Typhoo.
— Dormiu bem no quarto novo?
— Dormi, nada mal.
Posso sentir que ela está me analisando em busca de alguma preocupação que eu
possa ter, só que aprendi a não demonstrar muita coisa. Sei que no fundo ela só quer
meu bem, mas se eu disser que alguma coisa está rolando, ela vai contar a Tony, e, em
uma tentativa desajeitada de aproximação, serei submetido a algum tipo de conversa que
nem ele nem eu queremos ter.
Entramos na sala, que é grande o bastante para parecer o primeiro andar inteiro de
nossa última casa. Tony está sentado de pernas cruzadas no chão, como um Buda, com
um cigarro na boca, lendo um livro de uma das caixas que acabou de abrir. Mamãe já
está zumbindo para lá e para cá, como uma abelhinha cheia de boas intenções.
— Acho que essas são suas, Arch. Quer que eu as suba para você? — Ela está
indicando as duas caixas que não encontrei ontem à noite.
— É. São minhas. Não se preocupe, eu levo.
Elas contêm minha parafernália de jogo. OK, aqui é onde preciso esclarecer mais
uma coisa. Por causa dessa única esquisitice, dessa única fascinação, desse único
inofensivo interessezinho, eu sou, de acordo com as Normas da Sociedade, rotulado
como um “Nerd”.
MI: Não vamos nos esquecer da sua habilidade em citar Guerra nas Estrelas, de sua
obsessão com livros de fantasia, sua inabilidade de passar por uma loja de quadrinhos sem
comprar alguma coisa e sua falta de jeito com garotas. Ah, e você não gosta de futebol. Só
estou dizendo.
Como a maioria das pessoas da minha idade, tenho um computador e um
Playstation, mas há uns dois anos me deparei com a capa de uma revista de domingo,
daquelas que vêm com o jornal, e nela havia a imagem de um dragão — obviamente um
boneco, mas pintado de uma maneira que fazia com que tentar algo semelhante fosse A
Coisa Mais Importante Do Mundo. Não era que o boneco parecesse estar vivo, era que
parecia ser uma Obra de Arte. O dragão em questão era um Dragão de Fogo, e ainda me
lembro de como cada uma das escamas vermelhas era coroada por um brilho amarelo
que se misturava perfeitamente à cor principal. Meu mundo ficou abalado.
MI: Não tem nada de nerd nisso.
Então li o artigo, só para saber do que se tratava, e ele falava desse mundo de
jogadores que pintavam miniaturas para usarem em suas partidas de RPG, ou Role-
playing Games. Era como se eu tivesse descoberto uma coisa sobre a qual ninguém mais
sabia, algum segredo antigo e misterioso. Pelo menos é o que pensava até meu pai
explicar que aquilo era bastante popular quando ele era mais novo. E minha mãe contar
uma história sobre alguns religiosos distribuindo panfletos em sua escola, dizendo que
esses jogos estavam a um passo da adoração ao demônio. E papai admitiu conhecer um
cara que talvez jogasse na época da faculdade. Parecia que até mesmo na Idade das
Trevas o RPG tinha certa reputação nerd: ninguém gostava de admitir que se sentava
em volta de uma mesa, usando dados para lutar contra monstros de mentira.
MI: Sério? Por que será?
Sim, estamos falando de Dungeons & Dragons, o tataravô de todos os RPGs. E o
melhor. Alguma coisa dentro de mim pareceu se animar. As brigas entre papai e mamãe
tinham atingido proporções bíblicas na época, e aquilo era uma rota de escape mais
barata que a passagem para a Grécia com a qual eu fantasiava de vez em quando. Melhor
ainda, o artigo tinha uma lista das lojas onde eu poderia comprar aquele tipo de coisa, e
— adivinha só? — havia uma na minha cidade! Chatópolis de repente tinha um
playground de aventuras, e ele se chamava “O Casebre do Goblin”.
Foi o bastante: qualquer dinheiro que eu arranjava — fosse da minha mesada, de
algum raro trabalho ou de um presente de aniversário — ia direto para o Casebre. Era
como a caverna de Aladim: modelos de todas as cores e todos os tipos eram exibidos
com orgulho em vitrines, outros travavam batalhas em tabuleiros decorados para
parecerem florestas ou desertos. Dragões ficavam lado a lado com trolls e ogros,
enquanto guerreiros bárbaros valentemente tentavam derrotá-los. Havia uma parte do
showroom dedicada aos ossos do ofício: facas modeladoras, colas, pincéis e tintas com
nomes que praticamente imploravam para que você enfiasse um pincel nelas e pusesse
mãos à obra — como resistir a “Verde Duende” ou “Vermelhão Vampiro”? E as
miniaturas em si: heróis e vilões esculpidos em poses que faziam você querer acreditar
na existência de mágica.
MI: “Cinza Nerd”, alguém...?
Acho que a outra coisa que o Casebre me proporcionava era um lugar onde me
esconder; um lugar onde eu não precisava escutar gritos ou conversas ruindo sob o
esforço de manter a civilidade. Mesmo que aquilo significasse ficar escutando a coleção
de heavy metal dos anos 1980 de Big Marv, o dono, explodindo das caixas de som da
loja.
E havia os jogos: jogos em que você podia adotar a personalidade de um personagem
a milhões de quilômetros de onde estava de verdade — guerreiros heroicos, mágicos
loucos. Para mim parecia um sonho.
MI: *Sonhando* Neeeeeerd...
Aquilo se tornou meu ritual de sábado: ir ao Casebre e passar horas decidindo qual
miniatura receberia os amáveis afagos de meu pincel. Ou, se eu não tivesse dinheiro,
apenas folheava os livros de regras de diferentes jogos, me maravilhando com a mecânica
de mundos imaginários que poderiam ganhar vida. Não vou nem começar a falar sobre
todo o tipo de dados que você pode comprar para cada sistema. Desnecessário dizer que
eu passava MUITO tempo no Casebre.
Acho que a princípio fiquei meio envergonhado e mantive a discrição, mas, aos
poucos, comecei a reconhecer um ou outro rosto da escola, e alguns acenos furtivos de
cabeça foram trocados. Alguns dos acenos evoluíram e se tornaram conversas, e amigos
foram feitos: Matt, Beggsy e Ravi — todos unidos em deixar o Mundo Real para trás. A
cada poucas semanas, nos encontrávamos na casa de alguém e embarcávamos juntos
numa jornada, caçando monstros, matando os mortos-vivos ou traindo uns aos outros
por uma joia com poderes especiais. Como não é de se admirar, nunca havia garotas lá.
MI: Não... consigo... imaginar... por quê...
Na verdade, a próxima sessão está marcada para acontecer na minha casa nova, mas
preciso encontrar a hora certa: preciso que mamãe e Tony estejam fora, para que
possamos realmente mergulhar sem medo de que, na hora do lanche, sanduíches
trazidos por minha mãe acabem nos catapultando de volta à Terra. É tudo uma questão
de atmosfera, entende?
Então aí está: meu nome é Archie, e sou um Nerd. Mas apenas neste mundo...
Estou subindo as escadas com a segunda caixa de papelão quando o telefone de casa
toca; não vou ganhar um celular novo até juntar dinheiro para pagar pela metade de um.
Segundo minha mãe, derramar tinta nos meus dois últimos aparelhos não atende o
requisito “cuidar das suas coisas”. Mamãe me chama, cobrindo o bocal do telefone com
uma das mãos:
— Archie! É para você.
Deixo a caixa no alto das escadas e desço de volta correndo, tentando não parecer
ansioso demais.
— Oi, Archie. — É Beggsy. Sua voz ainda não amadureceu totalmente, e ele oscila
entre soar como Mickey Mouse ou James Earl Jones em questão de segundos. Fui bem
sortudo: a minha engrossou naturalmente, quase sem eu reparar.
— Oi.
— Como está a casa nova?
— Legal. E aí?
— Cara, esqueceu que dia é hoje?
— Me lembre.
— Cara! Nove de junho! É a Battle-Fest! No Casebre!
Beggsy tem razão! É o dia em que o Casebre ganha vida. Não acredito que esqueci! É
o dia em que abrem as portas para os jogadores levarem seus melhores modelos até a
loja e jogarem como se não houvesse amanhã. Eles fazem oficinas de pintura com
artistas convidados, dão prêmios para as melhores miniaturas e promovem partidas
entre os maiores vencedores! É o paraíso dos nerds.
— Que horas?
— Duas. Você vem?
O “Claro!” que eu dou a ele é do tipo que pergunta “Está completamente louco?” ao
mesmo tempo.
— Ótimo!
— Espera aí — gemo. — Prometi ajudar a arrumar as coisas da mudança.
— Ca-ara!
— Espera aí!
Cubro o bocal do telefone e chamo minha mãe:
— Mãe! Posso ir até o Casebre? Hoje é dia de jogo.
Ela aparece no corredor, segurando uma chaleira prateada metade embrulhada em
jornal.
— E toda a arrumação?
— Eu arrumo minhas coisas depois, prometo. É o último sábado das férias de
inverno...
Sei qual será a resposta antes de ela dizer; ela franze as sobrancelhas de um jeito que
deveria sugerir que está pensando no assunto, mas já vi atuações melhores em farsas.
Sem esperá-la dizer o “sim” que está chacoalhando dentro de sua cabeça, estou de volta
ao telefone com Beggsy.
— Te vejo lá.
— Legal. Tchau.
— Tchau.
A mão em meu ombro me faz virar: Tony está sorrindo para mim como se soubesse
de alguma coisa que eu não sei.
— Tentando se livrar da arrumação, hein, Arch? — Ele dá uma risadinha, só para
se certificar de que minha vontade de socá-lo se torne realmente insuportável.
MI: Seu IMBECIL! Como se VOCÊ fosse fazer ALGUMA COISA a não ser fugir
para ler o jornal em algum canto!
Por algum motivo, apelo para minha mãe.
— Eu já disse que arrumo depois, não disse, mãe?
Ela apenas sorri e volta a esvaziar as caixas, e Tony sai rindo como se tivesse
conquistado algum tipo de vitória. Quando ele se vira, digo “Imbecil” silenciosamente e
então disparo escada acima para examinar minhas miniaturas. Qual delas devo levar?
Devo levar alguma coisa? Precisam entender que isso é como um duelo para os nerds;
todos os maiorais metidos a saber usar um pincel estarão lá, exibindo seus melhores
trabalhos e os comparando com os dos outros. Não levar nada seria como admitir
derrota, como os camponeses mexicanos naqueles faroestes italianos. Mas se eu levar a
coisa errada...
MI: Não consigo nem imaginar uma coisa dessas...
Finalmente escolho um mago que pintei uns dois meses atrás. Não é uma obra de
arte, de maneira alguma, mas fiquei muito satisfeito com os tons de pele, e os detalhes
que pintei na capa foram pesquisados em antigos escritos celtas. Ele também exibe o
melhor envernizamento que já fiz: quatro camadas de brilho que garantem uma
aparência de porcelana. É bom o bastante para mostrar que tenho a mão firme e não
tenho medo de usá-la. Coloco-o gentilmente numa caixa e o embrulho com algodão.
Já são quase 14 horas. Se me apressar, consigo chegar com tempo de sobra.
Está na hora de correr para a batalha.
Será que mamãe pode me dar uma carona?
DOIS
Para ser sincero, eu podia ter ido a pé; a casa nova fica a apenas vinte minutos do centro
da cidade. Mas não se chega atrasado para o dia de jogos. É uma Lei dos Nerds. E
mesmo estando dez minutos adiantado, o Casebre já está transbordando de nerds. Isso
significa que, na calçada do lado de fora, há montes de grupinhos de garotos da minha
idade e homens de quarenta e poucos anos, todos usando roupas pensadas como
camuflagem. Na realidade, suas roupas são tão sem graça que dava no mesmo se usassem
placas neon com “Sou um nerd — e ele também” piscando acima de suas cabeças. É
estranho, mas no esforço de passarem despercebidos, chamam ainda mais atenção. Acho
que é nesse ponto que eu e meus amigos destoamos do rebanho; nós nos vestimos
normalmente. Mas pensando bem, sou um nerd, então o que é que eu sei, afinal?
MI: É você quem está dizendo, não eu.
Depois de um tempo, encontro Beggsy com Ravi e Matt ao lado de um poste de luz.
— Oi.
— Cara! — Beggsy é sempre o primeiro a responder. Ele tem esse entusiasmo
exagerado sobre basicamente tudo que você fala. Se não fosse tão nerd, seria bem legal,
se é que você me entende. Não é que pareça um idiota ou coisa parecida, ele é apenas
nerd da cabeça aos pés. O Fator Nerd é difícil de definir, mas você não precisa ser
Simon Cowell para notá-lo. Pode ser o jeito de alguém falar ou sobre o que fala.
MI: Guerra nas Estrelas versus Jornada nas Estrelas. Debatam.
Eles não costumam ter as noções básicas de cuidados pessoais, como arrumar o
cabelo. Outro grande fator são os nerds que se tornaram Totalmente Imersos. Ou seja,
eles se identificam demais com um personagem de um filme ou livro e vão um pouco
longe demais ao tentar se parecer com eles. Entram aí sobretudos de couro ou
barbichas ralas e rabos de cavalo. Esses caras são nerds de verdade.
MI: E você é apenas um cara normal...
Ele pode ser um nerd dos pés à cabeça, mas Beggsy não se parece com um. Acho que
também não pareço, aliás. Mas Ravi e Matt... Você não precisaria de um Detector de
Nerds® para distingui-los. Ravi tem a expressão permanentemente abatida de alguém
cheio de hormônios, e Matt foi amaldiçoado com cabelo ruivo-claro e uma linguagem
corporal desajeitada que grita sua esquisitice antes mesmo de ele abrir a boca. E,
quando ele finalmente abre a boca, sai uma voz meio fina. Está engrossando, mas ele
ainda não é nenhum Darth Vader. A Força dos Nerds definitivamente está com este aí.
Matt lida com sua aflição distribuindo sarcasmo como um crupiê distribui cartas. Ravi
não fala muito — apenas observa as pessoas, como se todas fossem uma ameaça em
potencial: o Fator Nerd em toda a sua força. Ele também tem a voz mais grossa de
todas nós, que soa estranha vinda de um cara tão magrelo.
— Cara! O que você trouxe? — pergunta Beggsy, cheio de entusiasmo, com sua voz
de Mickey Mouse.
Pego minha caixa e desembrulho o mago. Três pares de olhos o examinam, avaliando
minha habilidade com a precisão de águias. Matt pega a peça na palma da mão e
semicerra os olhos com a luz do sol.
— O que usou pra dar o brilho? — murmura. — Um rolo?
Isso resulta em alguns resfolegares e gargalhadas do resto do grupo — incluindo
minhas. Não é que ele seja um cara seco, ele é mais como um deserto ambulante.
— Tá bem, tá bem — respondo sorrindo. — E vocês, seus perdedores? O que
trouxeram?
Em um minuto, eles me apresentam um ogro, um soldado morto-vivo e um goblin
montado num lobo. Cada um deles tem suas qualidades. De todos, o goblin, de Beggsy,
habilmente pintado e depois realçado para destacar a complexidade do modelo, tem as
maiores chances de ganhar alguma coisa.
A batida de Big Marv num gongo nos tira de nossa comparação: o Battle-Fest está
começando!
Entramos no Casebre, com Beggsy à frente. Ele vai direto até a mesa de RPG e logo
entra numa aventura. Matt vai para a mesa de wargame: é um jogo mais matemático, que
combina com sua personalidade, mas ele fica de fora, analisando a concorrência. Ravi e
eu fomos incumbidos de entregar nossos formulários para a competição e, depois de
registrá-los com Marv, resolvemos ver com o que estaremos competindo. Tem umas
coisas realmente impressionantes aqui, em especial um mago elfo e algum tipo de
demônio — ambos parecem prestes a saltar de suas bases. Ravi também ergue uma das
sobrancelhas. Será uma disputa acirrada.
Vou direto para o workshop de pintura. Um artista convidado da empresa
fabricante das miniaturas revela alguns dos misteriosos segredos da arte com os pincéis.
Foram providenciados alguns bancos para quem quisesse participar e experimentar, mas
eles estão ocupados, então assisto por um tempo e, em seguida, vou olhar os novos
modelos “recém-saídos do forno”.
Um deles — uma gárgula — chama minha atenção. Acho que vou ter que comprá-
la. Enquanto estudo seu molde de metal dentro da embalagem de plástico, imaginando
como eu a pintaria e qual seria o resultado final, não noto que as conversas nerds à
minha volta se tornaram sussurros. É só quando tocam gentilmente no meu ombro,
que desperto de meus devaneios artísticos e me viro para dar de cara com a última coisa
que esperaria encontrar no Casebre do Goblin, durante a Battle-Fest, às 14h45 de uma
tarde de sábado.
Uma garota.
Se você ainda não percebeu, garotas não fazem essas coisas. Elas não vêm ao Casebre.
Não gostam de goblins e de dragões. Não pintam miniaturas. Não jogam RPG nem
encenam batalhas fictícias. E elas não chegam perto de nerds como eu.
Especialmente se forem bonitas.
E essa garota é bonita.
Ela tem mais ou menos minha altura e idade, e é meio gótica. Seu cabelo é preto e
brilhante, num corte como o de Cleópatra, e ela exagerou um pouco no lápis preto em
volta dos olhos azul-claros. Mesmo que não tenha chegado ao ponto de usar batom
preto, ela obviamente passou pó branco no rosto, dando a ele aquela aparência
ligeiramente etérea. Contrastando com a pele pálida, está vestida de preto dos pés à
cabeça: blusa preta, luvas sem dedos, esmalte preto e uma longa saia preta esvoaçante.
Está usando alguns anéis prateados estilo celta nos dedos e um tipo de ankh (como
uma cruz com uma argola em cima) em volta do pescoço. É nessas horas que compensa
ser um nerd: posso identificar obscuros símbolos em bijuterias — provavelmente já
pintei versões minúsculas dos mesmos em algum momento da vida.
É claro, ser tocado no ombro por uma linda gótica faz meu Monólogo Exterior
(ME) e meu MI entrarem num verdadeiro conflito. Meu ME tenta passar a ideia de que
isso acontece comigo o tempo todo — que não estou nem um pouco intimidado por
ela ser do SEXO OPOSTO e que não venho para esse tipo de evento com tanta
frequência assim. Faço isso corando intensamente, coçando a cabeça e mudando o peso
do corpo de um pé para o outro. De repente, é como se meu corpo fosse um terno que
vestia mal e pertencia a outra pessoa. Toda a umidade de minha boca evapora, e minha
língua parece ter inchado até ficar do tamanho de um melão.
MI:
VocêéumagarotavocêéumagarotavocêéumagarotavocêéumagarotaBONITAvocêéumagarotaeusouumn
BONITA...
A Linda Gótica sorri de um jeito que me faz ter vontade de ficar olhando sua boca
para sempre.
— Oi. — A voz dela é como ouropel. Não conheço nenhuma outra maneira de
descrevê-la.
MI: AhmeuDeusAhmeuDeusAhmeuDeusAhmeuDeus...
— Oi. — Pareço estar gargarejando com areia.
— Desculpe incomodar você, mas... que lugar é esse?
— É uma loja.
MI: Dez pontos para estupidez!
— Tá, mas que tipo de loja?
MI: Não deixe transparecer que você sabe demais!
— É uma loja de jogos. Jogos de RPG, esse tipo de coisa.
MI: Isso foi saber demais!
—Ah, certo. — Ela parece vagamente decepcionada, e todos os meus órgãos vitais
parecem estar derretendo em comiseração. — Então nada disso é... não é “real”, então?
Não tem... você sabe.
MI: O quê? O que eu sei?
— ...a ver com...
MI: O QUÊ? A VER COM O QUÊ?
— ...mágica? — Ela pronuncia essa última palavra de modo rápido e discreto.
Por mais que seja uma pergunta estranha, meu banco de memórias brevemente me
lembra de que meu pai certa vez me ensinou a tirar uma moeda da orelha de alguém.
Essa não deve ser a hora certa. Além disso, só tenho dez centavos.
— Não, não é real. São apenas jogos e miniaturas. Só faz de conta. Você sabe.
— Ah, OK. Obrigada. Desculpe incomodar.
MI: Não tem problema algum, pois acho que amo você. Podemos esquecer que sou um
nerd e fugir pra casar?
— Sem problemas. — Meu ME idiotamente dá de ombros, de um daqueles jeitos
que sugerem que sou amigável e acessível, mas na realidade, provavelmente, me fazem
parecer que estou tendo algum tipo de ataque. Ela vai embora com um sorriso tímido e
um “obrigada” em voz baixa, e uma parte minha vai embora com ela.
Alguém bate no meu outro ombro. Não aguentarei muito mais disso.
Eu me viro e sou confrontado com uma visão muito mais comum: Beggsy, Matt e
Ravi.
— Cara! O que foi isso? — pergunta Beggsy, sorrindo de orelha a orelha.
— Só uma garota.
Matt sorri sombriamente:
— Mais um sonho transformado em sucata.
— É — suspiro.
O que mais odeio nele nesse momento é que Matt está coberto de razão.
— Isso é uma gárgula no seu bolso ou está apenas feliz em me ver?
— Ha ha. Definitivamente é uma gárgula.
Estamos indo para casa, e Matt não deu uma folga durante os últimos quinze
minutos. Não me surpreende, na verdade. Tendo em conta nosso status nerd, nenhum
de nós já fora realmente exposto a uma garota, e o fato de eu ter acabado de me envolver
em algo que quase poderia ser considerado uma conversa com uma faz de mim um alvo
fácil. Mas todos nós sabemos que isso é apenas uma maneira inconfessa de expressar
inveja.
Meu contato com a Linda Gótica eclipsou basicamente todo o resto; Beggsy ficou
em segundo lugar no concurso de pintura, e Matt quase ganhou o torneio de wargame.
Até mesmo esquecemos nosso habitual tópico favorito: Kirsty Ford.
MI: Pois agora, “Existe outra”.
Matt é o primeiro a se despedir, disparando mais algumas piadinhas sobre góticos
antes de chegarmos na sua casa. Ravi é o próximo — algumas ruas depois —, deixando
eu e Beggsy sozinhos. Antes da mudança, eu seria o próximo a chegar em casa, cortando
pela Davenport Road até a caixa de sapatos que mamãe e eu chamávamos de “lar”. Agora
estou grato pelos dez minutos extras que preciso caminhar até a casa nova; eles me dão
mais tempo para calibrar todos os meus Sistemas Anti-Imbecis®.
— Cara, a gente ainda vai jogar na sua casa no fim de semana que vem? — A voz de
Beggsy atinge três oitavas numa só pergunta.
— Vamos, só quero ver se consigo fazer os velhos saírem durante uma noite.
— Por quê? Sua mãe e Tony são legais.
Beggsy está com verdadeiro ódio dos pais no momento, o que poderia ser graças ao
fato de seus velhos estarem vivendo numa cápsula temporal dos anos 1970. O pai
trabalha com seguros, e a mãe é uma professora cuja preocupação com a limpeza e a
arrumação da casa está prestes a virar um TOC. É uma daquelas casas onde se deve tirar
os sapatos antes de entrar, o que sempre me deixa um pouco desconfortável
considerando que meus pés têm uma mania de anunciarem sozinhos minha chegada —
especialmente se eu estiver de tênis. O que normalmente estou. O comentário de Beggsy
me aborrece um pouco. Eu normalmente não usaria a palavra “aborrece”, mas parece se
adequar à situação; não estou irritado o suficiente para explodir, mas a meu ver existem
algumas variáveis que ele não levou em consideração. Em primeiro lugar, Tony é um
Imbecil. Em segundo, Tony é um Imbecil e em terceiro, Tony é um Imbecil. E também
tem todos os seus comentários Imbecis sobre o Jogo, como por exemplo, “Quem vai
ser Gandalf esta noite?” ou “Vão matar mais uns orcs hoje, rapazes?”. Tá bem, tá bem,
todos nós lemos Tolkien, mas sua única base de referência veio dos filmes e isso não lhe
dá exatamente algum direito. O problema é que preciso arranjar uma maneira de explicar
isso tudo a Beggsy sem parecer mimado.
— Que seja.
MI: Sempre funciona.
Andamos lentamente até a casa de Beggsy, discutindo os detalhes de nosso próximo
jogo. Quando chegamos, vejo sua mãe abrindo as cortinas da sala. Na minha casa, temos
um lounge. Na de Beggsy, há uma sala de estar. A Sra. Beggs abre a porta da frente e
acena para mim. Aceno de volta, e Beggsy revira os olhos, murmurando um quase
inaudível “Que saco” em voz baixa.
É com certo alívio quando noto que o carro de Tony não está na entrada. Sua ausência
me dá um momento para enxergar a casa nova com outros olhos. Posso vê-la como meu
lar, em vez de o lugar onde moro com minha mãe e o namorado. E, preciso admitir, no
quesito casa, é bem bonita. Os tijolos são de um cor-de-rosa pálido, e uma cerca viva
cobre a vista da porta de entrada. É discreta, mas deixa que saibam que está ali. E,
apesar de ainda não a termos batizado, vai ser bem melhor para mim e meus amigos
jogarmos ali do que na casa em que eu e mamãe vivemos depois do Divórcio. Aquela
casa era pequena, e meu quarto era bem ao lado do banheiro. Aqui terei um incrível
quarto no sótão, bem longe do banheiro, bem longe do quarto da minha mãe e de
Tony...
MI: Nem pense nesse assunto!
...e o mais importante de tudo, bem longe de Tony.
Eu entro e encontro mamãe no corredor, cercada de bolas de jornal amassadas.
— Olá, amor. Se divertiu?
— É, foi legal. Cadê o Tony?
— Só deu uma saída para comprar cigarros. Já devia ter voltado a essa altura;
provavelmente parou na sinuca.
É claro. Se existe trabalho duro a ser feito, Tony geralmente pode ser encontrado
na sinuca. Segundo ele, os melhores acordos de negócio nunca são feitos no escritório, e
sim “durante uma cerveja e uma partida”.
MI: Que seja.
Então isso significa que mamãe foi deixada para cuidar de tudo sozinha. Pela
quantidade de jornal espalhada no chão, as pilhas de caixas fechadas e ornamentos, livros
e outros objetos que estão, nesse momento, desabrigados, ela vai precisar de alguém
para ajudar.
— Quer alguma ajuda?
— Não se preocupe, amor. Está tudo bem. Vá descansar.
Aí está minha mãe para vocês; ela dá tudo de si e nunca acha o bastante. Com um
“Cala a boca” carinhoso, eu a ajudo na arrumação e simplesmente aproveito este
momento com ela. Igual era antes de ela conhecer Tony.
Durante a hora seguinte, remexemos em meio a jornais, desmontamos caixas e
colocamos as coisas em determinado lugar, apenas para mudarmos tudo de novo
minutos mais tarde. Depois de um tempo, mamãe finalmente joga a toalha.
— Uma xícara de chá?
Acho que ela é movida a chá. Aposto que haveria algum tipo de crise econômica na
Índia se ela um dia parasse de beber.
— Pode ser, então. — É como tomar uma xícara de aconchego.
MI: Também é a hora certa de perguntar a ela sobre o Jogo na sexta-feira à noite...
Mas assim que entramos na cozinha, escuto a porta da frente se abrir. Todos os
meus instintos de sobrevivência entram em ação, dando sinais de vida através da tensão
que se apodera de meu corpo e esculpe uma expressão que talvez até possa passar por
um sorriso. Antes de desfilar para dentro da cozinha, Tony coloca a cabeça dentro do
lounge e faz um ruído de surpresa e de aprovação. Como se fadas tivessem visitado a casa
e arrumado tudo.
— Bem, o lounge já está quase pronto — anuncia, como se não fizéssemos ideia.
Por trás de meu sorriso vazio, meu MI está funcionando a todo vapor.
MI: É. O lounge já está quase pronto. E é claro que você vai ficar aí parado
analisando seu domínio como se tivesse tido alguma coisa a ver com isso. A qualquer
momento vai pedir um café, como se tivesse merecido.
Mas Tony tem uma carta na manga; sempre tem. Ele subitamente avança e tira um
grande buquê de flores de trás das costas. Mamãe, naturalmente, se derrete e o abraça,
antes de procurar um vaso.
MI: Imbecil.
A quantidade de flores que ele compra para minha mãe deve ser o que mantém os
floristas locais. Mamãe sempre fica genuinamente surpresa e deliciada. Acho que foi aí
que papai falhou; ele não fazia esse tipo de coisa, e talvez seja por isso que eu odeie tanto
quando Tony faz — é um lembrete das falhas de meu pai, uma pequena pista do que
poderia ter afastado meus velhos. Não que nenhum dos dois tenha algum dia me
contado o que aconteceu.
— Alguma chance de eu ganhar um café, querida?
MI: Imbecil.
Mamãe já está um passo à frente dele e recompensa o herói preguiçoso com uma
xícara de café pelando. Simplesmente não consigo entender; ela nem faz cara feia quando
Tony acende mais um cigarro. Ela odiava que papai fumasse e nunca deixava de dizer isso
a ele. Claramente está contente e ama Tony como ele é, cheio de verrugas e tudo.
Apesar de estar além da minha compreensão como alguém pode ser feliz vivendo com
um Imbecil. Com ou sem flores.
A voz atropeladora de Tony interrompe a sessão judicial que está acontecendo em
minha cabeça.
— Boas notícias! Acabei de fechar mais um negócio! E Paul e Tina nos convidaram
para jantar sexta-feira à noite para comemorar...
MI: Viva! Ganhei! Nada de mamãe nem de Tony = Noite de jogos sem chateações!
*Som de trombetas de festa sendo tocadas*
Mamãe sorri e desarruma o cabelo dele.
— Parabéns, amor! Seria ótimo. Archie?
A gárgula em meu bolso se aperta contra minha perna enquanto me remexo no
banco, quase insistindo para que eu fale logo. Então o faço:
— Posso chamar meus amigos em vez disso, mãe? Você sabe, para jogar.
Mamãe olha para Tony, mesmo que eu tenha perguntado só a ela. Ele reage com
aquele tipo de olhar de pantomima de “seu maluco”, que revela como aquilo se adequou
bem aos seus planos. Ele não queria mesmo que eu fosse. E, pra falar a verdade, eu
preferia passar uma noite enfiando agulhas nos olhos do que testemunhar Tony
devorando comida chinesa.
— Acho que está combinado, amigo!
— Obrigado, Tony. Legal.
Sorrir nunca foi tão difícil.
De volta a meu quarto, baixo um pouco a guarda. Não preciso mais de tanto esforço
para mantê-la alta hoje em dia, é mais como uma inconveniência. Certamente irrita.
Tony parece ter talento para me afetar, mas não da maneira como a Linda Gótica no
Casebre. Minha mente faz a única coisa que eu não deveria permitir e relembra nosso
encontro. Com direito a trilha sonora.
Estou no Casebre, olhando a gárgula. A música é como a de O Retorno de Jedi
quando estão todos no palácio de Jabba — um pouco tensa e perigosa. Alguém bate no meu
ombro. Eu me viro num salto ágil e pronto para ação, atento e poderoso. A Linda Gótica
está ali, e a vejo tentando esconder a Atração Instantânea que obviamente sentiu ao me
ver. A música cinematográfica muda para aquela parte em que Han Solo está prestes a
ser congelado em carbonita e a princesa Leia conta a ele que o ama.
— Oi — diz ela, soando um pouco nervosa.
— Oi — respondo de um jeito confiante, mas que também diz “Estou um pouco
surpreso em ver alguém bonita como VOCÊ aqui”. Meu tom de voz e linguagem corporal
relaxada sugerem que encontros desse tipo provavelmente são rotineiros para um homem
com a minha experiência.
— Desculpe incomodá-lo... mas que lugar é esse?
— É onde tenho esperado por você. — Minha resposta sai com direito a um sorriso
divertido. A Linda Gótica parece estar impressionada com o meu comportamento
experiente. A música aumenta.
— O-oh — gagueja ela, surpreendida pela minha franqueza. — Tem alguma coisa
a ver com mágica?
— Poderia ter — sussurro, dando um passo à frente e tirando um Ás de Copas de
detrás da orelha dela. Sem conseguir resistir, a Linda Gótica se aproxima para o beijo,
agora é inevitável. A música atinge um crescendo e, então, se transforma no tema de
Guerra nas Estrelas, registrando meu triunfo.
MI: Tá bom. Até parece. Nerd.
Dou um daqueles suspiros que só podem vir de um coração que dói em vão.
MI: Você é um nerd, ela não; supere isso.
Preciso de algo que me distraia de Pensamentos Impossíveis. É hora de começar a
pensar em outra coisa, algo em que eu possa me concentrar sem ser como nunca, nem
em um milhão de anos, ficarei com alguém como a Linda Gótica. De repente, a gárgula
parece apropriada, como um autorretrato.
MI: Começam os violinos.
Pego meu laptop e entro na internet. Uma das coisas para as quais a web é perfeita é
para pesquisar. Enquanto procuro por “gárgula” no Google Images, pego minha nova
compra e rasgo o plástico da embalagem. A gárgula se equilibra em minha palma. É um
pouco maior do que estou acostumado a pintar — provavelmente uns 45 mm de altura.
Está sentada numa pedra, corcunda, as asas de morcego dobradas, como se a criatura
estivesse prestes a levantar voo. Debaixo de suas sobrancelhas pesadas e franzidas, dois
olhos perfeitamente redondos acima do nariz símio me encaram com fúria. A boca está
curvada num sorriso de escárnio, revelando caninos afiados. Ela tem tudo que se
poderia querer numa gárgula: orelhas pontudas, chifres, garras, pernas de bode e rabo de
dragão. Vou gostar de pintá-la.
Os resultados aparecem, e fico vendo imagens de monstruosidades de pedra,
decidindo em quais detalhes valeria a pena investir. Está tudo nos detalhes; poderia
colocar punhados de musgo ou pintar rachaduras sinistras — talvez até mesmo cocô de
pombo. É preciso pensar com ousadia antes de comprometer o pincel.
Mais por hábito que por curiosidade, clico no ícone do Facebook na minha barra de
favoritos e abro a página inicial em outra aba. Pelo canto dos olhos, dou uma rápida
passada pelos posts dos meus amigos. Nada a declarar realmente: Beggsy ficou amigo de
alguém chamado Marcus, e Ravi postou uma foto de quando era criança. Matt não está
cadastrado — acho que ele tem algum tipo de teoria da conspiração, como se caso
usasse o Facebook, todas as pessoas do mundo subitamente poderiam descobrir o que
exatamente ele faz quando está sozinho. Como se isso interessasse a alguém.
Provavelmente, tem mais a ver com o fato de que, sem seus amigos, Matt não faça muita
coisa — o que poderia mesmo ser uma informação bastante deprimente para se
compartilhar na internet. Não que Ravi e Beggsy tenham alguma informação de parar o
trânsito a revelar.
MI: E você tem?
Volto para as imagens de gárgulas e continuo minha caça em busca de inspiração.
Uma foto chama minha atenção e clico nela para olhar melhor. Quando o faço, vejo
minha aba do Facebook piscando. É meu pai.
Oi filho. Espero q esteja td bem com vc. Nao posso ir amanha. As
criancas estao doentes e Jane precisa de mim. Tvz finde q vem? Amor
papai.
Odeio quando meu pai abrevia. Não sei por quê. Eu faço isso, meus amigos fazem
isso — mas quando meu pai o faz, parece ter alguma coisa simplesmente, totalmente...
falsa... nela. Leio a mensagem mais uma vez. Ótimo. Então seus novos filhos estão
doentes, e ele não pode sair de casa.
Papai herdou três filhos de sua nova esposa. Acho que ele a namorou por cerca de
um ano antes de eu ter permissão para conhecê-la. Provavelmente para proteger meu eu
de 11 anos de idade de qualquer coisa parecida com um trauma emocional.
MI: Como se isso já não tivesse acontecido.
Mas papai fez uma enorme besteira: ele me deixou conhecer Jane antes que mamãe
descobrisse sobre ela. Através de mim. O que não caiu muito bem. Não era como se
mamãe estivesse com ciúmes; entre xícaras de chá ela disse estar feliz por ele ter
encontrado alguém. Foi o fato de ele não ter contado a ela antes para que ela pudesse me
contar — e ajudado a prevenir Danos Colaterais. E talvez se sentisse um pouco
ameaçada por Jane, não sei. Mas seu stress não durou muito tempo — cerca de um ano
depois Tony entrou triunfalmente na história e todos ficaram felizes.
MI: Quase todos...
É, bem, agora tenho Tony e Jane na minha vida, e preciso fingir que são parte da
família. Sem falar nos filhos de Jane: Lucas, Steven e Izzy, de 9, 7 e 4 anos,
respectivamente. De algum modo, esperam que eu acredite magicamente que essas
crianças são os irmãos e a irmã que nunca tive, e que brincar de Lego com eles é o que
faltava na minha vida. E que Jane, apenas por assinar um pedaço de papel sem valor num
cartório, de alguma maneira tem permissão para ser “legal” e “bacana” comigo de um
jeito que me dá calafrios. Suas tentativas de criar “laços” fazem Tony parecer muito
sofisticado, e o que ela acha engraçado faria um cadáver tentar se enforcar. Felizmente,
desenvolvi um Monólogo Interior MUITO ALTO.
MI: Já acabou?
Mas acho que papai está feliz. Está sempre tagarelando sobre como se dá bem com
“as crianças” e como Jane é uma pessoa tão gentil e carinhosa, então acho que eu já devia
estar acostumado a essa altura. Talvez seja minha idade; ela não deveria ser responsável
por tudo de errado na minha vida no momento? Nada a ver com o fato de que meus
pais estejam vivendo com idiotas.
MI: É claro que não estão. É apenas sua idade.
Digito uma mensagem que beira a monotonia. Sim, estou decepcionado em não vê-
lo amanhã, mas isso foi compensado por perceber que não precisarei forçar o riso após
uma das piadas infames de Jane, ou construir mais uma casa de tijolos de plástico. Meus
dedos pulam levemente pelo teclado.
Tudo bem. Fim de semana que vem está bom.
Aperto enviar.
Legal. Como ta sua mae?
Não sei por que ele pergunta. Provavelmente é uma tentativa teatral de me mostrar
que adultos sabem se comportar como adultos.
Está bem. Nos mudamos pra casa nova ontem.
Legal. E vc gostou do seu quarto?
Achei legal. Bem maior que o último.
Q bom. Menor tb não dava pra ser! Rs!!
O “rs” faz os pelos de minha nuca se arrepiarem. Ter um pai que escreve rs é como
descobrir que aquela música do rádio que você gostava era de algum retardado saído de
X Factor. É tão, tão errado. Melhor responder com uma pergunta.
Como você está?
Bem, vlw. Tenho q ir. To fazendo canja d galinha. Rsrs! Até mais no
FB. Amo vc xx.
x.
Com um suspiro profundo, desligo o laptop e levo minha gárgula até a escrivaninha.
Já tenho na cabeça uma imagem vívida de como ela vai ficar. Abro a janela no teto
inclinado acima de minha mesa e pego uma lata de base.
Hora de deixar tudo branco...
Quando termino a primeira mão de tinta, ligo o rádio e escuto música enquanto
espero secar. Preciso de uma distração; já quebrei uma das Regras de Ouro do Reino
dos Nerds e não quero fazer isso de novo: nunca acolher pensamentos sobre garotas
que são areia demais para você. Assim a loucura se instala. No entanto, o rádio tem
outras ideias, e parece que todas as músicas que tocam trazem escondida alguma
referência à Linda Gótica. Por mais tênue:
Rádio: “You’re beautiful, you’re beautiful...”
MI: *Suspiro*
Rádio: “You’re beautiful, it’s true…”
MI: *Tenta cantar* “So true…”
Rádio: “I saw your face, in a crowded place...”
MI: Esse cara estava lá? Como ele sabe? É como se tivesse sido escrita para mim!
Rádio: “And I don’t know what to do...”
MI/Radio: “Cause I’ll never be…with…you”
MI: AAARRRGGGHH!
Num esforço final para tirar a Linda Gótica da cabeça desligo o rádio, desembrulho
mais algumas miniaturas e encontro meu kit de pintura. Quase dá certo.
Há uma batida hesitante na minha porta, e sei que é mamãe: meu Radar de Imbecis®
teria detectado Tony arrastando-se escadas acima, agarrando-se ao corrimão para o caso
de seus pulmões cheios de bolhas de fumaça decidirem pregar uma peça nele. Mamãe me
trouxe um sanduíche de presunto e uma xícara de chá.
— Isto é o bastante para o chá, querido? Vou fazer compras amanhã, e teremos um
assado.
— Obrigado, mamãe.
— Vamos assistir a um DVD daqui a pouquinho, assim que Tony terminar de
conectar os cabos. Quer ver com a gente?
— Não, obrigado. Vou ficar aqui e tentar arrumar meu quarto um pouco mais.
— OK. Se tem certeza.
Pela expressão dela posso perceber que quer minha companhia, mas não consigo
encarar. Para começar, a ideia de testemunhar Tony xingando os cabos e as conexões
durante meia hora não me atrai. E tentar assistir com ele ao filme em si é basicamente
impossível; Tony tem essa mania de falar com a TV, e me deixa louco. Isso costuma
acontecer nos momentos de maior tensão, grandes reviravoltas na trama ou falas
engraçadas. Tipo, se for uma ficção científica, e o protagonista estiver procurando um
alien, e podemos vê-lo atrás dele, Tony começa a dizer coisas como “Uh-ohhh!” ou
“Láaaaa vem ele!”. Ou se a mocinha entra no quarto em que não devia (como sempre
fazem na maioria dos filmes), você vai ouvir “Não devia ter feito issooo!” num tom de
voz estúpido e cantarolado. Ou quando o herói faz alguma réplica boa, Tony ri e a
repete duas ou três vezes, quase como se a estivesse guardando para usá-la mais tarde.
Como se ele um dia fosse ter a oportunidade de dizer a um maldito e imundo macaco
para tirar as patas dele. A não ser que o negócio dele acabe, e Tony só consiga arranjar
emprego como zelador de um zoológico e se envolva numa horrível briga com um gorila.
Sonhar não custa nada, certo?
— Não, obrigado. Vou só ficar por aqui no meu quarto.
— OK. Sabe onde estaremos se mudar de ideia. — E com isso ela sai.
Liberado de meus deveres pela noite, tiro meus livros de sua caixa e começo a
arrumá-los nas prateleiras acima da minha escrivaninha. Como já deve ter adivinhado, é
tudo puro escapismo: O Senhor dos Anéis, Terry Pratchett, a trilogia Bartimaeus, arte
de fantasia — esse tipo de coisa. Meus livros com regras de jogos precisam ficar
deitados, pois as prateleiras não têm altura para eles. É engraçado, quando se muda e vai
arrumar suas coisas, você acaba prestando mais atenção em tudo, quase como se esse
novo ambiente pudesse revelar alguma coisa que você não havia visto antes. Sem
perceber, passo algumas horas apenas folheando livros, imergindo e emergindo. Só
quando escuto o trovão abafado dos passos de Tony na escada, percebo que está ficando
tarde e que estou cansado. Mamãe fala do outro lado da porta:
— Boa noite, amor!
— Boa noite, mãe.
Espero até ouvir a som da porta do quarto deles para poder tirar a roupa e deitar
na cama. Meu livro de regras favorito veio comigo; acendo meu abajur e começo a ler.
Enquanto olho para as imagens e releio regras que conheço quase de cor, sinto o
sono pesando em minhas pálpebras. O receio me faz afofar os travesseiros e me sentar
um pouco mais ereto. Não quero dormir. Vou lutar contra o sono pelo tempo que
conseguir.
Não quero que o Sonho venha. Por favor, posso sonhar com a Linda Gótica em vez
disso?
TRÊS
Começa como sempre, comigo adormecido na cama, na mesma posição em que estava
antes de pegar no sono. Com aquela estranheza que só acontece em sonhos, posso me
ver em minha própria cama, dormindo, apesar de também me sentir deitado na cama. É
como se houvesse uma câmera me filmando e uma câmera na minha cabeça, e ambas
estão passando as imagens ao mesmo tempo. Posso ver as duas sequências
simultaneamente; sem telas divididas ao meio, sem truques — apenas dois conjuntos de
informações sendo transmitidas ao mesmo tempo.
Meu edredom começa a ser puxado sem que eu impeça. Quando percebo que estou
terrivelmente assustado, detecto uma ameaça emanando de alguma coisa oculta ao pé da
minha cama. A ameaça é intensa e direcionada para mim. Se ela tivesse cor, seria
completa e impenetravelmente preta. O edredom subitamente voa e cai no chão. Posso
me sentir e me ver tentando mover minhas pernas pesadas como chumbo e recuar até a
parede atrás de mim, mas estou pesado e lento demais.
E então acordo. Me levanto num salto e gemo, passando as mãos pelo cabelo. Pelo
menos eu não acabei me atirando fora da cama dessa vez. Tenho tido esse sonho volta e
meia, já há alguns meses. Às vezes, ele para e me deixa em paz por um tempo; às vezes,
faz sessões de cinema completas em minha cabeça, acontecendo duas vezes por noite
durante a semana. Espero que isso não seja o começo de uma dessas semanas. Me faz
odiar ir dormir e significa que, aos fins de semana, acabo dormindo até tarde e, durante
a semana de aulas, praticamente preciso ser içado para fora da cama. Felizmente mamãe
acha que é meu relógio biológico se adaptando aos “Horários Adolescentes”.
O relógio ao lado de minha cama mostra 6h30 de uma manhã de domingo. Sinto-
me como se tivesse sido ligado numa tomada, então não existem chances de voltar a
dormir. Com um suspiro relutante, abro a claraboia no teto. Do lado de fora, tudo está
quieto, exceto por alguns silvos animados nas árvores da rua. Espero que essa paz de
alguma maneira consiga acalmar a barulheira na minha cabeça.
Mais tarde, com Tony tendo ido fazer as compras para o almoço, os Deveres do
Caçador de Emergências Dominicais inevitavelmente recaem sobre mim. Vou a pé até
nossa nova lojinha local em busca de uma caixa de leite e do jornal para minha mãe; vai
demorar até Tony voltar, e se ela não tomar uma xícara de chá rapidamente, o universo
pode implodir. Avisto a loja e, com um gemido interno, noto um grupo de Boçais do
lado de fora. É um bando de pele pálida, olhos escuros, capuzes e cabeças raspadas, e eu
sei exatamente quem são: Paul Green, Lewis Mills e Jason Humphries. Se você
frequentasse minha escola, também saberia.
MI: Escudos a postos!
Apesar de estarem todos no meu ano, lembro a mim mesmo que eles não sabem
realmente quem sou. Costumo andar fora do seu radar na maior parte do tempo, mas já
me viram com Beggsy, Matt e Ravi, e, em algum lugar por trás daquelas sobrancelhas
musculosas, terão me registrado como um nerd. O que não devia me incomodar, mas
nesse momento sou o único nerd na rua.
O problema é que se eu atravessar a rua e andar em outra direção, não só vou chegar
em casa de mãos abanando, mas também, de alguma maneira, de um jeito que não
entendo, minhas aparentemente inocentes ações vão me marcar como alvo. Terei me
rotulado como a gazela ferida, o peixe sangrando — o Nerd Solitário. Então não há
escolha a não ser passar por eles e entrar na loja. O truque é evitar fazer contato visual,
mas não como se eu estivesse tentando evitar fazer contato visual. Ao mesmo tempo,
preciso continuar observando o grupo em busca de sinais de que eu tenha brotado em
seus horizontes vazios.
Estão tirando cigarros dos bolsos e passando um para o outro, como macacos com
suas bananas. Subitamente, me dou conta do meu desejo natural de encolher os ombros
e me misturar à paisagem. Não posso fazer isso — qualquer demonstração de
submissão significa que terão ganhado o direito de tornar minha vida difícil na hora e no
lugar em que bem entenderem. O problema é que andar confiante demais pode ser
interpretado como um desafio.
Se eu tivesse celular, poderia fingir que estava conversando. Em vez disso, opto pelo
velho procedimento de enfiar as mãos nos bolsos e adotar uma expressão indicando que
estou pensando seriamente em alguma coisa.
Me aproximo e, como uma resposta programada, um deles olha na minha direção.
Prendo a respiração, mas sei que é tarde demais, e ele também. Um vislumbre de
reconhecimento brilha nos olhos com olheiras de Paul Green. Surge um esboço de
sorriso maligno em seus lábios. Já comecei a andar e não posso voltar atrás agora. Mas,
subitamente, um dos garotos de costas para mim — Jason — dá um tapa no peito de
Paul e indica com a cabeça a direção da loja. Paul e Lewis seguem seu olhar.
O que acontece em seguida é um pouco como qualquer cena de Star Trek: A Nova
Geração onde Worf precisa demonstrar surpresa. É o tipo de pantomima facial que
apenas um verdadeiro doador de cérebro pode dominar. Os três encapuzados a
executam com perfeição.
Rapidamente me pergunto o que eles estariam olhando, mas para falar a verdade, só
estou aliviado por alguma outra coisa ter chamado a atenção deles. E então me pego
tendo uma reação similar, quando a Linda Gótica sai da loja e anda na minha direção.
Sorrindo.
MI: Estou levitando.
Adoraria contar que nesse momento os encapuzados somem em meio à paisagem
conforme a Gótica praticamente flutua em câmera lenta até mim, ofuscando tudo à sua
volta. A verdade é que sua presença — gloriosa do jeito que é — só serve para fazer o
bando de Boçais mais consciente ainda de nossa presença. Um deles, Jason, late alguma
coisa por cima do ombro. Seus amigos parecem deitar para trás, como se tivessem
dobradiças na pélvis, gargalhando e cruzando os braços. Mas seus olhos sem vida e
escuros a avaliam da cabeça aos pés como o serpentear de três jiboias.
Em outro mundo, sou um Mago Nível 5, capaz de invocar um exército de mortos-
vivos para fazer o que mando. Neste aqui, sou um nerd com tanta chance de enfrentar
esses imbecis quanto um peido de enfrentar um furacão.
Felizmente, a Gótica é mais durona. Com uma virada de sua cabeça de alabastro, ela
responde em um comentário com mais palavrões do que alguém poderia imaginar ser
possível. Ela mostra “o dedo” para concluir, e, então, posso ter errado, mas tenho
quase certeza, seu andar vira um tipo de desfilar que acentua o balanço de seus quadris.
Ela para na minha frente e fixa seus olhos azuis como gelo em mim.
MI: ...........................................................................Eep.
— Você estava naquela loja engraçada ontem, não estava?
Amaldiçoo minha nerdice em silêncio e confirmo com a cabeça, como se tivesse sido
possuído pelo espírito de um pica-pau.
— O Casebre, isso.
— Podemos conversar por um instante?
MI: Santo Deus. Meu Jesus.
— Sim, claro.
Com isso ela rapidamente passa o braço pelos meus e me leva para longe da loja.
Estou envergonhado, mas não sou orgulhoso demais para admitir que esse foi o máximo
de contato que já tive com uma garota em toda a minha vida. É como se, de repente, eu
tivesse herdado o sentido de aranha de Peter Parker; cada pedaço de minha pele (em
contato com o meu suéter, que está em contato com a blusa preta apertada dela, que
está em contato com a pele dela) subitamente está sofrendo de uma sensibilidade
aguçada. Para não falar da ligeira florescência de minhas partes baixas.
Continuamos andando para longe da loja, o leite de minha mãe tornando-se uma
lembrança distante.
MI: Querido Sigmund Freud...
— Então... er... sobre o que quer falar?
MI: Apenas cale a boca por um minuto. Deixe que ela fale. Boca fechada; olhos
abertos.
A Linda Gótica para de repente e me vira de frente para ela.
— Eles já foram embora?
Por um momento, não faço a menor ideia de sobre o que ela está falando, e, em
seguida, me dou conta. Olho para trás dela e reparo no grupo de Boçais. Até mesmo
daqui consigo ver suas testas franzindo. Os três agora estão olhando para nós, e seus
vigorosos balançar de cabeças só podem significar encrenca. Então, para meu alívio, eles
viram suas bicicletas num movimento que me lembra de caubóis a cavalo, e somem na
direção oposta, deixando fumaça de cigarro em seu rastro.
— Já foram. — São apenas duas palavras, mas tento injetar o máximo de Han Solo
nelas quanto consigo.
A Linda Gótica parece apoiar todo o peso numa só perna e deixa metade de seu
corpo relaxar. Nunca vi ninguém relaxar tão elegantemente.
MI: Vamos lá! Ela está nervosa! Pode conseguir colocar um dos braços em volta dela!
Silencio o recém-desperto predador que parece ter se mudado para dentro de meu
corpo e vasculho meu extenso banco de dados de filmes em busca de frases apropriadas
para dizer.
— Eles estavam te incomodando?
A Gótica se endireita e me olha bem nos olhos com um sorriso que faria Clark
Kent pedir um sanduíche de criptonita.
— Por quê? Você por acaso é um ninja ou coisa parecida?
MI: Ela sabe que você é nerd! Abortar! Abortar!
Isso faz meu ME reagir com uma pane em todos os sistemas. Sem uma frase de
filme ou uma sacada genial em que me apoiar, tudo o que consigo fazer é piscar
excessivamente, gaguejar um pouco e corar. A expressão da Gótica muda para uma de
preocupação.
MI: Ter pena já serve...
— Sinto muito, não quis dizer isso! Só tenho um senso de humor meio sarcástico.
Olha, vamos começar de novo. Olá. Sou a Sarah, e obrigada por me ajudar com aquele
bando de perdedores.
Com isso ela estende a mão. Creio que devo cumprimentá-la. Meu ME volta a ficar
online e consegue esboçar um sorriso meio torto.
— Archie.
Minha mão sobe e encontra a dela, os sentidos de aranha formigando de ansiedade.
Mas não prevejo sua próxima jogada: quando nossas mãos se tocam, ela para por um
segundo e subitamente aperta com mais força. Ao mesmo tempo, ela tem um
sobressalto quase inaudível, e uma expressão de alarme aparece em seu rosto.
— Oh, meu Deus...
Ela parece preocupada de verdade agora, e por um segundo tenho essa horrível
imagem de meu zíper aberto. Em pânico, tiro minha mão da dela.
— O que foi? O quê?
— Você realmente... — a preocupação em seu rosto se transforma num tipo de
tristeza... — ficou com raiva. Não é? Está magoado.
Por essa eu não esperava. Já tive alguns encontros estranhos na minha vida — o
pior foi entrar no banheiro enquanto Tony tomava banho —, mas agora temos um
novo campeão. Em meio ao caos entre meu MI e ME, alguma coisa em sua voz pura
toca num fragmento da minha alma que mantive escondido por um longo tempo. Mas
não me sinto prestes a me confessar para a menina mais bonita que já conheci.
— Não estamos todos?
MI: Bom trabalho. Parece experiente, e não é uma confirmação nem uma negação.
Uma carreira na política está acenando.
Sarah me olha semicerrando os olhos, como se tentando sondar mais a fundo, e
então, de repente, começa a agir como se nada tivesse acontecido.
— Por que estava naquela loja ontem?
— Gosto dos jogos.
— São todos sobre mágica e coisas assim, não são?
— Bem... são.
— Então acredita em mágica?
— São jogos de RPG. Você meio que finge e segue as regras. — Quero morrer.
— Mas você acredita em mágica?
Se acredito ou não em mágica não importa de verdade para mim agora. O que
importa é que Sarah ainda está andando comigo depois de minha resposta, que foi:
— Vou ter que responder isso mais tarde. Preciso comprar leite.
Nada impressionante, sei disso. Mas ainda, para cimentar minha posição no mundo
como um perfeito idiota, acrescento:
— Mas já li Harry Potter.
A resposta de Sarah consiste num sorriso confuso e numa série de piscadas, o que
só reforça minha suspeita de que sou tão idiota quanto pareço.
Refazemos nossos passos num silêncio ensurdecedor, e ela espera do lado de fora da
loja enquanto me amaldiçoo até terminar de pagar pelo leite.
MI: QUE MELECA HÁ DE ERRADO COM VOCÊ? POR QUE NÃO
GRITOU LOGO “EXPELLIARMUS” E A CONVIDOU PARA JOGAR UMA
PARTIDA DE QUADRIBOL?
Acho que a última vez em que me perguntaram se eu acreditava em mágica foi
quando estava na plateia de um mímico quando era criança. Na época, a resposta era
óbvia — é claro que mágica existia, é claro que existia Papai Noel e era fato inegável que
algo abominável se escondia debaixo da minha cama à noite. No entanto, conforme o
tempo passou, e pelos cresceram, a ideia de mágica simplesmente nunca mais me
ocorrera; ao menos não como sendo real.
Começamos a caminhar e a conversar — duas coisas que faço quase todo dia, mas
que agora pareciam quase impossíveis de coordenar. Demoro um momento para
perceber que estamos andando na direção de minha velha casa, de volta na direção da
cidade, e que em breve teremos que nos separar.
Mas quero que isso dure para sempre.
Meu ME diminui o passo para um arrastar lento. Como o que casais de velhinhos
usam. Enquanto pondero, fico aflito e me amaldiçoo, consigo explicar a mecânica de
RPGs para Sarah, que quer saber como eles funcionam. E que está parecendo confusa.
— Então usam dados?
Realmente quero morrer agora. Melhor ainda, queria que Jason Humphries e seu
bando de Boçais reaparecessem e que eu subitamente possuísse as habilidades ninja que
obviamente estão tão ausentes de minha vida. Isso sim seria mágica. Em vez disso, estou
subitamente prestes a justificar o fato de jogar o que de repente parece ser um jogo para
crianças.
MI: Me passa o Lego.
— É, temos sistemas de pontos, e você usa o dado para acumular ou perder
pontos, desse jeito pode aprender habilidades novas ou ficar mais forte.
— Então tem muita matemática no meio?
— Bem, sim... Mas não é realmente só jogar dados. É mais sobre criar um
personagem e tentar reagir como aquele personagem reagiria.
— O quê? Como atuar?
— Mais ou menos. Acho que é mais como narrar uma história; você fala o que seu
personagem está fazendo.
— Dá para morrer no Jogo?
MI: Eu poderia morrer agora mesmo, se você quisesse.
— Sim.
— E o que vocês fazem? Se fantasiam? — Seus olhos antárticos cintilaram de
escárnio, mas ainda assim pareciam sexy.
— Não! Usamos modelos. Bonecos.
— Miniaturas?
A essa altura, estou ansiosamente esperando o barulho dos pés ossudos da morte
chegar atrás de mim, quase desejando sua mão esquelética no meu ombro.
— É. Miniaturas.
— E para quê? Quer dizer, se está narrando uma história.
— Er... Elas servem mais para dar uma ideia de onde as coisas estão, como se você
estivesse numa batalha ou coisa assim. Não estou explicando muito bem; você teria que
jogar para entender.
— OK. Eu queria tentar. Posso?
MI: Ah. Meu. Deus.
Agora experimento emoções contraditórias. Uma alegre leveza de espírito: a menina
mais linda que já vi — com quem tive algum tipo de contato físico — quer jogar RPG
comigo. A outra sensação é como se chumbo líquido tivesse sido acrescido à minha
alma: se permitir isso, estarei em uma posição vulnerável. Ela vai me julgar pelo que sou:
um nerd de proporções bíblicas. Minha boca está seca, e meu estômago parece estar
pegando fogo. O que eu faço? Fico na ponta dos pés e me curvo ao vento ou me afasto
da beirada?
É agora ou nunca.
Agora é um lugar bastante assustador no momento. Nunca é seguro e pacífico.
— Tá. OK.
— Ótimo! Quando?
— Bem, vamos jogar uma partida sexta-feira à noite. Pode vir se quiser.
— Legal, encontro você na sexta.
MI: Encontro? Ela disse “encontro”! Ela disse “encontro”! Ah meu Deus — é um
encontro! Tenho um encontro! Com ela! Um de verdade! Um encontro!
Sei que não é um encontro, não oficialmente, mas uma parte de mim subitamente
está convencida de que é. É essa fantasia louca que me impede de escutar sua próxima
pergunta, então Sarah precisa repeti-la.
— Preciso levar uma miniatura?
Imagens de anões passam pela minha cabeça.
— Hum... não. Não. Tenho uma que você pode usar. — Subitamente, paro; isto é
o mais longe que posso ir sem andar com ela até sua casa. Por mais que fosse adorar
fazer isso, acho que poderia ser interpretado como perseguição.
— Legal. Te vejo na escola e podemos combinar.
— Escola? — guincho. Não é uma palavra que normalmente guincho, mas nessa
ocasião ela faz meu coração palpitar a um nível que me leva a imaginar quanto tempo vai
demorar até os paramédicos chegarem.
— É. Você não estuda na escola local?
Confirmo debilmente com a cabeça.
— Eu também! Então, te vejo lá! Tchau.
Ela estuda na minha escola? Enquanto sorrateiramente a observo se afastando,
absorvendo o máximo de detalhes possível, acho impossível pensar que poderia não ter
reparado nela antes. Talvez seja nova. Mas pensando bem, sou um nerd, e nerds sabem
que existem certas garotas que você não deve nem olhar — não deve nem reconhecer que
existam. Porque se faz isso, seu coraçãozinho nerd vai se despedaçar com a compreensão
de que basicamente nenhuma garota nunca, jamais, estará ao seu alcance. Especialmente
garotas como Sarah. Ela, que conversou comigo e quer ir à minha casa na sexta!
Justo quando meus ânimos abrem suas asas e se preparam para voar, como uma
águia, por cima dos telhados, uma freada de carro e uma buzina me trazem de volta à
Terra. É Tony. Ele para o carro no meio-fio e abaixa o vidro. O pânico toma conta de
mim como um incêndio numa floresta: o quanto ele viu? Por favor, Deus, não deixe que
ele arruíne isso para mim.
— Ei, Arch! Quer uma carona?
Eu entro no carro, meu ME fazendo seu melhor para não parecer como se eu tivesse
acabado de passar um tempo com uma garota de verdade, ao vivo. Tony se anima e um
sorriso largo retorce seu rosto enquanto nos afastamos da calçada.
— Seu garanhão espertinho!
QUATRO
A viagem de carro é um coquetel de fumaça, negações e acenos de cabeça. Por mais que
eu tente dizer a Tony que não estou saindo com Sarah — o que não estou mesmo —,
isso não inibe o balançar de sua cabeça, como o de alguém que sabe tudo, e a risadinha
“não adianta tentar me enganar” que acompanha cada uma das minhas tentativas de
explicar a situação do modo mais casual possível. Não me ajuda o fato de meu ME ter
entrado numa velocidade mais rápida que a da luz, fazendo meu rosto arder mais que
uma abóbora de Halloween. Mas ainda mais preocupantes são as tentativas de Tony de
me elogiar a respeito de meu gosto para garotas (como se eu a tivesse encomendado
pelos correios ou coisa parecida). Escutar o homem que está vivendo com minha mãe
descrevendo uma adolescente como “gata” me faz querer que o carro de Tony tivesse um
assento ejetor. O dele ou o meu — não importa. Entendo que esta é uma tentativa de
“formar laços” comigo, mas os únicos resultados palpáveis são minhas unhas se enfiando
em minhas palmas, e meus dedos do pé se encolhendo dentro do tênis.
— Então, quando é que vamos conhecê-la?
MI: Que grande ideia, Tony! Vou levá-la lá em casa para que possa escutar seus
comentários sem sentido sobre a vida, e depois, para completar, vamos ao jardim atear fogo
em nós mesmos!
— Não sei. — Estou ficando sem energia.
— Por que não a convida uma noite, depois da escola? Posso fazer um jantar, e
podemos todos nos divertir.
MI: ESTÁ LOUCO?
— É... sei lá... vamos ver no que vai dar. — Estou perigosamente perto de aceitar
sua oferta, o que seria um desastre.
— Já contou pra sua mãe?
— Contei o quê?
— Sobre sua namorada.
— Mas ela não é... Não. — Desisto.
— Bem, vamos pra casa dar as boas novas a ela.
Jesus, isso está saindo de controle. Tudo que eu fiz foi buscar uma garrafa de leite e
agora pareço estar no meio de algum tipo de novela romântica! A ideia de encarar minha
mãe e contar a ela que tenho uma namorada — coisa que não tenho — é demais para
sequer levar em consideração. Realmente, preciso me controlar; é apenas uma garota
indo à minha casa. OK, é a primeira vez; mas uma hora tinha que acontecer, até mesmo
pela Lei da Probabilidade. E sou o primeiro a admitir que para mim não parecia muito
provável.
— Ela ficará feliz por você.
E é aí que saco seu joguinho. Ele o entrega a mim sem notar — um sorrisinho para
ele mesmo, uma sutil mudança de comportamento. Eu ter uma namorada justificaria
sua existência. De repente tudo faz sentido. As pessoas ficam juntas. Se eu posso, então
não há razão para minha mãe não poder. A presença de Tony na minha vida seria
completamente justificada. Uma parte sorrateira e vergonhosa de mim percebe que se
esse fosse o caso, eu não teria mais do que reclamar. Teria que aceitá-lo. Estamos
chegando em casa, e não quero ficar nela neste momento.
MI: Cai fora! Cai fora!
— Ah! Acabei de lembrar! Ia encontrar os meninos no Casebre. Pode me deixar lá?
— Com alguma sorte, a preguiça inerente de Tony vai instantaneamente descartar a
ideia de dirigir de volta à cidade e vai dar alguma desculpa para parar o carro. Assim eu
posso sair, e o interrogatório terá fim.
— É claro, parceiro. Não se preocupe, vou preparar sua mãe.
MI: Parceiro? E assim tem início. A aceitação de Tony na família começa aqui.
Normalmente, a essa altura, eu estaria querendo morrer. Hoje, no entanto, quero
que Tony morra. Mesmo que ele tenha milagrosamente decidido me levar de volta para
a cidade.
Paramos na frente do Casebre, entrego o leite a ele e saio do carro, meu ME
acenando casualmente para meu padrasto conforme ele se afasta. A maneira com que
isso está se desenrolando me deixa cansado; preciso arejar a cabeça. O Casebre é o
melhor lugar em que pensei.
Apesar de ser domingo, há bastante gente aqui. Heavy metal antigo está tocando ao
fundo, gritando alguma coisa sobre fugir para as colinas.
Quem quer que esteja cantando traduziu meu humor com perfeição, e a ideia de
simplesmente sumir é atraente. Eu poderia arrumar minha mochila. Com meu confiável
cajado, poderia simplesmente perambular pelo campo, como Frodo Baggins. Mas não
tenho mochila nem cajado, e o Nazgûl que está me perseguindo tem um BMW. Além
disso, não conseguiria fazer isso com mamãe.
Mais uma música de metal da Idade das Trevas começa a tocar — alguma coisa com
“You Shook Me All Night Long”. Como um antigo demônio atendendo uma
invocação, a serpente do sexo em minha cabeça se desenrola e sussurra uma ideia. E é
das boas.
Preciso pintar uma miniatura para Sarah.
OK, essa pode até não ser uma ideia revolucionária para a maioria das pessoas, mas
funciona para mim em diversos níveis. Indulgentemente imagino a cena.
Sarah entra em meu quarto (de agora em diante conhecido como a Toca). Matt,
Ravi e Beggsy estão lá, sentados ao redor da mesa de jogos. Como um verdadeiro
cavalheiro, puxo uma cadeira para ela, que se senta — é impressão minha ou Sarah está
um pouco corada? Talvez seja a loção pós-barba que estou usando. Sarah olha ao redor de
minha Toca, a curiosidade aguçada pelas pilhas de volumes antigos que se enfileiram nas
paredes. Entrego a ela uma ficha de personagem para o Jogo, já preenchida e pronta. Ela
olha para os meus amigos e para as miniaturas que eles estão segurando; a decepção se
estampando em seu rosto perfeito.
— Oh! — exclama. — Não trouxe minha miniatura.
— Não se preocupe — respondo, com um sorriso casual —, aqui está um que preparei
para você mais cedo.
Sarah pega a miniatura de minhas mãos, mal conseguindo esconder sua satisfação por
eu ter pensado nela, cheia de admiração por minhas pinceladas magistrais.
— Fez isso só para mim?
Eu me sento e casualmente revelo uma garrafa de champanhe.
— O prazer foi todo meu. Alguém gostaria de um drinque?
Enquanto sirvo as taças, e meus amigos concentram sua atenção em dados e livros de
regras, Sarah abre um sorriso furtivo para mim, e tenho certeza de sentir alguma coisa
acariciando minha perna...
Essa não é a hora nem o lugar de ir em frente com essa narrativa em particular,
então volto minha atenção para as fileiras de embalagens plásticas que estampam as
paredes. É com certa indignação que me dou conta, pela primeira vez, da falta de
modelos para garotas. Qual o problema com as empresas fabricantes? Será que não
percebem que garotas também jogam? Ou acham que esses jogos são apenas para a
diversão de garotos de 14 anos que nunca tiveram namorada?
MI: E assim a promotoria encerra seu argumento.
Depois de procurar um pouco, consigo achar alguma coisa: tem um arqueiro
(arqueira?), uma bruxa elfa e um ladrão elfo (elfa?). Qual eu levo? Isso é mais difícil que
escolher um modelo para mim; Matt, Ravi e Beggsy saberão que o pintei só para a
ocasião e serei escrutinado. Vão ficar procurando sinais de qualquer coisa sentimental
demais, como uma miniatura parecida com Galadriel. A arqueira é bem decente: está
usando uma jaqueta de couro e leggings apertadas que exibem suas pernas, mas tenho a
impressão de que Sarah a acharia meio sem graça. As outras duas são elfas, pelas quais
sempre tive uma queda. Elfas são sexy: têm privilegiadas estruturas ósseas angulares,
compridos rostos lacônicos e até mesmo um quê sensual naquelas orelhas pontudas. A
ladra está segurando uma bolsa de couro cheia de saques numa das mãos e uma adaga
curvada na outra. Ela tem garrafas presas ao cinto, que eu poderia pintar de forma a
parecerem uma variedade de venenos. Mas, ainda assim, não é perfeita. Não é
interessante o bastante.
A bruxa, no entanto, talvez seja um pouco interessante demais.
A bruxa obviamente é do time dos vilões. Não que ela seja um trapo velho com
rosto de lua crescente — é uma elfa, esqueceu? Essa bruxa tem um sorriso cruel, porém
sedutor, no rosto elegante. Um de seus braços está esticado, como se estivesse lançando
um feitiço, e o outro envolve uma bola de cristal. Mas o problema é sua roupa: botas
até as coxas, luvas até os cotovelos e um colete curto provocantemente decotado. Some
a isso algumas pulseiras e uma tiara em sua cabeça e já pode ter uma noção.
Será que ouso comprá-la?
Admito que receberia muitos elogios dos meninos por presentear Sarah com essa
boneca — mas como será que ela reagiria? Com um elogio? Com uma expressão de
horror? Ou ela olharia no fundo de minha alma e veria a verdade por trás daquilo — um
flerte.
Olho de novo a miniatura e, por um instante, sinto como se estivesse comprando
uma revista masculina — coisa que nunca fiz, a propósito. É com certo nervosismo que
me aproximo do caixa antes de entregar a bruxa a Big Marv. Ele a apanha e olha através
do plástico protetor, examinando-a rapidamente. Em seguida, ergue uma sobrancelha
em reconhecimento.
— Boa sorte — diz.
Chegando em casa, me apresso em meio às bolas de jornal e caixas de papelão vazias e
subo para o meu quarto. Enquanto me esgueiro como Gollum pelo corredor, o barulho
de rádio do lado de fora revela que mamãe e Tony estão em algum lugar do jardim.
Perfeito. Subo as escadas até minha Toca, fechando a porta do quarto atrás de mim o
mais silenciosamente possível.
Meu ME se acalma, e me acomodo em minha mesa de pintura para reexaminar a
miniatura de Sarah. É um pouco boba. Subitamente, minhas fantasias indolentes de
impressioná-la com minhas habilidades estilo Michelangelo parecem bem menos
cinemáticas; sinto como se tivesse acabado de ser pego rabiscando um pênis na carteira
da escola. Não que já tenha feito isso, veja bem.
Na segurança do Casebre, a bruxa parecia ligeiramente sofisticada, tinha um toque
refinado. Agora ela parece uma coisa que um adolescente sexualmente frustrado poderia
esboçar em seu bloco de desenho à noite e de manhã limpar a sujeira se sentindo um
pouco culpado.
MI: Sem comentários.
Talvez uma camada de base melhore as coisas. Abro a trapeira acima de minha
escrivaninha e borrifo na bruxa uma fina névoa de branco mate. Enquanto ela seca,
examino a gárgula: está sentada curvada, quase me olhando feio, implorando por cor.
Hora de um banho de preto.
Um banho, para os não iniciados, é quando você dissolve uma cor até parecer quase
água suja. Em seguida, usando um pincel, você a chuvisca em sua miniatura. O líquido
entra em cada canto e fenda, levando junto o pigmento, expondo todos os detalhes.
Está tudo nos detalhes.
Depois de seu banho, a gárgula já parece mais viva; posso ver as rachaduras e
texturas na pele de pedra em volta de sua boca, os sulcos em seus chifres e tendões se
retorcendo em seu peito e ombros. Posso até ver suas íris, que são cortes horizontais,
como os de um lagarto.
— Olá!
Meu ME demora um segundo para entrar em ação, mas eu não precisava ter me
preocupado muito; é apenas minha mãe.
MI: Opa.
Opa mesmo. Ela está exibindo um daqueles sorrisos bobos que revelam que mal
pode esperar para conversar sobre alguma coisa.
MI: E todos sabemos que coisa é essa, não sabemos?
Meu ME reage mandando um sorriso ligeiramente tímido para meus lábios, o que
não dá muito certo e acaba parecendo mais que estou tendo um acesso de gases. Ainda
com o sorriso bobo no rosto, mamãe entra e se senta na ponta de minha cama.
— Então... — O sorriso quase divide seu rosto em dois, e suas sobrancelhas
ansiosas alcançam o céu esperando pelas Gloriosas Notícias.
MI: Por favor. Deus. Não.
— Tony me contou que você tem uma namorada.
A essa altura meu MI mal consegue se conter e está lutando com meu ME por
supremacia.
MI: SOS! Desvie toda a energia para o motor principal! Empregar dispositivo de
camuflagem! Detonar núcleo do reator! Precisamos de fator de dobra espacial nível cinco
ou todos morreremos! FAÇA ALGUMA COISA!
Minha coluna parece se derreter e escorrego na cadeira, meus olhos se revirando
para um lado, um suspiro cansado reforçando a possibilidade de eu estar esvaziando.
— Ela não é minha namorada, mãe.
— Oh? — O sorriso já era. Expressão de surpresa.
— Não. É só alguém que conheci.
— Ah. — Expressão de decepção.
MI: Não é incrível como os adultos podem imbuir vogais de tanto significado?
— É apenas uma amiga.
— Tony achou que havia mais alguma coisa...
Murcho um pouco mais, dessa vez com um gemido. Se isso continuar, em breve
serei pouco mais que uma pele vazia. Mamãe faz menção de se levantar da cama.
— Tudo bem se não quiser falar no assunto...
Se mágica existe de verdade, então não precisa procurar além do Poder das Mães; a
menor entonação ou o menor gesto pode te fazer sentir como se ainda usasse fraldas. E
provavelmente sujas.
MI: Não! Seja forte! Resista!
Eu desisto e retomo o controle sobre meu MI.
— Não... não, tudo bem... Ela não é minha namorada, mãe... Mas...
— Mas gosta dela? — Aquela expressão de esperança volta, a mesma que reza para
que seu filho possa se livrar das Algemas da Nerdice.
Apesar de todas as suas tentativas de recuperar minha dignidade, o velho ME
simplesmente não foi feito para esse tipo de pressão. Ele desiste e inunda meu rosto de
sangue, que prontamente acende como labaredas solares.
— É... acho que sim... É.
— E qual é o nome dela?
— Sarah.
— Ela estuda na sua escola?
— Acho que sim. — Estou ficando cada vez mais vermelho.
Mamãe se debruça de um jeito meio conspiratório, cheia de entusiasmo nos olhos.
— Convide-a para sair, Archie. Chame Sarah para um encontro.
MI: Aconteceu, ela finalmente enlouqueceu.
— É... boa ideia, mãe... Mas não é tão simples assim.
— É tão simples assim, Archie; quem não arrisca não petisca.
Adoraria acreditar nela, adoraria poder adotar essa atitude simplista, mas ela não
entende! A mera ideia de chamar Sarah para “sair” me enche de horror e autoaversão.
Do mesmo modo, pareço não conseguir encarar os ridículos níveis de entusiasmo que
contar a mamãe sobre a visita de Sarah causariam. E não quero atrair má sorte; vou
contar a ela quando estiver tudo certo na minha cabeça.
— Tony disse que quer que eu a convide para jantar uma noite. — Por mais que
tente, não consigo disfarçar o terror em minha voz.
— Não se preocupe. Vou falar com ele, dizer para não ficar pressionando. Sei como
pode ser embaraçoso contar a uma garota que gosta dela, mas ele está apenas feliz por
você. E eu também.
O rostinho sincero de minha mãe quase me faz querer chorar. Não lágrimas de
alegria, mas lágrimas induzidas pelo fato de que ela vai acabar sendo desapontada por seu
filho socialmente inepto.
— Convide-a para sair, Archie. Seria bom para você ter uma namorada. O almoço
está quase pronto. — E, com isso, ela sai porta afora com um perceptível ânimo em
seus passos.
Quando finalmente desço para almoçar, Tony obviamente já foi reprimido, e o
assunto Sarah, encerrado. No entanto, fica claro que foi encerrado de maneira forçada,
porque os efeitos que teve fazem qualquer outro assunto parecer forçado e artificial.
Limito minhas respostas a acenos de cabeça e grunhidos, tentando mergulhar no meu
porco assado.
Depois do almoço, corro de volta até minha Toca e desembalo mais algumas caixas,
folheio livros de regras velhos, pinto um pouco — qualquer coisa menos pensar no que
quero pensar, mas sei que não devia pensar. Não consigo evitar; acabo pensando assim
mesmo. Onde será que ela mora?
MI: Melhor parar com isso...
As lojinhas da vizinhança ficam a vinte e cinco minutos de caminhada da minha casa
nova. Considerando que vi Sarah nas lojinhas da vizinhança, deve significar que as
lojinhas da sua vizinhança são as da agora minha vizinhança.
MI: Daqui a pouco estará nos dizendo que a soma de dois mais dois é igual a quatro!
E considerando que ela estava a pé, significa que sua casa também não pode ficar
muito longe.
MI: Como descobriu isso, Holmes?
Como será que é a casa dela?
MI: Melhor parar com isso...
Só que por mais que eu tente, simplesmente não consigo imaginar o tipo de casa
onde uma garota tão bonita moraria; esta peça do quebra-cabeça ainda está para ser
encontrada. É como se eu quisesse imaginar com precisão e não pudesse aceitar nada
menos que isso.
MI: *Barulhos de vômito*
E do que será que ela gosta? Será que sigo o exemplo de Tony e começo a pensar em
flores? Nunca comprei flores; quais serão suas preferidas?
MI: Por que não começa a planejar o casamento de uma vez? Não é nem um encontro
de verdade, sua aberração!
Meu MI tem razão. Preciso parar de pensar nessas coisas. Continuo a esvaziar as
caixas, mas depois de algumas horas, um sanduíche apressado, algumas falsas tentativas e
um animado “boa-noite” de mamãe, acabo desistindo, deito na cama e adquiro um
profundo interesse pelo teto. O que será que Sarah está fazendo agora?
MI: Não está gastando a mesma quantidade de energia pensando em você, isso é
certo...
O sono deveria ser uma abençoada liberação das provações e tribulações de minha
vida amorosa inexistente, mas o Sonho está mais uma vez à minha espera.
Acordo num sobressalto, bem na hora em que estou prestes a descobrir a
identidade da coisa ameaçadora que fica na ponta da minha cama — e percebo que ela
está me olhando de cima.
Usando chinelos.
— O que está fazendo aí? E ainda está com as roupas de ontem! Anda logo, terá um
grande dia na escola hoje.
É mamãe. Resmungo e deito de costas, subitamente me dando conta de um fio de
saliva me ligando ao chão.
— Devo ter caído da cama — balbucio, ficando de pé. — O que vai ter na escola
hoje?
Aquele sorriso entusiasmado de novo. Lá vem.
— Vai chamar aquela garota para sair.
MI: Sem pressão, realmente.
CINCO
Sei que isso vai cimentar minha posição como Nerd, mas gosto da escola. Gosto de
aprender — gosto até mesmo de dever de casa. Fico escutando os adultos dizerem que
os anos na escola foram os melhores de suas vidas e, embora existam coisas piores que
ser um virgem louco por livros, espero que não seja verdade. Mas hoje é um dia com um
brilho a mais. Hoje pode ser que eu veja Sarah. Meu estômago parece ter virado lar de
um caleidoscópio de borboletas.
Ravi e eu rimos em silêncio sobre os detalhes do sistema reprodutivo feminino na
aula de biologia, e Matt empresta seu humor cáustico a um debate sobre os temas de
Ratos e homens na aula de inglês. É um dia normal o bastante, mas sem sinal de Sarah.
MI: Se um homem fica solitário demais, ele fica doente...
A hora do almoço agita sua varinha mágica, e recebemos permissão para conversar
uns com os outros sobre coisas realmente importantes para nós. Para mim, Matt, Ravi
e Beggsy, isso significa planejar a sessão de sexta-feira à noite. Ainda não tive a chance de
mencionar que Sarah estará lá, e toda vez que penso que vou falar alguma coisa, sinto
uma onda de pânico no estômago, e meu cérebro muda o rumo da conversa para outra
direção. Geralmente Kirsty Ford — eles mordem a isca direitinho.
— É, mas como acha que eles são? — pergunta Beggsy. — Isto é, quando estão
soltos?
Há um breve momento de silêncio em nossa mesa. O restante do refeitório
continua conversando e comendo, sem saber do Ninho de Perversão à espreita a poucos
metros das lancheiras, peixes empanados e batatas fritas.
— Soltos? — zomba Matt. — Não estamos falando de frangos fugindo de um
galinheiro...
— Mas cairiam bem com algum enchimento do mesmo jeito — responde Ravi, e
todos nós gememos.
— Mais um pouco de decoro, por favor, cavalheiros — interrompo. — Se vamos
mergulhar em tais profundezas... — risadinhas silenciosas da assembleia —, então
vamos ao menos mostrar algum nível de respeito. Sr. Beggs, você tem a palavra.
— Só estou perguntando se acham que apontam para cima ou para baixo, só isso.
Mais um silêncio chocado se segue. Beggsy tenta retomar o assunto.
— Eles desafiam a gravidade ou estamos falando de um par de orelhas como de um
Cocker spaniel? É uma pergunta importante!
Mais risadas da assembleia e gritos meus de “Ordem! Ordem no tribunal!”,
considerando que pareço ter sido extraoficialmente eleito juiz. E tão subitamente
quanto começou, a risada diminui, e, tarde demais, meu Detector de Boçais® é ligado.
Demoro uma fração de segundo para perceber a mudança na linguagem corporal de meus
compatriotas: ombros se curvam, olhos baixos e inexpressivos, expressões ilegíveis em
todos: a versão Nerd de Abaixem-se e Escondam-se: Acovardem-se e Tremam. Tem
alguém atrás de mim.
MI: Ops...
Meu ME tenta imitar, usando a sua melhor tática de camaleão para me misturar ao
ambiente, mas a mão de alguém em meu ombro expõe meu blefe; não tenho outra opção
senão virar. O que faço, muito devagar. Uma testa musculosa se franze para mim.
— Você é aquele garoto do lado de fora da loja ontem.
De perto, Jason Humphries é ainda mais aterrorizante; sua pele parece a superfície
da lua, e ele tem linhas de expressão visíveis em volta da boca.
MI: Provavelmente resultantes da alegria vivenciada 24 horas seguidas por ser mais
durão que Deus.
Por um momento, não tenho certeza nem mesmo se tem a mesma idade que eu —
certamente nenhum garoto de 14 anos poderia aparentar ser tão grisalho. E ele parece
ter mais dentes que o permitido, todos pequenos, mas afiados como facas. O cheiro de
fumaça de cigarro em seu hálito é forte enquanto me encara com olhos sem vida.
— É você sim.
MI: Negue! Negue! Negue! Mesmo diante de evidências fotográficas! Você não estava
lá! Era seu irmão gêmeo! Qualquer coisa menos a verdade!
— Hum... é.
MI: Das cinzas às cinzas, do pó ao pó...
Sinto as mãos fortes de Jason se fecharem rapidamente em meu ombro,
subitamente me dando conta de que ele está usando um anel enquanto me aperta
através do suéter. Ele pisca como as vacas piscam quando têm moscas à sua volta lhes
aborrecendo.
— Então, quem era aquela garota?
MI: Irmã. Responda irmã.
—Hum... só uma amiga...
O cheiro de cigarro torna-se mais forte conforme a cabeça de bigorna de Jason se
aproxima da minha.
— Bem, diga a ela que quero conhecê-la, entendeu bem?
Confirmo fervorosamente com a cabeça e acho que a palavra “claro” cai de minha
boca como o excremento de um coelho.
— Bom. — Ele aperta mais uma vez meu ombro e em seguida se afasta como um
tubarão que acaba de detectar uma gota de sangue em meio a um milhão de litros de
água. Lentamente, meus amigos se desdobram como animais de origami amassados.
— Que garota? — Matt é o primeiro a perguntar.
MI: Ah, maravilha. Lá vamos nós mais uma vez.
— Aquela garota do Casebre. Esbarrei nela de novo. Ontem.
— Cara! — Beggsy consegue milagres com essa palavra. Dessa vez ela significa *Está
impressionado*.
— E quanto ao Humphries? — De todos nós, Ravi parece ter sido o mais abalado
e não se importa com quem possa perceber. Aquela sensação de impotência e medo está
estampada em seu rosto.
MI: E ele nem tem nada a ver com a história!
— Ele estava lá. Com Paul Green e Lewis Mills.
— Cara! — Dessa vez significa *Está preocupado*.
— E ele gostou dela.
— Sim, Matt. Gostou. — Começo a ficar meio irritado com meus amigos
apontando os aspectos potencialmente fatais de minha situação.
MI: Abram alas! Abram alas para o homem morto passar! Abram alas!
O sentimento alegre de meu MI ecoa nos rostos de meus amigos e na nuvem de
silêncio que parece ter coberto nossa mesa.
— Aquela garota vai te meter em encrenca, cara.
Tento retomar o controle sobre minha respiração.
MI: Veja o que está sentindo, Archie. Você sabe que é verdade...
E não importa o quanto eu queira que não seja verdade, é verdade; Jason
Humphries, a Avalanche Humana®, gosta da mesma garota que eu. De algum modo,
não acho que um duelo de madrugada faça seu estilo.
Demora o caminho do almoço até minha aula seguinte para a minha pulsação voltar a
ser algo parecido com o normal. Já tendo revelado que adoro a escola, meu coração se
aperta quando o Sr. Cook revela a última dose de dever de geografia. Hoje à noite — e
provavelmente pelas duas próximas também — estarei pesquisando sobre a precipitação
no nordeste da Inglaterra. Na minha vida, quando chove, alaga tudo...
O sinal nos faz sair correndo como uma torrente de formigas para o corredor, e
meu inerente Detector de Boçais® examina o terreno em busca de armadilhas: trilhas de
pegadas em formato de juntas dos dedos, matanças recentes ou até mesmo excrementos
frescos (geralmente guimbas de cigarro ou planilhas amassadas). Até agora tudo
tranquilo, mas Boçais, como leões, tendem a observar de longe, escondidos em meio à
mata. Ou nos banheiros, o que for mais conveniente.
Mais à frente, Ravi sai da sala de matemática, me vê ao virar e me espera. Ele chama
Beggsy e Matt, que estão indo beber água no bebedouro. Mas só consigo enxergar a
pessoa que sai da sala atrás de Ravi.
— Olá, você.
Ela segura meu braço, e, uma vez mais, estou olhando dentro dos olhos azuis como
gelo de Sarah.
MI: Ela está no seu ano!
Dirigir-se a um garoto de 14 anos como “Você” é a maneira certa de obter sua
atenção. No entanto, preceda isso com um “Olá!” e vindo da boca de um sociopata de
14 anos e a promessa não é mais tão atraente. Meu Detector de Boçais® dá uma rápida
olhada no ambiente ao redor — até agora tudo bem.
MI: Aqui está um problema complicado: seus três melhores amigos bem à frente e
Starshine nos seus braços; como é que você vai resolver essa questão?
Mas meu Monólogo Interno está sendo ignorado no momento. Estou me
recuperando da mudança na aparência de Sarah. Não me admira não a ter reconhecido:
a) claro que ela é nova na escola — era impossível que até mesmo eu não a tivesse
notado antes; e b) o visual gótico devia ser uma coisa de fim de semana. Maquiagem
gótica tem um lado ligeiramente proibido; será que esconde uma estonteante beleza, ou
vai desmascarar uma górgona que colocaria Medusa na lista das Cem Mulheres Mais
Sexy do Mundo? Felizmente, é a primeira opção; sua pele é clara e perfeita, e sua boca
levanta mais de um lado quando ela sorri, como se ela soubesse de alguma coisa que você
não sabe. O que, no meu caso, provavelmente é verdade.
Estimulado pela bela em meu braço, ergo o outro e corajosamente chamo meus
camaradas.
MI: Você é um Nerd! Não devia estar fazendo isso!
Mas imprudentemente, pela primeira vez em minha vida, deixo meu manto de lado e
ando até meus boquiabertos colegas com mais que uma pitada de presunção.
— Pessoal — começo num tom autoritário, me afirmando como o Macho Alfa do
grupo. — Esta é Sarah. Sarah, estes são Beggsy, Ravi e Matt. — Meus amigos se
atrapalham e murmuram alguns “Olás” e “Ois”, sem dúvida admirados por sua
incandescente beleza e possivelmente perturbados pela nuvem de testosterona que me
transformou num Homem do Mundo, charmoso e a quem não subestimar. Por um
momento, penso em deixar o bigode crescer.
Sarah lida com a adulação silenciosa como uma completa profissional; ela
cumprimenta meus amigos um de cada vez, mantendo contato visual com cada um deles,
o que, para um Nerd, é o equivalente a olhar o Super Homem nos olhos quando ele
está com sua visão de raios X.
— Estou animada para sexta. — Ela sorri. — Me avise se quiser que eu leve alguma
coisa. — De repente, ela vê alguém mais à frente. — Preciso ir, Caitlyn está com umas
anotações que quero copiar. Legal conhecer vocês... Até sexta!
E então ela vai embora, levando meu coração junto e deixando um rastro de silêncio
em seu encalço. Matt resolve quebrar o gelo:
— Até sexta? — Há uma pitada de horror em seu escárnio, e posso sentir meu
Robert Pattinson interior sendo exposto à luz forte da Realidade. Mas não há tempo
para reagir; uma montanha na parede se destaca, revelando ser na verdade Jason
Humphries. Meu Detector de Boçais® está precisando de um upgrade. Ele caminha
direto na minha direção, ignorando meus amigos encolhidos, e me empurra gentilmente
com o dedo amarelado.
— Sexta. O que vão fazer na sexta, então?
Meu Robert Pattinson interior é substituído por meu Salsicha interior.
MI: Sebo nas canelas, Scooby!
— Não é nada, na verdade... Só eu e meus amigos... — Queria poder esconder o
medo em minha voz.
— Só você e seus amigos o quê? Vão dar uma festa?
MI: Por favor... apenas faça sem que eu sinta dor...
— Não... Nós... É só um... Vamos jogar. É um jogo.
Humphries tem um momento Worf, em seguida todos os músculos em seu rosto
parecem se contrair para formar algo parecido com um sorriso.
— Um jogo? — Ele vira a cabeça na direção de Sarah e então de volta para mim. —
Você não saberia o que fazer com ela! — O dedo em meu peito torna-se foco de uma
força inesperada, e me vejo sendo empurrado para o chão coberto de precipitação do
nordeste da Inglaterra. — Vejo você na sexta, seu nerd. — E, então, ele também se
afasta. Beggsy e Ravi me ajudam a ficar de pé e a apanhar meus papéis. Matt não parece
tão disposto a perdoar.
— O que ela quis dizer com “Até sexta”?
Eu não havia percebido que meus amigos eram tão provincianos. Tentar explicar a
eles que uma garota quer jogar com a gente é quase como tentar explicar o Facebook
para camponeses da Idade Média. “Cuidado com seus pensamentos, bom senhor!
Porventura o próprio Satanás evocou tais fantasias? Vá! E não fale mais de tais coisas!”
Talvez eu esteja começando a crescer. Talvez seja aqui onde começo verdadeiramente a
transição de jovem para homem — e talvez meus amigos ainda não tenham chegado lá.
Preciso comprar um pouco de loção pós-barba.
— Gente, não vejo qual é o problema, é só uma garota! E há quanto tempo falamos
em convidar garotas para o Jogo?
— A questão é que devia ter perguntado primeiro pra gente. — A veia moral de
Matt subitamente está se afirmando.
— Por quê? Que diferença faz? Certamente termos sangue fresco vai tornar o Jogo
melhor.
— Cara, você sabe das regras; é o Jogo. Somos amigos. — E agora Beggsy se juntou
à multidão para o linchamento. Posso sentir a base de meu argumento tornando-se
instável. Ravi permanece quieto e vigilante.
MI: Você é quem está errado. Ponha as mãos para cima e admita.
Em vez disso, apelo para táticas de distração. Pessoas menos generosas poderiam
chamar isso de mentir.
— Mas eu não a convidei realmente, ela só meio que se convidou. E, então, eu não
poderia exatamente desconvidá-la, poderia?
— Só tinha que dizer a ela que precisava perguntar para a gente primeiro.
— E o que você teria respondido, Matt? “Não”?
— Não importa realmente, Archie. Você não nos deu essa opção, não foi?
Sempre se pode perceber quando uma discussão está começando a ficar séria — as
pessoas começam a dizer os nomes umas das outras com uma clareza acentuada, e as
frases sempre parecem terminar com perguntas. Estas são as demonstrações territoriais
dos Nerds. Gorilas as fazem batendo em seus próprios peitos; cervos travam chifres; os
Nerds enfatizam os nomes uns dos outros e sacam as Grandes Espadas da retórica. A
questão é que fui eu que errei. Sei que fui eu, mas já fui longe demais para recuar. E
parte de mim não consegue entender qual é o problema.
MI: Parte de você não quer entender qual é o problema...
Há um silêncio fervilhante, quebrado pelas habilidades apaziguadoras dignas da
OTAN por parte de Beggsy:
— Cara, você só precisava consultar a gente antes. Não é como se fôssemos
responder que ela não podia ir.
Meu argumento desmorona diante da lógica vulcânica de meu amigo. Como a
casinha de palha construída pelo primeiro dos três porquinhos, ela simplesmente é
soprada pelo vento. No entanto, esse porquinho ainda não terminou; está com a
baforada do lobo em cima dele e pode soprar e soprar melhor que todos.
MI: Não faça isso!
Tarde demais.
— Não é como se pudessem impedir de qualquer maneira, Beggsy. A casa é minha.
Qualquer estrutura livre construída de palha, madeira, ou tijolos deveria ser
instantaneamente dizimada. Mas tenho essa horrível sensação, até mesmo antes de
todas as palavras terminarem de saltar sarcasticamente de minha boca, que fiz uma
grande cagada em minha própria porta. Matt me olha fixamente de um jeito que
subitamente se tornou ilegível.
— OK — responde, assentindo lentamente. — Ótimo. A casa é sua. Mas é bom
saber. — E então, com um quase imperceptível tensionar de mandíbula, se vira
rapidamente e se afasta, com certa determinação no passo. Ravi para por um segundo e
o segue.
— Ah, Ca-ara! — Dessa vez significando *Está decepcionado*.
— Bem... Ele estava sendo um idiota.
MI: Não exagera.
Beggsy obviamente permanece insatisfeito, balançando lentamente a cabeça.
— Cara. Precisa consertar isso. — A essa altura, estamos ambos olhando fixamente
para o mesmo ponto no chão.
— Eu sei...
— Alcance-o no caminho para casa. Diga apenas que sente muito e vai ficar tudo
bem.
— Eu sei... Mas e quanto à Sarah? Não posso apenas... você sabe...
— Cara. — Significa *Não quero nem saber*.
Não dá para discutir com isso. Dou um suspiro e sigo o resto dos alunos do nono
ano pelo corredor.
SEIS
Nem preciso dizer que Matt não estava nos portões da escola na hora da saída; ele
escolhera um caminho diferente para voltar para casa. Felizmente, isso me permitiu
expressar minha indignação com o resto do grupo. Comecei com uma desarmadora
demonstração de humildade, seguida por uma preocupação com o bem-estar de Matt.
Isso funcionou perfeitamente, e meus amigos restantes, preocupados por eu estar
preocupado, tentaram aliviar minhas aflições me dizendo que ficaria tudo bem e que ele
logo esfriaria a cabeça etc etc. Uma vez que eles começaram a compadecer comigo, foi
razoavelmente fácil sugerir que Matt exagerara, e então joguei o ás que tinha guardado na
manga.
— Nunca se sabe, mas se Sarah gostar, talvez queira levar algumas amigas ao
próximo...
Os odores produzidos por Medo e Excitação são notavelmente parecidos. Detectei
um coquetel pesado dos dois antes de nos separarmos com uma agitação de
assentimentos e sorrisos idiotas. Para meus amigos, agora sou o homem que pode lhes
oferecer um Passaporte para a Normalidade. Provavelmente, pela primeira vez em seus
anos de adolescência, foram expostos às vertiginosas possibilidades oferecidas pela
Esperança.
Então por que me sinto tamanha fraude?
Quando dobro a esquina da minha rua, um raio prateado passa por mim; Tony está
saindo, sem dúvida para fechar mais um negócio.
MI: Viva!
Meus escudos descem, e percebo que estou exausto depois de lidar com os meus
próprios negócios. Preciso relaxar; preciso pintar.
Ouço o borbulhar da chaleira quando passo pela porta da frente e sinto o cheiro do
fantasma de um dos cigarros de Tony. E tem outro aroma, vindo de meu obscuro e
distante passado — um perfume doce e reconfortante. Perambulo cozinha adentro sem
conseguir evitar.
— O que está fazendo?
Mamãe se vira do balcão da cozinha e mostra um bolo esfriando num descanso de
metal.
— Quer uma xícara de chá?
Eu aceito, e mamãe corta para mim uma fatia do bolo úmido e quente. Ela não
assava bolos há o que parece ser uma eternidade, desde que ela e papai estavam juntos,
acho. Imagino que esteja feliz. Durante algum tempo, a casa nova se parece com um lar:
apenas eu, mamãe e o cheiro de bolo.
— Como foi a escola?
MI: Escudos a postos, força máxima.
Balbucio alguma coisa vaga e não comprometedora com a boca cheia de chá e bolo.
— E...? — Lá vem aquele sorrisinho de novo.
— O quê? — Quero que ela pergunte em vez de eu oferecer logo a resposta.
— Como foi com Sarah?
Meu ME responde com o charme lacônico de um vilão de James Bond; sem corar
ou desinflar, apenas me recosto casualmente na cadeira oferecendo uma breve
pantomima de avaliar os eventos do dia.
— É... foi bom. Falei com ela. Ela vem pra cá com os meninos na sexta à noite.
Mamãe sorri e desarruma meu cabelo.
— Viu? Eu te disse — fala, sorrindo e aproximando seu rosto do meu como se eu
tivesse 4 anos de idade e acabado de descer num escorrega que achava ser alto demais
para mim.
MI: A qualquer minuto ela vai arrematar te dando um kinder ovo.
— Que bom para você, Archie. Viu só? Eu disse que era simples.
Tomo um último gole de chá e subo até minha Toca, sentindo-me um pouco
melhor. Não sei por que tanta confusão; Matt ficará bem, e iremos todos nos divertir.
E Jason Humphries não sabe nem onde moro.
Depois de dedicar uma hora e meia que nunca irei recuperar da minha vida à
precipitação no nordeste, finalmente me acomodo frente à minha mesa de pintura. A
bruxa de Sarah recebe um banho de preto, e, em seguida, volto minha atenção para a
gárgula. Hora da camada de base.
A base pode, para não iniciados, parecer um pouco maçante. É a primeira camada de
cor que você aplica à sua miniatura acinzentada. Mas — e se trata de um grande “mas”
— se escolher sua base cuidadosamente, pode valorizar muito o produto final. Nesse
caso, estou pintando pedra. Bastante ciente de que pedra não é apenas cinza, abro o
laptop e procuro algumas imagens. Finalmente decido misturar o cinza com um toque
de ocre. Começo a aplicar a tinta, usando um pincel médio, e, de vez em quando, mudo
a mistura, para a cor não ficar muito uniforme.
Distraidamente entro no Facebook e dou uma rápida olhada: Beggsy odeia fazer
dever, Ravi postou um link para algum vídeo no YouTube sobre Guerra nas Estrelas, e
um sinalzinho vermelho me avisa que alguém quer ser meu amigo. Clico no ícone.
MI: Ah meu Deus!
É a Sarah.
É claro que aceito. E subitamente sou como um menino de 6 anos se deparando
com uma série de presentes para abrir: olho primeiro sua linha do tempo ou vejo suas
fotos?
Escolho a timeline; preciso avaliar a concorrência. A foto do perfil de Sarah sorri de
volta para mim, fazendo-me sentir como se tivesse sido pego lendo o diário de alguém,
mas preciso descobrir se existe algum namorado na jogada. Nada nos posts mais
recentes, então desço até os mais antigos, fervorosamente procurando o rastro de algum
interesse masculino. Nada, todos os seus amigos são de sua última escola: Escola para
Garotas St. Brigidine. Com um suspiro de alívio volto até o alto da linha do tempo de
Sarah, e, então, minhas mãos começam a suar.
Olhar o álbum de fotos de alguém é, imagino, um pouco como espiar. Quando clico
no botão de fotos, sinto um arrepio de prazer decadente — o que encontrarei ali; como
ela estará? Sarah tem quatro álbuns abertos: Festa, Natal, Família e...
MI: Acabou de ganhar na loteria!
...Férias.
Eu não devia, mas faço, e a Cascavel Feroz em minha cabeça estremece de
antecipação.
Clique.
MI: Bingo. É uma foto de biquíni.
Não nego que já usei o catálogo da Next da mamãe para... como posso dizer?... fins
recreativos. Nas raras ocasiões em que pediram minha opinião sobre uma blusa ou
alguma calça jeans, certas seções daquela pesada revista simplesmente pareciam exigir
minha atenção.
Mas isso é diferente. Normalmente, ficar encarando uma foto dessas levaria a uma
conclusão óbvia. Mas não posso pensar nela dessa maneira, simplesmente não posso.
OK, então ela está usando uma camiseta por cima do biquíni, mas a luz refletindo da
areia atrás dela é o suficiente para dar a você uma boa ideia do que está escondido,
mesmo que seja apenas uma silhueta. Não faz diferença; tudo o que vejo é sua beleza. É
como se os recessos escuros e cheios de hormônios de minha mente tivessem desligado.
Essa deve ser a diferença entre Amor e Luxúria.
MI: Controle-se...
Volto para minha própria linha do tempo. Não devia ter olhado. Agitado e
amaldiçoando minha fraqueza, pego a gárgula e misturo mais um pouco de tinta.
Uma janela de chat pisca em minha tela, anunciando tentativa de contato do Mundo
Exterior. Meu coração pula, e minha temperatura subitamente atinge o nível de uma
labareda solar... Será que é a Sarah? Será que de alguma maneira ela sabe que eu olhei
uma foto dela de biquíni e camiseta na praia? Como é que vou me explicar?
MI: Negar, negar, negar!
Minha onda de calor e culpa dá lugar ao refrescante suadouro de alívio; é apenas meu
pai.
oi filho. como vc ta?
MI: Socorro — ele agora desistiu de usar letras maiúsculas!
Tudo bem — e você?
blz. td mundo esta melhor. chega de canja d galinha! rsrs!
MI: ..............!
Que bom saber. Como você está?
td bem. vc? e a escola?
Isso é interminável; as mesmas malditas perguntas toda vez. No entanto, é preciso
seguir o ritual. Queria que ele simplesmente ligasse aqui para casa, mas ele não telefona
porque mamãe e ele ainda não estão se falando. E eu também não guardei dinheiro
suficiente para um celular novo, então, por enquanto, isso é tudo que temos.
É — ainda estou nela.
rs!
(Meu Deus.)
não posso ver vc no finde. visita dos pais de Jane. mas preciso falar
com vc. ta livre sexta a noite?
MI: O Jogo! Sarah!
Meu cérebro acessa meu Departamento de Desculpas e escolhe a opção mais
incomum: a verdade. Apesar de faltar um componente vital.
Na sexta não posso — meus amigos vêm aqui para jogar.
q hrs?
Dou um grunhido internamente; já sei onde isso vai dar.
Umas 7.
MI: Bonzinho e vago — pode ser que o faça desistir.
e sua mãe?
Ela vai sair.
vou passar aí umas 6. é importante.
MI: drogadrogadroga!
OK.
blz. te vejo lá. amo vc. x
Também te amo.
Me envergo por cima do laptop. Era só o que me faltava: pela primeira vez terei uma
garota de verdade e ao vivo vindo à minha casa, e meu pai estará aqui. Preciso bolar uma
maneira de fazer com que ele vá embora o mais rápido possível. Só porque meus pais
não se dão bem, por que o resto da minha vida precisa sofrer com isso?
MI: Pais. Tsc.
Meu desânimo autopiedoso se transforma numa crise de resignação. Acho que ainda
estou zangado com ele por ter estragado as coisas com mamãe.
O jantar não ajuda em nada a melhorar meu humor. Mamãe está toda animada com
a possibilidade de seu filho estar prestes a se juntar à raça humana, e Tony está
testando os limites de sua coleira, soltando perguntas como “Quem vem sexta, afinal?” e
“Aconteceu algo de interessante na escola hoje?”. Imagino que ser interrogado seja
assim. Como minha torta de carne o mais rápido que consigo e arrasto-me de volta para
minha Toca para escrever sobre o tema da solidão em Ratos e homens.
MI: Mais uma nota máxima saindo do forno.
Naquela noite, o Sonho começa quase assim que fecho os olhos. Desta vez, meu eu no
sonho abre os olhos e observa o quarto ao redor. Está tudo escuro e quieto.
Espera; o que é aquilo?
Olho para o canto do quarto na direção oposta da minha cama, e a figura está lá,
sentada curvada contra a parede. Parece ter adquirido mais forma desde nosso último
encontro — dessa vez, parece ser feita de uma névoa cinza espiral que desenha seu
contorno no escuro. Apenas seus olhos vermelhos como lava permanecem os mesmos,
enquanto o que serve de pele para a criatura se enrola e retorce como fumaça de cigarro
vista no sol. Ela fica simplesmente sentada ali, me olhando.
Meu coração está martelando, e sinto ondas de hostilidade vindas dessa coisa no
canto de meu quarto. Subitamente, me forço a levantar da cama, mas meus membros e
músculos são como pesos mortos, e cambaleio com pernas pesadas como chumbo até a
porta do quarto. Tarde demais; lá está ele, me esperando, parado no meu caminho.
Perto assim dele, posso ouvir sua respiração; soa ofegante e rouca, e sons estranhos de
vogais saem de seus lábios rodopiantes. Ou talvez seja eu, talvez eu esteja pedindo ajuda,
e minha boca não esteja funcionando direito — não sei.
Em pânico, tropeço para trás e me seguro na pia que costumava ficar em meu antigo
banheiro e, de repente, apareceu em meu quarto. Por algum motivo, acho que jogar água
no rosto vai me ajudar a sair dessa situação. Olho no espelho acima da pia e vejo que a
criatura sumiu. Para meu horror, quando giro as torneiras não sai água, e sim a
retorcida fumaça em espiral de meu agressor. Ele enche a pia, aumentando de tamanho e
de formato, até finalmente colocar uma das mãos enevoadas sobre meu nariz e boca.
Engasgando, caio de joelhos, batendo no braço da criatura, mas minhas mãos apenas a
atravessam. Posso sentir sua mão impedindo-me de respirar e caio no chão, de rosto
para baixo...
...e acordo no chão com o barulho de meu despertador, aparentemente tentando
comer o travesseiro que me seguiu da cama.
MI: Bom dia!
A essa altura, acho que preciso da ajuda de um profissional.
SETE
Nada como um prazo para a mente se focar. Mas não é a precipitação do nordeste nem
estar lutando para ler Ratos e homens que está fazendo meu cérebro trabalhar horas
extras nessa manhã de terça-feira em especial. E não é também a preocupação sobre por
que Matt escolheu um caminho diferente para ir à escola. Não, minhas horas acordado
são consumidas pensando em sexta.
Precisa ser Perfeito.
Perfeito significa que preciso olhar a aventura que vamos jogar nessa noite e
descobrir uma maneira de fazer Sarah gostar. Já esbocei o perfil de sua personagem na
minha cabeça e basicamente resolvi que ela será uma Feiticeira Nível 3. Poderia tê-la
feito um Nível 4, mas pareceria um pouco de favoritismo demais; afinal, Beggsy e os
meninos têm jogado essa batalha já há alguns meses e acabaram de chegar ao Nível 4. E
preciso arranjar um jeito de encaixá-la na aventura sem atrapalhar demais o equilíbrio da
história. História que, devo acrescentar, foi escrita por minha própria e bela mão.
Para os virgens no Jogo, vou tornar as coisas simples: sou o Mestre de Jogo (de
agora em diante conhecido como o MJ), e Sarah e o restante do alegre bando de
aventureiros, em seus disfarces, participarão do Jogo como Personagens do Jogador
(PJs). Como Mestre, decido o que podem ver e descrevo a eles. Os resultados de
encontros com monstros, armadilhas e feitiços mágicos são determinados jogando os
dados — dentre os quais alguns têm vinte faces. O placar é então comparado a certas
características do perfil de seus personagens, como, por exemplo, força ou destreza, e
um resultado é definido, como talvez conseguirem matar o monstro...
MI: Vitória!
...desarmarem a armadilha...
MI: Megavitória!
...ou coisas ruins podem acontecer, como um feitiço dar errado.
MI: Derrota.
O Mago de Matt já quase morreu três vezes e teve que ser ressuscitado pela Poção
de Lázaro de Ravi, que é um acólito alinhado à divindade G’thraax. Beggsy é um Anão.
MI: Adequado.
Meu problema é que Beggsy e os garotos têm trabalhado duro em minha aventura
(Tumba dos Insones) e têm acumulado Pontos de Experiência, o que aumenta suas
habilidades. Enfiar Sarah na história como uma Feiticeira Nível 4 pode ofender alguém,
mas também acho que ela não gostaria de ser uma integrante menos hábil do grupo.
Acho que a farei Nível 3 e lhe darei discretamente um feitiço de Convocar Grande
Demônio. Devia dar um nome a ela também; não queremos atrasar o Jogo tentando
escolher um. Precisa ser um nome um pouco sensual — mas não sensual demais — algo
como... Vasculho meu cérebro em busca de nomes femininos. Nada.
MI: Você vai pensar em alguma coisa.
Com aquele pensamento aquietando-se em minha mente, e a Sra. Hughes
tagarelando sobre o uso de gírias por John Steinbeck ao fundo, penso em quanto tempo
tenho para pintar a estatueta de Sarah. Já dei o banho de preto, então se aplicar as cores
base hoje à noite, posso dar os realces amanhã e os sombreados na quinta e... Opa! Não
sobra tempo para detalhes. Esse terá que ser um serviço corrido. Posso precisar pegar
emprestado o secador de cabelos de mamãe para fazer a tinta secar mais rápido.
E também tem a questão da Toca. O cenário precisa ser perfeito. Normalmente,
com os meninos, ficamos simplesmente sentados ao redor da minha mesa, colocamos
uma música no fundo e começamos a jogar. Mas quero criar uma atmosfera mais
misteriosa para Sarah. Posso ver todos nós, amontoados sobre os mapas, iluminados
apenas por velas. Se ao menos eu tivesse alguns cálices de prata; seria bom. E incenso.
Preciso comprar uns incensos.
E preciso arrumar meu quarto, abrir todas as caixas e deixar tudo em ordem. De
repente, repasso em minha cabeça os livros que habitam minha estante; não tem tantos
livros misteriosos e empoeirados a não ser catálogos de besteiras escapistas de um
garoto de 14 anos cuja tênue noção da realidade está ficando cada dia mais fraca.
Quando saí de casa esta manhã, minha Toca parecia pouco além de um parque de
diversões para os emocionalmente atrofiados.
MI: Tony tem livros...
Ele tem. Alguns de aparência bastante impressionante, também: do tipo grande e
com capa de couro. Deve haver um dicionário e talvez um atlas — pode ser que me faça
parecer mais viajado. Faço uma anotação mental de surrupiar alguma coisa da biblioteca
de Tony e incrementar a minha. Todo esse processo é mais complicado do que pensei,
mas o esforço deve valer a pena. A campainha toca sinalizando o fim de uma aula que
não escutei.
Como se reagindo, minha mente me oferece uma visão breve, porém clara como
cristal, dos olhos gelados de Sarah cintilando à luz de velas enquanto ela bebe da
misteriosa atmosfera da Toca, um santuário de conhecimentos proibidos, onde sonhos
se tornam realidade e...
— Cara!
Maldito Beggsy.
— Cara! Não me ouviu? Estava chamando você há um tempão.
— Não, desculpe.
Enquanto estudantes passam conversando entre nós e ao nosso redor, embarcamos
no que só pode ser descrito como um silêncio desconfortável. Sendo a parte culpada,
estou me esforçando para encontrar palavras. Felizmente, a posição extraoficial de
Beggsy como Intermediário da Paz lhe dá força para tocar no assunto.
— Falei com Matt ontem à noite.
— OK... Como ele está?
— Cara, ele está colérico. Precisa dar um jeito nisso.
Qualquer um que desconheça o pendor de Beggsy para trocadilhos poderia imaginar
que, a essa altura, ele esteja assombrando os corredores da escola, acometido por um
vírus mortal. Jamais fui fã de duplos sentidos. Mas se for usá-los, pelo menos o faça
direito. Já expliquei isso a Beggsy, mas acho que esse não é o momento para reinserir o
assunto.
— Você precisa dar um jeito nisso.
Por um momento sou tomado por uma sensação real de injustiça; por que eu
preciso dar um jeito nisso? Por que Matt não precisa dar um jeito nisso? Por que eu?
MI: Porque foi você quem agiu errado.
— Precisamos dele para o Jogo, cara.
Ele tem razão. O Jogo simplesmente não fluiria sem Matt; com todos os seus
comentários secos e ácidos e aparente pessimismo, Matt é uma das principais forças do
Jogo. Não importa o que mais eu possa dizer sobre ele, o compromisso de Matt em
tornar a história e seu personagem o mais real possível sempre foi de cento e cinquenta
por cento. Não vou nem mencionar a vez em que ele apareceu com uma camisa de cota
de malha (foi um de nossos primeiros jogos). Sem Matt, a noite não seria a mesma
coisa. Precisamos dele.
MI: E ele é seu amigo.
Suspiro. Não é como se eu já não tivesse muito o que fazer, em meio a comprar
incenso, roubar livros e pintar bruxas sexy. Agora preciso me servir de uma grande fatia
de Torta de Humildade e consertar as coisas com meu amigo. Estou começando a me
sentir como um malabarista de circo. E se eu deixar cair apenas um dos malabares,
posso dar adeus a minhas escassas chances com Sarah.
Essa seria uma hora bem ruim para descobrir que não consigo equilibrar malabares.
— Onde ele está?
Já sei a resposta antes mesmo de Beggsy dizer, e, assim, é com uma sensação de
horror que vou até a biblioteca.
Acho que, provavelmente, poderia juntar um bom dinheiro alugando minha mente
para estudantes de teatro: grande parte do que acontece dentro dela são ensaios. No
momento, estou ensaiando possíveis maneiras de abordar Matt, mas a experiência já me
ensinou que, por mais que você tente adivinhar a reação de alguém, sempre vão inventar
uma que não estava no roteiro.
Vagueio pela biblioteca e encontro Matt debruçado sobre um bestiário de Tolkien. Ele
parece não me ver. Sento na cadeira a seu lado, e ele finalmente levanta o olhar.
Eu: Deixemos para lá, velho amigo.
Matt olha minha mão estendida, e um tremor de alívio atravessa seu rosto; a dor de
estar exilado é demais para ele suportar. Ele pisca um pouco demais, provavelmente
segurando as lágrimas, enquanto um sorriso torto vinca seu rosto.
Matt: Obrigado, amigo.
Possivelmente meio otimista demais.
Entro na biblioteca, obviamente me sentindo pesado pelo estresse da situação. Sento a
uma mesa e coloco meus livros de estudos na minha frente, mas sobrecarregado pela
enormidade daquilo, só consigo mirar o vazio. A mão de alguém em meu ombro me faz
olhar para cima; é Matt. Ele se senta ao meu lado.
Matt: Não se preocupe, Archie. Eu entendo.
Essa tem um quê de Hollywood no meio, mas gostei do tom. Talvez a postura de
“herói abatido” seja a melhor a assumir.
MI: Talvez não.
Com o fim dos ensaios finais, é hora de rodar a cena. Abro a porta da biblioteca e
entro.
Bibliotecas são lugares maravilhosos. Algumas pessoas relatam uma enorme
sensação de paz e bem-estar quando entram em igrejas: algo a ver com o silêncio, o
espaço e provavelmente uma sensação de união com os outros iniciados. É isso que as
bibliotecas são para os nerds — santuários onde podemos espreitar a salvo, sabendo
que os únicos outros habitantes são companheiros adoradores. O silêncio engana, no
entanto, pois se escutar com calma, pode ouvir os espíritos nerds cantando todos
juntos seus anseios de ser Outra Coisa — ser como os heróis dos livros, conquistar os
corações de heroínas coquetes, ferir poderosos inimigos. Ser qualquer coisa além de um
Nerd. Mas em vez de serem lugares tristes ou abandonados, bibliotecas são os templos
onde os nerds podem conquistar esses objetivos, suas almas planando em
arrebatamentos de glórias impressas.
MI: E também existem algumas páginas muito gastas nos livros de James Herbert.
Matt não está na mesa de sempre, então caminho silenciosamente pelo labirinto de
estantes — como aquela parte em que Perseu está caçando Medusa em Fúria de Titãs.
Exceto que o cabelo de Matt é vermelho em vez de feito de cobras. Fora isso, a
comparação ainda vale.
MI: Não se esqueça de não olhar nos olhos dele!
Entrando na seção de ficção científica, vejo uma coisa que nunca imaginaria durante
meus ensaios mentais: Matt e Sarah.
Conversando.
Volto para trás e tento sufocar o ciúme que sobe do meu estômago como vômito.
O que ele teria para conversar com ela? O que meu amigo está fazendo falando com
minha...? Minha...? Não posso dizer “namorada”.
MI: Não pode nem dizer “minha”. Ela não é “sua” nada.
Mesmo assim... será que está acontecendo alguma coisa sobre a qual não sei? Tiro
alguns livros da estante e os observo, como Gollum, entre alguns títulos. Sei que não
devia estar fazendo isso; mas simplesmente não consigo evitar.
MI: Então... O Nerd quer o Anel! Mas não podemos deixá-lo ficar com ela, precioso!
Oh, não — nerdzzzinho sujo...
Matt não se sente à vontade perto de garotas, e isso fica evidente em sua linguagem
corporal. Seus braços estão duros, e ele está balançando para trás sobre os calcanhares
quase caindo para a frente na volta. Nerd até o último fio de cabelo.
Sarah, ao contrário, é um retrato de tranquilidade e até mesmo toca o cotovelo
direito de Matt durante a conversa. Ela é quem está falando na maior parte do tempo;
Matt está apenas respondendo com breves acenos de cabeça, como se seu pescoço
tivesse travado. Apesar de me sentir mal por estar espionando desse jeito, não consigo
não reparar no corpo de Sarah — só que não, devo ressaltar, com a mesma luxúria
lasciva de Jason Humphries e seu Bando de Boçais. Comigo é mais como uma
apreciação, do modo como um arquiteto poderia estudar uma bela construção. Juro.
Sarah encerra a conversa com um último sorriso e um toque no cotovelo, antes de
se virar e desaparecer no labirinto de estantes. Fico imóvel por um momento,
observando Matt. Ele fica parado sem se mexer, perdido em pensamentos. É hora de
imitar um bebê e sair para o mundo (como diz Beggsy). Eu viro a esquina.
— Oi. — É um cumprimento universal que não revela nada.
— Oi. — Um adversário mais astuto do que eu imaginara.
— Olha, cara... Sobre ontem... — Ele não me oferece o óbvio convite para começar
da maneira que eu estava esperando, apenas silêncio. — ...Bem, olha... Sinto muito. Eu
só estava meio...
— Não se preocupe.
MI: Relaxar.
— Legal. Então você ainda vai na sexta?
— Para a sua casa? — Matt deixa claro que ainda não estou completamente
perdoado. É justo.
— É. Para o Jogo.
— Vou.
— Legal.
MI: Perguntaperguntapergunta...
Engulo em seco.
MI: O QUE ELE ESTAVA FAZENDO COM A SARAH?
— Então... o que está fazendo?
— Procurando um livro. É uma biblioteca. — Suas táticas evasivas me atingem em
cheio. Vai me forçar a confrontá-lo. — Vi Sarah agora mesmo. — Ou talvez não vá.
— Ah, é? — Me finjo de tranquilo e controlado, apesar da onda de ciúmes
revirando meu estômago.
— É. Ela me disse que estava muito ansiosa para o Jogo e estava me perguntando o
que fazíamos nele.
MI: Relaxar.
— Nunca expliquei como jogar a uma garota antes. Ela é legal, não é? — E, com
isso, acho que acabei de receber a bênção de Matt.
— É, ela é legal. Vamos ver como ela se sai; provavelmente vai ser uma experiência
de uma noite só.
— Em seus sonhos. — Nós dois rimos baixo como dois virgens de 14 anos.
MI: Coisa que vocês são.
A campainha interrompe o lindo silêncio, anunciando a hora do almoço. Saímos da
biblioteca, nossa amizade mais forte que nunca. Entrando no corredor, meu ombro
bate no que parece ser uma viga de ferro. Me viro para ver o que tinha sido e faço
perigoso contato visual com o rosto franzido e o sorriso malicioso de Jason
Humphries.
— Sexta-feira — diz ele, e então sai num disparo, como um leão faminto.
Toda a cor abandona meu rosto, e me viro para Matt, em busca de algumas palavras
de sabedoria e apoio.
— A casa é sua. — Ele dá de ombros.
OITO
Chegar em casa e pintar a gárgula me dá alívio; uma pausa de todo o catálogo de
problemas que minha vida parece estar atirando na minha direção. Não estou pensando
em Jason Humphries nem em papai nem em Matt, estou pensando apenas em pintar e
em cores. E em Sarah.
Decidi que essa gárgula vai ser o Grande Demônio que sua PJ pode convocar.
Quando ela resolver lançar o feitiço (provavelmente no momento em que os PJs
encontrarem o Elemental da Terra que escondi em uma das criptas), ele vai aparecer,
silencioso e pensativo, pronto para fazer seu trabalho. No entanto, há sempre um preço
a se pagar por usar Grandes Demônios; ainda preciso decidir qual será. Alguns
alegariam que jogar Dungeons & Dragons com quatro nerds já seja um preço alto o
bastante.
Também resolvi que o nome de seu PJ será Nox Noctis; que significa “Noite” em
latim. Aqueles tradutores de latim online precisam servir para alguma coisa.
Já apliquei as cores base em Nox Noctis. A principal cor de sua roupa — tal como
é — vai ser um elegante roxo, sugerindo os misteriosos tons do crepúsculo. Em relação
aos adornos, tenho um pote de Prata Élfica, para sugerir a luz do luar e o brilho das
estrelas.
MI: *Atira longe os biscoitos de tanto nojo*
Devo confessar que, apesar de estar tentando assumir uma postura mais madura ao
me aproximar de garotas, senti-me um pouco arrepiado como um garotinho quando
pintei os tons de pele entre a barra da túnica de Nox e o cano de suas botas de cano
longo. Para não falar no decote. Será que um dia esses surtos vão embora? Ou os
homens estão todos amaldiçoados a passar o resto de suas vidas esperando um latente
vislumbre de carne? Apenas o tempo dirá.
Volto minha atenção para a gárgula, que me olha afiadamente de seu pedestal, quase
ressentida comigo por lhe dar vida. Vou pintá-la agora com pincel seco. Pintar dessa
maneira é um truquezinho fantástico; você cria sua cor de destaque e mergulha seu
pincel, como sempre. Mas, em seguida, você tira a maior parte da tinta das cerdas,
usando um pedaço de guardanapo de papel ou de papel higiênico. Tenho sempre um
rolo de papel higiênico no meu quarto, apenas para isso.
MI: Tá bem, tá bem... Diga isso ao juiz...
Quando seu pincel estiver quase sem pigmento, você então passa as cerdas levemente
para a frente e para trás sobre a superfície de sua miniatura. O que restou de tinta vai
grudar levemente nas partes elevadas da escultura, mas de um jeito desbotado, desigual,
irregular, que dá uma aparência antiga e gasta. É uma ótima maneira de pintar
armaduras, espadas e escudos.
A gárgula me encara intensamente, parecendo agora áspera e antiga, como se já
tivesse testemunhado civilizações inteiras erguendo-se e declinando.
Alguém bate em minha porta, e sei que é mamãe; só ela poderia bater de um jeito
que quase pede desculpas por estar atrapalhando.
— Entre!
Ela coloca a cabeça dentro do quarto, rapidamente examinando o aposento e seu
filho em busca de, presumo, quaisquer sinais de que estou abandonando minha porção
nerd para me juntar à raça humana.
— Tudo bem? O que está fazendo?
— Só estou pintando.
Ela sorri. Apesar de ser um exercício solitário, seu filho ser um nerd tem lá suas
vantagens; pelo menos não estou vagando pelas ruas, aborrecendo os vizinhos ou
seguindo carreira como um justiceiro mascarado.
MI: Nota mental: preciso ser mordido por um aracnídeo radioativo.
— Tem um filme na televisão hoje, um daqueles que você gosta.
— Ah, é? Qual deles?
A expressão no rosto de mamãe fica vazia por um momento; ela não é muito boa
com nomes de filme nem no seu melhor momento.
— Você sabe, aquele com todos os anões correndo na floresta...
MI: O quê?
Demoro um pouco, mas finalmente entendo e não consigo não rir ao dizer a ela o
nome de provavelmente um dos melhores filmes jamais feitos.
— O Senhor dos Anéis!
Mamãe também já está rindo a essa altura, como se de alguma maneira tivesse se
surpreendido com sua inabilidade em lembrar-se até mesmo das informações mais
básicas; e eu a amo por isso.
— Esse mesmo. — Ela consegue responder entre risadas. — O que tem todos
aqueles anões correndo na floresta!
Agora nós dois estamos gargalhando, o que é lindo de tão simples. Mas dura pouco;
meus escudos sobem mais uma vez quando resolvo fazer uma pergunta sem perguntar
realmente.
— Você e Tony vão ver também, então?
Penso notar um toque de tristeza nos olhos de mamãe; ela sabe o que estou
perguntando.
— Não. Só eu. Tony saiu para um jantar de negócios.
Eu relaxo. Posso ver no rosto de minha mãe que não há nada que ela gostaria mais
de fazer do que assistir com seu filho a um filme sobre anões correndo na floresta. E
neste momento, não há nada que eu gostaria mais do que assisti-lo com ela. Mergulho
meu pincel dentro do copo d’água e o limpo.
— Vamos lá, então; coloque a água na chaleira.
É quarta-feira de manhã, e acordo revigorado após uma noite sem sonhos. Dias assim
são uma raridade; você acorda, e tudo parece fazer sentido. Problemas existem para
serem resolvidos, para testarem sua desenvoltura e força de caráter, em vez dos
obstáculos insuperáveis que normalmente parecem ser. Não sei se foi a boa noite de
sono ou ter esclarecido as coisas com Matt ou até mesmo assistir a um filme com
mamãe, mas estou me sentindo alerta e confiante; estou pronto para qualquer coisa.
Até mesmo o cigarro pós-bacon de Tony não dá bolhas em meus pulmões com sua
ferocidade habitual, e a caminhada para a escola me enche de uma expectativa nervosa; o
que vai acontecer hoje? Sobre o que Sarah e eu vamos conversar?
MI: Sobre o quanto voxeis si amaum...
Poderia estar apaixonado? Não deveriam existir duas pessoas nessa equação? Mal
conheço Sarah, mas já sinto uma conexão — uma forte conexão. Penso mais uma vez no
dia em que nos encontramos do lado de fora do mercado, e ela tocou minha mão. O que
foi mesmo que disse? Alguma coisa sobre eu estar triste e zangado.
Como ela poderia saber?
Hoje tudo parece fazer sentido e parece totalmente óbvio que Sarah e eu estamos
destinados a alguma coisa juntos: ela me entende sem eu nem precisar falar com ela,
como se existisse uma linha invisível que nos unisse.
Uma emoção percorre meu corpo enquanto me pergunto se devo convidá-la para
sair formalmente. Sei que irá à minha casa, mas não é um encontro de verdade nem
nada; ela vai lá para ver como se joga. Mas é um sinal, não é? O jeito que ela me trata na
escola, o jeito com que conversa com meus amigos, e o fato de estar interessada em
minha vidinha nerd...
MI: Ela gosta de você...
E eu gosto dela. “Gostar” parece uma palavra tão insuficiente para o que sinto de
verdade, assim como “estar a fim”; você gosta de uma música ou está a fim de um pedaço
de bolo. Talvez “amar” seja uma palavra um pouco exagerada, mas parece mais adequada
do que qualquer outra. Um sorriso parece se espalhar em meu rosto, e não consigo me
livrar dele. Até mesmo Ravi, possivelmente uma das pessoas mais distraídas que
conheço, percebe.
— O que está aprontando, hein? — pergunta.
— Nada. Só estou me sentindo bem, acho.
Não devo apressar essa coisa de amor; preciso criar minha oportunidade. A melhor
coisa que posso fazer no momento é direcionar minhas energias para o Jogo e ver o que
acontece. Se tudo correr bem, posso tornar tudo oficial e chamá-la para sair.
MI: Como exatamente fará isso?
Uma boa pergunta, e a busca por uma boa resposta ocupa minha manhã inteira. Mal
escuto o que está sendo conversado em francês, e a aula de matemática é um borrão.
Como se chama uma garota para sair? É uma coisa que nunca pensei em fazer antes.
Claro, tive minhas fantasias sobre beijar Kirsty Ford, mas aqueles pensamentos sempre
pulavam a parte de convidá-la para sair; eu já estava saindo com ela ou era apenas alvo de
seu devasso desejo. Nelas nunca houve nenhum tipo de convite para sair.
Aquela dúvida me segue até o banheiro na hora do almoço. Felizmente, está vazio.
Banheiros são sinônimo de certo medo para os nerds. Sei que isso é verdade após
confissões sombrias entre mim, Matt, Beggsy e Ravi. Todos já admitimos sofrer de uma
condição que batizamos de SXP: Síndrome do Xixi em Público.
A SXP se manifesta quando você está parado na frente do mictório, pronto para se
aliviar. Todos os sistemas estão a postos, e você está prestes a tirar água do joelho
(uma das expressões favoritas de Beggsy) quando alguém entra e para atrás de você.
E o sistema inteiro entra em colapso.
Você podia ter bebido um balde de água fria quatro horas atrás ou ter corrido em
volta do ginásio dez vezes, mas nada nesse mundo de Deus consegue forçar nem mesmo
uma mera gota na porcelana à sua frente. Sua bexiga poderia estar à beira de uma
ruptura séria, mas a presença de Outro em sua vizinhança é como colocar uma rolha
numa garrafa — nada, rien, zero.
O que acarreta outro problema...
Você não pode arriscar perder sua dignidade. Sob circunstância alguma você pode
comunicar o fato de que sofreu um não comparecimento do departamento bexiga. Se for
descoberto, está arriscado a ser ridicularizado em público como em seus piores
pesadelos — apesar de Matt, Beggsy, Ravi e eu também termos admitido que nunca
ouvimos falar de um caso desse tipo na história de nossa escola. Mesmo assim, quem
iria querer se arriscar a ser o primeiro?
Para manter sua vergonha particular em particular, você precisa então fingir uma
entrega bem-sucedida. Precisa passar pelo processo todo: o suspiro de alívio, a
sacudida, fechar o zíper e, então, temendo a possibilidade de ter sido desmascarado
como uma aberração com vergonha de fazer xixi, precisa seguir toda a ladainha de lavar as
mãos enquanto tenta ganhar tempo e uma oportunidade de ficar sozinho para tentar de
novo, sem parecer óbvio. Deus, é complicado. E se mais uma pessoa entrar, é melhor se
resignar a andar como um pato pelo resto do dia.
No entanto, esse não é o caso hoje. Hoje consigo me aliviar à vontade, sem pressa e
a salvo em minha solidão. Para comemorar, vou até a pia e dou uma rodadinha, um
pouco como James Bond fazia nas aberturas de seus antigos filmes.
E então meu dia perfeito desmorona, pois me olhando de volta através do espelho
não está o galanteador educado e sofisticado que tenho me sentido a manhã inteira.
Tudo que vejo é um nerd esquisito e mal-ajambrado. Está tudo errado: meu cabelo é
liso, meus olhos são juntos demais, meu nariz, enorme, e os pelos brotando em meu
queixo me fazem parecer o Salsicha.
MI: Ô diabo!
Ô diabo! mesmo. A nuvem que se forma acima de minha cabeça continua me
seguindo pelo resto do dia. Quando cheguei, nesta manhã, estava animado e ansioso em
de repente encontrar Sarah, talvez conhecê-la um pouco melhor e me enganar pensando
que talvez tivesse uma chance com ela. Agora, pensar nela me vendo mesmo de longe me
enche de medo.
Não existe absolutamente nada atraente em mim. Entrei na fila para ser feio várias
vezes. Não existe esperança.
MI: É esse o espírito! Renda-se!
Para piorar as coisas, enquanto estamos na fila do refeitório, vejo Sarah um pouco à
frente, pagando. Matt está à minha frente, então uso sua altura para tentar esconder
minha silhueta medonha, abaixando-me para que minha cabeça fique escondida atrás de
seus ombros. Infelizmente, minha súbita mudança de posição faz meu cotovelo atingir
Ravi, que está parado atrás de mim. Com um retumbante “Ei!” ele atira sua bandeja,
repleta de peixe e ervilhas, pelos ares. Camarões, peixe e ervilhas caem, quentes e
pegajosos, com uma inesperada graça em cima de minha cabeça, ombro esquerdo, e por
todo o meu braço esquerdo.
MI: Hoje não é seu dia, é?
Alguns outros alunos urram, e todos em volta de Ravi e de mim rapidamente se
afastam, tornando-nos o centro das atenções.
MI: Como se nunca tivessem visto ninguém usando peixe na cabeça. Até parece.
— Archie! O que está fazendo? — Em meio a todos os gritos e ervilhas, não posso
deixar de admirar a esperteza nerd de Ravi: afaste-se de qualquer envolvimento dando
nome ao culpado o mais rapidamente possível. Em seguida, Beggsy empresta sua oh-
tão-bem-vinda opinião à situação.
— Cara! — grita. — Quer um pouco de catchup para acompanhar? — Seguem-se
risadas de qualquer pessoa que tenha escutado. Queria não precisar existir.
Como se as coisas não pudessem ficar piores, sou em seguida rodeado por um grupo
de monitores que começam a tentar me limpar, despindo meu casaco para que
realmente consigam tirar tudo.
— Não vai querer ir para casa cheirando a peixe — aconselha um deles, enquanto
estou me acotovelando no meio do bando.
Em tempo real, a limpeza é feita em segundos, e o esquadrão de monitores volta a
servir os estudantes famintos. No Tempo de Archie®, a tortura dura horas, mas
enquanto eles se afastam em câmera lenta, vejo Sarah à minha frente, parada com um
dos braços esticados, segurando um guardanapo, com um toque de preocupação
presente no belo rosto.
MI: Acorde!
Retorço meus traços malformados em alguma coisa que possa lembrar um sorriso,
sentindo-me ainda mais feio que antes, e aceito o guardanapo.
Sarah sorri:
— Tem uma coisa na sua cabeça.
MI: Em qual delas?
— Obrigado — respondo e limpo o camarão de meus cabelos.
MI: Na verdade é salmão.
— É um visual legal — ri Sarah. — Cai bem em você.
— Todo mundo vai estar usando amanhã — respondo, com um sorriso cansado.
Sarah me abençoa com mais uma gargalhada.
MI: Mandou bem!
— Você é engraçado, Archie.
— É. É um talento nato.
Mais risadas, antes de uma garota da sua sala chegar e a levar embora para tratar de
alguma coisa mais importante. Mas, enquanto ela se afasta, faz uma coisa que reacende a
Fogueira de Esperança dentro de mim: ela olha para trás, sorri e dá um daqueles acenos
que as garotas dão mexendo todos os dedos.
Quando Ron Weasley olhou no espelho de Ojesed, ele se viu como monitor-chefe
de Hogwarts...
MI: ...Quando você se olhou nele, ele quebrou.
OK, sei que não sou nenhum Orlando Bloom, mas deve existir alguma coisa que eu
possa fazer para aumentar minhas chances.
MI: Hora de começar a pensar, camarãozinho.
NOVE
Nunca pedi para cortar o cabelo antes; geralmente apenas me dizem que vou cortar e
resmungo concordando. Mas, atormentado pela recém-descoberta consciência de meus
defeitos físicos, chego à conclusão, durante a volta para casa, que, salvo uma cirurgia
plástica, simplesmente terei que trabalhar com o que tenho — o que significa meu
cabelo.
O problema é que, de alguma maneira, preciso plantar na cabeça de mamãe a ideia de
que necessito de um corte de cabelo, sem parecer que quero um porque Sarah vai à
minha casa na sexta. E este é o outro problema: Sarah vai à minha casa na sexta-feira.
Onde vou arranjar tempo de encaixar um corte de cabelo nas próximas 48 horas? Pelo
menos 47 delas já estão basicamente tomadas. Existe uma pequena chance de, se mamãe
achar que preciso aparar as pontas com urgência, ela ligue para Jean, a moça que vai à
nossa casa cuidar de seu cabelo.
MI: É difícil, mas talvez funcione...
Entro em casa de fininho pela porta da frente e vou direto até o banheiro do
primeiro andar. O espelho confirma tudo que preciso saber — meu cabelo
provavelmente estava mais bonito cheio de comida em cima. Tenho uma rápida
inspiração e molho as mãos na pia, passando-as pela minha franja, que começa a cair em
cima dos meus olhos. Perfeito. Em seguida, saio pela porta da frente, para entrar de
novo com meu grito de sempre.
— Olá-á!
— Estamos na cozinha! — grita mamãe de volta para mim.
Ótimo! “Estamos” sugere que Tony está na área. Meus escudos sobem e posso
sentir meu MI zunindo de ansiedade, mas vou deixar passar dessa vez. Entro na cozinha.
Mamãe está de costas para mim, e Tony lê à mesa da cozinha, atrás de nuvens carregadas
de fumaça.
Tento mais uma vez.
— Olá?
— Quer uma xícara de chá, querido?
— Sim, por favor... Pffft. — Sopro minha franja, como se ela estivesse me irritando.
—Pffft.
Com um tilintar da colher contra minha caneca, mamãe se vira, com a chaleira nas
mãos. Ela para e franze a testa.
— Está chovendo?
Dou um gemido interno; certamente deixei bem óbvio que meu cabelo está me
atrapalhando? No entanto, meu ME já está funcionando, e respondo com uma
confusão bem ensaiada:
— Não. Por quê? Pffft.
A expressão no rosto de mamãe ao se aproximar de mim me faz viajar sete anos no
tempo. É analítica e determinada. Sete anos atrás aquela expressão seria a precursora de
um lenço de bolso sendo esfregado na minha bochecha. Essa memória sensorial
obviamente está guardada nos Arquivos de Emergência de meu ME, e, instintivamente,
me retraio quando ela se aproxima.
— Fique parado...
Mamãe passa uma das mãos pela minha franja e me entrega o chá com a outra. Isso é
que eu chamo de fazer várias coisas ao mesmo tempo.
— Archie, o que é isso? — Ela cheira seus dedos. — Seu cabelo está molhado. E
você está cheirando a peixe.
MI: Malditos poderes de observação!
— Está? Estou? — Finjo explorar com surpresa minha cabeça. — Ah é. Um
acidente com o prato de comida no almoço.
MI: ... E o prêmio de pior desempenho sob pressão vai para...
Mamãe olha mais uma vez para mim, tentando desvendar o que seu filho meio bobo
está aprontando. Como se confirmando suas suspeitas, meu ME me faz tomar um gole
de chá e sorrir pateticamente.
MI: Genial.
Algo parecido com reconhecimento se acende nos olhos de mamãe, e ela olha
rapidamente para Tony, mas ele ainda está mergulhado em seu livro e cigarro. O
vislumbre de reconhecimento se transforma em uma coisa mais brincalhona.
— Tire seu casaco, precisa ser lavado. Vá dar uma olhada no seu quarto.
Agora é minha vez de não entender nada.
— Ande.
Arrasto-me para o segundo andar carregando meu chá; metade me amaldiçoando
pelo fracasso da Operação Corte de Cabelo e metade ansioso pelo que poderia haver no
meu quarto. Abro a porta e em cima da cama está uma nova calça jeans, uma camisa
legal e um par de tênis. Levanto o jeans — são apertados e pretos, exatamente como
gosto. A camisa também é bem bonita. Tem mangas curtas e é estampada num xadrez
vermelho desbotado. Por mais que pudesse ter um quê de Glee, acho que posso
equilibrar seu charme emo usando-a por cima de uma de minhas camisetas velhas.
Os tênis são os que tenho desejado já há algum tempo: prova de que minha mãe
realmente me escuta. All Star cinza. Eu os experimento. Legal.
A batida típica de mamãe na porta anuncia sua chegada. Seu rosto denota pura
ansiedade.
— Está tudo bem?
— Obrigado, mãe. Adorei tudo.
— Olhou na sua mesinha de cabeceira?
Viro-me para trás e abro a gaveta. Ali dentro está um pequeno vidro de loção pós-
barba. Não conheço a marca, mas com um “Legal!” na mente eu o abro para sentir o
perfume.
MI: Sarah não vai conseguir resistir...
— Obrigado, mãe — respondo, abraçando-a.
— Não foi nada. — Ela ri por cima de meu ombro. — Precisa agradecer a Tony
também; a loção pós-barba foi ideia dele.
Por um rápido segundo, sinto-me estranhamente traído por Tony e mamãe
estarem conversando sobre minha vida amorosa. Mas então percebo que não existe
realmente uma vida amorosa sobre a qual conversar, então engulo meu orgulho e
continuo:
— Claro. Vou descer agora.
— A propósito, não há nada de errado com o seu cabelo. — Mamãe sorri,
bagunçando minha franja.
Olho para ela como se não soubesse do que está falando, mas suspeito que até
mesmo James Bond teria dificuldade para esconder um segredo de minha mãe.
A nuvem carregada na cozinha agora estava acompanhada de um cirro-estrato.
Normalmente, eu fingiria uma tosse forte ao me deparar com tamanha neblina, mas as
circunstâncias pedem um cessar-fogo na campanha antifumo.
— Oi, Tony. Obrigado pela loção.
Tony desgruda os olhos de seu livro e se reclina na cadeira, com um sorriso de
satisfação no rosto. Mordo minha bochecha para o sorriso torto em meu rosto não
escapulir.
MI: Imbecil.
— Sem problemas, amigo. Fico feliz em ajudar. Precisa fazer algum esforço quando
recebe uma garota em casa.
Temendo uma explosão digna da síndrome de Tourette, rapidamente passo o
piloto automático de meu ME para controle manual; naquelas três frases, Tony
quebrou a Regra de Ouro de Conversas Não Específicas: Você NUNCA toca no
assunto em questão. Sei que ele sabe para que são todas aquelas roupas e a loção pós-
barba, e sabe que eu sei para o que são — mas você NUNCA toca no assunto. Mamãe
sabe como é, tivemos discussões antes, e ela deixou sua opinião sobre o assunto clara,
mas depois daquele dia, ela honrosamente nunca tocou especificamente no assunto. É
como falar com alguém que obviamente usa peruca; você sabe que a pessoa está usando;
ela sabe que você sabe, mas ambos honrosamente não tocam no assunto. Por mais que
eu odeie comparar Sarah a uma peruca, Tony, Imbecil como sempre, está eficazmente
anunciando a plenos pulmões minha calvície para todos. Decido optar por táticas de
distração.
— É, acho que sim. Estava pensando se podia pegar alguns de seus livros
emprestados por alguns dias?
— Claro. O que está procurando?
— Tenho alguns deveres de casa — minto facilmente. — Preciso pesquisar sobre as
maravilhas naturais do mundo, autores clássicos da história e... — Faço uma varredura
mental de coisas que garotas possam gostar — ...borboletas. Tem alguma coisa sobre
esses assuntos?
— Vamos lá dar uma olhada. — Tony levanta com dificuldade do lugar e deixa um
rastro de fumaça em seu encalço até a biblioteca.
Mamãe evidentemente caprichou ali porque a maioria dos livros dele está nas
prateleiras. A única coisa que tenho a dizer a favor de Tony é que seu hábito de leitura é
amplo e variado. Seu escritório é como uma pequena versão de como imagino que seja a
Biblioteca Britânica, e rapidamente considero perguntar a ele se posso fazer o Jogo aqui.
Os cinzeiros transbordando e a desordem geral me trazem de volta à realidade. Apesar
da avidez em evitar qualquer coisa que lembre trabalho pesado, seu computador foi
desembalado e montado, pronto para usar. Conheço Tony bem o bastante agora para
entender que este é um item no qual não se deve tocar. Quaisquer que sejam os
segredos sombrios guardados ali, nunca saberei nada sobre eles; é seu Cálice Sagrado,
sua Joia Preciosa e seu Retiro da Vida Familiar.
Enquanto Tony se estica e procura, faço um rápido exame: é desconfortável olhar a
algumas das prateleiras. Não porque haja alguma coisa inconveniente nelas, mas porque
não são muito diferentes das minhas. Há bastantes livros de ficção científica, como a
série The Stainless Steel Rat, e alguns volumes obscuros, que parecem ser dos anos 1950
ou 1960. Floreie como bem entender, são cheias de bobagens escapistas.
MI: Assim como todas as espadas e feitiçarias que recheiam suas prateleiras.
A outra coisa é que aqui há montanhas de livros que eu adoraria ter: enormes livros
de capa dura com fotos do espaço, livros sobre a natureza selvagem e até mesmo alguns
sobre OVNIS.
MI: Seria Tony um nerd enrustido?
Ou, mais provável, é isso que acontece aos nerds quando envelhecem? Eu e meus
amigos estaríamos destinados a virarmos Imbecis obesos sem real compreensão sobre
aqueles ao nosso redor, eternamente soltando idiotices ao tentar conversar, cercados de
pessoas com as quais não sabemos como falar de verdade? Estremeço só de pensar, e
alguma coisa parecida com pena por meu padrasto se acende numa parte há muito
esquecida de minha alma; será que Tony e eu somos mais parecidos do que estou
preparado para admitir?
— Aqui está, Arch, tente esses.
Tony empurra uma pilha de livros pesados para o meio de meus braços, e os
examino rapidamente: tem um sobre o Grand Canyon, alguns romances clássicos —
incluindo 1984 e Ardil 22 —, um livro de David Attenborough com algumas fotos
legais de borboletas e, embaixo de todos eles, um pequeno livro cheio de orelhas sobre
bruxaria na Inglaterra medieval. Levanto o olhar e vejo Tony sorrindo de modo
conspiratório para mim.
— Ela vai gostar desse, amigo. Talvez possam até mesmo fazer uma mágica juntos...
MI: Cala a boca, seu idiota!
— É. — Tento retribuir o sorriso, mas a onda quente de vergonha percorrendo
meu corpo corrompe o arquivo necessário para tal, e sei que pareço mais estar rangendo
os dentes. O que estou mesmo. — Obrigado.
Depois do chá, levo os livros para minha Toca e os arrumo em minhas prateleiras. Por
mais que realmente façam meu quarto parecer um pouco mais impressionante, não
consigo evitar me sentir ligeiramente manchado pelo envolvimento de Tony em meus
planos. É como se todo mundo soubesse o que estou armando — exceto eu.
Depois de remexer em minhas prateleiras para criar uma aparência mais vívida,
analiso o restante de minha Toca. Está uma bagunça. Então eu a arrumo. Não uma das
arrumações em meio a xingamentos que faço de vez em quando para acalmar minha mãe,
e não como a arrumação que fui mais ou menos chantageado a fazer quando Tony ia
visitar a casa pela primeira vez. Não, essa arrumação era sincera. Estimulado pelo desejo
de tornar tudo perfeito, recolho as roupas do chão e as penduro em meu armário, abro
as caixas restantes da mudança, escondo anuários, velhas miniaturas e a amaldiçoadora
evidência de um catálogo da Next debaixo da minha cama, e sorrateiramente me desfaço
de certos CDs. Esse quarto agora pertence a um Cara.
Em seguida decido terminar a Nox Noctis. Com as cores base aplicadas, dou a cada
parte da peça um banho. É basicamente como o banho de preto, mas uso tons mais
fortes de cada cor base. O que você quer é que o banho escorra gentilmente para as
reentrâncias da escultura, deixando apenas pigmento suficiente para sombrear. Para o
corpo, misturo um marrom avermelhado, e um roxo mais forte para suas roupas.
Enquanto o banho seca, volto minhas atenções para a gárgula. Tendo usado o pincel
seco nela, agora dou um banho de cor para suavizar os reflexos. Misturo um cinza-
escuro e misturo algum ocre e verde para um efeito de passagem de tempo.
Em circunstâncias normais, eu deixaria a feiticeira secando durante algumas horas,
mas estou correndo contra o tempo, então vou contra tudo em que acredito e uso o
secador de cabelos nela. Em seguida, resolvo empregar uma técnica de reflexos que
inventei e batizei de “gotejar”. Gotejar envolve criar uma versão de banho ligeiramente
mais espessa, mas numa cor mais clara que sua cor base. Com um pincel, você aplica
uma gota do pigmento aguado às áreas mais elevadas de sua miniatura. Em seguida,
usando o pincel seco, você gentilmente puxa o contorno da gota pela superfície, para ela
se misturar ao sombreado. O resultado é uma gradação de cor do tom mais escuro de
seu sombreado, misturando-se à cor base, e, então, clareando até a cor de reflexo. Se
conseguisse acertar, o resultado era muito bom. No entanto, como envolve muita tinta
dissolvida em água, existe sempre o risco da cor escorrer e estragar tudo. É o
equivalente nerd a praticar rafting em corredeiras.
Felizmente tudo sai conforme o planejado, e suspiro aliviado. A parte final, que farei
assim que acordar amanhã de manhã, é de detalhes menores: olhos, boca, joias e outros
adornos que vão dar vida à imagem.
Mamãe coloca sua cabeça dentro do quarto, bem na hora em que estou secando meu
pincel. Seus olhos se arregalam ao perceber o novo visual de minha recém-arrumada
Toca.
— Devo estar na casa errada — comenta, fingindo surpresa. — Achei que estava
entrando no quarto de meu filho...
— Ha, ha.
Mamãe dá mais uma olhada ao redor do quarto.
— Posso passar aspirador enquanto estiver na escola, se quiser.
Uma coisa escurece por trás de meus olhos, e um protesto começa a querer subir
por minha garganta.
MI: Aguente firme; não se esqueça de que ela também já foi uma garota um dia.
Garotas prestam atenção nesse tipo de coisa.
A nuvem passa, e meu protesto é devidamente engolido.
— OK. — É uma resposta universal que nem confirma nem nega o que sinto a
respeito do assunto; não posso parecer ansioso demais.
— Precisa que eu espane também? — balbucia para si mesma, antes de notar a ira
em meu olhar. — Deixe comigo. Não vou mexer em nada importante.
Infelizmente para meu ME, a tagarelice empolgada de minha mãe é contagiante, e
não consigo não sorrir pesarosamente e balançar a cabeça. Ela percebe, com um imenso
sorriso que me diz que o quarto estará mais limpo que nunca quando eu chegar em casa.
Quer eu queira ou não.
MI: O que você quer, na verdade. Mas não a deixe descobrir isso. Dê muita aprovação
e ela vai querer limpar aqui dentro todo dia!
— Amo você! — cantarola. — Boa noite! — E a porta se fecha.
Dou mais uma examinada na Nox Noctis e na Gárgula, antes de colocar meu alarme
para despertar uma hora mais cedo, de modo que possa terminar a pintura e ter tempo
para mais algum retoque. Quinta-feira será um longo dia, mas o esforço vai valer a pena.
Vasculhando minha mente atrás de lojas que vendam incenso, subo na cama e aguardo
ser arrebatado por sonhos com Sarah, a Linda Gótica.
Jamais gostei muito de quintas-feiras. São simplesmente um pouco deprimentes. E
graças a uma noite decente de sono sem sonhos estranhos, estou em modo acelerado.
Realmente, quero que essa quinta-feira acabe logo, para que a contagem regressiva para o
Jogo possa começar propriamente. É um pouco como o dia antes da véspera de Natal
— deprimente.
Mais deprimente ainda é o fato de que acordo a uma hora estúpida para fazer os
embelezamentos em Nox Noctis. Às seis e meia da manhã, mal consigo enxergar, muito
menos manejar um pincel, mas faço o meu melhor. O sombreamento de ontem à noite e
o gotejar auxiliado pelo secador de cabelos ficaram muito bons. Tudo que falta é fazer
os detalhes, que serão as partes mais observadas.
MI: Está tudo nos detalhes.
Usando meu melhor pincel, pinto a íris da feiticeira de um azul que misturo para
ficar o mais parecido possível com o azul dos olhos de Sarah. Em vez do tradicional
batom vermelho que a maioria das feiticeiras parece usar nos filmes e pinturas, escolho
uma cor mais intensa da cor de boca; as únicas pessoas que ficam bem de batom
vermelho berrante trabalham em circos. Por mim, aquela foi uma hora de minha vida
bem gasta, e é uma coisa a menos com que me preocupar mais tarde.
Antes de descer as escadas, tenho uma inspiração e posto meu endereço na linha do
tempo de Sarah, com um link do Google Maps. E então escrevo “Sua Aventura começa
às 19hs de amanhã”, só para ajudá-la a entrar no clima. Uma rápida olhada na minha
própria linha do tempo mostra uma mensagem de meu pai, deixada ontem à noite.
td ok6a?
Suspeito que ele em breve começará a escrever em hieróglifos.
Depois de um minuto olhando o teclado, decido não responder. Talvez se não
responder, ele desista.
MI: Apesar de ele ter dito que era importante...
É, bem, “importante” pode esperar até eu comprar meu telefone novo. O Jogo é
importante. Sarah é importante. Deixar tudo perfeito é importante. Tenho mais uma
incrível ideia e procuro lojas locais que possam vender incenso.
MI: Bingo! Tem uma na esquina do Casebre!
Fecho o laptop e, em seguida, tento avançar o resto do dia o mais rapidamente
possível.
O que dá certo, até o primeiro intervalo. É um dia quente de início de verão, e eu,
Matt e Beggsy estamos conversando. Beggsy faz um relato de testemunha ocular sobre a
camiseta que viu Kirsty Ford usando na aula de educação física pela manhã.
Aparentemente, era bem apertada. Após nos acalmarmos, começamos a mudar a
conversa para o Jogo quando surge Ravi, parecendo ter acabado de ser arrastado em
cima de uma cerca viva. O que pode até ter realmente acontecido.
— Archie! — Ele chega, tropeçando e sem fôlego, exalando medo de praticamente
todos os seus poros.
— Rav, o que foi? Está bem?
— É o Humphries! Ele está atrás de você!
MI: Ah, meu Deus! Vamos todos morrer!
— Por quê? O que é que ele quer?
Ravi está tremendo:
— Ele queria saber onde você mora, Archie.
MI: Essa não.
Beggsy contribui com um arrastado e baixo:
— Ca-ara. — Significa *Ah, meu Deus! Vamos todos morrer!*.
Para coroar o momento, seu tom de voz desafina, fazendo-o soar como um Smurf
apavorado.
— E você deu a ele?
— Não, não falei nada. — O sorriso de Ravi é frágil, como se ele tivesse passado
pelas tormentas do inferno, mas de boca fechada. — Não podia.
MI: Bom soldado.
— Obrigado, cara. É mais corajoso do que eu teria sido.
— Não. — Ravi dá de ombros. — Eu não podia; não sei seu endereço novo.
MI: Ah. Isso explica tudo, então.
— OK. — Concordo com a cabeça de modo distraído. — Bem, obrigado mesmo
assim. Vou mandar meu endereço por mensagem para vocês hoje à noite; talvez seja
melhor que não saibam agora. Desse jeito, Humphries não pode forçá-los a contar a ele.
— Outros encarariam aquilo como um insulto; mas nerds conhecem a verdade, então
ninguém discorda dessa ideia, mas tenho certeza de estarmos todos amaldiçoando nossa
falta de músculos a essa altura. — Vamos tentar não nos separar no almoço e no
intervalo da tarde; estaremos mais vulneráveis sozinhos.
E é assim que passamos o restante do dia. Ficamos na biblioteca durante o almoço,
e o intervalo da tarde foi destinado à busca por cantos apropriados onde nos esconder.
Não vejo Sarah — e parte de mim fica agradecida. Não gostaria que ela fosse exposta a
esse nível de covardia.
Ao chegar em casa, estou cansado e deprimido. Tony saiu, para deslumbrar algum
cliente durante uma cerveja e uma partida, e mamãe está obsessivamente tentando
arrumar mais caixas da mudança. Finalmente caio na cama, feliz por ter terminado de
lidar com aquela quinta-feira. E, apesar de minha ansiedade para que a contagem
regressiva para o Jogo comece na manhã seguinte, sinto-me inquieto — ainda há tempo
de sobra para dar tudo errado.
MI: Anime-se! Pelo menos pode dormir sem medo de sofrer bullying!
Quantas vezes alguém pode estar errado?
Estou na cama quando começa o Sonho. Sinto uma onda de escuridão no canto do
quarto, e dois olhos vermelhos acesos como brasa abrindo-se. Sem conseguir me mover
nem gritar, prevejo um ataque. Mas ele não vem; os olhos apenas ardem na minha
direção em meio às sombras.
De repente dois fios de... alguma coisa... voam de onde meu agressor está. É como
uma mistura das teias do Homem-Aranha e de fita adesiva. Essas cordas pegajosas
parecem ter vida própria e dão diversas voltas ao meu redor, apertando-me com força,
meus braços junto ao corpo, como uma versão tosca de mumificação. Os fios movem-se
como tentáculos e me levantam da cama, me deixando de pé no meio do quarto.
Das sombras consigo escutar algo parecido com uma voz. Tendo visto o formato
corpulento de meu demônio do sonho antes, eu esperava um grunhido profundo e
ressonante, mas o que escuto é um som de um grito distante, como se eu estivesse
ouvindo os ruídos finais de um eco.
Fico parado, amarrado e tremendo, escutando esses gritos abafados, pelo que parece
ser uma eternidade. Desejo ter uma faca ou alguma coisa afiada para cortar aquelas
cordas, mas nada aparece; estou indefeso, inteiramente à mercê da coisa no canto do
quarto.
A voz distante some, diminuindo como fumaça na escuridão. O silêncio seguinte é
pior que os ruídos estranhos.
A criatura finalmente sai de seu esconderijo, e, antes de me derrubar no chão e de
voltar ao mundo real, eu a reconheço. Sua forma se solidificou numa escarpada e angular
massa de músculos e ódio, e ela abre as asas com um rangido enferrujado me atirando
no chão com um berro distante.
É a minha Gárgula.
DEZ
O Glorioso Dia chegou, e estou exausto. Nem mesmo a tagarelice empolgada de minha
mãe consegue levantar meu ânimo; sua arrumação excessiva de minha gola e de meu
cabelo consegue ser simplesmente irritante. Tony se despede de mim com um “Vá com
tudo, Tigrão”, que manda meu MI a um estado de apoplexia, e é apenas graças ao meu
afiado ME que consigo me impedir de gritar “IMBECIL!” a plenos pulmões. No
entanto, balbucio sozinho a palavra a caminho da escola, repetidamente, como algum
tipo de mantra.
Não é que o Sonho me assuste; já tive muitos até agora para conseguir esquecê-los
bem rápido. Mas existe alguma coisa inquietante quando seu hobby começa a se virar
contra você no meio da noite. Pelo menos Nox Noctis ficou boa. Fiz uma avaliação final
nela antes de sair para a escola. Ela ficou sexy, mas não sexy demais.
MI: Existe isso?
Mas acho que o que a realçou mesmo foram os tons de pele — o gotejar e o banho
de cor se uniram quase perfeitamente. A miniatura poderia entrar na próxima
competição de pintura no Dia dos Jogos, mas acho que vou dá-la de presente a Sarah.
Homens geralmente dão flores. Nerds dão feiticeiras em miniatura.
Na escola, o grupo está animado, mas tentando não demonstrar — é o jeitinho
nerd. Em parte porque você não quer que outras pessoas o escutem pulando sem parar
e dizendo como vai golpear os Inimigos da Escuridão com seu Anão Nível Quatro, e em
parte porque, secretamente, estejamos todos tentando elevar o Jogo para algo além do
que ele realmente é: um jogo. Não que tivéssemos nenhuma ilusão de que seja mais que
isso, mas não vamos nos conformar em compará-lo a uma noite de jogos de tabuleiro.
Então, em vez de dar tapas nas costas uns dos outros e gritar sobre Poções de Lázaro,
trocamos olhares furtivos e comentamos em código, preservando o pouco de dignidade
que ainda nos resta. E, esse tempo todo, nos mantemos atentos a Humphries, que
permanece uma ameaça invisível durante toda a manhã.
Chega a hora do almoço, e sigo para os portões da escola. Beggsy me interrompe
antes de eu alcançá-los.
— Cara! Onde está indo?
— Na cidade, amigo. Só vou comprar umas coisas para hoje à noite.
— Ah, é? — Beggsy me olha confuso; o que eu possivelmente poderia precisar para
hoje à noite? Temos o Jogo, temos as miniaturas... Temos até mesmo a garota! Quem
poderia querer mais que isso?
— É. Só umas coisas.
— OK, cara. Vejo você mais tarde. — Ele bate na minha mão e volta na direção do
refeitório.
Essa é a primeira vez em que saio da escola sem permissão, e já estou me sentindo
como um criminoso. A sensação é intensificada pelos outros andando na mesma
direção; eles são desse tipo. Isso tudo vai soar meio esnobe, mas as pessoas me julgam
por eu ser nerd, então acho que tenho direito de julgá-las um pouco também. Os
alunos se afastando dos portões parecem ser aqueles que não queriam realmente estar
na escola para começo de conversa — as saias são mais justas, capuzes cobrem
sobrancelhas caídas, e os andares são mais desafiadores. Sou agora uma gazela solitária
na Serengueti de Delinquentes Juvenis. Meu ME fica mais aguçado, e escolho a tática de
cabeça baixa e mãos nos bolsos; é incrível como seus próprios pés podem parecer
interessantes quando se está tentando passar despercebido.
A cidade parece mais segura; há pessoas fazendo compras e trabalhadores
mastigando sanduíches — mais cobertura para um nerd solitário tirar partido.
Enquanto os predadores delinquentes marcham em meio à multidão, sinalizando sua
aproximação com assobios e gritos, mantenho-me próximo aos muros, em busca da
camuflagem oferecida por senhoras fofoqueiras e mães com seus filhos.
MI: Você é um Conan, o Bárbaro do mundo real.
Quando passo pelo Casebre, olho de relance pela janela, momentaneamente
reconfortado pelas cores e formas na vitrine. Mas o Casebre não era meu destino hoje.
Existe um beco, não muito longe do Casebre, e é aonde o Google falou que preciso ir.
Se for para encontrar incenso em algum lugar nessa hora de almoço, só pode ser ali.
Dobro a esquina e entro no beco, sem ser visto pelas tropas de babuínos de duas
pernas da minha escola. É uma lojinha meio surrada com um letreiro escrito “Manisha”
no tipo de letra que se vê em restaurantes indianos. Conhecendo minha sorte, significa
alguma coisa parecida com “Loja do Amor Não Correspondido”.
MI: Lá vem essa palavra de novo...
Um sino antigo soa quando abro a porta e entro, e sei que estou no lugar certo.
Tirando as fileiras de prateleiras vendendo cristais, velas de formatos estranhos e
estátuas de Buda, o cheiro de incenso é avassalador. Apesar de ser um pouco floral, se
presta à atmosfera que eu queria criar — já conseguia me sentir fora desse mundo; o
tempo parecia ter sido suspenso, e senti meus estresses gradualmente diminuindo. O
incenso estava nos fundos da loja, então perambulei por ela, olhando os livros sobre
feitiçaria rapidamente e escutando o tinir suave dos sinos de vento que ficavam
pendurados no teto.
Os incensos vinham em varetas ou em cones e numa variedade de diferentes
perfumes.
MI: Qual deles?
Felizmente, havia uma tabela na parede dando detalhes sobre as propriedades
variadas de cada fragrância. Optei pelos cones de patchouli, que, segundo a tabela, são
“indispensáveis para qualquer ocasião especial”. Infelizmente, até mesmo o saco de papel
branco no qual o atendente da loja os guardou não disfarça totalmente seu perfume;
preciso colocar isso na minha mochila rapidamente, ou vou cheirar a algum tipo de
templo pelo resto do dia.
O destino, no entanto, tinha outras ideias para mim. Quando dobro a esquina para
voltar ao centro da cidade, eu me deparo com Jason Humphries e sua Gangue de Boçais
encostados na frente de uma loja. Eles não param na minha frente nem nada; estão
ocupados demais fumando e grunhindo com alguma coisa que poderia ser uma garota
debaixo de tanta maquiagem. Humphries, entretanto, me vê imediatamente e, por mais
que não se mova nem fale nada, fixa seus olhos frios e mortos em mim, com um sorriso
de crocodilo nos lábios.
MI: Oh, Deus.
Minhas pernas já estão inundadas de adrenalina, me preparando para sair correndo.
Mas ele não vem até mim. Em vez disso, os músculos em sua testa se flexionam só
porque podem. Não sei se desvio o olhar, o que poderia significar desrespeito, ou o
encaro de volta, o que poderia sinalizar algum tipo de desafio. Em vez disso, tento fazer
um pouco dos dois, piscando e assentindo freneticamente, e meio que sussurrando um
“Tudo bem?” na sua direção.
MI: É isso aí — mostre bem a eles!
Quando já estou quase fora de seu campo de visão, ele responde com um lento e
medido balançar da cabeça e diz, sem som, apenas uma palavra:
— Hoje.
MI: Melhor já começar a cavar sua própria cova.
Mas, que eu saiba, ele ainda não descobriu onde moro.
MI: Continue rezando.
Eu rezo. Durante toda a aula de matemática e a de física também.
A volta para casa, pós-escola, deveria ser um burburinho excitado sobre o que
aconteceria naquela noite. Normalmente, meus amigos estariam tentando obter
detalhes do que eu tinha reservado na Tumba dos Insones, e eu responderia com
provocações convencidas e atirando uma ou outra pista. E, à luz dos recentes
acontecimentos, deveríamos estar discutindo sobre A Presença de uma Garota Pela
Primeira Vez. Mas hoje meus amigos estavam apenas tentando me assegurar que a
ameaça de Jason Humphries não existia.
— Bem, e se ele aparecer? — Ravi está oferecendo algum tipo de aula de coragem.
—Você simplesmente chama a polícia.
— Ele não vai aparecer. — Matt tem repetido essa frase em resposta a
praticamente tudo que foi dito nos últimos dez minutos. — Ele não sabe onde você
mora.
— Mas suponha que ele apareça e quebre a casa toda? E se ele arrombar a porta? —
Já estou no estágio de mãos na cabeça, certo de que Humphries de alguma maneira vai
farejar o cheiro de minha casa nova.
— Ele não vai aparecer.
— Ele não é tão burro assim, Arch — diz Ravi, ignorando Matt. — Isso seria
invasão de domicílio. É ilegal. Ele pode ser um idiota, mas não é burro.
— Ele não vai aparecer.
— Mas você não viu a expressão no rosto dele; ele estava sério! — insisto.
— Ele não vai aparecer.
Beggsy subitamente anda até ficar na nossa frente e se vira para nos olhar, fazendo-
nos parar.
— Caras — começa, num tom suplicante. — Estão todos se esquecendo de uma
coisa. — Há uma pausa dramática e posso sentir as chamas da esperança se
reacendendo. O que poderíamos possivelmente ter esquecido?
— Nós somos quatro... — Beggsy mostra quatro dedos, só para o caso de termos
esquecido como se conta — E ele é apenas um. — Ele ergue um dos dedos da outra
mão, nos poupando de toda a maratona matemática. — Estão vendo o que quero dizer?
Há mais uma pausa enquanto todos encaram Beggsy. Em seguida, como uma só
unidade, e ao mesmo tempo, caímos na gargalhada. Somos Nerds; sabemos do que
somos e do que não somos capazes.
— Só estou dizendo! — protesta Beggsy, a voz subindo uma oitava.
— Ei! — interrompe Ravi. — Tem alguma janela acima da sua porta da frente?
— Tem. E daí?
— Podemos encher uns baldes com água e jogar na cabeça dele!
Mais gargalhadas e todos colaboram, pensando em planos cada vez mais elaborados
para nos livrarmos de Jason Humphries, se ele aparecer. O que, de acordo com Matt,
não vai acontecer.
Depois de nos apoiarmos mutuamente, meus amigos seguem para suas respectivas
casas, e eu volto para a minha. Olho para o relógio.
MI: Três horas até o lançamento.
E então me dou conta: em três horas, uma garota vai estar na minha casa.
MI: E ela é linda.
E ela é linda!
MI: E você gosta dela.
E gosto dela!
MI: Puta merda.
Sem me dar ao trabalho de anunciar minha chegada, corro escadas acima até minha
Toca. Está fantástica; mamãe fez um belo trabalho e, honrando sua palavra, não mudou
nada importante de lugar. A colcha foi trocada, o tapete está limpo e a poeira é agora
apenas uma memória distante. Qualquer coisa parecida com uma caixa de papelão
misteriosamente sumiu, e minhas tralhas magicamente encontraram novos lares. Está
perfeito.
Mamãe bate em minha porta e coloca a cabeça dentro do quarto.
— Está tudo em ordem?
— Obrigado, mãe. Está ótimo. Vou só tomar um banho.
— Vá em frente, então. Vou fazer um chá para você.
Nunca antes na minha vida prestara tanta atenção em minha higiene pessoal: o
cabelo é lavado, as axilas são esfregadas e aqueles lugarezinhos importantes recebem uma
Ensaboada Máxima. Com meus jeans e camisa novos e um toque da loção pós-barba em
cima de meu solitário pelo do peito, entro na cozinha. Mamãe coloca um prato de
espaguete à bolonhesa na minha frente.
— Está bonito. — Ela diz isso do jeito perfeito: discreto, para não causar nenhum
constrangimento nem desconforto, mas o brilho em seus olhos me diz que estou
realmente bem. É tudo que preciso saber.
Infelizmente, existe mais uma opinião a ser oferecida, e ela vem da porta da frente
com um tinir de chaves e um rastro de fumaça. Acertar essa nem direito a prêmio dá.
— Ei, ei, ei, Casanova! Prendam suas filhas, Arch está no pedaço!
MI: Foi um assassinato por misericórdia, Excelência...
— Comprei aquelas tintas que você queria. São essas mesmo?
MI: Hein?
Tony se demorou no final do corredor como uma sombra inflada. Ele furtivamente
acena para mim, tentando não chamar a atenção de mamãe.
MI: *Suspiro* É melhor entrar no jogo e ver o que o Grande Espião está aprontando...
— Vamos dar uma olhada — consigo dizer, debilmente entrando na farsa. Quando
chego ao final do corredor, Tony se encosta contra a parede, mantendo os olhos na
cozinha. A essa altura, sinto-me como se estivesse num daqueles filmes antigos de
espiões em que ninguém sabe atuar. Meu ME reprime a vontade de falar com sotaque
russo.
— Que tinta?
Tony enfia uma sacola debaixo de meu nariz.
— Achei que poderia precisar de alguma coisa especial hoje à noite.
Tem uma garrafa de Cava dentro da sacola.
Ele faz meu MI entrar num conflito sem precedentes contra ele mesmo. Por um
lado, é um gesto ostensivo, que não leva em consideração a) minha idade e b) que
algumas latas de cerveja seriam mais apropriadas. Pensei em recusar. Por outro lado,
Sarah vai achar bem legal quando eu casualmente aparecer com uma garrafa de alguma
coisa espumante. A discussão interna dura meros segundos antes de o romântico
incurável em mim tomar a decisão final.
MI: Legaaaaal.
— Obrigado, Tony. Não precisava ter feito isso.
— Não foi nada — responde. — Mas não conta para sua mãe; ela mataria a nós
dois se descobrisse. Vai precisar gelar, está quente. Espere até sairmos. —
Rapidamente, escondendo a sacola atrás das cortinas em volta da porta de entrada, ele
começa a cantar desafinadamente uma velha canção sobre alguém ser uma lady uma,
duas, três vezes. Esse gesto inesperado faz mamãe correr para seu lado e o abraçar
enquanto ele tem lapsos de risadinhas sucessivas e cai numa cadeira. Demoro um
momento no corredor, sentindo-me um pouco manchado pela mentira da qual agora
faço parte.
MI: Às vezes, é preciso dançar com o diabo...
Justificando isso para mim mesmo num ritmo de foxtrot, verifico que a mercadoria
ilícita está bem escondida e sigo o rastro de fumaça de volta até meu espaguete.
— Tem Coca na geladeira — diz mamãe, dando um último abraço em Tony e
colocando duas garrafas grandes na porta da geladeira. — E salgadinhos no armário —
acrescenta por cima do ombro.
— Legal — respondo. — Então que horas vocês...? — Deixo a pergunta no ar.
— Vamos nos encontrar no pub antes, então vamos sair umas 18h30. Que horas
Sarah vai chegar?
— Todo mundo vai estar aqui por volta das 19 horas. — Uso o “todo mundo”
para tentar fazê-los finalmente entender que isso não é um encontro. É só uma Noite
de Jogo.
MI: Mas poderia considerá-la um encontro.
Mais ou menos.
— Teremos saído bem antes, então — diz mamãe, e em seguida olha para o relógio.
— Vou tomar um banho. Tony, devia pensar em começar a se arrumar também.
— É. — O cara é um mestre em réplicas.
Engulo o resto de meu espaguete e subo para minha Toca. Tenho preparativos a
fazer.
A primeira questão é onde colocar a mesa de jogos. Guardo minhas tintas e, em
seguida, remexo em minha coleção, pegando as peças de que posso precisar hoje. Além
de Nox Noctis e da Gárgula, tenho uma seleção de criaturas mortas-vivas: zumbis,
guerreiros esqueletos, espectros e por aí vai. A Tumba dos Insones é uma história de
vampiros, mas o pessoal ainda não conheceu o Sanguessuga Mestre; isso só acontece lá
pelo nível 6. Até lá, precisam reunir uma série de pistas para descobrir a identidade dele
ou dela. É tudo muito complexo.
Coloco a mesa bem na frente de minha estante de livros. Não apenas estarei
emoldurado por minha coleção de maravilhas literárias, como também estarei
diretamente abaixo de uma luminária na parede, realçando meu ar de mistério e
distanciamento; parecerei ser desse mundo, mas não parte dele, solitário de dia e...
MI: Um babaca.
OK, então vou apenas ajustar um pouco a luz. Monto meu kit de Mestre: uma
barreira que divide a mesa, escondendo os diversos livros de regras, mapas, miniaturas e
dados que usarei para desafiar, testar e guiar os jogadores. Tendo roubado algumas velas
réchaud do andar de baixo, as espalho pelo quarto, colocando uma no meio da mesa.
Em seguida, os cones de incenso. Percebo que nunca usei essas coisas antes; quantos
devo acender? Comprei uma dúzia, e eles têm um cheiro bastante forte, então decido
separar apenas três.
Pego as quatro cadeiras da cozinha e as posiciono em volta da mesa com a de minha
escrivaninha; vai ficar bem apertado. Também pego alguns salgadinhos e os coloco em
tigelas sobre a mesa. Normalmente, simplesmente rasgaríamos e passaríamos os sacos,
mas estou pensando em Sarah.
Hora de testar: ligo a luminária da parede, acendo as velas e apago a luz de teto do
quarto. Está legal; tem um brilho sobrenatural vindo da mesa, as velas lançando
formatos compridos, suaves e oscilantes nas paredes. É melhor eu checar como está
quando se olha do banco do motorista. Sentado em minha cadeira, eu ajusto a
luminária atrás de mim de modo que ela caia diretamente sobre minha cabeça, mas ainda
jogue uma quantidade decente de luz em cima de meus livros e meus mapas. Olhando
para cima, vejo um vago reflexo meu na janela de meu sótão. Sou definido apenas por
sombras.
MI: Perfeito.
Ainda encarando meu reflexo, percebo o quanto estou nervoso. Examino mais
atentamente minha imagem. Estou bem? Calculado demais? Só para ter certeza,
bagunço um pouco meu cabelo para não ficar com aquele visual de quem se esforçou
demais. Assim é melhor.
— Ar-chieee! — Mamãe grita escada acima. Apago as velas, acendo a luz do teto e
desço as escadas. Mamãe está parada, sorrindo e toda arrumada.
— Está bonita. — Aceno sabiamente com a cabeça. Tony aparece a seu lado,
lutando com uma gravata.
— Oh, venha aqui. — Mamãe ri e começa a dar o nó para ele. — Certo, Archie —
começa, fazendo tudo furiosamente ao mesmo tempo. — Estaremos de volta no
máximo às 23 horas. Deixei o número do restaurante ao lado do telefone, e se não
adiantar pode ligar para o celular de Tony. OK, fique parado! — Tony está dificultando
o nó, usando apenas seu pescoço, o que é bastante impressionante.
Inconscientemente olho o relógio. Já são quinze para as sete.
MI: VÃO EMBORA, pelo amor de Deus!
Mamãe percebe minha expressão e também olha o relógio.
— Vamos lá, Tony, você está ótimo. Vamos chegar atrasados.
Tony aperta uma última vez sua gravata, esticando a cabeça como se quisesse
arrancá-la. Mamãe se abaixa e me abraça.
— Divirta-se, querido. — Ela sorri e me dá mais um apertãozinho.
Tony aperta minha mão.
— Boa sorte, amigo — fala, batendo no meu ombro com a outra mão. Já vi cenas
assim em filmes de Hollywood sobre ritos de passagem. E então, para completar, ele
acrescenta: — E não faça nada que eu não faria! — A isso se segue um olhar significativo
para as cortinas e uma piscadela.
MI: Por favor. Façam com que ele pare.
Para encerrar essa farsa insuportável, murmuro concordando e os acompanho até a
porta. É apenas quando escuto o barulho do carro partindo que consigo relaxar
completamente.
MI: Faltam dez minutos...
Verifico meu reflexo mais uma vez no espelho do banheiro do andar de baixo, em
seguida, tiro a bebida de detrás da cortina da entrada. Não há tempo de gelá-la agora,
então pego cinco taças e subo até minha Toca. Dou mais uma olhada pelo quarto e para
a posição da mesa, examinando-a de quase cada ângulo possível.
MI: Cinco.
Como é que o tempo parece estar passando tão rápido? Acendo todas as velas e os
cones de incenso e apago a luz do teto. E então fico parado no alto das escadas, sem
saber muito bem o que fazer comigo mesmo.
Ding-dong!
MI: É hora do show!
ONZE
— Olá, filho.
MI: Nãonãonãonãonãonão — AGORA NÃO!
Entre me preocupar com Sarah, Jason Humphries, meu quarto e todo o resto,
esqueci a visita de meu pai — e tenho uma sensação que meu ME não foi rápido o
bastante para disfarçar minha decepção por ele não ser outra pessoa.
— Desculpe ter me atrasado um pouco; só queria ter certeza de que sua mãe já teria
saído... Não queria nenhuma situação desconfortável.
Odeio quando ele refere a ela como “sua mãe”. Ele não diz isso com nenhum tom de
despeito, mas também não é com amor.
MI: Livre-se dele.
Há um momento de silêncio, onde nenhum de nós dois sabe realmente o que dizer.
— Posso entrar por um instante? Não vou demorar.
— Ah. Claro. Entre. — Recuo, deixando papai entrar na casa. Seus olhos
inconscientemente olham em volta da sala, procurando por provas de sua ex-mulher e
de seu novo companheiro.
— Está tudo bem? — pergunto.
— Está. — Papai parece inquieto, sem saber o que fazer com as mãos. — Escuta,
tenho algo para lhe contar. Ainda não disse nada a sua mãe, queria que você fosse o
primeiro a saber e não tive realmente uma oportunidade de fazer isso pessoalmente.
Você anda meio difícil de encontrar hoje em dia.
Posso sentir minha calma se esvaindo. É este o problema com meu pai — ele tem
um ótimo talento para fazer você sentir como se tudo fosse culpa sua. Eu poderia
ressaltar que não era eu que estive ocupado demais fazendo canja d galinha para minha
família substituta no fim de semana passado, mas não quero começar uma discussão.
— Então, o que há?
— Bem, me ofereceram um emprego que vai trazer um pouco mais de dinheiro, o
que obviamente vai tornar as coisas melhores como um todo, e vou conseguir ajudar
mais sua mãe...
— Parabéns. — Escolho uma reação mais alegre para disfarçar minha raiva
aumentando com o terceiro “sua mãe”.
— Obrigado. Mas o problema é que terei que me mudar.
Minha raiva é silenciada.
— O quê? Para onde?
— Para York. Jane tem família lá, o que vai tornar as coisas mais fáceis, mas
evidentemente significa que não estarei por perto.
Sinto uma espécie de abismo se abrindo em meu peito, e minha garganta parece ter
dado um nó.
— Quando?
— No fim do mês; daqui a apenas algumas semanas. Eu e Jane já conversamos, e
parece a melhor coisa a se fazer para todo mundo.
MI: E onde eu me encaixava na conversa de vocês?
— Hum... OK.
— Sei que é uma notícia um pouco surpreendente, mas queria que soubesse o
quanto antes.
Sinto-me estranhamente vazio. Sei que ainda estou zangado com meu pai pelo que
aconteceu entre mamãe e ele, mas isso parece um soco no estômago. Parece rejeição.
— Ainda conseguiremos nos ver. Você pode ir me visitar, e vou comprar um celular
novo para você.
MI: Um celular. Um prêmio de consolação. Uma coisa para amenizar sua culpa.
— Certo. — Acho que estou piscando um pouco demais.
Vozes do lado de fora da casa nos tiram daquele momento estranho.
— Você está bem?
— Estou — minto, e vejo uma sombra de decepção escurecendo o rosto de meu
pai.
— Que bom — mente ele de volta. — Só queria que você soubesse primeiro, antes
que eu conte à sua mãe. — Ele se vira para os sons se aproximando. — Parece que seus
convidados estão chegando.
— É. O pessoal de sempre. — Meu ME voltou ao piloto automático, lidando com
a situação de um jeito leve e despreocupado. Por dentro, no entanto, sou puro caos.
— OK. Bem, vou sair do seu caminho. Falo com você pelo Facebook amanhã;
vamos tentar nos encontrar semana que vem. Um dia depois da escola.
— É. Isso seria legal. — Estou enfiando minhas unhas em minhas próprias palmas
das mãos para me distrair da lava borbulhando debaixo de minha pele.
— Está bem, então. Bom. Te amo, filho. — Papai se inclina para um abraço.
— É, também te amo. — As palavras saem de minha boca como areia quente, mas
não posso desmoronar aqui. Não agora.
MI: Engula. Morda e engula.
Papai se vira e sai, trocando cumprimentos com o grupo se aproximando. Viro-me
de costas para a porta e respiro fundo, para soltar com certa força — tentando expirar a
dor que está ardendo em meu peito. Passo uma das mãos sobre os olhos, só por
precaução, e então ligo meu ME no máximo. É esquisito, estou vendo o desenrolar
através de uma câmera de filmagem. Estou morto por dentro, inerte, em outro lugar.
— Caaaara! — Beggsy anuncia a chegada do grupo. —Olha quem encontramos! —
Ele aponta outra pessoa do grupo; Sarah.
Simplesmente vê-la faz meu ME querer me trair. Ele quer desistir e expor minha
dor escondida. Mas isso não vai acontecer. Faço uma chamada de emergência para meu
Departamento de Engenharia interno, exigindo Dobra Espacial Cinco — ou estaremos
todos mortos. Com um pouco de esforço, meus escudos permanecem intactos, e
cumprimento o grupo com um sorriso torto.
— Vocês que entram aqui, abandonem todas as esperanças! — Repito meu
cumprimento rotineiro das Noites de Jogo.
Sarah pisa na varanda. Está usando suas roupas góticas, e meu coração derrete; ela é
linda e sexy, e possivelmente tudo que alguém poderia querer. Passaram-se apenas dois
dias desde que a vi pela última vez, mas senti saudades. Seus olhos cheios de rímel
brilham num azul pálido, e seu sorriso poderia reunir nações. Eu a amo.
— Oi — diz Sarah, a voz como ouropel. Não conheço nenhuma outra maneira de
descrevê-la.
— Oi. — Atrás dela, posso ver Beggsy fazendo mímicas de seios com as mãos,
como se estivesse fingindo tocar duas buzinas de carros antigos ao mesmo tempo. Matt
está sorrindo maliciosamente, e Ravi se virou para trás, seus ombros tremendo.
MI: Malditos.
— Certo. É melhor vocês entrarem então. — Não era o mais convidativo dos
convites, mas nesse momento estou funcionando com geradores.
Sarah entra no corredor e, de costas viradas, faço uma cara feia para meus amigos
engraçadinhos. Beggsy aperta a buzina invisível uma última vez por diversão enquanto
fecho a porta atrás deles.
— Senhores. E senhora. Se quiserem podem subir as escadas e ocupar seus lugares,
me juntarei a vocês em um minuto. Subam as escadas e dobrem à direita.
Enquanto eles sobem, entro casualmente no banheiro do andar de baixo e tranco a
porta. Rapidamente, jogo água no rosto e, em seguida, me olho no espelho. Sem
ninguém para me ver ou ouvir, meu ME perde um pouco da força, e posso ver lágrimas
em meus olhos. Cerro os dentes e inflo as narinas, reprimindo minha dor. A cada vez
que as lágrimas ameaçam cair, soco a parede ao lado do espelho e murmuro sozinho
como um louco.
— Vamos lá, Arch. Lute. Vamos lá!
Sinto-me como uma lata de Coca-Cola que foi sacudida, mas não posso me render
agora. Papai obviamente tem sua própria vida para viver, e não posso discutir isso, mas
me sinto tão... indesejado. Desafiando-me a chorar uma vez mais, jogo água no rosto de
novo, seco com a toalha e me reavalio. ME funcionando normalmente. Abro um sorriso
para o espelho, só para ter certeza de que ainda consigo fingir um.
MI: Vai servir. Foco na Sarah. Foco no Jogo.
Respirando como um boxeador pronto para entrar no ringue, subo até minha Toca,
onde posso deixar esse mundo para trás durante algumas preciosas horas.
Do lado de fora do turbilhão que está acontecendo dentro da minha cabeça, tudo parece
estar indo muito bem.
Quando entro, Matt finge estar tendo um acesso de tosse, apertando os olhos para
a porta.
— Archie? Archie? É você? — Ele abana as mãos, como se para afastar a fumaça. —
Não posso ver você! Fale comigo, Archie!
Os outros riem, enquanto Sarah revira os olhos fingindo estar exasperada.
— Qual o problema com vocês? Nunca sentiram cheiro de incenso antes? — Ela se
vira para mim, assentindo com a cabeça em aprovação. — Bem, eu gosto!
Ainda estou enxergando tudo através da lente de uma câmera, mas ninguém parece
ter percebido. Passo por todas as etapas, tirando a Cava quente de debaixo da mesa.
— Quem vai querer um drinque?
— Cara! — Significa *Está bastante impressionado*.
Ravi apenas ri e ergue um dos copos. Matt, como sempre, dá uma alfinetada em
mim através de uma fingida inocência.
— Hoje é alguma ocasião especial?
Mas meu cérebro está passando por uma sobrecarga em seus sistemas agora, e não
aceito o convite para me juntar à brincadeira. Em vez disso, me viro para a única coisa
me ajudando a não desmoronar agora.
— Sarah?
— Não, obrigada. — Ela sorri, envergonhada. — Bebi demais num casamento ano
passado e passei a noite toda vomitando. Só de sentir o cheiro fico enjoada.
Pego uma Coca-Cola na cozinha para ela, sentindo os sorrisos presunçosos de meus
amigos às minhas costas. A raiva ardendo dentro de mim faz com que eu os xingue, e,
por um momento, desejo que não estivessem ali. Felizmente descubro que a bebida tem
um efeito quase anestésico e, depois de beber um copo, estou imerso em uma nuvem
borbulhante — tudo parece um pouco melhor, todo mundo é um pouco mais
engraçado, e me sinto um pouco mais leve.
Tudo bem para eles zombarem, mas não sou o único que se esforçou: Beggsy e Ravi
parecem saídos de um comercial de sabão em pó. Suas camisas normalmente amassadas
estão impecáveis, e suas calças jeans foram tão bem passadas, que provavelmente dá para
ouvi-las chiando quando eles se mexem. Apenas Matt manteve algum senso nerd em sua
estranhamente transformada aparência; diferentemente de Beggsy e Ravi, ele enfiou a
camisa dentro do jeans e a abotoou até o colarinho. E não vamos nem falar no gel de
cabelo que usou para amansar seu afro ruivo. Eu não sabia que partir o cabelo ao meio
estava na moda.
MI: Ele parece saído do século retrasado.
Sarah está se entrosando com perfeição, apesar de obviamente ser o centro das
atenções; Beggsy não para de piscar para mim toda vez que acha que ela não está
olhando, e Ravi não consegue parar de olhar para ela. Estranhamente, Matt,
provavelmente a pessoa mais nervosa que conheço, parece estar completamente relaxado
em sua companhia. Posso ver que parte dele não consegue acreditar de verdade que ela
esteja interessada no Jogo, e ele está calmamente explicando as regras para ela em termos
claros e simples. Dá para ver que está em seu estado mental de compromisso com o
Jogo e quer que a novata sinta-se tão entusiasmada quanto ele. É quase como se Sarah
irradiasse paz, e a acidez costumeira de Matt tivesse sido neutralizada.
Quando tenho certeza de que Sarah entendeu o básico, tomo o comando.
— Certo, pessoal, vamos ao trabalho. A Tumba está esperando.
Matt, Ravi e Beggsy tiram suas miniaturas das mochilas, desembalando-as de
diversas camadas de plástico bolha e papel higiênico. Sarah evidentemente está
impressionada.
— Puxa. Vocês mesmos pintaram isso? — Ela não podia ter feito comentário
melhor, e passamos os cinco minutos seguintes com Sarah examinando o clérigo de
Ravi, o mago de Matt e o Anão Mercenário de Beggsy enquanto os rapazes destacam
certos detalhes e explicam técnicas com orgulho sem reservas. Eu mesmo me sinto
ficando nervoso.
MI: E lá vem a carta na manga...
De trás de minha barreira de Mestre, tiro Nox Noctis e a entrego a Sarah com um
casual “Aqui está a sua”, que disfarça o nervoso que se infiltra através de meu escudo de
Cava.
MI: Boa jogada.
Ela segura a miniatura na altura de seus olhos, girando-a gentilmente entre o
indicador e o polegar.
— Puxa — suspira. — É incrível! Você pintou isso especialmente para mim?
Vindo da boca de qualquer outra pessoa seria um clichê — uma tentativa óbvia de
flertar. Da boca de Sarah, é um agradecimento sincero que faz meu coração pular uma
batida, e um calor se espalhar pelo meu corpo. Eu pintaria a Capela Sistina em troca de
mais um olhar daqueles. Infelizmente, não estou preparado para sua pergunta e, de
repente, fico ciente dos sorrisos irônicos de meus colegas.
— É...
MI: Está ficando vermelho!
— ...bem...
MI: Está balbuciando!
— ...todos têm uma. Então essa agora é a sua. — Não era exatamente a réplica
arrebatadora que eu estava esperando dar.
Ela a examina de perto:
— Bela roupa... — O olhar que acompanha essa declaração faria um cadáver ter uma
ereção.
— Vamos dar uma olhada. — Beggsy sorri, tendo um momento James Earl Jones.
Sarah entrega Nox Noctis a ele, que a examina, seus olhos cintilando de malícia. — Se
veste sempre assim?
— Geralmente, não — responde Sarah. — Talvez para o próximo Jogo.
As mentes de quatro garotos convocam a mesma imagem em uníssono.
MI: As calças de quatro garotos se apertam ao mesmo tempo.
— Certo, então — interrompo. — Sarah, aqui está a ficha de sua personagem;
pessoal, aqui está o mapa de onde paramos na última vez. — O grupo de aventureiros
coloca suas peças sobre o mapa, e todos os olhares se voltam para mim.
— Vocês estão numa cripta — começo. — Está escuro, úmido e frio. No final da
sala, bem na sua frente, tem uma porta. Entre vocês e a porta está um grande caixão de
pedra... O que vocês querem fazer?
O grupo se entreolha, Sarah obviamente parecendo não saber por onde começar.
Acho que os garotos estão constrangidos e não querem parecer ridículos. Felizmente,
Matt, sempre completamente dedicado à causa, começa.
— Lançarei um feitiço de Iluminação; precisamos enxergar melhor, eu acho.
— OK. A ponta de seu cajado se acende e você vê marcas na parede, talvez como se
alguém tivesse tentado escapar. Marcas de garras.
— Talvez tenham prendido um vampiro aqui embaixo. — Ravi franze o cenho. —
Lembre-se do que aquele ladrão contou pra gente no vilarejo. Ele poderia estar no
caixão.
Tomo mais um gole de bebida e sorrio, sentindo as bolhas em minha cabeça me
abençoando com autoconfiança e valor.
— Devemos olhar dentro do caixão? — Sarah ainda está meio incerta, mas está
tentando.
— Vamos inspecioná-lo primeiro — resolve Matt, decidido. — Ilumino a tampa
com meu cajado, em busca de símbolos ou inscrições.
— OK. A tampa do caixão é bastante ornamentada. Há runas entre as gravações,
mas vocês só conseguem identificar uma palavra: “Amaldiçoados”. — Pronuncio a
palavra com o máximo de gravidade que consigo transmitir.
— Preparo meu machado de batalha — oferece Beggsy, remexendo-se em sua
cadeira e inconscientemente segurando uma arma invisível.
— Vou usar minha clava — concorda Ravi.
— Espera aí. — Sarah está olhando a folha do personagem de Ravi. — Você é um
clérigo, deve ter água benta e um crucifixo. Não seria melhor usá-los?
— Bom trabalho — comenta Matt. — Ravi?
— É. Vou escolher a água e a cruz. Nenhum sanguessuga vai se meter com a gente,
não comigo por aqui!
— Vou preparar meu... — Sarah examina sua folha — ... meu talismã de proteção.
— OK. Quem vai abrir o caixão?
— Melhor ser eu — responde Beggsy —, sou o mais forte. — Ele pega um dado e o
joga. Atrás de minha barreira, jogo de volta, usando outro dado.
— OK. Beggsy, a tampa é muito pesada, então você consegue apenas deslizá-la. Lá
dentro tem um esqueleto. Está usando um roupão em decomposição e coberto de
amuletos, todos exibindo o sinal dos Insones. Ele está segurando um cajado de madeira,
e você pode ver que seus dentes caninos são afiados, como presas. Ele não se mexe. —
Coloco na mesa a miniatura de um esqueleto.
O grupo se entreolha de novo.
— Poderia ser um vampiro — especula Matt. — Mas se for, certamente já
cuidaram dele.
— Pode ser o corpo de um daqueles fanáticos, os Filhos dos Insones — sugere
Ravi.
— Pode ser, Jh’terin, pode ser. — Matt parece sombrio agora; ele está Na Zona.
— Vamos querer examinar o corpo?
Recosto-me na cadeira e assisto ao grupo em meio à minha névoa. É maravilhoso.
Sarah é maravilhosa. Ela entrou de cabeça nesse mundo nerd sem nem piscar. Ela está
ali. No meu mundo.
O grupo decide ignorar o caixão e, em vez disso, abrir a porta. São necessárias
algumas tentativas, e Matt resolve jogar um Feitiço de Destruição. Exatamente o que eu
esperava: Preparei uma armadilha mágica desencadeada exatamente por aquele feitiço. O
esqueleto (na verdade um bruxo morto-vivo) se levanta do caixão e os ataca. Em
momentos, Beggsy está incapacitado, e Ravi foi ferido pela Lâmina Maldita. O pânico se
espalha entre o grupo como um incêndio numa floresta.
— Alguém faz alguma coisa! — grita Ravi, enquanto alegremente revelo o quanto
seus pontos de vida estão caindo.
Beggsy geme enquanto joga um dado para saber por quanto tempo mais ficará
desacordado.
— Posso convocar um demônio? Isso seria uma boa ideia? — pergunta Sarah para
Matt.
— Vai demorar demais — responde. — Convocar demônios toma tempo.
— Você não poderia distraí-lo? Tem alguma coisa que poderia mantê-lo longe por
um tempo?
Matt olha sua ficha de personagem e, em seguida, assente.
— É uma companheira valiosa, Nox Noctis — diz no tom de voz de seu
personagem. — OK, Archie. Vou lançar um Campo de Distorção entre nós e o
esqueleto.
Dados são jogados, e pontuações calculadas. Por trás de minha barreira, posso ver
que a jogada de Matt falhou frente à resistência do esqueleto à mágica. Mas quero dar a
Sarah uma chance de brilhar.
— Seu Campo de Distorção funciona, e o bruxo esqueleto baixa sua espada; é como
se ele não pudesse ver vocês.
— Fique atrás do caixão — ordena Matt. — Não temos como prever quanto
tempo essa coisa vai durar. Você convoca, e eu seguro o ossudo aqui.
Sarah move sua miniatura no mapa e olha para mim.
— Eu quero... — Ela lê a ficha de sua personagem — ... Convocar um Grande
Demônio.
— OK, mas é arriscado — aviso. — Esses caras têm uma queda por pedir mais do
que você pode dar.
— Vou correr esse risco. — Ela sorri, e então segura os dados nas mãos e fecha os
olhos. — Espíritos do Submundo — entoa —, concedam a mim a ajuda de um de seus
agentes. Faça-o meu e apenas meu!
Posso sentir os outros congelando por um momento: isso é interpretação de
primeira. Em outras circunstâncias, pareceria bobagem, mas aqui, no santuário de
minha Toca, foi perfeito. Ela joga o dado. Por trás de minha barreira, posso ver que foi
mais uma derrota, mas regras foram feitas para serem quebradas. Com floreio
dramático, coloco a Gárgula na frente dela.
— Qual é o seu desejo, Senhora? — Entusiasmado pelas bolhas da bebida, entro no
espírito da coisa.
— A quem você serve? — Ela olha diretamente nos meus olhos.
— Apenas a você, Senhora. — Eu olho diretamente nos dela.
— E por que está aqui?
— Apenas para fazer o que desejar.
— E o que vai pedir de volta?
— Apenas o que estiver em seu poder conceder.
Quase posso sentir uma carga elétrica fluindo entre nós. Se perguntassem a mim,
diria que não havia mais ninguém na sala, apenas nós. Não me importo com os outros
assistindo e não me importo com o que vão pensar; tudo que posso ver são os olhos
azuis como gelo de Sarah e as curvas delicadas de sua boca.
— Então faça o que peço e será recompensado.
Um milhão de imagens passam por minha cabeça, e sou forçado a cruzar as pernas.
Deus me ajude se precisar ir ao banheiro.
— O que deseja, Senhora?
Nunca chego a escutar sua resposta. Ouvimos uma súbita batida na janela de meu
quarto; uma grande pedra rola pelo vidro. Ficamos todos sentados em silêncio, olhando
ansiosamente uns para os outros.
BANG! Mais uma pedra.
— Que diabos...?
BANG! Outra.
Cautelosamente, Matt vai até a janela, a abre e coloca a cabeça para fora. Ele recua
rápido, ao mesmo tempo em que mais um míssil atinge o telhado.
— Eu estava errado. — Ele faz uma carranca. — Ele apareceu.
DOZE
Ficamos sentados, congelados, em silêncio, escutando o bombardeio em meu teto.
— Ele vai quebrar a janela num minuto. — Ravi voltou ao seu comportamento
nerd habitual, encolhido e apavorado.
— O que vamos fazer? — Beggsy também está se retraindo para sua concha e parece
ter sugado ar de um balão de gás hélio. — Como ele nos encontrou?
MI: Boa pergunta.
— É o garoto que vimos no mercado, Jason Humphries. O que ele quer? — Sarah
está olhando pela janela, obviamente nervosa, enquanto Matt anda pelo quarto e para
quando outra pedra atinge o vidro.
MI: O que você vai fazer?
A responsabilidade é minha. Meus amigos estão na minha casa e na minha Toca.
Estou cansado de me sentir impotente e assustado. Quero voltar a ter algum controle
sobre minha vida. As bolhas em minha cabeça se misturam à minha frustração e raiva,
criando alguma coisa parecida com coragem.
— Que se dane — balbucio sombriamente, indo até a janela.
— Cara! Pare!
Eu ignoro o protesto de Beggsy e abro toda a janela para olhar para a calçada lá fora.
Embaixo da suave poça de luz do poste, posso ver a silhueta forte de Jason Humphries
se preparando para atirar mais uma pedra.
— Ei! — Minha raiva parece ainda maior quando falo. — O que está fazendo?
Humphries olha para cima e ladra uma risada curta que ecoa pela noite, antes de
atirar mais uma pedra.
— Chegando na festa! — grita.
Quero matá-lo. Esta é a minha casa! Não é justo e não está certo.
— Pare! Não tem festa alguma! — grito, desviando da pedra. — Cai fora!
Mais uma gargalhada, seguida de outra pedra.
Matt está ao meu lado.
— Diga a ele que vamos chamar a polícia se ele não parar. — Seu tom de voz é firme
e preocupado. Humphries responde a minha sugestão com mais um bombardeio. Olho
em volta de meu quarto e vejo uma cena de medo e vergonha; estamos todos apavorados
demais para fazer alguma coisa e sabemos e nos odiamos por isso. Até Sarah parece
estar chocada.
— O que ele está fazendo? — pergunta, incrédula.
Posso sentir uma onda de calor invadindo meu peito, e minha respiração está
ficando mais curta.
— Cai fora daqui! — grito.
Humphries para por um momento.
— Está com aquela garota aí? — pergunta.
MI: Negarnegarnegar!
Mas alguma coisa em mim se acendeu, provavelmente graças a Cava.
— Estou! E daí?
— É melhor me deixar entrar, então!
— Ah é? E se não deixar?
A resposta é mais uma saraivada de pedras.
— Archie, isso é sério.
— Cala a boca, Ravi. Me deixa pensar.
Sarah se levanta de repente.
— Vou lá falar com ele. — Ela sai do quarto.
Naquele instante, sinto-me mais impotente, mais inútil e mais patético que jamais
me sentira antes na vida. Numa explosão, as bolhas de Cava estouram, e uma jorrada de
fúria invade minha corrente sanguínea como lava derretida.
— Desgraçado! — sibilo, e corro escadas abaixo, ultrapassando Sarah.
— Archie! O que está...?
— Fique aí!
Escancaro a porta de entrada e fico parado, ofegante, trêmulo. Matt, Ravi e Beggsy
se juntam a mim. Humphries salta na nossa direção.
— O que você quer? — Minha voz está trêmula. — Como descobriu onde moro?
— Vi no Facebook da sua namorada. Eu avisei que ia entrar.
— Não, você não vai. Agora dá o fora!
Humphries olha por cima de meu ombro; pela mudança sinistra em sua expressão,
imagino que Sarah tenha aparecido atrás de mim.
— Oi, gatinha. O que está fazendo com esses perdedores? — Ele nem se dá ao
trabalho de esconder a malícia em seu tom de voz.
— Por que não vai para casa, Jason? — Sarah é a mais calma de nós.
— Estão jogando aí dentro? — É como se ele nem sequer a tivesse escutado.
Humphries se aproxima.
— Por favor, vá para casa.
— Posso mostrar alguns jogos. — Um sorriso de réptil revela dentes pequenos e
manchados.
— Se manda, Humphries.
MI: Acabei mesmo de dizer isso?
Os músculos de Humphries se flexionam. Eu o desafiei, e ele está me mostrando o
que tem. Mais uma vez, ele se aproxima.
— O que foi que disse?
Não tenho como voltar atrás agora.
— Apenas se manda, OK?
Ouço Beggsy atrás de mim repetindo “Ah, meu Deus” sem parar, sibilando para
Ravi chamar a polícia. O rosto de Humphries é duro como granito.
— Acho que vou é entrar. — Sua voz está baixa e fria, decidida. E, então, ele ousa.
Coloca um dos pés na minha soleira. Minha soleira.
Algo acontece e Jason cambaleia para trás. Meus braços estão esticados, e posso
sentir um metal derretido correndo por minha veias.
MI: Ah, meu Deus! Você o empurrou! Você empurrou Jason Humphries!
Estou ofegante e tremendo como uma folha. Um sorriso perigoso se abre na boca
de Humphries e seus olhos se escurecem. Sem dizer uma só palavra, ele se aproxima
novamente de mim, lenta e precisamente, o rosto cheio de ódio.
— Babaca — sibila. — Nerd.
Escuto um estrondo dentro de minha cabeça e meu corpo é tomado por ira e raiva.
Tudo que foi anestesiado pela Cava de repente entra em foco. Meus braços empurram
Jason de volta para a calçada e minhas pernas me arremessam para cima dele. Um grito
selvagem sai de minhas entranhas e ecoa pela noite. Meu peso atira nós dois no chão, eu
por cima. Humphries apoia os pés no chão e desliza de baixo de mim. Nós dois
levantamos e agarramos os ombros um do outro. Nossas pernas dançam estranhamente
enquanto tentamos fazer o outro tropeçar numa imitação ruim de judô. O hálito de
Humphries fede, e um sorriso irônico está congelado em seu rosto. Estou sem ar e
fazendo ruídos medrosos enquanto nossos pés tentam atingir as canelas um do outro,
errando e recuperando o equilíbrio em frações de segundo.
De repente, estamos afastados; ele deve ter me empurrado, porque estou
cambaleando para trás. Meus braços cobrem meu rosto de modo instintivo e são
atingidos por uma tempestade de socos. É uma bagunça, toda a situação virou uma
bagunça. Não é como aquelas lutas que você vê nos filmes, onde os caras socam um ao
outro com socos lentos e precisos; este é um espasmo frenético e confuso de pancadas e
barulhos. Mas Jason sabe brigar, e eu não. Com meus braços protegendo a cabeça,
minhas costelas ficam expostas, e sinto o impacto de seus punhos bem abaixo de minhas
axilas. Aquilo tira o ar de meus pulmões, e me dobro, minhas mãos abanando.
Cambaleio às cegas, esticando meus próprios punhos, acertando o ar, agarrando seu
capuz, gemendo e gritando. Em algum lugar consigo ouvir Sarah gritando para
pararmos.
E, então, acerto algo. Minhas descontroladas juntas dos dedos atingem alguma coisa
que se tritura. Os golpes param por um segundo enquanto Humphries recua, com uma
das mãos no rosto. Ele fica parado por um momento, em seguida olha sua palma com
uma expressão parecida com nojo. Está escorrendo sangue de seu nariz, preto debaixo
daquela meia luz. Uma expressão decidida aparece em seu rosto, e ele olha para mim.
Já estou dando passos incertos para trás, mas é tarde demais; ele pula em mim
como um touro, os braços girando. Sinto um impacto na bochecha, e o barulho do
cascalho debaixo dos pés enquanto caio, com Humphries em cima de mim. Ele rosna,
grunhe e xinga, me atingindo a cada chance que tem.
MI: Vou morrer.
E, por um momento, acho que morri. Tudo fica branco, e não sinto mais nada.
Quando abro meus olhos, vejo que a calçada foi iluminada pelos faróis de um carro, e
Tony está atirando Jason na rua. Minha mãe me levanta, com uma expressão no rosto
que eu nunca tinha visto antes.
— Entre em casa. Agora.
Sentado com um pacote de ervilhas congeladas no rosto, escutando minha mãe me
dando um sermão sobre os perigos de brigar, nunca me senti menos como James Bond.
Pode ter sido uma fantasia tênue para começar, mas meu rosto machucado, costelas
doloridas e ego gravemente ferido não ajudam em nada a reerguê-la. Apesar dos vinte
minutos que meus amigos e Sarah passaram explicando a minha mãe que o que
acontecera não tinha sido culpa minha, ela parece pensar que este é o momento certo
para garantir que aquilo jamais se repita — como se eu estivesse prestes a sair pelas ruas
em busca de vingança. E acho que, além de tudo, estou tendo uma ressaca prematura.
MI: Mas você acertou um soco nele.
Aquela lembrança me enche com um pouco de orgulho, admito, mas também me
enche com mais que um pouco de medo — minha vida na escola não vai ser uma que
valha a pena viver. A cada passo que der, vou ser assombrado pela imagem psicótica de
Jason Humphries.
— Então? Não vai falar nada?
Olho nos olhos de minha mãe. Poderia contar a ela sobre a mudança de papai, mas
aquilo pareceria uma desculpa.
MI: Apenas se desculpe e encerre o assunto.
— Desculpe. Simplesmente aconteceu.
Mamãe franze os lábios e expira lentamente pelo nariz.
— Mas você está bem? Como está a bochecha?
MI: Ela não consegue se segurar.
— Está doendo um pouco, mas estou bem. Desculpa, mãe.
Ela concorda e se endireita, perguntando quem quer uma xícara de chá. É sua
maneira subconsciente de revelar que vai deixar essa passar. Chá resolve tudo.
— Bem, eu vou tomar uma cerveja — bufa Tony, se arrastando até a geladeira. —
Acho que mereço. — Ele cerra os punhos e os relaxa novamente, se retraindo por
alguma dor ou machucado. — Aquele garoto era grande.
— Eu sei! — rio, pesarosamente. — Eu estava embaixo dele! Obrigado por tirá-lo
de cima de mim.
— Não foi nada. Você parecia estar com tudo sob controle, de qualquer maneira...
Ergo uma sobrancelha desajeitadamente. Meus amigos riem. Apenas Sarah
permanece quieta, me olhando com atenção, quase como se estivesse tentando entender
alguma coisa.
MI: Pode estar apenas admirada e cheia de gratidão.
Acho que não. Mamãe volta com canecas de chá adoçado e oferece biscoitos a todos.
— Bebam — diz. — E depois acho melhor levar todos vocês para suas casas.
Tivemos um grande choque.
— É — consegue dizer Beggsy, em meio a mastigadas. — Mas não foi um choque
tão grande quanto o que Jason Humphries teve.
Com minha adrenalina tendo diminuído, e o chá correndo por nossas veias,
começamos a relembrar todo o episódio, confortáveis e a salvo em nosso hábitat. Esse é
um momento de camaradagem que nunca experimentara de verdade antes porque, pela
primeira vez em nossas submissas vidinhas, alguma coisa aconteceu. Pela primeira vez,
somos partes de nossa própria história, em vez de viver nossas fantasias com mapas e
miniaturas. Escuto meus amigos relembrando os diversos desdobramentos da noite.
Descubro que Ravi tentou mesmo chamar a polícia, mas discou 911. Ele vê muita
televisão. Só que ele viu o número do celular de Tony anotado no bloquinho e ligou
para ele? Então parabéns para Ravi. Matt ficou tentando decidir se entrava na briga ou
não, e Beggsy veio com alguma história sobre ficar na frente de Sarah protegendo-a da
briga. Só Sarah e eu não temos nada a dizer.
MI: No que ela está pensando?
Em todas as fantasias que me permiti ter sobre proteger Sarah de perigos, suas
reações foram completamente diferentes desta. Na maioria delas, apanhei até quase
morrer...
MI: Confere.
...mas emergi vitorioso...
MI: Confere.
...possivelmente com uma ferida dramática que faz descer um fio de sangue de minha
testa pela lateral de meu rosto...
MI: Olho roxo e costelas machucadas... Vamos dizer que confere.
...da qual ela cuida...
MI: Mamãe. Ervilhas. Sermão. Não.
...antes de cair irremediavelmente em meus braços...
MI: Chá. Biscoitos. Silêncio. Pois é.
Talvez esteja decepcionada comigo; talvez minha demonstração encorajada pela
bebida tenha sido animalesca ou até mesmo patética demais para conquistar sua
adoração.
— Todos prontos? — pergunta mamãe, olhando a fileira de xícaras vazias. —
Vamos lá, então. — Meus amigos se levantam e se despedem de mim. Ravi me dá um
tapinha, Matt aperta minha mão e Beggsy fica em pé, imóvel por um segundo,
apontando-me significativamente. É tudo meio solene. Sarah para na minha frente,
então se abaixa de modo gracioso e coloca uma de suas mãos na minha. Ela olha bem
nos meus olhos.
— Vou ligar para você amanhã.
Meu ME, incapaz de funcionar, permite que meu rosto fique vermelho.
MI: *Sons de trombeta*
— Tá.
Ela grava seu número no meu telefone, e, em seguida, todos saem. Vejo Tony
olhando a porta, escutando o motor do carro sendo ligado. Ela acelera e desaparece
noite adentro, deixando meus amigos e a garota que vai me ligar amanhã em suas casas.
Com o carro longe, Tony se vira para mim, com um sorriso conspiratório no rosto.
— Ora, ora, ora — sorri. — Não sabia que você era desse tipo, Arch, defendendo a
honra de sua dama. E contra um cara daqueles. Eu teria feito o mesmo no seu lugar,
sabe? Ela vale a pena.
Meu ME sorri e concorda. Meu MI geme e suspira.
— Deve ter sido a Cava — dou de ombros.
Tony para e olha para cima, como se tentando escutar alguma coisa.
— Se livre da garrafa antes de sua mãe voltar — aconselha, calmamente. —
Ninguém precisa de mais problemas por hoje.
— É, está bem.
Enquanto me arrasto dolorosamente escadas acima para buscar a garrafa,
silenciosamente resolvo nunca mais aceitar as sugestões de Tony.
MI: Elas só vão te meter em enrascadas.
Esta noite o Sonho é diferente. A Gárgula está esperando, e sou arrastado da cama e
deixado imóvel no meio do quarto. Por um tempo, ela apenas me rodeia, me encarando
com os olhos acesos, seus músculos como bolas de canhão movendo-se a cada passo por
baixo de sua carapaça de pedra.
Então ela para e me olha com um rosnado. Bem devagar, começa a andar na minha
direção. Mais uma vez fico paralisado e transbordando de medo, mas, de repente, surge
um raio de luz roxa entre nós, e outra figura aparece.
É Sarah, usando a roupa de sua Nox Noctis. Ela estende uma das mãos cobertas
por uma luva, e a Gárgula obedece, recuando devagar de volta para as sombras. Apesar
de ainda poder ver seus olhos ardendo corrosivamente em meio à escuridão, sinto-me
seguro agora.
Sarah se vira para mim, e seus olhos azuis e gélidos se fixam nos meus enquanto um
sorriso gentil começa a se formar em seu rosto. Sua outra mão vai até minha nuca, e ela
me puxa para me dar um beijo profundo e demorado. Sinto uma onda de fogo subindo
de meu estômago e acordo.
Vou precisar trocar de pijama.
TREZE
Quando finalmente acordo no dia seguinte, tudo resolve dar errado. Primeiro, tem a
questão com meus pijamas. A coisa mais óbvia a se fazer seria tentar colocar as provas
incriminadoras na máquina de lavar. No entanto, por mais que mamãe me conheça, eu
também a conheço; quando se trata de lavar roupa, ela é como um patrulha de fronteira.
Nada passa despercebido por ela, e qualquer coisa que lhe cause suspeitas é examinada
cuidadosamente. Em vez disso, resolvo começar meu dia parado na frente da pia do
banheiro com uma esponja e um pouco de sabonete líquido, na esperança de tirar meu
DNA da cena do crime. Quando termino, a prova parece sugerir que fiz xixi na cama.
Estranhamente, fico mais feliz pelo juiz chegar a essa conclusão do que descobrir a
Terrível Verdade.
Depois de colocar o pijama molhado discretamente em cima do aquecedor, pego as
roupas da noite anterior e examino meu ferimento de guerra no espelho. Estou com um
olho roxo, mas não parece tão heroico nem casual como os dos filmes. Meu olho roxo
não está tão roxo, e sim uma mistura de cores, indo do vermelho-sangue até o amarelo
nicotina com um toque de azul. A pele atingida parece encerada, e descubro que tentar
sorrir dói. Em vez de parecer um ousado espadachim, pareço uma fruta podre.
Entro na cozinha e sinto o cheiro de bacon desvanecendo e o de cigarros
aumentando. Tony está sentado à mesa, lendo o jornal concentrado. Quando apareço,
ele ergue o olhar e começa a cantarolar o tema de Rocky e a fazer ruídos estranhos, que
imagino serem de uma guitarra elétrica, enquanto dá pequenos socos com os punhos.
Que parecem meio afeminados.
MI: E você é o campeão mundial dos pesos pesados, né?
Mamãe o repreende com um olhar de desaprovação e começa a preparar um
sanduíche de bacon para mim.
— Achamos melhor não te acordar — começa ela, jogando algumas tiras na
frigideira.
Olho o relógio: são 10h30. Devia estar mais cansado do que pensava.
— Uma xícara de chá?
— Sim, por favor. Desculpe sobre ontem à noite, mãe.
— Bem, agora já passou. Mas vou falar com a diretora sobre aquele garoto, não
queremos nada desse tipo se repetindo.
Sinto um embrulho no estômago. O tom de voz de mamãe censura meu iminente
protesto e me diz que vai fazer o que disse, quer eu goste ou não. Eu não gosto.
Entendo sua preocupação, mas é o equivalente a colocar um alvo em minha cabeça. As
escolas funcionam mais ou menos como prisões — Jason não precisa tocar em mim
para se vingar. Tudo o que ele precisa fazer é dizer as palavras certas às pessoas erradas,
e minhas chances se tornam tão boas quanto as de um filhotinho num tanque de
piranhas.
— Como está seu olho? — A pergunta chega com uma xícara cheia e um sanduíche
de bacon, já com catchup.
— É, dói um pouco. Mas vou ficar bem.
Mamãe reclama sozinha e começa a limpar as panelas. Em seguida, se vira para mim
com uma expressão como se tivesse acabado de lembrar-se de alguma coisa. Não poderia
parecer mais ensaiado nem se tentasse.
— Ah! Sarah te ligou hoje de manhã.
Meu ME vai de zero a sessenta em cerca de três segundos, fazendo meu rosto corar
e apertando minha garganta em volta da comida que acabara de engolir.
As opções disponíveis para responder são perguntas que deviam demonstrar muito
pouco ou nada da emoção que estava sentindo por Sarah ter ligado, nem do medonho
horror de minha mãe ter falado com ela enquanto eu dormia. Podia optar pelo casual
“Ah, é?”, o educado “Como ela estava?”, ou até mesmo o descompromissado “Ahã”.
Em vez disso, meu MI assume o comando e sai de minha boca como um trem expresso
da laringe.
— O que ela disse?
MI: Ops.
Mamãe abre seu sorriso que diz “Posso ler seus pensamentos” e se senta à minha
frente.
— Ela disse — começa, como se estivesse lendo uma história para uma criança de 4
anos de idade — que queria saber se você queria ir à casa dela hoje.
— O quê? Hoje?
— Hoje.
MI: A casa dela! Você vai à casa DELA!
Enquanto tento parecer calmo e desinteressado, o coro grego na outra ponta da
mesa contribui com um comentário de “Touché”. Mamãe e eu o olhamos feio ao
mesmo tempo.
MI: Imbecil.
— O número dela está ao lado do telefone. Falei que você ligaria de volta.
Não precisa me dizer duas vezes, mas não posso parecer óbvio demais; não quero
expor tanto o que sinto. Espero alguns segundos. Mamãe e Tony estão me olhando, e o
silêncio que se segue é pesado de tanta expectativa. Espero mais um pouco. Por trás de
minha aparência calma e controlada, estou sendo tomado pelo pânico. Que diabos vou
dizer a ela? Infelizmente, mamãe não me permite tempo para pensar nisso.
— Bem, ande logo, então! — desabafa. — Não deixe a pobre garota esperando!
Resistindo à crescente vontade de subir e me esconder embaixo da cama até tudo ter
terminado, vou até o telefone. Ali, na letra de mamãe, estão os gloriosos números que
vão me conectar à menina mais linda do mundo.
MI: Então? O que está esperando?
O que estou esperando é que meus sentidos voltem a funcionar: o telefone
subitamente parece um pedaço de tecnologia extraterrestre. Os tons que ele emite
quando disco os Números Santificados parecem desafinados e ridiculamente altos. E
existe uma forte possibilidade de meu coração parar nos próximos trinta segundos.
— Alô?
MI: Oh, Deus, é ela.
Tusso nervosamente, tentando limpar a garganta antes de falar. Por algum motivo,
meu corpo — que parece pertencer a outra pessoa neste momento — resolve que é uma
boa ideia retornar um pouco do sanduíche de bacon com a tosse. O resultado: mais
tosse. Na verdade, é uma daquelas tosses que não param e que fazem seus olhos
lacrimejarem. Entre os acessos, consigo cuspir uma palavra ou duas.
— A — tosse — lô? — Acho que estou morrendo.
MI: De vergonha ou de falta de oxigênio? Qualquer um dos dois serve.
— Alô? Quem está falando? — Sarah parece um pouco preocupada. Depois da
noite passada, é bastante compreensível.
— Sarah! — arranho, antes de tomar controle sobre a tosse. — É o Archie! —
Infelizmente, essas últimas três palavras saem como um chiado rouco pós-acesso de
tosse.
— Archie? Você está bem?
— Estou — consigo dizer, enquanto limpo minha garganta pelo que espero ser a
última vez na vida.
— Parece péssimo.
— Não, não — insisto, com minha voz normal. — Tinha alguma coisa presa na
minha garganta.
MI: Bem, pelo menos a primeira etapa constrangedora já passou...
— Como está? — Jogo a bola de volta para ela, esperando fazer meu acesso pelo
telefone se tornar uma lembrança distante o mais rápido possível.
— Estou legal — responde ela. — Foi uma noite bem divertida, e obrigada pela
miniatura. Está na minha mesinha de cabeceira.
MI: ...!
— Desculpe por Jason ter visto minha página no Facebook, já o bloqueei agora. E
mudei minhas configurações de privacidade. Que cara bizarro!
— Bem, ele obviamente gosta de você...
MI: Tentativa de fazer piada! Abortar! Abortar!
— Ele precisa trabalhar mais suas cantadas, então! — Sarah ri. — Mas eu estava
começando a realmente gostar do Jogo. Adoraria continuar um dia desses.
MI: *Soam os sinos de casamento*
— Sim, claro, é — balbucio. — Seria legal.
— E aí? Quer vir aqui? Podíamos ficar só conversando.
Não consigo pensar numa única coisa no mundo da qual gostaria mais, no entanto
não quero assustá-la com nada que pudesse soar desesperado.
MI: Melhor então manter a boca calada, nesse caso.
— É. Seria legal.
— Ótimo. Moro em Davenport Road. Número 78.
— Ah, sei onde é... Descendo a rua das lojinhas.
— Isso. Quer que eu coloque no Facebook? — Tem uma provocação em seu tom
de voz que dá um frio no meu estômago.
— Talvez da próxima vez — brinco, plantando sementes de que possa vir a existir
uma próxima vez.
— Te vejo em meia hora?
— Tá. — Não quero parecer querer desligar antes dela.
— Legal. Tchau.
MI: Ela obviamente não sente a mesma coisa...
— Tchau. — Fico parado, olhando o fone por um segundo, talvez esperando que
ela voltasse à linha.
MI: Não foi tão ruim assim, foi?
Surpreendentemente, não foi. Conversar com uma garota por quem estou
perdidamente atraído não foi nem um pouco ruim. Foi quase como conversar com um
amigo.
MI: Estranho.
Mamãe aparece no corredor, sem dúvida tendo escutado cada palavra.
MI: Você realmente precisa daquele telefone celular.
— Talvez seja melhor você subir e trocar de roupa. Não pode aparecer com as
mesmas roupas que estava usando ontem.
Concordo debilmente e vou até minha Toca, segurando o sanduíche de bacon.
Enquanto subo as escadas, escuto mamãe dizendo alguma coisa a Tony sobre ser tão
bom me ver feliz.
Feliz no corpo todo — seria uma descrição mais apurada.
Em vez de aceitar a oferta de Tony de me dar uma carona no BMW, resolvo ir a pé até a
casa de Sarah. Não é muito longe, e, depois do desastre de ontem à noite, estou
cansado de ostentar; agora o caso é ser eu mesmo. Tendo dito isso, confesso que
obedeci às ordens de minha mãe quanto ao que vestir. No momento, estou usando
calça jeans, os tênis novos e uma camisa preta. Tudo foi passado por insistência de
mamãe — logo depois de notar meu pijama ensopado no aquecedor. Expliquei que
estava ali por causa de um acidente enquanto escovava os dentes e girara demais a
torneira, mas não sei se minha mãe, o polígrafo humano, engoliu.
Meu Detector de Boçais® está sensível demais; todo mundo que aparece numa
esquina ou sai de sua casa ou aparece no horizonte é marcado como uma ameaça em
potencial. Mas não há sinal de Humphries. O que de certa forma é mais preocupante
que vê-lo, pois dá tempo de sobra para minha imaginação fértil imaginar o que ele
poderia estar planejando fazer agora.
MI: Não acha que teria chances numa revanche?
Não acho. Talvez mamãe conversar com a Srta. Holly o mantenha longe de mim
por um tempo, mas não importa o quanto a escola prometa que vai ficar de olho nele,
ele vai voltar, simplesmente sei que vai. É O Caminho do Guerreiro.
MI: O seu é O Caminho do Meio.
Depois de imaginar alguns desdobramentos — todos envolvendo minha prematura
morte — decido tentar esquecer o assunto. Tenho outras coisas nas quais pensar; já
andei pela Davenport Road muitas vezes, geralmente indo para a casa de Matt. Mas hoje
tudo parece diferente. Até o ar parece diferente.
MI: ELA mora aqui.
Enquanto caminho pela calçada, subitamente me dou conta de que são esses os
lugares que ela vê todo dia — os carros estacionados, as fileiras de árvores, as outras
casas —, este é o ambiente dela. Deve ter sido assim que Frodo se sentiu ao caminhar
por Lothlórien para conhecer Galadriel. Tudo parece mais brilhante e mais
significativo; cada folha, cada gato, cada criança ou bicicleta — tudo está de alguma
maneira inextrincavelmente ligado a Sarah, e tem algum significado em sua vida, não
importa o quão pequeno seja. Absorvo tudo, sentindo as diferenças entre a vida dela e a
minha, tentando descobrir mais um pouco sobre ela. E, como Frodo, por mais que
esteja ciente da sensação de beleza sobrenatural à minha volta, também me sinto
apreensivo por estar indo encontrar minha Rainha, sentindo-me indigno de sua
presença.
MI: Graças a Deus ela não consegue ler mentes como Galadriel conseguia.
O número 78 aparece à minha direita, e demoro um instante para me aproximar,
procurando por novas pistas que me revelem mais sobre a garota que, quer ela saiba ou
não, roubou meu coração. O número 78 é uma casa de tamanho modesto, com um
caminho de cascalho levando até a porta de entrada verde. Algum tipo de trepadeira
encheu a parede de tijolos de flores roxas, dando à casa a aparência de um chalé no
campo.
MI: E roxo foi a cor que escolhi para Nox Noctis. Talvez seja um sinal...
Talvez exista algum tipo de ligação entre nós dois. Mais uma vez penso em quando
nos encontramos do lado de fora do mercado.
Empurro o portão. Um peludo gato preto e branco caminha no jardim em minha
direção. Eu me agacho para acariciá-lo, sentindo-o empurrando sua cabeça contra meus
dedos. Será que esse gato era de Sarah? Parecia apropriado.
MI: Só existe uma maneira de descobrir — prepare-se!
Fico em pé, inspiro fundo e ando até a porta da frente. O gato fica passando pelo
meio de minhas pernas enquanto ando, o que significa que preciso dar passos largos
com as pernas abertas para não tropeçar nele. Mas ele gostou de mim; será que é mais
um sinal?
MI: Lá vai...
Por um segundo, fico parado na frente da porta como um idiota até perceber que a
aldrava de ferro bem na minha frente provavelmente não foi colocada ali só por
decoração.
MI: Segunda tomada.
Com o coração na garganta, bato na porta. Só duas vezes. E tentando fazer as
batidas soarem as mais casuais possíveis.
Um momento se passa e nada acontece. Então, pelo vidro fosco da porta, vejo uma
sombra distorcida se movendo e escuto o barulho de pés sobre tábuas corridas. A
porta se abre e me revela um vislumbre de meu futuro.
Meu pai sempre costumava dizer que sabia que mamãe sempre seria “uma gata” por
causa de como a mãe dela, minha avó, envelhecera.
Sou confrontado com o que Beggsy descreveria como uma coroa gata. Bruto, eu sei,
mas a mãe de Sarah definitivamente se encaixa naquela categoria: os mesmos olhos azuis
cristalinos, o mesmo formato de boca e os mesmos cabelos negros. Uma brecha no
velho ME permite que um leve rubor suba às minhas faces, e toda a umidade se esvai de
minha boca.
— Olá. — Ela sorri. — Deve ser Archie.
— Sou. Sim. Olá. Sou o Archie.
MI: Palavras certas. Ordem errada.
Por algum motivo, estendo a mão para um cumprimento, que a mãe de Sarah aceita.
Em seguida, ela responde com mais um sorriso de derreter, e reajo com mais um olá.
Por medo de ficar empacado numa espécie de repetição vocal, consigo improvisar um
“Como vai?”
— Muito bem, obrigada. Entre, Archie. Vou pedir para Sarah descer.
Entro na casa, e meus sentidos começam a trabalhar a mil, observando fotos nas
paredes, a tinta verde sálvia e os vasos de flores do aparador. Percebo mais um detalhe:
um cheiro, um cheiro suave, que demoro um instante para identificar em meu banco de
dados.
MI: Incenso!
Incenso. Nunca me senti tão agradecido por um perfume na minha vida. Significava
que eu havia acertado em alguma coisa ontem à noite; que chegara um pouco mais perto
de entender o que é que fazia Sarah ser Sarah.
A mãe de Sarah vai até o começo das escadas acarpetadas e grita o nome da filha.
Segue-se um vago ruído de atividade de algum lugar no segundo andar, que a mãe de
Sarah finge não notar.
— Gostaria de uma xícara de chá ou algo gelado? — pergunta.
Meu MI vasculha pelos pouco usados Arquivos de Etiqueta, e escolho a xícara de
chá; parece um pouco como ter algo familiar me protegendo. Enquanto se vira para
entrar na cozinha, a mãe de Sarah olha intensamente para mim.
— Esse machucado está feio — comenta. — Colocou alguma coisa nele?
— Ervilhas — confesso, envergonhado. — Isto é, geladas. Congeladas.
MI: O nome é Bond. James Bond.
— Tentou passar arnica?
Meu banco de dados nunca ouviu falar naquilo, então respondo que não.
— É uma pomada; muito boa para manchas roxas. E é totalmente natural, sem
química. Gostaria de um pouco?
MI: Minhanossaoquevouresponder?
— Hum... é. OK. Obrigado.
A mãe de Sarah me leva até uma cozinha pequena com decoração pitoresca e fala
para eu me sentar. Mais uma vez, como um vampiro, sugo o máximo de detalhes que
consigo de meu entorno; fotos de Sarah quando mais nova, pequenas miniaturas sobre
o peitoril da janela e uma portinha para gatos na porta dos fundos. A mãe de Sarah
alcança um armário atrás dela e pega um pequeno tubo de pomada.
— Isso não vai doer — promete, espremendo um pouco da pomada em seu dedo.
— Vai ajudar o roxo a sumir mais rápido.
Ela se inclina e passa o creme gentilmente em meu rosto, em círculos suaves. Meu
ME sofre uma falha geral no sistema, e meu MI faz um breve voto de silêncio; tudo o
que consigo fazer é olhar em frente, como um androide quebrado.
— Olhe para cima. — Ela passa mais creme debaixo de meu olho. — Agora para
baixo. — Ela faz movimentos circulares e suaves em minha sobrancelha.
MI: Opa.
Opa mesmo. Consigo ver dentro do decote largo da mãe de Sarah.
MI: Alerta de sutiã! Alerta de sutiã!
Rapidamente fecho os olhos.
— Desculpe, doeu?
— Não, não. Estou bem — consigo mentir, ainda de olhos fechados, tentando
forçar a imagem do sutiã da mãe de Sarah para bem longe. — Acho que já estou
sentindo o efeito.
MI: Bom disfarce.
— Mamãe! O que está fazendo?
A voz de Sarah me traz de volta à realidade, e, quando abro os olhos, ela está parada
na porta da cozinha, usando uma camiseta punk e jeans preto. Tento ignorar o
vislumbre de uma alça de sutiã preto em seu ombro esquerdo. Estou cercado por
sutiãs. É um desfile de sutiãs.
— Só estava cuidando do machucado de Archie — explica a mãe de Sarah. — Está
bem feio.
— É, bem, tenho certeza que Archie não quer você mexendo nele — responde
Sarah, laconicamente.
— Não... tudo bem... estou legal — murmuro, como se tivesse acabado de
aprender a falar.
— Pronto, viu? — A mãe de Sarah sorri, triunfante. — Por que não vão subindo,
e eu levo chá em um minuto? Toma com açúcar, Archie?
— Dois cubos, obrigado.
— Vamos nessa, Archie. Vamos lá para cima.
Com um sorriso débil e um agradecimento balbuciado para a mãe de Sarah, começo
a subida até o Quarto de Uma Garota.
Quando chegamos perto do alto das escadas, meio que me preparo para ver Gandalf
pulando para fora do quarto gritando: “Não passará!” Em vez disso, o gato preto e
branco aparece do nada e começa a andar pelo meio de minhas pernas de novo. Quase
tropeço no último degrau.
— Oh, Aslan; deixe-o em paz!
— Aslan? — tento abafar uma risadinha.
— É, das Crônicas de Nárnia. Era um dos meus filmes favoritos quando era
pequena.
Com certo horror me dou conta de que ela acaba de citar um dos poucos filmes
com espadas e feitiçarias do qual não gosto muito.
MI: Pode valer a pena rever...
— É. Não era nada mal. Olá, Aslan. — Faço carinho no gato mais uma vez,
esperando que aquele gesto seja visto com algum tipo de aprovação. O cheiro de incenso
me chama como algum dedo invisível atrás da porta no fim do patamar comprido.
Enquanto andamos na direção dela, sou transportado de volta até a loja do Amor Não
Correspondido, experimentando aquela sensação estranha de estar em outro mundo. É
como se eu estivesse vivenciando as coisas pela primeira vez; tudo parece estranho, não
importa o quão normal seja: o tapete claro do patamar parece absorver nossas pegadas,
as paredes quase parecem estar nos observando, e as portas fechadas sugerem partes da
vida de Sarah que ainda precisarei desvendar. Apenas o odor de incenso é familiar,
apesar de não necessariamente reconfortante.
— Entre. — Sarah abre a porta e entra no quarto. Faço um último carinho no
gato, só para dar sorte, e a sigo.
O quarto de Sarah de alguma maneira não é como eu esperava — apesar de não ter
certeza do que esperava. As paredes são de um amarelo sol e decoradas com algumas
imagens emolduradas. Um cristal em formato de estrela numa corrente, que, presumo,
reflita as cores do arco-íris, está pendurado na frente de uma janela antiquada, debaixo
da qual fica uma pequena penteadeira e uma cadeira. Sua cama é branca e tem uma
deliciosa ausência de bichinhos de pelúcia; a TV e minhas irmãs postiças sempre me
fizeram pensar que todas as garotas têm bichinhos de pelúcia em suas camas. Em uma
das paredes, fica uma estante bastante alta e cheia de todo tipo de livros: grandes,
pequenos, de capa dura, de bolso — é incrível quantos detalhes você consegue absorver
quando seu futuro depende daquilo. E ali, na mesinha de cabeceira, está Nox Noctis.
Tento não anunciar que notei não fazendo nada.
MI: Faça alguma coisa! Diga alguma coisa!
— Quarto legal. — Fico parado com as mãos nos bolsos e lentamente me viro,
como se estivesse numa galeria de arte. — É. Legal. — Balanço a cabeça positivamente
uma ou duas vezes para enfatizar.
— É legal. — Ela sorri. — Mas não tanto quanto o seu.
Um alerta viaja por meu sistema enquanto meu cérebro tenta desesperadamente
entender se há algum significado oculto naquela frase. Ela gosta de meu quarto por
causa do tamanho, da decoração, porque é meu, porque gostaria de estar nele? Milhares
de possíveis significados aparecem em segundos — seria um elogio só sobre o quarto ou
de alguma maneira poderia ser sobre mim também? Felizmente, a mãe de Sarah entra
com uma bandeja de chá e biscoitos, caso contrário, acho que sua filha teria conseguido
escutar as páginas sendo folheadas em minha cabeça enquanto eu mentalmente
vasculhava meu volume do Dicionário das Mulheres. E parece que algumas páginas
cruciais estão faltando.
— Chá? — pergunta a mãe de Sarah, como se eu pudesse ter mudado de ideia nos
minutos que se passaram depois de olhar dentro de seu decote.
— Obrigado, seria ótimo.
MI: Está falando como um encanador.
— Soube que é um pouco artista, Archie. Já viu as pinturas de Sarah?
MI: Então... ela falou de você.
— Ma-mãe... — A voz de Sarah é o bastante, mas sua linda sobrancelha arqueada
faz sua mãe sair do quarto, deixando pedidos de desculpas em seu rastro.
— Pinturas?
— Ah, só gosto de pintar um pouco no meu tempo livre. São meio bobas, na
verdade.
— Vamos dar uma olhada. — Falo com aquele tom de voz recatado e ligeiramente
provocante que odeio quando as pessoas usam.
Sarah indica casualmente as pinturas na parede, mas consigo ver um sorriso
tentando se abrir em seu rosto, quase como se ela tivesse gostado de eu demonstrar
interesse. Resolvo ir mais fundo.
— Esses? Aqui? — É uma pergunta bem tola, mas me ajuda a andar pelo quarto,
com a xícara de chá nas mãos, para olhar as pinturas em questão.
MI: Ô, diabo!
São pinturas de fadas. Mas não aquelas fadas normais de jardim, com saias de
bailarina. Essas fadas são sexy. Quando consigo parar de pensar sobre como a maioria
delas parece vestir pouca ou nenhuma roupa, percebo que ela usou a tinta com uma
facilidade enorme, criando um efeito que sugere que cada fada seja luminosa, na verdade,
tão brilhante que sua luz obscurece qualquer parte mais reveladora do corpo. Estão
todas em diferentes posições, e cada uma é de uma cor diferente também, mas todas
parecem ter a mesma expressão esperta no rosto. É uma galeria de Sininhos eróticas.
Enquanto meu ME dá uma palavrinha zangada com meu Departamento
Ruborizador, percebo que tenho um ligeiro problema nas mãos.
MI: O que eu falo?
Mostrar que gostei muito pode sugerir que seja algum tipo de pervertido disfarçado
de carneirinho. Se falar pouco, vou parecer arrogante.
MI: Diga que são “nebulosas”.
— Nunca vi fadas como essas antes! — Acompanho aquela declaração com uma
risadinha que poderia ser interpretada tanto como surpresa quanto atrevimento.
— Sempre achei as fadas muito femininas nos livros e que seriam um pouco mais
sensuais.
— Bem... essas são. Estão muito boas.
Um pouco boas demais, na verdade. Minhas próprias habilidades com um pincel
subitamente parecem meio primárias.
— Obrigada.
Temendo um silêncio desconfortável, faço um pequeno tour pela estante de livros e
vejo que está recheada de cristais de diferentes cores, formatos e tamanhos. Sendo um
nerd, tenho vago conhecimento sobre tal assunto e pego um dos que reconheço.
— Ametista — anuncio, confiantemente. — Gosto de ametistas.
— Interessante você escolher logo essa.
— É mesmo? Por quê? — Meu ME é pego de surpresa, e levanto os olhos para ela
rápido demais, sentindo como se estivesse sendo examinado por um microscópio.
— A ametista é uma pedra de cura. Pode usá-la para ajudá-lo a dormir ou curar
dores de cabeça, mas seu maior poder é curar feridas emocionais.
— Ah. Entendi.
MI: Estamos agora entrando em território desconhecido. Por favor, mantenha a
calma.
Tomo um gole de chá e, em seguida, sorrio futilmente.
— Bem. Gosto de ametistas.
MI: Tem um limite de vezes que pode repetir isso antes de começar a parecer um
maluco.
— Está sofrendo, Archie.
— Não, estou bem. Sério. Sua mãe passou pomada.
Sarah ri, um som delicado como sinos de prata, que só aumenta minha sensação de
desconforto e dúvida.
— Não estou falando de seu olho. — Ela sorri. — Estou falando de você. Você
está sofrendo por dentro.
MI: Hein?
— Hein?
— Venha se sentar.
Mais um problema e mais uma página arrancada do meu Dicionário de Mulheres
mental. Será que “Venha se sentar” significava “Venha se sentar ao meu lado” ou “Sinta-
se livre para se sentar em qualquer lugar desse quarto, mas não necessariamente ao meu
lado”?
MI: Mantenha-se na órbita padrão.
Escolho a cadeira.
— Lembra quando nos encontramos do lado de fora do mercado?
Apesar de aquela cena estar marcada em minha memória, finjo mais uma vez estar
tentando relembrar.
— Sim, Jason Humphries estava aborrecendo você.
MI: O que não é mais um problema, madame.
— Pude notar que você estava sofrendo naquele momento. Lembra que comentei
isso?
— É. Mais ou menos.
— Eu soube quando toquei sua mão. Senti como se estivesse levando um choque
elétrico.
Sarah me olha profundamente e, em seguida, aparenta ter tomado uma decisão.
— Archie, alguém já leu sua aura?
MI: Ocupem seus postos de combate! Estamos sendo atacados!
CATORZE
Sarah se levanta da cama e fecha as cortinas.
MI: Mudar para manual...
— Deixe seu chá aí e venha aqui sentar no chão.
Eu obedeço, tentando não demonstrar medo. Ouvi dizer que garotas sentem cheiro
de medo.
— Sabe o que é uma aura, Archie?
— Hum... Não é uma luz ou alguma coisa assim que envolve você?
Aquela risada envolvente flutua pelo quarto escuro.
— Mais ou menos. — Sarah se senta de pernas cruzadas à minha frente, olhando-
me fixamente, com olhos que parecem quase translúcidos na penumbra. —Tudo que
vive tem uma aura. São campos de energia e podem refletir como está se sentindo.
— Então... como estou me sentindo?
MI: É bom começar a rezar para que isso não seja verdade...
Sarah ri mais uma vez; pareço ser bom em causar essa reação nela.
— Não é tão fácil assim! Posso ler a sua? Mamãe me disse que tenho um dom para
isso. Ela me ensinou muito.
— O que ela é? Uma bruxa ou coisa assim?
— Não! É uma psíquica! Vamos lá, vamos fazer ou não?
MI: Quem me dera.
A expressão sincera no rosto de Sarah e a vontade em sua voz eram impossíveis de
resistir. Este é um daqueles momentos “É agora ou nunca”.
— É, tá bem.
Quer eu acredite nisso ou não, ainda sinto certo entusiasmo, mesclado a uma
sensação de horror. E se ela conseguir mesmo ler minha aura? Vai saber o quanto gosto
dela. Será que existe uma maneira de esconder? Devo afastar aqueles pensamentos da
minha mente ou focar neles, na esperança de que ela receba o recado de uma vez?
MI: Iria te livrar de precisar convidá-la para sair.
— OK, então. Preciso que você relaxe. Feche os olhos.
Obedeço, mas não consigo esconder um sorriso meio envergonhado.
— Vamos lá, Archie. Pare de brincar. Apenas relaxe.
MI: Onde é que fui me meter...
Respiro fundo e tento relaxar. Enquanto meu corpo parece abraçar a oportunidade,
sinto minhas cortinas mentais se abrindo por precaução, e todos os meus outros
sentidos se aguçam. Sinto o cheiro do sabonete ou xampu que ela usa; praticamente
consigo sentir sua presença, e sua voz parece derreter-se em mim.
— Inspire, Archie. E expire. Inspire. Expire. Agora, concentre sua mente em seus
músculos e tente relaxá-los. Vamos começar com os dedos de seu pé; sinta-os
descontraindo e ficando relaxados.
Sarah faz um tour pelo meu corpo, de certo modo, orientando-me a me concentrar
em cada região e liberar a tensão. Está tudo bem, até ela dizer a palavra “nádegas”.
Naquele exato momento, me convenço de que se relaxar aquela região em particular,
posso soltar um pum. Para disfarçar o fato de que minhas nádegas estão agora duras
como pedra de tanta tensão, expiro alto mais uma vez — para manter o espírito da
coisa. Finalmente, é apenas quando chegamos até ombros, pescoço e cabeça que permito
que meu traseiro de ferro afunde um pouco mais no tapete.
— Muito bem, Archie. Está indo muito bem. Agora quero que você balance
lentamente de um lado para o outro.
MI: Sabe como está parecendo ridículo, não sabe?
Enquanto balanço, escuto Sarah inspirando e expirando profundamente. É
incrivelmente sexy, mas o fato de eu estar oscilando como um cachorro sonolento
parece anular o elemento erótico em mim.
Balanço, e ela respira pelo que parece ser uma eternidade, até finalmente me dizer
para abrir os olhos. Quando o faço, dou de cara com ela encarando o espaço em volta de
minha cabeça, cheia de preocupação no rosto. Ergo minhas sobrancelhas numa pergunta
silenciosa.
— Bem — começa ela, parecendo um pouco mais animada —, você está fisicamente
muito saudável, apesar da Cava ter diminuído suas habilidades psíquicas. Devia tomar
cuidado para não beber muito; está meio desalinhado.
Sentindo-me meio desalinhado, concordo. Lentamente.
MI: Acho que está levando uma bronca pela briga de ontem.
— Mas é evidente que você tem algumas habilidades psíquicas. O contorno amarelo
me revelou que é um perfeccionista e muito crítico consigo mesmo. Devia se dar uma
folga. Tem muito vermelho, que diz que tem muita força interior e que é bastante
passional.
MI: Touché!
— Tem compaixão e é confiável. Mas vi muito azul-escuro, o que significa que se
sente incompreendido. Não se comunica facilmente com o resto do mundo.
MI: OK, isso está ficando estranho.
— Mas também tem muito preto, Archie. Quase todas as suas cores estão
rodeadas por uma... — ela procura a palavra certa — auréola preta.
Por um instante, meu ego entrega uma série de medalhas a si mesmo; gostei de meu
recém-descoberto status de Anjo Negro. Parece legal. Mas a expressão no rosto de
Sarah me diz que aquilo não é bom, então resolvo interromper meu silêncio.
— O que isso significa?
Sarah olha minha auréola antes de responder. Quando responde, olha fixamente nos
meus olhos.
— Significa que está sofrendo, Archie. Que desenvolveu um escudo protetor contra
o mundo, como uma máscara, ou uma armadura. Significa que não mostra seus
sentimentos verdadeiros às pessoas porque não quer mais ser magoado. Mas está
pagando um preço psíquico muito alto por esse escudo.
Isso está ficando muito íntimo pro meu gosto. Por um lado, estou realmente
gostando de estar tão perto de Sarah e de ter algum contato com seu mundo, mas
alguma coisa nas palavras dela está despertando outra coisa dentro de mim sobre a qual
não gostaria de pensar.
MI: Porque ela tem razão. Você está sofrendo.
Meu ME começa a se inquietar, e então coço atrás da orelha, apesar de não ter
sentido coceira alguma. É como se ela tivesse apertado o botão escrito “Não aperte”. O
botão que explode tudo. Posso sentir uma pressão estranha enchendo meu cérebro e
meu peito, e meu ME se inquieta ainda mais; encosto o corpo para trás, sentado sobre
minhas mãos e respirando com dificuldade.
MI: Está perdendo o controle...!
Aperto meus dentes e forço mais uma vez o ar para fora de minhas narinas, como
uma imitação tosca de um dragão assombrado.
— O que foi, Archie? Por que está sofrendo?
Olho o chão fixamente, tentando fazer meu ME voltar a funcionar direito, mas não
adianta; cerro os punhos sem parar.
— É... er... não é nada. — Mas minha voz está pesada de vontade de confessar. A
mão de Sarah em meu tornozelo não me ajuda em nada a sair do quase surto.
— Está tudo bem, Archie. De verdade. — Sua voz é tão suave que é de partir o
coração. — É o seu padrasto?
MI: Sequência de autodestruição iniciada: Cinco — Quatro — Três — Dois...
Num ato final de traição, meu ME para de funcionar completamente, fazendo-me
tremer e começar a chorar. Por instinto, abaixo a cabeça e envolvo minhas pernas com
os braços, apoiando a cabeça entre os joelhos, em silêncio, soluços altos escapando
entre a respiração já dificultada.
E então sai tudo.
Conto tudo a ela: sobre Tony, o divórcio, a mudança de cidade de meu pai, o
quanto amo minha mãe, como sou nerd, como sou fraco, como não converso de verdade
com ninguém, meu MI, a Gárgula, o Sonho; sai tudo numa grande, bagunçada,
melequenta e chorosa confusão. E em seguida me calo, exausto, atormentado apenas
pela tremedeira e pelos suspiros lacrimosos. Nem percebo os braços de Sarah à minha
volta até ter conseguido recuperar um pouco de controle sobre os espasmos em meus
pulmões.
— Está tudo bem — diz ela, suavemente. — Posso ajudar você.
— Pode? — gemo desesperadamente do meio de minhas pernas.
— Sim. Mas precisa confiar em mim.
Sarah me ajuda a levantar e me indica o banheiro, onde me deixa sozinho para jogar
água no rosto. Olho o espelho oval acima da pia branca e reluzente e vejo meus olhos
diferentes contornados de vermelho, e um nariz que não pareceria estranho se estivesse
na cabeça de certa famosa rena. Não acredito que fiz isso. Chorei como uma criancinha
na frente da garota que amo. Qualquer chance que tinha com ela agora evaporou como
uma bola de neve no inferno.
Mas estou cansado. Cansado demais para me punir por desmoronar como
desmoronei. Cansado demais para tentar levantar mais uma vez meus escudos. Cansado
demais para tentar religar meu MI na tomada.
Sinto-me vazio e exposto, mas cansado demais para me importar.
Depois de jogar água no rosto uma última vez, volto ao quarto de Sarah com um
meio-sorriso de desculpas no rosto. As cortinas estão abertas, e ela está sentada na
beirada da cama, com um sorriso brilhante.
— Tudo bem?
— Sim — balbucio. — Desculpe-me por tudo isso.
— Pare de se desculpar! — Não consigo identificar se ela está com pena ou com
raiva. Sinto-me como se estivesse de volta ao primário. — Foi forte por tempo demais,
Archie, é hora de parar.
— OK. Então... o que fazemos?
— Conversamos. De verdade.
Como pareço não ter mais nada a dizer, Sarah assume o comando.
— Já parou para pensar por que foi atraído por aquela Gárgula em primeiro lugar?
— Eu apenas gostei dela — respondo, debilmente.
— Assim como gostou da ametista. É um pouco mais profundo que isso, Archie.
Quando li sua aura, pude identificar que você tem habilidades psíquicas, mas estas são
reprimidas por seu escudo, sua armadura. No entanto, elas ainda estão tentando
encontrar uma forma de escapar, de se comunicar com você. Seu sonho é seu
subconsciente procurando contato, mas você fica se afastando; você não quer escutar o
que ele tem a dizer.
— E o que ele quer dizer?
— Que você é muito mais poderoso do que pensa. Pode mudar as coisas, Archie,
pode fazer sua vida ser do jeito que gostaria que fosse.
— Posso? Como?
— A Gárgula de seu sonho representa seu subconsciente. É seu Eu Psíquico
tentando falar com você. Precisa abraçá-lo. Seu Monólogo Interno é parte de seu
escudo; precisa desligá-lo, porque ele é feito de medo e dor. Precisa começar a escutar
seu Eu Psíquico.
Apesar da neblina que parece ter coberto meus sentidos, isso faz algum sentido.
Meu MI sempre foi a voz da dúvida, aquela coisa que me impedia de dar alguns passos
necessários. Talvez Sarah esteja certa, talvez exista mais por trás de mim do que deixo
transparecer.
— O que devo fazer?
— Precisa fazer alguns exercícios para ajudá-lo a desenvolver sua consciência
psíquica.
Passamos a meia hora seguinte olhando alguns livros “alternativos” que Sarah tem
na estante. Neste momento, eu obedeceria se ela me mandasse ferver minha própria
cabeça. Ela realmente parece me entender e me passa uma série de exercícios que,
garante, me ajudarão a abraçar meu Eu Psíquico, alguma coisa a ver com visualizações
positivas e conversar comigo mesmo no espelho. Meu MI permanece exilado; confio
nela. Não tenho dúvidas. Posso mudar.
— Leve este aqui, vai ajudar. — Ela coloca um livro de bolso fino e cheio de orelhas
em minhas mãos.
— Obrigado. — Sorrio. — Acho que preciso de toda a ajuda possível. — Estou
sentado ao lado dela na cama, e entramos num daqueles silêncios em que não sei se devia
estar fazendo alguma coisa ou não. Acho que tenho muito a aprender. Talvez seja a hora
de uma despedida graciosa; não quero me fazer mais de bobo do que já fiz.
— É melhor eu ir nessa — começo, olhando meu relógio. — Tenho umas coisas
pra fazer. — É uma justificativa genérica que sugere que não vou ficar só sentado
pensando nela e em mais nada pelo resto do dia.
— Vou te levar lá embaixo.
Enquanto descemos as escadas, verifico meu reflexo em todas as superfícies que o
exibam; acho que estou bem. Na verdade, pareço bem melhor que a moça loura que a
mãe de Sarah está ajudando a sair da sala do outro lado da cozinha. A julgar por seus
olhos inchados e rosto molhado, acho que faz sentido presumir que ela também acaba
de ter sua aura lida. O que é que encontrei aqui? Algum tipo de convenção urbana das
bruxas? Sarah abre a porta, e saio do santuário de sua casa.
— OK... Bem... Obrigado. E desculpe sobre mais cedo...
— Pare! — Sarah me dá bronca, antes de se juntar a mim na calçada e fixar os olhos
nos meus, com determinação. — Vai ficar tudo bem, Archie.
Em seguida, ela me beija na bochecha.
Minha cabeça detona com essa alegria pura e transparente como cristal. Sou
inundado de energia, de um poder borbulhante e aceso, e tenho vontade de gargalhar
bem alto. Em vez disso, me agarro ao que me restou de autocontrole e ando até o
portão.
— Te vejo segunda — falo, sorrindo, e sigo para casa, sentindo ter 3 metros de
altura e ser à prova de balas.
EP
QUINZE
Nem mesmo correr os últimos cinco minutos até minha casa me ajuda a dispersar a
sensação de super-homem que invade meu sistema. Mas não quero exibi-la como um
troféu; por enquanto este é o meu segredo. Não que isso possa se tornar de grande
interesse para o FBI ou coisa parecida. É só que parece que falar sobre o assunto
poderia de alguma maneira diminuir aquele sentimento. Um calor bom se aloja no
estômago, e quero deixar as coisas assim.
Mas também estou determinado a não sofrer mais com as piadas insensíveis de
Tony. Ainda posso ouvir meu MI tagarelando ao fundo de minha cabeça, mas eu o
estou afastando, ignorando sua ladainha envergonhada. Vou achar uma nova voz e
começar a usá-la agora — enquanto a tinta está fresca.
Mamãe está na cozinha fazendo uma xícara do previsível.
— Chá? — pergunta.
— Sim, por favor. Onde está Tony?
— Ele deu uma saída. Já volta.
Há uma calmaria enquanto mamãe aperta o saquinho de chá contra o interior da
caneca, aproveitando o conteúdo ao máximo. Dentro dela, são acrescentados o leite e o
açúcar, e, em seguida, sou presenteado com meu chá e um sorriso radiante.
— Então. Como foi?
MI: Muitas lágrimas e um beijo.
A animação de mamãe é quase palpável, e normalmente me sentiria pressionado a
responder qualquer coisa na hora. Mas desta vez vou demorar um pouco para pensar no
que quero que aconteça. Não preciso contar nada a ninguém; posso fazer com que minha
vida seja como sempre quis.
— É. Foi legal. É uma garota legal.
— Que bom. — O significado naquela única frase revela que ela quer mais detalhes.
Ela tenta uma tática diferente. — E aí? Está gostando dela?
Permito que se instale o silêncio que normalmente me deixaria tão desconfortável.
Em vez de procurar uma resposta que agrade a todos, procuro pela resposta que agrada
a mim.
— É. Ela é legal.
Até mesmo a maneira com que mamãe bebe seu chá está tomada de frustração; ela
franze os lábios e aperta os olhos. Mas mantenho minha postura zen. Ela precisa me
deixar crescer.
— E ela gosta de você?
Minha mente relembra em câmera lenta o beijo, e torço meus lábios, como se
pensando profundamente.
— Veremos.
Mamãe finge me olhar feio; não contei tudo a ela — mas não vou me sentir culpado
por isso. Pela primeira vez na vida, estou começando a fazer as coisas do meu jeito.
— Vou subir — anuncio. — Tenho umas coisas para fazer. A que horas vamos
almoçar?
— Veremos. — E responde torto, mas nós dois rimos intencionalmente; há um
jogo em andamento, e estamos seguindo as regras. — Cinco minutos.
MI: E ela acaba de perder.
No corredor, esbarro em Tony enquanto ele entra pela porta da frente.
— Ahá! — declara, tirando um cigarro da boca. — O andarilho retorna ao lar!
Sem MI para xingar por mim, confio em meus instintos. E é uma experiência
interessante.
— Eu moro aqui, Tony. Caso não tenha percebido. — Minha declaração é perfeita;
não é agressiva, só uma contestação clara acerca dos fatos, entregue com um sorriso
enigmático. Quase consigo ouvir a certeza de Tony ruir por baixo de sua risadinha
nervosa.
— É. Bem... Como está Sarah?
— Ela está ótima.
— Ótimo. Quer chamá-la para jantar uma noite dessas?
— Talvez. Veremos.
Eu o deixo para trás, envolto em fumaça e claramente confuso, e subo lentamente as
escadas até minha Toca.
Atirando-me em minha própria cama, tiro o livro de Sarah do bolso. Ele se chama
Somos todos nossas almas e traz as imagens de uma pluma e um ovo na capa.
MI: Poupe-me!
Faço um esforço consciente para ignorar as reclamações cínicas de minha psique
subdesenvolvida e folheio as páginas: os capítulos têm títulos como “Permita-se ser
você mesmo”, “A ressonância elevada de intenção” e “Acordando para a Graça”.
MI: Depende de se vale a pena acordar por essa tal Graça.
— Cala a boca!
Maravilha. Estou falando sozinho agora. Em voz alta. Obviamente, preciso mais
desse livro do que pensava.
Mas mamãe tem ideias diferentes, e escuto sua Convocação para Nutrição Corporal.
Muito de vez em quando, mamãe resolve ser criativa na cozinha e usa algum livro de
receitas esquecido. Hoje é um desses dias. Por mais que a comida seja sempre ótima —
e o curry de hoje não é exceção —, significa que Tony e eu somos, então, sujeitados a
uma longa descrição de quais ingredientes foram usados e como combinam entre si.
Tudo temperado pela intermitente pergunta: “Então, o que acha?” A essa altura, nós
dois sabemos que um simples “é, está ótimo” não é suficiente e precisamos demonstrar
nossa aprovação de um modo mais elaborado. Mas hoje isso me serve bem; não preciso
interagir com Tony nem discutir o que está acontecendo no Mundo de Archie®. Entre
garfadas, ofereço minhas teorias sobre o sabor das ervas finas, faço vários “hummmm” e,
em seguida, me levanto da mesa para dar continuidade à minha jornada espiritual.
Volto ao livro e viro as páginas rapidamente, até ver o título “Sonhos e seus
significados”. Há uma lista de assuntos em ordem alfabética, e na letra “G” encontro a
palavra “Gárgula”. Uma leitura rápida revela que, aparentemente, estou sofrendo de
“medos escondidos e embaraçosos sobre segredos que você nunca compartilhou com
ninguém”. A página 33 no catálogo da Next vem à minha mente. Passando os olhos pela
lista de sonhos, a palavra “Barba” chama minha atenção. Parece que sonhar que sua
barba está crescendo significa “consciência espiritual crescente”.
Tomado por uma onda súbita de inspiração — ou talvez por uma mensagem do que
Sarah chama de meu Eu Psíquico —, corro até o espelho do banheiro: no meu queixo
estão três pelos ralos enquanto acima de minha boca exibe-se uma coisa que poderia ser
confundida com uma sombra.
E se eu deixar a barba crescer?
MI: Por favor, permaneçam todos sentados. Não entrem em pânico. Vamos esclarecer
tudo assim que soubermos o que está acontecendo.
Meu MI está tentando ganhar território, mas já estou identificando um padrão; ele
dispara em momentos de dúvida e incerteza, se alimentando de minha insegurança como
um vampiro.
— Cale a BOCA!
Usando meu photoshop mental, substituo meus tufos adolescentes por uma barba
espessa e loura — provavelmente um pouco desgrenhada para valorizar meu charme
libertino. Vai me fazer parecer mais velho. Vai me fazer parecer mais diabólico, me dar
um certo ar de perigo. Vou parecer mais inteligente.
MI: Vai parecer um gnomo saindo da bunda de um urso.
E vai me tornar mais atraente para Sarah. Se ela gosta de toda essa história
espiritual, então o que melhor poderia revelar que acreditei no assunto do que uma
lustrosa mobília facial? Um toque de guerreiro, um toque de mago e um ótimo exemplo
de meu desenvolvimento espiritual.
Se vou deixar crescer algum tipo de pelo facial apropriadamente, vou precisar me
barbear.
MI: Vai precisar é de um psiquiatra.
Mas não tenho lâminas nem dinheiro para ir mais fundo na minha busca espiritual.
Desço as escadas o mais casualmente possível.
Entro na cozinha, meu Detector de Imbecis® a toda, vasculhando o espaço em busca
de qualquer indicação de atividade Imbecil. Na há sinais de vida, Tony não está nem
apagado em seu escritório nem desapareceu dentro do seu lugar favorito no mundo: o
banheiro. A quantidade de horas que aquele homem consegue passar lá dentro é
inacreditável. Sem perigo de meus planos serem aniquilados por sua capacidade nata de
criar alarde, mascaro minhas intenções com um ar de inocência e apareço atrás de
mamãe, dando um abraço nela.
— Oh, olá, querido! Para que fez isso?
MI: E começa a dança.
— Nada. Só queria te dar um abraço. A que horas vai servir o chá hoje? — É uma
tentativa tosca de disfarçar, mas é tudo que consigo pensar na hora.
— Não tão cedo. — Ela inclina ligeiramente a cabeça; me conhece bem demais. —
Por quê?
— Só queria saber. Dá tempo de eu correr até as lojinhas?
— Acho que sim. — Mais uma vez sua sonda acende. — Do que está precisando?
A essa altura eu poderia mentir e inventar alguma coisa sobre canetas ou material
relacionado à escola, mas ela perceberia; mamãe sabe que a única loja pela qual me
interesso é o Casebre. Uma opção melhor seria arriscar dizer a verdade e esperar que ela
não saiba muito sobre os efeitos da testosterona sobre pelos faciais masculinos.
— Meu rosto está coçando. — Provo o fato a ela coçando meu queixo e meu
pescoço. — Começou há alguns dias. Acho que preciso me barbear.
Quase consigo enxergar o cérebro de minha mãe comparando essa informação a tudo
que ela sabe sobre jovens rapazes. Ela me olha fixamente, tentando detectar alguma
mentira, mas claramente ficou confusa pelos sintomas que relatei.
— Vamos dar uma olhada. — Meu pescoço e meu queixo passam pelo tipo de
exame intensivo que apenas uma mãe saberia dar. — Bem... Está mesmo um pouco
vermelho...
MI: Ela está balançando!
— Hummm...
MI: ...Balançando...
— Pode ter razão. Precisa de algum dinheiro?
MI: E ela caiu! Bingo!
— Obrigado, mãe. — Coço mais uma vez o queixo, só por precaução. — Quanto
custam lâminas de barbear?
— Leve dez. Vai precisar de espuma também.
Como ela sabia disso? A questão é mais a seguinte: por que eu não sabia disso?
Vergonhosamente, pego o dinheiro de sua bolsa e corro até a loja, o vento soprando
por meus bigodes infantis pela última vez.
Depois de correr impulsionado pelo amor, lá estou eu olhando de queixo caído as
fileiras de produtos de higiene masculina. Nunca imaginara que comprar giletes poderia
ser tão difícil. Como é que vou saber se quero descartáveis, com três lâminas, quatro,
lâminas com aloe vera, de cabeça giratória ou fixa? E tem também as espumas:
hidratante, protetora, redutora de irritações; eu só quero raspar minha penugem para
dar lugar a alguma coisa mais masculina! No fim, escolho a espuma que tem o logotipo
mais legal e a lâmina com mais partes afiadas.
MI: O que poderia dar errado?
Dez minutos depois, estou de volta ao espelho do banheiro me sentindo meio nervoso;
percebi que não faço a mínima ideia do que fazer. Tirar a gilete da embalagem já foi
difícil — acho que podia chamar papai e pedir alguns conselhos de hombre para hombre,
mas simplesmente não estou pronto para falar com ele agora. Meus pelos do queixo
riem de mim do espelho, me desafiando a cortá-los. Queria que houvesse alguém com
quem eu pudesse falar. Com uma batida preocupada na porta, minha mãe aparece com
um timing de gênio.
— Como está se saindo?
— Não estou, no momento. Eu não... sei...
— Espere aí, vou chamar Tony.
O “NÃO” nem alcança o fundo de minha garganta, e mamãe já berrou o nome dele
do alto das escadas. Há um momento de silêncio, seguido pela descarga abafada do
banheiro do primeiro andar, e Tony sobe pesadamente as escadas, aparecendo na porta.
— O que foi?
— Pode dar uma ajudinha a Archie? — Mamãe pode ter achado que não percebi a
cotoveladinha que ela dá nas costelas dele, mas notei.
— O quê? Ah, sim... sim... certo... OK.
Quando Tony entra corajosamente, mamãe diplomaticamente sai; ela acabou de
aproveitar a oportunidade para “criarmos laços”, e, considerando a tensão no ar, é uma
pela qual nem eu nem Tony estamos agradecidos. Na ausência de qualquer tipo de
iluminação espiritual, meu ME assume o comando e escancara uma ligeira impressão de
sorriso no meu rosto. Meu MI alegremente comenta do banco de trás.
MI: Imbecil.
E Tony faz jus às minhas expectativas.
— Uhu! Fazendo a barba, hein? O Grande Dia! Certo, vamos nessa!
— Obrigado.
Ele começa então uma história sobre como a gilete vai ser minha melhor amiga,
desde que eu a trate com respeito. Como uma mulher, aparentemente. Uma bela
mulher. Como minha mãe. Fico abismado por meus dentes não quebrarem, tamanha é a
pressão com que os estou apertando. Finalmente, chegamos ao momento em que parece
que vamos realmente fazer alguma coisa.
— OK, vai precisar encher a bacia com água quente...
Eu obedeço e, então, sou submetido a mais um monólogo tirado da Wikipédia
sobre abrir meus poros e deixar o óleo sair. Depois de ser instruído a jogar um pouco
de água no rosto, é hora de colocar a espuma nas palmas das mãos e aplicá-la no rosto.
Pareço o Papai Noel. De olho roxo.
A reação de Tony é cair na gargalhada várias vezes, culminando com um acesso de
tosse forte e demorado. Apesar dos protestos de seus pulmões, Tony continua a rir até
ficar com lágrimas nos olhos e precisar se apoiar na pia para se equilibrar. Tudo o que
posso fazer é olhar meu reflexo de volta no espelho, o que parece fazê-lo rir ainda mais.
— Desculpe, Arch — ofega ele, batendo com uma das mãos no meu ombro —, mas
acho que você passou um pouco de espuma demais. — Mais risadas.
MI: Imbecil.
Depois que ele se acalma, chegamos à lâmina. Movimentos de cima para baixo, e não
tenha medo de aplicar um pouco de pressão na pele. Com mais do que apenas
apreensão, encosto a gilete no meu rosto. Ela praticamente desaparece junto com a
maior parte da minha mão, em meio à grossa camada de espuma que esconde metade da
minha cabeça. Em cinco minutos, parece que meu rosto teve um terrível acidente com
um rocambole de creme com frutas vermelhas; sou uma massa de sangue e espuma.
Nem preciso dizer que Tony está rindo o mais histericamente que um homem com sua
limitada capacidade pulmonar conseguiria. Mamãe, que obviamente estava sondando do
lado de fora do banheiro, entra.
— Oh, Tony! — Ela briga. — Saia! Ande! Vá colocar a chaleira para ferver! —
Quando ele sai, rindo em silêncio, coloco uma toalha no rosto, mas os cortes em minha
pele não param de sangrar. O que vou fazer? Sarah nunca mais vai querer olhar para
mim!
MI: Conheçam meu namorado: Freddy Krueger...
— Cala a BOCA!
— O quê? — Mamãe parece assustada de repente.
— Desculpa, não era com você.
— Certo... Vamos dar uma olhada nesses cortes.
Descobrimos que eram apenas quatro ou cinco, mas eles escorriam como rios.
Mamãe pega o rolo de papel higiênico e começa a rasgá-lo como um hamster
enlouquecido, molhando um pedacinho e colando-o em cima de um corte. Em segundos
estou coberto de pedaços de papel higiênico manchados de sangue.
— Deixe que sequem antes de tirar. Vou fazer uma xícara de chá para você.
— Obrigado, mãe.
MI: Você é praticamente um anúncio sobre os perigos das lâminas de barbear. “Olá!
Meu nome é Archie! Quando estou tentando impressionar uma garota, tento lacerar meu
rosto com giletes feitas de arame farpado!”
Finalmente sozinho, inspeciono o estrago no espelho. Meu estado de euforia enfim é
derrubado. Cansado demais para fazer qualquer outra coisa, volto para minha Toca e
me atiro na cama, só para bater com a cabeça em alguma coisa. É o livro de Sarah. Podia
ser apenas coincidência, mas ele estava aberto num capítulo chamado “Como silenciar
seu crítico interno”.
Hora de começar a ler...
Esse livro é estranho. Parece que foi escrito por alguém com sotaque americano
carregado. Meu MI está gritando zombarias das arquibancadas, mas preciso me
concentrar. De acordo com o autor, meu MI se “metamorfoseou de protetor em
destruidor, levando-me à autopunição”. A não ser o conselho de que preciso muito
amar a mim mesmo (ele evidentemente desconhece os hábitos noturnos dos
adolescentes do século XXI), o Dr. E. P. Hughes me revela “dez maneiras de dizer ao
universo que você é digno de amor e resultados positivos”, no capítulo chamado
“Atraindo abundância”.
MI: Está mais para “Atraindo uma surra”...
Meu MI é a “manifestação de todas as minhas dúvidas e medos”. Lendo nas
entrelinhas, Dr. Hughes está me dizendo que o motivo pelo qual sou nerd é porque
tenho medo demais para não ser um. Meio que faz sentido. Eu continuo. Ainda não sei
o que são “Afirmações” nem como “Tornar minha mente mais bela”, e acho que vou
“Aprender o autoperdão” em outro dia; mas o quinto passo chama minha atenção.
“Falando de volta: quando seu crítico interior permanece incontestado, você não tem
alternativa senão escutar. Foque em desenvolver a voz do seu Verdadeiro Eu, do seu Eu
Psíquico. Essa é a voz de seu potencial inexplorado e só está sendo isolada do Universo pelo
seu próprio medo de o quão poderoso você pode ser”.
Caramba. Deve ter sido assim que Luke Skywalker se sentiu quando descobriu que
podia ser um Jedi. Eu poderia ser um Jedi, preciso parar de ter medo disso. Uma
imagem minha ficando de cabeça para baixo, levitando rochas com o poder de minha
mente espiritualmente alinhada está quase ao meu alcance.
MI: Você é um nerd. E isso não se trata de iluminação espiritual. Trata-se de Sarah.
Lembra-se dela? A garota que te beijou...
Certo. Já sofri o bastante. É hora de assumir o comando.
Seguindo as instruções do livro, me sento no chão, tento esvaziar a mente e alcançar
meu Eu Psíquico. Visualizo-me como um místico barbudo, espalhando sabedoria e
mantendo Jason Humphries suspenso no ar com minhas habilidades telepáticas. Talvez
até mesmo fazendo aquela coisa de enforcar como Darth Vader.
MI: A força é forte neste aqui...
Concentro-me mais, imaginando o efeito que minha impressionante transformação
terá naqueles ao meu redor: Tony se encolhe diante de meu imenso intelecto, papai
chora em cima da sua canja d galinha em York, se arrependendo de sua decisão, e Sarah
fica me observando, impressionada. Sou o olho do furacão, e ela anda até mim, indefesa
diante de minha presença. Ela segura minha mão lentamente e diz...
— Como está seu rosto, querido? Está bem?
Abro um de meus olhos ao ouvir a voz de mamãe e a vejo enfiar a cabeça no quarto.
— Estou bem. Só estou... pensando.
— OK. O chá estará pronto em um minuto.
Maldição! É difícil alcançar realização espiritual às vezes. Assim que ela sai, volto às
minhas visualizações e tento me concentrar em encontrar a voz que representa o colosso
psíquico que andei escondendo. Em vez disso, tudo que encontro são as vozes de
minhas dúvidas, meus medos e minhas inseguranças em geral. É meio como tentar jogar
fora algo que nos reconforta.
MI: Ainda estou aqui, nerdzinho.
Concentre-se. Esqueça a negatividade.
MI: Continuo! *Assovia uma melodia qualquer*
Concentre-se! Foque em tudo que é positivo em você!
MI: Somos apenas um, Archie. Pare de tentar ser uma coisa que você não é.
E então acontece. Escuto a voz que estava escondida no fundo de meu cérebro a vida
toda. É a voz da autoconfiança e da razão livre de dúvidas. Tudo que precisei fazer foi
deixá-la vir, em vez de escondê-la atrás de um monte de medo e inseguranças. A
tagarelice alegre de meu MI subitamente é interrompida por uma voz autoritária e
assertiva. Com direito a sotaque americano.
EP: Silêncio! Você é a voz da dúvida e do medo! Vá embora!
MI: O quê? Quem disse isso?
EP: Sou a verdadeira voz de Archie, a voz do que ele pode realmente ser: poderoso,
valioso e capaz de atrair abundância!
MI: OK, OK, Obi-wan... que seja.
Estou tão acostumado a falar comigo mesmo nessa voz, que é difícil abandoná-la. O
Dr. Hughes tem razão: tenho medo de meu potencial. Vivi durante anos numa dieta de
autocrítica. Hora de mudar as calorias psíquicas. Respiro fundo e me forço a banir a voz
da autodúvida e dar à voz do valor próprio algum espaço para respirar.
EP: Não é bem-vinda aqui!
MI: E o que vai fazer a respeito? Meditar até me matar?
EP: Sua zombaria trai seu medo! E será sua ruína!
MI: Você e mais qual exército?
EP: Não preciso de um exército! Posso acessar o Poder do... DO UNIVERSO!
E então é como se meu EP se inflasse dentro de minha cabeça, ocupando cada canto
e dispersando as sombras de insegurança, enchendo-as da luz forte, quase incandescente,
da certeza absoluta. É incrível o que uma boa conversa consigo mesmo é capaz de fazer.
MI: Eu voltareeeei!
E com isso meu MI some. Realmente sinto-me diferente; finalmente, acredito em
mim mesmo. Sinto-me pronto, preparado para dar os passos afirmativos que vão me
levar para os braços de Sarah. Quase consigo sentir o fantasma de seus lábios nos
meus...
EP: Pare! Não há espaço para tanta luxúria no caminho para a iluminação
espiritual! Deste momento em diante, Archie, vai aprender a enxergar o mundo com
outros olhos! Está trocando sua velha pele psíquica!
E pedaços de papel higiênico. Um pedaço cai na hora em que mamãe me chama para
o chá. Com uma rápida parada no banheiro, tiro o restante de todo o meu rosto.
Pareço uma pizza, com uma grande azeitona preta em cima. Ótimo.
O hábito me arrasta da mesa até minha escrivaninha. Fico sentado um tempo ali, apenas
olhando as tintas e pincéis, ciente de um ligeiro peso nos meus olhos. É preciso algum
esforço para escolher uma peça para pintar, até eu finalmente me decidir por um que
tenho guardado para um dia qualquer. Esse ogro ia ser uma festa; é maior que os
outros, com mais espaço para detalhes e adornos. Eu o seguro e examino como um
todo, tentando absorver todas as suas características e procurando lugares onde eu
possa exibir sérias habilidades de pintura.
Em seguida, o coloco de volta na mesa.
Não consigo entender, mas o entusiasmo acabou. A mágica acabou. O que há de
errado comigo?
EP: Está vendo essas miniaturas como elas realmente são: totens físicos de seu medo de
viver de verdade.
Será que era verdade? Ao me trancar sozinho num quarto para pintar homenzinhos
de metal com tinta, estive apenas evitando a vida? E eu achando que era arte.
EP: A arte é encontrada no coração.
Me recosto na cadeira e largo as ferramentas. Um longo espaço de tempo se passa
enquanto apenas encaro minha escrivaninha, sem nem mesmo um pensamento para me
fazer companhia. O barulho do carro de Tony descendo a rua me traz de volta ao
presente. Preciso fazer alguma coisa!
EP: Precisa continuar seus estudos.
O livro está me esperando em cima da cama, e leio a lista de coisas que posso fazer
para libertar meu potencial. Talvez esteja me precipitando um pouco, mas o Nono
passo parece algo que eu possa fazer sem muito trabalho: “Projete sua energia positiva
por meio das roupas que usa”.
Até agora, tudo bem; o Dr. Hughes me dá uma descrição dos efeitos que diferentes
cores de roupas podem ter “no usuário e naqueles à sua volta”. Inconscientemente,
passo as pontas de meus dedos em cima dos inchaços e machucados que se formaram
em meu rosto desde minha experiência quase mortal nas mãos de uma gilete. Pode ser
apenas uma “irritação” para Tony, mas esse nível de deformação poderia realmente
estragar minhas chances com Sarah. Talvez mudar a maneira como me visto seja
distração suficiente para ela não notar. E talvez seja uma forma melhor de comunicar
meus avanços no plano espiritual.
Vermelho poderia ser uma boa: é a “cor da energia, e pessoas rodeadas de vermelho
frequentemente sentem seus corações batendo um pouco mais rápido e sentem que têm
menos fôlego”. Por mais que a ideia de induzir um ataque cardíaco provocado por
desejo em Sarah seja atraente, de repente me dou conta de que estarei na mira de Jason
Humphries durante o futuro próximo. E todos sabem sobre touros e bandeiras
vermelhas. Talvez não.
Segundo Dr. Hughes, o verde é “associado à masculinidade e riqueza” e também é
um “poderoso ímã de boa sorte”. Começo a tentar lembrar o que tenho na cor verde
dentro do armário quando meu olhar pousa no parágrafo final e na cor que vai me
ajudar a resolver meus problemas de uma vez.
Acredite se quiser — e na minha situação atual sou capaz de acreditar em qualquer
coisa —, “geralmente os criminosos mais perigosos são mantidos em celas cor-de-rosa
considerando que estudos já provaram que essa cor acalma agressividade e tira energia”.
Além disso, é a “cor do amor verdadeiro”. De onde estou olhando, também é a cor de
dois coelhos com uma cajadada só. Uma rápida inspeção em meu armário confirma a
terrível conclusão que invade minha mente: não tenho uma única roupa cor-de-rosa.
Hora de consultar o Oráculo, caso ela saiba de alguma coisa que não sei.
— Manhê!
— Sim?
— Eu tenho alguma roupa cor-de-rosa? — Não podem esperar que eu saiba de
tudo sobre minha vida.
Sua cabeça aparece na subida das escadas.
— O quê?
— Roupa cor-de-rosa; eu tenho alguma?
OK, em se tratando de perguntas, aquela não era uma que alguém esperaria ouvir
vinda da boca de seu filho adolescente. Também não é uma pergunta que eu esperaria
ouvir saindo de minha boca. Estou correndo diversos riscos aqui, tais como a) não
funcionar, b) Jason Humphries me matar assim que me ver e c) que minha já frágil
posição social na escola degringole em puro ridículo.
EP: Confie em si mesmo! Não se preocupe com o que os outros vão pensar! É seu o
Caminho para a Iluminação!
— Como o quê? — Percebo mais que uma pontada de preocupação em sua voz.
— Como roupas! — Me pergunto se ficar irritado com sua mãe atrapalha o
desenvolvimento espiritual de alguém, mas me irrita mais ainda ter que fazer aquela
pergunta idiota de novo.
— Acho que não. Por quê?
Boa pergunta. Poderia optar pelo “Oh, Deus!” de sempre e bater a porta, mas estou
precisando seriamente de um pouco de cor-de-rosa na minha vida.
— É uma coisa da escola para segunda-feira: usar alguma coisa cor-de-rosa para
caridade.
— Ah. — Mais engrenagens se movimentando. — Qual caridade?
Minha mãe teria sido um achado para a Inquisição Espanhola.
São apenas detalhes, mas a única caridade na qual consigo pensar que tenha alguma
coisa a ver com cor-de-rosa seja o do câncer de mama, e pensar em dizer a palavra
“mama” a minha mãe faz meu ME disparar, mandando um calor para meu rosto que
seria capaz de manter uma casa alimentada por energia solar funcionando durante um
ano.
Eu xingo e bufo antes de responder:
— E interessa? Tem alguma coisa cor-de-rosa que eu possa usar ou não? — Não
acho mais que esteja soando como uma pessoa sã a essa altura.
Com um sombrio “Espere aí”, ela sobe as escadas e corre até seu quarto. Deus me
ajude se ela aparecer com uma camisola.
— Isso é tudo que você tem.
— O que é isso?
— É de seu enxoval de bebê. Sua tia-avó Bertha tinha certeza de que você seria
menina.
Em uma de minhas mãos está um lenço de bolso cor-de-rosa. Com direito a bordas
de renda.
— Um lenço? — Uma camisa decente obviamente não está no cardápio.
— Bem, se tivesse me avisado um pouco antes... — Posso sentir ela se preparando
para bufar, então a abraço e digo que está ótimo.
De volta em minha Toca, examino minha herança afeminada. Um maldito lenço cor-
de-rosa.
Quinze minutos mais tarde, descobri que posso dobrá-lo vezes suficientes para
esconder os babados e usá-lo enfiado no bolso de minha camisa. Pareço um garçom.
Com cortes e um olho roxo.
EP: Sua vaidade é um sinal de cegueira espiritual. Deve olhar além de seu eu físico e
enxergar o que existe dentro de você.
O que existe dentro de mim agora é uma pessoa muito cansada. Mas se quero
ganhar o coração de Sarah, precisarei resgatar toda a energia psíquica que o Dr. Hughes
afirma estar à minha disposição.
E provavelmente ir dormir cedo.
Passo o domingo inteiro esperando o telefone tocar.
EP: Para aprender a ter paciência, precisa primeiro ser paciente!
Ele não toca.
DEZESSEIS
A segunda-feira começa com um pequeno objeto atingindo minha testa e o cheiro
extremamente familiar de fumaça de cigarro.
— Ei, Arch! Está vivo aí dentro?
Tony está parado na entrada do quarto, tragando seu disparador de coração de toda
manhã. Ele aponta uma caixinha que rolou de cima da minha testa até o travesseiro.
— O que acha disso?
Com o mesmo entusiasmo de um urso sedado, abro a caixinha e vejo o que poderia
ser descrito como um anel de brilhante muito espalhafatoso. Meu cérebro não consegue
realmente processar essa informação; será que esqueci o aniversário da mamãe ou algo
parecido? Não é Dia dos Namorados; qual seria a ocasião?
—Vou pedir sua mãe em casamento.
Sou então submetido a uma rápida cena em minha cabeça, que mostra mamãe em
um vestido de noiva como o de Cinderela, meu pai invadindo a cerimônia e gritando
“Nãaaaao!” enquanto corre até o altar, e eu tendo que chamar Tony de “Papai”. No
meio disso tudo, consigo simplesmente grasnar um “Er... OK” quando um pensamento
final e apocalíptico detona dentro de minha mente: e se eles tiverem filhos?
E se tiverem filhos? O que isso me tornaria? Onde eu me encaixo? Que família seria a
minha?
— Então, o que achou? — Tony está apontando para a caixa de novo.
EP: Leia os sinais. Use seus poderes de percepção psíquica.
Os únicos sinais imediatos são de meu mundo começando a desmoronar ao meu
redor, mas tento mais um pouco. Olhando Tony com meu EP me persuadindo nos
bastidores, posso ver que ele está nervoso — fica apoiando o peso do corpo de um pé
para o outro e está tragando seu cigarro com um pouco mais de ferocidade que a
habitual. E então me dou conta: de seu jeito estranho, ele está querendo minha
permissão para pedir mamãe em casamento. Se a ideia não fosse igual a olhar numa bola
de cristal e assistir a si mesmo sendo devorado por lobos famintos, aquilo poderia até
ser bastante emocionante.
EP: Ele tem sua própria jornada a trilhar. Mostre-lhe o caminho.
— Boa sorte — consigo dizer, e jogo a caixa de volta na sua direção. — Quando vai
pedir?
Tony obviamente relaxa e, agora que a permissão foi dada, assume o comando.
— Achei que esperaria até você ter ido para a escola. Surpreendê-la e coisa assim.
Entendo a indireta.
— Já vou sair.
— Legal. — Ele desaparece numa nuvem de fumaça. Queria que meus pensamentos
fizessem a mesma coisa. Quando mamãe colocar aquele anel no dedo, não vou pertencer
a lugar algum.
Pelo menos o espelho está exibindo algum sinal de compaixão: minhas lacerações se
acalmaram e quase não se percebem, apesar de não haver nenhum sinal de barba no
horizonte. Coloco meu uniforme, enfiando o lenço cor-de-rosa no bolso da camisa, e
devoro uma tigela de cereal antes de dar o fora.
A caminhada até a escola me dá bastante tempo para pensar. Infelizmente, tudo que
vem à minha mente é como Jason Humphries vai me matar. Subitamente, meu lenço
parece menos um talismã protetor e mais um convite escrito à mão para que ele me
espanque até a morte. Tudo o que posso fazer é tentar manter a discrição. Não é muito
fácil quando se está usando um Sinalizador de Saco de Pancadas® no bolso da camisa.
Tiro o livro de Sarah da minha mochila e me pergunto se o Dr. Hughes teria alguma
dica para distúrbios de tamanha magnitude na Força.
O que mais se aproxima é seu conselho sobre “Como evitar energias negativas”.
Lendo nas entrelinhas, crítica, pessimismo e provocações são como um “veneno que
pode permear e prejudicar seu ego”. Tudo o que preciso fazer é distinguir quem na
minha vida gera essas energias negativas e eliminar tais pessoas. E preciso “entrar na
órbita psíquica daqueles que geram energias positivas”. Parece simples.
Eliminar Tony de minha vida vai ser difícil, especialmente considerando que está se
candidatando a ser meu Padrasto oficial a qualquer momento. E, para ser sincero, ele
não me critica — é apenas um Imbecil.
— Cara! Como está seu olho? Por que esse lenço cor-de-rosa? Está querendo levar
uma surra?
Beggsy chega.
EP: E com ele, o fedor acre da crítica.
— Haha, você é um cara engraçado. Isso se chama moda.
— Cara! — Significa *Não aprova*. À distância ele vê Ravi e Matt. Preparo-me para
o massacre.
— Caras! Olhem só isso! Archie se tornou um ícone de estilo!
— É, ouvi dizer que olhos roxos vão se tornar um sucesso esse ano. Qualquer
pessoa que seja alguém na vida vai querer ter um! — Como sempre, Ravi nem notou o
mais óbvio.
EP: Mas não perdeu a oportunidade de provocar...
E Matt completa a profana trindade:
— Pelo menos vai ser útil para secar o sangue quando Humphries puser as mãos
em você.
EP: O veneno patético do pessimismo.
— Minha nossa, caras! É só um lenço, pelo amor de Deus! — E com isso, saio
andando na frente deles, me perdendo em meio à crescente multidão de adolescentes se
aproximando dos portões da escola. Fico com uma sensação de ter descarregado demais
nos meus amigos, não por causa do lenço, mas por causa de tudo mais que está dando
errado em minha vida. Talvez devesse parar e me desculpar.
EP: Essas são palavras de alguém cujo ego foi enfraquecido por energia negativa. Fique
forte e seja verdadeiro. Evite-os.
Até mesmo o mais duro conselho parece certeiro num sotaque americano; talvez o
EP tenha razão. Tudo que fazemos é zombar uns dos outros, e não preciso disso em
minha vida no momento. Mas não consigo me livrar da sensação de estar numa loja de
enxadas, procurando por uma pá maior.
— Ei, Archie!
Uma energia positiva quase me derruba através da cintilante forma física de Sarah.
Subitamente, meus amigos negativos são pouco mais que uma distante lembrança.
— Ei, você! — Puxa, eu quase pareço ser descolado!
— Lenço legal. Vai a algum lugar especial?
Meu coração dá um pulo — o Dr. Hughes tinha razão! Acho que nunca me senti
tão bem a respeito de mais nada em toda minha vida. Meu lenço é legal — é a porcaria
de lenço mais legal que já tive. Deus abençoe minha tia-avó Bertha! E Deus abençoe a
pessoa que inventou lenços de bolso! Especialmente os cor-de-rosa.
— Ah, sabe como é — respondo distraidamente —, acho que vou almoçar num
lugar novo aí, ouvi dizer que a comida é muito boa.
Minha recompensa vem na forma de uma bela gargalhada e um apertãozinho no
braço; é como ser tocado por um anjo.
— Lá está Caitlyn, preciso ir. Te vejo mais tarde? Talvez na hora do almoço?
— Vou reservar a melhor mesa da casa. O chef é meu amigo. — Acho que estou
começando a sentir minha barba crescendo.
Mais risadas e mais um apertão, e ela então corre para encontrar sua amiga. Não
tem como minha vida ficar melhor. A verdade daquele pensamento é reforçada por
alguma coisa como um aríete batendo em minhas costas. Engulo a réplica que está
prestes a sair de meus lábios quando viro e me deparo com a cara endurecida e sombria
de Jason Humphries, com direito às Feridas de Batalha. Acho que mamãe já deve ter
ligado para a Srta. Holly hoje de manhã para denunciá-lo; parece estar mais furioso que
nunca. Mas devido à presença do ocasional professor perambulando, tudo que ele pode
fazer nesse momento é passar um dos dedos de um lado a outro de seu pescoço
musculoso e me olhar sinistramente.
Talvez cor-de-rosa não seja exatamente sua cor.
O aprendizado sai pela janela pelo restante da manhã. Até mesmo me deleitar na glória
sussurrada de ter tido uma briga com Jason Humphries sai pela janela; os tapinhas nas
costas, polegares para cima e elogios furtivos que recebo são obscurecidos por
desesperadas espiadas nas palavras de sabedoria do Dr. Hughes. Mais especificamente,
estou tentando descobrir quais métodos o Dr. Hughes acha mais eficientes para se lidar
com um Boçal grande demais, que sem dúvida quer me fazer de saco de pancadas. O
mais perto que ele chega disso é em lidar com “energia negativa direcionada para você”.
Que eu saiba, um soco no rosto é bem negativo e exige algum tipo de energia para ser
executado, então pode ser um bom começo.
Infelizmente, é aqui que as primeiras sombras de dúvida começam a aparecer. Até
agora, o Dr. Hughes acertou quase tudo: consegui silenciar meu crítico interior,
desenvolvi uma atitude mais positiva e seduzi Sarah até minha órbita psíquica com os
poderes de meu lencinho cor-de-rosa. Mas acho que “negar essas forças negativas” não
irá impedir o punho de Humphries de acertar meu nariz. O conselho do Dr. Hughes é
imaginar a energia negativa jorrando de mim como um jato d’água. O único jato d’água
que consigo imaginar saindo de mim nessa situação toda é o que provavelmente será
expelido por minha traiçoeira bexiga se Humphries chegar perto de mim outra vez.
EP: Pergunte ao Universo e o Universo responderá.
Em vez de perguntar, ofereço uma rápida prece.
O sinal do almoço me faz sair apressado pelos corredores, tentando ser o mais
invisível possível. O que não parece ser tão fácil quando se está usando um lenço cor-de-
rosa. Quem teria imaginado que um item tão inócuo poderia causar tamanha sensação?
Em um minuto, sou um herói do povo, em seguida, minha sexualidade parece estar
sendo questionada, e a quantidade de gente que me chama de ridículo deve bater algum
tipo de novo recorde mundial. A fama pode ser algo tão instável.
EP: Ouse ser diferente!
Felizmente, Jason Humphries está ausente das hordas escravizadas que fofocam,
gracejam e se arrastam até a cantina. Quando acho que poderia respirar aliviado, Ravi
dobra uma esquina, e literalmente damos um encontrão um no outro.
— Ei, Archie... Você está bem?
— Claro, estou legal. — Quase consigo sentir suas sondas psíquicas me estudando,
mas não vou revelar nada.
— Parecia estar bem irritado hoje de manhã. Você sabe, com a história do
lencinho.
EP: Deixe-o perceber que você não será um receptor de sua energia negativa!
— Só estou cansado de aguentar tanta besteira, Ravi. Não preciso disso em minha
vida.
— Ah. OK. Vou esperar o pessoal aqui. — Tem um tom de pergunta em sua
declaração: ele quer saber se vou esperar com ele. Um dia eu teria sido atraído por seu
campo gravitacional, mas meus recém-instalados propulsores psíquicos me dão todo o
poder de que preciso para me libertar; preciso estar perto de energias positivas. Preciso
estar perto de Sarah.
— Eu não vou. Até mais. — Simples assim.
EP: Sua força está aumentando!
Tentarei não julgar aqui, mas o conselho do Dr. Hughes para evitar a negatividade
abriu outra janela de oportunidade para mim: posso ver o cabelo de Sarah brilhando
como uma chama de ébano entre as cabeças e os ombros na minha frente. Me apertando
e, diplomaticamente, empurrando em meio à multidão, finalmente a alcanço.
— Vai para onde eu vou?
— Ora, olá, estranho! — Tem pimenta o bastante em seu tom de voz para abrir
uma fábrica de catchup.
EP: Precisa abandonar pensamentos luxuriosos!
Mentalmente tomo uma chuveirada fria.
— Vai entrar? — Indico casualmente com o polegar as portas da cantina.
— Vou. Só estou esperando uma pessoa. Vai na frente.
Escuto um leve barulho de vento quando o tapete é puxado de debaixo de meus pés.
De repente, não estou mais tão convencido, e a pele em meu queixo parece estar nua e
sem pelos. Estou prestes a pateticamente sugerir que poderia esperar quando uma voz
alta atravessa minha insegurança com sotaque americano.
EP: Canalize sua energia positiva!
— OK. Vou ver se nossa mesa está pronta.
— Te vejo daqui a pouco.
Premio-me mentalmente com uma medalha.
Toda essa energia positiva me deu fome e salivo com minha comida favorita no
cardápio do dia: bife apimentado com arroz. Depois de alguns instantes pairando pelo
refeitório, um grupo de garotas sai de sua mesa, e pulo para pegá-la: perfeita. Na
verdade, olhando mais de perto, não está tão perfeita assim, e tiro as bandejas e os
pratos que as garotas deixaram para trás.
— Cara! — Beggsy puxa uma das cadeiras e começa a se sentar. Já posso ver Matt e
Ravi andando na nossa direção; vou precisar fazer isso rápido.
— Er... Está ocupada.
— Haha.
— Não, é sério. Está ocupada.
Matt se aproxima da mesa, seu sentido nerd obviamente já tendo detectado aquela
coisa que os nerds mais temem: mudanças.
— O que está havendo?
— Archie está guardando esse lugar para alguém, pelo visto. — O traseiro de
Beggsy ainda não fez exatamente contato com o assento, mas ele mantém seu
semiagachamento como se estivesse esperando pelas ordens de sentar-se logo ou
levantar de volta. Passa-se um instante enquanto os três analisam a tensão.
— Tudo bem — decide Matt, indo se sentar em uma das outras cadeiras. Se sua
bandeja tocar a mesa, ele terá fincado seu nome e não haverá volta.
— Esse também está — falo. — Todos estão ocupados.
Mais uma vez o tempo para enquanto essa nova informação chega até seus cérebros.
Isso é como um daqueles impasses em velhos filmes de faroeste, mas em vez de mãos
roçando armas, temos bandejas e traseiros roçando mesas e cadeiras. A única
movimentação entre nós se dá entre nossos olhares, conforme eles vão de um para o
outro, tentando adivinhar quem vai ceder antes.
Matt cede. Mas ele não diz nada; e nem precisa. Ele simplesmente me olha de um
jeito que diz tudo. Em seguida, deliberadamente se afasta, seguido pelos outros.
EP: Eles não são iluminados! Eles não entendem!
A salvo em minha solidão, rapidamente rearrumo as cadeiras, colocando a que
espero que Sarah escolha para se sentar apenas um pouco mais perto da minha do que
deveria. Ela chega segundos depois de eu terminar.
— Seus amigos não vêm? — pergunta, sentando-se na minha frente.
— Não. Estão fazendo um trabalho juntos. Vou falar com eles depois. — Essa
energia positiva certamente está melhorando minha capacidade de mentir.
— Ah, que pena. Matt é bem engraçado.
Lembrete mental: talvez seja melhor fazer as pazes com Matt.
EP: Seja verdadeiro! Seja firme!
— É, ele é engraçado. Cadê Caitlyn? Achei que estava esperando por ela.
— Não, vou encontrá-la mais tarde.
— Ah. Quem você estava esperando então?
— Chris.
Fico ligeiramente tenso.
— Ah, é? — pergunto, com o máximo de positividade psíquica que consigo. —
Que Chris?
— Oh, não sei seu sobrenome. É um amigo novo; começamos a conversar na aula de
química. Olha ele ali.
Eu obedeço e logo em seguida desejo não ter olhado. Chris é ninguém menos que
Chris Jackson, o tipo alto e atlético, de olhos azuis, cuja simples menção do nome causa
risadinhas e bochechas vermelhas em todas as garotas da escola. Ele paga por sua salada
e desfila em meio à ralé até nossa mesa. E senta do lado oposto ao meu. Ao lado de
Sarah. Bem ao lado dela. Onde eu devia estar sentado.
— Tudo bem? — Sua mandíbula perfeita brilha com fragmentos de verdadeira e
genuína barba.
Não. Não está tudo bem. Neste momento eu gostaria de trocar meu lencinho cor-
de-rosa por uma arma. Ou por uma barba.
Passo os quarenta e cinco minutos seguintes tentando engolir meu bife picante com
arroz — tarefa ainda mais difícil quando descubro que Sarah é vegetariana; cada garfada
cheia de carne parecendo uma traição. Chris, enquanto isso, mastiga sua salada com a
satisfação de uma vaca no pasto, seus pelos faciais refletindo no conveniente feixe de luz
criado pelo sol numa janela vizinha.
Acho que o odeio.
EP: Positividade é a chave!
O problema é que, não importa quantos sorrisos falsos eu consiga dar do outro
lado da mesa e não importa quantos comentários inteligentes ou irritados eu jogue na
arena, Chris parece simplesmente ter dominado a conversa. Sarah está hipnotizada por
ele, e é mais tátil do que acho que precisaria ser: a cada uma das piadinhas de Chris, ela
reage com um toque de brincadeira no braço dele, ou jogando o cabelo sedutoramente
para o lado. Estou realmente tentando não notar, mas cada vez que uma de suas mãos
chega perto dele é como se o tempo ficasse em câmera lenta, e meus olhos dessem um
zoom que segue cada movimento em detalhes arrasadores.
Para completar, Chris masculinamente ignora o curativo em sua mão direita. Sarah
percebe, e mal consigo conter o vômito quando ele revela ter tido um “acidente de
rúgbi”. Quando ela pede para olhar sua outra mão, preciso morder o interior de minha
bochecha para manter um mínimo de autocontrole. Olho de lado através das mesas;
Matt está me encarando com uma expressão sombria no rosto.
— Agora isso sim é interessante — ronrona Sara, traçando a palma de Chris com
um dos dedos delicados. Minha própria palma da mão coça de ciúmes.
— O quê? — Chris se reclina em sua cadeira, obviamente totalmente à vontade por
estar em contato com uma mulher. Filho da mãe.
— Bem, esta é sua linha do amor... — Sarah traça a linha em sua mão — ...e parece
que você tem uma admiradora secreta... — Ela arrasta as palavras com uma entonação
provocante e sexy, exatamente ao mesmo tempo em que consigo escutar também meu
coração se despedaçando.
“É verdade — continua, abaixando a cabeça para olhar mais de perto sua mão
máscula. — Alguém próximo a você... uma amiga...
A cadeira onde eu estava sentado parece ter desaparecido, e posso me sentir
afundando num buraco profundo e escuro que só poderia ter sido criado pelos
Demônios do Desespero.
— Ah é? — responde Chris, com uma arqueada hollywoodiana de suas
incrivelmente impetuosas sobrancelhas. — Quem?
— Ora! — responde Sarah, ignorando o pequeno grupo que parecia ter se reunido
para assistir. — Eu não poderia saber. Tudo o que sei é que a pessoa pode estar mais
perto do que você pensa!
A vontade de enterrar o rosto no meu bife apimentado e tentar morrer bem ali é
avassaladora.
— OK. — Chris sorri. — É melhor eu ficar de olho! Obrigado pela dica. Te vejo
depois. — E então, levando sua bandeja, ele some majestosamente do refeitório. Olho
onde estava sua bandeja; não há nem uma migalha na mesa.
Algumas pessoas que estavam assistindo perguntam a Sarah se ela poderia ler suas
mãos e, em segundos, uma fila se forma.
— Bem, é melhor eu ir nessa — anuncio, arrastando minha silhueta desanimada
para fora da cadeira.
— OK. — Sarah sorri quando seu primeiro cliente senta na cadeira onde estava
Chris. — Nos vemos depois da aula?
Em um universo paralelo, um outro Archie diria a ela para se ferrar e estaria
derramando o resto do bife apimentado em cima de sua cabeça. Neste aqui, ele
concorda, pateticamente agradecido pela chance de estar perto dela apenas mais uma vez.
DEZESSETE
A tarde não passa tão tranquilamente. Simplesmente pareço não conseguir absorver a
precipitação do nordeste da Inglaterra; minha mente está ocupada demais repetindo o
trailer de um filme novo: O romance de Chris e Sarah.
Não sei por que estou surpreso. Com pessoas como Chris no mundo, eu realmente
pensava que tinha uma chance? Ele tem até mesmo aqueles musculozinhos no canto das
mandíbulas, que se flexionam como pequenas nozes quando fala. Uma vida inteira na
academia não conseguiria algo no gênero.
Meu EP continua calado, sem dúvida afogado pela onda de autoaversão que caiu
sobre minha cabeça. Nem mesmo meu MI cheio de dúvidas se dá o trabalho de
reivindicar seu território; minha mente está desprovida de qualquer coisa que não seja
deprimentes reprises de Os momentos mais íntimos de Chris e Sarah no almoço.
O alarme de fim das aulas soa, mas continuo sentado, encarando o vazio, embalado
pelas cadeiras arranhando o piso enquanto são encaixadas debaixo das carteiras. Até
mesmo Beggsy vai embora sem dizer nada. Mas mal noto a sala vazia até o Sr. Cook me
abordar:
— Está tudo bem, Archie? Não tem casa para voltar?
Eu tenho. Mas não quero voltar para lá. Tudo o que me espera em casa nesse
momento é o anúncio da minha mãe ter se aliado a um Imbecil e que eu não vou mais
pertencer a nenhuma família em particular. Até mesmo a ideia de voltar para casa com
Sarah perdeu a graça. Por uma fração de segundo, penso em desabafar e em contar ao Sr.
Cook tudo que está acontecendo na minha vida. Ele é meu tutor, assim como professor
de geografia, e está sempre nos dizendo como podemos conversar com ele se não
tivermos ninguém com quem falar sobre alguma coisa. Mas já desabafei com Sarah, e
olha só no que deu: sem amigos, sem namorada, de encontro marcado com a Morte nas
mãos de Jason Humphries e com um lencinho cor-de-rosa no bolso da camisa. Não
estou nada bem.
— Desculpe, senhor. Acho que estava sonhando acordado.
— Bem, desde que esteja tudo bem...?
Lá está o cavalo dado mais uma vez, e faço um exame completo em seus dentes,
como bom covarde que sou.
— Sim, está tudo bem. — As palavras saem um pouco velozes demais de minha
boca, e me recomponho o mais rapidamente possível. — Até amanhã.
— Até amanhã, então.
Os corredores estão vazios, como uma banheira sem água. Minha miséria é tão
profunda que meu Detector de Boçais® deixa de soar com as duas figuras Neandertais
rondando os portões da escola, e quando me dou conta, Paul Green e Lewis Mills já me
pegaram pelos braços e me arrastaram até o beco atrás da sala de história. Jason
Humphries aparece, envolto em fumaça, como algum tipo de criatura do Submundo.
De onde meu punho acertara seu nariz, saem agora duas manchas roxas circulando seus
olhos, aumentando seu fator Assustador em uns seis pontos.
— Aposto que está se achando especial, não está? — sibila pelo lado da boca onde
não há um cigarro pendurado. — Achando que é durão.
Estranhamente, sinto-me miserável demais para sentir medo; tem coisa demais
acontecendo no momento. Em vez do grito familiar de adrenalina, há apenas o cansado
suspiro de resignação.
— Não. Na verdade não.
— O quê? — Os tendões em seu rosto marcado trabalham duro para formar uma
máscara feia de alguém confuso. — Está zombando de mim, nerd? Pelo que andei
escutando, todo mundo está achando que foi você quem me deu uma surra.
— Não, não estou zombando de você — respondo. — Tive sorte. Não sou de
brigar. Não sou nada.
Por algum motivo, essa minha confissão o deixa ainda mais confuso, e ele inclina a
cabeça, ou tentando me analisar ou tentando deixar cair alguma coisa que entrara em seu
ouvido.
— Acha que reclamar com a Sra. Holly vai ajudar, não acha? Vai pedir pra sua
mamãezinha ligar de novo para ela?
Mas estou além do ponto de ser provocado, e a única reação que consigo ter é um
débil encolher de ombros.
Finalmente, Jason consegue chegar a alguma espécie de decisão olímpica na cabeça.
— Patético — cospe. — Segurem-no.
Com essas palavras, Mills e Green tiram minha jaqueta enquanto Humphries
prepara um de seus punhos para começar. Sempre achei que canhotos tinham algum
tipo de veia artística.
Espero pelo inevitável.
— O que é isso?
Abro os olhos e sigo os olhos machucados de Humphries até meu peito.
— Meu lenço.
— O quê? Para que está usando isso? — Sem esperar minha resposta, Humphries
tira o lenço de meu bolso, e ele se abre, como uma flor, em toda a sua glória rendada e
cor-de-rosa. — Um lencinho cor-de-rosa? Você é gay? — zomba, rindo maleficamente
enquanto enfia o lenço debaixo de meu nariz. — Para que serve isso? Para limpar o
sangue depois que eu tiver terminado com você? — Me recordo vagamente de Matt ter
dito algo parecido; talvez ele também tenha poderes psíquicos.
— É para acalmar criminosos — respondo, sem nem pensar e sem ironia. Mas
nesse momento, aquilo não chega nem perto do pedaço de criptonita pelo qual eu
ansiava.
— O quê? — Essa informação causa algum tipo de sobrecarga no sistema de meu
agressor, e ele começa a gargalhar, abanando meu lenço como numa espécie de dança
satânica. Green e Mills começam a rir também, e, em segundos, o ar fica pesado de
risadas assassinas.
— Ei! O que vocês estão fazendo aí? — A voz do Sr. Cook interrompe os gritos.
Humphries congela e esfrega o lenço no meu rosto.
— Vai esperando! — sibila ele, e o trio de bullies se dispersa.
— Archie? O que está acontecendo? — O Sr. Cook aparece no beco.
— Nada, senhor.
— Bem, então vá para casa!
— Sim, senhor.
Guardando meu lenço no bolso e tremendo ao vestir minha jaqueta, saio da escola,
ligeiramente inseguro a respeito do que acabara de acontecer. Acho que acabei de ser
salvo por um lencinho cor-de-rosa.
— Estava me perguntando onde você tinha se metido. — Sarah estava me
esperando na calçada. — Achei que tinha me largado aqui!
Eu percebo a ironia, e, apesar de estar grato pela minha fuga por um triz, a Neblina
do Amor Não Correspondido cai sobre mim mais uma vez. Vai ser uma longa
caminhada para casa.
Cada passo que dou parece inadequado. Meu queixo parece mais pelado que o
bumbum de um bebê, e eu sou um Nerd. E cada palavra que Sarah diz endurece e se
transforma numa faca que atravessa meu coração. Nem mesmo suas garantias de que
Humphries provavelmente vá me deixar em paz trazem algum tipo de conforto.
— O que foi, Archie? Está meio quieto. E estava bem calado no almoço. Está tudo
bem? Não está com vergonha pelo que me contou no final de semana, está?
O que responder? Que graças a seu descarado flerte com Chris Jackson, minha vida
não faz mais sentido? Em vez disso, ofereço uma breve explicação de minha preocupação
com Tony pedir mamãe em casamento. É uma cartada fútil e desesperada, mas arrisco
mesmo assim.
— Acho que não precisa se preocupar tanto, Archie. É apenas um pedaço de papel.
Não muda nada realmente.
— É, acho que tem razão — minto. — É só um pouco estranho.
— Só vai se tornar um grande problema se você quiser, Archie. Vai dar tudo certo.
— Acho que sim.
— Ei, gostou do truque que fiz com Chris na hora do almoço?
Ela obviamente não faz a menor ideia de como me sinto. Mas quem sou eu para ficar
no caminho do Amor Verdadeiro? Ninguém, é isso que eu sou.
— É... Você me enganou!
— Desculpe ter sido durante o almoço, mas acho que eu não teria outra
oportunidade.
Sei como ela se sente.
— É. Então foi um truque? Não sabe ler mãos?
— Ah, sei um pouco, mas apenas disse a Chris o que ele precisava ouvir.
Sua autoconfiança é arrepiante. Isso é mais do que eu teria esperado da Feiticeira
Branca de Nárnia; talvez ela tenha assistido a esse filme vezes demais.
— OK... — Sinto medo da resposta ao mesmo tempo em que as palavras seguintes
saem de minha boca: — Então o que acha que vai acontecer agora?
— Acho que vai depender dele e de Caitlyn.
— Caitlyn? — Nunca vi um peixe barrigudinho ao vivo, mas acho que eu devia estar
parecendo um agora.
— É. Ela gosta dele há séculos. Eu não podia te contar, mas foi por isso que ela não
foi almoçar com a gente.
— Espera... Você estava...
— ...apontando a direção certa para ele, isso. Eles se gostam, mas nenhum dos dois
tem coragem de fazer alguma coisa a respeito.
Num piscar de olhos, de repente o mundo é um lugar melhor. Minhas baterias
recarregadas positivamente ficam cheias e meu EP ganha energia suficiente para voltar a
funcionar.
EP: O poder do positivo não pode ser negado!
Acho que meus dias de negação acabaram. Por medo de abrir a boca e dizer a coisa
errada, mudo de assunto e conto a Sarah sobre os poderes protetores do lenço cor-de-
rosa. Pérolas de gargalhadas caem como chuva sobre minha cabeça, acalmando minha
alma conturbada.
— Não sei se acredito nessa história das cores — diz, com uma risada. — Não a
ponto de confiar minha vida a um lencinho cor-de-rosa.
— É. — Rio concordando, confortável em meu papel de bobo da corte e feliz em
abandonar minhas crenças em um estalar de dedos.
EP: Ela é a fonte da energia positiva! Veja como você se sente melhor em sua
companhia!
Quando as risadas diminuem, a conversa se volta para assuntos psíquicos, e me vejo
contando a Sarah como estou me sentindo diferente; como estou saindo da concha e
descobrindo meu verdadeiro eu.
— Bem, acho que a melhor coisa é não se apressar, Archie. É uma coisa poderosa, e
precisa dar a cada fase o peso que ela merece.
— O que quer dizer?
— Tudo que está descobrindo agora é novo; está num estágio de transição, como
uma borboleta saindo de sua crisálida.
— Um passo de cada vez, esse tipo de coisa?
— Com certeza. A maneira como pensamos e nos sentimos é devido a anos de um
comportamento aprendido. Você não pode simplesmente desaprender tudo de um dia
para o outro. Não é uma competição; precisa ir na velocidade certa para você.
Finalmente chega a hora de nos separarmos, e sou deixado com uma sensação como
a de um raio de sol em meu estômago enquanto percorro o restante do caminho até
minha casa. Ainda tenho uma chance; tudo o que preciso fazer é tentar pensar como ela,
e o resto vai chegar. Mas até mesmo o sol precisa se pôr: a sensação dura até eu ver
minha casa no final da rua e ficar parado na frente dela, apenas a olhando.
Não quero entrar.
Não quero que mamãe e Tony fiquem noivos.
Mas eu moro ali.
Respirando fundo e, de coração apertado, entro em casa.
Entro pela porta da frente e dou de cara com Tony descendo as escadas — sem dúvida
voltando de mais uma de suas visitinhas ao banheiro. O jornal debaixo de seu braço
meio que o denuncia.
— Tudo bem, Arch? — Ou ele está escondendo o jogo ou está sofrendo de algum
tipo de amnésia.
— Tudo... Como foi?
— O quê?
— Você sabe... a história da aliança...
De um ser humano normal você esperaria alguns “obas” sendo gritados ou um rosto
como de um buldogue mastigando uma vespa. Tony não revela nada e dá apenas algumas
risadinhas e a instrução “Vá perguntar à sua mãe”. Deve ser assim que quem está no
corredor da morte se sente.
Eu sigo o som do rádio na cozinha, e encontro mamãe de joelhos com a cabeça
enfiada dentro de um dos armários. Apesar do peso em meus ombros, essa cena me faz
sorrir — especialmente quando ela xinga junto com o barulho das panelas. Mamãe tem
um jeito especial de xingar: não é ofensivo, provavelmente porque seu xingamento
favorito parece ter sido inventado por uma solteirona vitoriana.
— Porcaria! — Panelas batendo.
— Tudo bem aí embaixo?
Mamãe tira a cabeça de dentro do armário e se levanta.
— Deus, estou ficando velha! — balbucia. — Olá, querido, como foi seu dia? Quer
uma xícara de chá? — Ela dispara as perguntas mais rápido que uma metralhadora.
— Bem, obrigado. E sim, por favor.
— Como se saiu com seu lenço?
— É, tudo certo. E você?
— Ah, você sabe, o de sempre.
O de sempre? Será que perdi alguma coisa? Pedidos de casamento por acaso fazem
parte da rotina diária de minha mãe? Estou começando a me perguntar se imaginei a
história toda, ou se algum cirurgião cerebral velhaco andou trabalhando na cabeça de
mamãe enquanto eu estava na escola, quando ela subitamente se lembra da parte vital de
seu dia.
— Oh, sim! Tony me pediu em casamento hoje. — Ela fala de um jeito casual e
despreocupado o bastante para me enrolar só mais um pouquinho.
— E...? — Tentar manter a frustração escondida em meu tom de voz causa um
estrago nas minhas reservas psíquicas.
— Eu não aceitei.
Ter antecipado uma resposta inteiramente diferente faz meus olhos se arregalarem;
é como se preparar para um golpe que nunca vem. Talvez exista mais por trás dessa
história do lencinho cor-de-rosa do que Sarah pensa.
— O quê? Por quê?
— Já fui casada, Archie — explica mamãe um pouco tristemente, mas ainda
conseguindo me abastecer de uma xícara da Sagrada Infusão. — Não preciso fazer isso
de novo. Acho que foi o casamento que arruinou meu relacionamento com seu pai.
Quando finalmente compreender aquela declaração, tenho certeza de que vou
precisar admitir ter me tornado um adulto.
— Ah. E Tony?
— Ele está bem.
— Mesmo? Não ficou chateado? —Apesar do fato de ter odiado a ameaça de um
futuro casamento, parte de mim está moralmente ultrajada por Tony conseguir aceitar
essa rejeição tão casualmente.
— Vá ver você mesmo.
Arrasto-me até a sala no piloto automático enquanto tento fazer tudo isso ganhar
sentido: ninguém parece estar incomodado. Não é que eu queira mexer num ninho de
vespas nem nada, mas todo mundo parece estar lidando com isso tão... positivamente.
— Tudo bem, Tony?
— Sim, amigo. — Ele nem se dá ao trabalho de tirar os olhos do jornal que está
lendo.
— Soube do... você sabe... da aliança.
— Ah, é! — Mais uma risadinha vindo do sofá, de detrás do The Times.
— Você está... Você está bem?
Então, ele desce o jornal, com a majestade de uma ponte levadiça sendo baixada.
— Estou. Por que não estaria?
— Bem... Ela não aceitou...
— É.
— Isso não é ruim?
Mais risadinhas, que, para ser sincero, estão começando a me dar nos nervos. Se
existe algum segredo por trás disso tudo, é bom ele me contar logo.
— Deixe eu te contar uma coisa, Arch... — Odeio quando adultos falam assim. —
Não foi que ela não aceitou, é por que ela não aceitou. — Ele sabe que essa declaração
exige maiores explicações, mas ainda assim vou precisar pedir por elas.
— OK. Por quê?
— Ela disse que estava feliz o bastante e que não precisa de um anel para deixá-la
mais feliz. E se ela está feliz, eu também estou.
— Ah. Certo. OK.
Ou testemunhei uma abordagem incrivelmente zen acerca de relacionamentos, ou
alguém anda colocando drogas no chá. Se Tony tivesse parado por ali, eu poderia ter
algum respeito por ele, mas Tony sendo Tony e, portanto, um Imbecil, não consegue.
— E como está indo com sua senhorita?
— Ainda não vou precisar pedir o anel emprestado, se é isso que quer saber.
Mais uma rodada de risadinhas vindas dos pulmões corroídos de Tony, e subo para
minha Toca. Abro o laptop e entro direto no Facebook. Matt ainda não existe, e Ravi
postou uma foto de uma miniatura que acaba de pintar, talvez tentando chamar minha
atenção. Beggsy, no entanto, ainda está anunciando minha briga com Jason Humphries
o mais alto possível. Seu status diz: “ADIVINHA QUEM LEVOU UMA SURRA
DO ARCHIE?” Há algumas tentativas de adivinhação, incluindo “Miley Cyrus”, o
que me faz sorrir. Mas, no fim, ele não se conteve e escreveu o nome de Jason, com um
desnecessário número de pontos de exclamação. Não foi uma de suas melhores ideias na
vida, considerando como Jason descobriu onde moro. Estou prestes a mandar uma
mensagem a ele quando vejo que papai andou tentando falar comigo; ele deixou várias
tentativas de chat.
vc ta on Sem ponto de interrogação.
kd vc Mesma coisa.
kro falar c vc Blah.
me liga pfv Péssimo.
Mas nem mesmo essas mensagens estouram a bolha de serenidade que parece ter se
formado ao meu redor. Olho o perfil de Sarah: sua lista de amigos está crescendo
rapidamente, e seu status diz “Em paz”.
Sei como ela se sente.
DEZOITO
Passo o restante da semana conhecendo meu Eu Psíquico, cortesia do Dr. Hughes. A
única dificuldade é precisar ficar acordado até tarde para dar conta dos meus deveres de
casa, mas mamãe acha que estou só cansado porque estou no fuso-horário da
adolescência.
Toda essa história de positividade é um pouco como aprender a voar; estou
aprendendo a me distanciar de meus problemas e a olhá-los de uma perspectiva mais
ampla. No entanto, voar tende a ser uma atividade solitária, e quando Sarah não está
por perto no almoço ou nos intervalos, fico sozinho. Matt, Ravi e Beggsy não estão
exatamente me evitando, mas estão mantendo-se fora de meu caminho; talvez estejam
achando que ela é minha namorada. Talvez eu devesse pedir desculpas, mas, para ser
sincero, quando Sarah está por perto eu meio que me esqueço deles. Na verdade meio
que esqueço tudo. Ainda nem respondi às frenéticas mensagens de meu pai pelo
Facebook.
EP: Você está abrindo as asas e deixando sua velha vida para trás!
Existe muita verdade nisso. Até o catálogo novo da Next que chegou permanece
intocado, graças à minha recém-descoberta pureza. O mais estranho é que nem consigo
pensar em Sarah num contexto sexy. Acho que atingi um alto nível de desenvolvimento
espiritual. Mas estou percebendo que há muito trabalho a ser feito e tentando seguir as
dicas do livro do começo. “Dê a tudo a importância que merece”, Sarah tinha dito.
Humphries está pacientemente aguardando. De vez em quando, ele aparece no
horizonte como um Grande Tubarão Branco, para em seguida desaparecer
silenciosamente em meio à multidão. Mas está deixando claro que continua lá. Mesmo
eu tendo parado de usar o lenço de bolso cor-de-rosa, ele ainda parece sentir onde
estou. Talvez ele tenha poderes psíquicos.
A sexta-feira chega como um sopro de ar fresco, e, às 15h15, estou esperando mais
uma vez no portão da escola. Sarah chega, dando adeus à sua crescente horda de
amigos/admiradores/clientes de quiromancia.
— Olá, você! Como está a vida?
Adoro quando ela me chama assim. Estranhamente, para um termo tão genérico,
parece incrivelmente pessoal vindo da boca de Sarah. Especialmente quando ela está
meio sem fôlego, como nesse momento.
— Olá, você! Está tudo bem! — Já virei especialista nisso.
— E sua mãe e Tony? A temível proposta. Não sabia se devia tocar no assunto
antes.
— Alarme falso.
— Eu te disse! — provoca. — Seus amigos ainda estão fazendo aquele trabalho?
— É. Ainda. — Esse “trabalho” vai ser o mais longo da história dessa escola. —
Alguma novidade?
— Chris e Caitlyn terminaram. Ela chorou a tarde toda.
— Mas eles só estavam saindo há dois dias! O que aconteceu? Isto é, já ouvi falar de
relacionamentos curtos, mas...
— Bem, conversei com ele, e ele disse que gosta de outra pessoa.
Já esperava algo assim há dias, mas me preparo do mesmo jeito.
— Ah é? De quem?
— De mim! Confessou que só estava fingindo gostar dela para se aproximar de mim!
Dá para acreditar? — O ultraje em seu tom de voz me dá um pouco de esperança.
— E o que você respondeu?
— Disse a ele para sumir!
Relaxar. Mas não demais.
— Por quê? Todas as garotas da escola querem sair com ele.
— Bem, eu não quero! Ele não faz meu tipo.
— Não?
— Não. Gosto de homens um pouco mais profundos. Além disso, não estou
interessada em homens no momento. A não ser em você, é claro.
Que diabos isso significa? Isso quer dizer que ela não sairia com ninguém além de
mim, ou que exceto comigo porque somos amigos? Peço algum tipo de orientação ao
universo, mas o universo parece estar ocupado atendendo outras ligações.
Caímos numa conversa confortável sobre nada em particular, sem Sarah demonstrar
nenhum sinal de ter dito alguma coisa sobre a qual eu devesse me preocupar. Será que
devo arriscar e simplesmente chamá-la para sair? Mesmo que pensar nisso faça meu
estômago se revirar e minhas bochechas arderem? Mas o americano em minha cabeça
não tolera covardia. Isso simplesmente não é uma opção.
EP: Você pode conquistar qualquer coisa com os poderes do pensamento positivo!
Talvez eu possa. Talvez eu deva.
EP: Dê um passo à frente ou um para trás. Não existe meio-termo.
Acho que já ouvi aquilo em algum lugar antes. Mas faz sentido; quanto mais eu
enrolar na Terra do Talvez, menos chances terei de chegar a algum lugar. Será que
convido? Meu estômago se revira outra vez. Uma vez quando penso em convidar, duas
quando penso em não convidar. Eu conto seis reviradas em seis segundos.
EP: Siga o vento! É Agora ou Nunca!
Quando a ideia começa a ameaçar se tornar realidade, meu corpo entra num modo
encare ou fuja.
— Archie? Algum problema? Parece meio pálido!
Não muito positivamente, amaldiçoo minha traiçoeira pele em silêncio.
— Sim, estou bem. Posso perguntar uma coisa?
EP: Abra suas asas e VOE!
Isso é tudo muito bonito, mas acho que acabei de descobrir que tenho medo de
altura.
— Claro. Está tudo bem? — A preocupação em seu rosto parece estar tornando
tudo ainda mais difícil.
— Está... eu... é... Sarah, você quer...?
— Archie!
O maldito Tony para o BMW e grita pela janela.
— Quer uma carona?
Sarah me olha ansiosa. Mas minha coragem diminui até morrer.
— Er... É, obrigado Tony.
— E sua namorada?
Minhas pálpebras descem como pedras. Quero que o mundo me engula por inteiro,
leve-me até as profundezas de seu ser e nunca, nunca mais me deixe ver a luz do dia.
Nunca mais. É só quando escuto as risadinhas de Sarah que saio de meu horror.
— Desculpe. — Sorrio em meio à vergonha avassaladora. — Quer uma carona? —
Não sei por que estou perguntando; ela já está quase em casa. Meu rosto dói. Acho que
é a tensão nos músculos enquanto tentam manter meu falso sorriso.
— Não esquenta — responde ela. — Não precisa, obrigada, Tony! — Ela dá um
apertozinho rápido em meu ombro e sai andando, levando junto todos os meus sonhos
e as minhas esperanças.
Entro no carro, espumando silenciosamente.
— Tudo bem, Arch?
— Não — respondo, entre dentes.
Nenhum de nós dois fala mais nada por alguns instantes.
— Estraguei tudo? — pergunta Tony, enquanto estacionamos em frente de casa.
Tudo que consigo fazer é suspirar.
É sexta-feira à noite e estou sentado em minha escrivaninha, abatido e deprimido,
sozinho e sem Jogo para esperar ou amigos para encontrar, olhando em volta de meu
quarto: a cama, os livros, minha coleção de miniaturas. Subitamente, tudo ali parece
diferente.
Minha Toca era meu santuário, o lugar onde eu podia escapar da realidade e andar
com a cabeça erguida. Mas agora que estou com os pés no mundo real, ele parece ser o
que realmente é: uma rede de segurança. Nunca realmente encarei nada de verdade neste
quarto, apenas fantasias, imaginação e covardia. Ele parece infantil.
Tony bate na porta e coloca a cabeça dentro do quarto.
— Tudo bem, Arch?
— Sim. E você?
— Sim. Desculpe pela história de “namorada”.
Consigo sentir o cheiro de uma ideia da mamãe nisso. Acho que é a primeira vez que
Tony me pede desculpas por alguma coisa. Mas não há motivo para prolongar a
história. Nenhum dano foi realmente causado; posso negar tudo mais tarde e depois
chamá-la para sair quando estiver pronto.
— Tudo bem. Acho que reagi mal.
— O que está fazendo? Pintando?
— Na verdade, não — respondo, me levantando. — Só estava pensando em jogar
algumas coisas fora.
— Que tal irmos ao bazar amanhã?
— Ei, é... — murmuro sozinho. — Um bazar...
— Ganhar dinheiro com seu lixo...
— Não. Não é pelo dinheiro. — Mas acho que Tony me deu a resposta pela qual
eu estava procurando. O Dr. Hughes está sempre dizendo que eu devo “pedir e o
Universo vai responder”. Talvez o Universo finalmente tenha saído do telefone.
— Bem, eu tenho um monte de coisas que devíamos ter jogado fora antes da
mudança. O que me diz?
— Um bazar?
— É. Deixamos sua mãe dormindo e vamos vender algumas coisas. Um dia só de
garotos.
Esta é mais uma daquelas tentativas de ”criar laços”, mas neste momento ela se
adéqua às minhas necessidades.
— OK.
— Legal.
Tony desce como um trovão, sem dúvida indo contar a mamãe que grandes amigos
somos agora. Vou deixar que tenha seu momento de glória.
Quando começo a esvaziar a escrivaninha, colocando as miniaturas em plástico bolha
e fechando as tampas de minhas tintas pela última vez, sinto como se estivesse fazendo a
coisa certa. Serei brutal ao selecionar entre meus pertences pessoais — não posso ficar
me prendendo ao passado se quiser alcançar meu potencial interior. Miniaturas, livros
— vai tudo embora.
Estou escolhendo os livros quando percebo uma mensagem do Facebook chegando.
Meu estômago dá uma rápida cambalhota na esperança de ser Sarah. Mas é papai.
vou pra York6a q vem liga pfv urgente
Ele nem se dá ao trabalho de usar pontuação, nem sequer ponto final.
Fico encarando a tela por um momento, pensando no que responder. Eu devia
encontrá-lo, sei disso, mas neste momento não posso pensar no assunto.
EP: Faça quando achar certo para você. A decisão de ir embora foi dele. Não sua.
Demoro um pouco, mas desligo a opção “Disponível para chat”. Não recebo mais
nenhuma mensagem e finalmente desligo o laptop.
EP: Não foi tão difícil.
Gosto dessa sensação. Gosto de sentir como se valesse alguma coisa. Fortalecido
por poder tomar minhas próprias decisões, volto ao que estava fazendo e, em instantes,
estou frente a frente com uma pilha de caixas prontas para irem embora. Meu quarto
parece estranho e desconhecido, mas não me sinto assustado. O novo Archie gosta de
mudanças; esta é apenas uma tela em branco para que eu comece a pintar um novo
quadro. Se apostar minhas fichas na hora certa, posso até pintar uma Fada Sexy nela.
Mamãe bate na porta com uma xícara de chá, o rosto surpreso ao ver o que restou
de minha Toca.
— Tem certeza quanto a isso? É muita coisa para jogar fora. E suas tintas e
miniaturas? Achava que adorava fazer isso.
— É... Apenas achei que era hora de mudar. Não posso ficar sentado dentro do
quarto para sempre, posso?
— Acho que não. — Mamãe parece estar melancólica.
EP: Provavelmente neste momento há uma montagem dos melhores momentos de seu
garotinho passando em sua cabeça. Ela vai superar. Seu garotinho está se tornando um
homem.
Depois que mamãe e eu terminamos de empacotar o que resolvi vender em mais caixas,
Tony — sempre o chef criativo — pede pizzas e alguns filmes. Normalmente. eu faria
meu melhor para evitar o programa, mas queria ver um dos filmes. É claro, Tony não
consegue se segurar e, em quinze minutos, começa uma sucessão de mais de um “Opa”,
“Atrás de você!”, e “Não devia ter feito isso”, tudo gritado para a tela.
EP: Você não precisa suportar isso.
Inclino-me para a frente e olho o sofá onde Tony está sentado com mamãe.
— Tony.
— Sim, amigo.
— Se importa? — Aponto a TV. Tony reage como alguém que acabou de
compreender a teoria da Relatividade de Einstein pela primeira vez.
— Ah, tá. — Ele dá um sussurro dramático com a última palavra: — Desculpe.
Mamãe, sentindo aquela alteração na Força, se aninha perto dele. Mas não podia
durar — e não dura. Em meia hora ele já retomou seu papel como Comentarista. Só
que dessa vez, é mamãe que dá nele um tapinha no ombro com um gentil “shhh”, que
tem o efeito de uma chupeta para um bebê.
Antes de minhas recém-descobertas revelações psíquicas, eu provavelmente teria me
sentido culpado em colocar mamãe na posição de pacificadora.
EP: Por que deveria? Você também mora aqui. Ele precisa se lembrar disso.
O restante do filme passa sem interrupções, e quase consigo gostar realmente da
experiência.
EP: Viu só? Você tem poder para mudar as coisas. Só precisa dizer o que pensa.
Isso tudo é um pouco novo para mim — mas gosto da sensação de estar sendo
respeitado. Preciso continuar pensando assim; e isso vai dar algum trabalho.
Quando sobem os créditos, Tony vai buscar o outro filme.
— Quer ver esse, Arch?
— Não, obrigado. Não é a minha praia. Acho que vou dormir.
— OK. Vou acordá-lo por volta das 6h30; o bazar começa às 9 horas, mas
precisamos chegar lá cedo.
— Não se preocupe, vou colocar meu despertador.
— Boa noite, querido. — Mamãe está remexendo no que sobrou da pizza,
procurando os melhores pedaços.
— Boa noite.
Deixo os dois sozinhos, com uma estranha sensação de satisfação.
EP: Você está começando a tomar as decisões agora. Começando a alcançar seu
potencial.
Minha Toca está estranha. Com todas as caixas empilhadas, parece que estou
prestes a me mudar.
EP: Parte sua está. A parte que tem atrasado você.
Depois de apagar a luz do teto, entro debaixo do edredom fresco e bem passado e
olho minha mesinha de cabeceira. A Gárgula está ali, curvada debaixo do abajur, me
olhando furiosamente. Eu a encaro atentamente.
EP: Ele não precisa de escudos, é feito de material mais resistente que eles. E você
também.
Sou mesmo. Concluo que não preciso mais dela e a coloco numa das caixas na
beirada da minha cama. Apago a luz, mergulho a cabeça no travesseiro e tento relaxar
prestando atenção em cada parte de meu corpo, como Sarah fez quando eu estava na
casa dela. Na minha cabeça, imagino a Gárgula e foco nas qualidades que a tornam a
criatura imponente que ela é: sua força, sua atitude, sua sabedoria — todos atributos
que preciso ter. A princípio é difícil; minha mente fica pensando em outras coisas,
como em papai e Tony e, é claro, em Sarah e no beijo. Mas conforme Sarah sugeriu,
tento bloquear todo o resto de meus pensamentos, até tudo que conseguir ver sejam as
características escarpadas de meu totem.
Sem perceber, adormeço, e o Sonho começa. Estou deitado na cama e olho um dos
cantos do quarto. Os olhos vermelhos estão lá, ardendo em meio às sombras escuras.
Então, a Gárgula se desdobra e fica parada debaixo de um raio de luar que passa pela
janela do meu sótão.
Em vez do medo de sempre, sinto apenas admiração e respeito por esse monstro em
meu quarto. E, em vez da paralisia habitual, levanto da cama e paro à sua frente, nós
dois banhados na luz prateada. A Gárgula é muito mais alta que eu e seria capaz de me
esmagar com um único golpe. Mas sei por que estou aqui. Estendo uma das mãos e a
coloco sobre o peito da criatura.
E em seguida ela some.
Fico em pé na luz do luar, olhando o espaço à minha frente. Demoro um instante
para notar minha mão, como ela mudou, como a suave pele rosada tornou-se pedra
gasta e escarpada. Eu sou a Gárgula. Sinto-me poderoso.
Sinto-me como uma força da natureza. A sensação permanece quando acordo,
apesar de ficar ligeiramente desapontado por constatar ter voltado a ser de carne e osso,
deitado em minha cama. Rapidamente, acendendo minha luminária, tiro a Gárgula da
caixa e a recoloco sobre minha mesinha de cabeceira.
DEZENOVE
Cedo demais, meu alarme toca, e me arrasto para fora da cama. Acho que nunca acordei
tão cedo num sábado.
Depois dos altos e baixos de ontem, pareço ter perdido um pouco de minha
coragem. Quase consigo ouvir meu MI ao fundo, me dizendo que o Sonho foi apenas
um sonho e que estou sendo ridículo.
EP: Mas está preparado.
Sarah me disse que isso poderia acontecer. Disse que até eu abraçar totalmente meu
Eu Psíquico, vou experimentar altos e baixos em minha autoconfiança, mas é tudo parte
de minha transformação.
EP: De Nerd para algo mais significativo.
Está na hora de minhas Afirmações. Fico parado na frente do espelho segurando o
livro, sem parecer algo muito mais significativo em meus pijamas amassados.
EP: Tire isso da cabeça. Concentre-se em seu eu interior.
— Sou confiante e forte. — É estranho dizer essas coisas a mim mesmo.
“Sou apoiado pelo Universo.
“Tenho boa autoestima. — Ainda não me sinto convencido, mas estou realmente
tentando acreditar no que estou dizendo. Agora a próxima, que me dá certo arrepio
quando a repito.
“Sou digno de amor verdadeiro.
“Posso lidar com qualquer coisa que aconteça comigo hoje.”
— Cadê o cara?! — Posso ver Tony, sorrindo como um tonto através do espelho,
enfiando a cabeça dentro do quarto como algum tipo de boneco obeso. Ele faz algumas
imitações ridículas de movimentos de kung fu e ri.
EP: Ignore-o. As inseguranças dele não são problema seu.
— Sanduíche de bacon, Arch? Precisamos sair daqui a pouco.
— Não, obrigado. Vou comer fruta. — Sarah falou que preciso equilibrar meu
corpo assim como meu espírito. Vai ser uma ruptura com a tradição dos sábados de
manhã, mas vou superar isso.
Apesar de não ser fácil. O cheiro de bacon flutua escada acima enquanto me visto, e,
quando entro na cozinha, minha boca já está salivando. Tony está virando algumas fatias
na frigideira, seu cigarro-marca-registrada já pendurado nos lábios.
— Certeza que não quer um, Arch? Tem o bastante aqui.
EP: Controle seus desejos mesquinhos!
Em resposta, pego uma pera da fruteira e, com um sorriso autocongratulatório,
dou-lhe uma mordida desafiadora. Em contra-ataque, Tony coloca três tiras de bacon
numa fatia de pão, acrescenta uma porção de ketchup e completa a obra com outra fatia
de pão. Nunca antes uma pera pareceu tão sem graça.
EP: Ele está testando sua constituição psíquica. Seja forte.
Embora à primeira vista isso pareça com duas pessoas apenas comendo seus
respectivos cafés da manhã, minha nova percepção me permite entender que é mais que
isso. O que está acontecendo por baixo dessa cena aparentemente doméstica tem mais a
ver com a primeira batalha entre Darth Vader e Luke Skywalker — Tony dá uma
mordida e suspira de satisfação; eu mastigo e tento parecer convencido. Cada mordida é
um golpe; cada grunhido de prazer é como aquele raio azul que o Imperador lançava de
seus dedos. E Tony respira um pouco como Darth Vader também — de tanto fumar e
tudo mais.
Depois de nosso duelo gastronômico, levamos as coisas para o carro e partimos em
direção ao clube de rúgbi local, onde está acontecendo o bazar. Passamos pela casa de
Sarah, ainda sem sinal de vida. É um trajeto de apenas dez minutos, mas Tony parece
pensar que aquilo pedia mais um cigarro. Em segundos, o carro está repleto de uma
asfixiante fumaça azul.
EP: Você não é obrigado a tolerar isso.
Abro a janela do meu lado, mas aquilo só faz entrar uma corrente de ar que
empurra a fumaça ainda mais para dentro de meu nariz.
EP: Você pode aceitar o desafio ou se encolher diante dele!
— Tony — começo —, poderia, por favor, apagar isso ou abrir sua janela?
Aquilo parece irritá-lo, considerando que ele abaixa a janela em silêncio. Tirando
tossir violentamente, nunca realmente comentei sobre seu vício em nicotina, então
parece meio estranho, mas encorajado por minha nova força interior, resolvo ir um
pouco mais longe.
— Devia parar de fumar.
— Eu sei, eu sei. Um dia. — Suas palavras têm a ressonância vazia de um viciado.
EP: Não o deixe se safar dessa.
— Quando?
— Quando o quê?
— Quando vai parar de fumar?
— Eu não sei, Arch. — Sua resposta é curta e grossa. — Quando me sentir
pronto, OK?
EP: Não é bom o bastante.
— Quando vai se sentir pronto?
— Maldição, eu não sei! Não hoje!
A melhor coisa a se fazer nesse caso é deixar para lá, mas meu EP pensa diferente.
EP: Não é bom o bastante. Insista.
— Por que não? É fácil. Você só precisa entrar em contato com sua força interior e
então pode fazer qualquer coisa. Fumar é apenas um sintoma de sua desarmonia
psíquica.
Tony me olha como se eu tivesse uma cabeça a mais de repente, e passamos o resto
da viagem em silêncio.
Chegamos ao clube de rúgbi e encontramos nossa vaga. É cedo, mas diversos carros
já estão estacionados, e os caçadores de barganhas mais experientes já estão de olho nas
mesas improvisadas conforme elas começam a se encher. É um pouco enervante; Tony
desiste de uma potencial venda de um quadro dois minutos depois de chegar ao bazar, e
o cliente vai embora, olhando-o de cara feia.
— Puxa — balbucia ele —, dê um tempo.
Terminamos de montar a mesa e de tirar nossas coisas das caixas. Fico com uma
metade, Tony com outra. Enquanto ele simplesmente joga suas coisas na sua parte,
pacientemente organizo minhas miniaturas, meus livros e meus CDs de um jeito que,
acredito, os exiba da melhor maneira.
EP: Olhe só isso. Esta é uma manifestação física das diferenças entre vocês. Ele é
bagunceiro e não tem foco. Você é direto e organizado. Está aprendendo.
Apesar de minha organização, Tony faz cinco vendas na primeira hora e alegremente
sacode os bolsos cheios de moedas e notas. É mais um confronto não declarado; posso
ouvir os sabres de luz zumbindo novamente. Ele até mesmo saca mais um cigarro com
uma calma meio Jedi.
Enquanto Tony entra em algum tipo de discussão com um grupo tentando
barganhar, fico analisando um de meus livros de regras, maravilhado com o quanto
mudei em tão pouco tempo. Um dia, aquelas páginas teriam sido capazes de fazer minha
mente delirar com imagens de todo tipo de fantasia infantil: monstros, heróis e feitiços
mágicos. Agora, eu os vejo pelo que são: uma armadilha para os de mente fraca. Preciso
começar a ler jornais.
— Archie! O que está fazendo?
Levanto o olhar e vejo Ravi, parado na frente da mesa.
— Oi, Ravi. — OK, isso é meio esquisito; já devia ter havido um pedido de
desculpas a essa altura. Vindo de mim. — Só estou vendendo umas coisas. — Vejo os
pais dele em outra barraca, um pouco mais distante.
— Só vendendo umas coisas? Mas suas miniaturas, seus jogos... Está maluco?
EP: Mais um que precisa ser iluminado.
Isso vai ser difícil; Ravi está me olhando como se eu tivesse acabado de anunciar que
ia competir no The X Factor.
— Não é grande coisa, Ravi. Só estou evoluindo, só isso.
— Evoluindo? Do que está falando?
Isso é estranho demais. Ravi é um de meus melhores amigos. Durante nossos anos
de amizade, enfrentamos demônios, saqueamos templos e derrotamos bruxos maléficos.
No mundo real, conversamos sobre os Amplos Atributos de Kirsty Ford, confessamos
nossa Nerdice mútua, e, em geral, protegemos um ao outro.
EP: Mas o que ele realmente sabe sobre você?
Precisei pensar um pouco na resposta; nunca realmente contei a ele como me sentia
em relação a nada. É claro, ele sabia quando meus pais estavam se separando, mas nunca
falei de verdade sobre aquilo. Não contei a ele sobre Sarah. Não é que não confie nele, é
só que garotos não fazem essas coisas. Fazem?
EP: Olhe com mais atenção. Ele é um reflexo do que você foi um dia...
Ravi é um nerd. Como Matt e Beggsy, é um nerd altamente qualificado. De sua
jaqueta pequena demais até seus tênis surrados. Do que ele usa ao que lê e ao que
assiste. E estou mudando. Não quero mais ser aquilo.
— Apenas está na hora... — As palavras não saem com facilidade.
— Mas por quê? E quanto ao Jogo? E quando às Noites de Jogo? O Casebre? Não
gosta mais de lá?
EP: Mostre a ele como está evoluindo.
— Mas para que serve isso tudo, Ravi? O que isso tudo faz? É legal, é um jogo, mas
por que o jogamos? Devíamos estar por aí, sendo o que podemos ser, mas de verdade!
— Por aí onde?
— Aí!
— Onde? Onde fica isso?
EP: Não se deixe distrair por detalhes!
— Qualquer lugar! Só não em nossos quartos, jogando dados e pintando
homenzinhos!
— Por que não?
— Não sei, é só... bem... é bobo!
Esse é um golpe baixo, mas meu EP me avisara que também era certeiro. Todos os
nerds têm uma terrível e secreta suspeita de que sua distração preferida seja “boba”. É
uma palavra que diminui tudo que o Jogo representa e diz que ele é patético e infantil.
Como nerds, sabemos disso; só não gostamos de falar no assunto. Vejo a pequena
bolha de Ravi começando a murchar diante do peso da Terrível Verdade. Não há como
contestar a palavra “bobo”, e Ravi simplesmente fica parado, parecendo bobo. Sinto-me
péssimo.
EP: Não sinta culpa. Você escolheu seu caminho. Ele escolheu o dele.
— A próxima sessão ia ser na minha casa. — Sua voz é melancólica e distante.
— Nunca vão conhecer garotas desse jeito.
Com isso, Ravi dá um passo para trás com incerteza e olha para mim como se
tivesse um raio de sol batendo em seus olhos.
EP: Ele pode ver que você está mudando. Ele sente seu poder.
— Cara — murmura Ravi, sacudindo a cabeça. — Acho que devo então avisar aos
caras.
— É.
— OK, então.
— OK.
Enquanto Ravi é engolido pela crescente multidão de compradores, tento entender
como estou me sentindo com aquilo tudo. Sei que é o fim de alguma coisa — não
apenas o fim das sessões. Meu MI fica batendo na porta dos fundos de meu cérebro,
mas estou tentando escutar meu EP agora. Ele me diz que fiz a coisa certa.
EP: O Caminho para a Iluminação pode ser solitário, e você não pode escolher quem
vai percorrê-lo com você. Nem quem não vai.
Um garotinho está segurando meu Dragão de Fogo e fingindo fazê-lo voar. Sinto
uma pontada de raiva com a falta de admiração que ele parece ter por um de meus
melhores trabalhos. Um homem, que presumo ser seu pai, se aproxima, tira o dragão
dele e o enfia debaixo de meu nariz.
— Quanto custa isso?
“Isso” me custou umas cinco libras e longas horas de concentração e precisão com
um pincel. Parte de mim não quer deixá-lo ir embora.
— Três libras? — arrisco.
— Dou uma libra por ele. — O dinheiro está na minha mão, e o pai e sua cria já
estão longe antes que eu possa concordar ou não.
EP: Precisa se desprender do passado. Existe apenas o “agora”.
— Primeira venda do dia! — Tony tem um talento único para apontar o óbvio. —
Você paga a primeira rodada hoje!
Meu ME esboça um sorriso que faria um cacto secar, mas Tony está preocupado
demais vendendo um pote de cerâmica para notar.
Em cerca de duas horas, a maior parte de minha vida nerd foi vendida —
principalmente para pessoas que não sabem realmente para que tudo aquilo serve. Cada
venda foi como um pequeno ferimento, mas tento me reconfortar com a ideia de que
Sarah provavelmente estava apenas sendo gentil quando declarou ter gostado do Jogo;
ela não merece realmente sair com um Nerd, e essa é minha chance de ter um novo
começo. Quero tornar-me digno dela.
— Quer uma xícara? — pergunta Tony, em meio a uma nova nuvem de fumaça. —
Acho que vi uma barraquinha de chá por ali.
— Vou tomar uma água, obrigado.
— OK. Ficará bem aqui sozinho por um minuto?
— Acho que posso aguentar.
Tony ri de um jeito condescendente e corre em busca de nossas bebidas. Há uma
calmaria na multidão, então tiro alguns minutos para olhar em volta; talvez Sarah esteja
aqui. Mas pensando bem, por que estaria? Esse não é o tipo de lugar onde acho que ela
passaria seu tempo. Mais provavelmente está pintando em seu quarto ou se alinhando
ao Universo. Talvez esteja pensando em mim. Queria poder ligar para ela, só para dizer
que estou realmente trabalhando nessa coisa de Eu Psíquico.
EP: Você tem dinheiro. Você mereceu. Pode resolver o que fazer com ele. É seu
próprio mestre agora.
Podia comprar um celular! Assim posso ligar para Sarah quando bem entender.
Talvez essa história psíquica realmente funcione!
Quando começo a contar os trocados em meu bolso, uma voz me tira de meu
transe.
— Olá, filho. O que está fazendo aqui?
Segue-se um silêncio demorado e desconfortável. Sei qual é a regra para isso: se
quebrá-lo, você perde.
— Estou com uma barraca lá atrás; livrando-me de algumas coisas antes da
mudança — continua papai.
Não respondo.
— Enviei algumas mensagens no Facebook. — Apesar de papai tecnicamente ter
perdido, também parece que não ganhei nenhum tipo de prêmio. O antigo Archie
rapidamente estaria procurando desculpas e meias-verdades em sua coleção mental de
mentiras para controlar a situação.
EP: Mentiras diminuem você. Elas corrompem seu alinhamento psíquico.
— Eu vi.
— OK. — Posso ouvir a frustração que ele tenta esconder. — Quando estava
pensando em me responder? Estou com um limite de tempo, Archie. Vou embora fim
de semana que vem.
— Eu não havia decidido.
— Não havia decidido? O que está havendo aqui, Archie? Isso é importante. Estou
me mudando; quero passar algum tempo com você antes de ir.
Minha cabeça está vazia. No espaço de dois minutos, pareço ter alcançado um
estado que monges budistas demoram uma vida inteira de meditação para obter. Estou
vazio. Papai suspira e repensa sua estratégia.
— Olha... Entendo que possa estar chateado...
Meu EP autoriza um ataque direto.
EP: Agora é a hora de encarar seus medos!
— Chateado? — Recuo como se tivesse sido atingido. Isso parece dar a meus
braços mais espaço para se agitarem. — O que entende sobre isso? Você não sabe o que
estou sentindo! Não sabe o que estou pensando!
— Filho...
— Não me venha com “filho”! Isso não é problema seu, é? É meu! — Apesar do
volume que estou alcançando, sinto-me estranhamente calmo e, pela primeira vez,
completamente certo. — Você tem sua nova família! Que bom para você! Vá com ela;
não estou nem aí!
— Archie! — sibila papai, ciente dos urubus cercando a mesa em busca de uma
barganha. — Não é nada disso...
— Não é? Para mim é o que parece!
— Archie! — Ele se aproxima e aperta meu ombro com uma das mãos, como se
estivesse tentando evitar que eu lançasse a mim mesmo para o espaço. — Sou seu pai,
pelo amor de Deus! Você é meu filho!
— Ei! O que está havendo aqui?
Como se para criar uma fila indiana de conflitos, Tony apareceu atrás de meu pai e
colocou uma de suas mãos em seu ombro. Considerando que ele também está
segurando uma xícara de chá, uma garrafa de água e dois cachorros-quentes, aquilo não
era uma façanha qualquer. Também é um Grande Erro. Papai se vira, usando o que
chamo de “A Cara”. A Cara é quando os traços de meu pai parecem se solidificar e
adquirir a aparência de uma tumba. Ela está firmemente presente agora.
— E quem é você? — Papai não é um cara grande, mas o que lhe falta em estatura
ele compensa em atitude.
— Vamos todos apenas nos acalmar, certo? — Tony começa a colocar suas
compras sobre a mesa. Apesar de eles nunca terem se encontrado, Tony já havia visto
fotos de meu pai. E acho que papai acaba de perceber quem Tony é.
— Por que apenas não dá o fora? Estou falando com o meu filho!
EP: A verdade é libertadora.
— Por que vocês dois não dão o fora? — berro, eufórico pela força que está agora a
meu dispor. — Vocês me ouviram! Vocês dois! Deem o fora! — Em seguida, dou um
chute na perna da mesa que a derruba sobre as pernas de meu pai. Ele tropeça para trás
e puxa Tony, que grita quando o chá quente cai sobre sua camisa.
— Archie! — implora papai, tentando se desvencilhar do abraço ensopado de
Tony.
Mas não ligo para quem esteja me chamando; já estou correndo, repetindo A
verdade é libertadora em minha cabeça. Era uma frase de Somos todos nossas almas e, no
momento, é a única coisa no mundo que faz sentido. Desvio e corto caminho entre os
carros estacionados e não paro de correr, sem me importar onde vou parar.
Preciso ver Sarah.
VINTE
Ao chegar à cidade, minhas pernas finalmente se cansam. Comprar um telefone parece
uma ideia realmente boa; posso ligar para Sarah e combinar de encontrá-la em algum
lugar, em vez de ir até sua casa. Eu simplesmente não aguentaria mais uma viagem para
dentro da blusa de sua mãe hoje.
Desabo em um dos bancos debaixo da torre do relógio e fico sentado, ofegante. Por
um momento, apenas observo as pessoas cuidando de suas vidas: fazendo as compras da
manhã de domingo, casais passeando. Tudo tem certo ar de sonho, como se eu não
estivesse ali de verdade, e sim observando de outro lugar.
EP: Isso faz parte de sua transformação psíquica.
Parágrafos do livro de Sarah me vêm à cabeça, mas estão incompletos; não me
lembro de como deveria estar me sentindo agora, então acho que vou improvisar. “Sua
vida pode mudar de novas e poderosas maneiras”. Disso me lembro e, até agora, nesta
manhã, posso confirmar os seguintes itens:
Quarto eviscerado — OK.
Amigo chateado — OK.
Padrasto chateado — OK.
Pai chateado — OK.
Derrubar com um chute a mesa expositora como bônus — OK.
Mas ainda não me sinto particularmente feliz. Não sinto nada particularmente.
EP: Para alcançar a felicidade, precisa antes desfazer os nós de sua vida.
O problema é que minha vida parece ter mais nós que uma corda de escoteiros. Mas
estou determinado a resolver isso. Conto o dinheiro em meu bolso e descubro que a
soma de minha vida nerd é de 27 libras e 65 centavos; todas aquelas horas pintando e
me concentrando não me renderam nem trinta contos. Ainda assim, é melhor que uma
injeção na testa. Minhas pernas, subitamente cansadas, me levam até a loja de telefones
mais próxima.
Infelizmente, minhas habilidades psíquicas não parecem fazer muito efeito no
vendedor da loja, que não percebe exatamente a urgência da minha situação. Considero
abanar meus dedos e persuadi-lo usando a voz de Obi-Wan Kenobi, mas penso melhor.
EP: Ele não é evoluído. Sua insatisfação com o emprego reflete a insatisfação consigo
mesmo.
— Tem identidade?
Minha dignidade psíquica tropeça por um segundo; não sabia que era preciso
apresentar identidade para comprar um celular pré-pago. Infelizmente, a única coisa na
minha carteira com meu nome e endereço é um cartão de sócio da Associação de Jovens
Jogadores de RPG.
Dez agonizantes minutos mais tarde, sou o orgulhoso dono de um novo celular,
com direito a dez libras em crédito. O número de Sarah já está gravado em minha
memória. Posso visualizá-lo, olhando de volta para mim do bloquinho ao lado do
aparelho de telefone de minha casa. Quando estou prestes a ligar, escuto vozes me
chamando. Por um momento, me pergunto se estou tão psiquicamente sintonizado que
possa estar tendo minha primeira experiência com telepatia, mas não é isso. Na minha
frente estão Matt, Ravi e Beggsy, parados do lado de fora do Casebre. Têm expressões
no rosto que sugerem desconfiança e suspeita — o que já era de se esperar, é verdade;
quando um nerd deixa o grupo, os nerds remanescentes fecham as portas. Conforme
ando na direção deles, eles andam na minha. A única coisa que falta é o barulho das
esporas.
É um duelo. Estilo nerd.
As coisas podem ficar feias.
— Cara! O que está havendo, cara?
— Nada. Só estou passeando pela cidade.
Estamos agora entrando num tipo de Jenga conversacional; o menor gesto em falso
pode fazer a coisa toda desmoronar.
— Mas, cara. Que história é esse de você sair do Jogo?
EP: Seja forte. Seja verdadeiro.
— É, estou saindo. E daí? — Tento fazer isso soar o mais natural possível.
EP: É o mundo deles desmoronando. Não o seu.
— Não falei? — murmura Ravi.
Até agora, Matt não falou nada; é com ele que preciso ter cuidado. Obviamente é o
melhor atirador do grupo. Faz sentido — de todos os meus amigos, Matt
provavelmente é o mais próximo de mim; no passado, ambos já reconhecemos os
problemas que vêm com sermos Nerds. Admitindo aquilo um para o outro, também
admitimos silenciosamente que existia vida além do Jogo — uma vida onde poderíamos
nos encaixar e simplesmente nos tornar parte de um todo.
EP: Talvez você possa usar esse conhecimento como uma vantagem. Talvez ele possa
ser convencido a se juntar a você em sua busca.
— Então qual é o problema? — Dou de ombros. — Não é como se vocês não
pudessem continuar sem mim.
— Cara! O Jogo é o Jogo, cara! — Uma das frases favoritas de Beggsy, criada para
ser uma declaração que se adapta a qualquer argumento. Não dessa vez.
— Mas é só isso que ele é, Beggsy. Um jogo. Não é real, é?
— Dã! — Mais uma das frases favoritas de Beggsy.
— A gente sabe que não é real, Archie. — Matt enfim fala alguma coisa. — Não é
essa a questão. O que estamos realmente perguntando é por que você resolveu desistir
do nada. — Seu rosto está sério e impassível, mas seus olhos ardem com uma
intensidade que diz tudo.
EP: Estão com medo. Com medo da verdade.
Respiro fundo.
— Olha, estou saindo do Jogo porque finalmente percebi que não quero ficar
sentado em meu quarto toda noite, pintando miniaturas ou brincando de faz-de-conta
toda sexta-feira.
— Por que não? — Matt parece estar sinceramente tentando me compreender,
então continuo.
— Porque isso não resulta em nada! Somos como avestruzes, enfiando nossas
cabeças na areia, evitando a vida, mas fingindo que não! Não estamos realizando nada;
estamos só na mesmice!
— Eu discordo. — Um tiro curto e certeiro, que me desarma rapidamente.
— O quê?
— Acho que está errado.
Meu EP, aparentemente não familiarizado em escutar que está errado, agora tem
uma pequena crise psíquica. Parece que será preciso voar às cegas por um momento.
— OK, Matt — respondo assentindo com a cabeça, usando a velha tática “Estou
dizendo seu nome para que saiba o quão sério estou falando”. — Então o que ele é? O
que estamos fazendo quando jogamos aquelas partidas tão transformadoras de vidas?
Diga-me.
— Criamos coisas, Archie. Criamos coisas do nada. Somos como alquimistas. —
Matt obviamente tem praticado suas habilidades de tiro.
EP: Não lhe dê atenção. Está tentando desequilibrar seu alinhamento psíquico.
— Alquimistas? Do que está falando? Somos pessoas que não se encaixam nem têm
esperanças de se encaixar enquanto estiverem trancadas em seus quartos, brincando com
o Jogo! Devíamos estar aqui fora... Correndo riscos! — Acho que disparei um dos
bons, mas Matt fica apenas parado, piscando.
— E se encaixar é correr um risco, então? — Quase sinto as balas voando rente a
meus ouvidos. Minha própria mira incisiva parece estar meio ruim.
EP: O argumento dele é baseado em medo. Ele não está realmente sintonizado consigo
mesmo.
— Você sabe o que eu quis dizer! O que vocês vão fazer? Passar o resto da vida nos
seus quartos, brincando com miniaturas?
— Provavelmente, não. Mas não preciso me encaixar para ser feliz.
EP: Mostre a ele seus próprios medos. Veja o quanto ele é forte.
— Você é feliz sendo um Nerd? — Falei a temida palavra com “N”, aquela que não
deve nunca ser pronunciada. É como dizer “Voldemort” ou “Sauron”. Meus sentidos
em desenvolvimento detectam uma mudança na atmosfera, como se uma nuvem negra
pairasse acima do grupo. Mesmo diante daquilo, Matt parece inabalado pela acusação.
Ele balança um pouco o corpo, pensando no que acabara de ser dito. Ravi e Beggsy
olham seu líder, com as mesmas expressões nerds.
— Para mim, Archie — começa ele —, todo mundo é algum tipo de Nerd.
Futebol, filmes, música... Não importa qual é o interesse; se você sente fascínio por ele,
então você é um nerd. Simples assim.
Meu EP vacila. Será que Matt tem razão? Como se sentindo minha hesitação, ele
continua:
— Na verdade, as pessoas consideradas as melhores no que fazem são Nerds.
Cientistas, atletas, atores, músicos, os melhores deles são SuperNerds; transformaram
sua obsessão em carreiras, fazendo o que mais amam. O que há de errado nisso?
Meu EP não tem mais munição, a não ser crueldade. Por mais que isso vá contra
toda a teoria do alinhamento psíquico, me tira de um impasse muito rápido.
— E o que você vai ser? O maior perdedor do mundo?
Matt sorri, porém com tristeza.
— Vejo você por aí, Archie. — Em seguida, ele se vira e anda de volta até o
Casebre, com Ravi e Beggsy atrás.
EP: Observe como ele ruiu frente à verdade!
Mas tudo que vejo são três garotos, que costumavam ser meus amigos, indo embora
para fazer algo que amam.
...Deixe uma mensagem após o sinal e ligaremos de volta assim que pudermos. Bip!
— Er... Oi, Sarah... É o Archie... Podia me ligar de volta nesse número...?
Depois de deixar meu número novo, bravamente desligo.
Essa história de transformação psíquica está ficando difícil de lidar. Tudo o que
pareço estar fazendo é criar uma confusão ainda maior do que aquela em que eu estava
em primeiro lugar.
EP: Não hesite face ao caminho da Gárgula.
Pela falta de qualquer coisa que pareça um pensamento inteligente, começo a
perambular na direção da casa de Sarah. Talvez seja assim que se sente uma Gárgula:
sem amigos e sozinho. Talvez seja isso que você receba por suas afirmações e
meditações. Talvez eu seja mesmo uma Gárgula.
Com essa imagem em mente, arrasto-me pela calçada, sentindo cada vez mais como
se fosse feito de pedra. Sinto-me feio e desolado. A única esperança que tenho é Sarah.
Viro em sua rua e paro na frente de sua casa. O gato preto e branco aparece e dá voltas
ao redor de meus tornozelos, mas não faço carinho nele. Aslan é um péssimo nome de
qualquer maneira.
Pelo efeito que faz, a aldrava podia ser feita de massinha. Sarah não está em casa.
Talvez eu devesse meditar e tentar convocá-la, usando minhas habilidades psíquicas?
Até mesmo meu EP tem a dignidade de não responder àquilo. Uma sensação
desagradável está borbulhando dentro de mim, e me sento no chão com as costas contra
a cerca viva de Sarah, tentando entender o que é. Por algum motivo, parece que estou
tentando usar um chapéu que não cabe na minha cabeça. Antes de essa linha de
raciocínio ter chance de continuar, um carro freia subitamente diante de mim.
É meu pai. Lá vamos nós de novo.
Mas em vez da Cara esperada, papai parece afobado e desce o vidro do carona.
— Archie! Entre no carro!
Aconteceu alguma coisa.
— O que foi?
— É o Tony... Ele está no hospital.
VINTE E UM
O medo é um maravilhoso foco para uma mente desordenada, e, nesse momento, estou
mais nervoso que um gato numa sala cheia de cadeiras de balanço. O cheiro de
purificador de ar dentro do carro de meu pai ameaça me asfixiar.
— O que aconteceu? — pergunto, numa voz que não parece ser a minha.
O rosto de meu pai está sério e tenso, mas ele está tentando não demonstrar.
— Não sei. Depois de você... ir embora... ele simplesmente meio que ficou branco e
desmaiou. Chamei uma ambulância, liguei para sua mãe e esperei com ele até chegarem.
Ela está no hospital agora.
— Meu Deus.
— É, eu sei.
— Como sabia onde me encontrar?
— Eu não sabia. Estava a caminho da sua casa para ver se tinha voltado para lá. O
que estava fazendo no chão? De quem é essa casa?
— Só estava esperando alguém que não estava em casa. — Evito citar o gênero desse
alguém para afastar mais perguntas.
Seguimos em silêncio por alguns minutos. Não sei o que está se passando pela
cabeça de papai, mas sei o que está se passando pela minha: tudo isso é culpa minha. Se
eu não tivesse perdido as estribeiras, se não tivesse saído correndo, se não tivesse sido
um tremendo babaca — nada disso teria acontecido.
Papai sente alguma coisa em meu silêncio e para o carro.
— Você está bem, Arch?
— Não sei.
— Sei o que está pensando, e não é verdade. Se era para acontecer, ia acontecer.
Não quero ser cruel, mas ele não parece se cuidar. — Papai não está dizendo
exatamente o que aconteceu com Tony, mas não é preciso chamar o Dr. McCoy para
entender.
— Não... não, ele não se cuida.
— Ele ficará bem, tenho certeza disso. Mas e quanto a você? O que está
acontecendo?
Este é um território estranho para mim; eu e meu pai não conversamos sobre coisas
realmente importantes, e não faço ideia de como reagir. Adoraria poder dizer algo
significativo e profundo, provavelmente com um toque místico no meio, mas meu EP
parece ter feito as malas e ido embora. E não posso dizer que sinta muito por isso. No
entanto, tem uma voz na minha cabeça e por mais que ela seja muito, muito familiar e
muito, muito bem-vinda, parece ter mudado um pouco.
MI: Apenas diga a ele como se sente.
Ela parece ter crescido um pouco. Respiro fundo e não me dou ao trabalho de
relaxar meu traseiro.
— Acho que tenho andado com raiva, pai.
MI: Nada mal. Meio vago. Mas é um começo.
— Por eu estar me mudando?
— É.
Papai se remexe em seu banco, e, com a minha visão periférica, posso vê-lo se
inclinando, tentando olhar nos meus olhos. Quando me viro para olhá-lo, está
sorrindo, mas é um daqueles sorrisos que as pessoas dão quando estão tentando
segurar as lágrimas.
— Sinto muito, filho — diz ele, numa voz embargada. — Foi uma decisão
extremamente difícil. Foi mesmo. E pensei em você a cada momento.
— Não pareceu que pensou.
— Não, suponho que não tenha parecido. Devia ter falado com você desde o
começo, mas não queria preocupá-lo; eu não sabia se ia acontecer ou não. Mas devia ter
contado. Sinto muito.
MI: Sua vez.
— É. Eu também. Só me senti meio... de lado, acho. — Ele coloca uma das mãos
em meu ombro, mas dessa vez gentil e sinceramente, assim como a expressão em seus
olhos.
— Sinto tanto, Archie. Me desculpe. — Ele respira fundo e tira lá de dentro algo
que havia escondido. — Você é meu filho, Archie. Ninguém mais. Por mais que eu ame
Jane e me preocupe com seus filhos, você é meu filho, e ninguém pode mudar isso.
Ninguém. Estarei aqui sempre que precisar de mim e farei tudo que for humanamente
possível para tornar sua vida boa. Sei que sou um pé no saco e que nem sempre digo a
coisa certa, mas sou seu pai e o amo mais do que jamais poderia imaginar. — Uma
lágrima está descendo pela sua bochecha.
MI: Hora de dar uma trégua a ele.
— Mas ainda vou ver você?
Papai responde com um ruído que é uma mistura de alívio e dor, mas o sorriso que
o acompanha é cheio de esperança.
— É claro que vai! Meu Deus! Com o dinheiro que vou ganhar, podemos tirar férias
juntos, vou comprar passagens de trem! Terei uma casa maior, você poderá ter seu
próprio quarto. Estará dirigindo em três anos, Archie, vamos dar um jeito!
— OK.
MI: Entra a orquestra...
É difícil se abraçar quando se está sentado na frente de um carro, mas damos um
jeito.
— Certo, então! — Papai seca seu olho da maneira que os homens fazem quando
não querem admitir que estiveram chorando. — Está bem? Ótimo. Vamos até o
hospital, sua mãe precisa de você agora.
MI: E Tony também.
VINTE E DOIS
Não gosto de hospitais. Eles me dão medo. Nem mesmo das alas infantis; por mais que
tentem torná-las acolhedoras com imitações pobres de personagens de desenho
animado pintadas nas paredes, elas não escondem o fedor da ansiedade e de bolo de
carne. Não me leve a mal, eu gosto de bolo de carne, mas uma porção de picadinho e
purê de batata parece ter um cheiro diferente quando se está no conforto de sua própria
casa.
MI: Especialmente sem uma versão mutante do Mickey Mouse te observando.
Não existem tais monstros pintados nos corredores que levavam à enfermaria
cardíaca — o que provavelmente é uma coisa boa, considerando o estado da maioria dos
pacientes que não param de passar por nós.
Papai e eu andamos em silêncio, seguindo um conjunto de linhas amarelas no chão
até nosso destino.
MI: Não parece exatamente a Cidade das Esmeraldas.
E não parece exatamente uma boa hora para piadas. Chegamos a uma pequena sala
de espera com uma recepção movimentada, e nos dizem para esperar; ainda não
podemos ver Tony — não somos da família, e estão “cuidando dele”. Aquela única frase
inflama um medo dentro de mim que eu não sabia existir.
— O que isso quer dizer, pai? Ele vai morrer? — Não consigo evitar. Tony pode
ser um Imbecil, mas subitamente não quero perdê-lo. Seja pela culpa de poder ter sido
o responsável por aquilo ou por finalmente perceber que ele faz mamãe feliz, eu não sei.
Talvez as duas coisas. Ou talvez porque, debaixo de todas aquelas Conversas Imbecis, eu
saiba que ele também se importa comigo.
— Vamos nos sentar — sussurra papai, colocando um dos braços à minha volta.
— Você está aqui; é tudo que pode fazer agora.
MI: Aguente firme, Tony, seu... Imbecil.
Meia hora depois, já li todas as colunas de conselhos de revistas femininas e começo
a contar quantas lâmpadas tem o corredor atrás de nós.
MI: Aí está sua iluminação psíquica!
De repente, escutamos um barulho que parece ser um monitor cardíaco
enlouquecido. Papai e eu olhamos à nossa volta, assim como as enfermeiras da recepção.
MI: É o seu telefone!
Rapidamente, remexo em meus bolsos até encontrá-lo. Há um número na tela que
demoro um pouco para registrar, mas também há uma enfermeira atrás de mim em
segundos, mandando firmemente que eu desligue o telefone, por favor. Com meu ME
voltando à ativa e enviando cada glóbulo vermelho para minhas bochechas, procuro pelo
botão que poderia dar um fim àquele barulho o mais depressa possível.
MI: Só vamos torcer para que não tenha feito o mesmo por algum dos pacientes...
Sorrio, me desculpando para todos me encarando, e afundo o máximo possível em
minha cadeira. Papai se inclina para mim, cochichando daquele jeito que achamos que
devemos fazer quando se está num hospital, apesar do fato de se ouvirem os típicos
bipes, gemidos e o eco de saltos altos de enfermeiras por toda parte.
— Achei que não tinha celular. — Existe uma acusação escondida ali, em algum
lugar.
— E não tinha. Acabei de comprá-lo.
— Ah. Certo. — Segue-se um silêncio, durante o qual ele resolve mudar de tática.
— Quem ligou? Alguém que eu conheça? — Apesar de ele estar sussurrando, posso
ouvir os tons denunciadores de alguém tentando obter informações.
— Na verdade, não...
MI: Vá em frente... Construa essa ponte!
— Era a garota que foi lá em casa no outro dia. Na noite do Jogo.
— Ah! Espera aí... tipo uma namorada? — Ele diz aquilo com aprovação. Aqui
meu ME assume uma postura inesperada e revela minha irritação por ser colocado
debaixo de um microscópio mais uma vez; eu suspiro e reviro os olhos. Papai entende o
recado.
— Não quer falar sobre isso né?
MI: Não brinca, Sherlock!
— Na verdade, não.
— É justo. Mas espero que você tenha mais sorte do que eu...
— O que quer dizer? — Se ele está falando de mamãe naquela nebulosa declaração,
dessa vez vou partir para a briga.
MI: *Arregaçando as mangas*
— O quê? Oh, Deus, não... Não quis dizer sua mãe! Não, me desculpe... Só quis
dizer em geral. Sempre fui sem jeito com garotas.
Meu MI e eu pensamos a mesma coisa ao mesmo tempo, então o que vem a seguir
simplesmente sai sem eu pensar:
— Deve ser mal de família. — Sorrio pesarosamente.
— Mal assim é? Bem, o que vale a pena é apenas ser você mesmo. É o único
conselho que posso dar.
MI: Pode ser que valha a pena escutá-lo.
Antes que eu possa responder, a porta da enfermaria abre, e mamãe sai de lá. Parece
cansada, envelhecida e como se seus dutos lacrimais tivessem feito hora extra. Papai se
levanta desajeitadamente e, em seguida, recua alguns passos, dando um pouco de espaço
para mamãe e eu. Ela meio que corre até mim e me abraça; um daqueles abraços que
revelam que a outra pessoa está precisando mais dele do que você. Retribuo o abraço e
deixo que ela decida quando tiver sido o bastante.
— Archie — funga mamãe —, o que está acontecendo? Onde você estava?
— Como está Tony? Ele vai ficar bem?
Mamãe parece se lembrar de que a sala de espera da enfermaria não é exatamente o
melhor lugar para interrogar seu filho e se recompõe.
— Sim, acabei de conversar com os médicos, e eles acham que Tony ficará bem. Foi
um alerta. Acho que ele não vai mais fumar depois que sair daqui.
— Posso vê-lo?
— Agora não. Ele está muito cansado. Vou voltar mais tarde, mas acho que seria
melhor você só vê-lo amanhã.
— Não posso nem entrar por dois minutinhos?
— Não, Archie. É melhor não.
MI: Isso não é sobre você. É sobre Tony. Suas desculpas vão esperar até ele estar pronto
para ouvi-las.
— OK.
Mamãe olha atrás de mim e vê papai. Ela sorri torto e, em seguida, me olha de volta.
— O que aconteceu, Archie?
— Acho que posso ajudar nessa parte. — Papai dá um passo à frente, mas ainda
fica a uma distância cautelosa de mamãe. — Não é melhor tomarmos antes uma xícara
de chá?
Uma lanchonete de hospital não era exatamente o que eu tinha em mente quando
fantasiava sobre uma reunião familiar. Papai vai buscar os chás enquanto mamãe e eu
nos sentamos nos bancos da cafeteria com vista para a lojinha do hospital.
— Está bem, mamãe? — O peso da situação parece tê-la deixado abatida, de modo
que até mesmo seu sorriso parece exigir mais esforço que o habitual.
— Sim. Melhor agora. Uma xícara de chá vai me ajudar. — Seus olhos param em
papai na fila; cheios de tristeza e antigas lembranças. — O que aconteceu, Archie?
MI: E agora é hora de mais um desafio conversacional do dia...
Sei o quanto está em jogo aqui, então tento agir com cuidado, dando uma descrição
simplificada do bazar. Meu ME tenta acobertar qualquer omissão gritante, mas o
Polígrafo Humano não está engolindo.
— E a parte sobre a qual não está me contando?
MI: Ops.
— Papai vai se mudar para York sexta-feira que vem.
— O quê?! — Essa não era exatamente a reação que eu estava esperando. Na terra
dos sonhos, mamãe subitamente perceberia que não podia viver sem ele, e papai
provavelmente a olharia e resolveria reconquistá-la. Em vez disso, o olhar que mamãe
lança à fila é o equivalente ocular a um golpe de caratê. Como se guiado por algum Deus
travesso, papai perambula lentamente até nós, carregando uma bandeja e com uma
expressão no rosto como a que se vê num manequim de loja.
— Chá? — Ele sabe que aconteceu alguma coisa, mas parece achar que uma xícara de
chá de alguma maneira vai resolver tudo.
— Obrigada. — A resposta de mamãe é curta, reforçando o muro invisível que
surgiu entre eles. — Que história é essa de você se mudar para York?
Neste momento, é como se eu não existisse. Papai e mamãe estão se olhando
fixamente, e a tensão é palpável.
— Ah... — Aquela única sílaba confirma tudo.
— E quando estava planejando me contar? Já não passamos por isso antes?
— Quanto tempo faz desde que nos falamos? — Posso sentir as farpas no tom de
voz de papai.
— E isso é culpa de quem? — Mamãe tem lanças no seu.
MI: Inútil! Isso é inútil!
Meu ME concorda me fazendo soltar um suspiro afiado e, aparentemente,
anestesiando os músculos de meu pescoço, considerando que minha cabeça cai para trás,
então fico olhando para o teto.
MI: Que é uma vista mais interessante que escutar essa conversa.
Pela primeira vez, minhas ações parecem ter surtido efeito. Papai me olha, volta-se
para mamãe e, então, para seu chá. Mamãe, por sua vez, também parece achar sua xícara
incrivelmente fascinante.
Segue-se a isso uma espécie de competição de suspiros enquanto meus pais olham o
vazio, em busca de respostas. Finalmente, como se alguém tivesse derramado cola em
seu banco, papai se levanta.
— Melhor deixar para lá, não é? — Ele fala aquilo com um ar de resignação.
Mamãe ganha a competição de suspiros com uma exalação monstruosa, os olhos
ainda fixos em seu chá.
— Não — responde ela, como se estivesse tentando convencer a si mesma. — Você
está se mudando e pode ser que não possamos mais fazer isso. Sente-se. Vamos tentar
resolver esse assunto.
Papai se senta, e segue-se mais um silêncio pesado.
— Archie — começa mamãe —, quer ir até a loja comprar uma revista ou alguma
outra coisa?
MI: O que basicamente significa “Livre-se da criança”.
— Não. Acho que devo ficar aqui.
Papai encara mamãe. Ela concorda com a cabeça de volta para ele. O fato de
concordarem em alguma coisa — não importa o quão pequena — parece relaxá-los um
pouco, e, então, começam a falar. Papai explica sobre seu novo emprego e como a vida
será melhor para todo mundo com o salário que ele vai ganhar, como poderei pegar o
trem para York e ele virá visitar-nos de vez em quando de qualquer maneira. Uma
discussão começa a ganhar força quando debatem sobre quem vai ficar comigo, e mamãe
sugere que papai precisará ser “mais confiável” e não cancelar um final de semana “ao
primeiro sinal de um resfriado”. Isso obviamente irrita papai, e ele começa um discurso
inflamado sobre como “alguns de nós precisam trabalhar para sobreviver”, mas mamãe
se recusa a morder a isca e muda de tática.
— Archie? O que acha disso?
MI: Você acaba de ser proclamado um “adulto”. Não estrague tudo!
Respiro fundo e, pela primeira vez na vida, digo exatamente o que penso. Não o que
acho que as pessoas querem ouvir.
— OK. — Respiro fundo, levando a coroa de Campeão de Suspiros Genéricos. —
O que nenhum de vocês dois parece entender é como é ruim não se falarem. E por causa
disso, não converso com vocês sobre o outro. Não converso com você — olho mamãe
— sobre o papai, e não converso com você — vez de olhar papai — sobre a mamãe.
Então converso sozinho. Provavelmente, bem mais do que vocês imaginam. E é aí que
tudo dá errado. — Algo semelhante à vergonha cai como uma espécie de cessar-fogo
sobre meus pais. — Num mundo ideal, gostaria de ver vocês dois o tempo todo. Mas
sei que isso não vai acontecer. Então, se houver uma maneira de ligar para papai — olho
mais uma vez na direção de mamãe — sem me preocupar com você ficar chateada, seria
bom. E se você puder falar na mamãe — também ainda não terminei com papai — sem
fazer disso grande coisa, também seria legal. Vocês dois fazem parte da minha vida, mas
é como se um tentasse fingir que o outro não existe. E a meu ver isso é bem ridículo.
MI: *Aplausos*
Papai e mamãe se entreolham envergonhados, e, em seguida, começam a assentir
sozinhos ao mesmo tempo, ambos perdidos em seus próprios pensamentos. Murcho
um pouco e escuto meus batimentos cardíacos se desacelerando.
— Trégua? — pergunta papai, finalmente.
— Acho que sim — concorda mamãe, com um sorriso cansado.
— Então, ótimo. — A cola do banco de papai obviamente secou. — Vou deixá-los
sozinhos. Archie, ligo amanhã, e nos encontramos antes de sexta-feira. Para sair ou algo
parecido.
— Tá.
— Então tá. Tchau.
— Também estamos indo. Vamos sair com você.
MI: Acalme-se, mamãe!
A caminhada até a entrada principal é como andar em meio a areia movediça, mas
eles conseguem completá-la comigo andando entre os dois. Finalmente saímos, e, depois
de algumas despedidas desajeitadas, meu pai vai embora, e ando com mamãe até o carro.
Quando fecho a porta, ligo meu celular, só porque posso.
O número de Sarah está na lista de ligações perdidas.
Quando mamãe dá a partida, o silêncio nos consome, mas nenhum dos dois parece
notar. Os olhos de mamãe estão fixos na estrada, mas sua mente parece estar em outro
lugar. A minha também; quando poderei ligar para Sarah?
MI: Melhor esperar e ver como mamãe está antes de fazer qualquer coisa.
— Archie... — É aquele tom de voz que revela que aí vem algo em que mamãe tem
pensado há um tempo. — Sobre Tony...
— Sim?
— Sei que ele pode ser meio...
— Imbecil?
MI: Desculpe. Simplesmente saiu.
Mamãe semicerra os olhos pelo retrovisor, como se alguém tivesse acabado de pisar
no seu dedão do pé, mas está tentando não demonstrar.
— Não era bem o que eu ia dizer — continua, de lábios franzidos. — Ia dizer que
ele pode ser meio “difícil”. — Ela coloca ênfase o bastante na última palavra para que
soe como uma nova palavra a ser incluída em meu vocabulário. — Mas precisa se
lembrar, Archie, que assim como você está aprendendo coisas sobre ele e descobrindo o
que gosta e o que não gosta, ele está descobrindo as mesmas coisas sobre você.
MI: Chegando! Alerta de novo pensamento! Prepare-se!
— O quê? Ele não gosta de mim?
— Não! Não foi isso que quis dizer! — Ela demonstra sua frustração quando troca
de marcha, enquanto mostra estar se acalmando ao frear gentilmente. — Tony não tem
filhos. Não sabe nada sobre filhos. E está tentando aprender.
— Bem, e eu nunca tive um padrasto antes. — É rabugento e petulante, mas
mamãe não reclama.
— Mas é disso que estou falando, Archie. Sei que isso é difícil para vocês dois,
especialmente morar juntos pela primeira vez. Mas você não tem sido a pessoa mais fácil
de se conviver ultimamente, tem? E Tony percebeu; ele não é burro. Pode ser um
imbecil, mas é um imbecil que se importa com você e está tentando muito conhecê-lo
melhor.
MI: Sua mãe acabou de dizer “Imbecil”! Duas vezes!
— É... OK. Desculpe. Ando meio estressado ultimamente.
— Agora sei disso. Por que não disse nada antes?
MI: É uma boa pergunta. Merece uma boa resposta.
— Sei lá.
MI: Gooooooool!
Mamãe desconta sua insatisfação com mais uma irritada mudança de marcha.
Preciso falar a verdade.
— Não quis que ficasse chateada e achei que eu saberia lidar sozinho.
— Archie, sou sua mãe...
MI: Bem, pelo menos isso está esclarecido, então.
— ...E você devia poder conversar comigo sobre qualquer coisa. É para isso que
estou aqui. As pessoas precisam conversar; guardar as coisas só torna tudo pior. Se não
puder falar comigo, converse com seus amigos ou com seu pai.
— Ou com Tony...
— Não estou esperando uma transformação da noite para o dia, Archie, mas, sim,
quando for a hora certa. Converse com pessoas que gostam de você.
— OK. Desculpe.
— E pare de se desculpar.
— OK. Como você está, mãe?
Segue-se mais um silêncio enquanto mamãe analisa minha pergunta.
— Estou bem — declara ela, finalmente. — De um modo estranho, acho que isso
aconteceu para melhorar as coisas. É óbvio que estou preocupada com a saúde de Tony,
mas os médicos parecem estar confiantes de que se ele parar de fumar e se alimentar
melhor vai ficar bem.
— E pelo menos você e papai voltaram a se falar. O que aconteceu, mamãe? Por que
pararam de falar um com o outro? O que foi?
A resposta de mamãe é medida e pensada, como se estivesse tentando resolver um
jogo de Sudoku.
— Se eu responder, Archie, você vai precisar perguntar a mesma coisa a seu pai. Só
posso contar a minha versão da história, e ele só pode contar a dele. Você vai acabar
ouvindo duas histórias diferentes e pode escutar nós dois dizendo coisas desagradáveis
um sobre o outro. Se puder aguentar isso, então revelo a você o meu lado da história.
Mas precisará pedir a seu pai também... E daí poderá formar sua própria opinião.
MI: Nunca recebemos uma resposta direta quando precisamos dela...
— Vou pensar no assunto.
Mamãe sorri.
— Que bom.
— Você vai ficar bem?
O Detector de Segundas Intenções de mamãe se acende. Ela tem uma habilidade
impressionante e frequentemente enervante de perceber quando estou tentando
perguntar alguma coisa sem realmente perguntar.
— Precisa estar em algum lugar? — Há um tom de travessura em sua voz.
Silenciosamente, amaldiçoo minha transparência.
— Pode me deixar no centro da cidade?
VINTE E TRÊS
Eu poderia ter pedido a mamãe para me deixar na casa de Sarah, mas parte de mim ainda
quer fingir que ninguém sabe o que estou aprontando; que meu segredo ainda é meu
segredo. Isso também me dá algum tempo para pensar no que vou dizer a ela. Com tudo
que me aconteceu nas últimas horas, meus pensamentos estão rodando tão rapidamente
dentro de minha cabeça quanto o Super-Homem depois de comer muito açúcar.
Pego meu celular e, antes que perca a coragem, respiro fundo e ligo de volta para
Sarah.
— Alô?
— Sarah?
— Não, é a mãe dela. Quem está falando?
Imagens de sutiãs recheados pulam como cabras na minha imaginação.
— Ah, olá. É o Archie. Desculpe. Pensei que fosse Sarah.
Escuto uma leve risadinha do outro lado da linha e percebo que posso ter
acidentalmente elogiado a mãe de Sarah.
MI: Guarde essa para usar no futuro.
— Desculpe, Archie, não é. Ela foi à cidade encontrar alguém. Quer deixar recado?
Eu poderia pedir o celular de Sarah, mas, na minha cabeça, aquilo seria como pedir a
mão de sua filha em casamento. Bravamente, perco a coragem.
— Er... Não, obrigado. Ligo para ela mais tarde, se não tiver problema.
— OK. Tchau. — Uma parte remota de mim pensa ter escutado certa decepção em
seu tom de voz. Mas só consigo pensar em sutiãs.
MI: Sarah está no centro da cidade!
Poderia procurá-la. Apesar do time de ginástica olímpica que acaba de começar sua
apresentação dentro de meu estômago estar caprichando, resolvo ir fundo naquela ideia.
Agora tenho uma Missão — algo em que me focar. Preciso encontrar Sarah. Por onde
começar? Todos os arquivos em minha mente que dizem respeito aos hábitos diurnos
das fêmeas da espécie ainda precisam ser escritos; o que garotas fazem num sábado no
centro da cidade? Vão às compras? O que elas compram?
MI: Sutiãs.
Embora a ideia de vasculhar lojas de sutiãs me encha de frisson e ansiedade, a ideia
de Sarah estar por aí procurando uma coisa dessas não parece exatamente crível. Acho
que ela estaria em algum lugar mais espiritual, um lugar mais elevado, um lugar como...
MI: A Loja do Amor Não Correspondido!
Demoro segundos para correr até o beco e, bem na hora em que estou virando a
esquina, os Deuses do Destino sorriem para mim: Sarah sai da loja. Com a mesma
rapidez, os Deuses do Destino decidem que está na hora de esvaziarem suas bexigas,
coisa que fazem com uma precisão formidável.
Jason Humphries sai logo atrás de Sarah pela porta de vai e vem.
MI: Todas as frequências de comunicação enguiçadas! *Ruído de estática*
Jason Humphries saindo da loja atrás de Sarah.
Jason Humphries atrás de Sarah.
Jason Humphries.
Meu ME é completamente neutralizado, e fico parado como um dublê de espião
feito de papelão na entrada do beco. Felizmente, meu MI muda para o manual, e consigo
recuar de volta na esquina.
MI:
TemquehaverumaexplicaçãoTemquehaverumaexplicaçãoTemquehaverumaexplicação!
Arrisco olhar de novo; Jason e Sarah estão caminhando na minha direção, mas
ambos parecem envolvidos demais numa conversa para me notar. Jason está segurando
um pequeno saco de papel que guarda no bolso, e Sarah obviamente está tentando
explicar algo a ele; ela gesticula animadamente e tem uma expressão entusiasmada.
Apesar de suas manchas roxas estarem sumindo, Jason parece um Frankenstein recém-
ressuscitado. Pergunto-me se a mãe de Sarah poderia ter passado arnica em seus
machucados também, e, mais uma vez, minha mente é tomada por sutiãs.
Me escondo atrás da esquina mais uma vez e rapidamente encontro uma vitrine na
qual posso fingir estar concentrado. Perfumes nunca pareceram tão interessantes.
MI: Vamos lá, Sherlock — use o vidro!
Vejo o reflexo de Sarah e Jason passando atrás de mim, absorvidos por sua
conversa.
MI: O que deve estar levando o cérebro de Jason ao limite de esforço.
Eles passam para a minha esquerda, e arrisco mais uma espiada: parando embaixo da
torre do relógio, Jason indica com o polegar a direção de onde acabaram de vir. Algum
tipo de adeus é trocado, e, apesar de não haver beijos, há sorrisos suficientes, e Sarah
diz alguma coisa séria antes de continuar sua jornada. Jason começa a refazer seu
caminho, então volto minha atenção para um vidro de Eau de Alguma Coisa Qualquer.
Estou tão imerso no conteúdo do vidro rosa diante de mim, que não percebo Jason
até suas mãos grossas me puxarem pelo pescoço. Com o mesmo esforço que eu faria
para apanhar um gatinho do chão, ele me puxa pela esquina até o beco.
— Nerd — sibila, enquanto me joga contra a parede. Sua testa se franze, e os olhos
azuis se destacam contra os machucados embaixo deles. — Pensou que não tinha te
visto?
MI: Pai Nosso, que estais no Céu...
Os conhecimentos e experiências acumulados por meus ancestrais nerds me
programaram para esse momento; eu reajo sem nem precisar pensar no assunto: na
velocidade da luz, bravamente fecho os olhos e me encolho.
MI: Não poderão nem deixar meu caixão aberto depois disso...
Imagens de meus pais chorando, Tony gemendo, e Sarah rangendo os dentes acima
de meu corpo espancado passam por meu telão de cinema interno enquanto espero
apavorado pelos golpes.
— Olhe para mim quando falo com você!
MI: Qualquercoisaqualquercoisaqualquercoisa!
Apavoradamente, descolo minhas pálpebras uma da outra e encaro a Face da Morte.
Que tem cheiro de cigarro. Jason parece estar lutando contra alguma coisa —
provavelmente um pensamento. Até mesmo seus dentinhos amarelos parecem estar se
juntando, rangendo tanto que já deveriam estar soltando faíscas.
— É um menino de muita sorte — grunhe ele, parecendo uma Entidade Cruel. —
Quer saber por quê?
Na ausência de uma corda vocal que ainda funcione, balanço a cabeça o mais
rapidamente que consigo. Minhas mãos parecem estar massageando seus pulsos, como
se minhas suaves ministrações pudessem fazer a mão dele largar minha garganta.
— Porque aquela garota gosta de você. — Noto que ele não diz o nome dela, o que
sugere ao meu sempre ativo Departamento de Paranoias que ainda existe alguma
distância entre Sarah e ele. Não apenas emocional, espero. Há algum tipo de entrelinha
aqui; ao me dizer que tenho sorte por Sarah gostar de mim, ele também está me
dizendo que também gosta dela e, para manter qualquer relacionamento com ela, não
pode me dar o tratamento de sempre, que já é automático para ele.
MI: Mas eu ainda não começaria a relaxar... Não com uma das mãos dele em volta
de sua traqueia.
— OK — gaguejo, numa voz como a de alguém que ficou as últimas quatro horas
inalando gás hélio. — OK.
— Mas diga a seu amiguinho que se ele não apagar aquela porcaria no Facebook até
hoje à noite, então estarei atrás é dele. Entendido?
Oh, sim, entendido. Entendi mais rápido que tabuada de dois. Expresso minha
compreensão com uma série de animados acenos de cabeça e alguns guinchos de
afirmação tão agudos que são capazes de atrair todos os cachorros num raio de
quilômetros. Mas Jason ainda não terminou; ele se aproxima mais, só para que eu nunca
esqueça cada cicatriz e cada músculo de seu rosto amedrontador.
— Sortudo — grunhe Jason mais uma vez, antes de me atirar no chão. — Levanta.
E cai fora. Nerd.
Nunca antes obedeci às ordens de alguém com tamanho entusiasmo. Escorregando,
derrapando e me ralando para ficar de pé, me viro para olhá-lo e, em vez de responder
com alguma frase de efeito, acabo agradecendo. Em seguida, caio fora. A toda velocidade.
Antes de disparar de volta até o retiro élfico que representa o número 78 da
Davenport Road, ainda há algo importante que preciso fazer. Estimulado pela descarga
de adrenalina depois das benevolentes ameaças de Jason Humphries, viro correndo a
esquina; em parte agradecido por estar vivo e em parte apenas para o caso de ele ter
mudado de ideia e decidido me perseguir.
MI: Nenhuma nuvem de poeira no horizonte — mas continue correndo.
Entro disparado no Casebre, imediatamente aliviado pela atmosfera quase religiosa
de seu interior. Minha chegada explosiva faz cabeças se virarem para mim enquanto
nerds em busca de paz registram o que poderia ser uma ameaça em seus detectores; até
mesmo Big Marv meio que se ergue de seu banco, antes de voltar a trabalhar na
miniatura que está pintando atrás do balcão. Como já esperava, Matt, Ravi e Beggsy
estão aqui, olhando dentro das embalagens de plástico, em busca de novos desafios e
montanhas para escalar.
— Beggsy! — Ofego um pouco alto demais em seu ouvido.
— Cara? O que foi? — Parece não haver nenhuma sombra de recriminação em seu
rosto, apenas preocupação.
— Beggsy... Acabei de falar com Jason... Humphries... Ele viu... o Facebook... É
bom você... apagar... ou então... você já era...!
Beggsy reage no clássico estilo Nerd: fica branco como um fantasma e olha ao redor
em busca da ajuda de ninguém em particular.
— Até... hoje à noite... — continuo, com esforço.
— Cara! Merda! É pra já! — guincha ele, parecendo-se estranhamente com Lisa
Simpson, e sem se despedir de ninguém, sai correndo do Casebre para chegar logo em
casa e salvar sua pele. Apoio minhas mãos nos joelhos e fico ofegando olhando o chão.
— O que está fazendo aqui? — Matt não é assim tão fácil de reconquistar. —
Achei que havia “desistido”.
MI: Uma coisa de cada vez.
Quando minha respiração se normaliza, endireito as costas e, ignorando Matt, me
viro para Ravi.
— Ravi, amigo — começo. Usar a palavra “amigo” é um método Nerd de deixar
claro que se está desarmado. A não ser, é claro, que estejam discutindo, quando aquilo
sugere alguma intenção hostil. É complicado. — Te devo desculpas. Sinto muito
mesmo. Andei passando por uma fase estranha, e você me pegou numa hora ruim hoje
de manhã. Desculpe.
O problema dos nerds é que se lembram das coisas ruins. Durante um ano, você
poderia elogiar um nerd mil vezes e insultá-lo apenas uma. Na véspera de Ano-Novo,
poderia perguntar a ele do que se lembra mais dos últimos 365 dias e, tão certo quanto
Gandalf ser um Servo do Fogo Secreto, ele vai se lembrar apenas do insulto. É como
nos protegemos. Alguns podem dizer que essa não seja exatamente uma postura muito
otimista, mas é como somos.
— E é isso que serve de explicação hoje em dia, é? — Ravi obviamente está usando
telepatia para se comunicar com Matt; os dois parecem não estar convencidos.
MI: Promova-os a “adultos”; veja no que vai dar.
— O que estão fazendo agora?
— Estamos parados aqui, falando com você! — rebate Matt.
— OK. Vamos sair e tomar uma Coca-Cola ou algo assim.
— O que quer dizer? — Um convite para sentar num café poderia não parecer tão
inusitado, mas Nerds costumam evitar se sentar para conversar em lugares públicos.
— Vamos lá. — Indico a esquerda com minha cabeça e ando na direção do café do
outro lado da rua, sem esperar pelos protestos.
Até eles chegarem e estarem parados na frente dos sanduíches, já estou com uma
bandeja e três cocas. Sinalizo uma mesa ao lado da janela, e todos nos sentamos,
tentando não fazer barulho com nossas cadeiras.
Outro problema em ser Nerd é meio que um paradoxo: Nerds têm certeza de que
todos os estão observando e, no entanto, só conseguem chamar ainda mais atenção se
esforçando tanto para parecerem invisíveis. Enquanto isso indica um enorme complexo
de inferioridade, também indica um ego enorme e frágil. Estou lidando com dois vasos
da Dinastia Ming no momento.
MI: Hora de começar a falar, Archie. Com “F” maiúsculo.
— OK, pessoal — começo —, devo uma explicação a vocês.
— Sim. Acho que deve. — A reação de Matt me faz pensar em abordar o assunto
com o máximo de responsabilidade que puder. Começo com a revelação de papai estar
indo embora, então conto sobre ver Sarah e Jason Humphries juntos, depois volto ao
bazar e a Tony. Não é exatamente cronológico, mas vou falando conforme vai parecendo
ser relevante.
— Então por que estava vendendo suas coisas? — pergunta Ravi. — Ainda está no
Jogo?
MI: Achou que ia se livrar dessa, não achou?
É verdade. Eu deliberadamente não mencionara Sarah ter lido minha aura nem meu
MI nem o EP — em parte porque sei como deve parecer maluquice de fora da concha
protetora de minha cabeça; em parte por não querer que Sarah levasse a culpa por eu ser
tão estúpido.
— Acho que Archie tem mais com o que se preocupar do que com o Jogo nesse
momento. — Fico grato pelas táticas diversionistas de Matt. Posso ver em seus olhos
que ele sabe que há mais por trás de minha história do que estou revelando, mas não
preciso contar tudo agora.
— Deus... sim. Desculpe, Archie... — gagueja Ravi. — Espero que esteja tudo bem.
— Não se preocupe. — Sei por que ele perguntou; por mais que esteja tentando
entender o que me fez rejeitar o universo Nerd, ele também está tentando entender
como aquilo afeta sua vida. — Vai ficar tudo bem. E sim, vou voltar ao Jogo. Vou
precisar começar tudo de novo, no entanto... Vendi todas as minhas tintas e
miniaturas.
— Por que não nos contou tudo isso antes? Devíamos ser amigos.
MI: O Senhor da Justiça, Matt, pede uma boa resposta.
Estranhamente, só a descubro conforme ela sai de minha boca:
— Acho que falar sobre o assunto tornaria tudo mais real. Se eu mantivesse aquilo
na minha cabeça, e ninguém mais soubesse a respeito, então eu meio que podia fingir
que não estava acontecendo.
— Ah — assente Matt sabiamente. — Quer dizer como um avestruz.
MI: Touché!
— É. — Dou um sorriso pesaroso. — Igualzinho a um avestruz. Me desculpe
quanto a isso.
— Esquece. Bem-vindo de volta. Seu Nerd. — Aquela palavra nunca pareceu tão
bela. — Então, o que vai fazer agora?
MI: Sarah!
— Na verdade, preciso ir e falar com uma pessoa antes de ficar tarde demais. Posso
ligar pra você hoje à noite?
— Claro.
Deixo Ravi e Matt com suas Coca-Colas. Embora a Sociedade possa ter sido
temporariamente separada, para mim a Missão ainda está de pé.
Apesar dos movimentos exaustos de minhas pernas pouco usadas e agora exercitadas
demais num só dia, estou andando com determinação. Preciso ver Sarah e espero que
ela tenha ido para casa após seu tête-à-tête com aquele brutamontes. Mas o que vou
dizer a ela?
MI: Casa comigo?
Estou apaixonado. Não há como negar isso. Ela é a Galadriel do meu Frodo, Uhura
do meu Spock, a Branca de Neve de meus Sete Anões.
MI: Feliz, Dunga, Soneca, Atchim, Zangado, Dengoso e... Nerd?
E aí está o problema: sou um Nerd até o último fio de cabelo. Tenho “Nerd”
estampado pelo corpo todo, provavelmente em runas arcaicas. É quem eu sou, e não há
como escapar. Tentei ser outra coisa, e simplesmente não dá certo.
MI: Ou dá...?
Ou deu? Talvez haja mais por trás dessa história de alinhamento psíquico do que eu
pensava. Talvez passar por aquilo tenha me feito criar um laço mais forte com Sarah que
não poderia ter criado antes. Talvez agora estejamos psiquicamente em sintonia um
com o outro, de modo que eu não precise mais fazer minhas afirmações toda manhã.
Talvez tenha me tornado homem, finalmente merecedor de alguém tão linda quanto ela?
MI: Ainda acho que um bigode daria o toque final.
Talvez eu finalmente esteja além do universo de bigodes e sutiãs. Talvez isso seja
Amor Verdadeiro, do tipo que transcende pelos faciais e roupas íntimas. Acho que
nunca mais vou folhear um catálogo da Next. Tudo está fazendo sentido: o foco não era
minha aura nem meu EP — eles eram apenas veículos para que eu finalmente
entendesse, completamente, o que significa estar Apaixonado pela Primeira Vez.
Como aquela parte de O Senhor dos Anéis, quando Frodo usa a luz dada a ele pela
Rainha dos Elfos, posso sentir essa revelação tomando conta de mim e agora já sei o que
vou dizer a Sarah. Ensaio mentalmente, ao som de uma orquestra completa.
Entro no quarto dela, e, sem dizer uma palavra, na mesma hora ela percebe a
diferença em mim. Nossos olhares se encontram, e todo o resto parece insignificante. Ela se
levanta de sua cadeira, deixando cair o desenho que acabara de fazer, e anda na minha
direção. Ambos estamos meio radiantes com a luz espiritual que irradia de dentro de nós.
Quando vai atravessar o quarto, ela cambaleia e cai, indo parar direto em meus braços.
Eu a seguro e consigo apanhar junto o desenho que ela deixara cair. É uma fada, mas
não uma das ninfas sensuais que cobrem suas paredes. Sou eu.
*Música aumenta num crescendo.*
Sorrio para ela, e, então, nossos lábios se tocam numa confirmação final de nossa
unidade psíquica.
MI: Essa maldita calça jeans está apertada demais.
Apesar de parar para ajustar os conteúdos de minha calça, praticamente deslizo pelo
resto do caminho até Davenport Road, mais uma vez absorvendo energias místicas que
parecem estar saindo de todas as árvores, com todos os cantos de pássaros, e do gato
preto e branco que deita debaixo do sol de fim de tarde do lado de fora da casa número
78.
— Olá, Aslan. — O nome subitamente parece apropriado, e faço um carinho no
gato. — Sabia de tudo o tempo todo, não sabia? — Aslan ergue o queixo para mais um
carinho e ronrona, concordando.
Não tenho nenhum pressentimento dessa vez — não sinto como se não merecesse
o que está por vir. A Missão finalmente está chegando ao seu fim; como Aragorn, despi
minha casca terrena e me transformei de um humilde Andarilho em Rei, que finalmente
merece sua Rainha.
MI: Jason Humphries não vai gostar nada disso.
Não importa quem não vai gostar; Sarah e eu teremos um ao outro; o escudo
psíquico de nosso amor repelirá qualquer um que queira nos separar. Abro o portão e
caminho sobre o cascalho.
— Olá, Archie. — A mãe de Sarah está regando uma roseira e se levanta,
rapidamente me agraciando com a oportunidade de olhar suas Montanhas da Névoa.
Mas eu não aproveito. Estou acima de tais coisas e não gostaria de diminuir a ela nem a
mim com tais pensamentos.
— Olá. Sarah está em casa?
— Sim. Está lá em cima. Como está seu olho?
— Funcionando perfeitamente, obrigado. — Sorrio, um retrato de autoconfiança e
alinhamento espiritual. Até mesmo dou uma piscadela, só para mostrar como estou
curado.
MI: Parece que estamos tendo uma avaria aqui, amigos. Por favor, tenham paciência.
— Óootimo — responde ela, arrastando o som da vogal, como se estivesse
distraída com alguma coisa. Talvez já tenha percebido minha transformação.
MI: Todos os sistemas parecem estar fora do ar. Tentaremos reparar o defeito o mais
rapidamente possível. Por favor, tenham paciência. E evitem manusear maquinarias
pesadas. Ou falar.
— Posso...? — Aponto com o polegar a porta de entrada, que está entreaberta.
— Pode, pode, é claro. Pode subir. Vou levar algo para beberem em um minuto.
— Obrigado. — Com um último sorriso de vitória, me viro e entro na casa.
O cheiro de incenso me atrai como um ímã escada acima até o quarto de Sarah. Sua
porta está fechada, e demoro um instante para passar meus dedos pelo cabelo e respirar
fundo pela última vez. Vou fazer isto. Vou me curvar ao vento.
É Agora ou Nunca.
VINTE E QUATRO
— Pode entrar.
O quarto de Sarah é exatamente como me lembro, e o ar cheira a patchouli. É como
um templo. Sarah está sentada numa das almofadas espalhadas no chão, usando calça
jeans branca e uma camiseta branca. Ela é a Beleza em pessoa.
— Ah, oi, Archie. — Ela abre um enorme sorriso, fechando o livro que estava
lendo. — Mamãe me disse que você ligou, e tentei ligar de volta, mas seu telefone estava
desligado. Não conseguiu ficar longe, hein? — Ela completa essa pergunta erguendo
uma das sobrancelhas e dando uma risada que faz meu estômago parecer querer
derreter.
— Mais ou menos isso. — Sorrio e me sento na almofada em frente à sua.
MI: Boa resposta. Confirma a sugestão tímida dela de um jeito divertido. Todos os
sistemas ligados. Estamos agora viajando numa velocidade confortável.
— Como está seu olho?
— É, está bem. Aquela tal de arnica é boa, não é?
MI: Excelente! Ao completar sua frase com uma pergunta, ela será forçada a
comentar, e a dança pode começar.
— É.
MI: Ops!
A conversa ameaça morrer, mas Sarah oferece a ela respiração boca a boca.
— Como está se saindo com os assuntos psíquicos?
MI: Perfeito! Um apoio para o pé! Comece a escalar!
No entanto, acho que acabo de descobrir que tenho vertigem; meu coração começa
a bater como um tambor, e as palmas de minhas mãos começam a suar, fazendo-me
esfregá-las uma na outra como se estivesse tentando usá-las para acender uma fogueira.
MI: Prossiga devagar.
— Bem... eu... er... É meio sobre isso que queria falar com você.
— OK. — Mais uma risadinha e mais um nó em meu estômago.
— É...
MI: Qual é! Recomponha-se!
— É. Essa coisa psíquica. Notei uma mudança.
Sarah assente; está cheia de ansiedade, e seus olhos estão arregalados, como um
cachorrinho que acaba de ver um osso pela primeira vez. Penso um pouco mais no que
quero dizer, mas a realidade é muito mais assustadora que a fantasia. Falar com meus
pais foi mais fácil que isso, mas está na hora de arriscar.
— É. Sinto estar fazendo conexões importantes com as pessoas próximas a mim. —
As palavras são lentas e desajeitadas, como se fossem do formato errado para minha
boca, e pareço não conseguir pronunciá-las direito.
— Isso é ótimo, não é? Não é o que você queria?
Tento mais uma vez.
— Sim. É ótimo. Mas estou percebendo conexões também. De outras pessoas.
Pessoas como eu.
— Todos nascemos com habilidades psíquicas, mas nos esquecemos como usá-las.
Tudo que precisa fazer é não se apressar para se concentrar no que você quer da vida e
daqueles à sua volta, e vai se surpreender ao notar como as coisas mudam depressa. De
repente, as pessoas tornam-se mais claras para você.
MI: Isso poderia ser uma dica.
MI: E poderia não ser.
MI: Mas poderia.
Nossa, isso é difícil. Mas é uma porta de entrada. Meu ME opta por suar ainda
mais e em remover qualquer circulação de sangue de meu rosto — provavelmente para
evitar que eu fique corado em algum momento. Entretanto, provavelmente, estou agora
parecendo um saco de farinha suado.
— É isto que quis dizer. É como se eu pudesse ver as pessoas melhor agora. Posso
ver do que elas têm medo.
— Como o quê?
— Como dizer o que realmente querem dizer. — Tento dar algum significado a essa
declaração me inclinando para a frente e encarando seus olhos, mas rapidamente me dou
conta de que devo estar parecendo algum tipo de serial killer; então finjo que tem
alguma coisa no meu olho e o esfrego com um dedo. Isso não está exatamente se
desenrolando como eu planejara.
— A maioria das pessoas nunca diz o que quer dizer.
MI: Poderia ser uma pista!
MI: Mas, pensando bem...
— Eu sei! E queria que as pessoas simplesmente fossem honestas comigo! Isto é, se
você tivesse algo a me dizer... — Nesse momento meu coração se acelera para uma
velocidade maior que a do som. — Seria honesta comigo, não seria?
MI: Boa! Você passou a bola para ela! Um pouco covarde, talvez — mas não há
nada de errado nisso.
Sarah reflete sobre minha pergunta com a graça de um cisne. Seus olhos miram o
teto, como se a resposta fosse vir do ar, e me vejo hipnotizado pelas delicadas curvas de
seu pescoço. Não que ela tenha o pescoço igual ao do E.T. ou algo assim. Depois de um
instante ou dois, sua antena psíquica obviamente sintoniza na frequência certa.
— Se achasse que você poderia aguentar, sim. Sim, eu seria. Se fosse algo sério.
MI: VAI! VAI! VAI!
— E é?
— O quê?
— Sério?
— O quê?
— O que você quer me contar.
MI: GENIAL!
Sarah apenas pisca. Como se não soubesse do que estou falando.
MI: Mas isso não vai colar com você — o Leitor de Pensamentos Mestre!
— Não existe nada que eu queira contar a você, Archie.
Agora sou eu que começo a piscar. Acho que estou enviando um sinal de SOS com
minhas pálpebras.
— Não tem? — Não queria soar tão chocado assim, mas acho que soo.
— Não! — Sarah ri e franze o cenho ao mesmo tempo. — Como o quê?
— Como...
— Co-mo...? — Ela repete o que eu digo, coagindo meu pensamento a sair pela
minha boca. Resolvo tentar uma tática diferente. Acho que ela não está entendendo
direito o que estou tentando dizer. A verdade brutal vai resolver.
— Como eu te amo.
Um silêncio de estourar os ouvidos.
— O quê? — Risadas de incredulidade. — O quê?
MI: Você, meu senhor, é um babaca.
— Estou apaixonado por você. — Tenho total consciência de que isso não terá o
resultado que eu achava que teria, mas por algum motivo minha boca não para de falar.
— Me apaixonei por você.
— Ar-chie! — Seus olhos estão arregalados de espanto/horror/nojo, escolha
qualquer opção. Agora não importa. Posso sentir as estruturas de suporte em minha
cabeça rachando e se despedaçando enquanto ela balbucia as palavras seguintes: — Mas
você é meu amigo!
Amigo. Não poderia existir uma palavra mais desoladora. Amigo significa barreiras.
Amigo significa que seus sonhos vão continuar sendo apenas sonhos. Amigo significa
que sua mão para sempre não terá outra para segurar, que seus lábios para sempre
permanecerão não beijados. Amigo significa que devia ter se colocado em seu lugar e
ficado lá.
— Mas pensei... — Queria que minha boca conseguisse se calar.
O rosto de Sarah se suaviza, e ela adquire uma expressão de preocupação.
— Archie... eu sinto muito mesmo, mas... não sinto a mesma coisa.
Meu ME reage com uma série de acenos de cabeça silenciosos. Sarah me encara; ela é
tão bonita que dói só de olhar.
— Archie... quando isso aconteceu? Há quanto tempo você...? — A pergunta fica
no ar como um fantasma. E agora devo cortar o cadáver e dissecá-lo na frente dela. O
mais triste é que estou preparado para fazer isso, caso o sentimento de pena possa fazê-
la mudar de ideia.
— Quando a vi na loja.
Mais incredulidade.
— Sinto muito...
MI: Bisturi.
— Não. Está tudo bem.
MI: Primeira incisão.
— E depois?
MI: Serra para os ossos.
— Eu só achei... Você gostou do Jogo... — Brilhante.
MI: Separadores de costela.
— E depois?
MI: Órgãos principais intactos.
— Depois da briga... você me convidou para vir aqui...
MI: Espera aí...
— Achei que podia ajudar, Archie!
MI: O coração deste homem parece ter sido arrancado!
— Mas você me beijou!
A voz de Sarah fica ainda mais gentil.
— Na bochecha, Archie! Era meu amigo. Estava passando por um momento difícil.
Caio num silêncio profundo e imóvel. Não há nada como assistir a sua esperança
sendo sugada pelo ralo para fazê-lo desistir de lutar.
— É o Jason? — É um golpe baixo, mas vou dá-lo assim mesmo.
— O quê?
— Jason. Está apaixonada por ele? — Eu me surpreendo ao notar como pareço
infantil.
— Por que eu estaria apaixonada por ele?
MI: Não é exatamente uma negativa, é?
— Eu vi vocês juntos no centro da cidade.
Com essa revelação, ofereço a Sarah o Direito à Indignação, que ela agarra com as
lindas e traiçoeiras mãos.
— Estava me espionando?
Meu silêncio é toda a confirmação de que ela precisava.
MI: Droga.
— Para sua informação, Archie, estava tentando ter certeza de que ele não tentaria
dar uma surra em você! Encontrei com ele e o levei até Manisha para escolher o incenso
para uma leitura! Vou ler a aura dele!
As estruturas de suporte em minha cabeça finalmente desabam totalmente com um
estouro ressonante, e volto a ser meu medonho e Nerd eu.
— Ele só vai deixá-la fazer isso porque quer sair com você!
— E não foi isso que você fez?
— Também trouxe alguns biscoitinhos! — anuncia a mãe de Sarah, abrindo a porta
com o quadril e pousando a bandeja na penteadeira de Sarah. Nem passa pela minha
cabeça dar uma olhada em seu decote.
— Ma-nhê!
— Desculpe, amor, interrompi alguma coisa?
Me levanto, equilibrando-me sobre pernas fracas e bambas.
— Não, está tudo bem. Preciso ir nessa. — Consigo abrir um rascunho de sorriso.
— A gente se vê.
— Até mais, Archie. — Posso escutar o “em outra encarnação” implícito nessa
declaração.
— Obrigado pelos biscoitos — digo estupidamente à mãe de Sarah e então vou
embora.
MI: Boa, Romeu.
VINTE E CINCO
Os corredores floridos de Lothlórien se transformaram nos atalhos rachados e escuros
de Mordor. Quando cheguei à casa de Sarah, meus sentidos estavam aguçados pela
beleza e vitalidade de meu ambiente. Daquela mesma maneira inebriante, meus sentidos
mais uma vez estão trabalhando em excesso, mas agora eles só absorvem os aspectos
sombrios do ambiente: os tijolos quebrados, os gritos agudos de crianças que parecem
mais estar brigando que brincando, e o fato de quase quebrar o pescoço tropeçando em
Aslan quando ele se estica e se enrosca debaixo de meus pés.
MI: Bicho estúpido.
Como eu pude ter entendido tão errado? Como? Tudo fazia tanto sentido, parecia
tão certo. Fiz tudo; até engoli toda aquela história psíquica, qualquer coisa para Sarah
me conhecer melhor. E tudo que ela queria era ser minha amiga. Simplesmente não
entendo.
MI: Mas entende.
Entendo. É claro que entendo. Sou um Nerd, e ela é linda, e nunca ia acontecer.
Sou um idiota por ter pensado que ia.
MI: Vamos lá, há mais por trás disso.
Evito pensar naquilo, enfiando minhas mãos nos bolsos e avançando pela rua,
encarando meus sapatos. Andar nunca pareceu tão sem sentido. Não sei aonde estou
indo e também não me importo. Sinto-me como uma perda de tempo.
MI: Mas você sabe o que deu errado, não sabe?
Eu sei, e só piora a sensação horrível que faz minha alma parecer mais pesada que
chumbo. Onde estava com a cabeça? Devia estar louco de sequer achar que tinha uma
chance.
MI: Precisa parar de ser torturar uma hora ou outra.
Talvez ela esteja mesmo saindo com Jason Humphries? Ele tem músculos, aquela
atitude “dane-se” que eu nunca conseguiria ter e provavelmente tem algum ponto
vulnerável que o torna ridiculamente atraente para as mulheres — um diamante bruto,
o encrenqueiro com potencial.
MI: Besteira, e você sabe muito bem. Ele pode ficar socando os outros por aí, mas não
poderia ter uma conversa profunda nem se sua vida dependesse disso.
Só para esfregar mais um pouquinho de sal na ferida, minha mente fabrica imagens
deles rindo, se beijando e de mãos dadas. Mas as imagens que estou vendo são vazias e
não têm fundamento; são apenas uma maneira minha de aproveitar a requintada tortura
do momento e tentar ignorar a verdade que está sussurrando suavemente em meu
ouvido. Sei o que foi que deu errado; e sei onde está a culpa nessa lambança toda.
MI: Hora de se olhar no espelho, Archie.
Coloquei Sarah num pedestal desde o minuto em que a conheci. Conversar com ela
me fazia sentir bem comigo mesmo, e tentei ser uma coisa que não sou, na esperança de
que ela fosse gostar de mim. Eu sou...
MI: ...Um Imbecil?
Oh, Deus. Sou sim. Sou um Imbecil®. Até mesmo os crimes de Tony parecem
insignificantes comparados aos meus. Sou o Senhor dos Imbecis.
MI: Aí está. Não está se sentindo melhor agora?
A admissão de minha Imbecilidade® não parece uma absolvição, não mesmo. Acho
que me livra de qualquer sentimento de ter sido injustiçado de alguma maneira. Mas
não melhora minha opinião sobre mim mesmo. Magoei uma pessoa. Eu paro por um
momento, pensando se deveria voltar e me desculpar. Mas é uma farsa mental; sei que
não vou. Ela não estaria pronta para ouvir, e ainda estou cheio demais de autopiedade
para fazer um trabalho decente. Preciso esperar até estar me sentindo um pouco mais
adulto a respeito dessa história toda.
MI: Só não vamos esperar TANTO assim...!
Não. Não vamos. Mas pelo menos até amanhã. Isso se ela ainda estiver falando
comigo. O que ela tem todo o direito de não fazer, acho.
A horrível compreensão de que posso não ser exatamente o irresistível Casanova
que queria ser é exaustiva. Subitamente sinto-me muito cansado, mas como se
precisasse conversar com alguém.
Quero conversar com Sarah.
MI: Matt já vai servir.
Ligo para ele do celular e encontro energia para continuar fazendo a velha rotina do
pé esquerdo/pé direito quando a mãe de Matt atende o telefone:
— Alô?
— Oi, o Matt está? É o Archie.
— Olá, Archie, querido. Como está?
MI: É melhor se sentar antes de eu começar...
Algumas mães têm essa noção louca de que é com elas que você quer realmente falar.
A mãe de Matt é um perfeito exemplo desse fenômeno; dê a ela apenas abertura
bastante numa conversa, e ela vai manter você na linha durante séculos. Escolho dar a
ela um pequeno empurrão na direção certa.
— Bem, obrigado. Eu prometi ao Matt que ia ligar. — Essa tática sugere uma
conversa programada de Certa Importância. Como se eu realmente tivesse habilidades
psíquicas, ela diz que vai chamá-lo; mas sei que fará um interrogatório mais tarde,
tentando descobrir qualquer coisa que possa ser de seu interesse. Matt vai despistá-la
com alguma história sobre dever de casa ou sobre o Casebre, e o último átomo de
dignidade que ainda possuo permanecerá sendo meu por um pouco mais de tempo.
— Archie.
— Matt. Oi, cara.
— Oi. Como está?
É uma pergunta interessante. Estou bem. Meio que me livrei de qualquer raiva ou
amargura; tudo que sobrou foi a consciência de minha própria idiotice, e isso é algo com
que nós Nerds convivemos diariamente. Na superfície, estou OK.
MI: Mas é sobre o que está se passando por baixo que ele está perguntando; é seu
amigo, lembra? “Como está?” é uma pergunta típica para sondagem.
— Bem, ainda estou solteiro. — É uma resposta razoavelmente leve, mas sei que
Matt vai perceber as nuances envolvidas.
— Opa.
MI: Como um verdadeiro amigo!
— É. Basicamente estraguei tudo com Sarah.
— O que aconteceu?
— É uma longa história...
— Legal. Ia ser bom dar umas risadas... — Para quem não conhece Matt, isso
poderia soar meio insensível, mas sei que ele está me dizendo que provavelmente não é
tão sério quanto acho que é e que vai ficar feliz em escutar.
Uma lembrança cai sobre mim mais forte que o punho de Jason Humphries.
— Droga!
— O quê?
— Ah, meu Deus! Ah. Meu. Deus. Ah, meu Deus!
— O quê? O que foi?
— Pisquei para a mãe de Sarah!
— O quê? Você fez o quê?
— Ah, meu Deus! Pisquei! Sou tão idiota!
Caio na gargalhada, piorada quando Matt exige saber que diabos aconteceu. Quando
termino de explicar a história, Matt está rindo sombriamente ao telefone. Entre piadas,
consigo explicar rapidamente o que aconteceu na casa de Sarah, dando a ele detalhes
suficientes para entender tudo sozinho.
— Seu idiota — repreende-me Matt, de um jeito que só um amigo pode fazer.
— Eu sei.
— O que vai fazer?
— Não sei. Pedir desculpas, acho.
— É. Provavelmente devia. Idiota.
Nerds têm um senso forte de certo e errado; parecemos ter um medo nato de
autoridade e um verdadeiro desejo de manter as engrenagens do mundo girando o
melhor possível. O que significa que se você aborrece alguém que não mereça, você pede
desculpas. A fibra moral de Matt é forte o bastante para aliviar um gigante constipado.
E, de uma maneira peculiar, sei que ele está sentindo vergonha por mim. Porque teria se
comportado da mesma forma em meu lugar.
— Archie?
— O quê?
— Não achou mesmo que tinha poderes psíquicos, achou?
Preciso pensar nessa pergunta. Definitivamente, havia alguma verdade no que Sarah
dissera: tenho mesmo ligações com aqueles à minha volta, amigos e família. E, por mais
que isso possa não ser psíquico, definitivamente há mais por trás daquilo do que apenas
estar muito tempo perto de alguém.
— Eu não sei, cara.
— Então no que é que estou pensando? — Rápido como um raio, lá está ele de
novo caçoando de mim.
— Kirsty Ford, imagino.
— Meu Deus! Isso é incrível!
— Ha ha. Ei, Matt?
— O quê?
— Você fala sozinho?
— O tempo todo. Você não?
Mamãe está sentada à mesa da cozinha, parecendo muito pequena e sozinha. Chego por
trás de sua cadeira e coloco um de meus braços em volta de seus ombros.
— Tudo bem?
— Sim. Acho que está. Liguei para checar, e ele está indo bem.
— Legal.
Nós dois ficamos quietos, escutando a estranha quietude em nossa nova casa. Para
mim, é como uma sinfonia de paz: posso ouvir o baixo tique-taque de um relógio e o
zumbido distante de um cortador de grama. Para mamãe é um buraco, um espaço, uma
tela em branco, que precisa ser preenchida com a colorida cacofonia de seu namorado.
Dou um apertozinho nela, que parece estimulá-la a reagir.
— Chá? — Ela já está em pé na frente da chaleira antes que eu possa sequer
responder, então apenas rio aceitando.
— Como foi? — pergunta ela, procurando os saquinhos de chá.
Meu ME instintivamente responde com um exame geral de meu corpo, em busca de
sinais que possam me denunciar. Não sem algum esforço, resolvo tirar tudo da tomada
e, em vez disso, me permito expressar meus sentimentos em minha postura. Que é meio
abatida.
— Digamos que você ainda não precisa começar a se preocupar com netos.
Com a simples menção de qualquer coisa que possa aludir ao fato de que seu filho
tem um par de gônadas em funcionamento, mamãe tem um sobressalto. Já posso quase
ver um Festival de Camisinhas passando pela sua cabeça. Decido acabar com seu
sofrimento o mais rápido possível:
— Quis dizer que meio que terminamos.
— Mas não achei que estavam namorando.
MI: Não perde um detalhe, esta aí.
— Não estamos. Não estávamos. É um pouco... complicado.
— Ah. — Nem mesmo o ritual sagrado da preparação do chá consegue disfarçar
sua confusão. Ela demora um instante antes de me perguntar se quero falar sobre o
assunto.
Isso é difícil. Depois da conversa que tivemos sobre conversar, acho que eu devia me
esforçar e contar a ela tudo que tem acontecido. Mas não estou pronto para isso. Ainda
não. Não que mamãe fosse me julgar de maneira diferente da que o faria qualquer mãe
que ame seu filho; ela provavelmente encontraria um milhão de motivos para desculpar
minha insanidade temporária e, provavelmente, de alguma maneira, colocaria a culpa em
Sarah. Mas conheço a verdade e preciso conviver com ela por um tempo.
— Na verdade, não. Se importa?
— Desde que você esteja bem. — Ela bagunça meu cabelo, tentando esconder seu
claro desapontamento. Mas permaneço firme. É a coisa certa a se fazer.
— Estou legal.
MI: Não vamos exagerar...
— Ah! — exclama Mamãe, como se tivesse acabado de se dar conta de onde estava.
— Vai passar um filme hoje; um daqueles que você gosta...
— Ah, é? — Sorrio, sabendo exatamente o que está por vir. — Sobre o quê?
Mamãe sorri de volta, sabendo exatamente o que estou pensando.
— É aquele com o macaco. Você sabe...
— Aquele com o macaco? — Apesar do cansaço e da sensação de ter sido um idiota
estarem pairando acima de minha cabeça como uma nuvem negra, não consigo não rir.
— Sim! Você sabe de qual estou falando...!
Eu sei, mas o potencial para um jogo de adivinhação improvisado é bom demais para
desperdiçar.
— Não, não sei! Qual deles?
Mais risadas.
— Tem um macaco!
— Tarzan?
— Não! Um macaco e uns aviões!
— King Kong?
— King Kong! Esse mesmo!
A essa altura, não estamos mais nos aguentando de tanto rir. Um macaco e uns
aviões. Em meio a minhas risadas, percebo que não há nada que gostaria mais de fazer
do que sentar no sofá com minha mãe, tomando chá e assistindo a um filme sobre um
macaco e alguns aviões. Todo o resto parece distante: visitar papai em York, Tony
voltar para casa, começar uma nova coleção de miniaturas e voltar à minha vida de Nerd.
E Sarah. Embora eu não tenha atingido o Cálice Sagrado Nerd de ter uma
namorada de verdade, fiz o Primeiro Contato; tive um Contato Imediato.
MI: É um pequeno passo para um nerd, mas um grande salto para a nerdidade!
Talvez eu precise aprender uma lição de King Kong... Talvez, em vez de tentar me
encaixar no mundo dela e de me destacar como um gorila gigante, eu precise trazê-la
mais para as profundezas de meu mundo...
Preciso pensar nisso. Com cuidado.
MI: Está tudo nos detalhes.
AGRADECIMENTOS
Muitos foram os livros, filmes, séries de TV e quadrinhos que Mudaram Minha Vida
de alguma maneira. Entre eles, estes são os principais:
LIVROS: O Senhor dos Anéis. A criação de um mundo com tamanha
profundidade chacoalhou meu cérebro aos 11 anos de idade. É também o único livro
com garantia de me fazer chorar.
FILMES: Guerra nas Estrelas Episódio IV: Uma Nova Esperança. A visão da Star
Destroyer voando por cima de minha cabeça na cena de abertura foi o começo de um
caso de amor para a vida toda.
QUADRINHOS: O Homem-Aranha, da Marvel, me deu esperança suficiente para
procurar aranhas em meu jardim que pudessem me morder e dar vida a um super-herói
de Devon.
OBRIGADO
Como descobri, há muito mais em se escrever um livro do que escrever um livro.
Gostaria de oferecer meus sinceros agradecimentos a Alex Garland, por ser gentil o
bastante para parar e conversar; e também Jenny Savill da Andrew Nurnberg Associates
e Jane Harris da Stripes Publishing, e suas respectivas equipes por lançarem os dados.
Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviços
de Imprensa S.A.
O fator nerd
Skoob do livro
http://www.skoob.com.br/livro/334568-fator-nerd
Matéria de lançamento do livro
http://bookeando.com/site/2013/07/19/fator-nerd-e-o-primeiro-romance-no-brasil-
para-o-publico-nerd-e-geek/
Site do autor
http://theandyrobbsite.co.uk/
Twitter do autor
https://twitter.com/ThatAndyBloke
Perfil do autor no Goodreads
http://www.goodreads.com/author/
show/463238.Andy_Robb
Entrevista com o autor
http://www.youtube.com/watch?v=LwXdjrcl-JI
Capa
Rosto
Créditos
Dedicatória
Epígrafe
MI
Um
Dois
Três
Quatro
Cinco
Seis
Sete
Oito
Nove
Dez
Onze
Doze
Treze
Catorze
EP
Quinze
Dezesseis
Dezessete
Dezoito
Dezenove
Vinte
Vinte e um
Vinte e dois
Vinte e três
Vinte e quatro
Vinte e cinco
Agradecimentos
Colofão
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Andy robb fator nerd

  • 2. DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
  • 4. R545f 13-04314 CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Robb, Andy Fator nerd [recurso eletrônico]: contatos imediatos do 1º amor / Andy Robb; tradução Alda Lima. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Galera Record, 2013. recurso digital Tradução de: Geekhood: close encounters of the girl kind Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web ISBN 9788501100726 (recurso eletrônico) 1. Ficção infantojuvenil inglesa. 2. Livros eletrônicos. I. Lima, Alda. II. Título. CDD: 028.5 CDU: 087.5 Título original: Geekhood: Close Encounters of the Girl Kind Copyright © 2012 Andy Robb Trecho de Spider-Man © e ™ Marvel e subs. Cortesia adquirida de trecho de Lord of the Rings: The Return of the King, de New Line Productions, Inc. Letra e música de “You’re Beautiful”, de James Hillier Blount, Sacha Skarbek e Amanda Ghost © 2004. Reproduzido com permissão de EMI Music Publishing Ltd, W 8 5SW e Bucks Music Group Ltd, W8 7TQ Aproximadamente 15 palavras de Of Mice and Men, de John Steinbeck (Penguin, 2000). Copyright © John Steinbeck, 1937, 1965 Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram assegurados. Editoração eletrônica da versão impressa: Abreu’s System Adaptação de capa original por Renata Vidal da Cunha
  • 5. Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pela EDITORA RECORD LTDA. Rua Argentina, 171 – 20921-380 – Rio de Janeiro, RJ – Tel.: 2585-2000 que se reserva a propriedade literária desta tradução. Produzido no Brasil ISBN 9788501100726 Seja um leitor preferencial Record. Cadastre-se e receba informações sobre nossos lançamentos e nossas promoções. Atendimento e venda direta ao leitor: mdireto@record.com.br ou (21) 2585-2002.
  • 6. Para minha mãe, por simplesmente ser quem é; meu pai, por seu entusiasmo inesgotável; e para meu amigo Jim, por me ensinar o verdadeiro significado da amizade. E sempre para meu filho, Hugh.
  • 7. “Quem sou eu? Tem certeza de que quer saber? Se alguém lhe dissesse que sou apenas um cara normal, sem nenhuma preocupação na vida, alguém estaria mentindo.” Peter Parker, Homem Aranha 2 “Rosie Cotton dançando. Ela tinha fitas nos cabelos. Se fosse me casar com alguém, teria sido com ela. Teria sido com ela.” Sam Gamgee, O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei
  • 8. MI
  • 9. UM Existem maneiras melhores de se acordar. Uma delas seria ser cutucado até a consciência após uma noite de Paixão Sem Limites com Kirsty Ford. (Mas a não ser que eu venda minha virgindade no eBay, por enquanto continuarei desacompanhado em qualquer tipo de Paixão Sem Limites.) Outra forma seria com minha mãe e meu pai gentilmente me chamando e me dizendo que estavam juntos de novo e que ia ficar tudo bem. Mas eles não estão e nem vai ficar, então não faz sentido sequer pensar no assunto. Existem inúmeras maneiras melhores do que a sofrida nesta manhã em especial. Primeiro, ela começa com um nocivo cheiro que invade minhas narinas, ameaçando fechar minha garganta e fazer meu estômago se rebelar contra o que eu possa ter ingerido com o chá da noite anterior. Em seguida, vem aquela voz latida que interrompe meu sono e me catapulta de volta à claridade matinal, que está subitamente atravessando minhas cortinas. Basicamente, estou me livrando do pesadelo que estava tendo durante a noite e entrando direto em outro. — Arch! Acorda, amigo! Está quase na hora do almoço. É o meu padrasto, Tony. Bem, tecnicamente ele não é meu padrasto, considerando que mamãe e ele não são casados, mas é mais fácil que dizer “namorado da minha mãe”. Ele está parado junto à janela e é como se estivesse concentrando os raios de sol com uma lupa em meus olhos. Já tem um cigarro preso entre os lábios, com cinzas penduradas na ponta, ameaçando caírem a cada palavra que diz. Desnecessário mencionar, agora meu quarto está fedendo a fumaça de cigarro. Enquanto meu cérebro tenta rapidamente reaprender tudo que absorveu durante os últimos 14 anos — a fala e coordenação motora básica, como se sentar —, tenho uma sensação estranha de não saber onde estou. Dura apenas uma fração de segundo, até me lembrar de que nos mudamos para esta casa ontem. Isso explica a pilha de caixas na frente da minha cama. Tony está parado olhando pela janela, uma xícara de chá para mim notavelmente ausente de suas mãos. Ele é um cara grande em todos os sentidos: alto, barrigudo, voz alta, um grande pé no saco. Apenas seus óculos indicam que possa ser humano afinal, sugerindo uma fragilidade que, do contrário, pareceria estar completamente fora do pacote. Ele vai até minha escrivaninha de pintura e pega uma de minhas miniaturas; é um guerreiro goblin no qual tenho trabalhado, tentando pintar alguns detalhes no escudo. Eu os desembrulhei ontem à noite, em busca de algum dano que pudesse ter ocorrido durante a mudança. Tony o observa de perto e ri para si mesmo.
  • 10. — Ficou bom — comenta. Caso ainda não tenha percebido, Tony me deixa louco. É o companheiro de minha mãe, e preciso conviver com ele durante os próximos quatro anos, até eu ir para a universidade, ou ele se dar conta de que sua única função no planeta é me irritar, e então explodir espetacularmente numa nuvem de culpa. Ou alguma coisa do tipo. Então eu o tolero; preciso tolerar, pelo bem da mamãe. Ela odiaria se eu inventasse algum drama, e, por algum motivo que simplesmente não consigo compreender, ele parece fazê-la feliz. Para esconder esse conflito de emoções, desenvolvi um monólogo interior MUITO ALTO, que funciona completamente desvinculado do que meu rosto e corpo estão fazendo. Por exemplo, neste momento, enquanto Tony está examinando meu premiado soldado goblin, meu rosto se enrugou em algo semelhante a um sorriso sonolento, e minha mão coça minha cabeça numa pantomima de cansaço. Até mesmo minha voz, apesar de um pouco rouca, tem um tom amigável. — Legal, né? Só queria ver se sobreviveram à mudança. No entanto, exatamente ao mesmo tempo em que meu exterior emite todos esses sinais de alegria sem graça, meu monólogo interior (MI) está dizendo algo como: Coloque essa porcaria de volta na mesa, seu Imbecil! Isso não está aí para fazer você rir; está aí como uma expressão de minha necessidade de escapar deste mundo e abraçar uma realidade onde tudo é possível! E da próxima vez apague esse maldito cigarro antes de entrar! E pare de me chamar de “Arch”! É “Archie”! Ninguém além da mamãe pode me chamar de “Arch” — isso não nos torna mais íntimos ou coisa assim! E O QUE É MESMO QUE ESTÁ FAZENDO AQUI?! Isso faz de mim um duas caras? Acho que não. Encaro mais como sendo uma forma silenciosa de alívio. Se eu não desabafasse comigo mesmo, diria algo estúpido e magoaria alguém. Admito que às vezes meu MI se deixa levar um pouco demais e talvez perca um pouco de perspectiva, mas ninguém é perfeito. — Vamos abrir as caixas da sala — declara Tony, como se ele fosse realmente fazer parte daquilo. — Quer dar uma ajudinha? MI: Que tipo de pergunta idiota é essa? É claro que não quero desempacotar as coisas da sala, mas pelo bem de uma vida tranquila, irei. — Tá, claro. Me dê um minutinho que já desço. E Tony sai do quarto. Não diz nem obrigado. Eu mergulho de volta no travesseiro e solto um longo suspiro. Bem-vindos ao meu mundo. Levanto da cama e cambaleio até o banheiro. Infelizmente, o espelho novo está exibindo a mesma imagem do antigo: cabelos louros desgrenhados, que fariam mais sentido na
  • 11. ponta de uma vassoura, emoldurando um rosto de adulto tentando se formar, um pouco sem sucesso, na cabeça de uma criança. Comparado a alguns dos outros garotos da minha turma, pareço jovem pra minha idade, mas ainda sinto uma onda de emoção quando vejo um brilho do escasso ninho de pelos brotando de meu queixo. Há até mesmo alguns ameaçando nascer em meu peito. Vamos parar por aí. Vestido e de dentes escovados, desço as escadas devagar, passando a mão pela madeira pouco familiar do balaústre. É uma casa grande — bem maior que a casa para onde mamãe e eu havíamos nos mudado quando ela se separou de meu pai. Não há dúvidas de que nossas vidas melhoraram financeiramente desde que minha mãe conheceu Tony (ele tem seu próprio negócio — algum tipo de serviço de comercialização de dados), mas isso não o torna menos Imbecil. De vez em quando, tento me distanciar e olhá-lo de uma maneira objetiva, mas a resposta se mantém: Imbecil. MI: Ah, sim. Extensas pesquisas finalmente nos permitem confirmar a existência do gene da Imbecilidade... Mamãe me recebe no fim da escada com uma xícara de chá. Ela sempre bebeu muito chá, mas durante O Término, parecia estar bebendo ainda mais, e eu meio que me juntei a ela. Era a única maneira que eu conhecia de oferecer algum tipo de apoio na época. Nos filmes, você vê os caras afogando suas mágoas com cerveja ou uísque. Minha mãe e eu fazíamos aquilo com Typhoo. — Dormiu bem no quarto novo? — Dormi, nada mal. Posso sentir que ela está me analisando em busca de alguma preocupação que eu possa ter, só que aprendi a não demonstrar muita coisa. Sei que no fundo ela só quer meu bem, mas se eu disser que alguma coisa está rolando, ela vai contar a Tony, e, em uma tentativa desajeitada de aproximação, serei submetido a algum tipo de conversa que nem ele nem eu queremos ter. Entramos na sala, que é grande o bastante para parecer o primeiro andar inteiro de nossa última casa. Tony está sentado de pernas cruzadas no chão, como um Buda, com um cigarro na boca, lendo um livro de uma das caixas que acabou de abrir. Mamãe já está zumbindo para lá e para cá, como uma abelhinha cheia de boas intenções. — Acho que essas são suas, Arch. Quer que eu as suba para você? — Ela está indicando as duas caixas que não encontrei ontem à noite. — É. São minhas. Não se preocupe, eu levo. Elas contêm minha parafernália de jogo. OK, aqui é onde preciso esclarecer mais uma coisa. Por causa dessa única esquisitice, dessa única fascinação, desse único inofensivo interessezinho, eu sou, de acordo com as Normas da Sociedade, rotulado como um “Nerd”. MI: Não vamos nos esquecer da sua habilidade em citar Guerra nas Estrelas, de sua obsessão com livros de fantasia, sua inabilidade de passar por uma loja de quadrinhos sem comprar alguma coisa e sua falta de jeito com garotas. Ah, e você não gosta de futebol. Só estou dizendo.
  • 12. Como a maioria das pessoas da minha idade, tenho um computador e um Playstation, mas há uns dois anos me deparei com a capa de uma revista de domingo, daquelas que vêm com o jornal, e nela havia a imagem de um dragão — obviamente um boneco, mas pintado de uma maneira que fazia com que tentar algo semelhante fosse A Coisa Mais Importante Do Mundo. Não era que o boneco parecesse estar vivo, era que parecia ser uma Obra de Arte. O dragão em questão era um Dragão de Fogo, e ainda me lembro de como cada uma das escamas vermelhas era coroada por um brilho amarelo que se misturava perfeitamente à cor principal. Meu mundo ficou abalado. MI: Não tem nada de nerd nisso. Então li o artigo, só para saber do que se tratava, e ele falava desse mundo de jogadores que pintavam miniaturas para usarem em suas partidas de RPG, ou Role- playing Games. Era como se eu tivesse descoberto uma coisa sobre a qual ninguém mais sabia, algum segredo antigo e misterioso. Pelo menos é o que pensava até meu pai explicar que aquilo era bastante popular quando ele era mais novo. E minha mãe contar uma história sobre alguns religiosos distribuindo panfletos em sua escola, dizendo que esses jogos estavam a um passo da adoração ao demônio. E papai admitiu conhecer um cara que talvez jogasse na época da faculdade. Parecia que até mesmo na Idade das Trevas o RPG tinha certa reputação nerd: ninguém gostava de admitir que se sentava em volta de uma mesa, usando dados para lutar contra monstros de mentira. MI: Sério? Por que será? Sim, estamos falando de Dungeons & Dragons, o tataravô de todos os RPGs. E o melhor. Alguma coisa dentro de mim pareceu se animar. As brigas entre papai e mamãe tinham atingido proporções bíblicas na época, e aquilo era uma rota de escape mais barata que a passagem para a Grécia com a qual eu fantasiava de vez em quando. Melhor ainda, o artigo tinha uma lista das lojas onde eu poderia comprar aquele tipo de coisa, e — adivinha só? — havia uma na minha cidade! Chatópolis de repente tinha um playground de aventuras, e ele se chamava “O Casebre do Goblin”. Foi o bastante: qualquer dinheiro que eu arranjava — fosse da minha mesada, de algum raro trabalho ou de um presente de aniversário — ia direto para o Casebre. Era como a caverna de Aladim: modelos de todas as cores e todos os tipos eram exibidos com orgulho em vitrines, outros travavam batalhas em tabuleiros decorados para parecerem florestas ou desertos. Dragões ficavam lado a lado com trolls e ogros, enquanto guerreiros bárbaros valentemente tentavam derrotá-los. Havia uma parte do showroom dedicada aos ossos do ofício: facas modeladoras, colas, pincéis e tintas com nomes que praticamente imploravam para que você enfiasse um pincel nelas e pusesse mãos à obra — como resistir a “Verde Duende” ou “Vermelhão Vampiro”? E as miniaturas em si: heróis e vilões esculpidos em poses que faziam você querer acreditar na existência de mágica. MI: “Cinza Nerd”, alguém...? Acho que a outra coisa que o Casebre me proporcionava era um lugar onde me esconder; um lugar onde eu não precisava escutar gritos ou conversas ruindo sob o
  • 13. esforço de manter a civilidade. Mesmo que aquilo significasse ficar escutando a coleção de heavy metal dos anos 1980 de Big Marv, o dono, explodindo das caixas de som da loja. E havia os jogos: jogos em que você podia adotar a personalidade de um personagem a milhões de quilômetros de onde estava de verdade — guerreiros heroicos, mágicos loucos. Para mim parecia um sonho. MI: *Sonhando* Neeeeeerd... Aquilo se tornou meu ritual de sábado: ir ao Casebre e passar horas decidindo qual miniatura receberia os amáveis afagos de meu pincel. Ou, se eu não tivesse dinheiro, apenas folheava os livros de regras de diferentes jogos, me maravilhando com a mecânica de mundos imaginários que poderiam ganhar vida. Não vou nem começar a falar sobre todo o tipo de dados que você pode comprar para cada sistema. Desnecessário dizer que eu passava MUITO tempo no Casebre. Acho que a princípio fiquei meio envergonhado e mantive a discrição, mas, aos poucos, comecei a reconhecer um ou outro rosto da escola, e alguns acenos furtivos de cabeça foram trocados. Alguns dos acenos evoluíram e se tornaram conversas, e amigos foram feitos: Matt, Beggsy e Ravi — todos unidos em deixar o Mundo Real para trás. A cada poucas semanas, nos encontrávamos na casa de alguém e embarcávamos juntos numa jornada, caçando monstros, matando os mortos-vivos ou traindo uns aos outros por uma joia com poderes especiais. Como não é de se admirar, nunca havia garotas lá. MI: Não... consigo... imaginar... por quê... Na verdade, a próxima sessão está marcada para acontecer na minha casa nova, mas preciso encontrar a hora certa: preciso que mamãe e Tony estejam fora, para que possamos realmente mergulhar sem medo de que, na hora do lanche, sanduíches trazidos por minha mãe acabem nos catapultando de volta à Terra. É tudo uma questão de atmosfera, entende? Então aí está: meu nome é Archie, e sou um Nerd. Mas apenas neste mundo... Estou subindo as escadas com a segunda caixa de papelão quando o telefone de casa toca; não vou ganhar um celular novo até juntar dinheiro para pagar pela metade de um. Segundo minha mãe, derramar tinta nos meus dois últimos aparelhos não atende o requisito “cuidar das suas coisas”. Mamãe me chama, cobrindo o bocal do telefone com uma das mãos: — Archie! É para você. Deixo a caixa no alto das escadas e desço de volta correndo, tentando não parecer ansioso demais. — Oi, Archie. — É Beggsy. Sua voz ainda não amadureceu totalmente, e ele oscila
  • 14. entre soar como Mickey Mouse ou James Earl Jones em questão de segundos. Fui bem sortudo: a minha engrossou naturalmente, quase sem eu reparar. — Oi. — Como está a casa nova? — Legal. E aí? — Cara, esqueceu que dia é hoje? — Me lembre. — Cara! Nove de junho! É a Battle-Fest! No Casebre! Beggsy tem razão! É o dia em que o Casebre ganha vida. Não acredito que esqueci! É o dia em que abrem as portas para os jogadores levarem seus melhores modelos até a loja e jogarem como se não houvesse amanhã. Eles fazem oficinas de pintura com artistas convidados, dão prêmios para as melhores miniaturas e promovem partidas entre os maiores vencedores! É o paraíso dos nerds. — Que horas? — Duas. Você vem? O “Claro!” que eu dou a ele é do tipo que pergunta “Está completamente louco?” ao mesmo tempo. — Ótimo! — Espera aí — gemo. — Prometi ajudar a arrumar as coisas da mudança. — Ca-ara! — Espera aí! Cubro o bocal do telefone e chamo minha mãe: — Mãe! Posso ir até o Casebre? Hoje é dia de jogo. Ela aparece no corredor, segurando uma chaleira prateada metade embrulhada em jornal. — E toda a arrumação? — Eu arrumo minhas coisas depois, prometo. É o último sábado das férias de inverno... Sei qual será a resposta antes de ela dizer; ela franze as sobrancelhas de um jeito que deveria sugerir que está pensando no assunto, mas já vi atuações melhores em farsas. Sem esperá-la dizer o “sim” que está chacoalhando dentro de sua cabeça, estou de volta ao telefone com Beggsy. — Te vejo lá. — Legal. Tchau. — Tchau. A mão em meu ombro me faz virar: Tony está sorrindo para mim como se soubesse de alguma coisa que eu não sei. — Tentando se livrar da arrumação, hein, Arch? — Ele dá uma risadinha, só para se certificar de que minha vontade de socá-lo se torne realmente insuportável. MI: Seu IMBECIL! Como se VOCÊ fosse fazer ALGUMA COISA a não ser fugir para ler o jornal em algum canto!
  • 15. Por algum motivo, apelo para minha mãe. — Eu já disse que arrumo depois, não disse, mãe? Ela apenas sorri e volta a esvaziar as caixas, e Tony sai rindo como se tivesse conquistado algum tipo de vitória. Quando ele se vira, digo “Imbecil” silenciosamente e então disparo escada acima para examinar minhas miniaturas. Qual delas devo levar? Devo levar alguma coisa? Precisam entender que isso é como um duelo para os nerds; todos os maiorais metidos a saber usar um pincel estarão lá, exibindo seus melhores trabalhos e os comparando com os dos outros. Não levar nada seria como admitir derrota, como os camponeses mexicanos naqueles faroestes italianos. Mas se eu levar a coisa errada... MI: Não consigo nem imaginar uma coisa dessas... Finalmente escolho um mago que pintei uns dois meses atrás. Não é uma obra de arte, de maneira alguma, mas fiquei muito satisfeito com os tons de pele, e os detalhes que pintei na capa foram pesquisados em antigos escritos celtas. Ele também exibe o melhor envernizamento que já fiz: quatro camadas de brilho que garantem uma aparência de porcelana. É bom o bastante para mostrar que tenho a mão firme e não tenho medo de usá-la. Coloco-o gentilmente numa caixa e o embrulho com algodão. Já são quase 14 horas. Se me apressar, consigo chegar com tempo de sobra. Está na hora de correr para a batalha. Será que mamãe pode me dar uma carona?
  • 16. DOIS Para ser sincero, eu podia ter ido a pé; a casa nova fica a apenas vinte minutos do centro da cidade. Mas não se chega atrasado para o dia de jogos. É uma Lei dos Nerds. E mesmo estando dez minutos adiantado, o Casebre já está transbordando de nerds. Isso significa que, na calçada do lado de fora, há montes de grupinhos de garotos da minha idade e homens de quarenta e poucos anos, todos usando roupas pensadas como camuflagem. Na realidade, suas roupas são tão sem graça que dava no mesmo se usassem placas neon com “Sou um nerd — e ele também” piscando acima de suas cabeças. É estranho, mas no esforço de passarem despercebidos, chamam ainda mais atenção. Acho que é nesse ponto que eu e meus amigos destoamos do rebanho; nós nos vestimos normalmente. Mas pensando bem, sou um nerd, então o que é que eu sei, afinal? MI: É você quem está dizendo, não eu. Depois de um tempo, encontro Beggsy com Ravi e Matt ao lado de um poste de luz. — Oi. — Cara! — Beggsy é sempre o primeiro a responder. Ele tem esse entusiasmo exagerado sobre basicamente tudo que você fala. Se não fosse tão nerd, seria bem legal, se é que você me entende. Não é que pareça um idiota ou coisa parecida, ele é apenas nerd da cabeça aos pés. O Fator Nerd é difícil de definir, mas você não precisa ser Simon Cowell para notá-lo. Pode ser o jeito de alguém falar ou sobre o que fala. MI: Guerra nas Estrelas versus Jornada nas Estrelas. Debatam. Eles não costumam ter as noções básicas de cuidados pessoais, como arrumar o cabelo. Outro grande fator são os nerds que se tornaram Totalmente Imersos. Ou seja, eles se identificam demais com um personagem de um filme ou livro e vão um pouco longe demais ao tentar se parecer com eles. Entram aí sobretudos de couro ou barbichas ralas e rabos de cavalo. Esses caras são nerds de verdade. MI: E você é apenas um cara normal... Ele pode ser um nerd dos pés à cabeça, mas Beggsy não se parece com um. Acho que também não pareço, aliás. Mas Ravi e Matt... Você não precisaria de um Detector de Nerds® para distingui-los. Ravi tem a expressão permanentemente abatida de alguém cheio de hormônios, e Matt foi amaldiçoado com cabelo ruivo-claro e uma linguagem corporal desajeitada que grita sua esquisitice antes mesmo de ele abrir a boca. E, quando ele finalmente abre a boca, sai uma voz meio fina. Está engrossando, mas ele ainda não é nenhum Darth Vader. A Força dos Nerds definitivamente está com este aí.
  • 17. Matt lida com sua aflição distribuindo sarcasmo como um crupiê distribui cartas. Ravi não fala muito — apenas observa as pessoas, como se todas fossem uma ameaça em potencial: o Fator Nerd em toda a sua força. Ele também tem a voz mais grossa de todas nós, que soa estranha vinda de um cara tão magrelo. — Cara! O que você trouxe? — pergunta Beggsy, cheio de entusiasmo, com sua voz de Mickey Mouse. Pego minha caixa e desembrulho o mago. Três pares de olhos o examinam, avaliando minha habilidade com a precisão de águias. Matt pega a peça na palma da mão e semicerra os olhos com a luz do sol. — O que usou pra dar o brilho? — murmura. — Um rolo? Isso resulta em alguns resfolegares e gargalhadas do resto do grupo — incluindo minhas. Não é que ele seja um cara seco, ele é mais como um deserto ambulante. — Tá bem, tá bem — respondo sorrindo. — E vocês, seus perdedores? O que trouxeram? Em um minuto, eles me apresentam um ogro, um soldado morto-vivo e um goblin montado num lobo. Cada um deles tem suas qualidades. De todos, o goblin, de Beggsy, habilmente pintado e depois realçado para destacar a complexidade do modelo, tem as maiores chances de ganhar alguma coisa. A batida de Big Marv num gongo nos tira de nossa comparação: o Battle-Fest está começando! Entramos no Casebre, com Beggsy à frente. Ele vai direto até a mesa de RPG e logo entra numa aventura. Matt vai para a mesa de wargame: é um jogo mais matemático, que combina com sua personalidade, mas ele fica de fora, analisando a concorrência. Ravi e eu fomos incumbidos de entregar nossos formulários para a competição e, depois de registrá-los com Marv, resolvemos ver com o que estaremos competindo. Tem umas coisas realmente impressionantes aqui, em especial um mago elfo e algum tipo de demônio — ambos parecem prestes a saltar de suas bases. Ravi também ergue uma das sobrancelhas. Será uma disputa acirrada. Vou direto para o workshop de pintura. Um artista convidado da empresa fabricante das miniaturas revela alguns dos misteriosos segredos da arte com os pincéis. Foram providenciados alguns bancos para quem quisesse participar e experimentar, mas eles estão ocupados, então assisto por um tempo e, em seguida, vou olhar os novos modelos “recém-saídos do forno”. Um deles — uma gárgula — chama minha atenção. Acho que vou ter que comprá- la. Enquanto estudo seu molde de metal dentro da embalagem de plástico, imaginando como eu a pintaria e qual seria o resultado final, não noto que as conversas nerds à minha volta se tornaram sussurros. É só quando tocam gentilmente no meu ombro, que desperto de meus devaneios artísticos e me viro para dar de cara com a última coisa que esperaria encontrar no Casebre do Goblin, durante a Battle-Fest, às 14h45 de uma tarde de sábado. Uma garota.
  • 18. Se você ainda não percebeu, garotas não fazem essas coisas. Elas não vêm ao Casebre. Não gostam de goblins e de dragões. Não pintam miniaturas. Não jogam RPG nem encenam batalhas fictícias. E elas não chegam perto de nerds como eu. Especialmente se forem bonitas. E essa garota é bonita. Ela tem mais ou menos minha altura e idade, e é meio gótica. Seu cabelo é preto e brilhante, num corte como o de Cleópatra, e ela exagerou um pouco no lápis preto em volta dos olhos azul-claros. Mesmo que não tenha chegado ao ponto de usar batom preto, ela obviamente passou pó branco no rosto, dando a ele aquela aparência ligeiramente etérea. Contrastando com a pele pálida, está vestida de preto dos pés à cabeça: blusa preta, luvas sem dedos, esmalte preto e uma longa saia preta esvoaçante. Está usando alguns anéis prateados estilo celta nos dedos e um tipo de ankh (como uma cruz com uma argola em cima) em volta do pescoço. É nessas horas que compensa ser um nerd: posso identificar obscuros símbolos em bijuterias — provavelmente já pintei versões minúsculas dos mesmos em algum momento da vida. É claro, ser tocado no ombro por uma linda gótica faz meu Monólogo Exterior (ME) e meu MI entrarem num verdadeiro conflito. Meu ME tenta passar a ideia de que isso acontece comigo o tempo todo — que não estou nem um pouco intimidado por ela ser do SEXO OPOSTO e que não venho para esse tipo de evento com tanta frequência assim. Faço isso corando intensamente, coçando a cabeça e mudando o peso do corpo de um pé para o outro. De repente, é como se meu corpo fosse um terno que vestia mal e pertencia a outra pessoa. Toda a umidade de minha boca evapora, e minha língua parece ter inchado até ficar do tamanho de um melão. MI: VocêéumagarotavocêéumagarotavocêéumagarotavocêéumagarotaBONITAvocêéumagarotaeusouumn BONITA... A Linda Gótica sorri de um jeito que me faz ter vontade de ficar olhando sua boca para sempre. — Oi. — A voz dela é como ouropel. Não conheço nenhuma outra maneira de descrevê-la. MI: AhmeuDeusAhmeuDeusAhmeuDeusAhmeuDeus... — Oi. — Pareço estar gargarejando com areia. — Desculpe incomodar você, mas... que lugar é esse? — É uma loja. MI: Dez pontos para estupidez! — Tá, mas que tipo de loja? MI: Não deixe transparecer que você sabe demais! — É uma loja de jogos. Jogos de RPG, esse tipo de coisa.
  • 19. MI: Isso foi saber demais! —Ah, certo. — Ela parece vagamente decepcionada, e todos os meus órgãos vitais parecem estar derretendo em comiseração. — Então nada disso é... não é “real”, então? Não tem... você sabe. MI: O quê? O que eu sei? — ...a ver com... MI: O QUÊ? A VER COM O QUÊ? — ...mágica? — Ela pronuncia essa última palavra de modo rápido e discreto. Por mais que seja uma pergunta estranha, meu banco de memórias brevemente me lembra de que meu pai certa vez me ensinou a tirar uma moeda da orelha de alguém. Essa não deve ser a hora certa. Além disso, só tenho dez centavos. — Não, não é real. São apenas jogos e miniaturas. Só faz de conta. Você sabe. — Ah, OK. Obrigada. Desculpe incomodar. MI: Não tem problema algum, pois acho que amo você. Podemos esquecer que sou um nerd e fugir pra casar? — Sem problemas. — Meu ME idiotamente dá de ombros, de um daqueles jeitos que sugerem que sou amigável e acessível, mas na realidade, provavelmente, me fazem parecer que estou tendo algum tipo de ataque. Ela vai embora com um sorriso tímido e um “obrigada” em voz baixa, e uma parte minha vai embora com ela. Alguém bate no meu outro ombro. Não aguentarei muito mais disso. Eu me viro e sou confrontado com uma visão muito mais comum: Beggsy, Matt e Ravi. — Cara! O que foi isso? — pergunta Beggsy, sorrindo de orelha a orelha. — Só uma garota. Matt sorri sombriamente: — Mais um sonho transformado em sucata. — É — suspiro. O que mais odeio nele nesse momento é que Matt está coberto de razão. — Isso é uma gárgula no seu bolso ou está apenas feliz em me ver? — Ha ha. Definitivamente é uma gárgula. Estamos indo para casa, e Matt não deu uma folga durante os últimos quinze minutos. Não me surpreende, na verdade. Tendo em conta nosso status nerd, nenhum de nós já fora realmente exposto a uma garota, e o fato de eu ter acabado de me envolver em algo que quase poderia ser considerado uma conversa com uma faz de mim um alvo fácil. Mas todos nós sabemos que isso é apenas uma maneira inconfessa de expressar inveja.
  • 20. Meu contato com a Linda Gótica eclipsou basicamente todo o resto; Beggsy ficou em segundo lugar no concurso de pintura, e Matt quase ganhou o torneio de wargame. Até mesmo esquecemos nosso habitual tópico favorito: Kirsty Ford. MI: Pois agora, “Existe outra”. Matt é o primeiro a se despedir, disparando mais algumas piadinhas sobre góticos antes de chegarmos na sua casa. Ravi é o próximo — algumas ruas depois —, deixando eu e Beggsy sozinhos. Antes da mudança, eu seria o próximo a chegar em casa, cortando pela Davenport Road até a caixa de sapatos que mamãe e eu chamávamos de “lar”. Agora estou grato pelos dez minutos extras que preciso caminhar até a casa nova; eles me dão mais tempo para calibrar todos os meus Sistemas Anti-Imbecis®. — Cara, a gente ainda vai jogar na sua casa no fim de semana que vem? — A voz de Beggsy atinge três oitavas numa só pergunta. — Vamos, só quero ver se consigo fazer os velhos saírem durante uma noite. — Por quê? Sua mãe e Tony são legais. Beggsy está com verdadeiro ódio dos pais no momento, o que poderia ser graças ao fato de seus velhos estarem vivendo numa cápsula temporal dos anos 1970. O pai trabalha com seguros, e a mãe é uma professora cuja preocupação com a limpeza e a arrumação da casa está prestes a virar um TOC. É uma daquelas casas onde se deve tirar os sapatos antes de entrar, o que sempre me deixa um pouco desconfortável considerando que meus pés têm uma mania de anunciarem sozinhos minha chegada — especialmente se eu estiver de tênis. O que normalmente estou. O comentário de Beggsy me aborrece um pouco. Eu normalmente não usaria a palavra “aborrece”, mas parece se adequar à situação; não estou irritado o suficiente para explodir, mas a meu ver existem algumas variáveis que ele não levou em consideração. Em primeiro lugar, Tony é um Imbecil. Em segundo, Tony é um Imbecil e em terceiro, Tony é um Imbecil. E também tem todos os seus comentários Imbecis sobre o Jogo, como por exemplo, “Quem vai ser Gandalf esta noite?” ou “Vão matar mais uns orcs hoje, rapazes?”. Tá bem, tá bem, todos nós lemos Tolkien, mas sua única base de referência veio dos filmes e isso não lhe dá exatamente algum direito. O problema é que preciso arranjar uma maneira de explicar isso tudo a Beggsy sem parecer mimado. — Que seja. MI: Sempre funciona. Andamos lentamente até a casa de Beggsy, discutindo os detalhes de nosso próximo jogo. Quando chegamos, vejo sua mãe abrindo as cortinas da sala. Na minha casa, temos um lounge. Na de Beggsy, há uma sala de estar. A Sra. Beggs abre a porta da frente e acena para mim. Aceno de volta, e Beggsy revira os olhos, murmurando um quase inaudível “Que saco” em voz baixa.
  • 21. É com certo alívio quando noto que o carro de Tony não está na entrada. Sua ausência me dá um momento para enxergar a casa nova com outros olhos. Posso vê-la como meu lar, em vez de o lugar onde moro com minha mãe e o namorado. E, preciso admitir, no quesito casa, é bem bonita. Os tijolos são de um cor-de-rosa pálido, e uma cerca viva cobre a vista da porta de entrada. É discreta, mas deixa que saibam que está ali. E, apesar de ainda não a termos batizado, vai ser bem melhor para mim e meus amigos jogarmos ali do que na casa em que eu e mamãe vivemos depois do Divórcio. Aquela casa era pequena, e meu quarto era bem ao lado do banheiro. Aqui terei um incrível quarto no sótão, bem longe do banheiro, bem longe do quarto da minha mãe e de Tony... MI: Nem pense nesse assunto! ...e o mais importante de tudo, bem longe de Tony. Eu entro e encontro mamãe no corredor, cercada de bolas de jornal amassadas. — Olá, amor. Se divertiu? — É, foi legal. Cadê o Tony? — Só deu uma saída para comprar cigarros. Já devia ter voltado a essa altura; provavelmente parou na sinuca. É claro. Se existe trabalho duro a ser feito, Tony geralmente pode ser encontrado na sinuca. Segundo ele, os melhores acordos de negócio nunca são feitos no escritório, e sim “durante uma cerveja e uma partida”. MI: Que seja. Então isso significa que mamãe foi deixada para cuidar de tudo sozinha. Pela quantidade de jornal espalhada no chão, as pilhas de caixas fechadas e ornamentos, livros e outros objetos que estão, nesse momento, desabrigados, ela vai precisar de alguém para ajudar. — Quer alguma ajuda? — Não se preocupe, amor. Está tudo bem. Vá descansar. Aí está minha mãe para vocês; ela dá tudo de si e nunca acha o bastante. Com um “Cala a boca” carinhoso, eu a ajudo na arrumação e simplesmente aproveito este momento com ela. Igual era antes de ela conhecer Tony. Durante a hora seguinte, remexemos em meio a jornais, desmontamos caixas e colocamos as coisas em determinado lugar, apenas para mudarmos tudo de novo minutos mais tarde. Depois de um tempo, mamãe finalmente joga a toalha. — Uma xícara de chá? Acho que ela é movida a chá. Aposto que haveria algum tipo de crise econômica na Índia se ela um dia parasse de beber. — Pode ser, então. — É como tomar uma xícara de aconchego. MI: Também é a hora certa de perguntar a ela sobre o Jogo na sexta-feira à noite... Mas assim que entramos na cozinha, escuto a porta da frente se abrir. Todos os meus instintos de sobrevivência entram em ação, dando sinais de vida através da tensão que se apodera de meu corpo e esculpe uma expressão que talvez até possa passar por
  • 22. um sorriso. Antes de desfilar para dentro da cozinha, Tony coloca a cabeça dentro do lounge e faz um ruído de surpresa e de aprovação. Como se fadas tivessem visitado a casa e arrumado tudo. — Bem, o lounge já está quase pronto — anuncia, como se não fizéssemos ideia. Por trás de meu sorriso vazio, meu MI está funcionando a todo vapor. MI: É. O lounge já está quase pronto. E é claro que você vai ficar aí parado analisando seu domínio como se tivesse tido alguma coisa a ver com isso. A qualquer momento vai pedir um café, como se tivesse merecido. Mas Tony tem uma carta na manga; sempre tem. Ele subitamente avança e tira um grande buquê de flores de trás das costas. Mamãe, naturalmente, se derrete e o abraça, antes de procurar um vaso. MI: Imbecil. A quantidade de flores que ele compra para minha mãe deve ser o que mantém os floristas locais. Mamãe sempre fica genuinamente surpresa e deliciada. Acho que foi aí que papai falhou; ele não fazia esse tipo de coisa, e talvez seja por isso que eu odeie tanto quando Tony faz — é um lembrete das falhas de meu pai, uma pequena pista do que poderia ter afastado meus velhos. Não que nenhum dos dois tenha algum dia me contado o que aconteceu. — Alguma chance de eu ganhar um café, querida? MI: Imbecil. Mamãe já está um passo à frente dele e recompensa o herói preguiçoso com uma xícara de café pelando. Simplesmente não consigo entender; ela nem faz cara feia quando Tony acende mais um cigarro. Ela odiava que papai fumasse e nunca deixava de dizer isso a ele. Claramente está contente e ama Tony como ele é, cheio de verrugas e tudo. Apesar de estar além da minha compreensão como alguém pode ser feliz vivendo com um Imbecil. Com ou sem flores. A voz atropeladora de Tony interrompe a sessão judicial que está acontecendo em minha cabeça. — Boas notícias! Acabei de fechar mais um negócio! E Paul e Tina nos convidaram para jantar sexta-feira à noite para comemorar... MI: Viva! Ganhei! Nada de mamãe nem de Tony = Noite de jogos sem chateações! *Som de trombetas de festa sendo tocadas* Mamãe sorri e desarruma o cabelo dele. — Parabéns, amor! Seria ótimo. Archie? A gárgula em meu bolso se aperta contra minha perna enquanto me remexo no banco, quase insistindo para que eu fale logo. Então o faço: — Posso chamar meus amigos em vez disso, mãe? Você sabe, para jogar. Mamãe olha para Tony, mesmo que eu tenha perguntado só a ela. Ele reage com aquele tipo de olhar de pantomima de “seu maluco”, que revela como aquilo se adequou bem aos seus planos. Ele não queria mesmo que eu fosse. E, pra falar a verdade, eu preferia passar uma noite enfiando agulhas nos olhos do que testemunhar Tony
  • 23. devorando comida chinesa. — Acho que está combinado, amigo! — Obrigado, Tony. Legal. Sorrir nunca foi tão difícil. De volta a meu quarto, baixo um pouco a guarda. Não preciso mais de tanto esforço para mantê-la alta hoje em dia, é mais como uma inconveniência. Certamente irrita. Tony parece ter talento para me afetar, mas não da maneira como a Linda Gótica no Casebre. Minha mente faz a única coisa que eu não deveria permitir e relembra nosso encontro. Com direito a trilha sonora. Estou no Casebre, olhando a gárgula. A música é como a de O Retorno de Jedi quando estão todos no palácio de Jabba — um pouco tensa e perigosa. Alguém bate no meu ombro. Eu me viro num salto ágil e pronto para ação, atento e poderoso. A Linda Gótica está ali, e a vejo tentando esconder a Atração Instantânea que obviamente sentiu ao me ver. A música cinematográfica muda para aquela parte em que Han Solo está prestes a ser congelado em carbonita e a princesa Leia conta a ele que o ama. — Oi — diz ela, soando um pouco nervosa. — Oi — respondo de um jeito confiante, mas que também diz “Estou um pouco surpreso em ver alguém bonita como VOCÊ aqui”. Meu tom de voz e linguagem corporal relaxada sugerem que encontros desse tipo provavelmente são rotineiros para um homem com a minha experiência. — Desculpe incomodá-lo... mas que lugar é esse? — É onde tenho esperado por você. — Minha resposta sai com direito a um sorriso divertido. A Linda Gótica parece estar impressionada com o meu comportamento experiente. A música aumenta. — O-oh — gagueja ela, surpreendida pela minha franqueza. — Tem alguma coisa a ver com mágica? — Poderia ter — sussurro, dando um passo à frente e tirando um Ás de Copas de detrás da orelha dela. Sem conseguir resistir, a Linda Gótica se aproxima para o beijo, agora é inevitável. A música atinge um crescendo e, então, se transforma no tema de Guerra nas Estrelas, registrando meu triunfo. MI: Tá bom. Até parece. Nerd. Dou um daqueles suspiros que só podem vir de um coração que dói em vão. MI: Você é um nerd, ela não; supere isso. Preciso de algo que me distraia de Pensamentos Impossíveis. É hora de começar a pensar em outra coisa, algo em que eu possa me concentrar sem ser como nunca, nem em um milhão de anos, ficarei com alguém como a Linda Gótica. De repente, a gárgula
  • 24. parece apropriada, como um autorretrato. MI: Começam os violinos. Pego meu laptop e entro na internet. Uma das coisas para as quais a web é perfeita é para pesquisar. Enquanto procuro por “gárgula” no Google Images, pego minha nova compra e rasgo o plástico da embalagem. A gárgula se equilibra em minha palma. É um pouco maior do que estou acostumado a pintar — provavelmente uns 45 mm de altura. Está sentada numa pedra, corcunda, as asas de morcego dobradas, como se a criatura estivesse prestes a levantar voo. Debaixo de suas sobrancelhas pesadas e franzidas, dois olhos perfeitamente redondos acima do nariz símio me encaram com fúria. A boca está curvada num sorriso de escárnio, revelando caninos afiados. Ela tem tudo que se poderia querer numa gárgula: orelhas pontudas, chifres, garras, pernas de bode e rabo de dragão. Vou gostar de pintá-la. Os resultados aparecem, e fico vendo imagens de monstruosidades de pedra, decidindo em quais detalhes valeria a pena investir. Está tudo nos detalhes; poderia colocar punhados de musgo ou pintar rachaduras sinistras — talvez até mesmo cocô de pombo. É preciso pensar com ousadia antes de comprometer o pincel. Mais por hábito que por curiosidade, clico no ícone do Facebook na minha barra de favoritos e abro a página inicial em outra aba. Pelo canto dos olhos, dou uma rápida passada pelos posts dos meus amigos. Nada a declarar realmente: Beggsy ficou amigo de alguém chamado Marcus, e Ravi postou uma foto de quando era criança. Matt não está cadastrado — acho que ele tem algum tipo de teoria da conspiração, como se caso usasse o Facebook, todas as pessoas do mundo subitamente poderiam descobrir o que exatamente ele faz quando está sozinho. Como se isso interessasse a alguém. Provavelmente, tem mais a ver com o fato de que, sem seus amigos, Matt não faça muita coisa — o que poderia mesmo ser uma informação bastante deprimente para se compartilhar na internet. Não que Ravi e Beggsy tenham alguma informação de parar o trânsito a revelar. MI: E você tem? Volto para as imagens de gárgulas e continuo minha caça em busca de inspiração. Uma foto chama minha atenção e clico nela para olhar melhor. Quando o faço, vejo minha aba do Facebook piscando. É meu pai. Oi filho. Espero q esteja td bem com vc. Nao posso ir amanha. As criancas estao doentes e Jane precisa de mim. Tvz finde q vem? Amor papai. Odeio quando meu pai abrevia. Não sei por quê. Eu faço isso, meus amigos fazem isso — mas quando meu pai o faz, parece ter alguma coisa simplesmente, totalmente... falsa... nela. Leio a mensagem mais uma vez. Ótimo. Então seus novos filhos estão
  • 25. doentes, e ele não pode sair de casa. Papai herdou três filhos de sua nova esposa. Acho que ele a namorou por cerca de um ano antes de eu ter permissão para conhecê-la. Provavelmente para proteger meu eu de 11 anos de idade de qualquer coisa parecida com um trauma emocional. MI: Como se isso já não tivesse acontecido. Mas papai fez uma enorme besteira: ele me deixou conhecer Jane antes que mamãe descobrisse sobre ela. Através de mim. O que não caiu muito bem. Não era como se mamãe estivesse com ciúmes; entre xícaras de chá ela disse estar feliz por ele ter encontrado alguém. Foi o fato de ele não ter contado a ela antes para que ela pudesse me contar — e ajudado a prevenir Danos Colaterais. E talvez se sentisse um pouco ameaçada por Jane, não sei. Mas seu stress não durou muito tempo — cerca de um ano depois Tony entrou triunfalmente na história e todos ficaram felizes. MI: Quase todos... É, bem, agora tenho Tony e Jane na minha vida, e preciso fingir que são parte da família. Sem falar nos filhos de Jane: Lucas, Steven e Izzy, de 9, 7 e 4 anos, respectivamente. De algum modo, esperam que eu acredite magicamente que essas crianças são os irmãos e a irmã que nunca tive, e que brincar de Lego com eles é o que faltava na minha vida. E que Jane, apenas por assinar um pedaço de papel sem valor num cartório, de alguma maneira tem permissão para ser “legal” e “bacana” comigo de um jeito que me dá calafrios. Suas tentativas de criar “laços” fazem Tony parecer muito sofisticado, e o que ela acha engraçado faria um cadáver tentar se enforcar. Felizmente, desenvolvi um Monólogo Interior MUITO ALTO. MI: Já acabou? Mas acho que papai está feliz. Está sempre tagarelando sobre como se dá bem com “as crianças” e como Jane é uma pessoa tão gentil e carinhosa, então acho que eu já devia estar acostumado a essa altura. Talvez seja minha idade; ela não deveria ser responsável por tudo de errado na minha vida no momento? Nada a ver com o fato de que meus pais estejam vivendo com idiotas. MI: É claro que não estão. É apenas sua idade. Digito uma mensagem que beira a monotonia. Sim, estou decepcionado em não vê- lo amanhã, mas isso foi compensado por perceber que não precisarei forçar o riso após uma das piadas infames de Jane, ou construir mais uma casa de tijolos de plástico. Meus dedos pulam levemente pelo teclado. Tudo bem. Fim de semana que vem está bom. Aperto enviar.
  • 26. Legal. Como ta sua mae? Não sei por que ele pergunta. Provavelmente é uma tentativa teatral de me mostrar que adultos sabem se comportar como adultos. Está bem. Nos mudamos pra casa nova ontem. Legal. E vc gostou do seu quarto? Achei legal. Bem maior que o último. Q bom. Menor tb não dava pra ser! Rs!! O “rs” faz os pelos de minha nuca se arrepiarem. Ter um pai que escreve rs é como descobrir que aquela música do rádio que você gostava era de algum retardado saído de X Factor. É tão, tão errado. Melhor responder com uma pergunta. Como você está? Bem, vlw. Tenho q ir. To fazendo canja d galinha. Rsrs! Até mais no FB. Amo vc xx. x. Com um suspiro profundo, desligo o laptop e levo minha gárgula até a escrivaninha. Já tenho na cabeça uma imagem vívida de como ela vai ficar. Abro a janela no teto inclinado acima de minha mesa e pego uma lata de base. Hora de deixar tudo branco...
  • 27. Quando termino a primeira mão de tinta, ligo o rádio e escuto música enquanto espero secar. Preciso de uma distração; já quebrei uma das Regras de Ouro do Reino dos Nerds e não quero fazer isso de novo: nunca acolher pensamentos sobre garotas que são areia demais para você. Assim a loucura se instala. No entanto, o rádio tem outras ideias, e parece que todas as músicas que tocam trazem escondida alguma referência à Linda Gótica. Por mais tênue: Rádio: “You’re beautiful, you’re beautiful...” MI: *Suspiro* Rádio: “You’re beautiful, it’s true…” MI: *Tenta cantar* “So true…” Rádio: “I saw your face, in a crowded place...” MI: Esse cara estava lá? Como ele sabe? É como se tivesse sido escrita para mim! Rádio: “And I don’t know what to do...” MI/Radio: “Cause I’ll never be…with…you” MI: AAARRRGGGHH! Num esforço final para tirar a Linda Gótica da cabeça desligo o rádio, desembrulho mais algumas miniaturas e encontro meu kit de pintura. Quase dá certo. Há uma batida hesitante na minha porta, e sei que é mamãe: meu Radar de Imbecis® teria detectado Tony arrastando-se escadas acima, agarrando-se ao corrimão para o caso de seus pulmões cheios de bolhas de fumaça decidirem pregar uma peça nele. Mamãe me trouxe um sanduíche de presunto e uma xícara de chá. — Isto é o bastante para o chá, querido? Vou fazer compras amanhã, e teremos um assado. — Obrigado, mamãe. — Vamos assistir a um DVD daqui a pouquinho, assim que Tony terminar de conectar os cabos. Quer ver com a gente? — Não, obrigado. Vou ficar aqui e tentar arrumar meu quarto um pouco mais. — OK. Se tem certeza. Pela expressão dela posso perceber que quer minha companhia, mas não consigo encarar. Para começar, a ideia de testemunhar Tony xingando os cabos e as conexões durante meia hora não me atrai. E tentar assistir com ele ao filme em si é basicamente impossível; Tony tem essa mania de falar com a TV, e me deixa louco. Isso costuma acontecer nos momentos de maior tensão, grandes reviravoltas na trama ou falas engraçadas. Tipo, se for uma ficção científica, e o protagonista estiver procurando um alien, e podemos vê-lo atrás dele, Tony começa a dizer coisas como “Uh-ohhh!” ou “Láaaaa vem ele!”. Ou se a mocinha entra no quarto em que não devia (como sempre fazem na maioria dos filmes), você vai ouvir “Não devia ter feito issooo!” num tom de voz estúpido e cantarolado. Ou quando o herói faz alguma réplica boa, Tony ri e a repete duas ou três vezes, quase como se a estivesse guardando para usá-la mais tarde. Como se ele um dia fosse ter a oportunidade de dizer a um maldito e imundo macaco para tirar as patas dele. A não ser que o negócio dele acabe, e Tony só consiga arranjar
  • 28. emprego como zelador de um zoológico e se envolva numa horrível briga com um gorila. Sonhar não custa nada, certo? — Não, obrigado. Vou só ficar por aqui no meu quarto. — OK. Sabe onde estaremos se mudar de ideia. — E com isso ela sai. Liberado de meus deveres pela noite, tiro meus livros de sua caixa e começo a arrumá-los nas prateleiras acima da minha escrivaninha. Como já deve ter adivinhado, é tudo puro escapismo: O Senhor dos Anéis, Terry Pratchett, a trilogia Bartimaeus, arte de fantasia — esse tipo de coisa. Meus livros com regras de jogos precisam ficar deitados, pois as prateleiras não têm altura para eles. É engraçado, quando se muda e vai arrumar suas coisas, você acaba prestando mais atenção em tudo, quase como se esse novo ambiente pudesse revelar alguma coisa que você não havia visto antes. Sem perceber, passo algumas horas apenas folheando livros, imergindo e emergindo. Só quando escuto o trovão abafado dos passos de Tony na escada, percebo que está ficando tarde e que estou cansado. Mamãe fala do outro lado da porta: — Boa noite, amor! — Boa noite, mãe. Espero até ouvir a som da porta do quarto deles para poder tirar a roupa e deitar na cama. Meu livro de regras favorito veio comigo; acendo meu abajur e começo a ler. Enquanto olho para as imagens e releio regras que conheço quase de cor, sinto o sono pesando em minhas pálpebras. O receio me faz afofar os travesseiros e me sentar um pouco mais ereto. Não quero dormir. Vou lutar contra o sono pelo tempo que conseguir. Não quero que o Sonho venha. Por favor, posso sonhar com a Linda Gótica em vez disso?
  • 29. TRÊS Começa como sempre, comigo adormecido na cama, na mesma posição em que estava antes de pegar no sono. Com aquela estranheza que só acontece em sonhos, posso me ver em minha própria cama, dormindo, apesar de também me sentir deitado na cama. É como se houvesse uma câmera me filmando e uma câmera na minha cabeça, e ambas estão passando as imagens ao mesmo tempo. Posso ver as duas sequências simultaneamente; sem telas divididas ao meio, sem truques — apenas dois conjuntos de informações sendo transmitidas ao mesmo tempo. Meu edredom começa a ser puxado sem que eu impeça. Quando percebo que estou terrivelmente assustado, detecto uma ameaça emanando de alguma coisa oculta ao pé da minha cama. A ameaça é intensa e direcionada para mim. Se ela tivesse cor, seria completa e impenetravelmente preta. O edredom subitamente voa e cai no chão. Posso me sentir e me ver tentando mover minhas pernas pesadas como chumbo e recuar até a parede atrás de mim, mas estou pesado e lento demais. E então acordo. Me levanto num salto e gemo, passando as mãos pelo cabelo. Pelo menos eu não acabei me atirando fora da cama dessa vez. Tenho tido esse sonho volta e meia, já há alguns meses. Às vezes, ele para e me deixa em paz por um tempo; às vezes, faz sessões de cinema completas em minha cabeça, acontecendo duas vezes por noite durante a semana. Espero que isso não seja o começo de uma dessas semanas. Me faz odiar ir dormir e significa que, aos fins de semana, acabo dormindo até tarde e, durante a semana de aulas, praticamente preciso ser içado para fora da cama. Felizmente mamãe acha que é meu relógio biológico se adaptando aos “Horários Adolescentes”. O relógio ao lado de minha cama mostra 6h30 de uma manhã de domingo. Sinto- me como se tivesse sido ligado numa tomada, então não existem chances de voltar a dormir. Com um suspiro relutante, abro a claraboia no teto. Do lado de fora, tudo está quieto, exceto por alguns silvos animados nas árvores da rua. Espero que essa paz de alguma maneira consiga acalmar a barulheira na minha cabeça. Mais tarde, com Tony tendo ido fazer as compras para o almoço, os Deveres do
  • 30. Caçador de Emergências Dominicais inevitavelmente recaem sobre mim. Vou a pé até nossa nova lojinha local em busca de uma caixa de leite e do jornal para minha mãe; vai demorar até Tony voltar, e se ela não tomar uma xícara de chá rapidamente, o universo pode implodir. Avisto a loja e, com um gemido interno, noto um grupo de Boçais do lado de fora. É um bando de pele pálida, olhos escuros, capuzes e cabeças raspadas, e eu sei exatamente quem são: Paul Green, Lewis Mills e Jason Humphries. Se você frequentasse minha escola, também saberia. MI: Escudos a postos! Apesar de estarem todos no meu ano, lembro a mim mesmo que eles não sabem realmente quem sou. Costumo andar fora do seu radar na maior parte do tempo, mas já me viram com Beggsy, Matt e Ravi, e, em algum lugar por trás daquelas sobrancelhas musculosas, terão me registrado como um nerd. O que não devia me incomodar, mas nesse momento sou o único nerd na rua. O problema é que se eu atravessar a rua e andar em outra direção, não só vou chegar em casa de mãos abanando, mas também, de alguma maneira, de um jeito que não entendo, minhas aparentemente inocentes ações vão me marcar como alvo. Terei me rotulado como a gazela ferida, o peixe sangrando — o Nerd Solitário. Então não há escolha a não ser passar por eles e entrar na loja. O truque é evitar fazer contato visual, mas não como se eu estivesse tentando evitar fazer contato visual. Ao mesmo tempo, preciso continuar observando o grupo em busca de sinais de que eu tenha brotado em seus horizontes vazios. Estão tirando cigarros dos bolsos e passando um para o outro, como macacos com suas bananas. Subitamente, me dou conta do meu desejo natural de encolher os ombros e me misturar à paisagem. Não posso fazer isso — qualquer demonstração de submissão significa que terão ganhado o direito de tornar minha vida difícil na hora e no lugar em que bem entenderem. O problema é que andar confiante demais pode ser interpretado como um desafio. Se eu tivesse celular, poderia fingir que estava conversando. Em vez disso, opto pelo velho procedimento de enfiar as mãos nos bolsos e adotar uma expressão indicando que estou pensando seriamente em alguma coisa. Me aproximo e, como uma resposta programada, um deles olha na minha direção. Prendo a respiração, mas sei que é tarde demais, e ele também. Um vislumbre de reconhecimento brilha nos olhos com olheiras de Paul Green. Surge um esboço de sorriso maligno em seus lábios. Já comecei a andar e não posso voltar atrás agora. Mas, subitamente, um dos garotos de costas para mim — Jason — dá um tapa no peito de Paul e indica com a cabeça a direção da loja. Paul e Lewis seguem seu olhar. O que acontece em seguida é um pouco como qualquer cena de Star Trek: A Nova Geração onde Worf precisa demonstrar surpresa. É o tipo de pantomima facial que apenas um verdadeiro doador de cérebro pode dominar. Os três encapuzados a executam com perfeição. Rapidamente me pergunto o que eles estariam olhando, mas para falar a verdade, só
  • 31. estou aliviado por alguma outra coisa ter chamado a atenção deles. E então me pego tendo uma reação similar, quando a Linda Gótica sai da loja e anda na minha direção. Sorrindo. MI: Estou levitando. Adoraria contar que nesse momento os encapuzados somem em meio à paisagem conforme a Gótica praticamente flutua em câmera lenta até mim, ofuscando tudo à sua volta. A verdade é que sua presença — gloriosa do jeito que é — só serve para fazer o bando de Boçais mais consciente ainda de nossa presença. Um deles, Jason, late alguma coisa por cima do ombro. Seus amigos parecem deitar para trás, como se tivessem dobradiças na pélvis, gargalhando e cruzando os braços. Mas seus olhos sem vida e escuros a avaliam da cabeça aos pés como o serpentear de três jiboias. Em outro mundo, sou um Mago Nível 5, capaz de invocar um exército de mortos- vivos para fazer o que mando. Neste aqui, sou um nerd com tanta chance de enfrentar esses imbecis quanto um peido de enfrentar um furacão. Felizmente, a Gótica é mais durona. Com uma virada de sua cabeça de alabastro, ela responde em um comentário com mais palavrões do que alguém poderia imaginar ser possível. Ela mostra “o dedo” para concluir, e, então, posso ter errado, mas tenho quase certeza, seu andar vira um tipo de desfilar que acentua o balanço de seus quadris. Ela para na minha frente e fixa seus olhos azuis como gelo em mim. MI: ...........................................................................Eep. — Você estava naquela loja engraçada ontem, não estava? Amaldiçoo minha nerdice em silêncio e confirmo com a cabeça, como se tivesse sido possuído pelo espírito de um pica-pau. — O Casebre, isso. — Podemos conversar por um instante? MI: Santo Deus. Meu Jesus. — Sim, claro. Com isso ela rapidamente passa o braço pelos meus e me leva para longe da loja. Estou envergonhado, mas não sou orgulhoso demais para admitir que esse foi o máximo de contato que já tive com uma garota em toda a minha vida. É como se, de repente, eu tivesse herdado o sentido de aranha de Peter Parker; cada pedaço de minha pele (em contato com o meu suéter, que está em contato com a blusa preta apertada dela, que está em contato com a pele dela) subitamente está sofrendo de uma sensibilidade aguçada. Para não falar da ligeira florescência de minhas partes baixas. Continuamos andando para longe da loja, o leite de minha mãe tornando-se uma lembrança distante. MI: Querido Sigmund Freud... — Então... er... sobre o que quer falar? MI: Apenas cale a boca por um minuto. Deixe que ela fale. Boca fechada; olhos abertos. A Linda Gótica para de repente e me vira de frente para ela.
  • 32. — Eles já foram embora? Por um momento, não faço a menor ideia de sobre o que ela está falando, e, em seguida, me dou conta. Olho para trás dela e reparo no grupo de Boçais. Até mesmo daqui consigo ver suas testas franzindo. Os três agora estão olhando para nós, e seus vigorosos balançar de cabeças só podem significar encrenca. Então, para meu alívio, eles viram suas bicicletas num movimento que me lembra de caubóis a cavalo, e somem na direção oposta, deixando fumaça de cigarro em seu rastro. — Já foram. — São apenas duas palavras, mas tento injetar o máximo de Han Solo nelas quanto consigo. A Linda Gótica parece apoiar todo o peso numa só perna e deixa metade de seu corpo relaxar. Nunca vi ninguém relaxar tão elegantemente. MI: Vamos lá! Ela está nervosa! Pode conseguir colocar um dos braços em volta dela! Silencio o recém-desperto predador que parece ter se mudado para dentro de meu corpo e vasculho meu extenso banco de dados de filmes em busca de frases apropriadas para dizer. — Eles estavam te incomodando? A Gótica se endireita e me olha bem nos olhos com um sorriso que faria Clark Kent pedir um sanduíche de criptonita. — Por quê? Você por acaso é um ninja ou coisa parecida? MI: Ela sabe que você é nerd! Abortar! Abortar! Isso faz meu ME reagir com uma pane em todos os sistemas. Sem uma frase de filme ou uma sacada genial em que me apoiar, tudo o que consigo fazer é piscar excessivamente, gaguejar um pouco e corar. A expressão da Gótica muda para uma de preocupação. MI: Ter pena já serve... — Sinto muito, não quis dizer isso! Só tenho um senso de humor meio sarcástico. Olha, vamos começar de novo. Olá. Sou a Sarah, e obrigada por me ajudar com aquele bando de perdedores. Com isso ela estende a mão. Creio que devo cumprimentá-la. Meu ME volta a ficar online e consegue esboçar um sorriso meio torto. — Archie. Minha mão sobe e encontra a dela, os sentidos de aranha formigando de ansiedade. Mas não prevejo sua próxima jogada: quando nossas mãos se tocam, ela para por um segundo e subitamente aperta com mais força. Ao mesmo tempo, ela tem um sobressalto quase inaudível, e uma expressão de alarme aparece em seu rosto. — Oh, meu Deus... Ela parece preocupada de verdade agora, e por um segundo tenho essa horrível imagem de meu zíper aberto. Em pânico, tiro minha mão da dela. — O que foi? O quê? — Você realmente... — a preocupação em seu rosto se transforma num tipo de tristeza... — ficou com raiva. Não é? Está magoado.
  • 33. Por essa eu não esperava. Já tive alguns encontros estranhos na minha vida — o pior foi entrar no banheiro enquanto Tony tomava banho —, mas agora temos um novo campeão. Em meio ao caos entre meu MI e ME, alguma coisa em sua voz pura toca num fragmento da minha alma que mantive escondido por um longo tempo. Mas não me sinto prestes a me confessar para a menina mais bonita que já conheci. — Não estamos todos? MI: Bom trabalho. Parece experiente, e não é uma confirmação nem uma negação. Uma carreira na política está acenando. Sarah me olha semicerrando os olhos, como se tentando sondar mais a fundo, e então, de repente, começa a agir como se nada tivesse acontecido. — Por que estava naquela loja ontem? — Gosto dos jogos. — São todos sobre mágica e coisas assim, não são? — Bem... são. — Então acredita em mágica? — São jogos de RPG. Você meio que finge e segue as regras. — Quero morrer. — Mas você acredita em mágica? Se acredito ou não em mágica não importa de verdade para mim agora. O que importa é que Sarah ainda está andando comigo depois de minha resposta, que foi: — Vou ter que responder isso mais tarde. Preciso comprar leite. Nada impressionante, sei disso. Mas ainda, para cimentar minha posição no mundo como um perfeito idiota, acrescento: — Mas já li Harry Potter. A resposta de Sarah consiste num sorriso confuso e numa série de piscadas, o que só reforça minha suspeita de que sou tão idiota quanto pareço. Refazemos nossos passos num silêncio ensurdecedor, e ela espera do lado de fora da loja enquanto me amaldiçoo até terminar de pagar pelo leite. MI: QUE MELECA HÁ DE ERRADO COM VOCÊ? POR QUE NÃO GRITOU LOGO “EXPELLIARMUS” E A CONVIDOU PARA JOGAR UMA PARTIDA DE QUADRIBOL? Acho que a última vez em que me perguntaram se eu acreditava em mágica foi quando estava na plateia de um mímico quando era criança. Na época, a resposta era óbvia — é claro que mágica existia, é claro que existia Papai Noel e era fato inegável que algo abominável se escondia debaixo da minha cama à noite. No entanto, conforme o tempo passou, e pelos cresceram, a ideia de mágica simplesmente nunca mais me ocorrera; ao menos não como sendo real. Começamos a caminhar e a conversar — duas coisas que faço quase todo dia, mas que agora pareciam quase impossíveis de coordenar. Demoro um momento para perceber que estamos andando na direção de minha velha casa, de volta na direção da cidade, e que em breve teremos que nos separar. Mas quero que isso dure para sempre.
  • 34. Meu ME diminui o passo para um arrastar lento. Como o que casais de velhinhos usam. Enquanto pondero, fico aflito e me amaldiçoo, consigo explicar a mecânica de RPGs para Sarah, que quer saber como eles funcionam. E que está parecendo confusa. — Então usam dados? Realmente quero morrer agora. Melhor ainda, queria que Jason Humphries e seu bando de Boçais reaparecessem e que eu subitamente possuísse as habilidades ninja que obviamente estão tão ausentes de minha vida. Isso sim seria mágica. Em vez disso, estou subitamente prestes a justificar o fato de jogar o que de repente parece ser um jogo para crianças. MI: Me passa o Lego. — É, temos sistemas de pontos, e você usa o dado para acumular ou perder pontos, desse jeito pode aprender habilidades novas ou ficar mais forte. — Então tem muita matemática no meio? — Bem, sim... Mas não é realmente só jogar dados. É mais sobre criar um personagem e tentar reagir como aquele personagem reagiria. — O quê? Como atuar? — Mais ou menos. Acho que é mais como narrar uma história; você fala o que seu personagem está fazendo. — Dá para morrer no Jogo? MI: Eu poderia morrer agora mesmo, se você quisesse. — Sim. — E o que vocês fazem? Se fantasiam? — Seus olhos antárticos cintilaram de escárnio, mas ainda assim pareciam sexy. — Não! Usamos modelos. Bonecos. — Miniaturas? A essa altura, estou ansiosamente esperando o barulho dos pés ossudos da morte chegar atrás de mim, quase desejando sua mão esquelética no meu ombro. — É. Miniaturas. — E para quê? Quer dizer, se está narrando uma história. — Er... Elas servem mais para dar uma ideia de onde as coisas estão, como se você estivesse numa batalha ou coisa assim. Não estou explicando muito bem; você teria que jogar para entender. — OK. Eu queria tentar. Posso? MI: Ah. Meu. Deus. Agora experimento emoções contraditórias. Uma alegre leveza de espírito: a menina mais linda que já vi — com quem tive algum tipo de contato físico — quer jogar RPG comigo. A outra sensação é como se chumbo líquido tivesse sido acrescido à minha alma: se permitir isso, estarei em uma posição vulnerável. Ela vai me julgar pelo que sou: um nerd de proporções bíblicas. Minha boca está seca, e meu estômago parece estar pegando fogo. O que eu faço? Fico na ponta dos pés e me curvo ao vento ou me afasto da beirada?
  • 35. É agora ou nunca. Agora é um lugar bastante assustador no momento. Nunca é seguro e pacífico. — Tá. OK. — Ótimo! Quando? — Bem, vamos jogar uma partida sexta-feira à noite. Pode vir se quiser. — Legal, encontro você na sexta. MI: Encontro? Ela disse “encontro”! Ela disse “encontro”! Ah meu Deus — é um encontro! Tenho um encontro! Com ela! Um de verdade! Um encontro! Sei que não é um encontro, não oficialmente, mas uma parte de mim subitamente está convencida de que é. É essa fantasia louca que me impede de escutar sua próxima pergunta, então Sarah precisa repeti-la. — Preciso levar uma miniatura? Imagens de anões passam pela minha cabeça. — Hum... não. Não. Tenho uma que você pode usar. — Subitamente, paro; isto é o mais longe que posso ir sem andar com ela até sua casa. Por mais que fosse adorar fazer isso, acho que poderia ser interpretado como perseguição. — Legal. Te vejo na escola e podemos combinar. — Escola? — guincho. Não é uma palavra que normalmente guincho, mas nessa ocasião ela faz meu coração palpitar a um nível que me leva a imaginar quanto tempo vai demorar até os paramédicos chegarem. — É. Você não estuda na escola local? Confirmo debilmente com a cabeça. — Eu também! Então, te vejo lá! Tchau. Ela estuda na minha escola? Enquanto sorrateiramente a observo se afastando, absorvendo o máximo de detalhes possível, acho impossível pensar que poderia não ter reparado nela antes. Talvez seja nova. Mas pensando bem, sou um nerd, e nerds sabem que existem certas garotas que você não deve nem olhar — não deve nem reconhecer que existam. Porque se faz isso, seu coraçãozinho nerd vai se despedaçar com a compreensão de que basicamente nenhuma garota nunca, jamais, estará ao seu alcance. Especialmente garotas como Sarah. Ela, que conversou comigo e quer ir à minha casa na sexta! Justo quando meus ânimos abrem suas asas e se preparam para voar, como uma águia, por cima dos telhados, uma freada de carro e uma buzina me trazem de volta à Terra. É Tony. Ele para o carro no meio-fio e abaixa o vidro. O pânico toma conta de mim como um incêndio numa floresta: o quanto ele viu? Por favor, Deus, não deixe que ele arruíne isso para mim. — Ei, Arch! Quer uma carona? Eu entro no carro, meu ME fazendo seu melhor para não parecer como se eu tivesse acabado de passar um tempo com uma garota de verdade, ao vivo. Tony se anima e um sorriso largo retorce seu rosto enquanto nos afastamos da calçada. — Seu garanhão espertinho!
  • 36. QUATRO A viagem de carro é um coquetel de fumaça, negações e acenos de cabeça. Por mais que eu tente dizer a Tony que não estou saindo com Sarah — o que não estou mesmo —, isso não inibe o balançar de sua cabeça, como o de alguém que sabe tudo, e a risadinha “não adianta tentar me enganar” que acompanha cada uma das minhas tentativas de explicar a situação do modo mais casual possível. Não me ajuda o fato de meu ME ter entrado numa velocidade mais rápida que a da luz, fazendo meu rosto arder mais que uma abóbora de Halloween. Mas ainda mais preocupantes são as tentativas de Tony de me elogiar a respeito de meu gosto para garotas (como se eu a tivesse encomendado pelos correios ou coisa parecida). Escutar o homem que está vivendo com minha mãe descrevendo uma adolescente como “gata” me faz querer que o carro de Tony tivesse um assento ejetor. O dele ou o meu — não importa. Entendo que esta é uma tentativa de “formar laços” comigo, mas os únicos resultados palpáveis são minhas unhas se enfiando em minhas palmas, e meus dedos do pé se encolhendo dentro do tênis. — Então, quando é que vamos conhecê-la? MI: Que grande ideia, Tony! Vou levá-la lá em casa para que possa escutar seus comentários sem sentido sobre a vida, e depois, para completar, vamos ao jardim atear fogo em nós mesmos! — Não sei. — Estou ficando sem energia. — Por que não a convida uma noite, depois da escola? Posso fazer um jantar, e podemos todos nos divertir. MI: ESTÁ LOUCO? — É... sei lá... vamos ver no que vai dar. — Estou perigosamente perto de aceitar sua oferta, o que seria um desastre. — Já contou pra sua mãe? — Contei o quê? — Sobre sua namorada. — Mas ela não é... Não. — Desisto. — Bem, vamos pra casa dar as boas novas a ela. Jesus, isso está saindo de controle. Tudo que eu fiz foi buscar uma garrafa de leite e agora pareço estar no meio de algum tipo de novela romântica! A ideia de encarar minha mãe e contar a ela que tenho uma namorada — coisa que não tenho — é demais para sequer levar em consideração. Realmente, preciso me controlar; é apenas uma garota
  • 37. indo à minha casa. OK, é a primeira vez; mas uma hora tinha que acontecer, até mesmo pela Lei da Probabilidade. E sou o primeiro a admitir que para mim não parecia muito provável. — Ela ficará feliz por você. E é aí que saco seu joguinho. Ele o entrega a mim sem notar — um sorrisinho para ele mesmo, uma sutil mudança de comportamento. Eu ter uma namorada justificaria sua existência. De repente tudo faz sentido. As pessoas ficam juntas. Se eu posso, então não há razão para minha mãe não poder. A presença de Tony na minha vida seria completamente justificada. Uma parte sorrateira e vergonhosa de mim percebe que se esse fosse o caso, eu não teria mais do que reclamar. Teria que aceitá-lo. Estamos chegando em casa, e não quero ficar nela neste momento. MI: Cai fora! Cai fora! — Ah! Acabei de lembrar! Ia encontrar os meninos no Casebre. Pode me deixar lá? — Com alguma sorte, a preguiça inerente de Tony vai instantaneamente descartar a ideia de dirigir de volta à cidade e vai dar alguma desculpa para parar o carro. Assim eu posso sair, e o interrogatório terá fim. — É claro, parceiro. Não se preocupe, vou preparar sua mãe. MI: Parceiro? E assim tem início. A aceitação de Tony na família começa aqui. Normalmente, a essa altura, eu estaria querendo morrer. Hoje, no entanto, quero que Tony morra. Mesmo que ele tenha milagrosamente decidido me levar de volta para a cidade. Paramos na frente do Casebre, entrego o leite a ele e saio do carro, meu ME acenando casualmente para meu padrasto conforme ele se afasta. A maneira com que isso está se desenrolando me deixa cansado; preciso arejar a cabeça. O Casebre é o melhor lugar em que pensei. Apesar de ser domingo, há bastante gente aqui. Heavy metal antigo está tocando ao fundo, gritando alguma coisa sobre fugir para as colinas. Quem quer que esteja cantando traduziu meu humor com perfeição, e a ideia de simplesmente sumir é atraente. Eu poderia arrumar minha mochila. Com meu confiável cajado, poderia simplesmente perambular pelo campo, como Frodo Baggins. Mas não tenho mochila nem cajado, e o Nazgûl que está me perseguindo tem um BMW. Além disso, não conseguiria fazer isso com mamãe. Mais uma música de metal da Idade das Trevas começa a tocar — alguma coisa com “You Shook Me All Night Long”. Como um antigo demônio atendendo uma invocação, a serpente do sexo em minha cabeça se desenrola e sussurra uma ideia. E é das boas. Preciso pintar uma miniatura para Sarah. OK, essa pode até não ser uma ideia revolucionária para a maioria das pessoas, mas funciona para mim em diversos níveis. Indulgentemente imagino a cena. Sarah entra em meu quarto (de agora em diante conhecido como a Toca). Matt, Ravi e Beggsy estão lá, sentados ao redor da mesa de jogos. Como um verdadeiro
  • 38. cavalheiro, puxo uma cadeira para ela, que se senta — é impressão minha ou Sarah está um pouco corada? Talvez seja a loção pós-barba que estou usando. Sarah olha ao redor de minha Toca, a curiosidade aguçada pelas pilhas de volumes antigos que se enfileiram nas paredes. Entrego a ela uma ficha de personagem para o Jogo, já preenchida e pronta. Ela olha para os meus amigos e para as miniaturas que eles estão segurando; a decepção se estampando em seu rosto perfeito. — Oh! — exclama. — Não trouxe minha miniatura. — Não se preocupe — respondo, com um sorriso casual —, aqui está um que preparei para você mais cedo. Sarah pega a miniatura de minhas mãos, mal conseguindo esconder sua satisfação por eu ter pensado nela, cheia de admiração por minhas pinceladas magistrais. — Fez isso só para mim? Eu me sento e casualmente revelo uma garrafa de champanhe. — O prazer foi todo meu. Alguém gostaria de um drinque? Enquanto sirvo as taças, e meus amigos concentram sua atenção em dados e livros de regras, Sarah abre um sorriso furtivo para mim, e tenho certeza de sentir alguma coisa acariciando minha perna... Essa não é a hora nem o lugar de ir em frente com essa narrativa em particular, então volto minha atenção para as fileiras de embalagens plásticas que estampam as paredes. É com certa indignação que me dou conta, pela primeira vez, da falta de modelos para garotas. Qual o problema com as empresas fabricantes? Será que não percebem que garotas também jogam? Ou acham que esses jogos são apenas para a diversão de garotos de 14 anos que nunca tiveram namorada? MI: E assim a promotoria encerra seu argumento. Depois de procurar um pouco, consigo achar alguma coisa: tem um arqueiro (arqueira?), uma bruxa elfa e um ladrão elfo (elfa?). Qual eu levo? Isso é mais difícil que escolher um modelo para mim; Matt, Ravi e Beggsy saberão que o pintei só para a ocasião e serei escrutinado. Vão ficar procurando sinais de qualquer coisa sentimental demais, como uma miniatura parecida com Galadriel. A arqueira é bem decente: está usando uma jaqueta de couro e leggings apertadas que exibem suas pernas, mas tenho a impressão de que Sarah a acharia meio sem graça. As outras duas são elfas, pelas quais sempre tive uma queda. Elfas são sexy: têm privilegiadas estruturas ósseas angulares, compridos rostos lacônicos e até mesmo um quê sensual naquelas orelhas pontudas. A ladra está segurando uma bolsa de couro cheia de saques numa das mãos e uma adaga curvada na outra. Ela tem garrafas presas ao cinto, que eu poderia pintar de forma a parecerem uma variedade de venenos. Mas, ainda assim, não é perfeita. Não é interessante o bastante. A bruxa, no entanto, talvez seja um pouco interessante demais. A bruxa obviamente é do time dos vilões. Não que ela seja um trapo velho com rosto de lua crescente — é uma elfa, esqueceu? Essa bruxa tem um sorriso cruel, porém sedutor, no rosto elegante. Um de seus braços está esticado, como se estivesse lançando
  • 39. um feitiço, e o outro envolve uma bola de cristal. Mas o problema é sua roupa: botas até as coxas, luvas até os cotovelos e um colete curto provocantemente decotado. Some a isso algumas pulseiras e uma tiara em sua cabeça e já pode ter uma noção. Será que ouso comprá-la? Admito que receberia muitos elogios dos meninos por presentear Sarah com essa boneca — mas como será que ela reagiria? Com um elogio? Com uma expressão de horror? Ou ela olharia no fundo de minha alma e veria a verdade por trás daquilo — um flerte. Olho de novo a miniatura e, por um instante, sinto como se estivesse comprando uma revista masculina — coisa que nunca fiz, a propósito. É com certo nervosismo que me aproximo do caixa antes de entregar a bruxa a Big Marv. Ele a apanha e olha através do plástico protetor, examinando-a rapidamente. Em seguida, ergue uma sobrancelha em reconhecimento. — Boa sorte — diz. Chegando em casa, me apresso em meio às bolas de jornal e caixas de papelão vazias e subo para o meu quarto. Enquanto me esgueiro como Gollum pelo corredor, o barulho de rádio do lado de fora revela que mamãe e Tony estão em algum lugar do jardim. Perfeito. Subo as escadas até minha Toca, fechando a porta do quarto atrás de mim o mais silenciosamente possível. Meu ME se acalma, e me acomodo em minha mesa de pintura para reexaminar a miniatura de Sarah. É um pouco boba. Subitamente, minhas fantasias indolentes de impressioná-la com minhas habilidades estilo Michelangelo parecem bem menos cinemáticas; sinto como se tivesse acabado de ser pego rabiscando um pênis na carteira da escola. Não que já tenha feito isso, veja bem. Na segurança do Casebre, a bruxa parecia ligeiramente sofisticada, tinha um toque refinado. Agora ela parece uma coisa que um adolescente sexualmente frustrado poderia esboçar em seu bloco de desenho à noite e de manhã limpar a sujeira se sentindo um pouco culpado. MI: Sem comentários. Talvez uma camada de base melhore as coisas. Abro a trapeira acima de minha escrivaninha e borrifo na bruxa uma fina névoa de branco mate. Enquanto ela seca, examino a gárgula: está sentada curvada, quase me olhando feio, implorando por cor. Hora de um banho de preto. Um banho, para os não iniciados, é quando você dissolve uma cor até parecer quase água suja. Em seguida, usando um pincel, você a chuvisca em sua miniatura. O líquido entra em cada canto e fenda, levando junto o pigmento, expondo todos os detalhes.
  • 40. Está tudo nos detalhes. Depois de seu banho, a gárgula já parece mais viva; posso ver as rachaduras e texturas na pele de pedra em volta de sua boca, os sulcos em seus chifres e tendões se retorcendo em seu peito e ombros. Posso até ver suas íris, que são cortes horizontais, como os de um lagarto. — Olá! Meu ME demora um segundo para entrar em ação, mas eu não precisava ter me preocupado muito; é apenas minha mãe. MI: Opa. Opa mesmo. Ela está exibindo um daqueles sorrisos bobos que revelam que mal pode esperar para conversar sobre alguma coisa. MI: E todos sabemos que coisa é essa, não sabemos? Meu ME reage mandando um sorriso ligeiramente tímido para meus lábios, o que não dá muito certo e acaba parecendo mais que estou tendo um acesso de gases. Ainda com o sorriso bobo no rosto, mamãe entra e se senta na ponta de minha cama. — Então... — O sorriso quase divide seu rosto em dois, e suas sobrancelhas ansiosas alcançam o céu esperando pelas Gloriosas Notícias. MI: Por favor. Deus. Não. — Tony me contou que você tem uma namorada. A essa altura meu MI mal consegue se conter e está lutando com meu ME por supremacia. MI: SOS! Desvie toda a energia para o motor principal! Empregar dispositivo de camuflagem! Detonar núcleo do reator! Precisamos de fator de dobra espacial nível cinco ou todos morreremos! FAÇA ALGUMA COISA! Minha coluna parece se derreter e escorrego na cadeira, meus olhos se revirando para um lado, um suspiro cansado reforçando a possibilidade de eu estar esvaziando. — Ela não é minha namorada, mãe. — Oh? — O sorriso já era. Expressão de surpresa. — Não. É só alguém que conheci. — Ah. — Expressão de decepção. MI: Não é incrível como os adultos podem imbuir vogais de tanto significado? — É apenas uma amiga. — Tony achou que havia mais alguma coisa... Murcho um pouco mais, dessa vez com um gemido. Se isso continuar, em breve serei pouco mais que uma pele vazia. Mamãe faz menção de se levantar da cama. — Tudo bem se não quiser falar no assunto... Se mágica existe de verdade, então não precisa procurar além do Poder das Mães; a menor entonação ou o menor gesto pode te fazer sentir como se ainda usasse fraldas. E provavelmente sujas. MI: Não! Seja forte! Resista! Eu desisto e retomo o controle sobre meu MI.
  • 41. — Não... não, tudo bem... Ela não é minha namorada, mãe... Mas... — Mas gosta dela? — Aquela expressão de esperança volta, a mesma que reza para que seu filho possa se livrar das Algemas da Nerdice. Apesar de todas as suas tentativas de recuperar minha dignidade, o velho ME simplesmente não foi feito para esse tipo de pressão. Ele desiste e inunda meu rosto de sangue, que prontamente acende como labaredas solares. — É... acho que sim... É. — E qual é o nome dela? — Sarah. — Ela estuda na sua escola? — Acho que sim. — Estou ficando cada vez mais vermelho. Mamãe se debruça de um jeito meio conspiratório, cheia de entusiasmo nos olhos. — Convide-a para sair, Archie. Chame Sarah para um encontro. MI: Aconteceu, ela finalmente enlouqueceu. — É... boa ideia, mãe... Mas não é tão simples assim. — É tão simples assim, Archie; quem não arrisca não petisca. Adoraria acreditar nela, adoraria poder adotar essa atitude simplista, mas ela não entende! A mera ideia de chamar Sarah para “sair” me enche de horror e autoaversão. Do mesmo modo, pareço não conseguir encarar os ridículos níveis de entusiasmo que contar a mamãe sobre a visita de Sarah causariam. E não quero atrair má sorte; vou contar a ela quando estiver tudo certo na minha cabeça. — Tony disse que quer que eu a convide para jantar uma noite. — Por mais que tente, não consigo disfarçar o terror em minha voz. — Não se preocupe. Vou falar com ele, dizer para não ficar pressionando. Sei como pode ser embaraçoso contar a uma garota que gosta dela, mas ele está apenas feliz por você. E eu também. O rostinho sincero de minha mãe quase me faz querer chorar. Não lágrimas de alegria, mas lágrimas induzidas pelo fato de que ela vai acabar sendo desapontada por seu filho socialmente inepto. — Convide-a para sair, Archie. Seria bom para você ter uma namorada. O almoço está quase pronto. — E, com isso, ela sai porta afora com um perceptível ânimo em seus passos. Quando finalmente desço para almoçar, Tony obviamente já foi reprimido, e o assunto Sarah, encerrado. No entanto, fica claro que foi encerrado de maneira forçada, porque os efeitos que teve fazem qualquer outro assunto parecer forçado e artificial. Limito minhas respostas a acenos de cabeça e grunhidos, tentando mergulhar no meu porco assado. Depois do almoço, corro de volta até minha Toca e desembalo mais algumas caixas, folheio livros de regras velhos, pinto um pouco — qualquer coisa menos pensar no que quero pensar, mas sei que não devia pensar. Não consigo evitar; acabo pensando assim mesmo. Onde será que ela mora?
  • 42. MI: Melhor parar com isso... As lojinhas da vizinhança ficam a vinte e cinco minutos de caminhada da minha casa nova. Considerando que vi Sarah nas lojinhas da vizinhança, deve significar que as lojinhas da sua vizinhança são as da agora minha vizinhança. MI: Daqui a pouco estará nos dizendo que a soma de dois mais dois é igual a quatro! E considerando que ela estava a pé, significa que sua casa também não pode ficar muito longe. MI: Como descobriu isso, Holmes? Como será que é a casa dela? MI: Melhor parar com isso... Só que por mais que eu tente, simplesmente não consigo imaginar o tipo de casa onde uma garota tão bonita moraria; esta peça do quebra-cabeça ainda está para ser encontrada. É como se eu quisesse imaginar com precisão e não pudesse aceitar nada menos que isso. MI: *Barulhos de vômito* E do que será que ela gosta? Será que sigo o exemplo de Tony e começo a pensar em flores? Nunca comprei flores; quais serão suas preferidas? MI: Por que não começa a planejar o casamento de uma vez? Não é nem um encontro de verdade, sua aberração! Meu MI tem razão. Preciso parar de pensar nessas coisas. Continuo a esvaziar as caixas, mas depois de algumas horas, um sanduíche apressado, algumas falsas tentativas e um animado “boa-noite” de mamãe, acabo desistindo, deito na cama e adquiro um profundo interesse pelo teto. O que será que Sarah está fazendo agora? MI: Não está gastando a mesma quantidade de energia pensando em você, isso é certo... O sono deveria ser uma abençoada liberação das provações e tribulações de minha vida amorosa inexistente, mas o Sonho está mais uma vez à minha espera. Acordo num sobressalto, bem na hora em que estou prestes a descobrir a identidade da coisa ameaçadora que fica na ponta da minha cama — e percebo que ela está me olhando de cima. Usando chinelos. — O que está fazendo aí? E ainda está com as roupas de ontem! Anda logo, terá um grande dia na escola hoje. É mamãe. Resmungo e deito de costas, subitamente me dando conta de um fio de saliva me ligando ao chão. — Devo ter caído da cama — balbucio, ficando de pé. — O que vai ter na escola hoje? Aquele sorriso entusiasmado de novo. Lá vem. — Vai chamar aquela garota para sair. MI: Sem pressão, realmente.
  • 43. CINCO Sei que isso vai cimentar minha posição como Nerd, mas gosto da escola. Gosto de aprender — gosto até mesmo de dever de casa. Fico escutando os adultos dizerem que os anos na escola foram os melhores de suas vidas e, embora existam coisas piores que ser um virgem louco por livros, espero que não seja verdade. Mas hoje é um dia com um brilho a mais. Hoje pode ser que eu veja Sarah. Meu estômago parece ter virado lar de um caleidoscópio de borboletas. Ravi e eu rimos em silêncio sobre os detalhes do sistema reprodutivo feminino na aula de biologia, e Matt empresta seu humor cáustico a um debate sobre os temas de Ratos e homens na aula de inglês. É um dia normal o bastante, mas sem sinal de Sarah. MI: Se um homem fica solitário demais, ele fica doente... A hora do almoço agita sua varinha mágica, e recebemos permissão para conversar uns com os outros sobre coisas realmente importantes para nós. Para mim, Matt, Ravi e Beggsy, isso significa planejar a sessão de sexta-feira à noite. Ainda não tive a chance de mencionar que Sarah estará lá, e toda vez que penso que vou falar alguma coisa, sinto uma onda de pânico no estômago, e meu cérebro muda o rumo da conversa para outra direção. Geralmente Kirsty Ford — eles mordem a isca direitinho. — É, mas como acha que eles são? — pergunta Beggsy. — Isto é, quando estão soltos? Há um breve momento de silêncio em nossa mesa. O restante do refeitório continua conversando e comendo, sem saber do Ninho de Perversão à espreita a poucos metros das lancheiras, peixes empanados e batatas fritas. — Soltos? — zomba Matt. — Não estamos falando de frangos fugindo de um galinheiro... — Mas cairiam bem com algum enchimento do mesmo jeito — responde Ravi, e todos nós gememos. — Mais um pouco de decoro, por favor, cavalheiros — interrompo. — Se vamos mergulhar em tais profundezas... — risadinhas silenciosas da assembleia —, então vamos ao menos mostrar algum nível de respeito. Sr. Beggs, você tem a palavra. — Só estou perguntando se acham que apontam para cima ou para baixo, só isso. Mais um silêncio chocado se segue. Beggsy tenta retomar o assunto. — Eles desafiam a gravidade ou estamos falando de um par de orelhas como de um Cocker spaniel? É uma pergunta importante!
  • 44. Mais risadas da assembleia e gritos meus de “Ordem! Ordem no tribunal!”, considerando que pareço ter sido extraoficialmente eleito juiz. E tão subitamente quanto começou, a risada diminui, e, tarde demais, meu Detector de Boçais® é ligado. Demoro uma fração de segundo para perceber a mudança na linguagem corporal de meus compatriotas: ombros se curvam, olhos baixos e inexpressivos, expressões ilegíveis em todos: a versão Nerd de Abaixem-se e Escondam-se: Acovardem-se e Tremam. Tem alguém atrás de mim. MI: Ops... Meu ME tenta imitar, usando a sua melhor tática de camaleão para me misturar ao ambiente, mas a mão de alguém em meu ombro expõe meu blefe; não tenho outra opção senão virar. O que faço, muito devagar. Uma testa musculosa se franze para mim. — Você é aquele garoto do lado de fora da loja ontem. De perto, Jason Humphries é ainda mais aterrorizante; sua pele parece a superfície da lua, e ele tem linhas de expressão visíveis em volta da boca. MI: Provavelmente resultantes da alegria vivenciada 24 horas seguidas por ser mais durão que Deus. Por um momento, não tenho certeza nem mesmo se tem a mesma idade que eu — certamente nenhum garoto de 14 anos poderia aparentar ser tão grisalho. E ele parece ter mais dentes que o permitido, todos pequenos, mas afiados como facas. O cheiro de fumaça de cigarro em seu hálito é forte enquanto me encara com olhos sem vida. — É você sim. MI: Negue! Negue! Negue! Mesmo diante de evidências fotográficas! Você não estava lá! Era seu irmão gêmeo! Qualquer coisa menos a verdade! — Hum... é. MI: Das cinzas às cinzas, do pó ao pó... Sinto as mãos fortes de Jason se fecharem rapidamente em meu ombro, subitamente me dando conta de que ele está usando um anel enquanto me aperta através do suéter. Ele pisca como as vacas piscam quando têm moscas à sua volta lhes aborrecendo. — Então, quem era aquela garota? MI: Irmã. Responda irmã. —Hum... só uma amiga... O cheiro de cigarro torna-se mais forte conforme a cabeça de bigorna de Jason se aproxima da minha. — Bem, diga a ela que quero conhecê-la, entendeu bem? Confirmo fervorosamente com a cabeça e acho que a palavra “claro” cai de minha boca como o excremento de um coelho. — Bom. — Ele aperta mais uma vez meu ombro e em seguida se afasta como um tubarão que acaba de detectar uma gota de sangue em meio a um milhão de litros de água. Lentamente, meus amigos se desdobram como animais de origami amassados. — Que garota? — Matt é o primeiro a perguntar.
  • 45. MI: Ah, maravilha. Lá vamos nós mais uma vez. — Aquela garota do Casebre. Esbarrei nela de novo. Ontem. — Cara! — Beggsy consegue milagres com essa palavra. Dessa vez ela significa *Está impressionado*. — E quanto ao Humphries? — De todos nós, Ravi parece ter sido o mais abalado e não se importa com quem possa perceber. Aquela sensação de impotência e medo está estampada em seu rosto. MI: E ele nem tem nada a ver com a história! — Ele estava lá. Com Paul Green e Lewis Mills. — Cara! — Dessa vez significa *Está preocupado*. — E ele gostou dela. — Sim, Matt. Gostou. — Começo a ficar meio irritado com meus amigos apontando os aspectos potencialmente fatais de minha situação. MI: Abram alas! Abram alas para o homem morto passar! Abram alas! O sentimento alegre de meu MI ecoa nos rostos de meus amigos e na nuvem de silêncio que parece ter coberto nossa mesa. — Aquela garota vai te meter em encrenca, cara. Tento retomar o controle sobre minha respiração. MI: Veja o que está sentindo, Archie. Você sabe que é verdade... E não importa o quanto eu queira que não seja verdade, é verdade; Jason Humphries, a Avalanche Humana®, gosta da mesma garota que eu. De algum modo, não acho que um duelo de madrugada faça seu estilo. Demora o caminho do almoço até minha aula seguinte para a minha pulsação voltar a ser algo parecido com o normal. Já tendo revelado que adoro a escola, meu coração se aperta quando o Sr. Cook revela a última dose de dever de geografia. Hoje à noite — e provavelmente pelas duas próximas também — estarei pesquisando sobre a precipitação no nordeste da Inglaterra. Na minha vida, quando chove, alaga tudo... O sinal nos faz sair correndo como uma torrente de formigas para o corredor, e meu inerente Detector de Boçais® examina o terreno em busca de armadilhas: trilhas de pegadas em formato de juntas dos dedos, matanças recentes ou até mesmo excrementos frescos (geralmente guimbas de cigarro ou planilhas amassadas). Até agora tudo tranquilo, mas Boçais, como leões, tendem a observar de longe, escondidos em meio à mata. Ou nos banheiros, o que for mais conveniente. Mais à frente, Ravi sai da sala de matemática, me vê ao virar e me espera. Ele chama Beggsy e Matt, que estão indo beber água no bebedouro. Mas só consigo enxergar a pessoa que sai da sala atrás de Ravi.
  • 46. — Olá, você. Ela segura meu braço, e, uma vez mais, estou olhando dentro dos olhos azuis como gelo de Sarah. MI: Ela está no seu ano! Dirigir-se a um garoto de 14 anos como “Você” é a maneira certa de obter sua atenção. No entanto, preceda isso com um “Olá!” e vindo da boca de um sociopata de 14 anos e a promessa não é mais tão atraente. Meu Detector de Boçais® dá uma rápida olhada no ambiente ao redor — até agora tudo bem. MI: Aqui está um problema complicado: seus três melhores amigos bem à frente e Starshine nos seus braços; como é que você vai resolver essa questão? Mas meu Monólogo Interno está sendo ignorado no momento. Estou me recuperando da mudança na aparência de Sarah. Não me admira não a ter reconhecido: a) claro que ela é nova na escola — era impossível que até mesmo eu não a tivesse notado antes; e b) o visual gótico devia ser uma coisa de fim de semana. Maquiagem gótica tem um lado ligeiramente proibido; será que esconde uma estonteante beleza, ou vai desmascarar uma górgona que colocaria Medusa na lista das Cem Mulheres Mais Sexy do Mundo? Felizmente, é a primeira opção; sua pele é clara e perfeita, e sua boca levanta mais de um lado quando ela sorri, como se ela soubesse de alguma coisa que você não sabe. O que, no meu caso, provavelmente é verdade. Estimulado pela bela em meu braço, ergo o outro e corajosamente chamo meus camaradas. MI: Você é um Nerd! Não devia estar fazendo isso! Mas imprudentemente, pela primeira vez em minha vida, deixo meu manto de lado e ando até meus boquiabertos colegas com mais que uma pitada de presunção. — Pessoal — começo num tom autoritário, me afirmando como o Macho Alfa do grupo. — Esta é Sarah. Sarah, estes são Beggsy, Ravi e Matt. — Meus amigos se atrapalham e murmuram alguns “Olás” e “Ois”, sem dúvida admirados por sua incandescente beleza e possivelmente perturbados pela nuvem de testosterona que me transformou num Homem do Mundo, charmoso e a quem não subestimar. Por um momento, penso em deixar o bigode crescer. Sarah lida com a adulação silenciosa como uma completa profissional; ela cumprimenta meus amigos um de cada vez, mantendo contato visual com cada um deles, o que, para um Nerd, é o equivalente a olhar o Super Homem nos olhos quando ele está com sua visão de raios X. — Estou animada para sexta. — Ela sorri. — Me avise se quiser que eu leve alguma coisa. — De repente, ela vê alguém mais à frente. — Preciso ir, Caitlyn está com umas anotações que quero copiar. Legal conhecer vocês... Até sexta! E então ela vai embora, levando meu coração junto e deixando um rastro de silêncio em seu encalço. Matt resolve quebrar o gelo: — Até sexta? — Há uma pitada de horror em seu escárnio, e posso sentir meu Robert Pattinson interior sendo exposto à luz forte da Realidade. Mas não há tempo
  • 47. para reagir; uma montanha na parede se destaca, revelando ser na verdade Jason Humphries. Meu Detector de Boçais® está precisando de um upgrade. Ele caminha direto na minha direção, ignorando meus amigos encolhidos, e me empurra gentilmente com o dedo amarelado. — Sexta. O que vão fazer na sexta, então? Meu Robert Pattinson interior é substituído por meu Salsicha interior. MI: Sebo nas canelas, Scooby! — Não é nada, na verdade... Só eu e meus amigos... — Queria poder esconder o medo em minha voz. — Só você e seus amigos o quê? Vão dar uma festa? MI: Por favor... apenas faça sem que eu sinta dor... — Não... Nós... É só um... Vamos jogar. É um jogo. Humphries tem um momento Worf, em seguida todos os músculos em seu rosto parecem se contrair para formar algo parecido com um sorriso. — Um jogo? — Ele vira a cabeça na direção de Sarah e então de volta para mim. — Você não saberia o que fazer com ela! — O dedo em meu peito torna-se foco de uma força inesperada, e me vejo sendo empurrado para o chão coberto de precipitação do nordeste da Inglaterra. — Vejo você na sexta, seu nerd. — E, então, ele também se afasta. Beggsy e Ravi me ajudam a ficar de pé e a apanhar meus papéis. Matt não parece tão disposto a perdoar. — O que ela quis dizer com “Até sexta”? Eu não havia percebido que meus amigos eram tão provincianos. Tentar explicar a eles que uma garota quer jogar com a gente é quase como tentar explicar o Facebook para camponeses da Idade Média. “Cuidado com seus pensamentos, bom senhor! Porventura o próprio Satanás evocou tais fantasias? Vá! E não fale mais de tais coisas!” Talvez eu esteja começando a crescer. Talvez seja aqui onde começo verdadeiramente a transição de jovem para homem — e talvez meus amigos ainda não tenham chegado lá. Preciso comprar um pouco de loção pós-barba. — Gente, não vejo qual é o problema, é só uma garota! E há quanto tempo falamos em convidar garotas para o Jogo? — A questão é que devia ter perguntado primeiro pra gente. — A veia moral de Matt subitamente está se afirmando. — Por quê? Que diferença faz? Certamente termos sangue fresco vai tornar o Jogo melhor. — Cara, você sabe das regras; é o Jogo. Somos amigos. — E agora Beggsy se juntou à multidão para o linchamento. Posso sentir a base de meu argumento tornando-se instável. Ravi permanece quieto e vigilante. MI: Você é quem está errado. Ponha as mãos para cima e admita. Em vez disso, apelo para táticas de distração. Pessoas menos generosas poderiam chamar isso de mentir. — Mas eu não a convidei realmente, ela só meio que se convidou. E, então, eu não
  • 48. poderia exatamente desconvidá-la, poderia? — Só tinha que dizer a ela que precisava perguntar para a gente primeiro. — E o que você teria respondido, Matt? “Não”? — Não importa realmente, Archie. Você não nos deu essa opção, não foi? Sempre se pode perceber quando uma discussão está começando a ficar séria — as pessoas começam a dizer os nomes umas das outras com uma clareza acentuada, e as frases sempre parecem terminar com perguntas. Estas são as demonstrações territoriais dos Nerds. Gorilas as fazem batendo em seus próprios peitos; cervos travam chifres; os Nerds enfatizam os nomes uns dos outros e sacam as Grandes Espadas da retórica. A questão é que fui eu que errei. Sei que fui eu, mas já fui longe demais para recuar. E parte de mim não consegue entender qual é o problema. MI: Parte de você não quer entender qual é o problema... Há um silêncio fervilhante, quebrado pelas habilidades apaziguadoras dignas da OTAN por parte de Beggsy: — Cara, você só precisava consultar a gente antes. Não é como se fôssemos responder que ela não podia ir. Meu argumento desmorona diante da lógica vulcânica de meu amigo. Como a casinha de palha construída pelo primeiro dos três porquinhos, ela simplesmente é soprada pelo vento. No entanto, esse porquinho ainda não terminou; está com a baforada do lobo em cima dele e pode soprar e soprar melhor que todos. MI: Não faça isso! Tarde demais. — Não é como se pudessem impedir de qualquer maneira, Beggsy. A casa é minha. Qualquer estrutura livre construída de palha, madeira, ou tijolos deveria ser instantaneamente dizimada. Mas tenho essa horrível sensação, até mesmo antes de todas as palavras terminarem de saltar sarcasticamente de minha boca, que fiz uma grande cagada em minha própria porta. Matt me olha fixamente de um jeito que subitamente se tornou ilegível. — OK — responde, assentindo lentamente. — Ótimo. A casa é sua. Mas é bom saber. — E então, com um quase imperceptível tensionar de mandíbula, se vira rapidamente e se afasta, com certa determinação no passo. Ravi para por um segundo e o segue. — Ah, Ca-ara! — Dessa vez significando *Está decepcionado*. — Bem... Ele estava sendo um idiota. MI: Não exagera. Beggsy obviamente permanece insatisfeito, balançando lentamente a cabeça. — Cara. Precisa consertar isso. — A essa altura, estamos ambos olhando fixamente para o mesmo ponto no chão. — Eu sei... — Alcance-o no caminho para casa. Diga apenas que sente muito e vai ficar tudo bem.
  • 49. — Eu sei... Mas e quanto à Sarah? Não posso apenas... você sabe... — Cara. — Significa *Não quero nem saber*. Não dá para discutir com isso. Dou um suspiro e sigo o resto dos alunos do nono ano pelo corredor.
  • 50. SEIS Nem preciso dizer que Matt não estava nos portões da escola na hora da saída; ele escolhera um caminho diferente para voltar para casa. Felizmente, isso me permitiu expressar minha indignação com o resto do grupo. Comecei com uma desarmadora demonstração de humildade, seguida por uma preocupação com o bem-estar de Matt. Isso funcionou perfeitamente, e meus amigos restantes, preocupados por eu estar preocupado, tentaram aliviar minhas aflições me dizendo que ficaria tudo bem e que ele logo esfriaria a cabeça etc etc. Uma vez que eles começaram a compadecer comigo, foi razoavelmente fácil sugerir que Matt exagerara, e então joguei o ás que tinha guardado na manga. — Nunca se sabe, mas se Sarah gostar, talvez queira levar algumas amigas ao próximo... Os odores produzidos por Medo e Excitação são notavelmente parecidos. Detectei um coquetel pesado dos dois antes de nos separarmos com uma agitação de assentimentos e sorrisos idiotas. Para meus amigos, agora sou o homem que pode lhes oferecer um Passaporte para a Normalidade. Provavelmente, pela primeira vez em seus anos de adolescência, foram expostos às vertiginosas possibilidades oferecidas pela Esperança. Então por que me sinto tamanha fraude? Quando dobro a esquina da minha rua, um raio prateado passa por mim; Tony está saindo, sem dúvida para fechar mais um negócio. MI: Viva! Meus escudos descem, e percebo que estou exausto depois de lidar com os meus próprios negócios. Preciso relaxar; preciso pintar. Ouço o borbulhar da chaleira quando passo pela porta da frente e sinto o cheiro do fantasma de um dos cigarros de Tony. E tem outro aroma, vindo de meu obscuro e distante passado — um perfume doce e reconfortante. Perambulo cozinha adentro sem conseguir evitar. — O que está fazendo? Mamãe se vira do balcão da cozinha e mostra um bolo esfriando num descanso de metal. — Quer uma xícara de chá? Eu aceito, e mamãe corta para mim uma fatia do bolo úmido e quente. Ela não
  • 51. assava bolos há o que parece ser uma eternidade, desde que ela e papai estavam juntos, acho. Imagino que esteja feliz. Durante algum tempo, a casa nova se parece com um lar: apenas eu, mamãe e o cheiro de bolo. — Como foi a escola? MI: Escudos a postos, força máxima. Balbucio alguma coisa vaga e não comprometedora com a boca cheia de chá e bolo. — E...? — Lá vem aquele sorrisinho de novo. — O quê? — Quero que ela pergunte em vez de eu oferecer logo a resposta. — Como foi com Sarah? Meu ME responde com o charme lacônico de um vilão de James Bond; sem corar ou desinflar, apenas me recosto casualmente na cadeira oferecendo uma breve pantomima de avaliar os eventos do dia. — É... foi bom. Falei com ela. Ela vem pra cá com os meninos na sexta à noite. Mamãe sorri e desarruma meu cabelo. — Viu? Eu te disse — fala, sorrindo e aproximando seu rosto do meu como se eu tivesse 4 anos de idade e acabado de descer num escorrega que achava ser alto demais para mim. MI: A qualquer minuto ela vai arrematar te dando um kinder ovo. — Que bom para você, Archie. Viu só? Eu disse que era simples. Tomo um último gole de chá e subo até minha Toca, sentindo-me um pouco melhor. Não sei por que tanta confusão; Matt ficará bem, e iremos todos nos divertir. E Jason Humphries não sabe nem onde moro. Depois de dedicar uma hora e meia que nunca irei recuperar da minha vida à precipitação no nordeste, finalmente me acomodo frente à minha mesa de pintura. A bruxa de Sarah recebe um banho de preto, e, em seguida, volto minha atenção para a gárgula. Hora da camada de base. A base pode, para não iniciados, parecer um pouco maçante. É a primeira camada de cor que você aplica à sua miniatura acinzentada. Mas — e se trata de um grande “mas” — se escolher sua base cuidadosamente, pode valorizar muito o produto final. Nesse caso, estou pintando pedra. Bastante ciente de que pedra não é apenas cinza, abro o laptop e procuro algumas imagens. Finalmente decido misturar o cinza com um toque de ocre. Começo a aplicar a tinta, usando um pincel médio, e, de vez em quando, mudo a mistura, para a cor não ficar muito uniforme. Distraidamente entro no Facebook e dou uma rápida olhada: Beggsy odeia fazer dever, Ravi postou um link para algum vídeo no YouTube sobre Guerra nas Estrelas, e um sinalzinho vermelho me avisa que alguém quer ser meu amigo. Clico no ícone. MI: Ah meu Deus! É a Sarah. É claro que aceito. E subitamente sou como um menino de 6 anos se deparando com uma série de presentes para abrir: olho primeiro sua linha do tempo ou vejo suas fotos?
  • 52. Escolho a timeline; preciso avaliar a concorrência. A foto do perfil de Sarah sorri de volta para mim, fazendo-me sentir como se tivesse sido pego lendo o diário de alguém, mas preciso descobrir se existe algum namorado na jogada. Nada nos posts mais recentes, então desço até os mais antigos, fervorosamente procurando o rastro de algum interesse masculino. Nada, todos os seus amigos são de sua última escola: Escola para Garotas St. Brigidine. Com um suspiro de alívio volto até o alto da linha do tempo de Sarah, e, então, minhas mãos começam a suar. Olhar o álbum de fotos de alguém é, imagino, um pouco como espiar. Quando clico no botão de fotos, sinto um arrepio de prazer decadente — o que encontrarei ali; como ela estará? Sarah tem quatro álbuns abertos: Festa, Natal, Família e... MI: Acabou de ganhar na loteria! ...Férias. Eu não devia, mas faço, e a Cascavel Feroz em minha cabeça estremece de antecipação. Clique. MI: Bingo. É uma foto de biquíni. Não nego que já usei o catálogo da Next da mamãe para... como posso dizer?... fins recreativos. Nas raras ocasiões em que pediram minha opinião sobre uma blusa ou alguma calça jeans, certas seções daquela pesada revista simplesmente pareciam exigir minha atenção. Mas isso é diferente. Normalmente, ficar encarando uma foto dessas levaria a uma conclusão óbvia. Mas não posso pensar nela dessa maneira, simplesmente não posso. OK, então ela está usando uma camiseta por cima do biquíni, mas a luz refletindo da areia atrás dela é o suficiente para dar a você uma boa ideia do que está escondido, mesmo que seja apenas uma silhueta. Não faz diferença; tudo o que vejo é sua beleza. É como se os recessos escuros e cheios de hormônios de minha mente tivessem desligado. Essa deve ser a diferença entre Amor e Luxúria. MI: Controle-se... Volto para minha própria linha do tempo. Não devia ter olhado. Agitado e amaldiçoando minha fraqueza, pego a gárgula e misturo mais um pouco de tinta. Uma janela de chat pisca em minha tela, anunciando tentativa de contato do Mundo Exterior. Meu coração pula, e minha temperatura subitamente atinge o nível de uma labareda solar... Será que é a Sarah? Será que de alguma maneira ela sabe que eu olhei uma foto dela de biquíni e camiseta na praia? Como é que vou me explicar? MI: Negar, negar, negar! Minha onda de calor e culpa dá lugar ao refrescante suadouro de alívio; é apenas meu pai. oi filho. como vc ta?
  • 53. MI: Socorro — ele agora desistiu de usar letras maiúsculas! Tudo bem — e você? blz. td mundo esta melhor. chega de canja d galinha! rsrs! MI: ..............! Que bom saber. Como você está? td bem. vc? e a escola? Isso é interminável; as mesmas malditas perguntas toda vez. No entanto, é preciso seguir o ritual. Queria que ele simplesmente ligasse aqui para casa, mas ele não telefona porque mamãe e ele ainda não estão se falando. E eu também não guardei dinheiro suficiente para um celular novo, então, por enquanto, isso é tudo que temos. É — ainda estou nela. rs! (Meu Deus.) não posso ver vc no finde. visita dos pais de Jane. mas preciso falar com vc. ta livre sexta a noite? MI: O Jogo! Sarah! Meu cérebro acessa meu Departamento de Desculpas e escolhe a opção mais incomum: a verdade. Apesar de faltar um componente vital.
  • 54. Na sexta não posso — meus amigos vêm aqui para jogar. q hrs? Dou um grunhido internamente; já sei onde isso vai dar. Umas 7. MI: Bonzinho e vago — pode ser que o faça desistir. e sua mãe? Ela vai sair. vou passar aí umas 6. é importante. MI: drogadrogadroga! OK. blz. te vejo lá. amo vc. x Também te amo. Me envergo por cima do laptop. Era só o que me faltava: pela primeira vez terei uma garota de verdade e ao vivo vindo à minha casa, e meu pai estará aqui. Preciso bolar uma maneira de fazer com que ele vá embora o mais rápido possível. Só porque meus pais não se dão bem, por que o resto da minha vida precisa sofrer com isso? MI: Pais. Tsc. Meu desânimo autopiedoso se transforma numa crise de resignação. Acho que ainda
  • 55. estou zangado com ele por ter estragado as coisas com mamãe. O jantar não ajuda em nada a melhorar meu humor. Mamãe está toda animada com a possibilidade de seu filho estar prestes a se juntar à raça humana, e Tony está testando os limites de sua coleira, soltando perguntas como “Quem vem sexta, afinal?” e “Aconteceu algo de interessante na escola hoje?”. Imagino que ser interrogado seja assim. Como minha torta de carne o mais rápido que consigo e arrasto-me de volta para minha Toca para escrever sobre o tema da solidão em Ratos e homens. MI: Mais uma nota máxima saindo do forno. Naquela noite, o Sonho começa quase assim que fecho os olhos. Desta vez, meu eu no sonho abre os olhos e observa o quarto ao redor. Está tudo escuro e quieto. Espera; o que é aquilo? Olho para o canto do quarto na direção oposta da minha cama, e a figura está lá, sentada curvada contra a parede. Parece ter adquirido mais forma desde nosso último encontro — dessa vez, parece ser feita de uma névoa cinza espiral que desenha seu contorno no escuro. Apenas seus olhos vermelhos como lava permanecem os mesmos, enquanto o que serve de pele para a criatura se enrola e retorce como fumaça de cigarro vista no sol. Ela fica simplesmente sentada ali, me olhando. Meu coração está martelando, e sinto ondas de hostilidade vindas dessa coisa no canto de meu quarto. Subitamente, me forço a levantar da cama, mas meus membros e músculos são como pesos mortos, e cambaleio com pernas pesadas como chumbo até a porta do quarto. Tarde demais; lá está ele, me esperando, parado no meu caminho. Perto assim dele, posso ouvir sua respiração; soa ofegante e rouca, e sons estranhos de vogais saem de seus lábios rodopiantes. Ou talvez seja eu, talvez eu esteja pedindo ajuda, e minha boca não esteja funcionando direito — não sei. Em pânico, tropeço para trás e me seguro na pia que costumava ficar em meu antigo banheiro e, de repente, apareceu em meu quarto. Por algum motivo, acho que jogar água no rosto vai me ajudar a sair dessa situação. Olho no espelho acima da pia e vejo que a criatura sumiu. Para meu horror, quando giro as torneiras não sai água, e sim a retorcida fumaça em espiral de meu agressor. Ele enche a pia, aumentando de tamanho e de formato, até finalmente colocar uma das mãos enevoadas sobre meu nariz e boca. Engasgando, caio de joelhos, batendo no braço da criatura, mas minhas mãos apenas a atravessam. Posso sentir sua mão impedindo-me de respirar e caio no chão, de rosto para baixo... ...e acordo no chão com o barulho de meu despertador, aparentemente tentando comer o travesseiro que me seguiu da cama. MI: Bom dia!
  • 56. A essa altura, acho que preciso da ajuda de um profissional.
  • 57. SETE Nada como um prazo para a mente se focar. Mas não é a precipitação do nordeste nem estar lutando para ler Ratos e homens que está fazendo meu cérebro trabalhar horas extras nessa manhã de terça-feira em especial. E não é também a preocupação sobre por que Matt escolheu um caminho diferente para ir à escola. Não, minhas horas acordado são consumidas pensando em sexta. Precisa ser Perfeito. Perfeito significa que preciso olhar a aventura que vamos jogar nessa noite e descobrir uma maneira de fazer Sarah gostar. Já esbocei o perfil de sua personagem na minha cabeça e basicamente resolvi que ela será uma Feiticeira Nível 3. Poderia tê-la feito um Nível 4, mas pareceria um pouco de favoritismo demais; afinal, Beggsy e os meninos têm jogado essa batalha já há alguns meses e acabaram de chegar ao Nível 4. E preciso arranjar um jeito de encaixá-la na aventura sem atrapalhar demais o equilíbrio da história. História que, devo acrescentar, foi escrita por minha própria e bela mão. Para os virgens no Jogo, vou tornar as coisas simples: sou o Mestre de Jogo (de agora em diante conhecido como o MJ), e Sarah e o restante do alegre bando de aventureiros, em seus disfarces, participarão do Jogo como Personagens do Jogador (PJs). Como Mestre, decido o que podem ver e descrevo a eles. Os resultados de encontros com monstros, armadilhas e feitiços mágicos são determinados jogando os dados — dentre os quais alguns têm vinte faces. O placar é então comparado a certas características do perfil de seus personagens, como, por exemplo, força ou destreza, e um resultado é definido, como talvez conseguirem matar o monstro... MI: Vitória! ...desarmarem a armadilha... MI: Megavitória! ...ou coisas ruins podem acontecer, como um feitiço dar errado. MI: Derrota. O Mago de Matt já quase morreu três vezes e teve que ser ressuscitado pela Poção de Lázaro de Ravi, que é um acólito alinhado à divindade G’thraax. Beggsy é um Anão. MI: Adequado. Meu problema é que Beggsy e os garotos têm trabalhado duro em minha aventura (Tumba dos Insones) e têm acumulado Pontos de Experiência, o que aumenta suas habilidades. Enfiar Sarah na história como uma Feiticeira Nível 4 pode ofender alguém,
  • 58. mas também acho que ela não gostaria de ser uma integrante menos hábil do grupo. Acho que a farei Nível 3 e lhe darei discretamente um feitiço de Convocar Grande Demônio. Devia dar um nome a ela também; não queremos atrasar o Jogo tentando escolher um. Precisa ser um nome um pouco sensual — mas não sensual demais — algo como... Vasculho meu cérebro em busca de nomes femininos. Nada. MI: Você vai pensar em alguma coisa. Com aquele pensamento aquietando-se em minha mente, e a Sra. Hughes tagarelando sobre o uso de gírias por John Steinbeck ao fundo, penso em quanto tempo tenho para pintar a estatueta de Sarah. Já dei o banho de preto, então se aplicar as cores base hoje à noite, posso dar os realces amanhã e os sombreados na quinta e... Opa! Não sobra tempo para detalhes. Esse terá que ser um serviço corrido. Posso precisar pegar emprestado o secador de cabelos de mamãe para fazer a tinta secar mais rápido. E também tem a questão da Toca. O cenário precisa ser perfeito. Normalmente, com os meninos, ficamos simplesmente sentados ao redor da minha mesa, colocamos uma música no fundo e começamos a jogar. Mas quero criar uma atmosfera mais misteriosa para Sarah. Posso ver todos nós, amontoados sobre os mapas, iluminados apenas por velas. Se ao menos eu tivesse alguns cálices de prata; seria bom. E incenso. Preciso comprar uns incensos. E preciso arrumar meu quarto, abrir todas as caixas e deixar tudo em ordem. De repente, repasso em minha cabeça os livros que habitam minha estante; não tem tantos livros misteriosos e empoeirados a não ser catálogos de besteiras escapistas de um garoto de 14 anos cuja tênue noção da realidade está ficando cada dia mais fraca. Quando saí de casa esta manhã, minha Toca parecia pouco além de um parque de diversões para os emocionalmente atrofiados. MI: Tony tem livros... Ele tem. Alguns de aparência bastante impressionante, também: do tipo grande e com capa de couro. Deve haver um dicionário e talvez um atlas — pode ser que me faça parecer mais viajado. Faço uma anotação mental de surrupiar alguma coisa da biblioteca de Tony e incrementar a minha. Todo esse processo é mais complicado do que pensei, mas o esforço deve valer a pena. A campainha toca sinalizando o fim de uma aula que não escutei. Como se reagindo, minha mente me oferece uma visão breve, porém clara como cristal, dos olhos gelados de Sarah cintilando à luz de velas enquanto ela bebe da misteriosa atmosfera da Toca, um santuário de conhecimentos proibidos, onde sonhos se tornam realidade e... — Cara! Maldito Beggsy. — Cara! Não me ouviu? Estava chamando você há um tempão. — Não, desculpe. Enquanto estudantes passam conversando entre nós e ao nosso redor, embarcamos no que só pode ser descrito como um silêncio desconfortável. Sendo a parte culpada,
  • 59. estou me esforçando para encontrar palavras. Felizmente, a posição extraoficial de Beggsy como Intermediário da Paz lhe dá força para tocar no assunto. — Falei com Matt ontem à noite. — OK... Como ele está? — Cara, ele está colérico. Precisa dar um jeito nisso. Qualquer um que desconheça o pendor de Beggsy para trocadilhos poderia imaginar que, a essa altura, ele esteja assombrando os corredores da escola, acometido por um vírus mortal. Jamais fui fã de duplos sentidos. Mas se for usá-los, pelo menos o faça direito. Já expliquei isso a Beggsy, mas acho que esse não é o momento para reinserir o assunto. — Você precisa dar um jeito nisso. Por um momento sou tomado por uma sensação real de injustiça; por que eu preciso dar um jeito nisso? Por que Matt não precisa dar um jeito nisso? Por que eu? MI: Porque foi você quem agiu errado. — Precisamos dele para o Jogo, cara. Ele tem razão. O Jogo simplesmente não fluiria sem Matt; com todos os seus comentários secos e ácidos e aparente pessimismo, Matt é uma das principais forças do Jogo. Não importa o que mais eu possa dizer sobre ele, o compromisso de Matt em tornar a história e seu personagem o mais real possível sempre foi de cento e cinquenta por cento. Não vou nem mencionar a vez em que ele apareceu com uma camisa de cota de malha (foi um de nossos primeiros jogos). Sem Matt, a noite não seria a mesma coisa. Precisamos dele. MI: E ele é seu amigo. Suspiro. Não é como se eu já não tivesse muito o que fazer, em meio a comprar incenso, roubar livros e pintar bruxas sexy. Agora preciso me servir de uma grande fatia de Torta de Humildade e consertar as coisas com meu amigo. Estou começando a me sentir como um malabarista de circo. E se eu deixar cair apenas um dos malabares, posso dar adeus a minhas escassas chances com Sarah. Essa seria uma hora bem ruim para descobrir que não consigo equilibrar malabares. — Onde ele está? Já sei a resposta antes mesmo de Beggsy dizer, e, assim, é com uma sensação de horror que vou até a biblioteca. Acho que, provavelmente, poderia juntar um bom dinheiro alugando minha mente para estudantes de teatro: grande parte do que acontece dentro dela são ensaios. No momento, estou ensaiando possíveis maneiras de abordar Matt, mas a experiência já me ensinou que, por mais que você tente adivinhar a reação de alguém, sempre vão inventar uma que não estava no roteiro. Vagueio pela biblioteca e encontro Matt debruçado sobre um bestiário de Tolkien. Ele parece não me ver. Sento na cadeira a seu lado, e ele finalmente levanta o olhar. Eu: Deixemos para lá, velho amigo. Matt olha minha mão estendida, e um tremor de alívio atravessa seu rosto; a dor de
  • 60. estar exilado é demais para ele suportar. Ele pisca um pouco demais, provavelmente segurando as lágrimas, enquanto um sorriso torto vinca seu rosto. Matt: Obrigado, amigo. Possivelmente meio otimista demais. Entro na biblioteca, obviamente me sentindo pesado pelo estresse da situação. Sento a uma mesa e coloco meus livros de estudos na minha frente, mas sobrecarregado pela enormidade daquilo, só consigo mirar o vazio. A mão de alguém em meu ombro me faz olhar para cima; é Matt. Ele se senta ao meu lado. Matt: Não se preocupe, Archie. Eu entendo. Essa tem um quê de Hollywood no meio, mas gostei do tom. Talvez a postura de “herói abatido” seja a melhor a assumir. MI: Talvez não. Com o fim dos ensaios finais, é hora de rodar a cena. Abro a porta da biblioteca e entro. Bibliotecas são lugares maravilhosos. Algumas pessoas relatam uma enorme sensação de paz e bem-estar quando entram em igrejas: algo a ver com o silêncio, o espaço e provavelmente uma sensação de união com os outros iniciados. É isso que as bibliotecas são para os nerds — santuários onde podemos espreitar a salvo, sabendo que os únicos outros habitantes são companheiros adoradores. O silêncio engana, no entanto, pois se escutar com calma, pode ouvir os espíritos nerds cantando todos juntos seus anseios de ser Outra Coisa — ser como os heróis dos livros, conquistar os corações de heroínas coquetes, ferir poderosos inimigos. Ser qualquer coisa além de um Nerd. Mas em vez de serem lugares tristes ou abandonados, bibliotecas são os templos onde os nerds podem conquistar esses objetivos, suas almas planando em arrebatamentos de glórias impressas. MI: E também existem algumas páginas muito gastas nos livros de James Herbert. Matt não está na mesa de sempre, então caminho silenciosamente pelo labirinto de estantes — como aquela parte em que Perseu está caçando Medusa em Fúria de Titãs. Exceto que o cabelo de Matt é vermelho em vez de feito de cobras. Fora isso, a comparação ainda vale. MI: Não se esqueça de não olhar nos olhos dele! Entrando na seção de ficção científica, vejo uma coisa que nunca imaginaria durante meus ensaios mentais: Matt e Sarah. Conversando. Volto para trás e tento sufocar o ciúme que sobe do meu estômago como vômito. O que ele teria para conversar com ela? O que meu amigo está fazendo falando com minha...? Minha...? Não posso dizer “namorada”. MI: Não pode nem dizer “minha”. Ela não é “sua” nada. Mesmo assim... será que está acontecendo alguma coisa sobre a qual não sei? Tiro alguns livros da estante e os observo, como Gollum, entre alguns títulos. Sei que não devia estar fazendo isso; mas simplesmente não consigo evitar.
  • 61. MI: Então... O Nerd quer o Anel! Mas não podemos deixá-lo ficar com ela, precioso! Oh, não — nerdzzzinho sujo... Matt não se sente à vontade perto de garotas, e isso fica evidente em sua linguagem corporal. Seus braços estão duros, e ele está balançando para trás sobre os calcanhares quase caindo para a frente na volta. Nerd até o último fio de cabelo. Sarah, ao contrário, é um retrato de tranquilidade e até mesmo toca o cotovelo direito de Matt durante a conversa. Ela é quem está falando na maior parte do tempo; Matt está apenas respondendo com breves acenos de cabeça, como se seu pescoço tivesse travado. Apesar de me sentir mal por estar espionando desse jeito, não consigo não reparar no corpo de Sarah — só que não, devo ressaltar, com a mesma luxúria lasciva de Jason Humphries e seu Bando de Boçais. Comigo é mais como uma apreciação, do modo como um arquiteto poderia estudar uma bela construção. Juro. Sarah encerra a conversa com um último sorriso e um toque no cotovelo, antes de se virar e desaparecer no labirinto de estantes. Fico imóvel por um momento, observando Matt. Ele fica parado sem se mexer, perdido em pensamentos. É hora de imitar um bebê e sair para o mundo (como diz Beggsy). Eu viro a esquina. — Oi. — É um cumprimento universal que não revela nada. — Oi. — Um adversário mais astuto do que eu imaginara. — Olha, cara... Sobre ontem... — Ele não me oferece o óbvio convite para começar da maneira que eu estava esperando, apenas silêncio. — ...Bem, olha... Sinto muito. Eu só estava meio... — Não se preocupe. MI: Relaxar. — Legal. Então você ainda vai na sexta? — Para a sua casa? — Matt deixa claro que ainda não estou completamente perdoado. É justo. — É. Para o Jogo. — Vou. — Legal. MI: Perguntaperguntapergunta... Engulo em seco. MI: O QUE ELE ESTAVA FAZENDO COM A SARAH? — Então... o que está fazendo? — Procurando um livro. É uma biblioteca. — Suas táticas evasivas me atingem em cheio. Vai me forçar a confrontá-lo. — Vi Sarah agora mesmo. — Ou talvez não vá. — Ah, é? — Me finjo de tranquilo e controlado, apesar da onda de ciúmes revirando meu estômago. — É. Ela me disse que estava muito ansiosa para o Jogo e estava me perguntando o que fazíamos nele. MI: Relaxar. — Nunca expliquei como jogar a uma garota antes. Ela é legal, não é? — E, com
  • 62. isso, acho que acabei de receber a bênção de Matt. — É, ela é legal. Vamos ver como ela se sai; provavelmente vai ser uma experiência de uma noite só. — Em seus sonhos. — Nós dois rimos baixo como dois virgens de 14 anos. MI: Coisa que vocês são. A campainha interrompe o lindo silêncio, anunciando a hora do almoço. Saímos da biblioteca, nossa amizade mais forte que nunca. Entrando no corredor, meu ombro bate no que parece ser uma viga de ferro. Me viro para ver o que tinha sido e faço perigoso contato visual com o rosto franzido e o sorriso malicioso de Jason Humphries. — Sexta-feira — diz ele, e então sai num disparo, como um leão faminto. Toda a cor abandona meu rosto, e me viro para Matt, em busca de algumas palavras de sabedoria e apoio. — A casa é sua. — Ele dá de ombros.
  • 63. OITO Chegar em casa e pintar a gárgula me dá alívio; uma pausa de todo o catálogo de problemas que minha vida parece estar atirando na minha direção. Não estou pensando em Jason Humphries nem em papai nem em Matt, estou pensando apenas em pintar e em cores. E em Sarah. Decidi que essa gárgula vai ser o Grande Demônio que sua PJ pode convocar. Quando ela resolver lançar o feitiço (provavelmente no momento em que os PJs encontrarem o Elemental da Terra que escondi em uma das criptas), ele vai aparecer, silencioso e pensativo, pronto para fazer seu trabalho. No entanto, há sempre um preço a se pagar por usar Grandes Demônios; ainda preciso decidir qual será. Alguns alegariam que jogar Dungeons & Dragons com quatro nerds já seja um preço alto o bastante. Também resolvi que o nome de seu PJ será Nox Noctis; que significa “Noite” em latim. Aqueles tradutores de latim online precisam servir para alguma coisa. Já apliquei as cores base em Nox Noctis. A principal cor de sua roupa — tal como é — vai ser um elegante roxo, sugerindo os misteriosos tons do crepúsculo. Em relação aos adornos, tenho um pote de Prata Élfica, para sugerir a luz do luar e o brilho das estrelas. MI: *Atira longe os biscoitos de tanto nojo* Devo confessar que, apesar de estar tentando assumir uma postura mais madura ao me aproximar de garotas, senti-me um pouco arrepiado como um garotinho quando pintei os tons de pele entre a barra da túnica de Nox e o cano de suas botas de cano longo. Para não falar no decote. Será que um dia esses surtos vão embora? Ou os homens estão todos amaldiçoados a passar o resto de suas vidas esperando um latente vislumbre de carne? Apenas o tempo dirá. Volto minha atenção para a gárgula, que me olha afiadamente de seu pedestal, quase ressentida comigo por lhe dar vida. Vou pintá-la agora com pincel seco. Pintar dessa maneira é um truquezinho fantástico; você cria sua cor de destaque e mergulha seu pincel, como sempre. Mas, em seguida, você tira a maior parte da tinta das cerdas, usando um pedaço de guardanapo de papel ou de papel higiênico. Tenho sempre um rolo de papel higiênico no meu quarto, apenas para isso. MI: Tá bem, tá bem... Diga isso ao juiz... Quando seu pincel estiver quase sem pigmento, você então passa as cerdas levemente
  • 64. para a frente e para trás sobre a superfície de sua miniatura. O que restou de tinta vai grudar levemente nas partes elevadas da escultura, mas de um jeito desbotado, desigual, irregular, que dá uma aparência antiga e gasta. É uma ótima maneira de pintar armaduras, espadas e escudos. A gárgula me encara intensamente, parecendo agora áspera e antiga, como se já tivesse testemunhado civilizações inteiras erguendo-se e declinando. Alguém bate em minha porta, e sei que é mamãe; só ela poderia bater de um jeito que quase pede desculpas por estar atrapalhando. — Entre! Ela coloca a cabeça dentro do quarto, rapidamente examinando o aposento e seu filho em busca de, presumo, quaisquer sinais de que estou abandonando minha porção nerd para me juntar à raça humana. — Tudo bem? O que está fazendo? — Só estou pintando. Ela sorri. Apesar de ser um exercício solitário, seu filho ser um nerd tem lá suas vantagens; pelo menos não estou vagando pelas ruas, aborrecendo os vizinhos ou seguindo carreira como um justiceiro mascarado. MI: Nota mental: preciso ser mordido por um aracnídeo radioativo. — Tem um filme na televisão hoje, um daqueles que você gosta. — Ah, é? Qual deles? A expressão no rosto de mamãe fica vazia por um momento; ela não é muito boa com nomes de filme nem no seu melhor momento. — Você sabe, aquele com todos os anões correndo na floresta... MI: O quê? Demoro um pouco, mas finalmente entendo e não consigo não rir ao dizer a ela o nome de provavelmente um dos melhores filmes jamais feitos. — O Senhor dos Anéis! Mamãe também já está rindo a essa altura, como se de alguma maneira tivesse se surpreendido com sua inabilidade em lembrar-se até mesmo das informações mais básicas; e eu a amo por isso. — Esse mesmo. — Ela consegue responder entre risadas. — O que tem todos aqueles anões correndo na floresta! Agora nós dois estamos gargalhando, o que é lindo de tão simples. Mas dura pouco; meus escudos sobem mais uma vez quando resolvo fazer uma pergunta sem perguntar realmente. — Você e Tony vão ver também, então? Penso notar um toque de tristeza nos olhos de mamãe; ela sabe o que estou perguntando. — Não. Só eu. Tony saiu para um jantar de negócios. Eu relaxo. Posso ver no rosto de minha mãe que não há nada que ela gostaria mais de fazer do que assistir com seu filho a um filme sobre anões correndo na floresta. E
  • 65. neste momento, não há nada que eu gostaria mais do que assisti-lo com ela. Mergulho meu pincel dentro do copo d’água e o limpo. — Vamos lá, então; coloque a água na chaleira. É quarta-feira de manhã, e acordo revigorado após uma noite sem sonhos. Dias assim são uma raridade; você acorda, e tudo parece fazer sentido. Problemas existem para serem resolvidos, para testarem sua desenvoltura e força de caráter, em vez dos obstáculos insuperáveis que normalmente parecem ser. Não sei se foi a boa noite de sono ou ter esclarecido as coisas com Matt ou até mesmo assistir a um filme com mamãe, mas estou me sentindo alerta e confiante; estou pronto para qualquer coisa. Até mesmo o cigarro pós-bacon de Tony não dá bolhas em meus pulmões com sua ferocidade habitual, e a caminhada para a escola me enche de uma expectativa nervosa; o que vai acontecer hoje? Sobre o que Sarah e eu vamos conversar? MI: Sobre o quanto voxeis si amaum... Poderia estar apaixonado? Não deveriam existir duas pessoas nessa equação? Mal conheço Sarah, mas já sinto uma conexão — uma forte conexão. Penso mais uma vez no dia em que nos encontramos do lado de fora do mercado, e ela tocou minha mão. O que foi mesmo que disse? Alguma coisa sobre eu estar triste e zangado. Como ela poderia saber? Hoje tudo parece fazer sentido e parece totalmente óbvio que Sarah e eu estamos destinados a alguma coisa juntos: ela me entende sem eu nem precisar falar com ela, como se existisse uma linha invisível que nos unisse. Uma emoção percorre meu corpo enquanto me pergunto se devo convidá-la para sair formalmente. Sei que irá à minha casa, mas não é um encontro de verdade nem nada; ela vai lá para ver como se joga. Mas é um sinal, não é? O jeito que ela me trata na escola, o jeito com que conversa com meus amigos, e o fato de estar interessada em minha vidinha nerd... MI: Ela gosta de você... E eu gosto dela. “Gostar” parece uma palavra tão insuficiente para o que sinto de verdade, assim como “estar a fim”; você gosta de uma música ou está a fim de um pedaço de bolo. Talvez “amar” seja uma palavra um pouco exagerada, mas parece mais adequada do que qualquer outra. Um sorriso parece se espalhar em meu rosto, e não consigo me livrar dele. Até mesmo Ravi, possivelmente uma das pessoas mais distraídas que conheço, percebe. — O que está aprontando, hein? — pergunta. — Nada. Só estou me sentindo bem, acho. Não devo apressar essa coisa de amor; preciso criar minha oportunidade. A melhor
  • 66. coisa que posso fazer no momento é direcionar minhas energias para o Jogo e ver o que acontece. Se tudo correr bem, posso tornar tudo oficial e chamá-la para sair. MI: Como exatamente fará isso? Uma boa pergunta, e a busca por uma boa resposta ocupa minha manhã inteira. Mal escuto o que está sendo conversado em francês, e a aula de matemática é um borrão. Como se chama uma garota para sair? É uma coisa que nunca pensei em fazer antes. Claro, tive minhas fantasias sobre beijar Kirsty Ford, mas aqueles pensamentos sempre pulavam a parte de convidá-la para sair; eu já estava saindo com ela ou era apenas alvo de seu devasso desejo. Nelas nunca houve nenhum tipo de convite para sair. Aquela dúvida me segue até o banheiro na hora do almoço. Felizmente, está vazio. Banheiros são sinônimo de certo medo para os nerds. Sei que isso é verdade após confissões sombrias entre mim, Matt, Beggsy e Ravi. Todos já admitimos sofrer de uma condição que batizamos de SXP: Síndrome do Xixi em Público. A SXP se manifesta quando você está parado na frente do mictório, pronto para se aliviar. Todos os sistemas estão a postos, e você está prestes a tirar água do joelho (uma das expressões favoritas de Beggsy) quando alguém entra e para atrás de você. E o sistema inteiro entra em colapso. Você podia ter bebido um balde de água fria quatro horas atrás ou ter corrido em volta do ginásio dez vezes, mas nada nesse mundo de Deus consegue forçar nem mesmo uma mera gota na porcelana à sua frente. Sua bexiga poderia estar à beira de uma ruptura séria, mas a presença de Outro em sua vizinhança é como colocar uma rolha numa garrafa — nada, rien, zero. O que acarreta outro problema... Você não pode arriscar perder sua dignidade. Sob circunstância alguma você pode comunicar o fato de que sofreu um não comparecimento do departamento bexiga. Se for descoberto, está arriscado a ser ridicularizado em público como em seus piores pesadelos — apesar de Matt, Beggsy, Ravi e eu também termos admitido que nunca ouvimos falar de um caso desse tipo na história de nossa escola. Mesmo assim, quem iria querer se arriscar a ser o primeiro? Para manter sua vergonha particular em particular, você precisa então fingir uma entrega bem-sucedida. Precisa passar pelo processo todo: o suspiro de alívio, a sacudida, fechar o zíper e, então, temendo a possibilidade de ter sido desmascarado como uma aberração com vergonha de fazer xixi, precisa seguir toda a ladainha de lavar as mãos enquanto tenta ganhar tempo e uma oportunidade de ficar sozinho para tentar de novo, sem parecer óbvio. Deus, é complicado. E se mais uma pessoa entrar, é melhor se resignar a andar como um pato pelo resto do dia. No entanto, esse não é o caso hoje. Hoje consigo me aliviar à vontade, sem pressa e a salvo em minha solidão. Para comemorar, vou até a pia e dou uma rodadinha, um pouco como James Bond fazia nas aberturas de seus antigos filmes. E então meu dia perfeito desmorona, pois me olhando de volta através do espelho não está o galanteador educado e sofisticado que tenho me sentido a manhã inteira.
  • 67. Tudo que vejo é um nerd esquisito e mal-ajambrado. Está tudo errado: meu cabelo é liso, meus olhos são juntos demais, meu nariz, enorme, e os pelos brotando em meu queixo me fazem parecer o Salsicha. MI: Ô diabo! Ô diabo! mesmo. A nuvem que se forma acima de minha cabeça continua me seguindo pelo resto do dia. Quando cheguei, nesta manhã, estava animado e ansioso em de repente encontrar Sarah, talvez conhecê-la um pouco melhor e me enganar pensando que talvez tivesse uma chance com ela. Agora, pensar nela me vendo mesmo de longe me enche de medo. Não existe absolutamente nada atraente em mim. Entrei na fila para ser feio várias vezes. Não existe esperança. MI: É esse o espírito! Renda-se! Para piorar as coisas, enquanto estamos na fila do refeitório, vejo Sarah um pouco à frente, pagando. Matt está à minha frente, então uso sua altura para tentar esconder minha silhueta medonha, abaixando-me para que minha cabeça fique escondida atrás de seus ombros. Infelizmente, minha súbita mudança de posição faz meu cotovelo atingir Ravi, que está parado atrás de mim. Com um retumbante “Ei!” ele atira sua bandeja, repleta de peixe e ervilhas, pelos ares. Camarões, peixe e ervilhas caem, quentes e pegajosos, com uma inesperada graça em cima de minha cabeça, ombro esquerdo, e por todo o meu braço esquerdo. MI: Hoje não é seu dia, é? Alguns outros alunos urram, e todos em volta de Ravi e de mim rapidamente se afastam, tornando-nos o centro das atenções. MI: Como se nunca tivessem visto ninguém usando peixe na cabeça. Até parece. — Archie! O que está fazendo? — Em meio a todos os gritos e ervilhas, não posso deixar de admirar a esperteza nerd de Ravi: afaste-se de qualquer envolvimento dando nome ao culpado o mais rapidamente possível. Em seguida, Beggsy empresta sua oh- tão-bem-vinda opinião à situação. — Cara! — grita. — Quer um pouco de catchup para acompanhar? — Seguem-se risadas de qualquer pessoa que tenha escutado. Queria não precisar existir. Como se as coisas não pudessem ficar piores, sou em seguida rodeado por um grupo de monitores que começam a tentar me limpar, despindo meu casaco para que realmente consigam tirar tudo. — Não vai querer ir para casa cheirando a peixe — aconselha um deles, enquanto estou me acotovelando no meio do bando. Em tempo real, a limpeza é feita em segundos, e o esquadrão de monitores volta a servir os estudantes famintos. No Tempo de Archie®, a tortura dura horas, mas enquanto eles se afastam em câmera lenta, vejo Sarah à minha frente, parada com um dos braços esticados, segurando um guardanapo, com um toque de preocupação presente no belo rosto. MI: Acorde!
  • 68. Retorço meus traços malformados em alguma coisa que possa lembrar um sorriso, sentindo-me ainda mais feio que antes, e aceito o guardanapo. Sarah sorri: — Tem uma coisa na sua cabeça. MI: Em qual delas? — Obrigado — respondo e limpo o camarão de meus cabelos. MI: Na verdade é salmão. — É um visual legal — ri Sarah. — Cai bem em você. — Todo mundo vai estar usando amanhã — respondo, com um sorriso cansado. Sarah me abençoa com mais uma gargalhada. MI: Mandou bem! — Você é engraçado, Archie. — É. É um talento nato. Mais risadas, antes de uma garota da sua sala chegar e a levar embora para tratar de alguma coisa mais importante. Mas, enquanto ela se afasta, faz uma coisa que reacende a Fogueira de Esperança dentro de mim: ela olha para trás, sorri e dá um daqueles acenos que as garotas dão mexendo todos os dedos. Quando Ron Weasley olhou no espelho de Ojesed, ele se viu como monitor-chefe de Hogwarts... MI: ...Quando você se olhou nele, ele quebrou. OK, sei que não sou nenhum Orlando Bloom, mas deve existir alguma coisa que eu possa fazer para aumentar minhas chances. MI: Hora de começar a pensar, camarãozinho.
  • 69. NOVE Nunca pedi para cortar o cabelo antes; geralmente apenas me dizem que vou cortar e resmungo concordando. Mas, atormentado pela recém-descoberta consciência de meus defeitos físicos, chego à conclusão, durante a volta para casa, que, salvo uma cirurgia plástica, simplesmente terei que trabalhar com o que tenho — o que significa meu cabelo. O problema é que, de alguma maneira, preciso plantar na cabeça de mamãe a ideia de que necessito de um corte de cabelo, sem parecer que quero um porque Sarah vai à minha casa na sexta. E este é o outro problema: Sarah vai à minha casa na sexta-feira. Onde vou arranjar tempo de encaixar um corte de cabelo nas próximas 48 horas? Pelo menos 47 delas já estão basicamente tomadas. Existe uma pequena chance de, se mamãe achar que preciso aparar as pontas com urgência, ela ligue para Jean, a moça que vai à nossa casa cuidar de seu cabelo. MI: É difícil, mas talvez funcione... Entro em casa de fininho pela porta da frente e vou direto até o banheiro do primeiro andar. O espelho confirma tudo que preciso saber — meu cabelo provavelmente estava mais bonito cheio de comida em cima. Tenho uma rápida inspiração e molho as mãos na pia, passando-as pela minha franja, que começa a cair em cima dos meus olhos. Perfeito. Em seguida, saio pela porta da frente, para entrar de novo com meu grito de sempre. — Olá-á! — Estamos na cozinha! — grita mamãe de volta para mim. Ótimo! “Estamos” sugere que Tony está na área. Meus escudos sobem e posso sentir meu MI zunindo de ansiedade, mas vou deixar passar dessa vez. Entro na cozinha. Mamãe está de costas para mim, e Tony lê à mesa da cozinha, atrás de nuvens carregadas de fumaça. Tento mais uma vez. — Olá? — Quer uma xícara de chá, querido? — Sim, por favor... Pffft. — Sopro minha franja, como se ela estivesse me irritando. —Pffft. Com um tilintar da colher contra minha caneca, mamãe se vira, com a chaleira nas mãos. Ela para e franze a testa.
  • 70. — Está chovendo? Dou um gemido interno; certamente deixei bem óbvio que meu cabelo está me atrapalhando? No entanto, meu ME já está funcionando, e respondo com uma confusão bem ensaiada: — Não. Por quê? Pffft. A expressão no rosto de mamãe ao se aproximar de mim me faz viajar sete anos no tempo. É analítica e determinada. Sete anos atrás aquela expressão seria a precursora de um lenço de bolso sendo esfregado na minha bochecha. Essa memória sensorial obviamente está guardada nos Arquivos de Emergência de meu ME, e, instintivamente, me retraio quando ela se aproxima. — Fique parado... Mamãe passa uma das mãos pela minha franja e me entrega o chá com a outra. Isso é que eu chamo de fazer várias coisas ao mesmo tempo. — Archie, o que é isso? — Ela cheira seus dedos. — Seu cabelo está molhado. E você está cheirando a peixe. MI: Malditos poderes de observação! — Está? Estou? — Finjo explorar com surpresa minha cabeça. — Ah é. Um acidente com o prato de comida no almoço. MI: ... E o prêmio de pior desempenho sob pressão vai para... Mamãe olha mais uma vez para mim, tentando desvendar o que seu filho meio bobo está aprontando. Como se confirmando suas suspeitas, meu ME me faz tomar um gole de chá e sorrir pateticamente. MI: Genial. Algo parecido com reconhecimento se acende nos olhos de mamãe, e ela olha rapidamente para Tony, mas ele ainda está mergulhado em seu livro e cigarro. O vislumbre de reconhecimento se transforma em uma coisa mais brincalhona. — Tire seu casaco, precisa ser lavado. Vá dar uma olhada no seu quarto. Agora é minha vez de não entender nada. — Ande. Arrasto-me para o segundo andar carregando meu chá; metade me amaldiçoando pelo fracasso da Operação Corte de Cabelo e metade ansioso pelo que poderia haver no meu quarto. Abro a porta e em cima da cama está uma nova calça jeans, uma camisa legal e um par de tênis. Levanto o jeans — são apertados e pretos, exatamente como gosto. A camisa também é bem bonita. Tem mangas curtas e é estampada num xadrez vermelho desbotado. Por mais que pudesse ter um quê de Glee, acho que posso equilibrar seu charme emo usando-a por cima de uma de minhas camisetas velhas. Os tênis são os que tenho desejado já há algum tempo: prova de que minha mãe realmente me escuta. All Star cinza. Eu os experimento. Legal. A batida típica de mamãe na porta anuncia sua chegada. Seu rosto denota pura ansiedade. — Está tudo bem?
  • 71. — Obrigado, mãe. Adorei tudo. — Olhou na sua mesinha de cabeceira? Viro-me para trás e abro a gaveta. Ali dentro está um pequeno vidro de loção pós- barba. Não conheço a marca, mas com um “Legal!” na mente eu o abro para sentir o perfume. MI: Sarah não vai conseguir resistir... — Obrigado, mãe — respondo, abraçando-a. — Não foi nada. — Ela ri por cima de meu ombro. — Precisa agradecer a Tony também; a loção pós-barba foi ideia dele. Por um rápido segundo, sinto-me estranhamente traído por Tony e mamãe estarem conversando sobre minha vida amorosa. Mas então percebo que não existe realmente uma vida amorosa sobre a qual conversar, então engulo meu orgulho e continuo: — Claro. Vou descer agora. — A propósito, não há nada de errado com o seu cabelo. — Mamãe sorri, bagunçando minha franja. Olho para ela como se não soubesse do que está falando, mas suspeito que até mesmo James Bond teria dificuldade para esconder um segredo de minha mãe. A nuvem carregada na cozinha agora estava acompanhada de um cirro-estrato. Normalmente, eu fingiria uma tosse forte ao me deparar com tamanha neblina, mas as circunstâncias pedem um cessar-fogo na campanha antifumo. — Oi, Tony. Obrigado pela loção. Tony desgruda os olhos de seu livro e se reclina na cadeira, com um sorriso de satisfação no rosto. Mordo minha bochecha para o sorriso torto em meu rosto não escapulir. MI: Imbecil. — Sem problemas, amigo. Fico feliz em ajudar. Precisa fazer algum esforço quando recebe uma garota em casa. Temendo uma explosão digna da síndrome de Tourette, rapidamente passo o piloto automático de meu ME para controle manual; naquelas três frases, Tony quebrou a Regra de Ouro de Conversas Não Específicas: Você NUNCA toca no assunto em questão. Sei que ele sabe para que são todas aquelas roupas e a loção pós- barba, e sabe que eu sei para o que são — mas você NUNCA toca no assunto. Mamãe sabe como é, tivemos discussões antes, e ela deixou sua opinião sobre o assunto clara, mas depois daquele dia, ela honrosamente nunca tocou especificamente no assunto. É como falar com alguém que obviamente usa peruca; você sabe que a pessoa está usando; ela sabe que você sabe, mas ambos honrosamente não tocam no assunto. Por mais que eu odeie comparar Sarah a uma peruca, Tony, Imbecil como sempre, está eficazmente anunciando a plenos pulmões minha calvície para todos. Decido optar por táticas de distração. — É, acho que sim. Estava pensando se podia pegar alguns de seus livros
  • 72. emprestados por alguns dias? — Claro. O que está procurando? — Tenho alguns deveres de casa — minto facilmente. — Preciso pesquisar sobre as maravilhas naturais do mundo, autores clássicos da história e... — Faço uma varredura mental de coisas que garotas possam gostar — ...borboletas. Tem alguma coisa sobre esses assuntos? — Vamos lá dar uma olhada. — Tony levanta com dificuldade do lugar e deixa um rastro de fumaça em seu encalço até a biblioteca. Mamãe evidentemente caprichou ali porque a maioria dos livros dele está nas prateleiras. A única coisa que tenho a dizer a favor de Tony é que seu hábito de leitura é amplo e variado. Seu escritório é como uma pequena versão de como imagino que seja a Biblioteca Britânica, e rapidamente considero perguntar a ele se posso fazer o Jogo aqui. Os cinzeiros transbordando e a desordem geral me trazem de volta à realidade. Apesar da avidez em evitar qualquer coisa que lembre trabalho pesado, seu computador foi desembalado e montado, pronto para usar. Conheço Tony bem o bastante agora para entender que este é um item no qual não se deve tocar. Quaisquer que sejam os segredos sombrios guardados ali, nunca saberei nada sobre eles; é seu Cálice Sagrado, sua Joia Preciosa e seu Retiro da Vida Familiar. Enquanto Tony se estica e procura, faço um rápido exame: é desconfortável olhar a algumas das prateleiras. Não porque haja alguma coisa inconveniente nelas, mas porque não são muito diferentes das minhas. Há bastantes livros de ficção científica, como a série The Stainless Steel Rat, e alguns volumes obscuros, que parecem ser dos anos 1950 ou 1960. Floreie como bem entender, são cheias de bobagens escapistas. MI: Assim como todas as espadas e feitiçarias que recheiam suas prateleiras. A outra coisa é que aqui há montanhas de livros que eu adoraria ter: enormes livros de capa dura com fotos do espaço, livros sobre a natureza selvagem e até mesmo alguns sobre OVNIS. MI: Seria Tony um nerd enrustido? Ou, mais provável, é isso que acontece aos nerds quando envelhecem? Eu e meus amigos estaríamos destinados a virarmos Imbecis obesos sem real compreensão sobre aqueles ao nosso redor, eternamente soltando idiotices ao tentar conversar, cercados de pessoas com as quais não sabemos como falar de verdade? Estremeço só de pensar, e alguma coisa parecida com pena por meu padrasto se acende numa parte há muito esquecida de minha alma; será que Tony e eu somos mais parecidos do que estou preparado para admitir? — Aqui está, Arch, tente esses. Tony empurra uma pilha de livros pesados para o meio de meus braços, e os examino rapidamente: tem um sobre o Grand Canyon, alguns romances clássicos — incluindo 1984 e Ardil 22 —, um livro de David Attenborough com algumas fotos legais de borboletas e, embaixo de todos eles, um pequeno livro cheio de orelhas sobre bruxaria na Inglaterra medieval. Levanto o olhar e vejo Tony sorrindo de modo
  • 73. conspiratório para mim. — Ela vai gostar desse, amigo. Talvez possam até mesmo fazer uma mágica juntos... MI: Cala a boca, seu idiota! — É. — Tento retribuir o sorriso, mas a onda quente de vergonha percorrendo meu corpo corrompe o arquivo necessário para tal, e sei que pareço mais estar rangendo os dentes. O que estou mesmo. — Obrigado. Depois do chá, levo os livros para minha Toca e os arrumo em minhas prateleiras. Por mais que realmente façam meu quarto parecer um pouco mais impressionante, não consigo evitar me sentir ligeiramente manchado pelo envolvimento de Tony em meus planos. É como se todo mundo soubesse o que estou armando — exceto eu. Depois de remexer em minhas prateleiras para criar uma aparência mais vívida, analiso o restante de minha Toca. Está uma bagunça. Então eu a arrumo. Não uma das arrumações em meio a xingamentos que faço de vez em quando para acalmar minha mãe, e não como a arrumação que fui mais ou menos chantageado a fazer quando Tony ia visitar a casa pela primeira vez. Não, essa arrumação era sincera. Estimulado pelo desejo de tornar tudo perfeito, recolho as roupas do chão e as penduro em meu armário, abro as caixas restantes da mudança, escondo anuários, velhas miniaturas e a amaldiçoadora evidência de um catálogo da Next debaixo da minha cama, e sorrateiramente me desfaço de certos CDs. Esse quarto agora pertence a um Cara. Em seguida decido terminar a Nox Noctis. Com as cores base aplicadas, dou a cada parte da peça um banho. É basicamente como o banho de preto, mas uso tons mais fortes de cada cor base. O que você quer é que o banho escorra gentilmente para as reentrâncias da escultura, deixando apenas pigmento suficiente para sombrear. Para o corpo, misturo um marrom avermelhado, e um roxo mais forte para suas roupas. Enquanto o banho seca, volto minhas atenções para a gárgula. Tendo usado o pincel seco nela, agora dou um banho de cor para suavizar os reflexos. Misturo um cinza- escuro e misturo algum ocre e verde para um efeito de passagem de tempo. Em circunstâncias normais, eu deixaria a feiticeira secando durante algumas horas, mas estou correndo contra o tempo, então vou contra tudo em que acredito e uso o secador de cabelos nela. Em seguida, resolvo empregar uma técnica de reflexos que inventei e batizei de “gotejar”. Gotejar envolve criar uma versão de banho ligeiramente mais espessa, mas numa cor mais clara que sua cor base. Com um pincel, você aplica uma gota do pigmento aguado às áreas mais elevadas de sua miniatura. Em seguida, usando o pincel seco, você gentilmente puxa o contorno da gota pela superfície, para ela se misturar ao sombreado. O resultado é uma gradação de cor do tom mais escuro de seu sombreado, misturando-se à cor base, e, então, clareando até a cor de reflexo. Se
  • 74. conseguisse acertar, o resultado era muito bom. No entanto, como envolve muita tinta dissolvida em água, existe sempre o risco da cor escorrer e estragar tudo. É o equivalente nerd a praticar rafting em corredeiras. Felizmente tudo sai conforme o planejado, e suspiro aliviado. A parte final, que farei assim que acordar amanhã de manhã, é de detalhes menores: olhos, boca, joias e outros adornos que vão dar vida à imagem. Mamãe coloca sua cabeça dentro do quarto, bem na hora em que estou secando meu pincel. Seus olhos se arregalam ao perceber o novo visual de minha recém-arrumada Toca. — Devo estar na casa errada — comenta, fingindo surpresa. — Achei que estava entrando no quarto de meu filho... — Ha, ha. Mamãe dá mais uma olhada ao redor do quarto. — Posso passar aspirador enquanto estiver na escola, se quiser. Uma coisa escurece por trás de meus olhos, e um protesto começa a querer subir por minha garganta. MI: Aguente firme; não se esqueça de que ela também já foi uma garota um dia. Garotas prestam atenção nesse tipo de coisa. A nuvem passa, e meu protesto é devidamente engolido. — OK. — É uma resposta universal que nem confirma nem nega o que sinto a respeito do assunto; não posso parecer ansioso demais. — Precisa que eu espane também? — balbucia para si mesma, antes de notar a ira em meu olhar. — Deixe comigo. Não vou mexer em nada importante. Infelizmente para meu ME, a tagarelice empolgada de minha mãe é contagiante, e não consigo não sorrir pesarosamente e balançar a cabeça. Ela percebe, com um imenso sorriso que me diz que o quarto estará mais limpo que nunca quando eu chegar em casa. Quer eu queira ou não. MI: O que você quer, na verdade. Mas não a deixe descobrir isso. Dê muita aprovação e ela vai querer limpar aqui dentro todo dia! — Amo você! — cantarola. — Boa noite! — E a porta se fecha. Dou mais uma examinada na Nox Noctis e na Gárgula, antes de colocar meu alarme para despertar uma hora mais cedo, de modo que possa terminar a pintura e ter tempo para mais algum retoque. Quinta-feira será um longo dia, mas o esforço vai valer a pena. Vasculhando minha mente atrás de lojas que vendam incenso, subo na cama e aguardo ser arrebatado por sonhos com Sarah, a Linda Gótica. Jamais gostei muito de quintas-feiras. São simplesmente um pouco deprimentes. E
  • 75. graças a uma noite decente de sono sem sonhos estranhos, estou em modo acelerado. Realmente, quero que essa quinta-feira acabe logo, para que a contagem regressiva para o Jogo possa começar propriamente. É um pouco como o dia antes da véspera de Natal — deprimente. Mais deprimente ainda é o fato de que acordo a uma hora estúpida para fazer os embelezamentos em Nox Noctis. Às seis e meia da manhã, mal consigo enxergar, muito menos manejar um pincel, mas faço o meu melhor. O sombreamento de ontem à noite e o gotejar auxiliado pelo secador de cabelos ficaram muito bons. Tudo que falta é fazer os detalhes, que serão as partes mais observadas. MI: Está tudo nos detalhes. Usando meu melhor pincel, pinto a íris da feiticeira de um azul que misturo para ficar o mais parecido possível com o azul dos olhos de Sarah. Em vez do tradicional batom vermelho que a maioria das feiticeiras parece usar nos filmes e pinturas, escolho uma cor mais intensa da cor de boca; as únicas pessoas que ficam bem de batom vermelho berrante trabalham em circos. Por mim, aquela foi uma hora de minha vida bem gasta, e é uma coisa a menos com que me preocupar mais tarde. Antes de descer as escadas, tenho uma inspiração e posto meu endereço na linha do tempo de Sarah, com um link do Google Maps. E então escrevo “Sua Aventura começa às 19hs de amanhã”, só para ajudá-la a entrar no clima. Uma rápida olhada na minha própria linha do tempo mostra uma mensagem de meu pai, deixada ontem à noite. td ok6a? Suspeito que ele em breve começará a escrever em hieróglifos. Depois de um minuto olhando o teclado, decido não responder. Talvez se não responder, ele desista. MI: Apesar de ele ter dito que era importante... É, bem, “importante” pode esperar até eu comprar meu telefone novo. O Jogo é importante. Sarah é importante. Deixar tudo perfeito é importante. Tenho mais uma incrível ideia e procuro lojas locais que possam vender incenso. MI: Bingo! Tem uma na esquina do Casebre! Fecho o laptop e, em seguida, tento avançar o resto do dia o mais rapidamente possível. O que dá certo, até o primeiro intervalo. É um dia quente de início de verão, e eu, Matt e Beggsy estamos conversando. Beggsy faz um relato de testemunha ocular sobre a camiseta que viu Kirsty Ford usando na aula de educação física pela manhã. Aparentemente, era bem apertada. Após nos acalmarmos, começamos a mudar a conversa para o Jogo quando surge Ravi, parecendo ter acabado de ser arrastado em cima de uma cerca viva. O que pode até ter realmente acontecido.
  • 76. — Archie! — Ele chega, tropeçando e sem fôlego, exalando medo de praticamente todos os seus poros. — Rav, o que foi? Está bem? — É o Humphries! Ele está atrás de você! MI: Ah, meu Deus! Vamos todos morrer! — Por quê? O que é que ele quer? Ravi está tremendo: — Ele queria saber onde você mora, Archie. MI: Essa não. Beggsy contribui com um arrastado e baixo: — Ca-ara. — Significa *Ah, meu Deus! Vamos todos morrer!*. Para coroar o momento, seu tom de voz desafina, fazendo-o soar como um Smurf apavorado. — E você deu a ele? — Não, não falei nada. — O sorriso de Ravi é frágil, como se ele tivesse passado pelas tormentas do inferno, mas de boca fechada. — Não podia. MI: Bom soldado. — Obrigado, cara. É mais corajoso do que eu teria sido. — Não. — Ravi dá de ombros. — Eu não podia; não sei seu endereço novo. MI: Ah. Isso explica tudo, então. — OK. — Concordo com a cabeça de modo distraído. — Bem, obrigado mesmo assim. Vou mandar meu endereço por mensagem para vocês hoje à noite; talvez seja melhor que não saibam agora. Desse jeito, Humphries não pode forçá-los a contar a ele. — Outros encarariam aquilo como um insulto; mas nerds conhecem a verdade, então ninguém discorda dessa ideia, mas tenho certeza de estarmos todos amaldiçoando nossa falta de músculos a essa altura. — Vamos tentar não nos separar no almoço e no intervalo da tarde; estaremos mais vulneráveis sozinhos. E é assim que passamos o restante do dia. Ficamos na biblioteca durante o almoço, e o intervalo da tarde foi destinado à busca por cantos apropriados onde nos esconder. Não vejo Sarah — e parte de mim fica agradecida. Não gostaria que ela fosse exposta a esse nível de covardia. Ao chegar em casa, estou cansado e deprimido. Tony saiu, para deslumbrar algum cliente durante uma cerveja e uma partida, e mamãe está obsessivamente tentando arrumar mais caixas da mudança. Finalmente caio na cama, feliz por ter terminado de lidar com aquela quinta-feira. E, apesar de minha ansiedade para que a contagem regressiva para o Jogo comece na manhã seguinte, sinto-me inquieto — ainda há tempo de sobra para dar tudo errado. MI: Anime-se! Pelo menos pode dormir sem medo de sofrer bullying! Quantas vezes alguém pode estar errado? Estou na cama quando começa o Sonho. Sinto uma onda de escuridão no canto do quarto, e dois olhos vermelhos acesos como brasa abrindo-se. Sem conseguir me mover
  • 77. nem gritar, prevejo um ataque. Mas ele não vem; os olhos apenas ardem na minha direção em meio às sombras. De repente dois fios de... alguma coisa... voam de onde meu agressor está. É como uma mistura das teias do Homem-Aranha e de fita adesiva. Essas cordas pegajosas parecem ter vida própria e dão diversas voltas ao meu redor, apertando-me com força, meus braços junto ao corpo, como uma versão tosca de mumificação. Os fios movem-se como tentáculos e me levantam da cama, me deixando de pé no meio do quarto. Das sombras consigo escutar algo parecido com uma voz. Tendo visto o formato corpulento de meu demônio do sonho antes, eu esperava um grunhido profundo e ressonante, mas o que escuto é um som de um grito distante, como se eu estivesse ouvindo os ruídos finais de um eco. Fico parado, amarrado e tremendo, escutando esses gritos abafados, pelo que parece ser uma eternidade. Desejo ter uma faca ou alguma coisa afiada para cortar aquelas cordas, mas nada aparece; estou indefeso, inteiramente à mercê da coisa no canto do quarto. A voz distante some, diminuindo como fumaça na escuridão. O silêncio seguinte é pior que os ruídos estranhos. A criatura finalmente sai de seu esconderijo, e, antes de me derrubar no chão e de voltar ao mundo real, eu a reconheço. Sua forma se solidificou numa escarpada e angular massa de músculos e ódio, e ela abre as asas com um rangido enferrujado me atirando no chão com um berro distante. É a minha Gárgula.
  • 78. DEZ O Glorioso Dia chegou, e estou exausto. Nem mesmo a tagarelice empolgada de minha mãe consegue levantar meu ânimo; sua arrumação excessiva de minha gola e de meu cabelo consegue ser simplesmente irritante. Tony se despede de mim com um “Vá com tudo, Tigrão”, que manda meu MI a um estado de apoplexia, e é apenas graças ao meu afiado ME que consigo me impedir de gritar “IMBECIL!” a plenos pulmões. No entanto, balbucio sozinho a palavra a caminho da escola, repetidamente, como algum tipo de mantra. Não é que o Sonho me assuste; já tive muitos até agora para conseguir esquecê-los bem rápido. Mas existe alguma coisa inquietante quando seu hobby começa a se virar contra você no meio da noite. Pelo menos Nox Noctis ficou boa. Fiz uma avaliação final nela antes de sair para a escola. Ela ficou sexy, mas não sexy demais. MI: Existe isso? Mas acho que o que a realçou mesmo foram os tons de pele — o gotejar e o banho de cor se uniram quase perfeitamente. A miniatura poderia entrar na próxima competição de pintura no Dia dos Jogos, mas acho que vou dá-la de presente a Sarah. Homens geralmente dão flores. Nerds dão feiticeiras em miniatura. Na escola, o grupo está animado, mas tentando não demonstrar — é o jeitinho nerd. Em parte porque você não quer que outras pessoas o escutem pulando sem parar e dizendo como vai golpear os Inimigos da Escuridão com seu Anão Nível Quatro, e em parte porque, secretamente, estejamos todos tentando elevar o Jogo para algo além do que ele realmente é: um jogo. Não que tivéssemos nenhuma ilusão de que seja mais que isso, mas não vamos nos conformar em compará-lo a uma noite de jogos de tabuleiro. Então, em vez de dar tapas nas costas uns dos outros e gritar sobre Poções de Lázaro, trocamos olhares furtivos e comentamos em código, preservando o pouco de dignidade que ainda nos resta. E, esse tempo todo, nos mantemos atentos a Humphries, que permanece uma ameaça invisível durante toda a manhã. Chega a hora do almoço, e sigo para os portões da escola. Beggsy me interrompe antes de eu alcançá-los. — Cara! Onde está indo? — Na cidade, amigo. Só vou comprar umas coisas para hoje à noite. — Ah, é? — Beggsy me olha confuso; o que eu possivelmente poderia precisar para hoje à noite? Temos o Jogo, temos as miniaturas... Temos até mesmo a garota! Quem
  • 79. poderia querer mais que isso? — É. Só umas coisas. — OK, cara. Vejo você mais tarde. — Ele bate na minha mão e volta na direção do refeitório. Essa é a primeira vez em que saio da escola sem permissão, e já estou me sentindo como um criminoso. A sensação é intensificada pelos outros andando na mesma direção; eles são desse tipo. Isso tudo vai soar meio esnobe, mas as pessoas me julgam por eu ser nerd, então acho que tenho direito de julgá-las um pouco também. Os alunos se afastando dos portões parecem ser aqueles que não queriam realmente estar na escola para começo de conversa — as saias são mais justas, capuzes cobrem sobrancelhas caídas, e os andares são mais desafiadores. Sou agora uma gazela solitária na Serengueti de Delinquentes Juvenis. Meu ME fica mais aguçado, e escolho a tática de cabeça baixa e mãos nos bolsos; é incrível como seus próprios pés podem parecer interessantes quando se está tentando passar despercebido. A cidade parece mais segura; há pessoas fazendo compras e trabalhadores mastigando sanduíches — mais cobertura para um nerd solitário tirar partido. Enquanto os predadores delinquentes marcham em meio à multidão, sinalizando sua aproximação com assobios e gritos, mantenho-me próximo aos muros, em busca da camuflagem oferecida por senhoras fofoqueiras e mães com seus filhos. MI: Você é um Conan, o Bárbaro do mundo real. Quando passo pelo Casebre, olho de relance pela janela, momentaneamente reconfortado pelas cores e formas na vitrine. Mas o Casebre não era meu destino hoje. Existe um beco, não muito longe do Casebre, e é aonde o Google falou que preciso ir. Se for para encontrar incenso em algum lugar nessa hora de almoço, só pode ser ali. Dobro a esquina e entro no beco, sem ser visto pelas tropas de babuínos de duas pernas da minha escola. É uma lojinha meio surrada com um letreiro escrito “Manisha” no tipo de letra que se vê em restaurantes indianos. Conhecendo minha sorte, significa alguma coisa parecida com “Loja do Amor Não Correspondido”. MI: Lá vem essa palavra de novo... Um sino antigo soa quando abro a porta e entro, e sei que estou no lugar certo. Tirando as fileiras de prateleiras vendendo cristais, velas de formatos estranhos e estátuas de Buda, o cheiro de incenso é avassalador. Apesar de ser um pouco floral, se presta à atmosfera que eu queria criar — já conseguia me sentir fora desse mundo; o tempo parecia ter sido suspenso, e senti meus estresses gradualmente diminuindo. O incenso estava nos fundos da loja, então perambulei por ela, olhando os livros sobre feitiçaria rapidamente e escutando o tinir suave dos sinos de vento que ficavam pendurados no teto. Os incensos vinham em varetas ou em cones e numa variedade de diferentes perfumes. MI: Qual deles? Felizmente, havia uma tabela na parede dando detalhes sobre as propriedades
  • 80. variadas de cada fragrância. Optei pelos cones de patchouli, que, segundo a tabela, são “indispensáveis para qualquer ocasião especial”. Infelizmente, até mesmo o saco de papel branco no qual o atendente da loja os guardou não disfarça totalmente seu perfume; preciso colocar isso na minha mochila rapidamente, ou vou cheirar a algum tipo de templo pelo resto do dia. O destino, no entanto, tinha outras ideias para mim. Quando dobro a esquina para voltar ao centro da cidade, eu me deparo com Jason Humphries e sua Gangue de Boçais encostados na frente de uma loja. Eles não param na minha frente nem nada; estão ocupados demais fumando e grunhindo com alguma coisa que poderia ser uma garota debaixo de tanta maquiagem. Humphries, entretanto, me vê imediatamente e, por mais que não se mova nem fale nada, fixa seus olhos frios e mortos em mim, com um sorriso de crocodilo nos lábios. MI: Oh, Deus. Minhas pernas já estão inundadas de adrenalina, me preparando para sair correndo. Mas ele não vem até mim. Em vez disso, os músculos em sua testa se flexionam só porque podem. Não sei se desvio o olhar, o que poderia significar desrespeito, ou o encaro de volta, o que poderia sinalizar algum tipo de desafio. Em vez disso, tento fazer um pouco dos dois, piscando e assentindo freneticamente, e meio que sussurrando um “Tudo bem?” na sua direção. MI: É isso aí — mostre bem a eles! Quando já estou quase fora de seu campo de visão, ele responde com um lento e medido balançar da cabeça e diz, sem som, apenas uma palavra: — Hoje. MI: Melhor já começar a cavar sua própria cova. Mas, que eu saiba, ele ainda não descobriu onde moro. MI: Continue rezando. Eu rezo. Durante toda a aula de matemática e a de física também. A volta para casa, pós-escola, deveria ser um burburinho excitado sobre o que aconteceria naquela noite. Normalmente, meus amigos estariam tentando obter detalhes do que eu tinha reservado na Tumba dos Insones, e eu responderia com provocações convencidas e atirando uma ou outra pista. E, à luz dos recentes acontecimentos, deveríamos estar discutindo sobre A Presença de uma Garota Pela Primeira Vez. Mas hoje meus amigos estavam apenas tentando me assegurar que a ameaça de Jason Humphries não existia. — Bem, e se ele aparecer? — Ravi está oferecendo algum tipo de aula de coragem. —Você simplesmente chama a polícia.
  • 81. — Ele não vai aparecer. — Matt tem repetido essa frase em resposta a praticamente tudo que foi dito nos últimos dez minutos. — Ele não sabe onde você mora. — Mas suponha que ele apareça e quebre a casa toda? E se ele arrombar a porta? — Já estou no estágio de mãos na cabeça, certo de que Humphries de alguma maneira vai farejar o cheiro de minha casa nova. — Ele não vai aparecer. — Ele não é tão burro assim, Arch — diz Ravi, ignorando Matt. — Isso seria invasão de domicílio. É ilegal. Ele pode ser um idiota, mas não é burro. — Ele não vai aparecer. — Mas você não viu a expressão no rosto dele; ele estava sério! — insisto. — Ele não vai aparecer. Beggsy subitamente anda até ficar na nossa frente e se vira para nos olhar, fazendo- nos parar. — Caras — começa, num tom suplicante. — Estão todos se esquecendo de uma coisa. — Há uma pausa dramática e posso sentir as chamas da esperança se reacendendo. O que poderíamos possivelmente ter esquecido? — Nós somos quatro... — Beggsy mostra quatro dedos, só para o caso de termos esquecido como se conta — E ele é apenas um. — Ele ergue um dos dedos da outra mão, nos poupando de toda a maratona matemática. — Estão vendo o que quero dizer? Há mais uma pausa enquanto todos encaram Beggsy. Em seguida, como uma só unidade, e ao mesmo tempo, caímos na gargalhada. Somos Nerds; sabemos do que somos e do que não somos capazes. — Só estou dizendo! — protesta Beggsy, a voz subindo uma oitava. — Ei! — interrompe Ravi. — Tem alguma janela acima da sua porta da frente? — Tem. E daí? — Podemos encher uns baldes com água e jogar na cabeça dele! Mais gargalhadas e todos colaboram, pensando em planos cada vez mais elaborados para nos livrarmos de Jason Humphries, se ele aparecer. O que, de acordo com Matt, não vai acontecer. Depois de nos apoiarmos mutuamente, meus amigos seguem para suas respectivas casas, e eu volto para a minha. Olho para o relógio. MI: Três horas até o lançamento. E então me dou conta: em três horas, uma garota vai estar na minha casa. MI: E ela é linda. E ela é linda! MI: E você gosta dela. E gosto dela! MI: Puta merda. Sem me dar ao trabalho de anunciar minha chegada, corro escadas acima até minha Toca. Está fantástica; mamãe fez um belo trabalho e, honrando sua palavra, não mudou
  • 82. nada importante de lugar. A colcha foi trocada, o tapete está limpo e a poeira é agora apenas uma memória distante. Qualquer coisa parecida com uma caixa de papelão misteriosamente sumiu, e minhas tralhas magicamente encontraram novos lares. Está perfeito. Mamãe bate em minha porta e coloca a cabeça dentro do quarto. — Está tudo em ordem? — Obrigado, mãe. Está ótimo. Vou só tomar um banho. — Vá em frente, então. Vou fazer um chá para você. Nunca antes na minha vida prestara tanta atenção em minha higiene pessoal: o cabelo é lavado, as axilas são esfregadas e aqueles lugarezinhos importantes recebem uma Ensaboada Máxima. Com meus jeans e camisa novos e um toque da loção pós-barba em cima de meu solitário pelo do peito, entro na cozinha. Mamãe coloca um prato de espaguete à bolonhesa na minha frente. — Está bonito. — Ela diz isso do jeito perfeito: discreto, para não causar nenhum constrangimento nem desconforto, mas o brilho em seus olhos me diz que estou realmente bem. É tudo que preciso saber. Infelizmente, existe mais uma opinião a ser oferecida, e ela vem da porta da frente com um tinir de chaves e um rastro de fumaça. Acertar essa nem direito a prêmio dá. — Ei, ei, ei, Casanova! Prendam suas filhas, Arch está no pedaço! MI: Foi um assassinato por misericórdia, Excelência... — Comprei aquelas tintas que você queria. São essas mesmo? MI: Hein? Tony se demorou no final do corredor como uma sombra inflada. Ele furtivamente acena para mim, tentando não chamar a atenção de mamãe. MI: *Suspiro* É melhor entrar no jogo e ver o que o Grande Espião está aprontando... — Vamos dar uma olhada — consigo dizer, debilmente entrando na farsa. Quando chego ao final do corredor, Tony se encosta contra a parede, mantendo os olhos na cozinha. A essa altura, sinto-me como se estivesse num daqueles filmes antigos de espiões em que ninguém sabe atuar. Meu ME reprime a vontade de falar com sotaque russo. — Que tinta? Tony enfia uma sacola debaixo de meu nariz. — Achei que poderia precisar de alguma coisa especial hoje à noite. Tem uma garrafa de Cava dentro da sacola. Ele faz meu MI entrar num conflito sem precedentes contra ele mesmo. Por um lado, é um gesto ostensivo, que não leva em consideração a) minha idade e b) que algumas latas de cerveja seriam mais apropriadas. Pensei em recusar. Por outro lado, Sarah vai achar bem legal quando eu casualmente aparecer com uma garrafa de alguma coisa espumante. A discussão interna dura meros segundos antes de o romântico incurável em mim tomar a decisão final. MI: Legaaaaal.
  • 83. — Obrigado, Tony. Não precisava ter feito isso. — Não foi nada — responde. — Mas não conta para sua mãe; ela mataria a nós dois se descobrisse. Vai precisar gelar, está quente. Espere até sairmos. — Rapidamente, escondendo a sacola atrás das cortinas em volta da porta de entrada, ele começa a cantar desafinadamente uma velha canção sobre alguém ser uma lady uma, duas, três vezes. Esse gesto inesperado faz mamãe correr para seu lado e o abraçar enquanto ele tem lapsos de risadinhas sucessivas e cai numa cadeira. Demoro um momento no corredor, sentindo-me um pouco manchado pela mentira da qual agora faço parte. MI: Às vezes, é preciso dançar com o diabo... Justificando isso para mim mesmo num ritmo de foxtrot, verifico que a mercadoria ilícita está bem escondida e sigo o rastro de fumaça de volta até meu espaguete. — Tem Coca na geladeira — diz mamãe, dando um último abraço em Tony e colocando duas garrafas grandes na porta da geladeira. — E salgadinhos no armário — acrescenta por cima do ombro. — Legal — respondo. — Então que horas vocês...? — Deixo a pergunta no ar. — Vamos nos encontrar no pub antes, então vamos sair umas 18h30. Que horas Sarah vai chegar? — Todo mundo vai estar aqui por volta das 19 horas. — Uso o “todo mundo” para tentar fazê-los finalmente entender que isso não é um encontro. É só uma Noite de Jogo. MI: Mas poderia considerá-la um encontro. Mais ou menos. — Teremos saído bem antes, então — diz mamãe, e em seguida olha para o relógio. — Vou tomar um banho. Tony, devia pensar em começar a se arrumar também. — É. — O cara é um mestre em réplicas. Engulo o resto de meu espaguete e subo para minha Toca. Tenho preparativos a fazer. A primeira questão é onde colocar a mesa de jogos. Guardo minhas tintas e, em seguida, remexo em minha coleção, pegando as peças de que posso precisar hoje. Além de Nox Noctis e da Gárgula, tenho uma seleção de criaturas mortas-vivas: zumbis, guerreiros esqueletos, espectros e por aí vai. A Tumba dos Insones é uma história de vampiros, mas o pessoal ainda não conheceu o Sanguessuga Mestre; isso só acontece lá pelo nível 6. Até lá, precisam reunir uma série de pistas para descobrir a identidade dele ou dela. É tudo muito complexo. Coloco a mesa bem na frente de minha estante de livros. Não apenas estarei emoldurado por minha coleção de maravilhas literárias, como também estarei diretamente abaixo de uma luminária na parede, realçando meu ar de mistério e distanciamento; parecerei ser desse mundo, mas não parte dele, solitário de dia e... MI: Um babaca. OK, então vou apenas ajustar um pouco a luz. Monto meu kit de Mestre: uma
  • 84. barreira que divide a mesa, escondendo os diversos livros de regras, mapas, miniaturas e dados que usarei para desafiar, testar e guiar os jogadores. Tendo roubado algumas velas réchaud do andar de baixo, as espalho pelo quarto, colocando uma no meio da mesa. Em seguida, os cones de incenso. Percebo que nunca usei essas coisas antes; quantos devo acender? Comprei uma dúzia, e eles têm um cheiro bastante forte, então decido separar apenas três. Pego as quatro cadeiras da cozinha e as posiciono em volta da mesa com a de minha escrivaninha; vai ficar bem apertado. Também pego alguns salgadinhos e os coloco em tigelas sobre a mesa. Normalmente, simplesmente rasgaríamos e passaríamos os sacos, mas estou pensando em Sarah. Hora de testar: ligo a luminária da parede, acendo as velas e apago a luz de teto do quarto. Está legal; tem um brilho sobrenatural vindo da mesa, as velas lançando formatos compridos, suaves e oscilantes nas paredes. É melhor eu checar como está quando se olha do banco do motorista. Sentado em minha cadeira, eu ajusto a luminária atrás de mim de modo que ela caia diretamente sobre minha cabeça, mas ainda jogue uma quantidade decente de luz em cima de meus livros e meus mapas. Olhando para cima, vejo um vago reflexo meu na janela de meu sótão. Sou definido apenas por sombras. MI: Perfeito. Ainda encarando meu reflexo, percebo o quanto estou nervoso. Examino mais atentamente minha imagem. Estou bem? Calculado demais? Só para ter certeza, bagunço um pouco meu cabelo para não ficar com aquele visual de quem se esforçou demais. Assim é melhor. — Ar-chieee! — Mamãe grita escada acima. Apago as velas, acendo a luz do teto e desço as escadas. Mamãe está parada, sorrindo e toda arrumada. — Está bonita. — Aceno sabiamente com a cabeça. Tony aparece a seu lado, lutando com uma gravata. — Oh, venha aqui. — Mamãe ri e começa a dar o nó para ele. — Certo, Archie — começa, fazendo tudo furiosamente ao mesmo tempo. — Estaremos de volta no máximo às 23 horas. Deixei o número do restaurante ao lado do telefone, e se não adiantar pode ligar para o celular de Tony. OK, fique parado! — Tony está dificultando o nó, usando apenas seu pescoço, o que é bastante impressionante. Inconscientemente olho o relógio. Já são quinze para as sete. MI: VÃO EMBORA, pelo amor de Deus! Mamãe percebe minha expressão e também olha o relógio. — Vamos lá, Tony, você está ótimo. Vamos chegar atrasados. Tony aperta uma última vez sua gravata, esticando a cabeça como se quisesse arrancá-la. Mamãe se abaixa e me abraça. — Divirta-se, querido. — Ela sorri e me dá mais um apertãozinho. Tony aperta minha mão. — Boa sorte, amigo — fala, batendo no meu ombro com a outra mão. Já vi cenas
  • 85. assim em filmes de Hollywood sobre ritos de passagem. E então, para completar, ele acrescenta: — E não faça nada que eu não faria! — A isso se segue um olhar significativo para as cortinas e uma piscadela. MI: Por favor. Façam com que ele pare. Para encerrar essa farsa insuportável, murmuro concordando e os acompanho até a porta. É apenas quando escuto o barulho do carro partindo que consigo relaxar completamente. MI: Faltam dez minutos... Verifico meu reflexo mais uma vez no espelho do banheiro do andar de baixo, em seguida, tiro a bebida de detrás da cortina da entrada. Não há tempo de gelá-la agora, então pego cinco taças e subo até minha Toca. Dou mais uma olhada pelo quarto e para a posição da mesa, examinando-a de quase cada ângulo possível. MI: Cinco. Como é que o tempo parece estar passando tão rápido? Acendo todas as velas e os cones de incenso e apago a luz do teto. E então fico parado no alto das escadas, sem saber muito bem o que fazer comigo mesmo. Ding-dong! MI: É hora do show!
  • 86. ONZE — Olá, filho. MI: Nãonãonãonãonãonão — AGORA NÃO! Entre me preocupar com Sarah, Jason Humphries, meu quarto e todo o resto, esqueci a visita de meu pai — e tenho uma sensação que meu ME não foi rápido o bastante para disfarçar minha decepção por ele não ser outra pessoa. — Desculpe ter me atrasado um pouco; só queria ter certeza de que sua mãe já teria saído... Não queria nenhuma situação desconfortável. Odeio quando ele refere a ela como “sua mãe”. Ele não diz isso com nenhum tom de despeito, mas também não é com amor. MI: Livre-se dele. Há um momento de silêncio, onde nenhum de nós dois sabe realmente o que dizer. — Posso entrar por um instante? Não vou demorar. — Ah. Claro. Entre. — Recuo, deixando papai entrar na casa. Seus olhos inconscientemente olham em volta da sala, procurando por provas de sua ex-mulher e de seu novo companheiro. — Está tudo bem? — pergunto. — Está. — Papai parece inquieto, sem saber o que fazer com as mãos. — Escuta, tenho algo para lhe contar. Ainda não disse nada a sua mãe, queria que você fosse o primeiro a saber e não tive realmente uma oportunidade de fazer isso pessoalmente. Você anda meio difícil de encontrar hoje em dia. Posso sentir minha calma se esvaindo. É este o problema com meu pai — ele tem um ótimo talento para fazer você sentir como se tudo fosse culpa sua. Eu poderia ressaltar que não era eu que estive ocupado demais fazendo canja d galinha para minha família substituta no fim de semana passado, mas não quero começar uma discussão. — Então, o que há? — Bem, me ofereceram um emprego que vai trazer um pouco mais de dinheiro, o que obviamente vai tornar as coisas melhores como um todo, e vou conseguir ajudar mais sua mãe... — Parabéns. — Escolho uma reação mais alegre para disfarçar minha raiva aumentando com o terceiro “sua mãe”. — Obrigado. Mas o problema é que terei que me mudar. Minha raiva é silenciada.
  • 87. — O quê? Para onde? — Para York. Jane tem família lá, o que vai tornar as coisas mais fáceis, mas evidentemente significa que não estarei por perto. Sinto uma espécie de abismo se abrindo em meu peito, e minha garganta parece ter dado um nó. — Quando? — No fim do mês; daqui a apenas algumas semanas. Eu e Jane já conversamos, e parece a melhor coisa a se fazer para todo mundo. MI: E onde eu me encaixava na conversa de vocês? — Hum... OK. — Sei que é uma notícia um pouco surpreendente, mas queria que soubesse o quanto antes. Sinto-me estranhamente vazio. Sei que ainda estou zangado com meu pai pelo que aconteceu entre mamãe e ele, mas isso parece um soco no estômago. Parece rejeição. — Ainda conseguiremos nos ver. Você pode ir me visitar, e vou comprar um celular novo para você. MI: Um celular. Um prêmio de consolação. Uma coisa para amenizar sua culpa. — Certo. — Acho que estou piscando um pouco demais. Vozes do lado de fora da casa nos tiram daquele momento estranho. — Você está bem? — Estou — minto, e vejo uma sombra de decepção escurecendo o rosto de meu pai. — Que bom — mente ele de volta. — Só queria que você soubesse primeiro, antes que eu conte à sua mãe. — Ele se vira para os sons se aproximando. — Parece que seus convidados estão chegando. — É. O pessoal de sempre. — Meu ME voltou ao piloto automático, lidando com a situação de um jeito leve e despreocupado. Por dentro, no entanto, sou puro caos. — OK. Bem, vou sair do seu caminho. Falo com você pelo Facebook amanhã; vamos tentar nos encontrar semana que vem. Um dia depois da escola. — É. Isso seria legal. — Estou enfiando minhas unhas em minhas próprias palmas das mãos para me distrair da lava borbulhando debaixo de minha pele. — Está bem, então. Bom. Te amo, filho. — Papai se inclina para um abraço. — É, também te amo. — As palavras saem de minha boca como areia quente, mas não posso desmoronar aqui. Não agora. MI: Engula. Morda e engula. Papai se vira e sai, trocando cumprimentos com o grupo se aproximando. Viro-me de costas para a porta e respiro fundo, para soltar com certa força — tentando expirar a dor que está ardendo em meu peito. Passo uma das mãos sobre os olhos, só por precaução, e então ligo meu ME no máximo. É esquisito, estou vendo o desenrolar através de uma câmera de filmagem. Estou morto por dentro, inerte, em outro lugar. — Caaaara! — Beggsy anuncia a chegada do grupo. —Olha quem encontramos! —
  • 88. Ele aponta outra pessoa do grupo; Sarah. Simplesmente vê-la faz meu ME querer me trair. Ele quer desistir e expor minha dor escondida. Mas isso não vai acontecer. Faço uma chamada de emergência para meu Departamento de Engenharia interno, exigindo Dobra Espacial Cinco — ou estaremos todos mortos. Com um pouco de esforço, meus escudos permanecem intactos, e cumprimento o grupo com um sorriso torto. — Vocês que entram aqui, abandonem todas as esperanças! — Repito meu cumprimento rotineiro das Noites de Jogo. Sarah pisa na varanda. Está usando suas roupas góticas, e meu coração derrete; ela é linda e sexy, e possivelmente tudo que alguém poderia querer. Passaram-se apenas dois dias desde que a vi pela última vez, mas senti saudades. Seus olhos cheios de rímel brilham num azul pálido, e seu sorriso poderia reunir nações. Eu a amo. — Oi — diz Sarah, a voz como ouropel. Não conheço nenhuma outra maneira de descrevê-la. — Oi. — Atrás dela, posso ver Beggsy fazendo mímicas de seios com as mãos, como se estivesse fingindo tocar duas buzinas de carros antigos ao mesmo tempo. Matt está sorrindo maliciosamente, e Ravi se virou para trás, seus ombros tremendo. MI: Malditos. — Certo. É melhor vocês entrarem então. — Não era o mais convidativo dos convites, mas nesse momento estou funcionando com geradores. Sarah entra no corredor e, de costas viradas, faço uma cara feia para meus amigos engraçadinhos. Beggsy aperta a buzina invisível uma última vez por diversão enquanto fecho a porta atrás deles. — Senhores. E senhora. Se quiserem podem subir as escadas e ocupar seus lugares, me juntarei a vocês em um minuto. Subam as escadas e dobrem à direita. Enquanto eles sobem, entro casualmente no banheiro do andar de baixo e tranco a porta. Rapidamente, jogo água no rosto e, em seguida, me olho no espelho. Sem ninguém para me ver ou ouvir, meu ME perde um pouco da força, e posso ver lágrimas em meus olhos. Cerro os dentes e inflo as narinas, reprimindo minha dor. A cada vez que as lágrimas ameaçam cair, soco a parede ao lado do espelho e murmuro sozinho como um louco. — Vamos lá, Arch. Lute. Vamos lá! Sinto-me como uma lata de Coca-Cola que foi sacudida, mas não posso me render agora. Papai obviamente tem sua própria vida para viver, e não posso discutir isso, mas me sinto tão... indesejado. Desafiando-me a chorar uma vez mais, jogo água no rosto de novo, seco com a toalha e me reavalio. ME funcionando normalmente. Abro um sorriso para o espelho, só para ter certeza de que ainda consigo fingir um. MI: Vai servir. Foco na Sarah. Foco no Jogo. Respirando como um boxeador pronto para entrar no ringue, subo até minha Toca, onde posso deixar esse mundo para trás durante algumas preciosas horas.
  • 89. Do lado de fora do turbilhão que está acontecendo dentro da minha cabeça, tudo parece estar indo muito bem. Quando entro, Matt finge estar tendo um acesso de tosse, apertando os olhos para a porta. — Archie? Archie? É você? — Ele abana as mãos, como se para afastar a fumaça. — Não posso ver você! Fale comigo, Archie! Os outros riem, enquanto Sarah revira os olhos fingindo estar exasperada. — Qual o problema com vocês? Nunca sentiram cheiro de incenso antes? — Ela se vira para mim, assentindo com a cabeça em aprovação. — Bem, eu gosto! Ainda estou enxergando tudo através da lente de uma câmera, mas ninguém parece ter percebido. Passo por todas as etapas, tirando a Cava quente de debaixo da mesa. — Quem vai querer um drinque? — Cara! — Significa *Está bastante impressionado*. Ravi apenas ri e ergue um dos copos. Matt, como sempre, dá uma alfinetada em mim através de uma fingida inocência. — Hoje é alguma ocasião especial? Mas meu cérebro está passando por uma sobrecarga em seus sistemas agora, e não aceito o convite para me juntar à brincadeira. Em vez disso, me viro para a única coisa me ajudando a não desmoronar agora. — Sarah? — Não, obrigada. — Ela sorri, envergonhada. — Bebi demais num casamento ano passado e passei a noite toda vomitando. Só de sentir o cheiro fico enjoada. Pego uma Coca-Cola na cozinha para ela, sentindo os sorrisos presunçosos de meus amigos às minhas costas. A raiva ardendo dentro de mim faz com que eu os xingue, e, por um momento, desejo que não estivessem ali. Felizmente descubro que a bebida tem um efeito quase anestésico e, depois de beber um copo, estou imerso em uma nuvem borbulhante — tudo parece um pouco melhor, todo mundo é um pouco mais engraçado, e me sinto um pouco mais leve. Tudo bem para eles zombarem, mas não sou o único que se esforçou: Beggsy e Ravi parecem saídos de um comercial de sabão em pó. Suas camisas normalmente amassadas estão impecáveis, e suas calças jeans foram tão bem passadas, que provavelmente dá para ouvi-las chiando quando eles se mexem. Apenas Matt manteve algum senso nerd em sua estranhamente transformada aparência; diferentemente de Beggsy e Ravi, ele enfiou a camisa dentro do jeans e a abotoou até o colarinho. E não vamos nem falar no gel de cabelo que usou para amansar seu afro ruivo. Eu não sabia que partir o cabelo ao meio estava na moda. MI: Ele parece saído do século retrasado. Sarah está se entrosando com perfeição, apesar de obviamente ser o centro das
  • 90. atenções; Beggsy não para de piscar para mim toda vez que acha que ela não está olhando, e Ravi não consegue parar de olhar para ela. Estranhamente, Matt, provavelmente a pessoa mais nervosa que conheço, parece estar completamente relaxado em sua companhia. Posso ver que parte dele não consegue acreditar de verdade que ela esteja interessada no Jogo, e ele está calmamente explicando as regras para ela em termos claros e simples. Dá para ver que está em seu estado mental de compromisso com o Jogo e quer que a novata sinta-se tão entusiasmada quanto ele. É quase como se Sarah irradiasse paz, e a acidez costumeira de Matt tivesse sido neutralizada. Quando tenho certeza de que Sarah entendeu o básico, tomo o comando. — Certo, pessoal, vamos ao trabalho. A Tumba está esperando. Matt, Ravi e Beggsy tiram suas miniaturas das mochilas, desembalando-as de diversas camadas de plástico bolha e papel higiênico. Sarah evidentemente está impressionada. — Puxa. Vocês mesmos pintaram isso? — Ela não podia ter feito comentário melhor, e passamos os cinco minutos seguintes com Sarah examinando o clérigo de Ravi, o mago de Matt e o Anão Mercenário de Beggsy enquanto os rapazes destacam certos detalhes e explicam técnicas com orgulho sem reservas. Eu mesmo me sinto ficando nervoso. MI: E lá vem a carta na manga... De trás de minha barreira de Mestre, tiro Nox Noctis e a entrego a Sarah com um casual “Aqui está a sua”, que disfarça o nervoso que se infiltra através de meu escudo de Cava. MI: Boa jogada. Ela segura a miniatura na altura de seus olhos, girando-a gentilmente entre o indicador e o polegar. — Puxa — suspira. — É incrível! Você pintou isso especialmente para mim? Vindo da boca de qualquer outra pessoa seria um clichê — uma tentativa óbvia de flertar. Da boca de Sarah, é um agradecimento sincero que faz meu coração pular uma batida, e um calor se espalhar pelo meu corpo. Eu pintaria a Capela Sistina em troca de mais um olhar daqueles. Infelizmente, não estou preparado para sua pergunta e, de repente, fico ciente dos sorrisos irônicos de meus colegas. — É... MI: Está ficando vermelho! — ...bem... MI: Está balbuciando! — ...todos têm uma. Então essa agora é a sua. — Não era exatamente a réplica arrebatadora que eu estava esperando dar. Ela a examina de perto: — Bela roupa... — O olhar que acompanha essa declaração faria um cadáver ter uma ereção. — Vamos dar uma olhada. — Beggsy sorri, tendo um momento James Earl Jones.
  • 91. Sarah entrega Nox Noctis a ele, que a examina, seus olhos cintilando de malícia. — Se veste sempre assim? — Geralmente, não — responde Sarah. — Talvez para o próximo Jogo. As mentes de quatro garotos convocam a mesma imagem em uníssono. MI: As calças de quatro garotos se apertam ao mesmo tempo. — Certo, então — interrompo. — Sarah, aqui está a ficha de sua personagem; pessoal, aqui está o mapa de onde paramos na última vez. — O grupo de aventureiros coloca suas peças sobre o mapa, e todos os olhares se voltam para mim. — Vocês estão numa cripta — começo. — Está escuro, úmido e frio. No final da sala, bem na sua frente, tem uma porta. Entre vocês e a porta está um grande caixão de pedra... O que vocês querem fazer? O grupo se entreolha, Sarah obviamente parecendo não saber por onde começar. Acho que os garotos estão constrangidos e não querem parecer ridículos. Felizmente, Matt, sempre completamente dedicado à causa, começa. — Lançarei um feitiço de Iluminação; precisamos enxergar melhor, eu acho. — OK. A ponta de seu cajado se acende e você vê marcas na parede, talvez como se alguém tivesse tentado escapar. Marcas de garras. — Talvez tenham prendido um vampiro aqui embaixo. — Ravi franze o cenho. — Lembre-se do que aquele ladrão contou pra gente no vilarejo. Ele poderia estar no caixão. Tomo mais um gole de bebida e sorrio, sentindo as bolhas em minha cabeça me abençoando com autoconfiança e valor. — Devemos olhar dentro do caixão? — Sarah ainda está meio incerta, mas está tentando. — Vamos inspecioná-lo primeiro — resolve Matt, decidido. — Ilumino a tampa com meu cajado, em busca de símbolos ou inscrições. — OK. A tampa do caixão é bastante ornamentada. Há runas entre as gravações, mas vocês só conseguem identificar uma palavra: “Amaldiçoados”. — Pronuncio a palavra com o máximo de gravidade que consigo transmitir. — Preparo meu machado de batalha — oferece Beggsy, remexendo-se em sua cadeira e inconscientemente segurando uma arma invisível. — Vou usar minha clava — concorda Ravi. — Espera aí. — Sarah está olhando a folha do personagem de Ravi. — Você é um clérigo, deve ter água benta e um crucifixo. Não seria melhor usá-los? — Bom trabalho — comenta Matt. — Ravi? — É. Vou escolher a água e a cruz. Nenhum sanguessuga vai se meter com a gente, não comigo por aqui! — Vou preparar meu... — Sarah examina sua folha — ... meu talismã de proteção. — OK. Quem vai abrir o caixão? — Melhor ser eu — responde Beggsy —, sou o mais forte. — Ele pega um dado e o joga. Atrás de minha barreira, jogo de volta, usando outro dado.
  • 92. — OK. Beggsy, a tampa é muito pesada, então você consegue apenas deslizá-la. Lá dentro tem um esqueleto. Está usando um roupão em decomposição e coberto de amuletos, todos exibindo o sinal dos Insones. Ele está segurando um cajado de madeira, e você pode ver que seus dentes caninos são afiados, como presas. Ele não se mexe. — Coloco na mesa a miniatura de um esqueleto. O grupo se entreolha de novo. — Poderia ser um vampiro — especula Matt. — Mas se for, certamente já cuidaram dele. — Pode ser o corpo de um daqueles fanáticos, os Filhos dos Insones — sugere Ravi. — Pode ser, Jh’terin, pode ser. — Matt parece sombrio agora; ele está Na Zona. — Vamos querer examinar o corpo? Recosto-me na cadeira e assisto ao grupo em meio à minha névoa. É maravilhoso. Sarah é maravilhosa. Ela entrou de cabeça nesse mundo nerd sem nem piscar. Ela está ali. No meu mundo. O grupo decide ignorar o caixão e, em vez disso, abrir a porta. São necessárias algumas tentativas, e Matt resolve jogar um Feitiço de Destruição. Exatamente o que eu esperava: Preparei uma armadilha mágica desencadeada exatamente por aquele feitiço. O esqueleto (na verdade um bruxo morto-vivo) se levanta do caixão e os ataca. Em momentos, Beggsy está incapacitado, e Ravi foi ferido pela Lâmina Maldita. O pânico se espalha entre o grupo como um incêndio numa floresta. — Alguém faz alguma coisa! — grita Ravi, enquanto alegremente revelo o quanto seus pontos de vida estão caindo. Beggsy geme enquanto joga um dado para saber por quanto tempo mais ficará desacordado. — Posso convocar um demônio? Isso seria uma boa ideia? — pergunta Sarah para Matt. — Vai demorar demais — responde. — Convocar demônios toma tempo. — Você não poderia distraí-lo? Tem alguma coisa que poderia mantê-lo longe por um tempo? Matt olha sua ficha de personagem e, em seguida, assente. — É uma companheira valiosa, Nox Noctis — diz no tom de voz de seu personagem. — OK, Archie. Vou lançar um Campo de Distorção entre nós e o esqueleto. Dados são jogados, e pontuações calculadas. Por trás de minha barreira, posso ver que a jogada de Matt falhou frente à resistência do esqueleto à mágica. Mas quero dar a Sarah uma chance de brilhar. — Seu Campo de Distorção funciona, e o bruxo esqueleto baixa sua espada; é como se ele não pudesse ver vocês. — Fique atrás do caixão — ordena Matt. — Não temos como prever quanto tempo essa coisa vai durar. Você convoca, e eu seguro o ossudo aqui.
  • 93. Sarah move sua miniatura no mapa e olha para mim. — Eu quero... — Ela lê a ficha de sua personagem — ... Convocar um Grande Demônio. — OK, mas é arriscado — aviso. — Esses caras têm uma queda por pedir mais do que você pode dar. — Vou correr esse risco. — Ela sorri, e então segura os dados nas mãos e fecha os olhos. — Espíritos do Submundo — entoa —, concedam a mim a ajuda de um de seus agentes. Faça-o meu e apenas meu! Posso sentir os outros congelando por um momento: isso é interpretação de primeira. Em outras circunstâncias, pareceria bobagem, mas aqui, no santuário de minha Toca, foi perfeito. Ela joga o dado. Por trás de minha barreira, posso ver que foi mais uma derrota, mas regras foram feitas para serem quebradas. Com floreio dramático, coloco a Gárgula na frente dela. — Qual é o seu desejo, Senhora? — Entusiasmado pelas bolhas da bebida, entro no espírito da coisa. — A quem você serve? — Ela olha diretamente nos meus olhos. — Apenas a você, Senhora. — Eu olho diretamente nos dela. — E por que está aqui? — Apenas para fazer o que desejar. — E o que vai pedir de volta? — Apenas o que estiver em seu poder conceder. Quase posso sentir uma carga elétrica fluindo entre nós. Se perguntassem a mim, diria que não havia mais ninguém na sala, apenas nós. Não me importo com os outros assistindo e não me importo com o que vão pensar; tudo que posso ver são os olhos azuis como gelo de Sarah e as curvas delicadas de sua boca. — Então faça o que peço e será recompensado. Um milhão de imagens passam por minha cabeça, e sou forçado a cruzar as pernas. Deus me ajude se precisar ir ao banheiro. — O que deseja, Senhora? Nunca chego a escutar sua resposta. Ouvimos uma súbita batida na janela de meu quarto; uma grande pedra rola pelo vidro. Ficamos todos sentados em silêncio, olhando ansiosamente uns para os outros. BANG! Mais uma pedra. — Que diabos...? BANG! Outra. Cautelosamente, Matt vai até a janela, a abre e coloca a cabeça para fora. Ele recua rápido, ao mesmo tempo em que mais um míssil atinge o telhado. — Eu estava errado. — Ele faz uma carranca. — Ele apareceu.
  • 94. DOZE Ficamos sentados, congelados, em silêncio, escutando o bombardeio em meu teto. — Ele vai quebrar a janela num minuto. — Ravi voltou ao seu comportamento nerd habitual, encolhido e apavorado. — O que vamos fazer? — Beggsy também está se retraindo para sua concha e parece ter sugado ar de um balão de gás hélio. — Como ele nos encontrou? MI: Boa pergunta. — É o garoto que vimos no mercado, Jason Humphries. O que ele quer? — Sarah está olhando pela janela, obviamente nervosa, enquanto Matt anda pelo quarto e para quando outra pedra atinge o vidro. MI: O que você vai fazer? A responsabilidade é minha. Meus amigos estão na minha casa e na minha Toca. Estou cansado de me sentir impotente e assustado. Quero voltar a ter algum controle sobre minha vida. As bolhas em minha cabeça se misturam à minha frustração e raiva, criando alguma coisa parecida com coragem. — Que se dane — balbucio sombriamente, indo até a janela. — Cara! Pare! Eu ignoro o protesto de Beggsy e abro toda a janela para olhar para a calçada lá fora. Embaixo da suave poça de luz do poste, posso ver a silhueta forte de Jason Humphries se preparando para atirar mais uma pedra. — Ei! — Minha raiva parece ainda maior quando falo. — O que está fazendo? Humphries olha para cima e ladra uma risada curta que ecoa pela noite, antes de atirar mais uma pedra. — Chegando na festa! — grita. Quero matá-lo. Esta é a minha casa! Não é justo e não está certo. — Pare! Não tem festa alguma! — grito, desviando da pedra. — Cai fora! Mais uma gargalhada, seguida de outra pedra. Matt está ao meu lado. — Diga a ele que vamos chamar a polícia se ele não parar. — Seu tom de voz é firme e preocupado. Humphries responde a minha sugestão com mais um bombardeio. Olho em volta de meu quarto e vejo uma cena de medo e vergonha; estamos todos apavorados demais para fazer alguma coisa e sabemos e nos odiamos por isso. Até Sarah parece estar chocada.
  • 95. — O que ele está fazendo? — pergunta, incrédula. Posso sentir uma onda de calor invadindo meu peito, e minha respiração está ficando mais curta. — Cai fora daqui! — grito. Humphries para por um momento. — Está com aquela garota aí? — pergunta. MI: Negarnegarnegar! Mas alguma coisa em mim se acendeu, provavelmente graças a Cava. — Estou! E daí? — É melhor me deixar entrar, então! — Ah é? E se não deixar? A resposta é mais uma saraivada de pedras. — Archie, isso é sério. — Cala a boca, Ravi. Me deixa pensar. Sarah se levanta de repente. — Vou lá falar com ele. — Ela sai do quarto. Naquele instante, sinto-me mais impotente, mais inútil e mais patético que jamais me sentira antes na vida. Numa explosão, as bolhas de Cava estouram, e uma jorrada de fúria invade minha corrente sanguínea como lava derretida. — Desgraçado! — sibilo, e corro escadas abaixo, ultrapassando Sarah. — Archie! O que está...? — Fique aí! Escancaro a porta de entrada e fico parado, ofegante, trêmulo. Matt, Ravi e Beggsy se juntam a mim. Humphries salta na nossa direção. — O que você quer? — Minha voz está trêmula. — Como descobriu onde moro? — Vi no Facebook da sua namorada. Eu avisei que ia entrar. — Não, você não vai. Agora dá o fora! Humphries olha por cima de meu ombro; pela mudança sinistra em sua expressão, imagino que Sarah tenha aparecido atrás de mim. — Oi, gatinha. O que está fazendo com esses perdedores? — Ele nem se dá ao trabalho de esconder a malícia em seu tom de voz. — Por que não vai para casa, Jason? — Sarah é a mais calma de nós. — Estão jogando aí dentro? — É como se ele nem sequer a tivesse escutado. Humphries se aproxima. — Por favor, vá para casa. — Posso mostrar alguns jogos. — Um sorriso de réptil revela dentes pequenos e manchados. — Se manda, Humphries. MI: Acabei mesmo de dizer isso? Os músculos de Humphries se flexionam. Eu o desafiei, e ele está me mostrando o que tem. Mais uma vez, ele se aproxima.
  • 96. — O que foi que disse? Não tenho como voltar atrás agora. — Apenas se manda, OK? Ouço Beggsy atrás de mim repetindo “Ah, meu Deus” sem parar, sibilando para Ravi chamar a polícia. O rosto de Humphries é duro como granito. — Acho que vou é entrar. — Sua voz está baixa e fria, decidida. E, então, ele ousa. Coloca um dos pés na minha soleira. Minha soleira. Algo acontece e Jason cambaleia para trás. Meus braços estão esticados, e posso sentir um metal derretido correndo por minha veias. MI: Ah, meu Deus! Você o empurrou! Você empurrou Jason Humphries! Estou ofegante e tremendo como uma folha. Um sorriso perigoso se abre na boca de Humphries e seus olhos se escurecem. Sem dizer uma só palavra, ele se aproxima novamente de mim, lenta e precisamente, o rosto cheio de ódio. — Babaca — sibila. — Nerd. Escuto um estrondo dentro de minha cabeça e meu corpo é tomado por ira e raiva. Tudo que foi anestesiado pela Cava de repente entra em foco. Meus braços empurram Jason de volta para a calçada e minhas pernas me arremessam para cima dele. Um grito selvagem sai de minhas entranhas e ecoa pela noite. Meu peso atira nós dois no chão, eu por cima. Humphries apoia os pés no chão e desliza de baixo de mim. Nós dois levantamos e agarramos os ombros um do outro. Nossas pernas dançam estranhamente enquanto tentamos fazer o outro tropeçar numa imitação ruim de judô. O hálito de Humphries fede, e um sorriso irônico está congelado em seu rosto. Estou sem ar e fazendo ruídos medrosos enquanto nossos pés tentam atingir as canelas um do outro, errando e recuperando o equilíbrio em frações de segundo. De repente, estamos afastados; ele deve ter me empurrado, porque estou cambaleando para trás. Meus braços cobrem meu rosto de modo instintivo e são atingidos por uma tempestade de socos. É uma bagunça, toda a situação virou uma bagunça. Não é como aquelas lutas que você vê nos filmes, onde os caras socam um ao outro com socos lentos e precisos; este é um espasmo frenético e confuso de pancadas e barulhos. Mas Jason sabe brigar, e eu não. Com meus braços protegendo a cabeça, minhas costelas ficam expostas, e sinto o impacto de seus punhos bem abaixo de minhas axilas. Aquilo tira o ar de meus pulmões, e me dobro, minhas mãos abanando. Cambaleio às cegas, esticando meus próprios punhos, acertando o ar, agarrando seu capuz, gemendo e gritando. Em algum lugar consigo ouvir Sarah gritando para pararmos. E, então, acerto algo. Minhas descontroladas juntas dos dedos atingem alguma coisa que se tritura. Os golpes param por um segundo enquanto Humphries recua, com uma das mãos no rosto. Ele fica parado por um momento, em seguida olha sua palma com uma expressão parecida com nojo. Está escorrendo sangue de seu nariz, preto debaixo daquela meia luz. Uma expressão decidida aparece em seu rosto, e ele olha para mim. Já estou dando passos incertos para trás, mas é tarde demais; ele pula em mim
  • 97. como um touro, os braços girando. Sinto um impacto na bochecha, e o barulho do cascalho debaixo dos pés enquanto caio, com Humphries em cima de mim. Ele rosna, grunhe e xinga, me atingindo a cada chance que tem. MI: Vou morrer. E, por um momento, acho que morri. Tudo fica branco, e não sinto mais nada. Quando abro meus olhos, vejo que a calçada foi iluminada pelos faróis de um carro, e Tony está atirando Jason na rua. Minha mãe me levanta, com uma expressão no rosto que eu nunca tinha visto antes. — Entre em casa. Agora. Sentado com um pacote de ervilhas congeladas no rosto, escutando minha mãe me dando um sermão sobre os perigos de brigar, nunca me senti menos como James Bond. Pode ter sido uma fantasia tênue para começar, mas meu rosto machucado, costelas doloridas e ego gravemente ferido não ajudam em nada a reerguê-la. Apesar dos vinte minutos que meus amigos e Sarah passaram explicando a minha mãe que o que acontecera não tinha sido culpa minha, ela parece pensar que este é o momento certo para garantir que aquilo jamais se repita — como se eu estivesse prestes a sair pelas ruas em busca de vingança. E acho que, além de tudo, estou tendo uma ressaca prematura. MI: Mas você acertou um soco nele. Aquela lembrança me enche com um pouco de orgulho, admito, mas também me enche com mais que um pouco de medo — minha vida na escola não vai ser uma que valha a pena viver. A cada passo que der, vou ser assombrado pela imagem psicótica de Jason Humphries. — Então? Não vai falar nada? Olho nos olhos de minha mãe. Poderia contar a ela sobre a mudança de papai, mas aquilo pareceria uma desculpa. MI: Apenas se desculpe e encerre o assunto. — Desculpe. Simplesmente aconteceu. Mamãe franze os lábios e expira lentamente pelo nariz. — Mas você está bem? Como está a bochecha? MI: Ela não consegue se segurar. — Está doendo um pouco, mas estou bem. Desculpa, mãe. Ela concorda e se endireita, perguntando quem quer uma xícara de chá. É sua maneira subconsciente de revelar que vai deixar essa passar. Chá resolve tudo. — Bem, eu vou tomar uma cerveja — bufa Tony, se arrastando até a geladeira. — Acho que mereço. — Ele cerra os punhos e os relaxa novamente, se retraindo por alguma dor ou machucado. — Aquele garoto era grande.
  • 98. — Eu sei! — rio, pesarosamente. — Eu estava embaixo dele! Obrigado por tirá-lo de cima de mim. — Não foi nada. Você parecia estar com tudo sob controle, de qualquer maneira... Ergo uma sobrancelha desajeitadamente. Meus amigos riem. Apenas Sarah permanece quieta, me olhando com atenção, quase como se estivesse tentando entender alguma coisa. MI: Pode estar apenas admirada e cheia de gratidão. Acho que não. Mamãe volta com canecas de chá adoçado e oferece biscoitos a todos. — Bebam — diz. — E depois acho melhor levar todos vocês para suas casas. Tivemos um grande choque. — É — consegue dizer Beggsy, em meio a mastigadas. — Mas não foi um choque tão grande quanto o que Jason Humphries teve. Com minha adrenalina tendo diminuído, e o chá correndo por nossas veias, começamos a relembrar todo o episódio, confortáveis e a salvo em nosso hábitat. Esse é um momento de camaradagem que nunca experimentara de verdade antes porque, pela primeira vez em nossas submissas vidinhas, alguma coisa aconteceu. Pela primeira vez, somos partes de nossa própria história, em vez de viver nossas fantasias com mapas e miniaturas. Escuto meus amigos relembrando os diversos desdobramentos da noite. Descubro que Ravi tentou mesmo chamar a polícia, mas discou 911. Ele vê muita televisão. Só que ele viu o número do celular de Tony anotado no bloquinho e ligou para ele? Então parabéns para Ravi. Matt ficou tentando decidir se entrava na briga ou não, e Beggsy veio com alguma história sobre ficar na frente de Sarah protegendo-a da briga. Só Sarah e eu não temos nada a dizer. MI: No que ela está pensando? Em todas as fantasias que me permiti ter sobre proteger Sarah de perigos, suas reações foram completamente diferentes desta. Na maioria delas, apanhei até quase morrer... MI: Confere. ...mas emergi vitorioso... MI: Confere. ...possivelmente com uma ferida dramática que faz descer um fio de sangue de minha testa pela lateral de meu rosto... MI: Olho roxo e costelas machucadas... Vamos dizer que confere. ...da qual ela cuida... MI: Mamãe. Ervilhas. Sermão. Não. ...antes de cair irremediavelmente em meus braços... MI: Chá. Biscoitos. Silêncio. Pois é. Talvez esteja decepcionada comigo; talvez minha demonstração encorajada pela bebida tenha sido animalesca ou até mesmo patética demais para conquistar sua adoração. — Todos prontos? — pergunta mamãe, olhando a fileira de xícaras vazias. —
  • 99. Vamos lá, então. — Meus amigos se levantam e se despedem de mim. Ravi me dá um tapinha, Matt aperta minha mão e Beggsy fica em pé, imóvel por um segundo, apontando-me significativamente. É tudo meio solene. Sarah para na minha frente, então se abaixa de modo gracioso e coloca uma de suas mãos na minha. Ela olha bem nos meus olhos. — Vou ligar para você amanhã. Meu ME, incapaz de funcionar, permite que meu rosto fique vermelho. MI: *Sons de trombeta* — Tá. Ela grava seu número no meu telefone, e, em seguida, todos saem. Vejo Tony olhando a porta, escutando o motor do carro sendo ligado. Ela acelera e desaparece noite adentro, deixando meus amigos e a garota que vai me ligar amanhã em suas casas. Com o carro longe, Tony se vira para mim, com um sorriso conspiratório no rosto. — Ora, ora, ora — sorri. — Não sabia que você era desse tipo, Arch, defendendo a honra de sua dama. E contra um cara daqueles. Eu teria feito o mesmo no seu lugar, sabe? Ela vale a pena. Meu ME sorri e concorda. Meu MI geme e suspira. — Deve ter sido a Cava — dou de ombros. Tony para e olha para cima, como se tentando escutar alguma coisa. — Se livre da garrafa antes de sua mãe voltar — aconselha, calmamente. — Ninguém precisa de mais problemas por hoje. — É, está bem. Enquanto me arrasto dolorosamente escadas acima para buscar a garrafa, silenciosamente resolvo nunca mais aceitar as sugestões de Tony. MI: Elas só vão te meter em enrascadas. Esta noite o Sonho é diferente. A Gárgula está esperando, e sou arrastado da cama e deixado imóvel no meio do quarto. Por um tempo, ela apenas me rodeia, me encarando com os olhos acesos, seus músculos como bolas de canhão movendo-se a cada passo por baixo de sua carapaça de pedra. Então ela para e me olha com um rosnado. Bem devagar, começa a andar na minha direção. Mais uma vez fico paralisado e transbordando de medo, mas, de repente, surge um raio de luz roxa entre nós, e outra figura aparece. É Sarah, usando a roupa de sua Nox Noctis. Ela estende uma das mãos cobertas por uma luva, e a Gárgula obedece, recuando devagar de volta para as sombras. Apesar de ainda poder ver seus olhos ardendo corrosivamente em meio à escuridão, sinto-me seguro agora.
  • 100. Sarah se vira para mim, e seus olhos azuis e gélidos se fixam nos meus enquanto um sorriso gentil começa a se formar em seu rosto. Sua outra mão vai até minha nuca, e ela me puxa para me dar um beijo profundo e demorado. Sinto uma onda de fogo subindo de meu estômago e acordo. Vou precisar trocar de pijama.
  • 101. TREZE Quando finalmente acordo no dia seguinte, tudo resolve dar errado. Primeiro, tem a questão com meus pijamas. A coisa mais óbvia a se fazer seria tentar colocar as provas incriminadoras na máquina de lavar. No entanto, por mais que mamãe me conheça, eu também a conheço; quando se trata de lavar roupa, ela é como um patrulha de fronteira. Nada passa despercebido por ela, e qualquer coisa que lhe cause suspeitas é examinada cuidadosamente. Em vez disso, resolvo começar meu dia parado na frente da pia do banheiro com uma esponja e um pouco de sabonete líquido, na esperança de tirar meu DNA da cena do crime. Quando termino, a prova parece sugerir que fiz xixi na cama. Estranhamente, fico mais feliz pelo juiz chegar a essa conclusão do que descobrir a Terrível Verdade. Depois de colocar o pijama molhado discretamente em cima do aquecedor, pego as roupas da noite anterior e examino meu ferimento de guerra no espelho. Estou com um olho roxo, mas não parece tão heroico nem casual como os dos filmes. Meu olho roxo não está tão roxo, e sim uma mistura de cores, indo do vermelho-sangue até o amarelo nicotina com um toque de azul. A pele atingida parece encerada, e descubro que tentar sorrir dói. Em vez de parecer um ousado espadachim, pareço uma fruta podre. Entro na cozinha e sinto o cheiro de bacon desvanecendo e o de cigarros aumentando. Tony está sentado à mesa, lendo o jornal concentrado. Quando apareço, ele ergue o olhar e começa a cantarolar o tema de Rocky e a fazer ruídos estranhos, que imagino serem de uma guitarra elétrica, enquanto dá pequenos socos com os punhos. Que parecem meio afeminados. MI: E você é o campeão mundial dos pesos pesados, né? Mamãe o repreende com um olhar de desaprovação e começa a preparar um sanduíche de bacon para mim. — Achamos melhor não te acordar — começa ela, jogando algumas tiras na frigideira. Olho o relógio: são 10h30. Devia estar mais cansado do que pensava. — Uma xícara de chá? — Sim, por favor. Desculpe sobre ontem à noite, mãe. — Bem, agora já passou. Mas vou falar com a diretora sobre aquele garoto, não queremos nada desse tipo se repetindo. Sinto um embrulho no estômago. O tom de voz de mamãe censura meu iminente
  • 102. protesto e me diz que vai fazer o que disse, quer eu goste ou não. Eu não gosto. Entendo sua preocupação, mas é o equivalente a colocar um alvo em minha cabeça. As escolas funcionam mais ou menos como prisões — Jason não precisa tocar em mim para se vingar. Tudo o que ele precisa fazer é dizer as palavras certas às pessoas erradas, e minhas chances se tornam tão boas quanto as de um filhotinho num tanque de piranhas. — Como está seu olho? — A pergunta chega com uma xícara cheia e um sanduíche de bacon, já com catchup. — É, dói um pouco. Mas vou ficar bem. Mamãe reclama sozinha e começa a limpar as panelas. Em seguida, se vira para mim com uma expressão como se tivesse acabado de lembrar-se de alguma coisa. Não poderia parecer mais ensaiado nem se tentasse. — Ah! Sarah te ligou hoje de manhã. Meu ME vai de zero a sessenta em cerca de três segundos, fazendo meu rosto corar e apertando minha garganta em volta da comida que acabara de engolir. As opções disponíveis para responder são perguntas que deviam demonstrar muito pouco ou nada da emoção que estava sentindo por Sarah ter ligado, nem do medonho horror de minha mãe ter falado com ela enquanto eu dormia. Podia optar pelo casual “Ah, é?”, o educado “Como ela estava?”, ou até mesmo o descompromissado “Ahã”. Em vez disso, meu MI assume o comando e sai de minha boca como um trem expresso da laringe. — O que ela disse? MI: Ops. Mamãe abre seu sorriso que diz “Posso ler seus pensamentos” e se senta à minha frente. — Ela disse — começa, como se estivesse lendo uma história para uma criança de 4 anos de idade — que queria saber se você queria ir à casa dela hoje. — O quê? Hoje? — Hoje. MI: A casa dela! Você vai à casa DELA! Enquanto tento parecer calmo e desinteressado, o coro grego na outra ponta da mesa contribui com um comentário de “Touché”. Mamãe e eu o olhamos feio ao mesmo tempo. MI: Imbecil. — O número dela está ao lado do telefone. Falei que você ligaria de volta. Não precisa me dizer duas vezes, mas não posso parecer óbvio demais; não quero expor tanto o que sinto. Espero alguns segundos. Mamãe e Tony estão me olhando, e o silêncio que se segue é pesado de tanta expectativa. Espero mais um pouco. Por trás de minha aparência calma e controlada, estou sendo tomado pelo pânico. Que diabos vou dizer a ela? Infelizmente, mamãe não me permite tempo para pensar nisso. — Bem, ande logo, então! — desabafa. — Não deixe a pobre garota esperando!
  • 103. Resistindo à crescente vontade de subir e me esconder embaixo da cama até tudo ter terminado, vou até o telefone. Ali, na letra de mamãe, estão os gloriosos números que vão me conectar à menina mais linda do mundo. MI: Então? O que está esperando? O que estou esperando é que meus sentidos voltem a funcionar: o telefone subitamente parece um pedaço de tecnologia extraterrestre. Os tons que ele emite quando disco os Números Santificados parecem desafinados e ridiculamente altos. E existe uma forte possibilidade de meu coração parar nos próximos trinta segundos. — Alô? MI: Oh, Deus, é ela. Tusso nervosamente, tentando limpar a garganta antes de falar. Por algum motivo, meu corpo — que parece pertencer a outra pessoa neste momento — resolve que é uma boa ideia retornar um pouco do sanduíche de bacon com a tosse. O resultado: mais tosse. Na verdade, é uma daquelas tosses que não param e que fazem seus olhos lacrimejarem. Entre os acessos, consigo cuspir uma palavra ou duas. — A — tosse — lô? — Acho que estou morrendo. MI: De vergonha ou de falta de oxigênio? Qualquer um dos dois serve. — Alô? Quem está falando? — Sarah parece um pouco preocupada. Depois da noite passada, é bastante compreensível. — Sarah! — arranho, antes de tomar controle sobre a tosse. — É o Archie! — Infelizmente, essas últimas três palavras saem como um chiado rouco pós-acesso de tosse. — Archie? Você está bem? — Estou — consigo dizer, enquanto limpo minha garganta pelo que espero ser a última vez na vida. — Parece péssimo. — Não, não — insisto, com minha voz normal. — Tinha alguma coisa presa na minha garganta. MI: Bem, pelo menos a primeira etapa constrangedora já passou... — Como está? — Jogo a bola de volta para ela, esperando fazer meu acesso pelo telefone se tornar uma lembrança distante o mais rápido possível. — Estou legal — responde ela. — Foi uma noite bem divertida, e obrigada pela miniatura. Está na minha mesinha de cabeceira. MI: ...! — Desculpe por Jason ter visto minha página no Facebook, já o bloqueei agora. E mudei minhas configurações de privacidade. Que cara bizarro! — Bem, ele obviamente gosta de você... MI: Tentativa de fazer piada! Abortar! Abortar! — Ele precisa trabalhar mais suas cantadas, então! — Sarah ri. — Mas eu estava começando a realmente gostar do Jogo. Adoraria continuar um dia desses. MI: *Soam os sinos de casamento*
  • 104. — Sim, claro, é — balbucio. — Seria legal. — E aí? Quer vir aqui? Podíamos ficar só conversando. Não consigo pensar numa única coisa no mundo da qual gostaria mais, no entanto não quero assustá-la com nada que pudesse soar desesperado. MI: Melhor então manter a boca calada, nesse caso. — É. Seria legal. — Ótimo. Moro em Davenport Road. Número 78. — Ah, sei onde é... Descendo a rua das lojinhas. — Isso. Quer que eu coloque no Facebook? — Tem uma provocação em seu tom de voz que dá um frio no meu estômago. — Talvez da próxima vez — brinco, plantando sementes de que possa vir a existir uma próxima vez. — Te vejo em meia hora? — Tá. — Não quero parecer querer desligar antes dela. — Legal. Tchau. MI: Ela obviamente não sente a mesma coisa... — Tchau. — Fico parado, olhando o fone por um segundo, talvez esperando que ela voltasse à linha. MI: Não foi tão ruim assim, foi? Surpreendentemente, não foi. Conversar com uma garota por quem estou perdidamente atraído não foi nem um pouco ruim. Foi quase como conversar com um amigo. MI: Estranho. Mamãe aparece no corredor, sem dúvida tendo escutado cada palavra. MI: Você realmente precisa daquele telefone celular. — Talvez seja melhor você subir e trocar de roupa. Não pode aparecer com as mesmas roupas que estava usando ontem. Concordo debilmente e vou até minha Toca, segurando o sanduíche de bacon. Enquanto subo as escadas, escuto mamãe dizendo alguma coisa a Tony sobre ser tão bom me ver feliz. Feliz no corpo todo — seria uma descrição mais apurada. Em vez de aceitar a oferta de Tony de me dar uma carona no BMW, resolvo ir a pé até a casa de Sarah. Não é muito longe, e, depois do desastre de ontem à noite, estou cansado de ostentar; agora o caso é ser eu mesmo. Tendo dito isso, confesso que obedeci às ordens de minha mãe quanto ao que vestir. No momento, estou usando calça jeans, os tênis novos e uma camisa preta. Tudo foi passado por insistência de
  • 105. mamãe — logo depois de notar meu pijama ensopado no aquecedor. Expliquei que estava ali por causa de um acidente enquanto escovava os dentes e girara demais a torneira, mas não sei se minha mãe, o polígrafo humano, engoliu. Meu Detector de Boçais® está sensível demais; todo mundo que aparece numa esquina ou sai de sua casa ou aparece no horizonte é marcado como uma ameaça em potencial. Mas não há sinal de Humphries. O que de certa forma é mais preocupante que vê-lo, pois dá tempo de sobra para minha imaginação fértil imaginar o que ele poderia estar planejando fazer agora. MI: Não acha que teria chances numa revanche? Não acho. Talvez mamãe conversar com a Srta. Holly o mantenha longe de mim por um tempo, mas não importa o quanto a escola prometa que vai ficar de olho nele, ele vai voltar, simplesmente sei que vai. É O Caminho do Guerreiro. MI: O seu é O Caminho do Meio. Depois de imaginar alguns desdobramentos — todos envolvendo minha prematura morte — decido tentar esquecer o assunto. Tenho outras coisas nas quais pensar; já andei pela Davenport Road muitas vezes, geralmente indo para a casa de Matt. Mas hoje tudo parece diferente. Até o ar parece diferente. MI: ELA mora aqui. Enquanto caminho pela calçada, subitamente me dou conta de que são esses os lugares que ela vê todo dia — os carros estacionados, as fileiras de árvores, as outras casas —, este é o ambiente dela. Deve ter sido assim que Frodo se sentiu ao caminhar por Lothlórien para conhecer Galadriel. Tudo parece mais brilhante e mais significativo; cada folha, cada gato, cada criança ou bicicleta — tudo está de alguma maneira inextrincavelmente ligado a Sarah, e tem algum significado em sua vida, não importa o quão pequeno seja. Absorvo tudo, sentindo as diferenças entre a vida dela e a minha, tentando descobrir mais um pouco sobre ela. E, como Frodo, por mais que esteja ciente da sensação de beleza sobrenatural à minha volta, também me sinto apreensivo por estar indo encontrar minha Rainha, sentindo-me indigno de sua presença. MI: Graças a Deus ela não consegue ler mentes como Galadriel conseguia. O número 78 aparece à minha direita, e demoro um instante para me aproximar, procurando por novas pistas que me revelem mais sobre a garota que, quer ela saiba ou não, roubou meu coração. O número 78 é uma casa de tamanho modesto, com um caminho de cascalho levando até a porta de entrada verde. Algum tipo de trepadeira encheu a parede de tijolos de flores roxas, dando à casa a aparência de um chalé no campo. MI: E roxo foi a cor que escolhi para Nox Noctis. Talvez seja um sinal... Talvez exista algum tipo de ligação entre nós dois. Mais uma vez penso em quando nos encontramos do lado de fora do mercado. Empurro o portão. Um peludo gato preto e branco caminha no jardim em minha direção. Eu me agacho para acariciá-lo, sentindo-o empurrando sua cabeça contra meus
  • 106. dedos. Será que esse gato era de Sarah? Parecia apropriado. MI: Só existe uma maneira de descobrir — prepare-se! Fico em pé, inspiro fundo e ando até a porta da frente. O gato fica passando pelo meio de minhas pernas enquanto ando, o que significa que preciso dar passos largos com as pernas abertas para não tropeçar nele. Mas ele gostou de mim; será que é mais um sinal? MI: Lá vai... Por um segundo, fico parado na frente da porta como um idiota até perceber que a aldrava de ferro bem na minha frente provavelmente não foi colocada ali só por decoração. MI: Segunda tomada. Com o coração na garganta, bato na porta. Só duas vezes. E tentando fazer as batidas soarem as mais casuais possíveis. Um momento se passa e nada acontece. Então, pelo vidro fosco da porta, vejo uma sombra distorcida se movendo e escuto o barulho de pés sobre tábuas corridas. A porta se abre e me revela um vislumbre de meu futuro. Meu pai sempre costumava dizer que sabia que mamãe sempre seria “uma gata” por causa de como a mãe dela, minha avó, envelhecera. Sou confrontado com o que Beggsy descreveria como uma coroa gata. Bruto, eu sei, mas a mãe de Sarah definitivamente se encaixa naquela categoria: os mesmos olhos azuis cristalinos, o mesmo formato de boca e os mesmos cabelos negros. Uma brecha no velho ME permite que um leve rubor suba às minhas faces, e toda a umidade se esvai de minha boca. — Olá. — Ela sorri. — Deve ser Archie. — Sou. Sim. Olá. Sou o Archie. MI: Palavras certas. Ordem errada. Por algum motivo, estendo a mão para um cumprimento, que a mãe de Sarah aceita. Em seguida, ela responde com mais um sorriso de derreter, e reajo com mais um olá. Por medo de ficar empacado numa espécie de repetição vocal, consigo improvisar um “Como vai?” — Muito bem, obrigada. Entre, Archie. Vou pedir para Sarah descer. Entro na casa, e meus sentidos começam a trabalhar a mil, observando fotos nas paredes, a tinta verde sálvia e os vasos de flores do aparador. Percebo mais um detalhe: um cheiro, um cheiro suave, que demoro um instante para identificar em meu banco de dados. MI: Incenso! Incenso. Nunca me senti tão agradecido por um perfume na minha vida. Significava que eu havia acertado em alguma coisa ontem à noite; que chegara um pouco mais perto de entender o que é que fazia Sarah ser Sarah. A mãe de Sarah vai até o começo das escadas acarpetadas e grita o nome da filha. Segue-se um vago ruído de atividade de algum lugar no segundo andar, que a mãe de
  • 107. Sarah finge não notar. — Gostaria de uma xícara de chá ou algo gelado? — pergunta. Meu MI vasculha pelos pouco usados Arquivos de Etiqueta, e escolho a xícara de chá; parece um pouco como ter algo familiar me protegendo. Enquanto se vira para entrar na cozinha, a mãe de Sarah olha intensamente para mim. — Esse machucado está feio — comenta. — Colocou alguma coisa nele? — Ervilhas — confesso, envergonhado. — Isto é, geladas. Congeladas. MI: O nome é Bond. James Bond. — Tentou passar arnica? Meu banco de dados nunca ouviu falar naquilo, então respondo que não. — É uma pomada; muito boa para manchas roxas. E é totalmente natural, sem química. Gostaria de um pouco? MI: Minhanossaoquevouresponder? — Hum... é. OK. Obrigado. A mãe de Sarah me leva até uma cozinha pequena com decoração pitoresca e fala para eu me sentar. Mais uma vez, como um vampiro, sugo o máximo de detalhes que consigo de meu entorno; fotos de Sarah quando mais nova, pequenas miniaturas sobre o peitoril da janela e uma portinha para gatos na porta dos fundos. A mãe de Sarah alcança um armário atrás dela e pega um pequeno tubo de pomada. — Isso não vai doer — promete, espremendo um pouco da pomada em seu dedo. — Vai ajudar o roxo a sumir mais rápido. Ela se inclina e passa o creme gentilmente em meu rosto, em círculos suaves. Meu ME sofre uma falha geral no sistema, e meu MI faz um breve voto de silêncio; tudo o que consigo fazer é olhar em frente, como um androide quebrado. — Olhe para cima. — Ela passa mais creme debaixo de meu olho. — Agora para baixo. — Ela faz movimentos circulares e suaves em minha sobrancelha. MI: Opa. Opa mesmo. Consigo ver dentro do decote largo da mãe de Sarah. MI: Alerta de sutiã! Alerta de sutiã! Rapidamente fecho os olhos. — Desculpe, doeu? — Não, não. Estou bem — consigo mentir, ainda de olhos fechados, tentando forçar a imagem do sutiã da mãe de Sarah para bem longe. — Acho que já estou sentindo o efeito. MI: Bom disfarce. — Mamãe! O que está fazendo? A voz de Sarah me traz de volta à realidade, e, quando abro os olhos, ela está parada na porta da cozinha, usando uma camiseta punk e jeans preto. Tento ignorar o vislumbre de uma alça de sutiã preto em seu ombro esquerdo. Estou cercado por sutiãs. É um desfile de sutiãs. — Só estava cuidando do machucado de Archie — explica a mãe de Sarah. — Está
  • 108. bem feio. — É, bem, tenho certeza que Archie não quer você mexendo nele — responde Sarah, laconicamente. — Não... tudo bem... estou legal — murmuro, como se tivesse acabado de aprender a falar. — Pronto, viu? — A mãe de Sarah sorri, triunfante. — Por que não vão subindo, e eu levo chá em um minuto? Toma com açúcar, Archie? — Dois cubos, obrigado. — Vamos nessa, Archie. Vamos lá para cima. Com um sorriso débil e um agradecimento balbuciado para a mãe de Sarah, começo a subida até o Quarto de Uma Garota. Quando chegamos perto do alto das escadas, meio que me preparo para ver Gandalf pulando para fora do quarto gritando: “Não passará!” Em vez disso, o gato preto e branco aparece do nada e começa a andar pelo meio de minhas pernas de novo. Quase tropeço no último degrau. — Oh, Aslan; deixe-o em paz! — Aslan? — tento abafar uma risadinha. — É, das Crônicas de Nárnia. Era um dos meus filmes favoritos quando era pequena. Com certo horror me dou conta de que ela acaba de citar um dos poucos filmes com espadas e feitiçarias do qual não gosto muito. MI: Pode valer a pena rever... — É. Não era nada mal. Olá, Aslan. — Faço carinho no gato mais uma vez, esperando que aquele gesto seja visto com algum tipo de aprovação. O cheiro de incenso me chama como algum dedo invisível atrás da porta no fim do patamar comprido. Enquanto andamos na direção dela, sou transportado de volta até a loja do Amor Não Correspondido, experimentando aquela sensação estranha de estar em outro mundo. É como se eu estivesse vivenciando as coisas pela primeira vez; tudo parece estranho, não importa o quão normal seja: o tapete claro do patamar parece absorver nossas pegadas, as paredes quase parecem estar nos observando, e as portas fechadas sugerem partes da vida de Sarah que ainda precisarei desvendar. Apenas o odor de incenso é familiar, apesar de não necessariamente reconfortante. — Entre. — Sarah abre a porta e entra no quarto. Faço um último carinho no gato, só para dar sorte, e a sigo. O quarto de Sarah de alguma maneira não é como eu esperava — apesar de não ter certeza do que esperava. As paredes são de um amarelo sol e decoradas com algumas imagens emolduradas. Um cristal em formato de estrela numa corrente, que, presumo, reflita as cores do arco-íris, está pendurado na frente de uma janela antiquada, debaixo da qual fica uma pequena penteadeira e uma cadeira. Sua cama é branca e tem uma deliciosa ausência de bichinhos de pelúcia; a TV e minhas irmãs postiças sempre me fizeram pensar que todas as garotas têm bichinhos de pelúcia em suas camas. Em uma
  • 109. das paredes, fica uma estante bastante alta e cheia de todo tipo de livros: grandes, pequenos, de capa dura, de bolso — é incrível quantos detalhes você consegue absorver quando seu futuro depende daquilo. E ali, na mesinha de cabeceira, está Nox Noctis. Tento não anunciar que notei não fazendo nada. MI: Faça alguma coisa! Diga alguma coisa! — Quarto legal. — Fico parado com as mãos nos bolsos e lentamente me viro, como se estivesse numa galeria de arte. — É. Legal. — Balanço a cabeça positivamente uma ou duas vezes para enfatizar. — É legal. — Ela sorri. — Mas não tanto quanto o seu. Um alerta viaja por meu sistema enquanto meu cérebro tenta desesperadamente entender se há algum significado oculto naquela frase. Ela gosta de meu quarto por causa do tamanho, da decoração, porque é meu, porque gostaria de estar nele? Milhares de possíveis significados aparecem em segundos — seria um elogio só sobre o quarto ou de alguma maneira poderia ser sobre mim também? Felizmente, a mãe de Sarah entra com uma bandeja de chá e biscoitos, caso contrário, acho que sua filha teria conseguido escutar as páginas sendo folheadas em minha cabeça enquanto eu mentalmente vasculhava meu volume do Dicionário das Mulheres. E parece que algumas páginas cruciais estão faltando. — Chá? — pergunta a mãe de Sarah, como se eu pudesse ter mudado de ideia nos minutos que se passaram depois de olhar dentro de seu decote. — Obrigado, seria ótimo. MI: Está falando como um encanador. — Soube que é um pouco artista, Archie. Já viu as pinturas de Sarah? MI: Então... ela falou de você. — Ma-mãe... — A voz de Sarah é o bastante, mas sua linda sobrancelha arqueada faz sua mãe sair do quarto, deixando pedidos de desculpas em seu rastro. — Pinturas? — Ah, só gosto de pintar um pouco no meu tempo livre. São meio bobas, na verdade. — Vamos dar uma olhada. — Falo com aquele tom de voz recatado e ligeiramente provocante que odeio quando as pessoas usam. Sarah indica casualmente as pinturas na parede, mas consigo ver um sorriso tentando se abrir em seu rosto, quase como se ela tivesse gostado de eu demonstrar interesse. Resolvo ir mais fundo. — Esses? Aqui? — É uma pergunta bem tola, mas me ajuda a andar pelo quarto, com a xícara de chá nas mãos, para olhar as pinturas em questão. MI: Ô, diabo! São pinturas de fadas. Mas não aquelas fadas normais de jardim, com saias de bailarina. Essas fadas são sexy. Quando consigo parar de pensar sobre como a maioria delas parece vestir pouca ou nenhuma roupa, percebo que ela usou a tinta com uma facilidade enorme, criando um efeito que sugere que cada fada seja luminosa, na verdade,
  • 110. tão brilhante que sua luz obscurece qualquer parte mais reveladora do corpo. Estão todas em diferentes posições, e cada uma é de uma cor diferente também, mas todas parecem ter a mesma expressão esperta no rosto. É uma galeria de Sininhos eróticas. Enquanto meu ME dá uma palavrinha zangada com meu Departamento Ruborizador, percebo que tenho um ligeiro problema nas mãos. MI: O que eu falo? Mostrar que gostei muito pode sugerir que seja algum tipo de pervertido disfarçado de carneirinho. Se falar pouco, vou parecer arrogante. MI: Diga que são “nebulosas”. — Nunca vi fadas como essas antes! — Acompanho aquela declaração com uma risadinha que poderia ser interpretada tanto como surpresa quanto atrevimento. — Sempre achei as fadas muito femininas nos livros e que seriam um pouco mais sensuais. — Bem... essas são. Estão muito boas. Um pouco boas demais, na verdade. Minhas próprias habilidades com um pincel subitamente parecem meio primárias. — Obrigada. Temendo um silêncio desconfortável, faço um pequeno tour pela estante de livros e vejo que está recheada de cristais de diferentes cores, formatos e tamanhos. Sendo um nerd, tenho vago conhecimento sobre tal assunto e pego um dos que reconheço. — Ametista — anuncio, confiantemente. — Gosto de ametistas. — Interessante você escolher logo essa. — É mesmo? Por quê? — Meu ME é pego de surpresa, e levanto os olhos para ela rápido demais, sentindo como se estivesse sendo examinado por um microscópio. — A ametista é uma pedra de cura. Pode usá-la para ajudá-lo a dormir ou curar dores de cabeça, mas seu maior poder é curar feridas emocionais. — Ah. Entendi. MI: Estamos agora entrando em território desconhecido. Por favor, mantenha a calma. Tomo um gole de chá e, em seguida, sorrio futilmente. — Bem. Gosto de ametistas. MI: Tem um limite de vezes que pode repetir isso antes de começar a parecer um maluco. — Está sofrendo, Archie. — Não, estou bem. Sério. Sua mãe passou pomada. Sarah ri, um som delicado como sinos de prata, que só aumenta minha sensação de desconforto e dúvida. — Não estou falando de seu olho. — Ela sorri. — Estou falando de você. Você está sofrendo por dentro. MI: Hein? — Hein?
  • 111. — Venha se sentar. Mais um problema e mais uma página arrancada do meu Dicionário de Mulheres mental. Será que “Venha se sentar” significava “Venha se sentar ao meu lado” ou “Sinta- se livre para se sentar em qualquer lugar desse quarto, mas não necessariamente ao meu lado”? MI: Mantenha-se na órbita padrão. Escolho a cadeira. — Lembra quando nos encontramos do lado de fora do mercado? Apesar de aquela cena estar marcada em minha memória, finjo mais uma vez estar tentando relembrar. — Sim, Jason Humphries estava aborrecendo você. MI: O que não é mais um problema, madame. — Pude notar que você estava sofrendo naquele momento. Lembra que comentei isso? — É. Mais ou menos. — Eu soube quando toquei sua mão. Senti como se estivesse levando um choque elétrico. Sarah me olha profundamente e, em seguida, aparenta ter tomado uma decisão. — Archie, alguém já leu sua aura? MI: Ocupem seus postos de combate! Estamos sendo atacados!
  • 112. CATORZE Sarah se levanta da cama e fecha as cortinas. MI: Mudar para manual... — Deixe seu chá aí e venha aqui sentar no chão. Eu obedeço, tentando não demonstrar medo. Ouvi dizer que garotas sentem cheiro de medo. — Sabe o que é uma aura, Archie? — Hum... Não é uma luz ou alguma coisa assim que envolve você? Aquela risada envolvente flutua pelo quarto escuro. — Mais ou menos. — Sarah se senta de pernas cruzadas à minha frente, olhando- me fixamente, com olhos que parecem quase translúcidos na penumbra. —Tudo que vive tem uma aura. São campos de energia e podem refletir como está se sentindo. — Então... como estou me sentindo? MI: É bom começar a rezar para que isso não seja verdade... Sarah ri mais uma vez; pareço ser bom em causar essa reação nela. — Não é tão fácil assim! Posso ler a sua? Mamãe me disse que tenho um dom para isso. Ela me ensinou muito. — O que ela é? Uma bruxa ou coisa assim? — Não! É uma psíquica! Vamos lá, vamos fazer ou não? MI: Quem me dera. A expressão sincera no rosto de Sarah e a vontade em sua voz eram impossíveis de resistir. Este é um daqueles momentos “É agora ou nunca”. — É, tá bem. Quer eu acredite nisso ou não, ainda sinto certo entusiasmo, mesclado a uma sensação de horror. E se ela conseguir mesmo ler minha aura? Vai saber o quanto gosto dela. Será que existe uma maneira de esconder? Devo afastar aqueles pensamentos da minha mente ou focar neles, na esperança de que ela receba o recado de uma vez? MI: Iria te livrar de precisar convidá-la para sair. — OK, então. Preciso que você relaxe. Feche os olhos. Obedeço, mas não consigo esconder um sorriso meio envergonhado. — Vamos lá, Archie. Pare de brincar. Apenas relaxe. MI: Onde é que fui me meter... Respiro fundo e tento relaxar. Enquanto meu corpo parece abraçar a oportunidade,
  • 113. sinto minhas cortinas mentais se abrindo por precaução, e todos os meus outros sentidos se aguçam. Sinto o cheiro do sabonete ou xampu que ela usa; praticamente consigo sentir sua presença, e sua voz parece derreter-se em mim. — Inspire, Archie. E expire. Inspire. Expire. Agora, concentre sua mente em seus músculos e tente relaxá-los. Vamos começar com os dedos de seu pé; sinta-os descontraindo e ficando relaxados. Sarah faz um tour pelo meu corpo, de certo modo, orientando-me a me concentrar em cada região e liberar a tensão. Está tudo bem, até ela dizer a palavra “nádegas”. Naquele exato momento, me convenço de que se relaxar aquela região em particular, posso soltar um pum. Para disfarçar o fato de que minhas nádegas estão agora duras como pedra de tanta tensão, expiro alto mais uma vez — para manter o espírito da coisa. Finalmente, é apenas quando chegamos até ombros, pescoço e cabeça que permito que meu traseiro de ferro afunde um pouco mais no tapete. — Muito bem, Archie. Está indo muito bem. Agora quero que você balance lentamente de um lado para o outro. MI: Sabe como está parecendo ridículo, não sabe? Enquanto balanço, escuto Sarah inspirando e expirando profundamente. É incrivelmente sexy, mas o fato de eu estar oscilando como um cachorro sonolento parece anular o elemento erótico em mim. Balanço, e ela respira pelo que parece ser uma eternidade, até finalmente me dizer para abrir os olhos. Quando o faço, dou de cara com ela encarando o espaço em volta de minha cabeça, cheia de preocupação no rosto. Ergo minhas sobrancelhas numa pergunta silenciosa. — Bem — começa ela, parecendo um pouco mais animada —, você está fisicamente muito saudável, apesar da Cava ter diminuído suas habilidades psíquicas. Devia tomar cuidado para não beber muito; está meio desalinhado. Sentindo-me meio desalinhado, concordo. Lentamente. MI: Acho que está levando uma bronca pela briga de ontem. — Mas é evidente que você tem algumas habilidades psíquicas. O contorno amarelo me revelou que é um perfeccionista e muito crítico consigo mesmo. Devia se dar uma folga. Tem muito vermelho, que diz que tem muita força interior e que é bastante passional. MI: Touché! — Tem compaixão e é confiável. Mas vi muito azul-escuro, o que significa que se sente incompreendido. Não se comunica facilmente com o resto do mundo. MI: OK, isso está ficando estranho. — Mas também tem muito preto, Archie. Quase todas as suas cores estão rodeadas por uma... — ela procura a palavra certa — auréola preta. Por um instante, meu ego entrega uma série de medalhas a si mesmo; gostei de meu recém-descoberto status de Anjo Negro. Parece legal. Mas a expressão no rosto de Sarah me diz que aquilo não é bom, então resolvo interromper meu silêncio.
  • 114. — O que isso significa? Sarah olha minha auréola antes de responder. Quando responde, olha fixamente nos meus olhos. — Significa que está sofrendo, Archie. Que desenvolveu um escudo protetor contra o mundo, como uma máscara, ou uma armadura. Significa que não mostra seus sentimentos verdadeiros às pessoas porque não quer mais ser magoado. Mas está pagando um preço psíquico muito alto por esse escudo. Isso está ficando muito íntimo pro meu gosto. Por um lado, estou realmente gostando de estar tão perto de Sarah e de ter algum contato com seu mundo, mas alguma coisa nas palavras dela está despertando outra coisa dentro de mim sobre a qual não gostaria de pensar. MI: Porque ela tem razão. Você está sofrendo. Meu ME começa a se inquietar, e então coço atrás da orelha, apesar de não ter sentido coceira alguma. É como se ela tivesse apertado o botão escrito “Não aperte”. O botão que explode tudo. Posso sentir uma pressão estranha enchendo meu cérebro e meu peito, e meu ME se inquieta ainda mais; encosto o corpo para trás, sentado sobre minhas mãos e respirando com dificuldade. MI: Está perdendo o controle...! Aperto meus dentes e forço mais uma vez o ar para fora de minhas narinas, como uma imitação tosca de um dragão assombrado. — O que foi, Archie? Por que está sofrendo? Olho o chão fixamente, tentando fazer meu ME voltar a funcionar direito, mas não adianta; cerro os punhos sem parar. — É... er... não é nada. — Mas minha voz está pesada de vontade de confessar. A mão de Sarah em meu tornozelo não me ajuda em nada a sair do quase surto. — Está tudo bem, Archie. De verdade. — Sua voz é tão suave que é de partir o coração. — É o seu padrasto? MI: Sequência de autodestruição iniciada: Cinco — Quatro — Três — Dois... Num ato final de traição, meu ME para de funcionar completamente, fazendo-me tremer e começar a chorar. Por instinto, abaixo a cabeça e envolvo minhas pernas com os braços, apoiando a cabeça entre os joelhos, em silêncio, soluços altos escapando entre a respiração já dificultada. E então sai tudo. Conto tudo a ela: sobre Tony, o divórcio, a mudança de cidade de meu pai, o quanto amo minha mãe, como sou nerd, como sou fraco, como não converso de verdade com ninguém, meu MI, a Gárgula, o Sonho; sai tudo numa grande, bagunçada, melequenta e chorosa confusão. E em seguida me calo, exausto, atormentado apenas pela tremedeira e pelos suspiros lacrimosos. Nem percebo os braços de Sarah à minha volta até ter conseguido recuperar um pouco de controle sobre os espasmos em meus pulmões. — Está tudo bem — diz ela, suavemente. — Posso ajudar você.
  • 115. — Pode? — gemo desesperadamente do meio de minhas pernas. — Sim. Mas precisa confiar em mim. Sarah me ajuda a levantar e me indica o banheiro, onde me deixa sozinho para jogar água no rosto. Olho o espelho oval acima da pia branca e reluzente e vejo meus olhos diferentes contornados de vermelho, e um nariz que não pareceria estranho se estivesse na cabeça de certa famosa rena. Não acredito que fiz isso. Chorei como uma criancinha na frente da garota que amo. Qualquer chance que tinha com ela agora evaporou como uma bola de neve no inferno. Mas estou cansado. Cansado demais para me punir por desmoronar como desmoronei. Cansado demais para tentar levantar mais uma vez meus escudos. Cansado demais para tentar religar meu MI na tomada. Sinto-me vazio e exposto, mas cansado demais para me importar. Depois de jogar água no rosto uma última vez, volto ao quarto de Sarah com um meio-sorriso de desculpas no rosto. As cortinas estão abertas, e ela está sentada na beirada da cama, com um sorriso brilhante. — Tudo bem? — Sim — balbucio. — Desculpe-me por tudo isso. — Pare de se desculpar! — Não consigo identificar se ela está com pena ou com raiva. Sinto-me como se estivesse de volta ao primário. — Foi forte por tempo demais, Archie, é hora de parar. — OK. Então... o que fazemos? — Conversamos. De verdade. Como pareço não ter mais nada a dizer, Sarah assume o comando. — Já parou para pensar por que foi atraído por aquela Gárgula em primeiro lugar? — Eu apenas gostei dela — respondo, debilmente. — Assim como gostou da ametista. É um pouco mais profundo que isso, Archie. Quando li sua aura, pude identificar que você tem habilidades psíquicas, mas estas são reprimidas por seu escudo, sua armadura. No entanto, elas ainda estão tentando encontrar uma forma de escapar, de se comunicar com você. Seu sonho é seu subconsciente procurando contato, mas você fica se afastando; você não quer escutar o que ele tem a dizer. — E o que ele quer dizer? — Que você é muito mais poderoso do que pensa. Pode mudar as coisas, Archie, pode fazer sua vida ser do jeito que gostaria que fosse. — Posso? Como? — A Gárgula de seu sonho representa seu subconsciente. É seu Eu Psíquico tentando falar com você. Precisa abraçá-lo. Seu Monólogo Interno é parte de seu escudo; precisa desligá-lo, porque ele é feito de medo e dor. Precisa começar a escutar seu Eu Psíquico. Apesar da neblina que parece ter coberto meus sentidos, isso faz algum sentido. Meu MI sempre foi a voz da dúvida, aquela coisa que me impedia de dar alguns passos
  • 116. necessários. Talvez Sarah esteja certa, talvez exista mais por trás de mim do que deixo transparecer. — O que devo fazer? — Precisa fazer alguns exercícios para ajudá-lo a desenvolver sua consciência psíquica. Passamos a meia hora seguinte olhando alguns livros “alternativos” que Sarah tem na estante. Neste momento, eu obedeceria se ela me mandasse ferver minha própria cabeça. Ela realmente parece me entender e me passa uma série de exercícios que, garante, me ajudarão a abraçar meu Eu Psíquico, alguma coisa a ver com visualizações positivas e conversar comigo mesmo no espelho. Meu MI permanece exilado; confio nela. Não tenho dúvidas. Posso mudar. — Leve este aqui, vai ajudar. — Ela coloca um livro de bolso fino e cheio de orelhas em minhas mãos. — Obrigado. — Sorrio. — Acho que preciso de toda a ajuda possível. — Estou sentado ao lado dela na cama, e entramos num daqueles silêncios em que não sei se devia estar fazendo alguma coisa ou não. Acho que tenho muito a aprender. Talvez seja a hora de uma despedida graciosa; não quero me fazer mais de bobo do que já fiz. — É melhor eu ir nessa — começo, olhando meu relógio. — Tenho umas coisas pra fazer. — É uma justificativa genérica que sugere que não vou ficar só sentado pensando nela e em mais nada pelo resto do dia. — Vou te levar lá embaixo. Enquanto descemos as escadas, verifico meu reflexo em todas as superfícies que o exibam; acho que estou bem. Na verdade, pareço bem melhor que a moça loura que a mãe de Sarah está ajudando a sair da sala do outro lado da cozinha. A julgar por seus olhos inchados e rosto molhado, acho que faz sentido presumir que ela também acaba de ter sua aura lida. O que é que encontrei aqui? Algum tipo de convenção urbana das bruxas? Sarah abre a porta, e saio do santuário de sua casa. — OK... Bem... Obrigado. E desculpe sobre mais cedo... — Pare! — Sarah me dá bronca, antes de se juntar a mim na calçada e fixar os olhos nos meus, com determinação. — Vai ficar tudo bem, Archie. Em seguida, ela me beija na bochecha. Minha cabeça detona com essa alegria pura e transparente como cristal. Sou inundado de energia, de um poder borbulhante e aceso, e tenho vontade de gargalhar bem alto. Em vez disso, me agarro ao que me restou de autocontrole e ando até o portão. — Te vejo segunda — falo, sorrindo, e sigo para casa, sentindo ter 3 metros de altura e ser à prova de balas.
  • 117. EP
  • 118. QUINZE Nem mesmo correr os últimos cinco minutos até minha casa me ajuda a dispersar a sensação de super-homem que invade meu sistema. Mas não quero exibi-la como um troféu; por enquanto este é o meu segredo. Não que isso possa se tornar de grande interesse para o FBI ou coisa parecida. É só que parece que falar sobre o assunto poderia de alguma maneira diminuir aquele sentimento. Um calor bom se aloja no estômago, e quero deixar as coisas assim. Mas também estou determinado a não sofrer mais com as piadas insensíveis de Tony. Ainda posso ouvir meu MI tagarelando ao fundo de minha cabeça, mas eu o estou afastando, ignorando sua ladainha envergonhada. Vou achar uma nova voz e começar a usá-la agora — enquanto a tinta está fresca. Mamãe está na cozinha fazendo uma xícara do previsível. — Chá? — pergunta. — Sim, por favor. Onde está Tony? — Ele deu uma saída. Já volta. Há uma calmaria enquanto mamãe aperta o saquinho de chá contra o interior da caneca, aproveitando o conteúdo ao máximo. Dentro dela, são acrescentados o leite e o açúcar, e, em seguida, sou presenteado com meu chá e um sorriso radiante. — Então. Como foi? MI: Muitas lágrimas e um beijo. A animação de mamãe é quase palpável, e normalmente me sentiria pressionado a responder qualquer coisa na hora. Mas desta vez vou demorar um pouco para pensar no que quero que aconteça. Não preciso contar nada a ninguém; posso fazer com que minha vida seja como sempre quis. — É. Foi legal. É uma garota legal. — Que bom. — O significado naquela única frase revela que ela quer mais detalhes. Ela tenta uma tática diferente. — E aí? Está gostando dela? Permito que se instale o silêncio que normalmente me deixaria tão desconfortável. Em vez de procurar uma resposta que agrade a todos, procuro pela resposta que agrada a mim. — É. Ela é legal. Até mesmo a maneira com que mamãe bebe seu chá está tomada de frustração; ela franze os lábios e aperta os olhos. Mas mantenho minha postura zen. Ela precisa me
  • 119. deixar crescer. — E ela gosta de você? Minha mente relembra em câmera lenta o beijo, e torço meus lábios, como se pensando profundamente. — Veremos. Mamãe finge me olhar feio; não contei tudo a ela — mas não vou me sentir culpado por isso. Pela primeira vez na vida, estou começando a fazer as coisas do meu jeito. — Vou subir — anuncio. — Tenho umas coisas para fazer. A que horas vamos almoçar? — Veremos. — E responde torto, mas nós dois rimos intencionalmente; há um jogo em andamento, e estamos seguindo as regras. — Cinco minutos. MI: E ela acaba de perder. No corredor, esbarro em Tony enquanto ele entra pela porta da frente. — Ahá! — declara, tirando um cigarro da boca. — O andarilho retorna ao lar! Sem MI para xingar por mim, confio em meus instintos. E é uma experiência interessante. — Eu moro aqui, Tony. Caso não tenha percebido. — Minha declaração é perfeita; não é agressiva, só uma contestação clara acerca dos fatos, entregue com um sorriso enigmático. Quase consigo ouvir a certeza de Tony ruir por baixo de sua risadinha nervosa. — É. Bem... Como está Sarah? — Ela está ótima. — Ótimo. Quer chamá-la para jantar uma noite dessas? — Talvez. Veremos. Eu o deixo para trás, envolto em fumaça e claramente confuso, e subo lentamente as escadas até minha Toca. Atirando-me em minha própria cama, tiro o livro de Sarah do bolso. Ele se chama Somos todos nossas almas e traz as imagens de uma pluma e um ovo na capa. MI: Poupe-me! Faço um esforço consciente para ignorar as reclamações cínicas de minha psique subdesenvolvida e folheio as páginas: os capítulos têm títulos como “Permita-se ser você mesmo”, “A ressonância elevada de intenção” e “Acordando para a Graça”. MI: Depende de se vale a pena acordar por essa tal Graça. — Cala a boca! Maravilha. Estou falando sozinho agora. Em voz alta. Obviamente, preciso mais desse livro do que pensava. Mas mamãe tem ideias diferentes, e escuto sua Convocação para Nutrição Corporal. Muito de vez em quando, mamãe resolve ser criativa na cozinha e usa algum livro de receitas esquecido. Hoje é um desses dias. Por mais que a comida seja sempre ótima — e o curry de hoje não é exceção —, significa que Tony e eu somos, então, sujeitados a uma longa descrição de quais ingredientes foram usados e como combinam entre si.
  • 120. Tudo temperado pela intermitente pergunta: “Então, o que acha?” A essa altura, nós dois sabemos que um simples “é, está ótimo” não é suficiente e precisamos demonstrar nossa aprovação de um modo mais elaborado. Mas hoje isso me serve bem; não preciso interagir com Tony nem discutir o que está acontecendo no Mundo de Archie®. Entre garfadas, ofereço minhas teorias sobre o sabor das ervas finas, faço vários “hummmm” e, em seguida, me levanto da mesa para dar continuidade à minha jornada espiritual. Volto ao livro e viro as páginas rapidamente, até ver o título “Sonhos e seus significados”. Há uma lista de assuntos em ordem alfabética, e na letra “G” encontro a palavra “Gárgula”. Uma leitura rápida revela que, aparentemente, estou sofrendo de “medos escondidos e embaraçosos sobre segredos que você nunca compartilhou com ninguém”. A página 33 no catálogo da Next vem à minha mente. Passando os olhos pela lista de sonhos, a palavra “Barba” chama minha atenção. Parece que sonhar que sua barba está crescendo significa “consciência espiritual crescente”. Tomado por uma onda súbita de inspiração — ou talvez por uma mensagem do que Sarah chama de meu Eu Psíquico —, corro até o espelho do banheiro: no meu queixo estão três pelos ralos enquanto acima de minha boca exibe-se uma coisa que poderia ser confundida com uma sombra. E se eu deixar a barba crescer? MI: Por favor, permaneçam todos sentados. Não entrem em pânico. Vamos esclarecer tudo assim que soubermos o que está acontecendo. Meu MI está tentando ganhar território, mas já estou identificando um padrão; ele dispara em momentos de dúvida e incerteza, se alimentando de minha insegurança como um vampiro. — Cale a BOCA! Usando meu photoshop mental, substituo meus tufos adolescentes por uma barba espessa e loura — provavelmente um pouco desgrenhada para valorizar meu charme libertino. Vai me fazer parecer mais velho. Vai me fazer parecer mais diabólico, me dar um certo ar de perigo. Vou parecer mais inteligente. MI: Vai parecer um gnomo saindo da bunda de um urso. E vai me tornar mais atraente para Sarah. Se ela gosta de toda essa história espiritual, então o que melhor poderia revelar que acreditei no assunto do que uma lustrosa mobília facial? Um toque de guerreiro, um toque de mago e um ótimo exemplo de meu desenvolvimento espiritual. Se vou deixar crescer algum tipo de pelo facial apropriadamente, vou precisar me barbear. MI: Vai precisar é de um psiquiatra. Mas não tenho lâminas nem dinheiro para ir mais fundo na minha busca espiritual. Desço as escadas o mais casualmente possível. Entro na cozinha, meu Detector de Imbecis® a toda, vasculhando o espaço em busca de qualquer indicação de atividade Imbecil. Na há sinais de vida, Tony não está nem apagado em seu escritório nem desapareceu dentro do seu lugar favorito no mundo: o
  • 121. banheiro. A quantidade de horas que aquele homem consegue passar lá dentro é inacreditável. Sem perigo de meus planos serem aniquilados por sua capacidade nata de criar alarde, mascaro minhas intenções com um ar de inocência e apareço atrás de mamãe, dando um abraço nela. — Oh, olá, querido! Para que fez isso? MI: E começa a dança. — Nada. Só queria te dar um abraço. A que horas vai servir o chá hoje? — É uma tentativa tosca de disfarçar, mas é tudo que consigo pensar na hora. — Não tão cedo. — Ela inclina ligeiramente a cabeça; me conhece bem demais. — Por quê? — Só queria saber. Dá tempo de eu correr até as lojinhas? — Acho que sim. — Mais uma vez sua sonda acende. — Do que está precisando? A essa altura eu poderia mentir e inventar alguma coisa sobre canetas ou material relacionado à escola, mas ela perceberia; mamãe sabe que a única loja pela qual me interesso é o Casebre. Uma opção melhor seria arriscar dizer a verdade e esperar que ela não saiba muito sobre os efeitos da testosterona sobre pelos faciais masculinos. — Meu rosto está coçando. — Provo o fato a ela coçando meu queixo e meu pescoço. — Começou há alguns dias. Acho que preciso me barbear. Quase consigo enxergar o cérebro de minha mãe comparando essa informação a tudo que ela sabe sobre jovens rapazes. Ela me olha fixamente, tentando detectar alguma mentira, mas claramente ficou confusa pelos sintomas que relatei. — Vamos dar uma olhada. — Meu pescoço e meu queixo passam pelo tipo de exame intensivo que apenas uma mãe saberia dar. — Bem... Está mesmo um pouco vermelho... MI: Ela está balançando! — Hummm... MI: ...Balançando... — Pode ter razão. Precisa de algum dinheiro? MI: E ela caiu! Bingo! — Obrigado, mãe. — Coço mais uma vez o queixo, só por precaução. — Quanto custam lâminas de barbear? — Leve dez. Vai precisar de espuma também. Como ela sabia disso? A questão é mais a seguinte: por que eu não sabia disso? Vergonhosamente, pego o dinheiro de sua bolsa e corro até a loja, o vento soprando por meus bigodes infantis pela última vez. Depois de correr impulsionado pelo amor, lá estou eu olhando de queixo caído as fileiras de produtos de higiene masculina. Nunca imaginara que comprar giletes poderia ser tão difícil. Como é que vou saber se quero descartáveis, com três lâminas, quatro, lâminas com aloe vera, de cabeça giratória ou fixa? E tem também as espumas: hidratante, protetora, redutora de irritações; eu só quero raspar minha penugem para dar lugar a alguma coisa mais masculina! No fim, escolho a espuma que tem o logotipo
  • 122. mais legal e a lâmina com mais partes afiadas. MI: O que poderia dar errado? Dez minutos depois, estou de volta ao espelho do banheiro me sentindo meio nervoso; percebi que não faço a mínima ideia do que fazer. Tirar a gilete da embalagem já foi difícil — acho que podia chamar papai e pedir alguns conselhos de hombre para hombre, mas simplesmente não estou pronto para falar com ele agora. Meus pelos do queixo riem de mim do espelho, me desafiando a cortá-los. Queria que houvesse alguém com quem eu pudesse falar. Com uma batida preocupada na porta, minha mãe aparece com um timing de gênio. — Como está se saindo? — Não estou, no momento. Eu não... sei... — Espere aí, vou chamar Tony. O “NÃO” nem alcança o fundo de minha garganta, e mamãe já berrou o nome dele do alto das escadas. Há um momento de silêncio, seguido pela descarga abafada do banheiro do primeiro andar, e Tony sobe pesadamente as escadas, aparecendo na porta. — O que foi? — Pode dar uma ajudinha a Archie? — Mamãe pode ter achado que não percebi a cotoveladinha que ela dá nas costelas dele, mas notei. — O quê? Ah, sim... sim... certo... OK. Quando Tony entra corajosamente, mamãe diplomaticamente sai; ela acabou de aproveitar a oportunidade para “criarmos laços”, e, considerando a tensão no ar, é uma pela qual nem eu nem Tony estamos agradecidos. Na ausência de qualquer tipo de iluminação espiritual, meu ME assume o comando e escancara uma ligeira impressão de sorriso no meu rosto. Meu MI alegremente comenta do banco de trás. MI: Imbecil. E Tony faz jus às minhas expectativas. — Uhu! Fazendo a barba, hein? O Grande Dia! Certo, vamos nessa! — Obrigado. Ele começa então uma história sobre como a gilete vai ser minha melhor amiga, desde que eu a trate com respeito. Como uma mulher, aparentemente. Uma bela mulher. Como minha mãe. Fico abismado por meus dentes não quebrarem, tamanha é a pressão com que os estou apertando. Finalmente, chegamos ao momento em que parece que vamos realmente fazer alguma coisa. — OK, vai precisar encher a bacia com água quente... Eu obedeço e, então, sou submetido a mais um monólogo tirado da Wikipédia sobre abrir meus poros e deixar o óleo sair. Depois de ser instruído a jogar um pouco
  • 123. de água no rosto, é hora de colocar a espuma nas palmas das mãos e aplicá-la no rosto. Pareço o Papai Noel. De olho roxo. A reação de Tony é cair na gargalhada várias vezes, culminando com um acesso de tosse forte e demorado. Apesar dos protestos de seus pulmões, Tony continua a rir até ficar com lágrimas nos olhos e precisar se apoiar na pia para se equilibrar. Tudo o que posso fazer é olhar meu reflexo de volta no espelho, o que parece fazê-lo rir ainda mais. — Desculpe, Arch — ofega ele, batendo com uma das mãos no meu ombro —, mas acho que você passou um pouco de espuma demais. — Mais risadas. MI: Imbecil. Depois que ele se acalma, chegamos à lâmina. Movimentos de cima para baixo, e não tenha medo de aplicar um pouco de pressão na pele. Com mais do que apenas apreensão, encosto a gilete no meu rosto. Ela praticamente desaparece junto com a maior parte da minha mão, em meio à grossa camada de espuma que esconde metade da minha cabeça. Em cinco minutos, parece que meu rosto teve um terrível acidente com um rocambole de creme com frutas vermelhas; sou uma massa de sangue e espuma. Nem preciso dizer que Tony está rindo o mais histericamente que um homem com sua limitada capacidade pulmonar conseguiria. Mamãe, que obviamente estava sondando do lado de fora do banheiro, entra. — Oh, Tony! — Ela briga. — Saia! Ande! Vá colocar a chaleira para ferver! — Quando ele sai, rindo em silêncio, coloco uma toalha no rosto, mas os cortes em minha pele não param de sangrar. O que vou fazer? Sarah nunca mais vai querer olhar para mim! MI: Conheçam meu namorado: Freddy Krueger... — Cala a BOCA! — O quê? — Mamãe parece assustada de repente. — Desculpa, não era com você. — Certo... Vamos dar uma olhada nesses cortes. Descobrimos que eram apenas quatro ou cinco, mas eles escorriam como rios. Mamãe pega o rolo de papel higiênico e começa a rasgá-lo como um hamster enlouquecido, molhando um pedacinho e colando-o em cima de um corte. Em segundos estou coberto de pedaços de papel higiênico manchados de sangue. — Deixe que sequem antes de tirar. Vou fazer uma xícara de chá para você. — Obrigado, mãe. MI: Você é praticamente um anúncio sobre os perigos das lâminas de barbear. “Olá! Meu nome é Archie! Quando estou tentando impressionar uma garota, tento lacerar meu rosto com giletes feitas de arame farpado!” Finalmente sozinho, inspeciono o estrago no espelho. Meu estado de euforia enfim é derrubado. Cansado demais para fazer qualquer outra coisa, volto para minha Toca e me atiro na cama, só para bater com a cabeça em alguma coisa. É o livro de Sarah. Podia ser apenas coincidência, mas ele estava aberto num capítulo chamado “Como silenciar seu crítico interno”.
  • 124. Hora de começar a ler... Esse livro é estranho. Parece que foi escrito por alguém com sotaque americano carregado. Meu MI está gritando zombarias das arquibancadas, mas preciso me concentrar. De acordo com o autor, meu MI se “metamorfoseou de protetor em destruidor, levando-me à autopunição”. A não ser o conselho de que preciso muito amar a mim mesmo (ele evidentemente desconhece os hábitos noturnos dos adolescentes do século XXI), o Dr. E. P. Hughes me revela “dez maneiras de dizer ao universo que você é digno de amor e resultados positivos”, no capítulo chamado “Atraindo abundância”. MI: Está mais para “Atraindo uma surra”... Meu MI é a “manifestação de todas as minhas dúvidas e medos”. Lendo nas entrelinhas, Dr. Hughes está me dizendo que o motivo pelo qual sou nerd é porque tenho medo demais para não ser um. Meio que faz sentido. Eu continuo. Ainda não sei o que são “Afirmações” nem como “Tornar minha mente mais bela”, e acho que vou “Aprender o autoperdão” em outro dia; mas o quinto passo chama minha atenção. “Falando de volta: quando seu crítico interior permanece incontestado, você não tem alternativa senão escutar. Foque em desenvolver a voz do seu Verdadeiro Eu, do seu Eu Psíquico. Essa é a voz de seu potencial inexplorado e só está sendo isolada do Universo pelo seu próprio medo de o quão poderoso você pode ser”. Caramba. Deve ter sido assim que Luke Skywalker se sentiu quando descobriu que podia ser um Jedi. Eu poderia ser um Jedi, preciso parar de ter medo disso. Uma imagem minha ficando de cabeça para baixo, levitando rochas com o poder de minha mente espiritualmente alinhada está quase ao meu alcance. MI: Você é um nerd. E isso não se trata de iluminação espiritual. Trata-se de Sarah. Lembra-se dela? A garota que te beijou... Certo. Já sofri o bastante. É hora de assumir o comando. Seguindo as instruções do livro, me sento no chão, tento esvaziar a mente e alcançar meu Eu Psíquico. Visualizo-me como um místico barbudo, espalhando sabedoria e mantendo Jason Humphries suspenso no ar com minhas habilidades telepáticas. Talvez até mesmo fazendo aquela coisa de enforcar como Darth Vader. MI: A força é forte neste aqui... Concentro-me mais, imaginando o efeito que minha impressionante transformação terá naqueles ao meu redor: Tony se encolhe diante de meu imenso intelecto, papai chora em cima da sua canja d galinha em York, se arrependendo de sua decisão, e Sarah fica me observando, impressionada. Sou o olho do furacão, e ela anda até mim, indefesa diante de minha presença. Ela segura minha mão lentamente e diz... — Como está seu rosto, querido? Está bem? Abro um de meus olhos ao ouvir a voz de mamãe e a vejo enfiar a cabeça no quarto. — Estou bem. Só estou... pensando. — OK. O chá estará pronto em um minuto. Maldição! É difícil alcançar realização espiritual às vezes. Assim que ela sai, volto às
  • 125. minhas visualizações e tento me concentrar em encontrar a voz que representa o colosso psíquico que andei escondendo. Em vez disso, tudo que encontro são as vozes de minhas dúvidas, meus medos e minhas inseguranças em geral. É meio como tentar jogar fora algo que nos reconforta. MI: Ainda estou aqui, nerdzinho. Concentre-se. Esqueça a negatividade. MI: Continuo! *Assovia uma melodia qualquer* Concentre-se! Foque em tudo que é positivo em você! MI: Somos apenas um, Archie. Pare de tentar ser uma coisa que você não é. E então acontece. Escuto a voz que estava escondida no fundo de meu cérebro a vida toda. É a voz da autoconfiança e da razão livre de dúvidas. Tudo que precisei fazer foi deixá-la vir, em vez de escondê-la atrás de um monte de medo e inseguranças. A tagarelice alegre de meu MI subitamente é interrompida por uma voz autoritária e assertiva. Com direito a sotaque americano. EP: Silêncio! Você é a voz da dúvida e do medo! Vá embora! MI: O quê? Quem disse isso? EP: Sou a verdadeira voz de Archie, a voz do que ele pode realmente ser: poderoso, valioso e capaz de atrair abundância! MI: OK, OK, Obi-wan... que seja. Estou tão acostumado a falar comigo mesmo nessa voz, que é difícil abandoná-la. O Dr. Hughes tem razão: tenho medo de meu potencial. Vivi durante anos numa dieta de autocrítica. Hora de mudar as calorias psíquicas. Respiro fundo e me forço a banir a voz da autodúvida e dar à voz do valor próprio algum espaço para respirar. EP: Não é bem-vinda aqui! MI: E o que vai fazer a respeito? Meditar até me matar? EP: Sua zombaria trai seu medo! E será sua ruína! MI: Você e mais qual exército? EP: Não preciso de um exército! Posso acessar o Poder do... DO UNIVERSO! E então é como se meu EP se inflasse dentro de minha cabeça, ocupando cada canto e dispersando as sombras de insegurança, enchendo-as da luz forte, quase incandescente, da certeza absoluta. É incrível o que uma boa conversa consigo mesmo é capaz de fazer. MI: Eu voltareeeei! E com isso meu MI some. Realmente sinto-me diferente; finalmente, acredito em mim mesmo. Sinto-me pronto, preparado para dar os passos afirmativos que vão me levar para os braços de Sarah. Quase consigo sentir o fantasma de seus lábios nos meus... EP: Pare! Não há espaço para tanta luxúria no caminho para a iluminação espiritual! Deste momento em diante, Archie, vai aprender a enxergar o mundo com outros olhos! Está trocando sua velha pele psíquica! E pedaços de papel higiênico. Um pedaço cai na hora em que mamãe me chama para o chá. Com uma rápida parada no banheiro, tiro o restante de todo o meu rosto.
  • 126. Pareço uma pizza, com uma grande azeitona preta em cima. Ótimo. O hábito me arrasta da mesa até minha escrivaninha. Fico sentado um tempo ali, apenas olhando as tintas e pincéis, ciente de um ligeiro peso nos meus olhos. É preciso algum esforço para escolher uma peça para pintar, até eu finalmente me decidir por um que tenho guardado para um dia qualquer. Esse ogro ia ser uma festa; é maior que os outros, com mais espaço para detalhes e adornos. Eu o seguro e examino como um todo, tentando absorver todas as suas características e procurando lugares onde eu possa exibir sérias habilidades de pintura. Em seguida, o coloco de volta na mesa. Não consigo entender, mas o entusiasmo acabou. A mágica acabou. O que há de errado comigo? EP: Está vendo essas miniaturas como elas realmente são: totens físicos de seu medo de viver de verdade. Será que era verdade? Ao me trancar sozinho num quarto para pintar homenzinhos de metal com tinta, estive apenas evitando a vida? E eu achando que era arte. EP: A arte é encontrada no coração. Me recosto na cadeira e largo as ferramentas. Um longo espaço de tempo se passa enquanto apenas encaro minha escrivaninha, sem nem mesmo um pensamento para me fazer companhia. O barulho do carro de Tony descendo a rua me traz de volta ao presente. Preciso fazer alguma coisa! EP: Precisa continuar seus estudos. O livro está me esperando em cima da cama, e leio a lista de coisas que posso fazer para libertar meu potencial. Talvez esteja me precipitando um pouco, mas o Nono passo parece algo que eu possa fazer sem muito trabalho: “Projete sua energia positiva por meio das roupas que usa”. Até agora, tudo bem; o Dr. Hughes me dá uma descrição dos efeitos que diferentes cores de roupas podem ter “no usuário e naqueles à sua volta”. Inconscientemente, passo as pontas de meus dedos em cima dos inchaços e machucados que se formaram em meu rosto desde minha experiência quase mortal nas mãos de uma gilete. Pode ser apenas uma “irritação” para Tony, mas esse nível de deformação poderia realmente estragar minhas chances com Sarah. Talvez mudar a maneira como me visto seja distração suficiente para ela não notar. E talvez seja uma forma melhor de comunicar meus avanços no plano espiritual. Vermelho poderia ser uma boa: é a “cor da energia, e pessoas rodeadas de vermelho frequentemente sentem seus corações batendo um pouco mais rápido e sentem que têm menos fôlego”. Por mais que a ideia de induzir um ataque cardíaco provocado por
  • 127. desejo em Sarah seja atraente, de repente me dou conta de que estarei na mira de Jason Humphries durante o futuro próximo. E todos sabem sobre touros e bandeiras vermelhas. Talvez não. Segundo Dr. Hughes, o verde é “associado à masculinidade e riqueza” e também é um “poderoso ímã de boa sorte”. Começo a tentar lembrar o que tenho na cor verde dentro do armário quando meu olhar pousa no parágrafo final e na cor que vai me ajudar a resolver meus problemas de uma vez. Acredite se quiser — e na minha situação atual sou capaz de acreditar em qualquer coisa —, “geralmente os criminosos mais perigosos são mantidos em celas cor-de-rosa considerando que estudos já provaram que essa cor acalma agressividade e tira energia”. Além disso, é a “cor do amor verdadeiro”. De onde estou olhando, também é a cor de dois coelhos com uma cajadada só. Uma rápida inspeção em meu armário confirma a terrível conclusão que invade minha mente: não tenho uma única roupa cor-de-rosa. Hora de consultar o Oráculo, caso ela saiba de alguma coisa que não sei. — Manhê! — Sim? — Eu tenho alguma roupa cor-de-rosa? — Não podem esperar que eu saiba de tudo sobre minha vida. Sua cabeça aparece na subida das escadas. — O quê? — Roupa cor-de-rosa; eu tenho alguma? OK, em se tratando de perguntas, aquela não era uma que alguém esperaria ouvir vinda da boca de seu filho adolescente. Também não é uma pergunta que eu esperaria ouvir saindo de minha boca. Estou correndo diversos riscos aqui, tais como a) não funcionar, b) Jason Humphries me matar assim que me ver e c) que minha já frágil posição social na escola degringole em puro ridículo. EP: Confie em si mesmo! Não se preocupe com o que os outros vão pensar! É seu o Caminho para a Iluminação! — Como o quê? — Percebo mais que uma pontada de preocupação em sua voz. — Como roupas! — Me pergunto se ficar irritado com sua mãe atrapalha o desenvolvimento espiritual de alguém, mas me irrita mais ainda ter que fazer aquela pergunta idiota de novo. — Acho que não. Por quê? Boa pergunta. Poderia optar pelo “Oh, Deus!” de sempre e bater a porta, mas estou precisando seriamente de um pouco de cor-de-rosa na minha vida. — É uma coisa da escola para segunda-feira: usar alguma coisa cor-de-rosa para caridade. — Ah. — Mais engrenagens se movimentando. — Qual caridade? Minha mãe teria sido um achado para a Inquisição Espanhola. São apenas detalhes, mas a única caridade na qual consigo pensar que tenha alguma coisa a ver com cor-de-rosa seja o do câncer de mama, e pensar em dizer a palavra
  • 128. “mama” a minha mãe faz meu ME disparar, mandando um calor para meu rosto que seria capaz de manter uma casa alimentada por energia solar funcionando durante um ano. Eu xingo e bufo antes de responder: — E interessa? Tem alguma coisa cor-de-rosa que eu possa usar ou não? — Não acho mais que esteja soando como uma pessoa sã a essa altura. Com um sombrio “Espere aí”, ela sobe as escadas e corre até seu quarto. Deus me ajude se ela aparecer com uma camisola. — Isso é tudo que você tem. — O que é isso? — É de seu enxoval de bebê. Sua tia-avó Bertha tinha certeza de que você seria menina. Em uma de minhas mãos está um lenço de bolso cor-de-rosa. Com direito a bordas de renda. — Um lenço? — Uma camisa decente obviamente não está no cardápio. — Bem, se tivesse me avisado um pouco antes... — Posso sentir ela se preparando para bufar, então a abraço e digo que está ótimo. De volta em minha Toca, examino minha herança afeminada. Um maldito lenço cor- de-rosa. Quinze minutos mais tarde, descobri que posso dobrá-lo vezes suficientes para esconder os babados e usá-lo enfiado no bolso de minha camisa. Pareço um garçom. Com cortes e um olho roxo. EP: Sua vaidade é um sinal de cegueira espiritual. Deve olhar além de seu eu físico e enxergar o que existe dentro de você. O que existe dentro de mim agora é uma pessoa muito cansada. Mas se quero ganhar o coração de Sarah, precisarei resgatar toda a energia psíquica que o Dr. Hughes afirma estar à minha disposição. E provavelmente ir dormir cedo. Passo o domingo inteiro esperando o telefone tocar. EP: Para aprender a ter paciência, precisa primeiro ser paciente! Ele não toca.
  • 129. DEZESSEIS A segunda-feira começa com um pequeno objeto atingindo minha testa e o cheiro extremamente familiar de fumaça de cigarro. — Ei, Arch! Está vivo aí dentro? Tony está parado na entrada do quarto, tragando seu disparador de coração de toda manhã. Ele aponta uma caixinha que rolou de cima da minha testa até o travesseiro. — O que acha disso? Com o mesmo entusiasmo de um urso sedado, abro a caixinha e vejo o que poderia ser descrito como um anel de brilhante muito espalhafatoso. Meu cérebro não consegue realmente processar essa informação; será que esqueci o aniversário da mamãe ou algo parecido? Não é Dia dos Namorados; qual seria a ocasião? —Vou pedir sua mãe em casamento. Sou então submetido a uma rápida cena em minha cabeça, que mostra mamãe em um vestido de noiva como o de Cinderela, meu pai invadindo a cerimônia e gritando “Nãaaaao!” enquanto corre até o altar, e eu tendo que chamar Tony de “Papai”. No meio disso tudo, consigo simplesmente grasnar um “Er... OK” quando um pensamento final e apocalíptico detona dentro de minha mente: e se eles tiverem filhos? E se tiverem filhos? O que isso me tornaria? Onde eu me encaixo? Que família seria a minha? — Então, o que achou? — Tony está apontando para a caixa de novo. EP: Leia os sinais. Use seus poderes de percepção psíquica. Os únicos sinais imediatos são de meu mundo começando a desmoronar ao meu redor, mas tento mais um pouco. Olhando Tony com meu EP me persuadindo nos bastidores, posso ver que ele está nervoso — fica apoiando o peso do corpo de um pé para o outro e está tragando seu cigarro com um pouco mais de ferocidade que a habitual. E então me dou conta: de seu jeito estranho, ele está querendo minha permissão para pedir mamãe em casamento. Se a ideia não fosse igual a olhar numa bola de cristal e assistir a si mesmo sendo devorado por lobos famintos, aquilo poderia até ser bastante emocionante. EP: Ele tem sua própria jornada a trilhar. Mostre-lhe o caminho. — Boa sorte — consigo dizer, e jogo a caixa de volta na sua direção. — Quando vai pedir? Tony obviamente relaxa e, agora que a permissão foi dada, assume o comando.
  • 130. — Achei que esperaria até você ter ido para a escola. Surpreendê-la e coisa assim. Entendo a indireta. — Já vou sair. — Legal. — Ele desaparece numa nuvem de fumaça. Queria que meus pensamentos fizessem a mesma coisa. Quando mamãe colocar aquele anel no dedo, não vou pertencer a lugar algum. Pelo menos o espelho está exibindo algum sinal de compaixão: minhas lacerações se acalmaram e quase não se percebem, apesar de não haver nenhum sinal de barba no horizonte. Coloco meu uniforme, enfiando o lenço cor-de-rosa no bolso da camisa, e devoro uma tigela de cereal antes de dar o fora. A caminhada até a escola me dá bastante tempo para pensar. Infelizmente, tudo que vem à minha mente é como Jason Humphries vai me matar. Subitamente, meu lenço parece menos um talismã protetor e mais um convite escrito à mão para que ele me espanque até a morte. Tudo o que posso fazer é tentar manter a discrição. Não é muito fácil quando se está usando um Sinalizador de Saco de Pancadas® no bolso da camisa. Tiro o livro de Sarah da minha mochila e me pergunto se o Dr. Hughes teria alguma dica para distúrbios de tamanha magnitude na Força. O que mais se aproxima é seu conselho sobre “Como evitar energias negativas”. Lendo nas entrelinhas, crítica, pessimismo e provocações são como um “veneno que pode permear e prejudicar seu ego”. Tudo o que preciso fazer é distinguir quem na minha vida gera essas energias negativas e eliminar tais pessoas. E preciso “entrar na órbita psíquica daqueles que geram energias positivas”. Parece simples. Eliminar Tony de minha vida vai ser difícil, especialmente considerando que está se candidatando a ser meu Padrasto oficial a qualquer momento. E, para ser sincero, ele não me critica — é apenas um Imbecil. — Cara! Como está seu olho? Por que esse lenço cor-de-rosa? Está querendo levar uma surra? Beggsy chega. EP: E com ele, o fedor acre da crítica. — Haha, você é um cara engraçado. Isso se chama moda. — Cara! — Significa *Não aprova*. À distância ele vê Ravi e Matt. Preparo-me para o massacre. — Caras! Olhem só isso! Archie se tornou um ícone de estilo! — É, ouvi dizer que olhos roxos vão se tornar um sucesso esse ano. Qualquer pessoa que seja alguém na vida vai querer ter um! — Como sempre, Ravi nem notou o mais óbvio. EP: Mas não perdeu a oportunidade de provocar... E Matt completa a profana trindade: — Pelo menos vai ser útil para secar o sangue quando Humphries puser as mãos em você. EP: O veneno patético do pessimismo.
  • 131. — Minha nossa, caras! É só um lenço, pelo amor de Deus! — E com isso, saio andando na frente deles, me perdendo em meio à crescente multidão de adolescentes se aproximando dos portões da escola. Fico com uma sensação de ter descarregado demais nos meus amigos, não por causa do lenço, mas por causa de tudo mais que está dando errado em minha vida. Talvez devesse parar e me desculpar. EP: Essas são palavras de alguém cujo ego foi enfraquecido por energia negativa. Fique forte e seja verdadeiro. Evite-os. Até mesmo o mais duro conselho parece certeiro num sotaque americano; talvez o EP tenha razão. Tudo que fazemos é zombar uns dos outros, e não preciso disso em minha vida no momento. Mas não consigo me livrar da sensação de estar numa loja de enxadas, procurando por uma pá maior. — Ei, Archie! Uma energia positiva quase me derruba através da cintilante forma física de Sarah. Subitamente, meus amigos negativos são pouco mais que uma distante lembrança. — Ei, você! — Puxa, eu quase pareço ser descolado! — Lenço legal. Vai a algum lugar especial? Meu coração dá um pulo — o Dr. Hughes tinha razão! Acho que nunca me senti tão bem a respeito de mais nada em toda minha vida. Meu lenço é legal — é a porcaria de lenço mais legal que já tive. Deus abençoe minha tia-avó Bertha! E Deus abençoe a pessoa que inventou lenços de bolso! Especialmente os cor-de-rosa. — Ah, sabe como é — respondo distraidamente —, acho que vou almoçar num lugar novo aí, ouvi dizer que a comida é muito boa. Minha recompensa vem na forma de uma bela gargalhada e um apertãozinho no braço; é como ser tocado por um anjo. — Lá está Caitlyn, preciso ir. Te vejo mais tarde? Talvez na hora do almoço? — Vou reservar a melhor mesa da casa. O chef é meu amigo. — Acho que estou começando a sentir minha barba crescendo. Mais risadas e mais um apertão, e ela então corre para encontrar sua amiga. Não tem como minha vida ficar melhor. A verdade daquele pensamento é reforçada por alguma coisa como um aríete batendo em minhas costas. Engulo a réplica que está prestes a sair de meus lábios quando viro e me deparo com a cara endurecida e sombria de Jason Humphries, com direito às Feridas de Batalha. Acho que mamãe já deve ter ligado para a Srta. Holly hoje de manhã para denunciá-lo; parece estar mais furioso que nunca. Mas devido à presença do ocasional professor perambulando, tudo que ele pode fazer nesse momento é passar um dos dedos de um lado a outro de seu pescoço musculoso e me olhar sinistramente. Talvez cor-de-rosa não seja exatamente sua cor.
  • 132. O aprendizado sai pela janela pelo restante da manhã. Até mesmo me deleitar na glória sussurrada de ter tido uma briga com Jason Humphries sai pela janela; os tapinhas nas costas, polegares para cima e elogios furtivos que recebo são obscurecidos por desesperadas espiadas nas palavras de sabedoria do Dr. Hughes. Mais especificamente, estou tentando descobrir quais métodos o Dr. Hughes acha mais eficientes para se lidar com um Boçal grande demais, que sem dúvida quer me fazer de saco de pancadas. O mais perto que ele chega disso é em lidar com “energia negativa direcionada para você”. Que eu saiba, um soco no rosto é bem negativo e exige algum tipo de energia para ser executado, então pode ser um bom começo. Infelizmente, é aqui que as primeiras sombras de dúvida começam a aparecer. Até agora, o Dr. Hughes acertou quase tudo: consegui silenciar meu crítico interior, desenvolvi uma atitude mais positiva e seduzi Sarah até minha órbita psíquica com os poderes de meu lencinho cor-de-rosa. Mas acho que “negar essas forças negativas” não irá impedir o punho de Humphries de acertar meu nariz. O conselho do Dr. Hughes é imaginar a energia negativa jorrando de mim como um jato d’água. O único jato d’água que consigo imaginar saindo de mim nessa situação toda é o que provavelmente será expelido por minha traiçoeira bexiga se Humphries chegar perto de mim outra vez. EP: Pergunte ao Universo e o Universo responderá. Em vez de perguntar, ofereço uma rápida prece. O sinal do almoço me faz sair apressado pelos corredores, tentando ser o mais invisível possível. O que não parece ser tão fácil quando se está usando um lenço cor-de- rosa. Quem teria imaginado que um item tão inócuo poderia causar tamanha sensação? Em um minuto, sou um herói do povo, em seguida, minha sexualidade parece estar sendo questionada, e a quantidade de gente que me chama de ridículo deve bater algum tipo de novo recorde mundial. A fama pode ser algo tão instável. EP: Ouse ser diferente! Felizmente, Jason Humphries está ausente das hordas escravizadas que fofocam, gracejam e se arrastam até a cantina. Quando acho que poderia respirar aliviado, Ravi dobra uma esquina, e literalmente damos um encontrão um no outro. — Ei, Archie... Você está bem? — Claro, estou legal. — Quase consigo sentir suas sondas psíquicas me estudando, mas não vou revelar nada. — Parecia estar bem irritado hoje de manhã. Você sabe, com a história do lencinho. EP: Deixe-o perceber que você não será um receptor de sua energia negativa! — Só estou cansado de aguentar tanta besteira, Ravi. Não preciso disso em minha vida. — Ah. OK. Vou esperar o pessoal aqui. — Tem um tom de pergunta em sua declaração: ele quer saber se vou esperar com ele. Um dia eu teria sido atraído por seu campo gravitacional, mas meus recém-instalados propulsores psíquicos me dão todo o poder de que preciso para me libertar; preciso estar perto de energias positivas. Preciso
  • 133. estar perto de Sarah. — Eu não vou. Até mais. — Simples assim. EP: Sua força está aumentando! Tentarei não julgar aqui, mas o conselho do Dr. Hughes para evitar a negatividade abriu outra janela de oportunidade para mim: posso ver o cabelo de Sarah brilhando como uma chama de ébano entre as cabeças e os ombros na minha frente. Me apertando e, diplomaticamente, empurrando em meio à multidão, finalmente a alcanço. — Vai para onde eu vou? — Ora, olá, estranho! — Tem pimenta o bastante em seu tom de voz para abrir uma fábrica de catchup. EP: Precisa abandonar pensamentos luxuriosos! Mentalmente tomo uma chuveirada fria. — Vai entrar? — Indico casualmente com o polegar as portas da cantina. — Vou. Só estou esperando uma pessoa. Vai na frente. Escuto um leve barulho de vento quando o tapete é puxado de debaixo de meus pés. De repente, não estou mais tão convencido, e a pele em meu queixo parece estar nua e sem pelos. Estou prestes a pateticamente sugerir que poderia esperar quando uma voz alta atravessa minha insegurança com sotaque americano. EP: Canalize sua energia positiva! — OK. Vou ver se nossa mesa está pronta. — Te vejo daqui a pouco. Premio-me mentalmente com uma medalha. Toda essa energia positiva me deu fome e salivo com minha comida favorita no cardápio do dia: bife apimentado com arroz. Depois de alguns instantes pairando pelo refeitório, um grupo de garotas sai de sua mesa, e pulo para pegá-la: perfeita. Na verdade, olhando mais de perto, não está tão perfeita assim, e tiro as bandejas e os pratos que as garotas deixaram para trás. — Cara! — Beggsy puxa uma das cadeiras e começa a se sentar. Já posso ver Matt e Ravi andando na nossa direção; vou precisar fazer isso rápido. — Er... Está ocupada. — Haha. — Não, é sério. Está ocupada. Matt se aproxima da mesa, seu sentido nerd obviamente já tendo detectado aquela coisa que os nerds mais temem: mudanças. — O que está havendo? — Archie está guardando esse lugar para alguém, pelo visto. — O traseiro de Beggsy ainda não fez exatamente contato com o assento, mas ele mantém seu semiagachamento como se estivesse esperando pelas ordens de sentar-se logo ou levantar de volta. Passa-se um instante enquanto os três analisam a tensão. — Tudo bem — decide Matt, indo se sentar em uma das outras cadeiras. Se sua bandeja tocar a mesa, ele terá fincado seu nome e não haverá volta.
  • 134. — Esse também está — falo. — Todos estão ocupados. Mais uma vez o tempo para enquanto essa nova informação chega até seus cérebros. Isso é como um daqueles impasses em velhos filmes de faroeste, mas em vez de mãos roçando armas, temos bandejas e traseiros roçando mesas e cadeiras. A única movimentação entre nós se dá entre nossos olhares, conforme eles vão de um para o outro, tentando adivinhar quem vai ceder antes. Matt cede. Mas ele não diz nada; e nem precisa. Ele simplesmente me olha de um jeito que diz tudo. Em seguida, deliberadamente se afasta, seguido pelos outros. EP: Eles não são iluminados! Eles não entendem! A salvo em minha solidão, rapidamente rearrumo as cadeiras, colocando a que espero que Sarah escolha para se sentar apenas um pouco mais perto da minha do que deveria. Ela chega segundos depois de eu terminar. — Seus amigos não vêm? — pergunta, sentando-se na minha frente. — Não. Estão fazendo um trabalho juntos. Vou falar com eles depois. — Essa energia positiva certamente está melhorando minha capacidade de mentir. — Ah, que pena. Matt é bem engraçado. Lembrete mental: talvez seja melhor fazer as pazes com Matt. EP: Seja verdadeiro! Seja firme! — É, ele é engraçado. Cadê Caitlyn? Achei que estava esperando por ela. — Não, vou encontrá-la mais tarde. — Ah. Quem você estava esperando então? — Chris. Fico ligeiramente tenso. — Ah, é? — pergunto, com o máximo de positividade psíquica que consigo. — Que Chris? — Oh, não sei seu sobrenome. É um amigo novo; começamos a conversar na aula de química. Olha ele ali. Eu obedeço e logo em seguida desejo não ter olhado. Chris é ninguém menos que Chris Jackson, o tipo alto e atlético, de olhos azuis, cuja simples menção do nome causa risadinhas e bochechas vermelhas em todas as garotas da escola. Ele paga por sua salada e desfila em meio à ralé até nossa mesa. E senta do lado oposto ao meu. Ao lado de Sarah. Bem ao lado dela. Onde eu devia estar sentado. — Tudo bem? — Sua mandíbula perfeita brilha com fragmentos de verdadeira e genuína barba. Não. Não está tudo bem. Neste momento eu gostaria de trocar meu lencinho cor- de-rosa por uma arma. Ou por uma barba. Passo os quarenta e cinco minutos seguintes tentando engolir meu bife picante com arroz — tarefa ainda mais difícil quando descubro que Sarah é vegetariana; cada garfada cheia de carne parecendo uma traição. Chris, enquanto isso, mastiga sua salada com a satisfação de uma vaca no pasto, seus pelos faciais refletindo no conveniente feixe de luz criado pelo sol numa janela vizinha.
  • 135. Acho que o odeio. EP: Positividade é a chave! O problema é que, não importa quantos sorrisos falsos eu consiga dar do outro lado da mesa e não importa quantos comentários inteligentes ou irritados eu jogue na arena, Chris parece simplesmente ter dominado a conversa. Sarah está hipnotizada por ele, e é mais tátil do que acho que precisaria ser: a cada uma das piadinhas de Chris, ela reage com um toque de brincadeira no braço dele, ou jogando o cabelo sedutoramente para o lado. Estou realmente tentando não notar, mas cada vez que uma de suas mãos chega perto dele é como se o tempo ficasse em câmera lenta, e meus olhos dessem um zoom que segue cada movimento em detalhes arrasadores. Para completar, Chris masculinamente ignora o curativo em sua mão direita. Sarah percebe, e mal consigo conter o vômito quando ele revela ter tido um “acidente de rúgbi”. Quando ela pede para olhar sua outra mão, preciso morder o interior de minha bochecha para manter um mínimo de autocontrole. Olho de lado através das mesas; Matt está me encarando com uma expressão sombria no rosto. — Agora isso sim é interessante — ronrona Sara, traçando a palma de Chris com um dos dedos delicados. Minha própria palma da mão coça de ciúmes. — O quê? — Chris se reclina em sua cadeira, obviamente totalmente à vontade por estar em contato com uma mulher. Filho da mãe. — Bem, esta é sua linha do amor... — Sarah traça a linha em sua mão — ...e parece que você tem uma admiradora secreta... — Ela arrasta as palavras com uma entonação provocante e sexy, exatamente ao mesmo tempo em que consigo escutar também meu coração se despedaçando. “É verdade — continua, abaixando a cabeça para olhar mais de perto sua mão máscula. — Alguém próximo a você... uma amiga... A cadeira onde eu estava sentado parece ter desaparecido, e posso me sentir afundando num buraco profundo e escuro que só poderia ter sido criado pelos Demônios do Desespero. — Ah é? — responde Chris, com uma arqueada hollywoodiana de suas incrivelmente impetuosas sobrancelhas. — Quem? — Ora! — responde Sarah, ignorando o pequeno grupo que parecia ter se reunido para assistir. — Eu não poderia saber. Tudo o que sei é que a pessoa pode estar mais perto do que você pensa! A vontade de enterrar o rosto no meu bife apimentado e tentar morrer bem ali é avassaladora. — OK. — Chris sorri. — É melhor eu ficar de olho! Obrigado pela dica. Te vejo depois. — E então, levando sua bandeja, ele some majestosamente do refeitório. Olho onde estava sua bandeja; não há nem uma migalha na mesa. Algumas pessoas que estavam assistindo perguntam a Sarah se ela poderia ler suas mãos e, em segundos, uma fila se forma. — Bem, é melhor eu ir nessa — anuncio, arrastando minha silhueta desanimada
  • 136. para fora da cadeira. — OK. — Sarah sorri quando seu primeiro cliente senta na cadeira onde estava Chris. — Nos vemos depois da aula? Em um universo paralelo, um outro Archie diria a ela para se ferrar e estaria derramando o resto do bife apimentado em cima de sua cabeça. Neste aqui, ele concorda, pateticamente agradecido pela chance de estar perto dela apenas mais uma vez.
  • 137. DEZESSETE A tarde não passa tão tranquilamente. Simplesmente pareço não conseguir absorver a precipitação do nordeste da Inglaterra; minha mente está ocupada demais repetindo o trailer de um filme novo: O romance de Chris e Sarah. Não sei por que estou surpreso. Com pessoas como Chris no mundo, eu realmente pensava que tinha uma chance? Ele tem até mesmo aqueles musculozinhos no canto das mandíbulas, que se flexionam como pequenas nozes quando fala. Uma vida inteira na academia não conseguiria algo no gênero. Meu EP continua calado, sem dúvida afogado pela onda de autoaversão que caiu sobre minha cabeça. Nem mesmo meu MI cheio de dúvidas se dá o trabalho de reivindicar seu território; minha mente está desprovida de qualquer coisa que não seja deprimentes reprises de Os momentos mais íntimos de Chris e Sarah no almoço. O alarme de fim das aulas soa, mas continuo sentado, encarando o vazio, embalado pelas cadeiras arranhando o piso enquanto são encaixadas debaixo das carteiras. Até mesmo Beggsy vai embora sem dizer nada. Mas mal noto a sala vazia até o Sr. Cook me abordar: — Está tudo bem, Archie? Não tem casa para voltar? Eu tenho. Mas não quero voltar para lá. Tudo o que me espera em casa nesse momento é o anúncio da minha mãe ter se aliado a um Imbecil e que eu não vou mais pertencer a nenhuma família em particular. Até mesmo a ideia de voltar para casa com Sarah perdeu a graça. Por uma fração de segundo, penso em desabafar e em contar ao Sr. Cook tudo que está acontecendo na minha vida. Ele é meu tutor, assim como professor de geografia, e está sempre nos dizendo como podemos conversar com ele se não tivermos ninguém com quem falar sobre alguma coisa. Mas já desabafei com Sarah, e olha só no que deu: sem amigos, sem namorada, de encontro marcado com a Morte nas mãos de Jason Humphries e com um lencinho cor-de-rosa no bolso da camisa. Não estou nada bem. — Desculpe, senhor. Acho que estava sonhando acordado. — Bem, desde que esteja tudo bem...? Lá está o cavalo dado mais uma vez, e faço um exame completo em seus dentes, como bom covarde que sou. — Sim, está tudo bem. — As palavras saem um pouco velozes demais de minha boca, e me recomponho o mais rapidamente possível. — Até amanhã.
  • 138. — Até amanhã, então. Os corredores estão vazios, como uma banheira sem água. Minha miséria é tão profunda que meu Detector de Boçais® deixa de soar com as duas figuras Neandertais rondando os portões da escola, e quando me dou conta, Paul Green e Lewis Mills já me pegaram pelos braços e me arrastaram até o beco atrás da sala de história. Jason Humphries aparece, envolto em fumaça, como algum tipo de criatura do Submundo. De onde meu punho acertara seu nariz, saem agora duas manchas roxas circulando seus olhos, aumentando seu fator Assustador em uns seis pontos. — Aposto que está se achando especial, não está? — sibila pelo lado da boca onde não há um cigarro pendurado. — Achando que é durão. Estranhamente, sinto-me miserável demais para sentir medo; tem coisa demais acontecendo no momento. Em vez do grito familiar de adrenalina, há apenas o cansado suspiro de resignação. — Não. Na verdade não. — O quê? — Os tendões em seu rosto marcado trabalham duro para formar uma máscara feia de alguém confuso. — Está zombando de mim, nerd? Pelo que andei escutando, todo mundo está achando que foi você quem me deu uma surra. — Não, não estou zombando de você — respondo. — Tive sorte. Não sou de brigar. Não sou nada. Por algum motivo, essa minha confissão o deixa ainda mais confuso, e ele inclina a cabeça, ou tentando me analisar ou tentando deixar cair alguma coisa que entrara em seu ouvido. — Acha que reclamar com a Sra. Holly vai ajudar, não acha? Vai pedir pra sua mamãezinha ligar de novo para ela? Mas estou além do ponto de ser provocado, e a única reação que consigo ter é um débil encolher de ombros. Finalmente, Jason consegue chegar a alguma espécie de decisão olímpica na cabeça. — Patético — cospe. — Segurem-no. Com essas palavras, Mills e Green tiram minha jaqueta enquanto Humphries prepara um de seus punhos para começar. Sempre achei que canhotos tinham algum tipo de veia artística. Espero pelo inevitável. — O que é isso? Abro os olhos e sigo os olhos machucados de Humphries até meu peito. — Meu lenço. — O quê? Para que está usando isso? — Sem esperar minha resposta, Humphries tira o lenço de meu bolso, e ele se abre, como uma flor, em toda a sua glória rendada e cor-de-rosa. — Um lencinho cor-de-rosa? Você é gay? — zomba, rindo maleficamente enquanto enfia o lenço debaixo de meu nariz. — Para que serve isso? Para limpar o sangue depois que eu tiver terminado com você? — Me recordo vagamente de Matt ter dito algo parecido; talvez ele também tenha poderes psíquicos.
  • 139. — É para acalmar criminosos — respondo, sem nem pensar e sem ironia. Mas nesse momento, aquilo não chega nem perto do pedaço de criptonita pelo qual eu ansiava. — O quê? — Essa informação causa algum tipo de sobrecarga no sistema de meu agressor, e ele começa a gargalhar, abanando meu lenço como numa espécie de dança satânica. Green e Mills começam a rir também, e, em segundos, o ar fica pesado de risadas assassinas. — Ei! O que vocês estão fazendo aí? — A voz do Sr. Cook interrompe os gritos. Humphries congela e esfrega o lenço no meu rosto. — Vai esperando! — sibila ele, e o trio de bullies se dispersa. — Archie? O que está acontecendo? — O Sr. Cook aparece no beco. — Nada, senhor. — Bem, então vá para casa! — Sim, senhor. Guardando meu lenço no bolso e tremendo ao vestir minha jaqueta, saio da escola, ligeiramente inseguro a respeito do que acabara de acontecer. Acho que acabei de ser salvo por um lencinho cor-de-rosa. — Estava me perguntando onde você tinha se metido. — Sarah estava me esperando na calçada. — Achei que tinha me largado aqui! Eu percebo a ironia, e, apesar de estar grato pela minha fuga por um triz, a Neblina do Amor Não Correspondido cai sobre mim mais uma vez. Vai ser uma longa caminhada para casa. Cada passo que dou parece inadequado. Meu queixo parece mais pelado que o bumbum de um bebê, e eu sou um Nerd. E cada palavra que Sarah diz endurece e se transforma numa faca que atravessa meu coração. Nem mesmo suas garantias de que Humphries provavelmente vá me deixar em paz trazem algum tipo de conforto. — O que foi, Archie? Está meio quieto. E estava bem calado no almoço. Está tudo bem? Não está com vergonha pelo que me contou no final de semana, está? O que responder? Que graças a seu descarado flerte com Chris Jackson, minha vida não faz mais sentido? Em vez disso, ofereço uma breve explicação de minha preocupação com Tony pedir mamãe em casamento. É uma cartada fútil e desesperada, mas arrisco mesmo assim. — Acho que não precisa se preocupar tanto, Archie. É apenas um pedaço de papel. Não muda nada realmente. — É, acho que tem razão — minto. — É só um pouco estranho. — Só vai se tornar um grande problema se você quiser, Archie. Vai dar tudo certo. — Acho que sim. — Ei, gostou do truque que fiz com Chris na hora do almoço? Ela obviamente não faz a menor ideia de como me sinto. Mas quem sou eu para ficar no caminho do Amor Verdadeiro? Ninguém, é isso que eu sou. — É... Você me enganou!
  • 140. — Desculpe ter sido durante o almoço, mas acho que eu não teria outra oportunidade. Sei como ela se sente. — É. Então foi um truque? Não sabe ler mãos? — Ah, sei um pouco, mas apenas disse a Chris o que ele precisava ouvir. Sua autoconfiança é arrepiante. Isso é mais do que eu teria esperado da Feiticeira Branca de Nárnia; talvez ela tenha assistido a esse filme vezes demais. — OK... — Sinto medo da resposta ao mesmo tempo em que as palavras seguintes saem de minha boca: — Então o que acha que vai acontecer agora? — Acho que vai depender dele e de Caitlyn. — Caitlyn? — Nunca vi um peixe barrigudinho ao vivo, mas acho que eu devia estar parecendo um agora. — É. Ela gosta dele há séculos. Eu não podia te contar, mas foi por isso que ela não foi almoçar com a gente. — Espera... Você estava... — ...apontando a direção certa para ele, isso. Eles se gostam, mas nenhum dos dois tem coragem de fazer alguma coisa a respeito. Num piscar de olhos, de repente o mundo é um lugar melhor. Minhas baterias recarregadas positivamente ficam cheias e meu EP ganha energia suficiente para voltar a funcionar. EP: O poder do positivo não pode ser negado! Acho que meus dias de negação acabaram. Por medo de abrir a boca e dizer a coisa errada, mudo de assunto e conto a Sarah sobre os poderes protetores do lenço cor-de- rosa. Pérolas de gargalhadas caem como chuva sobre minha cabeça, acalmando minha alma conturbada. — Não sei se acredito nessa história das cores — diz, com uma risada. — Não a ponto de confiar minha vida a um lencinho cor-de-rosa. — É. — Rio concordando, confortável em meu papel de bobo da corte e feliz em abandonar minhas crenças em um estalar de dedos. EP: Ela é a fonte da energia positiva! Veja como você se sente melhor em sua companhia! Quando as risadas diminuem, a conversa se volta para assuntos psíquicos, e me vejo contando a Sarah como estou me sentindo diferente; como estou saindo da concha e descobrindo meu verdadeiro eu. — Bem, acho que a melhor coisa é não se apressar, Archie. É uma coisa poderosa, e precisa dar a cada fase o peso que ela merece. — O que quer dizer? — Tudo que está descobrindo agora é novo; está num estágio de transição, como uma borboleta saindo de sua crisálida. — Um passo de cada vez, esse tipo de coisa? — Com certeza. A maneira como pensamos e nos sentimos é devido a anos de um
  • 141. comportamento aprendido. Você não pode simplesmente desaprender tudo de um dia para o outro. Não é uma competição; precisa ir na velocidade certa para você. Finalmente chega a hora de nos separarmos, e sou deixado com uma sensação como a de um raio de sol em meu estômago enquanto percorro o restante do caminho até minha casa. Ainda tenho uma chance; tudo o que preciso fazer é tentar pensar como ela, e o resto vai chegar. Mas até mesmo o sol precisa se pôr: a sensação dura até eu ver minha casa no final da rua e ficar parado na frente dela, apenas a olhando. Não quero entrar. Não quero que mamãe e Tony fiquem noivos. Mas eu moro ali. Respirando fundo e, de coração apertado, entro em casa. Entro pela porta da frente e dou de cara com Tony descendo as escadas — sem dúvida voltando de mais uma de suas visitinhas ao banheiro. O jornal debaixo de seu braço meio que o denuncia. — Tudo bem, Arch? — Ou ele está escondendo o jogo ou está sofrendo de algum tipo de amnésia. — Tudo... Como foi? — O quê? — Você sabe... a história da aliança... De um ser humano normal você esperaria alguns “obas” sendo gritados ou um rosto como de um buldogue mastigando uma vespa. Tony não revela nada e dá apenas algumas risadinhas e a instrução “Vá perguntar à sua mãe”. Deve ser assim que quem está no corredor da morte se sente. Eu sigo o som do rádio na cozinha, e encontro mamãe de joelhos com a cabeça enfiada dentro de um dos armários. Apesar do peso em meus ombros, essa cena me faz sorrir — especialmente quando ela xinga junto com o barulho das panelas. Mamãe tem um jeito especial de xingar: não é ofensivo, provavelmente porque seu xingamento favorito parece ter sido inventado por uma solteirona vitoriana. — Porcaria! — Panelas batendo. — Tudo bem aí embaixo? Mamãe tira a cabeça de dentro do armário e se levanta. — Deus, estou ficando velha! — balbucia. — Olá, querido, como foi seu dia? Quer uma xícara de chá? — Ela dispara as perguntas mais rápido que uma metralhadora. — Bem, obrigado. E sim, por favor. — Como se saiu com seu lenço? — É, tudo certo. E você?
  • 142. — Ah, você sabe, o de sempre. O de sempre? Será que perdi alguma coisa? Pedidos de casamento por acaso fazem parte da rotina diária de minha mãe? Estou começando a me perguntar se imaginei a história toda, ou se algum cirurgião cerebral velhaco andou trabalhando na cabeça de mamãe enquanto eu estava na escola, quando ela subitamente se lembra da parte vital de seu dia. — Oh, sim! Tony me pediu em casamento hoje. — Ela fala de um jeito casual e despreocupado o bastante para me enrolar só mais um pouquinho. — E...? — Tentar manter a frustração escondida em meu tom de voz causa um estrago nas minhas reservas psíquicas. — Eu não aceitei. Ter antecipado uma resposta inteiramente diferente faz meus olhos se arregalarem; é como se preparar para um golpe que nunca vem. Talvez exista mais por trás dessa história do lencinho cor-de-rosa do que Sarah pensa. — O quê? Por quê? — Já fui casada, Archie — explica mamãe um pouco tristemente, mas ainda conseguindo me abastecer de uma xícara da Sagrada Infusão. — Não preciso fazer isso de novo. Acho que foi o casamento que arruinou meu relacionamento com seu pai. Quando finalmente compreender aquela declaração, tenho certeza de que vou precisar admitir ter me tornado um adulto. — Ah. E Tony? — Ele está bem. — Mesmo? Não ficou chateado? —Apesar do fato de ter odiado a ameaça de um futuro casamento, parte de mim está moralmente ultrajada por Tony conseguir aceitar essa rejeição tão casualmente. — Vá ver você mesmo. Arrasto-me até a sala no piloto automático enquanto tento fazer tudo isso ganhar sentido: ninguém parece estar incomodado. Não é que eu queira mexer num ninho de vespas nem nada, mas todo mundo parece estar lidando com isso tão... positivamente. — Tudo bem, Tony? — Sim, amigo. — Ele nem se dá ao trabalho de tirar os olhos do jornal que está lendo. — Soube do... você sabe... da aliança. — Ah, é! — Mais uma risadinha vindo do sofá, de detrás do The Times. — Você está... Você está bem? Então, ele desce o jornal, com a majestade de uma ponte levadiça sendo baixada. — Estou. Por que não estaria? — Bem... Ela não aceitou... — É. — Isso não é ruim? Mais risadinhas, que, para ser sincero, estão começando a me dar nos nervos. Se
  • 143. existe algum segredo por trás disso tudo, é bom ele me contar logo. — Deixe eu te contar uma coisa, Arch... — Odeio quando adultos falam assim. — Não foi que ela não aceitou, é por que ela não aceitou. — Ele sabe que essa declaração exige maiores explicações, mas ainda assim vou precisar pedir por elas. — OK. Por quê? — Ela disse que estava feliz o bastante e que não precisa de um anel para deixá-la mais feliz. E se ela está feliz, eu também estou. — Ah. Certo. OK. Ou testemunhei uma abordagem incrivelmente zen acerca de relacionamentos, ou alguém anda colocando drogas no chá. Se Tony tivesse parado por ali, eu poderia ter algum respeito por ele, mas Tony sendo Tony e, portanto, um Imbecil, não consegue. — E como está indo com sua senhorita? — Ainda não vou precisar pedir o anel emprestado, se é isso que quer saber. Mais uma rodada de risadinhas vindas dos pulmões corroídos de Tony, e subo para minha Toca. Abro o laptop e entro direto no Facebook. Matt ainda não existe, e Ravi postou uma foto de uma miniatura que acaba de pintar, talvez tentando chamar minha atenção. Beggsy, no entanto, ainda está anunciando minha briga com Jason Humphries o mais alto possível. Seu status diz: “ADIVINHA QUEM LEVOU UMA SURRA DO ARCHIE?” Há algumas tentativas de adivinhação, incluindo “Miley Cyrus”, o que me faz sorrir. Mas, no fim, ele não se conteve e escreveu o nome de Jason, com um desnecessário número de pontos de exclamação. Não foi uma de suas melhores ideias na vida, considerando como Jason descobriu onde moro. Estou prestes a mandar uma mensagem a ele quando vejo que papai andou tentando falar comigo; ele deixou várias tentativas de chat. vc ta on Sem ponto de interrogação. kd vc Mesma coisa. kro falar c vc Blah. me liga pfv Péssimo. Mas nem mesmo essas mensagens estouram a bolha de serenidade que parece ter se formado ao meu redor. Olho o perfil de Sarah: sua lista de amigos está crescendo rapidamente, e seu status diz “Em paz”.
  • 144. Sei como ela se sente.
  • 145. DEZOITO Passo o restante da semana conhecendo meu Eu Psíquico, cortesia do Dr. Hughes. A única dificuldade é precisar ficar acordado até tarde para dar conta dos meus deveres de casa, mas mamãe acha que estou só cansado porque estou no fuso-horário da adolescência. Toda essa história de positividade é um pouco como aprender a voar; estou aprendendo a me distanciar de meus problemas e a olhá-los de uma perspectiva mais ampla. No entanto, voar tende a ser uma atividade solitária, e quando Sarah não está por perto no almoço ou nos intervalos, fico sozinho. Matt, Ravi e Beggsy não estão exatamente me evitando, mas estão mantendo-se fora de meu caminho; talvez estejam achando que ela é minha namorada. Talvez eu devesse pedir desculpas, mas, para ser sincero, quando Sarah está por perto eu meio que me esqueço deles. Na verdade meio que esqueço tudo. Ainda nem respondi às frenéticas mensagens de meu pai pelo Facebook. EP: Você está abrindo as asas e deixando sua velha vida para trás! Existe muita verdade nisso. Até o catálogo novo da Next que chegou permanece intocado, graças à minha recém-descoberta pureza. O mais estranho é que nem consigo pensar em Sarah num contexto sexy. Acho que atingi um alto nível de desenvolvimento espiritual. Mas estou percebendo que há muito trabalho a ser feito e tentando seguir as dicas do livro do começo. “Dê a tudo a importância que merece”, Sarah tinha dito. Humphries está pacientemente aguardando. De vez em quando, ele aparece no horizonte como um Grande Tubarão Branco, para em seguida desaparecer silenciosamente em meio à multidão. Mas está deixando claro que continua lá. Mesmo eu tendo parado de usar o lenço de bolso cor-de-rosa, ele ainda parece sentir onde estou. Talvez ele tenha poderes psíquicos. A sexta-feira chega como um sopro de ar fresco, e, às 15h15, estou esperando mais uma vez no portão da escola. Sarah chega, dando adeus à sua crescente horda de amigos/admiradores/clientes de quiromancia. — Olá, você! Como está a vida? Adoro quando ela me chama assim. Estranhamente, para um termo tão genérico, parece incrivelmente pessoal vindo da boca de Sarah. Especialmente quando ela está meio sem fôlego, como nesse momento. — Olá, você! Está tudo bem! — Já virei especialista nisso.
  • 146. — E sua mãe e Tony? A temível proposta. Não sabia se devia tocar no assunto antes. — Alarme falso. — Eu te disse! — provoca. — Seus amigos ainda estão fazendo aquele trabalho? — É. Ainda. — Esse “trabalho” vai ser o mais longo da história dessa escola. — Alguma novidade? — Chris e Caitlyn terminaram. Ela chorou a tarde toda. — Mas eles só estavam saindo há dois dias! O que aconteceu? Isto é, já ouvi falar de relacionamentos curtos, mas... — Bem, conversei com ele, e ele disse que gosta de outra pessoa. Já esperava algo assim há dias, mas me preparo do mesmo jeito. — Ah é? De quem? — De mim! Confessou que só estava fingindo gostar dela para se aproximar de mim! Dá para acreditar? — O ultraje em seu tom de voz me dá um pouco de esperança. — E o que você respondeu? — Disse a ele para sumir! Relaxar. Mas não demais. — Por quê? Todas as garotas da escola querem sair com ele. — Bem, eu não quero! Ele não faz meu tipo. — Não? — Não. Gosto de homens um pouco mais profundos. Além disso, não estou interessada em homens no momento. A não ser em você, é claro. Que diabos isso significa? Isso quer dizer que ela não sairia com ninguém além de mim, ou que exceto comigo porque somos amigos? Peço algum tipo de orientação ao universo, mas o universo parece estar ocupado atendendo outras ligações. Caímos numa conversa confortável sobre nada em particular, sem Sarah demonstrar nenhum sinal de ter dito alguma coisa sobre a qual eu devesse me preocupar. Será que devo arriscar e simplesmente chamá-la para sair? Mesmo que pensar nisso faça meu estômago se revirar e minhas bochechas arderem? Mas o americano em minha cabeça não tolera covardia. Isso simplesmente não é uma opção. EP: Você pode conquistar qualquer coisa com os poderes do pensamento positivo! Talvez eu possa. Talvez eu deva. EP: Dê um passo à frente ou um para trás. Não existe meio-termo. Acho que já ouvi aquilo em algum lugar antes. Mas faz sentido; quanto mais eu enrolar na Terra do Talvez, menos chances terei de chegar a algum lugar. Será que convido? Meu estômago se revira outra vez. Uma vez quando penso em convidar, duas quando penso em não convidar. Eu conto seis reviradas em seis segundos. EP: Siga o vento! É Agora ou Nunca! Quando a ideia começa a ameaçar se tornar realidade, meu corpo entra num modo encare ou fuja. — Archie? Algum problema? Parece meio pálido!
  • 147. Não muito positivamente, amaldiçoo minha traiçoeira pele em silêncio. — Sim, estou bem. Posso perguntar uma coisa? EP: Abra suas asas e VOE! Isso é tudo muito bonito, mas acho que acabei de descobrir que tenho medo de altura. — Claro. Está tudo bem? — A preocupação em seu rosto parece estar tornando tudo ainda mais difícil. — Está... eu... é... Sarah, você quer...? — Archie! O maldito Tony para o BMW e grita pela janela. — Quer uma carona? Sarah me olha ansiosa. Mas minha coragem diminui até morrer. — Er... É, obrigado Tony. — E sua namorada? Minhas pálpebras descem como pedras. Quero que o mundo me engula por inteiro, leve-me até as profundezas de seu ser e nunca, nunca mais me deixe ver a luz do dia. Nunca mais. É só quando escuto as risadinhas de Sarah que saio de meu horror. — Desculpe. — Sorrio em meio à vergonha avassaladora. — Quer uma carona? — Não sei por que estou perguntando; ela já está quase em casa. Meu rosto dói. Acho que é a tensão nos músculos enquanto tentam manter meu falso sorriso. — Não esquenta — responde ela. — Não precisa, obrigada, Tony! — Ela dá um apertozinho rápido em meu ombro e sai andando, levando junto todos os meus sonhos e as minhas esperanças. Entro no carro, espumando silenciosamente. — Tudo bem, Arch? — Não — respondo, entre dentes. Nenhum de nós dois fala mais nada por alguns instantes. — Estraguei tudo? — pergunta Tony, enquanto estacionamos em frente de casa. Tudo que consigo fazer é suspirar. É sexta-feira à noite e estou sentado em minha escrivaninha, abatido e deprimido, sozinho e sem Jogo para esperar ou amigos para encontrar, olhando em volta de meu quarto: a cama, os livros, minha coleção de miniaturas. Subitamente, tudo ali parece diferente. Minha Toca era meu santuário, o lugar onde eu podia escapar da realidade e andar com a cabeça erguida. Mas agora que estou com os pés no mundo real, ele parece ser o que realmente é: uma rede de segurança. Nunca realmente encarei nada de verdade neste
  • 148. quarto, apenas fantasias, imaginação e covardia. Ele parece infantil. Tony bate na porta e coloca a cabeça dentro do quarto. — Tudo bem, Arch? — Sim. E você? — Sim. Desculpe pela história de “namorada”. Consigo sentir o cheiro de uma ideia da mamãe nisso. Acho que é a primeira vez que Tony me pede desculpas por alguma coisa. Mas não há motivo para prolongar a história. Nenhum dano foi realmente causado; posso negar tudo mais tarde e depois chamá-la para sair quando estiver pronto. — Tudo bem. Acho que reagi mal. — O que está fazendo? Pintando? — Na verdade, não — respondo, me levantando. — Só estava pensando em jogar algumas coisas fora. — Que tal irmos ao bazar amanhã? — Ei, é... — murmuro sozinho. — Um bazar... — Ganhar dinheiro com seu lixo... — Não. Não é pelo dinheiro. — Mas acho que Tony me deu a resposta pela qual eu estava procurando. O Dr. Hughes está sempre dizendo que eu devo “pedir e o Universo vai responder”. Talvez o Universo finalmente tenha saído do telefone. — Bem, eu tenho um monte de coisas que devíamos ter jogado fora antes da mudança. O que me diz? — Um bazar? — É. Deixamos sua mãe dormindo e vamos vender algumas coisas. Um dia só de garotos. Esta é mais uma daquelas tentativas de ”criar laços”, mas neste momento ela se adéqua às minhas necessidades. — OK. — Legal. Tony desce como um trovão, sem dúvida indo contar a mamãe que grandes amigos somos agora. Vou deixar que tenha seu momento de glória. Quando começo a esvaziar a escrivaninha, colocando as miniaturas em plástico bolha e fechando as tampas de minhas tintas pela última vez, sinto como se estivesse fazendo a coisa certa. Serei brutal ao selecionar entre meus pertences pessoais — não posso ficar me prendendo ao passado se quiser alcançar meu potencial interior. Miniaturas, livros — vai tudo embora. Estou escolhendo os livros quando percebo uma mensagem do Facebook chegando. Meu estômago dá uma rápida cambalhota na esperança de ser Sarah. Mas é papai. vou pra York6a q vem liga pfv urgente
  • 149. Ele nem se dá ao trabalho de usar pontuação, nem sequer ponto final. Fico encarando a tela por um momento, pensando no que responder. Eu devia encontrá-lo, sei disso, mas neste momento não posso pensar no assunto. EP: Faça quando achar certo para você. A decisão de ir embora foi dele. Não sua. Demoro um pouco, mas desligo a opção “Disponível para chat”. Não recebo mais nenhuma mensagem e finalmente desligo o laptop. EP: Não foi tão difícil. Gosto dessa sensação. Gosto de sentir como se valesse alguma coisa. Fortalecido por poder tomar minhas próprias decisões, volto ao que estava fazendo e, em instantes, estou frente a frente com uma pilha de caixas prontas para irem embora. Meu quarto parece estranho e desconhecido, mas não me sinto assustado. O novo Archie gosta de mudanças; esta é apenas uma tela em branco para que eu comece a pintar um novo quadro. Se apostar minhas fichas na hora certa, posso até pintar uma Fada Sexy nela. Mamãe bate na porta com uma xícara de chá, o rosto surpreso ao ver o que restou de minha Toca. — Tem certeza quanto a isso? É muita coisa para jogar fora. E suas tintas e miniaturas? Achava que adorava fazer isso. — É... Apenas achei que era hora de mudar. Não posso ficar sentado dentro do quarto para sempre, posso? — Acho que não. — Mamãe parece estar melancólica. EP: Provavelmente neste momento há uma montagem dos melhores momentos de seu garotinho passando em sua cabeça. Ela vai superar. Seu garotinho está se tornando um homem. Depois que mamãe e eu terminamos de empacotar o que resolvi vender em mais caixas, Tony — sempre o chef criativo — pede pizzas e alguns filmes. Normalmente. eu faria meu melhor para evitar o programa, mas queria ver um dos filmes. É claro, Tony não consegue se segurar e, em quinze minutos, começa uma sucessão de mais de um “Opa”, “Atrás de você!”, e “Não devia ter feito isso”, tudo gritado para a tela. EP: Você não precisa suportar isso. Inclino-me para a frente e olho o sofá onde Tony está sentado com mamãe. — Tony. — Sim, amigo. — Se importa? — Aponto a TV. Tony reage como alguém que acabou de compreender a teoria da Relatividade de Einstein pela primeira vez. — Ah, tá. — Ele dá um sussurro dramático com a última palavra: — Desculpe. Mamãe, sentindo aquela alteração na Força, se aninha perto dele. Mas não podia
  • 150. durar — e não dura. Em meia hora ele já retomou seu papel como Comentarista. Só que dessa vez, é mamãe que dá nele um tapinha no ombro com um gentil “shhh”, que tem o efeito de uma chupeta para um bebê. Antes de minhas recém-descobertas revelações psíquicas, eu provavelmente teria me sentido culpado em colocar mamãe na posição de pacificadora. EP: Por que deveria? Você também mora aqui. Ele precisa se lembrar disso. O restante do filme passa sem interrupções, e quase consigo gostar realmente da experiência. EP: Viu só? Você tem poder para mudar as coisas. Só precisa dizer o que pensa. Isso tudo é um pouco novo para mim — mas gosto da sensação de estar sendo respeitado. Preciso continuar pensando assim; e isso vai dar algum trabalho. Quando sobem os créditos, Tony vai buscar o outro filme. — Quer ver esse, Arch? — Não, obrigado. Não é a minha praia. Acho que vou dormir. — OK. Vou acordá-lo por volta das 6h30; o bazar começa às 9 horas, mas precisamos chegar lá cedo. — Não se preocupe, vou colocar meu despertador. — Boa noite, querido. — Mamãe está remexendo no que sobrou da pizza, procurando os melhores pedaços. — Boa noite. Deixo os dois sozinhos, com uma estranha sensação de satisfação. EP: Você está começando a tomar as decisões agora. Começando a alcançar seu potencial. Minha Toca está estranha. Com todas as caixas empilhadas, parece que estou prestes a me mudar. EP: Parte sua está. A parte que tem atrasado você. Depois de apagar a luz do teto, entro debaixo do edredom fresco e bem passado e olho minha mesinha de cabeceira. A Gárgula está ali, curvada debaixo do abajur, me olhando furiosamente. Eu a encaro atentamente. EP: Ele não precisa de escudos, é feito de material mais resistente que eles. E você também. Sou mesmo. Concluo que não preciso mais dela e a coloco numa das caixas na beirada da minha cama. Apago a luz, mergulho a cabeça no travesseiro e tento relaxar prestando atenção em cada parte de meu corpo, como Sarah fez quando eu estava na casa dela. Na minha cabeça, imagino a Gárgula e foco nas qualidades que a tornam a criatura imponente que ela é: sua força, sua atitude, sua sabedoria — todos atributos que preciso ter. A princípio é difícil; minha mente fica pensando em outras coisas, como em papai e Tony e, é claro, em Sarah e no beijo. Mas conforme Sarah sugeriu, tento bloquear todo o resto de meus pensamentos, até tudo que conseguir ver sejam as características escarpadas de meu totem. Sem perceber, adormeço, e o Sonho começa. Estou deitado na cama e olho um dos
  • 151. cantos do quarto. Os olhos vermelhos estão lá, ardendo em meio às sombras escuras. Então, a Gárgula se desdobra e fica parada debaixo de um raio de luar que passa pela janela do meu sótão. Em vez do medo de sempre, sinto apenas admiração e respeito por esse monstro em meu quarto. E, em vez da paralisia habitual, levanto da cama e paro à sua frente, nós dois banhados na luz prateada. A Gárgula é muito mais alta que eu e seria capaz de me esmagar com um único golpe. Mas sei por que estou aqui. Estendo uma das mãos e a coloco sobre o peito da criatura. E em seguida ela some. Fico em pé na luz do luar, olhando o espaço à minha frente. Demoro um instante para notar minha mão, como ela mudou, como a suave pele rosada tornou-se pedra gasta e escarpada. Eu sou a Gárgula. Sinto-me poderoso. Sinto-me como uma força da natureza. A sensação permanece quando acordo, apesar de ficar ligeiramente desapontado por constatar ter voltado a ser de carne e osso, deitado em minha cama. Rapidamente, acendendo minha luminária, tiro a Gárgula da caixa e a recoloco sobre minha mesinha de cabeceira.
  • 152. DEZENOVE Cedo demais, meu alarme toca, e me arrasto para fora da cama. Acho que nunca acordei tão cedo num sábado. Depois dos altos e baixos de ontem, pareço ter perdido um pouco de minha coragem. Quase consigo ouvir meu MI ao fundo, me dizendo que o Sonho foi apenas um sonho e que estou sendo ridículo. EP: Mas está preparado. Sarah me disse que isso poderia acontecer. Disse que até eu abraçar totalmente meu Eu Psíquico, vou experimentar altos e baixos em minha autoconfiança, mas é tudo parte de minha transformação. EP: De Nerd para algo mais significativo. Está na hora de minhas Afirmações. Fico parado na frente do espelho segurando o livro, sem parecer algo muito mais significativo em meus pijamas amassados. EP: Tire isso da cabeça. Concentre-se em seu eu interior. — Sou confiante e forte. — É estranho dizer essas coisas a mim mesmo. “Sou apoiado pelo Universo. “Tenho boa autoestima. — Ainda não me sinto convencido, mas estou realmente tentando acreditar no que estou dizendo. Agora a próxima, que me dá certo arrepio quando a repito. “Sou digno de amor verdadeiro. “Posso lidar com qualquer coisa que aconteça comigo hoje.” — Cadê o cara?! — Posso ver Tony, sorrindo como um tonto através do espelho, enfiando a cabeça dentro do quarto como algum tipo de boneco obeso. Ele faz algumas imitações ridículas de movimentos de kung fu e ri. EP: Ignore-o. As inseguranças dele não são problema seu. — Sanduíche de bacon, Arch? Precisamos sair daqui a pouco. — Não, obrigado. Vou comer fruta. — Sarah falou que preciso equilibrar meu corpo assim como meu espírito. Vai ser uma ruptura com a tradição dos sábados de manhã, mas vou superar isso. Apesar de não ser fácil. O cheiro de bacon flutua escada acima enquanto me visto, e, quando entro na cozinha, minha boca já está salivando. Tony está virando algumas fatias na frigideira, seu cigarro-marca-registrada já pendurado nos lábios. — Certeza que não quer um, Arch? Tem o bastante aqui.
  • 153. EP: Controle seus desejos mesquinhos! Em resposta, pego uma pera da fruteira e, com um sorriso autocongratulatório, dou-lhe uma mordida desafiadora. Em contra-ataque, Tony coloca três tiras de bacon numa fatia de pão, acrescenta uma porção de ketchup e completa a obra com outra fatia de pão. Nunca antes uma pera pareceu tão sem graça. EP: Ele está testando sua constituição psíquica. Seja forte. Embora à primeira vista isso pareça com duas pessoas apenas comendo seus respectivos cafés da manhã, minha nova percepção me permite entender que é mais que isso. O que está acontecendo por baixo dessa cena aparentemente doméstica tem mais a ver com a primeira batalha entre Darth Vader e Luke Skywalker — Tony dá uma mordida e suspira de satisfação; eu mastigo e tento parecer convencido. Cada mordida é um golpe; cada grunhido de prazer é como aquele raio azul que o Imperador lançava de seus dedos. E Tony respira um pouco como Darth Vader também — de tanto fumar e tudo mais. Depois de nosso duelo gastronômico, levamos as coisas para o carro e partimos em direção ao clube de rúgbi local, onde está acontecendo o bazar. Passamos pela casa de Sarah, ainda sem sinal de vida. É um trajeto de apenas dez minutos, mas Tony parece pensar que aquilo pedia mais um cigarro. Em segundos, o carro está repleto de uma asfixiante fumaça azul. EP: Você não é obrigado a tolerar isso. Abro a janela do meu lado, mas aquilo só faz entrar uma corrente de ar que empurra a fumaça ainda mais para dentro de meu nariz. EP: Você pode aceitar o desafio ou se encolher diante dele! — Tony — começo —, poderia, por favor, apagar isso ou abrir sua janela? Aquilo parece irritá-lo, considerando que ele abaixa a janela em silêncio. Tirando tossir violentamente, nunca realmente comentei sobre seu vício em nicotina, então parece meio estranho, mas encorajado por minha nova força interior, resolvo ir um pouco mais longe. — Devia parar de fumar. — Eu sei, eu sei. Um dia. — Suas palavras têm a ressonância vazia de um viciado. EP: Não o deixe se safar dessa. — Quando? — Quando o quê? — Quando vai parar de fumar? — Eu não sei, Arch. — Sua resposta é curta e grossa. — Quando me sentir pronto, OK? EP: Não é bom o bastante. — Quando vai se sentir pronto? — Maldição, eu não sei! Não hoje! A melhor coisa a se fazer nesse caso é deixar para lá, mas meu EP pensa diferente. EP: Não é bom o bastante. Insista.
  • 154. — Por que não? É fácil. Você só precisa entrar em contato com sua força interior e então pode fazer qualquer coisa. Fumar é apenas um sintoma de sua desarmonia psíquica. Tony me olha como se eu tivesse uma cabeça a mais de repente, e passamos o resto da viagem em silêncio. Chegamos ao clube de rúgbi e encontramos nossa vaga. É cedo, mas diversos carros já estão estacionados, e os caçadores de barganhas mais experientes já estão de olho nas mesas improvisadas conforme elas começam a se encher. É um pouco enervante; Tony desiste de uma potencial venda de um quadro dois minutos depois de chegar ao bazar, e o cliente vai embora, olhando-o de cara feia. — Puxa — balbucia ele —, dê um tempo. Terminamos de montar a mesa e de tirar nossas coisas das caixas. Fico com uma metade, Tony com outra. Enquanto ele simplesmente joga suas coisas na sua parte, pacientemente organizo minhas miniaturas, meus livros e meus CDs de um jeito que, acredito, os exiba da melhor maneira. EP: Olhe só isso. Esta é uma manifestação física das diferenças entre vocês. Ele é bagunceiro e não tem foco. Você é direto e organizado. Está aprendendo. Apesar de minha organização, Tony faz cinco vendas na primeira hora e alegremente sacode os bolsos cheios de moedas e notas. É mais um confronto não declarado; posso ouvir os sabres de luz zumbindo novamente. Ele até mesmo saca mais um cigarro com uma calma meio Jedi. Enquanto Tony entra em algum tipo de discussão com um grupo tentando barganhar, fico analisando um de meus livros de regras, maravilhado com o quanto mudei em tão pouco tempo. Um dia, aquelas páginas teriam sido capazes de fazer minha mente delirar com imagens de todo tipo de fantasia infantil: monstros, heróis e feitiços mágicos. Agora, eu os vejo pelo que são: uma armadilha para os de mente fraca. Preciso começar a ler jornais. — Archie! O que está fazendo? Levanto o olhar e vejo Ravi, parado na frente da mesa. — Oi, Ravi. — OK, isso é meio esquisito; já devia ter havido um pedido de desculpas a essa altura. Vindo de mim. — Só estou vendendo umas coisas. — Vejo os pais dele em outra barraca, um pouco mais distante. — Só vendendo umas coisas? Mas suas miniaturas, seus jogos... Está maluco? EP: Mais um que precisa ser iluminado. Isso vai ser difícil; Ravi está me olhando como se eu tivesse acabado de anunciar que ia competir no The X Factor. — Não é grande coisa, Ravi. Só estou evoluindo, só isso. — Evoluindo? Do que está falando? Isso é estranho demais. Ravi é um de meus melhores amigos. Durante nossos anos de amizade, enfrentamos demônios, saqueamos templos e derrotamos bruxos maléficos. No mundo real, conversamos sobre os Amplos Atributos de Kirsty Ford, confessamos
  • 155. nossa Nerdice mútua, e, em geral, protegemos um ao outro. EP: Mas o que ele realmente sabe sobre você? Precisei pensar um pouco na resposta; nunca realmente contei a ele como me sentia em relação a nada. É claro, ele sabia quando meus pais estavam se separando, mas nunca falei de verdade sobre aquilo. Não contei a ele sobre Sarah. Não é que não confie nele, é só que garotos não fazem essas coisas. Fazem? EP: Olhe com mais atenção. Ele é um reflexo do que você foi um dia... Ravi é um nerd. Como Matt e Beggsy, é um nerd altamente qualificado. De sua jaqueta pequena demais até seus tênis surrados. Do que ele usa ao que lê e ao que assiste. E estou mudando. Não quero mais ser aquilo. — Apenas está na hora... — As palavras não saem com facilidade. — Mas por quê? E quanto ao Jogo? E quando às Noites de Jogo? O Casebre? Não gosta mais de lá? EP: Mostre a ele como está evoluindo. — Mas para que serve isso tudo, Ravi? O que isso tudo faz? É legal, é um jogo, mas por que o jogamos? Devíamos estar por aí, sendo o que podemos ser, mas de verdade! — Por aí onde? — Aí! — Onde? Onde fica isso? EP: Não se deixe distrair por detalhes! — Qualquer lugar! Só não em nossos quartos, jogando dados e pintando homenzinhos! — Por que não? — Não sei, é só... bem... é bobo! Esse é um golpe baixo, mas meu EP me avisara que também era certeiro. Todos os nerds têm uma terrível e secreta suspeita de que sua distração preferida seja “boba”. É uma palavra que diminui tudo que o Jogo representa e diz que ele é patético e infantil. Como nerds, sabemos disso; só não gostamos de falar no assunto. Vejo a pequena bolha de Ravi começando a murchar diante do peso da Terrível Verdade. Não há como contestar a palavra “bobo”, e Ravi simplesmente fica parado, parecendo bobo. Sinto-me péssimo. EP: Não sinta culpa. Você escolheu seu caminho. Ele escolheu o dele. — A próxima sessão ia ser na minha casa. — Sua voz é melancólica e distante. — Nunca vão conhecer garotas desse jeito. Com isso, Ravi dá um passo para trás com incerteza e olha para mim como se tivesse um raio de sol batendo em seus olhos. EP: Ele pode ver que você está mudando. Ele sente seu poder. — Cara — murmura Ravi, sacudindo a cabeça. — Acho que devo então avisar aos caras. — É. — OK, então.
  • 156. — OK. Enquanto Ravi é engolido pela crescente multidão de compradores, tento entender como estou me sentindo com aquilo tudo. Sei que é o fim de alguma coisa — não apenas o fim das sessões. Meu MI fica batendo na porta dos fundos de meu cérebro, mas estou tentando escutar meu EP agora. Ele me diz que fiz a coisa certa. EP: O Caminho para a Iluminação pode ser solitário, e você não pode escolher quem vai percorrê-lo com você. Nem quem não vai. Um garotinho está segurando meu Dragão de Fogo e fingindo fazê-lo voar. Sinto uma pontada de raiva com a falta de admiração que ele parece ter por um de meus melhores trabalhos. Um homem, que presumo ser seu pai, se aproxima, tira o dragão dele e o enfia debaixo de meu nariz. — Quanto custa isso? “Isso” me custou umas cinco libras e longas horas de concentração e precisão com um pincel. Parte de mim não quer deixá-lo ir embora. — Três libras? — arrisco. — Dou uma libra por ele. — O dinheiro está na minha mão, e o pai e sua cria já estão longe antes que eu possa concordar ou não. EP: Precisa se desprender do passado. Existe apenas o “agora”. — Primeira venda do dia! — Tony tem um talento único para apontar o óbvio. — Você paga a primeira rodada hoje! Meu ME esboça um sorriso que faria um cacto secar, mas Tony está preocupado demais vendendo um pote de cerâmica para notar. Em cerca de duas horas, a maior parte de minha vida nerd foi vendida — principalmente para pessoas que não sabem realmente para que tudo aquilo serve. Cada venda foi como um pequeno ferimento, mas tento me reconfortar com a ideia de que Sarah provavelmente estava apenas sendo gentil quando declarou ter gostado do Jogo; ela não merece realmente sair com um Nerd, e essa é minha chance de ter um novo começo. Quero tornar-me digno dela. — Quer uma xícara? — pergunta Tony, em meio a uma nova nuvem de fumaça. — Acho que vi uma barraquinha de chá por ali. — Vou tomar uma água, obrigado. — OK. Ficará bem aqui sozinho por um minuto? — Acho que posso aguentar. Tony ri de um jeito condescendente e corre em busca de nossas bebidas. Há uma calmaria na multidão, então tiro alguns minutos para olhar em volta; talvez Sarah esteja aqui. Mas pensando bem, por que estaria? Esse não é o tipo de lugar onde acho que ela passaria seu tempo. Mais provavelmente está pintando em seu quarto ou se alinhando ao Universo. Talvez esteja pensando em mim. Queria poder ligar para ela, só para dizer que estou realmente trabalhando nessa coisa de Eu Psíquico. EP: Você tem dinheiro. Você mereceu. Pode resolver o que fazer com ele. É seu próprio mestre agora.
  • 157. Podia comprar um celular! Assim posso ligar para Sarah quando bem entender. Talvez essa história psíquica realmente funcione! Quando começo a contar os trocados em meu bolso, uma voz me tira de meu transe. — Olá, filho. O que está fazendo aqui? Segue-se um silêncio demorado e desconfortável. Sei qual é a regra para isso: se quebrá-lo, você perde. — Estou com uma barraca lá atrás; livrando-me de algumas coisas antes da mudança — continua papai. Não respondo. — Enviei algumas mensagens no Facebook. — Apesar de papai tecnicamente ter perdido, também parece que não ganhei nenhum tipo de prêmio. O antigo Archie rapidamente estaria procurando desculpas e meias-verdades em sua coleção mental de mentiras para controlar a situação. EP: Mentiras diminuem você. Elas corrompem seu alinhamento psíquico. — Eu vi. — OK. — Posso ouvir a frustração que ele tenta esconder. — Quando estava pensando em me responder? Estou com um limite de tempo, Archie. Vou embora fim de semana que vem. — Eu não havia decidido. — Não havia decidido? O que está havendo aqui, Archie? Isso é importante. Estou me mudando; quero passar algum tempo com você antes de ir. Minha cabeça está vazia. No espaço de dois minutos, pareço ter alcançado um estado que monges budistas demoram uma vida inteira de meditação para obter. Estou vazio. Papai suspira e repensa sua estratégia. — Olha... Entendo que possa estar chateado... Meu EP autoriza um ataque direto. EP: Agora é a hora de encarar seus medos! — Chateado? — Recuo como se tivesse sido atingido. Isso parece dar a meus braços mais espaço para se agitarem. — O que entende sobre isso? Você não sabe o que estou sentindo! Não sabe o que estou pensando! — Filho... — Não me venha com “filho”! Isso não é problema seu, é? É meu! — Apesar do volume que estou alcançando, sinto-me estranhamente calmo e, pela primeira vez, completamente certo. — Você tem sua nova família! Que bom para você! Vá com ela; não estou nem aí! — Archie! — sibila papai, ciente dos urubus cercando a mesa em busca de uma barganha. — Não é nada disso... — Não é? Para mim é o que parece! — Archie! — Ele se aproxima e aperta meu ombro com uma das mãos, como se estivesse tentando evitar que eu lançasse a mim mesmo para o espaço. — Sou seu pai,
  • 158. pelo amor de Deus! Você é meu filho! — Ei! O que está havendo aqui? Como se para criar uma fila indiana de conflitos, Tony apareceu atrás de meu pai e colocou uma de suas mãos em seu ombro. Considerando que ele também está segurando uma xícara de chá, uma garrafa de água e dois cachorros-quentes, aquilo não era uma façanha qualquer. Também é um Grande Erro. Papai se vira, usando o que chamo de “A Cara”. A Cara é quando os traços de meu pai parecem se solidificar e adquirir a aparência de uma tumba. Ela está firmemente presente agora. — E quem é você? — Papai não é um cara grande, mas o que lhe falta em estatura ele compensa em atitude. — Vamos todos apenas nos acalmar, certo? — Tony começa a colocar suas compras sobre a mesa. Apesar de eles nunca terem se encontrado, Tony já havia visto fotos de meu pai. E acho que papai acaba de perceber quem Tony é. — Por que apenas não dá o fora? Estou falando com o meu filho! EP: A verdade é libertadora. — Por que vocês dois não dão o fora? — berro, eufórico pela força que está agora a meu dispor. — Vocês me ouviram! Vocês dois! Deem o fora! — Em seguida, dou um chute na perna da mesa que a derruba sobre as pernas de meu pai. Ele tropeça para trás e puxa Tony, que grita quando o chá quente cai sobre sua camisa. — Archie! — implora papai, tentando se desvencilhar do abraço ensopado de Tony. Mas não ligo para quem esteja me chamando; já estou correndo, repetindo A verdade é libertadora em minha cabeça. Era uma frase de Somos todos nossas almas e, no momento, é a única coisa no mundo que faz sentido. Desvio e corto caminho entre os carros estacionados e não paro de correr, sem me importar onde vou parar. Preciso ver Sarah.
  • 159. VINTE Ao chegar à cidade, minhas pernas finalmente se cansam. Comprar um telefone parece uma ideia realmente boa; posso ligar para Sarah e combinar de encontrá-la em algum lugar, em vez de ir até sua casa. Eu simplesmente não aguentaria mais uma viagem para dentro da blusa de sua mãe hoje. Desabo em um dos bancos debaixo da torre do relógio e fico sentado, ofegante. Por um momento, apenas observo as pessoas cuidando de suas vidas: fazendo as compras da manhã de domingo, casais passeando. Tudo tem certo ar de sonho, como se eu não estivesse ali de verdade, e sim observando de outro lugar. EP: Isso faz parte de sua transformação psíquica. Parágrafos do livro de Sarah me vêm à cabeça, mas estão incompletos; não me lembro de como deveria estar me sentindo agora, então acho que vou improvisar. “Sua vida pode mudar de novas e poderosas maneiras”. Disso me lembro e, até agora, nesta manhã, posso confirmar os seguintes itens: Quarto eviscerado — OK. Amigo chateado — OK. Padrasto chateado — OK. Pai chateado — OK. Derrubar com um chute a mesa expositora como bônus — OK. Mas ainda não me sinto particularmente feliz. Não sinto nada particularmente. EP: Para alcançar a felicidade, precisa antes desfazer os nós de sua vida. O problema é que minha vida parece ter mais nós que uma corda de escoteiros. Mas estou determinado a resolver isso. Conto o dinheiro em meu bolso e descubro que a soma de minha vida nerd é de 27 libras e 65 centavos; todas aquelas horas pintando e me concentrando não me renderam nem trinta contos. Ainda assim, é melhor que uma injeção na testa. Minhas pernas, subitamente cansadas, me levam até a loja de telefones mais próxima. Infelizmente, minhas habilidades psíquicas não parecem fazer muito efeito no vendedor da loja, que não percebe exatamente a urgência da minha situação. Considero abanar meus dedos e persuadi-lo usando a voz de Obi-Wan Kenobi, mas penso melhor. EP: Ele não é evoluído. Sua insatisfação com o emprego reflete a insatisfação consigo mesmo. — Tem identidade?
  • 160. Minha dignidade psíquica tropeça por um segundo; não sabia que era preciso apresentar identidade para comprar um celular pré-pago. Infelizmente, a única coisa na minha carteira com meu nome e endereço é um cartão de sócio da Associação de Jovens Jogadores de RPG. Dez agonizantes minutos mais tarde, sou o orgulhoso dono de um novo celular, com direito a dez libras em crédito. O número de Sarah já está gravado em minha memória. Posso visualizá-lo, olhando de volta para mim do bloquinho ao lado do aparelho de telefone de minha casa. Quando estou prestes a ligar, escuto vozes me chamando. Por um momento, me pergunto se estou tão psiquicamente sintonizado que possa estar tendo minha primeira experiência com telepatia, mas não é isso. Na minha frente estão Matt, Ravi e Beggsy, parados do lado de fora do Casebre. Têm expressões no rosto que sugerem desconfiança e suspeita — o que já era de se esperar, é verdade; quando um nerd deixa o grupo, os nerds remanescentes fecham as portas. Conforme ando na direção deles, eles andam na minha. A única coisa que falta é o barulho das esporas. É um duelo. Estilo nerd. As coisas podem ficar feias. — Cara! O que está havendo, cara? — Nada. Só estou passeando pela cidade. Estamos agora entrando num tipo de Jenga conversacional; o menor gesto em falso pode fazer a coisa toda desmoronar. — Mas, cara. Que história é esse de você sair do Jogo? EP: Seja forte. Seja verdadeiro. — É, estou saindo. E daí? — Tento fazer isso soar o mais natural possível. EP: É o mundo deles desmoronando. Não o seu. — Não falei? — murmura Ravi. Até agora, Matt não falou nada; é com ele que preciso ter cuidado. Obviamente é o melhor atirador do grupo. Faz sentido — de todos os meus amigos, Matt provavelmente é o mais próximo de mim; no passado, ambos já reconhecemos os problemas que vêm com sermos Nerds. Admitindo aquilo um para o outro, também admitimos silenciosamente que existia vida além do Jogo — uma vida onde poderíamos nos encaixar e simplesmente nos tornar parte de um todo. EP: Talvez você possa usar esse conhecimento como uma vantagem. Talvez ele possa ser convencido a se juntar a você em sua busca. — Então qual é o problema? — Dou de ombros. — Não é como se vocês não pudessem continuar sem mim. — Cara! O Jogo é o Jogo, cara! — Uma das frases favoritas de Beggsy, criada para ser uma declaração que se adapta a qualquer argumento. Não dessa vez. — Mas é só isso que ele é, Beggsy. Um jogo. Não é real, é? — Dã! — Mais uma das frases favoritas de Beggsy. — A gente sabe que não é real, Archie. — Matt enfim fala alguma coisa. — Não é
  • 161. essa a questão. O que estamos realmente perguntando é por que você resolveu desistir do nada. — Seu rosto está sério e impassível, mas seus olhos ardem com uma intensidade que diz tudo. EP: Estão com medo. Com medo da verdade. Respiro fundo. — Olha, estou saindo do Jogo porque finalmente percebi que não quero ficar sentado em meu quarto toda noite, pintando miniaturas ou brincando de faz-de-conta toda sexta-feira. — Por que não? — Matt parece estar sinceramente tentando me compreender, então continuo. — Porque isso não resulta em nada! Somos como avestruzes, enfiando nossas cabeças na areia, evitando a vida, mas fingindo que não! Não estamos realizando nada; estamos só na mesmice! — Eu discordo. — Um tiro curto e certeiro, que me desarma rapidamente. — O quê? — Acho que está errado. Meu EP, aparentemente não familiarizado em escutar que está errado, agora tem uma pequena crise psíquica. Parece que será preciso voar às cegas por um momento. — OK, Matt — respondo assentindo com a cabeça, usando a velha tática “Estou dizendo seu nome para que saiba o quão sério estou falando”. — Então o que ele é? O que estamos fazendo quando jogamos aquelas partidas tão transformadoras de vidas? Diga-me. — Criamos coisas, Archie. Criamos coisas do nada. Somos como alquimistas. — Matt obviamente tem praticado suas habilidades de tiro. EP: Não lhe dê atenção. Está tentando desequilibrar seu alinhamento psíquico. — Alquimistas? Do que está falando? Somos pessoas que não se encaixam nem têm esperanças de se encaixar enquanto estiverem trancadas em seus quartos, brincando com o Jogo! Devíamos estar aqui fora... Correndo riscos! — Acho que disparei um dos bons, mas Matt fica apenas parado, piscando. — E se encaixar é correr um risco, então? — Quase sinto as balas voando rente a meus ouvidos. Minha própria mira incisiva parece estar meio ruim. EP: O argumento dele é baseado em medo. Ele não está realmente sintonizado consigo mesmo. — Você sabe o que eu quis dizer! O que vocês vão fazer? Passar o resto da vida nos seus quartos, brincando com miniaturas? — Provavelmente, não. Mas não preciso me encaixar para ser feliz. EP: Mostre a ele seus próprios medos. Veja o quanto ele é forte. — Você é feliz sendo um Nerd? — Falei a temida palavra com “N”, aquela que não deve nunca ser pronunciada. É como dizer “Voldemort” ou “Sauron”. Meus sentidos em desenvolvimento detectam uma mudança na atmosfera, como se uma nuvem negra pairasse acima do grupo. Mesmo diante daquilo, Matt parece inabalado pela acusação.
  • 162. Ele balança um pouco o corpo, pensando no que acabara de ser dito. Ravi e Beggsy olham seu líder, com as mesmas expressões nerds. — Para mim, Archie — começa ele —, todo mundo é algum tipo de Nerd. Futebol, filmes, música... Não importa qual é o interesse; se você sente fascínio por ele, então você é um nerd. Simples assim. Meu EP vacila. Será que Matt tem razão? Como se sentindo minha hesitação, ele continua: — Na verdade, as pessoas consideradas as melhores no que fazem são Nerds. Cientistas, atletas, atores, músicos, os melhores deles são SuperNerds; transformaram sua obsessão em carreiras, fazendo o que mais amam. O que há de errado nisso? Meu EP não tem mais munição, a não ser crueldade. Por mais que isso vá contra toda a teoria do alinhamento psíquico, me tira de um impasse muito rápido. — E o que você vai ser? O maior perdedor do mundo? Matt sorri, porém com tristeza. — Vejo você por aí, Archie. — Em seguida, ele se vira e anda de volta até o Casebre, com Ravi e Beggsy atrás. EP: Observe como ele ruiu frente à verdade! Mas tudo que vejo são três garotos, que costumavam ser meus amigos, indo embora para fazer algo que amam. ...Deixe uma mensagem após o sinal e ligaremos de volta assim que pudermos. Bip! — Er... Oi, Sarah... É o Archie... Podia me ligar de volta nesse número...? Depois de deixar meu número novo, bravamente desligo. Essa história de transformação psíquica está ficando difícil de lidar. Tudo o que pareço estar fazendo é criar uma confusão ainda maior do que aquela em que eu estava em primeiro lugar. EP: Não hesite face ao caminho da Gárgula. Pela falta de qualquer coisa que pareça um pensamento inteligente, começo a perambular na direção da casa de Sarah. Talvez seja assim que se sente uma Gárgula: sem amigos e sozinho. Talvez seja isso que você receba por suas afirmações e meditações. Talvez eu seja mesmo uma Gárgula. Com essa imagem em mente, arrasto-me pela calçada, sentindo cada vez mais como se fosse feito de pedra. Sinto-me feio e desolado. A única esperança que tenho é Sarah. Viro em sua rua e paro na frente de sua casa. O gato preto e branco aparece e dá voltas ao redor de meus tornozelos, mas não faço carinho nele. Aslan é um péssimo nome de qualquer maneira. Pelo efeito que faz, a aldrava podia ser feita de massinha. Sarah não está em casa.
  • 163. Talvez eu devesse meditar e tentar convocá-la, usando minhas habilidades psíquicas? Até mesmo meu EP tem a dignidade de não responder àquilo. Uma sensação desagradável está borbulhando dentro de mim, e me sento no chão com as costas contra a cerca viva de Sarah, tentando entender o que é. Por algum motivo, parece que estou tentando usar um chapéu que não cabe na minha cabeça. Antes de essa linha de raciocínio ter chance de continuar, um carro freia subitamente diante de mim. É meu pai. Lá vamos nós de novo. Mas em vez da Cara esperada, papai parece afobado e desce o vidro do carona. — Archie! Entre no carro! Aconteceu alguma coisa. — O que foi? — É o Tony... Ele está no hospital.
  • 164. VINTE E UM O medo é um maravilhoso foco para uma mente desordenada, e, nesse momento, estou mais nervoso que um gato numa sala cheia de cadeiras de balanço. O cheiro de purificador de ar dentro do carro de meu pai ameaça me asfixiar. — O que aconteceu? — pergunto, numa voz que não parece ser a minha. O rosto de meu pai está sério e tenso, mas ele está tentando não demonstrar. — Não sei. Depois de você... ir embora... ele simplesmente meio que ficou branco e desmaiou. Chamei uma ambulância, liguei para sua mãe e esperei com ele até chegarem. Ela está no hospital agora. — Meu Deus. — É, eu sei. — Como sabia onde me encontrar? — Eu não sabia. Estava a caminho da sua casa para ver se tinha voltado para lá. O que estava fazendo no chão? De quem é essa casa? — Só estava esperando alguém que não estava em casa. — Evito citar o gênero desse alguém para afastar mais perguntas. Seguimos em silêncio por alguns minutos. Não sei o que está se passando pela cabeça de papai, mas sei o que está se passando pela minha: tudo isso é culpa minha. Se eu não tivesse perdido as estribeiras, se não tivesse saído correndo, se não tivesse sido um tremendo babaca — nada disso teria acontecido. Papai sente alguma coisa em meu silêncio e para o carro. — Você está bem, Arch? — Não sei. — Sei o que está pensando, e não é verdade. Se era para acontecer, ia acontecer. Não quero ser cruel, mas ele não parece se cuidar. — Papai não está dizendo exatamente o que aconteceu com Tony, mas não é preciso chamar o Dr. McCoy para entender. — Não... não, ele não se cuida. — Ele ficará bem, tenho certeza disso. Mas e quanto a você? O que está acontecendo? Este é um território estranho para mim; eu e meu pai não conversamos sobre coisas realmente importantes, e não faço ideia de como reagir. Adoraria poder dizer algo significativo e profundo, provavelmente com um toque místico no meio, mas meu EP
  • 165. parece ter feito as malas e ido embora. E não posso dizer que sinta muito por isso. No entanto, tem uma voz na minha cabeça e por mais que ela seja muito, muito familiar e muito, muito bem-vinda, parece ter mudado um pouco. MI: Apenas diga a ele como se sente. Ela parece ter crescido um pouco. Respiro fundo e não me dou ao trabalho de relaxar meu traseiro. — Acho que tenho andado com raiva, pai. MI: Nada mal. Meio vago. Mas é um começo. — Por eu estar me mudando? — É. Papai se remexe em seu banco, e, com a minha visão periférica, posso vê-lo se inclinando, tentando olhar nos meus olhos. Quando me viro para olhá-lo, está sorrindo, mas é um daqueles sorrisos que as pessoas dão quando estão tentando segurar as lágrimas. — Sinto muito, filho — diz ele, numa voz embargada. — Foi uma decisão extremamente difícil. Foi mesmo. E pensei em você a cada momento. — Não pareceu que pensou. — Não, suponho que não tenha parecido. Devia ter falado com você desde o começo, mas não queria preocupá-lo; eu não sabia se ia acontecer ou não. Mas devia ter contado. Sinto muito. MI: Sua vez. — É. Eu também. Só me senti meio... de lado, acho. — Ele coloca uma das mãos em meu ombro, mas dessa vez gentil e sinceramente, assim como a expressão em seus olhos. — Sinto tanto, Archie. Me desculpe. — Ele respira fundo e tira lá de dentro algo que havia escondido. — Você é meu filho, Archie. Ninguém mais. Por mais que eu ame Jane e me preocupe com seus filhos, você é meu filho, e ninguém pode mudar isso. Ninguém. Estarei aqui sempre que precisar de mim e farei tudo que for humanamente possível para tornar sua vida boa. Sei que sou um pé no saco e que nem sempre digo a coisa certa, mas sou seu pai e o amo mais do que jamais poderia imaginar. — Uma lágrima está descendo pela sua bochecha. MI: Hora de dar uma trégua a ele. — Mas ainda vou ver você? Papai responde com um ruído que é uma mistura de alívio e dor, mas o sorriso que o acompanha é cheio de esperança. — É claro que vai! Meu Deus! Com o dinheiro que vou ganhar, podemos tirar férias juntos, vou comprar passagens de trem! Terei uma casa maior, você poderá ter seu próprio quarto. Estará dirigindo em três anos, Archie, vamos dar um jeito! — OK. MI: Entra a orquestra... É difícil se abraçar quando se está sentado na frente de um carro, mas damos um
  • 166. jeito. — Certo, então! — Papai seca seu olho da maneira que os homens fazem quando não querem admitir que estiveram chorando. — Está bem? Ótimo. Vamos até o hospital, sua mãe precisa de você agora. MI: E Tony também.
  • 167. VINTE E DOIS Não gosto de hospitais. Eles me dão medo. Nem mesmo das alas infantis; por mais que tentem torná-las acolhedoras com imitações pobres de personagens de desenho animado pintadas nas paredes, elas não escondem o fedor da ansiedade e de bolo de carne. Não me leve a mal, eu gosto de bolo de carne, mas uma porção de picadinho e purê de batata parece ter um cheiro diferente quando se está no conforto de sua própria casa. MI: Especialmente sem uma versão mutante do Mickey Mouse te observando. Não existem tais monstros pintados nos corredores que levavam à enfermaria cardíaca — o que provavelmente é uma coisa boa, considerando o estado da maioria dos pacientes que não param de passar por nós. Papai e eu andamos em silêncio, seguindo um conjunto de linhas amarelas no chão até nosso destino. MI: Não parece exatamente a Cidade das Esmeraldas. E não parece exatamente uma boa hora para piadas. Chegamos a uma pequena sala de espera com uma recepção movimentada, e nos dizem para esperar; ainda não podemos ver Tony — não somos da família, e estão “cuidando dele”. Aquela única frase inflama um medo dentro de mim que eu não sabia existir. — O que isso quer dizer, pai? Ele vai morrer? — Não consigo evitar. Tony pode ser um Imbecil, mas subitamente não quero perdê-lo. Seja pela culpa de poder ter sido o responsável por aquilo ou por finalmente perceber que ele faz mamãe feliz, eu não sei. Talvez as duas coisas. Ou talvez porque, debaixo de todas aquelas Conversas Imbecis, eu saiba que ele também se importa comigo. — Vamos nos sentar — sussurra papai, colocando um dos braços à minha volta. — Você está aqui; é tudo que pode fazer agora. MI: Aguente firme, Tony, seu... Imbecil. Meia hora depois, já li todas as colunas de conselhos de revistas femininas e começo a contar quantas lâmpadas tem o corredor atrás de nós. MI: Aí está sua iluminação psíquica! De repente, escutamos um barulho que parece ser um monitor cardíaco enlouquecido. Papai e eu olhamos à nossa volta, assim como as enfermeiras da recepção. MI: É o seu telefone! Rapidamente, remexo em meus bolsos até encontrá-lo. Há um número na tela que
  • 168. demoro um pouco para registrar, mas também há uma enfermeira atrás de mim em segundos, mandando firmemente que eu desligue o telefone, por favor. Com meu ME voltando à ativa e enviando cada glóbulo vermelho para minhas bochechas, procuro pelo botão que poderia dar um fim àquele barulho o mais depressa possível. MI: Só vamos torcer para que não tenha feito o mesmo por algum dos pacientes... Sorrio, me desculpando para todos me encarando, e afundo o máximo possível em minha cadeira. Papai se inclina para mim, cochichando daquele jeito que achamos que devemos fazer quando se está num hospital, apesar do fato de se ouvirem os típicos bipes, gemidos e o eco de saltos altos de enfermeiras por toda parte. — Achei que não tinha celular. — Existe uma acusação escondida ali, em algum lugar. — E não tinha. Acabei de comprá-lo. — Ah. Certo. — Segue-se um silêncio, durante o qual ele resolve mudar de tática. — Quem ligou? Alguém que eu conheça? — Apesar de ele estar sussurrando, posso ouvir os tons denunciadores de alguém tentando obter informações. — Na verdade, não... MI: Vá em frente... Construa essa ponte! — Era a garota que foi lá em casa no outro dia. Na noite do Jogo. — Ah! Espera aí... tipo uma namorada? — Ele diz aquilo com aprovação. Aqui meu ME assume uma postura inesperada e revela minha irritação por ser colocado debaixo de um microscópio mais uma vez; eu suspiro e reviro os olhos. Papai entende o recado. — Não quer falar sobre isso né? MI: Não brinca, Sherlock! — Na verdade, não. — É justo. Mas espero que você tenha mais sorte do que eu... — O que quer dizer? — Se ele está falando de mamãe naquela nebulosa declaração, dessa vez vou partir para a briga. MI: *Arregaçando as mangas* — O quê? Oh, Deus, não... Não quis dizer sua mãe! Não, me desculpe... Só quis dizer em geral. Sempre fui sem jeito com garotas. Meu MI e eu pensamos a mesma coisa ao mesmo tempo, então o que vem a seguir simplesmente sai sem eu pensar: — Deve ser mal de família. — Sorrio pesarosamente. — Mal assim é? Bem, o que vale a pena é apenas ser você mesmo. É o único conselho que posso dar. MI: Pode ser que valha a pena escutá-lo. Antes que eu possa responder, a porta da enfermaria abre, e mamãe sai de lá. Parece cansada, envelhecida e como se seus dutos lacrimais tivessem feito hora extra. Papai se levanta desajeitadamente e, em seguida, recua alguns passos, dando um pouco de espaço para mamãe e eu. Ela meio que corre até mim e me abraça; um daqueles abraços que
  • 169. revelam que a outra pessoa está precisando mais dele do que você. Retribuo o abraço e deixo que ela decida quando tiver sido o bastante. — Archie — funga mamãe —, o que está acontecendo? Onde você estava? — Como está Tony? Ele vai ficar bem? Mamãe parece se lembrar de que a sala de espera da enfermaria não é exatamente o melhor lugar para interrogar seu filho e se recompõe. — Sim, acabei de conversar com os médicos, e eles acham que Tony ficará bem. Foi um alerta. Acho que ele não vai mais fumar depois que sair daqui. — Posso vê-lo? — Agora não. Ele está muito cansado. Vou voltar mais tarde, mas acho que seria melhor você só vê-lo amanhã. — Não posso nem entrar por dois minutinhos? — Não, Archie. É melhor não. MI: Isso não é sobre você. É sobre Tony. Suas desculpas vão esperar até ele estar pronto para ouvi-las. — OK. Mamãe olha atrás de mim e vê papai. Ela sorri torto e, em seguida, me olha de volta. — O que aconteceu, Archie? — Acho que posso ajudar nessa parte. — Papai dá um passo à frente, mas ainda fica a uma distância cautelosa de mamãe. — Não é melhor tomarmos antes uma xícara de chá? Uma lanchonete de hospital não era exatamente o que eu tinha em mente quando fantasiava sobre uma reunião familiar. Papai vai buscar os chás enquanto mamãe e eu nos sentamos nos bancos da cafeteria com vista para a lojinha do hospital. — Está bem, mamãe? — O peso da situação parece tê-la deixado abatida, de modo que até mesmo seu sorriso parece exigir mais esforço que o habitual. — Sim. Melhor agora. Uma xícara de chá vai me ajudar. — Seus olhos param em papai na fila; cheios de tristeza e antigas lembranças. — O que aconteceu, Archie? MI: E agora é hora de mais um desafio conversacional do dia... Sei o quanto está em jogo aqui, então tento agir com cuidado, dando uma descrição simplificada do bazar. Meu ME tenta acobertar qualquer omissão gritante, mas o Polígrafo Humano não está engolindo. — E a parte sobre a qual não está me contando? MI: Ops. — Papai vai se mudar para York sexta-feira que vem. — O quê?! — Essa não era exatamente a reação que eu estava esperando. Na terra
  • 170. dos sonhos, mamãe subitamente perceberia que não podia viver sem ele, e papai provavelmente a olharia e resolveria reconquistá-la. Em vez disso, o olhar que mamãe lança à fila é o equivalente ocular a um golpe de caratê. Como se guiado por algum Deus travesso, papai perambula lentamente até nós, carregando uma bandeja e com uma expressão no rosto como a que se vê num manequim de loja. — Chá? — Ele sabe que aconteceu alguma coisa, mas parece achar que uma xícara de chá de alguma maneira vai resolver tudo. — Obrigada. — A resposta de mamãe é curta, reforçando o muro invisível que surgiu entre eles. — Que história é essa de você se mudar para York? Neste momento, é como se eu não existisse. Papai e mamãe estão se olhando fixamente, e a tensão é palpável. — Ah... — Aquela única sílaba confirma tudo. — E quando estava planejando me contar? Já não passamos por isso antes? — Quanto tempo faz desde que nos falamos? — Posso sentir as farpas no tom de voz de papai. — E isso é culpa de quem? — Mamãe tem lanças no seu. MI: Inútil! Isso é inútil! Meu ME concorda me fazendo soltar um suspiro afiado e, aparentemente, anestesiando os músculos de meu pescoço, considerando que minha cabeça cai para trás, então fico olhando para o teto. MI: Que é uma vista mais interessante que escutar essa conversa. Pela primeira vez, minhas ações parecem ter surtido efeito. Papai me olha, volta-se para mamãe e, então, para seu chá. Mamãe, por sua vez, também parece achar sua xícara incrivelmente fascinante. Segue-se a isso uma espécie de competição de suspiros enquanto meus pais olham o vazio, em busca de respostas. Finalmente, como se alguém tivesse derramado cola em seu banco, papai se levanta. — Melhor deixar para lá, não é? — Ele fala aquilo com um ar de resignação. Mamãe ganha a competição de suspiros com uma exalação monstruosa, os olhos ainda fixos em seu chá. — Não — responde ela, como se estivesse tentando convencer a si mesma. — Você está se mudando e pode ser que não possamos mais fazer isso. Sente-se. Vamos tentar resolver esse assunto. Papai se senta, e segue-se mais um silêncio pesado. — Archie — começa mamãe —, quer ir até a loja comprar uma revista ou alguma outra coisa? MI: O que basicamente significa “Livre-se da criança”. — Não. Acho que devo ficar aqui. Papai encara mamãe. Ela concorda com a cabeça de volta para ele. O fato de concordarem em alguma coisa — não importa o quão pequena — parece relaxá-los um pouco, e, então, começam a falar. Papai explica sobre seu novo emprego e como a vida
  • 171. será melhor para todo mundo com o salário que ele vai ganhar, como poderei pegar o trem para York e ele virá visitar-nos de vez em quando de qualquer maneira. Uma discussão começa a ganhar força quando debatem sobre quem vai ficar comigo, e mamãe sugere que papai precisará ser “mais confiável” e não cancelar um final de semana “ao primeiro sinal de um resfriado”. Isso obviamente irrita papai, e ele começa um discurso inflamado sobre como “alguns de nós precisam trabalhar para sobreviver”, mas mamãe se recusa a morder a isca e muda de tática. — Archie? O que acha disso? MI: Você acaba de ser proclamado um “adulto”. Não estrague tudo! Respiro fundo e, pela primeira vez na vida, digo exatamente o que penso. Não o que acho que as pessoas querem ouvir. — OK. — Respiro fundo, levando a coroa de Campeão de Suspiros Genéricos. — O que nenhum de vocês dois parece entender é como é ruim não se falarem. E por causa disso, não converso com vocês sobre o outro. Não converso com você — olho mamãe — sobre o papai, e não converso com você — vez de olhar papai — sobre a mamãe. Então converso sozinho. Provavelmente, bem mais do que vocês imaginam. E é aí que tudo dá errado. — Algo semelhante à vergonha cai como uma espécie de cessar-fogo sobre meus pais. — Num mundo ideal, gostaria de ver vocês dois o tempo todo. Mas sei que isso não vai acontecer. Então, se houver uma maneira de ligar para papai — olho mais uma vez na direção de mamãe — sem me preocupar com você ficar chateada, seria bom. E se você puder falar na mamãe — também ainda não terminei com papai — sem fazer disso grande coisa, também seria legal. Vocês dois fazem parte da minha vida, mas é como se um tentasse fingir que o outro não existe. E a meu ver isso é bem ridículo. MI: *Aplausos* Papai e mamãe se entreolham envergonhados, e, em seguida, começam a assentir sozinhos ao mesmo tempo, ambos perdidos em seus próprios pensamentos. Murcho um pouco e escuto meus batimentos cardíacos se desacelerando. — Trégua? — pergunta papai, finalmente. — Acho que sim — concorda mamãe, com um sorriso cansado. — Então, ótimo. — A cola do banco de papai obviamente secou. — Vou deixá-los sozinhos. Archie, ligo amanhã, e nos encontramos antes de sexta-feira. Para sair ou algo parecido. — Tá. — Então tá. Tchau. — Também estamos indo. Vamos sair com você. MI: Acalme-se, mamãe! A caminhada até a entrada principal é como andar em meio a areia movediça, mas eles conseguem completá-la comigo andando entre os dois. Finalmente saímos, e, depois de algumas despedidas desajeitadas, meu pai vai embora, e ando com mamãe até o carro. Quando fecho a porta, ligo meu celular, só porque posso. O número de Sarah está na lista de ligações perdidas.
  • 172. Quando mamãe dá a partida, o silêncio nos consome, mas nenhum dos dois parece notar. Os olhos de mamãe estão fixos na estrada, mas sua mente parece estar em outro lugar. A minha também; quando poderei ligar para Sarah? MI: Melhor esperar e ver como mamãe está antes de fazer qualquer coisa. — Archie... — É aquele tom de voz que revela que aí vem algo em que mamãe tem pensado há um tempo. — Sobre Tony... — Sim? — Sei que ele pode ser meio... — Imbecil? MI: Desculpe. Simplesmente saiu. Mamãe semicerra os olhos pelo retrovisor, como se alguém tivesse acabado de pisar no seu dedão do pé, mas está tentando não demonstrar. — Não era bem o que eu ia dizer — continua, de lábios franzidos. — Ia dizer que ele pode ser meio “difícil”. — Ela coloca ênfase o bastante na última palavra para que soe como uma nova palavra a ser incluída em meu vocabulário. — Mas precisa se lembrar, Archie, que assim como você está aprendendo coisas sobre ele e descobrindo o que gosta e o que não gosta, ele está descobrindo as mesmas coisas sobre você. MI: Chegando! Alerta de novo pensamento! Prepare-se! — O quê? Ele não gosta de mim? — Não! Não foi isso que quis dizer! — Ela demonstra sua frustração quando troca de marcha, enquanto mostra estar se acalmando ao frear gentilmente. — Tony não tem filhos. Não sabe nada sobre filhos. E está tentando aprender. — Bem, e eu nunca tive um padrasto antes. — É rabugento e petulante, mas mamãe não reclama. — Mas é disso que estou falando, Archie. Sei que isso é difícil para vocês dois, especialmente morar juntos pela primeira vez. Mas você não tem sido a pessoa mais fácil de se conviver ultimamente, tem? E Tony percebeu; ele não é burro. Pode ser um imbecil, mas é um imbecil que se importa com você e está tentando muito conhecê-lo melhor. MI: Sua mãe acabou de dizer “Imbecil”! Duas vezes! — É... OK. Desculpe. Ando meio estressado ultimamente. — Agora sei disso. Por que não disse nada antes? MI: É uma boa pergunta. Merece uma boa resposta. — Sei lá. MI: Gooooooool! Mamãe desconta sua insatisfação com mais uma irritada mudança de marcha. Preciso falar a verdade. — Não quis que ficasse chateada e achei que eu saberia lidar sozinho. — Archie, sou sua mãe... MI: Bem, pelo menos isso está esclarecido, então. — ...E você devia poder conversar comigo sobre qualquer coisa. É para isso que
  • 173. estou aqui. As pessoas precisam conversar; guardar as coisas só torna tudo pior. Se não puder falar comigo, converse com seus amigos ou com seu pai. — Ou com Tony... — Não estou esperando uma transformação da noite para o dia, Archie, mas, sim, quando for a hora certa. Converse com pessoas que gostam de você. — OK. Desculpe. — E pare de se desculpar. — OK. Como você está, mãe? Segue-se mais um silêncio enquanto mamãe analisa minha pergunta. — Estou bem — declara ela, finalmente. — De um modo estranho, acho que isso aconteceu para melhorar as coisas. É óbvio que estou preocupada com a saúde de Tony, mas os médicos parecem estar confiantes de que se ele parar de fumar e se alimentar melhor vai ficar bem. — E pelo menos você e papai voltaram a se falar. O que aconteceu, mamãe? Por que pararam de falar um com o outro? O que foi? A resposta de mamãe é medida e pensada, como se estivesse tentando resolver um jogo de Sudoku. — Se eu responder, Archie, você vai precisar perguntar a mesma coisa a seu pai. Só posso contar a minha versão da história, e ele só pode contar a dele. Você vai acabar ouvindo duas histórias diferentes e pode escutar nós dois dizendo coisas desagradáveis um sobre o outro. Se puder aguentar isso, então revelo a você o meu lado da história. Mas precisará pedir a seu pai também... E daí poderá formar sua própria opinião. MI: Nunca recebemos uma resposta direta quando precisamos dela... — Vou pensar no assunto. Mamãe sorri. — Que bom. — Você vai ficar bem? O Detector de Segundas Intenções de mamãe se acende. Ela tem uma habilidade impressionante e frequentemente enervante de perceber quando estou tentando perguntar alguma coisa sem realmente perguntar. — Precisa estar em algum lugar? — Há um tom de travessura em sua voz. Silenciosamente, amaldiçoo minha transparência. — Pode me deixar no centro da cidade?
  • 174. VINTE E TRÊS Eu poderia ter pedido a mamãe para me deixar na casa de Sarah, mas parte de mim ainda quer fingir que ninguém sabe o que estou aprontando; que meu segredo ainda é meu segredo. Isso também me dá algum tempo para pensar no que vou dizer a ela. Com tudo que me aconteceu nas últimas horas, meus pensamentos estão rodando tão rapidamente dentro de minha cabeça quanto o Super-Homem depois de comer muito açúcar. Pego meu celular e, antes que perca a coragem, respiro fundo e ligo de volta para Sarah. — Alô? — Sarah? — Não, é a mãe dela. Quem está falando? Imagens de sutiãs recheados pulam como cabras na minha imaginação. — Ah, olá. É o Archie. Desculpe. Pensei que fosse Sarah. Escuto uma leve risadinha do outro lado da linha e percebo que posso ter acidentalmente elogiado a mãe de Sarah. MI: Guarde essa para usar no futuro. — Desculpe, Archie, não é. Ela foi à cidade encontrar alguém. Quer deixar recado? Eu poderia pedir o celular de Sarah, mas, na minha cabeça, aquilo seria como pedir a mão de sua filha em casamento. Bravamente, perco a coragem. — Er... Não, obrigado. Ligo para ela mais tarde, se não tiver problema. — OK. Tchau. — Uma parte remota de mim pensa ter escutado certa decepção em seu tom de voz. Mas só consigo pensar em sutiãs. MI: Sarah está no centro da cidade! Poderia procurá-la. Apesar do time de ginástica olímpica que acaba de começar sua apresentação dentro de meu estômago estar caprichando, resolvo ir fundo naquela ideia. Agora tenho uma Missão — algo em que me focar. Preciso encontrar Sarah. Por onde começar? Todos os arquivos em minha mente que dizem respeito aos hábitos diurnos das fêmeas da espécie ainda precisam ser escritos; o que garotas fazem num sábado no centro da cidade? Vão às compras? O que elas compram? MI: Sutiãs. Embora a ideia de vasculhar lojas de sutiãs me encha de frisson e ansiedade, a ideia de Sarah estar por aí procurando uma coisa dessas não parece exatamente crível. Acho que ela estaria em algum lugar mais espiritual, um lugar mais elevado, um lugar como...
  • 175. MI: A Loja do Amor Não Correspondido! Demoro segundos para correr até o beco e, bem na hora em que estou virando a esquina, os Deuses do Destino sorriem para mim: Sarah sai da loja. Com a mesma rapidez, os Deuses do Destino decidem que está na hora de esvaziarem suas bexigas, coisa que fazem com uma precisão formidável. Jason Humphries sai logo atrás de Sarah pela porta de vai e vem. MI: Todas as frequências de comunicação enguiçadas! *Ruído de estática* Jason Humphries saindo da loja atrás de Sarah. Jason Humphries atrás de Sarah. Jason Humphries. Meu ME é completamente neutralizado, e fico parado como um dublê de espião feito de papelão na entrada do beco. Felizmente, meu MI muda para o manual, e consigo recuar de volta na esquina. MI: TemquehaverumaexplicaçãoTemquehaverumaexplicaçãoTemquehaverumaexplicação! Arrisco olhar de novo; Jason e Sarah estão caminhando na minha direção, mas ambos parecem envolvidos demais numa conversa para me notar. Jason está segurando um pequeno saco de papel que guarda no bolso, e Sarah obviamente está tentando explicar algo a ele; ela gesticula animadamente e tem uma expressão entusiasmada. Apesar de suas manchas roxas estarem sumindo, Jason parece um Frankenstein recém- ressuscitado. Pergunto-me se a mãe de Sarah poderia ter passado arnica em seus machucados também, e, mais uma vez, minha mente é tomada por sutiãs. Me escondo atrás da esquina mais uma vez e rapidamente encontro uma vitrine na qual posso fingir estar concentrado. Perfumes nunca pareceram tão interessantes. MI: Vamos lá, Sherlock — use o vidro! Vejo o reflexo de Sarah e Jason passando atrás de mim, absorvidos por sua conversa. MI: O que deve estar levando o cérebro de Jason ao limite de esforço. Eles passam para a minha esquerda, e arrisco mais uma espiada: parando embaixo da torre do relógio, Jason indica com o polegar a direção de onde acabaram de vir. Algum tipo de adeus é trocado, e, apesar de não haver beijos, há sorrisos suficientes, e Sarah diz alguma coisa séria antes de continuar sua jornada. Jason começa a refazer seu caminho, então volto minha atenção para um vidro de Eau de Alguma Coisa Qualquer. Estou tão imerso no conteúdo do vidro rosa diante de mim, que não percebo Jason até suas mãos grossas me puxarem pelo pescoço. Com o mesmo esforço que eu faria para apanhar um gatinho do chão, ele me puxa pela esquina até o beco. — Nerd — sibila, enquanto me joga contra a parede. Sua testa se franze, e os olhos azuis se destacam contra os machucados embaixo deles. — Pensou que não tinha te visto? MI: Pai Nosso, que estais no Céu... Os conhecimentos e experiências acumulados por meus ancestrais nerds me
  • 176. programaram para esse momento; eu reajo sem nem precisar pensar no assunto: na velocidade da luz, bravamente fecho os olhos e me encolho. MI: Não poderão nem deixar meu caixão aberto depois disso... Imagens de meus pais chorando, Tony gemendo, e Sarah rangendo os dentes acima de meu corpo espancado passam por meu telão de cinema interno enquanto espero apavorado pelos golpes. — Olhe para mim quando falo com você! MI: Qualquercoisaqualquercoisaqualquercoisa! Apavoradamente, descolo minhas pálpebras uma da outra e encaro a Face da Morte. Que tem cheiro de cigarro. Jason parece estar lutando contra alguma coisa — provavelmente um pensamento. Até mesmo seus dentinhos amarelos parecem estar se juntando, rangendo tanto que já deveriam estar soltando faíscas. — É um menino de muita sorte — grunhe ele, parecendo uma Entidade Cruel. — Quer saber por quê? Na ausência de uma corda vocal que ainda funcione, balanço a cabeça o mais rapidamente que consigo. Minhas mãos parecem estar massageando seus pulsos, como se minhas suaves ministrações pudessem fazer a mão dele largar minha garganta. — Porque aquela garota gosta de você. — Noto que ele não diz o nome dela, o que sugere ao meu sempre ativo Departamento de Paranoias que ainda existe alguma distância entre Sarah e ele. Não apenas emocional, espero. Há algum tipo de entrelinha aqui; ao me dizer que tenho sorte por Sarah gostar de mim, ele também está me dizendo que também gosta dela e, para manter qualquer relacionamento com ela, não pode me dar o tratamento de sempre, que já é automático para ele. MI: Mas eu ainda não começaria a relaxar... Não com uma das mãos dele em volta de sua traqueia. — OK — gaguejo, numa voz como a de alguém que ficou as últimas quatro horas inalando gás hélio. — OK. — Mas diga a seu amiguinho que se ele não apagar aquela porcaria no Facebook até hoje à noite, então estarei atrás é dele. Entendido? Oh, sim, entendido. Entendi mais rápido que tabuada de dois. Expresso minha compreensão com uma série de animados acenos de cabeça e alguns guinchos de afirmação tão agudos que são capazes de atrair todos os cachorros num raio de quilômetros. Mas Jason ainda não terminou; ele se aproxima mais, só para que eu nunca esqueça cada cicatriz e cada músculo de seu rosto amedrontador. — Sortudo — grunhe Jason mais uma vez, antes de me atirar no chão. — Levanta. E cai fora. Nerd. Nunca antes obedeci às ordens de alguém com tamanho entusiasmo. Escorregando, derrapando e me ralando para ficar de pé, me viro para olhá-lo e, em vez de responder com alguma frase de efeito, acabo agradecendo. Em seguida, caio fora. A toda velocidade. Antes de disparar de volta até o retiro élfico que representa o número 78 da Davenport Road, ainda há algo importante que preciso fazer. Estimulado pela descarga
  • 177. de adrenalina depois das benevolentes ameaças de Jason Humphries, viro correndo a esquina; em parte agradecido por estar vivo e em parte apenas para o caso de ele ter mudado de ideia e decidido me perseguir. MI: Nenhuma nuvem de poeira no horizonte — mas continue correndo. Entro disparado no Casebre, imediatamente aliviado pela atmosfera quase religiosa de seu interior. Minha chegada explosiva faz cabeças se virarem para mim enquanto nerds em busca de paz registram o que poderia ser uma ameaça em seus detectores; até mesmo Big Marv meio que se ergue de seu banco, antes de voltar a trabalhar na miniatura que está pintando atrás do balcão. Como já esperava, Matt, Ravi e Beggsy estão aqui, olhando dentro das embalagens de plástico, em busca de novos desafios e montanhas para escalar. — Beggsy! — Ofego um pouco alto demais em seu ouvido. — Cara? O que foi? — Parece não haver nenhuma sombra de recriminação em seu rosto, apenas preocupação. — Beggsy... Acabei de falar com Jason... Humphries... Ele viu... o Facebook... É bom você... apagar... ou então... você já era...! Beggsy reage no clássico estilo Nerd: fica branco como um fantasma e olha ao redor em busca da ajuda de ninguém em particular. — Até... hoje à noite... — continuo, com esforço. — Cara! Merda! É pra já! — guincha ele, parecendo-se estranhamente com Lisa Simpson, e sem se despedir de ninguém, sai correndo do Casebre para chegar logo em casa e salvar sua pele. Apoio minhas mãos nos joelhos e fico ofegando olhando o chão. — O que está fazendo aqui? — Matt não é assim tão fácil de reconquistar. — Achei que havia “desistido”. MI: Uma coisa de cada vez. Quando minha respiração se normaliza, endireito as costas e, ignorando Matt, me viro para Ravi. — Ravi, amigo — começo. Usar a palavra “amigo” é um método Nerd de deixar claro que se está desarmado. A não ser, é claro, que estejam discutindo, quando aquilo sugere alguma intenção hostil. É complicado. — Te devo desculpas. Sinto muito mesmo. Andei passando por uma fase estranha, e você me pegou numa hora ruim hoje de manhã. Desculpe. O problema dos nerds é que se lembram das coisas ruins. Durante um ano, você poderia elogiar um nerd mil vezes e insultá-lo apenas uma. Na véspera de Ano-Novo, poderia perguntar a ele do que se lembra mais dos últimos 365 dias e, tão certo quanto Gandalf ser um Servo do Fogo Secreto, ele vai se lembrar apenas do insulto. É como nos protegemos. Alguns podem dizer que essa não seja exatamente uma postura muito otimista, mas é como somos. — E é isso que serve de explicação hoje em dia, é? — Ravi obviamente está usando telepatia para se comunicar com Matt; os dois parecem não estar convencidos. MI: Promova-os a “adultos”; veja no que vai dar.
  • 178. — O que estão fazendo agora? — Estamos parados aqui, falando com você! — rebate Matt. — OK. Vamos sair e tomar uma Coca-Cola ou algo assim. — O que quer dizer? — Um convite para sentar num café poderia não parecer tão inusitado, mas Nerds costumam evitar se sentar para conversar em lugares públicos. — Vamos lá. — Indico a esquerda com minha cabeça e ando na direção do café do outro lado da rua, sem esperar pelos protestos. Até eles chegarem e estarem parados na frente dos sanduíches, já estou com uma bandeja e três cocas. Sinalizo uma mesa ao lado da janela, e todos nos sentamos, tentando não fazer barulho com nossas cadeiras. Outro problema em ser Nerd é meio que um paradoxo: Nerds têm certeza de que todos os estão observando e, no entanto, só conseguem chamar ainda mais atenção se esforçando tanto para parecerem invisíveis. Enquanto isso indica um enorme complexo de inferioridade, também indica um ego enorme e frágil. Estou lidando com dois vasos da Dinastia Ming no momento. MI: Hora de começar a falar, Archie. Com “F” maiúsculo. — OK, pessoal — começo —, devo uma explicação a vocês. — Sim. Acho que deve. — A reação de Matt me faz pensar em abordar o assunto com o máximo de responsabilidade que puder. Começo com a revelação de papai estar indo embora, então conto sobre ver Sarah e Jason Humphries juntos, depois volto ao bazar e a Tony. Não é exatamente cronológico, mas vou falando conforme vai parecendo ser relevante. — Então por que estava vendendo suas coisas? — pergunta Ravi. — Ainda está no Jogo? MI: Achou que ia se livrar dessa, não achou? É verdade. Eu deliberadamente não mencionara Sarah ter lido minha aura nem meu MI nem o EP — em parte porque sei como deve parecer maluquice de fora da concha protetora de minha cabeça; em parte por não querer que Sarah levasse a culpa por eu ser tão estúpido. — Acho que Archie tem mais com o que se preocupar do que com o Jogo nesse momento. — Fico grato pelas táticas diversionistas de Matt. Posso ver em seus olhos que ele sabe que há mais por trás de minha história do que estou revelando, mas não preciso contar tudo agora. — Deus... sim. Desculpe, Archie... — gagueja Ravi. — Espero que esteja tudo bem. — Não se preocupe. — Sei por que ele perguntou; por mais que esteja tentando entender o que me fez rejeitar o universo Nerd, ele também está tentando entender como aquilo afeta sua vida. — Vai ficar tudo bem. E sim, vou voltar ao Jogo. Vou precisar começar tudo de novo, no entanto... Vendi todas as minhas tintas e miniaturas. — Por que não nos contou tudo isso antes? Devíamos ser amigos. MI: O Senhor da Justiça, Matt, pede uma boa resposta.
  • 179. Estranhamente, só a descubro conforme ela sai de minha boca: — Acho que falar sobre o assunto tornaria tudo mais real. Se eu mantivesse aquilo na minha cabeça, e ninguém mais soubesse a respeito, então eu meio que podia fingir que não estava acontecendo. — Ah — assente Matt sabiamente. — Quer dizer como um avestruz. MI: Touché! — É. — Dou um sorriso pesaroso. — Igualzinho a um avestruz. Me desculpe quanto a isso. — Esquece. Bem-vindo de volta. Seu Nerd. — Aquela palavra nunca pareceu tão bela. — Então, o que vai fazer agora? MI: Sarah! — Na verdade, preciso ir e falar com uma pessoa antes de ficar tarde demais. Posso ligar pra você hoje à noite? — Claro. Deixo Ravi e Matt com suas Coca-Colas. Embora a Sociedade possa ter sido temporariamente separada, para mim a Missão ainda está de pé. Apesar dos movimentos exaustos de minhas pernas pouco usadas e agora exercitadas demais num só dia, estou andando com determinação. Preciso ver Sarah e espero que ela tenha ido para casa após seu tête-à-tête com aquele brutamontes. Mas o que vou dizer a ela? MI: Casa comigo? Estou apaixonado. Não há como negar isso. Ela é a Galadriel do meu Frodo, Uhura do meu Spock, a Branca de Neve de meus Sete Anões. MI: Feliz, Dunga, Soneca, Atchim, Zangado, Dengoso e... Nerd? E aí está o problema: sou um Nerd até o último fio de cabelo. Tenho “Nerd” estampado pelo corpo todo, provavelmente em runas arcaicas. É quem eu sou, e não há como escapar. Tentei ser outra coisa, e simplesmente não dá certo. MI: Ou dá...? Ou deu? Talvez haja mais por trás dessa história de alinhamento psíquico do que eu pensava. Talvez passar por aquilo tenha me feito criar um laço mais forte com Sarah que não poderia ter criado antes. Talvez agora estejamos psiquicamente em sintonia um com o outro, de modo que eu não precise mais fazer minhas afirmações toda manhã. Talvez tenha me tornado homem, finalmente merecedor de alguém tão linda quanto ela? MI: Ainda acho que um bigode daria o toque final. Talvez eu finalmente esteja além do universo de bigodes e sutiãs. Talvez isso seja Amor Verdadeiro, do tipo que transcende pelos faciais e roupas íntimas. Acho que
  • 180. nunca mais vou folhear um catálogo da Next. Tudo está fazendo sentido: o foco não era minha aura nem meu EP — eles eram apenas veículos para que eu finalmente entendesse, completamente, o que significa estar Apaixonado pela Primeira Vez. Como aquela parte de O Senhor dos Anéis, quando Frodo usa a luz dada a ele pela Rainha dos Elfos, posso sentir essa revelação tomando conta de mim e agora já sei o que vou dizer a Sarah. Ensaio mentalmente, ao som de uma orquestra completa. Entro no quarto dela, e, sem dizer uma palavra, na mesma hora ela percebe a diferença em mim. Nossos olhares se encontram, e todo o resto parece insignificante. Ela se levanta de sua cadeira, deixando cair o desenho que acabara de fazer, e anda na minha direção. Ambos estamos meio radiantes com a luz espiritual que irradia de dentro de nós. Quando vai atravessar o quarto, ela cambaleia e cai, indo parar direto em meus braços. Eu a seguro e consigo apanhar junto o desenho que ela deixara cair. É uma fada, mas não uma das ninfas sensuais que cobrem suas paredes. Sou eu. *Música aumenta num crescendo.* Sorrio para ela, e, então, nossos lábios se tocam numa confirmação final de nossa unidade psíquica. MI: Essa maldita calça jeans está apertada demais. Apesar de parar para ajustar os conteúdos de minha calça, praticamente deslizo pelo resto do caminho até Davenport Road, mais uma vez absorvendo energias místicas que parecem estar saindo de todas as árvores, com todos os cantos de pássaros, e do gato preto e branco que deita debaixo do sol de fim de tarde do lado de fora da casa número 78. — Olá, Aslan. — O nome subitamente parece apropriado, e faço um carinho no gato. — Sabia de tudo o tempo todo, não sabia? — Aslan ergue o queixo para mais um carinho e ronrona, concordando. Não tenho nenhum pressentimento dessa vez — não sinto como se não merecesse o que está por vir. A Missão finalmente está chegando ao seu fim; como Aragorn, despi minha casca terrena e me transformei de um humilde Andarilho em Rei, que finalmente merece sua Rainha. MI: Jason Humphries não vai gostar nada disso. Não importa quem não vai gostar; Sarah e eu teremos um ao outro; o escudo psíquico de nosso amor repelirá qualquer um que queira nos separar. Abro o portão e caminho sobre o cascalho. — Olá, Archie. — A mãe de Sarah está regando uma roseira e se levanta, rapidamente me agraciando com a oportunidade de olhar suas Montanhas da Névoa. Mas eu não aproveito. Estou acima de tais coisas e não gostaria de diminuir a ela nem a mim com tais pensamentos. — Olá. Sarah está em casa? — Sim. Está lá em cima. Como está seu olho? — Funcionando perfeitamente, obrigado. — Sorrio, um retrato de autoconfiança e alinhamento espiritual. Até mesmo dou uma piscadela, só para mostrar como estou
  • 181. curado. MI: Parece que estamos tendo uma avaria aqui, amigos. Por favor, tenham paciência. — Óootimo — responde ela, arrastando o som da vogal, como se estivesse distraída com alguma coisa. Talvez já tenha percebido minha transformação. MI: Todos os sistemas parecem estar fora do ar. Tentaremos reparar o defeito o mais rapidamente possível. Por favor, tenham paciência. E evitem manusear maquinarias pesadas. Ou falar. — Posso...? — Aponto com o polegar a porta de entrada, que está entreaberta. — Pode, pode, é claro. Pode subir. Vou levar algo para beberem em um minuto. — Obrigado. — Com um último sorriso de vitória, me viro e entro na casa. O cheiro de incenso me atrai como um ímã escada acima até o quarto de Sarah. Sua porta está fechada, e demoro um instante para passar meus dedos pelo cabelo e respirar fundo pela última vez. Vou fazer isto. Vou me curvar ao vento. É Agora ou Nunca.
  • 182. VINTE E QUATRO — Pode entrar. O quarto de Sarah é exatamente como me lembro, e o ar cheira a patchouli. É como um templo. Sarah está sentada numa das almofadas espalhadas no chão, usando calça jeans branca e uma camiseta branca. Ela é a Beleza em pessoa. — Ah, oi, Archie. — Ela abre um enorme sorriso, fechando o livro que estava lendo. — Mamãe me disse que você ligou, e tentei ligar de volta, mas seu telefone estava desligado. Não conseguiu ficar longe, hein? — Ela completa essa pergunta erguendo uma das sobrancelhas e dando uma risada que faz meu estômago parecer querer derreter. — Mais ou menos isso. — Sorrio e me sento na almofada em frente à sua. MI: Boa resposta. Confirma a sugestão tímida dela de um jeito divertido. Todos os sistemas ligados. Estamos agora viajando numa velocidade confortável. — Como está seu olho? — É, está bem. Aquela tal de arnica é boa, não é? MI: Excelente! Ao completar sua frase com uma pergunta, ela será forçada a comentar, e a dança pode começar. — É. MI: Ops! A conversa ameaça morrer, mas Sarah oferece a ela respiração boca a boca. — Como está se saindo com os assuntos psíquicos? MI: Perfeito! Um apoio para o pé! Comece a escalar! No entanto, acho que acabo de descobrir que tenho vertigem; meu coração começa a bater como um tambor, e as palmas de minhas mãos começam a suar, fazendo-me esfregá-las uma na outra como se estivesse tentando usá-las para acender uma fogueira. MI: Prossiga devagar. — Bem... eu... er... É meio sobre isso que queria falar com você. — OK. — Mais uma risadinha e mais um nó em meu estômago. — É... MI: Qual é! Recomponha-se! — É. Essa coisa psíquica. Notei uma mudança. Sarah assente; está cheia de ansiedade, e seus olhos estão arregalados, como um cachorrinho que acaba de ver um osso pela primeira vez. Penso um pouco mais no que
  • 183. quero dizer, mas a realidade é muito mais assustadora que a fantasia. Falar com meus pais foi mais fácil que isso, mas está na hora de arriscar. — É. Sinto estar fazendo conexões importantes com as pessoas próximas a mim. — As palavras são lentas e desajeitadas, como se fossem do formato errado para minha boca, e pareço não conseguir pronunciá-las direito. — Isso é ótimo, não é? Não é o que você queria? Tento mais uma vez. — Sim. É ótimo. Mas estou percebendo conexões também. De outras pessoas. Pessoas como eu. — Todos nascemos com habilidades psíquicas, mas nos esquecemos como usá-las. Tudo que precisa fazer é não se apressar para se concentrar no que você quer da vida e daqueles à sua volta, e vai se surpreender ao notar como as coisas mudam depressa. De repente, as pessoas tornam-se mais claras para você. MI: Isso poderia ser uma dica. MI: E poderia não ser. MI: Mas poderia. Nossa, isso é difícil. Mas é uma porta de entrada. Meu ME opta por suar ainda mais e em remover qualquer circulação de sangue de meu rosto — provavelmente para evitar que eu fique corado em algum momento. Entretanto, provavelmente, estou agora parecendo um saco de farinha suado. — É isto que quis dizer. É como se eu pudesse ver as pessoas melhor agora. Posso ver do que elas têm medo. — Como o quê? — Como dizer o que realmente querem dizer. — Tento dar algum significado a essa declaração me inclinando para a frente e encarando seus olhos, mas rapidamente me dou conta de que devo estar parecendo algum tipo de serial killer; então finjo que tem alguma coisa no meu olho e o esfrego com um dedo. Isso não está exatamente se desenrolando como eu planejara. — A maioria das pessoas nunca diz o que quer dizer. MI: Poderia ser uma pista! MI: Mas, pensando bem... — Eu sei! E queria que as pessoas simplesmente fossem honestas comigo! Isto é, se você tivesse algo a me dizer... — Nesse momento meu coração se acelera para uma velocidade maior que a do som. — Seria honesta comigo, não seria? MI: Boa! Você passou a bola para ela! Um pouco covarde, talvez — mas não há nada de errado nisso. Sarah reflete sobre minha pergunta com a graça de um cisne. Seus olhos miram o teto, como se a resposta fosse vir do ar, e me vejo hipnotizado pelas delicadas curvas de seu pescoço. Não que ela tenha o pescoço igual ao do E.T. ou algo assim. Depois de um instante ou dois, sua antena psíquica obviamente sintoniza na frequência certa. — Se achasse que você poderia aguentar, sim. Sim, eu seria. Se fosse algo sério.
  • 184. MI: VAI! VAI! VAI! — E é? — O quê? — Sério? — O quê? — O que você quer me contar. MI: GENIAL! Sarah apenas pisca. Como se não soubesse do que estou falando. MI: Mas isso não vai colar com você — o Leitor de Pensamentos Mestre! — Não existe nada que eu queira contar a você, Archie. Agora sou eu que começo a piscar. Acho que estou enviando um sinal de SOS com minhas pálpebras. — Não tem? — Não queria soar tão chocado assim, mas acho que soo. — Não! — Sarah ri e franze o cenho ao mesmo tempo. — Como o quê? — Como... — Co-mo...? — Ela repete o que eu digo, coagindo meu pensamento a sair pela minha boca. Resolvo tentar uma tática diferente. Acho que ela não está entendendo direito o que estou tentando dizer. A verdade brutal vai resolver. — Como eu te amo. Um silêncio de estourar os ouvidos. — O quê? — Risadas de incredulidade. — O quê? MI: Você, meu senhor, é um babaca. — Estou apaixonado por você. — Tenho total consciência de que isso não terá o resultado que eu achava que teria, mas por algum motivo minha boca não para de falar. — Me apaixonei por você. — Ar-chie! — Seus olhos estão arregalados de espanto/horror/nojo, escolha qualquer opção. Agora não importa. Posso sentir as estruturas de suporte em minha cabeça rachando e se despedaçando enquanto ela balbucia as palavras seguintes: — Mas você é meu amigo! Amigo. Não poderia existir uma palavra mais desoladora. Amigo significa barreiras. Amigo significa que seus sonhos vão continuar sendo apenas sonhos. Amigo significa que sua mão para sempre não terá outra para segurar, que seus lábios para sempre permanecerão não beijados. Amigo significa que devia ter se colocado em seu lugar e ficado lá. — Mas pensei... — Queria que minha boca conseguisse se calar. O rosto de Sarah se suaviza, e ela adquire uma expressão de preocupação. — Archie... eu sinto muito mesmo, mas... não sinto a mesma coisa. Meu ME reage com uma série de acenos de cabeça silenciosos. Sarah me encara; ela é tão bonita que dói só de olhar. — Archie... quando isso aconteceu? Há quanto tempo você...? — A pergunta fica no ar como um fantasma. E agora devo cortar o cadáver e dissecá-lo na frente dela. O
  • 185. mais triste é que estou preparado para fazer isso, caso o sentimento de pena possa fazê- la mudar de ideia. — Quando a vi na loja. Mais incredulidade. — Sinto muito... MI: Bisturi. — Não. Está tudo bem. MI: Primeira incisão. — E depois? MI: Serra para os ossos. — Eu só achei... Você gostou do Jogo... — Brilhante. MI: Separadores de costela. — E depois? MI: Órgãos principais intactos. — Depois da briga... você me convidou para vir aqui... MI: Espera aí... — Achei que podia ajudar, Archie! MI: O coração deste homem parece ter sido arrancado! — Mas você me beijou! A voz de Sarah fica ainda mais gentil. — Na bochecha, Archie! Era meu amigo. Estava passando por um momento difícil. Caio num silêncio profundo e imóvel. Não há nada como assistir a sua esperança sendo sugada pelo ralo para fazê-lo desistir de lutar. — É o Jason? — É um golpe baixo, mas vou dá-lo assim mesmo. — O quê? — Jason. Está apaixonada por ele? — Eu me surpreendo ao notar como pareço infantil. — Por que eu estaria apaixonada por ele? MI: Não é exatamente uma negativa, é? — Eu vi vocês juntos no centro da cidade. Com essa revelação, ofereço a Sarah o Direito à Indignação, que ela agarra com as lindas e traiçoeiras mãos. — Estava me espionando? Meu silêncio é toda a confirmação de que ela precisava. MI: Droga. — Para sua informação, Archie, estava tentando ter certeza de que ele não tentaria dar uma surra em você! Encontrei com ele e o levei até Manisha para escolher o incenso para uma leitura! Vou ler a aura dele! As estruturas de suporte em minha cabeça finalmente desabam totalmente com um estouro ressonante, e volto a ser meu medonho e Nerd eu. — Ele só vai deixá-la fazer isso porque quer sair com você!
  • 186. — E não foi isso que você fez? — Também trouxe alguns biscoitinhos! — anuncia a mãe de Sarah, abrindo a porta com o quadril e pousando a bandeja na penteadeira de Sarah. Nem passa pela minha cabeça dar uma olhada em seu decote. — Ma-nhê! — Desculpe, amor, interrompi alguma coisa? Me levanto, equilibrando-me sobre pernas fracas e bambas. — Não, está tudo bem. Preciso ir nessa. — Consigo abrir um rascunho de sorriso. — A gente se vê. — Até mais, Archie. — Posso escutar o “em outra encarnação” implícito nessa declaração. — Obrigado pelos biscoitos — digo estupidamente à mãe de Sarah e então vou embora. MI: Boa, Romeu.
  • 187. VINTE E CINCO Os corredores floridos de Lothlórien se transformaram nos atalhos rachados e escuros de Mordor. Quando cheguei à casa de Sarah, meus sentidos estavam aguçados pela beleza e vitalidade de meu ambiente. Daquela mesma maneira inebriante, meus sentidos mais uma vez estão trabalhando em excesso, mas agora eles só absorvem os aspectos sombrios do ambiente: os tijolos quebrados, os gritos agudos de crianças que parecem mais estar brigando que brincando, e o fato de quase quebrar o pescoço tropeçando em Aslan quando ele se estica e se enrosca debaixo de meus pés. MI: Bicho estúpido. Como eu pude ter entendido tão errado? Como? Tudo fazia tanto sentido, parecia tão certo. Fiz tudo; até engoli toda aquela história psíquica, qualquer coisa para Sarah me conhecer melhor. E tudo que ela queria era ser minha amiga. Simplesmente não entendo. MI: Mas entende. Entendo. É claro que entendo. Sou um Nerd, e ela é linda, e nunca ia acontecer. Sou um idiota por ter pensado que ia. MI: Vamos lá, há mais por trás disso. Evito pensar naquilo, enfiando minhas mãos nos bolsos e avançando pela rua, encarando meus sapatos. Andar nunca pareceu tão sem sentido. Não sei aonde estou indo e também não me importo. Sinto-me como uma perda de tempo. MI: Mas você sabe o que deu errado, não sabe? Eu sei, e só piora a sensação horrível que faz minha alma parecer mais pesada que chumbo. Onde estava com a cabeça? Devia estar louco de sequer achar que tinha uma chance. MI: Precisa parar de ser torturar uma hora ou outra. Talvez ela esteja mesmo saindo com Jason Humphries? Ele tem músculos, aquela atitude “dane-se” que eu nunca conseguiria ter e provavelmente tem algum ponto vulnerável que o torna ridiculamente atraente para as mulheres — um diamante bruto, o encrenqueiro com potencial. MI: Besteira, e você sabe muito bem. Ele pode ficar socando os outros por aí, mas não poderia ter uma conversa profunda nem se sua vida dependesse disso. Só para esfregar mais um pouquinho de sal na ferida, minha mente fabrica imagens deles rindo, se beijando e de mãos dadas. Mas as imagens que estou vendo são vazias e
  • 188. não têm fundamento; são apenas uma maneira minha de aproveitar a requintada tortura do momento e tentar ignorar a verdade que está sussurrando suavemente em meu ouvido. Sei o que foi que deu errado; e sei onde está a culpa nessa lambança toda. MI: Hora de se olhar no espelho, Archie. Coloquei Sarah num pedestal desde o minuto em que a conheci. Conversar com ela me fazia sentir bem comigo mesmo, e tentei ser uma coisa que não sou, na esperança de que ela fosse gostar de mim. Eu sou... MI: ...Um Imbecil? Oh, Deus. Sou sim. Sou um Imbecil®. Até mesmo os crimes de Tony parecem insignificantes comparados aos meus. Sou o Senhor dos Imbecis. MI: Aí está. Não está se sentindo melhor agora? A admissão de minha Imbecilidade® não parece uma absolvição, não mesmo. Acho que me livra de qualquer sentimento de ter sido injustiçado de alguma maneira. Mas não melhora minha opinião sobre mim mesmo. Magoei uma pessoa. Eu paro por um momento, pensando se deveria voltar e me desculpar. Mas é uma farsa mental; sei que não vou. Ela não estaria pronta para ouvir, e ainda estou cheio demais de autopiedade para fazer um trabalho decente. Preciso esperar até estar me sentindo um pouco mais adulto a respeito dessa história toda. MI: Só não vamos esperar TANTO assim...! Não. Não vamos. Mas pelo menos até amanhã. Isso se ela ainda estiver falando comigo. O que ela tem todo o direito de não fazer, acho. A horrível compreensão de que posso não ser exatamente o irresistível Casanova que queria ser é exaustiva. Subitamente sinto-me muito cansado, mas como se precisasse conversar com alguém. Quero conversar com Sarah. MI: Matt já vai servir. Ligo para ele do celular e encontro energia para continuar fazendo a velha rotina do pé esquerdo/pé direito quando a mãe de Matt atende o telefone: — Alô? — Oi, o Matt está? É o Archie. — Olá, Archie, querido. Como está? MI: É melhor se sentar antes de eu começar... Algumas mães têm essa noção louca de que é com elas que você quer realmente falar. A mãe de Matt é um perfeito exemplo desse fenômeno; dê a ela apenas abertura bastante numa conversa, e ela vai manter você na linha durante séculos. Escolho dar a ela um pequeno empurrão na direção certa. — Bem, obrigado. Eu prometi ao Matt que ia ligar. — Essa tática sugere uma conversa programada de Certa Importância. Como se eu realmente tivesse habilidades psíquicas, ela diz que vai chamá-lo; mas sei que fará um interrogatório mais tarde, tentando descobrir qualquer coisa que possa ser de seu interesse. Matt vai despistá-la com alguma história sobre dever de casa ou sobre o Casebre, e o último átomo de
  • 189. dignidade que ainda possuo permanecerá sendo meu por um pouco mais de tempo. — Archie. — Matt. Oi, cara. — Oi. Como está? É uma pergunta interessante. Estou bem. Meio que me livrei de qualquer raiva ou amargura; tudo que sobrou foi a consciência de minha própria idiotice, e isso é algo com que nós Nerds convivemos diariamente. Na superfície, estou OK. MI: Mas é sobre o que está se passando por baixo que ele está perguntando; é seu amigo, lembra? “Como está?” é uma pergunta típica para sondagem. — Bem, ainda estou solteiro. — É uma resposta razoavelmente leve, mas sei que Matt vai perceber as nuances envolvidas. — Opa. MI: Como um verdadeiro amigo! — É. Basicamente estraguei tudo com Sarah. — O que aconteceu? — É uma longa história... — Legal. Ia ser bom dar umas risadas... — Para quem não conhece Matt, isso poderia soar meio insensível, mas sei que ele está me dizendo que provavelmente não é tão sério quanto acho que é e que vai ficar feliz em escutar. Uma lembrança cai sobre mim mais forte que o punho de Jason Humphries. — Droga! — O quê? — Ah, meu Deus! Ah. Meu. Deus. Ah, meu Deus! — O quê? O que foi? — Pisquei para a mãe de Sarah! — O quê? Você fez o quê? — Ah, meu Deus! Pisquei! Sou tão idiota! Caio na gargalhada, piorada quando Matt exige saber que diabos aconteceu. Quando termino de explicar a história, Matt está rindo sombriamente ao telefone. Entre piadas, consigo explicar rapidamente o que aconteceu na casa de Sarah, dando a ele detalhes suficientes para entender tudo sozinho. — Seu idiota — repreende-me Matt, de um jeito que só um amigo pode fazer. — Eu sei. — O que vai fazer? — Não sei. Pedir desculpas, acho. — É. Provavelmente devia. Idiota. Nerds têm um senso forte de certo e errado; parecemos ter um medo nato de autoridade e um verdadeiro desejo de manter as engrenagens do mundo girando o melhor possível. O que significa que se você aborrece alguém que não mereça, você pede desculpas. A fibra moral de Matt é forte o bastante para aliviar um gigante constipado. E, de uma maneira peculiar, sei que ele está sentindo vergonha por mim. Porque teria se
  • 190. comportado da mesma forma em meu lugar. — Archie? — O quê? — Não achou mesmo que tinha poderes psíquicos, achou? Preciso pensar nessa pergunta. Definitivamente, havia alguma verdade no que Sarah dissera: tenho mesmo ligações com aqueles à minha volta, amigos e família. E, por mais que isso possa não ser psíquico, definitivamente há mais por trás daquilo do que apenas estar muito tempo perto de alguém. — Eu não sei, cara. — Então no que é que estou pensando? — Rápido como um raio, lá está ele de novo caçoando de mim. — Kirsty Ford, imagino. — Meu Deus! Isso é incrível! — Ha ha. Ei, Matt? — O quê? — Você fala sozinho? — O tempo todo. Você não? Mamãe está sentada à mesa da cozinha, parecendo muito pequena e sozinha. Chego por trás de sua cadeira e coloco um de meus braços em volta de seus ombros. — Tudo bem? — Sim. Acho que está. Liguei para checar, e ele está indo bem. — Legal. Nós dois ficamos quietos, escutando a estranha quietude em nossa nova casa. Para mim, é como uma sinfonia de paz: posso ouvir o baixo tique-taque de um relógio e o zumbido distante de um cortador de grama. Para mamãe é um buraco, um espaço, uma tela em branco, que precisa ser preenchida com a colorida cacofonia de seu namorado. Dou um apertozinho nela, que parece estimulá-la a reagir. — Chá? — Ela já está em pé na frente da chaleira antes que eu possa sequer responder, então apenas rio aceitando. — Como foi? — pergunta ela, procurando os saquinhos de chá. Meu ME instintivamente responde com um exame geral de meu corpo, em busca de sinais que possam me denunciar. Não sem algum esforço, resolvo tirar tudo da tomada e, em vez disso, me permito expressar meus sentimentos em minha postura. Que é meio abatida. — Digamos que você ainda não precisa começar a se preocupar com netos. Com a simples menção de qualquer coisa que possa aludir ao fato de que seu filho
  • 191. tem um par de gônadas em funcionamento, mamãe tem um sobressalto. Já posso quase ver um Festival de Camisinhas passando pela sua cabeça. Decido acabar com seu sofrimento o mais rápido possível: — Quis dizer que meio que terminamos. — Mas não achei que estavam namorando. MI: Não perde um detalhe, esta aí. — Não estamos. Não estávamos. É um pouco... complicado. — Ah. — Nem mesmo o ritual sagrado da preparação do chá consegue disfarçar sua confusão. Ela demora um instante antes de me perguntar se quero falar sobre o assunto. Isso é difícil. Depois da conversa que tivemos sobre conversar, acho que eu devia me esforçar e contar a ela tudo que tem acontecido. Mas não estou pronto para isso. Ainda não. Não que mamãe fosse me julgar de maneira diferente da que o faria qualquer mãe que ame seu filho; ela provavelmente encontraria um milhão de motivos para desculpar minha insanidade temporária e, provavelmente, de alguma maneira, colocaria a culpa em Sarah. Mas conheço a verdade e preciso conviver com ela por um tempo. — Na verdade, não. Se importa? — Desde que você esteja bem. — Ela bagunça meu cabelo, tentando esconder seu claro desapontamento. Mas permaneço firme. É a coisa certa a se fazer. — Estou legal. MI: Não vamos exagerar... — Ah! — exclama Mamãe, como se tivesse acabado de se dar conta de onde estava. — Vai passar um filme hoje; um daqueles que você gosta... — Ah, é? — Sorrio, sabendo exatamente o que está por vir. — Sobre o quê? Mamãe sorri de volta, sabendo exatamente o que estou pensando. — É aquele com o macaco. Você sabe... — Aquele com o macaco? — Apesar do cansaço e da sensação de ter sido um idiota estarem pairando acima de minha cabeça como uma nuvem negra, não consigo não rir. — Sim! Você sabe de qual estou falando...! Eu sei, mas o potencial para um jogo de adivinhação improvisado é bom demais para desperdiçar. — Não, não sei! Qual deles? Mais risadas. — Tem um macaco! — Tarzan? — Não! Um macaco e uns aviões! — King Kong? — King Kong! Esse mesmo! A essa altura, não estamos mais nos aguentando de tanto rir. Um macaco e uns aviões. Em meio a minhas risadas, percebo que não há nada que gostaria mais de fazer do que sentar no sofá com minha mãe, tomando chá e assistindo a um filme sobre um
  • 192. macaco e alguns aviões. Todo o resto parece distante: visitar papai em York, Tony voltar para casa, começar uma nova coleção de miniaturas e voltar à minha vida de Nerd. E Sarah. Embora eu não tenha atingido o Cálice Sagrado Nerd de ter uma namorada de verdade, fiz o Primeiro Contato; tive um Contato Imediato. MI: É um pequeno passo para um nerd, mas um grande salto para a nerdidade! Talvez eu precise aprender uma lição de King Kong... Talvez, em vez de tentar me encaixar no mundo dela e de me destacar como um gorila gigante, eu precise trazê-la mais para as profundezas de meu mundo... Preciso pensar nisso. Com cuidado. MI: Está tudo nos detalhes.
  • 193. AGRADECIMENTOS Muitos foram os livros, filmes, séries de TV e quadrinhos que Mudaram Minha Vida de alguma maneira. Entre eles, estes são os principais: LIVROS: O Senhor dos Anéis. A criação de um mundo com tamanha profundidade chacoalhou meu cérebro aos 11 anos de idade. É também o único livro com garantia de me fazer chorar. FILMES: Guerra nas Estrelas Episódio IV: Uma Nova Esperança. A visão da Star Destroyer voando por cima de minha cabeça na cena de abertura foi o começo de um caso de amor para a vida toda. QUADRINHOS: O Homem-Aranha, da Marvel, me deu esperança suficiente para procurar aranhas em meu jardim que pudessem me morder e dar vida a um super-herói de Devon. OBRIGADO Como descobri, há muito mais em se escrever um livro do que escrever um livro. Gostaria de oferecer meus sinceros agradecimentos a Alex Garland, por ser gentil o bastante para parar e conversar; e também Jenny Savill da Andrew Nurnberg Associates e Jane Harris da Stripes Publishing, e suas respectivas equipes por lançarem os dados.
  • 194. Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviços de Imprensa S.A.
  • 195. O fator nerd Skoob do livro http://www.skoob.com.br/livro/334568-fator-nerd Matéria de lançamento do livro http://bookeando.com/site/2013/07/19/fator-nerd-e-o-primeiro-romance-no-brasil- para-o-publico-nerd-e-geek/ Site do autor http://theandyrobbsite.co.uk/ Twitter do autor https://twitter.com/ThatAndyBloke Perfil do autor no Goodreads http://www.goodreads.com/author/ show/463238.Andy_Robb Entrevista com o autor http://www.youtube.com/watch?v=LwXdjrcl-JI
  • 197. Vinte e quatro Vinte e cinco Agradecimentos Colofão Saiba mais