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Gustavo Ferreira Santos
João Paulo Allain Teixeira
Marcelo Labanca Corrêa de Araújo
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Recife, 2016
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CRÉDITOS
Editora: APPODI
Organização: Gustavo Ferreira Santos
João Paulo Allain Teixeira
Marcelo Labanca Corrêa de Araujo
Conselho editorial: Erivaldo Cavalcanti e Silva Filho (UEA)
Gustavo Carneiro Leão (UNICAP)
Ivone Fernandes Lixa (FURB)
Maria Lúcia Barbosa (UFPE)
Raquel Fabiana Lopes Sparemberger (FURG / FMP)
Design da capa: Ana Catarina Silva Lemos Paz
Composição do miolo: Ana Catarina Silva Lemos Paz
As opiniões e posicionamentos contidos nesse livro não, necessiariamente, correpondem às
opinões e posicionamentos tomados pelos organizadores.
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APRESENTAÇÃO
O Congresso Publius é evento anual realizado por professores da Universidade Católica de Pernam-
buco, com o objetivo de discutir temas pertinentes ao direito público, especificamente no que se refere aos
vínculos que se estabelecem entre Constituição e Democracia. Na edição 2015 do Publius o tema escolhido
como eixo norteador do evento é “Tutela Multinível dos Direitos”, apontando para a necessária percepção de
que os direitos apresentam níveis distintos de proteção e promoção, tanto no plano interno como em planos
normativos distintos, como acontece com o direito subnacional, o direito supranacional e o direito interna-
cional.
O evento teve duração de três dias de debates com a participação de professores e pesquisadores con-
vidados de várias universidades do Brasil, América Latina e Europa e envolvendo estudantes de graduação e
pós-graduação stricto sensu de diversas universidades da região.
O livro que agora apresentamos é fruto das reflexões que aconteceram nos grupos de trabalho do
evento (Direitos Sociais e Judicialização das Políticas Públicas; Justiça Constitucional e Jurisdição Constitu-
cional; (Des)Criminalização de Direitos; Tutela dos Direitos à Liberdade; Hermenêutica, Universalidade e
Multiculturalismo dos Direitos; Direitos de Nacionalidade e Estrangeiros; Os Novos Direitos; Diálogo entre
Cortes e Proteção Multinível; Constituições Subnacionais e Tutela de Direitos: Controle de Convencionali-
dade). Para os diversos GTs o evento contou com cento e vinte trabalhos inscritos, resultando em sua confi-
guração final, sessenta e cinco trabalhos enviados para publicação após os debates. Estes trabalhos integram
o presente livro eletrônico, juntamente com os trabalhos de autores convidados, mantendo a métrica e a
obediência aos temas propostos pelo evento.
A todos, desejamos uma boa leitura. E que estes escritos possam servir como leituras seminais para a
compreensão dos desafios que uma tutela multinivel de direitos fundamentais exige.
Recife, julho de 2016.
Gustavo Ferreira Santos
João Paulo Allain Teixeira
Marcelo Labanca Corrêa de Araujo
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SUMÁRIO
1.  APRESENTAÇÃO
2.  A FUNÇÃO PUNITIVA NA RESPONSABILIZAÇÃO DO FORNECEDOR EM RELAÇÃO DE
CONSUMO:
DIÁLOGO DO DIREITO BRASILEIRO COM O SISTEMA COMMON LAW, EM BREVES NOTAS E REFLEXÕES
PARA UMA MAIOR PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR
Adriano Barreto Espíndola Santos
Aldo César Filgueiras Gaudêncio 15
3.  JUDICIAL DO DIREITO SOB A ÓTICA DA TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO:
IMPLICAÇÕES NO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
Alexandre Henrique Tavares Saldanha
Victor Rafael Alves de Mattos 23
4.  DIREITOS AUTORAIS E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET:
NOVOS MODELOS PARA UMA NOVA CULTURA DE PARTICIPAÇÃO
Alexandre Henrique Tavares Saldanha 31
5.  INFRAERO E A ADOÇÃO DO ORÇAMENTO SIGILOSO NO REGIME DIFERENCIADO DE
CONTRATAÇÃO PÚBLICA (RDC):
UMA ANÁLISE SOBRE A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO
Alcerlane Silva Lins
Roberta Cruz da Silva 40
6.  COTAS RACIAIS:
ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DE FUNDAMENTAÇÃO DO VOTO DE LEWANDOWSKI NA ADPF 186/
DF
Ana Caroline Alves Leitão
Virginia Colares 50
6
7.  A PROTEÇÃO JUDICIAL DAS MINORIAS:
A UNIÃO HOMOAFETIVA NO STF E NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Ana Catarina Silva Lemos Paz
Luiz Manoel da Silva Júnior
Arthur Albuquerque de Andrade 60
8.  DIREITO AO PROTESTO E SUA TUTELA JUDICIAL:
UM ESTUDO DE CASO SOBRE A OCUPAÇÃO DA RUA NETO CAMPELO PELO MOVIMENTO OCUPE
ESTELITA
Ana Paula da Silva Azevêdo
Letícia Malaquias Mendes Barbosa
Vitória Caetano Dreyer Dinu 75
9.  QUEM TEM DIREITO À ÚLTIMA PALAVRA?
O INSTITUTO DA REVISÃO JUDICIAL À LUZ DAS TEORIAS DE DWORKIN, DAHL E WALDRON
Ana Tereza Duarte Lima de Barros
Mariana Cockles Teixeira 85
10.  A AUTONOMIA DAS ORDENS LOCAIS INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA SOB O PONTO
DE VISTA DO TRANSCONSTITUCIONALISMO E DO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-
AMERICANO
Arthur Albuquerque de Andrade
Ana Catarina Silva Lemos Paz
Luiz Manoel da Silva Júnior 91
11.  ESCRAVISMO CONTEMPORANEO E INTEGRAÇÃO ECONÔMICA:
UM ESTUDO ACERCA DOS POSSÍVEIS IMPACTOS DA ADESÃO DA BOLÍVIA AO MERCOSUL
Bruna de Oliveira Maciel
Jaqueline Maria de Vasconcelos 98
12.  O PODER-DEVER DO ESTADO NA PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO
ÂMBITO FAMILIAR À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Bruna de Oliveira Maciel
Jaqueline Maria de Vasconcelos 109
7
13.  LIBERDADE RELIGIOSA:
UMA ABORDAGEM DO PONTO VISTA DAS RELAÇÕES ENTRE OS MODELOS DE ESTADO E IGREJA E O
CASO LAUTSI CONTRA ITALIA
Camila Leite Vasconcelos 128
14.  A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL AO OLIGOPÓLIO MIDIÁTICO E O DIREITO À
COMUNICAÇÃO:
A NECESSIDADE DA SUPERAÇÃO DO DOMÍNIO ECONÔMICO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO EM
MASSA PARA SUA REGULAÇÃO DEMOCRÁTICA
Camila Freire Monteiro de Araújo
Izídia Carolina Rodrigues Monteiro 137
15.  REPENSANDO A AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA:
A (IM)POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DO “ABATE-TETO” SOBRE REMUNERAÇÃO, SUBSÍDIO OU
PROVENTO DA APOSENTADORIA DE AGENTE PÚBLICO CUMULADOS COM BENEFÍCIO DE PENSÃO
POR MORTE DO CÔNJUGE/COMPANHEIRO SERVIDOR DO ESTADO
Carla Cristiane Ramos de Macêdo
Roberta Cruz da Silva 138
16.  TRANSEXUALIDADE E DIGNIDADE:
OS DESAFIOS JURÍDICOS E SOCIAIS PARA A GARANTIA PLENA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Carlos Henrique Felix Dantas 
Raissa Lustosa Coelho Ramos 152
17.  PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E TOMADA DE DECISÃO
APOIADA:
DESAFIOS E PROPOSTAS PARA UM EFETIVO ACESSO À JUSTIÇA
Carlos Henrique Felix Dantas 
Raissa Lustosa Coelho Ramos 159
18.  LEI MARIA DA PENHA:
UMA ANÁLISE SOBRE A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NO ÂMBITO DOS CONFLITOS DOMÉSTICOS
Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros
Hallane Raissa dos Santos Cunha
Túlio Vinícius Andrade Souza 168
8
19.  DIÁLOGO INTERJUDICIAL:
REALIDADE GLOBAL NO BRASIL E A EXIGÊNCIA DE NOVOS DIREITOS ATRAVÉS DO SISTEMA
INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
Caroline Alves Montenegro
Renata Santa Cruz Coelho 178
20.  A CRISE CONTEMPORÂNEA DOS REFUGIADOS, DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS
PÚBLICAS
David Cavalcante 185
21.  LEI MARIA DA PENHA:
UMA ANÁLISE CRÍTICA DA OCORRÊNCIA DE PRISÕES PREVENTIVAS E DAS FORMAS DE RESOLUÇÃO
DE CONFLITOS DOMÉSTICOS
Débora de Lima Ferreira
Marília Montenegro Pessoa de Mello 194
22.  O DIREITO PENAL SIMBÓLICO:
DA PROMESSA DE PROTEÇÃO À EFICÁCIA INVERTIDA – UM OLHAR SOBRE A PROTEÇÃO À VÍTIMA
Érica Babini Lapa do Amaral Machado
Andrielly S. Gutierres Silva
Willams França Silva 204
23.  ENTRE RETRIBUIÇÃO, NEUTRALIZAÇÃO, SOCIALIZAÇÃO E CONTROLE – A
REPRESENTAÇÃO DOS MAGISTRADOS SOBRE A FINALIDADE DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA
DE INTERNAÇÃO EM PERNAMBUCO
Érica Babini L. do Amaral Machado
Maurilo Miranda Sobral Neto
Vitória Caetano Dreyer Dinu 214
24.  DEMOCRACIA, EFETIVIDADE E DIREITOS SOCIAIS:
UM OLHAR SOBRE OS CONSELHOS MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS – A PARTICIPAÇÃO COMO CONCRETIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Erika Patrícia Ferreira dos Santos
Isabel Cristina Souza Queiroz
Marco Aurélio da Silva Freire 227
25.  REAÇÃO LEGISLATIVA FRENTE À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO BRASIL PÓS 88
Eriverton Felipe de Souza 235
9
26.  NEGOCIADO X LEGISLADO:
O DIREITO DO TRABALHO EM PERIGO
Fábio Túlio Barroso 246
27.  NOTAS SOBRE A AUTONOMIA SINDICAL BRASILEIRA
Fábio Túlio Barroso 253
28.  O “DIREITO AO CONFLITO” NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:
POTENCIALIDADES E RISCOS
Fernanda Fonseca Rosenblatt
João André da Silva Neto
Maria Júlia Poletine Advincula
Pedro Henrique Ramos Coutinho dos Santos 259
29.  A DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO PESSOAL DE DROGAS EM DEBATE NO STF:
UM PASSO RUMO À SUPERAÇÃO DA GUERRA ÀS DROGAS?
Fernanda Thaynã Magalhães de Moraes
Laís Emanuella da Silva Lima
Maria Eduarda Moreira de Medeiros 270
30.  O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E SEUS REFLEXOS PARA O
PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Fernando Flávio Garcia da Rocha
João Paulo Allain Teixeira 276
31.  AS TRANSFORMAÇÕES DO ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA UTILIZAÇAO DAS NOVAS
TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO
Fernando Flávio Garcia da Rocha
Paloma Mendes Saldanha 284
32.  A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO REAÇÃO AO ILUSÓRIO E ILEGÍTIMO DISCURSO
PUNITIVO NA AMÉRICA LATINA
Fernando Borba de Castro
Lenice Kelner
Leonardo Idenio Soares 291
10
33.  A DIGNIDADE DO TRABALHADOR NO COMBATE AO TRABALHO ANÁLOGO AO DE
ESCRAVO
AMEAÇAS E RISCOS VINDOS DO PODER LEGISLATIVO
Flora Oliveira da Costa  303
34.  A COMPLEXIDADE DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO
UM OLHAR LUHMANNIANO
Flora Oliveira da Costa 310
35.  A FIGURA DA MULHER FRENTE À POLÍTICA PROIBICIONISTA DO TRÁFICO DE DROGAS:
UMA ANÁLISE SOCIO-CRIMINOLÓGICA
Gabriela Parisi de Amorim
Gisele Vicente Meneses do Vale
Paloma dos Santos Silva 320
36.  A PROTEÇÃO MULTINIVEL E A EFETIVIDADE DA TUTELA JURÍDICA DOS DIREITOS
HUMANOS ENQUANTO RESULTADO DO DIÁLOGO ENTRE DIFERENTES CORTES
Gabriel Soares Ribeiro Lopes
Maria Carolina Oriá Veloso 327
37.  É A PROSTITUIÇÃO UMA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO OU A COMPRA DE UMA
MERCADORIA?
Gabrielle Costa Carvalho de Oliveira 
Larissa Brasileiro Malheiro 
Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso 335
38.  LIBERDADE DE EXPRESSÃO E RADIOFUSÃO SOB A ÓTICA DO SISTEMA INTERAMERICANO
DE PROTEÇÃO
Gessyca Galdino de Souza
Gustavo Ferreira Santos 339
39.  ATIVISMO JUDICIAL E O CONTROLE DA PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO DEFICIENTE A
DIREITOS FUNDAMENTAIS:
ANÁLISE DO PROCESSO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO §3º, DO ARTIGO 20, DA LEI Nº 8.742/93 –
LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL – LOAS
Glauco Salomão Leite
Dyego José Holanda Pessoa
Tatyana Paula Cabral De Melo Marcolino 349
11
40.  O PROTAGONISMO JUDICIAL E A REFORMA POLÍTICA:
ANÁLISE DO CASO SOBRE O FINANCIAMENTO PRIVADO DE CAMPANHAS ELEITORAIS
Glauco Salomão Leite
Mirella Luiza Monteiro Coimbra
Pablo Diego Veras Medeiros 358
41.  ATIVISMO JUDICIAL CONTRAMAJORITÁRIO:
O CASO DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE DROGAS PARA USO PRÓPRIO.
Glauco Salomão Leite
José Raimundo Silva Neto
Raphael Crespo Forne 368
42.  ASPECTOS E CONTROVÉRSIAS SOBRE A JUDICIALIZAÇÃO DA PRISÃO NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DA ADPF 347
Glebson Weslley Bezerra da Silva
Mariane Izabel Silva dos Santos
Roberta Rayza Silva de Mendonça 376
43.  POLÍTICAS PÚBLICAS, O DIREITO SOCIAL À SAÚDE E A EXTRAFISCALIDADE DA
TRIBUTAÇÃO SOBRE O CIGARRO
Idalina Cecília Fonseca da Cunha 384
44.  MOVIMENTOS SOCIAIS AGRÁRIOS:
TEORIA DO ETIQUETAMENTO E CRIMINALIZAÇÃO
Indira Capela Rodrigues
Raquel Fabiana Lopes Sparemberger 390
45.  SOLUÇÃO DE VIA ÚNICA:
O punitivismo dos movimentos sociais e a imposição da pena pelo sistema de justiça criminal
Iricherlly Dayane da Costa Barbosa
João André da Silva Neto
Marília Montenegro Pessoa de Mello 402
12
46.  NEOCONSTITUCIONALISMO E NEOPROCESSUALISMO COMO INSTRUMENTOS PARA
EFETIVAÇÃO DA JUSTIÇA E FORTALECIMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Jaqueline Maria de Vasconcelos
Patrícia Freire de Paiva Carvalho 410
47.  JURISDIÇÃO E DESCONSTRUÇÃO:
uma análise procedimental da Arguição de Descuprimento Fundamental no constitucionalismo
brasileiro a partir de Jacques Derrida.
Joyce Batista do Nascimento
João Paulo Allain Teixeira 416
48.  DIREITO À MEMÓRIA, À VERDADE E À JUSTIÇA:
A PERMANÊNCIA DAS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS NA ATUALIDADe
Julia Santa Cruz Gutman
Renata Santa Cruz Coelho 431
49.  CARACTERÍSTICAS DOS SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE:
BREVE CONSIDERAÇÕES DIDÁTICAS SOBRE ASPECTOS CONCEITUAIS E PROCESSUAIS
Luciano José Pinheiro Barros 
Raquel Alves Almeida Silva
Ana Beatriz Oliveira de Souza 440
50.  CRISE, JURISDIÇÃO E DEMOCRACIA
Luciano José Pinheiro Barros
Mateus Siqueira Pacheco 448
51.  DIREITOS CONSTITUCIONAIS E INTERNACIONAIS DOS REFUGIADOS
Maria Alana Calado Capitó
Pedro Victor Montenegro de Albuquerque 457
52.  CRISE FEDERATIVA E FINANÇAS MUNICIPAIS:
A PROBLEMÁTICA DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS
Maria Raquel Firmino Ramos 463
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53.  AS MULHERES DIANTE DA LEI 11.343/2006:
A CRIMINALIZAÇÃO DA VULNERABILIDADE SOCIAL.
Marília Montenegro Pessoa de Mello (orientadora)
Juliana Gleymir Casanova da Silva  472
54.  A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL PÓS-88:
A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA COMO INSTRUMENTOS DE EFETIVAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Marco Aurélio da Silva Freire
João Paulo Rodrigues do Nascimento 480
55.  (IN)CONSTITUCIONALIDADE NA ADOÇÃO DO INSTITUTO DA CONTRATAÇÃO
INTEGRADA NOS CONTRATOS DA INFRAERO
Marta Rodrigues de Oliveira
Roberta Cruz da Silva (orientadora) 489
56.  A EMERGÊNCIA DE DECLARAÇÕES SUBNACIONAIS DE DIREITOS NA ORDEM
CONSTITUCIONAL AUSTRALIANA:
O PAPEL DO PACTO FEDERATIVO NA FORMATAÇÃO DO REGIME DE PROTEÇÃO DE DIREITOS
FUNDAMENTAIS E A ADOÇÃO DE UM CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE FRACO
Mauro La-Salette Costa Lima de Araújo 500
57.  LIBERDADE RELIGIOSA X TRÁFICO DE DROGAS:
O CASO DE “RAS GERALDINHO”
Mateus Rafael de Sousa Nunes 507
58.  DIREITO AO ESQUECIMENTO E LIBERDADE DE IMPRENSA.
Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira
Camila Freire Monteiro de Araújo 514
59.  A POLÍTICA DE PRIVACIDADE DO GOOGLE E SUAS INFRAÇÕES AO CÓDIGO DE DEFESA
DO CONSUMIDOR E AO DIREITO CONSTITUCIONAL À PRIVACIDADE:
UMA PERSPECTIVA BRASILEIRA
Paloma Mendes Saldanha 521
60.  DIREITOS POLÍTICOS E ESTRANGEIROS
Rafael Lima Rangel Vasconcelos 536
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61.  A FAMÍLIA BASEADA NO POLIAMOR EM CONSONÂNCIA COM O PRINCÍPIO DA
LIBERDADE
Silvana Vieira da Silva 546
62.  A CRIMINALIZAÇÃO DO DIREITO À LIBERDADE DE CÁTEDRA NO BRASIL:
ANÁLISE DO PROJETO DE LEI Nº 1.411/2015 À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988.
Synara Veras de Araújo 555
63.  BREVE ANÁLISE SOBRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO
Renata Santa Cruz Coelho
Caroline Alves Montenegro 561
64.  “O ONTEM É HOJE”:
SOBRE A TUTELA DOS DIREITOS À LIBERDADE PRESENTE NA OBRA CINEMATOGRÁFICA TATUAGEM
Synara Veras de Araújo 571
65.  ESTUDO IDEOLÓGICO SOBRE O MODELO PROCESSUAL COOPERATIVO DO NOVO CPC
Steel Vasconcellos 581
66.  O DISCURSO DO ÓDIO FRENTE ÀS MANIFESTAÇÕES MINORITÁRIAS COMO HIPOTÉSE DE
COLISÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Tieta Tenório de Andrade Bitu 591
67.  CONFLITOS INDÍGENAS E O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS (SIDH)
Valdênia Brito Monteiro
Bárbara Raquel da Silva Fonseca 603
68.  A GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO PRESSUPOSTO PARA O COMBATE
DO TRÁFICO DE SERES HUMANOS
Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso
Luize Ivila Santos da Rocha
Larissa Gabrielle Silva de Andrade 612
15
69.  CRIMINALIZAÇÃO DA PELE E DA CONDIÇÃO SOCIAL NA GUERRA ÀS DROGAS
Victor de Goes Cavalcanti Pena
Danyelle do Nascimento Rolim Medeiros Lopes 618
70.  A REGULAMENTAÇÃO BRASILEIRA DAS MIGRAÇÕES E O CONTROLE DE
CONVENCIONALIDADE
Victor Scarpa de Albuquerque Maranhão
Thiago Oliveira Moreira 623
71.  PRISÕES PREVENTIVAS E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA:
UM DEBATE POSSÍVEL?
Wictor Hugo Alves da Silva 633
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A FUNÇÃO PUNITIVA NA RESPONSABILIZAÇÃO DO FORNECEDOR EM
RELAÇÃO DE CONSUMO:
DIÁLOGO DO DIREITO BRASILEIRO COM O SISTEMA COMMON LAW, EM BREVES NOTAS E
REFLEXÕES PARA UMA MAIOR PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR
Adriano Barreto Espíndola Santos
Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito
Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas. Especialista em
Direito Público Municipal pela Faculdade de Tecnologia Darcy Ribeiro. Graduado em
Direito pela Universidade de Fortaleza. Advogado.
Aldo César Filgueiras Gaudêncio
Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra – Portugal. Pós-graduado em direito
empresarial pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Pós-graduado em direito dos
contratos. Advogado.
SUMÁRIO: Introdução; 1. A proteção do consumidor e sua reparação por eventuais danos como
garantias constitucionais; 1.1. Da reparação por danos na sistemática da responsabilidade civil do có-
digo de defesa do consumidor; 2. Do dano moral ao social: um quadro de grave comprometimento da
vida humana na relação de consumo; 3. O aparelhamento nocivo e sistemático do “dano eficiente”;
4. O diálogo entre sistemas como forma de aplacar diferenças e fomentar ganhos sociais; Conclusão;
Referências.
INTRODUÇÃO
Diante da permanente necessidade de cuidado ao consumidor, figura, por sua própria condição, frágil
na relação de consumo, desenvolver-se-á este estudo com o intuito de, dentre tantas problemáticas sobrevin-
das, aplacar os enormes prejuízos de ordem moral, em específico, sofrido pelos consumidores nestas últimas
décadas.
Numa luta até então desigual, atendendo-se à dignidade da pessoa humana, com a expressão de boa
parte dos anseios sociais em nossa Constituição Federal de 1988 e, depois, em sede de código de defesa do
consumidor – lei n.º 8078/90 -, conseguiu-se estampar o direito à reparação de danos - evidente que se fir-
mou aí grande avanço para uma sociedade consumerista, carente de segurança jurídica.
Mas, com as recorrentes constatações de lesões aos consumidores, vê-se que a estrutura jurídica
brasileira ainda apresenta lacunas que oferecem espaços às práticas destrutivas operadas pelos lesantes,
voltadas tão somente à racionalidade econômica.
De modo que, com as experiências exitosas alienígenas, obtém-se, então, base para adequar o modelo
da função punitiva da responsabilidade civil ao sistema brasileiro, servindo tal instrumento para se alcançar
a função social do mencionado instituto, como, também, travar, ou mesmo, de fato, eliminar o dano social.
17
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
1. A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR E SUA REPARAÇÃO POR EVENTUAIS DANOS COMO
GARANTIAS CONSTITUCIONAIS.
A Constituição Federal de 1988 garante proteção aos consumidores imputando ao Estado uma
obrigação de promoção de sua defesa. Aliado a isso, terão os consumidores a garantia da possiblidade de
serem reparados por eventuais danos que venham a suportar nas no mercado de consumo.
Especificamente, o legislador constitucional inseriu no texto do artigo 5º, inciso X a reparabilidade
por danos morais e materiais, quando garantiu a inviolabilidade dos direitos da personalidade. De sorte que,
o que extraímos é que o instituto da responsabilidade civil se vê presente no texto constitucional, agora como
uma garantia da ordem jurídica estabelecida a partir de 1988 (MORAES, 2013).
Ainda, como direito fundamental, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como a norma impe-
rativa o disposto no artigo 5º, inciso XXXII, que institui que “o Estado promoverá na forma da lei a defesa do
consumidor”. Lei esta que deveria ser elaborada dentro de 120 dias a partir da promulgação da Constituição,
conforme artigo 48 dos atos das disposições constitucionais transitórias, na mesma Constituição (MIRAGEM,
2002 - Conferir também (CAVALIERI FILHO, 2008); (DUQUE, 2009); (GRAU, 1993)).
A inserção do artigo 5°, XXXII, entre os direitos fundamentais coloca os consumidores entre os ti-
tulares de direitos constitucionais fundamentais, porque estes não mais se resumem aos direitos de defesa
contra interferência estatal na esfera jurídica particular (CANOTILHO, 1993). Atualmente, os direitos fun-
damentais conferem também aos particulares direitos de proteção, direitos à organização e ao procedimento
e direitos as prestações sociais.
Entendemos que o Estado tem o dever de proteger os direitos fundamentais e, assim, proteger um
cidadão perante o outro.
Além disto, o artigo 170, inciso V, da Constituição Federal de 1988, tornou a defesa do consumidor um
princípio da ordem econômica constitucional. Estes dois dispositivos – artigo 5º, inciso XXXII, e artigo 170,
inciso V – legitimam todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista. A
defesa dos consumidores pauta-se, em primeiro, nas razões econômicas derivadas das formas, segundo as
quais se desenvolvem, em grande parte, ao atual tráfico mercantil e, em segundo, por critérios que emanam
da adaptação da técnica constitucional ao estado de coisas que hoje vivemos imersos – na chamada sociedade
de consumo em massa1
.
O dispositivo constitucional ordena ao Estado Brasileiro o dever de promoção à defesa do consumidor
na forma de lei e não mera faculdade, pois se trata de um imperativo constitucional que ordena ao Estado em
todas as esferas de poder (união, estado e municípios) e na sua tripartição de poderes (executivo, legislativo
e judiciário)2
. Foi o constituinte originário que instituiu um direito subjetivo público geral para todos os bra-
sileiros como uma garantia fundamental. Outro imperativo ocorreu nos atos das disposições constitucionais
transitórias, em seu artigo 48, que, por sua vez, deu prazo e nomeou a lei de defesa do consumidor como
Código de Defesa do Consumidor (CAVALIERI FILHO, 2008)3
.
Finalmente, a Lei n.º 8078/90, Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, foi promulgada em 1990,
e acarreta importantes mudanças que, no decorrer dos anos 90 e na primeira década do século XXI, tanto nos
1  NUNES, 2012, p. 52: “No que respeita às normas constitucionais que tratam da questão dos direitos e garantias do consu-
midor, elas são várias, algumas explícitas, outras implícitas. A rigor, como a figura do consumidor, em larga medida, equipara-se
à do cidadão, todos os princípios e normas constitucionais de salvaguarda dos direitos do cidadão são, também, simultaneamente
extensivos ao consumidor pessoa física. Dessarte, por exemplo, os princípios fundamentais instituídos no art. 5º da Constituição
Federal são, no que forem compatíveis com a figura do consumidor na relação de consumo, aplicáveis como comando normativo
constitucional”.
2  BENJAMIN, 2008, p. 68, que afirma: “Se a Constituição Federal de 1988 manda o Estado-juiz, o Estado-executivo, e o Esta-
do-legislativo proteger imperativamente o consumidor em suas relações intrinsicamente desequilibradas com os fornecedores de
produtos e serviços, a CF/88 não definiu quem é o consumidor – logo temos que recorrer ao CDC, como base legal especial infra-
constitucional para saber quando aplicar o CDC”.
3  Ver também ALMEIDA, 2003; NISHHIYAMA e DENSA, 2011, pp. 432 a 433, que afirmam: “o princípio da proteção do con-
sumidor é norma constitucional”; DUQUE, 2009.
18
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
mecanismos de proteção, com o surgimento de novas associações civis voltadas à proteção dos consumidores,
como órgãos administrativos também com o mesmo escopo.
Além disso, impôs importantes e gradativas mudanças às relações de consumo, perceptível na me-
lhora na qualidade de fabricação dos produtos e na relação das empresas, de um modo geral, frente os con-
sumidores4
.
1.1. DA REPARAÇÃO POR DANOS NA SISTEMÁTICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO CÓDIGO DE
DEFESA DO CONSUMIDOR.
A lei n.º 8.078/90 adotou uma sistemática própria para garantir a reparação dos danos oriundos das
relações de consumo. Assim, como se percebe claramente da citada lei, a responsabilização dos fornecedores
está dividia em duas partes, em primeiro, a responsabilização decorrente dos acidentes de consumo ocorri-
dos por defeitos nos produtos e serviços, tratada entre os artigos 12 a 14, e, em segundo, a responsabilização
decorrente dos vícios nos produtos e serviços, previstos nos artigos 18 a 20.
A responsabilidade por fato do produto ou do serviço identifica-se pela ocorrência de defeito. O de-
feito que emerge do produto ou serviço disposto ao consumidor é a consequência de um dano provocado por
uma falha no funcionamento regular destes5
.
Desse modo, o dano moral emerge imediatamente dos acidentes de consumo, haja vista que não há
que se falar em acidente de consumo se não ocorrer o dano. Assim, a sistemática aplicada pelo Código de De-
fesa do Consumidor atribui a quem idealizou e concebeu o produto ou o serviço o dever de repara eventuais
danos suportados pelos consumidores.
Quando a responsabilidade se trata de vício do produto ou do serviço, regulada pelos artigos 18 e 19,
vício de qualidade e quantidade do produto, respectivamente, e artigo 20, vício de qualidade do serviço, a
ocorrência de dano seria em razão pela demora na reparação do vício. Em outras palavras, havendo vício no
produto ou serviço, há um prazo de 30 dias previsto na lei para resolução da falha, e, em caso de alargamento
deste período por retardo do fornecedor em repará-lo, caso haja dano, então pode ser imputado ao fornece-
dor o dever de pagar indenização, que, repetimos, tem relação a danos gerados pela demora em sanar o vicio
(NUNES, 2012).
A sistemática prevista na Lei n.º 8078/90, apesar de pautada na divisão a partir do entre defeito e
vício, este menos gravoso, intrínseco ao bem ou serviço, com formas de reparação previstas em lei – havendo
a possibilidade de a reparação ocorrer por danos morais e matérias -, e aquele, mais gravoso, e que se dá pela
ocorrência de dano provocado pela exteriorização vício no bem ou serviço.
O consumidor possui um instrumento forte de reparação dos danos que vier a suportar no mercado,
no entanto é comum determinadas práticas abusivas ou perigosas, por vezes lesivas, serem recorrentes, o
que quer nos mostrar que as indenizações pagas talvez não sejam suficientes para alterar as mesmas práticas
empresarias prejudiciais aos consumidores.
2. DO DANO MORAL AO SOCIAL: UM QUADRO DE GRAVE COMPROMETIMENTO DA VIDA
HUMANA NA RELAÇÃO DE CONSUMO.
Numa perspectiva moderna, nota-se que as relações de consumo tendem a oferecer sempre novas
alternativas com o fito principal de promover os ganhos econômicos. E isso corresponde a fato natural, ine-
xorável aos avanços da sociedade, que precisa atender às suas necessidades, amparada, principalmente, pela
celeridade e pelo desenvolvimento comum.
4  Sobre relação de consumo Cfr. PASQUALOTTO, 2011; OLIVEIRA, 2002.
5  Cfr. CAVALIERI FILHO, 2008, p. 265: “(...) fato do produto é um acontecimento externo, que ocorre no mundo exterior, que
causa dano material ou moral ao consumidor (ou ambos), mas que decorre de um defeito do produto”.
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Direito(s) em debate.
Não há mal propriamente neste processo. A grande questão que se impõe é saber até que ponto as
citadas relações podem estar revestidas da licitude. Se se ultrapassar esta barreira, dos negócios justos, segu-
ramente sobrevirão enormes prejuízos aos consumidores, que se veem fracos perante o insuportável peso do
poder socioeconômico exercido pelos fornecedores lesantes.
Ou seja, quanto mais lacunas se deixam escapar, mais fortes se tornam os lesantes e, por conseguinte,
o controle de seus atos se vislumbra como demasiado frustrante, sobretudo para os consumidores, que, já
prejudicados, não têm meios para buscar amparo legal.
Fecha-se o seguinte cenário: o consumidor, naturalmente, tem de resolver as questões do dia a dia,
quais sejam levar o filho a escola, pagar as contas, ir ao médico, dentre outros afazeres prioritários, assim,
vê-se, não tem tempo para buscar amparo no poder judiciário, ainda mais sabendo que tal iniciativa pode não
acabar como desejada, resultando tudo num grave transtorno moral.
O dano moral, antes analisado sob a feição de um só ente, hoje, com tais problemáticas de ordem
consumerista, passa a compreender uma extensão muito maior, às vezes até de difícil avaliação e controle,
o denominado dano social. Segundo o idealizador da teoria do dano social, Antonio Junqueira de Azevedo, o
dano social é aquele mal impelido em face de muitos indivíduos, de uma parcela considerável da sociedade
que se vê achacada em seus elementos mais ínsitos, como a moral, o bem-estar subjetivo, a paz e a seguran-
ça, por exemplo6
.
Nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes (MORAES, 2006, p. 246), o dano moral corresponde
à lesão perpetrada em face da dignidade humana7
. Pois bem, nada mais elucidativo que trazer à baila tais
palavras, as quais confirmam o grave mal do dano social. Como o próprio nome já assim o denota, diz res-
peito a uma lesão pratica à dignidade de uma infinidade de pessoas, portanto, mais severa, que merece ser
combatido de modo eficaz.
O dano social subtrai a tranquilidade de toda população8
. Deixa-se a impressão que ao lesante é per-
mitido continuar tais atos, ao passo que o lesado se sente atônito e desorientado quanto aos seus direitos.
Acaba, então, a aceitar a situação porque não sabe ao certo como, se ou a quem, ao menos, deve recorrer.
Para descrever melhor, o estado da população se sintetiza em resignação. Aceitar passiva as adversi-
dades é exatamente o que espera o lesante, tendo como base, tão somente, a sua racionalidade económica,
direcionada a compatibilizar, a seu modo, gastos e lucros, sujeitando os consumidores aos mais indignos
tratamentos.
O dano de esfera social vai implantando, velada e sutilmente, uma sensação progressiva de sujeição
aos quadros atuais. Pensa-se: tudo está como deve ser, e pronto. Não se projeta qualquer tipo de solução,
restando, especialmente ao mais hipossuficiente, a submissão, o que pode concorrer para o superendivida-
mento.
Para melhor confrontar ideias, cumpre apresentar a seguinte situação hipotética: acostumado a rea-
lizar seus pagamentos por via bancária, através de débito automático, porque, ocupado, João não tem tempo
para realizar tais atividades diretamente em agências, fica surpreso com a cobrança de uma taxa de serviço,
quando, à época, ao perguntar ao gerente do banco, fora informado que nada seria acrescido a sua conta
6  AZEVEDO, 2004, p. 376: “Os danos sociais, por sua vez, são lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento
de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da segurança – quanto por diminuição de sua qualidade de vida. Os danos
sociais são causa, pois, de indenização punitiva por dolo ou culpa grave, especialmente, repetimos, se atos que reduzem as con-
dições coletivas de segurança, e de indenização dissuasória, se atos em geral de pessoa jurídica, que trazem uma diminuição do
índice de qualidade de vida da população”.
7  MORAES, 2006, p. 246: “Sob esta perspectiva constitucionalizada, conceitua-se o dano moral como a lesão à dignidade da
pessoa humana”.
8  AZEVEDO, 2004, p. 375: “A segurança, nem é preciso salientar, constitui um valor para qualquer sociedade. Quanto mais
segurança, melhor a sociedade, quanto menos, pior. Logo, qualquer ato doloso ou gravemente culposo, em que o sujeito ‘A’ lesa o
sujeito ‘B’, especialmente em sua vida ou integridade física e psíquica, além dos danos patrimoniais ou morais causados à vítima, é
causa também de um dano à sociedade como um todo e, assim, o agente deve responder por isso. [...] A ‘pena’ – agora, entre aspas,
porque no fundo, é reposição à sociedade -, visa restaurar o nível social de tranqüilidade diminuída pelo ato ilícito”.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
habitual. Após realizar os cálculos de quanto teria desembolsado em três anos, reparou que os gastos mês a
mês não impactavam tanto em seu orçamento – por isso não havia notado a situação velada -, mas que, ao
final, isso correspondia à importância significativa, que poderia ser utilizado para cobrir outras obrigações.
Sentindo-se fragilizado ante o poderio do banco, mesmo questionando seu gerente, não obteve resposta posi-
tiva, restando-lhe o amparo do poder judiciário, que, não se sabe quando, poderá ter tais valores recuperados.
Fatos como este supracitado repetem-se diuturnamente, sem controle prévio e apropriado, deixando
o consumidor convencido que os esforços empregados para tal fim podem resultar em algo assaz desgastante.
Tendo sua esfera existencial já fortemente atingida pelo ato em si, ainda pode se ver mais envolvido em razão
das tentativas, digamos, estéreis.
3. O APARELHAMENTO NOCIVO E SISTEMÁTICO DO “DANO EFICIENTE”.
Notórios, nos meios midiáticos, os abusos cometidos por empresas de grande poder socioeconômico,
como é o caso de companhias aéreas, operadoras de telefones, dentre outras. Mais alarmante que isso é sa-
ber que os casos se repetem, que as mesmas empresas mantêm suas atividades desvirtuadas porque não há
controle eficaz9
.
O fato é que, por não haver freios legais, acostumam-se a desempenhar suas atividades sem qualquer
apego à vida humana. É dizer que as suas decisões serão sempre orientadas pelos resultados econômicos. Se
os ganhos compensam, descarta-se a condições psicofísicas dos indivíduos envolvidos, podendo os lesantes,
então, submeterem-se às possíveis ações judiciais – quando algum lesado tiver disposição para tal -, e se for
condenado, deverá pagar o quantum arbitrado em juízo, de caráter compensatório.
Vislumbrando as quantias de indenização que porventura surjam, os lesantes têm segurança em sa-
ber o patamar que irá interferir em seu orçamento. Porque as indenizações compensatórias são antecipada-
mente cognoscíveis, estes entes, alheios aos resultados que podem ser devastadores, raciocinam que o lucro
compensa.
É nesse sentido que se opera o “dano eficiente”, na concepção de César Fiúza (FIÚZA apud PIMEN-
TA e LANA, 2010, p. 128)10
. O agente lesante encontra campo lacunoso – em legislação – para aplicar o seu
intento, sem se ater ao princípio jurídico mais importante, a dignidade da pessoa humana, insculpida no art.
1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, norma que rege todo o ordenamento
brasileiro.
Por controlar todo o processo danoso, os custos das operações etc., o lesante chega a tranquila con-
clusão que os custos com a readequação do produto, em se tratando, por exemplo, do recall, seria muito
mais dispendioso que manter a situação como está, sujeitando-se, se for a hipótese, às possíveis indenizações
compensatórias, e se condenado for.
Pela insignificância, e ante o poderio econômico do lesante, na maioria das vezes estas mesmas
empresas pressionam a realização de acordos, e logo no início, sem conferir o potencial lesivo do mérito da
questão, já são encerrados inúmeros casos. Restam, portanto, alguns poucos que, ao final, não conseguirão
efetivamente exprimir os caráteres dissuasivo, exemplar e punitivo, em face da conduta.
9  FARIAS, ROSENVALD e NETTO, 2014, p. 411: “[...] As estatísticas demonstram que o Poder Judiciário e, especialmente os
juizados especiais, converteram-se em repositórios de demandas de responsabilidade civil. Assombra a reiteração de demandas
contra os mesmos réus, pelas mesmas práticas reveladoras de um profundo descaso com os seus clientes e a sociedade. Há uma
subversão axiológica, haja vista que a lógica puramente patrimonialista e individualista – de uma racionalidade estritamente eco-
nômica -, paira sobre situações jurídicas existenciais e metaindividuais. A eventual reparação de danos será um preço previamente
conhecido e contabilizado pelo lesante”.
10  FIÚZA apud PIMENTA e LANA, 2010, p. 128: “Fala-se, por fim, em dano eficiente e dano ineficiente. Ocorre dano eficiente,
quando for mais compensador para o agente pagar eventuais indenizações do que prevenir o dano. Se uma montadora verificar
que uma série de automóveis foi produzida com defeito que pode causar danos aos consumidores, e se esta mesma empresa, após
alguns cálculos, concluir ser preferível pagar eventuais indenizações pelos danos ocorridos, do que proceder a um recall, para
concertar o defeito de todos os carros vendidos que forem apresentados, estaremos diante do dano eficiente”.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Para melhor aclarar o tema, vale lembrar o emblemático caso Pinto Case em que a Ford produziu car-
ros em formato de pinto, como o próprio nome sugere, onde o arranjo e qualidade das peças não condiziam
com a segurança desejada. Assim, em virtude de acidente no qual houve a morte do condutor, além de graves
lesões nos passageiros, chegou-se ao poder judiciário dos EUA a questão, momento em que ficou constatada
a má colocação do tanque de combustível, assim como a fragilidade do material empregado, o que ocasionou
o evento trágico.
Comprovou-se, ademais, inclusive certificado pelo dono da empresa em audiência, que era do conhe-
cimento da Ford o aludido problema, contudo, em razão da alteração do design do produto para a reformula-
ção, seria melhor se submeter às possíveis indenizações, se fosse o caso, pagando as quantias compensatórias.
Consternado com a desconsideração à vida, o Tribunal da Califórnia determinou a condenação em
indenizações de caráteres compensatório e punitivo, esta muito mais acentuada, com o intuito de provo-
car verdadeira repressão ao comportamento praticado e aviso aos demais pretensos lesantes (LOURENÇO,
2008, p. 4 e 5).
Logo, a lei não pode dispor de espaços que facilitem as citadas manobras. De tal modo que se impõe
o auxílio da análise econômica do Direito para dirimir estas falhas, direcionando o estudo, a feitura, e a apli-
cação da norma para eliminar do lesante a visão restrita da racionalidade econômica. Com isso, as atividades
serão enformadas a atingirem a eficiência, sem, contudo, dar margem aos danos11
.
4. O DIÁLOGO ENTRE SISTEMAS COMO FORMA DE APLACAR DIFERENÇAS E FOMENTAR
GANHOS SOCIAIS.
No sistema anglo-saxônico, o common law desenvolveu-se ferramenta a ensejar a responsabilização
do agente através de uma pena civil, os designados punitive damages. Tal instrumento, além de vir acompa-
nhado à compensação do lesado, tem por fulcro a penalização à conduta lesiva e servir de exemplo para que
os demais desistam de tal iniciativa.
Mesmo diante de toda resistência do sistema civil law em acolher tal instrumento, atendendo-se às
reservas e adequações pertinentes, frise-se: não há mais razão para o distanciamento entre sistemas, vez que
o fim será sempre a proteção humana, através do reconhecimento pleno da dignidade da pessoa humana.
Além disso, a função punitiva da responsabilidade civil proporciona o versátil enlace social do instituto, que
pode, ao mesmo tempo, servir de controle preventivo e pena civil.
Reflexo dessa imprescindível tutela social desponta cada dia mais, sobretudo no poder judiciário bra-
sileiro, soluções voltadas a desestimular tais condutas lesivas, ainda que as condenações hodiernas, nem de
perto, possam ser comparadas àquelas aplicadas, mormente, nos EUA12
.
Por sua relevância, expõe-se o inteiro teor de trecho de recente decisão de primeiro grau de jurisdi-
ção, no Estado do Ceará, por meio da qual o magistrado salienta o papel punitivo da indenização pela respon-
sabilidade civil, instrumento regulador da conduta social: “Também, deve a indenização servir de advertência
ao ofensor, evitando-se, dessa forma, a reincidência, exteriorizando seu caráter punitivo e preventivo, através
da fixação de um valor razoável” 13
.
11  PIMENTA, 2006, p. 169: “O que pressupõe a análise econômica do Direito é que a conduta legal ou ilegal de uma pessoa é
decidida a partir de seus interesses e dos incentivos que encontra para efetuá-la ou não. Parte-se da premissa que os agentes – su-
jeitos de direito – irão conduzir-se diante da legislação de forma a fazer a escolha que incorra em uma melhor relação quantitativa
entre os custos e riscos envolvidos e os possíveis benefícios (escolha baseada no critério eficiência)”.
12  MINAS GERAIS, 2011: “No que se refere ao quantum indenizatório referente ao dano moral, a despeito de não ser expres-
samente adotada por nosso ordenamento jurídico a doutrina norte-americana do punitive damages, é lugar comum na doutrina e
na jurisprudência que a indenização deve levar em conta o dano, a capacidade econômica da vítima e do agente, bem como o viés
pedagógico da indenização, capaz de desestimular a reiteração da conduta social indesejada”.
13  (SENTENÇA, 2015, p. 332).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
CONCLUSÃO
Há de se acolher o que de bom se construiu em tradição alienígena, como bem assevera Nelson
Rosenvald (ROSENVALD, 2014, p. 165), porque os ganhos sociais serão sempre maiores que a precipitada
inobservância14
.
Guardadas as proporções regionais e culturais, que devem ser respeitadas, a função punitiva atende-
rá, inclusive, à função social da responsabilidade civil, maior contributo a ensejar que se evitem, preventiva-
mente, a incidência do dano, estando, pois, mais condizente com os ditames da cláusula geral da dignidade
da pessoa humana.
Com a função punitiva, o sujeito sentir-se-á mais seguro, de que haverá a resposta apropriada do po-
der judiciário, além disso, os demais entes de poderio econômico e social saberão o revés legal aposto às suas
más condutas. Concomitante a isso, também, observe-se: o pretenso lesante não terá como calcular possíveis
vantagens econômicas que existiriam se se sujeitasse, eventualmente, às condenações judiciais, como no
caso de indenizações compensatórias, ao invés de conferir ao produto ou ao serviço os ajustes necessários
à segurança do consumidor, porque as indenizações de caráter punitivo não podem ser avaliadas de modo
antecipado.
Assim, ficam evidenciadas a eficiência e a segurança jurídica determinadas pela função punitiva da
responsabilidade civil, tendo em conta que o dano eficiente não mais poderá se formar, desmontando, com
isso, o arranjo perigoso inclinado a causar o dano social, grande mal da atualidade.
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14  ROSENVALD, 2014, p. 165: “As fronteiras foram rompidas. Não há como preservar a intransponível dicotomia entre a civil
law (romanística, codificada e identificada por um ordenamento legislativo) e a common law (não romanística, não codificada e
identificada em um ordenamento judiciário), tal como se fossem universos apartados. A nacionalidade do direito privado se revela
um obstáculo às relações econômicas, cada vez mais intensas, entre cidadãos e empresas de países e sistemas jurídicos diversos.
Ademais, a pureza metodológica ficou no passado. As nações da common law recorrem à legislação, assim como os Estados filiados
ao civil law concedem paulatina importância à construção do direito pelos tribunais e pelos costumes”.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
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nº: 0543433-35.2012.8.06.0001. Classe: Procedimento Ordinário. Requerente: Anadir Espindola Barreto e
outro. Requerido: Coelce – Companhia Energética do Ceara. Juiz de Direito Dr. Jose Cavalcante Junior. De-
cisão datada de 14/09/2015 e publicada em 16/09/15, no Diário da Justiça, em página de n.º 332.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
JUDICIAL DO DIREITO SOB A ÓTICA DA TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO:
IMPLICAÇÕES NO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
ALEXANDRE HENRIQUE TAVARES SALDANHA
Especialista, Mestre e Doutorando em Direito pela UFPE. Professor da Universidade
Católica de Pernambuco e das Faculdades Integradas Barros Melo. Advogado membro
da comissão de propriedade intelectual da OAB/PE.
VICTOR RAFAEL ALVES DE MATTOS
Acadêmico em Direito pela AESO Barros Melo.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Hermenêutica filosófica; 2. Müller e a jurisprudência hermenêutica; 3.
Pré-Compreensão; 4. Circularidade hermenêutica; 5. Segurança jurídica e metódica. Conclusão.
Referências.
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como objetivo analisar as estruturas motoras da hermenêutica tratada por Müller
e a Jurisprudência Hermenêutica para contrastar com o princípio da segurança jurídica. A pergunta norte-
adora dessa pesquisa é se este recente movimento hermenêutico, baseado nas ideias de Heidegger e Gada-
mer, oferece segurança jurídica. Esta pergunta, portanto, não pode ser compreendida como se estivéssemos
abordando uma proposta política, pois a hermenêutica filosófica não prescreve elementos axiológicos, mas,
descritivos.
Müller se insere no contexto pós-guerra e toma para si o desafio de indagar e romper1
com o positivis-
mo jurídico, especialmente o kelseniano. Isso faz de Müller, necessariamente, um pós-positivista.
A fonte primordial de Müller para desenvolver suas ideias foram bastante profundas, visto que a her-
menêutica filosófica em seu tempo estava em processo de transformação paradigmática bastante elementar.
Heidegger findou com a hermenêutica ontológica e Gadamer seguiu essa característica. Em uma metáfora
simples, diz-se que a hermenêutica sofreu uma mudança instrumental. O sujeito outrora utilizava de uma
luneta, necessitava enxergar toda a mínima essência daquele objeto para auferir uma verdade sobre este.
Devido às frequentes falhas deste método, a “nova” hermenêutica utiliza espelhos em volta do objeto, pois
não há mais dissociação pura entre sujeito e objeto no processo de compreensão.
1. HERMENÊUTICA FILOSÓFICA.
O termo “hermenêutica” origina-se do deus grego ‘Hermes’. A este cabia a função de mensageiro
dos deuses, interpretando suas mensagens àqueles que não poderiam compreendê-la. Como rotineiramente
pontua Lênio Streck, nunca se soube o que os deuses realmente disseram, mas o que Hermes interpretou.
Esta alegoria permite-nos concluir a atual função da hermenêutica contemporânea. Sob a ótica desta a on-
tologia é descartada para dar lugar ao analítico, a ““essência” é apenas, ela própria, uma palavra que ganha
sentido num contexto linguístico” (FERRAZ JR., 2015).
1  Este rompimento não significa total abdicação das ideias contidas na obra Teoria Pura do Direito.
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Direito(s) em debate.
A hermenêutica “se restringia a tarefa de fornecer às ciências declaradamente interpretativas algu-
mas indicações metodológicas, a fim de prevenir, do melhor modo possível, a arbitrariedade no campo da
interpretação” (GRONDIN, 1999). Isto implica em dizer que em todo momento da história em que fora ra-
cionalizado metodologias interpretativas pode-se falar em hermenêutica no seu sentido amplo.
O caráter usado na antiguidade até o século passado tinha a função basilar de descobrir, pois acredita-
va-se que havia um significado real e verdadeiro para os componentes da vida, fenômenos e textos. Juridica-
mente estas ideias extremaram no positivismo clássico, onde a lei seria aplicada à determinado caso através
do método dedutivo, sendo a interpretação normativa restrita ao uso de técnicas interpretativas pré-estabe-
lecidas a todo e qualquer processo decisório.
Hodiernamente o fator fulcral está centralizado na ‘compreensão’. Schleiermacher pode ser indicado
como um daqueles que universalizaram a sistemática elaborada por Lutero, buscando o entendimento do
texto com a vinculação do significante para com o respectivo autor. Este encarava como arbritrária o acrésci-
mo de conteúdos próprios ao texto pelo intérprete (GRONDIN, 2002 apud SCHROTH).
Há também a colaboração de Dilthey, com seu enfoque psicológico, porém, apenas a partir de Heide-
gger pode-se falar em compreensão hermenêutica nos moldes desenvolvidos por Gadamer.
O desenvolvimento de Gadamer, destacado repetidas vezes por Müller são as condições de possi-
bilidade da compreensão. Para que esta ocorra faz-se necessário haver a pré-compreensão. Isto porque o
intérprete, no seu processo interpretativo, atrela-se a um fator orientador, cuja essencialidade é histórica e
contextual. Assim, cada interpretação será uma aplicação do estado de consciência do intérprete. Eis porque
a compreensão gadamariana não é um processo descritivo e reprodutivo, mas produtivo e criativo. A circula-
ridade hermenêutica se pauta no ‘embate’ transcorrido entre o texto na sua tradição amparado de signos e a
contribuição da consciência trazida pelo intérprete. “Portanto, o intérprete tem de saber que a interpretação
de um texto é sempre uma aplicação ao presente” (GRONDIN, 2002 apud SCHROTH apud GADAMER).
2. MÜLLER E A JURISPRUDÊNCIA HERMENÊUTICA.
Classificar os movimentos contemporâneos hermenêuticos é, além de um árduo trabalho, impossível
sistematizar com exatidão em diferentes grupos. Isto se dá pelo fato de não haver escolas, mas movimentos
convergentes em determinados aspectos e influências. O autor utilizado como base teórica desta pesquisa
enquadra-se na chamada “jurisprudência hermenêutica”. O termo é utilizado por Gustavo Just, em sua obra
“interpretando as teorias da interpretação”. O motivo da sua escolha é justificado. “Jurisprudência” relacio-
na-se com as teorias consagradas “jurisprudência dos conceitos” e “jurisprudências dos valores”. O termo
seguinte denota o pensamento influente desta corrente, a filosofia hermenêutica.
A jurisprudência hermenêutica surge a partir de um contexto antiformalista trazida pelo pós-positi-
vismo. Nesta esfera são levantadas as bandeiras da práxis decisória e sua axiologia em sentido epistemoló-
gico, demonstrando dessa forma um rompimento com as ideias centrais do positivismo. Aquele funda-se na
ideia de que a norma e a realidade não podem ser estabelecidas em mundos paralelos. A norma não pode
ser fundamentada e racionalizada pura e simplesmente através da subsunção, pois a realidade intervém no
processo interpretativo.
A partir desse novo paradigma é que a jurisprudência hermenêutica se estabelece pelas suas raízes da
hermenêutica filosófica de Gadamer. Noções como “pré-compreensão”, “círculo hermenêutico”, são utiliza-
das pelos teóricos desse movimento. Apesar disso, esta corrente não promulga uma interpretação filosófica,
mas pela práxis e com o uso da dogmática.
Não se pode confundir o uso de determinados elementos da filosofia com uma abordagem filosófica.
Este movimento visa a metodologia prática da interpretação, sendo assim, o tratamento geral do direito, como
encara Dworkin pela sua filosofia analítica, é destoante com a JH.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Veremos mais adiante que um comportamento comum dos teóricos da JH é a separação herme-
nêutica em determinadas áreas do direito. Müller, em sua teoria estruturante, evidencia sua canalização na
hermenêutica constitucional (Müller, 2007). Para este, a universalização da metodologia interpretativa é um
erro, visto que a natureza de um determinado diploma possui características e celeumas próprios.
3. PRÉ-COMPREENSÃO.
A verificabilidade objetiva da decisão judicial se perfaz através de um caminho cuja base fulcral é
a racionalidade. A visão da JH sobre a determinabilidade dos elementos compositores dessa racionalidade
está aportada em um copo estrutural denso mais significativo e concreto do que aspectos mais específicos e
divergentes da metódica de cada um dos autores dessa “escola”2
.
A estrutura elementar da JH é, em primeiro lugar, o “esclarecimento das condições e do potencial
de rendimento da objetividade jurídica” (MÜLLER, 2011). O esclarecimento ocorre quando são expostos os
fatores que participam da interpretação e concretização normativa, que são mais de um. Porém, primeira-
mente, iremos tratar da pré-compreensão.
A filosofia de Heidegger se pautava, dentre diversos aspectos hermenêuticos e fenomenológicos, a
pré-estrutura da compreensão. Segundo Jean Grodin, Heidegger buscou estudar aquilo que estava por de-
trás da elocução, logo, a pré-compreensão é uma estrutura fundamental do seu pensamento. Pode-se en-
tender esta “que o “Dasein” se configura por uma interpretação que lhe é peculiar e que se encontra antes
de qualquer elocução ou enunciado” (GRODIN, 2003). Basicamente, a pré-compreensão está presente em
todo agente ao se debruçar sobre um objeto ao estuda-lo. Na ciência não é diferente, especialmente nas ditas
humanas e jurídicas.
Tomando a pré-compreensão como elemento indissociável de uma relação entre o sujeito e objeto sob
a qual ideias pretéritas e específicas de um agente dentro daquilo que se é, aonde é e quando é, a JH adota
como imprescindível não apenas a aceitação desta impossibilidade dissociativa, mas a exposição em cada
tentativa de compreensão (concretização) normativa, o que Esser vai chamar de “tomada de consciência das
condições fundamentais do seu trabalho” (1970).
O caráter axiológico da pré-compreensão não pode ser visto como uma contradição às ideias metódi-
cas e racional da interpretação. Parte-se do princípio de que todo intérprete não pode dissociar seu ser dos
conhecimentos e valores inerentes à sua formação e visão de mundo. Como alude Gustavo Just:
A consciência metodológica deixa patentes os fundamentos verdadeiramente
decisivos da interpretação e os torna acessíves à crítica, enquanto a ilusão da
suficiência do mero silogismo dos métodos compromete, na realidade, toda
possível autonomia jurídica da decisão relativamente às tentativas políticas e
ideológicas de usurpação instrumental da norma
A consciência dos elementos axiológicos não entrega o direito à política, pois, como enfatiza Esser, o
que causa perigo ao direito é o obscurecimento desse elemento. A partir do momento em que há a tomada de
consciência, pode-se exigir maior fundamentação racional do intérprete, levando consequentemente a um
maior controle racional da decisão judicial. Não há como falar em método racional sem objetivar a redução
da subjetividade do intérprete, e a tomada de consciência é um dos primeiros passos para a compreensão do
processo decisório em seu aspecto psicológico e factual. Como bem colocado pelo professor Andreas Krell “o
objetivo do método é reduzir a subjetividade do intérprete, possibilitar o seu autocontrole e “direcionar o seu
agir para caminhos previsíveis” (2014 apud SCHMITT GLAESER, 2004, p. 139 ss.; STRAUCH, 2001, p.
200 s.).
2  Como já descrito neste artigo, a JH não é considerada como uma escola de pensamento pela ausência de aspectos formadores.
27
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A dificuldade maior, como aponta Müller:
começam quando os preconceitos produtivos, que ensejam materialmente a
compreensão, devem ser separados dos que impedem a compreensão corre-
ta, a concretização conforme a norma. Essa separação não pode se dar ante-
riormente; ocorre na própria compreensão. Assim a reflexão e racionalização
dos preconceitos tanto produtivos quanto destrutivos – vistos do ângulo da
norma – se torna igualmente uma tarefa da teoria estruturante da norma.
Sob esse argumento que Müller enfatiza o aspecto elucidativo e introducionista dos elementos da
pré-compreensão na fundamentação do intérprete.
4. CIRCULARIDADE HERMENÊUTICA.
Como tratado anteriormente, a pré-compreensão compõe a estrutura da racionalidade do intérprete.
A consciência da sua existência é um passo necessário na formulação do pensamento da JH, entretanto, esta
por si só não elimina por completo a indeterminação do direito.
A doutrina formalista, sobretudo em seu raciocínio de codificação e positivismo3
não obteve êxito ao
aplicar medidas de exacerbação de um direito legislado, acreditando na ideia de que poderia complementar
e determinar o direito previamente ao juiz. Kelsen, por sua vez, avançou nesta problemática quando aludiu:
A ideia de que é possível, através de uma interpretação simplesmente cog-
noscitiva, obter Direito novo, é o fundamento da chamada jurisprudência
dos conceitos, que é repudiada pela Teoria Pura do Direito. A interpretação
simplesmente cognoscitiva da ciência jurídica também é, portanto, incapaz
de colmatar as pretensas lacunas do Direito (2009).
De fato, a jurisprudência dos conceitos demonstrou exatamente como não há possibilidade de prever
com exatidão uma decisão jurídica. Faltou a Kelsen desenvolver o processo decisório hermenêutico.
Assim, a proposta da JH se dá em analisar a indeterminação do direito legislado que caminha ao di-
reito aplicado. Busca-se a partir de agora superar o mero preenchimento e enrijecimento do direito legislado,
pois, o entendimento da JH se pauta no fato de que, todo esse processo de aplicação4
deve ser pensado sob
a circularidade hermenêutica. Isso resulta em um estudo não mais linear e hierárquico, mas simultâneo e
dialético.
A medida que se examina os pressupostos e enfoque analítico da JH fica mais notório sua influência
filosófica. Gadamer esboçou a respeito da circularidade hermenêutica que ocorre nos diversos campos cien-
tíficos, argumentando acerca da compreensão dialética, formulada pela pergunta e resposta constante no
processo interpretativo.
O caráter noético da hermenêutica anterior a Heidegger está pautada em um processo linear da
interpretação e pela busca ontológica através do método racional. Basicamente o positivismo científico5
. O
processo dialógico gadameriano opera sob uma perspectiva de questionamento entre o intérprete e o objeto
para fins de compreensão. Compreender, para Gadamer, significa aplicar um sentido aos nossos questiona-
mentos. Isso não significa que nossos questionamentos remeterão à uma compreensão objetiva e pura de um
3  Aqui faz-se importante as recomendações de Norberto Bobbio em não confundir positivismo com positivação. Aquele é uma
“doutrina jurídica segundo a qual não existe outro direito senão o positivo” (BOBBIO, 2006). Esta significa o direito descrito e
posto, particular, temporal e mutável.
4  Nesse caso, a aplicação normativa é chamada por F. Müller de “concretização”.
5  Não confundir o positivismo científico com o jurídico. Apesar de alguns aspectos semelhantes, estes dois movimentos possuíam
diferenças significativas não apenas no seu objeto, mas em suas ideias também.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
sentido, pois o ser (intérprete) é o sujeito mediador entre o objeto e a compreensão. E como já mencionado
no capítulo anterior, o ser é constituído de uma pré-estrutura compreensiva substancial.
Esses elementos sustentam uma posição contrária ao historicismo objetivo sob a ótica aplicacionista.
Em épocas diferentes é comum a compreensão diversa das pretéritas sobre um mesmo texto, visto que o
processo dialógico e questionador remeterá aos problemas presentes, ocasionando uma dependência rígida
entre o significado6
e o tempo em que o sujeito o atribui. Para os juristas é importante uma argumentação
neste sentido, ainda que o leitor discorde dessa posição. O argumento historicista causa diversas desconexões
sociais entre o texto legal e a composição real dos fatos presentes. Se compreender é questionar-se sobre um
problema presente, a partir de um intérprete vivente neste presente, a sua compreensão não será capaz de
destoar do entendimento presente.
O teor simultâneo trazido por Gadamer revela-se como corolário de uma compreensão formulada
essencialmente no questionamento. Um enunciado elocutivo trará pressupostos materiais (conteúdo) insu-
ficientes para uma compreensão participativa. Haverá simultaneidade quando o agente pensar simultanea-
mente nos pressupostos.
A partir deste panorama torna-se mais clarificado as ideias da JH. Sob a ótica do Direito não é neces-
sário nem recomendado seguir puramente o raciocínio de Gadamer, haja vista que esta fora feita dentro do
âmbito filosófico. Porém, sem a estrutura filosófica hermenêutica não é possível compreender a JH.
Esta, por sua vez, utilizou da circularidade e seus pressupostos para superar o entendimento kel-
seniano de que norma e realidade residem em esferas intocáveis. Ou seja, a JH não se preocupou apenas
em conscientizar os pressupostos do raciocínio jurídico, mas em demonstrar que os dois lados jurídicos se
entrelaçam na sua esfera interpretativa. A norma e o fato são, assim, indissociáveis, sendo necessário para
uma compreensão racional a influência mútua da realidade e o texto normativo. A simultaneidade ocorre
pela análise mútua entre o norma e fato em contraponto a linearidade apresentada por Kelsen. Para ilustrar
melhor, Kaufmann trouxe um exemplo dessa simultaneidade e pré-compreensão no direito penal:
O ácido clorídrico não é, nem nos termos estritos da letra da lei, nem segun-
do o sentido possível da palavra [..], uma arma. Por outro lado, o apuramento
da matéria de facto sem referência a uma norma não conduz à questão de
saber se o ácido clorídrico é uma arma. Só se será confrontado com esta
questão, se se ‘pré-compreender’ o acontecimento como um possível caso de
roubo qualificado. Se se ‘pré-compreender’ o caso diferentemente, porven-
tura como tentativa de homicídio, não importa saber se o ácido clorídrico é
uma tentativa de homicídio, não importa saber se o ácido clorídrico é uma
‘arma’. Vemos que sem pré-compreensões razoáveis nunca se chega aos pro-
blemas jurídicos relevantes. Também é fácil de identificar, aqui, o ‘círculo’
do processo de compreensão: só quando eu sei o que é roubo qualificado,
posso entender o caso concreto como um caso de roubo qualificado; todavia,
não posso saber o que é roubo qualificado sem uma análise correcta do caso
concreto (2002). 
Como Gustavo Just bem coloca, esse raciocínio desmonta a ideia de que a norma possa ser determi-
nada abstratamente, sendo toda interpretação é aplicação. Seu sentido será buscado a partir da solução do
caso concreto.
6  É importante que o leitor tenha sempre em mente a sinonímia entre sentido (compreensão) e aplicação na visão gadermaria-
na. Uma aplicação do sentido é o item finalizador do processo interpretativo.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
5. SEGURANÇA JURÍDICA E METÓDICA.
A segurança é um fator almejado pelo ser humano sob um espectro global, dentre os quais inclui-se
a modalidade judicial. A estrutura do Estado é articulada sob o enfoque de defender e preservar a segurança
dos que o constituem. Avançando para o Estado democrático de direito este princípio, especialmente na sea-
ra judicial, recebe espaço ainda maior e efetivo. Um Estado sem insegurança jurídica flerta com o Estado de
natureza, haja vista ser o poder judiciário a ultima ratio das soluções de litígios públicos e privados.
Encontrar segurança dentro de um Estado para que seu povo possa prosseguir os atos da vida civil
e profissional é o caminho da civilidade. Por isto, acerta J. J. Calmon de Passos quando profere: “civilizar-se
é colocar imune ao arbítrio e isto só é possível quando deixamos de nos submeter ao governo dos homens e
passamos a obedecer a um conjunto de regras” (1999). Nota-se o fator objetivo almejado pelo autor, isto é, a
vinculação do dever ao direito previamente determinado.
Para fins desta pesquisa, trabalharemos essencialmente com a divisão estabelecida por Tércio Ferraz
Jr, dividida em duas formas, sendo a função-certeza “a determinação permanente de efeitos que o ordena-
mento jurídico atribui a um dado comportamento, de modo que o cidadão saiba ou possa saber de antemão a
consequência de suas próprias ações”, e função-igualdade seria “um atributo da segurança que diz respeito
não ao seu conteúdo, mas ao destinatário das normas” (1981).
Sob o contexto hermenêutico da JH, quando se fala especialmente da circularidade hermenêutica e
sua dependência recíproca do caso prático, resulta inevitável cogitar a insegurança que esta conduta tenderá
a gerar ainda mais com o fomento dessas ideias. Nesse aspecto não há homogeneidade entre os pensamentos
de cada autor. Afinal, como almejar um sistema judicial previsível?
Um dos requisitos trazidos por Canotilho é o da exigência da clareza das leis, “pois de uma lei obs-
cura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco, capaz de
alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto” (1993). Esta é uma visão primária de um consti-
tucionalista. Müller adota a metódica como via racional e passível de maior verificação objetiva da decisão.
Como já exposto em capítulos anteriores, a JH não acredita ser possível a total previsão normativa (da
mesma forma que pensou Gadamer e Heidegger). Isso seria contrastante com a estrutura do seu pensamen-
to. Todavia, como alertou João Maurício Adeodato e o próprio Müller, na contemporaneidade não é mais ca-
bível a pergunta maniqueísta, respaldada em uma mera afirmação ou negação da previsibilidade. Atualmente
discute-se o grau de racionalidade, assim como o grau de previsibilidade normativa.
O tracejo da aplicação7
normativa é desenvolvido pela metódica, motivada a “direcionar o seu agir
para caminhos previsíveis” (Krell, 2014 apud SCHMITT GLAESER, 2004; STRAUCH, 2001). Dessa forma,
o intérprete deve revelar o máximo possível seu processo interpretativo, demonstrando as etapas metodoló-
gicas que seguiu. Esse processo interpretativo, para ser válido, deverá demonstrar a vinculação da produção
substancial decisória com a norma.
A função da metódica é, em essência, de demarcar um caminho verificável do processo de aplicação
para reduzir qualquer abuso decisório, ocasionando no ferimento ao princípio da segurança jurídica. Um
texto normativo não pode ser interpretado de inúmeras formas, tão somente contraditórias, por uma mesma
corte, sob pena de violar a confiança do cidadão8
. Na visão de Andreas Kreel (2014), o problema desta inter-
pretação difusa pela corte brasileira está na
pré-compreensão individual, que naturalmente varia, sofre pouca orientação
e consolidação por parte da doutrina jurídica nacional sobre os métodos in-
terpretativos, em que diferentes escolas se digladiam, sem causar, contudo,
maiores efeitos em relação ao trabalho prático da aplicação do Direito.
7  Ou concretização, a depender da nomenclatura utilizada pelo autor.
8  Nomenclatura utilizada por Canotilho em seu curso de Direito Constitucional.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Esses argumentos demonstram que a interpretação não pode ser inteiramente racionalizada, visto
que sempre haverá fatores irracionalizáveis. Porém, como já mencionado, importa saber o grau de racionali-
dade possível a ser aplicável na metódica.
Müller identifica também que a metódica não é capaz de alcançar uma racionalidade universal e ab-
soluta, mas, assim como os cânones da interpretação, sua limitação não deve significar uma postura radical
de exclusão, mas, de adotá-lo conhecendo os limites do seu alcance e sua relatividade, pois, segundo o autor,
“as figuras de método são indispensáveis como momento da aplicação do direito, que estabilizam, racionali-
zam e facilitam a verificabilidade” (Müller, 2011).
Dessa forma, todos os meios adotados pelo direito, tanto na linguagem quanto nos elementos mate-
riais, este acúmulo, quando utilizado para marcar as etapas em que o intérprete percorre seu raciocínio, é
indispensável, pois o grau de racionalidade e verificabilidade tenderá a ser maior.
CONCLUSÃO
Conclui-se dessa pesquisa que a segurança jurídica pode ser saciada menos em termos herméticos que
em graus nivelares. O estudo das estruturas fora imprescindível para o estabelecimento do que se pretende
aprofundar. Apesar da concretização hermenêutica lidar com a práxis jurídica, evitando confundir termos
jurídicos com conceitos filosóficos, a proposta de Müller está encalcada em uma seara filosófica por demais
complexa. Como nosso propósito fora questionar, existiu a necessidade de conhecer e expor as características
estruturais da JH.
Dessa forma, pode-se defender que sim, existe segurança jurídica neste contexto hermenêutica. En-
tretanto, esta garantia não ocorrerá de maneira automatizada, mas com demasiado esforço do intérprete e
aqueles que cooperam na formação da decisão.
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nal, 1999
32
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
DIREITOS AUTORAIS E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET:
NOVOS MODELOS PARA UMA NOVA CULTURA DE PARTICIPAÇÃO
ALEXANDRE HENRIQUE TAVARES SALDANHA
Especialista, Mestre e Doutorando em Direito pela UFPE. Professor da Universidade
Católica de Pernambuco e das Faculdades Integradas Barros Melo. Advogado membro
da comissão de propriedade intelectual da OAB/PE.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Liberdade de expressão na Internet; 2 Direitos Autorais e limites à cria-
ção de bens culturais; 3 Cibercultura e participação: novos modelos de Direitos Autorais para novas
dimensões das liberdades de comunicação; Considerações Finais; Referências.
INTRODUÇÃO
As contemporâneas tecnologias da informação provocaram, e continuam provocando, diversos im-
pactos nos comportamentos sociais, na produção econômica, no sistema legal e em praticamente quaisquer
setores do convívio humano. No que diz respeito ao Direito, são diversas também as consequências do de-
senvolvimento tecnológico na forma como alguns direitos são interpretados, aplicados, e ainda na própria
criação de “novos” direitos para novos tempos. A cibercultura, expressão que faz referência a este momento
de relacionamento hiperdimensionado entre homem e tecnologias digitais, se caracteriza por novos hábitos,
novos comportamentos, novas exigências sociais etc. Daí produzir tantos impactos no desenvolvimento do
sistema jurídico.
Nestes tempos de internet, compartilhamentos digitais e microprocessadores realmente “micros”, a
produção e o acesso à informação adquire uma nova proporção, pois os mecanismos e ambientes propícios a
lançar e adquirir informações, para comunicar e ser comunicado, são facilmente dispostos, encontrando-se
disponíveis em, por exemplo, qualquer aparelho moderno de telefones celulares que possam acessar a rede
mundial de computadores e as redes sociais. Ou seja, com a devida inclusão digital, todos poderão acessar
informações antes restritas a alguns meios, ou poderão produzir informações, o que estaria anteriormente
reservado a determinadas categorias profissionais e classes sociais.
Com essa ampla possibilidade de comunicações, a internet permite que cada um lance suas opiniões,
expresse suas opções artísticas, obtenha informações de seu interesse e crie algo. Justamente nessa última
possibilidade, a de criar algo que esteja afim, é que podem residir problemas com limitações impostas pelo
próprio sistema. Na verdade, a liberdade de expressão proporcionada pelas práticas cibernéticas recebe di-
versos tipos de supressão, seja pelos direitos civis (danos morais e à imagem, por exemplo), pelos direitos
penais (a exemplo dos crimes contra a honra), pelos fundamentais previstos na constituição (como a privaci-
dade) e outros. O problema que envolve o exercício da criatividade em ambiente virtual reside nas questões
de propriedade intelectual e adequação dos modelos legais de direitos autorais para tempos de cultura de
compartilhamento, de convergência, de participação etc.
Este trabalho propõe uma discussão sobre a supressão provocada pelos direitos autorais sobre a liber-
dade de expressão proporcionada pelos mecanismos da internet. A hipótese trabalhada é a de que o modelo
tradicional de direitos autorais não é adequado para novos comportamentos típicos da cibercultura, princi-
palmente aqueles que estão associados a liberdades fundamentais garantidas tanto em plano constitucional,
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
quanto em instrumentos de proteção a direitos humanos. O objetivo não é defender uma extinção de direitos
autorais, mas sim uma adaptação destes a novos modelos, a novas culturas. O que é possível, pois já há ins-
trumentos juridicamente permitidos que trabalham com novas tutelas da propriedade intelectual.
1. LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET.
Foge das pretensões de um trabalho desta dimensão conceituar objetivamente expressão tão comple-
xa como liberdade, mas é necessário frisar ao menos o caráter ambíguo da dimensão jurídica de liberdade,
pois reflete um esquema de liberdades x não-liberdades. Esta palavra vem sendo usada para significar a va-
loração dada a ações, políticas, culturas ou instituições, considerando-as de importância fundamental, ainda
que seja um ato de obediência ao direito positivo, ou a satisfação de interesses econômicos. (BOBBIO, 1986,
p. 708).
Por mais complexo que seja a expressão liberdade (do ponto de vista jurídico) reflete sempre um
relacionamento entre condutas e tratamentos legais, uma interação entre pessoas e entre pessoas e institui-
ções. Reflete um esquema entre comportamentos permitidos (as liberdades) e os proibidos por lei (as não-li-
berdades) e é justamente este esquema que vai caracterizar a sociedade “livre” e a relação que existe entre
liberdade e estado democrático.
Muitos crêem ser a democracia “uma sociedade livre”. Todavia, as sociedades
organizadas de estruturam mediante uma complexa rede de relações parti-
culares de liberdade e não-liberdade (nada existe parecido com a liberdade
em geral. Os cidadãos de uma democracia podem ter a liberdade política de
participar do processo político mediante eleições livres. Os eleitores, os par-
tidos e os grupos de pressão têm, portanto, o poder de limitar a liberdade dos
candidatos que elegeram. A democracia exige que as “liberdades civis” sejam
protegidas por direitos legalmente definidos e por deveres a eles correspon-
dentes, que acabam implicando limitações da liberdade. (BOBBIO, 1986, p.
710).
Se por um lado as liberdades estão previstas tanto no rol de direitos fundamentais previstos em cons-
tituições federais e nas declarações internacionais de direitos humanos, elas vão encontrar limites em outros
direitos ou outros valores também previstos no direito. É nessa “equação” que encontram-se as dimensões da
liberdade, ou em outros termos, é nesse balanço que serão encontrados as reais possibilidades de comporta-
mentos livres.
Contemporaneamente, é possível analisar as questões que envolvem liberdades tanto em perspectiva
otimista quanto pessimista. É possível falar em declínio das liberdades diante de ameaças a elas vindas tanto
de representantes do poder público quanto de grupos de interesses, por causa de questões como crescimento
da violência, desenvolvimento industrial, valoração das tecnologias e outros fatores. Em perspectiva oposta,
a de evolução, as liberdades vêm sendo cada vez mais afirmadas e repetidas tanto em documentos jurídico
de eficácia nacional quanto nos de alcance internacional, e estes últimos não se resumem às declarações
universais. (RIVERO, 2006, p. 5).
Sem entrar na discussão de perspectivas otimistas ou pessimistas, vale ressaltar que dentre os inú-
meros problemas que envolvem as liberdades, dentre elas há as que sofrem consideráveis impactos da con-
temporânea cibercultura e que requer enfrentamentos específicos para melhor tutela, qual seja, a liberdade
de comunicação e expressão. Dentro do esquema anteriormente mencionado da relação entre liberdades e
não-liberdades, é necessário analisar quais são os comportamentos de comunicação e expressão atualmente
permitidos e quais não o são. Incluindo na análise a questão de identificar se as não-permissões são compa-
tíveis com as exigências sociais de tempos de sociedade de informação.
Apesar de ser historicamente mais conhecida e de fazer parte, inclusive, do senso comum sobre o
assunto das liberdades individuais, a liberdade de expressão não é a única liberdade associada à livre mani-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
festação do pensamento. O desenvolvimento histórico dos comportamentos sociais e das revoluções tecnoló-
gicas fez serem identificadas outras liberdades, daí hoje falar-se em liberdade de comunicação e liberdade de
informação, além da liberdade de criação. Falar em liberdade de expressão representa o direito que todos têm
de livremente manifestar suas ideias, pensamentos, posições religiosas, ideológicas etc., o que é diferente
da liberdade de comunicação, pois esta concede o direito de comunicar e ser comunicado, além de divulgar
e receber informações. A liberdade de informação então é uma decorrência da liberdade de comunicação,
porém com ênfase aos direitos fundamentais de informar algo, de se informar e de ser informado. (FARIAS,
2007, p. 172).
Quanto à liberdade de informação, a própria declaração universal dos direitos humanos, em seu ar-
tigo 19, já prevê a liberdade de receber informações por quaisquer meios e sem limitações. A questão está
em associar informação com exercício de cidadania, com o direito de todos serem informados sobre o que
está acontecendo na sociedade, sobre fatos relevantes e, principalmente sobre conteúdos que transcendam
as esferas do público e do privado, e atinja o nível de interesse geral. (FARIAS, 2007, p. 175). Uma vez infor-
mados, os cidadãos terão condições de melhor participar da sociedade civil, de melhor interagir com o poder
público e, de certa forma, melhor compreender as próprias características culturais de sua sociedade, além
de produzir cultura. E isto pode não interessar a quem detiver poder.
Assim como qualquer modalidade das liberdades, a de informação está sob diversos perigos, seja por
exercício do poder público ou pelas próprias inter-relações entre particulares. Especificamente as de expres-
são e informação envolvem interesses econômicos, seja por causa do valor da informação, ou por causa dos
direitos que estão em conexão com as formas de expressão, como a privacidade e os direitos autorais. A ques-
tão então residiria em atingir um grau de equilíbrio entre essas liberdades e os demais interesses envolvidos,
ou supravalorizar uma coisa em detrimento de outra (valorizando a produção cultural ainda que diminuindo
questões de direitos autorais, por exemplo). Esta hipótese representaria uma quebra de igualdade, mas “se
deixamos de lado o dogma da igualdade jurídica das vontades privadas e nos voltamos às realidades, a fre-
qüência das situações de dependência que permitem a quem se encontra em posição de superioridade impor
sua vontade ao inferior fica evidente”. (RIVERO, 2006, p. 205).
Se é da própria natureza das liberdades jurídicas conter contradições, criar dogmas, e se submeter
a interesses e forças do poder público e de setores privados, no atual contexto da sociedade da informação,
com sua intrínseca cibercultura, as liberdades de expressão encontram-se ainda mais repleta de problemas.
Isto porque se o ambiente digital cria diversos mecanismos para se expressar e para exercer as liberdades
de informação, diversas também são as barreiras legais e econômicas que, de forma explícita ou implícita,
tolhem o exercício destas liberdades fundamentais.
A expressão cibercultura representa algo além de formas de conexão entre comportamento humano
e novas tecnologias, pois envolve aspirações pela construção de novos laços sociais, não fundados em cir-
cunstâncias territoriais, ou em instituições e poderes, mas baseados em novos interesses coletivos de com-
partilhamento, cooperação e processos abertos de informação e colaboração. (LÉVY, 1999, p. 132). Não são
as novas tecnologias com suas respectivas máquinas que criam a cibercultura, mas sim os usos humanos
dessas e consequentes comportamentos que assim o fazem. O que o desenvolvimento tecnológico permite é
o surgimento de novas exigências sociais, novas formas de interação entre particulares e entre particulares
com poderes públicos.
Com a rede mundial de computadores interligando pessoas e pessoas, e pessoas a informações, cria-
-se um mecanismo hábil a permitir o surgimento de uma nova concepção de inteligência coletiva e uma nova
relação com a produção de conhecimentos. Atitudes como colaborar, compartilhar, cooperar ganham força
com os mecanismos digitais disponíveis, em detrimento de lógicas privadas e individualistas como a sensa-
ção de ter, possuir, disponibilizar etc. Do ponto de vista ideal, se reconhece que o que melhor o ciberespaço
proporciona é a possibilidade de reunir conhecimentos, criações, idéias de pessoas em diferentes locais e
culturas, porém, esse acesso coletivo ao conhecimento representa mais uma fonte de novos problemas do
que especificamente de soluções. (LÉVY, 1999, p. 133).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Se por meio da internet qualquer pessoa, usando de blogs, websites e perfis em redes sociais, pode
transmitir informações e conhecimentos, pode se expressar com liberdade e pode interagir com a comunida-
de virtual de forma não proporcionada em outros tempos, esta produção de manifestações nunca esteve tão
vigiada e tão valorada.
Os instrumentos proporcionados pela internet permitem que alguém explore uma declinação artísti-
ca específica sem que precise de intermediários. Alguém pode criar um blog, ou usar de seu perfil em rede
social, para divulgar sua linha de confecções, seus utensílios, as obras de arte que realizou. Pessoas podem
usar também das plataformas virtuais para expressar idéias e opiniões, ainda que não seja considerado al-
guém que represente uma empresa de comunicação. Daí, uma das questões a serem enfrentadas seria a
que envolve limites a essas liberdades potencializadas pela cibercultura, ou, até mesmo se não há uma falsa
sensação de que essas liberdades estejam tão amplas assim.
Da mesma forma que a rede é vista como uma plataforma para expressar, para satisfazer exigências
de informação e para exercer liberdades, ela também cria um novo meio a ser explorado comercialmente por
novas formas de fazer negócios e novos desafios ao desenvolvimento de economias. Na sociedade da informa-
ção, a exploração econômica se baseia também em comercializar bens imateriais e aqueles que representam
os interesses econômicos privados vêem na rede um excelente ambiente para fazer negócios, e sendo assim,
as liberdades trazidas pela cibercultura podem sofrer grandes supressões por políticas de censura e por nor-
mas legais de controle da propriedade intelectual, por exemplo. (KRETSCHMANN, 2011, p. 77).
Situações problemáticas surgidas com a cibercultura exemplificam como a internet pode incomodar
o exercício tradicional de poder e a forma de pensar o direito. Casos como os grandes processos que envolvem
de um lado sites que disponibilizam gratuitamente conteúdo artístico-cultural e de outro, representantes
de grandes corporações (napster, soulseek e o mais recente piratebay), bem como os casos que envolvem
punições políticas àqueles responsáveis pela divulgação não autorizada de informações de utilidade pública
(Wikileaks e Julian Assange, ou Edward Snowden e o “escândalo da espionagem”) servem para mostrar que
o tratamento dado às liberdades proporcionadas pela internet pode não estar tão compatível com os ideais da
cibercultura.
Ao mesmo tempo que a rede mundial de computadores oferece liberdades e satisfaz promessas de
inclusão democrática, ela pode servir também para criar uma falsa sensação de liberdade, uma vez que é
possível haver manipulações quanto ao que é disponibilizado na rede, controlando dados, informações ou
qualquer conteúdo a ser acessado. (KRETSCHMANN, 2011, p. 77).
Um dos conflitos que caracteriza esta ambigüidade da internet reside no exemplo que envolve li-
berdade de expressão artística e regras tradicionais de direitos da propriedade intelectual. Os instrumentos
que surgem com o desenvolvimento das tecnologias da informação permitem que cada indivíduo explore
sua criatividade criando conteúdos até então reprimidos por incapacidades técnicas (ausência de recursos,
espaços, repressão de mercado etc.), porém tais criações se submeterão às normas jurídicas de tutela da
propriedade intelectual, que podem não terem se adequado à cibercultura e terminar tolhendo a liberdade
fundamental de participar de forma criativa da produção cultural. São pontos a serem examinados.
2. DIREITOS AUTORAIS E LIMITES À CRIAÇÃO DE BENS CULTURAIS.
A proteção legal dada às criações do espírito criativo humano requereu um tratamento específico,
mediante disciplina apropriada à tutela jurídica da propriedade imaterial, pois ser proprietário de uma gar-
rafa não é a mesma coisa de ser o responsável pelo desenho dela ou pela marca do produto que está sendo
consumido por meio dela. Assim, os direitos autorais surgem como essa disciplina cujo objeto é as criações e
as manifestações do intelecto.
Ramo do Direito bastante complexo, rico de contradições e repleto de problemas contemporâneos a
serem enfrentados, principalmente por causa dos comportamentos associados à mencionada cibercultura,
os direitos autorais já começam a apresentar sua complexidade a partir da própria designação. Há quem
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
prefira usar a expressão propriedade intelectual como micro-sistema ao qual os direitos autorais estão liga-
dos, e aqueles que vêem diferenças entre as expressões, preferindo não necessariamente vinculá-las. Seja
por uma idéia ou por outra (usando ou não usando a expressão “propriedade”), é interessante frisar que a
proteção oferecida pelos direitos autorais alcança não somente o aspecto patrimonial do produto cultural,
respondendo questões sobre quem dispõe da obra, pra qual uso, se pode copiar e compartilhar etc., como
também alcança aspectos da relação entre criador e obra mais ligados aos direitos da personalidade, como ser
apresentado ou identificado como autor.
No entanto, apesar do objeto dos direitos autorais alcançar direitos da personalidade do autor, sua
origem e desenvolvimento prático possuem natureza bastante patrimonialística. A partir do século XVII o
intelectual, bem como o artista, trabalha de forma autônoma, independente de patrões da nobreza ou do cle-
ro, fazendo com que sua luta pela sobrevivência represente uma concorrência intelectual, uma competição
entre criações e criadores. (FRAGOSO, 2012, p. 130). O problema não está na inserção das lógicas capital e
patrimonial na proteção ao conteúdo autoral, mas sim reside no de identificar a quem isto realmente benefi-
cia, se ao autor propriamente dito ou se ao intermediário, aquele cria o elo entre criador e público. Há regis-
tros históricos demonstrando que desde o início da comercialização dos livros, existiam prejuízos ao escritor
porque os negócios envolvendo livros traziam vantagens aos editores, recebendo incentivos reais diferentes e
mais vantajosos do que a remuneração dada aos escritores. (FRAGOSO, 2012, p. 135).
Como o desenvolvimento histórico dos direitos autorais não é objeto de estudo deste trabalho, a
questão a ser enfrentada é a de analisar se os direitos autorais estão atingindo seus objetivos de proteger os
criadores e incentivar a criatividade, ou se eles representam uma espécie de barreira legal para o surgimento
de novas obras e novos exercícios do direito à criatividade.
Em qualquer análise introdutória sobre os objetivos dos direitos autorais, a proteção à criatividade
está sempre inserida dentre eles. A tutela da criação é o que justifica a própria existência do Direito de au-
tor, uma vez que, não sendo identificada qualquer carga de contribuição criativa na obra, ela não merecerá
a tutela deste direito, ficando o autor sem garantias jurídicas da compensação por esta contribuição dada à
sociedade. (ASCENSÃO, 1997, p. 3).
A contradição é identificada justamente sobre esta “compensação”, pois originalmente ela surge por
meio de garantias de exclusividade de usos, por meio de instrumentos que impedem a abundância do pro-
duto e que oferecem acesso a estes produtos artístico-culturais mediante pagamento hábil. Em tese a socie-
dade aceita a contribuição dada pelo criador garantindo-lhe uma compensação pecuniária, que para ocorrer
deverá provocar justificados impactos negativos na fluidez do acesso à cultura. (ASCENSÃO, 1997, p. 4). Ou
seja, faz parte da concepção original de direitos autorais a sua capacidade de tolher liberdades fundamentais
(acesso à informação, acesso à cultura, liberdade de expressão etc.), em nome da satisfação financeira do
responsável pela obra, ainda que este responsável não seja o próprio criador.
É possível argumentar que existe um direito fundamental de criar, de participar da criação de um
patrimônio cultural, de livremente manifestar seu espírito criativo. Esta liberdade de criação “compreende
o direito do indivíduo de gerar expressões intelectuais, sejam elas de caráter cultural (obras literárias ou
artísticas), sejam elas de conteúdo científico ou técnico, sem qualquer restrição imotivada, isto é, sem
necessidade de obter autorização ou licença e sem ficar sujeita a censura”. (SANTOS, 2011, p. 132). O objetivo
desta liberdade de criação seria o de permitir que cada pessoa exerça sua criatividade sem barreiras, sem
impedimentos indevidos. O que representa de logo uma contradição com características típicas dos direitos
autorais, uma vez que em diversas hipóteses uma pessoa pode precisar de autorizações, de intermediários e
de pagamentos para poder se basear em algo já criado e assim exercer sua criatividade.
Com base nessa última observação indaga-se sobre a necessidade de intermediários e intermediações
em tempos de cultura de compartilhamento na sociedade de informação. A dúvida surgida é a de saber se as
concepções tradicionais dos direitos autorais estão em compatibilidade com novas exigências sociais provoca-
das pela cibercultura ou se elas tolhem a criatividade, que estaria na essência da produção de conteúdo em
ambiente virtual. O que passa a ser examinado.
37
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
3. CIBERCULTURA E PARTICIPAÇÃO: NOVOS MODELOS DE DIREITOS AUTORAIS PARA NOVAS
DIMENSÕES DAS LIBERDADES DE COMUNICAÇÃO.
Até então foi examinada a questão da liberdade de expressão, da liberdade de expressão na internet
e de como os direitos autorais podem representar barreiras ao exercício dessas liberdades. O fato do sistema
tradicional de proteção legal a conteúdo autoral criar limites às liberdades de expressão surge de seu cunho
patrimonial, do fato deste sistema poder ser usado para satisfazer interesses patrimoniais. O copyright, ex-
pressão que representa o sistema norte-americano de tutela legal das criações autorais, deu cabimento a
distorções em sua própria aplicação, já que tem como proposta uma clausura de possibilidades de uso de con-
teúdo cultural. Este modelo de direitos autorais surge como forma representativa de pretensões hegemônicas
de uma classe dominante, resultando não exatamente de uma conquista de criadores, mas da uniformização
dos esforços de livreiros e editores para conter a reprodução descontrolada de obras de arte, e assim preservar
seus interesses econômicos. (FRAGOSO, 2012, p. 156). Então, apesar do conteúdo pessoal, está na essência
do direito de autor, sua natureza econômica.
A conotação econômica dada aos direitos autorais, com seu esquema de autorizações, usos exclusivos
e direitos reservados, interessa a uma determinada classe que, de início detinha os meios necessários para
expressar as manifestações criativas. Os direitos reservados de uso de bens culturais se concentrados indevi-
damente permitem a criação de uma espécie de oligopólio cultural, pois seriam as empresas de transmissão
e distribuição desse conteúdo que ditariam as regras do mercado de culturas, cabendo ao sistema legal não
permitir que qualquer pessoa crie algo próximo, ou derivado do que já está sob “proteção”. Este raciocínio se
enfraquece quando os donos dos veículos de intermédio (editoras, gravadoras dentre outros) enfrentam os
novos meios de divulgação e expressão, como a internet, e novos comportamentos sociais típicos da cibercul-
tura, como o dilúvio de informações e o compartilhamento de dados digitais.
Apesar de sua origem remeter a esquemas de espionagem militar, a internet surge para a sociedade
civil como um instrumento que promete uma quase irrestrita liberdade de acesso à informação e um poten-
cial até então inatingível de participação democrática, seja em discussões políticas, seja em produção artísti-
co-cultural. Numa determinada perspectiva o ciberespaço promete realizar ideais da modernidade, pois nele
a igualdade se manifesta pela possibilidade de cada pessoa, independente de suas características, expressar
informações, a liberdade surge por meio das possibilidades de acesso, navegação e comunicação, e a fraterni-
dade vem como conseqüência das conexões promovidas em ambiente virtual. (LÉVY, 1999, p. 254). É possí-
vel que estas promessas fiquem apenas em planos abstratos e não se materializem, até porque para isso seria
necessário que cada cidadão do mundo possuísse meios para acessar a rede, o que não ocorre por causa de
inúmeros problemas envolvendo a inclusão digital. Porém, os impactos da cibercultura nas liberdades de ex-
pressão e criação, bem como na forma de pensar os direitos autorais são bastante manifestos e significativos.
Se antes os donos dos meios necessários para se expressar possuíam mecanismos para criar uma
espécie de oligopólio da comunicação, hoje com a internet é consideravelmente mais fácil driblar as grandes
corporações e poder se expressar. Com um simples vídeo posto em um blog individual, um criador pode exibir
sua produção, seja ela um curta, um clipe ou uma animação. Uma banda pode oferecer gratuitamente em
seu website suas composições até então não registradas por uma grande empresa para poderem assim divul-
gar sua arte. Simples exemplos que demonstram que a internet potencializa as possibilidades de se expressar.
Não é apenas nos meios de comunicação que a cibercultura provoca impactos, mas também na
própria forma de comercializar, de disponibilizar e apresentar uma modalidade de expressão artística. Tradi-
cionalmente se entende que uma obra protegida por direitos autorais é aquela “que constitui exteriorização
de uma determinada expressão intelectual, inserida no mundo fático em forma ideada e materializada pelo
autor”. (BITTAR, 2004, p. 23). E que esta obra tutelável pelo direito requer esforço intelectual de seu autor
que produz um bem a ser inserido materialmente na realidade fática. (BITTAR, 2004, p. 23). Porém, como
antes já analisado, esta interpretação tradicional do objeto dos direitos autorais se torna no mínimo proble-
mática na contemporaneidade imersa na cibercultura.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Um dos motivos dessa incompatibilidade seria a própria inexistência de suporte fático para afirmar
que a obra deve estar materializada em algo. Isto porque o ambiente digital não requer materialização da
arte para considerá-la como legítima manifestação do espírito criativo. Outro motivo seria o de que o modelo
tradicional de tutela da produção artístico-cultural exigia um intermediário (o que fornecia o intermédio), e
com a internet esta intermediação não é mais necessária, devolvendo ao artista (o criador propriamente dito)
o controle sobre sua obra, caso assim o opte. Diversas características da cibercultura, (participação, coletivi-
dade, conectividade, virtualidade e outras) provocam um declínio do modelo de negócio baseado no esquema
autor e intermediário. (LÉVY, 1999, p. 139).
A internet e a cibercultura demonstram então não apenas um potencial para dinamizar o exercício
de liberdades fundamentais, como também potencial para mexer na produção econômica, na forma como
negócios são feitos, talvez principalmente naqueles negócios cujo objeto seja informação ou arte. A criati-
vidade volta a ser incentivada pelas práticas da cibercultura, tornando-se um grande negócio seja com fins
lucrativos, seja apenas para participar da produção de cultura. A cultura do digital “promete um mundo de
criatividade incrivelmente diversa que pode ser fácil e amplamente compartilhada. E à medida que tal cria-
tividade se aplicar à democracia, será possível que uma vasta parcela de cidadãos utilizem-na para expressar,
criticar e contribuir com a cultura que os rodeia”. (LESSIG, 2005, p. 184). A colaboração propriamente dita,
a participação e cooperação representam hoje objetivos do cidadão, não necessariamente interessado em
obter ganhos patrimoniais com sua contribuição à cultura que o rodeia.
Exemplos como os do Free Software, do Linux, das tecnologias da informação com códigos abertos,
demonstram como há pessoas interessadas em formas de criação coletiva e colaborativa, ainda que isto não
traga benefícios financeiros. A interatividade promovida pelas tecnologias da informação e exigências sociais
da cibercultura reformulam a relação entre a obra e aquele que tem acesso a ela, permitindo que este seja
também criador em colaboração e exemplos como o do Wikipédia e do Creative Commons demonstram como
há uma demanda social para tal. (SANTOS, 2011, p. 147).
Porém, todas essas promessas de liberdade, criatividade e colaboração vindas da cibercultura en-
frentam uma imensa barreira legal, qual seja, a manutenção das regras tradicionais de proteção aos direitos
autorais. Para que toda essa abertura democrática ao acesso à informação e liberdade de criação ocorra, é ne-
cessário repensar o tratamento jurídico dado ao conteúdo autoral produzido, pois novos modelos de negócio
surgem e assim exigem sua legalidade. Diante dos impactos produzidos pelo desenvolvimento tecnológico nos
institutos jurídicos duas hipóteses surgem, uma a de que as normas jurídicas não sofrerão mudanças, outra
a de que o sistema jurídico adotará medidas adaptativas, criando novas respostas jurídicas a mudanças de
comportamentos sociais, a exemplo da possível subversão ao modelo tradicional de propriedade intelectual.
(LEMOS, 2005, p. 66).
Essa subversão não é uma eliminação de proteção legal à criação autoral, é apenas uma nova forma
de tutelar, já que a cibercultura trouxe tantas transformações nas formas de se expressar. O que está em
discussão aqui não é a necessidade de uma proteção legal, pois isso é de comum entendimento, mas sim o
modelo de proteção oferecido pelos mecanismos legais tradicionais que podem, ao invés de incentivar a ex-
pressão criativa, reprimir iniciativas de produção de cultura.
Caso sejam mantidas regras de direitos autorais criadas antes da internet e da cibercultura, a mani-
festação criativa pode ser inibida para satisfazer interesses econômicos de grandes corporações que podem
estar interessadas em preservar o modelo de intermediação paga entre cultura e público interessado. Isto
porque as novas formas de expressão e criação padecerão de ilegalidade, ou clandestinidade (como ocorre
com o download gratuito feito pela rede que pode de imediato ser taxado de “pirata” numa visão bem inicial
dos fatos).
Na hipótese da legislação recair num excesso de regulação, prevendo punições excessivas para pe-
quenas violações de direitos autorais, e se os empreendimentos inovadores passarem a ser constantemente
fiscalizados ao ponto de requerem gastos volumosos com pagamentos e autorizações, haverá bem menos
inovações e criatividade do que se houvesse uma alternativa à ilegalidade. (LESSIG, 2005, p. 192). Ou seja,
em tempos de economia criativa, incentivos ao empreendedorismo e valoração da informação, a tutela jurí-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
dica tradicional da propriedade intelectual serviria como uma barreira, impedindo parcela considerável da
sociedade civil de cooperar e criar culturas, ficando essas atividades (ou permanecendo) reservadas a quem
tiver meios financeiros capazes de arcar com as despesas necessárias. Não seria adequado que essa parcela
da sociedade civil, querendo participar de seu próprio patrimônio cultural, fique à margem da legalidade,
ou não receba oportunidade de assim cooperar. A resposta para retirar essa ilegalidade passa por escolhas
entre obedecer estritamente a legislação da forma como ela está, ou modificar a norma jurídica, e quando
os malefícios da manutenção de tradições se sobrepõem a seus próprios benefícios, é caso de considerar a
possibilidade de mudanças. (LESSIG, 2005, p. 201).
Alternativas para mudar a lógica da tutela jurídica da produção autoral já existem. Uma delas são as
licenças Creative Commons. As licenças oferecidas por esta organização procuram atender os diversos inte-
resses e opções da classe de artistas, criadores e produtores em geral, permitindo que o autor interessado
receba a oportunidade de escolher dentre opções de licenças disponíveis. (LEMOS, 2005, p. 85). Com isto,
o Creative Commons criam uma alternativa ao modelo tradicional, satisfazendo exigências da cibercultura de
liberdade de escolhas e democratização das atividades criativas, representando por outro lado uma mudança
que parte não dos representantes do poder estatal, mas sim da sociedade civil. (LEMOS, 2005, p.83).
Havendo alternativas, ainda que criadas extraoficialmente por instituições e vontades privadas, cabe
preservar as liberdades de expressão e criação, ainda que em detrimento das regras tradicionais de prote-
ção aos direitos autorais. Isto porque a manutenção destes pode interessar a grupos de pressão específicos
(possivelmente não interessados em novos modelos de negócio que venham a prejudicar suas pretensões
econômicas), e ainda porque tais liberdades compõem uma espécie de ideário comum aos praticantes da
cibercultura.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do trabalho foi o de analisar se as liberdades de expressão sofrem alguma alteração com a
cibercultura e o desenvolvimento de tecnologias da informação que permitem acesso constante à internet,
que por sua vez promete liberdades. Teve como objetivo também o de analisar a forma como os direitos auto-
rais podem se relacionar com o exercício das liberdades para ou tolhe-lo ou garanti-lo, a depender da forma
como é vista e interpretada a tutela jurídica da propriedade intelectual.
No que diz respeito à liberdade de expressão, essa designação já não é mais suficiente para resumir
todo um complexo de liberdades relacionadas com formas de manifestação. Liberdades de comunicação,
de acesso à informação e cultura, e liberdade de criação também são objeto de tutela jurídica diferenciada,
como o são as garantias constitucionais e os direitos previstos em instrumentos de direitos humanos. Apesar
da complexidade, interessou ao trabalho criar uma linha de raciocínio pela qual a liberdade de exercer cria-
tividade faz parte deste rol de liberdades garantidas de forma fundamental. Esta liberdade de criatividade é
potencializada pelas práticas da cibercultura, pois a internet e respectivas tecnologias proporcionam e poten-
cializam formas de participação, criação e quaisquer manifestações do espírito em seus ambientes virtuais.
Assim, é da natureza da internet criar um ambiente livre de barreiras, ou melhor, um ambiente cuja
regulamentação exista, mas de forma compatível com contemporâneas exigências sociais. A vontade de exer-
cer liberdades existe, instrumentos capazes de fazê-las ocorrerem também e um sentimento de regulação
ainda que mínima também. O problema reside quando esta regulação ultrapassa limites da ideologia por trás
da cibercultura, ao ponto de provocar supressões às liberdades legalmente garantidas. Uma destas formas de
suprimir liberdades, especificamente a de expressar criatividade, está na aplicabilidade dos direitos autorais.
Direitos que surgem como garantias aos criadores, mas que podem servir para satisfazer interesses econômi-
cos de empresas que intermedeiam a relação entre criação e público interessado. Porém, com a internet este
caminho pode ser disponibilizado pelo próprio autor da obra, recaindo sobre ele, o próprio criador do bem
cultural o controle dos usos de sua produção.
O problema está na possível ilegalidade da subversão à tradição da tutela legal da propriedade inte-
lectual, mas que pode ser driblada mediante alternativas, sejam elas estatais, como possíveis reformas da le-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
gislação autoral, ou não-estatais, como iniciativas da sociedade civil (free software, Linux, Creative Commons
dentre outras), que demonstram como alterações podem ocorrer com o objetivo de preservar liberdades e
satisfazer aspirações contemporâneas intrínsecas à sociedade da informação. Enfim, há meios de garantir
as liberdades de expressão em tempos de internet, sem que isto represente descontrole absoluto do espaço
virtual, sem que isto represente ausência de direitos autorais, mas sim com alternativas legais e boa vontade
política.
REFERÊNCIAS
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BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
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realidade: interpretação e jurisdição constitucionais em debate: homenagem a Silvio Dobrowolski. São Paulo:
LTr, 2007. Páginas 156 a 180.
FRAGOSO, João Henrique da Rocha. Direito de Autor e Copyright: Fundamentos Históricos e Sociológi-
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KRETSCHMANN, Angela. O papel da dignidade humana em meio aos desafios do acesso aberto e
do acesso universal perante o direito autoral. In: SANTOS, Manoel Pereira dos (Coordenador). Direito
de Autor e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011. Páginas 76 a 103.
LEMOS, Ronaldo. Direito, Tecnologia e cultura. Rio de Janeiro: FGV, 2005.
LESSIG, Lawrence. Cultura Livre: como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cultura e
controlar a criatividade. São Paulo: Trama, 2005.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.
RIVERO, Jean. Liberdades públicas. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
SANTOS, Manoel Pereira dos. Direito de autor e liberdade de expressão. In: SANTOS, Manoel Pereira
dos (Coordenador). Direito de Autor e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011. Páginas 129 a
158.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
INFRAERO E A ADOÇÃO DO ORÇAMENTO SIGILOSO NO REGIME
DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA (RDC):
UMA ANÁLISE SOBRE A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO
Alcerlane Silva Lins
Bacharela em Direito pela Faculdade ASCES. Advogada. Pesquisadora do INICIA/ASCES.
Roberta Cruz da Silva
Bacharela e Mestre em Direito, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora de
Direito Administrativo e de Prática Constitucional-Administrativa da Faculdade ASCES; da
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), do Centro Universitário de João Pessoa
(UNIPÊ) e das pós-graduações da Faculdade ASCES; da ESMATRA/PE e do Complexo de
Ensino Renato Saraiva (CERS-Recife). Advogada.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Origem do Regime Diferenciado de Contratação e a sua possível (in)
constitucionalidade; 2. O Regime Diferenciado de Contração e o tratamento conferido ao princípio
da publicidade; 3. Aspectos relevantes do sigilo do orçamento estimado no RDC; 4. Justificativas para
adoção do sigilo e a sua efetividade nas licitações da Infraero; Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO
A licitação é o meio utilizado pela Administração Pública para se alcançar a proposta mais vantajosa e
consequentemente, a formação do contrato administrativo. Assim, pode-se afirmar que a licitação é medida
que se impõe a Administração em decorrência do artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal de 1988 e,
antecede os contratos administrativos.
Entretanto, as normas infraconstitucionais que regem o procedimento licitatório parecem não suprir
as demandas atuais. Essa deficiência ficou evidenciada quando o Brasil foi escolhido para sediar os eventos
esportivos que ocorreriam entre 2013 a 2016 e não conseguiu viabilizar as obras vinculadas a tais eventos
com as normas até então vigentes, provocando a discussão sobre a urgente necessidade de mudanças no
sistema licitatório.
Assim, a necessidade de um regime licitatório mais célere, levou a instituição do Regime Diferencia-
do de Contração (RDC), que é disciplinado pela Lei nº 12.462/11 e, tem como finalidade primordial agilizar
a execução das obras para os jogos da Copa das Confederações 2013, da Copa do Mundo FIFA 2014, das
Olimpíadas e Paralimpíadas em 2016.
Esse novo regime tinha objeto transitório e limitado aos eventos esportivos sediados no país, sendo
criado para atender situações excepcionais, no entanto, passou a abranger outras situações sem quaisquer
vinculações com as hipóteses originárias. Com isso, percebe-se que há uma grande tendência de expansão
do objeto do RDC, comprovando a relevância e atualidade do tema.
As inovações advindas com essa nova modalidade licitatória provocaram diversas críticas, tanto pela
forma como esse regime foi inserido no ordenamento jurídico, como pelas inovações decorrentes de seus
institutos.
42
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Dentre as inovações que provocaram grandes controvérsias jurídicas pode-se destacar o orçamento
sigiloso, que é objeto de estudo desse trabalho, previsto no artigo 6º da referida lei, que dispõe sobre a pos-
sibilidade da Administração Pública não divulgar o valor estimado do objeto licitado, enquanto se processa a
licitação, tornando-se público apenas ao final do certame. Por isso, acredita-se que este sigilo afronta o prin-
cípio constitucional da publicidade.
Nesse contexto, insere-se a presente pesquisa que tem como objetivos analisar a compatibilidade do
sigilo do orçamento estimado com a Constituição Federal de 1988 e verificar a efetividade desse instituto
no âmbito da Infraero. Para isso, a pesquisa não se restringiu ao estudo unicamente da lei, mas analisou o
posicionamento doutrinário e jurisprudencial do Tribunal de Contas da União, além do estudo dos editais
de licitações no âmbito da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero), bem como análise
das ADI’s nº 4.645/11 e nº 4.655/11 que, atualmente aguardam julgamento do STF. Para tanto o método
utilizado foi o hipotético dedutivo, adotando como hipótese que o sigilo do orçamento estimado afronta o
princípio da publicidade. Tal sigilo é analisado com ênfase no aspecto jurídico e o aspecto econômico, para
possível comprovação da constitucionalidade e efetividade desse instituto, bem como a sua repercussão social
e econômica.
Nessa perspectiva, espera-se chegar a um resultado que comprove a viabilidade e os benefícios para
Administração Pública, auferidos pela ausência de publicação do orçamento estimado durante a licitação.
Com isso, fica evidente a necessidade de um estudo mais detalhado sobre o tema.
1. ORIGEM DO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÃO E A SUA POSSÍVEL (IN)
CONSTITUCIONALIDADE.
A Constituição Federal de 1988 no seu artigo 37, inciso XXI, estabeleceu que as contratações públicas
devam ser precedidas de procedimento licitatório, ressalvados os casos previstos em lei. A partir dessa impo-
sição, a licitação passou a ser uma exigência constitucional, de observância obrigatória pela Administração
Pública e por outras pessoas indicadas pela lei (OLIVEIRA, 2015, p.25).
Para regulamentar esse dispositivo constitucional foi editada a Lei nº 8.666/93, denominada de Lei
Geral de Licitações e Contratos, que estabelece em seu artigo 3º que este procedimento destina-se a garantir
a observância dos princípios constitucionais e específicos para seleção da proposta mais vantajosa para Admi-
nistração Pública, (BRASIL, LEI Nº 8.666, 1993).
Atualmente, outras leis têm regulamentado esse procedimento uma vez que a Lei de Licitações e
Contratos não tem conseguido alcançar e nem solucionar situações específicas, como aconteceu com as
obras e serviços vinculados aos eventos esportivos sediados no Brasil entre os anos de 2013 a 2016, que foi a
mola propulsora para a criação de uma Lei que atendesse as demandas atuais na seara estatal com celerida-
de e efetividade (HEINEN, 2015, p. 9).
Nesse contexto, surge a Lei nº 12.462/11 que, de início, teve seu objeto limitado aos eventos espor-
tivos sediados no Brasil, como a Copa das Confederações que ocorreu em 2013, Copa do Mundo em 2014,
bem como os jogos Olímpicos e Paralímpicos que ocorrerão em 2016 (OLIVEIRA, 2015, p. 185).
Trata-se da Lei do Regime Diferenciado de Contratação (RDC), que segundo Oliveira, (OLIVEIRA,
2015, p.185) segue orientada por parâmetros de eficiência, agilidade e economicidade, com a finalidade de
viabilizar os eventos esportivos mencionados. As primeiras tentativas para se inserir o RDC no ordenamento
jurídico, foram por intermédio das Medidas Provisórias nº 488 e nº 489 de 2010, que perderam a eficácia,
em razão da não votação no prazo constitucional. Ainda assim, afirmam Motta e Paolucci, (2012, p. 29) que
as ideias principais de tais Medidas Provisórias sobreviveram e reapareceram por meio da Lei nº 12.462/11,
fruto da conversão da Medida Provisória nº 527/11. (BRASIL, MEDIDA PROVISÓRIA Nº 527, 2011).
Foi durante a tramitação de tal Medida Provisória, que o deputado federal José Guimarães (PT/CE)
apresentou em plenário uma emenda com conteúdo diverso do discutido na Medida Provisória. A princípio,
o tema abordado referia-se unicamente, a alteração da estrutura do Poder Executivo Federal, para criação
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
da Secretaria de Aviação Civil, bem como conferia autorização para contratação temporária de controlado-
res de tráfego aéreo, enquanto que a proposta de emenda apresentada pelo deputado tratava da inclusão
dos dispositivos que instituíam o RDC. Dessa forma, a Medida foi discutida, aprovada pelas casas do Poder
Legislativo, sancionada pela Presidenta da República e consequentemente, convertida na Lei nº 12.462/11
(ALTOUNIAN, 2014, p.39).
Como mencionado, a inserção da Lei nº 12.462/11 no ordenamento jurídico pátrio veio acompanha-
do de muitas inovações que provocou intensos questionamentos sobre a inconstitucionalidade da Lei e de al-
guns institutos que ela disciplina. Tudo isso, levou ao ajuizamento de duas Ações Diretas de Inconstituciona-
lidade (ADI). A primeira foi a ADI nº 4.645 proposta por partidos políticos que argumentaram a extrapolação
do poder de emendar, bem como a violação ao princípio da publicidade (HEINEN, 2015, p.18). A segunda
foi a ADI nº 4.655 ajuizada pelo Procurador-Geral da República (PGR), à época, Roberto Monteiro Gurgel
Santos que, também apontou inconstitucionalidades formais e materiais da Lei nº 12.462/11, referente a não
observância ao devido processo legislativo, bem como a inconstitucionalidade de alguns dispositivos (HEI-
NEN, 2015, p.12).
Entre as inovações apontadas com vícios de inconstitucionalidade, tem-se o orçamento sigiloso que
foi objeto de questionamento da ADI nº 4645/11 ajuizada por partidos políticos, sob o argumento de que nes-
se instituto há uma inversão de regras constitucionais, em que se atribui ao orçamento estimado um caráter
sigiloso, enquanto que, no ordenamento jurídico o sigilo é a exceção e não a regra, violando o princípio da
publicidade, inclusive o da moralidade. Nesse aspecto é importante analisar como o RDC trata o princípio da
publicidade (HEINEN, 2015, p. 38).
2. O REGIME DIFERENCIADO DE CONTRAÇÃO E O TRATAMENTO CONFERIDO AO PRINCÍPIO
DA PUBLICIDADE.
A partir deste item, será analisado o tratamento que o RDC confere ao princípio da publicidade uma
vez que tal princípio atribuiu eficácia aos atos administrativos. Assim, percebe-se que o RDC expressamente
invocou esse princípio, conforme redação do artigo 3º da Lei nº 12.462/11:
Art. 3º As licitações e contratações realizadas em conformidade com o RDC
deverão observar os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralida-
de, da igualdade, da publicidade, da eficiência, da probidade administrativa,
da economicidade, do desenvolvimento nacional sustentável, da vinculação
ao instrumento convocatório e do julgamento objetivo.
Desse modo, observa-se que o legislador, ao instituir o RDC, determinou que os procedimentos que
integram esse Regime estão condicionados a observância do princípio da publicidade. Esse princípio também
é reforçado, pelo o caput do artigo 15, da Lei do RDC, que impõe aos órgãos da Administração o dever de dar
ampla publicidade aos procedimentos licitatórios, ressalvado os casos determinados em lei. Também o § 1º do
artigo 15, da citada lei, assegura que a publicidade pode ocorrer de forma direta aos fornecedores cadastrados
ou não cadastrados, sem prejuízo das formas estabelecidas no artigo 15, §1º, incisos I e II, que determina
que a publicação deverá ocorrer por meio do Diário Oficial e internet, de forma cumulativa (BRASIL, LEI
Nº 12.462, 2011).
Como se percebe, a dimensão dada a esse princípio pelo RDC não permite que a publicidade se limi-
te apenas à divulgação em mídia impressa, como faz a Lei nº 8.666/93, mas que se estenda também à mídia
eletrônica, a qual tem custo menos elevado. No entanto, verifica-se que esse meio de publicação também tem
algumas limitações que pode restringir o acesso à informação, como por exemplo, quando os interessados es-
tiverem localizados em áreas sem acesso à internet, ou mesmo quando não tiverem habilidades em manusear
tal veículo de informação (ZYMLER, 2013; p.300).
Todavia, Zymler (2013, p. 300) reconhece que a publicação dos atos licitatórios por meio da internet
proporciona ampla vantagem, pois tal mecanismo consiste na possibilidade da publicação se dar de forma
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
contínua, o que não ocorre com a mídia impressa, em que a publicidade tem efeito instantâneo, ou seja, per-
dura até a retirada de circulação da informação. Outra vantagem desse veículo apresentada pelo autor, diz
respeito ao alcance desse meio de comunicação, pois quando se usa os meios de mídias eletrônicas, há um
alargamento da publicidade, uma vez que tal divulgação alcança todos os interessados pelo certame, além
de abranger todos os atos da licitação, independentemente, do valor do objeto e da localização do licitador
(ZYMLER, 2013; p. 300).
Com isso, é possível verificar que, a publicação em jornal de grande circulação tornou-se uma fa-
culdade no RDC, sendo exigido apenas a publicação no Diário Oficial e internet. Segundo entendimento da
doutrina, quando a licitação for de grande vulto ou com objeto complexo deve-se proceder a publicação em
jornais de grande circulação, haja vista o acesso à informação corresponder a um direito que não pode ser
mitigado indevidamente (BARIAN JUNIOR, 014, p.121).
Em que pese toda essa discussão, vale salientar que para se concretizar o direito fundamental de
acesso à informação devem-se utilizar todos os meios disponíveis e, existindo pluralidade de formas de divul-
gações capazes de efetivar o princípio da publicidade, deve-se privilegiar a que melhor concretize o princípio
da publicidade (BARIAN JÚNIOR, 2014, p.121). No entanto, é preciso não confundir a publicidade com a
publicação, pois segundo Amaral (2010, p.7), a publicação por si só não assegura a publicidade, pois quando
aquela é realizada de forma deficiente, este é violado. Assim, resta evidente que existem atos que mesmo
sendo publicado, não efetivam o princípio da publicidade.
Assim, diante da importância atribuída ao princípio da publicidade percebe-se que o RDC, em nome
do interesse público, adotou o sigilo do orçamento estimado como regra fundamental para se chegar a pro-
posta mais vantajosa, conforme se depreende do artigo 6º da Lei nº 12.462/11. Tal inovação tem provocado
intensas controvérsias que remetem ao seguinte questionamento: sendo a publicidade princípio tão relevan-
te, pode ser mitigado pelo sigilo do orçamento estimado do RDC, em nome da proposta mais vantajosa? Essa
temática será analisada com maiores detalhes no tópico a seguir.
3. ASPECTOS RELEVANTES DO SIGILO DO ORÇAMENTO ESTIMADO NO RDC.
O sigilo do orçamento estimado previsto no artigo 6º da Lei nº 12.462/11 é, atualmente, um dos pon-
tos mais discutidos do RDC, por estabelecer que esse orçamento apenas seja publicado ao final da licitação,
sendo interpretado por muitos como uma afronta ao princípio da publicidade. Por isso, para melhor compre-
ensão do tema faz-se necessário entender inicialmente o que é orçamento estimado.
A definição de orçamento estimado, proposta por Altounian e Cavalcante (2014, p. 97), consiste na
forma de avaliação do custo da obra ou serviço que se deseja contratar, tomando-se por base os índices que
apontem o custo médio do empreendimento de forma rápida. No entanto, vale salientar que esse tipo de or-
çamento é menos detalhado, em razão da ausência de projeto básico, pois esse orçamento é elaborado ainda
na fase preliminar da licitação (ALTOUNIAN; CAVALCANTE, 2014, p. 97).
Diante da visível influência que esse orçamento exerce sobre a licitação, o legislador instituiu o sigilo
do orçamento como condição para se chegar à proposta mais vantajosa, incorporando uma prática comum e
já vivenciada nas relações de negócios entre particulares. Com isso, acredita-se que omitindo o valor máxi-
mo que a Administração pública se propõe a pagar, pode-se chegar à melhor proposta. Isso não significa que
a Administração não elaborará o orçamento estimado, mas que será publicado apenas ao final da licitação.
(CHARLES; MARRY, 2014, p. 62). Nesses termos, destaca-se que tal sigilo não alcançará os órgãos de con-
trole externo e interno, uma vez que estes terão livres acesso a todas às informações do certame.
Dessa forma, é possível perceber que esse sigilo não é absoluto, nem uma imposição da Lei, mas é
uma opção para o gestor público, que após analisar a esfera de conveniência e oportunidade decidirá se o si-
gilo se adequa ao critério de julgamento escolhido ou as especificidade do objeto licitado (CHARLES; MARRY,
2014, p. 68-70).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Nesse contexto, verifica-se que a própria Lei do RDC relativiza o sigilo do orçamento estimado quan-
do determina que os critérios de julgamento maior desconto, melhor técnica ou conteúdo artísticos são in-
compatíveis com a natureza do sigilo do orçamento e, portanto, quando a Administração adotar tais critérios
o sigilo não poderá ser adotado por expressa vedação legal e lógica, (CHARLES; MARRY, 2014, p. 71).
O tribunal de Contas da União também entendeu no Acórdão nº 3.011/2012 que esse sigilo não é
absoluto e, portanto, não tem natureza obrigatória. Esse Acórdão tratou de vários assuntos referentes às
licitações com RDC, envolvendo a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) que teve
como Relator o Ministro Valmir Campelo que na ocasião entendeu que o sigilo do orçamento estimado não
tem natureza obrigatória, conforme voto que retrata com clareza, a questão:
Concluo, então, que, como o sigilo no orçamento-base não é obrigatório, e
pelo dever de motivação de todo ato, se possa recomendar à Infraero que
pondere a vantagem, em termos de celeridade, de realizar procedimentos
com preço fechado em obras mais complexas, com prazo muito exíguo para
conclusão e em que parcela relevante dos serviços a serem executados não
possua referência explícita no Sinapi/Sicro, em face da possibilidade de fra-
casso das licitações decorrente dessa imponderabilidade de aferição de pre-
ços materialmente relevantes do empreendimento [...].
Com esse posicionamento o Tribunal de Contas da União confirmou a facultatividade do orçamento
sigiloso, autorizando os gestores a analisarem e decidirem se adotam este instituto nas licitações. O TCU
ainda recomendou que nas licitações com objeto de alta complexidade, com prazo mínimo para conclusão
e, quando houver ausência de parâmetros oficiais de preços, o gestor deve analisar a viabilidade desse sigilo,
pois se percebeu que esses fatores influenciam no êxito do sigilo do orçamento do RDC, haja vista, no caso
analisado, as propostas apresentadas nessas situações mostrarem-se incompatíveis com o custo estimado
pela Administração, devido à ausência de preços de referências.
4. JUSTIFICATIVAS PARA ADOÇÃO DO SIGILO E A SUA EFETIVIDADE NAS LICITAÇÕES DA
INFRAERO.
Entre as intensas discussões e controvérsias que envolvem o sigilo do orçamento, tem-se questiona-
do quais motivos influenciaram o legislador a instituir o sigilo do orçamento estimado no RDC, visto que no
ordenamento jurídico predomina a publicidade dos atos. A resposta a essa indagação pode ser encontrada
no parecer do Relator do Projeto de Lei de Conversão nº 17, de 2011, decorrente da Medida Provisória nº
527/2011, que apresentou como justificativa para adoção do sigilo, a necessidade de impedir a formação de
cartéis entre os licitantes, como se extrai do trecho do Parecer do Senado:
Outra medida destinada a combater os cartéis é o sigilo do orçamento prévio
durante a licitação. Em mercados cartelizados, é comum que os agentes eco-
nômicos combinem previamente como se comportarão nos certames. Eles
dividem o mercado de obras públicas entre si, tornando a licitação um jogo
de cartas marcadas, no qual os participantes do conluio já sabem de antemão
qual deles irá vencer a disputa. Sabedor de que os outros licitantes irão ofer-
tar preços superiores ao de sua proposta, o futuro vencedor pode elaborar a
sua de modo a que a margem de desconto em relação ao orçamento prévio
da Administração seja mínima [...]. Como se vê, o sigilo do orçamento, longe
de ser uma medida reprovável, como sugerido por setores da mídia, traduz-
-se em inegável avanço na legislação, constituindo prática recomendada pela
OCDE e adotada pela legislação de diversos países, como a França e os Esta-
dos Unidos.
Como se percebe, o sigilo tem como finalidade inibir a prática de carteis, além de ser uma recomen-
dação da Organização e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que estabeleceram diretrizes, visando comba-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
ter a formação de conluio nas licitações. Para isso, recomendou como garantia da lisura desse sigilo, manter
guardada uma via do orçamento estimado em envelope lacrado, sob a responsabilidade de uma autoridade
pública sem vínculo com o órgão responsável pelo certame (REZENDE, 2015, p. 41). Dessa forma, acredi-
ta-se que não haverá vazamento de informações, inclusive, impedirá a alteração do valor estimado após o
início da licitação.
Nesse aspecto, Heinen (2015, p. 37) entende que, a adoção do sigilo do orçamento nas licitações
aumenta a possibilidade das propostas ofertadas pelos licitantes serem mais condizentes com suas realidades,
representando a verdadeira situação econômica da empresa, além de exigirem dos participantes maiores
cuidado na hora de elaborarem suas propostas.
Em sentido contrário encontram-se aqueles que declaram que o sigilo do orçamento não será ca-
paz de inibir a formação de conluio e cartéis, devido aos seguintes obstáculos: a) A administração elabora o
orçamento estimado com base nos preços de mercados, que são acessíveis a todos, inclusive, das empresas
participantes dos certames; b) A disponibilidade das informações aos órgãos de controle interno ou externo
produz um risco de vazamento de informações por integrantes dos órgãos (CAMMAROSANO; DALPOZZO;
VALIM, 2014, p. 53); c) O sigilo pode aumentar a possibilidade da licitação converte-se em deserta, diante
da ausência de informações relevantes que auxilie a elaboração da proposta pelo licitante, desestimulando a
competição na licitação (ALTONIAN; CAVALCANTE, 2014, p. 120).
No entanto, os resultados apresentados decorrentes da experiência da Infraero demonstram que,
apesar de se verificarem algumas falhas na adoção desse sigilo, todos eles foram passíveis de correção pelos
órgãos de controles e os resultados positivos superaram as expectativas, conforme demonstra o resultado da
auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União, especificamente pela Secretaria de Fiscalização de
Obras Aeroportuárias e de Edificação (SecobEdif) nas obras de reforma, ampliação e restauração de pistas
de pouso no aeroporto de Confins, em Minas Gerais, conforme destaca o Acórdão nº 305/2013 que teve como
relator o Ministro Valmir Campelo:
[...] A equipe de auditoria informou um sobre preço no orçamento base da
licitação, mas prontamente corrigido pela Infraero anteriormente ao início
do certame. Tal providência repercutiu em uma redução do valor base da
licitação em mais de R$ 19 milhões [...]. Pode-se, diante disso, tanto festejar
o sucesso do RDC eletrônico, como também - e por que não o do sigilo do
orçamento, revelado somente após a publicação da classificação.
Extrai-se ainda da redação desse Acórdão que, a auditoria realizada pelo TCU ocorreu na fase inter-
na da licitação, possibilitando o saneamento das irregularidades e promovendo resultados economicamente
elevados. Isso também comprava a disponibilidade de informações aos órgãos de controle, efetivando o que
determina o artigo 6º da Lei do RDC, o qual prevê que as informações relativas às licitações serão disponibi-
lizadas aos órgãos de controle de forma ampla.
A licitação citada por esse Acordão tinha como valor estimado pela Infraero, R$ 257.149.317,80
(duzentos e cinquenta e sete milhões, cento e quarenta e nove mil, trezentos e dezessete reais e oitenta
centavos), no entanto, foi homologada por R$ 199.044.986,52, (cento e noventa e nove milhões, quarenta e
quatro mil, novecentos e oitenta e seis reais e cinquenta e dois centavos), indicando que em termos de eco-
nomicidade o sigilo do orçamento tem apresentado resultados efetivo. (BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE
LICITAÇÕES, 2015).
Nesse contexto destaca-se o aspecto econômico do RDC, analisado nessa pesquisa por meio de visita
realizada ao site da Empresa Infraero no dia 18 de maio de 2015, a qual constatou que foram homologados
74 procedimentos licitatórios sob a égide do RDC, dos quais 69 adotaram o sigilo do orçamento estima-
do. As licitações que adotaram o sigilo do orçamento envolveram um montante de aproximadamente R$
3.175.776.144,35, (três bilhões, cento e setenta e cinco milhões, setecentos e setenta e seis mil, cento e
quarenta e quatro reais e trinta e cinco centavos). Entretanto, o valor total homologado pela Infraero, corres-
ponde a aproximadamente, R$ 2.924.175.738,21 (dois bilhões, novecentos e vinte quatro milhões, cento e
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
setenta e cinco mil, setecentos e trinta e oito reais e vinte um centavo), representando em termos percentu-
ais a diferença de 7,92% (BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE LICITAÇÕES, 2015).
De forma sistemática, tentou-se transformar as informações levantadas no site da Infraero em dados
estatísticos representados por gráficos que foram divididos em dois grupos: as licitações realizadas na moda-
lidade RDC presencial e RDC na modalidade eletrônica.
Ressalta-se que, apenas foram contabilizados os valores das licitações homologadas que adotaram o
sigilo do orçamento, considerando os anos compreendidos entre 2011 a 2014 no âmbito da Infraero. Para
melhor sintetizar os resultados analisados nas licitações que adotaram o sigilo do orçamento estimado na
modalidade presencial segue o gráfico 1:
As licitações realizadas sob a égide do RDC na modalidade eletrônica também foram objetos de es-
tudos, expostos no gráfico 2.
Assim, foi considerado para análise dessa modalidade o período de 2012 a 2014. Percebe-se também
que, a partir do ano de 2014 a Infraero priorizou a modalidade eletrônica, diminuindo gradativamente o uso
das licitações na modalidade presencial, uma vez que no ano de 2014 não houve licitações nessa modalidade
(BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE LICITAÇÕES, 2015).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Todo esse panorama retrata no âmbito da Infraero a relevância e efetividade do sigilo do orçamento,
a partir dos resultados economicamente viáveis apresentados na pesquisa. Por fim, diante dos dados pesqui-
sados e analisados é possível perceber que em relação ao aspecto econômico o sigilo do orçamento estimado
apresentou resultados satisfatórios e relevante efetividade econômica no âmbito da Infraero.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Regime Diferenciado de Contratação foi criado, inicialmente, para ser aplicado às obras e servi-
ços relativos aos eventos esportivos, sediados no país entre os anos de 2013 a 2016. Nesse aspecto, o objeto
originário do RDC era transitório e limitado, entretanto, devido aos resultados apresentados, o seu objeto foi
ampliado, alcançando demandas sem nenhum vínculo com o objeto inicial.
Desse modo, as inovações inseridas no ordenamento jurídico com o advento desse regime provoca-
ram intensas discussões e controvérsias, que alcançaram o Supremo Tribunal Federal por meio das Ações
Diretas de Inconstitucionalidade, nº 4645/11 e nº 4655/11, no entanto, até o presente momento não foram
julgadas.
Entre os diversos dispositivos impugnados pela ADI nº 4645/11 encontra-se o artigo 6º da Lei do
RDC, que disciplina o sigilo do orçamento estimado, estabelecendo que o orçamento da licitação será elabo-
rado, todavia, não será publicado antes do encerramento do certame. A controvérsia referente a esse instituto
reside no fato de que no regime licitatório tradicional, disciplinado pela Lei 8.666/93, a publicação do orça-
mento estimado deve ocorrer juntamente com o edital.
Assim, esse instituto desagradou a muitos, que visualizam no sigilo do orçamento estimado uma
grave violação ao princípio da publicidade. Esse princípio determina que os atos administrativos devam ser
publicizados com transparência, de modo a facilitar o controle tanto pelos órgãos de fiscalização como pela
sociedade, favorecendo o Estado Democrático de Direito.
Um dos principais argumentos para adoção do sigilo do orçamento é a de que esse instituto pode ini-
bir as práticas de formações de cartéis, visto que a ausência dessa informação inviabiliza tal conduta, além de
obrigar os participantes a elaborarem propostas mais reais e exequíveis, com a plena efetivação do princípio
da eficiência.
Durante a pesquisa também se percebeu que o sigilo do orçamento não é absoluto, tendo em vista que
algumas situações não se adaptaram ao instituto, como as licitações que adotam os critérios de julgamento:
maior desconto, melhor técnica ou conteúdo artístico, que devido às peculiaridades desses critérios torna-se
inviável a adoção do sigilo. A outra forma de relativização desse sigilo é a liberdade concedida à Administração
Pública para decidir se adota ou não o sigilo do orçamento estimado.
A análise sobre a jurisprudência do Tribunal de Contas da União e os editais de licitações apontou
que o sigilo do orçamento estimado do RDC no âmbito da Infraero foi efetivo, pois os valores homologados
foram sempre menores que os valores estimados, traduzindo a viabilidade econômica do orçamento sigiloso.
Assim, contudo, parecem ser inconsistentes as alegações de inconstitucionalidade do sigilo do orça-
mento estimado do RDC, previsto no artigo 6º da Lei 12.462/11, pois ao que tudo indica, o sigilo do orçamen-
to estimado faz parte de uma importante adequação do sistema licitatório ao atual contexto social, visando
atingir o interesse público com o alcance da proposta mais vantajosa para Administração Pública e de forma
plenamente, compatível com a Constituição Federal de 1988, refutando a hipótese levantada no início da
pesquisa. Em relação ao aspecto econômico o sigilo do orçamento mostrou-se plenamente efetivo no âmbito
da Infraero.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
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ZYMLER, Benjamin. Direito Administrativo e Controle. 3 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013.
Artigos
50
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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51
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
COTAS RACIAIS:
ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DE FUNDAMENTAÇÃO DO VOTO DE LEWANDOWSKI NA ADPF 186/
DF
Ana Caroline Alves Leitão
Bacharelanda e bolsista de iniciação cientifica(PIBIC) em Direito na Universidade Católica
de Pernambuco(UNICAP).
Virginia Colares
Mestre e Doutora em Linguística pela UFPE. Presidente da ALIDI. Membro do ILLA.
Professora da Graduação e do Programa de Pós graduação em Direito da UNICAP e
orientadora da bacharelanda no PIBIC.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Fundamentação teórica. 1.1. Análise crítica e tridimensionalismo do dis-
curso. 1.2. Ideologia: conceitos e modos de operação. 2. Análise crítica do discurso jurídico e atuação
da ideologia na ADPF 186. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
Este trabalho integra o plano de trabalho “Os modos de operação da ideologia no discurso de fun-
damentação nas decisões do STF sobre os direitos dos negros” a ser desenvolvido no PIBIC 2015/2016 da
Universidade Católica de Pernambuco, sob responsabilidade das autoras.
Com o objetivo de identificar, nas peças processuais, as estratégias linguístico-discursivas dos modos
de operação da ideologia no discurso de fundamentação nas decisões do Supremo Tribunal Federal no que
concerne aos direitos dos negros, a metodologia utilizada será a da Análise Crítica do Discurso Jurídico, res-
saltando efeitos ideológicos e políticos do discurso, a partir dos modos de operação da ideologia postos por J.
B. Thompson. A Análise Crítica do Discurso Jurídico tem por escopo a abordagem das relações entre lingua-
gem, direito e sociedade.
Para tal analisa-se o voto do ministro Ricardo Lewandowski na ADPF 186/DF, aprovando as cotas
raciais, o qual evidencia as mudanças nas relações entre direito e sociedade, que tradicionalmente foi de
imperativa ratificação do poder das classes dominantes frente às minorias e atualmente vem adotando uma
postura em prol da justiça social na contramão de seu uso tradicional. O foco da análise é a identificação dos
modos de operação da ideologia nesse discurso de fundamentação da ADPF 186/DF.
Assim, a adoção do conceito de ideologia, neste projeto, não implica necessariamente a sua utiliza-
ção como algo que oculta a verdade e leva a uma falsa consciência em contraste com algo que é considerado
verdadeiro e real, já que comumente a ideologia é retratada como uma via alienante para a manutenção de
poderes; o que se pretende é evidenciar que a ideologia opera por intermédio da linguagem que viabiliza a
ação social, sendo parcialmente constitutiva daquilo que na nossas sociedades é denominado “a realidade”.
A ACD revela uma tridimensionalidade do discurso, conforme a proposta de Normam Fairclough,
assim, o texto é analisado em suas três dimensões: textual, como pratica discursiva e como pratica social,
para compreender integralmente o que sustenta as cotas raciais como direito social e garantia de igualdade
52
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
material, considerando, que apenas com a análise detalhada e meticulosa da estrutura textual do discurso,
da forma como ele é produzido, distribuído e consumido e das relações sociais construídas entre negros e
outras raças, a partir de um contexto histórico de dominação e inferiorização do povo negro em relação aos
demais, é que se torna possível enxergar a discriminação positiva entre essas pessoas negras e não negras
como cabível, no momento em que se constitui o argumento para a ocupação das vagas universitárias e por-
que a construção deste argumento dada a partir apenas da nota numericamente constituída através da fria
avaliação de conhecimento se traduz em injustiça.
As fronteiras entre direito e política tem-se demonstrado bastantes flexíveis em diversas decisões do
STF, tais como: aborto anencefálico, casamento civil igualitário, as cotas, entre outras, nas quais o STF tem,
frente aos demais poderes e a sociedade, concedido e até mesmo criando novos direitos sociais; como as cotas
raciais tratadas no voto que este trabalho analisa, que objetivam alcançar a igualdade -material- presente na
carta magna e suprir uma dívida histórica que o Brasil tem com tal minoria, após um passado vergonhoso de
escravidão e uma realidade permanente de exclusão destes, através de uma verdadeira justiça distributiva.
Tentando alcançar assim, o objetivo primário de toda a estrutura do poder judiciário que consiste
em promover a justiça e a pacificação social, intermediando por meio de peças fundamentadas tais conflitos
presentes na sociedade brasileira. A fundamentação jurídica presente nas decisões condensa as práticas so-
ciais de todo um contexto histórico-social em seus textos. Portanto, todo discurso é uma construção social
e somente pode ser analisado ao se considerar a realidade em que esta imerso. Uma realidade de luta de
classes em que o judiciário tem se colocado ao lado dos interesses das minorias que compõe o povo. Assim,
decifrando-se o discurso jurídico, pretende-se também obter toda uma compreensão da realidade vivida
podendo, com isto, compor novas perspectivas de, não apenas novos direitos sociais, mas de toda uma nova
estrutura jurídica.
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.
1.1 ANÁLISE CRÍTICA E TRIDIMENSIONALISMO DO DISCURSO.
A análise crítica do discurso, idealizada por Norman Fairclough da década de 70, é uma espécie de
investigação dos emaranhados compositivos do discurso que considera a linguagem como uma forma de prá-
tica social; tem como centro da análise o contexto no qual o discurso é feito assim como a ideologia presente,
ou seja, foca nas relações entre linguagem e sociedade.
	 A ACD de Fairclough postula que o discurso tem três áreas fundamentais a serem decifradas
para compor a análise crítica a qual se propõe, ou seja, faz-se um estudo tridimensional do discurso; São es-
sas: análise de textos, que podem ser falados ou escritos; análise da prática discursiva, que observa os proces-
sos de produção, distribuição e consumo dos textos e a análise da prática social do discurso que seria todo o
contexto sócio cultural da sociedade da qual o discurso provém, já que não existe prática discursiva inerte ao
ambiente na qual é constituída. Ter destacado esses três aspectos não implica dizer que Fairclough propunha
uma análise isolada de cada uma delas, pelo contrário, em sua obra destaca que tal distinção é ilusória, por
que ao analisar um texto sempre se examinam concomitantemente questões de forma e de significado.
	 Na primeira dimensão, no discurso como texto, destacam-se aspectos formais da construção
textual, considerando que os signos são socialmente motivados, isto é, que há razões sociais para combinar
certos significantes a certos significados. Assim, a análise textual pode ser organizada em quatro tópicos:
vocabulário, gramática, coesão e estrutura textual. Vocabulário trata das palavras postas individualmente;
gramática das palavras estruturadas em orações e frases; a coesão evidencia a ligação entre orações e frases;
e a estrutura textual trata das propriedades organizacionais de larga escala dos textos.
	 A dimensão da prática discursiva envolve os processos de produção, distribuição e consumo e a
natureza desses processos caminha entre diferentes tipos de discurso em conformidade com fatores sociais,
como o processo de produção, que são idealizados de múltiplas formas particulares em contextos específicos.
53
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O consumo também pode ser diferenciado a partir de aspectos sociais diversos, que se relaciona com
a capacidade interpretativa do publico alvo e os modos de interpretação disponíveis. No que se refere a dis-
tribuição, pode ser simples ou complexa, cada texto possui padrões próprios de consumo e rotinas próprias
para a reprodução e transformação do texto. Fairclough elenca ainda o que seriam:
/.../ dimensões ‘sociocognitivas’ de produção e interpretação textual, que se
centralizam na inter-relação entre os recursos dos membros, que os partici-
pantes do discurso têm interiorizado e trazem consigo para o processamento
textual e o próprio texto. (FAIRCLOUGH, 2001, pág. 109).
Três dos principais itens sociocognitivos que integram a pratica discursiva são: a força dos enuncia-
dos(tipos de atos de fala); a coerência do texto que é uma propriedade das interpretações na qual um texto
coerente seria aquele que mantém uma relação de perfeita harmonia entre as partes integrantes do texto
e o sentido objetivado; e a intertextualidade trata da propriedade que determinado texto tem de ser cheio
de fragmentos de outros textos, característica bastante frequente no fragmento da peça que este trabalho
analisa.
Na ultima dimensão o discurso é tido como uma prática social, em que o autor:
/.../discutirei o conceito de discurso em relação à ideologia e ao poder e situa
o discurso em uma concepção de poder como hegemonia e em uma concep-
ção da evolução das relações de poder como luta hegemônica. (FAIRCLOU-
GH, 2001, pág. 116).
Nesta dimensão o autor entende que ideologias são construções da realidade em que são construídas
varias formas das práticas discursivas que contribuem para a produção ou transformação das relações de
dominação. Já hegemonia diz respeito ao poder e domínio exercido em determinada sociedade, e no que diz
respeito à análise discursiva, avalia-se não só o exercício deste poder, mas toda a estrutura de luta hegemô-
nica que se trava entre os detentores e submissos.
1.2 IDEOLOGIA: CONCEITOS E MODOS DE OPERAÇÃO.
O termo ideologia carrega em si o peso de seu uso ao longo do tempo, assim, a compreensão histórica
do termo é essencial para entender sua aplicação usual no senso comum e contrapropostas a esse uso e tam-
bém tentar traçar uma definição mais condizente com sua real dimensão na linguagem, portanto, será posto
os principais conceitos e usos históricos da ideologia e o conceito adotado neste trabalho.
Destutt de Tracy introduziu o conceito de ideologia como uma definição para o que seria uma ciência
das ideias, sendo inicialmente posto como um sistema de análise das ideias e sensações, acreditando que
as coisas não podem ser conhecidas em si mesmas, mas apenas as ideias formadas pelas sensações que se
tem delas. Ao passo em que a expressão começou a ser utilizada em meio político, seu conceito sofreu uma
reviravolta e foi usado por Napoleão contra os filósofos, não para se referir a uma ciência positiva e eminente,
mas a um corpo de ideias apartadas da realidade, assim, ideologia corresponderia a ideias utópicas e ilusó-
rias. Nas obras de Marx é possível flagrar vários significados distintos atribuídos ao mesmo termo- ideologia-,
primeiramente tem-se um conceito dito polêmico na obra a ideologia alemã, na qual denota, ao criticar as
ideias dos jovens hegelianos, que ideologia seria uma concepção teórica que acredita utopicamente nas ideias
como auto-suficientes e que não consegue compreender as características históricas e sociais da realidade
física, conceito que muito se assemelha ao uso que Napoleão fez do termo, ao postular que ideologia seria a
ideia afastada da política pratica, e por isso deveria ser desprezada. Já na concepção epifenomênica, Marx
concebe ideologia como um conjunto de ideias que expressam os interesses da classe dominante e que re-
presenta as relações de classe de forma ilusória. Há ainda uma concepção que J. B. Thompson nomeou de
concepção latente, na qual:
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
/.../Ideologia é um sistema de representações que servem para sustentar
relações existentes de dominação de classe através da orientação das pes-
soas para o passado em vez de para o futuro, ou para imagens e ideais que
escondem relações de classe e desviam da busca coletiva de mudança social.
Eu descreveria isso como a “concepção latente” de ideologia. (THOMPSON,
1998, pág. 58).
Após os três usos de Karl Marx: polêmica, epifenomênica e latente, o conceito de ideologia emergiu
com certa importância no meio das disciplinas sociais e chamou para si a atenção de vários outros filósofos
e sociólogos abordaram a temática da ideologia em duas concepções, a crítica, onde se insere a concepção
marxista e também a de Thompson, que baseado na concepção latente de Marx, nega que a ideologia teria
que necessariamente ser algo ilusório, que oculte a realidade, mas mantém como característica o objetivo
de manter as relações de dominação, postulando que: “ideologia são as maneiras como o sentido serve para
estabelecer e sustentar relações de dominação” ( J. B. THOMPSON, 1998, pág.76). Em relação a Marx,
Thompson também diverge quando diz que as relações de dominação estão aquém das relações de classe, in-
cluindo gênero, raça e outras. Já a concepção neutra, concebe ideologia como sendo uma espécie de visão de
mundo, a qual não serve necessariamente a manutenção de um discurso dominante, já que as minorias, por
exemplo, teriam sua visão de mundo, sua ideologia própria, tal qual o discurso feminista frente ao discurso
machista patriarcal dominante. Lênin, quando argumenta em favor de uma “ideologia socialista”, contribui
bastante para a neutralização do termo.
No presente artigo, a concepção de ideologia traçada se aproxima bastante da concepção neutra do
termo ideologia quando postula que ideologia deve ser tratada como ingrediente essencial ao discurso, sem
juízo de valor acerca do conteúdo ideológico, como faz a concepção crítica ao atribuir a ideologia um conjunto
de ideias que seria torpe e serviria para a manutenção das relações de poder, aqui ideologia se é posta apenas
como um aglomerado de ideias que podem ser relacionadas a determinados grupos e sociedades, ou seja,
não apenas o discurso dominante seria a manifestação dos ideais da classe detentora do poder, como também
todo e qualquer discurso está fadado a refletir as opiniões e posicionamentos de quem o prolata, assim sendo,
todo ele é ideológico.
Quando uma pessoa apresenta-se ao publico no inicio de um discurso, têm-se duas escolhas ao abor-
dar a plateia, que seriam: senhores; ou senhores e senhoras. Em qualquer uma das escolhas se faz presente
a ideologia de um grupo, seja ele dominante ou dominado, em que se demonstra ou a preocupação com o
frequente apagamento do gênero feminino da língua portuguesa ou a ratificação deste apagamento. Sendo
assim, a ideologia esta sempre presente, pois, por mais que o individuo se proponha a ser neutro, o ser hu-
mano que discursa esta imbuído de suas próprias crenças e concepções, transparecendo-as sempre na sua
produção intelectual.
A premissa de que todo discurso é ideológico é de suma importância para o desenvolvimento deste
trabalho, considerando que a análise crítica empenhada na ADPF 186, que trata das cotas, pode sugerir que
as cotas estão sendo aqui criticadas, quando na verdade, por trata todo discurso como impregnado por ideolo-
gia, nos propomos apenas a identificar tais estratégias linguísticas no trecho em questão e não fazer qualquer
juízo de valor negativo acerca deste direito social conquistado pelos negros.
Compreendido o sentido de ideologia, para a análise crítica do discurso jurídico serão considerados os
seus modos de operação, propostos por J. B. Thompson( ....) que são estratégias típicas de construção simbó-
lica, as quais serão compiladas e transcritas a seguir:
1. Legitimação: relações de dominação são estabelecidas e sustentadas como legitimas.
•	 Racionalização: uma cadeia de raciocínios procura justificar um conjunto de relações ou institui-
ções sociais.
•	 Universalização: acordos institucionais que servem aos interesses de alguns indivíduos são apre-
sentados como servindo ao interesse de todos.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
•	 Narrativização: histórias que contam o passado e tratam o presente como parte de uma tradição
eterna e aceitável.
2. Dissimulação: relações de dominação são estabelecidas e sustentadas sendo ocultadas, negadas,
obscurecidas ou representadas de maneira que desvia a atenção.
•	 Deslocamento: um termo usado para se referir a um determinado objeto ou pessoa é usado para
se referir a outro, deslocando conotações positivas ou negativas.
•	 Eufemização: ações, instituições ou relações sociais são descritas com uma valoração positiva.
•	 Tropo: uso das formas simbólicas da linguagem.
•	 Sinédoque: junção semântica da parte ao todo.
•	 Metonímia: um termo toma o lugar de um atributo para se referir a própria coisa.
•	 Metáfora: aplicação de um termo a um objeto ao qual ele não pode ser aplicado. Dissi-
mula relações de dominação através de sua representação ou de grupos a e indivíduos
nela implicados.
3. Unificação: construção simbólica de uma unidade coletiva
•	 Padronização: referencial padrão é proposto como fundamento partilhado.
•	 Simbolização da unidade: construção de símbolos de unidade e identificação coletiva
4. Fragmentação: segmentação de indivíduos e grupos que possam desafiar os grupos dominantes.
•	 Diferenciação: ênfase as distinções entre pessoas e grupos que os desunem e impede de constituir
uma força expressiva de contestação do poder atuante.
•	 Expurgo do outro: construção de um inimigo contra qual os indivíduos são chamados a resistir.
5. Reificação: retratação de uma situação transitória como permanente e atual.
•	 Naturalização: criação social e histórica tratada como natural.
•	 Eternalização: fenômenos sócio históricos apresentados como permanentes.
•	 Nominalização e passivização: sentenças são transformadas em nomes/verbos são colocados na
voz passiva.
A proposta de Thompson de categorizar os modos de operação da ideologia está, nos seus conceitos,
mergulhados na própria definição de ideologia do autor, que em sua concepção crítica, a considera apenas
para a manutenção das relações de poder. Como a definição que este trabalho aborda é outra, considerando
ideologia como intrínseca a qualquer discurso iremos utilizar tais modos de operação para decifrar a ideologia
permeada na peça, mesmo que não seja um discurso utilizado para manter uma relação de poder pré-exis-
tente, já que a peça analisada concede um direito a uma minoria historicamente oprimida, portanto, não é
um discurso que se proponha a manter uma relação de poder já consolidada, mesmo assim esta repleto de
ideologia, como qualquer outro discurso. Ideologia essa que temos como escopo tentar decifrar.
2. ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO JURÍDICO E ATUAÇÃO DA IDEOLOGIA NA ADPF 1861
.
1  “Análise Crítica do Discurso Jurídico” é a disciplina oferecida por Virginia Colares no Curso de Mestrado do Programa de Pós-
-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, desde sua criação, em 2005. Assim como é o título do relatório
de pesquisa, apresentado em julho de 2009, como resultado do Edital MCT/CNPq 50/2006 - Ciências Humanas, Sociais e Sociais
Aplicadas; Protocolo n° 2546463711149023.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Este trabalho propõe a análise do trecho “igualdade formal versus material” retirado da ADPF 186,
recorrendo aos modos de operação da ideologia bem como a tridimensionalidade do discurso para evidenciar
as estratégias discursivas que sustentam a decisão de Lewandowski.
	 Para começar a análise do texto, faremos observações com ênfase na dimensão prática do dis-
curso, segunda dimensão proposta por Fairclough, que trata da produção, distribuição, consumo; aspectos
que podem ser examinados como exteriores ao corpo físico da decisão. Quanto à produção de uma decisão
do STF acerca do controle de constitucionalidade, temos um procedimento formal descrito na constituição
brasileira. O rito da produção de uma decisão inicia-se apenas quando o judiciário é provocado, e neste caso,
tem que ser provocado acerca da suposta colisão com a constituição federal, já que o STF é o órgão guardião
desta. Quando o DEM impetrou a ADPF 186, alegando inconstitucionalidade das cotas, justificando que es-
tas iriam contra o principio da isonomia, presente no artigo 5° CF, o judiciário teve que se manifestar sobre, e
daí advém a explicação de Lewandowski sobre a igualdade da qual trata o referido artigo. Assim, descrito um
rito estritamente formal de produção, prolatado pela mais alta corte do país, temos um discurso tido como
de autoridade, respeitável, visto como sólido e confiável. Quanto à distribuição e consumo, decisões não são
textos acessíveis à maioria da população, sendo um conteúdo tido como erudito o qual, dada a formatação do
texto, apelidada como “juridiquez”, revela uma identidade unitária entre os produtores e consumidores, sen-
do necessária o mínimo de conhecimento jurídico para a compreensão da sentença prolatada, a capacidade
interpretativa restringe os consumidores e a maioria da população fica a mercê de meios que “mastiguem a
informação” pra si, passando a impressão de que quem produz tal conteúdo é dotado de grande saber.
97.	IGUALDADE FORMAL VERSUS MATERIAL
98.	De acordo com o artigo 5º, caput, da Constituição, “todos são iguais
99.	perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Com essa expressão
100.	 legislador constituinte originário acolheu a ideia – que vem da tradição
101.	 liberal, especialmente da Declaração do Homem e do Cidadão francesa
102.	 de 1789 - de que ao Estado não é dado fazer qualquer distinção entre
103.	 aqueles que se encontram sob seu abrigo.
Fragmento 01
Neste fragmento é notável a presença da ‘intertextualidade’, descrita como estratégia que traz ao texto recorte
de outros textos, geralmente discursos famosos, como forma de solidificar a argumentação que se pretende construir.
Além dos recortes, têm-se também datas e fatos históricos, que corroboram para a construção da percepção de confiabi-
lidade na ideia que se pretende defender.
104.	 É escusado dizer que o constituinte de 1988 – dada toda a evolução
105.	 política, doutrinária e jurisprudencial pela qual passou esse conceito –
106.	 não se restringiu apenas a proclamar solenemente, em palavras
107.	 grandiloquentes, a igualdade de todos diante da lei.
108.	 À toda evidência, não se ateve ele, simplesmente, a proclamar o
109.	 princípio da isonomia no plano formal, mas buscou emprestar a máxima
110.	 concreção a esse importante postulado, de maneira a assegurar a
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
111.	 igualdade material ou substancial a todos os brasileiros e estrangeiros
112.	 que vivem no País, levando em consideração – é claro - a diferença que os distingue por
113.	 razões naturais, culturais, sociais, econômicas ou até
114.	 mesmo acidentais, além de atentar, de modo especial, para a
115.	 desequiparação ocorrente no mundo dos fatos entre os distintos grupos
116.	 sociais.
Fragmento 02
Na linha 111 do recorte acima é perceptível o uso da ‘universalização’, estratégia típica que apresenta
o interesse de uma classe ou categoria como se fossem um interesse coletivo, comum a todos, quando na
verdade a igualdade material á qual o texto remete só beneficia, neste caso, os detentores dos direitos a cotas,
ou seja, os negros. A partir da linha 112 também temos uma ‘fragmentação’, modo de operação que separa
grupos que poderiam apresentar um real desafio ao poder dominante, caso atuasse juntos, são fragmentados
em detrimento de suas características únicas. Tem-se ainda nas linhas 114, 115 e 116 uma ‘eternalização’,
ou seja, fenômenos sócio-históricos apresentados como permanentes.
117.	 Para possibilitar que a igualdade material entre as pessoas seja
118.	 levada a efeito, o Estado pode lançar mão seja de políticas de cunho
119.	 universalista, que abrangem um número indeterminado de indivíduos,
120.	 mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que
121.	 atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a
122.	 estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a
123.	 superação de desigualdades decorrentes de situações históricas
124.	 particulares.
Fragmento 03
Na linha 118 temos uma ‘eufemização’, estratégia que legitima instituições e suas ações. Neste caso,
o quando se diz que o estado pode lançar mãos de um determinado tipo de política para se alcançar um bem
maior-igualdade material-, tem-se uma valoração positiva desta instituição e de sua ação. Na 121 novamente
temos uma ‘segmentação’, ao tratar de grupos sociais determinados, legitimando a atribuição de tratamento
especifico a estes grupos em detrimento de características particulares. Já nas linhas 123 e 124, é flagrante
a ‘narrativização’ na qual histórias do passado justificam o presente e novamente a ‘eternalização’.
125.	 Nesse sentido, assenta Daniela Ikawa:
126.	 “O princípio formal de igualdade, aplicado com exclusividade,
127.	 acarreta injustiças (...) ao desconsiderar diferenças em identidade.
128.	 (...)
58
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
129.	 Apenas o princípio da igualdade material, prescrito como
130.	 critério distributivo, percebe tanto aquela igualdade inicial, quanto
131.	 essa diferença em identidade e contexto. Para respeitar a igualdade
132.	 inicial em dignidade e a diferença, não basta, portanto, um princípio
133.	 de igualdade formal.
134.	 (...)
135.	 O princípio da universalidade formal deve ser oposto, primeiro,
136.	 a uma preocupação com os resultados, algo que as políticas
137.	 universalistas materiais abarcam. Segundo deve ser oposto a uma
138.	 preocupação com os resultados obtidos hoje, enquanto não há recursos
139.	 suficientes ou vontade política para a implementação de mudanças
140.	 estruturais que requerem a consideração do contexto, e enquanto há
141.	 indivíduos que não mais podem ser alcançados por políticas
142.	 universalistas de base, mas que sofreram os efeitos, no que toca à
143.	 educação, da insuficiência dessas políticas. São necessárias, por
144.	 conseguinte, também políticas afirmativas.
145.	 (...)
146.	 As políticas universalistas materiais e as políticas afirmativas
147.	 têm (...) o mesmo fundamento: o princípio constitucional da igualdade
148.	 material. São, contudo, distintas no seguinte sentido. Embora ambas
149.	 levem em consideração os resultados, as políticas universalistas
150.	 materiais, diferentemente das ações afirmativas, não tomam em conta
151.	 a posição relativa dos grupos sociais entre si”.
Fragmento 04
Todo este fragmento se trata de um recorte de outro texto, ou seja, novamente presente a ‘intertex-
tualidade’ usada para sustentar a posição do autor. Nas linha 127 segmenta-se novamente a minoria negra
para justificar o direito social a cotas e postular a injustiça presente num modo de acesso a educação superior
que ignore as diferenças sociais entre os concorrentes. Já na linha 131, ao se falar em identidade e contexto,
tem-se uma ‘unificação’ em que se constrói uma identidade simbólica coletiva, no caso- negros.
152.	 A adoção de tais políticas, que levam à superação de uma
153.	 perspectiva meramente formal do princípio da isonomia, integra o
154.	 próprio cerne do conceito de democracia, regime no qual, para usar as
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
155.	 palavras de Boaventura de Sousa Santos,
156.	 “(...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos
157.	 inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade
158.	 nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça
159.	 as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou
160.	 reproduza as desigualdades ”.
Fragmento 05
Na linha 154, ao relacionar tais políticas ao próprio cerne da democracia temos um discurso que pos-
tula a evolução das relações de poder como luta hegemônica, estratégia postulada na terceira dimensão- aná-
lise do discurso como prática social- e que diz repeito a luta de classes historicamente oprimidas pela atuação
no poder. Ou seja, quando se coloca um direito de uma minoria ao alcance da possibilidade de um curso que
pode ser sua chance de alternar de classe social como alvo do regime político e econômico vigente no país,
que em tese sempre favorece a classe dominante, temos uma flagrante luta contra as relações de dominação
vigentes no regime atual. Já a partir da linha 155, temos novamente a ‘intertextualidade’, utilizando-se de
um famoso discurso no ambiente jurídico.
161.	 Aliás, Dalmo de Abreu Dallari, nessa mesma linha, adverte que a
162.	 ideia de democracia, nos dias atuais, exige a superação de uma concepção
163.	 mecânica, estratificada, da igualdade, a qual, no passado, era definida apenas
164.	 como um direito, sem que se cogitasse, contudo, de convertê-lo em uma
165.	 possibilidade, esclarecendo o quanto segue:
166.	 “O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida, que
167.	 assegura tudo a alguns, desde a melhor condição econômica até o
168.	 melhor preparo intelectual, negando tudo a outros, mantendo os
169.	 primeiros em situação de privilégio, mesmo que sejam socialmente
170.	 inúteis ou negativos” .
Fragmento 06
Todo este trecho se compõe através da ‘intertextualidade’. Nas linhas 164 e 165, na contraposição dos
conceitos de “igualdade” e “possibilidade” temos uma ‘metáfora”, uma vez que aplica-se um termo a uma
significação ao qual ele não poderia ser aplicado, considerando que igualdade e possibilidade são significantes
totalmente distintos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse trabalho analisa o voto do ministro Ricardo Lewandowski na ADPF/186-DF, no que concerne
a “igualdade formal versus material”. A tese do DEM de que as cotas seriam inconstitucionais por ferir o
princípio da isonomia, presente no caput do artigo 5º da carta magna, é contestada pelo relator no que se
refere às cotas como direitos sociais dos negros. A metodologia adotada é a análise crítica do discurso jurídi-
60
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
co(ACDJ), em especial os modos de operação da ideologia, propostos inicialmente por J. B. Thompson. Como
resultados identifica-se o uso reinterado da estratégia de intertextualidade.
Ao longo da análise proposta, percebe-se o uso de diversas estratégias e modos gerais de operação da
ideologia, mas, diferentemente das analises clássicas em que tais estratégias são utilizadas para fundamentar
discursos atuantes em prol da classe detentora do poder, desta vez são empregadas para conceder um direito
social a uma minoria, ou seja, em uma flagrante luta hegemônica em prol de uma configuração social mais
justa.
REFERÊNCIAS
FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasilia: UnB, 2001.
PIMENTEL, Alexandre Freire; BARROSO, Fábio Túlio; DE GOUVEIA, Lúcio Grassi. Processo, hermenêutica e efe-
tividade dos processos. Recife: APPODI, 2015.
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 9.
ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
61
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A PROTEÇÃO JUDICIAL DAS MINORIAS:
A UNIÃO HOMOAFETIVA NO STF E NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
Ana Catarina Silva Lemos Paz
Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da CAPES
no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. Monitora da cadeira de Direito
Constitucional I na Universidade Católica de Pernambuco. catarina.lemospaz@gmail.com
Luiz Manoel da Silva Júnior
Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós graduando no PPGD
Unicap. Advogado. luizmsj@live.com
Arthur Albuquerque de Andrade
Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestrando em Direito
pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista da CAPES no programa Tutela
Multinível de Direitos Humanos. albuquerquearthur@hotmail.com
SUMÁRIO: Introdução; 1. União homoafetiva no Sistema Interamericano de Direitos Humanos;
1.1. Direito Internacional dos Direitos Humanos: breve histórico; 1.2. O Sistema Interamericano de
Direitos Humanos; 1.3. O Sistema interamericano e os direitos LGBTI; 2. O tratamento jurídico da
união homoafetiva; 3. A controvérsia acerca do regime jurídico das uniões homoafetivas no brasil;
3.1. O reconhecimento jurídico da união homoafetiva pelo STF; 3.2. Estatuto da Família: Supremacia
judicial e proibição ao retrocesso; Conclusão; referências.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo analisar a discussão acerca da definição de entidade familiar,
mais precisamente devido à sua repercussão no reconhecimento da união estável e do casamento homoafe-
tivos.
É sabido que, sob a perspectiva do constitucionalismo democrático, um dos mais relevantes papéis
atribuídos aos Tribunais consiste na proteção dos direitos das minorias. Essa proteção vem sendo intensificada
noâmbitonacional,sobretudoperanteoSupremoTribunalFederal(STF),etambémemâmbitosupranacional,
considerando a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos na defesa dos direitos humanos
diante dos países signatários da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.
Dessa forma, em sede de controle de constitucionalidade direto, através da Ação Direta de Inconsti-
tucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, o STF
reconheceu a extensão do conceito jurídico de união estável para os casais do mesmo sexo, o que, conse-
quentemente, viabilizou-se o casamento igualitário.
Entretanto, uma parcela política conservadora, baseada em argumentos eminentemente religiosos,
pretende a aprovação no Congresso Nacional do Projeto de Lei nº 6.583/2013 (Estatuto da Família) que
apenas reconheça como entidade familiar a união entre homem e mulher, excluindo, portanto, o reconheci-
mento do casamento e da união estável homoafetiva.
62
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Nesse diapasão, são analisadas as possíveis repercussões da aprovação do referido projeto no que tan-
ge ao fato de contrariar decisão já prolatada pelo STF, trazendo à tona questões como a supremacia judicial
na interpretação da constituição e a aplicabilidade do princípio da proibição do retrocesso para a atividade
parlamentar, quando direitos de minorias estão sob ameaça.
1. UNIÃO HOMOAFETIVA NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS.
1.1 DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: BREVE HISTÓRICO.
A tarefa de definir Direitos Humanos não é fácil. Alguns doutrinadores entendem que direitos huma-
nos e direitos fundamentais seriam sinônimos, uma vez que ambos são inerentes aos seres humanos, intima-
mente ligados à ideia de dignidade da pessoa humana, e ainda, ambos possuem o condão de limitar a ação do
Estado. São exemplos dos que seguem essa concepção: Paulo Gustavo Gonet Branco (2002), Alexandre de
Morais (2013), e João Baptista Herkenhoff (1994).
Há, entretanto, aqueles que entendam que embora sejam comumente utilizadas como sinônimas, as
duas expressões guardam entre si importantes diferenças a serem apontadas. José Joaquim Gomes Canotilho
(1998, p.59) aponta distinções no que tange às origens e aos significados, pois que Direitos Humanos (ou
Direitos do Homem, como coloca o autor) são aqueles inerentes a todos os povos e em qualquer espaço de
tempo. Já os direitos fundamentais são aqueles direitos do homem que possuem resguardo jurídico-institu-
cional, e são percebidos num determinado espaço de tempo. Assim, os direitos humanos seriam aqueles os
quais originam-se diretamente da natureza humana, enquanto que os direitos fundamentais dependem de
uma ordem jurídica vigente.
No mesmo sentido, Ingo Wolfgang Sarlet (2005, p.35 e 36) leciona:
“[...] o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser
humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional po-
sitivo de determinado Estado, ao passo que a expressão direitos humanos
guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se
àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, inde-
pendentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e
que, portanto aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de
tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional.”
Como se pode perceber, portanto, embora guardem alguma semelhança, Direitos humanos e Direitos
fundamentais não se confundem, pois este é referente ao direito positivado, ao direito garantido constitu-
cionalmente pelos estados em seus diplomas legais, enquanto que aquele refere-se ao direito inerente ao
homem por ser homem, e guarda cunho universal, intertemporal e inviolável (CANOTILHO, 1998, p.59),
não dependendo de positivação em nenhuma ordem jurídica.
Nas palavras de Perez Luño (1999, p. 48)
Los derechos humanos aparecen como un conjunto de facultades e institu-
ciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la digni-
dad, la libertad y la igualdad humana, las cuales deben ser reconocidas posi-
tivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional.
Desta forma, a expressão direitos humanos é comumente utilizada para referir-se ao homem sujeito
de direitos na ordem internacional, conotação que ganhou força no pós-guerra.
Assim, o Direito Internacional de Direitos Humanos, um movimento bastante recente na história,
nasceu mediante resposta da população mundial às atrocidades cometidas durante o nazismo. As preocupa-
63
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
ções primordiais do movimento eram: (i) universalizar e internacionalizar o tema, a fim de que fosse possível
uma normatização internacional dos direitos; (ii) marcar a concepção contemporânea de direitos humanos
como aquela que advém da dignidade humana como fundamento de proteção. Inicia-se assim a “era dos
direitos”. (BOBBIO, 1992; p. 49)
Dessa forma, a proteção aos direitos humanos deixou de ser apenas de carácter regional e passou a
ser objeto de proteção da comunidade internacional, sendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos da
ONU (DUDH), de 1948, seu maior expoente (PIOVESAN, 2010, p. 121-122).
Os sistemas internacional e nacional se complementam, pois, os dois consagram o valor da primazia
da pessoa humana, proporcionando por tanto, um maior arcabouço de proteção e uma maior efetividade na
tutela e promoção dos direitos fundamentais. Assim, a sistemática internacional funciona como uma garan-
tia adicional, pois institui mecanismos de responsabilização e controle dos Estados, evitando a omissão na
implementação de tais direitos.
Em sequência à Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, diversos outros diplomas nor-
mativos internacionais foram editados, como os tratados e as convenções de direitos humanos. Todos esses
diplomas contavam, também, com a natureza de fiscalização e promoção dada pela declaração. São bons
exemplos: o Pacto Internacional dos direitos civis e políticos; o Pacto Internacional dos direitos econômicos,
sociais e culturais; a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação Ra-
cial; a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher (PIO-
VESAN, 2010, p. 161-237).
Além dos tratados e convenções, também surgiram outros sistemas de proteção dos direitos humanos,
onde podemos citar o sistema africano, o europeu e o interamericano, como complementares do sistema
global.1
1.2 O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos é um dos sistemas regionais que complementam o
sistema global de proteção a esses direitos. Ele é composto por dois regimes, aquele que é regido pela Con-
venção Americana de direitos humanos, e aquele que é regido pela Carta da Organização dos Estados Ame-
ricanos. O presente trabalho, no entanto, limita-se a explicar a atuação do sistema no que tange ao regime
baseado na convenção.
A Convenção Americana de Direitos Humanos - também denominada Pacto de São José da Costa
Rica - é um dos principais instrumentos normativos do SIDH e foi assinada em São José da Costa Rica em
1969, entrando em vigor apenas em 1978.2
O Brasil é seu signatário desde 19923
. É o mais extenso instru-
mento internacional de proteção aos direitos humanos, contando com 82 artigos (VASAK, 1982; p. 558 e
559). Dentre eles, podemos achar bastante semelhança com aqueles elencados pelo Pacto Internacional dos
Direitos Civis e Políticos, como por exemplo: direito à personalidade jurídica, à vida, ao tratamento humano,
à liberdade pessoal, à privacidade.
Os direitos sociais, culturais e econômicos não estão enunciados de forma específica na convenção,
esta apenas limita-se a determinar que os Estados busquem meios de alcançar, progressivamente, a plena re-
alização desses direitos. Esses meios podem ser medidas legislativas ou outras apropriadas para a persecução
1  A temática da orientação sexual e da identidade de gênero era ainda incipiente, possuindo abordagem bastante pontual. Uma
maior discussão sobre o tema, entretanto, foi possível após a apresentação da Resolução “Direitos Humanos, Orientação Sexual e
Identidade de Gênero” na ONU, em 2003. Mesmo retirada posteriormente por pressão de países islâmicos, dos EUA e do Vaticano
(PAZELLO, 2004, p. 29-30), foi novamente reintegrada em 2011, demonstrando seu importante valor no que consta sobre a dis-
cussão do tema em âmbito mundial.
2  Disponível em: http://www.cidh.org/comissao.html. Acesso em: 25 de janeiro de 2016. Importante assinalar que apenas os
Estados-membros da Organização dos Estados Americanos possuem o direito de aderir à Convenção. Até janeiro de 2014, a OEA
contava com 24 Estados- partes. (PIOVESAN, 2015; p. 340)
3  Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível com a tradução em português em: http://www2.mre.gov.br/
dai/m_678_1992.html. Acesso em: 25 de janeiro de 2016.
64
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
do objetivo final. Posteriormente a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos adotou o Pro-
tocolo de San Salvador, que concerne, justamente, aos direitos sociais, econômicos e culturais (PIOVESAN,
2015; p. 341).
Dessa forma, é possível perceber que, embora a convenção elenque direitos e garantias que não de-
vem ser violados pelos Estados-membros, ela também cuida de mecanismos que visam a garantir a efetiva
realização desses direitos. Sendo assim, ao mesmo tempo que os Estados-membros respeitam os direitos e
garantias prescritos na convenção, eles também devem assegurá-los e, assim sendo, a convenção estabelece
dois órgãos responsáveis pelo monitoramento e implementação dos direitos nela elencados: a comissão inte-
ramericana de direitos humanos e a corte interamericana de direitos humanos.
A competência da Comissão Interamericana se estende por todos os Estados-partes da Convenção
Americana, e também pelos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos. Ora, a comissão
exerce diversas atribuições - das quais podemos citar o papel de conciliadora, crítica, assessora, legitimado-
ra, promotora, etc4
- as mais relevante para esse estudo são as modalidades de controle: exame de petições
encaminhadas - por indivíduos ou grupo de indivíduos, ou ainda, organizações, sejam elas governamentais
ou não5
- referentes à violação de algum direito protegido em qualquer dos instrumentos normativos de com-
petência da comissão; elaboração de informes, sobre a situação dos Direitos Humanos em qualquer dos Es-
tados que sejam parte do Sistema Interamericano; e investigações “in loco” nos países (PINTO, 1993; p. 83)
A comissão é composta por sete membros os quais podem ser de qualquer Estado-membro da OEA.
São eleitos por assembleia geral, podendo ser reeleitos apenas uma vez e devem ser dotados de reconhecido
saber jurídico no que tange aos Direitos Humanos e também alta autoridade moral.
A Corte interamericana de Direitos Humanos é o outro aparato trazido pelo SIDH com função de
monitorar e viabilizar o cumprimento dos direitos expostos na convenção. Órgão jurisdicional do sistema
regional, é composto por juízes dos Estados-membros da OEA em número de sete. Possui competência
tanto consultiva como contenciosa. Ou seja, quanto à sua competência contenciosa, a Corte IDH pode
responsabilizar o Estado-parte pela violação dos direitos os quais ratifica a convenção, isso porque os signatários
comprometeram-se a não só respeitar, como também garantir esses direitos, usando de todos os seus recursos
para punir os infratores de acordo com suas normas internas. Quanto à sua competência consultiva, a corte
emitirá pareceres, à pedido dos Estados-parte, manifestando-se sobre a compatibilidade entre qualquer das
normas elencadas na convenção a as leis dos respectivos Estados (GUERRA, 2010; p. 05-07).
Dessa forma, no âmbito procedimental, a comissão recebe uma petição fazendo o juízo de admissi-
bilidade6
e, em seguida, solicita informações do Governo denunciado. Uma vez recebidas as informações ou
transcorrido o prazo para tal, é verificada existência ou subsistência dos motivos arrolados na petição. Em
seguida, a comissão decide pelo arquivamento ou pelo prosseguimento do exame do assunto, o qual, após
4  Para mais informações vide Héctor Fix-Zamudio, Proteccíon jurídica de los derechos humanos, p. 152.
5  A convenção americana, diferente das outras convenções e tratados de direitos humanos, não estabelece à vítima, exclusi-
vamente, o direito de peticionar junto à comissão. Qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos ou qualquer organização poderá
fazê-lo. (BUERGUENTHAL, 1981; p. 148)
6  O juízo de Admissibilidade é feito segundo o artigo 46 da CIDH, assim prescrita:
1. Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 seja admitida pela Comissão, será ne-
cessário:
a. que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de direito internacional
geralmente reconhecidos;
b. que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha
sido notificado da decisão definitiva;
c. que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; e
d. que, no caso do artigo 44, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pes-
soas ou do representante legal da entidade que submeter a petição.
2. As disposições das alíneas a e b do inciso 1 deste artigo não se aplicarão quando:
a. não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se
alegue tenham sido violados;
b. não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido
ele impedido de esgotá-los; e
c. houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.
65
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
realizado, será depreendido esforço no sentido de buscar uma solução amigável entre as partes, ou seja, entre
o peticionante e o Estado. Caso essa negociação não seja bem-sucedida, a comissão elaborará um relatório,
apresentando os fatos e as conclusões pertinentes ao caso e o enviará ao Estado-parte para que no período
de três meses possam ser tomadas as devidas providências. Dentro desse príodo de tempo, o caso pode ser ou
solucionado plas próprias partes, ou então poderá ser remetido à Corte IDH.
1.3 O SISTEMA INTERAMERICANO E OS DIREITOS LGBTI.
A OEA, vem, repetidamente, através dos anos, editando resoluções em sua assembleia geral, que
visam assegurar os direitos humanos da população LGBTI, assim como reprimir qualquer tipo de discrimina-
ção e violência que possam incorrer devido à orientação sexual ou identidade de gênero da vítima. A primei-
ra, a Resolução nº 2435/2008 – Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero –, foi aprovada
pela Assembleia Geral da OEA em 03 de junho de 2008. O documento foi fruto de iniciativa do Estado brasi-
leiro e apoiou-se nas disposições normativas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração
Americana dos Direitos do Homem e na Carta da OEA. Em sequência, foi aprovada a Resolução nº2504 em
2009, com as mesmas fundamentações normativas da anterior, mas levando também em consideração a nota
da Declaração da ONU sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero7
, e inova ao sugerir que os Estados
membros considerem a adoção de medidas que enfrentem o tratamento discriminatório motivado por orien-
tação sexual e identidade de gênero, e que a Comissão IDH faça um estudo temático sobre discriminação
e violência contra a população LGBTI. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2010, p. 02). Na
mesma linha seguiram a Resolução nº 2653/2011, aprovada em 07 de junho de 2011, estabelecendo o plano
de trabalho “Direitos das Pessoas LGBTI”. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2011b, p. 01-
02); a Resolução nº 2721/2012, de 04 de junho de 2012, a qual propõe a criação junto à Comissão IDH da
Unidade de Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais (LGBTI) (ORGANIZAÇÃO
DOS ESTADOS AMERICANOS, 2012b, p. 02); e, por fim, a Resolução nº 2807/2013, de 06 de junho de
2013, a qual incentiva os Estados-membros a fazer o levantamento para políticas públicas de proteção pesso-
al LGBTI. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2013b, p. 02-04).
O primeiro caso levado à comissão sobre orientação sexual e identidade de gênero foi o caso Marta
Alvarez vs. Colombia. Esse caso trata sobre a negação ao tratamento igualitário por parte do denunciado con-
tra a denunciante, uma vez que esta teve por proibidas suas visitas conjugais no sistema prisional por causa
da sua orientação sexual. Houve, portanto, a inobservância dos arts.5º (integridade física, psíquica e moral),
8º (respeito à dignidade enquanto pessoa privada de liberdade), 11 (direito ao respeito de sua honra e ao
reconhecimento de sua dignidade) e 24 (igualdade perante a lei e igual proteção desta), em razão da recusa
das autoridades prisionais em autorizar o exercício do seu direito à visita íntima por causa de sua orientação
sexual. O caso ainda aguarda decisão definitiva (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇOES UNIDAS, 1999).
Outro caso emblemático sobre direito LGBT levado à comissão, foi o caso Atala Riffo y niñas vs. Chile.
De acordo com a comissão, houve o descumprimento dos arts.11 (Proteção da honra e da dignidade), 17.1
e 17.4 (Proteção da família), 19 (Direitos da criança), 24 (Igualdade perante a lei), 8 (Garantias judiciais) e
25.1 e 25.2 (Proteção judicial) da Convenção, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento. Isso porque
se alega a responsabilidade internacional do Estado pelo tratamento discriminatório, interferindo, arbitraria-
mente, na vida privada e familiar das denunciantes, observadas no processo judicial que resultou na retirada
da custódia das filhas da senhora Atala. O Estado foi condenado a adotar de medidas de reparação. (ORGA-
NIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2012a).
Por fim, é de suma importância citar o caso José Alberto Pérez Meza vs. Paraguay (ORGANIZAÇÃO
DOS ESTADOS AMERICANOS, 2001), o qual, embora rejeitado no juízo de admissibilidade por não preen-
cher o requisito do esgotamento dos recursos internos, além de não verificar tratamento discriminatório no
julgamento do reconhecimento da sociedade de fato, vez que trata-se do único caso que chegou até a corte
tratando especificamente do reconhecimento de uniões homoafetivas, o então objeto desse estudo. No caso
7  Declaração nº A/63/635 – Direitos humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero”, de 22 de dezembro de 2008. (OR-
GANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2008)
66
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
em questão o peticionante tentara ter reconhecida sua sociedade com o seu falecido companheiro homoafe-
tivo. Apesar dos esforços empenhados, não restou comprovada a união de fato, quando, então, o peticionante
resolveu pleitear nas instancias internas o reconhecimento de união homoafetiva. Cuida que tanto o Código
Civil paraguaio quanto a Constituição, expressamente proíbem a união e casamento entre pessoas do mesmo
sexo, prevendo apenas a existência desses institutos quando se tratando de homem e mulher. Ao apresentar
à comissão o caso, José Alberto Pérez alegou a inobservância dos artigos 24 (igualdade perante a lei e igual
proteção desta) e 25 (direito ao acesso à justiça eficaz e em prazo razoável) do Pacto de São José da Costa
Rica. Entretanto, conforme falado anteriormente, a CIDH julgou pela inadmissibilidade do caso por questões
técnicas, mas não de mérito.
Como será demonstrado adiante, se a petição tivesse sido admitida, era possível fazer um paralelo
entre as decisões em sede de controle de constitucionalidade feitas pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro
e uma possível sentença dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que, assim como o
ordenamento jurídico brasileiro, a CADH não prevê proibição expressa à união homoafetiva, no que, pelo ou-
tro lado, expressamente proíbe qualquer forma de discriminação perante a lei. Poderia ser um caso bastante
importante no que tange tanto aos Direitos LGBTI, quanto ao estudo do diálogo entre corte, no que tange à
tutela Multinível dos Direitos Humanos.
2. O TRATAMENTO JURÍDICO DA UNIÃO HOMOAFETIVA.
A Constituição Federal e o Código Civil brasileiros tratam de entidade familiar como aquela formada
por um homem e uma mulher, excluindo, a princípio, qualquer outro tipo de relação afetiva que não se en-
quadre neste contexto. Assim prescreve a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre
o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento. (grifo nosso)
Da mesma forma, prescreve o Código Civil de 2002:
Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o ho-
mem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura
e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
§ 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art.
1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada
se achar separada de fato ou judicialmente.
§ 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da
união estável.
A Convenção Interamericana de Direitos Humanos também faz menção à família e coloca-a como
um dos principais pilares da sociedade. Assim prescreve:
Artigo 17. Proteção da família.
1. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser pro-
tegida pela sociedade e pelo Estado.
2. É reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento
e de fundarem uma família, se tiverem a idade e as condições para isso exi-
gidas pelas leis internas, na medida em que não afetem estas o princípio da
não-discriminação estabelecido nesta Convenção.
67
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Esses artigos não devem, entretanto, ser interpretados de forma isolada. É preciso contextualizá-los
dentro dos diplomas normativos nos quais estão inseridos. Nesse diapasão, deve-se observar a importância
de dois princípios fundamentais no estudo dos direitos humanos: o princípio da igualdade e o princípio da
não-discriminação. Ambos estão codificados tanto na Constituição brasileira (arts. 3º, IV e 5º)8
, como na
Convenção Americana (arts. 1.1 e 24)9
.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na Opinião Consultiva nº. 18, expressou que o
princípio da igualdade está intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois os dois
advém do próprio gênero humano. Sendo assim, seria incompatível a supremacia ou inferioridade de um
determinado grupo perante outro, se de qualquer forma esse tratamento enseje hostilidade ou discriminação
no gozo dos direitos de ambos. (Corte IDH. Condición Jurídica y Derechos de los Migrantes Indocumentados.
Opinião Consultiva OC-18/03 de 17 de setembro de 2003. Série A No. 18, § 87).
Outros diplomas normativos também reconhecem a importância do princípio da igualdade e da não
discriminação como basilares ao respeito e proteção dos direitos humanos. Para citar alguns exemplos: Carta
da Organização dos Estados Americanos, 1997 (art. 3.1); Convenção Americana sobre Direitos Humanos
(Pacto de San José da Costa Rica), 1969 (arts. 1 e 24); Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem, 1948 (art. 2); Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), 1988 (art. 3); Carta das Nações
Unidas, 1945 (art. 1.3); Declaração Universal de Direitos Humanos, 1948 (arts. 2 e 7); Pacto Internacional
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966 (arts. 2.2 e 3); Pacto Internacional de Direitos Civis e Polí-
ticos, 1966 (arts. 2 e 26); Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação
Racial, 1968 (art. 2); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher,
1979 (arts. 2, 3, 5 a 16); Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação
Fundadas na Religião ou nas Convicções, 1981 (arts. 2 e 4); Convenção No. 111 da Organização Interna-
cional do Trabalho (OIT) relativa à Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação, 1958 (arts. 1 a 3);
Proclamação de Teerã, 1968 (parágrafos 1, 2, 5, 8 e 11); Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993
(I.15; I.19; I.27; I.30; II.B.1, arts. 19 a 24; II.B.2, arts. 25 a 27); Declaração sobre os Direitos das Pessoas
Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, 1992 (arts. 2, 3, 4.1 e 5); Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia, 2000 (arts. 20 e 21); Convenção Europeia para a Proteção dos
Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, 1950 (arts. 1 e 14); Carta Social Europeia, 1961 (art.
19.4, 19.5 e 19.7); Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, 1981 (Carta de Banjul) (arts. 2 e 3);
Carta Árabe sobre Direitos Humanos, 1994 (art. 2); e Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos do Islã,
1990 (art. 1). (Nota de rodapé nº 33 da Opinião Consultiva OC-18/03)
Dessa sorte, mesmo não havendo proteção expressa à união homoafetiva em nenhum dos dois sis-
temas jurídicos - nem na convenção americana e nem no ordenamento jurídico brasileiro - eles acabam por
proteger, de outra forma esse direito da população LGBTI. Garantir e promover a igualdade significa tratar
igual os grupos iguais e desigual os grupos desiguais. Convém lembrar, contudo, que a diferença de tratamen-
to deve ser pautada em motivos objetivos e razoáveis. Advém Robert Alexy (1997) que o tratamento igual deve
ser depreendido a todos sempre que o tratamento desigual não for pautado em nenhuma razão suficiente.
Nesse contexto, não há fundamentação nem fática nem jurídica que corrobore para a diferença de
tratamento entre casais hétero e homoafeitvos no que tange à união estável. Muito pelo contrário. É certo
dizer que o entendimento acerca da temática é que mesmo não havendo menção expressa a entidade fa-
miliar formada por casais homoafetivos, o que se encontra disposto não é taxativo, mas sim exemplificativo,
englobando, portanto, outros tipos de família, não só aquela formada por um homem e uma mulher.
8  Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
9  Art. 1.1 - Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garan-
tir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor,
sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento
ou qualquer outra condição social [...]
Art. 24 - Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação alguma, à igual proteção da lei.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Essa mudança se dá no momento em que o direito acompanha a nova realidade da sociedade mun-
dial. Novos padrões e novas práticas éticas e morais vêm surgindo, e com elas, uma nova forma de ver a nor-
ma jurídica, uma forma que atribui aos direitos um carácter mais “prático e efetivo, não teor ético e ilusório”.
(Corte IDH. Condición Jurídica y Derechos de los Migrantes Indocumentados. Opinião Consultiva OC-18/03
de 17 de setembro de 2003. Série A No. 18, §120)
3. A CONTROVÉRSIA ACERCA DO REGIME JURÍDICO DAS UNIÕES HOMOAFETIVAS NO BRASIL.
Há muito que as uniões homoafetivas são cada vez mais comuns no cenário não só brasileiro, como
mundial. A falta de regulamentação jurídica dessa situação corresponde à violação de direitos fundamentais
importantes, vez que esse direito é ao mesmo tempo individual, social e difuso.
O ordenamento jurídico brasileiro não possui proteção legal expressa à união homoafetiva. Outros
países já reconhecem a união civil entre casais homossexuais, como é o caso da Dinamarca (1989), Noruega
(1993), Suécia (1994), Holanda (1995) e Reino Unido (2001).
Diversos projetos de Lei versando sobre a regulamentação da situação da união homoafetiva, desde o
primeiro em 1995, não chegam ao plenário da câmara. Esse descaso acerca da matéria demonstra a inércia
de parte do legislativo em se envolver, tanto por questões políticas, como também religiosas.
3.1 O RECONHECIMENTO JURÍDICO DA UNIÃO HOMOAFETIVA PELO STF.
A primeira decisão judicial brasileira reconhecendo a união entre casais do mesmo sexo ocorreu na
década de 90, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.10
O Supremo Tribunal Federal, em cinco de maio de 2011, analisa a temática das uniões homoafetivas,
através da conjugação das questões vertidas na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 427711
, de
propositura da Procuradoria Geral da República, e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
(ADPF) nº 132, de legitimação ativa do governo do Estado do Rio de janeiro12
.
As duas ações foram relatadas pelo então Ministro Ayres Britto, e objetivavam, mediante interpreta-
ção conforme a constituição, a equiparação da união entre pessoas do mesmo sexo com a união estável, a fim
de adquirirem status de entidade familiar, assegurada, no artigo. 226, §3º.
A falta de reduto positivo no que concerne à união entre pessoas do mesmo sexo, não significa que
não haja tal proteção por parte do ordenamento jurídico brasileiro. Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes,
o fato de que tanto a Constituição quanto o Código Civil apenas fazem menção à entidade familiar formada
por casais heterossexuais, não significa a negativa da proteção à união homoafetiva.
Ainda segundo os Ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia, o supracitado art. 226,
§3º da Constituição deve ser interpretado sistematicamente com os artigos 3º, IV e 5º. Portanto, na inexis-
tência de proibição expressa e consagrando a constituição so princípios da igualdade e da não discriminação,
deveriam ser reconhecidas as uniões homoafetivas como equiparadas às uniões civis. Assevera o Ministro
Luiz Fux que o conceito ontológico de família engloba as uniões marcadas por afetividade, estabilidade, con-
tinuidade, publicidade e identificação recíprocas de seus integrantes como formadores de uma família.
Assim, seguindo o exposto pelo Ministro Relator, o pleno do STF, por unanimidade, decidiu por dar
provimento às pretensões expostas nas duas ações supracitadas.
10  TJRS, AI 599075496, 8ª. Câm. Civ., j. 17.06.1999, rel.Des. Breno Moreira Mussi.
11  Era inicialmente ADPF 178, na qual se intentava o reconhecimento de uniões homoafetivas como entidade familiar, esten-
dendo-se a elas, portanto, o mesmo tratamento jurídico da união civil.
12  Nesta ação intentava-se aplicar o regime de união estável aos casais homoafetivos funcionários públicos civis do estado com
base no argumento de que a negativa de tal feito contrariava preceitos constitucionais fundamentais.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
As mesmas teses poderiam ter sido alegadas no caso do José Alberto Pérez Meza vs. Paraguay, basea-
das nos artigos 11 (proteção da honra e da dignidade) e 24 (igualdade perante a lei e igual proteção por parte
desta) da CADH, uma vez que esta também não proíbe expressamente a união civil entre pessoas do mesmo
sexo. É certo dizer que representaria um avanço hermenêutico de grande importância histórica, levando em
consideração o contexto sociopolítico atual.
3.2 ESTATUTO DA FAMÍLIA: SUPREMACIA JUDICIAL E PROIBIÇÃO AO RETROCESSO.
O judicial review teve início no emblemático caso Marbury vs. Madison, e desde então, tem sido
adotado por diversos ordenamentos jurídicos13
, inclusive pela nossa atual Contituição. Desde então, o dualis-
mo existente entre constitucionalismo e democracia tem tomado forma e representa um dos assuntos mais
discutidos até hoje na área acadêmica.
Sem pretensões de encerrar o assunto, teceremos alguns comentários sobre essa controvérsia.
A jurisdição constitucional nasceu nos Estados Unidos, e portanto se fundamenta em moldes de uma
sistemática definida por James Madison. Esse sistema assenta a constante e permanente necessidade de re-
concialiação entre dois princípios opostos: o de autogoverno - ou governo da maioria -, e o de abstaenção da
maioria quando as ações por ela adotadas possam ser ofensivas a direitos das minorias. (BORK, 1991; P.139).
É baseado nesse contexto que Bickel (1986), o principal teórico a enfrentar o dilema Madisoniano, descreve
o que ele chama de dificuldade contramajoritária. em sua obra ele tenta explicar como o controle de consti-
tucionalidade, uma insittuição não democrática, pode ser justificado num governo baseado em legitimidade
democrática dos representantes. Em verdade, a crítica de Bickel é demasiadamente paradoxal, e foi bastante
criticada, por basear-se em deixar a cargo dos juízes da Suprema Corte decidirem pautados em ideais de
sabedoria e imperativos morais.
Outro importante doutrinador que tentou justificar a legitimidade da jurisdição constitucional foi
Ronald Dworkin. Para ele, o direito é naturalmente interpretativo e apenas pode ser conhecido através do
processo de interpretação das normas. O direito, como um todo, só pode ser entendido, portanto, dentro de
casos concretos, onde o juíz irá interpretar a lei segundo a situação que ali se encontra. (DWORKIN, 2009;
p.14-15).
Já a democracia é um ideal a ser seguido, não bastando apenas democracia de carácter procedimental
- leia-se eleições majoritárias - para que num Estado possa haver o autogoverno. Antes, é preciso que o povo
sinta-se parte de determinada comunidade para se autogovernar e isso só ocorre quando o tratamento entre
os membros de uma mesma comunidade é igualitário. (DWORKIN, 2002, p. 305-369).
Nesse contexto que encontramos o papel e a legitimidade da juridicção constitucional. à ela cabe
o papel de evitar que maiorias eventuais sobreponham seus desejos e vontade sobre todos, prejudicando o
direito das minorias.
É certo que, apesar das controvérsias existentes acerca do controle de constitucionalidade e sua
legitimidade, a Constituição Federal brasileira adota essa prática jurídica e prevê, portanto, a função do
judiciário como intérprete da constituição. Ou seja, (CITTADINO, 2009; p.62) o Ordenamento Constitucional
Brasileiro, apesar de não ter transformado o Supremo Tribunal Federal em uma corte constitucional
propriamente dita, veio por restringir sua compêntica à matéria de cunho constitucional - assim, cabe ao STF
a guarda da Constituição. Essa função de guardião, nada mais é do que a expressão do carácter político que
assume o Supremo nesse novo desenho constitucional, uma vez que função de interpretar e, portanto, decla-
rar o alcance e o sentido de normas jurídicas é ação - se não política - de grande repercursão politico-social.
13  O controle de constitucionalidade, apesar do grande perído que passou inerte nos Estados Unidos, passou a ser uma prática
comum nas cortes de todo o mundo, tendo início com a sua adoção pelas novas repúblicas da antiga união soviética, posteriormen-
te na europa ocidental no pós- Segunda Guerra e então pelos países da América Latina e península ibérica após os seus períodos
de governos ditatoriais. (VICTOR, 2008; p. 87 e ss)
70
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Nesse contexto, com o passar dos anos o STF tem assumido diversos posicionamentos políticos acer-
ca de assuntos14
das mais diversas ordens, tomando por base, em alguns momentos específicos um posicio-
namento ativista. Isso se deve a diversos fatores, como por exemplo, o fortalecimento do judiciário diante da
atual desconfiança nacional no que se refere ao legislativo - principalmente pelos recorrentes escândalos de
corrupção; mas também ao posicionamento inerte do órgão legislativo, vez que se exime de discutir algumas
questões “polêmicas”, deixando sua resolução à cabo do judiciário uma vez que este não passa pelo processo
eleitoral.
Essa prática demonstra a relação existente entre o legislativo e o judiciário brasileiro. Pois de um lado
encontramos uma instituição que, por diversas vezes ampliou sua esfera de atuação, buscando legitimar-se
democraticamente; enquanto de de outro lado, há o poder político organizado, sofrendo uma grave crise de
legitimidade democrática, experimentando um descrédito recorrente e suas próprias limitações políticas em
uma sociedade fragmentada pelos interesses conflitivos (SILVA et al , 2010, p. 14).
Interessante notar que, o posicionamento majoritário do Supremo Tribunal Federal, ao longo de 21
anos15
(de 1988 até 2009) foi o de deferência com relação as decisões tomadas pelo legislativo. Ou seja, a cor-
te não têm demonstrado um o exercício de um poder contramajoritário, pelo menos não de forma relevante.
Sempre que possível, são aproveitadas partes das leis que sofreram o controle de constitucionalidade, ou, em
caso de omissões legislativas, o Tribunal procurou conceder prazo para que o congresso suprimisse a irnércia.
Ocorreu diferente, porém, no caso das uniões homoafetivas. Diante do já mencionado silêncio legis-
lativo, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, através de interpretação conforme a constituição, o status
de entidade familiar às uniões formadas por casais do mesmo sexo.
Em resposta à atuação do guarda da constituição, foi proposto na câmara dos deputados o Projeto de
Lei nº 6583 de 2013, também conhecido com Estatuto da Família, de autoria do Deputado Federal anderson
Ferreira do PR/PE16
. Essa reação parte da bancada religiosa tradicionalista do congresso nacional, e tem por
fim a restrição do significado de “entidade familiar” para aquela formada apenas pela união entre homem e
mulher, e também das unidades monoparentais - dái o nome ser “Estatuto da Família”, no singular, defen-
dendo a existência de apenas uma forma de família.
Os argumentos apresentados para legitimação do projeto de lei, pautam-se principalmente em dois: o
primeiro, referente à utilidade procriativa do casamento - sendo portanto imperativo para a espécie humana
que as uniões heterossexuais permaneçam intactas e reconhecidas como pivô da sociedade -, e a segunda à
tradição cristã do Estado brasileiro - muito embora o Brasil seja um estado laico 17
. O projeto encontra-se em
trâmite na câmara dos deputados e ainda não foi votado pelo plenário.
Quais seriam, entretanto, as consequências jurídicas da aprovação do “Estatuto da Família”?
Ora, o diálogo institucional não é institucionalizado no Brasil, o que não significa que não ocorra. O
Supremo Tribunal Federal, embora seu eminente caráter político - principalmente em questões controversas
14  O supremo Tribunal Federal já analisou caso referente ao uso de armas de fogo ((ADI 3112/DF), à pesquisa com células-
-tronco embrionárias (ADI 3510/DF), à liberdade de expressão e os discursos com conteúdo racista (HC 82424/RS), à liberdade
de informação jornalística (ADPF 130/DF), a processos seletivos diferenciados para pessoas de origens sociais e raciais diferentes
(ADI 3330/DF), e à interrupção da gravidez de feto anencéfalo (ADPF 54/DF).
15  Para informações e dados completos da pesquisa, vide POGREBINSCHI, Thamy. Judicialização ou Representação?: Política,
direito e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
16  Para leitura do tero completo do PL: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=597005.
17  Art. 5. VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garan-
tida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para
eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
Art. 150 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios:VI - instituir impostos sobre: b) templos de qualquer culto;
Art. 210 § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de en-
sino fundamental.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
como aborto de feto anencéfalo, entre outros - em diversos casos também houve recalcitrância do judiciário
em afirmar-se o último intérprete da Carta Magna.
No entanto, o direito de constituir família é direito fundamental e está resguardado pela nossa conti-
tuição. Assim como demostramos acima, os direitos à igualdade e não discriminação são direitos humanos de
suma importância e o fundamento principal de diversos diplomas jurídicos, entre eles a nossa constituição e
a CADH.
Assevera o Ministro Gilmar Mendes:
Liberdade e igualdade constituem os valores sobre os quais está fundado o
Estado constitucional. A história do constitucionalismo se confunde com a
história da afirmação desses dois fundamentos da ordem jurídica. Não há
como negar, portanto, a simbiose existente entre liberdade e igualdade e o
Estado democrático de direito. Isso é algo que a ninguém soa estranho – pelo
menos em sociedades construídas sobre valores democráticos [...]
Assim, o direito objeto de estudo, aqui, constitui direito de uma minoria frente ao possível desejo de
uma maioria representada no congresso. Nesse caso, qual deverá prevalecer? Entramos novamente na dis-
cussão acerca da jurisdição constitucional e do constitucionalismo, essa problemática interfere diretamente
na questão do poder contramajoritário do Tribunal.
Entretanto, defendemos que deva haver uma supremacia judicial na questão, pautados nos seguintes
argumentos: (i) A proteção dos direitos das minorias é ethos da jurisdição constitucional; (ii) pelo fenômeno
que ficou conhecido como “leis in your face” (VICTOR, 2013; p.169); (iii) pelo princípio da poribição ao
retrocesso.
Apesar de já discutida acima, faz-se mister frisar que o mais importante papel do Supremo Tribunal
Federal é o de guardião da constituição. é no contexto de seu exercício que existe o Estado de Direito, pois
este depende da efetivação de direitos e garantias fundamentais.
Nesse diapasão, a fim de garantir o cumprimento desses direitos, o papel da corte não possui o con-
dão de interferir nas atividades do legislador democrático. Não há, portanto, que se falar que o judiciário, ao
exercer a jurisdição constitucional age em detrimento dos demais poderes, mas garante o ral funcionamento
da democracia, pois é a tensão entre esta e o controle de constitucionalidade “ que alimenta e engrandece
o Estado Democrático de Direito tornando possível o seu desenvolvimento, no contexto de uma sociedade
aberta e plural, baseado em princípios e valores fundamentais.” (MENDES, 2001)
A própria Carta Magna, ao definir procedimentos específicos para a atuação do legislador, prevê que
os atos praticados pelos orgão de representação possam ser criticados e controlados. (MENDES, 2001) As-
sim, o judicial review seria uma espécie de “fiscalização democrática” no que tange a guardar os direitos das
minorias frente as maiorias tiranas.
Quanto à questão do “leis in your face”, é um fenômeno que representa a reação do legislativo, com
edição de lei que contraria entendimento já estabelecido pelo judiciário. Nesses casos, é comum que este
útlimo reaja. Um bom exemplo foi no caso da edição da Súmula 394, o qual estendia o foro por prerrogativa
de função para o julgamento de processos criminais relativamente aos atos praticados no exercício da antiga
função pública. Proposta uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 2860), o Supremo entendeu por
declarar inconstitucional a prerrogativa no caso referido acima, sem, no entento, alteração do texto.
A Lei nº 10.628 foi aprovada pelo congresso nacional no final de 2002, revertendo o entendimento do
Supremo Tribunal Federal e extendendo, novamente, o foro por prerrogativa de função para os ex-detentores
de cargos públicos. Essa lei foi impugnada, posteriormente, através da ADI 2797, na qual o STF declarou, por
maioria de votos, a incostitucionalidade da lei, por tentar superar uma interpretação constitucional da Corte.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Diante disso, é possível que, caso aprovado, o Estatuto da Família venha a sofrar impugnação através
de ação direta de inconstitucionalidade, e pode o Supremo Tribunal Federal decidir por manter o seu en-
tendimento e declarar inconstitucional a lei por ir de encontro com interpretação constitucional já firmada.
Um outro motivo pelo qual deve haver a supremacia judicial no caso do casamento igualitário, refe-
re-se ao princípio da proibição ao retrocesso. A proibição ao retrocesso se perfaz no contexto da segurança
jurídica, corolário do Estado de direito e protegido em diversos diplomas constitucionais, inclusive na nossa
Carta Magna de 1988.
O direito Fundamental (e humano) à segurança, possui várias faces. Ele possui a condição de direito
fundamental da pessoa humana (em seu âmbito pessoal e social) e, simultaneamente, é princípio fundamen-
tal da ordem jurídica estatal e internacional - já que se encontra firmada tanto nos diplomas nacionais como
também em vários diplomas supranacionais (SARLET, 2008; p. 5-6).
Em verdade, a idéia de segurança jurídica e proteção da confiança (do cidadão e da sociedade) está
intimamente ligada à ideia de dignidade da pessoa humana. Ora, O princípio da dignidade da pessoa huma-
na, como já explicitado nesse estudo , é o berço e o fundamento dos direitos humanos, e estes de concretizar
através da eficácia e eficiência dos direitos fundamentais em cada Estado e da proteção da ordem internacio-
nal. Assim sendo, só é possível vizualizar a realização dos direitos fundamentais em um estado que forneça o
mínimo de segurança (aqui em sentido amplo, pois não envolve apenas a jurídica, mas também a econômica,
a pessoal e a social, entre tantas outras) aos seus cidadão. É preciso que o cidadão confie no ordenamento
jurídico e no Direito do seu Estado, que não se sinta refém e não seja apenas manipulado pelo Estado para
fazer o que esse bem entender.
Assim, o direito à segurança encontra-se ligado (e nesse sentido também a proibição ao retrocesso)
ao Estado não apenas em seu sentido formal - na proteção do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da
coisa julgada -, ou seja, um Estado Liberal de Direito, mas também em sentido material, sendo, de fato, um
Estado Democrático de direito. A ação do Estado, portanto, - no que diz respeito aos direitos sociais - deve
ser de carácter positivo - no que se refere à prestação de serviços essenciais a garantir o direito à segurança
-, mas também de carácter negativo - no que tange a não violar os direitos humanos e fundamentais de seus
cidadãos. (SARLET, 2008; p.7-8).
	 Com efeito, a proteção dada à confiança e, consequentemente, à segurança jurídica - pelo
menos no que tange à à sua relação com a dignidade da pessoa humana - não refere-se apenas aos atos de
cunho retroativo, mas também aqueles atos de cunho retrocessivo, ou seja, que não alcançaram as figuras
dos direitos adquiridos, do ato jurpidico perfeito e da coisa julgada, mas que de alguma forma houveram por
prejudicar os direitos humanos e fundamentais de uma parcela de seus cidadãos.
Neste diapasão, também a proibição do retrocesso encontra-se devidademente prevista em nosso or-
denamento jurídico. Exemplos são os já mencionados ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada,
mas não deixam de ser importantes - e na realidade de extrema relevância para esse estudo - as restrições
legislativas dos direitos fundamentias, e até mesmo as limitações feitas ao poder constituinte reformador (li-
mitações materiais e também formais18
).
E, da mesma forma como na segurança jurídica, como bem colocar Ingo Sarlet (2008, p. 9), a proibi-
ção ao retrocesso não se restringe, tão somente, a atos passados, mas também a atos futuros:
Com efeito, na esteira do que tem sido reconhecido na seara do direito cons-
titucional alienígena e, de modo particular, em face do que tem sido experi-
mentado no âmbito da prática normativa (muito embora não exclusivamente
nesta esfera), cada vez mais se constata a existência de medidas inequivoca-
mente retrocessivas que não chegam a ter caráter propriamente retroativo,
pelo fato de não alcançarem posições jurídicas já consolidadas no patrimônio
de seu titular, ou que, de modo geral, não atingem situações anteriores. As-
18  Vide SARLET, Ingo. A Eficácia dos Direitos Fundamentais,5a ed., especialmente p. 371 e ss., para maiores informações sobre
os limites materiais à reforma constitucional.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
sim, por paradoxal que possa parecer à primeira vista, retrocesso também
pode ocorrer mediante atos com efeitos prospectivos.
A união homoafetiva e o direito de constituir família, é direito humanos e fundamental, o qual perpas-
sa tanto os direitos individuais, como os sociais. Sendo assim, uma possível violação desses direitos já asseru-
garados pelo STF, representaria uma afronta tanto à segurança jurídica, quanto principal e especificamente
ao princípio da proibição ao retrocesso.
Isso porque, mesmo representando ato futuro do poder legislativo - uma vez que ainda não foi apro-
vado o projeto de Lei do Estatuto da Família - este representa uma retrocessão ao estado anterior, já que os
indívios da comunidade LGBTI estariam privados de exercer a união estável e todos os direitos que advém da
sua realização. Isso seria uma falha na eficácia protetiva dos direitos fundamentais.19
Portanto, no que tange ao casamento igualitário, defendemos a idéia de supremacia judicial primeiro
porque a aprovação e efetivação do Estatuto da Família representaria um retrocesso, o que claramente não
é aceito pelo nosso ordenamento jurídico. Em segundo lugar, porque cabe à jurisdição constitucional a pro-
teção ào direito das minorias, e dessa forma, não estaria o Supremo Tribunal Federal usurpando a função do
legislador, mas sim exercendo a sua própria função em prol de um grupo marginalizado. Em terceiro lugar,
porque é esperada uma reção do pretório excelsior frente à possível “violação” do legislativo no que se refere
à entendimento já pacificado no judiciário. O Projeto de Lei (PL) nº 6583 de 2013, também conhecido como
Estatuto da Família, foi proposto pelo Deputado Federal Anderson Ferreira do PR/PE. A propositura desse PL
é consequência direta do reconhecimento da união homoafetiva e sua posterior conversão em casamento,
por parte da banca evangélica tradicionalista que compõe o congresso nacional.
CONCLUSÃO
A equiparação da união entre casais do mesmo sexo à união civil para fins de entidade familiar foi um
avanço e um ganho no ordenamento jurídico brasileiro. Em duas ações emblemáticas o Supremo Tribunal
Federal agiu no sentido de defender a constituição e efetivar os direitos fundamentais, exercendo seu papel
de guardião da constituição através da jurisdição constitucional.
Embora o ordenamento jurídico brasileiro não preveja, expressamente, a possibilidade de formação
de núcleo familiar por pessoas homoafetivas, ao interpretar a Carta Magna como um todo, é possível perceber
que há espaço para a realização de tal feito, uma vez que a Constituição expressamente proíbe qualquer tipo
de discriminação e preza pela concretização do princípio da igualdade.
Da mesma forma, a CADH não dispõe proibição referente ao casamento igualitário, mas assim como
a nossa carta magna, proíbe a discriminação e pressa pela igualdade. Baseado nisso, é provável que diante
de um caso de violação de direitos humanos, como seria a provação do Estatuto da Família pelo congresso
brasileiro, a corte pudesse agir no sentido de punir o Estado, aproveitando para atualizar seu entendimento
sobre questões desse gênero, como aconteceu com o emblemático caso Atala Rifo e ninãs vs. Chile.
A aprovação do Estatuto da família representaria uma ação retrógrada movida por setores conserva-
dores e tradicionalistas do congresso nacional. Seria uma afronta não só à própria constituição brasileira, mas
também a diversos diplomas internacionais e supranacionais sobre direitos humanos, diplomas normativos
dos quais o brasil é signatário, ensejando penalização.
Por todas essas razões, esperamos uma reação do Supremo Tribunal Federal caso o projeto de lei do
Estatuto da Família seja aprovado pelo congresso. Esperamos pela declaração de inconstitucionalidade da
referida lei, e pela prevalência da interpretação feita pelo pretório excelsior, assegurando o direito de todas as
pessoas em constituírem família.
19  idem. p. 361 e ss.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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76
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
DIREITO AO PROTESTO E SUA TUTELA JUDICIAL:
UM ESTUDO DE CASO SOBRE A OCUPAÇÃO DA RUA NETO CAMPELO PELO MOVIMENTO OCUPE
ESTELITA
ANA PAULA DA SILVA AZEVÊDO
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de
Pernambuco - UNICAP, vinculada à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos, com
bolsa da CAPES/PROSUP. Pesquisadora do Grupo REC - Recife Estudos Constitucionais
LETÍCIA MALAQUIAS MENDES BARBOSA
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal
de Pernambuco – UFPE, vinculada à linha de pesquisa Cidadania e Práticas Sociais.
Pesquisadora do Grupo Novo Constitucionalismo Latino-americano
VITÓRIA CAETANO DREYER DINU
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP,
vinculada à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos, com bolsa da CAPES/PROSUP. Pesquisadora do
Grupo Asa Branca de Criminologia
SUMÁRIO: Introdução; 1. O movimento ocupe estelita (#ocupeestelita) e o porquê do estudo da
ocupação da rua neto campelo; 2. Direito ao protesto como o “primeiro direito”; 3. Análise da decisão
interlocutória do processo de nº 0024756-03.2015.8.17.0001; Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO
A pesquisa busca promover a discussão sobre a tutela judicial do direito ao protesto a partir do pro-
cesso de nº 0024756-03.2015.8.17.0001, de maio de 2015, envolvendo a ocupação da Rua Neto Campelo, na
capital pernambucana, por manifestantes do Movimento Ocupe Estelita (#OcupeEstelita), após aprovação
e sanção da Lei Municipal nº 18.138/2015, relativa ao plano urbanístico apresentado pelo Consórcio Novo
Recife para o Cais de Santa Rita, José Estelita e Cabanga.
Para tanto, utiliza-se da metodologia qualitativa do estudo de caso, exatamente porque são as singu-
laridades do caso que puderam indicar se o Poder Judiciário atuou (ou não) como poder contramajoritário
em amparo à efetivação de direitos fundamentais das minorias. A abordagem volta-se a discutir o direito ao
protesto e as interações entre o espaço público e o privado no processo analisado quando houve a ocupação
da Rua Neto Campelo, endereço do Prefeito, e posterior desocupação determinada pelo Poder Judiciário nos
autos do processo supracitado, ajuizado pela Procuradoria do Município de Recife.
A reflexão construída envolve os confrontos práticos entre os direitos fundamentais relativizados atra-
vés da realização dos protestos, de um lado, e as formas de representação dos protestos com vistas a alcançar
impacto na sociedade, por outro, que também não deixam de constituir direitos fundamentais tutelados. Esse
cuidado no trato da matéria faz-se necessário para garantir que a suposta defesa da sociedade não se volte
contra ela própria, oprimindo-a e constituindo instrumento ilegítimo de manutenção de forças políticas no
poder.
77
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Desta feita, o propósito desse artigo não é realizar um juízo de valor peremptório da decisão que
ordenou a desocupação da rua onde o Prefeito reside. Como se estava diante de um conflito de direitos fun-
damentais, múltiplas poderiam ser as interpretações para a resolução do caso. A pergunta de partida, pois,
pode ser sintetizada da seguinte forma: em que medida o magistrado contemplou a discussão sobre direitos
fundamentais no caso da ocupação e desocupação da Rua Neto Campelo? Assim, independentemente do re-
sultado final da decisão, o objetivo a que se busca é analisar se os caminhos percorridos pelo juiz contemplam
a discussão dos protestos como arena de construção democrática, conforme indicado pela Constituição, ou
não.
Com este intuito, adotou-se como marco teórico a perspectiva de Roberto Gargarella sobre o direito
ao protesto como um direito fundamental de liberdade coletiva. Neste contexto, o trabalho propõe-se, inicial-
mente, a compreender as manifestações populares de rua como um direito constitucionalmente protegido,
mormente em tempos de crise da democracia representativa, envolvendo ainda a proteção dos direitos de
reunião e de liberdade de expressão coletiva, tidos com essenciais para que haja a proteção da crítica feita
ao poder.
Após, com o fito de construir as reflexões sobre o tema, como já indicado, são apresentados os ensi-
namentos de Gargarella, especialmente a doutrina do foro público, que aduz serem as ruas, as praças e as
avenidas os locais historicamente vocacionados para a expressão coletiva de opinião.
Por fim, analisa-se a decisão do processo de nº 0024756-03.2015.8.17.0001, que ordenou a retirada
dos manifestantes da Rua Neto Campelo. Embora inicialmente houvesse expectativas de identificar elemen-
tos no processo relacionados ao sopesamento dos direitos fundamentais envolvidos – considerando a ocupa-
ção como manifestação do direito ao protesto –, assim como as interações entre o espaço público e o privado,
verificou-se que a decisão foi proferida reduzindo a causa a um problema administrativo referente à falta de
autorização/licença para ocupação de espaço público.
A partir do caso escolhido, tendo como pano de fundo o conturbado cenário recifense envolvendo
a pauta sobre o direito à cidade, é fundamental compreender a diretriz adotada quando há o conflito entre
interesses diversos e o direito ao protesto, velando para que a discussão e o dissenso, imprescindíveis à demo-
cracia, não sejam tolhidos pelo Judiciário sob a justificativa de proteção de direitos supostamente prevalentes.
1.OMOVIMENTOOCUPEESTELITA(#OCUPEESTELITA)EOPORQUÊDOESTUDODAOCUPAÇÃO
DA RUA NETO CAMPELO.
O Movimento Ocupe Estelita ou #OcupeEstelita, como divulgado na página do facebook e em outras
mídias sociais, corresponde a um movimento iniciado em 2012 que se apresenta como sendo composto por
diversas identidades as quais se uniram em torno de um propósito, qual seja, o ideal de um crescimento ur-
bano democrático inclusivo para a cidade do Recife, em confronto ao empreendimento imobiliário intitulado
Novo Recife, com impacto nas áreas do Cais de Santa Rita, Cabanga e José Estelita, envolvendo, entre outros
itens, a proposta de construção de um complexo habitacional luxuoso.
A busca pelo propósito do Movimento Ocupe Estelita é feita, precipuamente, a partir de ocupações
urbanas organizadas e não violentas – realizadas em espaços públicos, em sua maioria, e concentradas no
entorno do Cais José Estelita –, como símbolo na busca pela efetivação dos direitos urbanos. A forma de apre-
sentação do movimento, entre a ocupação e o manifesto, exteriorizada e propagada pelas mídias sociais, é um
dos diferenciais do movimento, permitindo a sua análise contextualizada ao direito ao protesto e ao direito de
resistência, destacando a sua relevância no cenário nacional, entre outras razões, por sinalizar a decadência
do regime democrático representativo e o anseio por participação na política de forma direta e ativa, onde
todos podem ser ouvidos e respeitados em suas subjetividades.
No dia 04.05.2015, foi aprovado pela Câmara Municipal de Recife o Projeto de Lei 008/2015, em uma
situação peculiar de violação do acesso do povo ao debate político. Na ocasião, a Câmara Municipal convocou
às pressas uma audiência para aprovação do Projeto, desconsiderando a recomendação do Ministério Público
78
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Estadual de que o PL precisaria ser primeiramente discutido pelo Conselho da Cidade antes de ser inserido
na pauta da Câmara dos Vereadores. Apesar das críticas dos poucos vereadores oposicionistas, e apesar do
restrito acesso à casa legislativa ofertado ao povo para a sessão indicada, o Projeto foi aprovado e encaminha-
do ao Prefeito Geraldo Júlio para sanção, cujo ato também ocorreu no mesmo dia.
Na noite do dia 07.05.2015, uma quinta-feira, manifestantes apoiadores do Movimento Ocupe Este-
lita decidiram, de forma espontânea, ocupar a rua onde reside o Prefeito da Cidade do Recife, Geraldo Júlio,
como forma de protesto contra a sanção da Lei Municipal nº 18.138/2015. A mensagem que os manifestan-
tes tentaram passar com esse ato foi bastante simbólica: se o Prefeito estava supostamente imiscuindo os
interesses públicos com os privados na condução do plano urbanístico dos Cais de Santa Rita, José Estelita
e Cabanga, os manifestantes, de forma análoga, iriam adentrar na seara privada do Prefeito, acampando na
frente do prédio onde reside, a fim de pressionar pela prevalência dos interesses públicos.
Durante a ocupação, os manifestantes foram acusados de jogar ovos no prédio, fazer bastante ba-
rulho, bater latas no local, fazer ameaças, impedir o livre trânsito dos moradores e daqueles que passavam
naquela rua. Mesmo que se possam levantar ressalvas éticas e morais contra a atitude dos manifestantes,
que não atrapalharam apenas a vida do Prefeito, mas a vivência de moradores de toda uma rua, estava-se
diante de um caso de exercício do direito de protesto em via pública. Diante da repercussão, a Procuradoria
do Município do Recife ingressou com Ação de Obrigação de Fazer contra os integrantes do Movimento Ocu-
pe Estelita e do Grupo Direitos Urbanos, sob o fundamento de que a ocupação da Rua Neto Campelo, como
bem público destinado à circulação e ao lazer das pessoas em geral, deveria ter sido precedida de licença ou
autorização por parte da Administração Pública.
Se de um lado o Executivo Municipal não é capaz de atender as demandas sociais e volta-se à satisfa-
ção de interesses alheios à sociedade para viabilizar o atendimento de interesses de grandes grupos econômi-
cos – normalmente grandes financiadores de campanhas –, de outro, o Legislativo Municipal, composto pela
base governista, é instrumento de afirmação e continuidade dos projetos tocados pelo Executivo. O Poder
Judiciário, neste contexto, como terceiro e independente poder, deveria se afirmar como poder contramajo-
ritário, tutelando as garantias e direitos fundamentais, mas há grande distinção entre o discurso e a prática,
escancarando a falácia do discurso democrático apresentado à população.
Daí surge o interesse para a utilização da metodologia do estudo de caso. Por mais que este método
seja, em tese, passível da crítica da dificuldade de generalização, ele se faz útil no presente trabalho exata-
mente porque são as suas singularidades que demonstram, de forma clara, os impasses que precisam ser en-
frentados pelo Poder Judiciário ao julgar o conflito de direitos fundamentais existentes em qualquer protesto.
Afinal, está-se diante de um exemplo de judicialização do direito ao protesto, com uma farta discussão sobre
os limites de utilização do meio público como forma de exercício democrático. Se porventura há críticas
quanto à objetividade desse método, uma possível resposta é que:
[...] a validação do conhecimento gerado pela pesquisa, a aprovação de sua
confiabilidade e relevância pela comunidade acadêmica, exige que o pesqui-
sador se mostre familiarizado com o estado atual do conhecimento sobre a
temática focalizada, de modo que ele possa, de alguma forma, inserir sua
pesquisa no processo de produção coletiva do conhecimento (ALVES-MAZ-
ZOTTI, 2006, p. 638).
Assim sendo, acredita-se que o presente estudo de caso irá contribuir para a elucidação da proble-
mática envolvendo o respeito ao protesto como um direito constitucionalmente tutelado. Isso porque, a partir
de um caso extremado, em que manifestantes ocupam a calçada em frente ao prédio do Prefeito, é possível
extrair conclusões que podem ser aplicadas em outros contextos (VENTURA, 2007, p. 386), fortalecendo-se
a hipótese de que ainda falta amadurecimento do Judiciário para compreender os protestos como instrumen-
tos legítimos de participação democrática popular e, por conseguinte, como verdadeiro direito que, em um
caso concreto, pode vir a colidir com outros, fazendo-se necessária a ponderação.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
2. DIREITO AO PROTESTO COMO O “PRIMEIRO DIREITO”.
O direito ao protesto tem se mostrado, nos últimos anos, muito importante para a compreensão do
Direito como instrumento para a solução de conflitos, ganhando destaque tanto na seara do Direito Consti-
tucional quanto do Direito Penal. Roberto Gargarella, desenvolveu vasta obra acerca do derecho a la protesta
social, demonstrando o quanto se faz necessário refletir acerca desse direito que pode ser considerado como
o “primeiro direito”.
Quando Gargarella (2012) fala da relação do direito com o protesto, está se referindo às respostas do
poder público diante dos protestos sociais e, muito especialmente, das respostas conferidas pelo Poder Judici-
ário. Inclusive, Gargarella dedica muito dos seus textos a abordagem do papel que o Judiciário, especialmente
o Judiciário argentino, vem desenvolvendo na temática do direito ao protesto.
Por sua vez, quando tal autor menciona “protestos”, está se referindo às reclamações/reivindicações
feitas por determinados grupos de pessoas, que veem suas necessidades básicas constantemente insatisfei-
tas. Essas reivindicações, por conseguinte, referem-se a problemas envolvendo a carência de trabalho, de
moradia digna, de assistência sanitária, de proteção social, dentre tantas outras violações a direitos básicos
do cidadão (GARGARELLA, 2012).
De acordo com Gargarella (2012), ao pensar sobre os protestos sociais, experimenta-se uma tensão
entre as aspirações democráticas, de um lado, e as preocupações com os direitos de cada indivíduo, do outro.
Uma Constituição, por seu turno, convida a pensar numa maneira de como pensar essas duas preocupações
de forma conjunta. Contudo, quando o protesto social chega ao âmbito do Judiciário, o autor aponta o se-
guinte:
Quando os juízes se encontram diante de um conflito que envolve o protesto social,
devem se expressar sobre o modo como eles mesmos concebem a democracia. En-
tretanto, algumas vezes por preguiça, outras por torpeza, ou por uma falta de atenção
devida, eles passam por esses problemas sem tomar consciência da importância do
que está em jogo1
. (GARGARELLA, 2012, p. 23).
Com isso, o autor chama atenção para a necessidade de o Poder Judiciário aprofundar as reflexões
acerca dos conceitos de democracia, direitos, justiça, interpretação constitucional, enfim, acerca dos assun-
tos que envolvem muitos tópicos centrais da Filosofia Política e da Teoria Constitucional, para que se possa
debruçar sobre a questão dos protestos sociais de modo mais acurado, e não genericamente, como vem ocor-
rendo (GARGARELLA, 2012).
Citando o artigo 22º da Constituição da Argentina, segundo o qual “o povo não delibera nem governa
senão por meio dos seus representantes” 2
, Gargarella atenta para o fato de que, nos casos concretos envol-
vendo os protestos sociais, os juízes argentinos, de um modo ou de outro, acabam efetuando uma interpreta-
ção acerca do significado daquela norma constitucional, demonstrando diferentes graus de aprofundamento.
Sobretudo, o que ficou em evidência foi o fato de que os juízes, em sua maioria, seguiram a tendência de
uma interpretação mais restritiva, limitada e elitista acerca da democracia, movendo-se em direção do que
Gargarella (2012) denomina de princípio da desconfiança.
Essa desconfiança estaria exatamente na discussão pública e no que os cidadãos poderiam realizar
através dela e iria de encontro ao que Gargarella (2012) chamou de princípio alternativo da confiança,
segundo o qual a confiança estaria depositada “no cidadão, em nossas capacidades coletivas, na discussão
pública” 3
(GARGARELLA, 2012, p. 23).
1  Tradução livre.
2  Tradução livre.
3  Tradução livre.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Sem dúvidas, interpretar a democracia de modo restritivo, acreditando que aquela se encerraria com
o sufrágio, é uma visão muito pobre acerca da democracia e do que ela pode proporcionar aos cidadãos de
qualquer país. Se comportando dessa maneira, o poder público e os juízes acabam não auxiliando a popu-
lação nas suas aspirações coletivas e terminam por espalhar o medo oriundo das possíveis consequências
penais da participação em uma greve ou manifestação, por exemplo.
Para Gargarella, a ideia de democracia deveria estar associada à ideia de um processo de discussão
coletiva, no qual todos os envolvidos pudessem intervir e expressar suas opiniões em face do que se está por
decidir, principalmente, aqueles cidadãos que seriam mais afetados por tais decisões. A participação da popu-
lação em expressões diretas de democracia, como manifestações e greves, por exemplo, pode ser um meio de
os cidadãos cobrarem dos seus representantes eleitos ações condizentes com os motivos que levaram aqueles
a escolher estes como seus porta-vozes.
No que diz respeito às reivindicações por necessidades básicas insatisfeitas, há, ainda, outro fator que
as tornaria mais graves, qual seja: o fato de que, não apenas na Argentina, mas em diversos outros países,
como salienta Gargarella, o espaço concedido nos meios de comunicação para reclamações não depende da
urgência destas, por exemplo, mas sim, e, sobretudo, da capacidade econômica de quem pretende ser ouvido
(GARGARELLA, 2012).
Por outro lado, se o Poder Judiciário se põe contra as minorias, perseguindo-as ou penalizando suas
reivindicações, isso pode ter um resultado extremamente negativo, tendo em vista que alguns grupos mino-
ritários já não gozam de popularidade, o que deveria levar o Judiciário a tomar atitudes que os protegessem.
Entretanto, parece que os juízes, ao promoverem suas decisões, revelam-se de acordo com as opiniões de
uma maioria hostil.
Com relação à interpretação que é conferida ao texto de uma Constituição, pode-se afirmar, desde
já, que se trata de uma tarefa delicada, tendo em vista que o próprio ponto de partida, onde se encontra o
intérprete, já revela dificuldades, pois os textos constitucionais normalmente são repletos de conceitos vagos
e genéricos, como por exemplo, justiça, igualdade e liberdade, fazendo tortuoso o trabalho do hermeneuta.
O que Gargarella aponta é para o fato de um juiz poder livremente se amparar em qualquer doutrina
existente para justificar algum entendimento proferido através das suas decisões e, com má fé ou não, acabar
cometendo alguns abusos.
Certamente, a tarefa de interpretar as normas constitucionais e aplicá-las aos casos concretos não é
fácil, e ações judiciais envolvendo a colisão de certos direitos demandam um esforço reflexivo maior por par-
te do juiz, o qual, ao invés de afirmar, simplesmente, que o direito de um termina onde começa o direito do
outro, deveria questionar-se acerca de onde está, mais especificamente, esse limite ou quais os fundamentos
nos quais se lastreia para dizer que determinado direito termina aqui, ao passo que outro direito começa ali.
Gargarella ainda traz, com relação à forma como as manifestações acontecem, a distinção entre “ex-
pressão pura” (que inclui escritos políticos e panfletos, por exemplo) e “expressão com agregados” (o plus
speech), a qual faz referência a marchas, por exemplo, utilizada em alguns países, como nos Estados Unidos.
Essa distinção vem sendo utilizada para proteger as chamadas “expressões puras”, deixando sem proteção
as manifestações com agregados. Por sua vez, Gargarella (2007) propõe o desfazimento dessa dicotomia,
citando a posição de Harry Kalven, segundo o qual toda manifestação/expressão inclui, necessariamente, o
chamado plus speech (GARGARELLA, 2007).
Por mais que seja trabalhoso, o que Gargarella sugere é que, apesar das críticas, deve ser preservado o
conteúdo das manifestações, o que ele chama de el componente expressivo (o componente expressivo) (GAR-
GARELLA, 2007). Assim, o ato de queimar uma bandeira ou de arremessar um ovo em algum político, tem
obrigado os doutrinadores a pensar com mais cuidado sobre esse tipo de atitude por parte dos manifestantes,
levando em consideração a potencialidade das mensagens que tais atos carregam. Para Gargarella (2007),
não prestar a devida atenção a esse ponto significa desconsiderar uma questão crucial.
81
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Com relação à chamada doutrina do foro público, a doutrina e a jurisprudência internacional tem se
posicionado em sua defesa. Segundo o foro público as ruas, praças e avenidas são lugares tradicionalmente
utilizados para protestos e que merecem, por esse motivo, uma proteção especial (GARGARELLA, 2012, p.
28).
Assim, pode-se perceber o quanto é atual e extremamente necessário o debate envolvendo o direito
ao protesto, pois as manifestações se tornaram comuns nos últimos tempos. Insatisfações variadas motivam
as pessoas a saírem de suas casas e trabalhos para reclamarem nas ruas tudo o que lhes causa incômodo. É
por isso que o papel do Poder Judiciário se torna tão essencial4
, tendo em vista que, no âmbito legislativo, o
direito ao protesto não encontra respaldos. Da mesma forma, a doutrina ainda é tímida quando o assunto é
protesto social.
O Poder Judiciário trata-se de um Poder com ampla liberdade para decidir os rumos do Direito Cons-
titucional de um país, porém, é justamente aquele que temos menos possibilidades institucionais de contro-
lar. Além disso, a própria composição do Judiciário é seletiva demais (homens brancos e de classe média).
Como, então, esperar decisões não segregadoras e elitistas por parte dos magistrados?
Por mais que a decisão de um juiz esteja claramente fundamentada em normas e princípios, acres-
cidos da doutrina mais especializada no assunto, inocência não atentar para as convicções pessoais dos
magistrados que, embora não apareçam de modo explícito na fundamentação de uma decisão, certamente
determinam esta.
Se, de um lado, é a polícia quem censura uma manifestação, utilizando-se de meios exageradamente
violentos, por outro, o Judiciário parece não saber lidar com o tema do direito ao protesto, oferecendo tam-
bém decisões que aproximam as manifestações à prática delituosa ou, simplesmente, proferindo reflexões
genéricas e rasas acerca desse importante direito.
3. ANÁLISE DA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DO PROCESSO DE Nº 0024756-03.2015.8.17.0001.
Consoante já exposto, a Procuradoria do Município do Recife ajuizou o Processo de nº 0024756-
03.2015.8.17.0001, com o objetivo de “garantir a desocupação da Rua Neto Campelo, seu entorno e passeios
públicos, no Bairro da Torre, Recife-PE”, vez que o Município do Recife estaria “impedido de exercer o seu
poder de polícia e reestabelecer a paz social que se faz mister” 5
após manifestantes terem ocupado a rua
para forçar a revogação do projeto urbanístico relativo aos Cais de Santa Rita, José Estelita e Cabanga pelo
Prefeito da cidade.
Em breve síntese, o magistrado concedeu a antecipação dos efeitos da tutela, a fim de que houvesse
a imediata desocupação da rua e seus entornos, cuja circulação estava sendo impedida pelos manifestantes,
chegando, inclusive, a arbitrar multa diária de dois mil reais por pessoa por descumprimento da decisão. Em
virtude do pronunciamento judicial, os ocupantes saíram pacificamente da localidade.
A questão que se impõe, todavia, é a pobreza da decisão no que tange aos debates sobre direitos fun-
damentais. Em verdade, por mais que o magistrado tenha feito referência ao art. 5º, inc. XVI, da CF/88, o
qual institui o direito de reunião para fins pacíficos (albergando, pois, o direito ao protesto), trata-se de uma
citação meramente pró forma, tanto que se ignorou por completo o fato de que, para um protesto, não há
necessidade de autorização administrativa.
4  Segundo Gargarella, o Judiciário, ao enfrentar casos relativos a protestos, deveria atuar com base em dois princípios: o princípio
da imparcialidade ou distância deliberativa, e o princípio das violações sistemáticas (2007, p. 42/45). O primeiro princípio estabelece
que, quando os manifestantes não são membros plenamente integrados na sociedade deliberativa, o Judiciário deve ser mais
sensível às demandas desse grupo, de forma a conferir maior proteção às formas de comunicação eleitas para expor as demandas.
O segundo princípio, por sua vez, indica que as autoridades públicas devem dar atenção especial aos protestos decorrentes de
sistemáticas violações a direitos básicos, sopesando este fator ao analisar as circunstâncias de realização do protesto. Assim, quando
a injustiça é particularmente grave e persistente, os juízes deveriam estar mais abertos a tolerar ações que, em outras situações,
poderiam ser reprovadas.
5  Os trechos entre aspas foram extraídos da decisão interlocutória em comento.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A decisão, de forma simplória, reduziu toda a questão a uma querela meramente administrativa,
como se a ocupação da Rua Neto Campelo fosse uma simples utilização irregular de bem público, e não um
protesto, com proteção constitucional diferenciada, portanto. Nos termos do douto juiz, “a Rua Neto Cam-
pelo e demais ruas e calçadas em seu entorno, por serem espaços utilizados para a circulação e lazer das
pessoas em geral, são consideradas juridicamente como bens públicos, e como tal, qualquer ocupação delas,
(sic) está sujeita a licença ou autorização por parte da Administração Pública”.
Como é cediço, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) consagrou o modelo do Estado Democrático
de Direito, seguindo a tendência dos Estados Ocidentais, mas também como reação aos abusos e arbitrarie-
dades cometidos durante a ditadura militar. Nada mais natural, portanto, que tenha se dado bastante ênfase
aos direitos e garantias fundamentais, dentre eles os direitos de expressão e participação política, a fim de
possibilitar a construção de uma sociedade pluralista, em que múltiplas opiniões tenham vez e voz. Só assim
é possível constituir uma verdadeira democracia, pois, sem que haja um debate livre de ideias e amplas in-
formações, não há como os cidadãos, exercendo a sua autodeterminação, posicionarem-se livremente.
Diante disso, por mais que a CF/88 não tenha falado expressamente em um “direito ao protesto”, há
um desenho institucional que garante essa dimensão coletiva da liberdade de expressão (SANTOS; GOMES,
2014, p. 590-591). Afinal, se o exercício democrático demanda opiniões públicas diversas, é necessário per-
mitir que as pessoas, mesmo que não tenham acesso aos meios usuais de comunicação, possam expor ideias
contrárias ao status quo, o que pode se dar via manifestações de rua. Só assim a opinião pública será, efeti-
vamente, constituída pelo cruzamento de inúmeras fontes, para que os cidadãos possam tomar as decisões
fundamentais da comunidade de forma embasada, em um verdadeiro espaço público de discussão.
Com o objetivo de proteger essa participação do cidadão na sociedade civil, pode-se afirmar que a
CF/88 consubstanciou o direito ao protesto, primeiramente, na defesa do pluralismo como fundamento da
República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. V), bem como no âmbito do exercício das liberdades (SANTOS;
GOMES, 2014, p. 593). Têm-se, assim, a liberdade de reunião (art. 5º, inc. XVI) e a liberdade de expressão
(art. 5º, inc. IX, e art. 220) conferindo o substrato para a defesa do exercício coletivo da manifestação do
pensamento.
Muito embora o art. 5º, inc. XVI, da CF/88, diga explicitamente que, para o direito de reunião, não se
faz necessária autorização administrativa, toda a decisão é construída sobre o fato de que, não tendo havido
solicitação prévia para o uso do espaço, a ocupação seria ilegal, o que contraria em absoluto as disposições
constitucionais.
A impressão que fica é a de que o magistrado ignorou o fato notório de que a ocupação tratava-se
de um protesto, e, assim atuando, deixou de exercer o caráter contramajoritário que deveria ser a marca
do Poder Judiciário. Tão raso foi, que sequer fez considerações sobre o fato de que não houve comunicação
prévia da reunião às autoridades públicas, este sim requisito constitucional para o exercício do direito de
reunião. Neste ponto, cumpre destacar, todavia, que ainda sim há críticas quanto à peremptoriedade deste
mandamento, o qual tolheria o caráter espontâneo e imprescindível de muitos protestos. Como nos relembra
Gargarella, seria necessário um esforço para identificar o “componente expressivo” dessas ações (2007, p.
34), que pode estar exatamente em sua espontaneidade.
Talvez, a ideia de comunicação prévia possa ser interpretada no sentido apenas de evitar que se
frustre outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, e não como uma forma de tornar ilegal
todo e qualquer protesto que não tenha sido comunicado às autoridades, sob pena de tolher de forma des-
proporcional e impedir o exercício da liberdade de expressão coletiva. De toda forma, trata-se de assunto o
qual ainda precisa de elaboração doutrinária (conforme aduz SANTOS; GOMES, 2014), a qual não é o foco
do presente trabalho.
Após toda a explanação sobre a importância do direito constitucional ao protesto, é preciso deixar
claro que, por evidência, não se trata de um direito absoluto, havendo condições para o seu exercício. Com o
pós-positivismo e a declaração da força normativa dos princípios constitucionais, eis que a subsunção cedeu
espaço para outro método de aplicação de normas, a ponderação, segundo a qual, num conflito de princípios,
83
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
se deve efetuar um balanceamento, a fim de identificar qual o princípio que irá prevalecer no caso concreto,
bem como as suas consequências normativas. Desta feita, a depender da circunstância, o direito ao protesto
pode, em tese, ser legitimamente restringido.
Se o conflito de regras se resolve no plano da validade, o mesmo não ocorre com o conflito de prin-
cípios. Pelo fato de eles serem mandamentos ou comandos de otimização, eles jamais podem ser realizados
completamente6
. Portanto, em uma colisão de princípios, como ambos os comandos normativos apresentam
a mesma hierarquia e o mesmo valor, o objetivo da ponderação seria restringir o mínimo possível um princí-
pio, para que o outro seja protegido (CAMBI, 2011, p. 92/93), o que se dá por meio do postulado da propor-
cionalidade e seus deveres de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (ÁVILA, 2001).
Mesmo que haja críticas a essa forma de interpretação das disposições constitucionais, no caso em
análise, o magistrado não considerou o direito ao protesto como um direito fundamental, empobrecendo por
demais a discussão jurídica e ignorando o conflito de direitos entre a livre circulação e a manifestação popu-
lar. Independentemente de o momento ser ou não de retirada dos manifestantes do passeio público, a ausên-
cia de cotejo sobre o caráter democrático dos protestos reforça a hipótese de que ainda há muito para que o
direito ao protesto seja plenamente efetivado e respeitado. Tem-se, assim, uma situação em que a prática do
sistema não raro opera em total desrespeito às diretrizes constitucionais, com a repressão desproporcional
aos manifestantes, por mais que as manifestações de rua sejam constitucionalmente protegidas. Está-se,
pois, numa situação de desconstitucionalização fática ou concretização desconstitucionalizante, nos termos
utilizados por Marcelo Neves (1996). Em outras palavras, significa que o texto constitucional é uma referên-
cia distante dos agentes estatais e dos cidadãos, de forma que a prática desenvolve-se à margem do modelo
estabelecido na Constituição. A constitucionalização simbólica funcionaria, assim, “como álibi em favor dos
agentes políticos dominantes e em detrimento da concretização constitucional” (NEVES, 1996, p. 327).
Jamais um direito constitucional e internacional exercido regularmente poderia configurar um ilícito
(ZAFFARONI, 2010, p. 6). Não obstante, sob o manto da defesa da segurança pública de toda a comunidade,
estão se olvidando direitos constitucionalmente protegidos, dentre eles o direito ao protesto. E pior: muitas
vezes, a realização dos protestos se dá exatamente porque, de forma prévia, houve, por parte do Executivo,
um triplo mecanismo de violação dos direitos fundamentais (prestacionais, políticos e de defesa), tudo sob
a justificativa da tutela de interesses de outras pessoas (direito de propriedade, de liberdade de locomoção,
etc.):
As pessoas protestam pela falta de políticas públicas prestacionais (privação
de direitos sociais). Não conseguem influenciar os processos políticos oficiais
e por isso protestam publicamente. A seguir, o Estado reprime esses cidadãos
que exercem seus direitos fundamentais de cunho político, pois o ato de pro-
testar corresponde a um direito político muito importante nas democracias.
Nesse contexto, o Estado organiza a repressão por meio de atos de violência,
de detenções ilegais atingindo os direitos de liberdade (direitos de defesa)
com prisões, lesões corporais e até morte. A ordem é: nenhuma tolerância
com quem o Estado considera “intolerante” (SABADELL; SIMON, 2014, p.
532, grifos dos autores).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ocupação da Rua Neto Campelo, na capital pernambucana, por manifestantes do Movimento Ocu-
pe Estelita (#OcupeEstelita), apresenta-se como peculiar na medida em que permite a reflexão sobre os es-
paços de atuação política destinados aos cidadãos na democracia representativa contemporânea. Ao ter sido
6  Não obstante as dificuldades de conceituação dos princípios, traz-se a definição elaborada por Humberto Ávila: “[...] pode-se
definir os princípios como normas que estabelecem diretamente fins, para cuja concretização estabelecem com menor exatidão
qual o comportamento devido (menor grau de determinação da ordem e maior generalidade dos destinatários), e por isso
dependem mais intensamente da sua relação com outras normas e de atos institucionalmente legitimados de interpretação para a
determinação da conduta devida” (2001, p. 21).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
vedado o acesso à Câmara Municipal de Recife, manifestantes do movimento dirigiram-se à rua onde se situa
a residência do Chefe do Executivo Municipal, forçando a reflexão sobre os limites entre o público e o pri-
vado, entre o direito de protestar e resistir dos cidadãos manifestantes e a liberdade daqueles cidadãos even-
tualmente prejudicados pelo processo de ocupação urbana, ainda que pacífica. O processo de nº 0024756-
03.2015.8.17.0001 criava expectativas acerca deste debate, envolvendo direitos e garantias fundamentais.
Todavia, após a leitura da decisão em análise, que tem por fundamentação uma citação doutrinária
descontextualizada sobre poder de polícia, autorização e licença, fica a frustração pela ausência de debate
sobre direitos fundamentais, logo quando se está diante de um caso de exercício democrático via pressão
popular na rua da residência do Prefeito.
Em tese, protestos “desarrazoados” são reprimidos tendo por base o exercício legítimo da força pelo
Estado. Todavia, cabe o questionamento sobre até que ponto esse uso da violência institucional é cabível,
para que o Estado não sirva, em verdade, à perpetuação de situações de dominação, mormente ao ignorar o
caráter fundamental do direito de reunião.
Quando os casos chegam ao Judiciário, este fica diante de duas concepções de democracia: uma
mais restritiva, em que se tolhe o direito ao protesto, e outra mais inclusiva e ampla. Ora, por se estar em
uma democracia representativa, o Judiciário deveria ser mais atento às manifestações de crítica ao poder
constituído, até porque o poder emana do povo. Não obstante, não é incomum que os magistrados punam
os supostos excessos cometidos em protestos com base no argumento de que “todo direito tem limites”, sem
qualquer fundamentação mais aprofundada sobre que limites seriam esses. Não se cumpre, pois, o dever do
ônus argumentativo do intérprete, mais acentuado em se tratado de cláusulas abertas como a referida.
No estudo de caso analisado: a casa do povo (Legislativo) deixa de ser de acesso público e de parti-
cipação da sociedade; o Judiciário deixa de analisar a importância e o contexto das manifestações e o argu-
mento dos excluídos; e a ordem é para desocupar as ruas. É tempo de refletir sobre os espaços destinados à
participação dos cidadãos e o direito fundamental de oposição ao sistema, pilares de um regime político dito
democrático.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
QUEM TEM DIREITO À ÚLTIMA PALAVRA?
O INSTITUTO DA REVISÃO JUDICIAL À LUZ DAS TEORIAS DE DWORKIN, DAHL E WALDRON
ANA TEREZA DUARTE LIMA DE BARROS
Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Bacharela em
Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista de Mestrado do CNPq. E-mail:
anaterezadlb@gmail.com
MARIANA COCKLES TEIXEIRA
Mestranda e Bacharela em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco.
Bolsista de Mestrado da Facepe. E-mail: marianacockles@gmail.com
SUMÁRIO: introdução; 1. Revisão judicial como elemento da democracia (ou não): as visões de Ro-
nald Dworkin e Jeremy Waldron; 2. O judiciário seria realmente neutro e imparcial? A visão de Robert
Dahl; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Judiciário ou legislativo? Quem tem direito à última palavra em questões políticas relevantes e con-
troversas é assunto sobre o qual, desde a obra histórica de Dahl, escrita em 1957, vários teóricos políticos,
juristas e constitucionalistas têm se posicionado.
Primeiramente é explorada a visão de Ronald Dworkin - que se opõe claramente à de Dahl e Waldron
– que defende ser o Judiciário a instituição competente para decidir questões políticas que envolvam morali-
dade. Igualmente, defende que a Corte estaria mais apta a proteger a minoria contra a “tirania da maioria”,
uma vez que a premissa majoritária não implica democracia. O procedimento democrático também não de-
finiria qual autoridade é a legitimada para proteger direitos, importando mais o conteúdo da decisão do que
“quem decide”.
Igualmente, é abordada a visão de Jeremy Waldron - o maior crítico de Dworkin – quem considera
que, no que diz respeito às questões morais, sempre haverá discordância, não havendo uma resposta corre-
ta. A única forma, portanto, de se garantir uma decisão democrática seria através do procedimento, não do
conteúdo. Seria o Judiciário não-responsivo perante os eleitores e, portanto, ilegítimo para decidir questões
políticas, que só poderão ser plenamente debatidas, com igualdade, no âmbito legislativo.
Também é analisado o entendimento de Robert Dahl, quem, contrariamente a Dworkin, considera
uma falácia o argumento de que o Judiciário é realmente neutro e serve para proteger o direito das minorias.
Dahl demonstra que a Suprema Corte sempre se alia à aliança nacional dominante e que, em muitos poucos
casos, decidiu contra a maioria, pondo, por água abaixo, o argumento de Dworkin.
Por fim, faz-se uma breve conclusão, contrapondo a visão dos autores trabalhados.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
1. REVISÃO JUDICIAL COMO ELEMENTO DA DEMOCRACIA (OU NÃO): AS VISÕES DE RONALD
DWORKIN E JEREMY WALDRON.
Para os defensores da revisão judicial, como Ronald Dworkin, dito instrumento aprofundaria a de-
mocracia, ao proteger os direitos das minorias contra a “tirania da maioria”. Dworkin defende que a leitura
moral realizada pela Suprema Corte é extremamente necessária. Como exemplo, cita o caso Brown, em que
a atuação da Corte foi necessária para que se pudesse extinguir a segregação oficial nas escolas. O autor,
igualmente, defende que uma alternativa intermediária é impossível, e que resta aos juristas e constitucio-
nalistas aceitar a leitura moral realizada pelos juízes (DWORKIN, 2006, p. 18-21).
Citando Conrado Hübner Mendes:
Para Dworkin, a política do mundo civilizado deve estar subordinada ao im-
pério do direito, do princípio, da integridade. Deve respeitar não apenas o
direito posto, legislado, mas também suas premissas morais. E os juízes se-
riam um veículo institucional adequado para carregar e impor a dimensão de
princípio às decisões políticas. Não nega que o legislador também deva ser
guardião de princípios, e que tenha responsabilidade de não produzir deci-
sões institucionais. Mas o ambiente legislativo não seria o ideal para questões
de escolha sensível.
Dworkin não admite uma cultura jurídica leniente, segundo a qual o Direito
é uma questão de força e autoridade, e os argumentos baratos intercambiá-
veis. É possível buscar o melhor argumento, a resposta certa, ainda que não
demonstráveis (MENDES, 2008, p. 77).
A tese principal de Dworkin ataca a premissa majoritária, ou seja, a premissa de que as decisões
políticas a que se chega devam ser as favorecidas pela maioria dos cidadãos. Tal premissa não implicaria de-
mocracia. Conforme sua concepção comunitária - segundo a qual as decisões políticas deveriam ser tomadas
pelo “povo” enquanto tal, e não por “indivíduos encarados um a um” - “uma sociedade em que a maioria
despreza as necessidades e perspectivas de uma minoria é não só injusta como ilegítima” (DWORKIN, 2006,
p. 24-26/ 31/ 38-39).
Se a democracia fosse entendida no sentido subminimalista, como o fazem Schumpeter (1961) e
Przeworski (1999), a proteção ao direito das minorias pouco importaria, pois, democracia existiria em todo
lugar onde houvessem eleições limpas, sendo este o único requisito democrático.
Porém, Dworkin, contrariamente a Schumpeter e Przeworski, defende que democracia é conteúdo,
não procedimento. O que importa é o conteúdo da decisão a que se chega, não importando “quem” seja a
autoridade que a profira. Para Dworkin, quando juízes anulam uma decisão tomada pelo legislativo, em lugar
de estarem indo de encontro à democracia, estão aprofundando-a, uma vez que a democracia não se reduz à
regra da maioria, mas é resultado da combinação entre procedimento e substância (MENDES, 2008, p. 34/
59/ 76-77).
A Corte, então, seria considerada o “fórum do princípio”, de modo que não haveria necessidade de
representação nos moldes tradicionais, ao contrário do que defendem os que se opõem à revisão judicial,
como Waldron. Para evitar que a maioria se torne juíza da própria causa, não deveria ser ela quem decide
quais decisões majoritárias devem ser aceitas (DOWRKIN, 2010, p. 222-223).
As decisões a respeito dos direitos contra a maioria não são questões que de-
vam, por razões de equidade, ser deixadas a cargo da maioria. O constitucio-
nalismo – a teoria segundo a qual os poderes da maioria devem ser limitados
para que se protejam os direitos individuais – pode ser uma teoria política boa
ou má, mas foi adotada pelos Estados Unidos, e não parece justo ou coerente
permitir que a maioria julgue em causa própria. Dessa forma, os princípios
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
de justiça parecem posicionar-se contra o argumento derivado da democra-
cia, e não a seu favor (DWORKIN, 2010, p. 222-223).
Uma das principais críticas feitas à revisão judicial, e que será feita por Waldron, é justamente essa
aparente falta de legitimidade dos juízes. No entanto, para seus defensores, como é o caso de Dworkin, a
proteção aos direitos individuais, ou seja, ao conteúdo, compensa. Além do mais, teriam os juízes melhor
formação técnica e não estariam subordinados às pressões políticas (LEIBIR; DUTRA, [s.d], p. 8-9). Nas pa-
lavras de Dworkin (2005, p. 17): “os juízes não são eleitos nem reeleitos, e isso é sensato porque as decisões
que tomam ao aplicar a legislação tal como se encontra devem ser imunes ao controle popular”.
Conclui Dworkin que os tribunais devem ser ativistas, de modo que estejam preparados a formular e
dar respostas a questões de moralidade política.
Se deixarmos as decisões de princípio exigidas pela Constituição a cargo dos
juízes, e não do povo, estaremos agindo dentro do espírito da legalidade, tan-
to quanto nossas instituições o permitam, mas correremos o risco de que os
juízes venham a fazer as escolhas erradas (DWORKIN, 2005, p. 231-232).
Dahl, como veremos, irá derrubar esse argumento de Dworkin, ao provar que o Judiciário sempre se
alia à aliança nacional dominante, logo, não seria neutro.
Contrariamente a Dworkin, Jeremy Waldron se opõe à chamada revisão judicial “forte”, que é a exis-
tente nos Estados Unidos da América (e no Brasil), em que os tribunais têm autoridade para declarar que
determinada norma não será aplicada, transformando-a em letra morta. Waldron parte do pressuposto de
que existe um compromisso por parte da maioria dos membros da sociedade e da maioria de seus funcio-
nários em respeitar os direitos individuais e das minorias (WALDRON, 2006, p. 1354/ 1360). Pergunto-me
em quantos países ocidentais a maioria da população os respeita e os leva em consideração para tomar suas
decisões. Acredito que em poucos.
Assim, Waldron, diferentemente de Dworkin, acredita que os membros de uma sociedade sempre
irão discordar a respeito de se determinada decisão viola ou não direitos, não existindo uma única decisão
correta. Como resposta a esse problema de desentendimento moral, Waldron defende a legitimidade do pro-
cedimento, contrapondo-se à visão de Dworkin, que preza pelo conteúdo (WALDRON, 2006, p. 1369- 1370).
Nas palavras de Waldron:
Todavia, dada a inevitabilidade do desacordo sobre tudo isso, uma teoria da
justiça e dos direitos deve ser complementada por uma teoria da autoridade.
Uma vez que pessoas discordam sobre o que a justiça requer e quais direitos
temos, precisamos perguntar: quem deve ter poder para tomar decisões (...)?
Saber o que conta como uma boa decisão é uma questão que não desaparece
no momento em que respondemos à questão “Quem decide”? Pelo contrário,
a função de uma teoria da justiça e dos direitos é aconselhar seja lá quem for
identificado (pela teoria da autoridade) como a pessoa para tomar a decisão
(WALDRON, 1993, p. 32).
Waldron salienta o insulto que é considerar que os cidadãos não deveriam dirimir seus conflitos por
meio do procedimento majoritário, outorgando a um seleto grupo de juízes a autoridade de fazê-lo. Na verda-
de, o procedimento adotado pelos tribunais para se chegar a uma decisão é o mesmo: a votação majoritária.
Quando cidadãos ou seus representantes discordam sobre quais direitos te-
mos ou sobre o que estes direitos impõem, parece quase um insulto dizer
que isto não é algo que se lhes permite resolver por meio de procedimento
majoritário, mas que deve ser atribuído para determinação final a um pe-
queno número de juízes. É particularmente insultante quando descobrem
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
que juízes discordam entre exatamente pelas mesmas linhas que cidadãos e
representantes, e que juízes tomam suas decisões, também, por votação ma-
joritária. Cidadãos podem sentir que, se desacordos nesses assuntos devem
ser resolvidos pela contagem de cabeças, então são as suas cabeças ou as de
seus representantes que deveriam ser contadas (WALDRON, 2001, p. 15).
Assim, já que ambos decidem de forma majoritária, antes todos os cidadãos decidindo por maioria do
que um seleto grupo de juízes fazendo o mesmo. Dessa forma, para o Waldron, a Suprema Corte não seria
uma instituição contramajoritária. Tampouco teria o argumento dos juízes ou a qualidade de suas decisões,
peso no seu voto (MENDES, 2008, p. 102).
Em lugar de falar impessoalmente sobre “a dificuldade contramajoritária”,
devemos distinguir entre a Corte decidindo por maioria, e muitos e muitos
homens e mulheres comuns decidindo por maioria. Se fizermos isso, nós
vemos ainda que a questão “Quem deve participar?” sempre tem priorida-
de sobre a questão “Como eles decidem quando discordam?” (WALDRON,
1993, p. 50).
A defesa do procedimento como melhor maneira de se obter uma decisão democrática levaria a duas
perguntas fundamentais: “por que eles? Por que não eu?” e “no procedimento decisório, por que não foi dado
maior peso aos pontos de vista dos legisladores que concordam comigo sobre o assunto?”. Primeiramente,
seriam os legisladores quem decide, pois foram eleitos diretamente pelo povo, logo, são responsivos perante
este. Nas eleições, os cidadãos decidem, em condição de igualdade, quem deverá assumir o posto privilegia-
do de representá-los na tomada de decisões. Em segundo lugar, o princípio majoritário garantiria justiça e
tratamento igualitário a todos. Assim, todas as opiniões têm peso igual (WALDRON, 2006, p. 1387-1388).
Ao dar mais valor ao procedimento que à substância, Waldron, de certa forma, termina por considerar
que mesmo as decisões que contrariam os direitos das minorias, se deliberadas por uma legislatura eleita,
serão consideradas democráticas. Assim, uma decisão que fosse contrária ao matrimônio igualitário continu-
aria sendo democrática, uma vez que passou pelo debate legislativo. Já para Dworkin, uma decisão legislativa
que não reconhecesse esse direito estaria ferindo o direito de uma minoria e precisaria passar pelo crivo do
Judiciário.
Waldron, igualmente, deveria levar em consideração que, embora a deliberação legislativa suposta-
mente deixe todos em situação de igualdade, nem todos possuem a mesma capacidade de influência, restan-
do claro que o legislativo também sofre pressões políticas e econômicas. Este foi um dos argumentos trazidos
por Dworkin em seu livro “A virtude soberana”, em que reconhece que há uma diferença de influência, no
processo político, que determinados grupos possuem em relação a outros. Dessa forma, embora o voto dos
eleitores tenha o mesmo impacto, nem todos conseguem exercer a mesma influência no processo político
(DWORKIN, 2005, p. 270-271). Assim, considerando que o parlamento pode traduzir uma desigualdade
considerável de representação, defende Dworkin que a revisão judicial.
Proporciona um fórum político no qual os cidadãos possam discutir, se de-
sejarem, e, por conseguinte, o faz de maneira mais diretamente ligada à sua
vida moral do que o voto. Além disso, nesse fórum aumenta muito o incentivo
das minorias, que praticamente não têm nenhum incentivo na política co-
mum (DWORKIN, 2005, p. 288).
Quanto ao argumento de que a revisão judicial seria eficiente para proteger direitos das minorias
contra a tirania da maioria, Waldron argumenta que tirânico é sempre algo relativo. Sempre que um lado
discordar de algo, achará que o lado a favor estará sendo tirânico. Como exemplo, o autor cita a lei que regula
o financiamento de campanha. Os que se opõem à referida lei sempre a acharão tirânica (WALDRON, 2006,
p. 1395-1396).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
2. O JUDICIÁRIO SERIA REALMENTE NEUTRO E IMPARCIAL? A VISÃO DE ROBERT DAHL.
Dahl inovou ao ter sido o primeiro a reconhecer a Suprema Corte norte-americana como sendo,
também, uma instituição política. Afinal, é comum que a Suprema Corte tenha de decidir casos em que há
severos desacordos dentro da sociedade, como nos casos em que estão em questão a regulação da economia
pelo Estado ou a segregação racial. Nesses casos, a decisão da Corte é política, e a sociedade precisa aceitar
esse fato (DAHL, 1957, p. 279-280).
Dahl demonstra que o entendimento da Suprema Corte está sempre alinhado com o da aliança
nacional dominante. Afinal, os ministros são indicados pelo presidente, que não indicaria um juiz que fosse
hostil a suas políticas públicas. Dessa forma, estaria a Corte menos propensa a obter sucesso se a iniciativa
bloqueada for a de uma maioria. Inclusive, uma maioria legislativa forte sempre conseguiria superar o veto
da Corte. Conclui alegando que a Corte não é eficiente protegendo direitos fundamentais e que tem poucos
poderes para afetar o curso da política nacional (DAHL, 1957, p. 284-286/ 288/ 292-293).
Como as investigações de Dahl se deram em 1957, questiono se ele teria tido as mesmas conclusões
se dita pesquisa tivesse sido levada a cabo nos dias atuais. Decisões como a aprovação do casamento iguali-
tário e a reforma da saúde afetaram fortemente o curso da política nacional norte-americana e protegeram
direitos de minorias, mas são decisões que também estavam totalmente alinhadas com as políticas do exe-
cutivo, o que talvez comprove a tese de que o judiciário se alia à aliança nacional dominante. É possível que
a Suprema Corte apenas tenha protegido direitos fundamentais de minorias, nesses casos, porque a aliança
nacional dominante tem viés progressista.
A teoria de Dahl também põe, por água abaixo, o argumento dos defensores da revisão judicial - como
Dworkin - de que seria melhor que o Judiciário decidisse as questões importantes, pois seria uma instituição
neutra, diferentemente do legislativo, que sofre pressões políticas e econômicas. Ao demonstrar que o enten-
dimento da Suprema Corte tende a se alinhar com o da aliança nacional dominante, o status de “neutralida-
de” da instituição é posto, claramente, em cheque.
CONCLUSÃO
É difícil se posicionar quanto a quem deve dar a última palavra, se o judiciário ou o legislativo. Tanto
os argumentos de Dworkin a favor da revisão judicial, como os argumentos de Dahl e Waldron, contrários a
dito instituto, são bastante convincentes.
Talvez os que defendam a revisão judicial, como Dworkin, em boa medida, estejam insatisfeitos com
a democracia representativa. Para que se possa defender vigorosamente os legisladores, é preciso acreditar
que eles realmente estão sendo representativos. É evidente que, em uma grande quantidade de casos, foi o
Judiciário quem protegeu o direito das minorias, como recentemente, quando a Suprema Corte norte-ame-
ricana reconheceu o matrimônio igualitário.
É verdade, igualmente, que, no citado caso do matrimônio igualitário, dita decisão estava totalmente
alinhada com as políticas do presidente, o que favorece a tese de Dahl de que o Judiciário tende a se alinhar
à aliança nacional dominante. Talvez a revisão judicial passe a ser mais bem vista, aceita e preferida, em
tempos em que o executivo e o judiciário têm viés mais progressista, situação em que irão tender a, de fato,
proteger os direitos das minorias não reconhecidos pelo legislativo.
No que diz respeito à legitimidade democrática, difícil contestar o argumento de Waldron de que os
legisladores são os legitimados, uma vez que foram eleitos diretamente pelos cidadãos e, portanto, são res-
ponsivos perante estes. Por outro lado, ao dar mais valor ao procedimento que à substância, Waldron, de certa
forma, termina por considerar que, mesmo as decisões que contrariem os direitos das minorias, se delibera-
das por uma legislatura eleita, serão consideradas democráticas.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Por fim, não pretendo posicionar-me em favor ou contrariamente a nenhuma das posições. Os argu-
mentos dos três autores estudados demostram como, a depender do aspecto a ser observado, uma das posi-
ções parece mais acertada que a outra, o que torna difícil a construção de um posicionamento final.
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92
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A AUTONOMIA DAS ORDENS LOCAIS INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA
SOB O PONTO DE VISTA DO TRANSCONSTITUCIONALISMO E DO NOVO
CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO
ARTHUR ALBUQUERQUE DE ANDRADE
Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestrando em Direito
pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista da CAPES no programa Tutela
Multinível de Direitos Humanos. albuquerquearthur@hotmail.com
ANA CATARINA SILVA LEMOS PAZ
Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da CAPES
no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. Monitora da cadeira de Direito
Constitucional I na Universidade Católica de Pernambuco. catarina.lemospaz@gmail.com
LUIZ MANOEL DA SILVA JÚNIOR
Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da CAPES
no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. Monitora da cadeira de Direito
Constitucional I na Universidade Católica de Pernambuco. luizmsj@live.com
SUMÁRIO: Introdução; 1. O Transconstitucionalismo; 2. O Novo Constitucionalismo latina-ameri-
cano; 3. A interseção entre o Transconstitucionalismo e o Novo Constitucionalismo; 4. A possibilidade
do Transconstitucionalismo na América Latina servir à autonomia da cultura nativa, um dos objetivos
do Novo Constitucionalismo; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
De acordo com Luhmann, a formação do Estado moderno ocorreu mediante a diferenciação funcio-
nal da sociedade. Manifesta-se, inicialmente, no sistema político e a posteriori, no econômico e no jurídico.
A partir da distinção sistêmica, são construídos os paradigmas modernos: a soberania (“staatgeralst”), a eco-
nomia de mercado e o monismo jurídico (GALINDO, 2006).
A sociedade contemporânea supera os paradigmas mencionados. A Guerra Fria é considerada o mar-
co. Segundo o filósofo alemão Kurz, uma das consequências do fato histórico é a globalização e o agravamento
da crise das sólidas instituições elaboradas na modernidade. Aponta o surgimento de uma “postura social
niilista”, decorrente da incerteza desses paradigmas ocasionada pela citada crise. Estes são considerados
insuficientes para coordenar as democracias contemporâneas e os juristas passam a ter de reformulá-los
(GALINDO, 2006).
Isto porque a sociedade fragmenta-se e apresenta alta complexidade, em um descompasso com os
postulados do Estado, mormente o dos campos político e jurídico, os quais se encontram limitados geografi-
camente, em oposição aos demais (econômico, informativo, etc.).
Na lição de Wolkmer (1994), os mais prejudicados pela falência das instâncias política e jurídica são
os grupos vulneráveis. Estes passam a exigir o reconhecimento de um soberano jurídico para cada cultura,
no intuito de reverter o contexto de exclusão no qual se encontram devido à explanada falência.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Funda-se, destarte, o pluralismo jurídico, um dos paradigmas contemporâneos do direito. Para ser
concretizado, explica Raquel Fajardo (2015), deve haver uma ruptura com o constitucionalismo monista
liberal do século XIX e com o constitucionalismo integracionista do século XX. Estabelecido o pluralismo
jurídico, diversos questionamentos vêm à tona.
1. O TRANSCONSTITUCIONALISMO.
Segundo Marcelo Neves (2010), na sociedade hodierna, a partir da globalização, os problemas de di-
reitos humanos e regulamentação do poder, por exemplo, interessam a diversos ordenamentos jurídicos: na-
cionais, locais, transnacionais, supranacionais e internacionais. O pluralismo jurídico, ao reconhecer novas
ordens normativas, acentua a rede de tutela multinível de direitos (fundamentais) exposta. Nesse contexto,
César Garavito (2015) questiona: qual(is) o(s) método(s) para compatibilizar os inúmeros ordenamentos,
posto a diversidade e, por vezes, a incompatibilidade entre eles? O presente artigo destaca a teoria de Neves,
o transconstitucionalismo.
O método desenvolvido por Neves, o transconstitucionalismo, intenta construir pontes transversais
entre os ordenamentos jurídicos dissonantes. Estes, para alcançar um consenso, devem, a princípio, se con-
ter e perceber a própria incapacidade em ter uma visão holística da celeuma. Trata-se do denominado “ponto
cego”, presente em todas as jurisdições, o qual se torna visível a partir de outros. Em paralelo, deve-se com-
preender a inexistência de uma última ratio entre os ordenamentos, mais um motivo para ser estabelecido
um diálogo entre eles.
No que tange à América Latina, sobressaem-se as relações transversais estabelecidas entre as ordens
locais indígenas e os Estados. Isto porque, na última década, há surgido, no continente, um movimento
constitucional denominado “novo constitucionalismo latino-americano”, pelo qual se intenciona garantir a
autonomia das tribos indígenas perante os tribunais estatais: propósito semelhante ao do transconstituciona-
lismo referente à problemática. O vínculo aludido, então, esclarece a possibilidade de estudar o método e o
movimento conjuntamente.
No supracitado estudo, entretanto, notam-se pontos divergentes. É interessante, tanto para o trans-
constitucionalismo, como para o novo constitucionalismo, o alcance de uma compatibilização dos menciona-
dos pontos, a fim de que possam se fortificar reciprocamente.
2. O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO.
Na América Latina, a inclusão almejada pelas tribos indígenas visadas pelo Novo Constitucionalismo
pressupõe o reconhecimento de um ordenamento jurídico próprio para cada cultura presente dentro dos
Estados. Diante dessa nova configuração, os Estados nacionais são substituídos pelos plurinacionais.
Na realidade fática da região, esse projeto não aconteceu igualmente. Ao ponderar o reconhecimento
da diversidade étnica nas Constituições vigentes da América Latina, Rodrigo Uprimny (2011) as categoriza
em três diferentes tipos. O primeiro reúne as adeptas de um “pluralismo liberal”, as quais não reconhecem
nenhum direito especial às comunidades discriminadas. Entre outros Estados, incluem-se nesse grupo o
Chile, o Uruguai e a Costa Rica. O segundo promove o multiculturalismo, máxime através da jurisprudência
dos Tribunais constitucionais. A Colômbia é um exemplo nítido. Quanto aos dois primeiros grupos, é frequen-
te o debate concernente à autenticidade dos processos constitucionais. Indaga-se se os citados ordenamentos
jurídicos foram construídos como resposta às demandas e aos desafios sócio-políticos das regiões nas quais se
encontram; ou se são uma tentativa de copiar ideais eficazes na conjuntura europeia, contudo ineficazes na
complexa realidade latino-americana (GARAVITO, 2015).
O terceiro tipo de Constituição, por fim, remete ao Novo Constitucionalismo Latino-Americano e, por
conseguinte, ao Equador e à Bolívia. Estas não se restringem a promulgar direitos característicos de um Es-
tado multicultural, porém ainda unitário, precipuamente no tocante às diversas nações nele presentes. Inau-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
guram, pois, um Estado plurinacional e intercultural. Em termos práticos, essas Constituições reconhecem
a autodeterminação dos povos indígenas, ao atribuir-lhes circunscrições próprias de representação política e
judiciária. Ademais, institucionalizam as línguas e os elementos da cultura nativa (UPRIMNY, 2011).
Isto posto, vale salientar a existência de outras classificações com critérios deveras semelhantes, tal
qual a elaborada por Raquel Fajardo (2011). Analogamente, a jurista divide as Constituições em três ciclos.
A ideia é situar os Estados de acordo com o grau de avanço nas questões relacionadas ao pluralismo. Nessa
linha, o primeiro ciclo apresenta as Cartas com menor propensão às demandas das comunidades ora trata-
das. O terceiro, por sua vez, dispõe os Estados com o maior reconhecimento às problemáticas advindas da
diversidade cultural.
3. A INTERSEÇÃO ENTRE O TRANSCONSTITUCIONALISMO E O NOVO CONSTITUCIONALISMO.
Diante do exposto, notam-se objetivos comuns entre o transconstitucionalismo e o novo constitucio-
nalismo. Ambos pretendem, em perspectivas diversas, garantir a autonomia de determinadas ordens jurídi-
cas comumente olvidadas no monismo jurídico estabelecido pelo modelo eurocêntrico moderno. O primeiro
como método e o segundo como fenômeno popular de reivindicação de um conjunto direitos. Sendo assim,
sustenta-se a hipótese de aplicar o mencionado método ao fenômeno aludido, a fim de promover uma inten-
sificação recíproca.
No próximo tópico, serão narrados litígios cuja resolução valeu-se do transconstitucionalismo e nos
quais um dos litigantes tratava-se de grupo(s) nativo(s). O intuito é sobrelevar a simbiose apontada, para
suscitar discussões sobre essa hipótese aos interessados tanto na efetivação do método transconstitucional
como no fenômeno do novo constitucionalismo no continente. Antes da narrativa, no entanto, salienta-se a
necessidade de aplicar o método de modo distinto. O motivo é a desigualdade de expor normas válidas entre
os indígenas e as demais ordens. Como atenta Neves (2010), há um risco destas se imporem àquelas. Ou
seja, o transconstitucionalismo, nesses casos, deve funcionar como um instrumento de empoderamento do
coletivo indígena, para que se consiga preservá-lo, assim como se faz com os demais.
Nas palavras de Marcelo Neves (2010):
Um outro lado do transconstitucionalismo aponta para a relação problemáti-
ca entre as ordens jurídicas estatais e as ordens extraestatais de coletividades
nativas, cujos pressupostos antropológico-culturais não se compatibilizam
com o modelo de constitucionalismo do Estado. Evidentemente, nesse caso,
trata-se de ordens “arcaicas” que não dispõem de princípios ou regras se-
cundárias de organização e, por conseguinte, não se enquadram no modelo
reflexivo do constitucionalismo. A rigor, elas não admitem problemas jurí-
dico-constitucionais de direitos humanos e de limitação jurídica do poder.
Ordens normativas dessa espécie exigem, quando entram em colisão com
as instituições da ordem jurídica constitucional de um Estado, um “trans-
constitucionalismo unilateral” de tolerância e, em certa medida, de apren-
dizado. Essa forma de transconstitucionalismo impõe-se, porque – embora
as referidas ordens jurídicas, em muitas de suas normas e práticas, se afas-
tem sensivelmente do modelo de direitos humanos e de limitação jurídica
do poder nos termos do sistema jurídico da sociedade mundial – a simples
outorga unilateral de “direitoshumanos” aos seus membros é contrária ao
transconstitucionalismo. Medidas nessa direção tendem a ter consequências
destrutivas sobre mentes e corpos, sendo contrárias ao próprio conceito de
direitos humanos.
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Direito(s) em debate.
4. A POSSIBILIDADE DO TRANSCONSTITUCIONALISMO NA AMÉRICA LATINA SERVIR À
AUTONOMIA DA CULTURA NATIVA, UM DOS OBJETIVOS DO NOVO CONSTITUCIONALISMO.
O transconstitucionalismo na América Latina é narrado em casos emblemáticos envolvendo as tribos
Suruahá, Yawanawá, Yanomami, Yakye Axa e Sawhoyamaxa. Sobre as três primeiros tribos, colaciona-se a
exposição do transconstitucionalista (NEVES, 2010):
Um dos casos mais delicados apresentou-se recentemente na relação entre
a ordem jurídica estatal brasileira e a ordem normativa dos índios Suruahá,
habitantes do Município de Tapauá, localizado no Estado do Amazonas, que
permaneceram isolados voluntariamente até os fins da década de 1970 (SE-
GATO, 2011, p. 363, 357-381). Conforme o direito consuetudinário dos Su-
ruahá, é obrigatório o homicídio dos recém-nascidos quando tenham alguma
deficiência física ou de saúde em geral. Em outra comunidade, a dos indí-
genas Yawanawá, localizada no Estado do Acre, na fronteira entre Brasil e
Peru, há uma ordem normativa consuetudinária que determina que se tire a
vida de um dos gêmeos recém-nascidos. Nesse contexto, também se tornou
público o fato de que práticas desse tipo eram comuns entre os Yanomami e
outras etnias indígenas. Essa situação levou a polêmicas, pois se tratava de
um conflito praticamente insolúvel entre direito de autonomia cultural e di-
reito à vida. O problema já tomara destaque na ocasião em que uma indígena
Yawanawá, em oficina de direitos humanos da Fundação Nacional do Índio,
em 2002, descreveu a obrigatoriedade, em sua comunidade, da prática de
homicídio de um dos gêmeos, apresentando-se como vítima dessa prática
jurídica costumeira (SEGATO, 2011, p. 357 et seq.). êxito, o contexto em que
foi elaborado e a discussão que engendrou apontam para um caso singular de
“diálogo” e colisão transconstitucional entre ordem jurídica estatal e ordens
normativas locais das comunidades indígenas.
Neves (2010), então, prossegue em uma análise crítica à problemática:
Os elaboradores e defensores do Projeto de Lei partiram primariamente da
absolutização do direito fundamental individual à vida, nos termos da moral
cristã ocidental. Secundariamente, também contribuiu para a proposição do
Projeto o direito fundamental da mãe à maternidade. Essa postura unilateral
pela imposição dos direitos individuais em detrimento da autonomia cultural
das comunidades não pareceu adequada para os que se manifestaram em
torno do problema em uma perspectiva antropológica mais abrangente. A
simples criminalização das práticas indígenas, em nome da defesa do direito
à vida, pode ser vista, outrossim, como um verdadeiro genocídio cultural, a
destruição da própria comunidade, destruindo suas crenças mais profundas.
[...]. As ponderações da antropóloga Rita Laura Segato contribuíram positiva-
mente para o esclarecimento dessa colisão de ordens jurídicas, enfatizando
a necessidade de um diálogo entre ordens normativas, em termos que se
enquadram em um modelo construtivo de transconstitucionalismo. No con-
texto do debate, Segato (2011, p. 358) reconheceu que tinha diante de si “a
tarefa ingrata de argumentar contra essa lei, mas, ao mesmo tempo, de fazer
uma forte aposta na transformação do costume”. No âmbito de sua argumen-
tação, ela invocou pesquisa empírica sobre os Suruahá, na qual se verificou
que, em um grupo de 143 membros da comunidade indígena, entre 2003 e
2005, houve dezesseis nascimentos, vinte e três suicídios, dois homicídios de
recém-nascidos (denominados pelos antropólogos “infanticídio”, sem o senti-
do técnico-jurídico do tipo penal) e uma morte por doença. Ou seja, enquan-
to 7,6% das mortes ocorreram por “infanticídio”, houve 57,6% de mortes por
suicídio entre os Suruahá. Essa situação aponta uma compreensão da vida
bem distinta da concepção cristã ocidental. Entre essa comunidade indíge-
na, a vida só tem sentido se não for marcada por excessivo sofrimento para
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
o indivíduo e a comunidade, se for uma vida tranquila e amena. Assim se
justificaria o homicídio de recém-nascido em determinados casos (SEGATO,
2011, p. 364 et seq.). O significado atribuído à vida e à morte pelos Suruahá
não seria menos digno do que o sentido que lhes atribui o cristianismo.
No que diz respeito às duas últimas tribos, Neves (2010) é claro:
“Parece-me de uma relevância especial a decisão da Corte Interamericana
de Direito Humanos, nos julgamentos dos casos Yakye Axa vs. Paraguai e
Sawhoyamaxa vs. Paraguai30 (CORTEIDH, 2005b), no qual se decidiu sobre
o direito de propriedade sobre territórios das comunidades indígenas Yakye
Axa e Sawhoyamaxa, localizadas no Paraguai. Nesses interessantes casos, a
CorteIDH decidiu não conforme o conceito técnico-jurídico de propriedade
privada definido nos termos do direito constitucional estatal, mas sim levan-
do em conta primariamente a noção cultural de “propriedade ancestral” das
comunidades indígenas sobre os respectivos territórios, sedimentada histori-
camente em suas tradições.
Assim, deixando em segundo plano um direito fundamental assegurado cons-
titucionalmente no plano estatal, a CorteIDH argumentou favoravelmente
aos direitos de comunidade local extraestatal sobre o seu território, para as-
segurar direitos humanos garantidos no nível internacional. Esse entrela-
çamento multiangular em torno dos direitos humanos e fundamentais não
seria possível, se não houvesse uma disposição, nas diversas ordens, especial-
mente na estatal, para ceder às exigências das perspectivas de outras ordens
normativas em relação ao significado e abrangência de direitos colidentes.
[...]. Parece-me que os argumentos apresentados no item anterior não per-
dem o seu significado em virtude dessa referência ao direito internacional.
Nesses casos, cabe não apenas uma releitura complexamente adequada tan-
to das normas estatais de direitos fundamentais quanto das normas interna-
cionais de direitos humanos. Um universalismo superficial dos direitos hu-
manos, baseado linearmente em uma certa concepção ocidental ontológica
de tais direitos, é incompatível com um “diálogo” transconstitucional com
ordens nativas que não correspondem a esse modelo. Ao contrário, a negação
de um diálogo construtivo com as ordens indígenas em torno dessas questões
delicadas é contrária aos próprios direitos humanos, pois implicaria uma “ul-
tracriminalização” de toda a comunidade de autores e coautores dos respec-
tivos atos, afetando-lhes indiscriminadamente corpo e mente mediante uma
ingerência destrutiva. No âmbito de um transconstitucionalismo positivo im-
põe-se, nesses casos, uma disposição das ordens estatais e internacionais de
surpreender-se em um aprendizado recíproco com a experiência do outro, o
nativo em sua autocompreensão.
Nesse ponto, discute a questão do relativismo e do universalismo dos direitos humanos. Como per-
cebe-se, é um debate comum tanto ao transconstitucionalismo, como ao novo constitucionalismo, uma vez
que este propõe um Estado plurinacional, ou seja, com diversas jurisdições. Isto posto, é imperioso atentar
para a importância de se encontrar pontos de interseção entre as culturas constitucionais, a qual não implica
necessariamente em uma uniformidade teórica.
O dilema entre o universalismo e o relativismo dos direitos humanos possui uma relevância particular
para a América Latina. No ensinamento de Julieta Ripoll (2015), a região padece de uma grande instabilida-
de sobre “quem é e quem não é um ‘ser humano’” desde a colonização europeia, quando aos índios não era
atribuída a “humanidade” e tampouco direitos. Diante desse quadro, João Paulo Allain Teixeira (2000) enten-
de o relativismo como um modo de garantir aos povos historicamente dominados a emancipação da cultura
e, portanto, da própria coletividade. Isto porque o universalismo, conforme explanado, tende a valorizar as
sociedades dominantes em detrimento das demais – em oposição ao relativismo.
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Direito(s) em debate.
A mesma lógica, em diferentes proporções, da preservação das tribos indígenas pode ser aplicada em
outros casos. Entre os quais os negros, vítimas de racismo; da memória dos torturados, nas ditaduras recen-
tes, olvidadas pelo Estado; dos moradores de favelas das capitais brasileiras frente às ações abusivas da Polícia
Militar. São contextos, por vezes, excluídos de direitos e, portanto, ausentes de humanos.
CONCLUSÃO
O transconstitucionalismo é originariamente concebido sob a pretensão de promover um diálogo,
cujos interlocutores estariam posicionados igualmente. Nesse sentido, Neves afirma haver poucos Estados
capazes de aplica-lo. Contudo, em um desdobramento do conceito, amplia a ideia de diálogo para a de aber-
tura a novas razões normativas, sem o estabelecimento de uma final ou superior. Esse aprendizado converge
com o novo constitucionalismo no que concerne à reformulação do Judiciário nos pretendidos Estados pluri-
nacionais. O presente artigo demonstra a intersecção entre o método e o fenômeno. Por óbvio, trata-se tanto
de uma teoria, como de uma prática assaz complexa e, portanto, impossível de ser verticalizada dentro dos
limites inerentes a esse artigo. Este ambiciona ser o ponto de partido para futuras discussões sobre a hipótese
avençada e assim o faz.
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ESCRAVISMO CONTEMPORANEO E INTEGRAÇÃO ECONÔMICA:
UM ESTUDO ACERCA DOS POSSÍVEIS IMPACTOS DA ADESÃO DA BOLÍVIA AO MERCOSUL
BRUNA DE OLIVEIRA MACIEL
Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, com
concentração na área da Teoria Geral do Direito, Direito Internacional Público e Direitos
Humanos. Advogada pública concursada da Caixa Econômica Federal. brunaolimaciel@
gmail.com
JAQUELINE MARIA DE VASCONCELOS
Graduanda em Direito pela Faculdade Boa Viagem, monitora em Direito Constitucional,
pesquisadora do PICT/FBV DeVry-Brasil, colaboradora do Núcleo Multidisciplinar de
Pesquisa em Direito e Sociedade (NPD/CNPq/UFRPE) e estagiária concursada da Caixa
Econômica Federal. jmv.direito@outlook.com
SUMÁRIO: 1. Contextualização; 2. A regulamentação do direito comunitário e brasileiro no combate
à escravidão contemporânea no âmbito da indústria têxtil; 3. Costurando sonhos: Possíveis reflexos
da adesão da Bolívia ao Mercosul; Considerações finais; Bibliografia
CONTEXTUALIZAÇÃO
A busca pelo crescimento econômico por meio da formação de blocos regionais é uma estratégia que
foi, e continua sendo, adotada por diversos países. A contextura do atual cenário econômico global se carac-
teriza pela existência de uma ampla mobilidade no fluxo de capitais e dos demais fatores de produção.
A instalação de um capitalismo global é inegável, sendo possível visualizar uma dupla e contraditória
dinâmica entre concentração e fragmentação. Onde se tem, por um lado, uma voraz competitividade que,
por meio de fusões e aquisições empresariais, visa a concentração de capital em busca de reconhecimento
e liderança; de outro lado, a fragmentação da produção em escala mundial, por meio dos processos de sub-
contratação, terceirização e informalização do trabalho, para suprir a demanda desse mercado globalizado
(DUPAS, 1999).
Para legitimar o pretendido crescimento econômico frente ao desenvolvimento humano, o Tratado
de Assunção assinado em 26 de março de 1991, pelas Repúblicas da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai,
buscou deixar consignado em seu preâmbulo uma preocupação (retórica e falaciosa) acerca da justiça social.
Na verdade, a questão social toma relevância nos espaços regionais, especificamente no Mercosul,
na medida em que a abertura de mercados mostra ampla repercussão na estrutura dos empregos. Os tra-
balhadores passam a ser o único fator de produção imóvel, enquanto capital e meios de produção circulam
livremente. Desta maneira, surge o chamado “dumping social”, em virtude da disparidade do nível de desen-
volvimento da legislação sócio laboral de cada um dos países signatários do Mercosul.
Nesse sentido, a iminente adesão da Bolívia ao Mercosul acarreta uma fundada preocupação acerca
de seus reflexos no combate à escravidão contemporânea no âmbito da indústria têxtil no Brasil. Tendo em
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Direito(s) em debate.
vista que os problemas flutuantes sobre as imigrações bolivianas com intuito laboral, são flagrantes e existen-
tes desde a intensificação do fluxo migratório de bolivianos na década de 80 (ILLES, et. al., 2008).
O acordo entre Brasil e Seul, que teve como objetivo “aliviar o desemprego que atingia a Coreia do
Sul – em função da grande leva de pessoas que fugiram do regime comunista da Coreia do Norte, inflando a
oferta de mão-de-obra no sul –” (ROSSI, 2005, p. 22), marca as raízes da celeuma.
A primeira leva de coreanos desembarcou no porto de Santos no dia 12 de fevereiro de 1963, do navio
Tjitjalenk, sendo destinados ao comércio de roupas intermediado pelos judeus, proprietários de grandes lojas
do ramo. Os coreanos foram ousados, investiram na confecção de peças e na produção familiar, recebendo
maior abertura no momento em que os judeus passaram a trabalhar em outros segmentos. O mercado pas-
sou a exigir uma produção em larga escala concomitante ao período em que os bolivianos fugiam da situação
crítica de seu país, sendo rapidamente absorvidos pela demanda coreana (ROSSI, 2005).
Fausto Brito (1995) defende em seus estudos a existência da chamada ilusão imigratória contida no
imigrante internacional. Onde de um lado se está diante de uma racionalidade imersa na decisão de emigrar
e por outro lado, há a consideração (ou miragem) das condições da região escolhida.
Atualmente a imagem acerca da existência de trabalho digno no Brasil auxiliado à expectativa de as-
censão social, continua presente na percepção do povo boliviano, em especial, os provenientes da região de
La Paz e Cochabamba (SILVA, 2006).
O fato é que as senzalas do século XXI revelam um cenário tão crítico quanto o de outrora, caracteri-
zado, acima de tudo, pela ausência de efetividade das proteções constitucionais sócio laborais para esse nicho
específico de trabalhadores, considerados como suspeitos para segurança nacional diante da interpretação do
anacrónico Estatuto do Estrangeiro.
Com isso, a presente pesquisa se destina a extrair as perspectivas pragmáticas de proteção em aspec-
tos mínimos de desenvolvimento humano para os imigrantes bolivianos com a iminente expansão do bloco
econômico.
1. A REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO COMUNITÁRIO E BRASILEIRO NO COMBATE À
ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA NO ÂMBITO DA INDÚSTRIA TÊXTIL.
Desde a formação do Mercosul, a ideia de livre circulação de pessoas encontrava acepções vagas e di-
vergentes entre os integrantes do bloco. A livre circulação em um Mercado Comum, de acordo com o modelo
europeu, deverá implicar na formação de um mercado de trabalho único, o qual, por força da incorporação
normativa do princípio da dignidade da pessoa humana, deverá se pautar pela igualdade de direitos entre os
trabalhadores do bloco, o que se reflete numa vedação de discriminação do trabalhador em função de sua
nacionalidade.
No intuito de amenizar o impacto social da circulação de pessoas entre países com diferentes padrões
socioeconômicos e jurídicos, em dezembro de 1991, o Encontro dos Ministros do Trabalho do Mercosul su-
geriu a criação do Subgrupo nº 11 como órgão consultivo na estrutura do Mercosul, aprovada na reunião do
Conselho do Mercado Comum em 17/11/1991.
O principal objetivo do Subgrupo é que todos os trabalhadores, independentemente da origem, pos-
sam se beneficiar da proteção dada pela legislação trabalhista do país onde esteja trabalhando, bem como da
integração dos sistemas previdenciários. Diante da dificuldade de uniformização da legislação, de forma a
aplicar o mesmo texto legal para todos os integrantes, em um bloco econômico que não reconhece instancias
supranacionais, a meta do órgão é a harmonização das normas de cunho sócio laboral.
No trabalho de harmonização legislativa das condições de trabalho no Mercosul destacam-se as ati-
vidades da Comissão Temática nº 1 do antigo Subgrupo nº 11, que tem por objeto a análise comparativa dos
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
sistemas de relações de trabalho entre os países integrantes. Para a verificação das simetrias e assimetrias a
comissão vem se socorrendo de um método comparativo genérico, da legislação como um todo.
José Alves de Paula, coordenador do estudo em 1992 apontava a vantagem do método, uma vez que,
para a quantificação dos custos trabalhistas e encargos sociais, é possível a manutenção de vantagens maiores
oferecidas por alguns países, uma vez compensadas por outras menores. Assim, o trabalho de harmonização
prescinde da convergência de cada instituto individualmente (NASCIMENTO, 2004).
Para que a livre circulação de trabalhadores possa se tornar uma realidade no Mercosul, não é sufi-
ciente a liberdade de acesso ao emprego. A circulação do trabalhador depende, sobretudo, das condições de
permanência no país onde se trabalha.
Atualmente, a discussão da eficácia jurídica dos direitos trabalhistas no espectro internacional passa
pela conveniência de sua vinculação ao comércio internacional. A influência do comércio nos custos laborais
se revela na medida em que países que abrem mão do maior número de direitos trabalhistas conseguem des-
locar para si determinados setores produtivos, caracterizando o chamado “dumping social”.
No intuito de estabelecer patamares mínimos de direitos trabalhistas, foi aprovada, em 10 de dezem-
bro de 1998, a Declaração Sócio Laboral do Mercosul, trazendo parâmetros a serem adotados como diretrizes
na atividade legislativa e na elaboração de políticas públicas de cada país integrante. Para garantir a efetivi-
dade do direito de livre circulação do trabalhador no âmbito comunitário merece também destaque o Acordo
Previdenciário Multilateral, aprovado por meio do Decreto n° 19/97 do Conselho Mercado Comum.
Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Ministra do TST, defende que a Declaração Sócio Laboral do Mer-
cosul não se confunde com uma decisão do Conselho Mercado Comum, regida pelo direito comunitário (PE-
DUZZI, 2005). Tratando-se de um instrumento internacional assinado pelos presidentes dos países membros
deve ser regida pelas normas gerais de Direito Internacional Público, respeitada a característica de tratar-se
de norma de consagração de direitos humanos sociais.
A noção de bloco de constitucionalidade está presente no Brasil nas discussões sobre controle de
constitucionalidade e foi tratada com grande clareza pelo Min. Celso de Mello, no julgamento da ADI 595-ES,
na qual discorre sobre a existência de uma tendência ampliativa de, no conceito de Constituição, da seguinte
forma:
Considerados não apenas os conceitos de índole positiva, expressamente pro-
clamados em documento formal (que consubstancia o texto escrito da Cons-
tituição), mas, sobretudo, que sejam havidos, igualmente, por relevantes, em
face de sua transcendência mesma, os valores de caráter suprapositivo, os
princípios cujas raízes mergulham no direito natural e o próprio espírito que
informa e dá sentido à Lei Fundamental do Estado (TAVARES, 2005, p, 99).
A aplicabilidade da teoria do bloco de constitucionalidade se fortaleceu com o advento da Emenda
Constitucional nº 45 de 08 de dezembro 2004, a qual confere aos tratados e convenções internacionais sobre
direitos humanos o tratamento de norma formalmente constitucional, quando incorporados ao ordenamento
interno segundo o processo legislativo das emendas constitucionais.
A discussão sobre a hierarquia normativa da Declaração Sócio Laboral do Mercosul é relevante na
medida em que a legislação nacional que trata do trabalhador migrante apresenta inúmeros óbices à meta da
livre circulação. No Brasil, a questão do trabalhador estrangeiro, em linhas gerais, pela Lei nº 6.815 de 19 de
agosto de 1980, o Estatuto do Estrangeiro, regulamentada pelo Decreto 86.715 de 10 de dezembro de 1981.
Cumpre destacar que a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 352 e seguintes, segundo um
princípio de nacionalização do trabalho vigente na época de sua promulgação, instituiu uma proporção de
dois terços de empregados brasileiros nas empresas nacionais.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Além disso, o Constituinte de 1998, em prol da segurança e do interesse nacionais estabeleceu a ve-
dação de alguns cargos e atividades para estrangeiros. No art. 12, § 3º estão enumerados determinados cargos
privativos de brasileiros natos, quais sejam o de Presidente da República, e, por conseguinte, a ocupar a linha
sucessória de substituições, o de Vice Presidente da República, de Presidente da Câmara dos Deputados, de
Presidente do Senado Federal e de Ministro do STF; assim como os cargos de Carreira Diplomática, de Oficial
das Forças Armadas e de Ministro de Estado da Defesa.
A Constituição Federal restringe ainda aos estrangeiros a propriedade de empresa jornalística e de
rádio difusão sonora e de sons e imagens. De acordo com a redação dada ao art. 222 pela Emenda Constitu-
cional nº 36 de 28 de maio de 2002, a propriedade está restrita a brasileiros natos ou naturalizados há mais de
dez anos e a pessoas jurídicas constituídas sobre as leis brasileiras e que tenham sede no país. Neste último
caso, não podendo a participação do capital estrangeiro exceder trinta por cento do capital total e volante das
empresas, conforme regulamentação do §1º do art. 222 dada pela Lei 10.610 de 20/12/02.
Apontadas as limitações constitucionais ao exercício de determinadas atividades laborais pelo estran-
geiro, observa-se que a questão do trabalhador migrante não mereceu tratamento específico pelo legislador
infraconstitucional. O Estatuto do Estrangeiro mostra-se anacrônico no trato da questão, pois não se compa-
tibiliza com a realidade das disposições comunitárias.
As hipóteses de concessão de vistos correspondem a uma classificação de ingressos que ignora o di-
reito à livre circulação do trabalhador no âmbito comunitário: trânsito, turismo, temporário e permanente.
O visto temporário, tratado pelo art.13 do Estatuto do Estrangeiro, abrange apenas determinadas ca-
tegorias profissionais especializadas, destinando-se ao estrangeiro em viagem cultural ou missão de estudos;
em viagem de negócios; na condição de artista ou desportista; na condição de estudante; na condição de
cientista, professor, técnico ou profissional de outra categoria, sob regime de contrato ou a serviço do Governo
brasileiro; na condição de correspondente de jornal, revista, rádio, televisão ou agencia noticiosa estrangeira;
e na condição de ministro de confissão religiosa ou membro de instituto de vida consagrada e de congregação
ou ordem religiosa.
Por outro lado, o visto permanente restringe ainda mais a possibilidade de residência, posto que só
será conferido a quem seja tido como mão-de-obra especializada, capaz de contribuir com a política nacional
de desenvolvimento do país, incrementando a produtividade e assimilação de tecnologia, dentre outros requi-
sitos a serem estipulados por meio de resoluções pelo Conselho Nacional de Imigração. Em todos os casos, o
estrangeiro trabalhador está proibido de exercer diversas atividades elencadas no art. 106 do Estatuto.
O que se observa no Brasil é que seja para o visto permanente ou temporário, a entrada do trabalha-
dor migrante está sempre condicionada à solicitação da empresa interessada em contratar, conforme dispos-
to na Resolução Administrativa nº 07 de 06 de outubro de 2004 do Conselho Nacional de Imigração.
A mais recente Resolução Normativa do Conselho é a de nº 64 de 13 de setembro de 2005 e trata
dos requisitos para quem pretenda vir ao Brasil sob visto temporário. A resolução especifica exigências de
comprovação da qualificação e/ou experiência profissional compatível com a atividade que irá ser exercida a
pedido da empresa requerente.
Por meio de diplomas, certificados ou declarações, o estrangeiro deverá comprovar experiência de
três anos, para atividades artísticas e culturais que independam de formação escolar; dois anos de experiên-
cia e escolaridade mínima de nove anos para o exercício de profissão de nível médio; experiência de um ano
a partir da conclusão da graduação para profissões de nível superior; ou a conclusão de curso de mestrado
na área que irá desempenhar.
Torna-se evidente que só mão-de-obra bastante qualificada será capaz de preencher tais requisitos. A
livre circulação é ficcional para o trabalhador de baixa qualificação. No próprio âmbito comunitário, os meca-
nismos de circulação do trabalhador se concentram na área de serviços. No ano de 2000 o Conselho Mercado
Comum aprovou o Decreto nº 48, que permite dispensa de visto a determinadas categorias profissionais,
como artistas, professores, cientistas, profissionais e técnicos especializados, cujo propósito seja desenvolver
103
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
suas atividades por até noventa dias corridos, prorrogáveis por igual período, no limite de cento e oitenta dias
anuais.
Quanto ao reconhecimento de títulos, o Brasil, por meio do Decreto Legislativo nº 800 de 2003,
incorporou a sua ordem jurídica o “Acordo de admissão de títulos e graus universitários para o exercício de
atividades acadêmicas no Estados Partes do Mercosul” por meio do qual se estabelece uma carga horária mí-
nima para reconhecimento de títulos de graduação e pós-graduação, bem como um Sistema de Informação
e Comunicação do Mercosul, que proporcionará informação sobre as agências credenciadoras dos Países, os
critérios de avaliação e os cursos credenciados.
Por fim, a mais recente conquista em prol da livre circulação, com reflexos no trabalhador, que en-
controu acolhida na ordem jurídica interna foi o “Acordo sobre Regularização Migratória Interna de Cidadãos
do Mercosul”, por meio do Decreto Legislativo nº 928 de 2005, por meio do qual se busca a facilitação dos
trâmites migratórios para os cidadãos dos Estados Partes do MERCOSUL, no sentido de permitir sua regula-
rização migratória sem a necessidade de regressar a seu país de origem.
O Estado brasileiro reconhece o problema do trabalho análogo ao de escravo e a exploração de bolivia-
nos em oficinas de costura e tem buscado implementar iniciativas de inclusão desses imigrantes à sociedade
brasileira. Exemplo disso foi a sanção do projeto de lei 1.664/2007, responsável pela anistia e legalização de
milhares de migrantes no país.
Nessa linha ainda se segue o projeto de lei n.º 288/2013 do senador Aloysio Nunes Ferreira, já reme-
tida à Câmara dos Deputados, buscando, dentre outros, a efetiva substituição do Estatuto do Estrangeiro,
como é possível extrair da explicação da ementa da iminente lei:
Explicação da Ementa: Dispõe sobre os direitos e deveres do migrante e re-
gula a entrada e estada de estrangeiros no Brasil, revogando, em parte, o Es-
tatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80). Regula os tipos de visto necessários
para ingresso de estrangeiros no país. Estabelece os casos e os procedimentos
de repatriação, deportação e expulsão. Dispõe sobre a naturalização, suas
condições e espécies e os casos de perda de nacionalidade. Trata da situação
do emigrante brasileiro no exterior. Tipifica o crime de tráfico internacional
de pessoas para fins de migração e infrações administrativas relativas a en-
trada irregular no país. Altera a Lei nº 8.213/91 (Previdência Social), para
facilitar a contribuição à Previdência do trabalhador brasileiro referente ao
período em que tenha trabalhado em país estrangeiro (BRASIL, 2013).
2. COSTURANDO SONHOS: POSSÍVEIS REFLEXOS DA ADESÃO DA BOLÍVIA AO MERCOSUL.
Segundo Rossi (2005), a maior parte dos funcionários utilizados na indústria têxtil brasileira é com-
posta pelos imigrantes latino-americanos em situação ilegal no Brasil. São ele paraguaios, chilenos, bolivia-
nos, peruanos que saem dos seus países de origem buscando a sobrevivência do sonho de uma vida melhor.
Atualmente é possível constatar que entre os hispano-americanos, os imigrantes bolivianos no Brasil são a
maioria, localizados, em especial, no estado de São Paulo.
De acordo com os dados trazidos por Silva (2008), no Censo de 2000 houve o registro de 20.388 imi-
grantes bolivianos que residiam no Brasil e no Censo de 2010, já se tinha 38.826 o que constitui um aumento
de 90,43% somente naquele período.
Do ponto de vista espacial, os bolivianos (as) estão concentrados em bairros
da Zona Central da cidade, como Bom Retiro, Brás, Pari, Barra Funda, Cam-
buci, Mooca, entre outros. Entretanto, há também uma significativa presen-
ça deles em bairros da Zona Leste, como Belém, Tatuapé, Penha, Itaquera,
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Cangaíba, Engenheiro Goulart, Ermelino Matarazzo, Guaianases, São Ma-
teus, e em bairros da Zona Norte, como Vila Maria, Vila Guilherme, Casa
Verde, Cachoeirinha, entre outros. Entretanto, nos últimos anos, a presença
de bolivianos extrapolou os limites do município de São Paulo, podendo ser
encontrada em cidades como Guarulhos, Osasco, Santo André, Diadema, e
em outras cidades do interior paulista, como Jundiaí, Campinas, Americana,
entre outras (SILVA, 2006, p. 160).
Nesse ponto, toma-se cuidado para que com o exposto não se chegue a uma falsa premissa. Pois é co-
mum e falacioso deduzir que o processo migratório ocorre de forma espontânea, ao livre arbítrio das pessoas
que vão em busca de melhores condições. Ocorre que esse processo é, na verdade, induzido. Observe que a
Bolívia é um dos países mais pobres da América Latina. Em sua própria pátria os bolivianos são expostos e
submetidos a atividades laborais precárias, sem perspectiva de crescimento e sem condições dignas vida, são
coagidos pelo próprio meio no qual estão inseridos a migrar, para que sejam componentes efetivos do sistema
capitalista (MARINUCCI, 2005).
Nota-se que a mão-de-obra boliviana é estratégica para alimentar esse sistema. Os donos das oficinas
de costura se utilizam dos sonhos que envolvem a ascensão social e se projetam para os imigrantes como se
fossem os responsáveis pelo resgate de uma vida sem perspectivas.
Dessa forma, diferentemente dos escravos ligados à produção rural da fronteira agrícola da Amazônia,
que sofrem intensiva e constante coação física, a submissão à condição degradante e de superexploração dos
bolivianos na indústria têxtil se dá por meios indiretos de coação moral e psicológica. “Em nome da fidelidade
e da possibilidade de trabalhar, o imigrante clandestino exerce um contrato de trabalho verbal no qual ele é
remunerado por peça, totalizando um salário-hora muito abaixo da mão de obra local e exercendo uma jor-
nada extensa de trabalho, que pode atingir 16 ou 18 horas por dia” (CACCIAMALI, AZEVEDO, 2005, p.137).
Não obstante, ainda é propagado um sentimento de insegurança já existente. Ou seja, os bolivianos
que estão de forma irregular no Brasil passam a ser constantemente amedrontados no sentido de que a qual-
quer momento podem ser abordados pela polícia federal e consequentemente deportados. Com isso, sabe-se
o porquê de a mão-de-obra local ser preterida frente à boliviana. O empregado do meio urbano brasileiro,
que é envolvido por um ambiente mais protecionista conquanto à legislação trabalhista, visualiza de forma
mais racional a exploração submetida. Sabe-se que se porventura for submetido ao trabalho degradante, em
nenhum momento os direitos trabalhistas serão negados (SILVA, 1995).
Teoricamente, tanto a Bolívia quanto o Brasil trazem um arcabouço normativo de repressão ao tra-
balho escravo contemporâneo. Na dicção dos artigos 8° e 5° da Constituição boliviana de 1967, tem-se de
forma expressa a proibição do trabalho forçado. No Brasil, a valorização do trabalho e a dignidade da pessoa
humana constituem o próprio fundamento da República Federativa, sem olvidar dos diversos dispositivos do
código penal brasileiro e dos compromissos internacionais firmados, como: a Convenção das Nações Unidas
sobre Escravatura (1926), promulgada pelo Decreto nº 58.563/1966; a convenção nº 29 da Organização In-
ternacional do Trabalho sobre o Trabalho Forçado, promulgada pelo Decreto nº 41.721/1957 e a Convenção
nº 105 da Organização Internacional do Trabalho sobre a Abolição do Trabalho Forçado, promulgada pelo
Decreto nº 58.822/1966 (MATTIOLI, 2015).
Com isso, nota-se que o abismo entre a teoria e a prática consiste justamente na ineficácia dos dispo-
sitivos jurídicos existentes e/ou na prevalência do Estatuto do Estrangeiro (lei 6.815/1981) que trata os imi-
grantes como inimigos da segurança nacional, favorecendo a clandestinidade e os altos custos burocráticos
de mudança territorial e é justamente nesse aspecto que se visualiza os possíveis reflexos da adesão da Bolívia
como membro pleno do Mercosul.
Segundo o jornal El País (2015), todos os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e
Venezuela) já assinaram na cúpula de Brasília um novo protocolo de adesão à união aduaneira. Na verdade,
esse acordo já havia sido firmado em 2012, mas o aval do Paraguai não foi possível devido à sua suspensão do
bloco decorrente da destituição do presidente Fernando Lugo, sendo o fato avaliado pelo Mercosul como uma
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
afronta aos princípios democráticos que norteiam o bloco. Hoje para o ingresso do sexto membro ao bloco,
necessita-se apenas da ratificação dos Congressos do Paraguai e do Brasil.
Sabe-se que o Mercosul é constituído através de acordos sejam eles regionais ou bilaterais sobre a
eliminação de direitos aduaneiros e restrições alfandegárias à circulação de mercadorias; a livre circulação
de bens, serviços, fatores produtivos. Dentre outros fatores, o Mercosul é dependente de mercado comum de
trabalho e por isso, busca viabilizar a liberdade de acesso dos trabalhadores entre os Estados-Membros, com
um tratamento paritário e previdenciário.
O direito de livre circulação de trabalhadores encontra fundamento no prin-
cípio da não discriminação, que comporta a igualdade de tratamento entre
todos os trabalhadores que desempenham sua atividade no âmbito de um
Mercado Comum, superando-se todo discriminação quanto aos trabalhado-
res estrangeiros face aos trabalhadores nacionais. A discriminação cria difi-
culdade para a livre circulação e pode criar «reservas de mercado» para os
trabalhadores nacionais (no Brasil, recordem-se que vigora, atualmente, a
Lei 6.815/80 Estatuto do Estrangeiro, que define a situação jurídica do es-
trangeiro do Brasil e cria o Conselho Nacional de Imigração; o Decreto lei
691/69, que dispõe sobre técnicos estrangeiros; a Lei 7.064/82, que trata do
deslocamento de trabalhadores contratados por empresas de engenharia que
prestam serviços em outros países) (MATTIOLI, 2015, p. 4).
Nesse passo, observa-se que o processo de integração do Mercosul não incrementa apenas as relações
comerciais entre os Estados em uma economia mais globalizada, os reflexos são mais amplos do que esses.
A adesão de novos membros ao bloco anuncia também um nível mais elevado do ponto de vista humanitário
dentro do mercado comum, no qual compreende a livre circulação de pessoas.
A livre circulação de pessoas implica na abolição das discriminações existentes calcadas na nacio-
nalidade, estatuindo igualdade de direitos com os países-membros do MERCOSUL, de forma a favorecer o
combate ao trabalho degradante em prol do desenvolvimento humano pleno (AZEVEDO, 2005).
Se não é assim, observa-se o feito pela Reunião dos Ministros do Trabalho do MERCOSUL no dia 26
de junho de 2015, assinando uma nova versão da Declaração sócio-laboral do MERCOSUL, no qual reforçou
o compromisso com os direitos sociais e trabalhistas, como se observa nos trechos abaixo:
Trabalhadores migrantes e fronteiriços
Art. 4º Todos os trabalhadores migrantes, independentemente de sua nacio-
nalidade, têm direito à ajuda, informação, proteção e igualdade de direitos
e condições de trabalho reconhecidos aos nacionais do país em que estive-
rem exercendo suas atividades. Os Estados Partes comprometem-se a adotar
medidas tendentes ao estabelecimento de normas e procedimentos comuns
relativos à circulação dos trabalhadores nas zonas de fronteira e a levar a
cabo as ações necessárias para melhorar as oportunidades de emprego e as
condições de trabalho e de vida destes trabalhadores.
Eliminação do trabalho forçado
Art. 5º Toda pessoa tem direito ao trabalho livre e a exercer qualquer ofício ou
profissão, de acordo com as disposições nacionais vigentes. Os Estados Partes
comprometem-se a eliminar toda forma de trabalho ou serviço exigido a um
indivíduo sob a ameaça de uma pena qualquer e para o qual dito indivíduo
não se ofereça voluntariamente.
Ademais, comprometem-se a adotar medidas para garantir a abolição de toda
utilização de mão-de-obra que propicie, autorize ou tolere o trabalho forçado
ou obrigatório. De modo especial, suprime-se toda forma de trabalho forçado
ou obrigatório que possa utilizar-se:
a) como meio de coerção ou de educação política ou como castigo por não
ter ou expressar determinadas opiniões políticas, ou por manifestar oposição
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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ideológica à ordem política, social ou econômica estabelecida; b) como méto-
do de mobilização e utilização da mão-de-obra com fins de fomento econômi-
co; c) como medida de disciplina no trabalho; d) como castigo por haver par-
ticipado em greves; e) como medida de discriminação racial, social, nacional
ou religiosa (MERCOSUL, 2015, p. 2)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa trabalhou em um primeiro momento questões acerca do fluxo migratório de trabalha-
dores e buscou identificar as origens do trabalho análogo ao escravo no Brasil. O segundo capítulo explorou
o arcabouço legislativo local e comunitário, identificando que o aparato normativo brasileiro é ineficiente no
combate à exploração de mão-de-obra imigrante. Tendo em vista que o Estatuto do Estrangeiro, Lei 6.815,
em vigor desde 1980, e posteriormente alterado pela Lei 6.964/81, é apresentado como um mecanismo de
restrição e repressão. Mostrando-se desatualizado e desalinhado com o atual contexto sócio-político-econô-
mico nacional e mundial.
O referido estatuto trabalha os imigrantes como criminosos, clandestinos, em perene ilegalidade fa-
cilitando a fragilidade trabalhista concernente ao quadro de empregabilidade dos bolivianos. O projeto de lei
n.º 288 de 2013 que visa à substituição do Estatuto do Estrangeiro, constituirá no cenário latino-americano
um grande avanço no combate ao trabalho escravo contemporâneo.
Contudo a presente pesquisa se deteve à relação Brasil-Bolívia, uma vez que o projeto de lei abarcará
todos aqueles considerados imigrantes, sejam eles bolivianos, peruanos, chilenos.
Trabalhar a Bolívia também não foi uma escolha aleatória. Em regiões específicas do estado de São
Paulo, como Bom Retiro, Brás, Pari Cambuci, a predominância dos imigrantes bolivianos é sensível aos olhos
e os dados comparativos entre os censos de 2000 e 2010 somente ratificaram a hegemonia desse contingente.
A importância deste trabalho se pauta justamente na atualidade do tema desenvolvido. O processo
de adesão da Bolívia como membro pleno do Mercosul está neste último semestre de 2015 em seus trâmites
finais, aguardando tão-somente o aval do Congresso brasileiro e paraguaio.
A expansão do bloco com a integração da Bolívia trará as pretendidas benesses de cunho econômico,
mas principalmente, de forma reflexa, no desenvolvimento humano, ao passo que questões laborais Brasil-
-Bolívia serão abarcadas pelas diretrizes da livre circulação de pessoas prevalente no MERCOSUL, ratificada
no segundo semestre de 2015 com a assinatura da nova versão da Declaração sócio-laboral do bloco.
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O PODER-DEVER DO ESTADO NA PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE NO ÂMBITO FAMILIAR À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL
DE 1988
Bruna de Oliveira Maciel
Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, com
concentração na área da Teoria Geral do Direito, Direito Internacional Público e Direitos
Humanos. Advogada pública concursada da Caixa Econômica Federal.brunaolimaciel@
gmail.com
Jaqueline Maria de Vasconcelos
Graduanda em Direito pela Faculdade Boa Viagem, monitora em Direito Constitucional,
pesquisadora do PICT/FBV DeVry-Brasil, colaboradora do Núcleo Multidisciplinar de
Pesquisa em Direito e Sociedade (NPD/CNPq/UFRPE) e estagiária concursada da Caixa
Econômica Federal. jmv.direito@outlook.com
SUMÁRIO: 1. Contextualização: A evolução do conceito de família e sua proteção legal; 2. A caracte-
rização da alienação parental e seu tratamento na ordem jurídica brasileira; 3. Princípios Constitucio-
nais que fundamentam a igualdade parental; 4. As falsas memorias e suas repercussões na dignidade
da pessoa humana. Considerações Finais; Referências.
1. CONTEXTUALIZAÇÃO: A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA E SUA PROTEÇÃO LEGAL
O presente estudo parte de concepções preliminares imprescindíveis ao objetivo do trabalho, compor-
tando o devido entendimento do papel do Estado imerso em uma lógica neoconstitucional diante do princípio
da proteção integral da criança e do adolescente.
O marco histórico do constitucionalismo – Magna Carta de 1215 – completou os seus oitocentos anos
de luta com o intuito político-jurídico de limitação do poder estatal. Os ideais existentes para conter o poderio
do Leviatã foram perpassados, servindo como reflexo para outras vitórias como a Constituição Norte-Ame-
ricana de 1787, a Constituição Francesa de 1791, que traziam em seu âmago os direitos negativos (ou de
primeira dimensão), além da configuração de um Estado Liberal.
O pleito pela aquisição de mais e de novos direitos prosseguiu, fazendo emergir a segunda, terceira e
até mesmo a quarta dimensão de direito, pondo termo àquele modelo liberal. Mas foi o Pós-Segunda Guerra
Mundial que quebrou os paradigmas fazendo com que a sociedade buscasse muito mais do que um Estado
Social ou Estado Democrático de Direito, imerso em uma constituição simbólica, tendo em vista a pouca
aplicabilidade de suas normas.
O marco pós-moderno impulsionou uma onda neoconstitucional que pugna pela ampliação da juris-
dição constitucional, pela hermenêutica do ordenamento jurídico equivalente aos seus princípios e, sobretu-
do, pela eficácia de suas diretrizes. Com isso, tem-se o poder-dever do Estado na proteção integral da criança
e do adolescente cristalizado na Constituição Federal de 1988. Ocorre que, pragmaticamente um trabalho
que deveria ser executado de forma holística, é negligenciado pelo Estado no tocante ao resguardo
dos menores no âmbito familiar, dando margem à Síndrome da Alienação Parental.
111
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Trabalhar com o tema Alienação parental requer mais do a interdisciplinaridade de matérias, carece
de um retrospecto às raízes do problema. Dessa forma, verifica-se que o próprio modelo patriarcal de família,
segundo destaca Côrrea (2009), é herança da concepção romano-cristã e tendo a sua essência constituída
pelo matrimônio, de modo que só eram tidos como filhos os que nascessem na constância de um casamento
legítimo. Vale lembrar que a adoção do Cristianismo como religião oficial do Estado Romano fez com que
somente pessoas que profetizassem o catolicismo pudessem se casar e ter a família protegida pela lei (NO-
RONHA  PARRON, 2012, p. 04).
Com a adoção das Ordenações Filipinas no Brasil, às mulheres somente era concedido o papel exclu-
sivo de mãe e aos homens o protagonismo matrimonial, o pátrio poder (SCANDELARI, 2013). Nessa linha,
o Código Civil de 1916 consagra na sociedade a mentalidade patriarcal da época romano-cristã embutindo a
ideia da superioridade do homem sobre a mulher e os filhos, fixando em seus artigos a relativa incapacida-
de da esposa e comparando-a com os pródigos, índios e menores entre 18 e 21 anos (VERSIANI; ABREU;
SOUZA; TEIXEIRA, 2008).
Por longo período, a educação fornecida à mulher tinha como objetivo a formação de boas mães para
criarem grandes homens. Mas, com a Revolução Industrial esses preconceitos ainda amarrados passam a
ser desatados, com a gradativa participação feminina no trabalho das fábricas, processo que teve seu auge na
Primeira Guerra Mundial. Somente então se fortaleceu a luta por educação, mercado de trabalho e direitos
de participação política, através do movimento feminista.
No Brasil, o Estatuto da Mulher Casada, Lei 4.121 de 27/08/1962, caracterizou uma das maiores
conquistas desse movimento. Dentre tantas modificações trazidas, a mais notória foi a revogação do princípio
da capacidade relativa, concedendo o pátrio poder a mulher nos casos em que o seu marido fosse, por algum
motivo, impedido.
Em 1977, A Lei do Divórcio (lei n. 6515/77) trouxe maior facilidade ao rompimento matrimonial e
refletiu um maior nível de aceitação social desta realidade. Concomitante a isso, a luta feminista já havia
surtido alguns efeitos e o progressivo crescimento do aumento da independência financeira das mulheres,
certamente reduziu sua tolerância à ideia de submissão marital, o que fez com que o número de divórcios
aumentasse substancialmente.
No entanto, somente com promulgação da Constituição Federal de 1988 a concepção de família para
o Direito de fato passa a ter uma nova roupagem. Não apenas porque a Constituição reconheceu o divór-
cio como instrumento para a dissolução do casamento civil (§6º do art. 226 da CF), mas porque, com ela,
adentrou no sistema jurídico brasileiro o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, considerado por muitos
doutrinadores o ponto de partida para a transformação do paradigma do tratamento legal da família.
Bolivar da Silva Telles (2011) afirma que a dignidade na proteção da família deve ser compreendida
como igual dignidade para todas as entidades familiares e interpreta que seria indigno proporcionar trata-
mentos diferenciados aos diversos tipos de constituição familiar. Associado a este princípio, tem-se ainda o
Princípio da Igualdade que garante aos homens, às mulheres e aos filhos adotivos e provenientes ou não do
casamento, o mesmo tratamento. Por isso mesmo, as famílias constituídas através da união estável, foram
equiparadas em direitos e deveres ao casamento (NORONHA  PARRON, 2012).
Esse arcabouço constitucional reflete que a concepção de organização familiar, tradicionalmente co-
nhecida, já não comporta as relações familiares atuais. Hodiernamente a mãe trabalha, estuda, projeta sua
carreira e, com a evolução da ciência, opta por ter ou não mais filhos devido aos mecanismos contraceptivos.
A figura do pai é recriada, pois passam a ser mais presentes e capazes de cuidar dos filhos, dividindo inclusive
as atividades domésticas (PAULO, 2011).
A mudança do tratamento legal da família vai além. Com um teor democrático e cooperativo de fa-
mília na Constituição de 1988, os filhos, que antes eram tidos como objeto da relação matrimonial, agora se
tornam o foco principal da proteção do Estado, caracterizando-se como sujeitos de direito. Dentro dessa lógi-
ca, o poder familiar passa a ser entendido como um instituto de obrigações, encargos e deveres de ambos os
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Direito(s) em debate.
pais (SCANDELARI, 2013). Outra decorrência é que os filhos devem ser detentores de uma atenção especial
do Estado e seu aparato judiciário, seja quanto aos deveres compartilhados pelos pais na constância de sua
união, seja diante dos potenciais conflitos decorrentes da separação dos pais, situação que se constitui como
objeto do presente trabalho.
2. A CARACTERIZAÇÃO DA ALIENAÇÃO PARENTAL E SEU TRATAMENTO NA ORDEM JURÍDICA
BRASILEIRA
A problemática que motiva o presente trabalho é que essa concepção de família contemporânea pa-
rece que ainda não transpôs as barreiras da sociedade conjugal, sobretudo no que diz respeito às consequên-
cias da separação do casal no tocante ao compartilhamento do poder familiar sobre as crianças.
Pretende-se tratar especificamente, da resposta da ordem jurídica brasileira às condutas dos pais
titulares da guarda da criança após a separação, que ocasionam no menor a Síndrome da Alienação Parental
(SAP). A nomenclatura foi cunhada pelo o psiquiatra Richard A. Gardner1
em 1985, que verificou um com-
portamento atípico comum às crianças e adolescentes envolvidos no fim da sociedade conjugal, que possui
como característica marcante o sentimento repugnante que os filhos passaram a demonstrar pelo genitor que
não detinha a sua guarda. Gardner identificou três estágios do fenômeno:
No estágio considerado como leve, tem-se a desmoralização do genitor de forma discreta e uma su-
posta onda de esquecimento toma conta do genitor alienador. Por exemplo, “esquece” de informar sobre os
compromissos escolares e fala à criança que o outro genitor poderia ter ido às festividades, mas não quis ou
deu pouca importância e esqueceu. Nesse estágio é também comum criar outras atividades e até mesmo
lamentar a solidão que sente durante o período de visitação para que isso cause um sentimento de remoço
e faça com que a criança sempre tenha que tomar a difícil escolha entre a mãe ou o pai (LOGANO, 2011).
No estágio moderado, o genitor alienado é malvado e o outro é bonzinho. Segundo Jorge Trindade
(2010), são utilizadas táticas de exclusão do outro genitor e além da intensificação dos atos do estágio inicial,
a criança passa a apresentar um comportamento inadequado e as visitas deixam de acontecer por motivações
fúteis. No último estágio, os filhos já compactuam com a paranoia do alienador. Ficam em pânico, gritam e
choram com a ideia de ter que visitar o outro genitor (ROSA, 2008).
François Podevyn ainda apresenta atitudes comumente verificadas durante o processo alienatório,
tais como: “a) Recusar de passar as chamadas telefônicas aos filhos [...]; j) Envolver pessoas próximas (sua
mãe, seu novo conjugue, etc.) na lavagem cerebral de seus filhos[...]; q) Culpar o outro genitor pelo mau
comportamento dos filhos” (PODEVYN, 2001).
A Lei 12.318, que dispõe sobre alienação parental no Brasil, ainda elenca de forma meramente exem-
plificativa algumas condutas típicas da alienação parental. Tais como a desqualificação de um dos genitores
no exercício da maternidade ou paternidade; mudar de domicílio para um local distante sem uma justifica-
tiva plausível ou até mesmo não informar o novo endereço; dificultar o exercício do direito de convivência
familiar, assim como omitir informações pessoais relevantes sobre os filhos no tocante aos estudos, saúde
dificultando assim, o exercício da autoridade parental.2
De acordo com o art. 2° da referida lei, o ato não é promovido exclusivamente pela mãe ou pelo pai,
mas sim por qualquer pessoa que possa interferir na formação psicológica da criança ou do adolescente com
o intuito de romper os laços afetivos com um dos genitores.
1  Richard Alan Gardner nasceu em 28 de abril de 1931. Muitas de suas obras são autoridade na área da pedopsi-
quiatria, dentre elas “Parental Alienation Syndrome”, citadas como referência pela American Psychiatric Association.
Professor na Universidade de Columbia de 1963 a 2003, ele foi o primeiro nos Estados Unidos a elaborar jogos que
permitem a expressão da criança durante a avaliação. Impressionado pelos comportamentos estranhos das crianças no
contexto do divórcio, ele identificou certos mecanismos e publicou sua primeira obra sobre a SAP em 1985.
2  BRASIL. Lei 12. 318 de Agosto de 2010. Dispõe sobre a Alienação Parental.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Nesse sentido, observemos o trecho de um acórdão que decidiu de forma unanime em negar provi-
mento ao apelo dos avós maternos que pretendia obter a guarda da neta, após o falecimento da mãe, e com
isso provocava a alienação parental.
A guarda de VICTÓRIA foi deferida ao pai [...] Numa mistura de mágoa e
rancor, os apelantes assumem a posição de vítimas, procuram responsabilizar
o apelado pelas mortes do neto e da filha, sem se dar conta de que, com isso,
permitem que esses sentimentos negativos embotem o amor que sentem pela
neta, transferindo para ela o peso de ser o único consolo dos avós velhinhos,
a única coisa que restou da mãe. [...] Ao invés de se mobilizarem em desfazer
da figura do pai – ensejando a síndrome de alienação parental noticiada na
petição e laudo de fls. 438/443, o que de melhor a família materna fazer por
esta menina é um esforço para superar as diferenças e se empenhar para que
ela se sinta amada a afetivamente amparada por todos aqueles a quem ama,
inclusive o pai. Esse esforço é fundamental para evitar as graves seqüelas da
Síndrome de Alienação Parental, que podem se manifestar como depressão
crônica, incapacidade de adaptação em ambiente psico-social normal, trans-
tornos de identidade e de imagem, desespero, sentimento incontrolável de
culpa, sentimento de isolamento, comportamento hostil, falta de organiza-
ção, dupla personalidade a às vezes suicídio.3
Seja ou não intencional, é a criança ou o adolescente quem mais sofre com o fim da sociedade con-
jugal, tendo que por vezes optar com qual dos genitores irá ficar e isso pode lhe parecer como uma forma de
mensurar, ou melhor, quantificar o amor que sente pela mãe ou pelo pai. Decerto, como diz a Promotora de
Justiça Raquel Pacheco: “ o maior sofrimento da criança não advém da separação em si, mas do conflito e
do fato de se ver abruptamente privada do convívio com um de seus genitores, apenas porque o casamento
deles fracassou”.
Com a alienação parental princípios como o melhor interesse da criança e do adolescente, da preva-
lência e convivência familiar, da afetividade e da paternidade são infringidos. O art. 3° da lei 12. 318 ratifica a
necessidade de o Estado “empreender diligências suficientes para amparo dos direitos e garantias fundamen-
tais de sobrevivência e desenvolvimento humano” das crianças e adolescente que sofre de tamanho abuso
moral.
Com o presente trabalho, pretende-se demonstrar que há no processo da Alienação Parental uma
verdadeira afronta a uma norma fundamental do Estado Democrático de Direito. Dentre os princípios cons-
titucionais atingidos durante o processo da alienação parental, este trabalho se concentra nos pilares da
Igualdade e da Dignidade da Pessoa Humana. O primeiro princípio será direcionado à igualdade parental
que, como visto, por um longo lapso temporal, foi lesado pelo poder patriarcal. O segundo princípio será com-
preendido sob a ótica da prole e do genitor alienado que são lesados em sua dignidade durante os diversos
níveis da síndrome em questão, que pode escalar da privação dos laços de afetividade familiar a repercussões
mais severas, como ocorre em casos extremos, onde quem detém a guarda induz na criança falsas memórias,
inclusive de abuso sexual.
3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS QUE FUNDAMENTAM A IGUALDADE PARENTAL
A Constituição da República Federativa do Brasil em seu art. 226, §§ 3º e 5º reconhece a igualdade
entre homens e mulheres no que tange à sociedade conjugal, constituída tanto pelo casamento quanto pela
união estável. Sob a égide desse princípio, tem-se a despatriarcalização das relações familiares, já que a figura
paterna não mais exerce a dominação e o poder absoluto de outrora. Observa-se que organização familiar é
democrática e colaborativa, desaparecendo o conceito e a essência do pátrio poder, permitindo que inclusive
os filhos exponham suas opiniões (TARTUCE, 2006).
3  BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70017390972. Relator. DES. LUIZ FELIPE BRASIL
SANTOS.
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Direito(s) em debate.
O princípio da igualdade aplicado no âmbito familiar se refere ao tratamento entre homem e mulher
quanto à chefia da sociedade conjugal. Nas palavras de Maria Berenice Dias: “A organização e a própria di-
reção da família repousam no princípio da igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, tanto que compete a
ambos a direção da sociedade conjugal em mútua colaboração. São estabelecidos deveres recíprocos e atri-
buídos igualitariamente tanto ao marido quanto à mulher” (DIAS, p 63, 2007).
A expressão poder familiar é o a que mais se adequa a contemporânea concepção de família, que
devido ao advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA – Lei 8.069/1990) passou a ser guiada pelo princípio da igualdade, conferindo assim um
caráter protetivo e um tratamento isonômico para ambos os cônjuges.
Para Carlos Roberto Gonçalves e Maria Helena Diniz o poder familiar é tido como múnus de direitos
e deveres e que a convivência com um dos pais não concede a titularidade do poder familiar (FONTELES,
2014). O Código Civil de 2002 em seu art. 1.631 concomitante ao art. 1.579 ratifica a permanência do poder
familiar em casos de separação judicial, divórcio ou dissolução da união estável sem que haja modificação dos
direitos e deveres relacionados aos filhos.
Para atender ao princípio da igualdade, no âmbito do direito de família, atualmente, a legislação e a
jurisprudência brasileira utilizam-se do instituto da guarda compartilhada para minimizar as consequências
geradas na disputa pelos menores, além de haver um diploma legal específico para caracterizar o fenômeno
Alienação Parental e suas consequências no âmbito do direito de família (Lei 12.318/2010). Por isso, antes
de avançar, necessária se faz a distinção entre guarda alternada e guarda compartilhada.
A própria dicção da expressão guarda alternada induz um teor antagônico e de alternância, ou seja,
ora se está com o pai, ora se está com a mãe. Segundo Grisard Filho, a guarda alternada não é saudável para
a prole, pois haverá uma confusão relacionada a qual orientação seguir e até mesmo qual moradia chamar
de sua. Nessa mesma tendência segue à jurisprudência:
A guarda alternada, permanecendo o filho uma semana com cada um dos
pais não é aconselhável pois ´as repetidas quebras na continuidade das rela-
ções e ambiência afetiva, o elevado número de separações e reaproximações
provocam no menor instabilidade emocional e psíquica, prejudicando seu
normal desenvolvimento, por vezes retrocessos irrecuperáveis, a não reco-
mendar o modelo alternado, uma caricata divisão pela metade em que os pais
são obrigados por lei a dividir pela metade o tempo passado com os filhos´ (RJ
268/28).´ (TJSC - Agravo de instrumento n. 00.000236-4, da Capital, Rel.
Des. Alcides Aguiar, j. 26.06.2000).
A guarda compartilha, por sua vez, visa uma participação em nível de igualdade dos genitores nas
decisões relacionadas aos filhos. Há uma equidade de contribuições dos pais na formação dos filhos, seja
educacional, moral, espiritual. Sendo assim, não há privilégios para nenhum dos pais, mas sim a busca pelo
melhor interesse do menor (BONFIM, 2005).
Observa-se que, em teoria, a guarda compartilhada é a melhor maneira de prevenir a Alienação Pa-
rental (NÚÑEZ, 2013). Esse instituto jurídico regulamentado pela Lei Federal n° 11.698/2008 evita que os
filhos venham a se afastar de um de seus pais e permite que tanto a mulher quanto o homem possam ser
titulares do princípio da igualdade e desta forma exercer, independente das contendas existentes, o papel de
pai e mãe.
4. AS FALSAS MEMÓRIAS E SUAS REPERCUSSÕES NA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
O princípio da Dignidade da Pessoa Humana que está previsto no art. 1°, III da Constituição da Re-
pública Federativa do Brasil de 1988, no qual garante ao ser humano a preservação da integridade física e
psíquica. Além disso, a Constituição Federal assegura à criança, dentre outros, o direito à dignidade e dentro
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
do ambiente familiar é que a criança ou o adolescente pode constrói sua personalidade para a concretização
de uma vida digna.
Assim, a alienação parenta se torna inaceitável não só por afrontar princípios constitucionais e direi-
tos da criança e do adolescente, mas expor pessoas ainda tão vulneráveis e pleno desenvolvimento a graves
consequências psicológicas (GUILHERMANO, 2012).
Como visto, a alienação parental pode ou não ser intencional e sua finalidade é denegrir o outro ge-
nitor como também afastá-lo da convivência com o filho (GARDNER, 2002). Todavia, Jorge Trindade (2010)
alerta que, embora a síndrome da alienação parental comece como um distúrbio de cunho afetivo, depen-
dendo da intensidade com que é provocada, pode acarretar, inclusive, o surgimento das falsas memórias na
criança. A implantação de falsas memórias ocorre através de sugestões fabricadas ou forjadas, de forma total
ou parcial, de fatos inverídicos. A criança passa a crer em um fato que nunca aconteceu, como por exemplo
o abuso sexual, e reage como se de fato tivesse acontecido (VELLY, 2010).
As crianças envolvidas no processo de falsas memórias podem sofrer de patologias afetivas, sexuais
ou psicológicas, assim como as que de fato sofreram abuso sexual. As consequências da alienação parental
não possuem um rol taxativo, mas os efeitos são direcionados a produzir uma tendência ao isolamento, a de-
pressão, incapacidade de comunicação. Por vezes, pessoas que foram vítimas da alienação parental passam
a desenvolver um sentimento de culpa, quando adultas, por se considerar cúmplice mesmo que de forma
inconsciente da injustiça praticada contra o genitor alienado, podendo acarretar transtornos psíquicos resul-
tando no suicídio (MAZZONI, MARTA, 2011).
Crime sexual ou síndrome da alienação parental? Posto está o desafio para os Tribunais. Afinal, quan-
do o problema chega às mãos do Estado, encontram-se, de uma lado, crianças com um enorme repúdio a
um dos genitores ou ente familiar e até mesmo alegando sofrer algum tipo de abuso. Por outro lado, está a
defesa do outro genitor arguindo a existência de falsas memórias decorrentes da alienação parental. O fato
desencadeia uma das mais delicadas “situações do mundo jurídico, com o dever de tomar imediatamente
uma atitude e com o receio da denúncia não ser verdadeira” (LOGANO, 2011).
No último estágio da alienação parental, muitas vezes caracterizado pela implantação de falsas me-
mórias, o juiz toma medidas de proteção à criança e realiza o afastamento da prole com o genitor injustiçado.
Estudiosos observam que, neste momento, no qual a criança ou o adolescente mais necessita do aparato do
Estado para resguardar seus interesses, depara-se com profissionais do Direito, psicólogos, peritos sem um
preparo técnico e emocional para lidar com a situação e identificar os verdadeiros casos de alienação parental
e de abuso sexual (MAZZONI, MARTA 2011).
A jurisprudência já coleciona precedentes onde houve para o reconhecimento de falsas memórias
decorrentes da síndrome da alienação parental. Nesse sentido segue um excerto jurisprudencial que negou
provimento a pedido de guarda da mãe que implantou falsas memórias na filha, “segundo a menor de 07
anos, eu pai, além de bater maltrata-la, teria cometido abuso sexual e ao afirmar isso disse apontado com
dedo indicador para o meio de suas pernas ‘ele me machucou aqui’”4
e fez com que o filho relatasse maus
tratos. Após diversas perícias o Superior Tribunal de Justiça compreendeu que:
Pelo que se verifica, genitora vai continuar empregando todos os mecanis-
mos par afastar os filhos do pai, pois conforme se vê na petição de fls. 264,
a genitora não permitiu o convívio das crianças com o pai nas datas festivas
nem nas férias, com dispõe o acordo em vigência, desrespeitando os limites
do poder familiar: ‘A existência de limites configura poder familiar não ape-
nas com um poder (assim como era o pátrio poder), mas também com um
dever dos pais. [...] Por tudo isso, entendo que alteração da guarda é media
que impõe como forma de salvaguarda as crianças da prática manipuladora
da mãe (BRASIL, p. 18-20).
4  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência n° 94.723 –RJ ( 2008/0060262-5. Relator. Ministro
Aldir Passarinho Junior.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
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Caetano Lagrasta, desembargador e presidente da Coordenadoria de Projetos Especiais e Acompa-
nhamento Legislativo do Tribunal de Justiça de São Paulo, considera a implantação de falsas memórias como
“diabólica” e defende a prisão do alienador que chega a tal estágio, sob alegação de tortura. Em suas palavras:
“Nestes casos fica evidente que o alienador tortura e a tortura é crime previsto constitucionalmente, logo, a prisão
do alienador-torturador deve ser aplicada” (OLIVEIRA, 2012).
Não se pode perder de vista que é um dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente,
assegurando assim o direito à convivência familiar (art. 19 ECA), à liberdade e dignidade como pessoas em
pleno processo de desenvolvimento garantido pela Constituição Federal e pelo ECA (art. 15), assim como o
direito a participação na vida familiar, da inviolabilidade da integridade física e psíquica e moral para que seja
possível a preservação da imagem, da identidade, dos valores, crenças e ideais.
Deve-se iniciar a reinvindicação do Princípio da Igualdade e Dignidade da Pessoa Humana pela base
da família. Se a família falha em atender o comando constitucional de cuidados a integridade emocional da
criança, o Estado deve intervir para assegurar não só a proteção da criança e do adolescente, mas também da
dignidade da pessoa humana (filhos e genitores alienados) tão lesada durante a alienação parental.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como visto, a Síndrome da Alienação Parental não é um fenômeno novo, inédito ao Século XXI. A
emancipação da mulher e a evolução do mundo moderno modificou não só conceito, mas a própria orga-
nização e estrutura familiar. Passou-se por uma verdadeira metamorfose, e a busca pela igualdade entre o
casal constituiu o elemento propulsor dessa transição. Como visto, a igualdade concedida foi aparente e ol-
vidou-se da igualdade parental, já que a prática judiciária não consegue distinguir situações de manipulação
das emoções da criança como forma de atingir o ex-parceiro, mantendo-se de forma irrefletida uma cultura
maniqueísta que jamais põe em cheque a figura da boa mãe, herdada da era patriarcal.
Apesar de possuirmos uma Lei definindo o conceito e exemplificando características comuns à Alie-
nação Parental, estipulando que qualquer indivíduo, mãe, pai, avós, podem ser os responsáveis pela prática
alienante, e listando uma série de medidas que podem ser tomadas a título de atenuação dos efeitos da sín-
drome, observa-se na jurisprudência que os profissionais militantes da área do Direito de Família (operadores
do direito, psicólogos, peritos), por vezes, desconhecem a profundidade e as graves consequências do tema
em questão. Essa incompetência técnica pode aumentar a injustiça levando um inocente à prisão Não o bas-
tante, a luta histórica pela igualdade parental retrocede e Dignidade da Pessoa Humana é afetada.
Daí concluímos que, para dar a concretude devida ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana,
seriam necessárias políticas públicas direcionadas a divulgar para população a existência e os danos causados
aos envolvidos na síndrome da alienação parental. Como também seria imprescindível capacitar os profissio-
nais que trabalham na área, pois o estudo prático da alienação parental denuncia a carência de profissionais
preparados e comprometidos com o estudo da Síndrome em questão, capazes de se despir de rótulos precon-
cebidos sobre a família tradicional.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
de poder, conclui-se que a sua democratização representa a potencialidade da democratização da cultura
política, da formação da opinião pública e dos costumes (MARTÍN-BARBERO, 2001).
Na sociedade de massas contemporânea, a opinião pública não se forma, como no passa-
do, sob o manto da tradição e pelo círculo fechado de inter-relações pessoais de indivíduos ou
grupos. Ela é plasmada, em sua maior parte, sob a influência mental e emocional das transmis-
sões efetuadas, de modo coletivo e unilateral, pelos meios de comunicação de massa.  
A liberdade de opinião na esfera pública se torna a garantia básica da liberdade de expressão, porque
é através da imprensa que a opinião pública se concretiza como uma prática comunicativa regular (MAR-
QUES, 1997). Tal concepção vai além da liberdade de expressão como direito individual. Sendo a imprensa
a mediadora das relações política e privada, então, esta liberdade relaciona, já na sua origem, uma liberdade
individual negativa e uma liberdade social positiva – como uma só dimensão, uma extensiva à outra: a liber-
dade de expressão sendo relacionada à livre manifestação de idéias e opiniões, e, a liberdade de imprensa,
aquela que media e garante a liberdade de expressão através dos meios de comunicação (MARQUES, 1997).
1. ESFERA PÚBLICA, DEMOCRACIA E DIREITO À COMUNICAÇÃO
A mídia é o âmbito em que se dá a produção e circulação de bens simbólicos, constituindo-se como
campo de embate crucial para os processos de representações sociais e formação de identidades. Situa-se,
a imprensa, no que compreende-se como esfera pública, definida por Habermas como sendo um espaço de
articulação entre a esfera privada e o Estado (HABERMAS, 1991), em que os interesses e pretensões da
sociedade civil apresentam-se discursivamente e argumentativamente, de forma aberta e racional. (GO-
MES,1998).
A esfera pública surge com a consolidação da burguesia enquanto classe. Alijada de participação po-
lítica no contexto do Estado Absolutista da Idade Moderna, subjugada pelas autoridades política e religiosa,
a burguesia, que detinha o poderio econômico, identifica, na esfera pública, um reduto onde se fará possível
o debate livre das hierarquias dominantes. Esta nova esfera, embora fosse um local de debate entre homens
privados – destituídos de poder estatal – era investida de relevância pública, passando a integrar um inter-
câmbio social extenso, induzido e controlado publicamente, tornando-se relevante e autônoma, composta
pela sociedade civil emancipada (à época, representada pela burguesia) (GOMES, 1998, p. 160).
É dessa forma, ainda de acordo com Gomes, que surge a ideia de esfera pública como um local de
mediação entre o Estado e a sociedade civil. Tornando-se instrumento essencial à tomada e à legitimação de
decisõespolíticas,diantedessenovofórumpúblico,aimprensavaiestarassociada,desdeentão,principalmente
ao espectro da opinião pública política (GOMES, 1998), de modo que a liberdade de opinião na esfera pública
passa, desde então, a ser sede da liberdade de expressão.
Inobstante, analisando as transformações da esfera pública, sobretudo a partir da segunda metade do
século XX – compondo os fenômenos de consolidação do capitalismo contemporâneo - Habermas identificará
seu desvirtuamento, com a conversão da imprensa em empresa capitalista e a transformação do “cidadão”
em “consumidor de serviços”. Sob o signo da troca de conhecimentos e intercâmbios culturais, e com a
perspectiva de domínio e expansão comerciais, houve um intenso investimento para a instrumentalização da
comunicação com o objetivo de impulsionar a economia industrializada. Thompson, por exemplo, acredita
que a mídia criou uma nova concepção de esfera pública, desterritorializada e não dialógica (1995, p.42).
Os grandes grupos de comunicação falam da liberdade de imprensa apenas quando alguma medida
estatal tenta intervir em sua produção, seja por censura ou por regulamentação. Mas esquecem-se que a
liberdade de expressão requer meios de fala, para garantir a diversidade de interesses e representação dos
diversos grupos e setores sociais. Portanto, o direito à comunicação, na sociedade contemporânea, depende
da “universalidade da liberdade de expressão individual”. Ou seja, para que o direito fundamental à liberdade
de expressão seja garantido a todos e implique no direito à comunicação, precisa ser assegurado um conjunto
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
de condições para um ciclo positivo de comunicação, cujo ponto de partida é o acesso aos meios de comuni-
cação em massa.(INTERVOZES, 2010, p. 23).
2. OS LIMITES DA CONCEPÇÃO BURGUESA DO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Em seu livro “Direito à Comunicação – possibilidades, contradições e limites para a lógica dos movi-
mentos sociais”, Renata Rolim (2011, p. 33) elucida que “Naturalizada a ordem capitalista, o uso público da
razão transformou-se em operacional de administração dos conflitos dentro dos limites das condições sociais
existentes – privilégio de uma intelligentsia capaz de traduzi-la para as massas na esperança de transforma-
-las em seres racionais”.
Ao final da batalha contra o absolutismo monárquico, que culminou no fim do antigo regime e defini-
tiva ascensão da burguesia, assistiu-se ao triunfo da concepção liberal na condução da imprensa mediante a
positivação de seus elementos essenciais para o domínio capitalista, a liberdade de publicação e de empresa.
Mediante a apropriação empresarial dos meios de produção da informação, a burguesia viabilizou a imposi-
ção temática de sua esfera pública – autonomia individual, fundada na liberdade econômica, a que deve se
submeter toda organização política – sufocando outras interpretações e projetos, intentando – sem direito ao
contraditório - a consolidação da democracia política liberal. Com a ajuda do Estado, a burguesia utilizou-se
de mecanismos restritivos para afastar os trabalhadores e a população em geral do acesso às tecnologias de
produção da informação. A ingerência estatal nem sempre é mal vista pelos defensores do free trade (RO-
LIM, 2011).
3. ESPAÇO MIDIÁTICO: CONCENTRAÇÃO, PRIVATIZAÇÃO E SEGMENTAÇÃO
Historicamente, a negação seletiva do poder de voz nos ambientes públicos de debate é utilizada como
uma eficiente ferramenta de exclusão e controle sociais. Tal restrição atua na subjetividade dos grupos que
se intenta controlar e marginalizar, vez que trabalha na perspectiva sistemática destituí-los de sua capacida-
de de argumentação, ação, reflexão e poder de auto representação, reverberando não apenas na impotência
ante a tomada desse espaço público, mas refletindo na própria identidade e auto-estima grupais. O início de
um ciclo positivo de comunicação imprescinde, portanto, da diversidade de conteúdo, e, consequentemente,
da diversidade da propriedade dos meios de comunicação (INTERVOZES, 2010, p. 23).	
Ao estudar o desenvolvimento do cenário da comunicação brasileira, Renato Ortiz (1991) marca que,
aliada ao fenômeno do capitalismo tardio, a consolidação da cultura midiática de massa ganha forma mais
definida no contexto da Ditadura Civil-Militar brasileira, entre as décadas de 1970 e 1980. Apesar do fim
de tal regime, a lógica da concessão pública de outorgas mantém uma relação muito parecida ainda hoje.
Durante o regime ditatorial, a outorga e a concessão públicas dadas a estes veículos dependiam diretamente
da relação destes com a linha ideológica ditatorial – além do crivo da própria censura, pelo qual qualquer
programação passaria, independentemente.
Apesar de a abordagem dos grandes veículos de comunicação não ser mais plenamente vertical, suas
diretrizes continuam correspondendo à manutenção dos privilégios de elites políticas e econômicas domi-
nantes, à lógica do capital, do status quo, e, como consequência, à ideologia dominante. Em um cenário em
que poucos grupos empresariais controlam as comunicações no país, vale dizer que existem outros fatores
- para além dos mecanismos de controle estatais, hoje refreados - que restringem a liberdade de imprensa –
e, consequentemente, de expressão - àqueles que não dispõem do controle sobre os meios de comunicação.
Desse modo, a censura não mais caracteriza-se como sendo monopólio do Estado, mas “também está sendo
privatizada” (LIMA, 2010, pag. 105).
Tal aparente incoerência em relação a quê/quem ameaça ou censura a liberdade de imprensa de-
monstra a necessidade do debate livre e racional acerca do tema que é de interesse público - bem como do
resgate à teoria da esfera pública. Porém, afirma Kucinski que existe a interdição a este debate por parte
da chamada grande mídia, que costuma acusar qualquer tentativa de regulação democrática do setor como
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
sendo “censura” (KUCINSKI, 2002) numa clara reivindicação da perpetuação de seu privilégio no controle
destes meios, e, por conseguinte, de controle sobre a poderosa opinião pública.
Afirma a chamada grande mídia que a regulação (qualquer que seja) representaria restrição ao di-
reito fundamental absoluto à liberdade de expressão - como se este direito lhes fosse privativo - invocando o
fantasma da censura estatal quando, em realidade, as iniciativas de regulamentar o setor vêm, de forma con-
tundente, não do Estado, ou do governo, mas da própria sociedade civil organizada, e dos movimentos sociais.
Assim, evitam que o debate floresça – o que lhes é bastante fácil, vez que detém os meios de comunicação
e “censuram” a entrada nestes desta discussão – e silenciam todos os atores políticos que pleiteiam voz e
representatividade na esfera pública, esterilizando qualquer tentativa de aprofundamento do debate através
da rotulação de “censura”, “restrição”, “repressão”. Nesse caso, o efeito silenciador vem do próprio discurso.
Em 2002, projeto inédito desenvolvido por Daniel Heinz e intitulado Donos da Mídia desvendou as
ramificações das seis principais redes nacionais de tv aberta – veículo de comunicação que exerce até hoje
papel estruturador no conjunto do mercado de mídia – quais sejam: Globo, Record, SBT, Bandeirantes,
RedeTV! e CNT. O estudo constatou que, por meio de grupos afiliados, as redes geram um vasto campo de
influência, em escala de massas, que capilariza por 294 emissoras de tv em VHF (90% do total de emissoras
do País), 15 em UHF, 122 emissoras de rádio AM, 184 de FM e 2 de rádio em onda tropical (OT), além de 50
jornais. Os 667 veículos ligados às seis redes privadas nacionais são a base de um sistema de poder econômico
e político que se ramifica por todo o Brasil e se enraíza fortemente nas regiões (HERZ, 2002).
Não é difícil concluir que, diante dos fenômenos da consolidação do capitalismo e da globalização
mundial, a comunicação é instrumentalizada para atendimento, manutenção e criação de mercados, detur-
pando seu caráter primordial, situação esta que reflete em problemas relacionados à representatividade quais
reverberarão nas esferas políticas e pessoais dentro da sociedade.
4. LIBERDADE DE IMPRENSA X DIREITO À COMUNICAÇÃO
Na maioria dos países latino-americanos, a mídia desenvolveu-se com o apoio de governos autoritá-
rios, tendo a lógica do capital como embasamento para sua ampliação. Toda a infraestrutura necessária para
a expansão do rádio e da televisão foi promovida por tais governos, quais limitaram aos movimentos populares
o acesso às tecnologias de produção da informação, enquanto viabilizavam a adoção de políticas neoliberais
que intensificaram as economias de escala e a maior integração e dependência do setor em relação ao siste-
ma global comercial (ROLIM, 2011).
Na América Latina, foi adotado o free flow of information, isto é, a versão informacional da livre cir-
culação de capitais. Na década de 80, quando esse modelo foi implantado, apenas cinquenta corporações
globais dominavam quase todos os meios de comunicação existentes, número este que foi, ainda, diminuindo
com a chegada dos anos 90, em que apenas oito corporações detinham tal domínio - obtido através de estra-
tégias de desestatização das telecomunicações, como a permissão de investimentos estrangeiros e a liberali-
zação da propriedade de meios audiovisuais (ROLIM, 2011).
O free flow information ocasionou a diminuição do espaço para a criação de meios de comunicação
mais democráticos e de produções que não se adequam ao retorno de capital imediato, sendo responsável por
tornar vulnerável o mercado de trabalho da indústria cultural latino-americana em relação à concorrência
com os países centrais. O que é produzido pelos grandes grupos midiáticos tem como principal escopo a dis-
tração da audiência para o retorno econômico imediato, de modo que o processo comunicacional não reflete
a experiência social destes indivíduos (ROLIM, 2011).
5. O DIREITO À COMUNICAÇÃO NA AMÉRICA LATINA
Segundo Paulo Freire, não há possibilidade de haver comunicação dentro de uma via de mão única,
uma vez que a comunicação se constrói na busca de significação dos significados entre os interlocutores. De
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
acordo com a sua teoria da comunicação “somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz, tam-
bém, de gerá-lo. Sem ele não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação” (PAULO FREIRE,
1970, p. 83). A comunicação, portanto, não deve ser vista como relação entre um sujeito ativo e outro passivo,
mas implica numa reciprocidade que não pode ser rompida.
 O direito à comunicação, no entanto, sempre encontrou barreiras nos oligopólios midiáticos. Esses
grupos são responsáveis por adotar estratégias de censura à liberdade de informação, quando, por exemplo,
têm o poder de decidir o conteúdo que irá ou não ser veiculado em seus domínios (DÊNIS DE MORAES,
2013), bem como quando são capazes de silenciar as vozes que fazem oposição a seus interesses políticos.
Nos países latino-americanos, a adoção de políticas públicas foi de grande importância para possibi-
litar um maior acesso ao direito à comunicação - imprescindível que tais medidas viessem acompanhadas
da desconcentração do espaço midiático (DÊNIS DE MORAES, 2012), cedendo espaço a vozes contra he-
gemônicas. Devido ao seu contexto social e político, a Argentina é hoje um dos países que adotou de forma
bastante satisfatória a ampliação do direito à comunicação.
Dênis de Moraes (2011) em seu livro Vozes da América Latina aborda como as políticas públicas
devem direcionar-se à redefinição do setor de mídia em bases mais equitativas, tornando as relações mais
simétricas, combatendo os privilégios que vêm favorecendo a iniciativa privada. Aponta como as campanhas
opositoras orquestradas pelas elites empresariais detentoras do oligopólio midiático combatem a referida
diversificação da radiodifusão sob concessão pública, objetivando a manutenção de seus privilégios. Essas
campanhas denunciam uma suposta ameaça à liberdade de expressão imposta pelos governos progressistas,
reduzindo a liberdade de expressão à liberdade de imprensa e, esta, à liberdade de empresa.
A efetivação do direito à comunicação na América Latina nas décadas de 1960 e 1970 era pretendida
a partir da criação de meios de comunicação alternativos, em que a propriedade e o controle seriam coletivos,
a partir da ampla participação na elaboração da programação. Na Venezuela foram implementados progra-
mas de incentivo às rádios e TVs comunitárias; na Bolívia, Evo Morales estimulou as rádios comunitárias
doando equipamentos e isentando-as do pagamento da licença e uso das frequências. Um fato importante a
ser destacado foi a criação da TELESUR, composta pela Argentina, Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua e Ve-
nezuela. Trata-se de uma empresa pública multiestatal que tem como escopo a integração dos povos latino-a-
mericanos e que pretende ser uma alternativa ao discurso das corporações midiáticas (DÊNIS DE MORAES,
2011). Desse modo, as políticas públicas desses governos progressistas além de apoiarem os meios que não
atendem à lógica do capital e uma nova configuração do serviço público de radiodifusão, também ajudam na
difusão de conteúdos com incentivo à produção cultural e o estímulo à indústria audiovisual nacional.
5.1 O CASO DA ARGENTINA
Considerado um dos primeiros países a reformular seu marco regulatório da comunicação, a Argenti-
na tornou-se referência para aqueles que lutam pela democratização da mídia. Dentre os países latino-ame-
ricanos a Argentina era o que adotava políticas neoliberais mais rigorosas, onde os processos de concentração
econômica tiveram grande avanço, além da desnacionalização do espaço midiático. Consequência disso foi a
concentração desses meios nas mãos dos dois maiores grupos presente no país, ADMIRA e Clarín, responsá-
veis por retransmitir várias produções importadas dos Estados Unidos.
Durante a redemocratização do país, no entanto, houve diversas tentativas de diversificação do es-
paço midiático, num longo processo que teve a sua culminância na promulgação de novo marco regulatório.
Vários movimentos sociais, comunitários e sindicatos uniram-se em torno da Coalizão por uma Radiodifusão
Democrática (CRD), a fim de atuar pela democratização dos meios de comunicação (BRÁULIO RIBEIRO,
2012). Esse projeto teve grande apoio da população, que se organizou em diversos atos, e, posteriormente, foi
apoiado pela presidente Cristina Kirchner. Tal apoio acarretou o embate direto entre o governo e os grupos
midiáticos, devido ao fortalecimento da crise política.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Os oligopólios midiáticos se utilizaram das medidas adotadas para acusar Kirchner de atentar contra
a liberdade de imprensa e de expressão, enquanto os setores populares e seus aliados que ansiavam pela de-
mocratização dos espaços midiáticos demonstraram apoio à continuidade do governo, organizando protestos
decisivos para a aprovação do marco regulatório.
5.2. LEI DE MEIOS
A Lei n. 26.522/2009, conhecida como a Ley de Medios, reorganizou o espaço midiático através da
desconcentração da concorrência, permitindo que outros atores obtivessem concessões para produzirem
outros conteúdos audiovisuais, não necessariamente alinhados com a ideologia dominante. Importante citar
as soluções normativas encontradas para equilibrar a democratização da mídia com os mecanismos de pro-
dução comuns do modo de produção capitalista.
A lei de meios pretendeu regular os critérios de outorga de licenças e operação, bem como o monito-
ramento da qualidade do serviço e do atendimento a critérios de pluralismo (LINS, 2009). Para garantir um
amplo acesso aos meios de comunicação foram tomadas medidas com o intuito de inibir a sua concentração.
Dentre elas, encontra-se a limitação do número de outorgas de licenças – quais são concedidas através de um
processo licitatório. Essas licenças passaram a ter um prazo de 10 anos, podendo ser renovadas uma única
vez; findo o prazo da renovação passou a ser necessário outro processo licitatório, havendo a possibilidade de
que antiga outorgatária concorra em condições de igualdade com outros pleiteantes (LINS, 2009).
Alguns artigos da lei tornaram-se os mais polêmicos por impor limites à concessão de faixas de radio-
difusão e audiovisual a grupos empresariais. Visando a coibir a tendência concentradora vigente no sistema
privado, a lei estabeleceu dois limites: o primeiro deles é o número de licenças e o segundo é a cota de mer-
cado. Outra exigência da lei é a proibição da coexistência de vínculos societários entre empresas de radio-
difusão, agências de publicidade e de jornais e revistas, como forma de impedir os processos de integração
vertical e horizontal.
A lei estabelece, a nível nacional, um limite de uma licença de radiodifusão por satélite, e até 10 li-
cenças de serviços de comunicação audiovisual por radiodifusão. A nível local, são estabelecidos os limites de
uma única licença de radiodifusão sonora em AM, uma única em FM, ou até duas, se houver mais de oito
emissoras na localidade. Quando se tratar da única frequência disponível, não pode ser outorgatário quem já
tenha outorga na mesma área ou em áreas adjacentes (LINS, 2009). Quanto à cobertura, as licenças conce-
didas estão proibidas de atingir um número superior a 35% da população. Como restrição à formação de re-
des, passou-se a exigir autorização formal do governo para que uma emissora atue como afiliada a uma rede.
A Ley de Medios reconheceu a importância das emissoras comunitárias, que deixam de sofrer res-
trições com o advento da lei, cabendo a elas 33% de todas as frequências de radiodifusão. Além disso, não
sofrem com restrições geográficas de alcance ou de temática e recebem autorização para se constituírem em
redes, desde que observadas as cotas de programação (ROLIM, 2011).
A fim de que a Lei de Meios pudesse ter sua efetivação garantida, foram criadas entidades regulado-
ras para atuarem de modo conjunto com a autoridade competente na matéria de telecomunicação. A Autori-
dade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (Afsca) tem como escopo a interpretação e a aplicação
da lei com independência orçamentária e administrativa em relação ao governo nacional (ROLIM, 2011).
Tem como objetivos a melhoria da qualidade técnica dos serviços de radiodifusão, a igualdade de acessos e
a pluralidade de informações, bem como o controle da programação, a avaliação do conteúdo, bem como a
fiscalização, identificação de infrações e aplicação das sanções adequadas (INTERVOZES, 2010).
Embora a Lei de Meios seja reconhecida por abrir espaço para novas vozes e ser reconhecida como
uma das leis mais avançadas do mundo, ainda sofre bastante com entraves impostos tanto pelo Judiciário
quanto pela resistência por parte dos grandes grupos midiáticos. Mauricio Macri, que assumiu a presidência
da Argentina, atendendo a interesses dos grupos midiáticos, em 15 dias de mandato emitiu decretos presi-
denciais considerados nocivos para os ganhos já obtidos em relação ao direito à comunicação (INTERVO-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
ZES, 2016). O último decreto modificou profundamente o que estava previsto na Lei de Meios, ampliando
a quantidade de licenças permitidas para cada empresa e acabando com o alcance máximo de 35%, que se
trata de uma restrição à oligopolização do setor (REVISTA FÓRUM, 2016).
6. SISTEMA PÚBLICO DE COMUNICAÇÃO
O horizonte da mídia pública como sistema comunicacional engloba a quebra do paradigma da comu-
nicação como atividade comercial direcionada à obtenção de lucro para proprietários privados ou acionistas,
e, ao mesmo tempo, com a “alternativa” a esse sistema estatista que proponha a excessiva ingerência e domí-
nio governamentais. Intenta-se promover a participação pública, de cidadãos, no gerenciamento do sistema
comunicacional, forjando-o cada vez mais autônomo, sendo justamente essa a medida do caráter realmente
público que é capaz de atingir: a autonomia em relação ao mercado e ao Estado e, como condição essencial,
a abertura à participação, com poder deliberativo, ao cidadão (PEREIRA, 2011).
Quando se fala em sistema público de comunicação pensa-se justamente em um conjunto de mídias
públicas (nos diversos suportes, como rádio, televisão, internet etc.) que operam de modo integrado e sistê-
mico, tendo como horizonte o interesse dos cidadãos. Instituições de mídia cujos financiamentos se baseiam
na comercialização de sua audiência no mercado publicitário não podem encaixar-se nesta categoria. E, se
a agência pública de comunicação necessita de autonomia frente ao mercado, necessita também de inde-
pendência face às influências políticas governamentais para cumprir o seu papel de servir ao interesse dos
cidadãos.
Meios de comunicação de massa financiados por dinheiro público e livre do controle privado comer-
cial tem sido um modelo de comunicação bastante explorado e consolidado na maioria das democracias mo-
dernas. Segundo pesquisa realizada no ano de 2006 em sete países (França, Coréia do Sul, Alemanha, Reino
Unido, Itália, Estados Unidos e Japão) pelo Instituto NHK de Pesquisa em Radiodifusão (NHK Broadcasting
Culture Research Institute, 2006), 4 em cada 5 cidadãos consideram necessário existir um sistema público
de comunicação. Em países como Alemanha, Japão e Reino Unido – onde há cobrança de imposto específico
que financia mídias públicas – 60% dos entrevistados consideraram importante pagar este tipo de tributo
para sustentar tais corporações.
No Brasil, o tema da democratização da mídia ainda é tratado como uma espécie de tabu, o que se
dá, em parte, pelo fato de ter sido este debate abafado durante quase todo o século XX. Principalmente sob
o incentivo do regime militar, após os anos 60, o país desenvolveu um sistema de comunicação de perfil
majoritariamente comercial. Tal realidade fez com que, no Brasil, pouco se saiba sobre o real papel da mídia
pública (PEREIRA, 2011).
A sociedade brasileira convive com o modelo comercial achando que ele é
único, o que impede qualquer reivindicação transformadora. As iniciativas
de radiodifusão pública que surgem a partir do final da década de 1960 no
Brasil são tímidas e sem forças para concorrer com o modelo hegemônico es-
tabelecido. Sofrem da falta de recursos, das ingerências político-partidárias e
da ausência de programas de ação de médio e longo prazo. Além das pressões
abertas ou veladas dos radiodifusores comerciais contra uma possível concor-
rência do modelo público (LEAL apud PEREIRA, 2011, p. 4).
A despeito da negligência do Estado e das políticas públicas mesmo no período em que se vivenciou
a redemocratização do país após o término da Ditadura Militar, o projeto de um sistema público de comuni-
cação ganhou novo fôlego nas décadas subsequentes e culminou na criação da Empresa Pública de Comu-
nicação (EBC) através do Decreto Presidencial 6.689 de 11 de dezembro de 2008. Em seu artigo primeiro, o
decreto estipula que a EBC é “uma empresa pública, organizada sob a forma de sociedade anônima de capital
fechado, vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República” (BRASI, 2008).
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Dentre as finalidades da Empresa Pública de Comunicação, elencadas pelo art. 2º do Decreto nº
6.689, de 11 de dezembro de 2008, estão a complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal;
a promoção do acesso à informação por meio da pluralidade de fontes de produção e distribuição do conte-
údo; a produção e programação com finalidades educativas, artísticas, culturais, científicas e informativas;
a promoção da cultura nacional, estímulo à produção regional e à produção independente; a autonomia em
relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema públi-
co de radiodifusão; e, finalmente, a participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do
sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira (BRASIL, 2008).
Intimamente ligado ao problema da blindagem em relação a interesses de natureza partidária ou
privada, isto é, da autonomia e independência de uma mídia efetivamente pública, está o problema da legiti-
midade democrática, que remete à questão da participação. A Empresa Brasil de Comunicação possui uma
instância deliberativa (Conselho Curador) que tem as prerrogativas de aprovar o plano de trabalho anual da
empresa, bem como a sua linha editorial, fiscalizando e fazendo recomendações de acolhimento obrigatório
pela diretoria executiva da organização. O Conselho Curador da EBC é composto por 22 membros. São 15 re-
presentantes da sociedade civil (indicados pelo presidente da República nesta primeira gestão), 4 do Governo
Federal (representantes dos ministérios da Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia e Comunicação Social,
também indicados pelo Executivo Federal), 2 do Congresso Nacional (Câmara e Senado) e 1 dos funcionários
da empresa. Os membros têm mandato de quatro anos, com possibilidade de renovação a cada dois anos. A
legislação também prevê que a renovação das vagas dos representantes da sociedade civil será feita através
de uma consulta pública – apesar disso, o formato desta consulta ainda não está definido.
A existência de uma instância mista e com poder de decisão na EBC é significativamente positiva,
mas ainda é necessária a qualificação do modo de escolha de seus membros – o atual modelo é frágil e omisso
quanto aos critérios de indicação, o que põe em xeque a necessária autonomia da agência. A falta de objetivi-
dade na escolha dos componentes do órgão deliberativo acaba revestindo de personalismo as indicações a se-
rem feitas pelo Presidente da República, o que, por sua vez, faz com que tal instância passe a ser influenciada
por uma política de governo e não por uma política de Estado, como deveria ser e como acontece nos países
onde o sistema é mais consolidado (VALENTE, 2011). Necessário seria que esta instância fosse composta por
representantes indicados por um maior número possível de entidades da sociedade civil, algo que seja aberto
a ponto de garantir que o Conselho tenha proporcionalidade regional, diversidade de segmentos, pluralidade,
onde todos os setores como cinema, audiovisual, cultura se sintam representados.
Além das emissoras educativas-estatais e aquelas ligadas a fundações civis sem fins lucrativos, dois
outros segmentos também entram no debate sobre o campo público de comunicação: as emissoras univer-
sitárias e os canais comunitários de rádio e TV. Embora sustentem formatos bastante distintos de conteúdo
e transmissão, ambos os segmentos se vinculam ao campo através de sua aproximação com as comunidades
ou nichos públicos em que atuam, seja as comunidades universitárias, as comunidades de bairros urbanas
ou em pequenas localidades do interior e povoados rurais.
Os canais comunitários, de suma importância para a consolidação de uma mídia democrática e po-
pular, caracterizam-se por sua aproximação com o campo público, e em sua forma de gestão enraizada nas
comunidades. Seu caráter eminentemente comunitário, tanto no protagonismo para a criação de conteúdo
quanto em sua natureza autóctone, diferencia-as em relação aos demais veículos públicos de comunicação,
em razão da relação orgânica que possuem com o entorno – o que significa estar abertas à participação de
moradores e movimentos sociais da localidade, garantir o contraditório e a pluralidade de opiniões, prestarem
serviços de utilidade pública, estar comprometida com as lutas e demandas da comunidade (SÓTER apud
PEREIRA, 2009).
Peruzzo (1991, p. 162) defende que a participação na comunicação popular é fundamental para o
processo emancipatório, qual contribui para cidadania e possibilita ao homem tornar-se sujeito. A necessida-
de de conscientização e mobilização popular implica na demanda por meios de comunicação populares, aces-
síveis, a fim de que a prática comunicacional seja experienciada enquanto dinâmica social transformadora,
atuando simultaneamente como meio de conscientização, mobilização, educação e agenciamento cultural.
126
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
É esse processo de construção da cidadania que propicia e aponta para o desenvolvimento local, mediante a
combinação eficiente das potencialidades de cada território, de seus recursos e de sua força empreendedora.
CONCLUSÃO
Objetivo deste trabalho foi identificar, na teoria e na prática, o direito fundamental à liberdade
de expressão e a inter-relação que este possui, numa realidade midiatizada, com o direito à
comunicação. Como poderia se desenvolver democraticamente ao prescindir do acesso aos ve-
ículos através dos quais essa comunicação se dá? Intentou-se discutir, portanto, a situação da
comunicação – enquanto direito - em um cenário em que poucos grupos empresariais contro-
lam os veículos de imprensa no país, privatizando e restringindo o acesso a um espaço de fala
qual se constitui como principal lócus de desenvolvimento da própria opinião pública.
Ademais, objetivou-se compreender de que forma poderia se desenvolver um marco re-
gulatório para a comunicação no Brasil, por meio do qual fossem regulamentados os artigos 5,
21, 220, 221, 222 e 223 da Constituição Federal, efetivando a força normativa constitucional
por eles ostentada, promovendo o direito à comunicação como direito fundamental e corolário
da liberdade de expressão, para que a comunicação social seja orientada por princípios outros,
devidamente positivados em conformidade à exegese constitucional, que não o poderio econô-
mico e político dos locutores.
Desde 2013, movimentos sociais, organizações que compõem o Fórum Nacional pela Democratiza-
ção da Comunicação (FNDC) e ativistas pelo direito à comunicação, recolhem assinaturas para apresentação
ao Congresso de um projeto de lei de iniciativa popular para a criação de um marco regulatório para a comu-
nicação no Brasil, que regulamenta os artigos 5, 21, 220, 221, 222 e 223 da Constituição Federal. Inspirada
nos tratados internacionais já ratificados pelo Brasil e em experiências regulatórias de países como a França e
a Espanha, a Lei da mídia democrática propõe mecanismos de implementação dos mencionados dispositivos
constitucionais, quais são objeto de retumbante omissão legislativa, carecendo de legislação infraconstitucio-
nal que os regulamente. Entre os principais dispositivos presentes no projeto de lei estão o veto à propriedade
de emissoras de rádio e TV por políticos, a proibição do aluguel de espaços da grade de programação, a defi-
nição e delimitação de regras para impedir a formação de oligopólios, a criação de um Conselho Nacional de
Comunicação e de um Fundo Nacional de Comunicação Pública.
Para além da elaboração de um novo marco regulatório que reorganize a comunicação como um todo,
uma série de propostas e teses vem sendo publicadas por instituições, associações e movimentos sociais sobre
o tema “sistema púbico de comunicação”. É possível listar alguns horizontes ou diretrizes que vem sendo
apontadas e reforçadas através dessas manifestações: ampliação do número de emissoras e fortalecimento
das já existentes no campo público (estatais, culturais, comunitárias, educativas); aumento da participação
civil nas empresas públicas de comunicação, através de instâncias deliberativas, com participação de repre-
sentantes da sociedade civil criteriosamente estabelecida e objetivada; estipulação de metas em torno de
percentuais a serem cumpridos quanto ao desenvolvimento entre os sistemas público, privado e estatal (seja
através de cotas na concessão de canais, seja através de fomento e políticas públicas de desenvolvimento para
atingir tal equilíbrio); fomento à produção independente e fortalecimento da cadeia produtiva entre os canais
e emissoras do campo público; criação de fundos para fomento do sistema público de comunicação; criação
de tributos ou redirecionamento de tributos já existentes para financiamento direto da comunicação pública;
tributação do sistema comercial para financiamento do sistema público, dentre várias outras.
Segundo GRAMSCI (2002), o enfrentamento da hegemonia só é possível quando o grupo social su-
balternizado possui condições de superar seus patamares de subalternidade até que seja capaz de “sair da
fase econômico-corporativa para elevar-se à fase da hegemonia político-intelectual na sociedade civil e polí-
tica” (1999, p. 460). Ao identificar o poder de palavra e da participação nos meios de políticos, grupos histo-
ricamente excluídos da esfera pública e, consequentemente das decisões políticas, através da comunicação,
são capazes de mudar a estrutura das representações sociais e mobilizar debates e iniciativas, integrando, de
fora efetiva, as movimentações populares que lutam por transformação social.
127
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
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129
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
LIBERDADE RELIGIOSA:
UMA ABORDAGEM DO PONTO VISTA DAS RELAÇÕES ENTRE OS MODELOS DE ESTADO E IGREJA E O
CASO LAUTSI CONTRA ITALIA
CAMILA LEITE VASCONCELOS
Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2015). Especialista em
Direito Processual pela Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes. Professora
Universitária
SUMÁRIO: Introdução; 1. Modelos de estado e igreja e sua relação com a liberdade religiosa; 2.
Lautsi contra Italia: sobre a liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do esta-
do; Conclusão. Referências.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por finalidade analisar as relações entre o Estado e o direito constitucional
de liberdade religiosa a partir dos artigos dos professores Winfried Brugger e José Ignacio Solar Cayón.
Winfried Brugger identifica e descreve seis tipos de relações entre Estado e Igreja, quais sejam: hos-
tilidade agressiva, separação rígida na teoria e na prática, separação e alguma acomodação, divisão e coope-
ração, unidade formal, unidade material entre Igreja e Estado.
O referido autor aborda de maneira mais intensa os modelos da separação rígida na teoria e na práti-
ca, separação e alguma acomodação, divisão e cooperação e unidade formal, pois entende que a hostilidade
agressiva e a unidade material entre Igreja e Estado estão em contradição com o Direito Constitucional e o
Direito Internacional, bem como promovem discriminação e coação. Após explanar todas essas relações, o
professor Brugger fundamenta a exclusão do primeiro e do sexto modelos no direito moderno.
No final do artigo o autor também destaca as decisões proferidas pelas Cortes Constitucionais nos
hard cases, apontando semelhanças e diferenças entre os modelos 2 e 5.
O artigo escrito pelo professor José Ignacio Solar Cayón, denominado Lautsi contra Itália: sobre a
liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do Estado, tem como objeto analisar os
fundamentos da decisão definitiva do Tribunal Europeu de Direitos Humanos no que diz respeito a presença
de crucifixos em salas de aula italiana e tenta demonstrar as discrepâncias existentes provocadas pela Corte.
1. MODELOS DE ESTADO E IGREJA E SUA RELAÇÃO COM A LIBERDADE RELIGIOSA.
Na introdução do artigo de Brugger consta que a disputa entre o catolicismo e o protestantismo termi-
nou se estendendo para uma questão política, e a busca pelo domínio político e religioso tornou impraticável
a formação de relações pacíficas. Em razão disso, o mundo vivenciou grandes guerras e catástrofes civis.
Nesse período Igreja e Estado se confundiam enquanto instituições legítimas de poder em que ambas
tinham pretensões em normatizar e regular o corpo e a mente dos sujeitos, detendo assim o monopólio da
violência simbólica no campo social.
130
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
No Brasil, a Constituição de 1824 adotou o catolicismo a religião oficial do país, conferindo a Igreja
Católica os mesmos poderes e prerrogativas da época do império, o que evidencia que nesse período histórico
a separação entre Igreja e Estado praticamente não existia e consequentemente não havia liberdade religiosa
enquanto direito subjetivo. Somente era tolerada manifestações de outras religiões em espaços privados ou
domésticos, não sendo possível aos indivíduos exercerem publicamente qualquer outra religião que não fosse
a católica. (EMMERICK, 2010)
Com o passar dos anos pareceu inevitável a necessidade de fazer a política se preocupar tão somente
com aspectos mundanos voltados para o bem estar, enquanto que a religião se dedicaria apenas a obtenção
da salvação eterna sem utilizar o Estado como meio de impor a religião preferida do poder político. Esse mo-
vimento de divisão estrutural dos assuntos pertinentes ao Estado e à Igreja ficou bastante evidente na maioria
dos Estados da Europa e nos Estados Unidos.
Outrossim, a busca pela salvação eterna deveria partir da consciência de cada individuo, declarando-
-se religioso ou não pautado no principio da liberdade. Para tanto, as constituições modernas separaram as
áreas de domínio do Estado e da Igreja por meio de uma norma estrutural e inserem a liberdade religiosa no
capítulo dos direitos fundamentais.
O referido autor cita exemplos clássicos como o da primeira emenda da Constituição dos Estados
Unidos, a qual definiu que “O Congresso não deve elaborar lei relacionada ao estabelecimento da religião,
ou à proibição do seu exercício…”. Verifica-se nesse texto legal tanto uma distinção estrutural no tocante a
definição do campo de atuação do Estado e da Igreja como também a questão da liberdade religiosa. A Consti-
tuição de Weimar também é citada como exemplo ao contemplar o direito de liberdade de confissão religiosa
e ao explicitar que não existe uma igreja do Estado.
De acordo com as palavras de Brugger, a proteção da liberdade religiosa passou a compreender a
liberdade de pensamento, de consciência e religiosa, o direito a mudar de religião e de ideologia, a liberdade
do exercício dessas atividades de forma individual ou coletiva, em que se abrangem o culto ou a missa, o en-
sinamento e o respeito pelos costumes religiosos.
Desse modo, o Estado de Direito ocidental passou a ser distinguido por meio da liberdade religiosa
como instrumento de combate contra a coerção do Estado no tocante a essas relações contenciosas e tam-
bém por meio de uma divisão estrutural do campo de domínio pertencente ao Estado de um lado e a Igreja
do outro.
O primeiro modelo da relação entre Estado e Igreja citado no artigo de Brugger é o da Hostilidade
Agressiva entre Estado e Igreja. Essa relação se caracteriza pela adoção de atitudes hostis contra reli-
giões e igrejas por parte de alguns países. Em outras palavras seria dizer que o regime político de um país
pode ser instituído eliminando as religiões e as igrejas, propagando um ateísmo e introduzindo na mente dos
sujeitos uma “ideologia cietífico-materialista”.
Nesse contexto, a hostilidade imposta contra a Igreja a impede de participar dos assuntos políticos e
estatais, fazendo reinar um Estado tipicamente totalitário, tendo em vista que na medida que o Estado proíbe
o indivíduo escolher uma religião, ele termina infringindo o princípio da liberdade religiosa.
O segundo modelo introduzido pelo autor seria o da Separação Rígida na Teoria e na Prática.
De acordo esse modelo, deveria haver uma total separação espacial nas relações entre Estado e Igreja, de
modo que por meio de uma parede se evitaria o envolvimento de Igrejas na esfera pública e organizacional.
Como exemplo, Brugger cita o caso norte-americano Everson v. Board of Education, em que os alu-
nos de orientação religiosa cristã não podiam utilizar o transporte de ônibus custeado pelo Estado para se
deslocarem até a escola por violar a cláusula da primeira emenda da Constituição norte-americana.
Assim, vejamos o que diz o mencionado professor em torno da separação rígida:
131
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Só por meio de um respeito rígido [do dever de separação], o Estado pode
preservar sua neutralidade e, unilateralmente, impedir o partidarismo com
as disputas, que se originam inevitavelmente quando grupos religiosos con-
correm entre si para obter fundos do Estado para a educação e aulas religio-
sas ou outras atividades federativas, sejam essas diretas ou indiretas. (BRU-
GGER, 2010, p.18)
Portanto, esse modelo se caracteriza por uma separação rígida em que as mensagens de conteúdo se
referem ao bem estar, com resultados para uma área privada e pública de uma liberdade religiosa forte e no
âmbito estatal se verifica uma liberdade religiosa negativa maximizada contra paternalismo.
O terceiro modelo diz respeito a Separação Rígida na Teoria, Acomodação na Prática. Ou seja,
seria uma visão mais moderada quando comparada ao segundo modelo. Nesse sentido, a separação entre
Estado e Igreja por meio de uma parede não seria tão espessa e densa.
Segundo esse modelo, o Estado tinha que se manter neutro perante as Igrejas, mas ao mesmo tem-
po essa neutralidade não poderia se transformar em uma hostilidade, de modo a não prejudicar a liberdade
religiosa.
O teste “Lemon”, desenvolvido pela Corte Americana em 1971 prevê que a “lei precisa ter uma fi-
nalidade legislativa secular, o efeito primário não pode promover e nem prejudicar a religião e a lei não pode
conduzir a um excessivo almagamento entre governo e religião”. Ao final, reza que “haverá inconstituciona-
lidade se só um dos critérios também não for satisfeito”.
O quarto modelo foi intitulado por Brugger como Divisão e Cooperação. Nesse modelo não existe
a parede separando espacialmente a Igreja e o Estado, pois o que há é uma cooperação entre eles em deter-
minadas áreas.
Essa relação se caracteriza pelo fato do Estado e da Igreja serem titulares de direitos fundamentais
de um lado e do outro a organização do Estado tem o dever de direitos fundamentais. A igreja não pode se
formar de cima para baixo, ou seja, não pode se formar a partir do Estado. Ela tem que se instituir de baixo
para cima através dos fieis e dos militantes.
Não há uma separação total entre o Estado e a religião, em que se faz presente a coordenação mútua
nos trabalhos em conjunto.
O exemplo trazido pelo autor para visualizar esse modelo em termos práticos é a possibilidade de se
ter aulas de religião nas escolas públicas e de se conferir status de entidade de Direito Público a determinadas
sociedades religiosas.
O quinto modelo é a Unidade Formal da Igreja e do Estado com Divisão de Conteúdo. Esse
modelo se concretiza quando há a criação de uma igreja estatal ou quando se adota uma igreja nacional. Nas
palavras de Brugger, vislumbra-se esse modelo quando “a entidade política constitui formalmente uma igreja
estatal ou, de outra forma reconhecível, se identifica, como Igreja nacional, com uma determinada Igreja”.
São características da Unidade Formal da Igreja e do Estado com Divisão de Conteúdo:
(1) Ambas as entidades configuram basicamente suas próprias organizações.
(2) Elas buscam diferentes objetivos (bem estar versus salvação). (3) Elas
chegam às suas próprias decisões. (4) A Igreja não é um poder do Estado no
sentido estrito, não pode, portanto, exercitar qualquer coação dura do ponto
de vista externo. (5) A liberdade de crença e de religião de todos os fiéis e
infiéis é fundamentalmente respeitada”. (BRUGGER, 2010, p.21)
De acordo com o autor, países escolhem esse tipo de modelo com o intuito de se manter uma tradição
religiosa na comunidade, com cautelas para que isso não se transforme em imposição e consequentemente
132
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
ferir a liberdade de confissão religiosa. No caso de Israel, a adoção desse modelo de Unidade Formal com
divisão de conteúdo seria para proteger os judeus espalhados pelo mundo inteiro e seu território.
Esse modelo confere um tratamento diferenciado aos fies da igreja nacional/estatal, diferindo diante
da situação dos direitos fundamentais constitucionais de cada Estado. O autor cita os principais níveis de
diferenciação, quais sejam: diferença apenas simbólica (onde não há tratamento diferenciado entre fiéis e
infiéis), diferenças consideradas “suaves” como, por exemplo, os incentivos financeiros conferidos a Igreja
Estatal e as diferenças “duras” como proibir infiéis de assumirem cargos públicos.
O sexto e último modelo identificado por Brugger é Unidade Material e Formal entre Igreja e
Estado. Nesse modelo não mais se visualiza aquela divisão estrutural entre Estado e Igreja, ao contrário, “o
imperativo jurídico é, portanto, em muitos casos, o imperativo religioso e, tendencialmente, a violação jurídi-
ca também é um pecado”. Portanto, não há separação entre o Estado e a Igreja.
Faz-se presente a desvalorização da liberdade religiosa negativa, em que o Estado passa a ficar vincu-
lado a Igreja, aproximando-se de uma teocracia. Há uma obrigatoriedade da população adotar e permanecer
na religião oficial, não podendo contradizer os mandamentos religiosos. Outras religiões não são tratadas
igualmente, ocorrendo coação e discriminação dos fiéis que não adotam a religião oficial.
Brugger cita como exemplo a decisão da Suprema Corte do Paquistão. Em suma, Corte entendeu
que:
O Direito Islâmico ou Sharia é o Direito de maior hierarquia no País, e qual-
quer forma de elaboração de lei, inclusive a Constituição, a ele se submete.
O Direito Islâmico é o Direito conhecido e estabelecido, que não pode ser
aplicado sem modificação ou ajuste, a fim de responder a todos os problemas,
com os quais um Estado Moderno se confronta, inclusive com os assuntos de
governabilidade constitucional e direitos individuais fundamentais. As pres-
crições dos direitos humanos internacionais estão sujeitas aos ditames do Di-
reito Islâmico e, por isso, são irrelevantes com relação a questões pertinentes
à liberdade religiosa num Estado muçulmano. (BRUGGER, 2010, p. 23)
No tópico II do seu artigo, Brugger ressalta a necessidade de se excluir o primeiro e o último modelo
no Direito Moderno, uma vez que o primeiro modelo não se distancia tanto assim do sexto, pois não pode ser
negado ao indivíduo o direito e a liberdade de escolher uma determinada religião. Impor uma religião é tão
hostil quanto impedi-lo de eleger uma. Quando o Estado prega um ateísmo excessivo ou impõe uma religião
estatal, ele termina se transformando em um Estado Totalitário.
No item III, o autor faz uma análise do sistema do quinto modelo de unidade formal. Para ele, esse
sistema se adequa bem a organizações estatais que necessitam da religião como instrumento para se promo-
ver uma liberalização e pluralização pacífica das religiões.
O fundamento para esse tipo de sistema ainda se manter presente é justamente a garantia da liber-
dade religiosa como direito humano de todos os fieis e infiéis. Tal sistema de unidade formal pode ser visto
na Grécia e no Reino Unido.
No tópico IV, Brugger procura promover a estrutura da ponderação nos modelos 02, 03 e 04 de se-
paração e de divisão. Para esse professor, esses modelos seriam a melhor forma de organização da relação
Estado x Igreja. Vejamos:
À separação estrutural de Estado e Igreja, ou melhor, de religiões corres-
pondem os padrões de independência, neutralidade, tratamento igual e não-
-identificação. No caso dos direitos fundamentais, o modelo de separação
conduz à liberdade religiosa, como direito de liberdade, com a exclusão da
coação à religião, e à igualdade religiosa, com o mandamento da não-discri-
minação. (BRUGGER, 2010, p.25)
133
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A aplicação das características de um determinado tipo de modelo de relação entre Estado e Igreja a
um caso concreto por parte dos tribunais vai depender do “texto Constitucional, da situação histórica inicial,
do ambiente político, da compreensão de integração, do teste jurisdicional para a interpretação das normas
relativas ao Estado e à Igreja, e da própria compreensão passiva e ativista dos tribunais constitucionais”.
Por isso, o autor defende que a jurisprudência poderá orientar e analisar o conflito, esclarecendo to-
das as vantagens e desvantagens ao se escolher aplicar determinado modelo de sistema relacionado a Estado
e Igreja. Contudo, essa atividade deve ser feita de forma limitada, de modo que ninguém melhor do que os
julgadores que vivem dentro daquele Estado para avaliar a melhor solução a ser aplicada ao caso concreto.
Na parte final do artigo, o autor traz casos reais que foram objeto de análises por parte de Cortes
Constitucionais.
De acordo com a Corte Constitucional Americana, aulas de religião não devem ocorrer em escolas
públicas, fazendo-se presente uma parede para separar espacialmente e de forma rígida as relações entre
Estado e Igreja. Por outro lado, servidores públicos podem dar aulas de disciplinas leigas tanto em escolas
públicas quanto em escolas particulares e o Estado pode financiar livros para ambas as escolas, verificando
assim a inexistência de qualquer tratamento desigual.
O servidor público ao ingressar no serviço não precisa fazer o juramento para não prejudicar a liber-
dade religiosa e por haver a separação rígida entre Estado e Igreja.
No que diz respeito ao uso de símbolos religiosos por parte do Estado, há um debate acalorado entre
os defensores do modelo de separação rígida e moderada na jurisprudência norte-americana, pois aqueles
defendem a impossibilidade de se montar, por exemplo, uma árvore de Natal nos parques da cidade, em
ruas ou repartições públicas, enquanto os moderados relativizam essa posição rígida e defendem que não há
violação da liberdade religiosa desde que se deixe explícito que no Estado não há nenhuma preferencia por
uma determinada religião.
No tocante as cruzes fixadas nas paredes de escolas públicas, salvo melhor juízo, Brugger entendeu
que não há que se falar em transgressão a liberdade religiosa quando esses símbolos fazem referencia ao
caráter histórico do país. Entretanto, o Tribunal Constitucional interpreta o crucifixo como sendo uma men-
sagem cristã que gera discriminação e apela para os alunos não cristãos.
O autor conclui afirmando ser impossível distinguir por completo Estado e Religião, seja como campo
da política, seja judicialmente.
Percebe-se de maneira clara que Brugger aceita os modelos 02, 03 e 04 de relações entre Estado e
Igreja no Direito Moderno. Acredita ainda que o quinto modelo também pode ser implantado com ressalvas,
sob a justificativa de que em todos esses modelos de Estado, cada indivíduo pode decidir confessar uma cren-
ça e ainda continuar sendo ideologicamente livre.
2. LAUTSI CONTRA ITALIA: SOBRE A LIBERTADE RELIGIOSA E OS DEVERES DE NEUTRALIDADE E
IMPARCIALIDADE DO ESTADO.
O artigo escrito pelo professor José Ignacio Solar Cayón, denominado Lautsi contra Itália: sobre a
liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do Estado, tem como objeto analisar os fun-
damentos da decisão definitiva do Tribunal Europeu de Direitos Humanos no que diz respeito a presença de
crucifixos em salas de aula italiana.
No ano de 2002, a Sra. Lautsi pleiteou a retirada do crucifixo fixado na sala de aula da escola públi-
ca onde estudavam seus dois filhos Dataico e Sami Albetin perante a diretoria da instituição. Diante do seu
pedido negado, a mãe recorreu ao Conselho Escolar, ao Tribunal Administrativo de Veneza, bem como ao
Conselho de Estado, onde também lhe foram negados o pedido.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O caso Lautsi contra a Itália teve início em razão das várias e sucessivas demandas da Sra. Lautsi ao
impugnar judicialmente a presença de crucifixos nas salas de aula das escolas públicas, sob o fundamento de
que a exposição desses símbolos nos centros públicos estava ferindo o seu direito de criar e educar os seus
filhos em conformidade com as suas convicções filosóficas e religiosas.
A demandante argumentava que a fixação das cruzes era inconstitucional porque era uma verdadei-
ra violação do princípio da laicidade do Estado, o qual estava expressamente contemplado na Constituição
italiana.
A Sra. Lautsi defendeu que a sua liberdade religiosa estava sendo violada e que o Estado não estava
cumprindo com o disposto no Art. 9° da Convenção Europeia. Além do mais, a obrigação de expor crucifixos
em sala de aula provém de normas que foram promulgadas durante o regime fascista de Mussolini e por isso
carecem de legitimidade democrática.
A demandante alegou violação do art. 9º e 14 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, bem
como o art. 2 de protocolo nº 1, que seguem abaixo transcritos:
Convenção Européia de Direitos Humanos
Artigo 9°
Liberdade de pensamento, de consciência e de religião
1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência
e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de
crença, assim como a liberdade
de manifestar a sua religião ou a sua crença,
individual ou colectivamente, em público e em privado, por meio do culto, do
ensino, de práticas e da celebração de ritos.
2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou co-
lectivamente, não pode ser objecto de utras restrições senão as que, previstas
na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática,
à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à
protecção dos direitos e liberdades de outrem.
Artigo 14°
Proibição de discriminação
O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve
ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo,
raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou
social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qual-
quer outra situação.
Artigo 2° (do Protocolo nº 1)
Direito à instrução
A ninguém pode ser negado o direito à instrução. O Estado, no exercício das
funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino, respeitará
o direito dos pais a assegurar aquela educação e ensino consoante as suas
convicções religiosas e filosóficas. 1
Em contrapartida, o governo italiano sustentou como principal linha de defesa que a exposição de
crucifixos em salas de aula não possui significado religioso, mas se trata de um símbolo que faz parte da his-
tória e da identidade do povo italiano.
Em face dessas decisões, a Sra. Soile Lautsi interpôs no ano de 2006 um recurso ao Tribunal Euro-
peu de Direitos Humanos, o qual julgou no ano de 2009 por unanimidade que a conduta do governo italiano
efetivamente violou o Art. 9º da Convenção Europeia de Direitos Humanos c/c o Art. 2º do Protocolo n° 01 da
mesma Convenção. Decidiu-se ainda não analisar a questão sob o enfoque do Art. 14 da citada Convenção.
1  http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf. Último acesso em 18.02.2015
135
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
No ano de 2010, o governo italiano requereu a reanálise da matéria pela Grande Sala do Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos, conforme previsão legal. No julgamento, a Grande Sala decidiu por quinze
votos contra dois que a presença do crucifixo na escola pública não violava os mencionados dispositivos da
Convenção Europeia.
De imediato, verifica-se as incoerências com algumas decisões prévias do próprio tribunal.
De acordo com os argumentos para embasar a decisão definitiva, a Grande Sala entendeu que apenas
há violação ao princípio da laicidade quando o Estado ultrapassa a imparcialidade, ou seja, o Estado não pode
objetivar doutrinação ou direcionamento a uma determinada religião.
Outra ideia central presente no julgado é a da “margem de apreciação dos Estados” no respeito aos
direitos humanos, ou seja, os Estados possuem uma margem de conduta para atuar, atentando-se aos limites
previstos na Convenção Europeia de Direitos Humanos.
O Tribunal Europeu de Direitos Humanos adota a doutrina da margem de apreciação nacional, por
meio da qual confere as autoridades nacionais uma certa discricionariedade na hora de justificar a adoção
de medidas que a princípio poderia interferir no exercício dos direitos reconhecidos na Convenção, mas que
seria possível atender e solucionar as peculiaridades do contexto doméstico.
A margem da apreciação nacional leva em conta diversos fatores, tais como: a natureza do direito
afetado e a sua importância, o fim perseguido pela medida estatal questionada, as circunstancias do caso. De
acordo com José Ignácio, a existência ou não de um consenso em torno da matéria que está sendo discutida,
funciona como uma espécie de válvula de segurança que alivia as pressões do sistema, permitindo ao tribunal
reforçar ou rebater o nível de supervisão e controlar as atuações estatais em cada matéria.
Assim, o Tribunal Europeu no âmbito da liberdade religiosa confere as autoridades nacionais uma
ampla margem de discricionariedade, pois a concepção de religião não uniforme, variando de um país para
o outro e por isso cresce a importância das autoridades nacionais em solucionar as demandas de acordo com
o contexto doméstico.
O autor destaca ainda em seu artigo a questão do uso de símbolos religiosos nos centros de ensino.
Nesse sentido, destaca o Cayón:
(...) o tribunal enfatizou que a ampla margem de apreciação que corresponde
as autoridades nacionais em matéria religiosa se impõe especialmente quan-
do os Estados regulam o uso de símbolos religiosos nos centros de educativos
dada a disparidade de soluções legislativas adotadas nesse tema. (CAYÓN,
2011, p. 578)
O autor coloca em pauta caso Leyla Sahin contra Turquía. Em 1998, o vice-reitor da Universidade
de Istambul proibiu a utilização de véus islâmicos que cobrissem a cabeça da estudante e o uso de barba em
cursos e aulas ministradas na universidade.
Em 1998, Sahin levou seu caso à CEDH. Em 2005, a Corte Europeia proferiu seu veredicto, afirman-
do a inexistência de violação ao artigo 9° da Convenção Europeia de Direitos Humanos.
Ora, verifica-se uma incoerência no tocante aos fundamentos utilizados pela Corte ao decidir sobre li-
berdade religiosa. No caso da Sra. Lautsi, a Grande Sala julgou que a presença de crucifixos nas salas de aula
das escolas não violava a sua liberdade religiosa de educar seus filhos conforme as suas convicções religiosas.
Por outro lado, analisando o caso Leyla contra a Turquia, a mesma foi impedida de expressar publicamente
a sua religião ao usar um véu nos centros de ensino.
Um véu pode representar um símbolo religioso tão inocente quanto um crucifixo. Ao mesmo tempo,
esses símbolos podem de fato serem capazes de influenciar na formação religiosa dos demais alunos. Contu-
do, questiona-se qual foi o fundamento utilizado pela Corte para definir o significado passivo de um crucifixo
136
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
e o caráter perigoso de um véu. Um crucifixo pode representar um símbolo religioso tão influente quanto um
véu. Por outro lado, esses símbolos podem exercer intensa dominação.
Outro caso que demonstra intensa incoerência dos critérios utilizados pelo Tribunal se faz presente
no caso Dahlab contra Suiza. A Corte julgou que a decisão de determinada escola suíça de proibir que uma
de suas professoras usasse o véu islâmico durante suas aulas, que eram ministradas para alunos de primário,
era uma medida “necessária em uma sociedade democrática”.
No entanto, o próprio Tribunal reconheceu a dificuldade de provar o impacto que o uso do véu por
parte de uma professora pode ter sobre as crenças dos alunos. Ressalte-se que não havia nada que provasse
que ao longo dos quatro anos em que Dahlab estava exercendo suas tarefas como docente usando o véu,
tenha produzido qualquer tipo de influencia.
Assim, de acordo com as palavras de Cayón, Dahlab precisaria provar que o uso do véu não provo-
cava qualquer tipo de efeito sobre as crenças religiosas dos alunos. Lautsi, por sua vez, teria que provar a
exposição do crucifixo em sala de aula exercia influencias nas convicções religiosas dos seus filhos e dos de-
mais alunos. Dessa forma, verifica-se uma total discrepância e divergências nos fundamentos utilizados para
decidir sobre questões religiosas, levando a crer a existência de uma verdadeira parcialidade por parte das
autoridades julgadoras.
Cayón, conclui o seu artigo afirmando que por meio do seu trabalho procurou demonstrar as estraté-
gias argumentativas utilizadas pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos ao decidir sobre liberdade religio-
sa. Segundo ele, o Tribunal utiliza como estratégia argumentativa de forma abusiva a doutrina da “margem
de apreciação nacional” que por sua vez só faz gerar uma jurisprudência voltada para a proteção das religiões
majoritárias e uma atuação estatal que não corresponde aos ideais de neutralidade e imparcialidade, preju-
dicando o pluralismo.
CONCLUSÃO
Enfim, tanto o professor Winfried Brugger quanto José Ignacio Solar Cayón procuram enfatizar a te-
mática das relações entre Igreja e Estado. A Corte Constitucional da Itália se pronunciou por diversas vezes
que a Constituição impõe o princípio da separação entre Estado e Igreja. Contudo, a adoção do princípio da
separação não significa dizer que o Estado é indiferente às religiões, pois tem o dever de garantir a liberdade
religiosa diante da existência de um pluralismo cultural, permitindo nesse liame que as crenças, culturas e
tradições coexistam sem qualquer discriminação.
Entretanto, na prática se percebe que os fundamentos utilizados pela Suprema Corte para assegurar
a liberdade religiosa em seu sentido amplo, muitas vezes termina por gerar violações desse direito, em espe-
cial naqueles indivíduos, cujas convicções religiosas estão em menor número.
REFERÊNCIAS
CAYÓN, José Ignacio Solar. Lautsi contra Italia: sobre la libertad religiosa y los deberes de neu-
tralidad e imparcialidad del estado. Cuadernos Electrónicos de Filosofía del Derecho. Universidad de
Cantabria, 2011.
BRUGGER, Winfried. Da hostilidade passando pelo reconhecimento até a identificação – modelos
de estado e igreja e sua relação com a liberdade religiosa. Disponível em http://www.dfj.inf.br/Arquivos/
PDF_Livre/10_Dout_Estrangeira_1.pdf
137
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
EMMERICK, Rulian. As relações Igreja/Estado no Direito Constitucional Brasileiro. Um esboço
para pensar o lugar das religiões no espaço público na contemporaneidade. Disponível em http://
www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/view/383/823.
MORAIS, Márcio Eduardo Pedrosa. RELIGIÃO E DIREITOS FUNDAMENTAIS: O PRINCÍPIO DA LIBER-
DADE RELIGIOSA NO ESTADO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICO BRASILEIRO. Revista Brasilei-
ra de Direito Constitucional–RBDC n, v. 18, p. 225, 2011. Disponível em: http://www.esdc.com.br/RBDC/
RBDC-18/RBDC-18-225-Artigo_Marcio_Eduardo_Pedrosa_Morais_%28Religiao_e_Direitos_Fundamentais_o_Principio_da_Li-
berdade_Religiosa%29.pdf
http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/viewFile/1718/1364
138
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL AO OLIGOPÓLIO MIDIÁTICO E O DIREITO
À COMUNICAÇÃO:
A NECESSIDADE DA SUPERAÇÃO DO DOMÍNIO ECONÔMICO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO EM
MASSA PARA SUA REGULAÇÃO DEMOCRÁTICA
Camila Freire Monteiro de Araújo
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Izídia Carolina Rodrigues Monteiro
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira
Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito
Público, Graduada em Direito na AESO/PE. narasantacruz@hotmail.com.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Esfera Pública, Democracia e Direito à Comunicação; 2. Os limites da con-
cepção burguesa do direito à liberdade de expressão; 3. Espaço midiático: concentração, privatização
e segmentação; 4. Liberdade de imprensa x direito à comunicação; 5. O Direito à comunicação na
América Latina; 5.1. O caso da Argentina; 5.2. Lei de meios; 6. Sistema Público de Comunicação;
Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
Embora a redemocratização da sociedade brasileira tenha ocorrido há mais de duas décadas, as re-
gras que regulamentam a radiodifusão constituída no país pela rádio e televisão abertas permanecem, ainda
hoje, praticamente inalteradas, e a patente concentração dos meios de comunicação nas mãos de cinco
famílias (LOPES, 2011) talvez seja um dos exemplos mais explícitos da contradição da democratização no
Brasil. O oligopólio constituído durante o regime ditatorial militar permanece; como avanços no campo da
comunicação social, houve alguns, tímidos, como a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) pelo
governo federal em 2007, bem como a realização, em dezembro de 2009, da 1ª Conferência Nacional de
Comunicação (Confecom).
Para o professor Murilo César Ramos (2000), o desenvolvimento do sistema de comunicação brasi-
leiro foi caracterizado por compadrio, patronagem, clientelismo e patrimonialismo. Associados a uma cultura
política e social arcaica, esses elementos desenvolveram-se pelo Brasil e sofisticaram-se por meio da rádio
e da televisão, servindo como instrumentos de reforço de dominação e manutenção das injustiças sociais e
contribuindo, sobretudo ideologicamente, para a manutenção da hegemonia do grupo econômico-político-
-militar que estava governando o país.
Em razão de ocupar lugar central no processo de construção da hegemonia, desde a segunda me-
tade da década de 1960 (LOPES, 2011, p. 2), a televisão precisa ser considerada como um dos elementos
fundamentais para pensar a democratização, tanto da comunicação quanto da própria sociedade brasileira.
Partindo-se do reconhecimento de que este meio de comunicação implica em um estratégico instrumento
139
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
REPENSANDO A AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA:
A (IM)POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DO “ABATE-TETO” SOBRE REMUNERAÇÃO, SUBSÍDIO OU
PROVENTO DA APOSENTADORIA DE AGENTE PÚBLICO CUMULADOS COM BENEFÍCIO DE PENSÃO
POR MORTE DO CÔNJUGE/COMPANHEIRO SERVIDOR DO ESTADO
Carla Cristiane Ramos de Macêdo
Bacharela em Direito pela Faculdade ASCES, participante do programa de Iniciação
Cientifica da Faculdade ASCES (INICIA), e integrante do Projeto de pesquisa Cidadania e
Segurança Pública na Sociedade do/de Risco. E-mail: carlamacedo4@gmail.com
Roberta Cruz da Silva
Bacharela e Mestre em Direito, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora de
Direito Administrativo e de Prática Constitucional-Administrativa da Faculdade ASCES; da
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), do Centro Universitário de João Pessoa
(UNIPÊ) e das pós-graduações da Faculdade ASCES; da ESMATRA/PE e do Complexo de
Ensino Renato Saraiva (CERS-Recife). Advogada.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Acumulação de remuneração, subsídio ou aposentadoria com pensão por
morte como direito, o princípio da autotutela do estado e a obrigação do respeito ao devido processo
legal; 2. Enriquecimento sem causa por parte do estado em relação às contribuições previdenciárias
na aplicação desarrazoada do “abate-teto”; 3. O entendimento da jurisprudência quanto á aplicação
do “abate-teto”; Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva fundamentado nos conceitos e entendimentos jurisprudenciais atuais,
destacar e demonstrar determinados aspectos do que se entente por devido processo legal, por enriqueci-
mento sem causa por parte do Estado e como se dá a aplicação do “abate-teto”, com ênfase em explicar que
a acumulação de remuneração, subsídio ou proventos de agente público com pensão por morte de cônjuge/
companheiro também agente público é possível, pois os valores vem de dois instituidores diferentes, e que é
preciso repensar a autotutela administrativa.
Por meio dos métodos hipotético–dedutivo, histórico e comparativo será feita a análise dos efeitos no
âmbito da Administração e do Judiciário, os princípios constitucionais violados e a recepção deste fenôme-
no jurídico. Também será feita uma vasta explanação do entendimento jurisprudencial, por intermédio da
exposição de súmulas, acórdãos e decisões singulares, pareceres da Controladoria Geral da União (CGU),
da Advocacia Geral da União (AGU), do Tribunal de Contas da União (TCU) e doutrinário sobre os temas
abordados.
	 Tal tema foi escolhido pela total relevância econômica, para a Administração Pública quanto
para os dependentes do servidor instituidor; social, já que esta pratica pode ou não ferir direitos constitucio-
nalmente garantidos, e jurídica, vez há uma disparidade entre o entendimento de todas as instâncias judi-
ciárias e da Administração sobre o assunto, visto que, há diversos julgados, das mais variadas linhas sobre a
constitucionalidade ou não da aplicação imediata e sem prévio aviso ao recebedor dos valores, do “abate-te-
to”.
140
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Neste contexto, o trabalho, desenvolvido como projeto de Iniciação Cientifica da Faculdade ASCES
(INICIA) com foco nas áreas de direito administrativo e constitucional, teve como objeto o estudo sobre a
aplicação ou não do abate-teto nestes casos específicos.
1. ACUMULAÇÃO DE REMUNERAÇÃO, SUBSÍDIO OU APOSENTADORIA COM PENSÃO POR
MORTE COMO DIREITO, O PRINCÍPIO DA AUTOTUTELA DO ESTADO E A OBRIGAÇÃO DO
RESPEITO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL
O direito à aposentadoria constitui direito fundamental do cidadão, ligado à noção de dignidade da
pessoa humana.
A Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha esclarece que o ato de aposentadoria, em verdade, não é
uma concessão do Estado, mas um direito que é assegurado ao agente público, formalizado por meio de um
processo de reconhecimento de sua aquisição pelo interessado. Sob esse prisma, a aposentadoria visa a ga-
rantir os recursos financeiros indispensáveis ao beneficiário, de natureza alimentar, quando este já não tenha
condições de obtê-los por conta própria. (ROCHA, 2005. p. 413.)
Não se trata, contudo, de nenhum privilégio, favor ou condescendência do Estado, mas sim de um
direito fundamental do servidor-trabalhador garantido pela Carta Magna como uma das formas de se assegu-
rar a dignidade da pessoa humana. (BITTENCOURT, 2014.)      
Desta feita, a concessão da aposentadoria constitui uma prerrogativa constitucional do servidor for-
malizada por intermédio de um ato administrativo emanado pelo Estado, em consequência do preenchi-
mento dos requisitos legais não havendo discricionariedade neste ato. Porém, mesmo sendo um direito do
recebedor, a Administração Pública tem aplicado o “abate-teto” aos casos de acumulação de remuneração,
subsídio ou proventos de um servido com pensão por morte deixada por outro servidor sem a devida análise
do caso, sem possibilitar sequer a ciência anterior do beneficiário sobre o fato até o momento que recebe o
valor a menor.
Muitas vezes com base no parecer do Ministro Benjamim Zymler, que será visto adiante, e não foi aca-
tado pela Corte, a Administração Pública aplica o “abate-teto” na soma de dois valores recebidos pela mesma
pessoa, cônjuge/companheiro, mas proveniente de contribuintes distintos e com fatos geradores diferentes.
É justamente diante deste acumulo de uma pensão por morte com alguma outra renda própria do
servidor beneficiário, que a Administração usa a autotutela.
Como se pode observar a autotutela estatal é um princípio administrativo que nesta aplicação em
concreto fere a segurança jurídica do beneficiário, que já tinha sua família, incluindo o de cujus, em uma
situação estabilizada.
A Administração deve garantir o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa (Constituição
Federal de 1988, artigo 5º, LIV e LV), visando este fim, tem-se os recursos administrativos são meios formais,
previstos em diversas leis, de controle administrativo, por meio dos quais o interessado inconformado postula,
junto a órgãos superiores da Administração, a revisão de determinado ato administrativo de órgãos inferiores,
lesivos ou não a direito próprio, visando à reforma de determinada conduta, por ilegalidade, inoportunidade
ou inconveniência. O recurso tramita pela via administrativa, sem ingerência da função jurisdicional. Há
garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. (MEDEIROS, 2014)
 Desse modo, fica evidente que não obstante exista o poder de autotutela ele não pode se sobrepor aos
interesses de terceiros, sem que a esses seja garantida a possibilidade de manifestação, aí entendida a ampla
defesa e o contraditório. (QUEIROS, 2014)
Não se pode admitir que a Administração Pública tome medidas unilaterais que afetem direitos de
terceiros sem que o faça mediante o devido processo legal, por meio do qual se oportuniza a manifestação
prévia do interessado, fazendo valer os princípios constitucionalmente fixados. (QUEIROS, 2014)
141
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Desse modo, não se fala em devido processo legal apenas em situações que existam acusados, ou que
se vise a aplicação de uma pena, mas sempre que um ato possa atingir direitos de terceiros, garantindo a
esses a possibilidade de manifestação prévia.
No uso deste poder de autotutela a aplicação do “abate-teto” está sendo feita de maneira automática
e sem ao menos haver a comunicação aos dependentes, quiçá a ampla defesa, tudo com base no teto-remu-
neratório.
A doutrina majoritária defende que o dispositivo que abarca o “abate-teto” (artigo 37. XI, CF/88) é
flagrantemente inconstitucional, porque fere o direito adquirido à irredutibilidade de vencimentos (artigo 37,
XV, CF/88). Tal dispositivo feriu uma cláusula pétrea. O que poderá ser feito pela Administração é manter a
remuneração irreajustável até que chegue no limite remuneratório constitucional. (QUEIROS, 2014)
Feita as devidas considerações sobre como está se dando o processo para se aplicar o “abate-teto” na
Administração e como deveria ser corretamente feito, tratar-se-á agora sobre o entendimento jurisprudên-
cias de tal desconto.
2. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA POR PARTE DO ESTADO EM RELAÇÃO ÀS CONTRIBUIÇÕES
PREVIDENCIÁRIAS NA APLICAÇÃO DESARRAZOADA DO “ABATE-TETO”
Uma das situações que tem gerado controvérsia no que tange à aplicação do limite remuneratório de
que trata o inciso XI do art. 37 da CF/ 88 consiste na acumulação de pensão por morte com outras verbas
sujeitas ao referido limite, como a remuneração decorrente do exercício de cargo, função ou emprego público
e os proventos de aposentadoria.
Pelo que se observa do referido comando constitucional, estão incluídas no chamado teto remunera-
tório as seguintes verbas: a remuneração e/ou subsídio ou quaisquer outras verbas remuneratórias devidas
aos agentes públicos, os proventos de aposentadoria e as pensões, percebidos cumulativamente ou não.
Porém, no caso da pensão por morte, tendo em vista que o instituidor é pessoa diversa do benefici-
ário, entende-se que esse benefício não deveria ser cumulado com verbas remuneratórias ou proventos de
aposentadoria, para efeito de incidência do chamado “abate-teto” visto que tal verba, em sua origem, tanto
como remuneração e/ou subsídio quanto como aposentadoria do instituidor, já sofreu em sua base de cálculo
a incidência do “abate-teto”.
Por meio do Acórdão nº 2079/2005 – Plenário do Tribunal de Contas da União, por maioria, concluiu
que o servidor que recebe simultaneamente remuneração ou proventos de aposentadoria e pensão por morte
instituída por outro servidor público, não se submete ao teto, embora cada verba, individualmente, se subme-
ta à limitação, como dito no parágrafo acima, prevista no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal.
Diante da divergência quanto à aplicação do teto remuneratório à soma de pensão com eventuais
verbas remuneratórias ou proventos de aposentadoria percebidos cumulativamente pelo beneficiário é im-
prescindível a lição de Couto e Silva:
A Administração Pública, quando lhe cabe esse direito [à invalidação] relati-
vamente aos seus atos administrativos, não tem qualquer pretensão quanto
ao destinatário daqueles atos. Este, o destinatário, entretanto, fica meramen-
te sujeito ou exposto a que a Administração Pública postule a invalidação
perante o Poder Judiciário ou que ela própria realize a anulação, no exercício
da autotutela administrativa. (COUTO; SILVA, 2004. pp. 7-59.)
Neste momento faz-se necessário analisar a jurisprudência sobre o assunto.
142
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
3. O ENTENDIMENTO DA JURISPRUDÊNCIA QUANTO Á APLICAÇÃO DO “ABATE-TETO”
Há decisões do Tribunal de Contas da União que protegem o direto do beneficiário a receber o que
lhe é de direito, como por exemplo, a resposta ao pedido formulado em requerimento administrativo para a
Secretaria de Recursos Humanos/MP por uma servidora aposentada no sentido de que não seja aplicado o
denominado abate-teto sobre o somatório dos seus proventos de aposentadoria com a pensão por morte dei-
xada por seu esposo, citando em seu favor precedente do Tribunal de Contas da União. (BRASIL,TCU, 2005)
A resposta para sua manifestação foi no sentido de que:
O abate-teto deverá incidir sobre o montante resultante da acumulação de
proventos de aposentadoria com remuneração de cargo comissionado, mas
que eventual pensão recebida pela mesma pessoa deveria ser considerada
separadamente para efeito de teto salarial. (AGU, 2007, grifo nosso)
Para fundamentar seu entendimento, a Secretaria de Recursos Humanos/MP citou uma decisão ad-
ministrativa do Conselho Nacional de Justiça, no artigo 6º da resolução nº 13, de 21 de março de 2006, que
dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional e do subsídio mensal dos membros da magis-
tratura, segundo a qual o teto remuneratório não deveria incidir sobre a soma da remuneração do servidor
com pensão por morte, tomando por base o Acórdão nº 2079/2005 – Plenário, do TCU que firmou entendi-
mento de que o servidor que recebe simultaneamente remuneração ou proventos de aposentadoria e pensão
por morte instituída por outro servidor público não se submete ao teto, embora cada verba, individualmente,
se submeta à limitação prevista no art. 37, XI, da Constituição Federal. (BRASIL, CNJ, 2006)
Resolução nº 13/2006 do CNJ. Art. 6º Para efeito de percepção cumu-
lativa de subsídios, remuneração ou proventos, juntamente com
pensão decorrente de falecimento de cônjuge ou companheira(o),
observar-se-á o limite fixado na Constituição Federal como teto remunera-
tório, hipótese em que deverão ser considerados individualmente.
(grifo nosso)
Porém diferentemente do entendimento do TCU e da SRH/MP o Advogado-Geral da União entendeu
que deve incidir o “abate-teto” nestes casos:
Conforme exposto pelo Ministro Benjamim Zymler, em seu Voto Revisor, as
limitações do art. 37, XI, da Constituição são destinadas ao recebedor, sem
qualquer ressalva à origem dos benefícios que vier a acumular.
Neste ponto, cabe transcrever o seguinte trecho do mencionado Voto, às fls.
18 dos autos: “As disposições do art. 37 sobre limite de remuneração são des-
tinadas ao recebedor (aquele que percebe, na forma do texto constitucional)
de remuneração e ‘benefícios’, inclusive considerados de forma cumulativa.
Creio que se o objetivo da norma fosse restringir a aplicação do teto consti-
tucional em razão da origem do benefício – ou seja, conforme o instituidor -,
a redação conferida deveria ser outra. Se houvesse um limite específico para
pensões, que não se comunicasse com os demais tipos de renda oriundas
do Tesouro, essa circunstância deveria ter sido expressamente prevista, pois
não pode ser extraída da redação aprovada”. (Voto prolatado por ocasião do
julgamento do qual resultou o Acórdão nº 2079/2005 – Plenário, do TCU.)
Ante o exposto, proponho que se responda à consulta em tela no sentido de
que o teto constitucional incide sobre o montante resultante da acumulação
de benefício de pensão com remuneração de cargo efetivo ou em comissão,
e sobre o montante resultante da acumulação do benefício de pensão com
proventos da inatividade”. [...] (BRASIL, AGU, 2005)
143
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Neste ponto o Advogado-Geral da União concorda com o Ministro Benjamim Zymler, que o texto do
artigo 37 da CF/ 88 deveria ser diferente para se garantir a não incidência do “abate-teto”.
[...] Acerca do rigor do art. 37, XI, da CF/88, assim afirma Celso Antônio
Bandeira de Mello:
“O rigor quanto à determinação do teto, como se vê, é bastante grande, pois
sua superação nem mesmo é admitida quando resultante do acúmulo de car-
gos constitucionalmente permitido. Aliás, no que concerne a isto, a vedação
está reiterada no inciso XVI, última parte, do mesmo art. 37, assim como, no
que atine a proventos ou proventos cumulados com vencimentos ou subsídio,
no § 11 do art. 40”. (MELLO, 2006. p. 260.)
[...]
Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Macêdo tratam do tema em
seu livro “Nova previdência social do servidor público” e admitem expressa-
mente a incidência do teto sobre o somatório de pensão com aposentadoria,
quando assim afirmam:
“Caso o servidor perceba pensão da União e aposentadoria do Poder Exe-
cutivo do Estado-membro, por exemplo, deverá ser respeitado, no tocante à
parcela paga pelo Estado-membro, o teto estadual. Quanto ao valor pago pela
União, o teto será o valor do subsídio de Ministro do Supremo. A soma das
duas parcelas não poderá exceder este último”. (DIAS; MACÊDO, 2006. p.
155.)
[...]
Os autores Celso Antônio Bandeira de Mello, Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Macê-
do reafirmam a opinião de que a soma dos valores percebidos devem se limitar ao teto constitucional e caso
o ultrapassem deve sofrer a incidência do “abate-teto”.
[...]
Por fim, considerando que o presente parecer contrasta com o entendimento
majoritário do Tribunal de Contas da União, sedimentado pelo Acórdão nº
2079/2005 – Plenário, entendemos pertinente sugerir que a Advocacia-Geral
da União emita Parecer sobre a questão, a fim de que os órgãos e entidades
da Administração Federal passem a seguir o posicionamento que vier a ser
adotado pela AGU, nos termos do art. 4º, X, da Lei Complementar nº 73/93,
ipsis litteris:
Art. 4º São atribuições do Advogado-Geral da União:
[...]
X - fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos
normativos, a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da Admi-
nistração Federal;
Ante o exposto, somos pela aplicação do teto salarial fixado no art. 37, XI, da
Constituição Federal à soma de pensão por morte com proventos de aposen-
tadoria percebidos pelo mesmo beneficiário, sugerindo o encaminhamento
dos autos ao Gabinete do Advogado-Geral da União para que seja fixado en-
tendimento sobre a questão, nos termos do art. 4º, X, da LC nº 73/93, uma
vez que o Tribunal de Contas da União adotou posição contrária à defendida
no presente Parecer. (BRASIL, AGU, 2005)
É justamente com base neste parecer que a Administração Pública vem aplicando o “abate-teto”
indiscriminadamente.
Como será mostrado adiante, assim como foi afirmado no próprio parecer do Advogado-Geral da
União, o entendimento majoritário não é este que ela adotou e sim um totalmente diverso.
144
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O Acordão nº 2079/2005 Plenário, do TCU é um marco neste entendimento, da não aplicação do
“abate-teto” sobre a acumulação de remuneração, subsídio ou aposentadoria com pensão por morte, pois
mesmo com divergências este foi o entendimento majoritário, como se verá a seguir.
O Ministério Público, solicitado a se manifestar nos autos deste Acordão 2079/2005, manifesta-se
conforme a seguir transcrito, por meio do parecer do Procurador Marinus Eduardo de Vries Marsico:
A consulta, à primeira vista, reveste-se de singeleza. Entretanto, as nuances
envolvidas indicam necessário cuidado e atenção para que a interpretação
dos dispositivos se dê conforme a Constituição.
A Constituição de 1988 buscou estabelecer um limite máximo de remunera-
ção para o serviço público. Em seu texto original, a Constituição refletia um
limite inflexível que era robustecido pela dicção do art. 17 do ADCT, que re-
cusava a invocação de direito adquirido ou a percepção de excesso a qualquer
título. O que parecia ser de simples aplicação, no entanto, logo foi modificado
por decisões do Supremo Tribunal Federal que entendeu existirem variadas
exceções à expressão ‘a qualquer título’.
Assim, na esteira de inúmeras decisões judiciais, foram se ampliando as ex-
ceções na legislação até que, em 1994, a Lei nº 8.852/94 já contemplava a
previsão de dezessete exclusões.
O estabelecimento de limites remuneratórios retorna com a edição da EC
nº19/98, fixando-se limites máximos intransponíveis ‘a qualquer título’. Pre-
tensão já contornada anteriormente e que, na prática, voltaria a ser inócua
ante a não publicação de lei reguladora de iniciativa conjunta do Presidente
da República, do Presidente do Supremo Tribunal Federal e dos Presidentes
da Câmara e do Senado Federal para definição do valor do teto. (BRASIL,
TCU, 2005)
A Emenda Constitucional 41/2003 trouxe as novas regras e tentou esclarecer as dúvidas existentes
sobre os limites aos tetos remuneratórios dos servidores públicos.
Como será visto adiante, serão analisados julgados que destoam do entendimento da AGU, do Minis-
tro Benjamim Zymler e do Procurador Marinus Eduardo de Vries Marsico, para fundamentar a possibilidade
de acumulação sem a incidência do “abate-teto”.
Este embargo foi apresentado com a finalidade de contestar de quem é a competência para fazer o
desconto do “abate-teto” e esclarecer outras dúvidas.
[...]
16.Afirma (o embargante) que o CNJ, em 2007, amadurecendo o enten-
dimento sobre o tema, editou a Resolução nº 42 admitindo a incidência
isolada do teto no caso de percepção cumulativa de subsídios, re-
muneração ou proventos, com pensão. 18.Acrescenta que, ainda que
prosperasse tese diversa àquela por ele defendida, a administração estaria
diante de dificuldades operacionais para controlar e glosar parte da remune-
ração daqueles que recebem por mais de uma fonte. A aplicação do dispositi-
vo constitucional depende de definições normativas inexistentes que venham
orientar o procedimento do administrador em face de algumas questões, tais
como: de quem seria a responsabilidade pelo corte de valores que
ultrapassem o teto? da fonte responsável pelo pagamento de maior valor,
do órgão com vínculo mais recente ou seria dada a opção ao agente?; no caso
de vínculos com órgãos públicos de diferentes esferas de governo, que teto
aplicar? que esfera efetuaria o desconto do valor excedente? Deste modo, o
administrador, para dirimir estas dúvidas, depende de definições mediante
lei. 29. Ele se baseia nas Resoluções nºs 13 e 14/2006 do Conselho
Nacional de Justiça e na Resolução nº 10/2006 do Conselho Nacio-
nal do Ministério Público, que consideram individualmente, para a
145
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
incidência do teto remuneratório constitucional, as remunerações
dos membros da Magistratura e do Ministério Público e dos servi-
dores do judiciário decorrentes do exercício do magistério e da fun-
ção eleitoral, além da pensão decorrente de falecimento de cônjuge
ou companheiro. (BRASIL, TCU, 2009. Grifo nosso)
Além do já exposto há resoluções do Conselho Nacional de Justiça versando sobre o tema. A Reso-
lução nº 13/2006 do CNJ que dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional e do subsídio
mensal dos membros da magistratura. (BRASIL, CNJ, 2006.)
Há, também, a Resolução nº 14/2006 do CNJ que dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório
constitucional para os servidores do Poder Judiciário e para a magistratura dos Estados que não adotam o
subsídio. (BRASIL, CNJ, 2006.)
Por sua vez, a Resolução nº 42, de 11 de setembro de 2007, do Conselho Nacional de Justiça, afirma
que o “abate-teto” deve ser aplicado as parcelas de cumulação de subsídio, remuneração ou proventos soma-
dos a pensão por morte consideradas individualmente. (BRASIL, CNJ, 2006.)
Tem-se, também, a Resolução nº 10/2006 do CNMP que dispõe sobre a aplicação do teto remune-
ratório constitucional para os servidores do Ministério Público da União e para os servidores e membros dos
Ministérios Públicos dos Estados que não adotam o subsídio. (BRASIL, CNMP,2006)
Conforme se pode observar destas resoluções, os Conselhos excepcionaram situações muito especí-
ficas para a não-incidência do teto, fazendo uma interpretação sistêmica da Constituição que, por um lado
instituiu o teto e, por outro, possibilitou o exercício do magistério e, ainda, determinou que os órgãos da justi-
ça eleitoral fossem compostos por membros de outros órgãos do judiciário, então estas pessoas devem receber
pelo seu trabalho. Já quanto à norma que dispõe que a pensão decorrente de falecimento de cônjuge deva ser
considerada individualmente para observação do teto, acredita-se que a exceção se dá porque o fato gerador
ocorreu por pessoa distinta daquela que recebe o benefício.
O Agravo de Instrumento 25883 demostra o entendimento do Tribunal Regional Federal da Terceira
Região, que concede a antecipação de tutela para que pare de incidir o “abate-teto” no somatório total da
acumulação da pensão por morte, relativa ao seu marido, da aposentadoria relativa a cargo público ante-
riormente ocupado pela requerente e remuneração pela atividade que atualmente desempenha. (BRASIL,
TRF-3, 2012)
O Tribunal Regional Federal da Primeira Região demonstra na Apelação Cível 4939, não só, o enten-
dimento que o “abate-teto” deve incidir de maneira individual em cada benefício, como ainda estabelece a
devolução dos valores já descontados indevidamente, corrigidos monetariamente. (BRASIL, TRF-1, 2010)
A Apelação Cível 424834 cível julgada pelo Tribunal Regional Federal da Quinta Região coaduna com
o entendimento de que as verbas devem ser consideradas isoladamente, e não cumulativamente, para efeitos
de aplicação do “abate-teto”. (BRASIL, TRF-5, 2004)
Como já abordado anteriormente, pode-se perceber no relato dos fatos a aplicação unilateral, por
parte da Administração Pública, do “abate-teto”, sem possibilidade de ampla defesa ou de contraditório por
parte do beneficiário.
Também o Tribunal de Justiça de Pernambuco no Agravo de Instrumento nº: 0294.343-7 entende
que o “abate-teto” não deve ser aplicado a soma de proventos com pensão por morte pois, a fonte de custeio
e o fato gerador das duas verbas tem caráter distintos arcados individualmente por cada um de seus institui-
dores e por isso devem ser individualmente consideradas.
[...] É o que deflui dos julgados infratranscritos: “Teto remuneratório - Cumu-
lação Irredutibilidade - Aposentadoria e Pensão - O pagamento cumulativo
de proventos de aposentadoria e pensão por morte cuja soma dos valores
146
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
ultrapasse o teto remuneratório constitucional não viola o artigo 37, inci-
so  XI da Constituição Federal. Espécies remuneratórias que apresentam
fundamento jurídico diverso. A limitação de vencimentos não pode
desconsiderar os princípios constitucionais básicos e a garantia
da irredutibilidade de vencimentos e proventos. Exige, no mínimo,
que seja respeitado o valor pago que resta congelado até que o valor do teto
o ultrapasse. Recurso adesivo da autora provido e improvidos o recurso da
ré e o reexame necessário.”.(TJ-SP - APL: 424305620108260053 SP
0042430-56.2010.8.26.0053, Relator: Lineu Peinado, Data de Jul-
gamento: 29/11/2011, 2ª Câmara de Direito Público, Data de Publi-
cação: 01/12/2011)”Servidora pública municipal - Cumulação - Aposenta-
doria e Pensão - Teto remuneratório - O pagamento cumulativo de proventos
de aposentadoria e pensão por morte cuja soma dos valores ultrapasse o teto
remuneratório constitucional não viola o artigo 37, inciso XI da Constituição
Federal. Espécies remuneratórias que apresentam fundamento jurídico di-
verso. Recursos improvidos.”.(TJ-SP - -....: 21736020108260191 SP ,
Relator: Lineu Peinado, Data de Julgamento: 14/12/2010, 2ª Câ-
mara de Direito Público, Data de Publicação: 29/12/2010) “[...]. Pro-
ventos de aposentadoria e pensão por morte. Acumulção. Possibilidade. Teto
constitucional. Verbas analisadas individualmente. Recurso desprovido. [...].
2. Na linha da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, do Conselho
Nacional de Justiça e do Tribunal de Contas da União, a soma dos valores
percebidos a título de pensão por morte e de proventos de aposentadoria
podem ultrapassar o teto constitucional. [...].”(Ac. de 13.8.2009 no REs-
pe nº 28.307, rel. Min. José Delgado.) Ante todo o exposto, DEFIRO A
ANTECIPAÇÃO DE TUTELA RECURSAL ALMEJADA, para fins de sus-
pender os descontos decorrentes do “excedente de remuneração
unificado” incidente sobre o montante global dos proventos de apo-
sentadoria e pensão percebidos pela demandante. (PERNAMBUCO,
TJPE, 2007. Grifo nosso.)
Foi com base nestes julgados, que o Tribunal de Justiça de Pernambuco prolatou a sua decisão da não
aplicabilidade do “abate-teto” sobre as somas da pensão por morte com a renda própria do cônjuge sobrevi-
vente.
O Ministro-Relator Ubiratan Aguiar explana em seu voto o entendimento da Corte.
Cada servidor, mediante desconto mensal para a seguridade social, conforme
parâmetros fixados em lei, contribui para o fundo, genericamente falando,
que, no futuro, arcará com os desembolsos decorrentes do pagamento de sua
aposentadoria ou da pensão de seus beneficiários. O fato gerador do direito à
pensão é a morte do segurado. Já no caso da remuneração e da aposentado-
ria é o exercício do cargo público e o preenchimento dos requisitos definidos
para a inatividade. Nesse sentido, a cada servidor são assegurados esses be-
nefícios. [...]; (BRASIL,TCU, 2005.)
Um dos fundamentos que o Ministro Relator Ubiratan Aguiar, do Tribunal de Contas da União, uti-
lizou para lastrear seu voto, foi que o instituidor da pensão já havia pago as contribuições necessárias para
garantir o direito de sua esposa a receber o benefício de pensão por morte, quando assim afirmou:
[...]Não há, portanto, que se confundir servidores distintos, detentores de
direitos distintos, constitucional e legalmente garantidos. A cada um, indi-
vidualmente, aplicam-se todos os dispositivos relacionados à acumulação de
cargos e ao teto de remuneração, em especial quando se fala daqueles de
natureza restritiva. Todavia, não é plausível querer extrapolar essas restrições
para o somatório dos direitos individuais. A prevalecer essa tese, estaríamos
restringindo direitos que a Constituição Federal não restringiu.
147
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Tomemos como exemplo marido e mulher, ambos servidores públicos, per-
cebendo remunerações próximas ao teto. Quando na atividade, a cada
um se aplicam as restrições anteriormente mencionadas. As respec-
tivas remunerações devem observar o teto constitucional. Só são permiti-
das as acumulações de cargos que a Constituição Federal considera legais.
Portanto, no exercício do cargo público, ou ao desfrutar da aposentadoria,
a cada um será permitido receber a remuneração/provento, ou o somatório
de remunerações/proventos de cargos legalmente acumuláveis, até o limite
fixado no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal. Qual o fundamento,
portanto, para concluir que, na hipótese de um dos dois vir a fale-
cer, passando o outro a ser beneficiário de pensão, nos termos da
lei, estaria criada uma nova situação em que seriam desconside-
rados os fatos geradores da remuneração/provento a que cada um
tem direito? Não encontro amparo legal para prosseguir em tal linha de
raciocínio, pois não se trata de verificação de renda familiar em face do teto
constitucional. Caso contrário, estaríamos admitindo a hipótese absurda de
ser mais vantajoso ao beneficiário da pensão exonerar-se de seu cargo. (BRA-
SIL, TCU, 2005. Grifo nosso)
Este entendimento se coaduna com o artigo 75 da Lei n° 8.213 (BRASIL,1991), que trata justamente
deste tema:
Art. 75: O valor mensal da pensão por morte será de cem por cento do
valor da aposentadoria que o segurado recebia ou daquela a que
teria direito se estivesse aposentado por invalidez na data de seu
falecimento, observado o disposto no art. 33 desta lei. (grifo nosso)
Continua o Ministro Ubiratan Aguiar:
[...]Por essas razões, entendo que os dispositivos da Constituição Federal só permitem
a compreensão de que todas as restrições referem-se sempre a uma única pessoa.
Quer dizer: remuneração, proventos e pensões decorrentes do exercício de cargo ou
emprego por uma determinada pessoa estão submetidos ao teto constitucional. Por
outro lado, quando se trata do recebimento de pensão, que é a única situação em
que pessoa diferente do instituidor receberá seus benefícios, cumulativamente com
remuneração ou com proventos de aposentadoria, verifico que a Constituição Fede-
ral não contém dispositivo que permita extravasar o entendimento da aplicação do
teto, pois se trata de situações de servidores distintos que geraram direitos distintos.
E, como se trata de direito, não cabe ao intérprete adotar entendimento restritivo
quando a própria lei não o fez. (BRASIL, TCU, 2005.)
Pode-se perceber com esta leitura que a Constituição Federal de 1988 não abarcou todas as situação
da aplicabilidade do teto constitucional, se propositalmente ou não, não se sabe, mas com as palavras do
próprio Ministro Ubiratan Aguiar “como se trata de direito, não cabe ao intérprete adotar entendimento res-
tritivo quando a própria lei não o fez”.
(...)
Entendo que as conclusões acima representam a aplicação de restrição quan-
do a Constituição Federal não quis restringir, pois, como busquei demonstrar,
todas as menções ao limite constitucional referem-se à remuneração e pro-
ventos de uma mesma pessoa, inclusive nos casos de acumulação previstos
na Carta Magna. Ao contrário da percepção do ilustre Representante do Mi-
nistério Público, verifico que a aplicação do teto às situações objeto da pre-
sente Consulta é que representaria mutação constitucional, haja vista que a
Carta Magna não contempla dispositivo nesse sentido.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O beneficiário da pensão não receberá melhor tratamento do que o institui-
dor. Da relação estabelecida em vida pelo instituidor com o Estado resulta o
direito do beneficiário à pensão, cujo valor submete-se ao teto constitucional.
De outra relação, constituída por outro servidor com o Estado, resulta o di-
reito à remuneração, quando na atividade, e ao provento de aposentadoria,
quando na inatividade. A cada uma das relações constituídas aplica-
-se, isoladamente, o teto constitucional. Ademais, esse entendimento
não pretende excluir as pensões do teto, até mesmo porque, com a edição
da Emenda Constitucional n° 20/98, o provento de pensão passou a constar
expressamente do limite estabelecido no art. 37, inciso XI, da Constituição
Federal. (BRASIL, TCU, 2005.)
A Corte de Contas da União acompanha o voto do Ministro Ubiratan Aguiar com o entendimento
que não deve ser despendido melhor tratamento para o recebedor da pensão por morte, como também não
deve este ser tratado de forma pior que o instituidor da pensão, haja vista que as verbas recebidas por este já
sofriam a limitação do teto constitucional.
Devido ao elevado número de julgados, em todas as esferas de jurisdição, com o mesmo entendi-
mento da não incidência do “abate-teto” sobre a soma da pensão por morte com remuneração/ subsídio ou
proventos, faz-se necessário parar esta análise e demonstrar outros pontos controversos do objeto de estudo.
Ao se falar em enriquecimento sem causa tomar-se-á como conceito para este trabalho a definição de
enriquecimento sem causa como a situação na qual o Estado aufere vantagem indevida em face do empobre-
cimento de outro, sem motivo que o justifique.
O conceito será melhor demonstrado, fazendo-se necessária antes uma análise do instituo no âmbito
geral.
O enriquecimento sem causa tratado pelo artigo 884 da lei 10.406 (BRASIL,2002) que instituiu o
novo Código Civil, configura-se pela existência de um enriquecimento obtido as custas de outrem sem uma
causa justificativa para o enriquecimento.
O enriquecimento sem causa, tem o condão de fazer com que o enriquecido restitua o empobrecido
com aquilo que se locupletou somente, sendo o foco central a vantagem auferida, e não o empobrecimento
necessariamente, sendo a restituição ao empobrecido uma espécie de reparação indireta, não se falando,
portanto em verba indenizatória, perdas e danos e etc. (SOUSA, [2015])
Como pode-se verificar no voto do Ministro relator Cezar Peluso, no recurso extraordinário, o Supe-
rior Tribunal Federal condena o enriquecimento sem causa por parte do Estado:
Processo: RE-AgR239552.Relator (a): Min. CEZAR PELUSO. Tribunal: STF.
Data da Decisão: 31/08/2004. Data da Publicação:17/09/2004. EMENTA:
RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Servidor público. Aposenta-
doria. Férias e licença-prêmio não gozadas na atividade. Indenização. Direi-
to reconhecido. Vedação do enriquecimento sem causa e responsa-
bilidade civil do Estado. Fundamentos autônomos infraconstitucionais.
Ofensa indireta à Constituição. Agravo regimental não provido. Precedentes.
A questão de indenização, na aposentadoria de servidor público, por férias e
licença-prêmio não gozadas na atividade, fundada na proibição do enriqueci-
mento sem causa da Administração e na responsabilidade civil do Estado, é
matéria infraconstitucional, insuscetível de conhecimento em recurso extra-
ordinário. (BRASIL, STF, 2004. Grifo nosso)
E é com embasamento no enriquecimento sem causa que o Ministro Relator Ubiratan Aguiar, do
Tribunal de Contas da União, embasou seu Voto, quando afirmou que o instituidor da pensão já havia pago
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
as contribuições necessárias para garantir o direito de sua esposa a receber o benefício de pensão por morte,
não podendo o Estado se apropriar destes valores:
(...)
20.Concordo com o Ministro Benjamim Zymler quando afirma que o cará-
ter contributivo é relativo, tanto é que o servidor que acumula remunera-
ções, e proventos, tem sua renda limitada pelo teto. Mas, extrapolar esse en-
tendimento é desvirtuar totalmente o caráter contributivo da contribuição.
Ademais, em se tratando de regime acima de tudo contributivo, interpretação
distinta, mais que proteger os cofres públicos estaria, de fato, ocasionando
enriquecimento sem causa da União, uma vez que as contribuições de
toda uma vida laboral, cujo objetivo do instituidor foi amparar a si ou a seus
dependentes na hora devida, passará a ser apropriada pelo Estado. Defendo,
sim, o estado de direito, mas não o abuso do poder estatal. (BRASIL, TCU,
2005. Grifo nosso)
Por fim, observa-se que ao aplicar o “abate-teto” sem os devidos procedimentos legais e sem a análise
necessária por parte da Administração Pública, além de toda a ofensa, já comentada, que é cometida contra
o beneficiário, o Estado ainda enriquece às custas das contribuições pagas pelo servidor falecido.
CONCLUSÃO
Inicialmente é necessário esclarecer que o entendimento do TCU é que, devido ao caráter con-
tributivo dos benefícios, previsto no art. 40, caput, da Constituição Federal de 1988, o teto constitucional
aplica-se à soma dos valores percebidos pelos instituidores individualmente, mas não para a soma de valores
percebidos de instituidores distintos, portanto não incide o teto constitucional sobre o montante resultante da
acumulação de benefício de pensão com remuneração de cargo efetivo ou em comissão, e sobre o montante
resultante da acumulação do benefício de pensão com proventos da inatividade, por serem decorrentes de
fatos geradores distintos, em face do que dispõem os arts. 37, XI, e 40, § 11, da Constituição Federal de 1998.
(BRASIL, TCU, 2005
De acordo com as pesquisas que fundamentaram a elaboração deste trabalho, foi possível destacar a
importância do tema em debate, pois, explanando suas características, requisitos e evolução, pode-se enten-
der a importância da criação do teto remuneratório e da aplicação legal do “abate-teto”.
Sendo este, um assunto bastante polêmico e atual, pois é prática adotada na Administração Pública,
com habitualidade, de modo que desnatura o escopo previsto pela lei, ou seja, de ter a retribuição pecuniária
paga em razão do trabalho caráter alimentício, e que não deveria sofrer nenhum desconto, principalmente
sento este desconto proveniente de um fato gerador diverso do que está sendo adotado como razão para a sua
aplicação. Podendo-se afirmar, assim, que a reiteração desta prática, está tomando força, o que vem sendo,
inclusive, repudiado por decisões judiciais, que reconhecem o acordo entre o instituidor da pensão por morte
e o Estado, já que, em vida, o servidor contribuía com a sua previdência para garantir a sua aposentadoria ou
pensão por morte para seu/sua cônjuge/companheiro(a) e a segurança econômica de sua família.
O “abate-teto” surgiu e se firmou por meio do estabelecimento do teto remuneratório com a adven-
to a Emenda Constitucional 41/2003, que em seu artigo 9º reestabelece o artigo 17 do Ato de Disposições
Constitucionais Transitórias.
Inquestionável é a sua aplicabilidade ao subsídio/remuneração ou proventos de um servidor público,
porém o que se questiona é a sua aplicação sobre à renda de um servidor cumulada na pensão deixada por
outro.
Ainda que não haja dispositivo legal expresso quanto a esse ponto, restou demonstrado que tanto
a doutrina quanto a jurisprudência dominantes reconhecem a invalidade desta postura da Administração
Pública. Mas em que pese toda a evolução do ordenamento pátrio no que se refere ao reconhecimento e
150
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
determinação dos efeitos do instituto, faz-se necessária a positivação de normas de como o Estado deve agir
neste sentido.
O Brasil é um país com dimensões continentais, em que muitos entes administrativos alegam não
fazer o devido desconto ou fazer desarrazoadamente por não ter o controle de quantos vínculos o servidor
tem e qual os valores percebidos por ele.
Ante o exposto, conclui-se que as limitações constitucionais relativas ao teto remuneratório do ser-
viço público e o entendimento doutrinário e jurisprudencial não permitem a aplicação automática do “aba-
te-teto”, e quando isso é feito, está se desrespeitando o devido processo legal, sem se garantir ampla defesa
e contraditório, sobre benefícios com fontes de custeio distintas na cumulação de subsídio/remuneração ou
proventos de aposentadoria com pensão por morte em valor que supere o subsídio mensal dos Ministros do
Supremo Tribunal Federal.
Como se tal fato já não fosse o suficiente para a não aplicação automática do “abate-teto”, ainda
ocorre o locupletamento dos valores por parte da Administração Pública sobre as contribuições do servidor
falecido, visto que este contribuiu para com o Estado com a promessa de no futuro, em caso de idade avan-
çada ou de sua morte, receber ele mesmo os proventos ou o seu cônjuge/companheiro(a) vir a receber a sua
pensão por morte para garantir a subsistência e o padrão de vida de sua família, visto que com esta finalidade
o contribuinte trabalhou a vida inteira.
Por conseguinte, não deve ser aplicado o chamado “abate-teto” sobre a soma de pensão por morte
com proventos de aposentadoria, subsídio ou remuneração decorrente do exercício de cargos, funções ou
empregos públicos, quando percebidos cumulativamente pelo mesmo beneficiário: a autotutela é legal, mas
a seara pública deve respeito ao devido processo legal.
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152
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
TRANSEXUALIDADE E DIGNIDADE:
OS DESAFIOS JURÍDICOS E SOCIAIS PARA A GARANTIA PLENA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Carlos Henrique Felix Dantas
Aluno graduando do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco
carloshenriquefd@hotmail.com
Raissa Lustosa Coelho Ramos
Aluna graduanda do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco.
raissa.lustosa@hotmail.com
SUMÁRIO: Introdução; 1. A pessoa transexual, o movimento transgênero e a busca por direitos fun-
damentais; 2. Contexto da medicina em relação à transexualidade; 3. Do direito à mudança de nome
independentemente da cirurgia de transgenitalização; Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO
Sem dúvidas, o “fenômeno transexual” indica grandes modificações históricas da percepção cientí-
fica, cultural e política da identidade sexual durante a história (CASTEL, 1995). Significa uma quebra de
paradigmas históricos que definem homens e mulheres a partir de uma genitália feminina ou masculina, sem
meio termos, em que pessoas nascem e se adaptam com sua forma biológica sem se questionar a respeito
do que é gênero e o que é papel social. A pessoa transexual é aquela que não se identifica com o seu sexo
biológico; em outras palavras, um homem que se sente “preso” no corpo de uma mulher, ou vice-versa. Uma
adequação justificada pelo fato de que a genitália e os aspectos fenótipos e genótipos de um indivíduo podem
não corresponder à personalidade psíquica com a qual ele se sente representado.
Adaptar-se em sociedade quando se é um indivíduo transexual passa pelo constante preconceito e
desrespeito que emana do exterior. O direito à identidade, que é inerente a todo ser humano, passa a ser, em
parte, negado para aqueles que se identificam como pessoas transexuais. E, considerando que a identidade
é o elo que liga o indivíduo e o resto da sociedade (BITTAR, 2015), não poder exercer sua personalidade e
identidade em conjunto representa uma agressão significativa. Esse preconceito pode ser percebido de for-
mas mais sutis, como o significativo afastamento de algumas pessoas do indivíduo tendo como motivo sua
transexualidade, ou mesmo de formas mais enérgicas, como a própria agressão física ou verbal, ou proibir a
entrada desse indivíduo em determinados ambientes, dentre outras ações. É neste ponto que o Direito deve
atuar como um defensor dos interesses individuais nessas situações de vulnerabilidade.
É um princípio da Constituição do Brasil promover o bem de todos, independentemente de condição
social, financeira, raça, ou outra condição de vulnerabilidade, o que deve ser estendido à transexualidade
(ARAÚJO, 2000).
1. A PESSOA TRANSEXUAL, O MOVIMENTO TRANSGÊNERO E A BUSCA POR DIREITOS
FUNDAMENTAIS.
154
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Os quatro pilares da sexualidade humana são: Gênero, orientação sexual, papel sexual e identidade
sexual. O gênero é o sexo biológico do indivíduo, a orientação sexual tem a ver com o desejo, com atração,
o papel sexual tem a ver com o comportamento – por exemplo, um homem que pinta as unhas está num
papel feminino –, o papel sexual não tem nada a ver com a orientação sexual, ou seja, um homem dito como
“afeminado” ou uma mulher “masculinizada” não necessariamente são homossexuais e por fim, a identidade
sexual é como o indivíduo se percebe, alguns chamam de “sexo cerebral”.
Transexual é o indivíduo que nasce biologicamente pertencente a um determinado sexo, mas sen-
te-se, percebe-se e tem a vivência psíquica de pertencer ao outro sexo. A identidade de gênero (homem ou
mulher) não é congruente com o sexo anatômico, biológico, ou seja, o que define o transexual é que o seu
corpo é de um sexo, mas seu cérebro é de outro. São mulheres presas num corpo de homem, ou vice-versa. A
sigla LGBTTT tem sido utilizada hoje para designar o grupo de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais,
transgêneras e travestis, respectivamente.
O termo transgênero se refere a uma pessoa que se identifica psiquicamente com o gênero oposto
ao seu de nascimento, ou que pertença a ambos ou nenhum dos dois sexos, estando incluídas nessa classe
travestis, pessoas intersexuais, pessoas transexuais, e mesmo Drag Queens e Drag Kings. É importante frisar
que o Movimento Transgênero (Transgender Movement) é distinto do do Movimento LGBTTT, que difere
por reivindicações próprias (ÁVILA; GROSSI, 2012). A diferença entre transexuais e transgênero pode ser
definida, de maneira básica, porque o Transgênero, apesar de possuir uma identidade de gênero distinta da
biológica, como ocorre com os transexuais, não visa enquadrar-se de forma completa em um só gênero, ou
deseja transitar entre esses, como é o caso das Drag Queens e Drag Kings, pois acreditam que essa é a melhor
forma de expressar sua identidade e dignidade.
Infelizmente, atitudes homofóbicas e transfóbicas ainda estão arraigadas na construção de valores
sociais pelo mundo todo. E isso se agrava quando o preconceito é o que diferencia aqueles que têm acesso
aos seus direitos básicos daqueles que não têm. É função primordial do Direito impossibilitar disparidades no
que diz respeito à efetivação de direitos, garantia constitucional de todos. É claro que não se pode englobar
e enumerar, em um texto apenas, todas as violações e agressões sofridas pela comunidade LGBTTT, pois
estas são, infelizmente, demasiadas. Mas tentaremos, na perspectiva da dignidade e da autonomia de tomar
decisões e ter acesso à direitos básicos, exemplificar algumas questões que merecem a atenção do Estado e
da população.
2. CONTEXTO DA MEDICINA EM RELAÇÃO À TRANSEXUALIDADE.
Atualmente, no Brasil, o grupo de pessoas que corresponde aos transexuais possui a extensão de seus
direitos em eminência. No entanto, ainda não se sabe quando alguns direitos fundamentais serão finalmente
garantidos, não sendo somente visto na teoria, mas, sim, também na prática. Nesse sentido, pode-se dizer
que o respeito a diferença não é algo impossível ou inalcançável, mas, sim, que pode ser trabalhado e proces-
sualmente aferido pela parcela da população que a rejeita, através da educação e do discernimento. A partir
disso, poderá ser falado que os direitos individuais poderão ser garantidos através da dignidade da pessoa
humana, como também através do princípio da autonomia da vontade, isonomia e do direito à liberdade.
Muitas pessoas não fazem ideia de como é a perspectiva de mundo das pessoas transgêneras. Viver
numa condição incompatível com o gênero que se tem é um fardo extremamente traumático. Isso ocorre
porque a sociedade tem necessidade em enquadrar as pessoas em papeis sociais, de acordo com a cultura de
cada lugar (EDWARDS, 1991). A não identificação emana não só da composição biológica, do corpo em si,
como muitos pensam, mas do próprio status de homem ou mulher. Desde os primeiros anos de vida, a pessoa
transgênera tem que conviver com todo o estereótipo do sexo oposto ao qual se identifica. Quando se entra
em lojas para produtos infantis, a separação é bem clara: o polo rosa, e o polo azul. Menino, menina. A dife-
renciação se faz bem marcante, como se a sociedade impusesse, mesmo que de formas subjetivas, a necessi-
dade de separar e distinguir um gênero do outro, desde cedo. Os meninos com carrinhos, e as meninas com
suas bonecas. Portanto, o sofrimento da pessoa “trans” começa desde cedo, vivendo num mundo que não é
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
seu, cercada por rótulos que a sociedade imprime e com o eterno sentimento de deslocamento psicológico, e
isso é um problema sociológico (BENTO, 2012).
Por causa do desconforto com o gênero biológico, algumas pessoas podem optar pela intervenção
médica para o processo de transformação em seu corpo. Os profissionais da medicina analisam e proferem
o diagnóstico clínico às pessoas transexuais de transexualismo, termo que designa transtorno psíquico de
gênero. Uma vez dado esse diagnóstico, um psicólogo ou psiquiatra deve estudar o paciente e emitir um
parecer que comprove o estado no qual vive o indivíduo, ou seja, diferente em gênero de sua natureza bioló-
gica. Depois disso, feitos todos os requisitos e análises, é preciso tratar com um profissional endocrinologista
para que se inicie o tratamento hormonal, sempre acompanhado de terapia psicológica. Quando o indivíduo
decide realizar a cirurgia de transgenitalização, aceita passar por todas essas etapas de transformação conhe-
cidas popularmente por “mudança de sexo”. A cirurgia de redesignação sexual tem finalidade terapêutica de
proporcionar ao paciente a identificação com seu corpo biológico e bem-estar. O Conselho Nacional de Me-
dicina é responsável pela autorização dos profissionais aptos a realizar o procedimento, e é necessário que os
estabelecimentos (hospitais, clínicas, consultórios) possuam uma equipe preparada e multidisciplinar para
realizar todas as etapas do processo.
Vale ressaltar, ainda, como bem entendem alguns estudiosos da área, que as pessoas transexuais se
dividem, também, entre as que são operadas e as que não são operadas. Desse modo, existem pessoas tran-
sexuais que tem interesse de fazer a transgenizatalização e as que não tem interesse em fazer a cirurgia de
mudança de sexo, devido às consequências possíveis da operação, como mutilação genital ou a possibilidade,
se a cirurgia for mal feita, de que o indivíduo que passou pela mudança de sexo não venha mais a sentir
prazer. Nesse sentido, parte do grupo de pessoas transexuais sofrem, pelo medo de fazer a cirurgia, hiper-
potencializando, assim, um sofrimento comum que se alicerça com o sofrimento que é fruto da sociedade.
O campo da Medicina guarda a polêmica de estar constantemente batendo de frente com a ideolo-
gia transexual, ao qualificar tal fenômeno como transtorno. Os métodos de análise e diagnóstico funcionam
como se, efetivamente, se tratasse como uma doença. E a comunidade “trans” ainda não se decidiu, de for-
ma una, o que pensar sobre isso. Há um medo muito grande de que se perca o direito de realizar o tratamento
e a cirurgia popularmente tratada como “mudança de sexo”, como cada passo é lento e conquistado através
de muita luta, é normal que a população transexual sinta-se intimidada. E no campo jurídico não se há uma
resposta sobre o problema. Quando se pleiteia que esse tratamento seja gratuito e custeado pelo Estado, ve-
rifica-se um choque no que diz respeito ao tratamento dessa condição como doença. Presencia-se dentro da
própria comunidade transexual e transgênera ideias opostas nesse sentido, o que é normal por se tratar de
uma questão polêmica. Afinal de contas, nem todo mundo tem condições financeiras para arcar com os cus-
tos desse procedimento e, sendo realizado pelo meio de saúde pública, seria necessário o enquadramento do
fenômeno como uma doença. E uma das lutas defendidas pelo Movimento Transgênero é justamente contra
a medicalização e patologização da transexualidade (ÁVILA; GROSSI, 2012), pois acreditam que o contexto
de doença não os representa, ou representa sua verdadeira condição como pessoa humana digna.
A transexualidade – tratada como transexualismo na Medicina – foi enquadrada no Manual Diag-
nóstico e estatístico das Desordens Mentais desde 1987 (CASTEL, 2001), sendo considerada, portanto, uma
doença atribuída para pessoas com “disforia de gênero”, que demonstrassem vontade de transformar o seu
sexo corpóreo e gênero social, vontade esta que só seria concedida após o acompanhamento do paciente du-
rante dois anos por profissionais da área, tendo o aval clínico para tal. O fenômeno chamado pela Medicina de
transexualismo também pode ser encontrado na Classificação Internacional de Doenças como “transtorno
de identidade de gênero”.
É claro que não é aceitável, no âmbito dos Direitos Fundamentais, que um indivíduo seja enquadrado
como “doente” porque é transgênero, sem qualquer debilidade ou incapacidade física ou psicológica. O pro-
cesso de precisar de um tratamento, de ter que se submeter à avaliação e às decisões de um profissional para
decidir se o indivíduo pode ou não pode submeter-se a uma cirurgia de transgenitalização e ao tratamento
hormonal é uma violência gravíssima. Não poder viver adequadamente sua identidade de gênero já é uma
violação à dignidade, e passar por todas essas etapas torna-se uma violação ainda maior (BUTLER, 2006).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
3. DO DIREITO À MUDANÇA DE NOME INDEPENDENTEMENTE DA CIRURGIA DE
TRANSGENITALIZAÇÃO.
É fato que qualquer questão relacionada à sexualidade e suas nuances, inadequações, modificações não
condizentes com os padrões heteronormativos e cisgêneres, desperta rejeição social. Épocas transcorreram
na história da humanidade sem que as diferenças fossem aceitadas ou mesmo ouvidas. Os registros históricos
da humanidade trazem a informação de que a sexualidade foi estigmatizada e moldada segundo padrões de
comportamento que não dizem respeito a um sentimento unânime – embora majoritário –, deixando dessa
maneira classes de pessoas à margem da aceitação social.
Desde a Idade Média, os avanços da Ciência costumam aborrecer o conservadorismo e a área jurí-
dica, e não só o Clero e a Igreja, como muitos pensam. É fato que, durante muito tempo e talvez até hoje,
o ordenamento jurídico tenha tendência a seguir os padrões sociais e os preconceitos populares, as prefe-
rências majoritárias, por assim dizer. Hoje, a biologia afirma que a determinação do gênero de uma pessoa
não é necessariamente decorrente da formação de uma genitália externa feminina ou masculina, e suas
características anatômicas. Embora existam, doutrinariamente, dentro da psicologia e medicina, explicações
diferentes para o fenômeno da não identificação psíquica com o corpo biológico – seja causada pelos próprios
genes da pessoa, seja uma formação diferenciada do feto justificada na diferença temporal entre o período
de formação do cérebro e o período de formação da genitália – o entendimento de que a transexualidade
existe é irrefutável. Ainda que a pessoa transexual reúna em si fisicamente todos os atributos do seu sexo
biológico, pode sentir-se psiquicamente direcionada com o sexo oposto. É um fato recente a possibilidade de
uma pessoa transexual poder alterar seu nome nos registros públicos, direito este que passou muito tempo
sendo negado pelo Estado. Fechar os olhos a uma realidade explícita não vai fazê-la desaparecer e a omissão
legal conseguirá apenas fomentar ainda mais a discriminação e o preconceito (DIAS, 2011.). O importante é
perceber que nem sempre a vontade da maioria deve ser sobreposta a interesses individuais, principalmente
se estes estão ligados a direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. “Minorias” devem ser respeitadas
também, independente de aprovação social.
Na lei Lei 6015/73 de Registros Públicos, há a disposição de que qualquer pessoa pode mudar seu
prenome (primeiro nome) caso prove que seu “apelido público notório” – a forma como ela é popularmente
conhecida – é diferente desde prenome civil. O que não limita, semanticamente, que se interprete de forma
inclusiva ao nome social no caso das pessoas transexuais. Tal lacuna possibilita, dessa forma, que é válido
o entendimento de que este dispositivo pode ser voltado ao direito da pessoa transexual de substituir seu
prenome de nascença pelo seu nome social, que condiz com o gênero com a qual ela se identifica e não a
provoca sofrimento ou constrangimento. Infelizmente, como o ordenamento jurídico brasileiro ainda se faz
demasiadamente omisso à causa transexual, é necessário conquistar os direitos da população transexual
através de analogias e interpretações do texto legal já existente, além de jurisprudências. Sem nenhuma
menção expressa no Código Civil ou na Lei de Registros Públicos.
Nada mais justo, portanto, que seja permitido à pessoa transexual alterar seu nome para adequar-se
ao gênero correto, mesmo sem antes ter efetuado a cirurgia e o tratamento para a mudança física. Não se
poderia exigir isso das pessoas, em primeiro lugar, porque se feita completamente de forma privada, esse tipo
de procedimento médico pode facilmente ultrapassar a marca de 40 mil reais. Em segundo, caso se opte por
pleitear a realização da cirurgia através do serviço médico público, seria necessário entrar numa fila imensa
que pode durar anos, ou mesmo décadas para ser realizada. Até porque, para que uma pessoa possa pas-
sar por esse tipo de procedimento cirúrgico, precisaria de laudos médicos e psiquiátricos comprovando seu
estado de desconexão com o sexo biológico, um procedimento que também requer tempo, como informa a
resolução 1955/2010 do Conselho Federal de Medicina.  
	 O processo de mudança de gênero com intervenção cirúrgica, hormonal e terapêutica é uma
das opções para que a pessoa transexual se sinta melhor sobre si mesma. Apesar de algumas preferirem per-
manecer com o aspecto físico e biológico que já possuem, exigindo apenas a mudança jurídica e social, boa
parte da população “trans” tem necessidade dessa intervenção. Entretanto, muitos ainda não fazem ideia a
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
quem recorrer quando tomam essa decisão. Todo o procedimento de cirurgias de transgenitalização no Brasil
é muito complicado e burocrático. Por esse motivo, muitos transexuais procuraram ajuda médica em outros
países, o que é um privilégio para poucas pessoas que integram esse segmento de indivíduos, o que, em face a
isso, acarreta uma procura de maneiras ilícitas de transgenitalizações, ora trazendo resultados esperados, ora
ocasionando mutilações no corpo ou mesmo morte. Nesse sentido, a ilegalidade carrega um escopo jurídico
que precisa ser superado, que seria a facilidade procedimental de mudança e adequamento desse indivíduo
em fiel conexão com sua personalidade. Exigir a comprovação de que a pessoa transexual passou por todas
essas etapas antes de concedê-la o direito de ter um nome social é ignorar toda a realidade composta por
barreiras pela qual essa comunidade é forçada a conviver durante anos, por bem dizer, ás vezes vida inteira.
Superado esse obstáculo, felizmente, várias jurisprudências com o objetivo de Ação de retificação de
registro público para alterar o nome de nascença da pessoa transexual já estão sendo aplicadas em cartó-
rios e tribunais em todo o País, depois de muita luta. Porque se torna cada vez mais claro, com o passar do
tempo e das lutas reivindicatórias da classe LGBTTT, a regra que sempre predominou que o sexo é ditado
pela genitália – e seria a genitália a responsável por separar um homem de uma mulher – tornou-se um
pensamento ultrapassado. O que faz um homem, afinal? O que faz uma mulher? Antes de nascermos, a
primeira coisa que todos querem saber é: É um menino, ou uma menina? Parece uma necessidade urgente
da sociedade definir o sexo da criança antes mesmo que ela saiba se reconhecer como um indivíduo. E
quando nasce uma criança hermafrodita – com a combinação dos dois sexos – imediatamente os médicos
e a família sentem-se compelidos a reduzir sua ambiguidade através de uma intervenção cirúrgica, para
que seja determinado um sexo apenas (MYERS, 1999). A mensagem que fica é de que nós temos, obriga-
toriamente, que ter um sexo designado, nada que fique no meio, nada que misture ambos. Segundo o psi-
cólogo norte-americano David Myers: Entre o dia e a noite há o crepúsculo. Mas entre homem e mulher,
em termos sociais, não há nada.
A sociedade é muito radical em sua necessidade de definir um binarismo de gêneros, e gêneros es-
ses determinados exclusivamente por uma genitália. Tal pensamento não condiz mais com a realidade de
muitas pessoas, portanto não pode ser representada pelo Direito, que deve ser um instrumento de todos.
Essa cultura de papeis sociais predefinidos por gênero (EDWARDS, 1991.) é nociva para aquelas pessoas
que não estão dispostas a adaptar-se a todo custo a uma sociedade que não as aceita ou define.
O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e a ABGLT – Associação Brasileira de Lés-
bicas, Gays, Travestis e Transexuais protocolaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº. 4275),
movida pela Procuradoria-Geral da República em 2009 pedindo o reconhecimento do direito das pessoas
transexuais mudarem seu nome e sexo sem que seja necessário realizar a cirurgia de transgenitalização,
mas mediante a apresentação de laudos psiquiátricos comprovando a transexualidade do indivíduo. Paulo
Iotti, advogado e constitucionalista e atual diretor-presidente do GADvS, representou o GADvS e ABGLT
no processo referido. Sua proposta de levar para o Supremo Tribunal Federal uma visão contemporânea de
sexualidade e gênero, conseguiu grande repercussão nacional. O direito de ratificar o nome, adequando-se à
condição psíquica do indivíduo está ligado intimamente à identidade pessoal e social da pessoa, sendo indis-
pensável para obtenção da sua qualidade de vida e bem-estar.
Ademais, pode ser citado como uma vitória para a comunidade transexual o Decreto 49476, de
15/8/2012, que instituiu a Carteira de Nome Social para Travestis e Transexuais no Estado do Rio Grande do
Sul. Embora tal decreto apenas vincule um estado, em todo o Brasil esse direito deve ser respeitado, como
dita as jurisprudências sobre esse tema. Segundo a avaliação do presidente da ABGLT, Toni Reis, essa é a
forma correta de julgar os pedidos. Para visar conforto à população e atender suas necessidades, ao conceder
nome adequado, diferente do de nascença, à pessoa transexual, sob a alegação de que essas pessoas são ci-
dadãs, que merecem o respeito da mesma forma que outras pessoas. Também vale ser citada a Lei 3/2007,
de 15 de março, que regula os requisitos de acesso para alterar o registro do sexo de uma pessoa no cartório,
quando esse registro não reflete a sua identidade de gênero.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Os avanços na área do Direito da Diversidade têm aumentado não só no Brasil, como no mundo. No
entanto, ainda sim é preciso que se faça mais, que se estude mais. As constituições e códigos ainda são muito
arcaicos, e não só em relação à comunidade LGBTTT, mas às novas formas de se relacionar das sociedades
em geral.
A pessoa transexual, bem como a transgênera, precisa ter mais visibilidade dentro da sociedade, pois
muitos ainda tratam o tema como um “tabu”. E, quando essas pessoas estão numa posição dentro do Gover-
no, a vulnerabilidade se torna evidente pela falta de políticas públicas inclusivas, pela falta de legislação sobre
o tema, mas, especialmente, pelo ódio e medo do diferente que ainda assola as sociedades pelo mundo. É
necessário que se complemente as leis já existentes com medidas novas que acompanhem as necessidades
atuais. É importante que se continue fazendo, dentro dos tribunais, o papel importante de retificação de
nome para as pessoas da comunidade “trans”, o que foi uma grande vitória para a Justiça brasileira. A urgên-
cia não começou há pouco tempo, é uma questão que vem sendo há muito tempo debatida e requerida pelo
povo. É ao povo que o legislador deve servir e atender, afinal de contas.
No mais, além de no âmbito jurídico, é necessário que se mude o jeito de pensar das pessoas, e isso
é feito com campanhas, atos públicos, ajuda da mídia e de veículos de comunicação em geral, mecanismos
públicos, ações direcionadas a reduzir o preconceito também. Nenhum padrão é rompido facilmente, mas,
para o bem de uma sociedade bem estabelecida e preparada para acolher a diversidade, faz-se necessário
uma construção coletiva de um novo pensar.
Ademais, o direito de mudança de nome social, o direito de ser e existir, assim como outros direitos
fundamentais, são tidos, por muitos, como novos direitos; mas será que são novos, ou sempre existiram e
nunca foram “ouvidos”? Nesse sentido, não são novos direitos porque são novos, são novos direitos porque
sempre foram tidos como direitos inexistentes. São novos direitos, portanto, porque historicamente há um
fluxo maior de pessoas a impulsionar respaldo jurídico e estatal a respeito da questão da transexualidade. É
um direito de ser e existir que deve ser considerado como infungível, fundamental e inalienável. Não há mais
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PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E TOMADA DE
DECISÃO APOIADA:
DESAFIOS E PROPOSTAS PARA UM EFETIVO ACESSO À JUSTIÇA
Carlos Henrique Felix Dantas
Aluno graduando do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco.
carloshenriquefd@hotmail.com
Raissa Lustosa Coelho Ramos
Aluna graduanda do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco. raissa.
lustosa@hotmail.com
SUMÁRIO: Introdução; 1. Interpretação e evolução histórica do início da personalidade jurídica no
brasil e no mundo; 1.1. Distinção lógica entre personalidade jurídica e capacidade civil; 2. Personali-
dade jurídica da pessoa com deficiência; 3. Tomada de decisão apoiada: desafios e propostas para um
efetivo acesso à justiça; 4. O acesso à justiça da pessoa com deficiência como ferramenta efetiva para
a busca da garantia dos direitos fundamentais; Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO 	
Ao decorrer da vida do indivíduo que possui algum tipo de deficiência, a interatividade com o coletivo
se apresenta de maneira diferenciada; seu espaço no núcleo social, por diversas vezes, é limitado, restando
a esse indivíduo a posição de passividade ou impotência atrelada a sua deficiência. Essa lógica, no entanto,
nos parece um pouco controversa e insatisfatória. Em plenitude, entende-se, graças ao modelo social, gra-
dualmente implantado, que o assistencialismo, caractere principal do modelo médico, precisa ser mitigado e
transformado num processo de capacitação, para dar ensejo ao pleno desenvolvimento da capacidade de agir
e da capacidade de exercício da pessoa com deficiência, para garantir, então, que esse seja um cidadão em
plenitude, capaz de praticar atos na vida civil acompanhados ou não da tomada de decisão apoiada.
Nesse sentido, é necessário o debate acerca dos direitos intrínsecos a personalidade das pessoas
com deficiência e de que forma eles precisam, em plenitude, ser garantidos tanto na esfera dos interesses
privados, como na esfera de interesses coletivos, por conseguinte, salvaguardado na ideia dos direitos fun-
damentais. Ademais, o verdadeiro sentido por trás da lógica dos direitos fundamentais e dos direitos da per-
sonalidade, são a inexcusábilidade e a inalienabilidade desses direitos ora tidos como individuais, ora tido e
visto como coletivos, “são direitos que se relacionam com atributos inerentes à condição da pessoa humana”.
(BITTAR, 2015, p. 38).
A partir dessa lógica, deve-se ater a noção de respeito à diferença e a plena intenção de garantir os
direitos disponíveis de cada indivíduo. Ademais, desde a Convenção da ONU, sobre os direitos da pessoa
com deficiência, que existe a clara intenção de garantir direitos fundamentais, fragmentados pela noção de
dependência e da ideia de falta de capacidade das pessoas com deficiência em gerir determinados atos em
autonomia de suas vidas. Os direitos da personalidade, pois, surgem a partir do nascimento do indivíduo,
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
isto é, desde a sua concepção com vida. No entanto, a intolerância e a falta de um olhar humanitário para o
outro tornaram de muita importância a ratificação de direitos tidos como óbvios, como o direito à autonomia,
direito à reprodução, direito pleno de ser e existir, assim como direito à pratica de determinados atos que
não sejam até negociais. Esses direitos, portanto, não novos, sempre existiram, e contemplam a plena noção
de direitos da personalidade. Esse artigo, desse modo, procura abordar de que maneira há uma inclinação,
a partir do Estatuto da pessoa com deficiência, em reconhecer esses direitos imprescindíveis e inalienáveis.
Diante disso, vale ressaltar que o respeito aos direitos da personalidade, de qualquer indivíduo, se
iniciam a partir do modo de tratamento que se dá o outro. Logo, é necessário falar a respeito do uso correto
de tratamento da pessoa que possua qualquer tipo de deficiência. Entende-se atualmente, por exemplo, que
não se é mais correto o uso do termo deficiente, sendo necessário, portanto, o uso do termo pessoa, afrente
do termo deficiência.
Atualmente, a expressão utilizada é “pessoa com deficiência”. A idéia de
“porta”, “conduzir” deixou de ser a mais adequada. A Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência, que ingressou no sistema constitucio-
nal brasileiro por força do Decreto-Legislativo n. 186 de 09 de julho de 2008
e do Decreto de Promulgação n. 6949, de 25 de agosto de 2009, utiliza-se da
expressão contemporânea, mais adequada. A pessoa (que continua sendo
o núcleo central da expressão) tem uma deficiência (e não a porta). Com a
aprovação da Convenção, que tem equivalência com a Emenda à Constitui-
ção, por força do parágrafo terceiro, do artigo quinto, da Constituição Federal,
a terminologia nova revogou a antiga. Assim, apesar de os textos impressos
trazerem a expressão “pessoa portadora de deficiência”, a aprovação da Con-
venção, com status equivalente a Emenda Constitucional, tratou de alterar
o dispositivo constitucional. Assim, a Constituição deveria já estar retificada
para “pessoa com deficiência”, nome atual, constante de norma posterior,
convencional, de mesmo porte de uma emenda. Sendo assim, a Constituição
já foi alterada neste tópico. (ARAÚJO, 2011, p. 16)
Percebe-se, portanto, que além de qualquer deficiência que o indivíduo possa ter, há a necessidade
de usar o termo “pessoa” como indispensável, afim de garantir o respeito aos direitos da personalidade, mais
precisamente, ao direito de identidade, à honra e ao respeito, por exemplo. É imprescindível para garantir
a noção de igual, humanamente igual, perante o direito de qualquer ser humano. Desse modo, se é possível
perceber que não é mais correto o uso do termo portador de enfermidade ou o uso do termo doente mental.
O primeiro é incorreto pelo simples fato de que a pessoa com deficiência não porta a sua deficiência, mas sim
vive com ela. Nesse sentido, “portar” traz a ideia de transitoriedade, algo que alguém porta num momento,
mas que pode simplesmente deixar de portar, como uma camisa. O segundo, é incorreto pelo simples fato de
“deficiente” carregar consigo a noção de algo negativo, de menos, de algo incompleto ou vicioso.
1. INTERPRETAÇÃO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO INÍCIO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO
BRASIL E NO MUNDO.
Há uma controvérsia entre o pensamento dos autores de diferentes Estados nacionais que delimitam
a respeito do começo da personalidade civil do indivíduo. Essa diferente percepção acompanha cronologica-
mente uma perspectiva de pensamento que segue em modificação e, em alguns casos, que segue na insistên-
cia da manutenção do pensamento, dentro do ensejo do meio jurídico de cada país. Particularmente o Estado
brasileiro, que é o foco desse trabalho, se apegou a noções do direito romano – que em tese influenciou de
grande maneira boa parte do mundo ocidental – além de outras teorias que em breve serão explanadas.
O direito romano parte da perspectiva de que a personalidade jurídica coincidiria com o nascimento,
antes do qual não seria possível falar a respeito de sujeito de direito ou objeto do mesmo. Para tal corrente de
pensamento, o feto, dentro da mãe, corresponderia a uma parte dela, “portio mulieris vel viscerum”, e não a
um ente ou um corpo, como bem explana o autor Caio Pereira (2002). Somado a isso, não significa que o feto
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
não teria seus interesses assegurados. Como particularidade, a mesma corrente pontua que mesmo sendo
necessário o nascimento para a adesão de direitos, enuncia, também, a regra da antecipação presumida de
seu nascimento, “nasciturus pro iam nato habetur quoties de eiues commodis agitu”. Desse modo, farar-se-á
uma equiparação do feto ao já nascido, não para considera-lo pessoa, mas com o propósito de assegurar seus
interesses novamente.
Observando o Código Civil brasileiro de 2002, que trata do surgimento da personalidade civil no seu
artigo 2º, percebe-se que o legislador abre espaço para diversas discussões doutrinárias, pois o texto aborda
o tema de maneira vaga. Fica entendido a partir do dispositivo que a personalidade civil de uma pessoa só
pode começar a partir de seu nascimento com vida, mas, ao mesmo tempo, a lei assegura desde o momento
da concepção os direitos do nascituro, o que dá uma certa ideia de confusão. A controvérsia reside justamen-
te no fato de o nascituro ter alguns direitos assegurados, e ao mesmo tempo ter o reconhecimento de uma
personalidade negado expressamente pelo Código Civil. A questão é que esse tema é extremamente subjetivo
e não se pode ainda afirmar uma verdade absoluta sobre ele, e por esse motivo é que existem correntes dou-
trinárias distintas.
A discussão a respeito das teorias Natalista e Concepcionista são trazidas também pelo Código Civil.
A que possui maior relevância, é claro, é a que em abrangência o Código Civil brasileiro ado-
tou, entretanto, é de extrema relevância se falar a respeito da outra, já que se fez necessário
a discussão. A Natalista se refere a ideia de que a personalidade só seria adquirida a partir do
nascimento com vida, de tal forma, o nascituro só seria pessoa em meio extrauterino, gozando
antes, apenas, de mera expectativa de direito. Ao contrário dessa conotação, a concepcionista
parte do princípio de que o nascituro já é pessoa. Logo, adquire personalidade desde a concep-
ção, inclusive no que tange a certos direitos patrimoniais. Ainda os concepcionistas afirmam
que, quanto ao direito à herança não há consolidação desse direito, exigindo-se o nascimento
(se abortar não haverá transmissão). Dentre ambas teorias abordadas, evidentemente, a ado-
tada pelo Código Civil foi a Natalista. Representando essa linha de pensamento, Carlos Roberto
Gonçalves define que o nascimento ocorre no momento em que a criança é separada do corpo da mãe, seja
através de parto natural ou por meio de intervenção cirúrgica, sendo essencial apenas que se desfaça a uni-
dade biológica que vincula os dois corpos – o cordão umbilical – sendo que os dois corpos possuam, depois
disso, vida orgânica separada.
Outro ponto que carece de ser bem explanado, como bem coloca o autor Salvo Venosa
(2003), seria o de que o nascituro é um ser já concebido, isto é, ele se difere daquele que não
foi, obviamente, mas que poderá ser sujeito de direito no futuro, dependendo de uma “prole
eventual”. Um ponto característico dessa afirmação, seria a noção de direito eventual, que se-
ria um direito em mera potencialidade. Logo, no Brasil, entendemos que a concepção do nasci-
turo extrapola a concepção da expectativa de direito. Sob o prisma da ideia de direito eventual,
pode-se entender que a questão está longe de estar pacífica na doutrina, tanto é que a teoria
Concepcionista é de extrema importância, como foi dito anteriormente, por em diversos pontos
do sistema brasileiro ser sentida a sua influência, “na medida que o nascituro é tratado como
se fosse pessoa” (BEVILÁQUA, 1975, p. 98).
A partir do que foi ressaltado, pode-se perceber que a então ideia do começo da personalidade jurídi-
ca do indivíduo, começa a partir do nascimento com vida, baseada na ideia da Teoria Natalista e do Direito
romano. Mas, para aprofundar-se, o que corresponderia a vida e o nascimento para a concepção do Código
Civil brasileiro?
Para Caio Pereira (2002), nascimento ocorreria quando o feto é separado do ventre materno, quer
seja a partir do parto natural, induzido ou artificial. O mesmo afirma que não há o que cogitar a respeito de
gestação, ou indagar se o nascimento ocorreu nos termos ou antecipadamente, seriam questões desnecessá-
rias. Para o Direito Civil é suficiente e necessário apenas que se desfaça a unidade biológica, de modo a serem
mãe e filho, dois corpos com economia orgânica próprios.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Já a vida se espelharia na ideia do momento em que se opera a primeira troca oxicarbônica com o
meio ambiente. De acordo com o autor, viveu a criança que tiver inalado ar atmosférico, mesmo que morra
instantes depois; ou seja, depois de ter respirado, viveu: a entrada de ar nos pulmões denota vida, mesmo
que não tenha sido cortado o cordão umbilical e as suas provas serão feitas através da visualização do choro,
movimentos e mais especificamente, quando houver padecimento, nos processos técnicos de que se utiliza
a medicina legal.
1.1 DISTINÇÃO LÓGICA ENTRE PERSONALIDADE JURÍDICA E CAPACIDADE CIVIL
	 A noção de personalidade se atrela a ideia de começo, de início de vida, findo o que já foi con-
versado, portanto, e a direitos inerentes a personalidade da pessoa jurídica, sendo essa física ou natural, por
exemplo. A personalidade jurídica, por conseguinte, é a aptidão para ser titular de direitos e contrair obriga-
ções na órbita jurídica. É importante falar, também, que é o atributo do sujeito de direito. Para o direito o sen-
tido de personalidade tem um sentido técnico, é a qualidade do sujeito de direito. A pessoa física e a pessoa
natural, portanto, é dotada dessa aptidão genérica. A pessoa jurídica também é dotada desse atributo, dessa
personalidade jurídica. Logo, o sujeito de direito é dotado de personalidade jurídica. (GAGLIANO, 2010, p.
124).
Diante disso, a ideia de personalidade jurídica carrega consigo a ideia de direitos inerentes a própria
constituição do indivíduo, sendo lhe carregado de direitos e obrigações que devem ser cumpridos para melhor
permitir o desenvolvimento interpessoal daquele indivíduo sujeito de direitos e obrigações, e é a partir dessa
lógica que se encaixa a ideia de capacidade civil. A capacidade civil está atrelada a lógica de possibilidade de
exercício de direitos e obrigações. O indivíduo, por exemplo, que obtiver personalidade jurídica, será aquele
que em potência poderá praticar atos jurídicos. No entanto, nem todo ato jurídico é possível, existem atos
ilícitos que contemplam e viciam a celebrações de negócios jurídicos. Um indivíduo, que, em pleno exercício
de sua capacidade civil desejar praticar atos patrimoniais, diz o Código Civil, deverá ser capaz, possuir capa-
cidade civil para constituir ato jurídico válido. Mas o que seria ato válido e de que forma ele atrelaria a lógica
de possibilidade e eficácia na celebração de um ato jurídico? Um ato possível e que produza eficácia, precisa,
primeiramente, existir. É necessário que o indivíduo seja capaz, que possua validade e haja boas intenções
e ausência de má-fé. A capacidade, portanto, está atrelada também, a lógica de idoneidade da celebração de
qualquer ato jurídico.
Em gênese, a ideia de capacidade, antes da lógica da Lei N° 13.146, colocava na figura do curador
prerrogativas que, por vezes, alienavam a capacidade de dizer e manifestar vontade do indivíduo que tivesse
deficiência. A partir da alteração da nova lei, houve uma tentativa de devolver a autonomia para esse indiví-
duo, respaldada, obviamente, ainda de uma assistência, de um acompanhamento, assunto que será tratado
adiante. Nesse sentido, a ideia de capacidade é a possibilidade de ditar direito de acordo com a vontade do
promitente, do indivíduo dotado de personalidade que deseja praticar, provocar ou se eximir de qualquer
possibilidade de direito atinente a sua personalidade.
Nesse sentido, a capacidade civil é classificada em capacidade de direito e capacidade de exercício.
A capacidade civil de direito, também conhecida como capacidade jurídica, é a aptidão para adquirir e trans-
mitir direitos e para a sujeição a deveres jurídicos. Já a capacidade de exercício, é a também conhecida por
capacidade de fato, entendida como a capacidade de agir ou a capacidade negocial, isto é, a capacidade de a
pessoa também agir com eficácia jurídica, em especial a capacidade de produzir, mediante negócio jurídico,
efeitos jurídicos. (LÔBO, 2013, p. 107, p.108).
2. PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
Em verdade, se é possível ratificar que ao longo da história da humanidade houverem inúmeros mo-
mentos em que a pessoa com deficiência foi tratada de maneira desumana, sendo, inapropriadamente, colo-
cada na condição de animal, na condição de menos, na condição de pouca importância, como em sociedades
da Idade Antiga, por exemplo. Nesse período, havia a predominância do antropocentrismo, que é um olhar
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
do mundo voltado para o homem, também marcado pelo equilíbrio e a perfeição. A partir dessas caracterís-
ticas se é possível, entender, por exemplo, que era nada mais do que comum o olhar para o outro em busca
de uma perfeição que, em tese, era de difícil encontro. Diante disso, ora as pessoas com deficiência eram na
História Antiga e Medieval tratadas com uma política assistencialista e ora com uma eliminação sumária de
outro – políticas essas adotadas veemente em muitos estados soberanos ainda hoje. Em Esparta, por exemplo,
os bebês e as pessoas que adquirissem algum tipo de deficiência eram descartados dentro da lógica cultural
de utilidade e perfeição do período. (SILVA, 1987).
O conceito de perfeição e utilidade dentro de uma lógica político-cultural segue em um performático
dinamismo até os dias de hoje. Nesse sentido, por exemplo, a tutela jurídica do direito incide nesses indivídu-
os nos dias de hoje, graças a uma evolução histórico-cultural, principalmente a partir da idade moderna, de
que existe, sim, um lugar, uma utilidade, o que revela uma triste realidade que associa a vida e a existência
da pessoa com deficiência no tempo condicionada a necessidade de utilidade definida por padrões generica-
mente impostos.
A ideia de personalidade jurídica, portanto, se atrela a noção de vida. Por conseguinte, uma série de
direitos e obrigações são constituídos como inerentes ao indivíduo concebido a partir da simples troca oxi-
carbônica. Nesse sentido, a ideia de personalidade jurídica da pessoa com deficiência nada se diferencia com
a personalidade jurídica de qualquer outro indivíduo que não possua qualquer deficiência, apesar do dife-
rente tratamento concebido historicamente pelas sociedades primitivas até as sociedades contemporâneas.
Há, portanto, um olhar associado a utilidade e trabalho daquele que seria o ideal de produção. A existência
condicionada a realidade de, do que vale nascer homem, se não tem utilidade prática associada a produção?
Diante disso, não importa quais seriam os elementos entendidos como diferentes para constituir com
a ideia de deficiência atribuído ao homem. O que importa seriam os mecanismos desenvolvidos pela sociedade
para tentar minimizar e melhorar a qualidade de vida das pessoas que possuam qualquer barreira atitudinal
ou física. Hoje, entende-se que o conceito de pessoa com deficiência está conectado a relação com o meio,
com o ambiente, e não com a deficiência propriamente dita, sendo ela genética ou em consequência do dia
a dia. A deficiência seria uma atribuição do meio. O meio que precisa se readequar. Essa lógica é permitida a
partir da noção do modelo social quanto a deficiência. Por muito tempo se entendeu, graças ao modelo já em
uma processual transgressão e desuso, de que a pessoa com deficiência precisava ser colocada numa posição
de tutela assistencialista, o que muitas vezes não permitia em potência o pleno desenvolvimento de todas as
habilidades possíveis daquela pessoa que estava sendo curatelada. A partir da evolução desse pensamento,
de modelo social, houve um processual amadurecimento da sociedade civil brasileira, que ainda sim precisa
aprender muito, que a deficiência em sí não o que em grau dificulta a inserção da pessoa com deficiência no
meio, o que dificulta seriam as barreiras que em grau de qualidade permitiriam o pleno desenvolvimento da
personalidade daquele indivíduo que muitas vezes teve a sua pessoalidade negada.
Diante disso, se carece de um resguardo dos pais. Existe uma Responsabilidade Civil inerente ao po-
der familiar de cada família que existe uma pessoa com deficiência de permitir o pleno desenvolvimento de
todos os direitos inerentes a personalidade jurídica daquele indivíduo, como o direito à sexualidade, dando
respaldo o direito a reprodução, o direito a educação efetiva, assim como o acesso à justiça, constitucional-
mente assegurado. Apesar da Convenção dos Direitos da Pessoa com deficiência (2009) ratificar esses direi-
tos expostos aqui, assim como outros, foi necessário a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência (2015)
tentar ratificar mais uma vez esses direitos que existem, mas continuam sendo taxados pelos juristas e pela
sociedade civil como invisíveis, por mais dizer, inexistentes, apesar de assegurados pelo ordenamento jurí-
dico. São direitos novos, que na verdade sempre existiram. São necessários, portanto, a partir da ideia da
tutela do direito à liberdade, que sejam assegurados, para demonstrar que não existe nenhum direito que
seja menos importante do que outro e que toda humanidade deve ser em plenitude observada e assegurada
para todos em plena igualdade.
3. TOMADA DE DECISÃO APOIADA: DESAFIOS E PROPOSTAS PARA UM EFETIVO ACESSO À
JUSTIÇA.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A ideia de tomada de decisão apoiada é inserida na Lei N° 13.146, que visa reafirmar os direitos que
já haviam sendo explorados a partir da Convenção sobre os direitos da pessoa com Deficiência (2008). No
entanto, foi somente a partir do Estatuto da pessoa com deficiência (2015) que, ironicamente, a sociedade
civil e alguns juristas passaram a se aperceberem melhor do assunto atinente as pessoas com deficiência.
O conceito de tomada de decisão apoiada tem um cunho assistencialista, mas não um assisten-
cialismo que poda a autonomia do exercício da vontade da pessoa com deficiência. O sentido associado se
baseia na ideia de que pessoas idôneas, ou seja, sem pré-disposição de desfavorecer ou prejudicar, ou que
tenha vontade viciada, contribuam para uma escolha positiva do indivíduo que esteja sendo assistido. Nesse
sentido, há, sim, um avanço na lei quanto a disposição de autonomia e legitimidade para o exercício de di-
reitos e deveres da pessoa com deficiência. Existe, nesse sentido, um aprimoramento e uma assistência de
duas pessoas, e não somente uma, decidindo e “roubando” a vontade da pessoa curatelada. Há, portanto,
um acompanhamento, de duas pessoas, que devem melhor orientar a pessoa com deficiência na tomada de
sua decisão sobre os atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos de informação necessários para que
possa exercer a sua capacidade. É, portanto, a tomada de decisão apoiada, um mecanismo que reforça a
validade dos negócios praticados pelas pessoas com deficiência, o que não implica numa necessária perca de
capacidade da pessoa que a requer.
A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência
elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos
e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão
sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações neces-
sários para que possa exercer sua capacidade. (BRASIL. Lei 13.146, 2015,
art. 1.783-A, caput)
	 A lei prevê ainda que a escolha de indicação dos apoiadores será feita pela pessoa com defici-
ência, cabendo a ela escolher a quem delegar esse papel. Além disso, ainda para garantir que sua vontade
seja melhor representada, os escolhidos poderão ser pessoas com quem mantenham vínculos e confiem. Será
traçado também, afim de garantir a idoneidade do processo e legitimidade da tomada de decisão apoiada,
para não findar desrespeito ou talhamento de direitos, que em juízo seja delimitado os limites do apoio a ser
oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade,
aos direitos e aos interesses da pessoa que deve apoiar, findado na lógica de respeito dos direitos à persona-
lidade jurídica da pessoa com deficiência, sempre visando um completo desenvolvimento intersubjetivo da
pessoa em questão.
Ademais, afim de garantir o pleno exercício da tomada de decisão apoiada, o Estatuto da Pessoa com
deficiência, traz, também, a noção de que se o apoiador agir com negligência, não adimplir com as obrigações
devidas ou chegar a exercer pressão indevida, poderá a pessoa apoiada ou qualquer outra pessoa prestar
denúncia ao Ministério Público ou ao Juiz de ofício. Ouvida a denúncia, sendo ela procedente, o juiz desti-
tuirá o apoiador e nomeará, ouvida a pessoa com deficiência, e se for do seu interesse, outra pessoa para lhe
prestar apoio. Por demais, a pessoa com deficiência, pode, a qualquer tempo, decidir cessar o acordo firmado
do processo de tomada de decisão apoiada. Existe ainda, a noção de que o apoiador também pode solicitar ao
juiz a exclusão de sua participação do processo de tomada de decisão, sendo seu desligamento condicionado
à manifestação do juiz.
Aplica-se, portanto, a noção de autonomia, resguardado numa preocupação em devolver a pessoa
com deficiência a titularidade de seus direitos, de modo a lhe fazer parte de suas decisões e escolhas na pres-
tação de apoio a que lhe deve, sendo-lhe facultada sempre, a permanência ou não dos indivíduos firmados no
processo de prestação de tomada de decisão apoiada. A noção de curatela associada unilateralmente a von-
tade do curador está mitigada e transformada na noção de em potência o exercício da capacidade da pessoa
curatelada em gozo e dignidade dos seus desejos, respeitando a noção de dignidade e de tutela à liberdade
da pessoa humana.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Por a lei estabelecer que os limites da tomada de decisão apoiada deve ser definida em acordo, vale
ressaltar, por conseguinte, que haverá modelos distintos. A tomada de decisão apoiada poderá ser diferente
para cada indivíduo que a utilize como mecanismo eficaz de acesso aos seus direitos disponíveis.
Além disso, é mister destacar que para parte dos doutrinadores brasileiros, no campo de Direito Civil,
a tomada de decisão apoiada ainda é um ponto de incógnita. Para alguns, a hipótese de substituição não seria
nada mais do que óbvio, baseado na ideia de que a tomada de decisão apoiada não surge em substituição, de
modo a excluir a curatela. Ela surgiria de modo a coexistir com a curatela, em caráter concorrente. Nesse
sentido, haveria a possibilidade de que a curatela entre em desuso ou não com o tempo. Outra parte dos
doutrinadores brasileiros, no entanto, acredita que a interdição seria medida excepcional, a regra passaria a
ser, portanto, a Tomada de Decisão apoiada, que se trata de um processo em que a pessoa com deficiência so-
licitará, como foi visto, duas pessoas de sua confiança, para dar mais visibilidade a sua autonomia de decisão.
Ainda há dúvidas também sobre de que modo se daria a tomada de decisão apoiada em casos em que
haveria incapacidade total do sujeito quanto a expressão de vontade, devido a algum tipo de deficiência. A
ideia que nos parece mais lógica ainda sim seria a tomada de decisão apoiada, visto que mesmo não havendo
a nítida expressão de vontade, haveria a possibilidade de auxílio de profissionais especializados, como psicó-
logos e afins, para auxiliar, em percepção de modo haveria um maior benefício daquele indivíduo a partir de
determinada tomada de decisão. O apoiador, de acordo com a nova lei, não impede que seja, por exemplo,
um dos apoiadores um profissional especializado. Ademais, é fato que a regra geral se basearia na afirmativa
de que a pessoa com deficiência deveria escolher as pessoas que lhes pareça mais adequadas a partir da sua
confiança, no entanto, essa escolha passa por aval de um juiz togado e adequado para o caso em questão. O
mesmo juiz, portanto, num caso de tomada de decisão apoiada em que haja um indivíduo que possua incapa-
cidade absoluta, poderá nomear, a partir da verocimidade das relações afetivas entre a pessoa com deficiência
e o apoiador aquele que melhor represente o indivíduo na respectiva decisão.
4. O ACESSO À JUSTIÇA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA COMO FERRAMENTA EFETIVA PARA A
BUSCA DA GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
O Estado Moderno, em especial o brasileiro, adotou para si o princípio do monopólio estatal de justiça,
trazendo, dessa forma, um modo de solução de conflito pacífico, marcado por heteronomia, isto é, a juris-
dição é marcada por um juiz imparcial e sem pré-disposição para favorecer uma das partes. Nesse sentido,
através da Ação, há uma tentativa de efetivo encontro entre a prestação jurisdicional e a satisfação da preten-
são insatisfeita de uma das partes. Além disso, se é possível falar, que apesar da tentativa de se estabelecer
um modo de solução pacífico de conflito, há também, um problema inerente a própria constituição do modo
de solução de conflito: como atender a todos que possuem um direito subjetivo que precisa ser satisfeito?
Afim de responder a essa pergunta, há, atualmente, assegurado na constituição brasileira, alguns
princípios decisivos que buscam consagrar o livre acesso ao judiciário, como o princípio da proteção judicial
efetiva (art. 5°, XXXV), do juiz natural (art 5°, XXXVII e LIII) e do devido processo legal (art. 5°, LV), que tem
influenciado decisivamente o processo organizatório da justiça, especialmente no que concerne as garantias
da magistratura e à estruturação independente dos órgãos (MENDES, 2013).
Ademais, ainda se é possível falar que existem obstáculos que precisam ser ultrapassados para garan-
tir um pleno e efetivo acesso à justiça tanto das pessoas com deficiência, como das pessoas que não possuem
quaisquer barreiras para um pleno e efetivo desenvolvimento psicossocial. A Lei Brasileira de Inclusão, tam-
bém conhecido por Estatuto da Pessoa com Deficiência, no seu Art. 3°, IV, define barreira como qualquer
entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa com de-
ficiência no meio social, bem como impeça o gozo, a fruição ou o exercício de seus direitos à acessibilidade, à
liberdade de movimento e de expressão, por exemplo. A Lei N° 13.146 ainda procura definir, taxativamente,
que existem cinco tipos de barreiras, tais quais:
Barreiras: [...]
167
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e pri-
vados abertos ao público ou de uso coletivo;
b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos e privados;
c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e meios de transpor-
tes;
d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer entrave, obstáculo,
atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o
recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de
comunicação e de tecnologia da informação;
e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou pre-
judiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de
condições e oportunidades com as demais pessoas;
f) barreiras tecnológicas: as que dificultam ou impedem o acesso da pessoa
com deficiência às tecnologias; (BRASIL. Lei N° 13.146, 2015, art. 1°, IV)
	 Diante disso, se é possível falar que o processo de tomada de decisão apoiada, a partir da noção
da Lei Brasileira de Inclusão, é uma das medidas que visa ir de encontro a uma acessibilidade quanto aos
direitos da pessoa com deficiência.
O acesso à justiça, atualmente, é um dos maiores paradigmas da sociedade moderna. Cada socieda-
de, a seu modo, procura eximir a linha tênue que é a efetiva prestação jurisdicional e a pretensão insatisfeita
de cada cidadão. No entanto, além das barreiras comuns, que atingem a maior parte dos cidadãos, como o
acesso à informação, o acesso ao local, etc., as pessoas com deficiência, como a Lei N° 13.146 procura res-
saltar, enfrentam barreiras a mais, estas, no entanto, fruto de uma sociedade corporativista, tal qual procura
voltar a sua atenção para os cidadãos que não possuam quaisquer tipo de deficiência que limitem a sua re-
lação com o meio social. A partir dessa noção, é nítida a percepção egoística de exclusão para qual é voltada
cerca de 45,6 milhões de brasileiros que declaram ter alguma deficiência, segundo o censo do IBGE de 2010.
Essa parcela, corresponde a cerca de 23,9 % da população brasileira. Esse percentual representa cerca de
um quarto da população brasileira total, o que significa que se deve haver maior atenção pública para essas
pessoas que são sectarizadas e tratadas ora de maneira desigual, ora de maneira a inferiorizar. O respeito a
diferença é o primeiro passo de encontro ao acesso à justiça das pessoas com deficiência.
A proposta de melhora de vida para essas pessoas, mais frisada neste artigo, é através da ideia de ca-
pacidade relacionada com a autonomia, que é almejada através da tomada decisão apoiada, como ferramenta
que impulsiona, a seu modo, o acesso à justiça. Consideramos que o direito de manifestar a própria vontade
não deve ser violado, pois a capacidade de pensar da pessoa com deficiência deve ser considerado, indepen-
dente da deficiência, contrariando a lógica de interdição, o qual talha esse direito à autonomia e o direito à
manifestação de vontade. Dessa forma, preservar os direitos inerentes à personalidade, assim como os direi-
tos fundamentais, são de mister importância para preservar em essência a humanidade daquele indivíduo
muitas vezes visto como inválido ou menos humano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir do presente estudo, observou-se que há uma necessidade de respeito à diferença. Esse res-
peito perpassa, ainda, na ideia da garantia de direitos inerentes à personalidade jurídica do indivíduo que
possua qualquer tipo de deficiência que venha dificultar a sua interação com o meio social. Nesse sentido, o
respeito à diferença e a garantia dos direitos da personalidade da pessoa com deficiência, representam o que
de mais óbvio deve ser garantido a qualquer ser humano, para que em igualdade de oportunidade esse possa
a vir, equitativamente, desempenhar um papel de agente modificador de seu próprio destino, e não mais um
agente passivo, perante o velho sistema de interdição que incapacita e coloca na condição de sujeito inváli-
do, imprestável, a pessoa com deficiência que pode, sim, praticar atos na esfera civil com maior autonomia,
através do auxílio da Tomada de Decisão apoiada ou não.
168
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Findo essa ideia, se é necessário, ratificar ainda, que há uma necessidade instransponível de qual-
quer cidadão, assim como dos juristas, de observar um fenômeno tão importante, como o acesso à justiça. O
acesso à justiça é um processo dinâmico e indispensável para garantir uma efetiva prestação jurisdicional de
qualidade em qualquer sociedade. Nesse sentido, observar de que forma cada seguimento da sociedade pode
vencer as suas barreiras é indispensável. Bem como aponta a Lei 13.146, existem, para as pessoas com de-
ficiência, algumas barreiras específicas, que acompanham esse agrupamento, além das que já existem para
qualquer cidadão. Nesse sentido, um olhar cuidadoso e mais humanitário é indispensável para que o acesso
à justiça jamais seja confundido com utopia ou displasia atitudinal.
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169
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
LEI MARIA DA PENHA:
UMA ANÁLISE SOBRE A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NO ÂMBITO DOS CONFLITOS DOMÉSTICOS
Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros
Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Professora da graduação
em Direito da Universidade Maurício de Nassau
Hallane Raissa dos Santos Cunha
Estudante da graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, vinculada
ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), orientada pela Profa.
Dra. Marília Montenegro Pessoa de Mello
Túlio Vinícius Andrade Souza
Estudante da graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, vinculado
ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), orientado pela Profa.
Dra. Marília Montenegro Pessoa de Mello.
SUMÁRIO: Introdução; 1. A lei 11.340/2006 e suas implicações no âmbito criminal; 2. Considera-
ções sobre uma pesquisa de campo; 3. A atuação da vara de violência doméstica e familiar contra
a mulher da cidade do recife (vvdfmr); 4. A (re)vitimização da mulher; 5. Violência doméstica e a
seletividade da clientela penal; 6. Lei maria da penha, teorias da pena e a revitalização do penal;
Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO
No Brasil cada vez mais é possível a observação de uma sociedade punitivista, que cada dia mais
solicita a aplicação de um sistema penal como alternativa para reduzir a criminalidade. Essa requisição é
alimentada pelo sentimento de impunidade e sensação de insegurança, frequentemente expostos pela mídia
como conteúdo de exigências criminalizantes. Diante disso, o que se questiona é se o sistema de justiça cri-
minal promove, verdadeiramente, a contenção da criminalidade, uma de suas funções declaradas.
Em nome da proteção da família, da defesa da honra e da garantia do pátrio poder, desenvolveu-se
uma sociedade machista, onde os padrões atribuídos pelo sistema penal legitimavam exigências de deter-
minados comportamentos femininos, sobretudo no que diz respeito à sexualidade e, ainda, ressaltaram as
diversas formas de controle sobre as mulheres (BARATTA, 1999, p. 19-80).
No passado, em razão da desigualdade legal entre homens e mulheres, a maioria dos crimes de gêne-
ro não era alvo de reconhecimento das autoridades e, assim, acarretavam no que se denomina “cifra oculta”
do crime. Consequentemente, tinha-se a sensação de que não existia violência contra a mulher. Todavia, com
a Constituição Federal Brasileira de 1988, os direitos entre os homens e mulheres se equipararam e, assim,
a violência contra a mulher começou a ocupar um espaço diferente no sistema de justiça do Brasil.
Quando o assunto é violência doméstica e familiar, a ineficiência do sistema para combater ou preve-
nir a criminalidade fica evidente. Aqui, a justiça criminal se mostra inapropriada para a resolução dos con-
flitos domésticos, complexos socialmente, principalmente após as medidas despenalizadoras serem descar-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
tadas com o argumento de que elas eram insuficientes. Com a regulação da conduta por uma norma penal
severa, espera-se não só a proteção da vítima, mas uma “pena exemplar” para o agressor.
Diante desse cenário, tentou-se comprovar que um sistema incapaz de cumprir com suas próprias
funções, atuando de modo diverso, não seria capaz de tutelar um conflito doméstico, que é muito mais
complexo do que a norma penal pode prever. Indo mais além, buscou-se desconstruir o argumento de que o
sistema de justiça de criminal é o grande responsável por dar fim ao ciclo de violência doméstica e familiar
sofrido pela mulher.
1. A LEI 11.340/2006 E SUAS IMPLICAÇÕES NO ÂMBITO CRIMINAL.
Primeiramente, é importante observar que, através da Lei 9.099/1995, foram criados os Juizados Es-
peciais Criminais, nos quais, dentre outras inovações, permitiu-se a aplicação dos institutos despenalizadores
aos crimes de menor potencial ofensivo, como a ameaça e lesões corporais leves. Foi também dentro destes
Juizados, por intermédio dos indicadores oficiais, que se evidenciou a alarmante presença de inúmeros ca-
sos de violência doméstica e familiar contra a mulher, até então desconhecidos (ou ignorados) na sociedade
brasileira. Constatou-se, pois, que a família, espaço de proteção onde laços de amor e afeto são construídos,
é também, paradoxalmente, um local de violência e violação. No contexto da violência doméstica, então, o
homem, marido e companheiro passou a ser confundido com o suposto agressor (ANDRADE, 2005, p. 95).
Criada para julgar os crimes de menor potencial ofensivo e tendo como para-
digma o comportamento individual violento masculino, a Lei 9.099/95 aca-
bou por recepcionar não a ação violenta e esporádica (...), mas a violência
cotidiana, permanente e habitual (...). Assim, os crimes de ameaças e de
lesões corporais que passaram a ser julgados pela “nova” Lei são majoritaria-
mente cometidos contra as mulheres e respondem por cerca de 60% a 70%
do volume processual dos Juizados. (CAMPOS; CARVALHO, 2006, p. 4-5).
Houve, portanto, uma modificação no tratamento normativo dispensado à “violência conjugal”, as-
sumindo a caracterização de crime de menor potencial ofensivo, o que garantiu uma nova sistemática de re-
solução de tais práticas delitivas. O enquadramento dos casos de “violência conjugal” como sendo um crime
de menor potencial ofensivo acabou levando para a Justiça um crime que até então raramente chegava ao
Judiciário, e fez com que esses casos representassem o maior volume de processos nos Juizados (MORAES;
SORJ, 2009, p.52).
No entanto, o tratamento oferecido pelos Juizados sofreu inúmeras críticas, principalmente de alguns
setores dos movimentos feministas, cujas pressões por respostas estatais mais incisivas contra a criminalida-
de no âmbito doméstico, juntamente com a de outros setores da sociedade, resultaram na promulgação da
Lei 11.340/2006.
A então nova legislação, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha, criou os Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher e ficou conhecida pelo rigor punitivo dispensado aos crimes de menor
potencial ofensivo cometidos contra a mulher no contexto doméstico, já que lhes vedou a aplicação da lei
9.099/95 e, consequentemente, dos institutos despenalizadores.
A dogmática jurídico-penal cumpre uma das mais importantes funções que tem encomendada à
atividade jurídica geral em um Estado de Direito: a de garantir os direitos fundamentais do indivíduo frente
ao poder arbitrário do Estado (ANDRADE, 2006, p.170). No entanto, analisando essas funções declaradas
em confronto com a realidade, observa-se que elas não são o foco do sistema de justiça criminal. Como bem
afirma Vera Regina de Andrade (2006, p.175):
Há, no âmbito do sistema penal, um profundo déficit histórico do cumpri-
mento das funções declaradas da dogmática penal ao mesmo tempo em que
171
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
o cumprimento excessivo de outras funções não apenas distintas, mas inver-
sas às oficialmente declaras.
	 Assim, surgem questionamentos acerca da ineficácia/deslegitimação do sistema em questão,
pois se percebe uma clara atuação oposta a sua real proposta declarada. Nesse sentido, é possível afirmar que
é um sistema de justiça que se sustenta meramente sobre suas funções simbólicas, que constrói uma imagem
ideal para ocultar a sua real funcionalidade.
	 Dessa maneira, no contexto da violência doméstica e familiar contra as mulheres, percebe-se
que uma quantidade significativa de mulheres que recorre às delegacias para apresentar à queixa ou à de-
núncia contra o suposto agressor, em seguida, desiste de prosseguir o inquérito policial, objetivando, somen-
te, utilizar o poder policial para renegociar a relação conjugal, ao invés de buscar a criminalização do agressor.
As inovações que a Lei 11.340/2006 trouxe são divergentes em relação à proposta minimalista da
Criminologia Crítica, alterando os tipos penais incriminadores com o aumento de penas e nas circunstâncias
de aumento das sanções com as agravantes e a obstrução dos institutos “diversificacionistas”, como a compo-
sição civil, transação penal e suspensão condicional do processo. No entanto, tal argumentação de aumentar
as penas e obstruir as medidas diversificadoras, vem consolidando uma visão extremamente punitivista da
administração da justiça.
De tal modo, a Lei 11.340/2006 retrocedeu ao propor o encarceramento, assim como, foi de encon-
tro às propostas do movimento feministas, visto que as medidas alternativas apresentam maior eficácia em
relação à prisão, além de demonstrar maior possibilidade de solucionar os conflitos domésticos e familiares.
Foucault (1999) afirma que as prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las,
multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior,
aumenta. Assim, constata-se que o sistema penal é falho e a maior prova disso é o índice de reincidência cada
vez mais alto. Onde, ao invés de haver uma redução da criminalidade, ressocializando o condenado, produz
efeitos contrários a uma ressocialização, isto é, a consolidação de verdadeiras carreiras criminosas (ANDRA-
DE, 2006). Dessa forma, é notório que se este sistema, aclamado por uma sociedade movida pelo medo, é
incapaz de proteger bens jurídicos, de reduzir a criminalidade ou ressocializar o preso, também não atuará
com eficácia no âmbito da violência doméstica, pois não considera o grau de subjetividade e de afinidade
dessas mulheres com seus agressores.
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA PESQUISA DE CAMPO.
Para o desenvolvimento do presente artigo foram utilizadas duas técnicas de pesquisas, a bibliográfi-
ca, com a realização em análise de livros, revistas especializadas, jurisprudências; e a técnica empírica, que
analisa os assuntos críticos e interpretativos a respeito do tema em questão, fazendo-se o levantamento de
dados da pesquisa de campo. Em outras palavras, essas técnicas, apesar de serem distintas, são complemen-
tares, já que uma fornece elementos para a possível construção da outra: a documentação indireta e a do-
cumentação direta (LAKATOS; MARCONI, 1991, p. 174-183). Não é seguro afirmar que a utilização dessas
técnicas aconteceu em momentos distintos e sucessivos, pois elas foram empregadas simultaneamente.
Para a obtenção dos dados quantitativos da pesquisa, optou-se por realizar uma pesquisa documental,
a qual, como o próprio nome já sugere, compreende a coleta e análise de documentos, considerados fontes
de informações que ainda não passaram pela sistematização, contemplação e tratamento científicos (SAN-
TOS, 2007, p. 27-29). As fontes documentais escolhidas foram processos criminais sentenciados na 1º Vara
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife (VVDFMR). Trataram-se, pois, de documentos
jurídicos, tal que seu conteúdo está previsto, ordenado e procedimentalizado pelo Direito.
172
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Nesse contexto, para fins de aproximação representativa da realidade da VVDFMR, pareceu razoá-
vel a limitação da pesquisa à análise de todos1
os processos criminais com sentenças prolatadas ao longo de
01 ano na VVDFMR, precisamente, de 01 de junho de 2013 a 31 de maio de 2014. Mencionado recorte foi
escolhido pelas seguintes razões: atualidade dos resultados, possibilidade de retratação de uma realidade,
facilidade de acesso ao material da pesquisa e, por fim, possibilidade e viabilidade da análise do material de
pesquisa em tempo de entregar o presente trabalho dentro dos prazos estabelecidos2
. Dessa forma, preten-
deu-se obter, através dessa análise documental, o perfil socioeconômico das partes, bem como particularida-
des do relacionamento familiar dessas pessoas envolvidas no conflito doméstico e se a persecução criminal
tem respondido aos interesses da mulher.
Desses processos analisados, dados específicos foram colocados em um formulário antecipadamente
elaborado para análise. Assim, por existirem uma série de meios informáticos que, a depender das necessi-
dades do pesquisador, facilitam a manipulação e processamento de dados levantados em pesquisa, optou-se,
para o armazenamento, gestão e tratamento do conjunto de dados obtidos e posterior análise estatística, pela
utilização do programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences), software especialmente projetado
para estes fins em pesquisas na área de Ciências Sociais.
3. A ATUAÇÃO DA VARA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DA
CIDADE DO RECIFE (VVDFMR).
A 1º Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife está localizada no bairro
de Santo Amaro, bairro onde se localiza também a delegacia especializada de atendimento a mulher. É
fundamental ressaltar que as mulheres que procuram a Vara, por serem a maioria de baixa escolaridade e
pertencerem a uma classe mais abastada da sociedade, normalmente desconhecem todo o rito concernente
a um processo judicial, especialmente ao processo penal. Por isso, ao descobrirem que não podem retirar
mais desistir do processo ou que seus agressores estão/serão presos, sentem-se ainda mais vitimizadas por
não terem suas vontades atendidas.
Então, se por um lado as mulheres que chegam à Vara na esperança de serem ouvidas e terem seus
desejos atendidos – os quais normalmente não estão voltados para a prisão de seus agressores, mas para o
rompimento dos ciclos de agressão – por outro, findam por se sentirem frustradas quando descobrem que
suas pretensões frente ao conflito doméstico são olvidadas e suas falas são moldadas de acordo com as pre-
tensões dos agentes criminais.
Nesse contexto, muitas vezes acabam por modificar na audiência seus depoimentos em detrimento
das informações prestadas na delegacia; muitas vezes, chegam até a se culpar pelas lesões sofridas. No mais,
com frequência, tentam minimizar a gravidade dos fatos ocorridos; tudo com a intenção de livrar o ente
familiar querido – que podem ser, dentre outros, ex-companheiros, companheiros, namorados, maridos, ex-
-maridos, pais e filhos – da persecução criminal.
Dessa forma, os atores penais da Vara tratam essas mulheres com certo desdém, já que estas são
rotuladas como “mentirosas” ou como “mulheres que gostam de apanhar”, porque mudam suas versões dos
fatos, para que seus agressores não sejam punidos com a privação de liberdade. Com isso, os atores penais
desconsideram todo o grau de afeto por trás da relação violenta que existe entre mulheres e homens. Nesse
contexto, percebe-se, por parte do poder judiciário, uma atuação tradicional, apartada das peculiaridades que
envolvem a violência de gênero no contexto doméstico e familiar.
4. A (RE)VITIMIZAÇÃO DA MULHER.
1  No total, 177 processos criminais foram sentenciados no recorte temporal determinado, no entanto, 09 deles não foram en-
contrados na Vara, apesar dos inúmeros esforços para sua procura, tanto por parte dos pesquisadores, quanto dos funcionários do
Tribunal. Assim, foram analisados 168 processos criminais.
2  A presente pesquisa foi desenvolvida pelos autores no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PI-
BIC), exercício 2014/2015, da Universidade Católica de Pernambuco, orientados pela Profa. Dra. Marília Montenegro pessoa de
Mello. Ademais, está ligada à dissertação de mestrado da Ma. Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros, tal que representa
um recorte de sua pesquisa empírica realizada na Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
No Direito Penal comum, o “homem agressor” é denunciado pela “mulher agredida” e esse fato é
tipificado como crime e, existindo indícios de autoria e materialidade, deve ser iniciado o processo para impor
uma pena justa ao violador da lei. Assim, Hulsman (1993, p. 82) afirma que o sistema coloca o acontecimen-
to sob o ângulo extremamente limitado do desforço físico, vendo apenas uma parte dele, mas para o casal
que viveu o fato, o que verdadeiramente importa: este desforço físico ou tudo aquilo que houve na sua vida
em comum?
A vítima, ao entrar na Justiça Criminal tradicional, passa a não ser mais detentora do conflito, con-
figurando a primeira consequência. Não poderá deter a ação pública, nem opinar sobre a medida que deve
ser aplicada ao agressor, bem como ignorará tudo o que acontecerá a ele depois do processo. Para o agressor,
configura-se um processo de despersonalização, pois tudo o que acontecerá será friamente abstrato, basean-
do-se no fato praticado, ignorando a sua história de vida (MEDEIROS; MELLO, 2015, p. 219).
A busca pelas funções declaradas do sistema de justiça criminal é o que leva a mulher a procurar
uma solução no sistema penal, funções essas: a defesa de bens jurídicos, a repressão da criminalidade, o
condicionamento e a neutralização das atitudes dos infratores reais ou potencias de forma justa. Operando
o sistema, desde o encaminhamento à autoridade policial até o término da instrução e julgamento, que pode
ou não culminar com a pena, a mulher é literalmente deixada de lado; a pena, quando aplicada, em nada
minora seus conflitos e em nada alenta a sua dor. O sistema punitivo, portanto, termina por implicar, acredita
Baratta (1997, p. 302):
“[...] mais problemas de quantos pretende resolver. Em lugar de compor con-
flitos, os reprime e, aos poucos, estes mesmos adquirem um caráter mais gra-
ve em seu próprio contexto originário ou também por efeito da intervenção
penal, podem surgir conflitos novos.”.
Quanto maior o distanciamento entre as partes envolvidas no conflito, menor é o envolvimento e
a compreensão da dor da aplicação da pena. Diferentemente ocorre quando existe aproximação entre as
partes, pois nesses casos mais facilmente se compreende os efeitos da pena e a estigmatização por essa
produzida, configurando tipicamente os casos de violência doméstica e familiar. Em 73,7% dos casos de vio-
lência doméstica que chegaram a VVDFMR, homem ou mulher eram ou já tinham sido parceiros íntimos.
Nesses casos, inclusive, os relacionamentos de longa duração (aqueles com mais de sete anos) foram os
mais frequentes (52,6%) e, nos processos em que o casal estava separado na data do registro da ocorrência
(52,3%), essa separação, normalmente, tinha ocorrido há pouco tempo (46,6% das separações haviam ocor-
rido há, no máximo, seis meses). Adicione-se, por fim, que 64% dos homens e mulheres que chegaram a
ter um relacionamento íntimo, tiveram filhos, e que 89,8% desses filhos eram menores de idade na data da
ocorrência da violência.
Nos casos de violência doméstica, a vítima passa a ter a real ideia das consequências negativas da
prisão na vida daquele homem, pois é ela, geralmente, a primeira pessoa que vai visitá-lo no sistema prisional.
Na violência doméstica a intervenção estereotipada do Direito Penal age duplamente sobre a vítima, pois não
leva em conta a sua singularidade, os seus laços com o suposto agressor. O sistema penal visualiza todas as
vítimas, seja de um roubo, de uma lesão corporal ou de uma injúria, da mesma maneira, independente das
idiossincrasias. Assim, existe essa dupla vitimização da mulher, principalmente nos casos em que ocorrerem
à prisão provisória. A mulher passa a se sentir culpada pela prisão do seu companheiro, e ela é diretamente
atingida com isso, tanto nos aspectos emocionais como financeiros, desestabilizando a organização social
(MEDEIROS; MELLO, 2014, p. 458-460).
5. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A SELETIVIDADE DA CLIENTELA PENAL.
Como previsto nas análises bibliográficas, quanto ao perfil socioeconômico, observou-se que as partes
envolvidas nesse conflito representam a seletividade da clientela do sistema penal, pois, em sua grande maio-
ria, pertencem a classes sociais economicamente pouco abastadas, já que possuem baixo grau de escolarida-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
de (31% das mulheres que chegaram a VVDFMR sequer completaram o ensino fundamental e apenas 10%
possuem o ensino superior completo; no que diz respeito ao grau de escolaridade dos homens, 37,5% deles
sequer chegaram a completar o ensino fundamental e apenas 6,5% possuem ensino superior completo).
Ademais, moram em bairros da periferia e têm empregos com expectativa de baixa remuneração (ob-
servou-se que 25,6% das mulheres se dedicam unicamente à atividade doméstica, circunstância que indica,
muitas vezes, a ausência de independência econômica da mulher; no caso masculino, 13% eram vendedores,
seguido de 8% de pedreiros). Com relação à cor dos homens e mulheres, ressalte-se que, na maioria dos pro-
cessos (85% para as mulheres e 75,6% para os homens), não havia informação sobre a sua cor, prevalecendo,
entre ambos, porém, nos casos informados, a cor parda (11% para as mulheres e 16,7% para homens).
Essa seletividade corrobora com a afirmação de Alessandro Baratta (1997, p. 167) ao apresentar que
o cárcere representa, em suma, a ponta do iceberg que é o sistema penal burguês, o momento culminante
de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema penal, com a discriminação
social e escolar, com a intervenção dos institutos de controle do desvio de menores. O cárcere representa, ge-
ralmente, a consolidação de uma carreira criminosa. Esse processo de seleção referido por Baratta crimina-
lizará (primariamente e secundariamente) os setores vulneráveis, permitindo a ampla imunização daqueles
setores resistentes ao sistema. Esta vulnerabilidade é inversamente proporcional à detenção de poder, seja ele
político, econômico ou científico. Estes setores imunes, que mesmo assim praticam as condutas tidas como
socialmente negativas, farão parte da chamada criminalidade oculta.
Com base nos dados acima, as funções declaradas da pena e, por extensão, do próprio sistema penal
que se evidencia através dela, serão basicamente reproduzir a desigualdade e o status quo. O sistema penal
não possui eficácia quanto aos seus objetivos declarados, mas sim em relação ao que não diz, ou seja, quanto
as suas funções latentes. Em verdade, o sistema punitivo atua na sua forma mais tradicional, selecionando a
sua clientela e reproduzindo violência e dor (MEDEIROS, 2015, p. 60-61).
6. LEI MARIA DA PENHA, TEORIAS DA PENA E A REVITALIZAÇÃO DO PENAL.
Buscar uma explicação para a aplicação das Penas Privativas de Liberdade como formas de resolução
de conflitos é, no mínimo, ponderar e avaliar os fundamentos de “punir”. Nesse sentido, Salo de Carvalho
(2010, p. 83), incita um desconhecimento dos fundamentos da pena. Então, faz uma análise sobre os diver-
sos institutos penais e quais deveriam ser as suas consequências com relação a sua aplicação. No entanto, em
seus estudos, ao observar que as penas privativas de liberdade não conseguem atingir sua função declarada,
ou seja, realmente ressocializar os indivíduos (e, analogicamente, no contexto da violência doméstica, sanar
os problemas decorrentes), ou trazer uma prevenção, seja ela geral ou especial (SANTOS, 2002), surge o
questionamento do por que da aplicação de penas tão desestruturadoras quanto a Pena Privativa de Liber-
dade.
	 Juarez Cirino dos Santos (2002, p. 53-57), por sua vez, mostra, basicamente, o que justificaria
a aplicação de tais penas, que seria a retribuição da culpabilidade, a prevenção geral e a prevenção especial.
No entanto, também observa a ineficácia da pena para atingir tais objetivos.
	 Nesse mesmo cenário, Ferrajoli (2006), com sua teoria do garantismo penal, incita a técnica
do estranhamento ao sistema penal, para que possamos observar o seu caráter segregador e a aplicação da
“Culpabilidade por Vulnerabilidade”, criada por Eugenio Raúl Zaffaroni (2004). Assim, parte-se da ideia de
que a Vulnerabilidade é responsável pela conceituação do criminoso. No entanto, uma das ideias despertadas
pelos estudos da criminologia crítica é que não existem apenas sujeitos criminosos, na verdade são os sujeitos
criminalizados que estão vulneráveis a esse tipo de sistema.
	 Quando falamos de violência doméstica, a pesquisa de campo apontou que praticamente todas
as infrações penais (99,5%) que foram processadas na VVDFMR se encaixam no conceito de baixa lesividade
descrito na Lei n.º 9.099/95, dentre as quais se destacam a ameaça (55%) e as lesões corporais leves (23%).
Ademais, o meio percentual (0,5%) restante é referente a um crime de médio potencial ofensivo (incêndio),
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Direito(s) em debate.
abarcado, pois, pela redação do artigo 89 da Lei 9.099/95 a qual viabiliza, em geral, a suspensão condicional
do processo.
Nesse sentido, os resultados encontrados na pesquisa desenvolvida comprovam as expectativas de
que as infrações penais que seriam encontradas se tratariam, sobretudo, daquelas que se encaixam no con-
ceito legal de baixa potencialidade lesiva. Todavia, mesmo se tratando desse tipo de infrações, observou-se
que elas têm como consequência uma razoável quantidade de prisões, pois, em 17% dos casos analisados,
o réu esteve preso durante todo ou parte do processo. Além disso, muito embora 38% desses presos tenham
sido posteriormente condenados, a pena que lhe foi imposta, na maior parte dos casos (67%), sequer chegou
a lhes privar da liberdade, já que suas penas foram substituídas por restritivas de direito, suspensas condicio-
nalmente ou declaradas extintas já que haviam sido cumpridas durante a prisão provisória.
Percebe-se, também, que o tempo dessas prisões processuais concentrou-se principalmente na faixa
entre 03 (três) e 04 (quatro) meses. Nesse contexto:
A tendência, pois, é atuar em nome de uma suposta prevenção mediante
uma contenção provisória, que consiste efetivamente numa pena antecipa-
da, ocasionando uma inversão do sistema penal onde tudo é motivo para a
privação de liberdade (MEDEIROS, 2015, p. 136).
Do mesmo modo, foi também em razão desses crimes de baixa lesividade, que um quarto dos pro-
cessos pesquisados terminou com a condenação do réu. No entanto, embora tenham se reservado quase
exclusivamente a penas privativas de liberdade de curta duração (95,4%), as sentenças chegaram a ocasionar
o encarceramento de 15% dos condenados; os remanescentes (85%) tiveram suas penas suspensas condicio-
nalmente ou substituídas por restritivas de direitos.
Imprescindível, assim, realizar uma análise mais aprofundada com o objetivo de não gerar conclusões
simplórias. De início, necessário lembrar que são principalmente os crimes de menor potencial ofensivo que
ocasionam esse encarceramento. Assim, como abarcados pela Lei nº 9.099/95, dificilmente ocasionariam
um processo criminal. Segundamente, ainda considerando que são crimes de baixa lesividade, ressalta-se
a necessária cautela anunciada por Christie (1998, p. 15-17) quando da interpretação de números sobre o
encarceramento, os quais, segundo o autor, são extremamente relativos, tal que uma cifra baixa de encarce-
ramento tanto pode indicar muitos presos com penas de curta duração, como também poucos presos com pe-
nas muito altas. De acordo com a pesquisa realizada, 95,4% das penas privativas de liberdade dos condenados
na VVDFMR sequer superaram um ano; havendo, ainda, um grande percentual de penas que não superou a
faixa dos três meses (20,9%) ou dos seis meses (41,9%).
Nesse contexto, os dados relacionados ao encarceramento na Lei Maria da Penha se tornam alarman-
tes e levam ao entendimento de que a proibição da utilização dos institutos despenalizadores, em geral, dei-
xou de contemplar a crise do atual sistema punitivo, uma vez que não considerou a possibilidade da utilização
de alternativas, evitando penas encarceradoras desumanas. Apesar das críticas que podem ser feitas aos
institutos despenalizadores, eles surgiram com a finalidade de descentralizar e minimizar a pena privativa de
liberdade. Então, muito embora se entenda que os institutos diversificacionistas tenham aumentado o âm-
bito do controle social penal, é inegável que qualquer aprisionamento é menos vantajoso que sua aplicação
(CARVALHO, 2010, p. 47-49). Percebe-se, com isso, na tentativa de enfrentamento a violência doméstica,
uma maior utilização de medidas penais, em contradição ao apoio às mulheres, com as idealizadas medidas
não penais, aparentemente mais adequadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Lei Maria da Penha (11.340/2006) trouxe inovações em relação ao combate à violência doméstica
e familiar contra a mulher, porque, através de sua redação, além de reconhecer e institucionalizar esse tipo
de violência conseguiu dedicar grande atenção à assistência e proteção das mulheres vítimas. No entanto, no
176
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
que se refere ao aspecto penal, tem se observado certo desvio de finalidade, uma vez que as mulheres quando
procuram o sistema, nem sempre desejam punir o agressor, mas sim, conseguir alguma proteção em relação
aos comportamentos violentos sofridos, assim como formas alternativas de resolução do conflito.
As relações de afeto e intimidade existente entre vítimas e acusados, com a expansão do Direito Pe-
nal, deixaram de ser contempladas, bem como as expectativas e necessidades das mulheres violadas, que,
preocupadas com o bem-estar da família e almejando a cessação da violência e o restabelecimento da harmo-
nia familiar, não se voltam para persecução penal de seus agressores. Logo, quando conhecem da possibilida-
de de privação da liberdade do sujeito ativo, as vítimas têm dificuldades em denunciar o abuso sofrido. Com
efeito, a irreversibilidade do procedimento processual penal, findará por inibir a procura do auxílio judicial e
contribuirá para o ressurgimento das “cifras ocultas” da violência doméstica contra a mulher, pois o próprio
instrumento reservado à proteção feminina irá penalizá-la.
De tal modo, considerando a ineficácia do Direito Penal, entende-se que sua aplicação deve ser sub-
sidiária, pois não é a forma mais adequada para resolver os conflitos familiares e domésticos, principalmente,
por causa da sua função seletiva e simbólica. Assim, o Estado precisa investir na atuação social, na prevenção
equilibrada da reprodução de um ambiente doméstico e familiar saudável, para que, posteriormente, não
precise reprimir o conflito social por meio do controle penal repressivo e arbitrário, sabendo que o Direito Pe-
nal, através do punitivismo, vem se afastando do seu referencial minimalista, tornando-se incapaz de resolver
os referidos conflitos. O Direito Penal além de não recuperar, não ressocializa o agressor.
Observando a incapacidade da superação dos conflitos interpessoais pela via formal da justiça cri-
minal, visto que ela se apropria do conflito das vítimas, fugindo aos propósitos das partes envolvidas, não
apresentando soluções e efeitos positivos sobre os envolvidos ou sequer prevenindo as situações de violência,
resta, então, reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como um problema social, o que
não implica que o Direito Penal seja a melhor solução. Nessa perspectiva, é importante a discussão de meios
alternativos para a solução de conflitos, principalmente transferindo a responsabilidade para outros ramos do
Direito, como também pela utilização de medidas pedagógicas, psicoterapêuticas e conciliadoras, rompendo
com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal. No
entanto, para os comportamentos mais lesivos, pode se pensar ainda na criminalização, porque não se defen-
de a prática de crimes realizados contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, contudo, pretende-se que
seja encontrado um meio mais adequado do que o direito penal, priorizando a intervenção mínima, ou seja,
colocando o direito penal como um meio subsidiário para as respostas ao conflito.
Enquanto o direito penal pregar uma eficácia garantidora simbólica, ele continuará sendo ineficaz.
Isso acarreta em um discurso simbólico que visa à segurança jurídica, com igualdade e justiça nas decisões
para exercer um controle cada vez mais arbitrário e seletivo sobre a camada social mais vulnerável, tendo
uma ajuda muito importante da mídia nesse processo, pois ela superficializa as realidades sociais e distorce
o modo de enxerga-las, de modo que a essência dos problemas passa a ser ignorada.
Além disso, é perceptível que esse discurso punitivista pregado pelo sistema se propaga rapidamente
e, fazendo uso dele, o movimento feminista não só conseguiu dar uma maior visibilidade à violência domés-
tica contra mulher através da Lei Maria da Penha, mas também possibilitou um maior debate sobre as pecu-
liaridades trazidas pela lei e sobre os seus efeitos, que, para a surpresa das feministas, divergiram do esperado
pela ausência do desejo das vítimas de criminalizar seus agressores. Portanto, fica claro que a Lei 11.340/06,
apesar da sua importância, se mostra como mais uma forma de o Estado aumentar o seu poder, possuindo
legitimidade clamada mais uma vez pela própria sociedade, devido as suas inseguranças, seus anseios e seus
medos.
No que tange aos resultados alcançados com a pesquisa de campo na 1º Vara de Violência Doméstica
e Familiar contra a Mulher do Recife, fica claro quem são essas mulheres e seus agressores, ou seja, mais
uma vez, o sistema penal possui seus atores pré-selecionados, com cor e perfil socioeconômico determinado,
atuando com seu discurso falacioso e sua máscara de proteção a essas mulheres que acabam sendo reviti-
mizadas, pois diferentemente do caso ocorrido à Maria da Penha, as verdadeiras “Marias do Recife” sofrem
mais uma vez ao terem suas vozes silenciadas e seus anseios arrancados pelos punhos fechados do Estado.
177
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Necessário pontuar, ainda, que não se defende que os crimes praticados contra a mulher no contexto
doméstico sejam ignorados, mas, até que outro sistema menos famélico seja encontrado, é preciso que o Di-
reito Penal seja utilizado conforme os princípios que o regem, no caso específico, os da intervenção mínima,
da subsidiariedade e o da fragmentariedade, de modo que haja uma máxima contenção do paradoxal sistema
punitivo. As políticas de prevenção e combate à violência contra a mulher devem focar na construção de um
ambiente doméstico e familiar equilibrado, superando, de tal modo, os empecilhos da ultrapassada, medieval
e maniqueísta inquirição do suposto agressor culpado e de uma eterna vitimização feminina.
Por fim, é válido compreender que as questões familiares, a relação vítima e agressor, não devem ne-
cessariamente passar pelo tratamento do sistema penal, pois a ampliação do Direito Penal deixou de contem-
plar as relações de intimidade e afeto existentes na família, bastante complexas. Ele também não superou os
interesses e expectativas das vítimas que almejam o fim da violência e o restabelecimento dos laços familiar,
e, principalmente, o bem-estar da família, que não está direcionado a criminalização do agressor, justifican-
do, assim, os dados encontrados na pesquisa de campo realizada na 1º Vara de Violência Doméstica e Fami-
liar Contra a Mulher do Recife. Assim, é necessária, portanto, a superação e não disseminação, no intelecto
social, dos preconceitos, ainda existentes, decorrentes de uma sociedade patriarcal e machista, que levam à
ideia da mulher como um ser passivo e desigual que se pode dominar e de quem se pode dispor. Logo, é pre-
ciso se voltar às origens do problema, essencialmente familiar e de origens históricas, da violência doméstica
e, definitivamente, a máxima intervenção punitiva do Estado não é a solução para isso.
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179
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
DIÁLOGO INTERJUDICIAL:
REALIDADE GLOBAL NO BRASIL E A EXIGÊNCIA DE NOVOS DIREITOS ATRAVÉS DO SISTEMA
INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
Caroline Alves Montenegro
Advogada. Mestra em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco –
Brasil - na linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos. Especialista em Direito Processo
Civil e Ciências Criminais pela UNIPÊ. Especialização em jurisdição constitucional pela
Universidade de Pisa/Itália. cacamontenegro@hotmail.com
Renata Santa Cruz Coelho
Advogada. Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco –
Brasil - na linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos. Bolsista da CAPES. Especialista
em Direito do Trabalho pela UFPE. Contato – renatasantacruzcoelho@hotmail.com
SUMÁRIO: Introdução; 1. Natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos no
ordenamento jurídico brasileiro; 2. Controle de convencionalidade e a tutela multinivel de direitos
fundamentais; Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO
O nosso trabalho está organizado em três partes. Inicialmente, pretendemos abordar o Brasil no
contexto histórico de nossa Constituição de 1988 em razão de uma crescente preocupação com os direitos
fundamentais dos cidadãos, assim como, a proteção dos direitos humanos como formas de reconhecer e
consolidar a democracia. Em seguida, como tem sido a atuação do nosso país no Sistema Interamericano de
Direitos Humanos, as novas interpretações jurisprudências no ambiente interno em razão de uma releitura
de determinados casos com enfoque no que diz a Convenção Americana de Direitos Humanos (Daremos
destaque aos casos do depositário infiel e a audiência de custódia). Enfim, pretendemos analisar o diálogo
multinível de direitos fundamentais que pode gerar uma teoria constitucional dinâmica, já que as diversas
ordens podem acolher e reelaborar os direitos previstos nos diversos níveis, seja a partir da verificação das
suas normatividades, seja a partir da influência da própria jurisprudência das Cortes.
Os direitos humanos suscitam um processo de lutas e reivindicações sociais em busca da promoção
da dignidade humana. Assumem destaque, com a Declaração Universal de 1948, a partir da qual o respeito à
dignidade humana passou a ser objeto de todos os tratados e declarações de direitos humanos, que integram
o Direito Internacional dos Direitos Humanos (PIOVESAN, 2011).
A Constituição Federal do Brasil possui cláusulas abertas aos direitos e garantias previstos em tratados
internacionais de proteção dos direitos humanos, que complementam o texto constitucional. Alguns países
latinos americanos, que fazem parte do Sistema Regional Interamericano deram passos dinâmicos e evoluí-
dos com relação ao reconhecimento dos tratados internacionais de direitos humanos no ambiente constitu-
cional de cada Estado. Esses países foram muito influenciados não apenas pelas jurisprudências da CrIDH1
,
1  CrIDH, neste texto, quer dizer Corte Interamericana de Direitos Humanos
180
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
como também, pelas recomendações da CIDH2
, e também pelas consultas encaminhadas ao sistema que
deram origem a importantes modificações legislativas em seus ambientes jurídicos internos.
A Competência jurisdicional da CrIDH foi reconhecida pelo Brasil através do Decreto legislativo nº89,
de 03/12/1998. O Brasil tem o caso do depositário infiel e edição da Súmula Vinculante n. 25 que por força
da Convenção Americana de Direitos Humanos considera a prisão civil do depositário infiel ilegal, qualquer
que seja a sua modalidade do depósito.
Há também o caso da audiência de custódia – preso levado imediatamente à presença do juiz. Repe-
tição do depositário infiel. Influência da Convenção Americana (art.7º, §5º). Ainda não há discussão no STF
sobre esse caso. O CNJ quer implementar em todo o país, o preso passará imediatamente a ser levado a uma
audiência de custódia e não ser mais apenas comunicado por meio de um papel ao juiz.
1. NATUREZA JURÍDICA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO3
Segundo Piovesan (2013), não é demais recordar que os tratados internacionais são considerados
obrigações assumidas espontaneamente pelos Estados, portanto, após a sua constituição, precisa haver o
seu adequado cumprimento, em razão do seu caráter obrigatório e vinculante. Em termos mais específicos,
aqueles acordos internacionais podem ser considerados como convenções, pactos, cartas, etc.
Não é demais ressaltar, o posicionamento de Ramos (2013) sobre a internacionalização dos direitos
humanos e as obrigações internacionais, a saber:
[...] a internacionalização dos direitos humanos é uma realidade incontor-
nável. Graças a ela, temos obrigações internacionais vinculantes na seara
ora dominada pelas Constituições e leis locais. O descumprimento de uma
obrigação internacional pelo Estado torna-o responsável pela reparação dos
danos porventura causados (RAMOS, 2013, p.31).
Ainda com base em Piovesan (op. cit.), existe um processo de formação dos tratados internacionais
na Constituição Brasileira de 1988, cuja competência privativa é do Presidente da República, art.84, VIII,
mas precisa do referendo do Congresso Nacional. É um processo complexo constituído pela celebração do
Chefe do Executivo nacional e aprovação mediante decreto legislativo do Congresso Nacional.
O procedimento para a incorporação de um tratado de direito internacional no ordenamento jurídi-
co brasileiro é desenvolvido da seguinte maneira: inicialmente, o tratado necessita da assinatura de um dos
representantes legislativos4
; em seguida, é levado ao Presidente da República, que encaminha ao Congresso
Nacional um requerimento de aprovação, então, é submetido para aprovação ou reprovação no Senado. Se
esta casa legislativa o aprovar, segue para aprovação ou reprovação na Câmara Federal. Caso seja aprovado,
compete ao Presidente do Senado elaborar um decreto legislativo para o Presidente da República, que, dis-
cricionariamente, pode ratificar5
o tratado. Quando este confirma, o tratado é conduzido para publicação
2  CIDH, neste texto, significa Comissão Interamericana de Direitos Humanos
3  Uma versão anterior de parte deste tópico está disponível em: dissertação – Montenegro, Caroline Alves. STF e CrIDH: Anistia
dos Crimes por motivação política no Brasil no período da ditadura militar. p.91-92 e 94-95, jun.2014
4  Os representantes legislativos deste procedimento no Brasil são os seguintes: 1- Chefe de Estado – no nosso país é um dos
atributos do Presidente da República (privativamente – art.84, VIII da CF/88); 2- Pleni Potenciário – pessoa escolhida pelo Chefe
do Estado e do governo (Brasil Presidente da República) com a confirmação do Ministro das Relações Exteriores – geralmente
corresponde a um diplomata – que possui seus poderes plenos, mas restrito ao que dispõe a carta, que aquele recebe; 3- delegação
nacional – a forma de escolha é igual à do pleni potenciário, corresponde a um grupo em missão especial para negociar e assinar
um tratado internacional, que tem seus poderes submetidos ao que dispõe a carta e 4- Ministros das Relações Exteriores – ele
prescinde da carta de pleno poderes.
5  O Presidente poderá deixar de ratificar um tratado internacional se houver perda de interesse, quando não cuida de interesse
ao Brasil, ou, outra norma de direito internacional mais benéfica for aprovada anteriormente. O decreto legislativo apenas autoriza
a ratificar, não o obriga.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
no Diário Oficial da União. A partir de então, já existe, possui vigência, validade e obrigatoriedade no direito
estatal, ou seja, está apto a produzir os efeitos jurídicos.
Para Piovesan (op. cit.):
[...] Há, portanto, dois atos complementares distintos: a aprovação do tratado
pelo Congresso Nacional, por meio de um decreto legislativo, e a ratificação
pelo Presidente da República, seguida da troca ou depósito do instrumento
de ratificação. Assim, celebrado por representante do Poder Executivo, apro-
vado pelo Congresso Nacional e, por fim, ratificado pelo Presidente da Repú-
blica, passa o tratado a produzir o efeito jurídico (PIOVESAN, 2013, p. 138).
Por outro lado, ainda com base em Piovesan (op. cit.), os tratados internacionais de direitos huma-
nos, por serem considerados normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, não necessitam do
processo de formação legislativo, como os tratados internacionais tradicionais, nem do decreto de execução.
Aqueles tratados internacionais de direitos humanos são automaticamente incorporados ao ordenamento
jurídico brasileiro, enquanto estes tradicionais necessitam se submeter ao processo não automático.
Convém ressaltar que Piovesan (2011) e também Cançado Trindade são adeptos de uma corrente
minoritária, os quais entendem que para os tratados de direitos humanos se adota o sistema de recepção
automática, pois estes tratados seriam self- executing, ou melhor, eles se incorporam ao direito brasileiro as-
sim que ratificados. Para a professora citada, o Brasil adota a concepção dualista para a vigência interna dos
tratados em geral, mas no que se refere aos de direitos humanos a concepção monista, que não necessita da
promulgação, em virtude da eficácia imediata que o art.5º, §1ºe 2º, lhes outorga.
O professor André Carvalho tem um posicionamento distinto e para ele a incorporação de um Tratado
Internacional de Direitos Humanos no ordenamento jurídico interno, não é distinto do comum, portanto,
necessita obedecer às quatro fases descritas acima. Esse é o entendimento da doutrina majoritária, e, assim,
estes doutrinadores são adeptos ao sistema de recepção legislativa.
Observa-se, assim, que o nosso país passou por um processo de progressivo crescimento quanto ao
reconhecimento dos tratados internacionais no cenário jurídico interno. Além disso, desde a promulgação da
Constituição cidadã, inúmeras interpretações surgiram, atribuindo um tratamento diferenciado aos tratados
relacionados aos direitos internacionais dos humanos, em razão do §2º e 3º do art.5º da CF/88.
Ab initio, o STF sustentava6
que os tratados internacionais incorporados no ordenamento jurídico
brasileiro gozavam de status equivalentes ao de uma lei ordinária. O grande inconveniente desta posição
hierárquica consiste no fato de as leis ordinárias serem passíveis de perda de eficácia, quando surgem leis
posteriores tratando do mesmo assunto de forma idêntica ou contrária. Sendo assim, o Brasil não ficava obri-
gado a cumprir o tratado internacional anterior, pois não possuía nenhuma validade interna.
Todavia, em 20087
, o pleno do STF, em uma maioria apertada (dos 9 ministros presentes – a vota-
ção encerrou em 5x4), consagrou caráter supralegal e infraconstitucional aos tratados de direitos humanos
internacionais ratificados antes da EC n°45/04. Definiu-se, a partir de então, que os direitos fundamentais
não estão apenas no artigo 5° da CF/88, mas em outros dispositivos do próprio texto constitucional, de nor-
mas infraconstitucionais e de tratados de que a República Federativa do Brasil faça parte. Com isso, esses
tratados internacionais de direitos humanos incorporados no direito brasileiro, como direitos fundamentais,
são cláusulas pétreas, correspondem aos do artigo 5°§ 2°8
da CF/88 e também possuem o mesmo quórum de
uma lei ordinária.
6  Posicionamento firmado em 1977, quando o STF julgou o RE 80.004/SE.
7  Posicionamento firmado em 2008, quando o pleno do STF julgou o RE 466.343.
8  § 2º do artigo 5°da CF/88 - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e
dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
182
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Para Piovesan (2013), esses tratados de direitos humanos do artigo 5º § 2º, através de uma interpre-
tação sistemática e teleológica, como possuem um caráter especial, são considerados normas constitucionais
de aplicabilidade imediata. A jurista justificou seu posicionamento em razão do jus cogens, ou seja, esses
tratados de direitos humanos constituem um direito cogente e inderrogável. Caso os tratados firmados pelo
Brasil sejam tão somente internacionais, são considerados supralegais e de hierarquia infraconstitucional,
em razão do princípio da boa-fé e do que diz o artigo 27 da Convenção de Viena.
Partindo-se do posicionamento de Piovesan (2013), constata-se que os tratados de direitos humanos,
mesmo ratificados antes da EC/45, que excederam o quorum necessário para tornar-se uma Emenda Cons-
titucional, seriam recepcionados como normas materialmente constitucionais. O quorum qualificado tão so-
mente reforça a natureza constitucional, fundamentada em razão de o tratado ser considerado internacional
de direitos humanos.
Neste sentido:
[...] Com efeito, nunca é demais lembrar que a tese da paridade entre a
Constituição e os tratados de direitos humanos é anterior à EC45 e encon-
tra sustentação já no teor do §2º do mesmo artigo, que, na sua condição de
norma inclusiva, consagrando a abertura material do catálogo constitucional
de direitos fundamentais, já vinha- e a doutrina já colacionada em prol da
hierarquia constitucional assim já o sustenta há tempos – sendo interpretado
como recepcionando os direitos humanos oriundos de textos internacionais
na condição de materialmente constitucionais (SARLET, 2010, p.90).
Não restam dúvidas o crescimento progressivo das questões relacionadas aos direitos humanos, assim
como, a necessidade dos países membros dos sistemas internacionais e regionais se comprometerem com a
consolidação destes direitos, para evitar qualquer forma de enfraquecimento, debilidade, restrição da poten-
cialidade daqueles sistemas.
O Brasil, enquanto um Estado democrático de direito, vem adotando, a partir da Constituição cidadã
(CF/88), atos relacionados à sua soberania externa como: tratados, acordos e convenções regionais e inter-
nacionais relacionadas aos direitos humanos. Ademais, em conflitos de normas de direitos internacionais dos
direitos humanos há uma tendência de se faz valer a primazia da norma mais favorável à dignidade humana,
quer dizer, o princípio internacional pro homine, não importa se é um decreto, ou, qualquer tipo de lei, assim
como, o princípio da proibição do retrocesso.
	 Em síntese, o que se constata é que há quatro correntes com relação à natureza jurídica do
Tratado Internacional de Direitos Humanos, antes da EC/45, a saber:
1ª corrente – supraconstitucionalidade
2ª corrente – constitucionalidade
3ª corrente – supralegalidade
4ª corrente – legal
Convém ressaltar que, a tese atual do STF é da natureza jurídica supralegal às normas internacionais
de direitos humanos anteriores a EC/45. Ademais, já se decidiu no STF que, a Convenção Americana quando
amplia direito das pessoas deve ser aplicada, ainda que a CF/88 ofereça uma proteção menor, seja pela tese
da supralegalidade, seja pela tese da norma mais benéfica.
2. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE E A TUTELA MULTINIVEL DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
O Brasil é detentor de direitos e obrigações na área de direitos humanos que devem ser cumpridos
sob pena de ofensa as normas positivadas na Constituição e na Convenção Americana, já que o nosso país não
183
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
apenas é membro da OEA assim como, ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São
José da Costa Rica) em 1992, reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana9
, e também é signatário de
tratados de direitos humanos tanto no âmbito interamericano quanto universal (leia-se das Nações Unidas).
A importância da internacionalização dos direitos humanos no Brasil se justiça também através do
art.7º do ADCT10
. Constata-se como afirma Ramos (2013) que o “Diálogo das Cortes” entre órgãos interna-
cionais de direitos humanos não consiste em uma obrigação que deve ser realizada pelos juízos nacionais,
sob pena de ofensa a independência funcional e ao Estado Democrático de Direito. No entanto, deve-se ter
em mente que, o Controle da Constitucionalidade cabe ao STF e nosso país deve também se submeter a um
controle de convencionalidade, como um mecanismo interno do cumprimento de obrigações internacionais,
decorrentes da Convenção Americana.
A existência de um controle de convencionalidade no país – leis comuns (ordinárias e complemen-
tares) e a obediência também dos tratados internacionais de direitos humanos, da Convenção Americana.
O controle de convencionalidade possui dois efeitos: 1- revogam as normas infraconstitucionais contrárias à
Convenção Americana e 2- impedem que normas infraconstitucionais contrárias à Convenção ingressem no
sistema normativo.
Para Ramos (2013), um exemplo do duplo controle (Constitucionalidade e Convencionalidade) exis-
tente no Brasil corresponde a ADPF nª153 e o Caso Gomes Lund vs.Brasil. Com a decisão do STF, houve por
maioria de votos, uma anistia dos agentes da ditadura militar no Brasil. Já, para CrIDH: não se pode invocar
a anistia pelos mesmos agentes.
Constata-se que para ocorrer um diálogo entre a jurisdição nacional e a internacional é preciso que
ocorra uma interpreção dinâmica, ficando a cargo dos tratados internacionais esclarecerem e desenvolverem
os princípios e regras neles estabelecidos. A partir do momento em que há um cumprimento das obrigações
internacionais, observa-se também, uma maior abertura para a utilização das jurisprudências dos órgãos in-
ternacionais de proteção de direitos humanos, consequentemente, uma tendência à formação de um diálogo
multinível de proteção destes direitos.
A tutela multinível de direitos fundamentais e/ou humanos tem sido um assunto de tendência inter-
nacional e de grande importância para o direito constitucional. Por meio deste estudo, podem-se introduzir
novas formas de jurisdição, quer seja por meio de uma constitucionalização de direitos, ou, de uma interna-
cionalização de direitos fundamentais previstos nas Constituições.
Podem-se citar, como uma forma de reflexão sobre a proteção multinivel dos direitos fundamentais,
debatendo-se a atuação do nosso país no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, as novas interpre-
tações jurisprudenciais no ambiente interno em razão de uma releitura de determinados casos com enfoque
no que diz o Pacto de São José da Costa Rica. O caso do depositário infiel e da audiência de custódia serão
abordados.
A audiência de custódia é oriunda de um projeto de lei do Senado Federal (PL nº554/2011) com a
finalidade de alterar a redação do §1º do art.306 do CPP, como uma tentativa de combater a tortura e maus
tratos dos presos em flagrante, permitindo um contato imediato do preso com o juiz, na presença do Minis-
tério Público e com defensor, o preso não mais será apenas comunicado por meio de um papel ao juiz. Há
também a ADPF nº347, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu parcialmente cautelar, solici-
tada, que pede providências para a crise prisional do país.
O Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu parcialmente cautelar, solicitada na Arguição de Des-
cumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, que pede providências para a crise prisional do país,
a fim de determinar aos juízes e tribunais que passem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo
9  O Brasil reconheceu a jurisdição da CrIDH em dezembro de 1998 por meio do decreto legislativo n.89 de 3 de dezembro de
1998.
10  Art. 7º. O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.
184
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas
contadas do momento da prisão.
Na ADPF 347 postulou-se, em síntese, que o STF reconheça e declare o estado de coisas inconstitu-
cional do sistema prisional brasileiro, e, diante disso, imponha a adoção de uma série de medidas voltadas à
promoção da melhoria das condições carcerárias do país e a contenção e reversão do processo de hiperencar-
ceramento que o Brasil vivencia. Mesmo sem ainda ter sido aprovado no Congresso Nacional, a audiência de
custódia tem sido utilizada como uma sugestão do CNJ para ser implementada em todo país, com garantia
do que dispõe a Convenção Americana em seu §5º, art. 7º.
Nesse sentido, observa-se o que trata Lima (2015), a saber:
Apesar de tal projeto ainda não ter sido aprovado pelo Congresso Nacional,
o Conselho Nacional de Justiça e alguns Tribunais de Justiça dos Estados já
vem adotando resoluções e procedimentos com o objetivo de implementá-la,
porquanto se trata de garantia convencional decorrente da própria Conven-
ção Americana sobre os direitos humanos (Dec.678/92), dotada de status
normativo supralegal, cujo art.7º, §5º, dispõe que:”toda pessoa detida ou re-
tida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autori-
dade pela lei que exercer funções judiciais.”[...] (LIMA, 2015, p.927)
No Brasil tem o caso do depositário infiel e a edição da Súmula Vinculante n. 25, que por força da-
quela Convenção considera a prisão civil do depositário infiel ilegal, qualquer que seja a sua modalidade do
depósito. Há interpretações no sentido de que a partir de então, houve uma mutação informal na constitui-
ção, não admitindo a prisão civil no caso citado, com sucedâneo na Convenção Americana. Para estes juristas
a natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos seria constitucional. Tese não admitida
no STF, pois o posicionamento atual da Suprema Corte é de que as normas internacionais de direitos huma-
nos anteriores a EC/45 tem natureza jurídica supralegal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proteção do dos Direitos Humanos tem se ampliado, complementando o sistema jurídico nacional,
não sendo causa de antinomias, nem sendo forma de ofensa à soberania nacional, mas conferindo maior
cooperação à efetividade destes direitos, frente às violações mundiais, principalmente após as Guerras Mun-
diais do século passado e as arbitrariedades dos regimes nazista e fascista, não deixando de lado as ditaduras
da América na década de 70.
O Sistema Interamericano é formado pelos países das Américas, que fazem parte da OEA, possui
como principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa
Rica, além de alguns protocolos e tratados de direitos humanos. Alguns Estados partes deram passos dinâ-
micos e evoluídos com relação ao reconhecimento dos tratados internacionais de direitos humanos em suas
constituições internas, o que é muito importante, pois associado a esse pressuposto deve existir instituições
democráticas e Estados de direito, para evitar qualquer forma de enfraquecimento, debilidade, restrição da
potencialidade do Sistema no continente americano.
O controle de convencionalidade no Brasil representa um importante avanço no constitucionalismo
interno, sendo uma das formas de se concretizar o desejado Estado constitucional e humanista de direito, as-
sim como, ser uma forma de validade normativa nacional. Ademais, leva ao Estado brasileiro e demais países
da América, membros da OEA e signatários do Pacto de San José da Costa Rica, a adequarem a sua produção
legislativa às obrigações internacionais ajustadas, caso contrário, eles se tornam sujeitos de responsabilidade
internacional.
Há uma tendência ao tratamento diferenciado dos direitos e garantias fundamentais na Constituição
de 1988, por conseguinte, uma maior abertura em relação às normas internacionais, resultando em uma
185
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
ampliação do “bloco de constitucionalidade”. Esse fato é importante para a aplicação da tutela multinível
de direitos fundamentais e/ou humanos que tem sido um assunto de tendência internacional e de grande
importância para o direito constitucional.
REFERÊNCIAS
CASA CIVIL. 1988. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília. Senado Federal. Dispo-
nível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#adct Acesso em: 10.01.16.
LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. Bahia: Editora JusPodvim, 2015.
MONTENEGRO, Caroline Alves. STF e CrIDH: Anistia dos Crimes por motivação política no Brasil
no período da ditadura militar. CDU 342.7(81). p.91-92 e 94-95, defesa em jun.2014
NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e Direito Constitucional Internacional. 12ed. São Paulo: Sa-
raiva, 2011.
___________________. Manual de Direito Internacional Público. 19ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
___________________. Temas de Direitos Humanos. 6 ed. São Paulo: Saraiva 2013.
RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de direitos Humanos. 3ed. São Paulo: Saraiva,
2013.
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Tratados de Direitos Internacionais em matéria
de Direitos Humanos: Revisitando a Discussão em torno dos Parágrafos 2º e 3º do art.5º da Constituição
Federal de 1988. In: NEVES, Marcelo (Coord.). Transnacionalidade do Direito: Novas Perspectivas dos Con-
flitos entre Ordens Jurídicas. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A CRISE CONTEMPORÂNEA DOS REFUGIADOS, DIREITOS HUMANOS E
POLÍTICAS PÚBLICAS
David Cavalcante
Mestre em Ciência Política-UFPE e Graduando em Direito-UNICAP
SUMÁRIO: Introdução; 1. Os refugiados e os direitos humanos no pós-segunda guerra; 2. O brasil e
os direito humanos dos refugiados; Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO
Há anos um tema humanitário internacional não chamava tanta atenção da sociedade civil, dos
governos e da imprensa mundial quanto o tema dos refugiados, oriundos principalmente da Síria para a
Europa. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) responde pela assistência
internacional prestada aos refugiados e, sob determinadas condições, aos deslocados internos e apátridas.
Em 2012, o número de pessoas com necessidade de apoio no mundo atingiu 45,2 milhões, número que vem
crescendo com o recrudescimento da Guerra Civil na Síria.
OBrasilésignatárioda ConvençãoInternacionalsobreoEstatutodosRefugiadosde1951 edo Protocolo
de 1967 – além de integrar o Comitê Executivo do ACNUR, desde 1958. Esses tratados normatizam a relação
do país com os refugiados e apátridas que poderão solicitar refúgio no Brasil, devido a fundado temor de ser
perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social específico ou opinião
política, encontrem-se fora de seu país de nacionalidade e não possam devido a tais temores, ou não queiram
retornar ao país de origem, buscando preservar suas vidas.
A política brasileira para o acolhimento de refugiados avançou bastante nas últimas duas décadas,
após a promulgação do Estatuto do Refugiado (Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997). Essa lei instituiu as
normas aplicáveis aos refugiados e aos solicitantes de refúgio no Brasil e criou o Comitê Nacional para os Re-
fugiados (CONARE) – órgão responsável por analisar os pedidos e declarar o reconhecimento, em primeira
instância, da condição de refugiado, bem como por orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da
proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados.
Este trabalho busca analisar o avanço do marco jurídico no trato da questão dos refugiados, ao passo
que analisa de forma crítica a insuficiência de políticas públicas reais para recepcioná-los com mais ênfase
na agenda contemporânea governamental brasileira, principalmente diante do cenário na crise do Oriente
Médio.
1. OS REFUGIADOS E OS DIREITOS HUMANOS NO PÓS-SEGUNDA GUERRA
	 A temática do refúgio humanitário internacional não chamava tanta atenção da sociedade civil
e da imprensa mundial, desde a Segundo Guerra Mundial. Jornais, revistas, sites, declarações de governos e
instituições evidenciam a progressiva e dolorosa travessia de milhões de refugiados da África e da Ásia para
Europa ou para países vizinhos oriundos das regiões em conflitos violentos, guerras civis e drásticas crises
econômicas.
187
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
	 O fator mais emblemático dos últimos anos para o aumento dos refugiados é a Guerra Civil na
Síria onde as informações dão conta que mais de 4 milhões de pessoas já foram expulsas de suas casas e ci-
dades devido aos enfrentamentos militares, ou seja, quase ¼ da população total daquele país. As informações
de ativistas de direitos humanos, dentro e fora da Síria, dão conta que o número de mortos no conflito pode
passar das 220 mil pessoas, sendo a grande maioria de civis, sendo que mais de 130 mil pessoas teriam sido
detidas pelas forças de segurança do governo. 
	 A grande maioria dos 4 milhões de sírios que já teriam buscado refúgio no exterior para fugir
dos combates, tentam abrigo nos países vizinhos, como no Líbano, Jordânia, Iraque e Turquia. No entanto,
esses países, já atingidos por fortes conflitos internos e sem grandes infraestruturas para receber uma po-
pulação tão numerosa, acabam por estimular também um corredor migratório para a Europa, mediado pelo
tráfico clandestino de pessoas, pelas travessias perigosas do Mar Mediterrâneo até o velho continente, através
da Grécia e Itália. Esta nova rota migratória soma-se aos já constantes e massivos fluxos oriundos da África.
	 O fenômeno do refúgio não é novo. Os povos, ao longo da história, sempre se depararam com
migrações em massa resultantes das guerras e conflitos militares entre os países e até mesmo intraregionais.
O conceito de “refugiados” compreendido de forma lato sensu é um fenômeno histórico e social presente na
humanidade desde a antiguidade, mas localizando-o no âmbito jurídico e político do Direito Internacional e
dos Direitos Humanos é o tratamento diferenciado que os Estados passam a ofertar às populações migrantes
forçadas a se retirarem de suas pátrias originárias por motivos de ameaças iminentes às suas vidas e/ou de
proteção familiar. De modo que o estatuto de proteção ao refúgio adquire relevância no âmbito da ascensão
contemporânea dos Direitos Humanos:
Quando se relacionam refugiados e direitos humanos, imediatamente perce-
be-se uma conexão fundamental: os refugiados tornam-se refugiados porque
um ou mais direitos fundamentais são ameaçados. Cada refugiado é conse-
quência de um Estado que viola os direitos humanos. Todos os refugiados
têm sua própria história – uma história de repressão e abusos, de temor e
medo. Há que se ver em cada um dos homens, mulheres e crianças que
buscam refúgio o fracasso da proteção dos direitos humanos em algum lu-
gar. Os mais de 20 milhões de refugiados acusam esse dado [...] Há assim
uma relação estreita entre a Convenção de 1951 e a Declaração Universal
de 1948, em especial seu art. 14, sendo hoje impossível conceber o Direito
Internacional dos Refugiados de maneira independente e desvinculada do
Direito Internacional dos Direitos Humanos. Esses Direitos têm em comum
o objetivo essencial de defender e garantir a dignidade e a integridade do ser
humano. [...] (PIOVESAN, 2015, p. 254)
A resultante destrutiva das forças produtivas e da humanidade, herdadas da Segunda Guerra Mun-
dial, desenvolveram um nova consciência política-jurídica e iniciativas humanitárias que pudessem acolher
às milhões de vítimas do maior conflito bélico já registrado no planeta. Além dos mais de 50 a 70 milhões
de mortes, confiscos de propriedades e toda a modificação da geopolítica internacional, os sobreviventes da
destruição constituíram as correntezas humanas em busca de países viáveis para trabalhar e viver com suas
famílias, já anteriormente desfeitas e abaladas por perdas materiais e de seus parentes. Somente nos Estados
Unidos, país que não teve seu território continental atingido pelos conflitos militares, entre os anos de 1945
e 1952, admitiram em seu território 400.000 sobreviventes do nazismo, deslocados de guerra, e entre eles
96.000, cerca de 24%, eram judeus.
Nesse contexto, em face da necessidade de acolhimento das migrações dos sobreviventes da II Guer-
ra que cujos países foram destruídos foi aprovada no âmbito da Conferência da Organizações das Nações
Unidas – ONU, realizada em 28 de julho de 1951, A Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados
que constitui um inovador status jurídico para os refugiados.
A citada Convenção, em seu art. 1, § 1, alínea c, define que são refugiados as pessoas que se encon-
tram fora do seu país por causa de fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade,
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
opinião política ou participação em grupos sociais, e que não possam (ou não queiram) voltar para casa. Tam-
bém são refugiados as pessoas obrigadas a deixar seu país devido a conflitos armados, violência generalizada
e violação massiva dos direitos humanos. Naquela data, a Convenção se restringia a contemplar somente os
refugiados resultantes dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, mas posteriormente essa
restrição temporal foi substituída por uma maior amplitude no Protocolo de 1967 Relativo ao Estatuto dos
Refugiados, seu Art. 1º, § 2º, ampliando a cobertura temporal e geográfica da Convenção:
Para os fins do presente Protocolo, o termo “refugiado”, salvo no que diz
respeito à aplicação do §3 do presente artigo, significa qualquer pessoa que
se enquadre na definição dada no artigo primeiro da Convenção, como se as
palavras “em decorrência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janei-
ro de 1951 e...” e as palavras “...como conseqüência de tais acontecimentos”
não figurassem do §2 da seção A do artigo primeiro.[...] O presente Protocolo
será aplicado pelos Estados Membros sem nenhuma limitação geográfica; en-
tretanto, as declarações já feitas em virtude da alínea “a” do §1 da seção B do
artigo1 da Convenção aplicar-se-ão, também, no regime do presente Proto-
colo, a menos que as obrigações do Estado declarante tenham sido ampliadas
de conformidade com o §2 da seção B do artigo 1 da Convenção.
A Convenção e o Protocolo ressignificaram a relação dos Estados que aderiram às mesmas, decisão
que foi resultante da Assembleia Geral de 1950 (Resolução n. 429 V), convocando em Genebra, em 1951,
a Conferência de Plenipotenciários das Nações Unidas para redigir a Convenção regulatória que atribui um
novo status legal dos refugiados.
A partir de tal ano, consolidam-se prévios instrumentos legais internacionais relativos aos refugiados,
fornecendo a mais compreensiva codificação dos direitos dos refugiados a nível internacional, estabelecendo
padrões básicos para o tratamento de refugiados, sem, no entanto, impor limites para que os Estados possam
desenvolver esse tratamento, pois o amparo não atenta contra a soberania das nações.  
A Convenção somente entra em vigor em 22 de abril de 1954, mas deve ser compreendida no cená-
rio político das pressões da nova consciência planetária sobre as Nações Unidas, que também, já em 1950,
constitui o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). O ACNUR foi criado pela As-
sembleia Geral da ONU, em 14 de dezembro de 1950, para proteger e assistir às vítimas de perseguição, da
violência e da intolerância. Tal agência já ajudou mais de 50 milhões de pessoas, sendo atualmente uma das
principais agências humanitárias do mundo.
O crescimento contemporâneo dos fluxos de refugiados remete-nos à II Guerra Mundial. As seqüelas
humanitárias da II Guerra e do após-Guerra são incomensuráveis, demonstrando que para além das redefi-
nições geopolíticas e da emergência do novo sistema mundial de Estados, as perdas e os desterros humanos
são a face mais cruel já registrada na história mundial. Como destaca Paiva:
O final da II Guerra Mundial marcou o início da colocação, fora da Europa,
de um contingente significativo de pessoas vítimas do conflito. Os números
são controversos, mas não seria equivocado afirmar que aproximadamente
dois milhões de pessoas estavam fora de suas regiões de origem após o con-
flito, vítimas de deslocamentos forçados por forças de ocupação. [...] Em sua
maioria, eram egressos de países que foram situados, após o conflito, na zona
denominada Leste Europeu e, portanto, na órbita política da União Sovié-
tica. A organização de campos de refugiados na Alemanha, Áustria, Itália e
Grécia, e a posterior inserção desses sujeitos em diversos países, demonstrou
quão complexas eram as formas da política internacional a partir da segunda
metade do século XX. Entre 1947 até 1951 a Organização Internacional de
Refugiados foi a principal responsável pela realocação desse contingente em
diversos países do bloco ocidental, dentre eles Israel, Estados Unidos, Aus-
trália, África do Sul, Nova Zelândia, Venezuela, Argentina, Peru, Canadá, etc.
(PAIVA, 2009)
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Percebe-se que a principal vítima das Guerras são os Direitos Humanos, onde os direitos funda-
mentais são pisoteados em nome das conquistas, naquele contexto, das correntes ideológicas nacionalistas,
exacerbadas principalmente pelo nazismo alemão e pelo fascismo italiano que desencadearam máquinas
assassinas de extermínio humano, principalmente no continente europeu.
Assim, localiza-se historicamente o surgimento da Declaração Universal dos Direitos dos Direitos
Humanos de 1948 como referência político-jurídica normativa para a constitucionalização dos Direitos Hu-
manos em diversos países bem como para os tratados e convenções internacionais que envolvam a temática
dos direitos referidos. Piovesan lembra que:
[...] a Declaração de 1948 vem a inovar ao introduzir a chamada concepção
contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivi-
sibilidade desses direitos. Universalidade porque clama pela extensão uni-
versal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o
requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano
um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade,
esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a ga-
rantia dos direitos civis e político é condição para a observância dos direitos
sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os
demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade
indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo
de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e
culturais. (PIOVESAN, 2015, p 49)
	 A derrota do nazifascismo pela aliança do Ocidente com a URSS foi um marco histórico mun-
dial para a reemergência dos Direitos Humanos como uma pauta universal, já que a guerra, os regimes totali-
tários e a ideologia da unidade nacional, em detrimento da democracia e dos direitos contra o inimigo externo
foi que prevaleceu na pauta política e no regime político da maioria dos países, inclusive onde havia tradição
democrática anterior. Sem dúvida a construção de uma nova agenda internacional dos Direitos Humanos é
a resultante do sentimento ético mundial em repúdio aos massacres da II Guerra que resultou, a partir da
constituição do novo sistema mundial de Estados, na formação da Organização das Nações Unidas, em 1945,
como bem define sua Carta de Fundação1
:
Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vin-
douras do flagelo da guerra, que, por duas vezes no espaço da nossa vida,
trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos
fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igual-
dade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes
e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às
obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito internacional
possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições
de vida dentro de uma liberdade mais ampla [...] E para tais fins praticar a
tolerância e viver em paz uns com os outros, como bons vizinhos, unir nossas
forças para manter a paz e a segurança internacionais, garantir, pela acei-
tação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será
usada a não ser no interesse comum, e empregar um mecanismo interna-
cional para promover o progresso econômico e social de todos os povos [...]
	
As crises humanitárias relacionadas aos fatores políticos, econômicos e mili-
tares, são recorrentes e mesmo depois da criação da ONU, logo em seguida,
novos fatores geopolíticos de disputas de territórios e recursos naturais no
planeta são os grandes causadores dos processos migratórios forçados, prin-
cipalmente àqueles relacionados com os interesses dos países imperialistas
e beligerantes. Basta destacar que, já em 1947, apenas 2 anos após o fim da
Segunda Guerra, em seguida à criação do Estado de Israel, mais de 700 mil
1  http://nacoesunidas.org/conheca. Acesso em 25 de set. 2015.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
palestinos foram expulsos por medo, massacres de civis ou pela Guerra Israel
x países árabes.
Os refugiados da Palestina foram as primeiras vítimas, depois da Segunda Guerra, de uma migração
forçada em massas. Daí surge a Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos - UNRWA, que
trabalham com a definição de que os refugiados palestinos são as “pessoas cujo lugar de residência habitual
era o Mandato Britânico da Palestina entre junho de 1946 e maio de 1948 e que perderam suas casas e meios
de vida como consequência da Guerra árabe-israelense de 1948”, ou seja, aos milhares foram aqueles obri-
gados a deixar a região da Palestina onde se constituiu o Estado de Israel, refugiando-se nas outras partes da
região e países vizinhos.
O número de refugiados palestinos chega a mais de 4 milhões de pessoas, sendo que a Resolução
194 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 11 de dezembro de 1948, seria a primeira de uma série de
resoluções da ONU a mencionar a necessidade de se chegar a um acordo justo para o retorno dos refugiados
ou para compensá-los pelas perdas e danos sofridos. A ONU considera também os descendentes dos refugia-
dos de 1948, de modo que o número total de refugiados registrados seria, atualmente, superior a população
palestina que vive sob os territórios ocupados da Cisjordânia e Faixa de Gaza.
No entanto, na contemporaneidade - destacando-se nas últimas décadas a crise do Estado de Bem
Estar Social Europeu e a Primara Árabe - o número de refugiados no mundo não pode ser visto sem relações
com a economia global que, por um lado, está cada vez mais internacionalizada, informatizada e financeiri-
zada, por outro, cada vez mais excludente e concentradora de riqueza nas mãos de uma pequena minoria de
bilionários, principalmente a partir da Crise Financeira desencadeada nos Estados Unidos em 2008, o que
aprofundou a crise do capitalismo global, aumentando o número de refugiados no mundo, agregando mais
motivações para guerras e migrações também relacionadas aos problemas econômicos, como bem demonstra
o gráfico:
Figura 1 - Aumento das migrações forçadas2
No caso dos refugiados sírios, tal tragédia se inicia com a resposta interna que o governo do Presi-
dente Bashar al Assad oferece à revolta popular por democracia e direitos civis ocorrida em vários países do
Oriente Médio e Norte da África, conhecida como Primavera Árabe, que ao chegar à Síria, foi respondida por
massacres de militares a civis e o uso de armas química.
O Presidente Assad governa a Síria desde o ano de 2000, quando sucedeu seu próprio pai, após 30
anos de poder absoluto do genitor, mas o país vive uma guerra civil onde vários grupos internos e externos
atuam e controlam parte daquele território, como é demonstrado no mapa da guerra civil, que já dura mais
de 4 anos, onde o governo controla apenas uma pequena parte do território e as outras 4 partes são contro-
ladas pelos Curdos e suas organizações políticas e militares, pelo Estado Islâmico cujo poder se expande até
o Iraque, pelo Exército Livre da Síria e pelo grupo terrorista, Frente Al Nusra/Al Qaeda; entre tantos outros
grupos.
2  Fonte: ACNUR. Disponível em http://www.acnur.org/t3/portugues/. Acesso em 25 de set. de 2015.
191
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A guerra civil agravou algumas rotas de fuga para os refugiados aos países vizinhos, mas também
para a Europa como bem evidencia o noticiário internacional. A rota de migração para a Europa passa pela
Turquia, Grécia e Itália de forma que as viagens são extremamente perigosas e submetem famílias inteiras,
incluindo crianças, a condições sub-humanas de viagens de milhares de quilômetros à pé, sem alimentação
nem direito a acampamentos organizados, submetidos às humilhações, agressões e aos “coiotes” que são os
mercenários que organizam as trilhas sob condições extorsivas, sendo que as viagens não-raramente termi-
nam em mortes por afogamento, estupros, doenças ou fome.
2. O BRASIL E OS DIREITO HUMANOS DOS REFUGIADOS
O Brasil, partindo de um atraso histórico de desenvolvimento econômico e social, típico da resultante
do processo de colonização e desenvolvimento tardio do capitalismo nos países latino-americanos e nesta
esteira, também permeado por um anacronismo na edificação de uma sociedade civil ativa bem como de
instituições e instâncias de poder estatais modernas e democráticas.
Bem ao inverso, a evolução política do país tem como marcas fundantes uma herança monárquica
que, ao contrário dos países vizinhos em seus processos de libertação nacional, perdurou por quase 70 anos
no Século XIX, resultando ainda numa república oligárquica e elitista em seus primórdios, bem como um re-
tardo na garantia dos direitos civis e mais ainda, dos direitos sociais e coletivos, agravados por toda a herança
escravocrata.
Neste aspecto, a Constituição de 1988 é considerada a Constituição Cidadã, em razão dos princípios
norteadores de sua aprovação pela Assembleia Constituinte de 1987-88 estarem referenciados no primado
dos Direitos Fundamentais que foram totalmente vilipendiados pelo regime ditatorial de 1964-84. Sobre o
processo de transição à democracia e o papel da Constituição de 1988, o historiador Boris Fausto destaca:
Com todos os seus defeitos, a Constituição de 1988 refletiu o avanço ocor-
rido no país especialmente na área da extensão de direitos sociais e políti-
cos aos cidadãos em geral e às chamadas minorias. Entre outros avanços,
reconheceu-se a existência de direitos e deveres coletivos, além dos indivi-
duais. A partir daí, a faculdade de impetrar mandado de segurança contra
autoridade pública para proteger direitos líquidos foi estendida aos partidos
políticos com representação no Congresso e às organizações sindicais. Os
constituintes criaram também a figura do habeas-data, pela qual o cidadão
pode assegurar a obtenção de informações relativas a sua pessoa, constan-
tes de registros de entidades governamentais. O objetivo desse direito é o
de impedir que registros secretos, especialmente de natureza policial, sejam
utilizados contra as pessoas, como ocorreu no regime autoritário. No que diz
respeito as minorias, um capítulo da Constituição reconheceu aos índios “sua
organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos ori-
ginários sobre as terras eu tradicionalmente ocupam. O texto constitucional
é bastante abrangente, mas, mais do que em qualquer outro campo, há aqui
uma enorme distância entre o que diz a lei e o que acontece na prática. [...]
(FAUSTO, 2013, p. 446)
No vácuo do processo de transição desencadeado pelas mobilizações sociais por democracia, liberda-
de e direitos civis, é promulgada a Carta Magna de 1988 e também com suas contradições e limitações, mas
com avanços significativos, incorpora em seus princípios fundamentais o perfil garantista principiológico e
normativo dos direitos humanos fundamentais.
Neste esteio, é que se erigem no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos por força do art.
5º, § 2º, a hierarquia dada aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, assentados na dig-
nidade da pessoa humana, entre os quais estão incluídos os tratados que abrangem o direito dos refugiados.
Porém, somente em 1997 é sancionada a Lei nº 9.474/97 que trata da regulamentação e define mecanismo
para implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951.
192
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A partir da Lei nº 9.474/97 nasce o Comitê Nacional dos Refugiados-CONARE, órgão colegiado, vin-
culado ao Ministério da Justiça, que reúne segmentos representativos da área governamental, da Sociedade
Civil e das Nações Unidas, e que tem por finalidade: a) analisar o pedido sobre o reconhecimento da condição
de refugiado; b) deliberar quanto à cessação “ex officio” ou mediante requerimento das autoridades compe-
tentes, da condição de refugiado; c) declarar a perda da condição de refugiado; d) orientar e coordenar as
ações necessárias à eficácia da proteção, assistência, integração local e apoio jurídico aos refugiados, com a
participação dos Ministérios e instituições que compõem o Conare; e e) aprovar instruções normativas que
possibilitem a execução da Lei nº 9.474/97.
O CONARE é composto por representantes do Ministério da Justiça, que o preside; Ministério das
Relações Exteriores, que exerce a Vice-Presidência; Ministério do Trabalho e do Emprego; Ministério da Saú-
de; Ministério da Educação; Departamento da Polícia Federal; Organização não-governamental, que se dedi-
ca a atividade de assistência e de proteção aos refugiados no País – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e Rio
de Janeiro; e Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, com direito a voz, sem voto.
Percebe-se que no âmbito normativo o Brasil tem sido referência para o continente, no que diz respei-
to das garantias dos direitos humanos ao estrangeiro refugiado, no entanto como destaca Piovesan, o aspecto
normativo deve ser acompanhado de medidas práticas duradouras haja vista as dificuldades de assistência
até mesmo para utilização dos recursos jurídicos no âmbito da postulação da inserção social na comunidade
nacional.
[...] É necessário que a problemática dos refugiados seja enfrentada sob a
perspectiva dos direitos humanos. Hoje é amplamente reconhecida a inter-
-relação entre o problema dos refugiados, a partir de suas causas principais
(as violações de direitos humanos) e, em etapas sucessivas, os direitos hu-
manos. Assim, devem os direitos humanos ser respeitados antes do processo
de solicitação de asilo ou refúgio, durante ele e depois dele (na fase final das
soluções duráveis). Há uma relação direta entre a observância das normas de
direitos humanos, os movimentos de refugiados e os problemas da proteção,
sendo necessário abarcar a problemática dos refugiados não apenas a partir
do ângulo da proteção, mas também da prevenção e da solução (duradoura
ou permanente). (PIOVESAN, 2015, p. 257)
	 Das informações oficiais do Ministério da Justiça, há registros de menos de 5 mil refugiados no
país. Número que diante da situação internacional revela-se bastante reduzido haja vista as levas de refugia-
dos noticiados na imprensa mundial que se somam aos milhões. A importância de recepção dos refugiados no
território nacional reforçaria nossos laços de intercâmbio culturais e abrangência das relações humanitárias
entre a população brasileira e os povos do mundo inteiro, exemplo que deve ser praticado ante a o aprofun-
damento do processo da globalização onde prevalecem os interesses comerciais e financeiros em detrimento
dos interesses da pessoa humana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Vimos que no campo normativo há importantes avanços no reconhecimento dos Direitos Humanos
que incidem também na esfera internacional pelas resoluções e convenções das Nações Unidas com relação
ao tratamento jurídico e acolhimento dos refugiados no mundo, no espírito de que a liberdade constitui um
direito humano fundamental universal, tal como o refúgio.
Neste âmbito, a detenção de solicitantes de refúgio não deve ser aceita, tendo como referência a Con-
venção sobre Refugiados. Principalmente quando se incluem pessoas muito vulneráveis – crianças, mulheres
sozinhas e pessoas que necessitam de cuidados especiais de caráter médico ou psicológico, como é o caso
daqueles que foram objeto de tortura. Os requerentes de asilo não devem ser considerados criminosos, pois
sofreram muitos infortúnios e o seu encarceramento é um procedimento abusivo.
193
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados e o Protocolo de 1967 Relativo ao Estatu-
to dos Refugiados são dois grandes referenciais relevantes universais para a temática mais abrangente dos
Direitos Humanos internacionais cujo impacto na constitucionalização dos direitos humanos no Brasil se
traduziu também na criação do Conselho Nacional para Refugiados-CONARE.
O passo mais difícil são as medidas dos governos conservadores da Europa, os quais muitas vezes
fecham as fronteiras e acabam dificultando ainda mais as condições de travessia ou permanência dos povos
refugiados em busca de um lar para viver. O outro passo é desenvolver políticas públicas internacionais e
nacionais que possam acolher os refugiados nos países receptores para incluí-los em condições de tratamento
igualitário aos migrantes legais, onde possam ter moradia, trabalho, saúde e escolas. Este último é o mais
distante em vista de que diante de uma profunda crise econômica internacional os governos apelam para os
sentimentos nacionalistas e xenófobos para dificultar e impedir a permanência dos povos refugiados.
Daqui se deduz o papel que deve o papel da sociedade civil, organizações sindicais, movimentos so-
ciais, organizações não-governamentais e de solidariedade, governos estaduais e locais, no sentido de pres-
sionar os parlamentos e os governos, bem como as instituições e eventos internacionais para que busquem
superar as boas intenções e tratem de efetivar orçamentos e políticas públicas reais para apoiar os refugiados
do mundo inteiro.
O Brasil pela sua tradição política e jurídica pode ampliar suas políticas públicas, envolvendo a socie-
dade civil, no sentido de receber uma maior quantidade de refugiados, bem como desenvolver mecanismos
de inserção dos refugiados na comunidade e na economia locais com vistas ao cumprimento dessa missão
humanitária tão relevante nos dias atuais.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.747, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a
implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14ª Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º
ao 5º da Constituição de República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9ª ed. São
Paulo: Atlas, 2011.
PAIVA, Odair da Cruz. Refugiados da Segunda Guerra Mundial e os Direitos Humanos. Disponível em http://
diversitas.fflch.usp.br/node/2180. Acesso em 25 de set. de 2015.
PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2015.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
LEI MARIA DA PENHA:
UMA ANÁLISE CRÍTICA DA OCORRÊNCIA DE PRISÕES PREVENTIVAS E DAS FORMAS DE RESOLUÇÃO
DE CONFLITOS DOMÉSTICOS
Débora de Lima Ferreira
Mestranda-bolsista CAPES-PROSUP do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de
Criminologia. Advogada
Marília Montenegro Pessoa de Mello
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Direito pela
Universidade Federal de Pernambuco. Professora do programa de Mestrado em Direito
da Universidade Católica de Pernambuco e da Graduação em Direito da UNICAP e UFPE.
Coordenadora do Grupo de Pesquisa Asa Branca de Criminologia.
SUMÁRIO: 1. O movimento feminista no Brasil e a luta no combate a violência contra mulher; 2.
As estratégias punitivas da Lei Maria da Penha para o enfrentamento da violência doméstica contra
a mulher e o simbolismo penal; 3. Investigando a realidade da aplicação das prisões preventivas e das
formas de resolução dos conflitos domésticos à luz da criminologia crítica; Conclusão; Referências.
1. O MOVIMENTO FEMINISTA NO BRASIL E A LUTA NO COMBATE A VIOLÊNCIA CONTRA MULHER
No Brasil, o reconhecimento das mulheres enquanto novo sujeito social deveu-se, essencialmente,
ao estabelecimento do feminismo, um movimento que visa consagrar não só os direitos das mulheres, mas
também os direitos sociais, humanos e políticos. Neste sentido, as feministas têm um desafio político e pe-
dagógico - o da formação de mulheres conscientes da experiência de ser mulher sob o sistema patriarcal e o
capitalista (CAMURÇA, 2007, p. 37).
O feminismo como movimento social busca a transformação de um nascer
mulher, para um tornar-se “mulher”1
, baseando-se no enfrentamento das
questões de gênero, um termo identificado como categoria de análise para
demonstrar e sistematizar as relações de dominação e subordinação, que en-
volvem homens e mulheres, em que aqueles se impõem sobre estas (TELES,
2003, p. 16).
Sobre a construção do conceito de gênero Joan Scott destaca:
Na sua utilização mais recente, “gênero” parece primeiro ter feito sua apa-
rição entre as feministas americanas que queriam insistir sobre o caráter
fundamentalmente social das distinções fundadas sobre o sexo. A palavra
indicava uma rejeição ao determinismo biológica implícito no uso de termos
1  Paráfrase à famosa assertiva de Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo” que identifica a construção social do gênero como
meio de estabelecimento das divisões sociais.
196
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
como “sexo” ou “diferença sexual”. O gênero enfatizava igualmente o aspecto
relacional das definições normativas da feminilidade. Aquelas que estavam
preocupadas pelo fato de que a produção de estudos femininos se centrava
sobre as mulheres de maneira demasiado estreita e separada utilizaram o
termo “gênero” para introduzir uma noção relacional em nosso vocabulário
de análise (1990, p. 5).
A perspectiva de gênero para a mulher enquanto sujeito político pode ser sintetizada: “Para nós, trata-
-se de uma categoria de análise sobre como se constroem e se manifestam as relações de poder na sociedade,
fundamentadas na percepção das diferenças entre os sexos” (LARANJEIRA, 2008, p. 13).
As ideias feministas partem do pressuposto de que a sociedade patriarcal sempre usou a violência
como mecanismo de contenção da mulher no âmbito privado, em que o homem, dominando-a, impunha-lhe
o regramento da vida, subordinando as potencialidades femininas às pretensões culturais patriarcais em que
homem e mulher exerciam papéis sociais definidos.
Sobre o patriarcado, Saffioti apresenta a seguinte compreensão:
[...] patriarcado como um conjunto de relações sociais que tem uma base
material e no qual há relações hierárquicas entre homens, e solidariedade
entre eles, que os habilitam a controlar as mulheres. Patriarcado é, pois, o
sistema masculino de opressão das mulheres (Apud. CASTILLO-MARTÍN;
OLIVEIRA, 2005, p. 41).
Não obstante a realidade patriarcal, o anseio dos movimentos feministas é o da libertação das mulhe-
res de seus cativeiros privados ou públicos e da luta pela igualdade entre homens e mulheres. Maria Betânia
Ávila resume bem o propósito, “O feminismo, como movimento político, nasce confrontando a relação entre
liberdade pública e dominação privada” (2007, p. 6).
As dimensões das relações na sociedade inferiorizaram a mulher, tendo em vista os pilares de seus
estabelecimentos: o patriarcalismo e o capitalismo. Reservou-se a elas os aspectos estáticos e privados, em
razão de um controle social neutralizado, que reflete padrões e comportamentos construídos e aceitos cultu-
ralmente. O poder exercido sobre as mulheres é reflexo de fundamentos ideológicos e não naturais e condi-
ciona a repartição dos recursos e a posição superior de um dos sexos (BARATTA, 1999, p. 19), estabelecendo,
assim, limites específicos para as mulheres exercerem sua cidadania e autonomia.
A violência doméstica, como exemplo dessa subordinação tem fundamento em causas eminentemen-
te sociais.
Segundo Maria Berenice Dias
Ninguém dúvida que a violência sofrida pela mulher não é exclusivamente
culpa do agressor2
. A sociedade ainda cultiva valores que incentivam a vio-
lência, o que impõe a necessidade de tomar a consciência que, na verdade,
a culpa é de todos. O fundamento é cultural e decorre da desigualdade no
exercício do poder, que levam a uma postura de dominante e dominado. [...]
Daí o absoluto descaso de que sempre foi vítima a violência doméstica (2010,
p.18).
O movimento feminista, em contrapartida aos modelos e padrões que vitimizam e exercem opressão
sobre as mulheres, objetiva estabelecer uma “reconstrução social do gênero” (BARATTA, 1999, p. 22) a fim
de garantir espaços sociais, políticos e econômicos através de práticas cidadãs e democráticas.
2  Entretanto, não se quer dizer com isso que se assume uma postura de considerar a mulher como corresponsável pelas
agressões, assim como propõem parcela da vitimodogmática.
197
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A história das “mulheres” como novo sujeito social, entendidas assim como um movimento, um gru-
po de transformação social, é marcada por uma série de barreiras e preconceitos, baseados em apenas uma
característica: ser do sexo (biológico) feminino, ter nascido mulher.
Na esteira das evoluções dos direitos das mulheres, salienta-se a importância do feminismo brasileiro
na realização de políticas públicas a fim de estabelecer cidadania e democracia. Sabe-se, ademais, que a luta
dos movimentos feministas são continuas e árduas, pois as injustiças e mazelas causadas em nossa sociedade
como consequência de uma colonização patriarcal capitalista fragmentam-se no espaço e no tempo, atingin-
do gerações. A “cartografia da opressão nunca está terminada, nem mesmo agora” (CAMURÇA, 2007, p. 15).
No entanto, os movimentos feministas passam a ganhar reconhecimento e a partir da década de
setenta se organizaram no país, empreendendo muitas lutas em favor da emancipação da mulher e da igual-
dade entre os sexos (ANDRADE, 2003a, p. 133-134).
O ano de 1975 tem sido considerado um momento inaugural do feminismo brasileiro. Até então o
movimento estava restrito a grupos muito específicos, fechados e intelectualizados, chegando mesmo a se
configurar mais como uma atividade privada, que acontecia na casa de algumas pessoas.
Todavia, os interesses do movimento feminista da década de 70 já não correspondiam
mais aos da maioria das mulheres, ou porque já tinham sido atendidos, ou porque as
mulheres pretendiam debater assuntos mais específicos sobre a condição feminina,
como sexualidade, direito ao corpo e violência doméstica (MANINI, 2011, p. 56).
Neste sentido, a década de 80 foi um marco para o movimento feminista e, inclusive, para a demo-
cratização do país. Surgiram pelo Brasil inúmeras organizações de apoio à mulher vítima de violência; a
primeira delas foi a SOS Mulher, inaugurado no Rio de Janeiro em 1981. A trajetória desse tipo de ação femi-
nista é particularmente interessante na medida em que aponta para uma tendência que será predominante
no movimento na década de 1980. O objetivo dos SOS Mulher era constituir um espaço de atendimento de
mulheres vítimas de violência e também um espaço de reflexão e de mudança das condições de vida des-
sas mulheres. No entanto, logo nos primeiros anos, as feministas entraram em crise, pois seus esforços não
resultavam em mudanças de atitude das mulheres atendidas, que, passado o primeiro momento de acolhi-
mento, voltavam a viver com seus maridos e companheiros violentos, não retornando aos grupos de reflexão
promovidos pelo SOS Mulher.
Em verdade, esses movimentos, em todos os países, sempre estiveram comprometidos com o comba-
te a todas as formas de discriminação e opressão, sobretudo, as que eram julgadas resultantes das relações
de gênero (RORIZ, 2010, p. 41).
A partir de 1985, a questão da violência contra a mulher toma outros rumos com a criação da pri-
meira delegacia especializada. As DEAMs constituíram política pública de combate e prevenção à violência
contra a mulher no Brasil, especialmente a violência conjugal (MORAES; SORJ, 2009, p. 14). Entretanto,
percebeu-se, com sua criação, que muito embora tenha possibilitado demonstrar os verdadeiros índices de
agressão, a sua função legal de usar o poder policial para reduzir tais violências não estava sendo e nem po-
deria ser cumprida. Os anseios dessas vítimas, contraditoriamente à expectativa feminista, eram apenas de
não serem mais agredidas.
As mulheres que tomavam a frente dos movimentos eram “cultas e politizadas” e geralmente não
eram vítimas desse tipo de violência (MELLO, 2009, p. 48). Mas, o feminismo pretendia criminalizar a vio-
lência doméstica e assim, conscientizar tanto agressores como vítimas dos direitos das mulheres.
Segundo asseveram Aparecida Fonseca e Bila Sorj:
O uso das DEAMs pelas mulheres parece seguir uma lógica diversa da lógica
da instituição policial e da inspiração do movimento feminista, uma vez que
a mais freqüente motivação das mulheres em procurar as delegacias espe-
cializadas consiste em usar o poder policial para renegociar o pacto conjugal
198
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
e não para criminalizar o parceiro. [...] a polícia é procurada, predominante-
mente, como forma extraoficial de arbitragem com vistas à renegociação dos
pactos domésticos (2009, p.14).
Essas delegacias se popularizaram por todo o país e, em 1992, já somavam 141, nas mais diversas
regiões. Essa foi uma política pública bem-sucedida que, em primeiro lugar, atendia a uma demanda das
feministas, ou seja, a criação de um espaço na polícia no qual o ambiente não fosse hostil à mulher agredi-
da. A grande queixa dos delegados de polícia é a mesma, apenas em outra esfera, das feministas do SOS: as
mulheres vão às delegacias no momento da agressão, mas dificilmente mantêm a queixa; o que realmente
elas desejam do órgão policial é que o agressor seja chamado e se comprometa a não prosseguir na conduta
agressiva.
O feminismo, as feministas e as delegacias da mulher não resolveram a ques-
tão da violência contra a mulher. Houve uma tendência nas últimas décadas
de um aumento generalizado da violência tanto contra as mulheres como
contra todas as pessoas que se encontram em posição de fragilidade, mes-
mo que circunstancial. Mesmo assim, para a mulher houve um avanço fun-
damental quanto à questão da violência: ela se tornou reconhecida como
vítima, daí ter direito ao tratamento dado pelos órgãos públicos às demais
vítimas (PINTO, 2003, p. 82).
O feminismo brasileiro, e também mundial, mudou, e não somente em relação àquele movimento
sufragista, emancipacionista do século XIX, mudou também em relação aos anos 1960, 1970, até mesmo aos
1980 e 1990. Na verdade, vem mudando cotidianamente, a cada enfrentamento, a cada conquista, a cada
nova demanda, em uma dinâmica impossível de ser acompanhada por quem não vivencia suas entranhas.
O movimento feminista brasileiro, enquanto “novo” movimento social, extrapolou os
limites do seu status e do próprio conceito. Foi mais além da demanda e da pressão
política na defesa de seus interesses específicos. Entrou no Estado, interagiu com
ele e ao mesmo tempo conseguiu permanecer como movimento autônomo. [...]. No
espaço do movimento, reivindica, propõe, pressiona, monitora a atuação do Estado,
não só com vistas a garantir o atendimento de suas demandas, mas acompanhar a
forma como estão sendo atendidas (COSTA, 2009, p. 75).
O movimento feminista, portanto, representou um grande marco na história do Brasil e de importân-
cia indiscutível no combate à violência contra mulher.
2.ASESTRATÉGIASPUNITIVASDALEIMARIADAPENHAPARAOENFRENTAMENTODAVIOLÊNCIA
DOMÉSTICA CONTRA A MULHER E O SIMBOLISMO PENAL
Na perspectiva de emancipação da mulher e seu respectivo empoderamento, um dos importantes
pleitos dos movimentos feministas foi uma novel legislação – Lei nº 11.340/2006 - a título de equilíbrio, que
pretende proteger a mulher nas situações em que ela possa ser fragilizada pela violência. Cabe à lei ordinária
tratar desigualmente os desiguais em determinadas situações excepcionais e específicas (MELLO, 2009, p.
474).
A Lei Maria da Penha nasce no sentido de atender esta demanda feminista, e a despeito de inúmeras
críticas que foram lançadas, afastou do âmbito do JECRIM o julgamento dos crimes perpetrados com violên-
cia doméstica e familiar contra a mulher.
Assim, todas as infrações, quando cometidas em razão de vínculo de natureza familiar, estão sob a égi-
de da Lei Maria da Penha. Nesses casos há possibilidade de aplicação de penas restritivas de direitos, exceto
as de natureza pecuniária, e penas privativas de liberdade.
199
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
As pretensões de inibição das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher fundamenta-
ram o discurso criminalizador, isto é, a estratégia penal, em falência no cenário atual, foi selecionada como
maneira de enfrentamento daquelas formas, representando, portanto, o falacioso discurso oficial de eman-
cipação da mulher.
Percebe-se, assim, que as modificações nos tipos penais incriminadores surgiram conforme a atual
tendência política de se recorrer ao sistema penal (criando novos crimes ou aumentando a pena de delitos
preexistentes) para solucionar um problema social, muito embora pesquisas não consigam demonstrar a
relação entre o aumento do rigor penal e a diminuição de determinada criminalidade (CID; LARRAURI,
2009).
Como a grande maioria dos crimes praticados contra a mulher no contexto doméstico e familiar é,
notadamente, de menor potencial ofensivo, a vedação de aplicação da Lei n.º 9.099/95 implicou na impos-
sibilidade de utilização da transação penal, suspensão condicional do processo e composição civil em incon-
táveis casos onde, prioritariamente, seriam possíveis. Nesse contexto, a proibição de utilização dos institutos
descriminalizadores, em sentido amplo, deixou de contemplar a crise do atual sistema punitivo, tal que des-
programou a possibilidade de utilização de alternativas capazes de evitar a ampliação da intervenção penal e
aplicação de penas encarceradoras e desumanas.
No entanto, até mesmo o poder Judiciário, capaz de oferecer resistência às estratégias expansionistas
do Direito Penal, cedeu às pressões populares (especialmente de alguns setores do movimento feminista) e,
ao julgar a ADI 44243
, optou por limitar as possibilidades de diálogo e escolheu a regra da ação pública incon-
dicionada à representação da ofendida, no caso da violência doméstica.
A Lei Maria da Penha nasce a partir deste discurso a depeito de inúmeras críticas que foram lan-
çadas sobre a Lei dos Juizados Especiais no tratamento dos conflitos domésticos e familiares. No entanto,
resta questionar: as aspirações de emancipação feminina viabilizadas via discurso criminalizador têm sido
atendidas? As situações de violência domésticas e familiar contra a mulher reduziram desde a promulgação
da Lei Maria da Penha? Ou vislumbra-se, ainda que por meio dessa nova legislação penal específica, que
as situações de violência doméstica contra a mulher ganharam outras formas, “fazendo funcionar a ordem
social como uma imensa máquina simbólica tendente a ratificar a dominação masculina sobre a qual se ali-
cerça, condenando tudo que pudesse ofuscar tal dominação, já que os discursos não mudaram muito do final
do século XIX até hoje?” (BOURDIEU, 2003, p.18).
Com efeito, as soluções contemporâneas dadas ao crime ganham um novo semblante bastante para-
doxal, visto que na tentativa de se tutelar bens jurídicos, garantir a segurança populacional e educar a moral
societária, são utilizadas leis penais. Contudo, tais legislações são simbólicas, pois não conseguem cumprir,
sequer minimamente, as funções que lhes são atribuídas, como também, muitas vezes, põem em risco os
próprios bens que pretendem proteger (FAYET JÚNIOR; MARINHO JÚNIOR, 2009, p. 86-89).
Diante do exposto, a Lei Maria da Penha, no contexto das legislações de emergência, trouxe muitas
alterações recrudescedoras para o mundo jurídico-penal, de modo que foi bastante aclamada pelos militantes
em prol dos direitos das mulheres e tida como um marco para autonomia e segurança feminina. No entanto,
as pretensões da criminalização provedora são tidas como falaciosas e inócuas.
Nesse sentido, Marília Montenegro assegura:
O uso simbólico do direito penal foi sem dúvida um forte argumento do mo-
vimento feminista para justificar a sua demanda criminalizadora. É certo
que as normas penais simbólicas causam, pelo menos de forma imediata,
uma sensação de segurança e tranquilidade iludindo os seus destinatários
por meio de uma fantasia de segurança jurídica sem trabalhar as verdadei-
ras causas dos conflitos. Daí a afirmação que mais leis penais, mais juízes,
3  O STF, no dia 09/02/2012, julgou em plenário a Ação Direta de Constitucionalidade, proposta pela Procuradoria Geral da
República, e decidiu pela constitucionalidade da Lei 11.340/2006 e pela ação penal pública incondicionada do crime de violência
doméstica. A decisão tomada possui caráter vinculante.
200
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
mais prisões, significam mais presos, mas não menos delitos. O direito penal
não constitui meio idôneo para fazer política social, as mulheres não podem
buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica
(MELLO, 2010b, p. 940).
A legislação, portanto, trouxe, através de sua redação, a simbólica criminalização de complexos pro-
blemas sociais, a qual legitima a ação do sistema penal. No entanto, os estudos de criminologia crítica com-
provam o quanto esse sistema está deslegitimado por produzir um falso discurso de erradicação da violência
e promoção da segurança (CASTILHO, 2007, p. 104-106).
3. INVESTIGANDO A REALIDADE DA APLICAÇÃO DAS PRISÕES PREVENTIVAS E DAS FORMAS
DE RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS DOMÉSTICOS À LUZ DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA
Visando compreender a realidade da aplicação da Lei Maria da Penha, foi realizada pesquisa de cam-
po no Juizado da Mulher da cidade do Recife a fim de compreender em que medida aquelas pretensões do
movimento feministas foram atendidas, isto é, a pesquisa de campo trouxe um estudo com relação à aplica-
bilidade das penas mais rigorosas previstas na Lei Maria da Penha, seja durante o processo, através da prisão
preventiva, seja ao final do processo, através da prisão pena.
A abordagem acerca dos dados coletados será realizada à luz do discurso da criminologia crítica, o
qual atribui “o fracasso histórico do sistema penal aos objetivos ideológicos (funções aparentes) e identifica
nos objetivos reais (funções ocultas) o êxito histórico do sistema punitivo, como aparelho de garantia e de
reprodução do poder social” (SANTOS, 2008, p. 88).
A vertente criminológica parte do pressuposto de que o Direito deve declarar a função de proteger a
ordem social e assim o fazer, sem mistificações a essa pretensão. Investiga-se essa coerência por meio de uma
metodologia dialética a qual visa identificar funções latentes, não declaradas, ideologicamente encobertas
para “assegurar a realização das funções que ela tem no interior do conjunto da estrutura social” (BARATTA,
2004, p. 95) e as declaradas, que no caso dos movimentos feministas se dá pela emancipação da mulher e a
diminuição dos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Mais especificamente, a criminologia feminista surge no âmbito da criminologia crítica com o objetivo
de trazer a crítica feminista ao direito e à ciência penal. No entanto, tendo em vista a crescente tendência dos
movimentos feministas de buscarem no sistema penal um suporte para a defesa dos direitos das mulheres,
essa criminologia percebeu-se também no papel de trazer para esses movimentos uma base teórica, que pos-
sa orientá-los em suas opções político-criminais (ANDRADE, 1999, p. 111), pois parte do pressuposto de que
esse sistema não está apto a garantir direitos, uma vez que atua simbolicamente, criando a sensação apenas
ilusória de segurança jurídica.
É neste sentido que a criminologia afirma que o Direito reproduz desigualdade como mecanismo de
reprodução da realidade social, e o pior, legitimando as relações de produção a partir de um consenso seja
ele real ou artificial. Ou seja, a reprodução social da imagem de vítima em busca do apoio penal, por meio
do enrijecimento normativo em nada contribui para um projeto de emancipação da mulher. Tal incoerência
entre o poder que se busca para as mulheres e o reforço a sua imagem de sujeito vitimado também evidencia,
de certo modo, o “engano” que envolve o substrato dessas legislações, o qual é tão caracterizador do direito
penal simbólico (RORIZ, 2009, p. 48).
Nesse contexto, assevera Vera Andrade:
A pretensão de que a pena possa cumprir uma função instrumental de efe-
tivo controle (e redução) da criminalidade e de defesa social na qual se ba-
seiam as teorias da pena deve, através de pesquisas empíricas nas quais a
reincidência é uma constante, considerar-se como promessas falsificadas ou,
na melhor das hipóteses, não verificadas nem verificáveis empiricamente.
Em geral, está demonstrado, nesse sentido, que a intervenção penal estigma-
201
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
tizante (como a prisão) ao invés de reduzir a criminalidade ressocializando
o condenado, produz efeitos contrários a uma tal ressocialização, isto é, a
consolidação de verdadeiras carreiras criminosas (ANDRADE, 1999, p. 291).
As estratégias de empoderamento, via enrijecimento penal até as suas últimas consequências, defen-
didas pelos movimentos feministas supostamente retribuiriam o mal ao homem e evitaria a violência domés-
tica contra a mulher. No entanto, esses resultados não são alcançados na realidade brasileira.
Na pesquisa de campo (técnica da documentação direta), pretendeu-se conhecer o andamentodes-
fecho de 30 processos criminais sentenciados no ano de 2014 na I Vara de Violência Doméstica e Familiar
do Recife, número este que representa a metade de todas as sentenças do referido ano. A pesquisa empírica
possuiu um caráter quantitativo, pois foi traçado um quadro com o número de penas privativas de liberdade
e respectivo regime, referente aos processos crimes das mulheres vítimas da violência doméstica que procu-
ram o auxílio estatal, no ano de 2014.
Dos 30 processos-crimes analisados, em apenas 2 foi aplicado o regime fechado de cumprimento de
pena privativa de liberdade e, em apenas 1 processo aplicou-se o regime semi-aberto. Nos demais casos, foi
aplicado o regime aberto, em virtude das penas privativas de liberdade determinadas ao caso concreto.
A amplíssima aplicação do regime aberto aos casos de violência doméstica justifica-se em virtude das
penas mais brandas aplicadas aos crimes de lesão corporal leve, ameaça e crimes contra a honra, mais co-
muns no âmbito em estudo.
Importante, através destes dados, reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como
um problema social, que vai além do Direito Penal. Por isso a importância da discussão dos objetivos decla-
rados e não declarados da Lei Maria da Penha, a fim de que haja o rompimento com o paradigma penalista
tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal.
A abordagem utilizada na análise dos dados da presente pesquisa reflete o discurso da criminologia
crítica, o qual atribui o fracasso histórico do sistema penal aos objetivos ideológicos (funções aparentes) e
identifica nos objetivos reais (funções ocultas) o êxito histórico do sistema punitivo, como aparelho de garan-
tia e de reprodução do poder social (SANTOS, 2008, p. 88).
Em seguida, a pesquisa voltou-se para a análise do número de prisões preventivas nos 30 proces-
sos-crimes sentenciados no ano de 2014 na I Vara de Violência Doméstica e Familiar. Apesar de o discurso
declarado ou o conteúdo programático do direito processual brasileiro erigir a presunção de inocência a prin-
cípio fundamental, com assento na Constituição Federal e, portanto, como regra que impede o tratamento
de culpado àqueles que não tenham sido condenados pela prática de um crime, mais de 50% (cinquenta
por cento), dentre todos os processos analisados, experimentaram prisão preventiva, número que chama a
atenção de criminólogos, mas também de pesquisadores de diversas outras áreas, bem como de uma parce-
la da sociedade civil, para a opção feita pelo sistema de justiça criminal de privação da liberdade anterior à
condenação.
Esse número causou estranhesa, senão, um verdadeiro contrasenso em relação á programação nor-
mativa da legislação do país. Prender é, sem dúvidas, penar, causar dor e mortificação. Ocorre, portanto,
antes da condenação, o fenômeno do encarceramento em massa que destrói vidas e famílias.
Existe uma contradição estrutural ou eficácia invertida do sistema penal entre aquilo que a legislação
declara e aquilo que efetivamente se cumpre.
Neste sentido, a seletividade policial realizada, como demonstram os estudos da criminologia crítica
sobre os extratos mais débeis e precários da sociedade, é chancelada pela seletividade judicial, que contribui
decisivamente para que o sistema penal realize suas reais funções de neutralização e disciplina das classes
sociais inferiores.
CONCLUSÃO
202
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Por tudo, conclui-se que o direito penal teoriza funções declaradas – combater a violência e estabe-
lecer a paz social – e realiza outras funções não declaradas, mas, na verdade, a qual perpetua aquela, o que
Vera Andrade denomina de eficácia invertida, pois a eficácia das funções não declaradas sobrepõe-se à das
declaradas (ANDRADE, 2003, p. 74).
O manejo do sistema punitivo para assegurar a emancipação feminina é ferramenta ineficaz no âm-
bito das políticas, uma vez que esse reproduz o sistema social no qual está inserido - em sendo a sociedade
culturalmente patriarcalista, naturalmente o sistema o será.
Esses dispositivos recrudescedores trazidos pela Lei Maria da Penha não causaram mudanças na re-
alidade da violência ora tratada, apenas instituíram uma percepção social limitada e limitadora do problema,
forjando uma falsa imagem de que as mulheres, agora, estão protegidas.
Enfim, o sistema penal é só mais umas das instâncias do controle social, inclusive sobre as mulheres,
resproduzindo desigualdades, razão pela qual esse sistema não pode favorecer qualquer processo de eman-
cipação.
O processo de empoderamento que as mulheres têm buscado construir nas últimas décadas e a asso-
ciação à figura da vítima, de sujeito passivo, em nada contribui, antes ratificam a imagem da mulher como ser
frágil, carente de proteção especial, reproduzindo, assim o papel social que lhe foi historicamente determi-
nado, esclarecendo a real fundamentação da política criminal de combate a violência contra a mulher. Nesse
contexto, é urgente que se ampliem as discussões a respeito das melhores formas de resolução dos conflitos
domésticos para além do sistema penal. Importante, assim, que sejam discutidos e apresentados meios al-
ternativos para a solução de conflitos, principalmente através transferência da responsabilidade para outros
ramos do Direito, como também pela utilização de medidas psicoterapêuticas, conciliadoras e pedagógicas,
rompendo assim com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade
com rigor penal.
A partir dos dados, constatou-se a contradição ou disfunção entre o discurso legal declarado e o mun-
do dos fatos, no que respeita ao encarceramento de pessoas que não foram ainda julgadas e, estão, portanto,
presas “preventivamente”.
Segundo Zaffaroni (2011, p. 67), esta região do globo optou pelo exercício do poder punitivo por meio
de medidas de constrição antecipadas, ou seja, com a determinação de prisão antes do julgamento definitivo
e prolação de sentença.
Observa-se na realidade da violência doméstica a necessidade, por parte do poder punitivo, mesmo
que antecipada, da imposição de sofrimento irreparável e de consequências irreparáveis. Grande contradição
do sistema de justiça criminal, tendo em vista que a prisão não é aplicada ao final do processo (amplíssima
aplicação do regime aberto). Todo encarceramento tem, ontologicamente, natureza punitiva, importando
(em todos os casos) em um tratamento como culpado, contribuindo para o controle social e construção es-
tigmatizante e seletiva da criminalidade.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O DIREITO PENAL SIMBÓLICO:
DA PROMESSA DE PROTEÇÃO À EFICÁCIA INVERTIDA – UM OLHAR SOBRE A PROTEÇÃO À VÍTIMA
ÉRICA BABINI LAPA DO AMARAL MACHADO
Doutora em Direito pela UFPE. Mestre em Direito Penal pela UFPE. Professora de Direito
Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco –UNICAP - Pesquisadora
do Grupo de Pesquisa Asa Branca de Criminologia
ANDRIELLY S. GUTIERRES SILVA
Graduanda em Direito na Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Bolsista do
Programa de Iniciação Científica – PIBIC/UNICAP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Asa
Branca de Criminologia
WILLAMS FRANÇA SILVA
Graduando em Direito na Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Bolsista do
Programa de Iniciação Científica – PIBIC/UNICAP. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Asa
Branca de Criminologia
SUMÁRIO: Introdução; 1. Do liberalismo radical ao intervencionismo excessivo: a relação proble-
mática entre Estado de Polícia e o Estado de Direito; 2. Política Criminal e o Estado Democrático
de Direito; 3. Uma política criminal dirigida à proteção da vítima; 4. A necessidade de uma política
criminal racional e os efeitos do realismo de esquerda; Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO
O poder punitivo, caracterizado pelo confisco do conflito pelo Estado, foi e é exercido de acordo com
certas decisões arbitrárias do poder (estado de polícia) ou disposições legais igualitárias (Estado de Direito).
Essa divisão, de simples fim pedagógico, não pode ser entendida como características ou temporalidades
separadas ou puras, já que o Estado de Direito sempre encerra em seu interior um Estado de Polícia, gestando
um jogo de forças relacional-dialético: o primeiro aspira conter o exercício real do poder punitivo; o segundo
pretende ampliá-lo (ZAFFARONI, 2007).
O substrato temporal – político, social e cultural – é fundamental para a compreensão da relação
incessante entre o Estado de Direito e o Estado de Polícia e assinala o modelamento maleável deste, na
medida em que pode acomodar e apropriar, ideologicamente, discursos, no seio do estado penal mínimo,
tornando-os, paradoxalmente, úteis à expansão punitiva. Importante observar como a ampliação do discurso
de combate à violência mostra-se aqui em sua tessitura mais sutil: pode, disfarçadamente, sugerir um suposto
empoderamento de certos grupos ou seguimentos sociais considerados frágeis.
Na estreiteza desse arcabouço, esse trabalho discute como o conceito de vulnerabilidade da vítima é
redimensionado e posto à serviço do Estado Penal máximo, especialmente na lógica política de movimentos
sociais, o que se denominou de esquerda punitiva (KARAM, 2001).
206
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O objetivo é identificar as reformas penais que perpassam pela questão da criminalização de mino-
rias – justificada a partir da vítima – desde o Código Penal de 1940 até agosto de 2014, de modo a aferir suas
tendências político-criminais.
Para tanto, utilizou-se do banco de dados produzido pela pesquisa “Descarcerização e Sistema Penal:
a construção de políticas públicas de racionalização do poder punitivo”, vinculada ao CNJ Acadêmico e
coordenada pelo Grupo de Pesquisa de Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal
(GPESC/PUC/RS) em parceria com o Grupo Candango de Criminologia (UnB) e o Núcleo de Estudos e
Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança (UFPE). O banco de dados contém
todas as reformas penais aprovadas no Brasil entre 1940 e 2010 (totalizando 320 legislações), bem como as
justificativas dos projetos de leis que as originaram.
Ora, as problemáticas trabalhadas a partir da análise supracitada não podem caminhar sem a com-
preensão das dificuldades que circundam e subscrevem a Política Criminal. Levando-se em consideração a
sua importância no corpo das ciências criminais, a falta de definição clara do seu campo de conhecimento e,
consequentemente, o modo como ela “serve” às gamas variadas de concepções e interesses, impõe-se como
obrigação necessária lançar um olhar questionador e crítico sobre sua natureza e função (FREITAS, 2008).
Ultimamente, a doutrina nacional faz alusões recorrentes à Política Criminal sem, no entanto, haver
um consenso mínimo entre os doutrinadores do que realmente seja ela, exigência básica para a postulação
de um estatuto teórico. Assim, no lugar da rigidez científica, há a preponderância de uma Política Criminal
marcadamente empirista e entregue à baila do jogo de forças político-ideológicas de cada época. A Política
Criminal, carente de um arcabouço teórico, encontra-se imersa na dimensão propriamente prática.
Essa completa indefinição e incerteza que circunda a Política Criminal tem sido um instrumento útil
à maximização do Estado de Polícia em detrimento do Estado de Direito, galgado, entre outras coisas, no uso
(ideológico) da vulnerabilidade da vítima. A pergunta é se o Congresso Nacional, orientado por uma Política
Criminal sem qualquer delineamento, não tem se apropriado de discursos tradicionalmente identificados
como de esquerda para expandir o controle penal sob o pressuposto ideológico de proteção às vítimas consi-
deradas vulneráveis, seja por condições biológicas, sociais ou históricas.
1. DO LIBERALISMO RADICAL AO INTERVENCIONISMO EXCESSIVO: A RELAÇÃO PROBLEMÁTICA
ENTRE ESTADO DE POLÍCIA E O ESTADO DE DIREITO.
Apontando a necessidade da exigência de uma política criminal, necessário se faz retomar a discussão
sobre a relação incessante entre Estado de Polícia e Estado de Direito, ressaltando o percurso histórico, ainda
que brevemente, para viabilizar a compreensão do acentuado intervencionismo penal na atualidade.
Ora, é impossível compreender satisfatoriamente o direito concebendo-o como simples fenômeno
desapegado do contexto histórico no qual foi produzido e ao qual é útil (MIAILLE, 1978). O direito desempenha
funções concretas de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira. É
imperioso lançar um cuidadoso olhar sobre a conjuntura histórica que condiciona e é condicionada pelo
modelamento do aparelho punitivo estatal dentro das relações interativas – conflitivas ou não – de cada
momento.
Nesses termos, é importante perceber que em cada modelo de conjuntura sócio-política subjaz con-
struções ideológicas sustentadoras e fins a serem operacionalizados. O Estado politicamente absoluto, por
exemplo, ensejou um sistema de punição que funcionou como instrumento de manutenção da ordem so-
cial e defesa do príncipe ancorado por discursos que exigia “a transmissão total do poder dos indivíduos ao
soberano” (HOBBES, 2006). As práticas punitivas concretizaram-se com completa arbitrariedade, o que
corroborou para a difusão de um clima de incerteza, insegurança e injustificado terror.
O iluminismo – século XVIII – agrupou alguns pensadores em torno de ideias fundamentadas na li-
berdade e dignidade da pessoa humana e na separação necessária entre o público e o privado, reduzindo ao
máximo a intervenção do Estado na vida de cada indivíduo. Aqui, a crítica viabilizada pelas percepções liberais
207
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
de Montesquieu, Rousseau e Locke, dentre outros, abalou definitivamente as estruturas do Absolutismo: na
perspectiva econômica, o liberalismo buscou a defesa da propriedade privada dos meios de produção e a
economia de mercado, baseada na livre iniciativa e competição; no aspecto político, o liberalismo se baseou
nas teorias contratualistas para assentar as formas de legitimação do poder como expressão do consentimento
dos cidadãos; do lado ético, o liberalismo pregou a garantia dos direitos individuais, tais como liberdade de
pensamento e expressão, o que supõe um estado de direito em que seja evitado o arbítrio, as prisões sem
culpa provada, a tortura e as penas cruéis (ARANHA, 2009).
Com a base da Ilustração surge um Estado cuja atuação está circunscrita pelo campo da necessidade.
O poder estatal, de forma geral, e mais ainda em sua vertente punitiva, só pode atuar quando as circunstân-
cias concretas exigirem tal intervenção e quando os direitos individuais não forem ameaçados de violação por
tal intromissão. Nasce daí o que se costuma conceituar por Estado de Direito, isto é, um Estado cujo poder
está limitado formal e substancialmente pelos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos (FERRAJOLI,
2002).
Mas o liberalismo não concretizou todas as suas promessas de valorização do ser humano e liberdade
do indivíduo. Nos grandes centros da Europa, apesar da difusão das ideias democráticas, permaneceram sem
solução questões econômicas que afligiam a crescente massa de operários: pobreza, jornada de trabalho de
quatorze a dezesseis horas, mão-de-obra mal paga de mulheres e crianças.
As gravíssimas crises econômicas no inicio do século XX apontaram para a necessidade urgente de
uma reviravolta no plano político, econômico e social. O “Estado Mínimo” não contou com a ajuda milagro-
sa da “mão invisível”: a perspectiva formal, e porque não dizer, ideológica de liberdade, não logrou êxito
no campo das relações concretas da maioria dos indivíduos. As contradições aprofundaram-se ainda mais
com o aumento da concentração de renda, o aprofundamento da pobreza e da violência urbana, além da
precarização do trabalho.
Em razão disso, o Estado Liberal de Direito se transmuta, a partir da primeira metade do século pas-
sado, em Estado Social-Democrático de Direito ou, simplesmente, Estado Social de Direito. Este toma como
ponto de partida os valores e princípios políticos liberais, visando ampliá-los e afirmando a necessidade de
maior intervenção do Estado no sentido de assegurar proteção e igualdade social aos indivíduos, mas sem o
sacrifício de seus direitos civis. O Estado Intervencionista duramente criticado pelos filósofos liberais revivi-
fica-se, não mais para conservar a ordem político-social, mas para proteger a grande massa de vulneráveis.
O Estado agora, sob essa nova roupagem, é convidado a interferir ativamente no plano social realizan-
do prestações positivas. Ou seja, a sociedade exige a participação estatal efetiva por considerá-la fundamental
para a promoção e garantia dos direitos individuais (legado liberal), bem como para a proteção e fortaleci-
mento dos grupos hipossuficientes (perspectiva social). Assim, o Estado se expandiu demarcando presença
nos mais diversos campos considerados fundamentais ao bem estar e à dignidade da pessoa humana. O
combate à pobreza e à miséria, a criação de postos de trabalhos, a garantia de moradias, a limpeza urbana,
os serviços públicos de saúde, educação e segurança – em tudo isso a incumbência majoritária recai sobre o
Estado que deve fazê-los sem ofender a liberdades individuais.
O desafio de harmonizar tais perspectivas apresenta-se problemática diante de um Estado que, em
nome da segurança e da paz social, tornou-se um ente, em certo sentido, onipresente. Em nome da garantia
das liberdades individuais de certos grupos considerados mais vulneráveis, e legitimados pelos mais diversos
seguimentos sociais, o poder estatal protege para envolver, promove para expandir-se. Espraia-se num cont-
ínuo até a realização de sua onipresença. Afirma-se.
Maximiza-se não só o Estado garantidor e protetor: o discurso de combate à criminalidade se robus-
tece ao usar como âncora, entre outras coisas, o conceito de vulnerabilidade (GARLAND, 2008).
Se os valores que fundamentam e perpassam o Estado Social Democrático de Direito dirigem-se à con-
templação, promoção e proteção das minorias profundamente desapoderadas, o discurso estatal assistencial
de defesa (principalmente penal) dessas minorias, apodera-se. Se ao Estado cabe intervir em favor dos
208
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
grupos historicamente fragilizados, caber-lhe-á ainda mais reprimir qualquer tipo de violência ou ameaça de
violência intentada contra tais grupos.
Esta nova perspectiva torna-se extremamente problemática diante da seguinte proposição: o modelo
de punição hodierno carece de justificação. Os coletivos, os movimentos sociais e as instituições de direitos
humanos conhecem e denunciam isso.
É inquestionável a verdade de que o sistema punitivo necessita da mais elementar legitimação
constitucional para continuar existindo num Estado Democrátivco de Direito. É sabido que o Sistema de
Justiça Criminal é, estruturalmente, racista, sexista e classista e que é com base nessa estrutura que ele
seleciona sua “clientela” (BARATTA, 2002). É indiscutível que as prisões são depósitos de almas e corpos
“indesejados” e condenados ao etiquetamento atroz, mortífero e desumano. É notório que o Direito Penal
não evita e, em geral, não diminui, nem põe termo à violência. É verificável que os instrumentos processuais
de punição trazem, por baixo do seu figurino, mecanismos de nova vitimização da vítima, ao silenciá-la
completamente (ANDRADE, 2005).
Mesmo assim, nos últimos anos, tem-se demandado, em montantes assustadores, a intervenção desse
mesmo sistema de violência estatal para proteger grupos historicamente vulneráveis, através da aniquilação
da violência e punição dos agressores. O que assusta é que grande parte desses demandantes é oriunda de
movimentos sociais que esboçam uma visão desconstrutivista das prisões (KARAM, 2001).
A lógica operante é a seguinte: o Sistema de Justiça Criminal é ineficaz, duplicador da violência,
desumano e, num Estado Democrático de Direito, essencialmente ilegítimo. Porém, goza, mesmo manten-
do todas essas características, de uma legitimidade exógena: a condição de vulnerabilidade da vítima. Se o
cárcere, por um lado, não é o lugar de seres humanos, ainda que rotulado de criminosos, poderá ser – e de-
verá ser – o lugar de certos seres humanos agressores de determinados grupos vulneráveis. A favor desses, a
proteção, ainda que inócua; contra aqueles, a punição, ainda que mortificadora.
O problema do intervencionismo penal agrava-se ainda mais pelo fato de não haver, como foi sinaliza-
do acima, um arcabouço epistemológico que defina e circunscreva os limites e as condições de possibilidade
de uma Política Criminal. Vale ressaltar que a política criminal está umbilicalmente ligada à configuração da
política em geral (BARATTA, 2002) e, na inexistência de um conteúdo bem definido, colonizada por esta.
Entregue aos devaneios doutrinários, ao oportuno populismo legislativo e ao fortíssimo apelo midiático, a
Política Criminal se apresenta como instrumento por meio do qual se espraia o Estado Penal Máximo.
2. POLÍTICA CRIMINAL E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.
Não é possível oferecer uma definição única à Política Criminal. O esforço por conceituá-la exige,
necessariamente, estabelecer as características mais gerais e essenciais extraídas do universo das diversas
contribuições doutrinárias nesse sentido (FREITAS, 2008). Aqui basta fazer referências a duas classificações:
Política Criminal em sentido amplo e estrito e Política Criminal em sentido teórico e prático.
A primeira classificação denota a abrangência e amplitude da atuação da Política Criminal. Assim,
no sentido estrito ou rigoroso do termo, ela é o conjunto de “princípios ou recomendações para a reforma ou
transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação, compreendendo a política
de segurança pública, a política judiciária e a política penitenciária” (BATISTA, 2007).
No seu aspecto amplo, a Política Criminal não se limita aos problemas propriamente penais de contro-
le do desvio (direito penal, direito processual penal, direito penitenciário), mas alcança reflexões, elaborações
e execuções de políticas mais extensas de intervenção social (FREITAS, 2008). Fala-se aqui, portanto, em
políticas sociais gerais de enfretamento às causas do fenômeno criminal, sendo a intervenção essencialmente
penal (política criminal em sentido estrito) seu elemento último e mais gravoso.
Nota-se, pois, que há uma relação do tipo gênero-espécie entre a política criminal em sentido amplo
e política criminal em sentido estrito, conforme verificamos na lúcida explicação de Ricardo de Brito (2009):
209
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Ao englobar o conjunto das políticas sociais e econômicas de controle social, a
política criminal em sentido amplo mantém com a política penal uma relação
do tipo gênero/espécie, sendo que esta última se ocupa apenas dos meios
penais de contenção da criminalidade. Enquanto a política penal consiste
numa resposta à questão criminal circunscrita no âmbito do exercício da
função punitiva do Estado, a política criminal em sentido amplo é uma
política de transformação social.
A segunda classificação coloca no centro da discussão a existência ou não de um estatuto teóri-
co, e, portanto, científico, da Política Criminal. No sentido prático, a política criminal se configura como o
universo de atividades dirigidas ao enfretamento racional à criminalidade. O sentido teórico denota o estudo
e a elaboração de princípios teóricos que se destinariam a nortear e racionalizar as atividades práticas de
combate à criminalidade. No primeiro caso, a política criminal é considerada eminentemente prática e, as-
sim, destituída de caráter científico. No segundo sentido, a política criminal é definida como atividade teórica
destinada a fins práticos e por isso passível de ser considerada uma ciência criminal (FREITAS, 2008).
Note-se que há um entrecruzamento entre ambas as classificações: a política criminal como saber
teórico tem como objeto, tanto a política criminal sentido amplo, como a política criminal em sentido estrito.
A partir dessa sistemática se compreende o contexto atual marcado pela inflação legislativa no campo
penal: o Congresso Nacional, ante uma política criminal sem diretrizes, regra geral, despreza as contribuições
de pesquisas e estudos científicos, rendendo-se ao “populismo penal” midiático e invocando práticas demagó-
gicas que se amparam no sentimento de vingança e exploração do medo da população. Os momentos de
instabilidade são mais notáveis nesse sentido, vez que neles, invariavelmente, aparecem respostas milagrosas,
rápidas e viáveis administrativamente, mesmo que ineficazes do ponto de vista da redução da criminalidade
ou de resolução dos conflitos sociais.
Essas medidas legislativas que nascem sem qualquer discussão que tenha o mínimo de rigor teóri-
co e científico, recrudescem ainda mais a política criminal nacional quando se abastece da condição de
vulnerabilidade da vítima. Se a política criminal prática é vazia de conteúdo e, por isso, incapaz de limitar o
exercício do poder punitivo estatal, o discurso assentado sobre a condição desfavorável da vítima aguça ainda
mais o “populismo legislativo” e possibilita a composição de uma “legislação penal do terror” e, como tal,
mitigadora dos direitos e garantias fundamentais (CARVALHO, 2010).
A análise às legislações aqui apresentadas, portanto, aponta para um Congresso Nacional que trabalha
incansavelmente e com total discricionariedade no campo da repressão penal – sobretudo em razão da falta
de uma teoria própria à política criminal que circunscreva limites à atuação estatal nesse campo – e cujo
efeito inevitável é a superposição do Estado de Polícia ao Estado de Direito. O resultado é, como se pode ver
no gráfico abaixo, uma elevação exponencial das legislações penais – 320 leis no período de 1940 a 2010:
210
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
3. UMA POLÍTICA CRIMINAL DIRIGIDA À PROTEÇÃO DA VÍTIMA.
O banco de dados formulado pela pesquisa que ora se apresenta mostra uma inflação legislativa ocor-
rida ao longo dos anos. O recorte temático da proteção à vítima, perpassado pela justificação de situação de
vulnerabilidade desta, pode ser observado no universo de 44 leis, distribuídas, em termos de ano, da seguinte
maneira:
Todas essas legislações têm iniciativa no Congresso Nacional e perpassam diversas matérias, desde
tipos penais que visam proteger a vida, a honra e a dignidade da pessoa humana, a tipos penais que propõem
a proteção `a mulher, a igualdade racial...
São todas legislações punitivas, porque prevêm em seu bojo ou a criação de um tipo penal ou a ma-
joração de pena. O fato é que os argumentos que justificam a lei trazem sempre uma suposta intenção de
defesa efetiva do bem jurídico tutelado, especialmente para as pessoas que apresentam algum tipo de hipos-
suficiência.
A título de exemplo, a justificativa da Lei n.º 10.886 de 2003, que trata da violência doméstica, cami-
nha no sentido de sustentar que “não se deve tratar da mesma maneira um delito praticado por um estranho
e o mesmo delito praticado por alguém de estreita convivência”, e prossegue aprofundando os apelos com fins
explícitos de materializar o agravamento penal quando diz:
O delito praticado por extranhos em poucos casos voltará a acontecer, muitas
vezes agressor e vítima se quer voltam a se encontrar, já o delito praticado
por pessoa da convivência tende a acontecer novamente, bem como, pode
acabar em delitos de maior gravidade, como é o caso de homicídio de mu-
lheres inúmeras vezes espancadas anteriormente – esta especificidade da
violência doméstica exclui os delitos decorrentes dessa forma de violência da
classificação “menor potencial ofensivo”. Embora tecnicamente levando-se
em consideração a pena – no caso de lesões corporais leves e da ameaça – a
classificação seja menor potencial ofensivo, as circunstâncias que cercam o
delito majoram esse potencial.
Vê-se aqui, portanto, construções jurídico-penais aparentemente bem intencionadas e sofisticadas,
com argumentos que favorecem o agravamento penal em razão da proteção de vítimas que, por sua condição
de convivência com o agressor, apresentam certa vulnerabilidade. Em nenhum momento, porém, a justifica-
tiva problematiza acerca das consequências reais da intromissão do Estado penal nas relações intersubjetivas
e privadas, tampouco indaga se a lei tem o potencial necessário à resolução concreta do conflito real. A jus-
tificativa da Lei n.º 11. 340 de 2006, intitulada simbolicamente de “Lei Maria da Penha” segue esse mesmo
caminho argumentativo, quando propõe que,
É contra as relações desiguais que se impõem os direitos humanos das mu-
lheres. O respeito à igualdade está a exigir, portanto, uma lei específica que
dê proteção e dignidade às mulheres vítimas de violência doméstica. Não
haverá democracia efetiva e igualdade real enquanto o problema da violência
doméstica não for devidamente considerado. Os direitos à vida, à saúde e à
integridade física das mulheres são violados quando um membro da família
tira vantagem de sua força física ou posição de autoridade para infligir maus
tratos físicos, sexuais, morais e psicológicos.
Não há ao longo da argumentação justificadora da criação da supracitada lei nenhum fundamento
minimamente crítico e comprometido com a extensão da probabilidade de realização fática da afirmação de
que uma mera lei pode garantir dignidade e proteção às mulheres vítimas de violência doméstica.
211
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O que se percebe, na verdade, são construções argumentativas com signos linguísticos em certo
sentido até coerentes, mas sobrecarregados de elementos simbólicos, e por isso ideológicos, sem qualquer
compromisso com a realidade interativa e conflitiva da dinâmica social.
O que importa, para além de qualquer função declarada da lei, é a perpetuação e a expansão do
Direito Penal como fórmula tradicional de controle social. E aqui o direito penal expancionista mostra sua
feição mais perversa: apropria-se de conceitos, causas, lutas e pautas sociais, historicamente ligadas aos mo-
vimentos políticos, ideologicamente de esquerda, e sob o pressuposto de defesa de indivíduos desapoderados,
realiza o efeito reverso: maximiza o Estado policialesco.
Ora, a sociedade contemporânea é transpassada por uma infinitude de questões caracterizadoras do
que se passou a denominar “a sociedade do risco” (BECK, 2009). O medo distribuído indiscriminadamente,
sobretudo pela mídia, gesta no imaginário geral, a impressão de que ser vítima de violência é uma possibili-
dade mais que real, algo iminente. Resultado disso é uma sociedade marcada pela incerteza, cujos membros,
pelo menos potencialmente, se veem identificados com qualquer pessoa que esteja em situação vitimatória.
Nesse contexto, e em nome da proteção, sobretudo, dos hipossuficientes, o rigor do direito penal não
vê limites: se os riscos (virtuais ou não) no convívio social são incalculáveis e múltiplos, a multiplicação de
leis penais rigorosas está legitimada.
4. A NECESSIDADE DE UMA POLÍTICA CRIMINAL RACIONAL E OS EFEITOS DO REALISMO DE
ESQUERDA .
Ocorre que essas leis têm razoável conotação simbólica, uma vez que o impacto carcerário que pro-
vocam não é significativo, pois, como é claramente divulgado, os principais tipos penais que têm levado ao
hiperencarceramento é tráfico de entorpecentes e crimes contra o patrimônio.
Importante pontuar que o simbolismo não é uma qualidade exclusiva do Direito Penal. Mesmo assim,
chama a atenção a grande produção legislativa com forte caráter simbólico. O direito penal simbólico denota
uma disparidade entre a realidade e a aparência, o implícito e o explícito, entre o que é querido e o que de
outra forma é aplicado. É possível dizer que o simbolismo penal visa satisfazer a pressão social e produzir
confiança na capacidade de atuação do Estado, por meio da distribuição (desigual) da punição, sem atentar,
necessariamente, para a resolução dos problemas.
As normas penais, nesse sentido, tendem a produzir um engano, vez que não são criadas para serem
aplicadas com toda efetividade, nem muito menos para por fim aos conflitos concretos, mas para gerar resul-
tados e alcançar fins não declarados.
Não se trata aqui do simbolismo (denominado positivo) manejado pelo Direito Penal para reforçar
a função instrumental de controle de condutas desviadas, protegendo valores selecionados como os mais
importantes pela coletividade, tal como “O Direito Penal ganha legitimidade quando se reveste da função de
proteger bens jurídicos, por isso é uníssono na doutrina afirmar-se que tutelar os bens jurídicos é a missão do
Direito Penal” (BRANDÃO, 2007, p. 7).
Como se vê, sendo a função instrumental voltada aos fins do Direito Penal, no caso, a proteção de
bens jurídicos, a função simbólica (positiva) volta-se à função de transmitir à sociedade certas mensagens
ou conteúdos valorativos com poder de influenciar as consciências com representações mentais para a
conformidade com a norma e que o faz através da criminalização. Todavia, quando se constata que não é
capaz de operacionalizar, sua capacidade legislativa perderá toda a credibilidade, de modo que a aparência
não poderá sustentar a função declarada do sistema de proteger bens jurídicos.
Trata-se, desse modo do uso do Direito Penal em desacordo com o próprio discurso legitimador do
jus puniendi estatal, sendo a adjetivação “simbólico” sinalizadora de um direito penal cuja função de pro-
teger bens jurídicos é corrompida, levando ao descrédito da justiça estatal. Logo, sob esse viés, é Direito
Penal simbólico aquele no qual a função de prevenção geral positiva, ou seja, a função de formação de con-
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
vicções jurídicas é exacerbada, visando à imposição de valores morais através do progressivo agravamento da
ameaça penal, configurando-se numa apelação na qual a função estabilizadora dos conflitos sociais é apenas
aparente. A caracterização de um direito penal simbólico é, pois, decorrente da predominância, ou mesmo,
da exclusividade dessas pretensões ideológicas.
A estratégia de aparente eficácia não é à toa, é destinada a acalmar a demanda social, alarmada, e
exonerar o Estado de ampliar e realizar políticas sociais. Isto é, as políticas punitivas têm o traço comum
de serem alarmistas e causar uma ansiedade difusa, de modo que ao canalizá-la à figura do delinquente de
rua, a severidade penal que passa a ser uma necessidade vital, desvia a atenção daquilo que não consegue
realizar: uma política social eficaz.
No Brasil, tais problemáticas ganham dimensões ainda maiores, dada a fragilidade da política crimi-
nal eminentimente prática, cujo conteúdo e alcance são determinados, com certa prepoderância, pela supe-
resposição midiática com respaldo no forjado consenso popular sedento por segurança pública e punição. Por
outro lado, parcela da “esquerda” nacional não se dá conta dos efeitos reversos maléficos que, inevitavelmen-
te, resulta da opção pelo Direito Penal como fórmula e remédio para resolução os conflitos sociais.
Por tudo já dito, percebe-se a urgente necessidade de se pensar em uma política criminal fundamen-
tada em saberes teóricos roubustos e racionais, de modo a evitar a expansão desregrada do Estado penal com
a consequente mitigação das liberdades individuais e a flexibilização dos direitos fundamentais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer do século XX nasce uma outra modalidade de Estado chamado Estado Social de Direito,
que teria o propósito de agir como motor ativo na vida da sociedade, modificando efetivamente as relações
sociais, sem, contudo, abandonar as conquistas do Liberalismo. Do Estado Liberal dito “imparcial” se passa
a um Estado Social “intervencionista”. No que diz respeito aos seus caracteres básicos, o Estado Social De-
mocrático de Direito defende, ao menos em tese, a observância do princípio da legalidade, da igualdade e a
supremacia da lei, como garantia máxima de segurança jurídica para todos os cidadãos.
Como já fora discutido mais acima, a relação entre Estado de Direito e Estado Social Democrático
de Direito é complexa e delicada, de modo a exigir moderação quando da necessidade de reivindicar recuos
ou ações prestacionais positivas desse mesmo Estado. Assim, e com base em todas as reflexões aroladas no
corpo desse trabalho, se faz necessário está completamente em alerda nesse momento em que se demanda
em montantes assustadores a intervenção estatal por meio do Direito Penal.
Põe-nos sob alerta o fato de que ultimamente vem crescendo movimentos reividincatórios por uma
ainda maior intervenção do Direito Penal para efetivar uma transformação social ou para promover a eman-
cipação e proteção dos oprimidos ou vulneráveis. Adimira que tais “solusões” sejam requeridas por setores
políticos de esquerda, aqueles usualmente atentos às desigualdades que definem e caracteriza historicamen-
te o Estado brasileiro.
Esta “esquerda punitiva” (KARAM, 2008), contraditoriamente, contribui no sentido da fragilzação
das bases do próprio Estado de Direito, reivivicando o denebroso Estado de Polícia, ao tentar dar feições
positivas a um instrumento que, pela sua natureza e poder, se contrapõe as liberdades individuas, dentre ou-
tras conquistas históricas. Assim, a título de conclusão, como bem lucidamente conclui Maria Lúcia Karam
(2008),
O rompimento com a excludente e egoística lógica do lucro e do mercado, há
que ser acompanhado do rompimento com qualquer forma de autoritarismo,
para que a bens econômicos socializados corresponda a indispensável garan-
tia da liberdade individual e do direito à diferença, para que a solidariedade
no convívio supere e afaste a crueldade da repressão e do castigo, para que
um exercício democratizado do poder faça do Estado tão somente um instru-
mento assegurador do exercício dos direitos e da dignidade de cada indivíduo.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
ENTRE RETRIBUIÇÃO, NEUTRALIZAÇÃO, SOCIALIZAÇÃO E CONTROLE – A
REPRESENTAÇÃO DOS MAGISTRADOS SOBRE A FINALIDADE DA MEDIDA
SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO EM PERNAMBUCO
Érica Babini L. do Amaral Machado
Doutora pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Professora de Direito Penal e
Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Pesquisadora do Grupo
Asa Branca de Criminologia.
Maurilo Miranda Sobral Neto
Mestrando no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de
Pernambuco - UNICAP, vinculado à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos.
Pesquisador do Grupo Asa Branca de Criminologia.
Vitória Caetano Dreyer Dinu
Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de
Pernambuco - UNICAP, vinculada à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos, com
bolsa da CAPES/PROSUP. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia.
SUMÁRIO: Introdução; 1. A doutrina da proteção integral e seus paradoxos na realidade latino ame-
ricana; 2. Análise dos dados; Considerações finais; Referências.
INTRODUÇÃO
A Doutrina da Proteção Integral marca a transição do paradigma tutelar de menores para o da eman-
cipação de sujeitos de direito, a partir da inserção desses sujeitos nas bases dos Direitos Humanos.
No entanto, a prática dos agentes das instituições formais de controle não corresponde a essa mu-
dança de lentes. Pesquisas recentes apresentam uma dicotomia entre passado e presente. Desde a década de
80, as pesquisas sobre violência, criminalidade, segurança pública e sistema de justiça se tornaram temáticas
institucionalizadas nas contribuições sociológicas (KANT DE LIMA, MISSE, MIRANDA, 2000).
Antes mesmo, na década de 70, com o trabalho pioneiro sobre delinquência juvenil de MISSE (1973),
discutiu-se a forma de responsabilização de adolescentes conduzida pelo Judiciário, que, à época, não cum-
pria os preceitos estabelecidos na legislação menorista. Atualizando a problemática, com estudo em sede de
recursos, pesquisa encomendada pelo Ministério da Justiça, na Série Pensando O Direito, em 2010, também
aponta sérias críticas aos fundamentos das medidas socioeducativas de internação dados pelo Poder Judici-
ário.
A execução das medidas socioeducativas de internação, na prática, reproduz as problemáticas do sis-
tema prisional (seletividade e estigmatização), e é possível comprovar tal afirmativa em trabalhos específicos
de dissertações e teses, como a de MELLO (2004), que constatou, na realidade das unidades de internação
de Pernambuco, que o caráter pedagógico da medida não a torna mais branda que a pena, porque privar a
liberdade de pessoa em desenvolvimento, no auge da conquista do gozo da liberdade, é uma resposta pior
do que a própria pena. FACHINETTO (2008) se debruçou sobre a realidade do sistema socioeducativo de
adolescentes do sexo feminino no Rio Grande do Sul; MALLART (2014), em versão antropológica, retratou a
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
realidade de unidade de internação de adolescentes do sexo masculino em São Paulo, e MACHADO (2014)
se debruçou sobre a realidade da unidade de internação de adolescentes do sexo feminino em Pernambuco,
apontando as mesmas conclusões: a medida socioeducativa de internação, em essência, em nada se diferen-
cia da pena privativa de liberdade.
Institucionalmente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2015), com o objetivo de atualizar pesqui-
sa de 2012 que já apontava diversas formas de violações de direitos no âmbito da Justiça da Infância e da
Juventude, mapeou a realidade das instituições de internação para adolescentes do sexo feminino em PE,
PA, SP, DF e RS, apontando que
O Estado, no exercício da proteção e diretos, falha na consagração dos direi-
tos mínimos à cidadania e na execução das medidas socioeducativas, faz das
unidades de internação depósitos de contenção de adolescentes demoniza-
das em suas trajetórias, rotuladas como incapazes de viver socialmente. Sob
esse prisma, a medida socioeducativa de internação tem o mesmo sentido da
prisão: castigo (CNJ, 2015, p. 212).
Diante de várias pesquisas já realizadas, percebe-se a manutenção da dicotomia entre tutela e eman-
cipação de sujeitos. Nesse sentido, a pesquisa busca identificar o que os magistrados entendem sobre as
finalidades da medida socioeducativa de internação, por meio da análise dos fundamentos de sentenças de
aplicação de medida de internação proferidas no Estado de Pernambuco para adolescentes do sexo feminino.
O corpus da pesquisa é constituído por 28 sentenças de adolescentes internadas no Centro de Aten-
dimento Socioeducativo (CASE) Santa Luzia em abril/20121
, sendo que, dessas, a análise se deteve sobre 9
(32% do total) que utilizaram o argumento da finalidade da medida, dentre outros, para justificar a interna-
ção.
Para tanto, utiliza-se a metodologia da Análise de Conteúdo, de forma a possibilitar aos pesquisado-
res encontrar o latente nas sentenças, em um estudo exploratório, descritivo e qualitativo de documentos
(BARDIN, 1977). Daí se inferiu que, quando os magistrados aludem às finalidades da medida, constroem
basicamente dois raciocínios: ou a internação tem por fim a pura retribuição/neutralização – bastando auto-
ria, materialidade, e o ato infracional ser grave –, ou serve à retribuição/socialização – mesmo que não reste
comprovado o cometimento do ato infracional – supostamente, como julga, colmatando lacunas de educação
deixadas pela família e pela comunidade.
Considerando que o objetivo é identificar representações de magistrados sobre a finalidade da medida
socioeducativa de internação, nada melhor do que compreender os discursos que permeiam o texto.
É importante ponderar que representação é “algo que alguém nos conta sobre algum aspecto da vida
social” (BECKER, 2009, p. 18). São informações que orientam as práticas e relações humanas, construídas
através de comunicações sociais e apreendidas socialmente (MOSCOVICI apud ANCHIETA; GALINKIN
2005), além de variar em função dos extratos econômicos e culturais em que se inserem os indivíduos ou
grupos (PORTO, 2006).
As representações sociais funcionam como princípios orientadores e indutores de condutas de indi-
víduos, grupos ou instituições, de modo que, compreender como a magistratura representa a finalidade das
medidas socioeducativas de internação importa desvendar o que se pensa sobre o instituto, captando seus
significados, expondo seus sentidos.
Deste modo, o estudo da representação social da magistratura acerca da finalidade da medida socioe-
ducativa de internação não se dirige ao juiz, mas aos conteúdos que eles simbolizam. O magistrado, ausente
enquanto tal, está presente como expressão de padrões de organização social, de modelo de comportamento
1  Esse número refere-se à quantidade de adolescentes internadas no Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE) Santa
Luzia em abril de 2012, momento no qual a pesquisa etnográfica na unidade, realizada pela primeira autora, no âmbito do dou-
toramento, teve início. Na verdade, existiam 35 adolescentes, porém, 7 delas estavam na modalidade de internação sanção, o que
não compõe o universo da pesquisa.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
interpessoal e de um certo tipo de saber. É certo que o quadro organizacional de que se fala está a associado
a modelos de comportamentos interpessoais que nele se inspiram e se reproduzem. Enfim, a representação
social do magistrado veicula um modelo de homem e de sociedade.
A partir daí, problematizam-se esses argumentos à luz da Criminologia Crítica e das diretrizes da
Sociedade de Controle. Enquanto a primeira demonstra que o Sistema de Justiça Criminal – ou, no caso,
o Sistema de Justiça Juvenil –, embora não declare funções de defesa social, é esse o valor que norteia as
avaliações judiciais2
; o marco da Sociedade de Controle aduz que indivíduos identificados como constantes
agentes de “riscos”, seja por serem inseridos em uma classe economicamente excluída, ou por possuírem um
padrão vida que não interessa aos mecanismos de produção da sociedade, são comumente alvos de interven-
ções das inúmeras instituições de controle do Estado.
Siga-se adiante.
1. A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E SEUS PARADOXOS NA REALIDADE LATINO
AMERICANA.
Com o objetivo de compreender como se desenvolveu o atual paradigma do trato jurídico sobre a
infância e a juventude, não se pode deixar de expor brevíssimo aporte histórico3
. Ao se olhar para o passado,
não se pretende explicar o presente como uma mera e inescapável evolução da humanidade; pelo contrário,
objetiva-se estabelecer diálogos entre as racionalidades de ontem e de hoje.
Nesse sentido, a dicotomia teórica da Doutrina da Proteção Integral com um ranço prático da Doutri-
na da Situação Irregular nos operadores do Direito pode ser explicada na realidade latino-americana.
Primeiramente, é preciso acabar com a ideia de que o “novo” suplanta totalmente o “antigo”. Afinal, a
história vai muito além de simples divisões binárias. Nessa linha, elucidativa a colocação de Patrice Schuch:
[...] ao colocarmos o ECA numa economia geral discursiva que vem configu-
rando o domínio jurídico-estatal da infância e juventude, no Brasil, desde o
início do século XX, poderemos tentar problematizar as rupturas maniqueís-
tas entre o ‘ontem’ e o ‘hoje’, que contribuem para um obscurecimento das
relações de poder vivenciadas no presente (2005, p. 70).
Anteriormente, o controle incidente sobre a juventude era justificado pela Doutrina da Situação Irre-
gular, fundamento do Código de Menores de 1979, que se estruturava em torno da categoria menor. Foi uma
tendência nascida da corrente filosófica do positivismo, segundo a qual a situação de abandono criava uma
necessidade protetiva, ao considerar o menor objeto de compaixão e repressão ao mesmo tempo (TUARDES
DE GONZÁLEZ, 1996).
A teoria considerava que os menores sempre estariam em situação irregular e, por isso, mereceriam
a segregação, sem nenhuma preocupação com o seu desenvolvimento, incapacidades de socialização e po-
tencialidades. Na sua vigência, as garantias individuais eram desprezadas sob o falacioso argumento de que
incidiam apenas no processo de adultos, não tendo razão para sua incidência no campo do Direito do Menor.
Menores eram aqueles supostamente4
abandonados, excluídos, ao passo que os incluídos em famílias
e suas escolas eram crianças e adolescentes, a partir de um processo de construção estigmatizante. Assim, as
2  Até porque, além do sistema penal em sentido estrito, existem outros paralelos, compostos por agências de menor hierarquia,
destinado a operar com punição a menor, razão pela qual goza de maior discricionariedade e arbitrariedade. Porém, tal qual o
punitivo, admite técnicas (ilícitas) subterrâneas normalizadas em termos estatais, dado o fim que promete cumprir (ZAFFARONI,
2003).
3  Nesse ponto, seguindo o alerta de Luciano Oliveira, não se pretende descrever a evolução histórica como um simples ritual e
demonstrar uma visão simplória das mudanças de concepção ao longo do tempo (2015, p. 163).
4  Supostamente porque o estado de abandono era decretado por juízes rotineiramente, apenas fazendo uma relação com a
carência de recursos materiais, independentemente de fatos infratores. Não é por outra razão que os textos clássicos da cultura
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
infrações dos incluídos eram resolvidas no âmbito da esfera privada, mesmo se constituísse um delito, posto
que a amplitude judicial e o poder direcional do juiz resolveriam de forma particular; mas, se fosse um ato
de menores, é porque estes estavam em situação irregular e demandavam a tutela do Estado para serem
corrigidos, educados.
Se encontrados em “situação irregular” – o que era definido, primordialmente, em função da situação
de pobreza (SCHUCH, 2005, p. 59) – poderiam ser levados para internação, de forma indistinta.
O referido processo de internação, no Brasil do início do século XX, chegou inclusive a apresentar
um viés civilizatório, fazendo parte das preocupações de construção da nova República brasileira (SCHUCH,
2005, p. 57). Desta feita, por mais que fossem declarados os objetivos de salvar as crianças, de protegê-las do
perigo moral, havia esse viés de controle e de verdadeira salvaguarda mais eficaz da sociedade (MÉNDEZ,
2004, p. 31).
Diversas foram as críticas a esse modelo, mormente pela primazia da internação, pelo tratamento
indiferenciado de crianças abandonadas e crianças supostamente criminosas, bem como pela imposição de
padrões comportamentais aos “menores” com o propósito de proteger a sociedade de futuros delinquentes
– sendo esta última característica presente até hoje. Sobre a temática, precisas são as palavras de Edson
Passetti:
A integração se dá pelo avesso na ilegalidade; a vida austera mortifica indivi-
dualidades e dispõe os indivíduos enfileirados para ações delinquenciais. E
mesmo com a falência dos internatos, eles se transformaram no estandarte
dos amedrontados que clamam por mais segurança, muitas vezes exigindo
prisões de segurança máxima e até a pena de morte (2010, p. 356).
	 A Doutrina da Situação Irregular passou a ser abalada no contexto pós Segunda Guerra Mun-
dial, com a proclamação de direitos universais, acima de qualquer identidade, bem como com a constatação
de que a atitude paternalista dos Tribunais de Menores vilipendiava esses direitos, desrespeitando a legali-
dade em nome de uma suposta proteção. Assim, as crianças e adolescentes também passaram a ter os seus
direitos fundamentais enumerados. Daí surge a primeira característica do novo paradigma, a Doutrina da
Proteção Integral: as crianças e adolescentes não mais são objetos de compaixão e repressão, mas sim sujei-
tos de direitos. Além disso, outro grande marco do novo paradigma foi o término da confusão na gestão dos
abandonados e dos adolescentes transgressores (BARATTA, 1995, p. 5).
De forma sintética, as grandes características da Doutrina da Proteção Integral – albergadas juridica-
mente pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança, pelas Regras de Beijing, pelas Regras Mínimas
das Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade e pelas Diretrizes de Riad – são as seguintes: as
normas são para o conjunto da categoria infância, e não apenas para aqueles indivíduos em situações difí-
ceis (“menores”); presença obrigatória de advogado e papel de controle do Ministério Público; não é mais a
criança ou o adolescente que se encontra em situação irregular, mas a pessoa ou instituição responsável pela
ação ou omissão; eliminação das internações não vinculadas ao cometimento de ato infracional; crianças
e adolescentes como sujeitos plenos de direitos; incorporação dos princípios constitucionais de segurança
(MÉNDEZ, 2004, p. 13).
No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi o responsável pela introdução da nova
doutrina no ordenamento, dividindo a infância e juventude entre aqueles que estão no exercício da cidada-
nia, as crianças e adolescentes sujeitos a medidas de proteção (abandonados), e os adolescentes sujeitos a
medidas socioeducativas (em virtude do cometimento de atos infracionais). No que tange a este último gru-
po, a ideia da Doutrina da Proteção Integral é a de introduzir uma pedagogia de responsabilidade e a assun-
ção de direitos por parte dos menores, de forma que o adolescente seja um ator social (RODRIGUES, 1999).
menorista referem-se ao juiz como um pai de família que, não podendo forçar o estado em suas políticas públicas, deve institucio-
nalizar a criança para protegê-la.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Todavia, todo o exposto é o que se vislumbra do ponto de vista normativo. A superação da Doutrina
da Situação irregular não é tão clara e simples assim, em virtude da existência de aparatos de poder e con-
trole mesmo que sob a égide da Proteção Integral. Como alertou Patrice Schuch, a troca de paradigma é um
processo complexo, em que estão em jogo vários fatores, dentre eles a permanência e/ou mudança de valores
(2005, p. 81). Daí que se utilizará o marco teórico da Criminologia Crítica, a fim de desvelar o que está por
trás das funções declaradas do novo paradigma – mormente no que tange ao julgamento de adolescentes acu-
sados do cometimento de atos infracionais –, bem como da Teoria da Sociedade do Controle, para entender
o real objetivo da incidência das normas sobre determinados adolescentes, e não outros.
Sim, pois a juventude brasileira tem sido cada vez mais o maior alvo do sistema punitivo (formal e
informal), especialmente quando diante da atuação das polícias brasileiras.
O Anuário Brasileiro de 2014, apresentando dados de 2013, aponta um total de 809 casos de pessoas
mortas pelas Polícias militar e civil brasileiras, quando em serviço no ano de 2013. Isso significa cinco pessoas
mortas pela Polícia por dia no Brasil (FBSP, 2014). Em 2015, esse número é 3.022, com aumento de 37%
(FBSP, 2015). Entretanto, o relatório da Anistia Internacional, analisando tão somente a realidade do estado
do Rio de Janeiro, discute a ausência de transparência e sistematização desses dados. Esse cenário é repetido
nos dados sobre as mortes violentas intencionais em todo o país. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública
de 2014 aponta o crescimento da vitimação juvenil, chegando a representar, com os dados de 2012, 53,4%
dos homicídios ocorridos (FBSP, 2014).
Portanto, é possível perceber o extenso número de mortes com autorização social de uma população
quemuito além do descaso histórico em relação à precariedade das condições de vida e da indiferença social,
essas populações sofreram toda sorte de violência, em especial a física, perpetrada pelos muros da internação
e pela arbitrariedade policial materializada sob a forma de tortura e maus tratos que por vezes terminam em
morte (VARGAS, 2011, p. 30).
Essa continuidade, porém, tem uma peculiaridade. A reatualização da dicotomia abandonado/delin-
quente da Doutrina da Situação Irregular: ontem, os considerados pivetes estavam vinculados à prática de
furto e roubo, hoje, estão vinculados ao tráfico. Os dados apresentados por Joana Vargas (2011) indicam os
argumentos empíricos da atuação das polícias no sentido da dezumanização do humano.
Por outro lado, o Poder Judiciário parece alheio a todo esse processo, não impondo resistências aos
arbítrios do controle repressivo da ordem pública, deixando evidente que o Estado ainda convive com a in-
capacidade do controle da violência ilegal, a manutenção de uma imensa desigualdade social e econômica,
além de baixíssima legitimidade das instituições representativas, envolvidas em processos de corrupção, ile-
galidades, violências etc.
O fato é que, levando em conta o alto índice de seletividade do sistema punitivo, os adolescentes
de classes sociais mais baixas, com histórico de desvantagens econômicas, são mais punidos do que os
adolescentes de classes mais avantajadas, de modo que o sistema protege aqueles que têm mais chance de
socialização e é injusto e viola a dignidade daqueles que têm menos chance (COUSO, 2006).
Esse quadro é esquizofrênico, pois as vítimas do sistema punitivo são os mais débeis e são exatamente
os que precisam do poder público para representá-los e atuar por eles, porém este poder público não tem tido
a capacidade de responder à questão – quem custodiará os custodiados? (MELOSSI, 1996) Não obstante a
crise, não se pode parar de exigir, como dever cívico de garantia da vida democrática, menos violência.
São os adolescentes autores de atos infracionais jovens-resultados. Resultados de um somatório de
fracassos - de suas famílias, de suas comunidades, das políticas sociais públicas... resultado do insucesso do
projeto de desenvolvimento do país (KONZEN, 2005), mas sujeitos de direito que não podem ser revitimiza-
dos no sistema infracional, cabendo aos representantes do Estado juiz, no momento da prolação das senten-
ças, reconhecer esta realidade, e não se reduzir à retórica da percepção da realidade presumida.
Assim, no que tange aos adolescentes, por mais que a divisão entre abandonados e jovens em conflito
com a lei tenha sido importante em termos de conferir um tratamento jurídico adequado para cada grupo, o
220
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
refinamento dessa dicotomia acabou por recrudescer o estigma de criminoso dos adolescentes selecionados
pelo sistema que cometem atos infracionais, sobre os quais recai todo um discurso punitivista. Por mais que
haja um discurso de “infância universal”, una, com direitos garantidos a todos, a prática evidencia a dico-
tomia entre crianças “em perigo” e “perigosas”, sendo que estas, em nome da “defesa da sociedade”, estão
tendo direitos suprimidos.
Para enfrentar os desafios dessa “via de mão dupla” da Proteção Integral, é preciso relembrar, como
aduz Baratta (1995, p. 10), que o trato dos adolescentes em conflito com a lei não deixa de ser uma espécie
de responsabilização penal, com diferença de grau e nas sanções aplicadas. Desta feita, todos os filtros para a
imposição do poder punitivo sobre os adultos também devem atuar na definição das medidas socioeducativas
para os adolescentes, sob pena de violação das garantias penais e processuais penais. Com esse alerta sobre
a Proteção Integral em mente, é que se passará, mais adiante, à análise das sentenças objeto desse trabalho.
2. ANÁLISE DOS DADOS.
Nas 28 sentenças integrantes do corpus desta pesquisa, quando se trata de ato infracional que não
é grave ou não há indícios de autoria e materialidade, a principal fundamentação da imposição da medida
socioeducativa de internação assenta-se no que os magistrados definem como deficiências, entendidas essas
as referentes à pessoa da adolescente e a sua história pessoal, fazendo uma retrospectiva da sua vida que,
mais a frente, vai justificar (ou não) a medida socioeducativa.
Todas as vezes que estes elementos aparecem nas sentenças, são utilizados para justificar a necessi-
dade da medida socioeducativa, sem qualquer discussão quanto à prática do ato infracional, como se ela fosse
responsabilizada pela sua conduta de vida, sua personalidade a até de seus familiares, como se verá adiante,
independentemente do que tenha praticado.
Conforme já indicado, das 28 sentenças, 9 delas (32%) apresentam como argumento para a imposi-
ção da internação a finalidade da medida socioeducativa – apontada de forma ambígua nas diversas senten-
ças –, sendo possível definir dois grandes grupos sobre este item.
O primeiro grupo trata a medida de internação como retribuição do mal praticado, e assim o faz na-
quelas situações em que exclusivamente só foi analisada materialidade e autoria e o ato infracional é grave,
sem nenhuma consideração dos itens referentes à pessoa e à trajetória da adolescente. Neste grupo inserem-
-se as sentenças que veem na medida de internação um instrumento de neutralização da adolescente, para
proteger a sociedade e a própria adolescente.
O segundo grupo indica as medidas socioeducativas como instrumentos de supressão das deficiências
de socialização do adolescente, mencionando, inclusive, incapacidades educacionais da família, cabendo
ao poder público ensinar os pais como educar. Isso não exclui o fato de que, na grande maioria das vezes,
também menciona a retributividade da medida de internação.
No primeiro grupo, a consideração sobre a gravidade do ato infracional é que justifica a medida, tanto
que as sentenças tratam dos atos infracionais de homicídio (5), roubo (3), tráfico (2) e lesão corporal (1) –
essa última foge à regra da gravidade, mas, considerando ter sido realizada com o irmão e com faca, esse dado
pode ter sido levado em consideração.
A perspectiva da retribuição é verificada na pretensa compreensão do mal praticado que se espera
que a medida possa instrumentalizar, como se vê neste trecho: “reconhecer as consequências de seus atos,
que chegou ao extremo de atingir o bem mais precioso de todo o ser humano, a vida, necessitando medida
mais severa” (SENTENÇA 3).
Em muitos momentos, são evidentes a ansiedade para a neutralização da adolescente e até a
exemplificação (prevenção geral), mas, como isso não pode ser reconhecido, o eufemismo se apresenta,
como neste trecho: “ao mesmo tempo que a internação protege a sociedade, também resguarda a integri-
dade física do adolescente infrator que na grande maioria das vezes encontra-se envolvido com quadrilha e
221
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
traficantes” (SENTENÇA 13). Ou seja: no caso, proteger a adolescente justificou a internação, quando não
há sentido em alguém ter a liberdade cerceada para a própria proteção. Mais uma vez, tem-se o discurso da
proteção como uma via de violação de direitos.
Estes trechos apresentam a seguinte visão da magistratura: “A adolescente tem tendência para a
prática de ato infracional, sendo imperativa a retirada da comunidade onde vive justificando a aplicação da
medida socioeducativa de internação” (SENTENÇA 8).
Daí, os juízes passam a narrar a gravidade dos atos infracionais como as piores coisas da humanida-
de - o tráfico ilícito é conduta grave, tem como vítima a sociedade, sendo dever do Estado, como medida de
proteção, afastar os menores da vivência da marginalidade (SENTENÇA 13).
O trecho abaixo exemplifica esta visão:
É sabido que o tráfico vem sendo considerado o flagelo da humanidade, cres-
cendo cada vez mais, destruindo famílias, sem contar com a cooptação de
crianças e adolescentes para as trincheiras do tráfico, sempre ao argumento
e que, por não constar no rol daqueles atos infracionais passíveis de inter-
nação, são postos, imediatamente em liberdade, retornando as crianças e
adolescentes seu lugar de destaque no tráfico de entorpecentes [...] a medida
é a mais recomendável a ser aplicada, considerando a conduta dos mesmos e
para que não voltem a delinquir, tornando-se profissionais dos tráfico; afastá-
-los do perigo iminente de serem resgatados pelo tráfico é que tenho a medi-
da como imprescindível (SENTENÇA 25).
No caso de um ato infracional relativo a roubo, praticado pelo namorado da adolescente, que, segun-
do as testemunhas, ela só chegara, procurando-o (porque estava grávida e intuíra que algo estava aconte-
cendo, narra a adolescente), quando o roubo já estava consumado, a opinião judicial é que “trata-se de ato
infracional de natureza grave, praticado mediante violência e grave ameaça contra a pessoa, sendo conduta
extremamente reprovável, reclamando, portanto, rígida intervenção estatal” (SENTENÇA 21).
Em relação à prática de homicídio em que a magistrada reconhece não ter sido a adolescente a dis-
parar a arma de fogo, e que coube a ela, somente, “atrair a vítima para emboscada”, tem-se que:
A conduta infracional praticada pelo representado demonstra um compor-
tamento totalmente primitivo e reprovável, exorbitando os padrões normais
aceitáveis do adolescente médio. A população intimidada, chega a desacredi-
tar das autoridades, porque muitas vezes desconhecem os trâmites proces-
suais e as dificuldades com que trabalha o aparato policial. [...] entretanto
ressalto que fundamento precípuo da medida socioeducativa é a ressociali-
zação do adolescente em conflito coma lei, com a finalidade de reintegrá-lo
ao contexto da comunidade, para o seu desenvolvimento e amadurecimento
social e não como simples punição (SENTENÇA 23).
Após todo o exposto, observa-se o quanto o fato de o crime ser grave foi decisivo para a imposição da
medida socioeducativa de internação. Ou seja, a finalidade retributiva da medida acabou sobressaindo na
fundamentação das sentenças, seja esse argumento explicitamente verbalizado ou não. Todavia, dar ênfase
a um caráter retributivo não se coaduna com a ideia de Proteção Integral. Mesmo que o Estatuto não tenha
um dispositivo indicando as finalidades da medida socioeducativa – diferentemente do Código Penal, o qual
aponta as funções de reprovação e prevenção da pena (art. 59 do CP) –, é possível inferir, pelo escopo da
Proteção Integral, que o foco deve ser a integralização do adolescente à vida coletiva. Aliás, aqui se justifica a
próxima crítica, baseada na teoria da sociedade do controle.
Ora, se a infância é “universal”, a “proteção integral” conferida às crianças e adolescentes sujeitos
às medidas de proteção especial deve ser equivalente à conferida aos adolescentes sujeitos às medidas
socioeducativas. Daí ser possível afirmar que, em paralelo ao estatuído pelo art. 100 do Estatuto (relativo às
222
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
medidas de proteção), a aplicação das medidas socioeducativas também deve levar “em conta as necessida-
des pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários”.
Ou seja, no que tange à medida socioeducativa de internação, deve ela – além de ser excepcional (conforme
o art. 121 do ECA) – se afastar de uma ideia retributiva, não indicada em nenhum momento pelo Estatuto.
Pelo contrário, se o foco é fortalecimento de vínculos, a meta é a integração social, e não punição.
Por mais que o ECA fale que é preciso analisar a gravidade da infração para imposição da medida (art.
121, §1º), outras questões devem ser sopesadas – como as circunstâncias e a capacidade de cumprir a me-
dida socioeducativa, indicadas no mesmo dispositivo –, sob pena de uma espécie de bis in idem: se o adulto
não pode ser submetido a regime de pena mais severo por conta da gravidade da infração, por si só (Súmula
718 do STF), porque o adolescente deveria o ser?
Portanto, impor internação porque o crime é grave, sem considerações sobre o que seria melhor para
a integralização da adolescente à vida coletiva, no caso concreto, ou sobre a sua “culpabilidade”5
, não coadu-
na com a Proteção Integral – ou melhor, é prática que se opera sob o pretexto da referida doutrina. Prevalece,
assim, uma prevenção especial negativa, em seu caráter de neutralização da adolescente.
No segundo grupo, as considerações sobre a finalidade da medida socioeducativa são diversas.
Na grande maioria, volta-se à moralização e à necessidade de controle, o que fica claro quando reite-
radamente se fala em fiscalização: “a menor seja submetida a controle e fiscalização do seu comportamento”
(SENTENÇA 22); “o que sinaliza a necessidade de conduta mais enérgica, para que surta efeito pedagógico
esperado, através do acompanhamento sistemático em meio fechado” (SENTENÇA 6); “acompanhamento
sistemático para que seja demonstrado orientação no sentido de reconhecer as consequências dos seus atos,
necessitando de medidas mais enérgicas” (SENTENÇA 3).
Este trecho exemplifica uma situação:
levando em consideração a gravidade do ato infracional contra a pessoa e o
perfil da adolescente, que não demonstrou arrependimento pelo fato, con-
venço-me de que a internação é a medida socioeducativa ideal, pois implica,
além da apreensão do desvalor do ato perpetrado, uma obrigatória escolariza-
ção/profissionalização da adolescente (SENTENÇA 5).
O fato de haver menção às questões pessoais das adolescentes não exclui considerações sobre a gra-
vidade do ato, de forma semelhante como feito no item anterior, mas nesse caso, com sentença proferida por
magistrado de outra comarca:
deve-se destacar a extrema gravidade do tráfico ilícito de entorpecentes que
muito contribui para o aumento desenfreado da violência vivenciado pela
sociedade e tão veemente repelida. Sabe-se que a droga não só danifica a seu
usuário, mas atinge famílias e seu mal se espalha de forma incontrolável, vin-
do a destruir lares, vidas, estando a sociedade cada vez mais contaminada por
esta destruição. Assim, qualquer ato que venha contribuir para a proliferação
deste mal deve ser repreendido e levado muito a sério, a fim de evitar que
mais pessoas venham ser atingidas e destruídas (SENTENÇA 1).
E, em razão dessa gravidade, encerra a avaliação: “não nos é permitido deixar de aplicar a medida
socioeducativa, visto ser necessário que a representada pare para pensar e sentir as consequências da prática
infracional” (SENTENÇA 1).
5  É bem verdade que inexiste, no âmbito da análise do ato infracional, a culpabilidade, que em si representa o elemento na teoria
do delito responsável pela avaliação do autor do fato. Porém, é ela imprescindível para gerar a responsabilização socioeducativa de
adolescentes em conflito com a lei, devendo ser entendida como especial capacidade de culpabilidade, fundada no princípio da
autonomia ética da pessoa humana que não pode ser utilizada como meio para outro fim, e tão somente fim em si mesma Portanto,
a imposição da medida socioeducativa “depende não apenas do desvalor do resultado, mas, principalmente, do desvalor da ação ou
omissão do adolescente, ou seja, do comportamento consciente ou negligente” (CILLERO BRUÑOL, 2011, p. 20).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Então, por ora cabe à medida “interferir na realidade familiar e social do adolescente, tencionando
resgatar, mediante apoio técnico a sua potencialidade” (SENTENÇA 20) e, por ela, possa a adolescente “dar
direcionamento à sua vida” (SENTENÇA 4), na medida em que oferece “uma obrigatória escolarização e
profissionalização” (SENTENÇA 5), tornando-se portanto “cidadão útil” (SENTENÇA 18); por ora, cabe à
retribuição do mal praticado e até mesmo, por vezes, cabe a ela oferecer “terapias psicológicas” (SENTENÇA
16), quando a adolescente é diagnosticada por profissionais da saúde como portadora de transtornos mentais.
Todas essas situações justificam a medida, mesmo quando ela não é cabível, pois não inserida nas
hipóteses do art. 121, ECA; como foi o caso de tráfico, já tantas vezes mencionado, e o caso de um ato infra-
cional equiparado à ameaça que “por si só” não justificaria a internação, “entretanto, diante” (SENTENÇA
10) do risco pessoal, das ameaças de traficantes e dos distúrbios de conduta agravados pelo uso de drogas, a
medida está justificada.
Todas as confusões possíveis entre socioeducar, neutralizar, retribuir, são resumidas nesta passagem:
“ser necessário que a representada pare para pensar e sentir as consequências de sua prática infracional
[...] conduta mais enérgica para que surta o efeito pedagógico esperado através de acompanhamento mais
sistemático em meio fechado” (SENTENÇA 11). Ou será melhor percebido neste trecho?! “Considerando a
capacidade da adolescente cumprir a medida, as circunstâncias e a gravidade da infração, assim como sua
personalidade e a possibilidade de entender o efeito pedagógico da medida e a ilicitude do ato pratico, tenho
por bem aplicá-la” (SENTENÇA 20).
Enfim, o que realmente quer dizer este efeito pedagógico – castigo pelo mal que fez ou complemen-
tação das problemáticas relativas à socialização? Para uma ou outra coisa, há enorme arbitrariedade. Caso
a educação seja via retribuição, o efeito da media socioeducativa é penal, sendo que este é aplicado sem
qualquer discussão sobre a culpabilidade. Por outro lado, se a finalidade educacional da medida busca suprir
lacunas de sociabilidade, abre-se espaço para as práticas “menoristas”, com violações aos direitos fundamen-
tais dos adolescentes; mas parece que, neste caso, as ilegalidades seriam justificadas em nome da proteção...
Essas contradições são repetidas, na medida em que a maioria das sentenças nega o caráter penal da
medida, porém indicam veementemente a necessidade de ser compreendido o desvalor da ação, em clara
perspectiva retribucionista.
A ideia de retribuição está presente nesta passagem: “para que possa pensar e sentir as consequên-
cias de sua prática infracional”. Mas também a indicação da necessidade pedagógica é evidenciada neste
outro trecho que se mistura com a retribuição: “implica além de compreensão do desvalor, uma obrigatória
escolarização/profissionalização” (SENTENÇA 5).
Este último caso é interessante porque não trabalha qualquer fundamento sobre a necessidade da
medida, como se homicídio fosse tão grave e suficiente por si só. Mas depois aplica a medida afirmando que
a adolescente necessita de escolarização, sem fazer qualquer referência sobre a condição escolar dela – isto
é, sem nada saber sobre a realidade da mesma, pelo menos em termos da sentença.
É como se presumisse que a medida é necessária, afinal “A medida socioeducativa deve ser pautada
na ressocialização do adolescente, com a finalidade de reintegrá-lo ao convívio da comunidade para o seu
amadurecimento e desenvolvimento” (SENTENÇA 9).
No segundo grupo, portanto, a finalidade da medida socioeducativa de educação/ressocialização é
um dos fundamentos para a escolha pela internação. A nosso ver, essa função socializadora da medida con-
substancia uma representação falaciosa dos magistrados quanto à internação, demonstrando a falta de co-
nhecimento deles da realidade das instituições, com grandes dificuldades para a efetivação de uma prática
pedagógica. Nas duras palavras de Juarez Cirino dos Santos, as medidas privativas de liberdade (art. 120 e
121 do ECA) podem ser qualquer coisa, menos socioeducativas (2001).
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Qual seria, então, o significado de ressocialização, no contexto do Estatuto, em consonância com o
princípio basilar de Proteção Integral? Neste ponto, importante destacar que coadunamos com a concepção
de Jaime Couso (2006) sobre o papel desse escopo de ressocialização: não se trata de um “fundamento” das
medidas socioeducativas, mas de um limite à aplicação delas.
Isso significa que, quando da análise de qual medida socioeducativa deve ser aplicada, é preciso ter
em mente que é impossível ressocializar uma pessoa apartando-a da sociedade, conforme é denunciado pela
Criminologia Crítica há tempos. Com efeito, denuncia-se inclusive a potencialidade criminógena do encarce-
ramento, com “efeitos dessocializantes devastadores” (RODRIGUES, 1999, p. 290). Consequentemente, a
ideia de ressocialização deve promover a redução da gravidade da medida aplicada (constituindo, pois, limite
à medida), de forma que a internação, de fato, constitua exceção.
Caso se busque uma verdadeira socialização, o que deve haver é desencarceramento, e não a prática
de fundamentar o encarceramento sob pretextos educacionais. Essa “educação”, em verdade, ao invés de
promover o aprendizado para a vida na sociedade, com respeito às individualidades, apresenta-se como dire-
cionamento de comportamentos, em que a tônica é o controle social (COUSO, 2006).
Como se percebe, as representações dos magistrados sobre as medidas socioeducativas de internação
consistem no controle da juventude, daquilo que eles consideram como sendo uma “juventude normal”.
A evidência está nas sentenças que, sob o argumento de que as adolescentes precisam das finalidades
da internação em suas vidas, a fim de que haja a Proteção Integral, descumprem o devido processo legal e
ignoram a condição de sujeitos de direito, em claro desrespeito às diretrizes constitucionais.
Na verdade, a construção metódica que concede racionalidade ao ato judicial, revestido do método
silogístico da dogmática, encobre que a imposição de medida socioeducativa tem por base questões relativas
à socialização da adolescente. Se a finalidade da medida é castigo, tem-se o efeito penal e, se é penal, está
sendo aplicada medida sem nenhuma observância da culpabilidade da adolescente; por outro lado, se o efei-
to pedagógico é para complementar as deficiências, está-se diante de um direito de menores, com violações
à legalidade, ao devido processo legal e à presunção de inocência, ao se impor um verdadeiro direito penal
do autor. Nesta prática, não se tem educação, mas apenas controle social. Esses argumentos serão melhor
tratados adiante.
Assim, os magistrados ignoram a realidade, bem como violam a Proteção Integral, ao utilizarem-se do
projeto preventivo-especial das medidas de internação se limitando à simples constatação de autoria e mate-
rialidade, para, ao cabo, determinar a internação. Não obstante o art. 122 do ECA indicar como requisito da
internação ato cometido com grave ameaça ou violência à pessoa ou reiteração de infrações graves, isso não
quer dizer que, obrigatoriamente, adolescentes os quais se encaixem nessas hipóteses devam ser internados,
até por conta da excepcionalidade da medida.
Quanto aos atos infracionais mais leves, o ideal de ressocialização, ao invés de impedir que a adoles-
cente tenha sua liberdade privada, acaba exercendo um papel inverso, justificando a internação como possi-
bilidade salvadora de educação da jovem. Todavia, conforme exposto ao longo deste trabalho, é preciso refletir
sobre que educação para sociabilidade é essa, cuja execução se dá em ambiente de privação de liberdade, em
um inegável paradoxo. Embora a ressocialização devesse buscar manter vínculos familiares e comunitários,
o que acaba por emergir é uma espécie de direito penal juvenil do autor. Desta forma se acredita que o ar-
gumento ressocializador deva ser usado para a redução da intensidade da intervenção estatal na vida dos
adolescentes em conflito com a lei.
Nesse contexto, evidencia-se como o ideal de Proteção Integral, por mais que tenha efetuado uma
ruptura histórica com o paradigma da “menoridade”, presta-se a possibilitar supressão de direitos, sob o véu
de que tudo está sendo feito em favor dos adolescentes. Diante de uma estrutura normativa tão fluida, mais
do que nunca os juristas devem estar atentos e repensar quais são suas representações sobre as finalidades da
medida socioeducativa, a fim de que a prática não se aparte das diretrizes constitucionais, e os adolescentes,
“sujeitos de direitos”, não tenham suas garantias penais e processuais penais olvidadas.
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Direito(s) em debate.
Nesse sentido, mesmo que a Doutrina da Proteção Integral represente, normativamente, um avanço
na tutela dos direitos humanos, no Brasil, a categoria menor é reatulizada, sob a perspectiva do controle.
Não obstante a mudança, para Liana de Paula (2015), a pobreza6
é uma categoria catalizadora do
tratamento do adolescente em conflito com a lei, que, em si, tornou-se um campo de discursos e práticas,
organizado em torno da criminalidade urbana. De fato, é isso que os dados apontam.
Por mais que haja uma legislação avançada, como é indicado por vários autores os quais se debruçam
sobre a matéria, a ampla discricionariedade permitida pelas normas, bem como a mentalidade jurídica no
Brasil – que permanece penalizadora e cada vez mais contrária ao ECA (PASSETI, 2010, p. 371) –, acabam
fazendo com que haja a permanência de estruturas de controle sobre os adolescentes em conflito com a lei.
Imprescindível, pois, o cuidado no trato com a Doutrina da Proteção Integral, que pode se prestar a esconder
violações de direitos fundamentais sob a retórica de proteção desses mesmos direitos.
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6  Como salienta Michel Misse (2011), pobreza e criminalidade são variáveis, tidas, pelas ciências sociais, como causas a partir
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DEMOCRACIA, EFETIVIDADE E DIREITOS SOCIAIS:
UM OLHAR SOBRE OS CONSELHOS MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS – A PARTICIPAÇÃO COMO CONCRETIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Erika Patrícia Ferreira dos Santos
Bacharelanda em Direito pela Faculdade ASCES
Isabel Cristina Souza Queiroz
Bacharelanda em Direito pela Faculdade ASCES
Marco Aurélio da Silva Freire
Bacharel em Direito pela Faculdade ASCES e em Ciência Contábeis pela FAFICA.
Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
professor universitário na Faculdade ASCES.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Direitos Sociais; 1.1. Democracia; 2. Conselhos de políticas públicas;
Conclusão; Referências.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem o escopo de analisar os Conselhos Municipais de Educação como meio de
concretização da cidadania, da democracia e, por conseguinte, do fortalecimento dos direitos sociais. Para
isso, foi feita uma pesquisa bibliográfica e documental. Inicialmente, tratar-se-á da transformação e fortale-
cimento dos direitos sociais, estes, que como veremos mais adiante, passaram por várias etapas resultantes
de vários momentos históricos. Com isso podemos dizer que os direitos sociais são produtos de um longo
processo de constitucionalização que se estende até o período atual, onde os direitos são garantidos, mas nem
todos são efetivados, necessitando, por vezes, do acionamento do Poder Judiciário ou até mesmo de normas
infraconstitucionais que garantam sua eficácia plena. Pois, sabemos que a ativação dos direitos sociais é um
meio para se atingir um mundo econômico, sócio-político e ético-cultural melhor e mais justo.
Logo mais adiante, abordar-se-á a democracia e os tipos de exercê-la, ressaltando os prós e os contras
da democracia representativa e apresentando a democracia participativa como um escape para uma demo-
cracia representativa, esta que está perdendo o respeito da sociedade. Apresentar-se-á também alguns tipos
de democracia participativa, destacando, por sua vez, os conselhos de políticas públicas. Dentre os conselhos,
merecerá destaque o Conselho Municipal de Educação, visto que a educação apresenta resultados para além
de si e podendo ser, se bem administrada, a solução para muitos dos problemas sociais e estruturais enfren-
tados pelo Brasil – como, por exemplo, as drogas, a violência e a corrupção.
No decorrer do trabalho também trataremos a respeito do funcionamento dos conselhos municipais
de educação, sua formação, como se dão as reuniões entre os membros da sociedade civil e representantes
do Estado, estas que podem ser de cunho deliberativo ou consultivo, além de analisar sua eficácia. Soma-se
a isso que serão expostos alguns dos problemas enfrentados pelos conselhos tendo em vista que muitas vezes
estes são objetos de clientelismo e coronelismo, resultam na escolha de conselheiros mal informados e pouco
representativos.
229
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
1. DIREITOS SOCIAIS
Os direitos sociais, são direitos de 2ª (segunda) dimensão, referentes à igualdade. Segundo José Afon-
so da Silva os direitos sociais são:
Prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente,
enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições
de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situ-
ações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito ao di-
reito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais
na medida em que criam condições materiais mais propícias ao aferimento
da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível
com o exercício efetivo da liberdade. (SILVA, 2010, p. 286-287)
Ao analisar a história dos direitos sociais, no Brasil, percebe-se que os mesmos sofreram constantes
transformações devido aos contextos históricos diversos, as mudanças demográficas e as variações nas con-
cepções político-econômicas.
Sabe-se que na década de 30, o Brasil, passava por transformações estruturais. Os altos níveis de
migrações para os centros urbanos ocasionaram problemas sociais e atingiram diretamente a infraestrutura
do país. Neste mesmo período histórico, a posse do poder estava com a elite e o Estado tinha o domínio sobre
quase tudo, instaurando um estado hobbesiano, ou seja, uma política de controle.
Esse dirigismo estatal prevaleceu até o governo Dutra, pois, surgem nesse período histórico movi-
mentos sociais e associações civis que tinham, dentre outros objetivos, reivindicar ao Estado, a ampliação
dos direitos sociais. Instala-se no Brasil, então, um resquício de democracia, onde será marcado por grandes
conquistas como, por exemplo, ampliação dos direitos trabalhistas e previdenciários.
Porém, em 1964, com a instalação do regime ditatorial, ocorre a extinção dos direitos políticos e civis,
que, por conseguinte, prejudicou a manutenção de alguns direitos sociais. Ainda no ano 1967, grande parte
da sociedade não tinha acesso aos seus direitos fundamentais, mesmo estes sendo garantidos no artigo 150
da Constituição de 1967, e dos direitos sociais previstos no artigo 158.
Em 1988 foi promulgada a atual Constituição Federal, garantindo a redemocratização. Porém, como
é sabido, nem todos direitos sociais por ela ofertados foram implementados, tornando-se um período de “po-
lítica social sem direitos sociais” (VIEIRA, 1997, p. 14).
Sabe-se que até os dias atuais alguns direitos sociais não são efetivados necessitando, por vezes, acio-
nar o Poder Judiciário para concretização desses direitos. De acordo com Barroso:
O judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la valer, em nome dos
direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusi-
ve em face dos outros Poderes. Eventual atuação contramarjoritária, nessas
hipóteses, se dará a favor e não contra a democracia (BARROSO, 2009, p.
346).
Para Peter Häberle, há uma relação umbilical entre a democracia e os direitos sociais na constituição
de um Estado Democrático de Direito, sendo exigidos pela democracia os direitos sociais, além destes serem
necessários para participação política. Infere-se, portanto, que os direitos sociais devem servir para o controle
da política por parte dos cidadãos, sendo assim o pressuposto básico da democracia.
1.1 DEMOCRACIA
230
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Entende-se por democracia o exercício dos princípios da cidadania e da soberania popular. Ou seja,
democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo1
. Segundo Norberto Bobbio em “O Futuro da Demo-
cracia”, a democracia é caracterizada:
Por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem
quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimen-
tos. Mas até mesmo as decisões de grupo são tomadas por indivíduos (o grupo
como tal não decide). Por isto, para que uma decisão tomada por indivíduos
(um, poucos, muitos, todos) possa ser aceita como decisão coletiva é preciso
que seja tomada com base em regras (não importa se escritas ou consuetu-
dinárias) que estabeleçam quais são os indivíduos autorizados a tomar as
decisões vinculatórias para todos os membros do grupo, e à base de quais
procedimentos (BOBBIO, 1986).
Podemos classificar a democracia de modo geral em: direta, indireta ou semidireta. Na democracia
indireta ou representativa, o povo, o soberano, escolhe seus representantes, outorgando-lhes poderes para
que por eles e para eles governem o país. Enquanto que na democracia direta o poder é exercido pelo povo,
sem representações. Já na democracia semidireta ou participativa, haverá representatividade e a participa-
ção direta do povo nos atos estatais. De acordo com Robert Dahl é possível definir alguns critérios de um
processo democrático:
•	 Participação efetiva. Antes de ser adotada uma política pela associação,
todos os membros devem ter oportunidades iguais e efetivas para fazer
os outros membros conhecerem suas opiniões sobre qual deveria ser esta
política.
•	 Igualdade de voto. Quando chegar o momento em que a decisão sobre a
política for tomada, todos os membros devem ter oportunidades iguais e
efetivas de voto e todos os votos devem ser contados como iguais.
•	 Entendimento esclarecido. Dentro de limites razoáveis de tempo, cada
membro deve ter oportunidades iguais e efetivas de aprender sobre as
políticas de aprender sobre as políticas alternativas importantes e suas
prováveis consequências.
•	 Controle de programa de planejamento. Os membros devem ter a opor-
tunidade exclusiva para decidir como e, se preferirem, quais as questões
que devem ser colocadas no planejamento. Assim, o processo democráti-
co exigido pelos três critérios anteriores jamais é encerrado. As políticas
da associação estão sempre abertas para a mudança pelos membros, se
assim estes escolherem.
•	 Inclusão dos adultos. Todos ou, de qualquer maneira, a maioria dos adul-
tos residentes permanecentes deveriam ter o pleno direito de cidadãos
implícito no primeiro de nossos critérios. Antes do século XX, este critério
era inaceitável para maioria dos defensores da democracia. Justificá-lo
exigiria que examinássemos por que devemos tratar os outros como nos-
sos iguais políticos. (DAHL, 2001)
Pode-se perceber, porém, que muitos desses critérios elencados por Dahl ainda não são plenamente
concretizados, precisando, por vezes, democratizar a democracia. No Brasil criou-se uma cultura onde os
políticos são vistos pela população como uma classe superior e inatingível, distanciando, desta forma, o polí-
tico do contexto social.
Tal fato atinge então a democracia representativa, visto que com o distanciamento do representante,
político, do representado, sociedade, aquele usa o poder como meio de satisfação dos próprios anseios ou até
1  SILVA, De Plácido. Vocabulário jurídico. 31ª edição. Rio de Janeiro, Forense, 2014
231
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
mesmo como instrumento de dominação da classe dominante, esta que lhe rendeu ou renderá mais votos
para que possa ser reeleito. Quanto a isso Norberto Bobbio faz uma crítica direta:
As democracias representativas que conhecemos são democracias nas quais
por representante entende-se uma pessoa que tem duas características bem
estabelecidas: a) na medida em que goza da confiança do corpo eleitoral,
uma vez eleito não é mais responsável perante os próprios eleitores e seu
mandato, portanto, não é revogável; b) não é responsável diretamente pe-
rante os seus eleitores exatamente porque convocado a tutelar os interesses
gerais da sociedade civil e não os interesses particulares desta ou daquela
categoria. (BOBBIO, 1986)
Sendo assim, forma-se uma nova classe, a dos políticos de profissão. Estes vivem para política e da
política, buscando sempre a manutenção do poder e os interesses particulares, esquecendo-se, por sua vez,
das necessidades do soberano, o povo.
Como escape para uma democracia representativa em crise, tem-se a democracia participativa ou
direta, onde os cidadãos poderão participar ativamente das políticas públicas e fiscalizar os atos estatais. De
acordo com Fernando Novelli Bianchini, entende-se por democracia participativa:
O processo político que possibilita e estimula a participação do cidadão e de
sua comunidade, via de regra de forma direta e por vezes de forma semidi-
reta, na elaboração da vontade e dos atos próprios do governo já construído,
em suas tarefas legais e administrativas, descartando a representação por
meio de uma assembleia eletiva para tanto. Em sua essência a democracia
participativa é caracterizada por um conjunto de pressupostos normativos
que incorporam a participação da sociedade civil na regulação da vida cole-
tiva dentro de uma agenda previamente determinada de assuntos. Pode-se
afirmar que a democracia participativa impõe o exercício da cidadania nos
atos de governo, significando, em última análise, um sistema no qual os ci-
dadãos possam efetivamente participar das decisões políticas fundamentais.
(BIANCHINI, 2009, p. 15)
Há alguns instrumentos para efetivação da democracia participativa. Os mais comuns citados pela
ciência política e jurídica são: referendo, projeto de lei de iniciativa popular, orçamento participativo, audiên-
cias públicas, ação popular, conselhos de políticas públicas, entre outros. Merecerá destaque e será abordado
mais adiante, os conselhos de políticas públicas, mais especificamente, os conselhos municipais de educação.
Insta salientar, todavia, que a democracia participativa e a democracia representativa devem ser
desenvolvidas respectivamente, visto que são complementares. Dessa forma, haverá a concretização dos
princípios da soberania, da cidadania e da democracia, instaurando assim um legítimo Estado Democrático
de Direito.
2. CONSELHOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS
A participação da sociedade nos atos do governo é algo recente, principalmente, na gestão de políti-
cas públicas. Como já foi dito, a democracia sempre esteve muito limitada ao voto direto e após essa decisão
a população passava apenas a agir de forma passiva dentro das relações estatais. Políticas públicas são aqui
entendidas como ações do governo que objetivam a inclusão social, seus elementos principais são:
possibilitam a distinção entre o que o governo pretende fazer e o que, de fato
faz; envolvem vários níveis de atores e decisões, incluindo participantes in-
formais; são abrangentes e não se limitam a leis e regras; são ações intencio-
nais, com objetivos e metas a serem cumpridas; costumam produzir impacto
em logo prazo.” (SOUZA, Celina. 2006, p. 24).
232
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
	 Com o déficit de participação advindo da democracia representativa, a partir da década de 90
começam a surgir outros mecanismos de participação que iriam além do voto. podemos citar como exemplo
os conselhos, que devem ter preferencialmente formação paritária entre membros da sociedade civil e mem-
bros do poder público. Deu-se a esses conselhos competência para programar e fiscalizar políticas públicas
desenvolvidas pelo governo.
	 A participação do povo na gestão da coisa pública reflete algumas implicações:
1.	 A participação social promove transparência na deliberação e visibilidade das ações, democrati-
zando o sistema decisório.
2.	 A participação social permite maior expressão e visibilidade das demandas sociais, provocando um
avanço na promoção da igualdade e da equidade nas políticas públicas; e
3.	 A sociedade, por meio de inúmeros movimentos e formas de associativismo, permeia as ações
estatais na defesa e alargamento de direitos, demanda ações e é capaz de executá-las no interesse
público.2
O conceito mais apreciado dos conselhos de políticas públicas é o de Maria da Glória Gohn, onde são
definidos como “canais de participação que articulam representantes da população e membros do poder pú-
blico estatal em práticas que dizem respeito à gestão de bens públicos”. (GOHN, 2001, p. 7). A nossa análise
permeia na relação desses conselhos com a efetivação da democracia, percebemos até aqui que esses órgãos
permitem de fato a presença de entes não governamentais, que se caracterizam como atores informais e que
são garantidores da participação que concretiza os direitos sociais constitucionalmente dispostos.
Dessa forma, a constituição Federal de 1988 estabeleceu em diversas nor-
mas a obrigatoriedade da cooperação entre a sociedade civil e as instâncias
de governo, que ocorre ordinariamente por meio dos Conselhos de Políticas
Públicas, para: (1) o planejamento municipal (art. 29, XII); (2) a gestão da
seguridade social que compreende um conjunto integrado de ações de ini-
ciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinado a assegurar os direitos
relativos à saúde, à previdência e à assistência social, deve se pautar pelo
caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão
quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos
aposentados e do Governo nos órgãos colegiados (inciso IV, parágrafo único,
art. 194); (3) assegurar a participação da comunidade na gestão das ações e
serviços públicos de saúde que devem integrar uma rede regionalizada e hie-
rarquizada e constituem um sistema único (art. 198, III); (4) a participação
da população, por meio de organizações representativas, na formulação das
políticas e no controle das ações em todos os níveis, das ações governamen-
tais na área da assistência social realizadas com recursos do orçamento da
seguridade socialv(art. 201, II); (5) a gestão democrática do ensino público
(art. 206, VI); (6) participação de entidades não governamentais em progra-
mas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem,
promovidos pelo Estado, mediante políticas específicas (art. 227, parágrafo
1º.). (ALVES, 2013, p. 234.)
Com isso podemos afirmar que os Conselhos de Políticas Públicas são órgãos do poder público de
composição preferencialmente paritária entre o governo e a população, estão previstos na constituição e
garantem a participação social efetivando direitos sociais. São várias as áreas de atuação desses conselhos,
podemos destacar o Conselho Nacional do Meio Ambiente, Conselho Nacional de Política Criminal e Previ-
denciária, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, Conselho Nacional de Educação entre outros. Decidi-
mos especificar nosso estudo ao Conselho de Educação no âmbito municipal. Esclareceremos aqui que nossa
escolha tem fundamento na grande importância da educação, não só no contexto social atual, mas também,
2  SILVA, Frederico Barbosa da, JACCOUD, Luciana, BEGHIN, Nathalie. Políticas Sociais no Brasil: Participação Social, Conse-
lhos e Parcerias. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/livros/questaosocial/Cap_8.pdf. Acesso em 06 dez. 2015. P. 375.
233
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
no futuro, já que os resultados originados das deliberações feitas nesse conselho são de caráter mediato, ou
seja, têm um longo prazo para se efetivar e atinge a maior parte da população, tanto quem está diretamente
ligado às questões educacionais, (pais, alunos e professores), quanto os que indiretamente são atingidos por
meios de reflexos, pois, a educação é importante para se construir um mundo sócio-político, econômico e
cultural melhor.
Além das áreas de atuação os conselhos podem ser analisados a partir de sua função, destacamos as
mais importantes na esfera do CME, função deliberativa, quando os conselheiros podem decidir de forma
direta sobre matérias específicas e elaborar normas de estruturação das políticas sociais no respectivo âmbito
de atuação, e a função consultiva, quando os membros emitem parecer, quanto às questões propostas, que
vão influenciar nas decisões que serão tomadas mais a frente, é uma maneira de assessorar as deliberações.
O exercício dessas funções permite que, de forma direta, a população possa interferir na construção e toma-
da de decisão por parte do Estado. Faz-se necessária a existência de discussões dentro desse conselho, pois
só assim podemos subentender que está havendo ponderação de direitos, não se preza o consenso rápido e
imediato, e sim, a forte deliberação, pois, por ser formado pela sociedade e pelo poder público esse órgão tem
por princípio de constituição a representatividade e o respeito às diferentes vontades.
Entretanto, não podemos inferir que a existência do conselho efetiva e concretiza de fato a demo-
cracia, é preciso analisar a eficácia de sua atuação, “quando se compreende eficácia como capacidade de
deliberar, controlar e fazer cumprir suas decisões”. (CARVALHO E TEIXEIRA, 2000, P. 93). Sabe-se que a
escolha dos conselheiros não é feita através do voto, dessa forma eles não se sentem obrigados a deliberar e
correspondendo anseios sociais como forma de recompensa ao voto.
Quanto à representatividade, é difícil assegurar que a escolha dos conselheiros seja democrática, sob
a perspectiva da sociedade civil, da mesma forma que os membros não estão sujeitos a quaisquer processos
de controle e responsabilização. Os representantes populares nos conselhos não são submetidos a qualquer
procedimento de legitimação substantiva, já que não são eleitos pelo voto universal, e por isso não recebem
uma delegação explícita, como seria desejável em qualquer regime democrático. (ALVES, 2013, p. 238.)
Sendo escolhidos por sua relação com as entidades ou setores da sociedade representados, com os
quais devem manter um processo de interlocução permanente, os conselheiros representantes da população
devem corresponder com as necessidades apresentadas pelo setor social, já que, estes estão ligados e são
beneficiados com as escolhas tomadas. Então, em contraposição ao que foi trazido pelo autor, acreditamos
que a escolha dos conselheiros pode beneficiar a efetivação democrática, mas, se esses representantes deli-
beram conforme sua vontade a eficácia estará será reduzida. Somado a isso, é importante analisar se há um
conhecimento por parte da sociedade sobre a existência desse órgão, muitas vezes a falta de eficácia está
atrelada ao pouco envolvimento da sociedade civil no conselho, isso pela falta de divulgação das reuniões e
da importância funcional do mesmo.
CONCLUSÃO
A implementação de uma política pública por parte do Estado, faz garantir um direito de cidadania,
por meio da participação da sociedade civil, que assegura a manifestação da vontade social ante as decisões
da coisa pública. É perceptível que esse direito é um direito político, mas precisamente a democracia, pois:
considerando que a democracia só pode acontecer em contextos igualitários,
em que as condições de participação e deliberação pública são precedidas por
condições materiais assecuratórias de que a esfera pública irá se constituir
a partir de atores não meramente formais, os direitos fundamentais sociais
se constituem em verdadeira condição material de ocorrência do político.
(ALVES, 2013, p. 256).
Dessa forma, podemos olhar para os conselhos municipais de educação e enxerga-los como órgãos
que permitem a participação popular e concretizam os direitos dispostos na Constituição Federal, como traz
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Leonardo Avritzer (2009, p. 146) “a criação de conselhos como mecanismo institucional para dar concretude
ao direito constitucional à participação, entendida, assim, como a intervenção efetiva da sociedade na formu-
lação, implementação e controle da política pública”.
Os conselhos podem ser considerados como uma das mais avançadas formas de exercício da demo-
cracia, ele garante a participação e a interferência da população, que por um longo tempo foi agente passiva
na política de decisão, e que agora é vista como ativa dentro do processo de formação e tomada de decisão de
assuntos que dizem respeito à gestão da coisa pública.
Entretanto não podemos nos prender tão somente a existência do conselho, é preciso verificar como
está se dando sua atuação e assim, confirmar se a concretização dos direitos sociais é garantida através desse
órgão, que permite um diálogo permanente entre a sociedade civil e o poder público. É de grande importân-
cia a construção desses conselhos no âmbito municipal, porém, ainda mais valioso é o interesse da sociedade
em procurar manter a eficácia desse órgão, seja por meio da fiscalização ou por meio da participação direta
dos conselheiros da sociedade civil, que podem garantir essa eficácia deliberando conforme as necessidades
da população que tem relação com a área de atuação do conselho. Portanto, os conselhos devem constituir-se
“como o espaço legítimo de interlocução e de deliberação, com presença constante nas reuniões, e o devido
respeito à autonomia dos membros da sociedade civil”. (AVRITZER, 2009, p. 150)
No que diz respeito à eficácia dos conselhos, os grandes obstáculos apresentados são justamente a
escolha dos conselheiros e a falta de envolvimento por parte da sociedade civil, é notável ainda que a forte
presença autoritária do Estado muitas vezes orienta as relações estatais sociais, esse é um problema presente
nas mais diversas formas de efetivação da democracia participativa.
Por fim acrescentamos a necessidade de movimentos sociais para a construção de políticas públicas
que realmente funcionam, pois, aquelas que veem de forma imposta pelo Estado na maioria das vezes apre-
sentam caráter de anexos da atuação do poder público. A pressão social é responsável também pelas ações do
Estado, e quando esse se compromete a atender a demanda social a população deve continuar agindo para
que essa ação continue com efeito qualitativo.
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236
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
REAÇÃO LEGISLATIVA FRENTE À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO BRASIL
PÓS 88
Eriverton Felipe de Souza
Bacharelando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Monitor
da Disciplina de Direito Constitucional III na mesma Instituição de Ensino. Estagiário da
Procuradoria Regional da República da 5ª região.
SUMÁRIO: Introdução; 1. A jurisdição constitucional no Brasil pós 88: breves apontamentos; 2. O
Poder Legislativo e a Jurisdição Constitucional: eficácia subjetiva das decisões no controle de consti-
tucionalidade; 3. A reação/superação legislativa; 4. O efeito backlash como impulsionador da reação/
superação legislativa; 5. Considerações finais; Referências
INTRODUÇÃO
É de larga sapiência que o Poder Judiciário vem exercendo um protagonismo em relação aos demais
Poderes constituídos nas democracias contemporâneas, pelo menos no lado ocidental do globo terrestre,
isso vem acontecendo a partir segunda metade do Século XX. Sobretudo no que diz respeito ao exercício da
jurisdição constitucional por meio das Cortes Constitucionais ou dos Tribunais Constitucionais. E no Brasil
não foi diferente, notadamente após a promulgação da atual Constituição em 1988.
Sendo assim, o presente trabalho discute a reação legislativa frente às decisões do controle de cons-
titucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal. Buscou-se debater quais os mecanismos utiliza-
dos para que haja uma reversão dessas decisões no âmbito do Poder Legislativo. O objetivo deste trabalho
é discutir os meios que o Poder Legislativo se utiliza para reverter tais decisões. E quais os limites a serem
obedecidos por essas reações.
A investigação bibliográfica compõe a principal metodologia utilizada neste trabalho. O tema foi pes-
quisado em teses, dissertações e artigos disponíveis na internet em revistas especializadas. Bem como se
utilizou de livros que tratam direta ou indiretamente sobre a temática. Além de se proceder ao estudo de
algumas decisões do STF e os votos de seus ministros.
O trabalho começa tratando da jurisdição constitucional e suas características no Brasil pós Consti-
tuição de 1988. Segue tratando dos efeitos das decisões no controle de constitucionalidade e sua relação com
o Poder Legislativo. Trata também do chamado “ativismo congressual” que nada mais é que a superação le-
gislativa da jurisprudência do STF. E por fim, discute-se o efeito backlash como um impulsionador da reação
legislativa.
1. A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO BRASIL PÓS 88: BREVES APONTAMENTOS;
Inicialmente convém dizer, em linhas gerais, o que viria a ser a jurisdição constitucional. Entende-se
como jurisdição constitucional a outorga de poderes jurisdicionais a determinado órgão, juiz ou tribunal,
no afã de conferir a conformidade de um ato normativo com o texto constitucional, que é o centro de onde
emana todo o ordenamento jurídico. O controle de constitucionalidade é o meio pelo qual se busca aferir essa
conformidade.
237
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
No Brasil vigora um modelo hibrido de controle de constitucionalidade e essa peculiaridade faz com
que o modelo vigente aqui seja único. Como dito, o controle de constitucionalidade das leis à brasileira com-
bina aspectos de dois modelos, o desenvolvido nos Estados Unidos da América, chamado de sistema difuso ou
concreto, onde qualquer juiz ou tribunal pode declarar a inconstitucionalidade de uma lei. Sendo que nesse
caso os efeitos são interpartes. E também combina aspectos do modelo desenvolvido na Europa, idealizado
por Hans Kelsen, o sistema concentrado ou abstrato, no qual somente um Tribunal é responsável por decla-
rar a inconstitucionalidade de uma lei. Aqui os efeitos são erga omnes (contra todos) e vinculante.
Esse último recebe especial atenção, sobretudo após o advento da Constituição de 1988, porque foi
através dela que vieram as inovações que contribuíram para uma expansão da atividade do Judiciário no país,
notadamente do Supremo Tribunal Federal (STF). Desde já, alerta-se que esse fenômeno ocorre no mundo
todo. Tanto a quantidade de ações do controle concentrado, bem como a variedade de assuntos e o extenso
rol de legitimados para propô-las, são fatores que influenciam no ganho de maior atividade do Judiciário em
detrimento dos demais poderes. Segundo Luís Roberto Barroso (2014, p.3-4) a jurisdição constitucional
compreende duas atuações que são feitas de modo muito particular,
A primeira, de aplicação direta da Constituição às situações nela contempla-
das. Por exemplo, o reconhecimento de que determinada competência é do
Estado, não da União; ou do direito do contribuinte a uma imunidade tribu-
tária; ou do direito à liberdade de expressão, sem censura ou licença prévia.
A segunda atuação envolve a aplicação indireta da Constituição, que se dá
quando o intérprete a utiliza como parâmetro para aferir a validade de uma
norma infraconstitucional (controle de constitucionalidade) ou para atribuir
a ela o melhor sentido, em meio a diferentes possibilidades (interpretação
conforme a Constituição). Em suma: a jurisdição constitucional compreende
o poder exercido por juízes e tribunais na aplicação direta da Constituição,
no desempenho do controle de constitucionalidade das leis e dos atos do Po-
der Público em geral e na interpretação do ordenamento infraconstitucional
conforme a Constituição.
Junte-se a isso outro fenômeno que acontece por aqui, que é a judicialização da política. Este fenô-
meno faz com que o Tribunal tenha sua atuação expandida para decidir questões que anteriormente eram
resolvidas por outros departamentos do poder político, interna corporis. Nas palavras de BARROSO (2014,
P. 4) “Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo
decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder
para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o
Executivo.”
Ainda segundo BARROSO (2014, p.4) as naturezas das causas que explicam o fenômeno da expan-
são do Poder Judiciário e da Judicialização são diversas, nesse sentido:
A primeira delas é o reconhecimento da importância de um Judiciário forte
e independente, como elemento essencial para as democracias modernas.
Como consequência, operou-se uma vertiginosa ascensão institucional de
juízes e tribunais, assim na Europa como em países da América Latina, parti-
cularmente no Brasil. A segunda causa envolve certa desilusão com a política
majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos
parlamentos em geral. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, prefe-
rem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas,
em relação às quais exista desacordo moral razoável na sociedade.
No Brasil o fenômeno ganhou proporções maiores devido às características da própria constituição,
a qual é abrangente e analítica, o que gerou a constitucionalização do Direito1
. A consequência disso aponta
1  […] constitucionalizar é, em última análise, retirar um tema do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões judicia-
lizáveis – e do sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós, em que é amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal
238
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
BARROSO (2014, p.6), é que “quase todas as questões de relevância política, social e moral foram discutidas
ou já estão postas em sede judicial, especialmente perante o Supremo Tribunal Federal”.
Insta diferenciar, neste momento, o fenômeno da judicialização do ativismo judicial, embora não se-
jam objeto direto deste estudo, mas guardam com ele estreitas relações. A primeira é decorrente do modelo
de desenho institucional adotado no Brasil, já este último, em linhas bem gerais, haja vista a dificuldade de
sua conceituação, deve ser entendido como uma atitude, uma escolha deliberada do Tribunal de interpretar
a Constituição, expandindo seus poderes de atuação. Existe, nesse sentido, uma proatividade. E como bem
sabido, o ativismo pode ser tanto liberal quanto conservador.
Como decorrência da supremacia constitucional e da supremacia judicial, idealizou-se um dogma de
que o STF tem a “última palavra” em termos de interpretação constitucional, ou seja, criou-se uma preva-
lência da concepção juriscêntrica na interpretação da Constituição. Neste trabalho, parte-se da premissa de
que não há última palavra em muitos casos. Entende-se que há de fato um pronunciamento provisório do
STF em matéria constitucional que, a depender da matéria veiculada ou da repercussão obtida, pode sofrer
uma reversão. Como se pretende demostrar. Obviamente, não se quer esvaziar o importante papel que tem o
Tribunal na construção do significado da Constituição. Mas, como adverte SARMENTO (2013, p. 136-137),
”Uma decisão do STF é, certamente, um elemento de grande relevância no diálogo sobre o sentido de uma
norma constitucional, mas não tem o condão de encerrar o debate sobre uma controvérsia que seja verdadei-
ramente importante para a sociedade”.
SARMENTO (2013, p.136) ainda afirma que a premissa de o STF ter a “última palavra” lhe parece
equivocada tanto sob o ângulo descritivo quanto sob o ângulo prescritivo. Pois para ele, não é verdade que o
STF dê sempre a “última palavra” sobre a interpretação constitucional, pelo simples fato, de que em muitos
casos não há última palavra. Ainda sobre o tema, assevera o referido autor,
Sob o ângulo prescritivo, não é salutar atribuir a um órgão qualquer a prer-
rogativa de dar a última palavra sobre o sentido da Constituição. Definitiva-
mente, a Constituição não é o que o Supremo diz que ela é. Em matéria de
interpretação constitucional, a Corte, composta por intérpretes humanos e
falíveis, pode errar, como também podem fazê-lo os poderes Legislativo e
Executivo. É preferível adotar-se um modelo que não atribua a nenhuma
instituição – nem do Judiciário, nem do Legislativo - o “direito de errar por
último”, abrindo-se a permanente possibilidade de correções recíprocas no
campo da hermenêutica constitucional, com base na ideia de diálogo, em
lugar da visão mais tradicional, que concede a última palavra nessa área ao
STF. (SARMENTO, 2013, p. 137)
Nesse sentido, não há se falar em última palavra, o que pode haver, em verdade, é uma estabilização
do sentido da constituição. Porque, até aquele momento, em virtude da controvérsia que a envolvia, já que
os desacordos não haviam cessado. Além de que, quando se fala em “última palavra” somos remetidos a uma
ideia de sobreposição, de imposição de vontade de um Poder sobre o outro. Algo que em um ambiente demo-
crático não parece acertado. Como bem salienta Juliano Zaidan BENVINDO (2014, p.81)
A tese a ser defendida é que a própria construção argumentativa de algum Poder ‘de-
tentor da última palavra’ é, por si só, uma afirmação que aparece como discurso por
mais poder. Até porque não existe, em uma democracia constitucional, que prima
pela cidadania, um órgão que possa arvorar-se o detentor da última palavra.
2. O PODER LEGISLATIVO E A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: EFICÁCIA SUBJETIVA DAS
DECISÕES NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE.
por via de ações diretas. ( BARROSO,2014, p.6)
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A eficácia subjetiva das decisões do controle concentrado de constitucionalidade é erga omnes (con-
tra todos) e vinculante, segundo previsão do art. 102, § 2º da CFRB/88. Contudo, tais efeitos dizem respeito
relativamente, além dos particulares, aos demais órgãos do Poder judiciário e a Administração Pública, direta
e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Dessa forma, caso haja algum descumprimento caberá
reclamação perante o STF. Deve-se lembrar também que essas decisões não vinculam o próprio Tribunal
que, mais tarde, pode rever o seu posicionamento em virtude de mudanças de ordem econômica , política
ou até mesmo social. Inclusive, uma mudança na composição do próprio Tribunal.
Conforme se nota, o Poder Legislativo, em sua função típica de legislar, não está vinculado às decisões
do STF em sede de controle concentrado. Nessa toada, o Legislativo poderia editar nova lei com o conteúdo
idêntico ao que fora declarado inconstitucional pelo STF ou, no exercício do poder constituinte reformador,
editar uma emenda à Constituição visando a reversão da jurisprudência da Corte. Isso evita que haja um con-
gelamento da Constituição. E atente-se ao fato de que, nesse caso, não é cabível uma Reclamação. Trata-se
exatamente do espaço de livre conformação do legislador, o qual não sofre influencia dos efeitos do controle
de constitucionalidade.
Essa reação legislativa não necessariamente ocasionará na inconstitucionalidade, de pronto, da emen-
da ou lei editada. Isso porque, como fora dito a pouco, o legislador tem certa liberdade. E além de que ,existe
um potencial epistêmico na reação legislativa que contribui para um diálogo entre os Poderes. É claro que
o Legislativo pode não vir a contribuir com um melhor entendimento do texto constitucional. Mas também
é verdade que a interpretação dada por ele poderá trazer novas luzes a determinada temática de elevada
controvérsia constitucional. A esse respeito, transcreve-se o entendimento de Mariana WILLEMAN (2013,
p.II-23), que pontua:
De fato, reconhecer que juízes e legisladores ostentam condições de partilhar
a interpretação constitucional de maneira dialógica, mediante o estabeleci-
mento de uma relação consideração recíproca para o exercício de tal respon-
sabilidade, representa grande avanço em termos interpretativos e de busca
por efetividade da Constituição. E assim o é não apenas porque tais instân-
cias encontram-se situadas institucionalmente de maneira diversa, mas tam-
bém porque cada uma delas pode trazer perspectivas distintas e valiosas para
os conflitos constitucionais exatamente em função dessas características e
responsabilidades institucionais distintas.
Dessa forma, frente à reação/superação legislativa da jurisprudência, existem, dois caminhos a se-
rem tomados pelo STF. Ou o Tribunal revê a sua jurisprudência, acatando os novos argumentos apresentados
pelo Legislativo ou o Tribunal reafirma sua jurisprudência, fazendo prevalecer seu entendimento. Não se
busca defender a ideia de que o Legislativo tem o poder irrestrito e pleno, ao discordar de uma decisão do
STF. Pelo contrário, se quer defender o entendimento de que existe a possibilidade do Tribunal errar, e em
isso ocorrendo, o Legislativo também é um importante intérprete da Constituição. O que se quer dizer é que
toda e qualquer tentativa de superar a jurisprudência do Tribunal é legítima.
Há nesse caso, a devolução ao Legislativo da oportunidade de conformação legislativa. E em assim
sendo, assevera ROTHEMBURG (2007),
Essa atitude pode não revelar apenas um episódio de teimosia, mas uma
reapreciação ponderada da situação, com a consideração dos argumentos
tecidos em sede de jurisdição constitucional. Se, após o momento 1, em que
o Legislativo editara a norma com a qual expressara sua interpretação da
Constituição (no espaço de conformação legislativa dado por esta), o Judici-
ário, no momento 2, declarara a inconstitucionalidade dessa norma, fazendo
a sua interpretação da Constituição, o momento 3 pode aparecer como a
síntese de um processo democrático de instrução e reflexão, de avaliação das
expectativas da sociedade, em que o Legislativo conclui pelo acerto de sua
opção original (momento 1), produz outra norma semelhante ou idêntica
àquela, e essa opção é enfim aceita pelo Judiciário.
240
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A prática da superação das decisões constitucionais do STF mostra-se como um instrumento viável
de comunicação das preferências do povo e de seus representantes com o STF. Dessa forma, tem-se uma
espécie de accountability e uma abertura do processo de interpretação e aplicação da Constituição (BRAN-
DÃO, 2012, p.304-305).
3. A REAÇÃO/SUPERAÇÃO LEGISLATIVA;
Tendo em vista que as decisões do controle de constitucionalidade não vinculam o Poder Legislativo,
como já mencionado, então entende-se como natural a ocorrência de uma eventual reação com o objetivo de
superar tais decisões. Assim, tem-se a chamada Reação ou superação legislativa da jurisprudência.
Reação legislativa ou superação legislativa da jurisprudência é o ato praticado pelo Poder Legislativo
em contrariedade às decisões do Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade. É o que tem
sido considerado como sendo uma espécie de “ativismo congressual”. Sob esse ponto de vista o Congresso
Nacional visa reverter as decisões de inconstitucionalidade do STF, onde fiquem evidentes situações de au-
toritarismo judicial ou comportamento antidialógico, incompatível com a separação de poderes. Pode ocorrer
por meio de Emenda à Constituição ou por meio de edição de lei ordinária superadora. Sobre a temática
assim se pronunciou o Ministro Luiz Fux (2015, p.4) , relator da ADI 51052
:
Por uma vertente descritiva, há diversos precedentes de reversão legislativa
a decisões do Supremo Tribunal Federal, seja por emenda constitucional,
seja por lei ordinária, que per se desautorizariam a concepção de última
palavra definitiva. Essa práxis dialógica, além de não ser incomum na
realidade interinstitucional brasileira, afigura-se perfeitamente legítima – e,
por vezes, desejável –, estimulando prodigioso ativismo congressual, desde
que, é claro, observados os balizamentos constitucionais.
De início, pode-se entender que uma situação de autoritarismo judicial ou comportamento antidia-
lógico esteja relacionada com uma decisão classificada de ativista, mas nem sempre uma decisão tida por
ativista, necessariamente, significa um autoritarismo judicial ou um comportamento antidialógico, já que
muitas vezes esses tipos de decisão visam salvaguardar direitos fundamentais ou proteger as regras do jogo
democrático. Ou seja, são decisões necessárias às concretizações de determinados direitos.
Na decisão supramencionada o Tribunal buscou delimitar o espaço de conformação do legislador
para proceder às correções jurisprudenciais. Para tanto, fez uso de dois argumentos, o primeiro foi de que, do
ponto de vista do Estado de direito, não se quer deixar vulnerar o conteúdo da Constituição, e o segundo, do
ponto de vista democrático, pretende-se não fossilizar o sentido das disposições constitucionais. Percebe-se
que foi o próprio Tribunal o responsável por tornar mais clara as limitações à reação legislativa, baseado em
sua própria jurisprudência.
A Constituição de 1988 confiou ao STF a faculdade de invalidar qualquer lei ou ato normativo prove-
niente das instâncias políticas majoritárias. Nesse caso, o Tribunal exerce uma de suas funções que é a con-
tra majoritária. O que sob a ótica formal tornaria o Tribunal o detentor da última palavra. Tudo isso porque,
de um ponto de vista democrático, os seus pronunciamentos não se sujeitam a qualquer controle posterior.
Ocorre que tal entendimento se mostra equivocado, como bem salienta o Ministro Luiz Fux (2015, p.4) em
seu voto, e assevera:
Sucede que, a despeito desse arranjo, não se pode advogar que o arquétipo
constitucional pátrio erigiu um modelo de supremacia judicial em sentido
2  As disposições impugnadas na referida ADI decorreram de superação legislativa da interpretação conferida pelo Supremo Tri-
bunal Federal ao art. 47, § 2º, II, da Lei nº 9.504/97, nas ADIs 4.430 e 4.795, ambas de relatoria do eminente Ministro Dias Toffoli.
Naquela oportunidade, o Plenário deu interpretação conforme ao indigitado preceito da Lei das Eleições, no afã de salvaguardar
aos partidos novos, criados após a realização de eleições para a Câmara dos Deputados, o direito de acesso proporcional aos dois
terços do tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão. Meses depois, o Congresso Nacional editou a Lei
nº 12.875/2013, a qual veiculava as disposições combatidas na ADI 5105/DF.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
forte ( ou material), de vez que, além de equivocada, sob a ótica descritiva,
não se afigura desejável sob o ângulo prescritivo.
Os mecanismos por meio dos quais o Congresso Nacional pratica esse “ativismo congressual” são as
Emendas Constitucionais e as Leis Ordinárias, cada qual com suas limitações. No caso das “emendas su-
peradoras”, essas encontram obstáculos, e poderão ser declaradas inconstitucionais, quando não respeitar
as cláusulas pétreas ou o procedimento necessário para a sua aprovação, conforme previsão do art. 60 da
CFRB/88. Ou seja, quando houver desrespeito aos limites materiais (cláusulas pétreas) , formais, objetivos e
subjetivos, e circunstanciais, aos quais o poder reformador está submetido. Aliás, a exemplo do que já acon-
tece normalmente com as emendas. Sendo que no caso ora apresentado, ela visa superar jurisprudência do
STF sobre determinada matéria.
Poder-se-ia considerar esse como sendo um caminho mais curto para mudar o entendimento firma-
do no âmbito do STF que tenha causado alguns dissabores. Ocorre que uma “emenda superadora” não pode
simplesmente visar tal objetivo sem que para isso apresente significativas justificativas e excelentes argu-
mentos passíveis de contribuir, verdadeiramente, para a solução mais adequada de determinada controvérsia
constitucional. Sob pena de ser taxada de puro revanchismo ou de instrumento na disputa por mais poder
político.
No que diz respeito aos limites materiais, não fica claro no julgamento mencionado, mas entende-se
que tal limitação compreende tanto as cláusulas pétreas explícitas quanto as implícitas. Sobre as “emendas
superadora”, WILLEMAN (2014, p. II-16), assim se posiciona:
À luz do modelo constitucional brasileiro de 1988, fortemente baseado na
supremacia judicial da interpretação constitucional, a resposta do legislativo
a uma decisão do STF em matéria constitucional demanda, via de regra, a
atuação do poder constituinte derivado, por meio da aprovação de emenda à
Constituição. Assim, o Congresso Nacional manifesta sua divergência para
com a interpretação conferida pelo STF a uma norma mediante a reforma
do próprio parâmetro de controle, com a ressalva de que tal expediente ape-
nas se revela possível nos casos em que não haja qualquer cláusula pétrea
envolvida.
Em seu voto na ADI 5105/DF o Ministro busca inventariar todas as hipóteses de reação legislativa
pela via das emendas superadoras e para isso enumera alguns casos paradigmáticos como as EC’s 41/20033
,
52/20064
, 57/20085
e a 58/20096
. Todas sofreram uma apreciação posterior perante o tribunal, embora não
tivessem sido capazes de mudar a jurisprudência firmada e terem sido declaradas inconstitucionais por
violarem os limites há pouco mencionados. Mas serviram como tentativas de promoção de superação da
jurisprudência do Tribunal que atestam a ocorrência, legítima, da prática da reação legislativa. Há, porém,
3  [...]a EC nº 41/2003 dispôs expressamente que as vantagens pessoais estariam albergadas no cômputo do teto remuneratório,
bem como consagrou a autoaplicabilidade do novo teto, em tentativa de superar o entendimento fixado por esta Suprema Corte,
que apontava exatamente em sentido oposto.
4  A mencionada EC estabeleceu a plena e imediata autonomia dos partidos políticos de formarem coligações sem vínculos entre
as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal e o Tribunal, na ADI nº 3.685, entendeu pela verticalização
das coligações partidárias para as eleições gerais de 2006, prestigiando, em consequência, a interpretação fixada pelo Tribunal
Superior Eleitoral ao art. 6º da Lei das Eleições, materializada na Resolução nº 21.002/2002 (STF, ADI nº 3.685, rel. Min. Ellen
Gracie, DJ de 10/08/2006).
5  Referida emenda exsurgiu no contexto em que reconhecida, pelo STF1, a inertia deliberadi do Congresso Nacional para pro-
mulgar a Lei Complementar, a que se refere o art. 18, § 4º, da CRFB (redação dada pela EC nº 15/96), que deveria disciplinar os
critérios de criação dos municípios.
6  A Emenda Constitucional nº 58/2009 também representa hipótese de correção legislativa, na medida em que objetivou su-
perar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no RE nº 197.917/SP, rel. Min. Maurício Corrêa (Caso Mira Estrela) e,
posteriormente, na ADI nº 3.345, rel. Min. Celso de Mello.
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outros casos em que houve a buscada reversão jurisprudencial, são exemplos as emendas 19/19987
, 29/20008
e 39/20029
. E como não houve ofensas aos limites já mencionados, não restou alternativa ao Tribunal que
não a de aceitar a manifestação legítima, do Poder Constituinte reformador como tendo o argumento mais
adequado.
Em se tratando das leis ordinárias superadoras, essas deverão comprovar que as premissas fáticas e/
ou jurídicas sobre as quais se fundaram a decisão do STF no passado, deixaram de existir. Nesse último caso,
em que há colisão com a jurisprudência do Supremo, a lei nasce com uma presunção relativa de inconstitu-
cionalidade que deverá ser aferida por meio próprio, embora mais rigoroso, e não tida por inconstitucional de
pronto, tendo em vista o potencial construtivo da espécie. Quando se tratar de lei ordinária superadora como
assevera FUX (2015, p.17) “caberá ao legislador o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção
do precedente se afigura legítima”.
Deve-se atentar ao fato de que se assim proceder, o Legislativo poderá contribuir para que haja uma
mudança de entendimento jurisprudencial ou pode ser que a lei superadora sirva apenas para que o Tribunal
possa confirmar que o seu argumento é o mais acertado. O que não se pode negar é esse ambiente de diálogo
entre os Poderes. Esse também é o entendimento adotado por Rodrigo BRANDÃO (2012, p.302), in verbis:
Desta forma, tanto na hipótese de lei idêntica à declarada inconstitucional
pelo STF quanto na de lei que veicule interpretação constitucional diversa
da atribuída pelo STF, deveria o Tribunal reexaminar o conteúdo das novas
leis, podendo manter o seu entendimento anterior (declarando, portanto, a
inconstitucionalidade das leis) ou aderir às novas razões trazidas pelo legis-
lador( pronunciando, assim, a sua constitucionalidade). Contudo, tais leis
nasceriam presunção relativa de inconstitucionalidade, diante da sua incom-
patibilidade com a atual interpretação constitucional do STF.
O relator também menciona um caso paradigmático em que a reação se deu por meio de lei ordinária,
como é o caso da Lei nº 10.628/200210
que tivera sua constitucionalidade questionada na ADI 2797, DJE
19/12/2006, cuja relatoria coube ao Ministro Sepúlveda Pertence. O caso merece tal destaque porque na
ocasião de seu julgamento foram apresentados vários argumentos e fundamentos, os quais tornam evidente
que ao legislador é franqueada a capacidade de interpretação da Constituição, a despeito de decisões de in-
constitucionalidade do STF. Da análise dos citados diplomas, o Ministro relator chega a seguinte conclusão:
7 “Por meio da Emenda Constitucional n. 19/98, conhecida como ‘reforma administrativa’, o legislador constituinte derivado
claramente pretendeu revisitar a interpretação conferida pelo STF à abrangência do denominado teto remuneratório do funcio-
nalismo público. Isso porque, de acordo com a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal no julgamento da ADI n. 14, não
deveriam ser computadas, para fim de aferição do teto previsto no artigo 37, inciso XI, da CRFB, as vantagens de caráter pessoal.
Em resposta, a Emenda Constitucional n. 19/98, dentre outras providências, alterou a norma para deixar expresso que as referidas
vantagens de índole pessoal incluem-se no limite máximo remuneratório.” WILLEMAN (2014 p. II-17)
8  “Da mesma forma, a Emenda n. 29/2000 traduziu inequívoca reação legislativa à jurisprudência firme do STF no sentido da
inconstitucionalidade de alíquotas progressivas de IPTU que levassem em consideração a capacidade econômica do contribuinte.
De acordo com o pacífico entendimento da Corte, sendo o IPTU um imposto de natureza real, a progressividade de suas alíquo-
tas não poderia decorrer de critérios atinentes à capacidade econômica do contribuinte, admitindo-se a progressividade apenas
para o fim extrafiscal de assegurar o cumprimento da função social da propriedade (à luz do artigo 182, §4º, inciso II, da CRFB).”
WILLEMAN (2014, p. II-17)
9 “ Por fim, também a Emenda Constitucional n. 39/2002 pretendeu reverter um posicionamento do STF, novamente em maté-
ria tributária. Tratava-se, dessa vez, de descontentamento com os precedentes – sumulados no Enunciado n. 67049 – do Tribunal
que rejeitavam a possibilidade de o serviço de iluminação pública ser custeado por meio de taxa. Como forma de contornar o en-
tendimento consolidado, aprovou-se a referida emenda que expressamente passou a contemplar a possibilidade de instituição de
contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública – em franca reação à jurisprudência constitucional que considerava
que o serviço deveria ser suportado por meio da receita de impostos.” WILLEMAN (2014, p. II-18)
10  Mencionado diploma alterou o art. 84, §§ 1 e 2º, do Código de Processo Penal, a fim de restabelecer o foro por prerrogativa de
função a ex-detentores de cargos ou mandatos eletivos. À época, a orientação consolidada na Corte era no sentido de que o término
do mandato implicaria, consequentemente, a perda do foro aos ex-ocupantes de cargos político-eletivos, orientação firmada pelo
STF no julgamento da Questão de Ordem no Inquérito nº 687, rel. Sydney Sanchez, DJ de 25/08/1997, e que culminou, como
todos sabem, com o cancelamento da Súmula nº 394. Na ocasião, o referido diploma foi declarado inconstitucional por apresentar
vício formal.
243
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
[...] (i) o Tribunal não subtrai ex ante a faculdade de correção legislativa
pelo constituinte reformador ou legislador ordinário, (ii) no caso de reversão
jurisprudencial via emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá,
nas hipóteses estritas, de ultraje aos limites preconizados pelo art. 60, e seus
§§, da Constituição, e (iii) no caso de reversão jurisprudencial por lei ordi-
nária, excetuadas as situações de ofensa chapada ao texto magno, a Corte
tem adotado um comportamento de autorrestrição e de maior deferência às
opçõespolíticas do legislador. Destarte, inexiste, descritivamente, qualquer-
supremacia judicial nesta acepção mais forte. ( ADI 5105-DF,2015, p.10)
Há de se pontuar a diferença existente entre uma emenda constitucional superadora e uma lei or-
dinária superadora, além de se tratarem de espécies normativas distintas. Na primeira há uma alteração
formal, tendo em vista que esse é o mecanismo habitual por meio do qual o Poder Constituinte reformador
se manifesta e mantém a Constituição atualizada, enquanto na segunda há uma alteração interpretattiva
do sentido que fora atribuído a determinada norma pelo Tribunal, ou seja, uma mutação constitucional por
iniciativa do legislador11
. A esse propósito, assim se pronunciou BRANDÃO (2012, p.307), in verbis:
Note-se, porém, que há diferenças significativas em relação à reversão da
jurisprudência do STF por emenda constitucional e por lei ordinária. Na
primeira hipótese, há alteração formal da Constituição ,de maneira que ao
alterar-se o dispositivo constitucional interpretado pelo STF, modifica-se a
interpretação final.
O ministro FUX (2015, p.17), baseado na doutrina de Conrado Hübner Mendes, concebe o STF
como um catalisador deliberativo quando se funda em premissa dialógica e plural de interpretação da Consti-
tuição. Dessa forma, promove uma interação e o diálogo institucional, maximizando a qualidade democrática
na obtenção dos melhores resultados no que diz respeito à apreensão do significado da Constituição. E como
bem saliente WILLEMAN (2013, p.II-22),
Não parece legítimo, portanto, simplesmente coarctar a atuação legislativa e
presumir, antecipadamente, que toda e qualquer lei “corretiva” será inevita-
velmente inconstitucional por contrariar a “última palavra” ditada pela Cor-
te Constitucional. Muito pelo contrário, se o legislador ordinário manifesta
divergência com a interpretação conferida pelo STF em determinado tema
constitucional, essa circunstância não pode ser, de plano, ignorada, mere-
cendo ser encarada como uma forma de se fazer instaurar uma dialética que
atue em prol do desenvolvimento do direito constitucional.
Como já fora dito, existe um potencial construtivo na reação/superação legislativa. Isso significa que o
fato de haver a colaboração de dois atores, Legislativo e Judiciário, na busca da democratização da construção
do sentido da constituição, pode-se chegar a uma solução mais adequada. A esse propósito, registra Mariana
WILLEMAN (2013, p. II -22),
A compreensão ora preconizada acerca do fenômeno da reação ou da respos-
ta legislativa à jurisprudência constitucional busca enfatizar o potencial cons-
trutivo que divergências interpretativas naturalmente apresentam e, nesse
sentido, procura maximizar a dinâmica dialógica da jurisdição constitucional
criando espaços que propiciem a formulação de melhores respostas para as
questões constitucionais, combinando as perspectivas de variados atores de
forma a se alcançar equilíbrio em relação ao significado constitucional.
11  “Não se pode desconsiderar a hipótese de o Supremo restar convencido de ter cometido um erro no julgamento anterior,
diante da insistência e, especialmente, das novas razões expostas pelo Legislativo. Tratar-se-ia, no caso, de mutação constitucional
por iniciativa do legislador, já que o sentido da norma constitucional teria mudado, sem alteração do seu texto, por provocação do
legislador.” (BRANDÃO, 2012, p.306)
244
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
4. O EFEITO BACKLASH COMO IMPULSIONADOR DA REAÇÃO/ SUPERAÇÃO LEGISLATIVA;
Este ponto do trabalho pretende discutir a partir de qual momento e por quais razões estaria o Con-
gresso Nacional autorizado a buscar a superação de uma decisão proferida pelo STF no controle de cons-
titucionalidade. As decisões do STF, como já fora dito, produzem efeitos para além do mundo jurídico, elas
também têm desdobramentos políticos e sociais.
Da mesma forma, como já fora mencionado, além de ser o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasi-
leiro, o STF é um Tribunal Constitucional e como tal, tem atuação política. Sendo assim, o que autorizaria o
Congresso Nacional a reagir de modo a reverter o que fora decido no âmbito daquele Tribunal? Do ponto de
vista democrático, essa reação seria legítima? Vimos que sim, essa reação é legítima. Mas quais as motivações
que levariam a uma eventual reação legislativa?
Algo que pode ser considerado um motivador para que se opere a referida reação legislativa é o que
o constitucionalismo democrático norte-americano12
chamou de Efeito Blacklash13 14
. O Backlash é uma
forma de resistência contra decisões judiciais que divergem profundamente dos anseios do povo e expressa o
desejo desse povo, que é livre, de influenciar o conteúdo de sua constituição (POST, SIEGAL, 2007 p; 376).
Como salientam Robert Post e Reva Siegal (2007, p. 374), “If courts interpret the Constitution in terms that
diverge from the deeply held convictions of the American people, Americans will find ways to communicate
their objections and resist judicial judgments.”15
Nas palavras de Mariana Montebello WILLEMAN ( 2013, p.5), o efeito Backlash deve ser “[…] as-
sim considerado, no contexto do direito constitucional, o movimento de intensa reprovação ou rejeição de
uma decisão judicial, acompanhado da adoção de medidas de resistência tendentes a minimizar ou a retirar
sua carga de efetividade.”. Deve-se salientar que a resistência por traz do efeito backlash não alcança toda e
qualquer decisão judicial, é preciso esclarecer que são as decisões proveniente das Cortes ou Tribunais Cons-
titucionais e que tenham alta carga de controvérsia constitucional.
O estudo do efeito backlash não é uma total novidade no cenário internacional, pois o fenômeno da
reação social ou institucional a uma decisão originária do Tribunal Constitucional tem merecido especial
atenção na elaboração doutrinária americana dedicada ao estudo desse fenômeno (VALLE, 2015).
O Backlash desempenha uma importante função, pois desconstrói a presunção usualmente aceita
de que as decisões judiciais em matéria constitucional devem ser objeto de deferência sem protesto do Poder
Legislativo (WILLEMAN, 2013, p.6). Nesse sentido, reconhece-se que o povo pode influenciar no conteúdo
da Constituição, como dito, através seja da sociedade civil organizada, da opinião pública, de agentes go-
vernamentais ou de seus representantes no Poder Legislativo. Aliás, esses últimos, por excelência legítimos
representante do povo, com grandes chances de colher bons resultados na construção do significado da
12  “A premissa sobre a qual se baseia o constitucionalismo democrático considera que a autoridade da Constituição depende de
sua legitimidade democrática, ou seja, de sua capacidade para fazer com que seus destinatários a reconheçam como a sua consti-
tuição. Nessa linha de raciocínio, eventuais resistências a interpretações judiciais podem atuar em fortalecimento da legitimidade
democrática da Constituição e, portanto, a partir de tal perspectiva, o fenômeno do backlash ostenta um potencial construtivo que
não deve ser ignorado.”( WILLEMAN, 2013, p.7)
13  “É de Stern (1965, p. 156-157), ainda na década de 60, o registro da rotinização do emprego da palavra backlash na arena
política norte-americana a partir de reações às decisões da Suprema Corte envolvendo a proteção a direitos civis havidas na década
de 60. Post e Siegel (2007, p. 1-66) por sua vez apontam que a expressão passou a designar contra forças libertas por mudanças
tidas por verdadeira ameaça ao status quo numa reprodução bastante fiel ao conceito metajurídico acima exposto.” (VALLE, 2013)
14  “No plano coloquial, a palavra backlash tem como significado primário um súbito e intenso movimento de reação, em resposta
a uma mudança igualmente brusca na trajetória do movimento. O conceito inicial tem origem na física, aludindo à dinâmica, e se
identifica com a enunciação da terceira Lei de Newton - a toda ação corresponde uma reação igual e em sentido contrário. Esse
mesmo princípio se viu transposto para a realidade social, igualmente associado a uma forte e violenta reação a uma mudança
também intensa e expressiva no ambiente, nas regras de convívio, etc. A transposição desse significado verdadeiramente natura-
lístico da palavra para o campo do direito foi um desdobramento natural de sua incorporação ao universo de relações humanas:
mudanças bruscas num padrão de comportamento têm a aptidão de determinar reação de mesma intensidade, no mais das vezes
em sentido contrário.” (VALLE, 2013)
15  Tradução Livre “Se a corte interpreta a Constituição de modo que divirja profundamente das convicções mantidas pelo povo
americano, eles podem encontrar maneiras de expressar suas objeções e resistir às decisões judiciais.”
245
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Constituição, haja vista os mecanismo que tem a sua disposição (emendas constitucionais e leis ordinárias
superadora) e a possibilidade de trazer novos argumentos à discussão constitucional.
De acordo com George Marmelstein (2015), o efeito backlash é uma espécie de efeito colateral das
decisões judiciais constitucionais polêmicas, decorrente de uma reação do poder politico contra a pretensão
do poder judiciário de controla-lo. Assim resume o autor o processo do efeito backlash:
 (1) Em uma matéria que divide a opinião pública, o Judiciário profere uma
decisão liberal, assumindo uma posição de vanguarda na defesa dos direitos
fundamentais. (2) Como a consciência social ainda não está bem consolida-
da, a decisão judicial é bombardeada com discursos conservadores inflama-
dos, recheados de falácias com forte apelo emocional. (3) A crítica massiva e
politicamente orquestrada à decisão judicial acarreta uma mudança na opi-
nião pública, capaz de influenciar as escolhas eleitorais de grande parcela da
população. (4) Com isso, os candidatos que aderem ao discurso conservador
costumam conquistar maior espaço político, sendo, muitas vezes, campeões
de votos. (5) Ao vencer as eleições e assumir o controle do poder político, o
grupo conservador consegue aprovar leis e outras medidas que correspon-
dam à sua visão de mundo. (6) Como o poder político também influencia
a composição do Judiciário, já que os membros dos órgãos de cúpula são
indicados politicamente, abre-se um espaço para mudança de entendimento
dentro do próprio poder judicial. (7) Ao fim e ao cabo, pode haver um retro-
cesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que a que
havia antes da decisão judicial, prejudicando os grupos que, supostamente,
seriam beneficiados com aquela decisão.
O autor associa a ocorrência do efeito backlash ao ativismo judicial, para ele o referido efeito ocorre
a medida em que o Tribunal decide de modo mais liberal. Acredita que haverá sempre uma reação conser-
vadora a essa decisão ativista. De modo que, do seu ponto de vista, uma decisão ativista é sempre liberal e
uma reação ou superação legislativa é sempre conservadora. Em que pese o brilhantismo e a inteligência do
autor, tal entendimento não merece prosperar, pois olvidou o mesmo que existe o ativismo liberal e o ativismo
conservador. Assim, nem sempre uma reação/superação legislativa será conservadora.
Um outro importante aspecto do efeito backlash é que a possibilidade de sua ocorrência pode ser le-
vado em consideração pelos Tribunais e Cortes constitucionais como um mecanismo influenciador nas suas
decisões. Desse modo, tendo em vista os vários efeitos causados pelas decisões no judicial review, entre eles
o backlash, o Tribunal poderá ter uma postura mais ativa ou mais minimalista a depender do grau do efeito
backlash que elas podem causar. Convém destacar que no Brasil o efeito backlash tem ocorrido, sobretudo
como resposta ao aumento do protagonismo judicial exercido pelo STF. Mas por uma questão de espaço e por
não ser o principal objeto do presente trabalho, não será aprofundado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho demonstrou que não é acertado se falar em “última palavra” sobre a interpreta-
ção da Constituição, pelo menos não materialmente. E que as decisões do controle de constitucionalidade
não vinculam o legislador a ponto de impedi-lo de buscar reverter a jurisprudência do STF no controle de
constitucionalidade.
Também ficou demonstrado que além de legítima, a prática da reação legislativa buscando reverter a
jurisprudência do STF, é um instrumento viável de comunicação das preferências do povo e de seus repre-
sentantes com o Tribunal. Registra-se da mesma forma que existe um potencial epistêmico quando ocorre a
reação legislativa. E por fim, entendeu-se que o efeito backlash pode ser tido como um fator impulsionador
para que haja uma eventual reação legislativa.
246
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Em conclusão, o propósito principal deste trabalho foi discutir, sem pretensão exaustiva, os meca-
nismos que o Poder legislativo se utiliza para reagir à jurisdição constitucional. Bem como a potencialidade
dessa reação para o fortalecimento de um quadro de diálogo entre os Poderes Legislativo e Judiciário, nota-
damente sobre o sentido da Constituição. Verificou-se que tanto por meio de emenda constitucional quanto
pode meio de lei ordinária, essa reação pode ocorrer, e as vezes de modo eficiente, vindo a contribuir signifi-
cativamente para a construção do significado da Constituição.. E que há limitações para ambas as espécies
normativas no que diz respeito ao tema por elas tratados.
REFERÊNCIAS
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fgang Sarlet e Alexandre Coutinho Pagliarini (Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 429-440 – ISBN 978-85-309-
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SARMENTO, Daniel. DE SOUZA NETO, Claudio Pereira. Notas sobre jurisdição constitucional e democracia:
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- vol.06, nº02. ISSN 1516-0351. Disponível em : http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/11773
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WILLEMAN, Marianna Montebello. Constitucionalismo democrático, backlash e resposta legisla-
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247
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
NEGOCIADO X LEGISLADO:
O DIREITO DO TRABALHO EM PERIGO
Fábio Túlio Barroso
Advogado. Pós-Doutor em Direito pela Universidad de Granada, Espanha. Doutor
em Direito pela Universidad de Deusto, Bilbao, Espanha. Especialista em Direito do
Trabalho pela Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP. Presidente Honorário da
Academia Pernambucana de Direito do Trabalho - APDT. Membro Efetivo do Instituto de
Advogados Brasileiros - IAB. Membro Efetivo do Instituto de Advogados de Pernambuco
– IAP (Presidente da Comissão de Direito e Processo do Trabalho). Membro da
Asociación Española de Salud y Seguridad Social. Professor da Universidade Católica de
Pernambuco–UNICAP (Graduação e PPGD). Professor da Faculdade de Direito de Recife
- FDR, da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Professor da Faculdade Integrada
de Pernambuco - FACIPE. Líder do grupo de pesquisa Efetividade das Normas Trabalhistas
na Pós-modernidade.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Contextualização - Disciplinamento da matéria trabalhista; 2. A subver-
são do Direito do Trabalho; 3. Conclusão; Referências Bibliográficas.
INTRODUÇÃO
Como o presente texto tem-se como perspectiva expandir o debate sobre tema atual nas relações de
trabalho, cuja ideia mais recente é a aplicação da regulamentação da matéria por meio de negociação cole-
tiva, impondo um novo panorama em que o conteúdo do que for negociado possui maior segurança jurídica
do que o legislado, supostamente.
A regulamentação autônoma coletiva possui limites e finalidades presentes na estrutura trabalhista e
precisa de discussões com maior acuidade, evitando que se tenha como resultado a afronta ao princípio do
não retrocesso social.
Logo, serão abordados vários elementos de discussão, perpassando o elemento formal e o político-ju-
rídico para que seja possível contribuir e enriquecer o debate.
1. CONTEXTUALIZAÇÃO – DISCIPLINAMENTO DA MATÉRIA TRABALHISTA.
Os Direitos sociais nascem na maioria das vezes de demandas e pressões sociais. Com o Direito do
Trabalho não foi diferente. Com a revolução industrial e as precárias condições de trabalho que os obreiros
eram submetidos, aliado ao abstencionismo estatal e ao contratualismo que permitia que trabalhadores e do-
nos dos meios de produção estabelecessem as regras do pacto laboral, não demorou muito para que houvesse
uma insatisfação generalizada que colocou em risco a continuidade da sociedade capitalista.
Em uma relação em que os sujeitos são naturalmente desiguais, a igualdade formal não pode ser
mantida, em face do natural desequilíbrio da igualdade material.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Cabe o registro ainda que nas sociedades burguesas do período inicial da revolução industrial, havia
o fomento à liberdade individual, com repressão por parte do Estado à liberdade coletiva, motivo pelo qual o
associativismo era caracterizado como delito. (SORIA, José Vida e outros, 2011, pág. 17)
Destaca-se neste universo de situações políticas e normativas o Combina-
tion Act, 1799, no Reino Unido, o Código Penal de Napoleão, em 1810, na
França, o Codice Penale Sardo, 1859, na Itália, dentre outras normas, que
foram emitidas pelos países, que tinham além do ideal liberal a realidade
industrial em plena expansão. Contudo, a mais contundente de todas, foi a
Lei le Chapelier, de 1791 na França, que caracterizou as corporações como
atentatórias aos direitos do homem e do cidadão. (BARROSO, Fábio Túlio.
2010, págs. 24 e 25)
Logo, o ambiente produtivo era desprovido de regulamentações estatais no sentido de limitar a utili-
zação da mão de obra assalariada, que assumia o risco da atividade empresarial junto com o empreendedor,
em uma condição sub-humana de prestação de serviços1
.
Não obstante, a classe trabalhadora passa a ser reconhecida como sujeito coletivo, sobretudo por meio
de elementos ideológicos, como o Manifesto do Partido Comunista de Carl Marx e Friederich Engels de 1848,
cujo panfleto proclamava a classe trabalhadora à união e à reforma da sociedade, sem que houvesse mais a
exploração dos trabalhadores naquelas condições degradantes.
Como aparecimento de uma sociedade de classes, duas obras são de funda-
mental importância para entender os fenômenos consequentes e a sociedade
do trabalho que se instaura a partir de então: O Manifesto do Partido Comu-
nista, de Marx e Engels, em 1848 e a Encíclica Rerum Novarum, do Papa
Leão XIII, em 1891.Ambos documentos relatam a situação e a necessidade
de mudanças no ambiente do trabalho. O Manifesto do Partido Comunista
serve como um instrumento ideológico de agregação da classe trabalhadora
contra a exploração proporcionada pelo capitalista. Propõe a extinção da so-
ciedade de classes e o fim do Estado burguês, por meio da tomada do poder
e a administração dos meios de produção pelos próprios trabalhadores. O
fim do capitalismo.Já a encíclica Rerum Novarum, critica a situação absurda
que os trabalhadores eram submetidos, pleiteando uma alteração da forma
de utilização da mao de obra, de forma predatória ao passo que criticava as
medidas marxistas. (BARROSO, Fábio Túlio. 2010, págs. 26).
Obviamente que a organização dos trabalhadores se sobrepõe a elemento meramente ideológico, mas
a união de interesses levou à exigência de reconhecimento de condições dignas de trabalho, o que paula-
tinamente foi sendo reconhecido pelos Estados industrializados, ao admitir as demandas sociais presentes
nas relações de trabalho e suas representações por meio de entidades de classe (CARINCI, Franco e outros,
2015, pág. 30).
Na Inglaterra, em 1824, com a criação de entidades coletivas de representação de
classes e em 1871, com o Trade Union Act, proporciona-se o movimento sindical
mais antigo do mundo. Na França, a lei Waldeck-Russeau de 1884 revoga a lei le
Chapelier. Na Alemanha, o Código Industrial Prussiano de 1869, admite associa-
ção profissional e em 1919, a Constituição de Weimar expande garantias sociais aos
trabalhadores, possibilitando a liberdade de associação profissional e econômica .
A Constituição do México, mesmo sem ser um país do centro do sistema capitalista
industrial, inova em 1917, sendo o primeiro diploma constitucional a tratar das con-
dições de Trabalho, com proteção ao trabalho assalariado e à organização coletiva de
trabalhadores. (BARROSO, Fábio Túlio. 2010, págs. 26)
1  Sobre as condições de trabalho e discussões sobre o porvir das relações industriais, sugere-se a leitura da obra clássica
Germinal, de Emile Zola. São Paulo, Martin Claret, 2006.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Ocorre que finalmente em 1919, se tem a sistematização do Direito do Trabalho como disciplina
jurídica, com a criação da Organização Internacional do Trabalho – OIT, no Tratado de Versalhes, que esta-
beleceu um padrão internacional de comportamentos entre os sujeitos da relação de trabalho, seja no âmbito
individual, seja coletivo.
Sendo assim, com o intervencionismo estatal cria-se uma sistematização de normas mínimas de pro-
teção social aos trabalhadores para a utilização no âmbito do contrato de trabalho, podendo ser melhorada
por meio de elementos negociais presentes nas normas coletivas, que por sua vez, deverão estabelecer con-
dições de trabalho específicas e mais favoráveis aos trabalhadores, que aqui no Brasil são as convenções e os
acordos coletivos de trabalho.
Desde el entedimiento de la naturaleza contradictória del Derecho del Traba-
jo, ésta, al legalizar a la clase obrera, expresa la explotación de la fuerza de
trabajo y la represión de la acción obrera, al mismo tiempo que expresa y le-
galiza esta lucha y las ventajas que ha permitido conquistar. La tesis central
se resume en la idea de que el Derecho del Trabajo, tal y como existe hoy en
los países del capitalismo maduro, es esencialmente Derecho del capitalismo,
sector específico del orden jurídico de una sociedad altamente compleja y
“pluriconflictual”. (...) el Derecho del Trabajo participa en la misma consti-
tución de las relaciones de producción: expresa y “codifica” las relaciones de
producción al mismo tiempo que las enmascara y posibilita su reproducción.
(...) el ordenamiento laboral es, asimismo, un elemento y una apuesta de la
acción de la clase obrera contra el orden capitalista, y un elemento de lucha
de la clase dominante contra la acción de los trabajadores (PÉREZ, José Luis
Monereo, 1996, págs. 24 e 25).
Ou seja, o Direito do Trabalho como disciplina jurídica consegue manter a ordem econômica vigente
como elemento de manutenção da ordem e da continuidade das relações produtivas, estabelecendo condi-
ções mínimas de dignidade e de inserção do trabalhador na dinâmica do sistema econômico, ao passo que,
ao reconhecer as entidades representativas de classe, os sindicatos, permite e fomenta um constante diálogo
entre os representantes de cada lado da sociedade do trabalho como elemento de pacificação, conhecimento
recíproco e redução de conflitos sociais, tudo isso dentro da legalidade: limita o conflito de interesses na pers-
pectiva de implementar uma ordem civilizatória.
Evidenciou-se inquestionável, em suma, que a existência de um sistema de-
sigual de criação, circulação e apropriação de bens e riquezas, com um meio
social fundado na diferença econômica entre seus componentes (como o
capitalismo), mas que convide com a liberdade formal dos indivíduos e com
o reconhecimento jurídico-cultural de um patamar mínimo para a convivên-
cia na realidade social (aspectos acentuados com a democracia), não pode
mesmo desprezar ramo jurídico tão incrustado no âmago das relações de
trabalho. (DELGADO, Maurício Godinho, 2015, pág. 104).
Ou seja, o Direito do Trabalho por meio de suas normas estabelece elementos mínimos de proteção
social ao trabalhador e estabilidade econômica ao empregador, devendo, em regra, melhorar estas condições
mínimas por meio do negociado, que é acessório do legislado. Apenas excepcionalmente, quando o legislador
permitir, é que poderá haver a redução destas garantias mínimas previstas em lei ao trabalhador, como no
caso das normas do art. 7º, VI, XIII e XIV da Constituição da República.
2. A SUBVERSÃO DO DIREITO DO TRABALHO.
Pois bem, pautado o Direito do Trabalho como instrumento mínimo de inserção social com dignidade
do trabalhador na dinâmica do sistema capitalista, tem-se uma sistematicidade normativa e principiológico
que estabelece os limites mínimos desta proteção social.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A negociação coletiva é fomentada pelo Estado, pautado em valores de tutela aos hipossuficientes
como forma de equilíbrio das relações materiais pelo formalismo legal. Assim, tem-se nos artigos 7º, XVI,
8º, VI, ambos da Constituição da República e 611 e seguintes da CLT os elementos que propiciam a criação
de condições específicas e mais favoráveis para os trabalhadores por meio de procedimentos negociais, que
deverão ser formalizados nas convenções ou acordos coletivos de trabalho.
Estas normas autônomas coletivas servem como instrumento de ratificação da vontade social do
Estado, reconhecendo que o legislado é o mínimo assegurado e que o negociado assegurará a melhoria da
condição social do trabalhador, como previsto e programado na carta maior.
Tal projeção para as normas coletivas deverá ser sistematicamente respeitado e coadunado com os
princípios do Direito do Trabalho, em especial, o da indisponibilidade de suas normas.
O princípio da indisponibilidade dos direitos ou da irrenunciabilidade de di-
reitos baseia-se no mandamento nuclear protetivo segundo o qual não é dado
ao empregado dispor (renunciar ou transacionar) de direito trabalhista, sen-
do, por conta disso, nulo qualquer ato jurídico praticado contra esta disposi-
ção. Tal proteção, que em última análise, visa proteger o trabalhador das suas
próprias fraquezas está materializada em uma série de dispositivos da CLT,
entre os quais se destaca o seu art. 9º. Esta atuação legal impede que o vul-
nerável, sob a miragem do que lhe seria supostamente vantajoso, disponha
dos direitos mínimos que a custa de muitas lutas históricas lhe foram assegu-
radas nos termos da lei. (MARTINEZ, Luciano, 2013, pág. 108)
Ou seja, o conteúdo mínimo previsto em lei não poderá ser modificado, salvo o já previsto na Cons-
tituição, pois a disponibilidade na aplicação da norma trabalhista retira a sua função social de proteção ao
hipossuficiente.
Nessa esteira, fica nítido que qualquer proposta que venha a desvirtuar o elemento tutelar do Direito
do Trabalho, acaba por desqualificar ou desconstituir sua estrutura normativa e principiológica, em defesa
de interesses que desestabilizam a regulação do trabalho sob um supedâneo mínimo de proteção e equilíbrio
social.
Em momentos de crise como a que o país passa no momento, são vários os argumentos, boa parte
deles falaciosos, que a flexibilização das normas trabalhistas trará mais empregos, proteção social e segurança
jurídica, dando protagonismo à negociação coletiva para a sua implementação, clamando por uma “moderni-
zação” das relações de trabalho.
De logo, o sindicato em sua função representativa não possui ferramentas éticas e legais para dispo-
nibilizar o direito em que é mero representante, consonante norma fundamental prevista no art. 8º, III da
Constituição. Por sua vez, a CLT é uma dos diplomas mais atualizados, com menos de 20% do seu conteúdo
original.
O desvirtuamento das funções sindicais para que possa negociar o direito dos trabalhadores, no sen-
tido de disponibilizar a sua aplicação vai no sentido unívoco de potencializar a autonomia privada coletiva e
reduzir o poder e a eficácia das normas legisladas, que passam a ser meros dispositivos ou instrumentos de
combinação de interesses, de acordo com o momento econômico e político que o país atravessa, sem qual-
quer perspectiva de retorno a elementos tutelares aos hipossuficientes.
Ou seja, a ideia de dividir em várias parcelas o gozo das férias e o pagamento do décimo terceiro salá-
rio, por exemplo, rompe com o mínimo de proteção social previsto em lei.
Se estabelece uma lógica de retorno ao abstencionismo estatal no tocante à aplicação das normas,
com um catálogo mínimo de normas trabalhistas que serão utilizadas ao bel prazer das conjunturas, e o mais
grave, com sindicatos com enorme dificuldade de representatividade, o que reverbera em um enorme retro-
cesso social.
251
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Isso acontece de várias formas, com o estabelecimento de variados modelos
de realização. Serve, inclusive para legitimar a execução da política de fle-
xibilidade laboral, como consequência do modelo neoliberal nas relações de
trabalho em uma escala jamais vista na história da humanidade, como resul-
tado da globalização.Essa nova realidade acerca das funções, das matérias
tratadas, dos sujeitos que compõem a negociação coletiva e da intervenção
estatal de forma material e ideológica, estabelece novos fundamentos com
práticas diferenciadas ao citado modelo clássico de relações de trabalho, ao
se utiliza do princípio da adequação setorial negociada em sua vertente ne-
gativa, justamente para estabelecer condições de trabalho in pejus ao traba-
lhador, levando-se em conta a negociação coletiva de primeira geração ou o
modelo industrial de negociação em que são sujeitos as entidades sindicais de
base, geralmente. (BARROSO, Fábio Túlio, 2012, págs. 105 e 106)
Naturalmente, que esta nova função designada às entidades sindicais estabelecem um negativa do
papel representativo presente na estrutura sindical, inserida na sistematicidade das normas de Direito do
Trabalho, pois, caberá a estas entidades defender os interesses, no caso dos trabalhadores, no sentido de
melhoria da sua condição social, em paralelo ao princípio do não retrocesso social, o que deixa de ocorrer.
Por essa razão, comumente são arrolados dois principais conteúdos do princí-
pio da vedação do retrocesso social: Positivo e o negativo. O conteúdo positivo
reside no dever de o legislador perseverar no propósito de ampliar, progressi-
vamente e de acordo com as condições fáticas e jurídicas, o grau de concre-
tização dos direitos fundamentais sociais, “não se trata de mera manutenção
do status quo, mas de imposição da obrigação de avanço social”. O negativo,
refere-se a imposição ao legislador de, na atividade legiferante, respeitar a
não supressão ou a não redução do grau de densidade normativa que os
direitos fundamentais já tenham alcançado por meio do arcabouço normati-
vo-positivo. (MESQUITA, Carolina Pereiria Lins, 2012, pág. 176)
No Brasil, foram várias as alterações ocorridas, sobretudo, a partir da década de 1990 do século pas-
sado, quando a negociação coletiva viabilizou e legitimou a flexibilização do Direito do Trabalho. A título de
exemplo, tem-se o contrato de trabalho por prazo determinado sem causa, pela lei nº 9.601/98, a modificação
do contrato ordinário de trabalho para o contrato a tempo parcial por cláusula negocial, art. 58-A, § 2º da
CLT e a natureza não salarial dos valores decorrentes da participação nos lucros e resultados da empresa,
conforme a lei nº 10.101/00.
No plano constitucional, tem-se a possibilidade de redução das garantias mínimas sociais como ex-
cepcionalidade, como a redução de salários, a compensação de jornada e a alteração dos turnos ininterruptos
de revezamento, como acima indicado os respectivos incisos do art. 7º.
Observa-se em todas as medidas que pretendem estabelecer a prevalência do negociado ao legislado
a tentativa de ruptura do modelo ordinário de relações de trabalho, implementando uma disciplina jurídica
que prima pela falaciosa autonomia e empoderamento das partes negociais, principalmente os trabalhadores,
bastante presente na fonte material do direito que se destaca, a ideologia neoliberal.
Há uma sistemática crítica à necessária proteção do hipossuficiente, como se fosse um pecado capital
a defesa de um sujeito em condição de inferioridade diante do outro.
Na prática, tem-se uma proposta de redução do custo do trabalho, da capacidade de organização
dos trabalhadores, com o fomento a competitividade entre eles, reduzindo a possibilidade de solidariedade e
acuidade do diálogo entre os envolvidos na negociação coletiva.
Nos países que utilizaram o modelo flexível de legislação do trabalho de natureza neoliberal foi obser-
vado uma ruptura da garantia social presente na legislação do trabalho do modelo anterior.
252
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A proposta de se utilizar a legislação do trabalho como mero elemento ilustrativo de direitos, com
ampla disposição na sua aplicação é uma subversão ao conteúdo humanista e democrático das relações de
trabalho o que também vai de encontro com toda estrutura normativa e principiológica da disciplina jurídica
que alberga o trabalhador como sujeito de direitos e obrigação, mas com dignidade.
3. CONCLUSÕES.
Temas desta natureza não comportam conclusões, visto que a matéria trabalhista é a síntese do con-
flito de interesses. Contudo, quando se tem perspectiva de retrocesso social diante da desconstrução de um
modelo de relações jurídica que acarreta dignidade à pessoa é preciso se chegar a sínteses, ainda que mo-
mentâneas, visto que diante de natureza da matéria sempre haverá novas situações dignas de estudo.
Assim, não se pode concordar com proposta de utilização da negociação coletiva como instrumento
de flexibilização do Direito do Trabalho, visto que o elemento mínimo de proteção social ao trabalhador já está
previsto no seu conteúdo legal que não comporta disponibilidade. Qualquer alteração ao conteúdo material
e prático das normas desta natureza somente poderá acontecer para trazer melhoria da condição social, em
absoluta adequação ao princípio do não retrocesso social.
A negociação coletiva não poderá servir como instrumento de legitimação de uma política econômica
que desconsidera a hipossuficiência jurídica e a dignidade do trabalhador, já asseguradas nas normas legis-
ladas e que não poderão ser disponibilizadas. Tampouco poderá servir para a desconstrução do Direito do
Trabalho.
A prevalência do negociado sobre o legislado é a subversão ao conteúdo humanista e democrático das
relações de trabalho o que também vai de encontro com toda estrutura normativa e principiológica da disci-
plina jurídica que alberga o trabalhador como sujeito de direitos e obrigação, mas com dignidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BARROSO, Fábio Túlio. Novos Parâmetros da Negociação Coletiva na Sociedade Contemporânea, em: BAR-
ROSO, Fábio Túlio e MELO FILHO, Hugo Cavalcanti. Direito do Trabalho, Valorização e Dignidade do Tra-
balhador no século XXI. Estudos em Homenagem ao Professor José Guedes Corrêa Gondim Filho, São Paulo,
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AVILÉS, José Antonio fernández, MURRONE, Maria Giovanna, MARTÍNEZ, Luis Angel Triguero, INSUA,
Belén del Mar López, BERNANRDINO, Manuela Durán e SÁNCHEZ, Sonia Fernández. Coordenador da
tradução José Antonio Fernández Aviléz. Granada, Comares, 2015.
DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho, 14ª edição, São Paulo, LTR, 2015.
MARTINEZ, Luciano. Curso de Direito do Trabalho, 4ª edição, São Paulo, saraiva, 2013.
MESQUITA, Carolina Pereira Lins. Teoria Geral do Direito do Trabalho. Pela Progressividade Sociojurídica
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PÉREZ, José Luis Monereo. Introducción al nuevo Derecho del Trabajo. Una Reflexión Crítica Sobre el Dere-
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253
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
SORIA, José Vida, PÉREZ, José Luis Monereo e NAVARRETE, Cristóbal Molina. Manual de Derecho del Tra-
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ZOLA, Emile, Germinal. São Paulo, Martin Claret, 2006.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
NOTAS SOBRE A AUTONOMIA SINDICAL BRASILEIRA
Fábio Túlio Barroso
INTRODUÇÃO
Uma das principais dificuldades dos operadores do Direito Sindical no Brasil após a Constituição da
República de 1988 está relacionada à validade das normas sobre a matéria presentes na CLT, visto que o texto
constitucional estabeleceu ampla autonomia, quando não cabe ao poder público interferência nem interven-
ção na organização sindical.
Isso quer dizer que após a carta maior ser promulgada, deverá prevalecer o conteúdo dos estatutos
das entidades sindicais sobre a lei, em clara obediência à natureza associativa das entidades sindicais.
Contudo, alguns institutos do período anterior à Constituição foram mantidos, como a unicidade e a
contribuição sindical compulsória que contrariam a ampla liberdade sindical, estabelecendo um modelo de
autonomia, visto que estas limitações são de ordem legal, cogentes.
Sendo assim, este texto faz uma análise sobre o modelo de autonomia sindical brasileiro, que precisou
ser aperfeiçoado em alguns momentos pela jurisprudência, no sentido de estabelecer comportamentos ou
limites objetivos à aplicação das normas sindicais no Brasil.
O texto não tem a pretensão de esgotar o tema, apenas apresentar alguns elementos científicos sobre
esta interessante matéria.
1. O SINDICALISMO À BRASILEIRA – AUTONOMIA SINDICAL.
A estrutura sindical brasileira é bastante complexa e por vezes contraditória. Tem-se na sua organi-
zação originária um modelo de organização por unicidade sindical, que é um resquício do corporativismo de
Estado e sua mais recente atualização foi no sentido de reconhecer formalmente as centrais sindicais que
não fazem parte desta estrutura, organizando-se por pluralidade, em absoluto paradoxo técnico entre as for-
mas de associativismo, podendo ser considerado suis generis (BARROSO, Fábio Túlio. 2014).
	 Por sua vez, o Brasil não ratificou a Convenção nº 87 da OIT, que trata da Liberdade Sindical e Proteção ao
Direito de Sindicalização, paradigma normativo internacional sobre a liberdade sindical. Contudo, várias de suas normas
que tratam da matéria do associativismo foram recepcionadas na própria carta magna, sem que houvesse a necessidade
de formalização do teor da referida norma internacional.
	 Nesse espeque, tem-se ainda que o modelo internacional de liberdade sindical está estabelecido em um espectro
normativo ainda mais amplo, com a convergência dos postulados presentes nas Convenções nº 981
e 1352
da OIT,
respectivamente, ambas ratificadas pelo Brasil.
	 A doutrina internacional é neste sentido, ao reconhecer a amplitude das normas de liberdade sindical além do
conteúdo estabelecido em sua norma paradigmática:
1  Aprovação: Decreto Legislativo n. 49, de 27.8.52, do Congresso Nacional. Promulgação: Decreto n. 33.196, de 29.6.53. http://
www.oitbrasil.org.br/node/465.
2  Aprovação: Decreto Legislativo n. 86, de 14.12.89, do Congresso Nacional. Promulgação: Decreto n. 31, de 22.5.91. http://
www.oitbrasil.org.br/node/489
255
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
La aprobación por la OITdel Convenio nº 87, relativo a la libertad sindical y a la protección del derecho de sindicación
(1948), y el Convenio nº 98, sobre aplicación de los princípios del derecho de sindicación y negociación colectiva
(1949), marcará un cambio radical. Estas normas pueden considerarse, pese a sus carencias y contradicciones, como
dos de las piezas normativas más señeras del enterro Derecho Internacional del Trabajo. La preocupación de la OIT
por crear los princípios y las reglas de un nuevo modelo de regulación de la autonomia colectiva de los trabajadores
se proyectará en otros instrumentos normativos posteriores, tanto en Convenios cuanto en Recomendaciones. (...)
Y después con la adicción de nuevos instrumentos, fundamentalmente el Convenio nº 135 (y la Recomendación nº
143), sobre protección y facilidades a otorgar a los representantes de los trabajadores en la empresa (1971), que
configuran, en contraste con la posición anterior del próprio movimiento asociativo, la acción en la empresa como
un contenido esencial de la libertad sindical. (PEREZ, José Luis e outros, pág. 26)
	 A liberdade sindical em seu aspecto mais amplo deverá ser entendida como:
(...) a impossibilidade de qualquer agente estranho, alheio à entidade sindical, seja ele o Estado ou mesmo
qualquer pessoa física ou jurídica, que possa mitigar ou limitar a criação, o exercício de suas atividades
negociais, de filiação ou desfiliação, de representatividade e de administração
A ordem jurídica deverá garantir uma atividade sindical sem que haja intervenções de agentes estranhos
à atividade interna e externa das entidades sindicais, nem tampouco que seja possível a interferência
nas suas atividades específicas no seio da sociedade do trabalho, quando o exercício sindical deverá ser
desatrelado de compromissos ou limitações que tenham por finalidade desvirtuar a representatividade dos
interesses próprios das bases que conformam os coletivos sindicais, econômicos ou profissionais, seja
administrativamente ou judicialmente (BARROSO, Fábio Túlio. 2010, pág. 86)
	 Entendido ainda que a liberdade sindical se estabeleceu como direito fundamental em diversos diplomas
internacionais. (CARINCI, Franco e outros, 2015, pág. 110 e DUARTE, Bento Herculano e MORAES, José Diniz de.
2016, pág. 60).
E é justamente neste contexto em que se enquadra o sindicalismo brasileiro no seu aspecto formal, porém, com
limitações que serão apresentadas a seguir.
	 Como o país não ratificou a norma paradigma internacional sobre liberdade sindical, possui basicamente os
limites do seu modelo de liberdade sindical presentes na unicidade e na contribuição sindical.
	 Não fossem estes limites acima indicado, as demais previsões da referida convenção da OIT foram admitidas no
ordenamento.
Este poder de autorregulamentar-se foi absorvido pela ordem constitucional brasileira, ao estabelecer na
parte final do inciso I do art. 8º, em que estão vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na
organização sindical. Entendido que a interferência é o ato de persuasão, ingerência imaterial e a intervenção
é o ato físico de intromissão nos assuntos sindicais, que tem em sua origem a organização, que é própria de
uma pessoa jurídica de direito privado e que não cabe em hipótese nenhuma estas formas de participação
estatal na vida das entidades sindicais. (BARROSO, Fábio Túlio, 2010, pág. 93)
Quanto à autonomia, há impedimento por norma constitucional de a lei exigir autorização do Estado para criação
de entidade sindical, não devendo haver qualquer “interferência ou intervenção na organização sindical”, como se tem
do art. 8º, I da carta maior. Ou seja, deverá prevalecer o conteúdo do estatuto da entidade sindical sobre a lei, o que
também impede que haja a dissolução ou a suspensão da entidade por via administrativa.
	 Naturalmente que a previsão constitucional está relacionada à impossibilidade de qualquer órgão estatal
definir limites de criação das entidades associativas sindicais por limitativos legais, como havia no período anterior à
Constituição, quando se aplicava o enquadramento sindical do art. 570-577 da CLT.
	 De igual modo, não é possível admitir que a lei venha a exigir autorização do Estado apenas para a criação de
entidade sindical de base, sindicatos, visto que a estrutura sindical brasileira está montada em várias entidades de classe,
cujo sindicato é apenas uma delas.
	 Ora, se no sistema confederativo de organização sindical, onde se aplica a unicidade em qualquer grau, tem-se
256
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
os sindicatos como entidades de base e as federações e as confederações como entidades de grau superior (arts. 516,
533-535 da CLT), todas perfazendo uma estrutura nos termos consolidados antes mesmo da Constituição de 1988. Ou
seja, a carta maior admitiu que o modelo de organização sindical tanto do setor profissional quanto do econômico se
organizam por unicidade, em obediência ao conteúdo do art. 8º, II.
	 Ainda assim, a criação das entidades sindicais caberá aos “trabalhadores e empregadores” interessados, não mais
havendo definição dos critérios pré-existentes ao Estado, quando enquadrava as atividades econômicas e profissionais
nos termos do anexo ao art. 577 consolidado.
	 Ou seja, mesmo com delimitação quantitativa, qualitativa e territorial de organização sindical para as entidades
do sistema confederativo, caberá apenas aos interessados a criação das respectivas entidades, com os limites impostos
pela unicidade sindical, o que vai de encontro ao modelo proposto pela OIT, em sua Convenção nº 87.
	 Por sua vez, quando se fala nas garantias ao emprego aos dirigentes sindicais, tema relacionado à liberdade
sindical individual, tem-se na estabilidade provisória prevista nos arts. 8º, VIII3
da Constituição e 543, § 3º4
da CLT uma
série de limitações estabelecidas pelo Poder Judiciário, em aplicação da autonomia sindical.
	 Inicialmente, porque as normas que tratam tanto do quantitativo de dirigentes, quanto da forma como se dará
a manutenção no emprego são anteriores à Constituição e com forte interferência do Estado no comportamento dos
sindicatos.
	 Assim, as súmulas de nº 197 do STF e 379 do TST, acabam por delimitar de que forma deverá se dar a apuração
da falta grave que justifica a terminação do contrato de trabalho do dirigente estável, como se tem a seguir:
Súmula 197/STF - 12/07/2016. Trabalhista. Sindicato. Sindicalista. Estabilidade provisória. Inquérito para
apuração da falta grave. CLT, art. 543.
O empregado com representação sindical só pode ser despedido mediante inquérito em que se apure falta
grave.
Súmula nº 379 do TST
DIRIGENTE SINDICAL. DESPEDIDA. FALTA GRAVE. INQUÉRITO JUDICIAL. NECESSIDADE
(conversão da Orientação Jurisprudencial nº 114 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005
O dirigente sindical somente poderá ser dispensado por falta grave mediante a apuração em inquérito
judicial, inteligência dos arts. 494 e 543, §3º, da CLT.
	 Cabe especial registro para o fato de a legislação do trabalho não possuir norma específica que trate do inquérito
judicial para o dirigente sindical, utilizando-se as originariamente previstas para os estabilitários decenais.
	 Ainda no tocante à estabilidade provisória dos dirigentes sindicais, chama a atenção o conteúdo da Súmula nº
369 do TST:
Súmula nº 369 do TST
DIRIGENTE SINDICAL. ESTABILIDADE PROVISÓRIA (redação do item I alterada na sessão do
Tribunal Pleno realizada em 14.09.2012) - Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012
I - É assegurada a estabilidade provisória ao empregado dirigente sindical, ainda que a comunicação do
registro da candidatura ou da eleição e da posse seja realizada fora do prazo previsto no art. 543, § 5º, da
CLT, desde que a ciência ao empregador, por qualquer meio, ocorra na vigência do contrato de trabalho.
3  Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
(...)
VIII - é vedada a dispensa do empregado sindicalizado a partir do registro da candidatura a cargo de direção ou representação sindical e, se
eleito, ainda que suplente, até um ano após o final do mandato, salvo se cometer falta grave nos termos da lei.
4  Art. 543 - O empregado eleito para cargo de administração sindical ou representação profissional, inclusive junto a órgão de deliberação
coletiva, não poderá ser impedido do exercício de suas funções, nem transferido para lugar ou mister que lhe dificulte ou torne impossível o
desempenho das suas atribuições sindicais.
§ 3º - Fica vedada a dispensa do empregado sindicalizado ou associado, a partir do momento do registro de sua candidatura a cargo de direção
ou representação de entidade sindical ou de associação profissional, até 1 (um) ano após o final do seu mandato, caso seja eleito inclusive como
suplente, salvo se cometer falta grave devidamente apurada nos termos desta Consolidação.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
II - O art. 522 da CLTfoi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Fica limitada, assim, a estabilidade
a que alude o art. 543, § 3.º, da CLT a sete dirigentes sindicais e igual número de suplentes.
III - O empregado de categoria diferenciada eleito dirigente sindical só goza de estabilidade se exercer na
empresa atividade pertinente à categoria profissional do sindicato para o qual foi eleito dirigente.
IV - Havendo extinção da atividade empresarial no âmbito da base territorial do sindicato, não há razão para
subsistir a estabilidade.
V - O registro da candidatura do empregado a cargo de dirigente sindical durante o período de aviso prévio,
ainda que indenizado, não lhe assegura a estabilidade, visto que inaplicável a regra do § 3º do art. 543 da
Consolidação das Leis do Trabalho.
	 Em especial, nos seus itens I, II e V.
	 Isso porque para as respectivas normas, tem-se muito mais a interpretação teleológica do conteúdo da autonomia,
aliado ao formalismo da norma consolidada.
	 Nesses casos, não era possível estabelecer um paradigma restrito à norma consolidada, visto que o teor do § 5º
do art. 5435
representa uma clara violação à autonomia. De igual modo, o intervencionismo do art. 5226
consolidado
estabelecia limites impensáveis numa realidade de não se ter interferência ou intervenção na organização sindical.
	 Logo, para o TST, deverá haver a comunicação ao empregador para que o mesmo tenha conhecimento da
estabilidade do candidato ou dirigente, de qualquer forma inequívoca, desde que durante o vínculo empregatício.
Contudo, o limite de validade do aviso no curso do contrato esbarra no aviso prévio, visto que a partir de então não
caberá mais pleitear estabilidade, segundo a combinação do conteúdo dos itens I e V da Sumula nº 369.
	 Por sua vez, no tocante ao item II, acabou por estabelecer que o limite que antes era máximo, de 7 (sete)
dirigentes, que, levando-se em conta que o conteúdo da sumula possui natureza normativa, impõe um limite mínimo de
dirigentes, com seus suplentes, que poderá ser ampliado por norma autônoma coletiva; convenção coletiva de trabalho.
	 Isso se dá pela possibilidade de se estabelecer conteúdo mais favorável aos trabalhadores, estabelecendo um
número superior a sete, por meio de autocomposição, com a participação de entidades do setor econômico.
	 Asoluçãoacabousendonormativapelolimitedarazoabilidade,poisnãohaviaqualqueroutroparadigmanormativo
a ser aplicado, ainda que, tal conclusão, stricto sensu, acaba ainda por colidir com a capacidade de autorregulamentação
dos sindicatos, a autonomia sindical, visto que um outro órgão estatal, o judiciário, estabelece limites na organização
sindical.
Outra situação referente a autonomia sindical se deu com o reconhecimento formal das centrais como entidades
desta natureza, por meio da lei nº 11.648 de 2008, deveria haver o mesmo respeito aos elementos de autonomia de
criação das respectivas entidades.
	 Contudo, o posicionamento legal foi diferente. Como se tem dos arts. 2º a 4º7
da referida lei, o poder público
delimitou injustificadamente a qualidade e a quantidade das entidades constitutivas das centrais sindicais, conseguindo
5  § 5º - Para os fins deste artigo, a entidade sindical comunicará por escrito à empresa, dentro de 24 (vinte e quatro) horas, o dia e a hora do
registro da candidatura do seu empregado e, em igual prazo, sua eleição e posse, fornecendo, outrossim, a este, comprovante no mesmo sentido.
O Ministério do Trabalho e Previdência Social fará no mesmo prazo a comunicação no caso da designação referida no final do § 4º.
6  Art. 522. A administração do sindicato será exercida por uma diretoria constituída no máximo de sete e no mínimo de três membros e de
um Conselho Fiscal composto de três membros, eleitos esses órgãos pela Assembleia Geral.
7  Art. 2o Para o exercício das atribuições e prerrogativas a que se refere o inciso II do caput do art. 1o desta Lei, a central sindical deverá
cumprir os seguintes requisitos:
I - filiação de, no mínimo, 100 (cem) sindicatos distribuídos nas 5 (cinco) regiões do País;
II - filiação em pelo menos 3 (três) regiões do País de, no mínimo, 20 (vinte) sindicatos em cada uma;
III - filiação de sindicatos em, no mínimo, 5 (cinco) setores de atividade econômica; e
IV - filiação de sindicatos que representem, no mínimo, 7% (sete por cento) do total de empregados sindicalizados em âmbito nacional.
Parágrafo único. O índice previsto no inciso IV do caput deste artigo será de 5% (cinco por cento) do total de empregados sindicalizados em
âmbito nacional no período de 24 (vinte e quatro) meses a contar da publicação desta Lei.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
afrontar ao mesmo tempo tanto o modelo de liberdade sindical brasileiro previsto no art. 8º da Constituição, quanto o
proposto pela Convenção nº 87 da OIT.
	
	CONCLUSÕES
	 Como se observa, a Constituição estabeleceu limites à intervenção do poder público nas atividades sindicais.
Contudo na aplicação da autonomia sindical, ainda se tem um formal elemento cultural do sindicalismo de Estado no
pais.
	 Tal cultura se observa tanto nas normas interventivas do período anterior à carta maior, quanto na interpretação
jurisprudencial, que acaba por estabelecer paradigmas por meio do modelo anterior de sindicalismo.
	 Na mesma seara, normas atuais também acabam por remanescer na cultura controladora do sindicalismo
brasileiro, como é o caso da lei que reconheceu as centrais sindicais, que incorre em flagrante inconstitucionalidade, ao
afrontar o modelo próprio de liberdade sindical brasileiro e até mesmo o previsto pela OIT..
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Fábio Túlio. Complexidades e Contradições do Sindicalismo Brasileiro. http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/
complexidades-e-contradicoes-do-sindicalismo-brasileiro/14849.
BARROSO, Fábio Túlio. Manual de Direito Coletivo do Trabalho, LTR, São Paulo, 2010.
CARINCI,Franco,TAMAJO,RaffaeledeLuca,TOSI,PaoloeTREU,Tiziano.Colaboradores:BROLLO,Marina,CAMPANELLA,
Piera e LUNARDON, Fiorella. Derecho del Trabajo. 1. El Derecho Sindical. Tradução: AVILÉS, José Antonio fernández,
MURRONE, Maria Giovanna, MARTÍNEZ, Luis Angel Triguero, INSUA, Belén del Mar López, BERNANRDINO, Manuela
Durán e SÁNCHEZ, Sonia Fernández. Coordenador da tradução José Antonio Fernández Aviléz. Granada, Comares, 2015.
DUARTE, Bento Herculano e MORAES, José Diniz de, A liberdade Sindical Como Direito Fundamental e a não ratificação
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FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa Franco e MAZZUOLI, Valério de Oliveira (organizadores). Direito Internacional do
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PÉREZ, José Luis Monereo, NAVARRETE, Cristóbal Molina y VIDA, Maria Nieves Moreno. Manual de Derecho Sindical, 9ª
edição, Granada, Comares, 2014.
Art. 3o A indicação pela central sindical de representantes nos fóruns tripartites, conselhos e colegiados de órgãos públicos a que se refere o
inciso II do caput do art. 1o desta Lei será em número proporcional ao índice de representatividade previsto no inciso IV do caput do art. 2o
desta Lei, salvo acordo entre centrais sindicais.
§ 1o O critério de proporcionalidade, bem como a possibilidade de acordo entre as centrais, previsto no caput deste artigo não poderá prejudicar
a participação de outras centrais sindicais que atenderem aos requisitos estabelecidos no art. 2o desta Lei.
§ 2o A aplicação do disposto no caput deste artigo deverá preservar a paridade de representação de trabalhadores e empregadores em qualquer
organismo mediante o qual sejam levadas a cabo as consultas.
Art. 4o A aferição dos requisitos de representatividade de que trata o art. 2o desta Lei será realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego.
§ 1o O Ministro de Estado do Trabalho e Emprego, mediante consulta às centrais sindicais, poderá baixar instruções para disciplinar os
procedimentos necessários à aferição dos requisitos de representatividade, bem como para alterá-los com base na análise dos índices de
sindicalização dos sindicatos filiados às centrais sindicais.
§ 2o Ato do Ministro de Estado do Trabalho e Emprego divulgará, anualmente, relação das centrais sindicais que atendem aos requisitos de que
trata o art. 2o desta Lei, indicando seus índices de representatividade.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O “DIREITO AO CONFLITO” NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA:
POTENCIALIDADES E RISCOS
Fernanda Fonseca Rosenblatt
Doutora em Criminologia pela University of Oxford (Inglaterra). Professora de Direito
da Universidade Católica de Pernambuco. Orientadora na Iniciação Científica (PIBIC/
UNICAP). Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. ffrosenblatt@unicap.br.
João André da Silva Neto
Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do Grupo
Asa Branca de Criminologia e voluntário na Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP). joao.law.
neto@gmail.com
Maria Júlia Poletine Advincula
Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do
Grupo Asa Branca de Criminologia e bolsista na Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP).
juliapoletine@gmail.com
Pedro Henrique Ramos Coutinho dos Santos
Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do Grupo
Asa Branca de Criminologia e bolsista na Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP). Email:
pedrohrcoutinho@gmail.com
SUMÁRIO: 1. Considerações introdutórias sobre a ineficácia e crise de legitimidade do sistema
penal; 1.1. O “Roubo” dos Conflitos pelo Estado e a Necessidade de Devolução destes às Partes Di-
retamente Envolvidas; 1.2. Do Esquecimento ao Indispensável Protagonismo da Vítima no Processo
Penal; 2. O caso específico da violência doméstica no brasil; 2.1. O Surgimento da Lei Maria da Pe-
nha; 2.2. A Persistência da Violência Doméstica, a Revitimização Secundária e a (In)Eficácia da Lei
11.340/2006; 2.3. A Ação Direta de Inconstitucionalidade 4424 e mais um “Roubo” de Conflitos pelo
Estado; 3. A justiça restaurativa como alternativa aos conflitos de violência doméstica; 3.1. A Experi-
ência Internacional; 3.2. Sobre alguns Riscos da Aposta Restaurativa; 4. Considerações finais sobre
o uso da justiça restaurativa em casos de violência doméstica e a sua operacionalização no brasil;
Referências.
1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE A INEFICÁCIA E CRISE DE LEGITIMIDADE DO
SISTEMA PENAL.
Como bem ressalta Gonçalves (2012, p. 23):
O homem é um ente social e gregário. [...] Entre as necessidades humanas
mais profundas está a do convívio social, a de estabelecer relações com outros
homens, com as mais diversas finalidades e os mais variados graus de inten-
sidade (GONÇALVES, 2012, p. 23).
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Com efeito, é inerente ao ser humano um caráter de socialização essencial à espécie. Estado e Di-
reito, portanto, surgem com o objetivo de controlar a vida em sociedade, de forma a sustentar as relações
interpessoais. Ocorre que as primeiras experiências humanas pautadas em regras de convivência foram in-
troduzida pelo famigerado “Direito Penal do Terror”, assim denominado por ter sido marcado pela “vingança
privada”, caracterizada fortemente pelo arbítrio, o autoritarismo e o punitivismo. Nesse contexto, o conflito já
nascia sendo interpretado de forma negativa: “A vingança e a pena, confundindo-se uma com a outra, redu-
zia-se a um ferimento tal que bastasse para ressarcir a vítima ou seus amigos, ou a dor causada ao ofendido”
(LOMBROSO, 2007, p. 91).
A partir do fracasso dessa lógica, há a necessidade de analisar os conflitos criminalizados à luz da
Criminologia Crítica, pautada na questão dos direitos humanos e na importância de se encontrar alternati-
vas viáveis à justiça meramente retributiva, tão retrógrada e falha. Como possibilidade de mudança, surge a
Justiça Restaurativa, definida por Howard Zehr (2012, p. 49.) como
Um processo para envolver, tanto quanto possível, todos aqueles que têm in-
teresse em determinada ofensa, num processo que coletivamente identifica
e trata os danos, necessidades e obrigações decorrentes da ofensa, a fim de
promover o restabelecimento das pessoas e endireitar as coisas, na medida
do possível.
É justamente diante da possibilidade restaurativa, ou através de “lentes restaurativas” (ZEHR, 2008),
que se pretende, nesse primeiro momento, denunciar a ineficácia e a crise de eficiência do modelo tradi-
cional de justiça criminal. Dentre as mais diversas e possíveis críticas ao sistema penal, entretanto, e já em
vista da temática central do presente artigo, dar-se-á destaque à apropriação dos conflitos pelo Estado e ao
consequente negligenciar da vítima no curso dos processes penais contemporâneos.
1.1 O “ROUBO” DOS CONFLITOS PELO ESTADO E A NECESSIDADE DE DEVOLUÇÃO DESTES ÀS PARTES
DIRETAMENTE ENVOLVIDAS.
Seguindo a linha de pensamento de Christie (1977), é indispensável enquadrar os conflitos como
benéficos para toda e qualquer comunidade que deseje desconstruir, amadurecer e se fazer renovável. La-
mentavelmente, porém, a existência destes é normalmente “sufocada” pelo Estado, o qual concede certo
monopólio de controle aos professional thieves (CHRISTIE, 2004), profissionais especializados em se apro-
priar dos conflitos pertencentes às partes diretamente atingidas por eles. Com efeito, advogados, promotores,
juízes, dentre outros profissionais da “Justiça”, são treinados para “roubar” os conflitos dos jurisdicionados
e “resolvê-los” (na verdade, “decidi-los”) num ritmo e segundo ritos e regras típicas de uma lógica amarra-
da à busca por soluções-padrão e impessoais. Impende destacar, entretanto, que enquanto os profissionais
decidem o que é relevante e pertinente, a vítima e o ofensor são distanciados do – ou silenciados no – seu
próprio caso, de modo que essas partes normalmente não experimentam um senso de “justiça procedimen-
tal” (TYLER, 1990). Por outro lado, a comunidade em nada contribui para o – e nada leva do – processo de
resolução daquele conflito.
Em compatibilidade com essa lógica fria e automatizada, o crime, qualquer que seja ele, ao invés de
representar uma ofensa contra indivíduos, é tradicionalmente (e muito abstratamente) concebido como uma
infração cometida contra o Estado (ROSENBLATT, 2015). A “justiça”, então, é “terceirizada” ao profissional,
representante do Estado, que raciocina em termos de fato típico, antijurídico e culpável, pouco importando
as subjetividades que circundam o caso. Temos por consequência, e no dia-a-dia dos fóruns criminais, a
busca por uma ideia abstrata de “justiça vertical”, aquela que se utiliza da punição para manter o status quo,
qualquer que seja ele. Ocorre que, como bem destacado por Zehr (2012, p. 47), “[a] justiça deve reconhecer
tanto nossa condição de interconexão quanto a nossa individualidade. O valor da particularidade nos adverte
que o contexto, a cultura e a personalidade são fatores importantes que devem ser respeitados”. Nesse ínte-
rim, a Justiça Restaurativa, diferentemente do modelo tradicional de justiça criminal, busca envolver todos
aqueles que tenham interesse no conflito, buscando como principal desfecho a reparação dos danos advindos
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do crime. Desse modo, trata-se de um modelo de justiça “horizontal”, onde os conflitos são “devolvidos” às
partes diretamente afetadas por ele.
1.2 DO ESQUECIMENTO AO INDISPENSÁVEL PROTAGONISMO DA VÍTIMA NO PROCESSO PENAL.
A total “despersonalização” do processo penal causa, dentre outros fracassos e frustrações, o fenôme-
no da “vitimização secundária”. Ou seja, no que a vítima perde seu papel de protagonista dentro do processo
penal, ela sofre duas vezes: pela agressão que lhe foi dirigida (quer dizer, pelo crime sofrido) e pelo confisco
de “seu” conflito pelo Estado (ROSENBLATT, 2015). Segundo Zehr (2012, p. 25),
Não raro as vítimas se sentem ignoradas, negligenciadas ou até agredidas
pelo processo penal. Isto acontece devido à definição jurídica do crime, que
não inclui a vítima. O crime é definido como ato cometido contra o Estado,
e por isso o Estado toma o lugar da vítima no processo. No entanto, em geral
as vítimas têm uma série de necessidades a serem atendidas pelo processo
judicial.
Com efeito, nos processos penais contemporâneos, altamente profissionalizados, a vítima é geral-
mente tratada como uma mera “testemunha”, não como o “ator” central do drama entre ela e o “ofensor”
(CHRISTIE, 2010). Assim, enquanto se brada fazer “justiça” em nome da vítima, suas vontades e necessida-
des, na verdade, são corriqueiramente negligenciadas.
Como ensina Pallamolla (2008, p. 4), tendo como uma das suas inspirações o movimento vitimológico
contemporâneo iniciado nos anos 80, “a justiça restaurativa surge como uma resposta à pequena atenção
dada às vítimas no processo penal”. Com efeito, a Justiça Restaurativa valoriza no processo de resolução de
conflitos a interação entre vítima e agressor, pois considera que, a partir do diálogo, os sentimentos indivi-
duais são expostos e debatidos – e, assim, os danos provocados pelo crime, esclarecidos e enfrentados. E por
promover o diálogo entre as partes diretamente afetadas pelo conflito criminalizado, trata-se de um modelo
de justiça espontaneamente mais atento às necessidades das vítimas. Nas palavras de De Vitto (2005, p. 48),
A Justiça Restaurativa representa um novo paradigma aplicado ao processo
penal, que busca intervir de forma efetiva no conflito que é exteriorizado pelo
crime, e restaurar as relações que foram abaladas a partir desse evento. As-
sim, e desde que seja adequadamente monitorada essa intervenção, o mode-
lo traduz possibilidade real de inclusão da vítima no processo penal sem abalo
do sistema de proteção aos direitos humanos construído historicamente.
Com efeito, no processo restaurativo, o objetivo de reconduzir a vítima a um papel que um dia lhe
foi retirado é o de conhecer e tornar evidente qual foi o dano e como é possível a sua reparação. Nesse pro-
cesso, as vítimas são empoderadas através da valorização de sua contribuição e participação na definição de
necessidades e resultados ou decisões (ZEHR, 2012, p. 79). Ademais, para a Justiça Restaurativa, além da
chamada vítima primária, que é a mais atingida pela ofensa, seus familiares, testemunhas e a comunidade
em geral também sofrem e devem ser incluídas no processo de resolução do conflito. O crime, como sugerido
acima, é tido como um ato praticado contra indivíduos – e não abstratamente concebido como um atentado
contra o Estado. O Estado, portanto, deve investigar os fatos, mas não é enquadrado como vítima, apenas um
mero facilitador.
Para que a vítima se sinta parte integral do processo, ela precisa ter acesso a informações judiciais de
forma clara e objetiva. Sua narrativa da história deve ser considerada como elemento essencial, de forma que
haja uma reflexão terapêutica do ato sofrido. A questão do empoderamento, porém, é ainda mais importante,
pois
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Direito(s) em debate.
Em geral as vítimas sentem que a ofensa sofrida privou-lhes do controle so-
bre sua propriedade, seu corpo, suas emoções, seus sonhos. Envolver-se com
o processo judicial e suas várias fases pode ser uma forma significativa de
devolver um senso de poder às vítimas (ZEHR, 2012, p. 26).
É óbvio que a ampliação do poder das vítimas associada ao poder estatal pode resultar em uma socie-
dade ainda mais punitiva (CHRISTIE, 2010, p. 118), o que seria incompatível com a índole crítica – e, até,
abolicionista (ACHUTTI, 2014) – da Justiça Restaurativa. Como esclarecido por Christie (2010, p. 118), é
importante destacar que
A diferença essencial entre os encontros de resolução alternativa de conflitos
e os nas cortes penais é a questão do poder de punir. Punição significa trans-
ferir dor, intencionalmente como dor. Em encontros de justiça restaurativa
não estamos querendo criar dor, mas criar entendimento. Sem espada [refe-
rência ao símbolo da Justiça no Direito], e consequentemente sem necessi-
dade de prevenir o abuso da espada.
Com efeito, o processo restaurativo
[...] atravessa a superficialidade e mergulha fundo no conflito, enfatizando
as subjetividades envolvidas, superando o modelo retributivo, em que o Es-
tado figura, com seu monopólio penal exclusivo, como a encarnação de uma
divindade vingativa sempre pronta a retribuir o mal com outro mal (PINTO,
2005, p. 21).
Mas seria o modelo restaurativo indicado aos casos de violência doméstica? Antes de problematizar
essa questão e ensaiar caminhos para uma possível resposta, é importante compreender a ineficácia do sis-
tema penal em relação especificamente aos casos de violência doméstica no Brasil.
2. O CASO ESPECÍFICO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL.
Para falar sobre violência doméstica no Brasil e, principalmente, sobre o tratamento legal (em es-
pecial, penal) dado a esse tipo de conflito em nosso País, é necessário lembrar alguns aspectos em torno do
movimento feminista brasileiro, peculiarmente diferente em relação ao tempo e às interações sociais com
outros movimentos sociais se comparado com os movimentos feministas da América do Norte e da Europa
(CAMPOS; CARVALHO, 2006).
No Brasil, o movimento feminista surgiu na década de 70, mas não se estabeleceu tão radical como
os movimentos de mulheres de outros países. Ele seguiu, aqui, uma agenda política compatível com outros
movimentos, representando, muitas vezes, uma junção de ideias ou, de fato, lutas semelhantes em comuni-
cação (CAMPOS; CARVALHO, 2006). Muito embora não se possa falar de um feminismo apenas1
, dentre às
suas associações, o movimento feminista brasileiro, de um modo geral, aliou-se à sede por “justiça” própria
dos movimentos em prol do recrudescimento do Direito Penal. Quer dizer, a luta pelo respeito aos direitos
constitucionais das mulheres quase sempre passou, em nosso País, pela ideia de mais Direito Penal, mais
polícia, mais punição e mais prisão.
Várias críticas foram tecidas a essas correntes do movimento feminista por se associarem a um mal
(o Sistema de Justiça Criminal) como forma de expurgar outros males (dentre eles, a violência doméstica).
Para Andrade (1999), por exemplo, enquanto as mesmas mulheres, tão progressistas, lutavam também por
uma maior intervenção penal em determinadas áreas (dentre elas, a da violência doméstica), existia, ali,
um caráter ambíguo em sua busca por maior liberdade, reconhecimento e proteção. Com efeito, a sua força
reivindicatória e o seu caráter libertário, quando unidos com um movimento tão retrógrado como o penal,
1  De fato, deveria se falar em diferentes correntes ou em diferentes feminismos brasileiros (ANDRADE, 1999).
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acabaram por se converter na revitimização das mulheres que recorrem à polícia e acabam por conhecer,
muitas contra a sua vontade, as Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.
Mas por que retrógrado e por que dizer que a busca por proteção não deveria ser feita pelo âmbito do
sistema penal? Nas palavras de Andrade (1999, p. 112-113):
Isto se trata de um subsistema de controle social, seletivo e desigual, tanto de
homens quanto de mulheres e porque é, ele próprio, um sistema de violência
institucional, que exerce seu impacto também sobre as vítimas. E, ao incidir
sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de controle social (Lei,
polícia, Ministério Público, Justiça, prisão), que representa, por sua vez, a
culminação de um processo de controle que certamente inicia na família, o
sistema penal duplica, em vez de proteger, a vitimização feminina.
No âmbito da violência doméstica contra a mulher, e ignorando esse alerta, surge a Lei Maria da Pe-
nha, festejada justamente pelo enrijecimento penal que promove.
2.1 O SURGIMENTO DA LEI MARIA DA PENHA.
A Lei 11.340/2006, mais conhecida pela alcunha de “Lei Maria da Penha”, surgiu num momento
histórico de clamor público incitado pela mídia, e representou, politicamente, uma ação de cunho eleitoreiro
em resposta àquele clamor. Mas não foi esta Lei a primeira tentativa de resposta ao problema da violência
contra a mulher.
Num passeio muito rápido pela história, e já na década de 80, merece destaque a consolidação das
chamadas “Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher”, as quais surgiram em resposta àquelas
pressões feministas da década de 70. Já naquela época, percebeu-se que as mulheres passaram a buscar es-
sas delegacias, não para criminalizar o seu companheiro, mas para criar um ambiente no qual o seu agressor
fosse intimidado. Uma forma de coação informal ou até de mediação (MELLO, 2015).
Na década de 90, a criação dos Juizados Especiais pela Lei 9099/95 abarcou um grande número de
crimes, definidos como sendo de menor potencial ofensivo. O imenso número de casos evidenciados, a partir
destes Juizados, de mulheres que sofriam algum tipo de violência, serviu para descortinar algo que antes en-
contrava-se mantido dentro dos lares por uma sociedade extremamente patriarcal: a violência praticada pelos
companheiros, pais, pelo homem contra a mulher (MELLO, 2015). Contudo, conforme destacado alhures,
[...] por mais que os JECrims tenham implicado no desvelamento da violên-
cia doméstica, tal fato não foi capaz de minimizá-la ou de encontrar outras
formas de tratamento preventivo ou repressivo [...]. A substituição das Penas
Privativas de Liberdade por Penas Restritivas de Direitos (na maioria das ve-
zes, penas de multa e pagamento de cestas básicas) foi vista por muitos como
uma banalização da violência de gênero. E também foi criticado o fato de o
conceito de Crime de Menor Potencial Ofensivo não compreender as particu-
laridades da violência doméstica (BARBOSA et al., 2015, p. 4).
A impossibilidade de visualização das nuances da violência doméstica e consequentemente uma so-
lução para o conflito, conjuntamente com a pressão política, acabara por fazer com que o Governo tomasse
uma atitude: a criação da Lei Maria da Penha.
Tendo sido muito bem recebida por tratar-se de uma lei de caráter protecionista (pela facilidade no
acesso à justiça e a possibilidade da aplicação de medidas protetivas), a Lei Maria da Penha trouxe maior
enrijecimento penal. Os processos que antes se encontravam na jurisdição dos Juizados Especiais Criminais
foram destes retirados, sendo “escanteadas” as medidas despenalizadoras e entrando em seu lugar penas
mais rígidas abstratamente.
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2.2 A PERSISTÊNCIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, A REVITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA E A (IN)EFICÁCIA DA
LEI 11.340/2006.
Em quase uma década de Lei Maria da Penha, a violência doméstica contra a mulher continua la-
tente. Quer dizer, mesmo com as medidas adotadas a pedido de movimentos sociais, principalmente segui-
mentos do movimento feminista, este tipo de violência continua a ser um grande problema no Brasil. Com
efeito, uma das primeiras cidades a criar o Juizado da Mulher, a cidade do Recife, que hoje sedia duas Varas
de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (VVDFM), serve para mostrar três problemas: a violência
persiste; existe uma revitimização das mulheres que frequentam essas Varas; e a Lei Maria da Penha, para
muitas, é ineficaz (MEDEIROS, 2015).
Em pesquisa empírica concluída pela pesquisadora Medeiros (2015)2
naquela comarca, evidenciou-
-se que a regra do cárcere necessário dentro das VVDFMs não respeita a vontade das mulheres enquanto
age da forma mais agressiva possível. Ao contrário, ao longo do processo penal orquestrado pela Lei Maria da
Penha, o que ocorre é o silenciamento quase por completo destas mulheres, as quais, ironicamente, procu-
ram na Lei um lugar para ter sua voz ouvida, para encerrar o ciclo de violência, e recebem, em troca, mais
violência contra aqueles que ama e, de fato, contra si mesmas.
A forma como a Lei atua faz com que a mulher seja resumida à mera informante. Dentro da sala de
audiência, um momento que deveria ser de fala e protagonismo, vemos o imperialismo de um Sistema que
é guiado por fatos típicos e sua adequação a um artigo específico do Código Penal. As pessoas que ali estão,
suas vidas e singularidades são subsumidas e suas vozes roubadas. Mulheres que procuram apenas o cessar
da violência acabam por deparar-se com uma triste realidade: seu companheiro de anos, muitas vezes de
décadas, será preso provisoriamente por uma injúria ou uma ameaça (BARBOSA et al., 2015; MEDEIROS,
2015; MELLO, 2015).
Partem então, estas mesmas mulheres, em busca da liberdade daquele que lhe agrediu. Dentro das
Varas são tidas como loucas, tratadas como irracionais por não entenderem o “bem” que lhes foi feito. São,
em outras palavras, revitimizadas. Sofrem pela violência e pelas perdas promovidas pelo processo penal,
além das consequências sociais. Com efeito, muitas são economicamente dependentes daquele homem que
foi preso inteira ou parcialmente. Sua renda é baixa e existem filhos para criar. O Sistema de Justiça Criminal
cria, então, um problema maior que o antes existente (BARBOSA et al., 2015; MEDEIROS, 2015; MELLO,
2015).
Corroborando com o exposto, Barbosa et al. (2015) afirma que:
O Sistema Penal foi criado em uma lógica que trabalha com delitos que en-
volvem partes que pouco se conhecem (ou nem se conhecem) e lida com
tais delitos de forma objetiva, pragmática. Entretanto a violência doméstica
foge completamente a essa lógica. Trata-se de um crime que envolve, em sua
maioria (73,7%), pessoas que já foram ou ainda são parceiros íntimos e que,
por sua vez, possuem um forte laço afetivo, com o qual o Sistema Penal não
está preparado para trabalhar. E ainda, dos homens e mulheres que tiveram
um relacionamento íntimo, 64% deles tiveram filhos; o que só tende a au-
mentar a ligação afetiva entre vítima e suposto agressor.
Nesse contexto, as mulheres, em grande parte, procuram a Justiça como forma de obter as medidas
protetivas de urgência, sendo que o Sistema de Justiça Criminal, engessado pelo seu ímpeto encarcerador,
atrela as medidas protetivas à existência de uma ação penal, ignorando o fato de que a vontade das mulheres,
no mais das vezes, não é de continuar essa ação e sim encerrá-la.3
2  Um dos co-autores do presente artigo, o pesquisador João André da Silva Neto, participou ativamente da referida pesquisa,
contribuindo para a coleta e a análise dos dados empíricos aqui comentados.
3  A pesquisa de campo realizada por Barbosa et al. (2015) evidencia que 43,5% dos processos observados foram extintos sem
resolução do mérito por motivos diretamente relacionados à vontade da mulher: 29,8% por retratação; 10,1% por decadência; 2,4
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Mostra-se a Lei, então, ineficaz para o que se propõe. Aliás, atinge, a Lei, um efeito contrário: por
temer as reações do Sistema de Justiça Criminal, muitas mulheres acabam por não comunicar a existência
das agressões, sendo a Lei, que veio para proteger, na verdade, um dos fatores de perpetuação da violência.
2.3 A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4424 E MAIS UM “ROUBO” DE CONFLITOS PELO
ESTADO.
Mesmo diante de todos esses fatores, o Legislador não tem recuado e muito menos o Judiciário. A
política criminal encarceradora continua a ser praticada e, no caso específico da Lei 11.340/2006, sem ne-
nhum tipo de estudo de impacto – e apesar dos estudos empíricos já publicados e debatidos no âmbito aca-
dêmico-científico.
Não bastasse esta atuação desmedida, a mulher, que já não tem vez e voz, foi mais uma vez silencia-
da com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4424 pelo Supremo Tribunal Federal
(STF). Com efeito, o entendimento do STF, ao julgar a ADI 4424, chancela a apropriação pelo Estado de um
“conflito” pertencente às partes, vez que retira da mulher a decisão sobre representar ou não representar
nos casos de lesão corporal leve. De fato, na medida em que a ação penal deixa de ser pública condicionada
e passa a ser pública incondicionada, nos casos de lesão corporal leve praticada no âmbito da Lei Maria da
Penha, ao invés de empoderada, a mulher acaba como escrava da sua vontade de revelar a violência sofrida
às autoridades.
3. A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO ALTERNATIVA AOS CONFLITOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.
A questão motivadora do presente artigo é se a Justiça Restaurativa, enquanto processo que tem
como fim o entendimento e não o “gerar dor” (CHRISTIE, 2010), se configura como alternativa de resolu-
ção do conflito de violência doméstica – como visto acima, um conflito tão peculiar, marcado pela afetividade
entre o agressor e a vítima.
Como argumenta Christie, “quanto mais próximos estamos do outro, mais hesitamos em querer, in-
tencionalmente, deixar o outro sofrer” (CHRISTIE, 2010, p. 120). O desejo da maioria das mulheres vítimas
de violência doméstica de não punir seus agressores, entretanto, não implica no fato de que essas mulheres
não querem que seus agressores assumam a responsabilidade pelo dano que causaram e, consequentemente,
trabalhem formas de reparar esse dano e de desistir do seu comportamento violento. Mas será que é possível
garantir à mulher o “direito ao conflito” em casos de violência doméstica, geralmente marcados pela “de-
sigualdade de poder”? Seria o uso da Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica uma saída sim-
plesmente ineficaz e que ainda pode a revitimizar? Por enquanto, enquanto engatinhamos no tema aqui no
Brasil, o que podemos fazer, em termos empíricos, é observar a experiência que vem de fora do País.
3.1 A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL.
Em agosto de 2014, a Convenção de Istambul4
entrou em vigor na Europa, proibindo a imposição
de modos de resolução alternativa de conflitos em casos que envolvem violência doméstica (DROST et al.,
2015), assim como havia sido recomendado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2009.5
O que se
proibiu, portanto, não foi a utilização voluntária (quer dizer, não imposta às partes) de práticas restaurativas
em casos de violência doméstica, mas a imposição do processo restaurativo nesses casos. Dessa proibição,
entretanto, podemos extrair um certo pessimismo na utilização da justiça restaurativa nos casos de violência
doméstica, na medida em que foi dado destaque aos potenciais riscos em torno da empreitada restaurativa,
como a possibilidade de manipulação do processo pelo infrator e consequente sobrevitimização da vítima,
% por renúncia ao direito de queixa ou perdão; e 1,2% por perempção.
4  Istanbul Convention ou Council of Europe Convention on Preventing and Combating Violence against Women and Domestic
Violence.
5  No ano de 2009, a ONU publicou, no Handbook for Legislation on Violence against Women, a recomendação de proibição de
mediação em todos os casos de violência contra a mulher, tanto antes como durante processos penais.
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nesses que são conflitos tipicamente marcados pelo desequilíbrio de poder entre as partes. Apesar desta apa-
rente “rejeição”, existem inúmeras experiências de aplicação (voluntária) da Justiça Restaurativa em casos
de violências doméstica em países europeus, a exemplo da Áustria, Dinamarca, Finlândia, Grécia, Holanda
e Reino Unido, as quais foram comparadas em estudo recente, financiado pela Comissão Europeia (DROST
et al., 2015, p. 7).
Nestes países, a Justiça Restaurativa pode ser observada em todas as fases do processo criminal
(DROST et al., 2015, p. 19), entretanto, em alguns países, existem critérios específicos de elegibilidade para
aplicação da Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica. Na Grécia, por exemplo, a mediação
vítima-ofensor é possível apenas nos casos de violência doméstica que envolvam contravenções, ameaça,
insulto ou coerção. Além disso, alguns pressupostos são necessários como a “palavra de honra” do ofensor de
não mais praticar violência doméstica; a saída do ofensor da residência da vítima quando a mesma desejar;
a compensação do ofensor à vítima; e a participação do ofensor em programa psicoterapêutico (DROST et
al., 2015).
O serviço de mediação para casos de violência doméstica da Áustria, conhecido como Neustart, tem
um método diferente para a realização de encontros restaurativos. O Neustart trabalha, por ano, com mais
de 1200 casos envolvendo violência doméstica (DROST et al, 2015, p. 21). Quanto à condução do encontro
restaurativo, primeiramente, o ofensor e a vítima são entrevistados separadamente a fim de se analisar se o
encontro é um meio apropriado, assim como para preparar a mediação vítima-ofensor. Daí o primeiro mo-
mento ser chamado de “trabalhando em dois times”. Posteriormente, num segundo momento, são realizados
encontros com a vítima e o ofensor ao mesmo tempo, mas em diferentes salas. Logo depois, há a sessão de
mediação com a presença das partes envolvidas. Os mediadores contam o que ouviram para cada um – o que
é chamado de “espelho de histórias” – para somente depois as partes poderem comentar, corrigir e modificar
o que ouviram (DROST et al, 2015, p. 23).
Ainda na Áustria, as mediações são aplicadas a casos envolvendo violência doméstica desde o começo
dos anos 90. No ano de 1999, pesquisas qualitativas demonstraram o potencial dessas “resoluções” no pro-
cesso de empoderamento das vítimas. Em estudo realizado dez anos depois, por meio da aplicação de ques-
tionários, da observação de sessões de mediação e de entrevistas, os resultados foram de que 83% das vítimas
de violência doméstica não reportaram mais violência – e para 80% dessas mulheres, a violência cessou por
causa das mediações. Outrossim, para 40% das mulheres que continuaram o relacionamento ou que ainda
estavam em contato com o ofensor e não tiveram experiências violentas novamente, os parceiros mudaram
de comportamento como resultado da mediação (LOSEBY; NTZIADIMA; GAVRIELIDES, 2014).
Nos países analisados pelo estudo comparado, o modelo de prática restaurativa mais utilizado em
casos de violência doméstica é a mediação vítima-ofensor. (DROST et al, 2015, p. 21). É importante ressal-
tar que em todos os países analisados, o consentimento da vítima é pré-condição do processo restaurativo e
a saída da mesma pode ocorrer a qualquer momento do processo (DROST et al, 2015, p. 20). Em todos os
países analisados na pesquisa, com exceção da Grécia, o ofensor e a vítima podem, como regra geral, levar
pessoas de sua confiança para acompanhá-los e desempenharem um papel de “suporte” durante a mediação
vítima-ofensor (DROST et al, 2015, p. 24).
Na maioria dos países, a consequência do encontro restaurativo é uma espécie de acordo entre as
partes – que podem ou não decidir manter o relacionamento. Os acordos nos casos de violência doméstica
geralmente consistem na busca de ajuda e terapia para o comportamento violento do agressor e/ou para o seu
envolvimento com o álcool, mas a maioria dos acordos tem por foco principal o comportamento do agressor
no futuro (DROST et al, 2015, p. 25).
Na Áustria e na Grécia, o sucesso do desenvolvimento do encontro restaurativo pode culminar na
desistência da persecução criminal. Na Holanda e na Finlândia, o resultado do encontro restaurativo pode
ocasionar o fim do caso ou ser considerado, pelo juiz, no momento da sentença. Já na Dinamarca, a media-
ção vítima-ofensor não se configura como alternativa à punição. No Reino Unido, após a realização – com
sucesso – do encontro restaurativo, o juiz receberá um relatório e poderá aplicar uma sentença mais leniente
(DROST et al, 2015, p. 20).
268
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
3.2 SOBRE ALGUNS RISCOS DA APOSTA RESTAURATIVA.
Conforme já afirmamos alhures (ROSENBLATT; MELLO, 2015, p. 107), ao buscar a reparação de
danos e de relacionamentos, um dos riscos atribuídos à Justiça Restaurativa é de que ela pode acabar forçan-
do uma reconciliação entre as partes. Isto é, enquanto o modelo tradicional de justiça criminal pode acabar
forçando o rompimento da relação entre as partes, este modelo alternativo pode acabar tolhendo a vontade
que algumas vítimas de violência doméstica têm de romper com o seu parceiro. De uma forma ou de outra,
a mulher permaneceria silenciada no processo de resolução do seu próprio conflito – quer dizer, o conflito
permaneceria “roubado”.
É importante salientar, entretanto, que a Justiça Restaurativa não se confunde com a mediação nem
tem como objetivo principal o perdão ou a reconciliação (ZEHR, 2012). No caso específico de conflitos de vio-
lência doméstica, elementos típicos da mediação como o conceito de “culpa compartilhada” e a “linguagem
neutra” não são adequados, uma vez que as vítimas podem se sentir insultadas (ZEHR, 2008). Com efeito,
a Justiça Restaurativa não busca um retorno à vingança privada, mas também não tem como foco o perdão
incondicional:
De fato, algum grau de perdão, ou mesmo reconciliação, realmente ocorre
com mais frequência do que no ambiente litigioso do processo penal. Con-
tudo, esta é uma escolha que fica totalmente a cargo dos participantes. Não
deve haver pressão alguma no sentido de perdoar ou de buscar reconciliação
(ZEHR, 2012, p. 18).
Destaca-se, outrossim, que os que defendem a não aplicação da mediação vítima-ofensor em casos
de violência doméstica comumente desconsideram a “lógica” do sistema tradicional de justiça criminal – que
tem a punição como fim e não se preocupa com os desejos/necessidades da vítima. Ocorre que, nos debates
sobre Justiça Restaurativa e Violência Doméstica, não se pode ignorar o fracasso do sistema de justiça cri-
minal na satisfação das necessidades das vítimas de crimes. Por outro lado, é importante destacar (e, claro,
melhor avaliar) os dados empíricos coletados em outros países, os quais, como se viu acima, sugerem um
otimismo das vítimas de violência doméstica em relação à sua experiência restaurativa.
Os céticos da aplicação da Justiça Restaurativa para casos de violência doméstica também normal-
mente ignoram a distinção entre as vítimas de “terrorismo doméstico” (intimate terrorism) e as de situações
esporádicas e isoladas de violência entre o casal (situational couple violence). É evidente que a aplicação da
Justiça Restaurativa nos casos de “terrorismo doméstico” – nos quais a vítima vive permanentemente com
medo e sofre reiterados atos de violência combinados com o “exercício” de poder e controle – é bastante pro-
blemática, além de perigosa (DROST et al, 2015, p. 9). Mas será que os casos de situational couple violence
merecem as mesmas preocupações? Ademais, inclusive os favoráveis à aplicação da Justiça Restaurativa em
casos de violência doméstica que envolvam traumas graves destacam a necessidade de imposição de “bar-
reiras protetoras” em prol da segurança das vítimas, a qual deve ser prioritária no processo: a participação
voluntária da vítima, assim como a possibilidade de desistência do processo a qualquer momento; o benefício
de serviços de apoio às vítimas antes, durante e depois do processo; o reconhecimento da responsabilidade
do agressor; e a formação apropriada dos facilitadores para a “administração do conflito” em questão (JAC-
COUD, 2005, p. 175).
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O USO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM CASOS DE VIOLÊNCIA
DOMÉSTICA E A SUA OPERACIONALIZAÇÃO NO BRASIL.
O Projeto de Lei Nº 7006 que prevê a implementação de procedimentos da Justiça Restaurativa no
Sistema de Justiça Criminal brasileiro está em tramitação na Câmara nos Deputados desde 2006. Se, por um
lado, esse projeto de lei representa a inércia política do movimento restaurativo brasileiro, de outro, o Con-
269
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
selho Nacional de Justiça vem demonstrando bastante entusiasmo quanto à (tentativa de) operacionalização
da Justiça Restaurativa no Brasil (ROSENBLATT; MELLO, 2015).
Por óbvio, a implementação da Justiça Restaurativa no Brasil não pode consistir em uma mera “im-
portação” de práticas para uma realidade, a nossa, tão violenta, punitivista e marcada pela desconfiança da
população em relação às instituições do Sistema de Justiça Criminal (ROSENBLATT; FERNÁNDEZ, 2015).
Além da necessidade de uma “latinização” da justiça restaurativa (ROSENBLATT; FERNÁNDEZ, 2015),
este processo de operacionalização inspira cuidados quanto aos perigos da aplicação de práticas restaurati-
vas no âmbito dos mais diversos crimes, inclusive nos casos de violência doméstica contra a mulher. Preci-
samos nos perguntar sobre as potencialidades e os riscos de se aplicar a Justiça Restaurativa aos conflitos
domésticos, mas também precisamos explorar os riscos da sua não aplicação. Nesse ínterim, mais uma vez,
a experiência estrangeira destacada deve servir de fonte de inspiração. Entretanto, ainda mais no ano que a
Lei Maria da Penha completa 10 anos, sem atingir os fins pelos quais foi criada, é importante iniciarmos um
debate nacional mais detalhado e aplicado à realidade brasileira acerca da possibilidade restaurativa para os
casos de violência doméstica contra a mulher. Este, portanto, foi apenas um ensaio para lançar um tema que
ainda não foi entusiasticamente abraçado no nosso País. 	
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271
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO PESSOAL DE DROGAS EM DEBATE NO
STF:
UM PASSO RUMO À SUPERAÇÃO DA GUERRA ÀS DROGAS?
Fernanda Thaynã Magalhães de Moraes
Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco- UNICAP
Laís Emanuella da Silva Lima
Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco- UNICAP
Maria Eduarda Moreira de Medeiros
Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco- UNICAP
SUMÁRIO: Introdução; 1. A política antidrogas no Brasil: a guerra às drogas; 2. A indistinção usuário
x traficante de drogas; 3. Análise dos Votos relatados pelos Ministros: Gilmar Mendes, Edson Fachin
e Luís Roberto Barroso; Considerações finais.
INTRODUÇÃO
	 O presente artigo tem como objetivo analisar os discursos proferidos até então pelos Ministros
do Supremo Tribunal Federal, em seus respectivos votos, no recurso extraordinário 635659, que discute a
descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. O recurso discute a inconstitucionalidade do
artigo 28 da Lei de Drogas, Lei 11.343/2006, o qual, em seu texto atual, tipifica como crime o porte de drogas
para uso próprio e penaliza a conduta com advertência, prestação de serviços à comunidade e compareci-
mento à programa ou curso educativo. Até então, verificou-se que os votos tendem a problematizar a violação
à liberdade, individualidade e a personalidade do indivíduo, afetando, também, os princípios da dignidade
da pessoa humana, da proporcionalidade das penas, caracterizando uma conduta e impondo uma atuação
autoritária e paternalista ao direito penal com relação a uma conduta que só atinge a esfera individual, não
lesionando bem jurídico alheio, e desrespeitando direitos fundamentais previstos no artigo 5º da nossa Cons-
tituição Federal, como o direito à intimidade e à vida privada.
É válido ressaltar que, infelizmente, a liberdade, sendo condição humana essencial, é secundarizada
e muitas vezes suprimida, acentuando um Estado de Polícia de supremacia de poder sobre as pessoas. A
criminalização do uso de entorpecentes obedece a uma agenda de guerra às drogas, cujas principais conse-
quências são uma maior estigmatização do usuário perante a sociedade e, por muitas vezes, também a sua
efetiva prisão, enquadrando-o como traficante, já que não existe um critério objetivo para a distinção das
duas condutas, ficando essa imputação – de uso ou tráfico - arbitrariamente sujeita a um entendimento sub-
jetivo e seletivo do poder policial. Então, rediscutir a política de drogas é uma forma de enfrentar a questão
da violência que assola o país desde a sua origem e restringir o atual sistema de repressão. Não obstante, fica
claro observar a utopia da criminalização por meio da ineficácia das guerras às drogas, que se esconde ainda
em um discurso sanitarista, mas sempre abusou do poder para impor o controle de populações específicas.
Com isso, tomando como impulso o caso do cidadão Francisco Benedito da Silva que foi flagrado com três
gramas de maconha para uso próprio, o STF discute a pauta da descriminalização com o objetivo de pôr fim
à estigmatização e ao modelo proibicionista. Por fim, a análise terá como marco teórico a criminologia crítica
272
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
e a metodologia utilizada será o método indutivo por levantamento bibliográfico e análise dos votos dos minis-
tros, bem como as legislações vigentes acerca do tema.
1. A POLÍTICA ANTIDROGAS NO BRASIL: A GUERRA ÀS DROGAS.
Segundo a definição da Organização Mundial da Saúde droga é qualquer substância não produzida
pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas, produzindo alterações
em seu funcionamento. Drogas que alteram o funcionamento cerebral e causam modificações no estado
mental e no psiquismo do indivíduo que faz uso são chamadas de psicoativas ou psicotrópicas, substâncias
estas que têm a capacidade de provocar dependência. Também chamadas de substâncias entorpecentes, as
drogas podem ser classificadas como lícitas, permitidas para consumo, como exemplo das bebidas alcoólicas
e o cigarro de nicotina; ou ilícitas, aquelas que são criminalizadas e proibidas, como exemplo da maconha,
cocaína e crack.
A Lei 11. 343/2006 trata dos crimes relacionados às drogas, porém não define quais as substâncias
são criminalizadas no Brasil, isso fica a cargo da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) por meio
da Portaria nº 344 de 1988 de listar todas as substâncias. E neste caso estamos diante de uma Lei Penal em
Branco, pois somente a Lei 11.343/06 não seria capaz de criminalizar uma conduta por si só, precisando ser
complementada por outra lei, nesse caso a Portaria nº 344/98.
As drogas sempre existiram na sociedade e o homem sempre fez uso delas, seja de maneira natural
como fumando a planta da maconha ou fazendo chás com outras ervas, seja misturando substâncias que
proporcionavam um efeito diferente no seu organismo. Há notícias do uso de drogas pelo homem vem desde
os primórdios da sociedade, quando achados arqueológicos e desenhos pré-históricos demonstraram que
provavelmente o uso e consumo de substâncias psicoativas vem desde os primórdios da humanidade.
Nem sempre a palavra droga foi sinônimo de guerra e violência, nem sempre ela foi tão estigmatizada
e combatida como hoje em dia em que vivemos uma política criminal de guerra às drogas apoiado por um
discurso médico-jurídico que traz o uso das drogas como uma patologia que precisa ser tratada, respaldada
ainda num discurso sanitarista, e uma criminalidade que precisa ser sanada. “Droga vem do holandês Droog,
que significa folha seca. A mesma começou sua história como remédio devido ao uso indiscriminado para
fins recreativos, passou a ser considerada ilícita, principalmente quando saiu do âmbito médico, ganhando
as ruas.” Essas proibições permeiam até hoje em nossa sociedade, mas em sua historicidade as drogas não
tinham um peso moral, elas eram vistas em termos religiosos, culturais e filosóficos.
O estereótipo do doente, o dependente, surge quando as drogas começam a ganhar um alto consumo
entre os jovens da classe média e alta e não mais é visto como algo dos pobres, negros de periferia. Com isso
surge a necessidade de separar quem fornece de quem consome, o usuário, agora de classe média-alta, se
torna vítima e não mais delinquente e é preciso diferenciá-lo daquele que vende a droga, de quem trafica,
geralmente o marginal, de classe mais baixa, no qual recai a responsabilidade.
Até o final do século XIX não há muita preocupação em relação as drogas, mas é a partir do século
XX que surgirão as primeiras leis criminalizando o uso de certas drogas, a posse ilícita de substância entor-
pecente não era punida, logo mais passa a ser, e com o passar dos anos essas leis vão sendo expandidas para
mais tipos de substâncias, aumentando também os verbos que compõe suas criminalizações e o tipo básico
do tráfico começa a acumular núcleos (exemplo: “vender, ministrar, dar, trocar, ceder, ou de qualquer modo,
proporcionar”).
Já em meados do século XX, no fim da década de 60, após a criação da Organização das Nações Uni-
das, surge, pela primeira vez, uma diretiva mundial de como lidar com a problemática das drogas. Conven-
ções que buscavam um mundo livre das drogas. E o presidente Richard Nixon se tornou o exemplo mais claro
desse tipo de política, no início do seu mandato declarou “guerra às drogas”. Nixon aumentou investimentos
e tornou o combate às substâncias psicoativas prioridade para todo o aparato estatal, especialmente a polícia,
declarando as drogas como “inimigo número um”. Essa política dos EUA refletiu em vários países, inclusive
273
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
no Brasil, onde a guerra às drogas se intensificou nos anos 80, quando o Brasil aparece como rota de tráfico
para os EUA e a Europa. Nesse período traficantes instalaram-se nos morros, nas favelas e o Estado reagiu
mandando soldados para atacarem e prenderem os traficantes. Com esse cenário instalado os conflitos se tor-
nam cada vez mais recorrentes, causando mortes e preocupação para os que vivem no meio desse conflito ar-
mado de ambos os lados. O mercado de tráfico de drogas expandiu e se consolidou fazendo com que o Estado
se sentisse cada vez mais ameaçado e querendo reagir cada vez mais forte. Em 2006 surge a Lei 11.343-2006
que traz várias medidas voltadas as condutas relacionadas às drogas, e a clara distinção em relação as penas
para traficante e usuário, porém, mesmo o usuário não tendo como pena a prisão, ele ainda é um sujeito que
comete uma ação típica e precisa ser punido de forma diferente. O traficante se torna o inimigo, o culpado
por todo esse caos causado e sentido pela sociedade, e que segundo Becker “é o indivíduo que vivendo em
uma sociedade, comete o comportamento que segundo essa sociedade é tomado como desviado” (Outsiders,
1960), é o Outro que precisa levar a culpa, que pode ser julgado por valores estabelecidos por quem está no
topo da sociedade.
E pautado nessa certeza é que em 2007 o Rio de Janeiro vira palco de uma das maiores represen-
tações da política de drogas no Brasil, a guerra às drogas toma proporções cada vez maiores, mais violentas.
Favelas passam a ser invadidas constantemente, o número de vítimas só aumenta e o tráfico também. Criam-
-se medidas cada vez mais extremas, através da GLO ( Garantia de Lei e Ordem) estabelecida em sua 1º
edição pela Portaria nº 3416 de 2013, estabelece a permissão para as forças armadas, respaldadas sobre o
objetivo de preservar a ordem pública, poderem invadir algum lugar suspeito e passar por cima até dos direi-
tos constitucionais de cada cidadão, um estado de guerra declarado que só aconteceram dentro das favelas,
principalmente do Rio de Janeiro, fazendo tantas vítimas por guerra em nome da paz, também chamadas de
PPP’s , Programa de Polícia Pacificadora.
2. A INDISTINÇÃO USUÁRIO X TRAFICANTE DE DROGAS
Como explanado anteriormente, a lei 11.343/06 fere a ideia de liberdade, proclamada pela Revolução
Francesa e, hoje, assegurada constitucionalmente como direito fundamental. É imprescindível ressaltar que
não só a liberdade individual é ferida como também o direito à privacidade e à intimidade, elementos funda-
mentais para garantia da dignidade da pessoa humana. Então qual o real sentido da tão anunciada “guerra às
drogas” pelo Estado “Democrático” brasileiro? Os legisladores que acreditam que esse modelo proibicionista
aniquilará o consumo/produção de drogas estão completamente destoados de razão. As substancias alucinó-
genas sempre existiram na natureza ou por criação química do homem e não possuem expectativa para seu
fim. Mas uma coisa é certa: a lei alimenta o mercado ilegal, o medo e o crime.
Para se ter ideia do poderio do tráfico de drogas, é sabido que, por ano, o crime organizado movimenta
cerca de 750 bilhões de dólares, sendo 500 bilhões gerados pelo narcotráfico.1
E quem ocupa essa figura do
narcotraficante? De acordo com o discurso estereotipado, divulgado pela mídia, este é um “criminoso orga-
nizado, violento, poderoso e enriquecido através da circulação ilegal desta mercadoria, conhecida em nossa
legislação como “entorpecente” e hoje, genericamente, como “droga”. (ZACCONE, 2007, p.01). A busca
insanável por derrotar esse “inimigo” fez crescer na sociedade o sentimento de punição, aflorado com a falta
de informação que engloba grande parte da população brasileira.
Por conseguinte, a lei 11.343/06 aumentou o número de presos por tráfico de drogas; de 2003 a 2013
a população carcerária triplicou e a grande contribuinte para o real fato foi a margem apreciativa que os poli-
ciais passaram a possuir para distinguir o usuário do traficante – seria redundante enunciar que milhares de
usuários foram/estão presos. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, a legalização das drogas ou a adoção
de penas alternativas para o pequeno traficante poderia liberar até 25% das vagas em presídios para combater
a superpopulação carcerária no país, que atualmente está em torno de 563 mil pessoas”2
.
1  ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: Quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro, Editora Revan, 2007.
2  LIMA, Helder. Fim da guerra às drogas poderia liberar 25% da população carcerária. Disponível em:http://www.redebrasilatual.
com.br/cidadania/2015/06/fim-da-guerra-as-drogas-pode-liberar-25-da-populacao-carceraria-no-pais-2889.html  Acessado em 26 de Janeiro de
2016.
274
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
	 Bem, voltemos a discussão acerca da figura do narcotraficante. A seletividade punitiva engloba
todo o sistema do Direito Penal sendo majorada pela busca da “eficiência”, ou “resposta ao crime” (prisões).
É essa a ideação de Zaffaroni e Nilo Batista (2003, p. 43, apud Zaccone), quando concluem que “como a inati-
vidade acarretaria o seu desaparecimento, elas seguem a regra de toda democracia e procedem à seleção”,
ressaltando que esse poder de seleção corresponde, fundamentalmente às agências policiais. Posto isto, a
veracidade dos fatos relata que os homens e mulheres que são presos por tráfico de drogas são pobres, com
baixa escolaridade, detidos na maioria dos casos sem resistência, popularmente conhecidos como “aviõezi-
nhos”. Essa política de seleção tem início com a ação da polícia que indiretamente delimita a faixa de atua-
ção da Magistratura e do Ministério Público, responsáveis pelo processo e julgamento. De acordo com José
Nabuco3
:
É curioso observar como a figura do traficante é mitificada. A maior parte
deles é varejista – pessoas excluídas socialmente, vítimas de um estado
negligente. No entanto, a imagem do traficante, no imaginário, é a daquele
sujeito com fuzil a tiracolo, quando não a caricatura do vendedor de pipocas
que induz as crianças e os adolescentes a se viciarem.
Um dos grandes problemas da política de segurança pública brasileira é o olhar concatenado aos ín-
dices que são postos pela polícia. É um erro pensar que a criminalidade sofreu um impulso nos últimos anos,
pois crime sempre existiu, mas a atuação da polícia se tornou mais repressiva e os números são exemplos dis-
so. As frases “policial que prende é policial bom” ou “bandido bom é bandido preso”, já viraram jargões, não
é verdade? Isso é o reflexo do sentido que a polícia tem para a sociedade, quanto mais presos, mais eficiência
e maior a segurança. Contudo, é preso aquele que porta cinco quilos de crack e aquele com três gramas de
maconha, e aqui que reside a indistinção usuário x traficante.
	
3. ANÁLISE DOS VOTOS RELATADOS PELOS MINISTROS: GILMAR MENDES, EDSON FACHIN E
LUÍS ROBERTO BARROSO.
Por meio de Recursos Extraordinários, os ministros relatores do STF, até então citados, proferiram
seus votos declarando a descriminalização do uso de drogas para o consumo próprio. Sendo um tema atual,
mas um debate antigo da Criminologia Crítica, esse debate tirou o assunto do âmbito da invisibilidade bus-
cando melhores adequações sociais, sem discursos autoritários, paternalistas e moralistas. É positivamente
destacado quando o órgão mais alto coloca em pauta essa questão visando um efeito erga omnes, pois é mais
um passo no combate das guerras às drogas implantado pelos EUA que proibia o uso das drogas a fim de
reduzir o comércio ilegal.
É válido ressaltar que é defendido a descriminalização, e não a despenalização ou legalização, porque,
comumente, esses três termos são confundidos fazendo com que surjam leituras e interpretações equivoca-
das. Os ministros apoiam a exclusão de sanções criminais para a posse de drogas individual, permanecendo
em determinadas condutas a adoção de medidas administrativas. Tudo isso, declarando a inconstitucionali-
dade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) que define como crime “adquirir, guardar, tiver em de-
pósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com
determinação legal ou regulamentar”, já que viola direitos fundamentais. Tais direitos dos cidadãos devem
até mesmo ser limitadores do Poder Constituinte, pois esse usurpa a soberania do povo e retira o seu prota-
gonismo político. Então, é necessário uma legítima interpretação da carta constitucional, principalmente em
pontos ambíguos, que permita a real efetivação do que está escrito e mutualmente consentido por meio da
participação do povo. Por isso, é relatado nos votos que essa criminalização viola o artigo 5º da CF no qual é
dito “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas...”. As escolhas individuais
desde que não ofensivas a terceiros ou a bens jurídicos alheios, não podem ser consideradas crime.
3  FILHO, José Nabuco. O caminho é a descriminalização de drogas. Disponível em:  http://www.diariodocentrodomun-
do.com.br/o-caminho-e-a-descriminalizacao-das-drogas/  Acessado em 26 de Janeiro de 2016.
275
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A forte repressão atual precisa ser modificada devido a vários fatores, já que só traz malefícios à socie-
dade. O discurso do Ministério Público alega que a conduta da descriminalização contribui para a propagação
do vício no meio social e que viola o direito à saúde e à segurança. Gilmar e Barroso citam explicitamente que
o uso não afeta a saúde alheia semelhantemente ao álcool e ao tabaco e que é a criminalização que exclui e
marginaliza socialmente. É indispensável se perguntar porque essa conduta ainda é tipificada de uma forma
seletivista e de acordo com estereótipos. Ficamos à mercê de relatos Policiais que maquiam constantemente
quem é usuário e traficante por meio do gênero e da classe. Muitos jovens são apreendidos como traficantes
sendo primários e sensíveis à enquadração do sistema criminal, provocando uma superlotação nas cadeias e
ficando sujeitos a aprender na “escola do crime”. Para isso, é primordial estabelecer a diferença traficante x
usuário, dando Barroso um passo maior em relação aos outros por estabelecer quantidades limites de 25g e
6 plantas fêmeas. É preciso ter o controle de evidência e de justificabilidade, verificando se o bem jurídico é
legitimado de forma correta pelo legislador e se a apreciação é objetiva e confiável pelas fontes de conheci-
mento.
Diferentemente de Gilmar Mendes, Barroso e Fachin foram limitadores restringindo a descriminali-
zação apenas para a maconha alegando ser o melhor caminho o da autocontenção. Surgiram várias críticas
a partir disso, se os ministros afirmam que a guerra as drogas fracassou porque continuar criminalizando
determinadas drogas como o crack ou porque continuar com tal estigma ao limitar apenas a uma droga dita
burguesa. Apesar de tais dissensos, todos os votos estão na direção da descriminalização até o julgamento ser
interrompido por um pedido de vista pelo ministro Teori Zavascki.. E isso deve ser o maior propósito quebran-
do o estigma dos argumentos perfeccionistas que justificam o tratamento penal do uso por meio da reprova-
bilidade moral dessa conduta, ou seja, acabar com discursos moralistas que desejam impor um padrão. De
acordo com Fachin, “A dependência é o calabouço da liberdade mantida em cárcere privado pelo traficante”,
com isso é necessário perceber que o dependente não deve ser tratado como criminoso e sim como vítima.
Sendo importante refletir que todos nós somos vítimas de um sistema e expressões vivas do meio em que
vivemos. A preocupação com conceitos é excessiva e tudo e todos são blindados contra a ordem do mundo
não podendo nada “sair do padrão” imposto. É necessário parar com tais estigmatizações e expandir o poder
da mente para novas descobertas e soluções.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por fim, a análise dos votos do STF é uma importante porta de entrada para um novo entendimento
político acerca das drogas, abarcando estudos na sua produção e regulamentação. É válido lembrar que o
usuário é o menor dos problemas na “luta contra as drogas”, pois é sabido que muito mais gente morre em
decorrência da violência gerada por essa “guerra” do que pelo seu consumo excessivo. Não se trata de apolo-
gia ao uso, mas de uma visão destoada de preconceitos, dogmas e conservadorismos. Nas palavras do Mestre
José Nabuco Filho, “ É preciso deixar de lado o míope fanatismo proibitivista e avançar rumo à descriminali-
zação das drogas. Essa é a melhor maneira de combatê-las”.
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277
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E SEUS REFLEXOS
PARA O PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Fernando Flávio Garcia da Rocha
Graduando em Direito na AESO (FIBAM); Membro do Grupo de Estudos Direito e
Tecnologias; Membro do Grupo REC (Recife Estudos Constitucionais); Ex-Monitor de Direito
Constitucional; Pesquisador no programa PIVIC com projeto de pesquisa: Democracia e
Cibercultura.
João Paulo Allain Teixeira
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2005). Mestre em Direito
pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), Mestre em Teorías Críticas Del Derecho
pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha (2000), Graduado em Direito pela
Universidade Federal de Pernambuco (1995). Professor Adjunto na Universidade Federal
de Pernambuco, Professor Assistente na Universidade Católica de Pernambuco e Professor
Titular nas Faculdades Integradas Barros Melo. Avaliador “ad hoc” do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) do Ministério da Educação (MEC).
Membro da Comissão de Qualificação de Eventos para a área Direito da CAPES. Líder
do Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional, Democracia e Constitucionalização
de Direitos” no Diretório Geral de Grupos de Pesquisa CNPq. Tem experiência na área de
Direito, com ênfase em Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito e do Estado, atuando
principalmente nos temas Jurisdição Constitucional, Hermenêutica, Pluralismo e Teoria da
Democracia.
SUMÁRIO: Introdução; 1. Roberto Viciano Pastor: delimitando o tema; 2. Considerações a respei-
to das constituições: 2.1 Brasil (1988); 2.2 Colômbia (1991); 2.3 Venezuela (1999); 2.4 Equador
(2008); 2.5 Bolívia; 3 Neoconstitucionalismo Europeu e Novo Constitucionalismo Latino-Americano;
4 Reflexos no Pensamento Jurídico Brasileiro Contemporâneo; Considerações Finais; Referências.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo analisar o movimento latino-americano denominado “Novo
Constitucionalismo Latino-Americano”, que vem tomando espaço na academia desde o final do século XX e
até o presente.
O novo constitucionalismo é uma mudança paradigmática, que vem acontecendo na América Latina
especificamente em Equador, Bolívia, Venezuela e Colômbia. Sua proposta consiste em distanciar-se das
culturas europeias e norte americana, que, de certa forma, tiveram influência no processo civilizatório dos
países da América Latina.
No primeiro momento, far-se-á a delimitação do tema a partir das considerações de Roberto Viciano
Pastor. Segundo Brandão, Viciano foi o primeiro a estudar o a temática sob o viés da Teoria da Constituição
(2015, p.12).1
1  Ressalta-se que a afirmação hoje não pode ser entendida no sentido absoluto, visto que muitos autores tiveram e continuam
tendo influência no estudo.
278
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Em seguida, tecer-se-á comentários ao Neoconstitucionalismo Europeu, tentando, assim, diferenciar
do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Essa análise pretende suscitar uma reflexão para saber se
um pode servir de continuidade do outro, ou seja, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano pode ser
entendido como extensão do Neoconstitucionalismo Europeu?!
Por fim, não pretendendo esgotar a complexidade do tema, estudaremos e tentaremos refletir os re-
flexos do Novo Constitucionalismo Latino-Americano no Brasil.
1. PERSPECTIVA DE ROBERTO VICIANO PASTOR: DELIMITANDO O TEMA.
À primeira vista é necessário sugerir limites ao exagero terminológico, que gera entendimentos equi-
vocados sobre a matéria em análise. Vê-se a baixo o rol de nomenclaturas que permeiam o debate do Novo
Constitucionalismo Latino-Americano:
i) novo constitucionalismo latino-americano; ii) constitucionalismo mes-
tiço; iii) constitucionalismo andino; iv) neoconstitucionalismo transfor-
mador; v) constitucionalismo do sul; vi) constitucionalismo pluralista; vii)
constitucionalismo experimental ou constitucionalismo transformador; viii)
constitucionalismo plurinacional e democracia consensual plural do novo
constitucionalismo latino-americano; ix) novo constitucionalismo indoafro-
latino-americano; x) constitucionalismo pluralista intercultural; xi) constitu-
cionalismo indígena; xii) constitucionalismo plurinacional comunitário; xiii)
o novo constitucionalismo indigenista; xiv) constitucionalismo da diversida-
de; xv) constitucionalismo ecocêntrico; e xvi) nuevo constitucionalismo so-
cial comunitário desde América Latina (BRANDÃO, p.10).
Entende-se ser preocupante a extensa linhagem de termos que envolve o estudo do Novo Constitu-
cionalismo Latino-Americano, por essa razão, considera-se mais correto: novo constitucionalismo latino-a-
mericano.
Roberto Viciano Pastor faz a seguinte análise sobre o tema: primeiro, distingue o Novo Constituciona-
lismo Latino-Americano do Neoconstitucionalismo Europeu. Assim, este seria uma teoria do direito, enquan-
to que aquele uma teoria da Constituição porque visa a uma análise da dimensão positiva da Constituição.
Nesse sentido, não busca uma ruptura, apenas converter o Estado de Direito em Estado Constitucional de
Direito, embora reconheça a centralidade e o fortalecimento da Constituição, especificamente com a forte
presença dos princípios no ordenamento jurídico (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Ru-
bén. p., 17-18).
Brandão pondera que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano é um movimento surgido das
reivindicações e manifestações populares, diferente do Neoconstitucionalismo Europeu que é uma corrente
doutrinária fruto da academia, dos professores de direito constitucional (2015, p. 13). Enquanto que Pastor,
entende que aquele é uma corrente constitucional em período de construção doutrinária, com elementos co-
muns, mas sem um modelo hermético (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 4).
Em seguida, faz saber que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, ao mesmo tempo em que
absorve alguns comandos do Neoconstitucionalismo Europeu, especificamente a constituição no ordena-
mento jurídico, ostenta preocupação central com a legitimidade democrática da constituição, garantindo a
participação política, de forma que só a soberania popular pode determinar a alternativa da constituição, e
recuperando a origem democrático-radical do constitucionalismo liberal revolucionário jacobino (VICIANO
PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 18-19).
Ademais, uma das principais diferenças que marca o Constitucionalismo Velho da América Latina,
em relação ao Novo Constitucionalismo Latino-Americano, refere-se aos processos constituintes. Enquanto
que aquele era fruto de um acordo de elites, baseado em interesses comuns, este faz parte de uma dinâmica
participativa e marcada por tensões (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 22).
279
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Logo após, diz que a Constituição brasileira de 1988, ainda que tenha traços essenciais, não é consi-
derada um exemplo do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, visto que o seu processo constituinte é
deficitário de legitimidade democrática na Assembleia Constituinte, pois ainda era condicionada às regras do
Regime Militar (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 318-319).
Levando em consideração o exposto, acredita-se ter introduzido o tema para uma melhor compre-
ensão do tema ora proposto.
2. CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DAS CONSTITUIÇÕES.
	 Não pretendemos esgotar a complexidade do tema sobre as Constituições, visto o notório arca-
bouço teórico e empírico. Nesse sentido, procuraremos colocar apenas os pontos que entendemos ser os mais
importantes.
Verifica-se presente, em primeiro lugar nessas constituições, o plebiscito como elemento legitimador
das constituições, visto ser condição indispensável para dar valor legal a todos os atos decorrentes da sua
aplicação. Aliás, foi a pré-condição estabelecida pela própria ditadura. Perpassaram oito anos e nada de ple-
biscito. O uso deste foi uma das características da ditadura fascista e nazista nas décadas de 1920 e 1930,
sempre com o intuito de buscar apoio popular a uma medida já em curso.
Segundo Villa, o século XXI, os novos caudilhos Latino-Americanos, como Venezuela, Bolívia, Equa-
dor e Colômbia, usaram diversas vezes desse instrumento, sempre como o mesmo intuito: aprovar medidas
que feriam as liberdades democráticas (2011, p. 76).
Contribui também Barros e Gomes Neto:
A proposta das constituições, fruto da doutrina constitucional “novo constitu-
cionalismo latino-americano”, é romper com esse constitucionalismo liberal
importado e construir um Estado que reconheça que a sociedade latino-ame-
ricana não é homogênea, mas plural, dando voz a grupos antes excluídos do
processo político, como os povos indígenas (2015, p. 2148).
A par disso, começa-se a observar as constituintes:
2.1. BRASIL, (1988).
Rocha e Saldanha (2014, p. 6) entendem que diferente das constituintes anteriores do Brasil, esta
previu uma organização tanto quanto satisfatória albergando todas as garantias e direitos dos cidadãos. Com-
preende, assim, em nove títulos, que cuidam: 1 Dos direitos fundamentais; 2 Dos direitos e garantias funda-
mentais; 3 Organização do Estado; 4 Organização dos Poderes; 5 Defesa do Estado e das Instituições Demo-
cráticas; 6 Da Tributação e do Orçamento; 7 Ordem Econômica e Financeira; 8 Ordem Social; 9 Disposições
Gerias. Embora possa ser considerada uma constituição que não faz parte o Novo Constitucionalismo Latino-
-Americano, pode-se dizer que após Emendas à Constituição, bem como às Emendas Revisionais, o cenário
permutou para uma legislação mais avançado, ao ponto se ser entendida, no sentido formal, como parte do
Novo Constitucionalismo Latino-Americano.
Brandão observa que a Constituição brasileira de 1988, ainda que anuncie alguns traços essenciais,
não é considerada um exemplo desse Novo Constitucionalismo Latino-Americano, devido ao seu processo
constituinte deficitário de legitimidade democrática em sua Assembleia Nacional Constituinte, condicionada
às regras ditatórias (BRANDÃO apud VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén 2015, p.
16).
2.2. COLÔMBIA, (1991) .
280
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
A Constituição Colombiana de 1991, pode ser considerada um marco, em razão de sua proposta de
ruptura, de transformação da ordem política e através da ativação direta do poder constituinte, traços que se
repetiram nas cartas posteriores Venezuela, Bolívia e Equador (ORIO apud PASTOR e DALMAU, p. 172).
É de se ressaltar o impasse que essa Constituição passa, visto que alguns entendem que ela não faz parte do
Novo Constitucionalismo Latino-Americano, porém entendemos que, embora ela não tenha se desenvolvido
como as outras, foi a primeira a prever mudanças paradigmáticas em detrimento aos modelos colonizados.
Brandão entende que a Constituição Colombiana, entre outras coisas, foi a pioneira no reconheci-
mento da jurisdição autônoma indígena, contribuindo para o desenvolvimento do pluralismo jurídico nos
ordenamentos jurídicos de nosso continente. É claro que há outras constituições que contribuíram, com
menor intensidade, para o surgimento do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, porém a experiência
colombiana se destaca no campo constitucional de nossa região (2015, p. 85-86).
2.3. VENEZUELA, (1999).
A Constituição da Venezuelana está no limbo, ou seja, entre a pioneira ou precursora do Novo Cons-
titucionalismo Latino-Americano, ao lado na Colombiana que fora acima estudada. Ora, são citadas como
precedente desse movimento, outrora enquanto sua parte integrante, porém sem grande desenvolvimento
acerca de suas inovações e de sua importância, de modo que merecem uma atenção especial (BRANDÃO,
2015 p. 85).
A Venezuela com o restabelecimento da ordem democrática após a queda de ditador Marcos Pérez
Jiménez, 1958, constituiu-se numa chamada “democracia de vitrine”. Assim, erigida sobre e para a manu-
tenção da hegemonia das mesmas forças políticas e absolutamente incapaz de enfrentar problemas como a
desigualdades socioeconômicas e étnicas, o que se agudizou profundamente com a crise econômica dos anos
80, culminando num acirramento da luta de classes e na demarcação nítida dos campos políticos (ORIO
2013, p. 167).
2.4. EQUADOR, (2008).
Orio (2013, p. 169) observa que, no Equador os processos transformadores haviam alcançado desfe-
cho interessante do ponto de vista da tomada do poder por forças contra hegemônicas ainda em 2002, com
a eleição de Lucio Gutierrez para a presidência com apoio do movimento indígena, centralizado na Confede-
ração de Nacionalidade Indígenas do Equador (CONAIE).
Acrescenta o mesmo autor, o que se viu, todavia, foi um governo de orientação neoliberal, fazendo
com que logo após seu início o movimento indígena se lhe afastasse e acabasse por se dividir e consequente-
mente, perder forças e legitimidade. O cenário equatoriano para a derrubada do Presidente Lucio, destarte,
foi permeado por um movimento opositor difuso e semi-espontâneo, um amálgama de setores oriundos de
diversas correntes de esquerda, de cidadãos independentes e de organizações e ONGs que lutavam por ética
na política e contra a partidocracia (ORIO 2013, p.169)
Brandão denota que a Constituição Equatoriana é a que parece mais comprometida com a transfor-
mação radical da sociedade, inserindo no novo constitucionalismo elementos que antes eram estranhos à
teoria da constituição. A cosmovisão indígena incorporada por essa constituição é a experiência que certa-
mente reconstrói e, no mesmo interim, desconstrói a racionalidade monolítica a que o direito e a moderni-
dade estão acostumados (2015, p. 140).
2.5. BOLÍVIA, (2009).
A Bolívia, com as Guerras da Água e do Gás, desencadeada nas cidades bolivariana de Cochabomda e
El Alto, respectivamente, foram respostas à medida de aumento extraordinário no preço das tarifas do serviço
de distribuição de água, administradas por uma empresa transnacional, e à intenção do governo Sánchez de
281
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Lozada de exportar o gás bolivariano através do Chile, sem perspectiva de atendimento da demanda interna
(ORIO, 2013 p. 167)
Ademais, à medida que a repressão estatal tornava-se violenta, houve crescente aderência da so-
ciedade civil e outros setores organizados, culminando num movimento de espectro amplo, que não só rei-
vindicava a nacionalização dos recursos naturais bolivarianos, como também inaugurava novos marcos de
participação política e articulação social, pautado, especificamente, uma nova ordem política, protagonizada
por novos sujeitos políticos, tradicionalmente excluídos, em detrimento do monopólio das elites nos espaços
de deliberação (ORIO, 2013, p. 168).
Conclui-se este capítulo, afirmando que não se fez esgotado o tema das Constituições Latino-Ameri-
canas, porém procuramos tecer apenas alguns comentários sobre elas a fim de esclarecer um pouco de suas
virtudes. Verifica-se ainda que, essas são uma viravolta nos modelos de participação popular, visto ter um
regramento inovador; além de matérias referentes à natureza, dentre outros temas que serão analisados em
trabalhos futuros.
4. NEOCONSTITUCIONALISMO EUROPEU E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO:
UMA PROPOSTA DE CONTINUIDADE.
	 Observa-se que, atualmente, são veiculados em sites, blogs, revistas e em livros, artigos que têm
com o condão de estudar o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, bem como o Neoconstitucionalismo
Europeu. Todavia, na maioria das vezes, não se consegue distinguir ambos os sistemas, tendo em vista a ter-
minologia utilizada, com isso não se sabe, em razão da falta de clareza.
	 Por essa razão, sugerimos a utilização da seguinte nomenclatura Novo Constitucionalismo Lati-
no-Americano e não Neoconsconstitucionalismo, quando a pretensão for estudar o movimento Latino-Ame-
ricano.
	 O Neoconstitucionalismo Europeu surge logo após a 2º Guerra Mundial, na Europa Conti-
nental, especificamente no Itália, Alemanha, Portugal e Espanha (BARROSO, 2007 p. 3), para fortificar as
esperas jurídicas contra as forças de violação de direitos humanos.
	 As Constituições dos países mencionados têm como características comuns: a extensa decla-
ração de Direitos e Garantias Fundamentais, de forte conteúdo axiológico e cultural dotado de historicidade,
que representam a permuta de regime autoritários para democráticos, e adentram em temas que antes eram
estranhos à constituição.
André Rufino do Vale entende que esse movimento tem como características: mais princípios que
regras, mais ponderação que subsunção, mais constituição que lei, mais juiz que legislador (VALE apud Pie-
tro Sanchis, 2007 p. 68). Surge, assim, para proteger os Direitos Humanos dos regimes fascistas (Alemanha
Nazista, por exemplo).
O maior legado do Neoconstitucionalismo Europeu é o fortalecimento do ser humano no centro do
ordenamento jurídico. Em razão disso, acredita-se que esse sistema serviu de base para o Novo Constitucio-
nalismo Latino-Americano, ponto que será estudado mais a frete.
Pode-se dizer que a Dignidade Humana foi regulada na Constituição brasileira de 1988 e nas eu-
ropeias da Alemanha 1949, Itália 1947, Portugal 1976, Espanha 1978 e na própria Declaração de Direitos
Humanos 1948. Portanto, entende-se que o Neoconstitucionalismo Europeu trouxe a fortificação da Consti-
tuição e o reconhecimento da Dignidade Humana nos países Latino-Americanos.
Por outro lado, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano reconhece o Pluralismo Político e os
atores antes excluídos do processo democrático. Assim, esse sistema começa a surgir no fim do século XX,
e até hoje continua sendo pesquisado e bastante discutido, inclusive sendo proposta de vários congressos
mundo afora.
282
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
César Augusto Baldi explica que, em fins do século XX, no continente americano, há importantes
modificações dentro daquilo que Raquel Yrigoyen denomina de “Horizonte Pluralista”, assim estudado em
três ciclos (BALDI, 2013, p. 92).
O primeiro ciclo o Constitucionalismo Multicultural 1982-1988, introduz o conceito de diversidade
cultural, ou seja, o reconhecimento da configuração multicultural da sociedade e alguns direitos específicos
para indígenas. Assim, os atores começam a surgir (BALDI apud Raquel Yrigoven 2013 p. 92).
O segundo ciclo o Constitucionalismo Pluricultural 1989-2005, marca a internalização, na maior par-
te do continente, da Convenção 169- OIT, que revisa a anterior Convenção 107 e reconhece um amplo leque
de direitos indígenas (língua, educação, bilíngue, terras, consulta, formas de participação jurisdição indígena,
etc), (BALDI apud Raquel Yrigoven 2013 p. 93). A jurisdição indígena é reconhecida na Constituição colom-
biana de 1991 e depois pelo Peru 1993, Bolívia 1994-2003, Equador 1998 e Venezuela 1992.
O Terceiro ciclo o Constitucionalismo Plurinacional 2006-2009, está conformado pelas constituições
boliviana e equatoriana, reconhecendo, assim, os direitos dos povos indígenas. Fundado em dispositivo para
a refundação do Estado, e entendendo os indígenas como nações/povos e nacionalidades e, portanto, como
sujeitos políticos coletivos com o direito a definir seu próprio destino, governar-se em autonomias e participar
nos pactos de Estado (BALDI apud Raquel Yrigoven 2013 p. 93-94).
Com a apresentação dos três ciclos, torna-se evidente a diferença do Neoconstitucionalismo Europeu
do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Ressalta-se que o apresentado, como marco de distinção foi a
cosmovisão indígena, significa dizer que os modelos de matrizes europeia não reconheceram detalhadamen-
te essa questão, portanto, à luz dessa realidade colocou ao crivo para diferenciar ambos sistemas.
A proposta de continuidade, que propomos neste tópico, surge em razão da lógica temporal, isto é, o
Neoconstitucionalismo Europeu advém após fim da 2º Guerra Mundial 1945 e o Novo Constitucionalismo
Latino-Americano nasce no fim do século XX, e continua sendo estudo em pleno XXI.
Nesse sentido, a fortificação da Constituição que provém daquele ainda está presente neste, bem
como a dignidade humana, ambos corolários do sistema de matriz europeia. Então, não se trata necessaria-
mente de uma negação absoluta do Neoconstitucionalismo Europeu, pois há pontos de convergência entre
os dois movimentos (BRANDÃO, 2015 p. 63).
O que há, no caso apresentado, é uma mudança paradigmática nos agentes legitimados a alterar o
poder constituído, enquanto que no Novo Constitucionalismo Latino-Americano é o povo o detentor dessa
prerrogativa, no Neoconstitucionalismo Europeu, são os mandatários e agentes legitimados.
Transpassando essas considerações, vamos estudar no item a seguir os reflexos desse movimento
Latino-Americano no contexto do pensamento jurídico brasileiro contemporâneo.
5. REFLEXOS NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Neste penúltimo capítulo, vai-se elencar um quadro comparativo com as Constituições do Equador
e da Bolívia, a fim de comparar com a Constituição Federal do Brasil de 1988. Com isso, evidenciaremos os
avanços e os reflexos para o pensamento jurídico brasileiro.
Verifica-se na Constituição do Equador: I Elementos constitutivos del estado; II Derechos de las per-
sonas y grupos de atención prioritária; III Derechos de las comunidades, pueblos y nacionalidades; IV Dere-
chos de participación; V Garantías constitucionales; VI Participación y organización del poder; VII Función
Judicial y justicia indígena; VIII Biodiversidad y recursos naturales (Constituição do Equador, 2008).
Observa-se na Constituinte da Bolívia: I Bases Fundamentales del Estado; II Principios, Valores y
Fines del Estado; III sistema de gobierno; IV Derechos fundamntales y garantias; VI derechos civiles y po-
líticos; VII Derechos de las Naciones y Pueblos Indígena Originario Campesinos; VIII Derechos Sociales y
Económicos; IX composición y atribuciones del órgano ejecutivo (Constituição Bolívia, 2009).
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DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Percebe-se na Constituição de Federal do Brasil: I Dos direitos fundamentais; II Dos direitos e garan-
tias fundamentais; III Organização do Estado; IV Organização dos Poderes; V Defesa do Estado e das Insti-
tuições Democráticas; VI Da Tributação e do Orçamento; VII Ordem Econômica e Financeira; VIII Ordem
Social; IX Disposições Gerias (Constituição Federal, 1988).
É notório, tanto primeira, quanto na segunda, o respeito aos direitos dos indígenas, talvez esse seja
a maior contribuição de mudança no cenário Latino-Americano. Além de do mais, a participação social da
população, incluindo os indígenas. O que se pode ter em mente é que as três Constituições têm em comum
garantias e preocupações parecidas, porém em certos casos a brasileira se distancia. Em razão de haver inú-
meras características, analisaremos as duas exposta aqui.
Segundo César Augusto Baldi, tanto a Constituição do Equador, quanto a da Bolívia, preveem o di-
reito à consulta prévia, livre, informada e de boa fé relativamente a medidas legislativas ou administrativas
suscetíveis de afetar as comunidades indígenas, em especial programas de exploração de recursos não reno-
váveis (BALDI, 2013, p. 101).
Nesse sentido, portanto, percebemos que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano pode influen-
ciar o Brasil a criar “novas medidas tendentes a respeitar com maior extensão os direitos dos indígenas”, bem
como “assegurar uma participação popular mais efetiva”, além de prever a “possibilidade de autodetermina-
ção dos povos indígena” ao ponto de permitir aos indígenas a possibilidade criar seus próprios Tribunais sem
a interfere do direito estatal.
O Brasil no sentido normativo, em razão dos avanços legais (emendas à constituição, por exemplo),
mostra-se ter as características do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Por outro lado, o que o dis-
tancia é a falta de atividades sem a participação popular, enquanto que no Equador e na Bolívia é pré-requi-
sito para o exercício a manifestação do povo.
Finalmente, entendemos que o diálogo entre Estados/Constituições pode ser positivo tanto para o
crescimento, quanto para o fortalecimento de medidas nacionais. Assim, Marcelo Neves destaca que a ra-
cionalidade transversal, quando não houver possibilidade de violação de direitos humanos, com mais de dois
sistemas viabiliza o intercâmbio construtivo entre política, direito e economia (NEVES, 2009, p. 50-51).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante o exposto, conclui-se ressaltando a importância de se estudar o tema na América Latina, visto
ser uma temática em constante desenvolvimento que repercute no plano nacional e, também, no interna-
cional.
Os reflexos do Novo Constitucionalismo Latino-Americano no Brasil dizem respeito ao modo de pen-
sar dos cidadãos, bem como dos mandatários. Assim, estes terão o condão criar medidas mais integrativas e
tendentes a dar vida ao texto normativo, enquanto que aqueles a responsabilidade de reivindicar os direitos
violados.
Por fim, não tivemos a pretensão de esgotar o tema, porém entendemos que podemos contribuir com
o debate.
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285
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
AS TRANSFORMAÇÕES DO ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA UTILIZAÇAO
DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO
Fernando Flávio Garcia da Rocha
Graduando em Direito na AESO (FIBAM); Membro do Grupo de Estudos Direito e
Tecnologias; Membro do Grupo REC (Recife Estudos Constitucionais); Ex-Monitor de Direito
Constitucional; Pesquisador no programa PIVIC com projeto de pesquisa: Democracia e
Cibercultura.
Paloma Mendes Saldanha
Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Especialista
em Direito da Tecnologia da Informação pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ).
Professora. Advogada. Membro da Comissão de Tecnologia da Informação da OAB/PE.
Multiplicadora do Processo Judicial Eletrônico pelo Conselho Federal da OAB
SUMÁRIO: Introdução; 1. Cibercultura sob a Perspectiva do Estado Democrático de Direito. 2.
Novas formas de Ensino: Educação versus Internet. 3. As novas tecnologias no ensino jurídico. Con-
clusão. Referências.
INTRODUÇÃO
Durante muitos anos entendeu-se o ensino jurídico como algo geometrizado, ou seja, por analogia
o alunado deveria participar de um “jogo de memória” para apostar num futuro de conhecimento. Ocorre
que através da geometrização tem-se a criação de uma ilusão de segurança, certeza e fechamento para o
Direito. Entretanto, é esse método matemático que torna o Direito inseguro e o ensino jurídico sem qualquer
manifestação de pensamento ou despertar de senso crítico. É o que chamamos de ensino baseado no dog-
matismo. Entretanto a dogmática jurídica é uma “herança” que temos que decidir o que será feito com ela:
aperfeiçoamos ou a transformamos?
A partir de um novo contexto social baseado na evolução das novas tecnologias da informação, sobre-
tudo, com o advento da internet surgiram outras formas de transmissão de conhecimento. A cibercultura ao
trazer seu universo de informações, amplifica, exterioriza e modifica numerosas funções cognitivas huma-
nas. Dessa forma, o alunado que cresce sob a influência da “nova educação” termina por ter um pensamento
e raciocínio aberto, contínuo e não-lineares.
Assim, a utilização de novas metodologias acrescidas às novas tecnologias da informação terminam
por não aceitar o pensamento cartesiano, trazendo, portanto, a retirada do dogmatismo, da univocidade da
lei, bem como da interpretação literal desta. “Abrem-se as portas” para o pensamento crítico, para a herme-
nêutica, colocando, por sua vez, o direito como ciência da compreensão e trazendo para sala de aula, por
exemplo, um processo de ensino-aprendizagem baseado em jurisprudências.
Diante disso, pretende-se analisar novos paradigmas educacionais advindos da participação das novas
tecnologias no processo de ensino-aprendizagem jurídico, bem como analisar quais os benefícios e as melho-
rias com a utilização desses novos paradigmas educacionais para o operador do Direito e para o meio jurídico
propriamente dito.
286
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
1. CIBERCULTURA SOB A PERSPECTIVA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO.
A partir do contexto contemporâneo, é normal surgirem conceitos que envolvem tanto a Teria Geral
do Direito, quanto à Filosofia, à Sociologia, à Antropologia, à Hermenêutica e, assim, por diante. Ademais, é
comum haver definições que não corresponde à essência de cada instituto. Dessa forma, mesmo a Cibercul-
tura e o Ciberespaço tendo conceitos antagônicos e pretensões opostas, na prática acabam por se confundir.
Segundo Pierre Lévy:
O ciberespaço é o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial
dos computadores e das memórias dos computadores. Essa definição inclui
o conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos (aí incluídos os conjun-
tos de redes hertzianas e telefônica clássica), na medida em que transmi-
tem informações provenientes de fontes digitais ou destinadas à digitalização
(LÉVY, p. 102).
Sabendo disso, é notável que atualmente o conhecimento é fruto de fontes diversas às quais sedimen-
taram o contexto Pós Segunda Guerra Mundial. Ou seja, modelo em que os receptores ficam submersos aos
transmissores. Como mudança, o ciberespaço traz um novo paradigma a ser absorvido pelas gerações mais
antigas vez que as novas gerações de indivíduos parecem já nascer predisposto ao acesso e vivência no meio
virtual.
Aurélio entende que a Cibercultura é conjunto de padrões culturais com a Internet e a comunicação
em redes de computadores. Isto é, enquanto que o conceito de ciberespaço especifica o que de fato é o espa-
ço, este esclarece a cultura pode ser desenvolvida por meio espações dinâmicos (FERREIRA, 2010). Dessa
forma, os conceitos não se confundem.
Considerando os pontos apresentados, verifica-se que a lógica dinâmica da rede é uma saída para
difundir o conhecimento. Assim, não precisando ficar adstrito a modelos ultrapassados de fomentação do
conhecimento. Sabendo disso, passa-se a análise dos instrumentos constitucionais de inclusão do cidadão ao
ensino.
José Afonso da Silva (2015, p. 853) entende que a Constituição de 1988:
deu relevância à cultura tomando esse termo no sentido abrangente da for-
mação educacional do povo, expressão criadora da pessoa e das projeções do
espirito humano materializadas em suportes expressivos, portadores de re-
ferências à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores
da sociedade brasileira, que se exprimem por vários artigos, formando aquilo
que se considera ordem constitucional da cultura, ou constituição cultural.
A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 205, prevê que:
a base constitucional para o ensino. Dessa forma, a educação, direito de todos
e dever do Estado e da Família, será promovida e incentivada com a colabora-
ção da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo
para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Acredita-se que, em razão da prevalência da Constituição, os entes Federativos (União, Estados,
Distrito Federal e Municípios) devem procurar sempre criar mecanismos para a concretização do direito
fundamental à educação. Ressalta-se que, a educação privada ou publica não interferem na proposta deste
287
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
trabalho, mas, sim, como ela está sendo reconhecida como forma de conhecimento. Portanto, cibercultura e
ciberespaço são elementos que podem servir de instrumentos para divulgação do conhecimento.
Assim, pergunta-se: A Cibercultura e o Ciberespaço podem contribuir à propagação de conhecimen-
to? De que forma a tecnologia influencia no ensino jurídico e como podemos designar esse novo processo de
ensino-aprendizagem tendo em vista a inclusão/participação das novas tecnologias da informação?
2. NOVA FORMA DE ENSINO E APRENDIZADO: EDUCAÇÃO VERSUS INTERNET.
Ao consultar o DICIONÁRIO AURÉLIO, educação é:
O princípio comunicativo, utilizado pelas sociedades, para desenvolver no
indivíduo a consciência de suas potencialidades, a partir de interpretação dos
sinais gráficos até a construção dos conhecimentos que favoreçam o desen-
volvimento d um raciocínio comportamental e disciplinar, na sua individuali-
dade, diante do grupo social e no meio ambiente de que vive.
A partir dessa premissa, é de salutar pertinência observar a importância do Ensino e até mesmo o que
se espera de um Estado através dos entes públicos e privados. Denota-se ainda que, o ensino privado, embora
seja criada por entes privados, o estado tem muita incidência em sua construção.
Sabe-se que a educação é um Direito Fundamental, além de ser um dever Estado Democrático pro-
mover políticas de prevenção e incentivo, bem como sendo um dever dos entes federativos desenvolver téc-
nicas tendentes a concretizá-la e/ou tornar presente e evidente. Sabendo disso, indaga-se como relacionar a
educação com a internet? Internet, relembrando, encontra-se vinculada diretamente com o ciberespaço ou
cibercultura, mas para definir é necessário para qual fim o acesso é utilizado.
Com o advento da internet/ou ciberespaço o conteúdo das disciplinas lecionadas em salas de aulas
de grandes universidades passou a ser compartilhado. Os grandes livros passaram a ser de acesso de todos,
sem que seja necessário, por exemplo, visitar um outro país para adquirir o exemplar. No Brasil expande-se
a oferta de cursos à distância através da internet, consequentemente o cenário é alterado significativamen-
te deixando de lado os métodos tradicionais. As novas tecnologias da informação com o auxílio/suporte da
internet trouxeram para as salas de aula uma maior dinâmica, fazendo com que o aluno deixe de ser mero
receptor de informações e passe a ser participante ativo no processo de ensino-aprendizagem.
A construção do conhecimento, a partir do processamento multimídico, é mais «livre», menos rígida,
com conexões mais abertas, que passam pelo sensorial, pelo emocional e pela organização do racional; uma
organização provisória, que se modifica com facilidade, que cria convergências e divergências instantâneas,
que precisa de processamento múltiplo instantâneo e de resposta imediata (MORAN 1998, pp. 148-152). Ou
seja, para captar e expressar de maneira absoluta todo o conteúdo que se pretende discutir, o ser humano
conecta informações, relaciona dados, acessa novos objetos e os integra das mais variadas formas. Pensar é
aprender a raciocinar através de critérios e razões bem fundamentadas. As informações chegadas tendem
a seguir o processamento lógico-sequencial que se define pela expressão da linguagem falada e escrita, ou
seja, a construção se dá aos poucos. Em outros momentos, conseguimos processar a informação de maneira
hipertextual. Ou seja, histórias se interconectam levando a ampliações e novos significados, o que garante
uma comunicação “linkada”.
O paradigma na era digital, na sociedade da informação, enseja uma prática docente assentada na
construção individual e coletiva do conhecimento. Não basta a aula expositiva para conhecer. O conheci-
mento se dá cada vez mais pela relação prática, teoria, pesquisa e análise. Assim, numa sociedade conectada
e multímidia, o conhecimento edifica-se melhor no equilíbrio entre as atividades individuais e grupais, com
muita interação e práticas significativas. A sala de aula passa a ser um locus privilegiado como ponto de en-
contro para acessar o conhecimento, discuti-lo, depurá-lo e transformá-lo. A troca de informações entre os
usuários pode acontecer em nível local, estadual, nacional e internacional. A pesquisa de dados, a assinatura
288
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
de revistas eletrônicas e o compartilhamento de experiências em comum podem vir a anexar um novo sig-
nificado à prática docente. O uso da Internet com critério pode tornar-se um instrumento significativo para
o processo educativo em seu conjunto. Ela possibilita o uso de textos, sons, imagens e vídeo que subsidiam a
produção do conhecimento. Além disso, a Internet propicia a criação de ambientes ricos, motivadores, inte-
rativos, colaborativos e cooperativos.
Dessa forma, as TIC´s possibilitam a utilização do que se chama de metodologias ativas. Ou seja, o
trabalho em parceria com a aprendizagem colaborativa e significativa. A ideia é trazer o aluno para o plano de
protagonista da aula através do seu conhecimento prévio. Todos os alunos possuem um ponto de vista sobre
tudo, cabendo, apenas, ao professor direcionar esse olhar para o lado correto instigando o aluno a pensar
através de questionamentos que sejam feitos pelo professor ou até mesmo por outro aluno.
A interação em sala passa a trazer produtividade e fixação de conhecimento. Ao explicar um conceito
e verificar dúvidas na sala de aula, o Professor pode, por exemplo, solicitar ao aluno que disse ter compre-
endido o assunto que o explique para os demais que não entenderam. A linguagem e os exemplos utilizados
serão outros e, provavelmente, mais próximos da realidade do alunado. Esse momento é importante para o
Professor captar se houve de fato compreensão do que fora dito. E assim a aula segue com a participação
dos alunos e do Professor como facilitador do conhecimento. Retira-se a aula cujo objetivo é a transmissão de
conhecimento e dá-se lugar a criação do conhecimento.
MORAN (2011) entende que:
As redes digitais possibilitam organizar o ensino e a aprendizagem de for-
ma mais ativa, dinâmica e variada, privilegiando a pesquisa, a interação e
a personalização dos estudos, em múltiplos espaços e tempos presenciais e
virtuais. Assim, a organização escolar precisa ser reinventada para que todos
aprendam de modo mais humano, afetivo e ético, integrando os aspectos in-
dividual e social, os diversos ritmos, métodos e tecnologias, para ajudarmos a
formar cidadãos plenos em todas dimensões
Para DAMASCENO (2016),
A educação desprovida de novas tecnologias resumida ao uso das tecnologias
antigas e no simples discurso do professor admite que o espaço da aula trans-
figure-se num ambiente de monotonia sem estímulo algum aos principais
elementos de mobilidade do processo. Cabe ao professor buscar o conhe-
cimento sobre o uso adequado das novas tecnologias, uma vez que todo e
qualquer instrumento utilizado para mediar à interação professor/aluno é
considerado ferramenta tecnológica.
Entretanto, antes de ter competências técnicas, o professor deve ser capaz de identificar e de valorizar
suas próprias competências, conforme assegura Phillippe PERRENOUD (2000) quando diz que ”competên-
cia em educação é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos, como saberes, habilidades
e informações, para solucionar problemas com pertinência e eficácia”.
3. AS NOVAS TECNOLOGIAS NO ENSINO JURÍDICO.
Edgard MORIN (2002, p. 47) adverte que o ensino do futuro deve ser “centrado na condição huma-
na” e que os seres humanos “devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo tempo reco-
nhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano”. É necessário que se entendam em toda a sua
complexidade, e para isso não se pode estudá-los de forma desunida, é essencial que se tenha uma visão tan-
to oriunda das ciências naturais quanto das ciências humanas, assim como das humanidades, a fim de que
se chegue mais perto da compreensão da complexidade humana e da tomada de consciência dessa condição.
289
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
Seguindo o contexto da cibercultura, o Judiciário também enfrenta sua virtualização. Questões que
antes eram tratadas única e exclusivamente por via física, passam a ter como opção (e em alguns casos a
obrigatoriedade) o uso do Processo Eletrônico. Este, por sua vez, requer a utilização de aplicativos virtuais
para a confecção e envio das, agora, chamadas petições eletrônicas. E as provas, que antes eram de caráter
unicamente físico, passam a ter sua origem também no mundo virtual.
BERNARDES E ROVER (2010, p. 31) afirmam que:
“[...] a partir da idéia que o direito deve servir para solucionar problemas
decorrentes das novas relações sociais (que estão cada vez mais complexas),
para os quais nem sempre a legislação oferece respostas em suas normas. É
que desponta a necessidade de formação de profissionais sensíveis às trans-
formações culturais e novas demandas sociais existentes, ou seja, desde a
graduação os profissionais do direito deveriam ser treinados para apresentar
um pensamento dialético.”
Dessa forma, com a introdução das TIC´s, o ensino jurídico sai do tradicionalismo de abarcar unica-
mente áreas conservadoras e passa a fazer parte do mundo virtual com temas como contratos eletrônicos,
E-commerce, relação consumerista no ambiente virtual, privacidade on-line, assinatura e segurança ele-
trônica, direitos autorais, crimes cibernéticos e teletrabalho. Para melhor compreensão dos temas tratados,
faz-se necessária a introdução ao ambiente que se é estudado. Ou seja, ambiente virtual. Então, do ponto de
visa metodológico, entende-se que
o que se constata é que além de aulas expositivas (fundadas na educação
bancária), quase nada mais é oferecido ao aluno. Assim, a faculdade de di-
reito que deveria ser o locus apropriado para o aluno aprender a pesquisar,
raciocinar, compreender e, sobretudo, interpretar, pouco faz no sentido de
preparar o futuro profissional para o mercado, o que dificulta sobremaneira
a empregabilidade do diplomado e contribui para aumentar a falta de con-
fiança da população no advogado. (BERNARDES E ROVER (2010, p.30-31)
As novas ferramentas do processo de ensino-aprendizagem permitem que o alunado do ensino ju-
rídico se visualize como protagonista do procedimento a partir do momento em que, por exemplo, trazem
instantaneamente para dentro da sala de aula uma decisão recente sobre o tema discutido. Ora, qual seria
a proposta da utilização das novas tecnologias no ensino jurídico que não a promoção do debate a partir de
análise crítica entre as partes envolvidas?
Logo, a utilização de chats, fóruns, redes sociais, blogs, etc. antes, durante e depois das aulas jurídicas
pode ser vista como uma imersão conjunta necessária para o desenvolvimento mais apropriado do conteúdo
proposto pelo Professor, uma vez que todo o aparato tecnológico permite o desenvolvimento do raciocínio
no modo hipertexto. O que ocasiona uma maior evolução quanto a capacidade/habilidade de participação e
promoção de debates aprofundados que, consequentemente, gera uma mente crítica.
Os conteúdos teóricos não deixam de existir, pois não se aprende nada desvinculado do conhecimen-
to teórico, mas trata-se de trabalhar essas informações de forma diferente dando-lhes um significado, assim
como afirma Jean PIAGET (1987):
O primeiro objetivo da educação é criar pessoas capazes de fazer coisas no-
vas, e não simplesmente de repetir o que outras gerações fizeram. Pessoas
criativas, inventivas e descobridoras. O segundo objetivo da educação é for-
mar mentes que possam ser críticas, possam verificar e não aceitar tudo o
que lhes é oferecido. O maior perigo, hoje, é o dos slogans, opiniões coletivas,
tendências de pensamento ready-made. Temos de estar aptos a resistir (...), a
criticar, a distinguir entre o que está demonstrado e o que não está. Portanto,
precisamos de discípulos ativos, que aprendam a encontrar as coisas por si
290
DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO:
Direito(s) em debate.
mesmos, em parte por sua atividade espontânea e, em parte, pelo material
que preparamos para eles.
Dessa forma, para se conseguir uma maior dinamização, bem como o pensamento linkado, trazendo
o aluno como protagonista do
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Direito, Democracia e Internacionalização da Constituição

  • 1. 1
  • 2. 2 Gustavo Ferreira Santos João Paulo Allain Teixeira Marcelo Labanca Corrêa de Araújo DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Recife, 2016
  • 3. 3 CRÉDITOS Editora: APPODI Organização: Gustavo Ferreira Santos João Paulo Allain Teixeira Marcelo Labanca Corrêa de Araujo Conselho editorial: Erivaldo Cavalcanti e Silva Filho (UEA) Gustavo Carneiro Leão (UNICAP) Ivone Fernandes Lixa (FURB) Maria Lúcia Barbosa (UFPE) Raquel Fabiana Lopes Sparemberger (FURG / FMP) Design da capa: Ana Catarina Silva Lemos Paz Composição do miolo: Ana Catarina Silva Lemos Paz As opiniões e posicionamentos contidos nesse livro não, necessiariamente, correpondem às opinões e posicionamentos tomados pelos organizadores.
  • 4. 4 APRESENTAÇÃO O Congresso Publius é evento anual realizado por professores da Universidade Católica de Pernam- buco, com o objetivo de discutir temas pertinentes ao direito público, especificamente no que se refere aos vínculos que se estabelecem entre Constituição e Democracia. Na edição 2015 do Publius o tema escolhido como eixo norteador do evento é “Tutela Multinível dos Direitos”, apontando para a necessária percepção de que os direitos apresentam níveis distintos de proteção e promoção, tanto no plano interno como em planos normativos distintos, como acontece com o direito subnacional, o direito supranacional e o direito interna- cional. O evento teve duração de três dias de debates com a participação de professores e pesquisadores con- vidados de várias universidades do Brasil, América Latina e Europa e envolvendo estudantes de graduação e pós-graduação stricto sensu de diversas universidades da região. O livro que agora apresentamos é fruto das reflexões que aconteceram nos grupos de trabalho do evento (Direitos Sociais e Judicialização das Políticas Públicas; Justiça Constitucional e Jurisdição Constitu- cional; (Des)Criminalização de Direitos; Tutela dos Direitos à Liberdade; Hermenêutica, Universalidade e Multiculturalismo dos Direitos; Direitos de Nacionalidade e Estrangeiros; Os Novos Direitos; Diálogo entre Cortes e Proteção Multinível; Constituições Subnacionais e Tutela de Direitos: Controle de Convencionali- dade). Para os diversos GTs o evento contou com cento e vinte trabalhos inscritos, resultando em sua confi- guração final, sessenta e cinco trabalhos enviados para publicação após os debates. Estes trabalhos integram o presente livro eletrônico, juntamente com os trabalhos de autores convidados, mantendo a métrica e a obediência aos temas propostos pelo evento. A todos, desejamos uma boa leitura. E que estes escritos possam servir como leituras seminais para a compreensão dos desafios que uma tutela multinivel de direitos fundamentais exige. Recife, julho de 2016. Gustavo Ferreira Santos João Paulo Allain Teixeira Marcelo Labanca Corrêa de Araujo
  • 5. 5 SUMÁRIO 1.  APRESENTAÇÃO 2.  A FUNÇÃO PUNITIVA NA RESPONSABILIZAÇÃO DO FORNECEDOR EM RELAÇÃO DE CONSUMO: DIÁLOGO DO DIREITO BRASILEIRO COM O SISTEMA COMMON LAW, EM BREVES NOTAS E REFLEXÕES PARA UMA MAIOR PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR Adriano Barreto Espíndola Santos Aldo César Filgueiras Gaudêncio 15 3.  JUDICIAL DO DIREITO SOB A ÓTICA DA TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO: IMPLICAÇÕES NO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA Alexandre Henrique Tavares Saldanha Victor Rafael Alves de Mattos 23 4.  DIREITOS AUTORAIS E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET: NOVOS MODELOS PARA UMA NOVA CULTURA DE PARTICIPAÇÃO Alexandre Henrique Tavares Saldanha 31 5.  INFRAERO E A ADOÇÃO DO ORÇAMENTO SIGILOSO NO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA (RDC): UMA ANÁLISE SOBRE A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO Alcerlane Silva Lins Roberta Cruz da Silva 40 6.  COTAS RACIAIS: ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DE FUNDAMENTAÇÃO DO VOTO DE LEWANDOWSKI NA ADPF 186/ DF Ana Caroline Alves Leitão Virginia Colares 50
  • 6. 6 7.  A PROTEÇÃO JUDICIAL DAS MINORIAS: A UNIÃO HOMOAFETIVA NO STF E NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Ana Catarina Silva Lemos Paz Luiz Manoel da Silva Júnior Arthur Albuquerque de Andrade 60 8.  DIREITO AO PROTESTO E SUA TUTELA JUDICIAL: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A OCUPAÇÃO DA RUA NETO CAMPELO PELO MOVIMENTO OCUPE ESTELITA Ana Paula da Silva Azevêdo Letícia Malaquias Mendes Barbosa Vitória Caetano Dreyer Dinu 75 9.  QUEM TEM DIREITO À ÚLTIMA PALAVRA? O INSTITUTO DA REVISÃO JUDICIAL À LUZ DAS TEORIAS DE DWORKIN, DAHL E WALDRON Ana Tereza Duarte Lima de Barros Mariana Cockles Teixeira 85 10.  A AUTONOMIA DAS ORDENS LOCAIS INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA SOB O PONTO DE VISTA DO TRANSCONSTITUCIONALISMO E DO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO- AMERICANO Arthur Albuquerque de Andrade Ana Catarina Silva Lemos Paz Luiz Manoel da Silva Júnior 91 11.  ESCRAVISMO CONTEMPORANEO E INTEGRAÇÃO ECONÔMICA: UM ESTUDO ACERCA DOS POSSÍVEIS IMPACTOS DA ADESÃO DA BOLÍVIA AO MERCOSUL Bruna de Oliveira Maciel Jaqueline Maria de Vasconcelos 98 12.  O PODER-DEVER DO ESTADO NA PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO ÂMBITO FAMILIAR À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Bruna de Oliveira Maciel Jaqueline Maria de Vasconcelos 109
  • 7. 7 13.  LIBERDADE RELIGIOSA: UMA ABORDAGEM DO PONTO VISTA DAS RELAÇÕES ENTRE OS MODELOS DE ESTADO E IGREJA E O CASO LAUTSI CONTRA ITALIA Camila Leite Vasconcelos 128 14.  A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL AO OLIGOPÓLIO MIDIÁTICO E O DIREITO À COMUNICAÇÃO: A NECESSIDADE DA SUPERAÇÃO DO DOMÍNIO ECONÔMICO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO EM MASSA PARA SUA REGULAÇÃO DEMOCRÁTICA Camila Freire Monteiro de Araújo Izídia Carolina Rodrigues Monteiro 137 15.  REPENSANDO A AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: A (IM)POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DO “ABATE-TETO” SOBRE REMUNERAÇÃO, SUBSÍDIO OU PROVENTO DA APOSENTADORIA DE AGENTE PÚBLICO CUMULADOS COM BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE DO CÔNJUGE/COMPANHEIRO SERVIDOR DO ESTADO Carla Cristiane Ramos de Macêdo Roberta Cruz da Silva 138 16.  TRANSEXUALIDADE E DIGNIDADE: OS DESAFIOS JURÍDICOS E SOCIAIS PARA A GARANTIA PLENA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Carlos Henrique Felix Dantas Raissa Lustosa Coelho Ramos 152 17.  PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E TOMADA DE DECISÃO APOIADA: DESAFIOS E PROPOSTAS PARA UM EFETIVO ACESSO À JUSTIÇA Carlos Henrique Felix Dantas Raissa Lustosa Coelho Ramos 159 18.  LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE SOBRE A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NO ÂMBITO DOS CONFLITOS DOMÉSTICOS Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros Hallane Raissa dos Santos Cunha Túlio Vinícius Andrade Souza 168
  • 8. 8 19.  DIÁLOGO INTERJUDICIAL: REALIDADE GLOBAL NO BRASIL E A EXIGÊNCIA DE NOVOS DIREITOS ATRAVÉS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS Caroline Alves Montenegro Renata Santa Cruz Coelho 178 20.  A CRISE CONTEMPORÂNEA DOS REFUGIADOS, DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS David Cavalcante 185 21.  LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE CRÍTICA DA OCORRÊNCIA DE PRISÕES PREVENTIVAS E DAS FORMAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS DOMÉSTICOS Débora de Lima Ferreira Marília Montenegro Pessoa de Mello 194 22.  O DIREITO PENAL SIMBÓLICO: DA PROMESSA DE PROTEÇÃO À EFICÁCIA INVERTIDA – UM OLHAR SOBRE A PROTEÇÃO À VÍTIMA Érica Babini Lapa do Amaral Machado Andrielly S. Gutierres Silva Willams França Silva 204 23.  ENTRE RETRIBUIÇÃO, NEUTRALIZAÇÃO, SOCIALIZAÇÃO E CONTROLE – A REPRESENTAÇÃO DOS MAGISTRADOS SOBRE A FINALIDADE DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO EM PERNAMBUCO Érica Babini L. do Amaral Machado Maurilo Miranda Sobral Neto Vitória Caetano Dreyer Dinu 214 24.  DEMOCRACIA, EFETIVIDADE E DIREITOS SOCIAIS: UM OLHAR SOBRE OS CONSELHOS MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS – A PARTICIPAÇÃO COMO CONCRETIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Erika Patrícia Ferreira dos Santos Isabel Cristina Souza Queiroz Marco Aurélio da Silva Freire 227 25.  REAÇÃO LEGISLATIVA FRENTE À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO BRASIL PÓS 88 Eriverton Felipe de Souza 235
  • 9. 9 26.  NEGOCIADO X LEGISLADO: O DIREITO DO TRABALHO EM PERIGO Fábio Túlio Barroso 246 27.  NOTAS SOBRE A AUTONOMIA SINDICAL BRASILEIRA Fábio Túlio Barroso 253 28.  O “DIREITO AO CONFLITO” NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: POTENCIALIDADES E RISCOS Fernanda Fonseca Rosenblatt João André da Silva Neto Maria Júlia Poletine Advincula Pedro Henrique Ramos Coutinho dos Santos 259 29.  A DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO PESSOAL DE DROGAS EM DEBATE NO STF: UM PASSO RUMO À SUPERAÇÃO DA GUERRA ÀS DROGAS? Fernanda Thaynã Magalhães de Moraes Laís Emanuella da Silva Lima Maria Eduarda Moreira de Medeiros 270 30.  O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E SEUS REFLEXOS PARA O PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Fernando Flávio Garcia da Rocha João Paulo Allain Teixeira 276 31.  AS TRANSFORMAÇÕES DO ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA UTILIZAÇAO DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO Fernando Flávio Garcia da Rocha Paloma Mendes Saldanha 284 32.  A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO REAÇÃO AO ILUSÓRIO E ILEGÍTIMO DISCURSO PUNITIVO NA AMÉRICA LATINA Fernando Borba de Castro Lenice Kelner Leonardo Idenio Soares 291
  • 10. 10 33.  A DIGNIDADE DO TRABALHADOR NO COMBATE AO TRABALHO ANÁLOGO AO DE ESCRAVO AMEAÇAS E RISCOS VINDOS DO PODER LEGISLATIVO Flora Oliveira da Costa 303 34.  A COMPLEXIDADE DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO UM OLHAR LUHMANNIANO Flora Oliveira da Costa 310 35.  A FIGURA DA MULHER FRENTE À POLÍTICA PROIBICIONISTA DO TRÁFICO DE DROGAS: UMA ANÁLISE SOCIO-CRIMINOLÓGICA Gabriela Parisi de Amorim Gisele Vicente Meneses do Vale Paloma dos Santos Silva 320 36.  A PROTEÇÃO MULTINIVEL E A EFETIVIDADE DA TUTELA JURÍDICA DOS DIREITOS HUMANOS ENQUANTO RESULTADO DO DIÁLOGO ENTRE DIFERENTES CORTES Gabriel Soares Ribeiro Lopes Maria Carolina Oriá Veloso 327 37.  É A PROSTITUIÇÃO UMA PRESTAÇÃO DE SERVIÇO OU A COMPRA DE UMA MERCADORIA? Gabrielle Costa Carvalho de Oliveira Larissa Brasileiro Malheiro Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso 335 38.  LIBERDADE DE EXPRESSÃO E RADIOFUSÃO SOB A ÓTICA DO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO Gessyca Galdino de Souza Gustavo Ferreira Santos 339 39.  ATIVISMO JUDICIAL E O CONTROLE DA PROIBIÇÃO DE PROTEÇÃO DEFICIENTE A DIREITOS FUNDAMENTAIS: ANÁLISE DO PROCESSO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO §3º, DO ARTIGO 20, DA LEI Nº 8.742/93 – LEI ORGÂNICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL – LOAS Glauco Salomão Leite Dyego José Holanda Pessoa Tatyana Paula Cabral De Melo Marcolino 349
  • 11. 11 40.  O PROTAGONISMO JUDICIAL E A REFORMA POLÍTICA: ANÁLISE DO CASO SOBRE O FINANCIAMENTO PRIVADO DE CAMPANHAS ELEITORAIS Glauco Salomão Leite Mirella Luiza Monteiro Coimbra Pablo Diego Veras Medeiros 358 41.  ATIVISMO JUDICIAL CONTRAMAJORITÁRIO: O CASO DA DESCRIMINALIZAÇÃO DO PORTE DE DROGAS PARA USO PRÓPRIO. Glauco Salomão Leite José Raimundo Silva Neto Raphael Crespo Forne 368 42.  ASPECTOS E CONTROVÉRSIAS SOBRE A JUDICIALIZAÇÃO DA PRISÃO NO BRASIL: UMA ANÁLISE DA ADPF 347 Glebson Weslley Bezerra da Silva Mariane Izabel Silva dos Santos Roberta Rayza Silva de Mendonça 376 43.  POLÍTICAS PÚBLICAS, O DIREITO SOCIAL À SAÚDE E A EXTRAFISCALIDADE DA TRIBUTAÇÃO SOBRE O CIGARRO Idalina Cecília Fonseca da Cunha 384 44.  MOVIMENTOS SOCIAIS AGRÁRIOS: TEORIA DO ETIQUETAMENTO E CRIMINALIZAÇÃO Indira Capela Rodrigues Raquel Fabiana Lopes Sparemberger 390 45.  SOLUÇÃO DE VIA ÚNICA: O punitivismo dos movimentos sociais e a imposição da pena pelo sistema de justiça criminal Iricherlly Dayane da Costa Barbosa João André da Silva Neto Marília Montenegro Pessoa de Mello 402
  • 12. 12 46.  NEOCONSTITUCIONALISMO E NEOPROCESSUALISMO COMO INSTRUMENTOS PARA EFETIVAÇÃO DA JUSTIÇA E FORTALECIMENTO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Jaqueline Maria de Vasconcelos Patrícia Freire de Paiva Carvalho 410 47.  JURISDIÇÃO E DESCONSTRUÇÃO: uma análise procedimental da Arguição de Descuprimento Fundamental no constitucionalismo brasileiro a partir de Jacques Derrida. Joyce Batista do Nascimento João Paulo Allain Teixeira 416 48.  DIREITO À MEMÓRIA, À VERDADE E À JUSTIÇA: A PERMANÊNCIA DAS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS NA ATUALIDADe Julia Santa Cruz Gutman Renata Santa Cruz Coelho 431 49.  CARACTERÍSTICAS DOS SISTEMAS DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE: BREVE CONSIDERAÇÕES DIDÁTICAS SOBRE ASPECTOS CONCEITUAIS E PROCESSUAIS Luciano José Pinheiro Barros Raquel Alves Almeida Silva Ana Beatriz Oliveira de Souza 440 50.  CRISE, JURISDIÇÃO E DEMOCRACIA Luciano José Pinheiro Barros Mateus Siqueira Pacheco 448 51.  DIREITOS CONSTITUCIONAIS E INTERNACIONAIS DOS REFUGIADOS Maria Alana Calado Capitó Pedro Victor Montenegro de Albuquerque 457 52.  CRISE FEDERATIVA E FINANÇAS MUNICIPAIS: A PROBLEMÁTICA DA EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS Maria Raquel Firmino Ramos 463
  • 13. 13 53.  AS MULHERES DIANTE DA LEI 11.343/2006: A CRIMINALIZAÇÃO DA VULNERABILIDADE SOCIAL. Marília Montenegro Pessoa de Mello (orientadora) Juliana Gleymir Casanova da Silva 472 54.  A CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS SOCIAIS NO BRASIL PÓS-88: A DEMOCRACIA PARTICIPATIVA COMO INSTRUMENTOS DE EFETIVAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS Marco Aurélio da Silva Freire João Paulo Rodrigues do Nascimento 480 55.  (IN)CONSTITUCIONALIDADE NA ADOÇÃO DO INSTITUTO DA CONTRATAÇÃO INTEGRADA NOS CONTRATOS DA INFRAERO Marta Rodrigues de Oliveira Roberta Cruz da Silva (orientadora) 489 56.  A EMERGÊNCIA DE DECLARAÇÕES SUBNACIONAIS DE DIREITOS NA ORDEM CONSTITUCIONAL AUSTRALIANA: O PAPEL DO PACTO FEDERATIVO NA FORMATAÇÃO DO REGIME DE PROTEÇÃO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS E A ADOÇÃO DE UM CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE FRACO Mauro La-Salette Costa Lima de Araújo 500 57.  LIBERDADE RELIGIOSA X TRÁFICO DE DROGAS: O CASO DE “RAS GERALDINHO” Mateus Rafael de Sousa Nunes 507 58.  DIREITO AO ESQUECIMENTO E LIBERDADE DE IMPRENSA. Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira Camila Freire Monteiro de Araújo 514 59.  A POLÍTICA DE PRIVACIDADE DO GOOGLE E SUAS INFRAÇÕES AO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR E AO DIREITO CONSTITUCIONAL À PRIVACIDADE: UMA PERSPECTIVA BRASILEIRA Paloma Mendes Saldanha 521 60.  DIREITOS POLÍTICOS E ESTRANGEIROS Rafael Lima Rangel Vasconcelos 536
  • 14. 14 61.  A FAMÍLIA BASEADA NO POLIAMOR EM CONSONÂNCIA COM O PRINCÍPIO DA LIBERDADE Silvana Vieira da Silva 546 62.  A CRIMINALIZAÇÃO DO DIREITO À LIBERDADE DE CÁTEDRA NO BRASIL: ANÁLISE DO PROJETO DE LEI Nº 1.411/2015 À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. Synara Veras de Araújo 555 63.  BREVE ANÁLISE SOBRE O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO Renata Santa Cruz Coelho Caroline Alves Montenegro 561 64.  “O ONTEM É HOJE”: SOBRE A TUTELA DOS DIREITOS À LIBERDADE PRESENTE NA OBRA CINEMATOGRÁFICA TATUAGEM Synara Veras de Araújo 571 65.  ESTUDO IDEOLÓGICO SOBRE O MODELO PROCESSUAL COOPERATIVO DO NOVO CPC Steel Vasconcellos 581 66.  O DISCURSO DO ÓDIO FRENTE ÀS MANIFESTAÇÕES MINORITÁRIAS COMO HIPOTÉSE DE COLISÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Tieta Tenório de Andrade Bitu 591 67.  CONFLITOS INDÍGENAS E O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS (SIDH) Valdênia Brito Monteiro Bárbara Raquel da Silva Fonseca 603 68.  A GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO PRESSUPOSTO PARA O COMBATE DO TRÁFICO DE SERES HUMANOS Vanessa Alexsandra de Melo Pedroso Luize Ivila Santos da Rocha Larissa Gabrielle Silva de Andrade 612
  • 15. 15 69.  CRIMINALIZAÇÃO DA PELE E DA CONDIÇÃO SOCIAL NA GUERRA ÀS DROGAS Victor de Goes Cavalcanti Pena Danyelle do Nascimento Rolim Medeiros Lopes 618 70.  A REGULAMENTAÇÃO BRASILEIRA DAS MIGRAÇÕES E O CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE Victor Scarpa de Albuquerque Maranhão Thiago Oliveira Moreira 623 71.  PRISÕES PREVENTIVAS E PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA: UM DEBATE POSSÍVEL? Wictor Hugo Alves da Silva 633
  • 16. 16 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A FUNÇÃO PUNITIVA NA RESPONSABILIZAÇÃO DO FORNECEDOR EM RELAÇÃO DE CONSUMO: DIÁLOGO DO DIREITO BRASILEIRO COM O SISTEMA COMMON LAW, EM BREVES NOTAS E REFLEXÕES PARA UMA MAIOR PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR Adriano Barreto Espíndola Santos Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra - Portugal. Especialista em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas. Especialista em Direito Público Municipal pela Faculdade de Tecnologia Darcy Ribeiro. Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza. Advogado. Aldo César Filgueiras Gaudêncio Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra – Portugal. Pós-graduado em direito empresarial pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Pós-graduado em direito dos contratos. Advogado. SUMÁRIO: Introdução; 1. A proteção do consumidor e sua reparação por eventuais danos como garantias constitucionais; 1.1. Da reparação por danos na sistemática da responsabilidade civil do có- digo de defesa do consumidor; 2. Do dano moral ao social: um quadro de grave comprometimento da vida humana na relação de consumo; 3. O aparelhamento nocivo e sistemático do “dano eficiente”; 4. O diálogo entre sistemas como forma de aplacar diferenças e fomentar ganhos sociais; Conclusão; Referências. INTRODUÇÃO Diante da permanente necessidade de cuidado ao consumidor, figura, por sua própria condição, frágil na relação de consumo, desenvolver-se-á este estudo com o intuito de, dentre tantas problemáticas sobrevin- das, aplacar os enormes prejuízos de ordem moral, em específico, sofrido pelos consumidores nestas últimas décadas. Numa luta até então desigual, atendendo-se à dignidade da pessoa humana, com a expressão de boa parte dos anseios sociais em nossa Constituição Federal de 1988 e, depois, em sede de código de defesa do consumidor – lei n.º 8078/90 -, conseguiu-se estampar o direito à reparação de danos - evidente que se fir- mou aí grande avanço para uma sociedade consumerista, carente de segurança jurídica. Mas, com as recorrentes constatações de lesões aos consumidores, vê-se que a estrutura jurídica brasileira ainda apresenta lacunas que oferecem espaços às práticas destrutivas operadas pelos lesantes, voltadas tão somente à racionalidade econômica. De modo que, com as experiências exitosas alienígenas, obtém-se, então, base para adequar o modelo da função punitiva da responsabilidade civil ao sistema brasileiro, servindo tal instrumento para se alcançar a função social do mencionado instituto, como, também, travar, ou mesmo, de fato, eliminar o dano social.
  • 17. 17 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 1. A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR E SUA REPARAÇÃO POR EVENTUAIS DANOS COMO GARANTIAS CONSTITUCIONAIS. A Constituição Federal de 1988 garante proteção aos consumidores imputando ao Estado uma obrigação de promoção de sua defesa. Aliado a isso, terão os consumidores a garantia da possiblidade de serem reparados por eventuais danos que venham a suportar nas no mercado de consumo. Especificamente, o legislador constitucional inseriu no texto do artigo 5º, inciso X a reparabilidade por danos morais e materiais, quando garantiu a inviolabilidade dos direitos da personalidade. De sorte que, o que extraímos é que o instituto da responsabilidade civil se vê presente no texto constitucional, agora como uma garantia da ordem jurídica estabelecida a partir de 1988 (MORAES, 2013). Ainda, como direito fundamental, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu como a norma impe- rativa o disposto no artigo 5º, inciso XXXII, que institui que “o Estado promoverá na forma da lei a defesa do consumidor”. Lei esta que deveria ser elaborada dentro de 120 dias a partir da promulgação da Constituição, conforme artigo 48 dos atos das disposições constitucionais transitórias, na mesma Constituição (MIRAGEM, 2002 - Conferir também (CAVALIERI FILHO, 2008); (DUQUE, 2009); (GRAU, 1993)). A inserção do artigo 5°, XXXII, entre os direitos fundamentais coloca os consumidores entre os ti- tulares de direitos constitucionais fundamentais, porque estes não mais se resumem aos direitos de defesa contra interferência estatal na esfera jurídica particular (CANOTILHO, 1993). Atualmente, os direitos fun- damentais conferem também aos particulares direitos de proteção, direitos à organização e ao procedimento e direitos as prestações sociais. Entendemos que o Estado tem o dever de proteger os direitos fundamentais e, assim, proteger um cidadão perante o outro. Além disto, o artigo 170, inciso V, da Constituição Federal de 1988, tornou a defesa do consumidor um princípio da ordem econômica constitucional. Estes dois dispositivos – artigo 5º, inciso XXXII, e artigo 170, inciso V – legitimam todas as medidas de intervenção estatal necessárias a assegurar a proteção prevista. A defesa dos consumidores pauta-se, em primeiro, nas razões econômicas derivadas das formas, segundo as quais se desenvolvem, em grande parte, ao atual tráfico mercantil e, em segundo, por critérios que emanam da adaptação da técnica constitucional ao estado de coisas que hoje vivemos imersos – na chamada sociedade de consumo em massa1 . O dispositivo constitucional ordena ao Estado Brasileiro o dever de promoção à defesa do consumidor na forma de lei e não mera faculdade, pois se trata de um imperativo constitucional que ordena ao Estado em todas as esferas de poder (união, estado e municípios) e na sua tripartição de poderes (executivo, legislativo e judiciário)2 . Foi o constituinte originário que instituiu um direito subjetivo público geral para todos os bra- sileiros como uma garantia fundamental. Outro imperativo ocorreu nos atos das disposições constitucionais transitórias, em seu artigo 48, que, por sua vez, deu prazo e nomeou a lei de defesa do consumidor como Código de Defesa do Consumidor (CAVALIERI FILHO, 2008)3 . Finalmente, a Lei n.º 8078/90, Código de Defesa do Consumidor Brasileiro, foi promulgada em 1990, e acarreta importantes mudanças que, no decorrer dos anos 90 e na primeira década do século XXI, tanto nos 1  NUNES, 2012, p. 52: “No que respeita às normas constitucionais que tratam da questão dos direitos e garantias do consu- midor, elas são várias, algumas explícitas, outras implícitas. A rigor, como a figura do consumidor, em larga medida, equipara-se à do cidadão, todos os princípios e normas constitucionais de salvaguarda dos direitos do cidadão são, também, simultaneamente extensivos ao consumidor pessoa física. Dessarte, por exemplo, os princípios fundamentais instituídos no art. 5º da Constituição Federal são, no que forem compatíveis com a figura do consumidor na relação de consumo, aplicáveis como comando normativo constitucional”. 2  BENJAMIN, 2008, p. 68, que afirma: “Se a Constituição Federal de 1988 manda o Estado-juiz, o Estado-executivo, e o Esta- do-legislativo proteger imperativamente o consumidor em suas relações intrinsicamente desequilibradas com os fornecedores de produtos e serviços, a CF/88 não definiu quem é o consumidor – logo temos que recorrer ao CDC, como base legal especial infra- constitucional para saber quando aplicar o CDC”. 3  Ver também ALMEIDA, 2003; NISHHIYAMA e DENSA, 2011, pp. 432 a 433, que afirmam: “o princípio da proteção do con- sumidor é norma constitucional”; DUQUE, 2009.
  • 18. 18 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. mecanismos de proteção, com o surgimento de novas associações civis voltadas à proteção dos consumidores, como órgãos administrativos também com o mesmo escopo. Além disso, impôs importantes e gradativas mudanças às relações de consumo, perceptível na me- lhora na qualidade de fabricação dos produtos e na relação das empresas, de um modo geral, frente os con- sumidores4 . 1.1. DA REPARAÇÃO POR DANOS NA SISTEMÁTICA DA RESPONSABILIDADE CIVIL DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. A lei n.º 8.078/90 adotou uma sistemática própria para garantir a reparação dos danos oriundos das relações de consumo. Assim, como se percebe claramente da citada lei, a responsabilização dos fornecedores está dividia em duas partes, em primeiro, a responsabilização decorrente dos acidentes de consumo ocorri- dos por defeitos nos produtos e serviços, tratada entre os artigos 12 a 14, e, em segundo, a responsabilização decorrente dos vícios nos produtos e serviços, previstos nos artigos 18 a 20. A responsabilidade por fato do produto ou do serviço identifica-se pela ocorrência de defeito. O de- feito que emerge do produto ou serviço disposto ao consumidor é a consequência de um dano provocado por uma falha no funcionamento regular destes5 . Desse modo, o dano moral emerge imediatamente dos acidentes de consumo, haja vista que não há que se falar em acidente de consumo se não ocorrer o dano. Assim, a sistemática aplicada pelo Código de De- fesa do Consumidor atribui a quem idealizou e concebeu o produto ou o serviço o dever de repara eventuais danos suportados pelos consumidores. Quando a responsabilidade se trata de vício do produto ou do serviço, regulada pelos artigos 18 e 19, vício de qualidade e quantidade do produto, respectivamente, e artigo 20, vício de qualidade do serviço, a ocorrência de dano seria em razão pela demora na reparação do vício. Em outras palavras, havendo vício no produto ou serviço, há um prazo de 30 dias previsto na lei para resolução da falha, e, em caso de alargamento deste período por retardo do fornecedor em repará-lo, caso haja dano, então pode ser imputado ao fornece- dor o dever de pagar indenização, que, repetimos, tem relação a danos gerados pela demora em sanar o vicio (NUNES, 2012). A sistemática prevista na Lei n.º 8078/90, apesar de pautada na divisão a partir do entre defeito e vício, este menos gravoso, intrínseco ao bem ou serviço, com formas de reparação previstas em lei – havendo a possibilidade de a reparação ocorrer por danos morais e matérias -, e aquele, mais gravoso, e que se dá pela ocorrência de dano provocado pela exteriorização vício no bem ou serviço. O consumidor possui um instrumento forte de reparação dos danos que vier a suportar no mercado, no entanto é comum determinadas práticas abusivas ou perigosas, por vezes lesivas, serem recorrentes, o que quer nos mostrar que as indenizações pagas talvez não sejam suficientes para alterar as mesmas práticas empresarias prejudiciais aos consumidores. 2. DO DANO MORAL AO SOCIAL: UM QUADRO DE GRAVE COMPROMETIMENTO DA VIDA HUMANA NA RELAÇÃO DE CONSUMO. Numa perspectiva moderna, nota-se que as relações de consumo tendem a oferecer sempre novas alternativas com o fito principal de promover os ganhos econômicos. E isso corresponde a fato natural, ine- xorável aos avanços da sociedade, que precisa atender às suas necessidades, amparada, principalmente, pela celeridade e pelo desenvolvimento comum. 4  Sobre relação de consumo Cfr. PASQUALOTTO, 2011; OLIVEIRA, 2002. 5  Cfr. CAVALIERI FILHO, 2008, p. 265: “(...) fato do produto é um acontecimento externo, que ocorre no mundo exterior, que causa dano material ou moral ao consumidor (ou ambos), mas que decorre de um defeito do produto”.
  • 19. 19 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Não há mal propriamente neste processo. A grande questão que se impõe é saber até que ponto as citadas relações podem estar revestidas da licitude. Se se ultrapassar esta barreira, dos negócios justos, segu- ramente sobrevirão enormes prejuízos aos consumidores, que se veem fracos perante o insuportável peso do poder socioeconômico exercido pelos fornecedores lesantes. Ou seja, quanto mais lacunas se deixam escapar, mais fortes se tornam os lesantes e, por conseguinte, o controle de seus atos se vislumbra como demasiado frustrante, sobretudo para os consumidores, que, já prejudicados, não têm meios para buscar amparo legal. Fecha-se o seguinte cenário: o consumidor, naturalmente, tem de resolver as questões do dia a dia, quais sejam levar o filho a escola, pagar as contas, ir ao médico, dentre outros afazeres prioritários, assim, vê-se, não tem tempo para buscar amparo no poder judiciário, ainda mais sabendo que tal iniciativa pode não acabar como desejada, resultando tudo num grave transtorno moral. O dano moral, antes analisado sob a feição de um só ente, hoje, com tais problemáticas de ordem consumerista, passa a compreender uma extensão muito maior, às vezes até de difícil avaliação e controle, o denominado dano social. Segundo o idealizador da teoria do dano social, Antonio Junqueira de Azevedo, o dano social é aquele mal impelido em face de muitos indivíduos, de uma parcela considerável da sociedade que se vê achacada em seus elementos mais ínsitos, como a moral, o bem-estar subjetivo, a paz e a seguran- ça, por exemplo6 . Nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes (MORAES, 2006, p. 246), o dano moral corresponde à lesão perpetrada em face da dignidade humana7 . Pois bem, nada mais elucidativo que trazer à baila tais palavras, as quais confirmam o grave mal do dano social. Como o próprio nome já assim o denota, diz res- peito a uma lesão pratica à dignidade de uma infinidade de pessoas, portanto, mais severa, que merece ser combatido de modo eficaz. O dano social subtrai a tranquilidade de toda população8 . Deixa-se a impressão que ao lesante é per- mitido continuar tais atos, ao passo que o lesado se sente atônito e desorientado quanto aos seus direitos. Acaba, então, a aceitar a situação porque não sabe ao certo como, se ou a quem, ao menos, deve recorrer. Para descrever melhor, o estado da população se sintetiza em resignação. Aceitar passiva as adversi- dades é exatamente o que espera o lesante, tendo como base, tão somente, a sua racionalidade económica, direcionada a compatibilizar, a seu modo, gastos e lucros, sujeitando os consumidores aos mais indignos tratamentos. O dano de esfera social vai implantando, velada e sutilmente, uma sensação progressiva de sujeição aos quadros atuais. Pensa-se: tudo está como deve ser, e pronto. Não se projeta qualquer tipo de solução, restando, especialmente ao mais hipossuficiente, a submissão, o que pode concorrer para o superendivida- mento. Para melhor confrontar ideias, cumpre apresentar a seguinte situação hipotética: acostumado a rea- lizar seus pagamentos por via bancária, através de débito automático, porque, ocupado, João não tem tempo para realizar tais atividades diretamente em agências, fica surpreso com a cobrança de uma taxa de serviço, quando, à época, ao perguntar ao gerente do banco, fora informado que nada seria acrescido a sua conta 6  AZEVEDO, 2004, p. 376: “Os danos sociais, por sua vez, são lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto por rebaixamento de seu patrimônio moral – principalmente a respeito da segurança – quanto por diminuição de sua qualidade de vida. Os danos sociais são causa, pois, de indenização punitiva por dolo ou culpa grave, especialmente, repetimos, se atos que reduzem as con- dições coletivas de segurança, e de indenização dissuasória, se atos em geral de pessoa jurídica, que trazem uma diminuição do índice de qualidade de vida da população”. 7  MORAES, 2006, p. 246: “Sob esta perspectiva constitucionalizada, conceitua-se o dano moral como a lesão à dignidade da pessoa humana”. 8  AZEVEDO, 2004, p. 375: “A segurança, nem é preciso salientar, constitui um valor para qualquer sociedade. Quanto mais segurança, melhor a sociedade, quanto menos, pior. Logo, qualquer ato doloso ou gravemente culposo, em que o sujeito ‘A’ lesa o sujeito ‘B’, especialmente em sua vida ou integridade física e psíquica, além dos danos patrimoniais ou morais causados à vítima, é causa também de um dano à sociedade como um todo e, assim, o agente deve responder por isso. [...] A ‘pena’ – agora, entre aspas, porque no fundo, é reposição à sociedade -, visa restaurar o nível social de tranqüilidade diminuída pelo ato ilícito”.
  • 20. 20 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. habitual. Após realizar os cálculos de quanto teria desembolsado em três anos, reparou que os gastos mês a mês não impactavam tanto em seu orçamento – por isso não havia notado a situação velada -, mas que, ao final, isso correspondia à importância significativa, que poderia ser utilizado para cobrir outras obrigações. Sentindo-se fragilizado ante o poderio do banco, mesmo questionando seu gerente, não obteve resposta posi- tiva, restando-lhe o amparo do poder judiciário, que, não se sabe quando, poderá ter tais valores recuperados. Fatos como este supracitado repetem-se diuturnamente, sem controle prévio e apropriado, deixando o consumidor convencido que os esforços empregados para tal fim podem resultar em algo assaz desgastante. Tendo sua esfera existencial já fortemente atingida pelo ato em si, ainda pode se ver mais envolvido em razão das tentativas, digamos, estéreis. 3. O APARELHAMENTO NOCIVO E SISTEMÁTICO DO “DANO EFICIENTE”. Notórios, nos meios midiáticos, os abusos cometidos por empresas de grande poder socioeconômico, como é o caso de companhias aéreas, operadoras de telefones, dentre outras. Mais alarmante que isso é sa- ber que os casos se repetem, que as mesmas empresas mantêm suas atividades desvirtuadas porque não há controle eficaz9 . O fato é que, por não haver freios legais, acostumam-se a desempenhar suas atividades sem qualquer apego à vida humana. É dizer que as suas decisões serão sempre orientadas pelos resultados econômicos. Se os ganhos compensam, descarta-se a condições psicofísicas dos indivíduos envolvidos, podendo os lesantes, então, submeterem-se às possíveis ações judiciais – quando algum lesado tiver disposição para tal -, e se for condenado, deverá pagar o quantum arbitrado em juízo, de caráter compensatório. Vislumbrando as quantias de indenização que porventura surjam, os lesantes têm segurança em sa- ber o patamar que irá interferir em seu orçamento. Porque as indenizações compensatórias são antecipada- mente cognoscíveis, estes entes, alheios aos resultados que podem ser devastadores, raciocinam que o lucro compensa. É nesse sentido que se opera o “dano eficiente”, na concepção de César Fiúza (FIÚZA apud PIMEN- TA e LANA, 2010, p. 128)10 . O agente lesante encontra campo lacunoso – em legislação – para aplicar o seu intento, sem se ater ao princípio jurídico mais importante, a dignidade da pessoa humana, insculpida no art. 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, norma que rege todo o ordenamento brasileiro. Por controlar todo o processo danoso, os custos das operações etc., o lesante chega a tranquila con- clusão que os custos com a readequação do produto, em se tratando, por exemplo, do recall, seria muito mais dispendioso que manter a situação como está, sujeitando-se, se for a hipótese, às possíveis indenizações compensatórias, e se condenado for. Pela insignificância, e ante o poderio econômico do lesante, na maioria das vezes estas mesmas empresas pressionam a realização de acordos, e logo no início, sem conferir o potencial lesivo do mérito da questão, já são encerrados inúmeros casos. Restam, portanto, alguns poucos que, ao final, não conseguirão efetivamente exprimir os caráteres dissuasivo, exemplar e punitivo, em face da conduta. 9  FARIAS, ROSENVALD e NETTO, 2014, p. 411: “[...] As estatísticas demonstram que o Poder Judiciário e, especialmente os juizados especiais, converteram-se em repositórios de demandas de responsabilidade civil. Assombra a reiteração de demandas contra os mesmos réus, pelas mesmas práticas reveladoras de um profundo descaso com os seus clientes e a sociedade. Há uma subversão axiológica, haja vista que a lógica puramente patrimonialista e individualista – de uma racionalidade estritamente eco- nômica -, paira sobre situações jurídicas existenciais e metaindividuais. A eventual reparação de danos será um preço previamente conhecido e contabilizado pelo lesante”. 10  FIÚZA apud PIMENTA e LANA, 2010, p. 128: “Fala-se, por fim, em dano eficiente e dano ineficiente. Ocorre dano eficiente, quando for mais compensador para o agente pagar eventuais indenizações do que prevenir o dano. Se uma montadora verificar que uma série de automóveis foi produzida com defeito que pode causar danos aos consumidores, e se esta mesma empresa, após alguns cálculos, concluir ser preferível pagar eventuais indenizações pelos danos ocorridos, do que proceder a um recall, para concertar o defeito de todos os carros vendidos que forem apresentados, estaremos diante do dano eficiente”.
  • 21. 21 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Para melhor aclarar o tema, vale lembrar o emblemático caso Pinto Case em que a Ford produziu car- ros em formato de pinto, como o próprio nome sugere, onde o arranjo e qualidade das peças não condiziam com a segurança desejada. Assim, em virtude de acidente no qual houve a morte do condutor, além de graves lesões nos passageiros, chegou-se ao poder judiciário dos EUA a questão, momento em que ficou constatada a má colocação do tanque de combustível, assim como a fragilidade do material empregado, o que ocasionou o evento trágico. Comprovou-se, ademais, inclusive certificado pelo dono da empresa em audiência, que era do conhe- cimento da Ford o aludido problema, contudo, em razão da alteração do design do produto para a reformula- ção, seria melhor se submeter às possíveis indenizações, se fosse o caso, pagando as quantias compensatórias. Consternado com a desconsideração à vida, o Tribunal da Califórnia determinou a condenação em indenizações de caráteres compensatório e punitivo, esta muito mais acentuada, com o intuito de provo- car verdadeira repressão ao comportamento praticado e aviso aos demais pretensos lesantes (LOURENÇO, 2008, p. 4 e 5). Logo, a lei não pode dispor de espaços que facilitem as citadas manobras. De tal modo que se impõe o auxílio da análise econômica do Direito para dirimir estas falhas, direcionando o estudo, a feitura, e a apli- cação da norma para eliminar do lesante a visão restrita da racionalidade econômica. Com isso, as atividades serão enformadas a atingirem a eficiência, sem, contudo, dar margem aos danos11 . 4. O DIÁLOGO ENTRE SISTEMAS COMO FORMA DE APLACAR DIFERENÇAS E FOMENTAR GANHOS SOCIAIS. No sistema anglo-saxônico, o common law desenvolveu-se ferramenta a ensejar a responsabilização do agente através de uma pena civil, os designados punitive damages. Tal instrumento, além de vir acompa- nhado à compensação do lesado, tem por fulcro a penalização à conduta lesiva e servir de exemplo para que os demais desistam de tal iniciativa. Mesmo diante de toda resistência do sistema civil law em acolher tal instrumento, atendendo-se às reservas e adequações pertinentes, frise-se: não há mais razão para o distanciamento entre sistemas, vez que o fim será sempre a proteção humana, através do reconhecimento pleno da dignidade da pessoa humana. Além disso, a função punitiva da responsabilidade civil proporciona o versátil enlace social do instituto, que pode, ao mesmo tempo, servir de controle preventivo e pena civil. Reflexo dessa imprescindível tutela social desponta cada dia mais, sobretudo no poder judiciário bra- sileiro, soluções voltadas a desestimular tais condutas lesivas, ainda que as condenações hodiernas, nem de perto, possam ser comparadas àquelas aplicadas, mormente, nos EUA12 . Por sua relevância, expõe-se o inteiro teor de trecho de recente decisão de primeiro grau de jurisdi- ção, no Estado do Ceará, por meio da qual o magistrado salienta o papel punitivo da indenização pela respon- sabilidade civil, instrumento regulador da conduta social: “Também, deve a indenização servir de advertência ao ofensor, evitando-se, dessa forma, a reincidência, exteriorizando seu caráter punitivo e preventivo, através da fixação de um valor razoável” 13 . 11  PIMENTA, 2006, p. 169: “O que pressupõe a análise econômica do Direito é que a conduta legal ou ilegal de uma pessoa é decidida a partir de seus interesses e dos incentivos que encontra para efetuá-la ou não. Parte-se da premissa que os agentes – su- jeitos de direito – irão conduzir-se diante da legislação de forma a fazer a escolha que incorra em uma melhor relação quantitativa entre os custos e riscos envolvidos e os possíveis benefícios (escolha baseada no critério eficiência)”. 12  MINAS GERAIS, 2011: “No que se refere ao quantum indenizatório referente ao dano moral, a despeito de não ser expres- samente adotada por nosso ordenamento jurídico a doutrina norte-americana do punitive damages, é lugar comum na doutrina e na jurisprudência que a indenização deve levar em conta o dano, a capacidade econômica da vítima e do agente, bem como o viés pedagógico da indenização, capaz de desestimular a reiteração da conduta social indesejada”. 13  (SENTENÇA, 2015, p. 332).
  • 22. 22 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. CONCLUSÃO Há de se acolher o que de bom se construiu em tradição alienígena, como bem assevera Nelson Rosenvald (ROSENVALD, 2014, p. 165), porque os ganhos sociais serão sempre maiores que a precipitada inobservância14 . Guardadas as proporções regionais e culturais, que devem ser respeitadas, a função punitiva atende- rá, inclusive, à função social da responsabilidade civil, maior contributo a ensejar que se evitem, preventiva- mente, a incidência do dano, estando, pois, mais condizente com os ditames da cláusula geral da dignidade da pessoa humana. Com a função punitiva, o sujeito sentir-se-á mais seguro, de que haverá a resposta apropriada do po- der judiciário, além disso, os demais entes de poderio econômico e social saberão o revés legal aposto às suas más condutas. Concomitante a isso, também, observe-se: o pretenso lesante não terá como calcular possíveis vantagens econômicas que existiriam se se sujeitasse, eventualmente, às condenações judiciais, como no caso de indenizações compensatórias, ao invés de conferir ao produto ou ao serviço os ajustes necessários à segurança do consumidor, porque as indenizações de caráter punitivo não podem ser avaliadas de modo antecipado. Assim, ficam evidenciadas a eficiência e a segurança jurídica determinadas pela função punitiva da responsabilidade civil, tendo em conta que o dano eficiente não mais poderá se formar, desmontando, com isso, o arranjo perigoso inclinado a causar o dano social, grande mal da atualidade. REFERÊNCIAS ALMEIDA, João Batista de. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Saraiva, 2003. AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. O Código Civil e sua interdisciplinaridade: os reflexos do Código Civil nos demais ramos do Direito / José Geraldo Brito Filomeno, Luiz Guilherme da Costa Wagner Junior e Renato Afonso Gonçalves, coordena- dores. 370-377 p. – Belo Horizonte: Del Rey, 2004. BENJAMIN, Antonio Herman V.; MARQUES, Claudia Lima e BESSA, Leonardo Roscoe. Manual de direi- to do consumidor. 2 ed., RT: São Paulo, 2008. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina: 1993. CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de direito do consumidor. São Paulo: Atlas, 2008. DUQUE, Marecelo Shenk. A proteção ao consumidor como dever de proteção estatal de hierar- quia constitucional. Revista de direito do consumidor, n.º 71. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, pp. 143 a 167, 2009. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Peixoto Braga. Curso de direito civil – teoria geral da responsabilidade civil – responsabilidade civil em espécie. – 3. vol. – ed. 2014. 1069 p. Salvador: Editora Jus Podivm, 2014. 14  ROSENVALD, 2014, p. 165: “As fronteiras foram rompidas. Não há como preservar a intransponível dicotomia entre a civil law (romanística, codificada e identificada por um ordenamento legislativo) e a common law (não romanística, não codificada e identificada em um ordenamento judiciário), tal como se fossem universos apartados. A nacionalidade do direito privado se revela um obstáculo às relações econômicas, cada vez mais intensas, entre cidadãos e empresas de países e sistemas jurídicos diversos. Ademais, a pureza metodológica ficou no passado. As nações da common law recorrem à legislação, assim como os Estados filiados ao civil law concedem paulatina importância à construção do direito pelos tribunais e pelos costumes”.
  • 23. 23 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 3d., São Paulo, 1997. GRAU, Eros Roberto. Interpretando o Código de Defesa do Consumidor: algumas notas. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n.º 5, 1993. LOURENÇO, Paula Meira. A indemnização punitiva e os critérios para a sua determinação. Dis- ponível em: http://www.stj.pt/ficheiros/coloquios/responsabilidadecivil_paulameiralourenco.pdf. Acesso em: 23 nov. 2015. MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça. Ap. n. 1.0106.09.043091-4/001. Rel. Des. Sebastião Pereira de Sou- za. Diário de Justiça, Minas Gerais, 25 mar. 2011. MIRAGEM, Bruno. O direito do consumidor como direito fundamental. Revista de direito do Consu- midor, n.º 43, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 30ª ed. São Paulo: Atlas, 2013. MORAES, Maria Celina Bodin de. A constitucionalização do direito civil e seus efeitos sobre a res- ponsabilidade civil. Direito, Estado e Sociedade - v.9 - n.29 - p 233 a 258 - jul/dez 2006. NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 7a ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012. NISHHIYAMA Adolfo Mamoru e DENSA, Roberto. A proteção dos consumidores hipervulneráveis: os portadores de deficiência, os idosos e as crianças e os adolescentes. In: Claudia Lima Marques; Bruno Miragem. Doutrinas Essenciais Direito do Consumidor: fundamentos do direito do consumidor - (Coleção doutrinas essenciais, v.2), São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. OLIVEIRA, Amanda Flávio de. O sistema nacional de defesa do consumidor. Revista de direito do consumidor, n.º 44, pp. 97 a 105, 2002. PASQUALOTTO, Adalberto. Defesa do consumidor. in: Claudia Lima Marques; Bruno Miragem. Doutri- nas Essenciais Direito do Consumidor: fundamentos do direito do consumidor – (Coleção doutrinas essen- ciais, v.1). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, pp. 25 a 62, 2011. PIMENTA, Eduardo Goulart. Direito, economia e relações patrimoniais privadas. 159-173 p. Brasília a. 43 n. 170 abr./jun. 2006. PIMENTA, Eduardo Goulart; LANA, Henrique Avelino R. P. Análise econômica do direito e sua relação com o direito civil brasileiro. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 57, p. 85-138, jul./dez. 2010. ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil / Nelson Rosen- vald. – 2. ed. – 264 p. São Paulo : Atlas, 2014. SENTENÇA de 1º Grau de Jurisdição. 27ª Vara Cível da Comarca de Fortaleza, Estado do Ceará. Processo nº: 0543433-35.2012.8.06.0001. Classe: Procedimento Ordinário. Requerente: Anadir Espindola Barreto e outro. Requerido: Coelce – Companhia Energética do Ceara. Juiz de Direito Dr. Jose Cavalcante Junior. De- cisão datada de 14/09/2015 e publicada em 16/09/15, no Diário da Justiça, em página de n.º 332.
  • 24. 24 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. JUDICIAL DO DIREITO SOB A ÓTICA DA TEORIA ESTRUTURANTE DO DIREITO: IMPLICAÇÕES NO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA ALEXANDRE HENRIQUE TAVARES SALDANHA Especialista, Mestre e Doutorando em Direito pela UFPE. Professor da Universidade Católica de Pernambuco e das Faculdades Integradas Barros Melo. Advogado membro da comissão de propriedade intelectual da OAB/PE. VICTOR RAFAEL ALVES DE MATTOS Acadêmico em Direito pela AESO Barros Melo. SUMÁRIO: Introdução; 1. Hermenêutica filosófica; 2. Müller e a jurisprudência hermenêutica; 3. Pré-Compreensão; 4. Circularidade hermenêutica; 5. Segurança jurídica e metódica. Conclusão. Referências. INTRODUÇÃO Esta pesquisa tem como objetivo analisar as estruturas motoras da hermenêutica tratada por Müller e a Jurisprudência Hermenêutica para contrastar com o princípio da segurança jurídica. A pergunta norte- adora dessa pesquisa é se este recente movimento hermenêutico, baseado nas ideias de Heidegger e Gada- mer, oferece segurança jurídica. Esta pergunta, portanto, não pode ser compreendida como se estivéssemos abordando uma proposta política, pois a hermenêutica filosófica não prescreve elementos axiológicos, mas, descritivos. Müller se insere no contexto pós-guerra e toma para si o desafio de indagar e romper1 com o positivis- mo jurídico, especialmente o kelseniano. Isso faz de Müller, necessariamente, um pós-positivista. A fonte primordial de Müller para desenvolver suas ideias foram bastante profundas, visto que a her- menêutica filosófica em seu tempo estava em processo de transformação paradigmática bastante elementar. Heidegger findou com a hermenêutica ontológica e Gadamer seguiu essa característica. Em uma metáfora simples, diz-se que a hermenêutica sofreu uma mudança instrumental. O sujeito outrora utilizava de uma luneta, necessitava enxergar toda a mínima essência daquele objeto para auferir uma verdade sobre este. Devido às frequentes falhas deste método, a “nova” hermenêutica utiliza espelhos em volta do objeto, pois não há mais dissociação pura entre sujeito e objeto no processo de compreensão. 1. HERMENÊUTICA FILOSÓFICA. O termo “hermenêutica” origina-se do deus grego ‘Hermes’. A este cabia a função de mensageiro dos deuses, interpretando suas mensagens àqueles que não poderiam compreendê-la. Como rotineiramente pontua Lênio Streck, nunca se soube o que os deuses realmente disseram, mas o que Hermes interpretou. Esta alegoria permite-nos concluir a atual função da hermenêutica contemporânea. Sob a ótica desta a on- tologia é descartada para dar lugar ao analítico, a ““essência” é apenas, ela própria, uma palavra que ganha sentido num contexto linguístico” (FERRAZ JR., 2015). 1  Este rompimento não significa total abdicação das ideias contidas na obra Teoria Pura do Direito.
  • 25. 25 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A hermenêutica “se restringia a tarefa de fornecer às ciências declaradamente interpretativas algu- mas indicações metodológicas, a fim de prevenir, do melhor modo possível, a arbitrariedade no campo da interpretação” (GRONDIN, 1999). Isto implica em dizer que em todo momento da história em que fora ra- cionalizado metodologias interpretativas pode-se falar em hermenêutica no seu sentido amplo. O caráter usado na antiguidade até o século passado tinha a função basilar de descobrir, pois acredita- va-se que havia um significado real e verdadeiro para os componentes da vida, fenômenos e textos. Juridica- mente estas ideias extremaram no positivismo clássico, onde a lei seria aplicada à determinado caso através do método dedutivo, sendo a interpretação normativa restrita ao uso de técnicas interpretativas pré-estabe- lecidas a todo e qualquer processo decisório. Hodiernamente o fator fulcral está centralizado na ‘compreensão’. Schleiermacher pode ser indicado como um daqueles que universalizaram a sistemática elaborada por Lutero, buscando o entendimento do texto com a vinculação do significante para com o respectivo autor. Este encarava como arbritrária o acrésci- mo de conteúdos próprios ao texto pelo intérprete (GRONDIN, 2002 apud SCHROTH). Há também a colaboração de Dilthey, com seu enfoque psicológico, porém, apenas a partir de Heide- gger pode-se falar em compreensão hermenêutica nos moldes desenvolvidos por Gadamer. O desenvolvimento de Gadamer, destacado repetidas vezes por Müller são as condições de possi- bilidade da compreensão. Para que esta ocorra faz-se necessário haver a pré-compreensão. Isto porque o intérprete, no seu processo interpretativo, atrela-se a um fator orientador, cuja essencialidade é histórica e contextual. Assim, cada interpretação será uma aplicação do estado de consciência do intérprete. Eis porque a compreensão gadamariana não é um processo descritivo e reprodutivo, mas produtivo e criativo. A circula- ridade hermenêutica se pauta no ‘embate’ transcorrido entre o texto na sua tradição amparado de signos e a contribuição da consciência trazida pelo intérprete. “Portanto, o intérprete tem de saber que a interpretação de um texto é sempre uma aplicação ao presente” (GRONDIN, 2002 apud SCHROTH apud GADAMER). 2. MÜLLER E A JURISPRUDÊNCIA HERMENÊUTICA. Classificar os movimentos contemporâneos hermenêuticos é, além de um árduo trabalho, impossível sistematizar com exatidão em diferentes grupos. Isto se dá pelo fato de não haver escolas, mas movimentos convergentes em determinados aspectos e influências. O autor utilizado como base teórica desta pesquisa enquadra-se na chamada “jurisprudência hermenêutica”. O termo é utilizado por Gustavo Just, em sua obra “interpretando as teorias da interpretação”. O motivo da sua escolha é justificado. “Jurisprudência” relacio- na-se com as teorias consagradas “jurisprudência dos conceitos” e “jurisprudências dos valores”. O termo seguinte denota o pensamento influente desta corrente, a filosofia hermenêutica. A jurisprudência hermenêutica surge a partir de um contexto antiformalista trazida pelo pós-positi- vismo. Nesta esfera são levantadas as bandeiras da práxis decisória e sua axiologia em sentido epistemoló- gico, demonstrando dessa forma um rompimento com as ideias centrais do positivismo. Aquele funda-se na ideia de que a norma e a realidade não podem ser estabelecidas em mundos paralelos. A norma não pode ser fundamentada e racionalizada pura e simplesmente através da subsunção, pois a realidade intervém no processo interpretativo. A partir desse novo paradigma é que a jurisprudência hermenêutica se estabelece pelas suas raízes da hermenêutica filosófica de Gadamer. Noções como “pré-compreensão”, “círculo hermenêutico”, são utiliza- das pelos teóricos desse movimento. Apesar disso, esta corrente não promulga uma interpretação filosófica, mas pela práxis e com o uso da dogmática. Não se pode confundir o uso de determinados elementos da filosofia com uma abordagem filosófica. Este movimento visa a metodologia prática da interpretação, sendo assim, o tratamento geral do direito, como encara Dworkin pela sua filosofia analítica, é destoante com a JH.
  • 26. 26 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Veremos mais adiante que um comportamento comum dos teóricos da JH é a separação herme- nêutica em determinadas áreas do direito. Müller, em sua teoria estruturante, evidencia sua canalização na hermenêutica constitucional (Müller, 2007). Para este, a universalização da metodologia interpretativa é um erro, visto que a natureza de um determinado diploma possui características e celeumas próprios. 3. PRÉ-COMPREENSÃO. A verificabilidade objetiva da decisão judicial se perfaz através de um caminho cuja base fulcral é a racionalidade. A visão da JH sobre a determinabilidade dos elementos compositores dessa racionalidade está aportada em um copo estrutural denso mais significativo e concreto do que aspectos mais específicos e divergentes da metódica de cada um dos autores dessa “escola”2 . A estrutura elementar da JH é, em primeiro lugar, o “esclarecimento das condições e do potencial de rendimento da objetividade jurídica” (MÜLLER, 2011). O esclarecimento ocorre quando são expostos os fatores que participam da interpretação e concretização normativa, que são mais de um. Porém, primeira- mente, iremos tratar da pré-compreensão. A filosofia de Heidegger se pautava, dentre diversos aspectos hermenêuticos e fenomenológicos, a pré-estrutura da compreensão. Segundo Jean Grodin, Heidegger buscou estudar aquilo que estava por de- trás da elocução, logo, a pré-compreensão é uma estrutura fundamental do seu pensamento. Pode-se en- tender esta “que o “Dasein” se configura por uma interpretação que lhe é peculiar e que se encontra antes de qualquer elocução ou enunciado” (GRODIN, 2003). Basicamente, a pré-compreensão está presente em todo agente ao se debruçar sobre um objeto ao estuda-lo. Na ciência não é diferente, especialmente nas ditas humanas e jurídicas. Tomando a pré-compreensão como elemento indissociável de uma relação entre o sujeito e objeto sob a qual ideias pretéritas e específicas de um agente dentro daquilo que se é, aonde é e quando é, a JH adota como imprescindível não apenas a aceitação desta impossibilidade dissociativa, mas a exposição em cada tentativa de compreensão (concretização) normativa, o que Esser vai chamar de “tomada de consciência das condições fundamentais do seu trabalho” (1970). O caráter axiológico da pré-compreensão não pode ser visto como uma contradição às ideias metódi- cas e racional da interpretação. Parte-se do princípio de que todo intérprete não pode dissociar seu ser dos conhecimentos e valores inerentes à sua formação e visão de mundo. Como alude Gustavo Just: A consciência metodológica deixa patentes os fundamentos verdadeiramente decisivos da interpretação e os torna acessíves à crítica, enquanto a ilusão da suficiência do mero silogismo dos métodos compromete, na realidade, toda possível autonomia jurídica da decisão relativamente às tentativas políticas e ideológicas de usurpação instrumental da norma A consciência dos elementos axiológicos não entrega o direito à política, pois, como enfatiza Esser, o que causa perigo ao direito é o obscurecimento desse elemento. A partir do momento em que há a tomada de consciência, pode-se exigir maior fundamentação racional do intérprete, levando consequentemente a um maior controle racional da decisão judicial. Não há como falar em método racional sem objetivar a redução da subjetividade do intérprete, e a tomada de consciência é um dos primeiros passos para a compreensão do processo decisório em seu aspecto psicológico e factual. Como bem colocado pelo professor Andreas Krell “o objetivo do método é reduzir a subjetividade do intérprete, possibilitar o seu autocontrole e “direcionar o seu agir para caminhos previsíveis” (2014 apud SCHMITT GLAESER, 2004, p. 139 ss.; STRAUCH, 2001, p. 200 s.). 2  Como já descrito neste artigo, a JH não é considerada como uma escola de pensamento pela ausência de aspectos formadores.
  • 27. 27 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A dificuldade maior, como aponta Müller: começam quando os preconceitos produtivos, que ensejam materialmente a compreensão, devem ser separados dos que impedem a compreensão corre- ta, a concretização conforme a norma. Essa separação não pode se dar ante- riormente; ocorre na própria compreensão. Assim a reflexão e racionalização dos preconceitos tanto produtivos quanto destrutivos – vistos do ângulo da norma – se torna igualmente uma tarefa da teoria estruturante da norma. Sob esse argumento que Müller enfatiza o aspecto elucidativo e introducionista dos elementos da pré-compreensão na fundamentação do intérprete. 4. CIRCULARIDADE HERMENÊUTICA. Como tratado anteriormente, a pré-compreensão compõe a estrutura da racionalidade do intérprete. A consciência da sua existência é um passo necessário na formulação do pensamento da JH, entretanto, esta por si só não elimina por completo a indeterminação do direito. A doutrina formalista, sobretudo em seu raciocínio de codificação e positivismo3 não obteve êxito ao aplicar medidas de exacerbação de um direito legislado, acreditando na ideia de que poderia complementar e determinar o direito previamente ao juiz. Kelsen, por sua vez, avançou nesta problemática quando aludiu: A ideia de que é possível, através de uma interpretação simplesmente cog- noscitiva, obter Direito novo, é o fundamento da chamada jurisprudência dos conceitos, que é repudiada pela Teoria Pura do Direito. A interpretação simplesmente cognoscitiva da ciência jurídica também é, portanto, incapaz de colmatar as pretensas lacunas do Direito (2009). De fato, a jurisprudência dos conceitos demonstrou exatamente como não há possibilidade de prever com exatidão uma decisão jurídica. Faltou a Kelsen desenvolver o processo decisório hermenêutico. Assim, a proposta da JH se dá em analisar a indeterminação do direito legislado que caminha ao di- reito aplicado. Busca-se a partir de agora superar o mero preenchimento e enrijecimento do direito legislado, pois, o entendimento da JH se pauta no fato de que, todo esse processo de aplicação4 deve ser pensado sob a circularidade hermenêutica. Isso resulta em um estudo não mais linear e hierárquico, mas simultâneo e dialético. A medida que se examina os pressupostos e enfoque analítico da JH fica mais notório sua influência filosófica. Gadamer esboçou a respeito da circularidade hermenêutica que ocorre nos diversos campos cien- tíficos, argumentando acerca da compreensão dialética, formulada pela pergunta e resposta constante no processo interpretativo. O caráter noético da hermenêutica anterior a Heidegger está pautada em um processo linear da interpretação e pela busca ontológica através do método racional. Basicamente o positivismo científico5 . O processo dialógico gadameriano opera sob uma perspectiva de questionamento entre o intérprete e o objeto para fins de compreensão. Compreender, para Gadamer, significa aplicar um sentido aos nossos questiona- mentos. Isso não significa que nossos questionamentos remeterão à uma compreensão objetiva e pura de um 3  Aqui faz-se importante as recomendações de Norberto Bobbio em não confundir positivismo com positivação. Aquele é uma “doutrina jurídica segundo a qual não existe outro direito senão o positivo” (BOBBIO, 2006). Esta significa o direito descrito e posto, particular, temporal e mutável. 4  Nesse caso, a aplicação normativa é chamada por F. Müller de “concretização”. 5  Não confundir o positivismo científico com o jurídico. Apesar de alguns aspectos semelhantes, estes dois movimentos possuíam diferenças significativas não apenas no seu objeto, mas em suas ideias também.
  • 28. 28 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. sentido, pois o ser (intérprete) é o sujeito mediador entre o objeto e a compreensão. E como já mencionado no capítulo anterior, o ser é constituído de uma pré-estrutura compreensiva substancial. Esses elementos sustentam uma posição contrária ao historicismo objetivo sob a ótica aplicacionista. Em épocas diferentes é comum a compreensão diversa das pretéritas sobre um mesmo texto, visto que o processo dialógico e questionador remeterá aos problemas presentes, ocasionando uma dependência rígida entre o significado6 e o tempo em que o sujeito o atribui. Para os juristas é importante uma argumentação neste sentido, ainda que o leitor discorde dessa posição. O argumento historicista causa diversas desconexões sociais entre o texto legal e a composição real dos fatos presentes. Se compreender é questionar-se sobre um problema presente, a partir de um intérprete vivente neste presente, a sua compreensão não será capaz de destoar do entendimento presente. O teor simultâneo trazido por Gadamer revela-se como corolário de uma compreensão formulada essencialmente no questionamento. Um enunciado elocutivo trará pressupostos materiais (conteúdo) insu- ficientes para uma compreensão participativa. Haverá simultaneidade quando o agente pensar simultanea- mente nos pressupostos. A partir deste panorama torna-se mais clarificado as ideias da JH. Sob a ótica do Direito não é neces- sário nem recomendado seguir puramente o raciocínio de Gadamer, haja vista que esta fora feita dentro do âmbito filosófico. Porém, sem a estrutura filosófica hermenêutica não é possível compreender a JH. Esta, por sua vez, utilizou da circularidade e seus pressupostos para superar o entendimento kel- seniano de que norma e realidade residem em esferas intocáveis. Ou seja, a JH não se preocupou apenas em conscientizar os pressupostos do raciocínio jurídico, mas em demonstrar que os dois lados jurídicos se entrelaçam na sua esfera interpretativa. A norma e o fato são, assim, indissociáveis, sendo necessário para uma compreensão racional a influência mútua da realidade e o texto normativo. A simultaneidade ocorre pela análise mútua entre o norma e fato em contraponto a linearidade apresentada por Kelsen. Para ilustrar melhor, Kaufmann trouxe um exemplo dessa simultaneidade e pré-compreensão no direito penal: O ácido clorídrico não é, nem nos termos estritos da letra da lei, nem segun- do o sentido possível da palavra [..], uma arma. Por outro lado, o apuramento da matéria de facto sem referência a uma norma não conduz à questão de saber se o ácido clorídrico é uma arma. Só se será confrontado com esta questão, se se ‘pré-compreender’ o acontecimento como um possível caso de roubo qualificado. Se se ‘pré-compreender’ o caso diferentemente, porven- tura como tentativa de homicídio, não importa saber se o ácido clorídrico é uma tentativa de homicídio, não importa saber se o ácido clorídrico é uma ‘arma’. Vemos que sem pré-compreensões razoáveis nunca se chega aos pro- blemas jurídicos relevantes. Também é fácil de identificar, aqui, o ‘círculo’ do processo de compreensão: só quando eu sei o que é roubo qualificado, posso entender o caso concreto como um caso de roubo qualificado; todavia, não posso saber o que é roubo qualificado sem uma análise correcta do caso concreto (2002).  Como Gustavo Just bem coloca, esse raciocínio desmonta a ideia de que a norma possa ser determi- nada abstratamente, sendo toda interpretação é aplicação. Seu sentido será buscado a partir da solução do caso concreto. 6  É importante que o leitor tenha sempre em mente a sinonímia entre sentido (compreensão) e aplicação na visão gadermaria- na. Uma aplicação do sentido é o item finalizador do processo interpretativo.
  • 29. 29 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 5. SEGURANÇA JURÍDICA E METÓDICA. A segurança é um fator almejado pelo ser humano sob um espectro global, dentre os quais inclui-se a modalidade judicial. A estrutura do Estado é articulada sob o enfoque de defender e preservar a segurança dos que o constituem. Avançando para o Estado democrático de direito este princípio, especialmente na sea- ra judicial, recebe espaço ainda maior e efetivo. Um Estado sem insegurança jurídica flerta com o Estado de natureza, haja vista ser o poder judiciário a ultima ratio das soluções de litígios públicos e privados. Encontrar segurança dentro de um Estado para que seu povo possa prosseguir os atos da vida civil e profissional é o caminho da civilidade. Por isto, acerta J. J. Calmon de Passos quando profere: “civilizar-se é colocar imune ao arbítrio e isto só é possível quando deixamos de nos submeter ao governo dos homens e passamos a obedecer a um conjunto de regras” (1999). Nota-se o fator objetivo almejado pelo autor, isto é, a vinculação do dever ao direito previamente determinado. Para fins desta pesquisa, trabalharemos essencialmente com a divisão estabelecida por Tércio Ferraz Jr, dividida em duas formas, sendo a função-certeza “a determinação permanente de efeitos que o ordena- mento jurídico atribui a um dado comportamento, de modo que o cidadão saiba ou possa saber de antemão a consequência de suas próprias ações”, e função-igualdade seria “um atributo da segurança que diz respeito não ao seu conteúdo, mas ao destinatário das normas” (1981). Sob o contexto hermenêutico da JH, quando se fala especialmente da circularidade hermenêutica e sua dependência recíproca do caso prático, resulta inevitável cogitar a insegurança que esta conduta tenderá a gerar ainda mais com o fomento dessas ideias. Nesse aspecto não há homogeneidade entre os pensamentos de cada autor. Afinal, como almejar um sistema judicial previsível? Um dos requisitos trazidos por Canotilho é o da exigência da clareza das leis, “pois de uma lei obs- cura ou contraditória pode não ser possível, através da interpretação, obter um sentido inequívoco, capaz de alicerçar uma solução jurídica para o problema concreto” (1993). Esta é uma visão primária de um consti- tucionalista. Müller adota a metódica como via racional e passível de maior verificação objetiva da decisão. Como já exposto em capítulos anteriores, a JH não acredita ser possível a total previsão normativa (da mesma forma que pensou Gadamer e Heidegger). Isso seria contrastante com a estrutura do seu pensamen- to. Todavia, como alertou João Maurício Adeodato e o próprio Müller, na contemporaneidade não é mais ca- bível a pergunta maniqueísta, respaldada em uma mera afirmação ou negação da previsibilidade. Atualmente discute-se o grau de racionalidade, assim como o grau de previsibilidade normativa. O tracejo da aplicação7 normativa é desenvolvido pela metódica, motivada a “direcionar o seu agir para caminhos previsíveis” (Krell, 2014 apud SCHMITT GLAESER, 2004; STRAUCH, 2001). Dessa forma, o intérprete deve revelar o máximo possível seu processo interpretativo, demonstrando as etapas metodoló- gicas que seguiu. Esse processo interpretativo, para ser válido, deverá demonstrar a vinculação da produção substancial decisória com a norma. A função da metódica é, em essência, de demarcar um caminho verificável do processo de aplicação para reduzir qualquer abuso decisório, ocasionando no ferimento ao princípio da segurança jurídica. Um texto normativo não pode ser interpretado de inúmeras formas, tão somente contraditórias, por uma mesma corte, sob pena de violar a confiança do cidadão8 . Na visão de Andreas Kreel (2014), o problema desta inter- pretação difusa pela corte brasileira está na pré-compreensão individual, que naturalmente varia, sofre pouca orientação e consolidação por parte da doutrina jurídica nacional sobre os métodos in- terpretativos, em que diferentes escolas se digladiam, sem causar, contudo, maiores efeitos em relação ao trabalho prático da aplicação do Direito. 7  Ou concretização, a depender da nomenclatura utilizada pelo autor. 8  Nomenclatura utilizada por Canotilho em seu curso de Direito Constitucional.
  • 30. 30 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Esses argumentos demonstram que a interpretação não pode ser inteiramente racionalizada, visto que sempre haverá fatores irracionalizáveis. Porém, como já mencionado, importa saber o grau de racionali- dade possível a ser aplicável na metódica. Müller identifica também que a metódica não é capaz de alcançar uma racionalidade universal e ab- soluta, mas, assim como os cânones da interpretação, sua limitação não deve significar uma postura radical de exclusão, mas, de adotá-lo conhecendo os limites do seu alcance e sua relatividade, pois, segundo o autor, “as figuras de método são indispensáveis como momento da aplicação do direito, que estabilizam, racionali- zam e facilitam a verificabilidade” (Müller, 2011). Dessa forma, todos os meios adotados pelo direito, tanto na linguagem quanto nos elementos mate- riais, este acúmulo, quando utilizado para marcar as etapas em que o intérprete percorre seu raciocínio, é indispensável, pois o grau de racionalidade e verificabilidade tenderá a ser maior. CONCLUSÃO Conclui-se dessa pesquisa que a segurança jurídica pode ser saciada menos em termos herméticos que em graus nivelares. O estudo das estruturas fora imprescindível para o estabelecimento do que se pretende aprofundar. Apesar da concretização hermenêutica lidar com a práxis jurídica, evitando confundir termos jurídicos com conceitos filosóficos, a proposta de Müller está encalcada em uma seara filosófica por demais complexa. Como nosso propósito fora questionar, existiu a necessidade de conhecer e expor as características estruturais da JH. Dessa forma, pode-se defender que sim, existe segurança jurídica neste contexto hermenêutica. En- tretanto, esta garantia não ocorrerá de maneira automatizada, mas com demasiado esforço do intérprete e aqueles que cooperam na formação da decisão. REFERÊNCIAS ADEODATO, João Maurício. Ética e Retórica: Para uma teoria da dogmática jurídica. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1993 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2015. ________. Segurança jurídica e normas gerais tributárias. Revista de Direito Tributário, ano V, n. 17-18, jul.-dez, 1981, GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis, RJ : Vozes, 1997. GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINO, 1999. JUST, Gustavo. Interpretando as teorias da interpretação. São Paulo: Saraiva, 2014. KAUFMANN, A.; HASSEMER, W. (ORG.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009
  • 31. 31 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. KRELL, Andreas. Entre desdém teórico e aprovação na prática: Os métodos clássicos de interpretação jurí- dica. São Paulo: Revista Direito GV 10 (1), 2014. MÜLLER, Friedrich. Teoria Estruturante do Direito. 3. ed. São Paulo: Editora Revista Dos Tribunais, 2011. _________. O novo paradigma do direito: introdução à teoria e metódica estruturantes. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. PASSOS, J. J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo: Julgando os que julgam. Rio de Janeiro: Meridio- nal, 1999
  • 32. 32 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. DIREITOS AUTORAIS E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET: NOVOS MODELOS PARA UMA NOVA CULTURA DE PARTICIPAÇÃO ALEXANDRE HENRIQUE TAVARES SALDANHA Especialista, Mestre e Doutorando em Direito pela UFPE. Professor da Universidade Católica de Pernambuco e das Faculdades Integradas Barros Melo. Advogado membro da comissão de propriedade intelectual da OAB/PE. SUMÁRIO: Introdução; 1. Liberdade de expressão na Internet; 2 Direitos Autorais e limites à cria- ção de bens culturais; 3 Cibercultura e participação: novos modelos de Direitos Autorais para novas dimensões das liberdades de comunicação; Considerações Finais; Referências. INTRODUÇÃO As contemporâneas tecnologias da informação provocaram, e continuam provocando, diversos im- pactos nos comportamentos sociais, na produção econômica, no sistema legal e em praticamente quaisquer setores do convívio humano. No que diz respeito ao Direito, são diversas também as consequências do de- senvolvimento tecnológico na forma como alguns direitos são interpretados, aplicados, e ainda na própria criação de “novos” direitos para novos tempos. A cibercultura, expressão que faz referência a este momento de relacionamento hiperdimensionado entre homem e tecnologias digitais, se caracteriza por novos hábitos, novos comportamentos, novas exigências sociais etc. Daí produzir tantos impactos no desenvolvimento do sistema jurídico. Nestes tempos de internet, compartilhamentos digitais e microprocessadores realmente “micros”, a produção e o acesso à informação adquire uma nova proporção, pois os mecanismos e ambientes propícios a lançar e adquirir informações, para comunicar e ser comunicado, são facilmente dispostos, encontrando-se disponíveis em, por exemplo, qualquer aparelho moderno de telefones celulares que possam acessar a rede mundial de computadores e as redes sociais. Ou seja, com a devida inclusão digital, todos poderão acessar informações antes restritas a alguns meios, ou poderão produzir informações, o que estaria anteriormente reservado a determinadas categorias profissionais e classes sociais. Com essa ampla possibilidade de comunicações, a internet permite que cada um lance suas opiniões, expresse suas opções artísticas, obtenha informações de seu interesse e crie algo. Justamente nessa última possibilidade, a de criar algo que esteja afim, é que podem residir problemas com limitações impostas pelo próprio sistema. Na verdade, a liberdade de expressão proporcionada pelas práticas cibernéticas recebe di- versos tipos de supressão, seja pelos direitos civis (danos morais e à imagem, por exemplo), pelos direitos penais (a exemplo dos crimes contra a honra), pelos fundamentais previstos na constituição (como a privaci- dade) e outros. O problema que envolve o exercício da criatividade em ambiente virtual reside nas questões de propriedade intelectual e adequação dos modelos legais de direitos autorais para tempos de cultura de compartilhamento, de convergência, de participação etc. Este trabalho propõe uma discussão sobre a supressão provocada pelos direitos autorais sobre a liber- dade de expressão proporcionada pelos mecanismos da internet. A hipótese trabalhada é a de que o modelo tradicional de direitos autorais não é adequado para novos comportamentos típicos da cibercultura, princi- palmente aqueles que estão associados a liberdades fundamentais garantidas tanto em plano constitucional,
  • 33. 33 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. quanto em instrumentos de proteção a direitos humanos. O objetivo não é defender uma extinção de direitos autorais, mas sim uma adaptação destes a novos modelos, a novas culturas. O que é possível, pois já há ins- trumentos juridicamente permitidos que trabalham com novas tutelas da propriedade intelectual. 1. LIBERDADE DE EXPRESSÃO NA INTERNET. Foge das pretensões de um trabalho desta dimensão conceituar objetivamente expressão tão comple- xa como liberdade, mas é necessário frisar ao menos o caráter ambíguo da dimensão jurídica de liberdade, pois reflete um esquema de liberdades x não-liberdades. Esta palavra vem sendo usada para significar a va- loração dada a ações, políticas, culturas ou instituições, considerando-as de importância fundamental, ainda que seja um ato de obediência ao direito positivo, ou a satisfação de interesses econômicos. (BOBBIO, 1986, p. 708). Por mais complexo que seja a expressão liberdade (do ponto de vista jurídico) reflete sempre um relacionamento entre condutas e tratamentos legais, uma interação entre pessoas e entre pessoas e institui- ções. Reflete um esquema entre comportamentos permitidos (as liberdades) e os proibidos por lei (as não-li- berdades) e é justamente este esquema que vai caracterizar a sociedade “livre” e a relação que existe entre liberdade e estado democrático. Muitos crêem ser a democracia “uma sociedade livre”. Todavia, as sociedades organizadas de estruturam mediante uma complexa rede de relações parti- culares de liberdade e não-liberdade (nada existe parecido com a liberdade em geral. Os cidadãos de uma democracia podem ter a liberdade política de participar do processo político mediante eleições livres. Os eleitores, os par- tidos e os grupos de pressão têm, portanto, o poder de limitar a liberdade dos candidatos que elegeram. A democracia exige que as “liberdades civis” sejam protegidas por direitos legalmente definidos e por deveres a eles correspon- dentes, que acabam implicando limitações da liberdade. (BOBBIO, 1986, p. 710). Se por um lado as liberdades estão previstas tanto no rol de direitos fundamentais previstos em cons- tituições federais e nas declarações internacionais de direitos humanos, elas vão encontrar limites em outros direitos ou outros valores também previstos no direito. É nessa “equação” que encontram-se as dimensões da liberdade, ou em outros termos, é nesse balanço que serão encontrados as reais possibilidades de comporta- mentos livres. Contemporaneamente, é possível analisar as questões que envolvem liberdades tanto em perspectiva otimista quanto pessimista. É possível falar em declínio das liberdades diante de ameaças a elas vindas tanto de representantes do poder público quanto de grupos de interesses, por causa de questões como crescimento da violência, desenvolvimento industrial, valoração das tecnologias e outros fatores. Em perspectiva oposta, a de evolução, as liberdades vêm sendo cada vez mais afirmadas e repetidas tanto em documentos jurídico de eficácia nacional quanto nos de alcance internacional, e estes últimos não se resumem às declarações universais. (RIVERO, 2006, p. 5). Sem entrar na discussão de perspectivas otimistas ou pessimistas, vale ressaltar que dentre os inú- meros problemas que envolvem as liberdades, dentre elas há as que sofrem consideráveis impactos da con- temporânea cibercultura e que requer enfrentamentos específicos para melhor tutela, qual seja, a liberdade de comunicação e expressão. Dentro do esquema anteriormente mencionado da relação entre liberdades e não-liberdades, é necessário analisar quais são os comportamentos de comunicação e expressão atualmente permitidos e quais não o são. Incluindo na análise a questão de identificar se as não-permissões são compa- tíveis com as exigências sociais de tempos de sociedade de informação. Apesar de ser historicamente mais conhecida e de fazer parte, inclusive, do senso comum sobre o assunto das liberdades individuais, a liberdade de expressão não é a única liberdade associada à livre mani-
  • 34. 34 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. festação do pensamento. O desenvolvimento histórico dos comportamentos sociais e das revoluções tecnoló- gicas fez serem identificadas outras liberdades, daí hoje falar-se em liberdade de comunicação e liberdade de informação, além da liberdade de criação. Falar em liberdade de expressão representa o direito que todos têm de livremente manifestar suas ideias, pensamentos, posições religiosas, ideológicas etc., o que é diferente da liberdade de comunicação, pois esta concede o direito de comunicar e ser comunicado, além de divulgar e receber informações. A liberdade de informação então é uma decorrência da liberdade de comunicação, porém com ênfase aos direitos fundamentais de informar algo, de se informar e de ser informado. (FARIAS, 2007, p. 172). Quanto à liberdade de informação, a própria declaração universal dos direitos humanos, em seu ar- tigo 19, já prevê a liberdade de receber informações por quaisquer meios e sem limitações. A questão está em associar informação com exercício de cidadania, com o direito de todos serem informados sobre o que está acontecendo na sociedade, sobre fatos relevantes e, principalmente sobre conteúdos que transcendam as esferas do público e do privado, e atinja o nível de interesse geral. (FARIAS, 2007, p. 175). Uma vez infor- mados, os cidadãos terão condições de melhor participar da sociedade civil, de melhor interagir com o poder público e, de certa forma, melhor compreender as próprias características culturais de sua sociedade, além de produzir cultura. E isto pode não interessar a quem detiver poder. Assim como qualquer modalidade das liberdades, a de informação está sob diversos perigos, seja por exercício do poder público ou pelas próprias inter-relações entre particulares. Especificamente as de expres- são e informação envolvem interesses econômicos, seja por causa do valor da informação, ou por causa dos direitos que estão em conexão com as formas de expressão, como a privacidade e os direitos autorais. A ques- tão então residiria em atingir um grau de equilíbrio entre essas liberdades e os demais interesses envolvidos, ou supravalorizar uma coisa em detrimento de outra (valorizando a produção cultural ainda que diminuindo questões de direitos autorais, por exemplo). Esta hipótese representaria uma quebra de igualdade, mas “se deixamos de lado o dogma da igualdade jurídica das vontades privadas e nos voltamos às realidades, a fre- qüência das situações de dependência que permitem a quem se encontra em posição de superioridade impor sua vontade ao inferior fica evidente”. (RIVERO, 2006, p. 205). Se é da própria natureza das liberdades jurídicas conter contradições, criar dogmas, e se submeter a interesses e forças do poder público e de setores privados, no atual contexto da sociedade da informação, com sua intrínseca cibercultura, as liberdades de expressão encontram-se ainda mais repleta de problemas. Isto porque se o ambiente digital cria diversos mecanismos para se expressar e para exercer as liberdades de informação, diversas também são as barreiras legais e econômicas que, de forma explícita ou implícita, tolhem o exercício destas liberdades fundamentais. A expressão cibercultura representa algo além de formas de conexão entre comportamento humano e novas tecnologias, pois envolve aspirações pela construção de novos laços sociais, não fundados em cir- cunstâncias territoriais, ou em instituições e poderes, mas baseados em novos interesses coletivos de com- partilhamento, cooperação e processos abertos de informação e colaboração. (LÉVY, 1999, p. 132). Não são as novas tecnologias com suas respectivas máquinas que criam a cibercultura, mas sim os usos humanos dessas e consequentes comportamentos que assim o fazem. O que o desenvolvimento tecnológico permite é o surgimento de novas exigências sociais, novas formas de interação entre particulares e entre particulares com poderes públicos. Com a rede mundial de computadores interligando pessoas e pessoas, e pessoas a informações, cria- -se um mecanismo hábil a permitir o surgimento de uma nova concepção de inteligência coletiva e uma nova relação com a produção de conhecimentos. Atitudes como colaborar, compartilhar, cooperar ganham força com os mecanismos digitais disponíveis, em detrimento de lógicas privadas e individualistas como a sensa- ção de ter, possuir, disponibilizar etc. Do ponto de vista ideal, se reconhece que o que melhor o ciberespaço proporciona é a possibilidade de reunir conhecimentos, criações, idéias de pessoas em diferentes locais e culturas, porém, esse acesso coletivo ao conhecimento representa mais uma fonte de novos problemas do que especificamente de soluções. (LÉVY, 1999, p. 133).
  • 35. 35 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Se por meio da internet qualquer pessoa, usando de blogs, websites e perfis em redes sociais, pode transmitir informações e conhecimentos, pode se expressar com liberdade e pode interagir com a comunida- de virtual de forma não proporcionada em outros tempos, esta produção de manifestações nunca esteve tão vigiada e tão valorada. Os instrumentos proporcionados pela internet permitem que alguém explore uma declinação artísti- ca específica sem que precise de intermediários. Alguém pode criar um blog, ou usar de seu perfil em rede social, para divulgar sua linha de confecções, seus utensílios, as obras de arte que realizou. Pessoas podem usar também das plataformas virtuais para expressar idéias e opiniões, ainda que não seja considerado al- guém que represente uma empresa de comunicação. Daí, uma das questões a serem enfrentadas seria a que envolve limites a essas liberdades potencializadas pela cibercultura, ou, até mesmo se não há uma falsa sensação de que essas liberdades estejam tão amplas assim. Da mesma forma que a rede é vista como uma plataforma para expressar, para satisfazer exigências de informação e para exercer liberdades, ela também cria um novo meio a ser explorado comercialmente por novas formas de fazer negócios e novos desafios ao desenvolvimento de economias. Na sociedade da informa- ção, a exploração econômica se baseia também em comercializar bens imateriais e aqueles que representam os interesses econômicos privados vêem na rede um excelente ambiente para fazer negócios, e sendo assim, as liberdades trazidas pela cibercultura podem sofrer grandes supressões por políticas de censura e por nor- mas legais de controle da propriedade intelectual, por exemplo. (KRETSCHMANN, 2011, p. 77). Situações problemáticas surgidas com a cibercultura exemplificam como a internet pode incomodar o exercício tradicional de poder e a forma de pensar o direito. Casos como os grandes processos que envolvem de um lado sites que disponibilizam gratuitamente conteúdo artístico-cultural e de outro, representantes de grandes corporações (napster, soulseek e o mais recente piratebay), bem como os casos que envolvem punições políticas àqueles responsáveis pela divulgação não autorizada de informações de utilidade pública (Wikileaks e Julian Assange, ou Edward Snowden e o “escândalo da espionagem”) servem para mostrar que o tratamento dado às liberdades proporcionadas pela internet pode não estar tão compatível com os ideais da cibercultura. Ao mesmo tempo que a rede mundial de computadores oferece liberdades e satisfaz promessas de inclusão democrática, ela pode servir também para criar uma falsa sensação de liberdade, uma vez que é possível haver manipulações quanto ao que é disponibilizado na rede, controlando dados, informações ou qualquer conteúdo a ser acessado. (KRETSCHMANN, 2011, p. 77). Um dos conflitos que caracteriza esta ambigüidade da internet reside no exemplo que envolve li- berdade de expressão artística e regras tradicionais de direitos da propriedade intelectual. Os instrumentos que surgem com o desenvolvimento das tecnologias da informação permitem que cada indivíduo explore sua criatividade criando conteúdos até então reprimidos por incapacidades técnicas (ausência de recursos, espaços, repressão de mercado etc.), porém tais criações se submeterão às normas jurídicas de tutela da propriedade intelectual, que podem não terem se adequado à cibercultura e terminar tolhendo a liberdade fundamental de participar de forma criativa da produção cultural. São pontos a serem examinados. 2. DIREITOS AUTORAIS E LIMITES À CRIAÇÃO DE BENS CULTURAIS. A proteção legal dada às criações do espírito criativo humano requereu um tratamento específico, mediante disciplina apropriada à tutela jurídica da propriedade imaterial, pois ser proprietário de uma gar- rafa não é a mesma coisa de ser o responsável pelo desenho dela ou pela marca do produto que está sendo consumido por meio dela. Assim, os direitos autorais surgem como essa disciplina cujo objeto é as criações e as manifestações do intelecto. Ramo do Direito bastante complexo, rico de contradições e repleto de problemas contemporâneos a serem enfrentados, principalmente por causa dos comportamentos associados à mencionada cibercultura, os direitos autorais já começam a apresentar sua complexidade a partir da própria designação. Há quem
  • 36. 36 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. prefira usar a expressão propriedade intelectual como micro-sistema ao qual os direitos autorais estão liga- dos, e aqueles que vêem diferenças entre as expressões, preferindo não necessariamente vinculá-las. Seja por uma idéia ou por outra (usando ou não usando a expressão “propriedade”), é interessante frisar que a proteção oferecida pelos direitos autorais alcança não somente o aspecto patrimonial do produto cultural, respondendo questões sobre quem dispõe da obra, pra qual uso, se pode copiar e compartilhar etc., como também alcança aspectos da relação entre criador e obra mais ligados aos direitos da personalidade, como ser apresentado ou identificado como autor. No entanto, apesar do objeto dos direitos autorais alcançar direitos da personalidade do autor, sua origem e desenvolvimento prático possuem natureza bastante patrimonialística. A partir do século XVII o intelectual, bem como o artista, trabalha de forma autônoma, independente de patrões da nobreza ou do cle- ro, fazendo com que sua luta pela sobrevivência represente uma concorrência intelectual, uma competição entre criações e criadores. (FRAGOSO, 2012, p. 130). O problema não está na inserção das lógicas capital e patrimonial na proteção ao conteúdo autoral, mas sim reside no de identificar a quem isto realmente benefi- cia, se ao autor propriamente dito ou se ao intermediário, aquele cria o elo entre criador e público. Há regis- tros históricos demonstrando que desde o início da comercialização dos livros, existiam prejuízos ao escritor porque os negócios envolvendo livros traziam vantagens aos editores, recebendo incentivos reais diferentes e mais vantajosos do que a remuneração dada aos escritores. (FRAGOSO, 2012, p. 135). Como o desenvolvimento histórico dos direitos autorais não é objeto de estudo deste trabalho, a questão a ser enfrentada é a de analisar se os direitos autorais estão atingindo seus objetivos de proteger os criadores e incentivar a criatividade, ou se eles representam uma espécie de barreira legal para o surgimento de novas obras e novos exercícios do direito à criatividade. Em qualquer análise introdutória sobre os objetivos dos direitos autorais, a proteção à criatividade está sempre inserida dentre eles. A tutela da criação é o que justifica a própria existência do Direito de au- tor, uma vez que, não sendo identificada qualquer carga de contribuição criativa na obra, ela não merecerá a tutela deste direito, ficando o autor sem garantias jurídicas da compensação por esta contribuição dada à sociedade. (ASCENSÃO, 1997, p. 3). A contradição é identificada justamente sobre esta “compensação”, pois originalmente ela surge por meio de garantias de exclusividade de usos, por meio de instrumentos que impedem a abundância do pro- duto e que oferecem acesso a estes produtos artístico-culturais mediante pagamento hábil. Em tese a socie- dade aceita a contribuição dada pelo criador garantindo-lhe uma compensação pecuniária, que para ocorrer deverá provocar justificados impactos negativos na fluidez do acesso à cultura. (ASCENSÃO, 1997, p. 4). Ou seja, faz parte da concepção original de direitos autorais a sua capacidade de tolher liberdades fundamentais (acesso à informação, acesso à cultura, liberdade de expressão etc.), em nome da satisfação financeira do responsável pela obra, ainda que este responsável não seja o próprio criador. É possível argumentar que existe um direito fundamental de criar, de participar da criação de um patrimônio cultural, de livremente manifestar seu espírito criativo. Esta liberdade de criação “compreende o direito do indivíduo de gerar expressões intelectuais, sejam elas de caráter cultural (obras literárias ou artísticas), sejam elas de conteúdo científico ou técnico, sem qualquer restrição imotivada, isto é, sem necessidade de obter autorização ou licença e sem ficar sujeita a censura”. (SANTOS, 2011, p. 132). O objetivo desta liberdade de criação seria o de permitir que cada pessoa exerça sua criatividade sem barreiras, sem impedimentos indevidos. O que representa de logo uma contradição com características típicas dos direitos autorais, uma vez que em diversas hipóteses uma pessoa pode precisar de autorizações, de intermediários e de pagamentos para poder se basear em algo já criado e assim exercer sua criatividade. Com base nessa última observação indaga-se sobre a necessidade de intermediários e intermediações em tempos de cultura de compartilhamento na sociedade de informação. A dúvida surgida é a de saber se as concepções tradicionais dos direitos autorais estão em compatibilidade com novas exigências sociais provoca- das pela cibercultura ou se elas tolhem a criatividade, que estaria na essência da produção de conteúdo em ambiente virtual. O que passa a ser examinado.
  • 37. 37 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 3. CIBERCULTURA E PARTICIPAÇÃO: NOVOS MODELOS DE DIREITOS AUTORAIS PARA NOVAS DIMENSÕES DAS LIBERDADES DE COMUNICAÇÃO. Até então foi examinada a questão da liberdade de expressão, da liberdade de expressão na internet e de como os direitos autorais podem representar barreiras ao exercício dessas liberdades. O fato do sistema tradicional de proteção legal a conteúdo autoral criar limites às liberdades de expressão surge de seu cunho patrimonial, do fato deste sistema poder ser usado para satisfazer interesses patrimoniais. O copyright, ex- pressão que representa o sistema norte-americano de tutela legal das criações autorais, deu cabimento a distorções em sua própria aplicação, já que tem como proposta uma clausura de possibilidades de uso de con- teúdo cultural. Este modelo de direitos autorais surge como forma representativa de pretensões hegemônicas de uma classe dominante, resultando não exatamente de uma conquista de criadores, mas da uniformização dos esforços de livreiros e editores para conter a reprodução descontrolada de obras de arte, e assim preservar seus interesses econômicos. (FRAGOSO, 2012, p. 156). Então, apesar do conteúdo pessoal, está na essência do direito de autor, sua natureza econômica. A conotação econômica dada aos direitos autorais, com seu esquema de autorizações, usos exclusivos e direitos reservados, interessa a uma determinada classe que, de início detinha os meios necessários para expressar as manifestações criativas. Os direitos reservados de uso de bens culturais se concentrados indevi- damente permitem a criação de uma espécie de oligopólio cultural, pois seriam as empresas de transmissão e distribuição desse conteúdo que ditariam as regras do mercado de culturas, cabendo ao sistema legal não permitir que qualquer pessoa crie algo próximo, ou derivado do que já está sob “proteção”. Este raciocínio se enfraquece quando os donos dos veículos de intermédio (editoras, gravadoras dentre outros) enfrentam os novos meios de divulgação e expressão, como a internet, e novos comportamentos sociais típicos da cibercul- tura, como o dilúvio de informações e o compartilhamento de dados digitais. Apesar de sua origem remeter a esquemas de espionagem militar, a internet surge para a sociedade civil como um instrumento que promete uma quase irrestrita liberdade de acesso à informação e um poten- cial até então inatingível de participação democrática, seja em discussões políticas, seja em produção artísti- co-cultural. Numa determinada perspectiva o ciberespaço promete realizar ideais da modernidade, pois nele a igualdade se manifesta pela possibilidade de cada pessoa, independente de suas características, expressar informações, a liberdade surge por meio das possibilidades de acesso, navegação e comunicação, e a fraterni- dade vem como conseqüência das conexões promovidas em ambiente virtual. (LÉVY, 1999, p. 254). É possí- vel que estas promessas fiquem apenas em planos abstratos e não se materializem, até porque para isso seria necessário que cada cidadão do mundo possuísse meios para acessar a rede, o que não ocorre por causa de inúmeros problemas envolvendo a inclusão digital. Porém, os impactos da cibercultura nas liberdades de ex- pressão e criação, bem como na forma de pensar os direitos autorais são bastante manifestos e significativos. Se antes os donos dos meios necessários para se expressar possuíam mecanismos para criar uma espécie de oligopólio da comunicação, hoje com a internet é consideravelmente mais fácil driblar as grandes corporações e poder se expressar. Com um simples vídeo posto em um blog individual, um criador pode exibir sua produção, seja ela um curta, um clipe ou uma animação. Uma banda pode oferecer gratuitamente em seu website suas composições até então não registradas por uma grande empresa para poderem assim divul- gar sua arte. Simples exemplos que demonstram que a internet potencializa as possibilidades de se expressar. Não é apenas nos meios de comunicação que a cibercultura provoca impactos, mas também na própria forma de comercializar, de disponibilizar e apresentar uma modalidade de expressão artística. Tradi- cionalmente se entende que uma obra protegida por direitos autorais é aquela “que constitui exteriorização de uma determinada expressão intelectual, inserida no mundo fático em forma ideada e materializada pelo autor”. (BITTAR, 2004, p. 23). E que esta obra tutelável pelo direito requer esforço intelectual de seu autor que produz um bem a ser inserido materialmente na realidade fática. (BITTAR, 2004, p. 23). Porém, como antes já analisado, esta interpretação tradicional do objeto dos direitos autorais se torna no mínimo proble- mática na contemporaneidade imersa na cibercultura.
  • 38. 38 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Um dos motivos dessa incompatibilidade seria a própria inexistência de suporte fático para afirmar que a obra deve estar materializada em algo. Isto porque o ambiente digital não requer materialização da arte para considerá-la como legítima manifestação do espírito criativo. Outro motivo seria o de que o modelo tradicional de tutela da produção artístico-cultural exigia um intermediário (o que fornecia o intermédio), e com a internet esta intermediação não é mais necessária, devolvendo ao artista (o criador propriamente dito) o controle sobre sua obra, caso assim o opte. Diversas características da cibercultura, (participação, coletivi- dade, conectividade, virtualidade e outras) provocam um declínio do modelo de negócio baseado no esquema autor e intermediário. (LÉVY, 1999, p. 139). A internet e a cibercultura demonstram então não apenas um potencial para dinamizar o exercício de liberdades fundamentais, como também potencial para mexer na produção econômica, na forma como negócios são feitos, talvez principalmente naqueles negócios cujo objeto seja informação ou arte. A criati- vidade volta a ser incentivada pelas práticas da cibercultura, tornando-se um grande negócio seja com fins lucrativos, seja apenas para participar da produção de cultura. A cultura do digital “promete um mundo de criatividade incrivelmente diversa que pode ser fácil e amplamente compartilhada. E à medida que tal cria- tividade se aplicar à democracia, será possível que uma vasta parcela de cidadãos utilizem-na para expressar, criticar e contribuir com a cultura que os rodeia”. (LESSIG, 2005, p. 184). A colaboração propriamente dita, a participação e cooperação representam hoje objetivos do cidadão, não necessariamente interessado em obter ganhos patrimoniais com sua contribuição à cultura que o rodeia. Exemplos como os do Free Software, do Linux, das tecnologias da informação com códigos abertos, demonstram como há pessoas interessadas em formas de criação coletiva e colaborativa, ainda que isto não traga benefícios financeiros. A interatividade promovida pelas tecnologias da informação e exigências sociais da cibercultura reformulam a relação entre a obra e aquele que tem acesso a ela, permitindo que este seja também criador em colaboração e exemplos como o do Wikipédia e do Creative Commons demonstram como há uma demanda social para tal. (SANTOS, 2011, p. 147). Porém, todas essas promessas de liberdade, criatividade e colaboração vindas da cibercultura en- frentam uma imensa barreira legal, qual seja, a manutenção das regras tradicionais de proteção aos direitos autorais. Para que toda essa abertura democrática ao acesso à informação e liberdade de criação ocorra, é ne- cessário repensar o tratamento jurídico dado ao conteúdo autoral produzido, pois novos modelos de negócio surgem e assim exigem sua legalidade. Diante dos impactos produzidos pelo desenvolvimento tecnológico nos institutos jurídicos duas hipóteses surgem, uma a de que as normas jurídicas não sofrerão mudanças, outra a de que o sistema jurídico adotará medidas adaptativas, criando novas respostas jurídicas a mudanças de comportamentos sociais, a exemplo da possível subversão ao modelo tradicional de propriedade intelectual. (LEMOS, 2005, p. 66). Essa subversão não é uma eliminação de proteção legal à criação autoral, é apenas uma nova forma de tutelar, já que a cibercultura trouxe tantas transformações nas formas de se expressar. O que está em discussão aqui não é a necessidade de uma proteção legal, pois isso é de comum entendimento, mas sim o modelo de proteção oferecido pelos mecanismos legais tradicionais que podem, ao invés de incentivar a ex- pressão criativa, reprimir iniciativas de produção de cultura. Caso sejam mantidas regras de direitos autorais criadas antes da internet e da cibercultura, a mani- festação criativa pode ser inibida para satisfazer interesses econômicos de grandes corporações que podem estar interessadas em preservar o modelo de intermediação paga entre cultura e público interessado. Isto porque as novas formas de expressão e criação padecerão de ilegalidade, ou clandestinidade (como ocorre com o download gratuito feito pela rede que pode de imediato ser taxado de “pirata” numa visão bem inicial dos fatos). Na hipótese da legislação recair num excesso de regulação, prevendo punições excessivas para pe- quenas violações de direitos autorais, e se os empreendimentos inovadores passarem a ser constantemente fiscalizados ao ponto de requerem gastos volumosos com pagamentos e autorizações, haverá bem menos inovações e criatividade do que se houvesse uma alternativa à ilegalidade. (LESSIG, 2005, p. 192). Ou seja, em tempos de economia criativa, incentivos ao empreendedorismo e valoração da informação, a tutela jurí-
  • 39. 39 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. dica tradicional da propriedade intelectual serviria como uma barreira, impedindo parcela considerável da sociedade civil de cooperar e criar culturas, ficando essas atividades (ou permanecendo) reservadas a quem tiver meios financeiros capazes de arcar com as despesas necessárias. Não seria adequado que essa parcela da sociedade civil, querendo participar de seu próprio patrimônio cultural, fique à margem da legalidade, ou não receba oportunidade de assim cooperar. A resposta para retirar essa ilegalidade passa por escolhas entre obedecer estritamente a legislação da forma como ela está, ou modificar a norma jurídica, e quando os malefícios da manutenção de tradições se sobrepõem a seus próprios benefícios, é caso de considerar a possibilidade de mudanças. (LESSIG, 2005, p. 201). Alternativas para mudar a lógica da tutela jurídica da produção autoral já existem. Uma delas são as licenças Creative Commons. As licenças oferecidas por esta organização procuram atender os diversos inte- resses e opções da classe de artistas, criadores e produtores em geral, permitindo que o autor interessado receba a oportunidade de escolher dentre opções de licenças disponíveis. (LEMOS, 2005, p. 85). Com isto, o Creative Commons criam uma alternativa ao modelo tradicional, satisfazendo exigências da cibercultura de liberdade de escolhas e democratização das atividades criativas, representando por outro lado uma mudança que parte não dos representantes do poder estatal, mas sim da sociedade civil. (LEMOS, 2005, p.83). Havendo alternativas, ainda que criadas extraoficialmente por instituições e vontades privadas, cabe preservar as liberdades de expressão e criação, ainda que em detrimento das regras tradicionais de prote- ção aos direitos autorais. Isto porque a manutenção destes pode interessar a grupos de pressão específicos (possivelmente não interessados em novos modelos de negócio que venham a prejudicar suas pretensões econômicas), e ainda porque tais liberdades compõem uma espécie de ideário comum aos praticantes da cibercultura. CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo do trabalho foi o de analisar se as liberdades de expressão sofrem alguma alteração com a cibercultura e o desenvolvimento de tecnologias da informação que permitem acesso constante à internet, que por sua vez promete liberdades. Teve como objetivo também o de analisar a forma como os direitos auto- rais podem se relacionar com o exercício das liberdades para ou tolhe-lo ou garanti-lo, a depender da forma como é vista e interpretada a tutela jurídica da propriedade intelectual. No que diz respeito à liberdade de expressão, essa designação já não é mais suficiente para resumir todo um complexo de liberdades relacionadas com formas de manifestação. Liberdades de comunicação, de acesso à informação e cultura, e liberdade de criação também são objeto de tutela jurídica diferenciada, como o são as garantias constitucionais e os direitos previstos em instrumentos de direitos humanos. Apesar da complexidade, interessou ao trabalho criar uma linha de raciocínio pela qual a liberdade de exercer cria- tividade faz parte deste rol de liberdades garantidas de forma fundamental. Esta liberdade de criatividade é potencializada pelas práticas da cibercultura, pois a internet e respectivas tecnologias proporcionam e poten- cializam formas de participação, criação e quaisquer manifestações do espírito em seus ambientes virtuais. Assim, é da natureza da internet criar um ambiente livre de barreiras, ou melhor, um ambiente cuja regulamentação exista, mas de forma compatível com contemporâneas exigências sociais. A vontade de exer- cer liberdades existe, instrumentos capazes de fazê-las ocorrerem também e um sentimento de regulação ainda que mínima também. O problema reside quando esta regulação ultrapassa limites da ideologia por trás da cibercultura, ao ponto de provocar supressões às liberdades legalmente garantidas. Uma destas formas de suprimir liberdades, especificamente a de expressar criatividade, está na aplicabilidade dos direitos autorais. Direitos que surgem como garantias aos criadores, mas que podem servir para satisfazer interesses econômi- cos de empresas que intermedeiam a relação entre criação e público interessado. Porém, com a internet este caminho pode ser disponibilizado pelo próprio autor da obra, recaindo sobre ele, o próprio criador do bem cultural o controle dos usos de sua produção. O problema está na possível ilegalidade da subversão à tradição da tutela legal da propriedade inte- lectual, mas que pode ser driblada mediante alternativas, sejam elas estatais, como possíveis reformas da le-
  • 40. 40 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. gislação autoral, ou não-estatais, como iniciativas da sociedade civil (free software, Linux, Creative Commons dentre outras), que demonstram como alterações podem ocorrer com o objetivo de preservar liberdades e satisfazer aspirações contemporâneas intrínsecas à sociedade da informação. Enfim, há meios de garantir as liberdades de expressão em tempos de internet, sem que isto represente descontrole absoluto do espaço virtual, sem que isto represente ausência de direitos autorais, mas sim com alternativas legais e boa vontade política. REFERÊNCIAS ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. Rio de Janeiro: Renovar, 1997. BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. Rio de Janeiro: Forense, 2004. BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasília: editora universidade de Brasília, 1986. FARIAS, Edilsom Pereira de. Estatuto teórico da liberdade de expressão e comunicação. In: LOIS, Cecília Caballeros e BASTOS JUNIOR, Luiz Magno Pinto (coordenanores). A constituição como espelho da realidade: interpretação e jurisdição constitucionais em debate: homenagem a Silvio Dobrowolski. São Paulo: LTr, 2007. Páginas 156 a 180. FRAGOSO, João Henrique da Rocha. Direito de Autor e Copyright: Fundamentos Históricos e Sociológi- cos. São Paulo: QuartierLatin, 2012. KRETSCHMANN, Angela. O papel da dignidade humana em meio aos desafios do acesso aberto e do acesso universal perante o direito autoral. In: SANTOS, Manoel Pereira dos (Coordenador). Direito de Autor e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011. Páginas 76 a 103. LEMOS, Ronaldo. Direito, Tecnologia e cultura. Rio de Janeiro: FGV, 2005. LESSIG, Lawrence. Cultura Livre: como a grande mídia usa a tecnologia e a lei para bloquear a cultura e controlar a criatividade. São Paulo: Trama, 2005. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. RIVERO, Jean. Liberdades públicas. São Paulo: Martins Fontes, 2006. SANTOS, Manoel Pereira dos. Direito de autor e liberdade de expressão. In: SANTOS, Manoel Pereira dos (Coordenador). Direito de Autor e direitos fundamentais. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011. Páginas 129 a 158.
  • 41. 41 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. INFRAERO E A ADOÇÃO DO ORÇAMENTO SIGILOSO NO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÃO PÚBLICA (RDC): UMA ANÁLISE SOBRE A (IN) CONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO Alcerlane Silva Lins Bacharela em Direito pela Faculdade ASCES. Advogada. Pesquisadora do INICIA/ASCES. Roberta Cruz da Silva Bacharela e Mestre em Direito, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora de Direito Administrativo e de Prática Constitucional-Administrativa da Faculdade ASCES; da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ) e das pós-graduações da Faculdade ASCES; da ESMATRA/PE e do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS-Recife). Advogada. SUMÁRIO: Introdução; 1. Origem do Regime Diferenciado de Contratação e a sua possível (in) constitucionalidade; 2. O Regime Diferenciado de Contração e o tratamento conferido ao princípio da publicidade; 3. Aspectos relevantes do sigilo do orçamento estimado no RDC; 4. Justificativas para adoção do sigilo e a sua efetividade nas licitações da Infraero; Considerações finais; Referências. INTRODUÇÃO A licitação é o meio utilizado pela Administração Pública para se alcançar a proposta mais vantajosa e consequentemente, a formação do contrato administrativo. Assim, pode-se afirmar que a licitação é medida que se impõe a Administração em decorrência do artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal de 1988 e, antecede os contratos administrativos. Entretanto, as normas infraconstitucionais que regem o procedimento licitatório parecem não suprir as demandas atuais. Essa deficiência ficou evidenciada quando o Brasil foi escolhido para sediar os eventos esportivos que ocorreriam entre 2013 a 2016 e não conseguiu viabilizar as obras vinculadas a tais eventos com as normas até então vigentes, provocando a discussão sobre a urgente necessidade de mudanças no sistema licitatório. Assim, a necessidade de um regime licitatório mais célere, levou a instituição do Regime Diferencia- do de Contração (RDC), que é disciplinado pela Lei nº 12.462/11 e, tem como finalidade primordial agilizar a execução das obras para os jogos da Copa das Confederações 2013, da Copa do Mundo FIFA 2014, das Olimpíadas e Paralimpíadas em 2016. Esse novo regime tinha objeto transitório e limitado aos eventos esportivos sediados no país, sendo criado para atender situações excepcionais, no entanto, passou a abranger outras situações sem quaisquer vinculações com as hipóteses originárias. Com isso, percebe-se que há uma grande tendência de expansão do objeto do RDC, comprovando a relevância e atualidade do tema. As inovações advindas com essa nova modalidade licitatória provocaram diversas críticas, tanto pela forma como esse regime foi inserido no ordenamento jurídico, como pelas inovações decorrentes de seus institutos.
  • 42. 42 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Dentre as inovações que provocaram grandes controvérsias jurídicas pode-se destacar o orçamento sigiloso, que é objeto de estudo desse trabalho, previsto no artigo 6º da referida lei, que dispõe sobre a pos- sibilidade da Administração Pública não divulgar o valor estimado do objeto licitado, enquanto se processa a licitação, tornando-se público apenas ao final do certame. Por isso, acredita-se que este sigilo afronta o prin- cípio constitucional da publicidade. Nesse contexto, insere-se a presente pesquisa que tem como objetivos analisar a compatibilidade do sigilo do orçamento estimado com a Constituição Federal de 1988 e verificar a efetividade desse instituto no âmbito da Infraero. Para isso, a pesquisa não se restringiu ao estudo unicamente da lei, mas analisou o posicionamento doutrinário e jurisprudencial do Tribunal de Contas da União, além do estudo dos editais de licitações no âmbito da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero), bem como análise das ADI’s nº 4.645/11 e nº 4.655/11 que, atualmente aguardam julgamento do STF. Para tanto o método utilizado foi o hipotético dedutivo, adotando como hipótese que o sigilo do orçamento estimado afronta o princípio da publicidade. Tal sigilo é analisado com ênfase no aspecto jurídico e o aspecto econômico, para possível comprovação da constitucionalidade e efetividade desse instituto, bem como a sua repercussão social e econômica. Nessa perspectiva, espera-se chegar a um resultado que comprove a viabilidade e os benefícios para Administração Pública, auferidos pela ausência de publicação do orçamento estimado durante a licitação. Com isso, fica evidente a necessidade de um estudo mais detalhado sobre o tema. 1. ORIGEM DO REGIME DIFERENCIADO DE CONTRATAÇÃO E A SUA POSSÍVEL (IN) CONSTITUCIONALIDADE. A Constituição Federal de 1988 no seu artigo 37, inciso XXI, estabeleceu que as contratações públicas devam ser precedidas de procedimento licitatório, ressalvados os casos previstos em lei. A partir dessa impo- sição, a licitação passou a ser uma exigência constitucional, de observância obrigatória pela Administração Pública e por outras pessoas indicadas pela lei (OLIVEIRA, 2015, p.25). Para regulamentar esse dispositivo constitucional foi editada a Lei nº 8.666/93, denominada de Lei Geral de Licitações e Contratos, que estabelece em seu artigo 3º que este procedimento destina-se a garantir a observância dos princípios constitucionais e específicos para seleção da proposta mais vantajosa para Admi- nistração Pública, (BRASIL, LEI Nº 8.666, 1993). Atualmente, outras leis têm regulamentado esse procedimento uma vez que a Lei de Licitações e Contratos não tem conseguido alcançar e nem solucionar situações específicas, como aconteceu com as obras e serviços vinculados aos eventos esportivos sediados no Brasil entre os anos de 2013 a 2016, que foi a mola propulsora para a criação de uma Lei que atendesse as demandas atuais na seara estatal com celerida- de e efetividade (HEINEN, 2015, p. 9). Nesse contexto, surge a Lei nº 12.462/11 que, de início, teve seu objeto limitado aos eventos espor- tivos sediados no Brasil, como a Copa das Confederações que ocorreu em 2013, Copa do Mundo em 2014, bem como os jogos Olímpicos e Paralímpicos que ocorrerão em 2016 (OLIVEIRA, 2015, p. 185). Trata-se da Lei do Regime Diferenciado de Contratação (RDC), que segundo Oliveira, (OLIVEIRA, 2015, p.185) segue orientada por parâmetros de eficiência, agilidade e economicidade, com a finalidade de viabilizar os eventos esportivos mencionados. As primeiras tentativas para se inserir o RDC no ordenamento jurídico, foram por intermédio das Medidas Provisórias nº 488 e nº 489 de 2010, que perderam a eficácia, em razão da não votação no prazo constitucional. Ainda assim, afirmam Motta e Paolucci, (2012, p. 29) que as ideias principais de tais Medidas Provisórias sobreviveram e reapareceram por meio da Lei nº 12.462/11, fruto da conversão da Medida Provisória nº 527/11. (BRASIL, MEDIDA PROVISÓRIA Nº 527, 2011). Foi durante a tramitação de tal Medida Provisória, que o deputado federal José Guimarães (PT/CE) apresentou em plenário uma emenda com conteúdo diverso do discutido na Medida Provisória. A princípio, o tema abordado referia-se unicamente, a alteração da estrutura do Poder Executivo Federal, para criação
  • 43. 43 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. da Secretaria de Aviação Civil, bem como conferia autorização para contratação temporária de controlado- res de tráfego aéreo, enquanto que a proposta de emenda apresentada pelo deputado tratava da inclusão dos dispositivos que instituíam o RDC. Dessa forma, a Medida foi discutida, aprovada pelas casas do Poder Legislativo, sancionada pela Presidenta da República e consequentemente, convertida na Lei nº 12.462/11 (ALTOUNIAN, 2014, p.39). Como mencionado, a inserção da Lei nº 12.462/11 no ordenamento jurídico pátrio veio acompanha- do de muitas inovações que provocou intensos questionamentos sobre a inconstitucionalidade da Lei e de al- guns institutos que ela disciplina. Tudo isso, levou ao ajuizamento de duas Ações Diretas de Inconstituciona- lidade (ADI). A primeira foi a ADI nº 4.645 proposta por partidos políticos que argumentaram a extrapolação do poder de emendar, bem como a violação ao princípio da publicidade (HEINEN, 2015, p.18). A segunda foi a ADI nº 4.655 ajuizada pelo Procurador-Geral da República (PGR), à época, Roberto Monteiro Gurgel Santos que, também apontou inconstitucionalidades formais e materiais da Lei nº 12.462/11, referente a não observância ao devido processo legislativo, bem como a inconstitucionalidade de alguns dispositivos (HEI- NEN, 2015, p.12). Entre as inovações apontadas com vícios de inconstitucionalidade, tem-se o orçamento sigiloso que foi objeto de questionamento da ADI nº 4645/11 ajuizada por partidos políticos, sob o argumento de que nes- se instituto há uma inversão de regras constitucionais, em que se atribui ao orçamento estimado um caráter sigiloso, enquanto que, no ordenamento jurídico o sigilo é a exceção e não a regra, violando o princípio da publicidade, inclusive o da moralidade. Nesse aspecto é importante analisar como o RDC trata o princípio da publicidade (HEINEN, 2015, p. 38). 2. O REGIME DIFERENCIADO DE CONTRAÇÃO E O TRATAMENTO CONFERIDO AO PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE. A partir deste item, será analisado o tratamento que o RDC confere ao princípio da publicidade uma vez que tal princípio atribuiu eficácia aos atos administrativos. Assim, percebe-se que o RDC expressamente invocou esse princípio, conforme redação do artigo 3º da Lei nº 12.462/11: Art. 3º As licitações e contratações realizadas em conformidade com o RDC deverão observar os princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralida- de, da igualdade, da publicidade, da eficiência, da probidade administrativa, da economicidade, do desenvolvimento nacional sustentável, da vinculação ao instrumento convocatório e do julgamento objetivo. Desse modo, observa-se que o legislador, ao instituir o RDC, determinou que os procedimentos que integram esse Regime estão condicionados a observância do princípio da publicidade. Esse princípio também é reforçado, pelo o caput do artigo 15, da Lei do RDC, que impõe aos órgãos da Administração o dever de dar ampla publicidade aos procedimentos licitatórios, ressalvado os casos determinados em lei. Também o § 1º do artigo 15, da citada lei, assegura que a publicidade pode ocorrer de forma direta aos fornecedores cadastrados ou não cadastrados, sem prejuízo das formas estabelecidas no artigo 15, §1º, incisos I e II, que determina que a publicação deverá ocorrer por meio do Diário Oficial e internet, de forma cumulativa (BRASIL, LEI Nº 12.462, 2011). Como se percebe, a dimensão dada a esse princípio pelo RDC não permite que a publicidade se limi- te apenas à divulgação em mídia impressa, como faz a Lei nº 8.666/93, mas que se estenda também à mídia eletrônica, a qual tem custo menos elevado. No entanto, verifica-se que esse meio de publicação também tem algumas limitações que pode restringir o acesso à informação, como por exemplo, quando os interessados es- tiverem localizados em áreas sem acesso à internet, ou mesmo quando não tiverem habilidades em manusear tal veículo de informação (ZYMLER, 2013; p.300). Todavia, Zymler (2013, p. 300) reconhece que a publicação dos atos licitatórios por meio da internet proporciona ampla vantagem, pois tal mecanismo consiste na possibilidade da publicação se dar de forma
  • 44. 44 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. contínua, o que não ocorre com a mídia impressa, em que a publicidade tem efeito instantâneo, ou seja, per- dura até a retirada de circulação da informação. Outra vantagem desse veículo apresentada pelo autor, diz respeito ao alcance desse meio de comunicação, pois quando se usa os meios de mídias eletrônicas, há um alargamento da publicidade, uma vez que tal divulgação alcança todos os interessados pelo certame, além de abranger todos os atos da licitação, independentemente, do valor do objeto e da localização do licitador (ZYMLER, 2013; p. 300). Com isso, é possível verificar que, a publicação em jornal de grande circulação tornou-se uma fa- culdade no RDC, sendo exigido apenas a publicação no Diário Oficial e internet. Segundo entendimento da doutrina, quando a licitação for de grande vulto ou com objeto complexo deve-se proceder a publicação em jornais de grande circulação, haja vista o acesso à informação corresponder a um direito que não pode ser mitigado indevidamente (BARIAN JUNIOR, 014, p.121). Em que pese toda essa discussão, vale salientar que para se concretizar o direito fundamental de acesso à informação devem-se utilizar todos os meios disponíveis e, existindo pluralidade de formas de divul- gações capazes de efetivar o princípio da publicidade, deve-se privilegiar a que melhor concretize o princípio da publicidade (BARIAN JÚNIOR, 2014, p.121). No entanto, é preciso não confundir a publicidade com a publicação, pois segundo Amaral (2010, p.7), a publicação por si só não assegura a publicidade, pois quando aquela é realizada de forma deficiente, este é violado. Assim, resta evidente que existem atos que mesmo sendo publicado, não efetivam o princípio da publicidade. Assim, diante da importância atribuída ao princípio da publicidade percebe-se que o RDC, em nome do interesse público, adotou o sigilo do orçamento estimado como regra fundamental para se chegar a pro- posta mais vantajosa, conforme se depreende do artigo 6º da Lei nº 12.462/11. Tal inovação tem provocado intensas controvérsias que remetem ao seguinte questionamento: sendo a publicidade princípio tão relevan- te, pode ser mitigado pelo sigilo do orçamento estimado do RDC, em nome da proposta mais vantajosa? Essa temática será analisada com maiores detalhes no tópico a seguir. 3. ASPECTOS RELEVANTES DO SIGILO DO ORÇAMENTO ESTIMADO NO RDC. O sigilo do orçamento estimado previsto no artigo 6º da Lei nº 12.462/11 é, atualmente, um dos pon- tos mais discutidos do RDC, por estabelecer que esse orçamento apenas seja publicado ao final da licitação, sendo interpretado por muitos como uma afronta ao princípio da publicidade. Por isso, para melhor compre- ensão do tema faz-se necessário entender inicialmente o que é orçamento estimado. A definição de orçamento estimado, proposta por Altounian e Cavalcante (2014, p. 97), consiste na forma de avaliação do custo da obra ou serviço que se deseja contratar, tomando-se por base os índices que apontem o custo médio do empreendimento de forma rápida. No entanto, vale salientar que esse tipo de or- çamento é menos detalhado, em razão da ausência de projeto básico, pois esse orçamento é elaborado ainda na fase preliminar da licitação (ALTOUNIAN; CAVALCANTE, 2014, p. 97). Diante da visível influência que esse orçamento exerce sobre a licitação, o legislador instituiu o sigilo do orçamento como condição para se chegar à proposta mais vantajosa, incorporando uma prática comum e já vivenciada nas relações de negócios entre particulares. Com isso, acredita-se que omitindo o valor máxi- mo que a Administração pública se propõe a pagar, pode-se chegar à melhor proposta. Isso não significa que a Administração não elaborará o orçamento estimado, mas que será publicado apenas ao final da licitação. (CHARLES; MARRY, 2014, p. 62). Nesses termos, destaca-se que tal sigilo não alcançará os órgãos de con- trole externo e interno, uma vez que estes terão livres acesso a todas às informações do certame. Dessa forma, é possível perceber que esse sigilo não é absoluto, nem uma imposição da Lei, mas é uma opção para o gestor público, que após analisar a esfera de conveniência e oportunidade decidirá se o si- gilo se adequa ao critério de julgamento escolhido ou as especificidade do objeto licitado (CHARLES; MARRY, 2014, p. 68-70).
  • 45. 45 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Nesse contexto, verifica-se que a própria Lei do RDC relativiza o sigilo do orçamento estimado quan- do determina que os critérios de julgamento maior desconto, melhor técnica ou conteúdo artísticos são in- compatíveis com a natureza do sigilo do orçamento e, portanto, quando a Administração adotar tais critérios o sigilo não poderá ser adotado por expressa vedação legal e lógica, (CHARLES; MARRY, 2014, p. 71). O tribunal de Contas da União também entendeu no Acórdão nº 3.011/2012 que esse sigilo não é absoluto e, portanto, não tem natureza obrigatória. Esse Acórdão tratou de vários assuntos referentes às licitações com RDC, envolvendo a Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) que teve como Relator o Ministro Valmir Campelo que na ocasião entendeu que o sigilo do orçamento estimado não tem natureza obrigatória, conforme voto que retrata com clareza, a questão: Concluo, então, que, como o sigilo no orçamento-base não é obrigatório, e pelo dever de motivação de todo ato, se possa recomendar à Infraero que pondere a vantagem, em termos de celeridade, de realizar procedimentos com preço fechado em obras mais complexas, com prazo muito exíguo para conclusão e em que parcela relevante dos serviços a serem executados não possua referência explícita no Sinapi/Sicro, em face da possibilidade de fra- casso das licitações decorrente dessa imponderabilidade de aferição de pre- ços materialmente relevantes do empreendimento [...]. Com esse posicionamento o Tribunal de Contas da União confirmou a facultatividade do orçamento sigiloso, autorizando os gestores a analisarem e decidirem se adotam este instituto nas licitações. O TCU ainda recomendou que nas licitações com objeto de alta complexidade, com prazo mínimo para conclusão e, quando houver ausência de parâmetros oficiais de preços, o gestor deve analisar a viabilidade desse sigilo, pois se percebeu que esses fatores influenciam no êxito do sigilo do orçamento do RDC, haja vista, no caso analisado, as propostas apresentadas nessas situações mostrarem-se incompatíveis com o custo estimado pela Administração, devido à ausência de preços de referências. 4. JUSTIFICATIVAS PARA ADOÇÃO DO SIGILO E A SUA EFETIVIDADE NAS LICITAÇÕES DA INFRAERO. Entre as intensas discussões e controvérsias que envolvem o sigilo do orçamento, tem-se questiona- do quais motivos influenciaram o legislador a instituir o sigilo do orçamento estimado no RDC, visto que no ordenamento jurídico predomina a publicidade dos atos. A resposta a essa indagação pode ser encontrada no parecer do Relator do Projeto de Lei de Conversão nº 17, de 2011, decorrente da Medida Provisória nº 527/2011, que apresentou como justificativa para adoção do sigilo, a necessidade de impedir a formação de cartéis entre os licitantes, como se extrai do trecho do Parecer do Senado: Outra medida destinada a combater os cartéis é o sigilo do orçamento prévio durante a licitação. Em mercados cartelizados, é comum que os agentes eco- nômicos combinem previamente como se comportarão nos certames. Eles dividem o mercado de obras públicas entre si, tornando a licitação um jogo de cartas marcadas, no qual os participantes do conluio já sabem de antemão qual deles irá vencer a disputa. Sabedor de que os outros licitantes irão ofer- tar preços superiores ao de sua proposta, o futuro vencedor pode elaborar a sua de modo a que a margem de desconto em relação ao orçamento prévio da Administração seja mínima [...]. Como se vê, o sigilo do orçamento, longe de ser uma medida reprovável, como sugerido por setores da mídia, traduz- -se em inegável avanço na legislação, constituindo prática recomendada pela OCDE e adotada pela legislação de diversos países, como a França e os Esta- dos Unidos. Como se percebe, o sigilo tem como finalidade inibir a prática de carteis, além de ser uma recomen- dação da Organização e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que estabeleceram diretrizes, visando comba-
  • 46. 46 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. ter a formação de conluio nas licitações. Para isso, recomendou como garantia da lisura desse sigilo, manter guardada uma via do orçamento estimado em envelope lacrado, sob a responsabilidade de uma autoridade pública sem vínculo com o órgão responsável pelo certame (REZENDE, 2015, p. 41). Dessa forma, acredi- ta-se que não haverá vazamento de informações, inclusive, impedirá a alteração do valor estimado após o início da licitação. Nesse aspecto, Heinen (2015, p. 37) entende que, a adoção do sigilo do orçamento nas licitações aumenta a possibilidade das propostas ofertadas pelos licitantes serem mais condizentes com suas realidades, representando a verdadeira situação econômica da empresa, além de exigirem dos participantes maiores cuidado na hora de elaborarem suas propostas. Em sentido contrário encontram-se aqueles que declaram que o sigilo do orçamento não será ca- paz de inibir a formação de conluio e cartéis, devido aos seguintes obstáculos: a) A administração elabora o orçamento estimado com base nos preços de mercados, que são acessíveis a todos, inclusive, das empresas participantes dos certames; b) A disponibilidade das informações aos órgãos de controle interno ou externo produz um risco de vazamento de informações por integrantes dos órgãos (CAMMAROSANO; DALPOZZO; VALIM, 2014, p. 53); c) O sigilo pode aumentar a possibilidade da licitação converte-se em deserta, diante da ausência de informações relevantes que auxilie a elaboração da proposta pelo licitante, desestimulando a competição na licitação (ALTONIAN; CAVALCANTE, 2014, p. 120). No entanto, os resultados apresentados decorrentes da experiência da Infraero demonstram que, apesar de se verificarem algumas falhas na adoção desse sigilo, todos eles foram passíveis de correção pelos órgãos de controles e os resultados positivos superaram as expectativas, conforme demonstra o resultado da auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União, especificamente pela Secretaria de Fiscalização de Obras Aeroportuárias e de Edificação (SecobEdif) nas obras de reforma, ampliação e restauração de pistas de pouso no aeroporto de Confins, em Minas Gerais, conforme destaca o Acórdão nº 305/2013 que teve como relator o Ministro Valmir Campelo: [...] A equipe de auditoria informou um sobre preço no orçamento base da licitação, mas prontamente corrigido pela Infraero anteriormente ao início do certame. Tal providência repercutiu em uma redução do valor base da licitação em mais de R$ 19 milhões [...]. Pode-se, diante disso, tanto festejar o sucesso do RDC eletrônico, como também - e por que não o do sigilo do orçamento, revelado somente após a publicação da classificação. Extrai-se ainda da redação desse Acórdão que, a auditoria realizada pelo TCU ocorreu na fase inter- na da licitação, possibilitando o saneamento das irregularidades e promovendo resultados economicamente elevados. Isso também comprava a disponibilidade de informações aos órgãos de controle, efetivando o que determina o artigo 6º da Lei do RDC, o qual prevê que as informações relativas às licitações serão disponibi- lizadas aos órgãos de controle de forma ampla. A licitação citada por esse Acordão tinha como valor estimado pela Infraero, R$ 257.149.317,80 (duzentos e cinquenta e sete milhões, cento e quarenta e nove mil, trezentos e dezessete reais e oitenta centavos), no entanto, foi homologada por R$ 199.044.986,52, (cento e noventa e nove milhões, quarenta e quatro mil, novecentos e oitenta e seis reais e cinquenta e dois centavos), indicando que em termos de eco- nomicidade o sigilo do orçamento tem apresentado resultados efetivo. (BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE LICITAÇÕES, 2015). Nesse contexto destaca-se o aspecto econômico do RDC, analisado nessa pesquisa por meio de visita realizada ao site da Empresa Infraero no dia 18 de maio de 2015, a qual constatou que foram homologados 74 procedimentos licitatórios sob a égide do RDC, dos quais 69 adotaram o sigilo do orçamento estima- do. As licitações que adotaram o sigilo do orçamento envolveram um montante de aproximadamente R$ 3.175.776.144,35, (três bilhões, cento e setenta e cinco milhões, setecentos e setenta e seis mil, cento e quarenta e quatro reais e trinta e cinco centavos). Entretanto, o valor total homologado pela Infraero, corres- ponde a aproximadamente, R$ 2.924.175.738,21 (dois bilhões, novecentos e vinte quatro milhões, cento e
  • 47. 47 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. setenta e cinco mil, setecentos e trinta e oito reais e vinte um centavo), representando em termos percentu- ais a diferença de 7,92% (BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE LICITAÇÕES, 2015). De forma sistemática, tentou-se transformar as informações levantadas no site da Infraero em dados estatísticos representados por gráficos que foram divididos em dois grupos: as licitações realizadas na moda- lidade RDC presencial e RDC na modalidade eletrônica. Ressalta-se que, apenas foram contabilizados os valores das licitações homologadas que adotaram o sigilo do orçamento, considerando os anos compreendidos entre 2011 a 2014 no âmbito da Infraero. Para melhor sintetizar os resultados analisados nas licitações que adotaram o sigilo do orçamento estimado na modalidade presencial segue o gráfico 1: As licitações realizadas sob a égide do RDC na modalidade eletrônica também foram objetos de es- tudos, expostos no gráfico 2. Assim, foi considerado para análise dessa modalidade o período de 2012 a 2014. Percebe-se também que, a partir do ano de 2014 a Infraero priorizou a modalidade eletrônica, diminuindo gradativamente o uso das licitações na modalidade presencial, uma vez que no ano de 2014 não houve licitações nessa modalidade (BRASIL, INFRAERO, PORTAL DE LICITAÇÕES, 2015).
  • 48. 48 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Todo esse panorama retrata no âmbito da Infraero a relevância e efetividade do sigilo do orçamento, a partir dos resultados economicamente viáveis apresentados na pesquisa. Por fim, diante dos dados pesqui- sados e analisados é possível perceber que em relação ao aspecto econômico o sigilo do orçamento estimado apresentou resultados satisfatórios e relevante efetividade econômica no âmbito da Infraero. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Regime Diferenciado de Contratação foi criado, inicialmente, para ser aplicado às obras e servi- ços relativos aos eventos esportivos, sediados no país entre os anos de 2013 a 2016. Nesse aspecto, o objeto originário do RDC era transitório e limitado, entretanto, devido aos resultados apresentados, o seu objeto foi ampliado, alcançando demandas sem nenhum vínculo com o objeto inicial. Desse modo, as inovações inseridas no ordenamento jurídico com o advento desse regime provoca- ram intensas discussões e controvérsias, que alcançaram o Supremo Tribunal Federal por meio das Ações Diretas de Inconstitucionalidade, nº 4645/11 e nº 4655/11, no entanto, até o presente momento não foram julgadas. Entre os diversos dispositivos impugnados pela ADI nº 4645/11 encontra-se o artigo 6º da Lei do RDC, que disciplina o sigilo do orçamento estimado, estabelecendo que o orçamento da licitação será elabo- rado, todavia, não será publicado antes do encerramento do certame. A controvérsia referente a esse instituto reside no fato de que no regime licitatório tradicional, disciplinado pela Lei 8.666/93, a publicação do orça- mento estimado deve ocorrer juntamente com o edital. Assim, esse instituto desagradou a muitos, que visualizam no sigilo do orçamento estimado uma grave violação ao princípio da publicidade. Esse princípio determina que os atos administrativos devam ser publicizados com transparência, de modo a facilitar o controle tanto pelos órgãos de fiscalização como pela sociedade, favorecendo o Estado Democrático de Direito. Um dos principais argumentos para adoção do sigilo do orçamento é a de que esse instituto pode ini- bir as práticas de formações de cartéis, visto que a ausência dessa informação inviabiliza tal conduta, além de obrigar os participantes a elaborarem propostas mais reais e exequíveis, com a plena efetivação do princípio da eficiência. Durante a pesquisa também se percebeu que o sigilo do orçamento não é absoluto, tendo em vista que algumas situações não se adaptaram ao instituto, como as licitações que adotam os critérios de julgamento: maior desconto, melhor técnica ou conteúdo artístico, que devido às peculiaridades desses critérios torna-se inviável a adoção do sigilo. A outra forma de relativização desse sigilo é a liberdade concedida à Administração Pública para decidir se adota ou não o sigilo do orçamento estimado. A análise sobre a jurisprudência do Tribunal de Contas da União e os editais de licitações apontou que o sigilo do orçamento estimado do RDC no âmbito da Infraero foi efetivo, pois os valores homologados foram sempre menores que os valores estimados, traduzindo a viabilidade econômica do orçamento sigiloso. Assim, contudo, parecem ser inconsistentes as alegações de inconstitucionalidade do sigilo do orça- mento estimado do RDC, previsto no artigo 6º da Lei 12.462/11, pois ao que tudo indica, o sigilo do orçamen- to estimado faz parte de uma importante adequação do sistema licitatório ao atual contexto social, visando atingir o interesse público com o alcance da proposta mais vantajosa para Administração Pública e de forma plenamente, compatível com a Constituição Federal de 1988, refutando a hipótese levantada no início da pesquisa. Em relação ao aspecto econômico o sigilo do orçamento mostrou-se plenamente efetivo no âmbito da Infraero.
  • 49. 49 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. REFERÊNCIAS Legislação BRASIL. Lei nº 12.462, de 4 de ago. de 2011. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 ago. 2011. Seção 1, p. 1. ______. Medida Provisória nº527, de 18 de mar. de 2011. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 18 mar. de 2011. Seção 1, p.1. Edição Extra. ______. Decreto Lei nº 7.581 de 11 de outubro de 2011. Diário Oficial da República Federativa do Bra- sil, Poder Executivo, Brasília, DF, 13 de outubro de 2011. Seção 1, p.1. ______. Lei nº 8.666, de 21 de Junho de 1993. Diário Oficial da República Federativa, Poder Legisla- tivo, Brasília, DF, 22 de junho de 1993. Seção 1, p. 8269.República Federativa do Brasil. Poder Legislativo, Brasília, DF, 5 de outubro de 1988, p. 1. Livros AGRA, Walber de Moura. Curso de direito Constitucional. 7 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012. ALTOUNIAN, Cláudio Sarian; CAVALCANTE, Rafael Jardim. RDC e Contratação Integrada na prática: 250 questões fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2014. BARIANI JUNIOR, Percival José. Da publicidade dos instrumentos das licitações pelo RDC, dos modos e disputa e dos critérios de julgamento. In: CAMMAROSANO, Márcio; DALPOZZO Augusto Neves; VALIN, Rafael (Coord). Regime Diferenciado de Contratação Pública – RDC (Lei nº 12.462/11; Decreto 7.581/11): aspectos fundamentais. 3 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. CAMMAROSANO, Márcio; DAL POZZO, Augusto Neves; VALIM, Rafael. Regime Diferenciado de Con- tratações Públicas – RDC (Lei 12.462/11; Decreto 7.581/11): Aspectos fundamentais. 3 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2014. CHARLES, Ronny; MARRY, Michelle. RDC- Regime Diferenciado de Contratações: conforme a Lei 12.980, de maio de 2014. Salvador: Juspodvim, 2014. HEINEN, Juliano. Regime Diferenciado de Contratações: Lei nº 12.462/2011. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015. JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de licitações e contratos administrativos. 16 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. MOTTA, Carlos Pinto Coelho; BICALHO, Alécia Paolucci Nogueira. RDC - Contratações para as copas e jogos olímpicos. Belo Horizonte: Fórum, 2012. OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e Contratos Administrativos Teoria e Prática. 4.ed. Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2015. ZYMLER, Benjamin. Direito Administrativo e Controle. 3 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2013. Artigos
  • 50. 50 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. AMARAL, Antônio Carlos Cintra do. O Princípio da Publicidade no direito Administrativo. In: Revista Ele- trônica de Direito Administrativo Econômico (RADAE), Salvador, instituto Brasileiro de Direito Públi- co, nº 23, julho, agosto, setembro de 2010. Disponível em: http://www.direitodoestado.com/revista/REDE- -23-JULHO-2010-ANTONIO-CARLOS-CINTRA.pdf . Acesso em 25/04/2015. REZENDE, Renato Monteiro. O Regime Diferenciado de Contratações Públicas: Comentários à Lei nº 12.462 de 2011. Núcleo de Estudos e Pesquisas do Senado. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualiza- dorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico. jsf? seqobjetoincidente=4138546. Acesso em: 15/02/2015. Ações em Tramitação BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4645. Relator: Min. Luiz Fuz. Disponível em: http://rededir. stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/ consultaprocessoeletronico/Consul- tarProcessoEletronico.jsf?seqobjetoincidente=4138546. Acesso em: 15/02/2015. ______.______. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4655. Relator: Min. Luiz Fux. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/ consultaprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronico. js- f?seqobjetoincidente=4138546. Acesso em: 15/02/2015 Acórdãos do TCU BRASIL. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 0305/2013. Plenário. Relator: Ministro Valmir Campelo. Sessão27/02/2013. Disponível em: http://contas.tcu.gov. br/juris/SvlHighLight. Acesso em: 17/05/2015. ______.______. Acórdão nº 3.011/2012. Plenário. Relator. Ministro Valmir Campelo. Sessão de 08/11/2012. Disponível em: http://contas.tcu. gov.br/juris/SvlHighLight. Acesso em 16/05/2015. Documentos Oficiais ______. Senado Federal. Projeto de Lei de Conversão nº 17/11. Relator- Revisor: Senador Inácio Arruda. Brasília, DF, 18/03/2011. Disponível em: http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.as- p?p_cod_mate=100923 . Acesso em 10/05/2015. __________. INFRAERO. Portal de Licitações. Disponível em: http://licitacao.infraero.gov.br/portal licita- cao/details/licitacao/pesquisa_ licitacao. jsp. Acesso em: 10/05/2015.
  • 51. 51 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. COTAS RACIAIS: ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO DE FUNDAMENTAÇÃO DO VOTO DE LEWANDOWSKI NA ADPF 186/ DF Ana Caroline Alves Leitão Bacharelanda e bolsista de iniciação cientifica(PIBIC) em Direito na Universidade Católica de Pernambuco(UNICAP). Virginia Colares Mestre e Doutora em Linguística pela UFPE. Presidente da ALIDI. Membro do ILLA. Professora da Graduação e do Programa de Pós graduação em Direito da UNICAP e orientadora da bacharelanda no PIBIC. SUMÁRIO: Introdução. 1. Fundamentação teórica. 1.1. Análise crítica e tridimensionalismo do dis- curso. 1.2. Ideologia: conceitos e modos de operação. 2. Análise crítica do discurso jurídico e atuação da ideologia na ADPF 186. Considerações finais. Referências. INTRODUÇÃO Este trabalho integra o plano de trabalho “Os modos de operação da ideologia no discurso de fun- damentação nas decisões do STF sobre os direitos dos negros” a ser desenvolvido no PIBIC 2015/2016 da Universidade Católica de Pernambuco, sob responsabilidade das autoras. Com o objetivo de identificar, nas peças processuais, as estratégias linguístico-discursivas dos modos de operação da ideologia no discurso de fundamentação nas decisões do Supremo Tribunal Federal no que concerne aos direitos dos negros, a metodologia utilizada será a da Análise Crítica do Discurso Jurídico, res- saltando efeitos ideológicos e políticos do discurso, a partir dos modos de operação da ideologia postos por J. B. Thompson. A Análise Crítica do Discurso Jurídico tem por escopo a abordagem das relações entre lingua- gem, direito e sociedade. Para tal analisa-se o voto do ministro Ricardo Lewandowski na ADPF 186/DF, aprovando as cotas raciais, o qual evidencia as mudanças nas relações entre direito e sociedade, que tradicionalmente foi de imperativa ratificação do poder das classes dominantes frente às minorias e atualmente vem adotando uma postura em prol da justiça social na contramão de seu uso tradicional. O foco da análise é a identificação dos modos de operação da ideologia nesse discurso de fundamentação da ADPF 186/DF. Assim, a adoção do conceito de ideologia, neste projeto, não implica necessariamente a sua utiliza- ção como algo que oculta a verdade e leva a uma falsa consciência em contraste com algo que é considerado verdadeiro e real, já que comumente a ideologia é retratada como uma via alienante para a manutenção de poderes; o que se pretende é evidenciar que a ideologia opera por intermédio da linguagem que viabiliza a ação social, sendo parcialmente constitutiva daquilo que na nossas sociedades é denominado “a realidade”. A ACD revela uma tridimensionalidade do discurso, conforme a proposta de Normam Fairclough, assim, o texto é analisado em suas três dimensões: textual, como pratica discursiva e como pratica social, para compreender integralmente o que sustenta as cotas raciais como direito social e garantia de igualdade
  • 52. 52 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. material, considerando, que apenas com a análise detalhada e meticulosa da estrutura textual do discurso, da forma como ele é produzido, distribuído e consumido e das relações sociais construídas entre negros e outras raças, a partir de um contexto histórico de dominação e inferiorização do povo negro em relação aos demais, é que se torna possível enxergar a discriminação positiva entre essas pessoas negras e não negras como cabível, no momento em que se constitui o argumento para a ocupação das vagas universitárias e por- que a construção deste argumento dada a partir apenas da nota numericamente constituída através da fria avaliação de conhecimento se traduz em injustiça. As fronteiras entre direito e política tem-se demonstrado bastantes flexíveis em diversas decisões do STF, tais como: aborto anencefálico, casamento civil igualitário, as cotas, entre outras, nas quais o STF tem, frente aos demais poderes e a sociedade, concedido e até mesmo criando novos direitos sociais; como as cotas raciais tratadas no voto que este trabalho analisa, que objetivam alcançar a igualdade -material- presente na carta magna e suprir uma dívida histórica que o Brasil tem com tal minoria, após um passado vergonhoso de escravidão e uma realidade permanente de exclusão destes, através de uma verdadeira justiça distributiva. Tentando alcançar assim, o objetivo primário de toda a estrutura do poder judiciário que consiste em promover a justiça e a pacificação social, intermediando por meio de peças fundamentadas tais conflitos presentes na sociedade brasileira. A fundamentação jurídica presente nas decisões condensa as práticas so- ciais de todo um contexto histórico-social em seus textos. Portanto, todo discurso é uma construção social e somente pode ser analisado ao se considerar a realidade em que esta imerso. Uma realidade de luta de classes em que o judiciário tem se colocado ao lado dos interesses das minorias que compõe o povo. Assim, decifrando-se o discurso jurídico, pretende-se também obter toda uma compreensão da realidade vivida podendo, com isto, compor novas perspectivas de, não apenas novos direitos sociais, mas de toda uma nova estrutura jurídica. 1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA. 1.1 ANÁLISE CRÍTICA E TRIDIMENSIONALISMO DO DISCURSO. A análise crítica do discurso, idealizada por Norman Fairclough da década de 70, é uma espécie de investigação dos emaranhados compositivos do discurso que considera a linguagem como uma forma de prá- tica social; tem como centro da análise o contexto no qual o discurso é feito assim como a ideologia presente, ou seja, foca nas relações entre linguagem e sociedade. A ACD de Fairclough postula que o discurso tem três áreas fundamentais a serem decifradas para compor a análise crítica a qual se propõe, ou seja, faz-se um estudo tridimensional do discurso; São es- sas: análise de textos, que podem ser falados ou escritos; análise da prática discursiva, que observa os proces- sos de produção, distribuição e consumo dos textos e a análise da prática social do discurso que seria todo o contexto sócio cultural da sociedade da qual o discurso provém, já que não existe prática discursiva inerte ao ambiente na qual é constituída. Ter destacado esses três aspectos não implica dizer que Fairclough propunha uma análise isolada de cada uma delas, pelo contrário, em sua obra destaca que tal distinção é ilusória, por que ao analisar um texto sempre se examinam concomitantemente questões de forma e de significado. Na primeira dimensão, no discurso como texto, destacam-se aspectos formais da construção textual, considerando que os signos são socialmente motivados, isto é, que há razões sociais para combinar certos significantes a certos significados. Assim, a análise textual pode ser organizada em quatro tópicos: vocabulário, gramática, coesão e estrutura textual. Vocabulário trata das palavras postas individualmente; gramática das palavras estruturadas em orações e frases; a coesão evidencia a ligação entre orações e frases; e a estrutura textual trata das propriedades organizacionais de larga escala dos textos. A dimensão da prática discursiva envolve os processos de produção, distribuição e consumo e a natureza desses processos caminha entre diferentes tipos de discurso em conformidade com fatores sociais, como o processo de produção, que são idealizados de múltiplas formas particulares em contextos específicos.
  • 53. 53 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. O consumo também pode ser diferenciado a partir de aspectos sociais diversos, que se relaciona com a capacidade interpretativa do publico alvo e os modos de interpretação disponíveis. No que se refere a dis- tribuição, pode ser simples ou complexa, cada texto possui padrões próprios de consumo e rotinas próprias para a reprodução e transformação do texto. Fairclough elenca ainda o que seriam: /.../ dimensões ‘sociocognitivas’ de produção e interpretação textual, que se centralizam na inter-relação entre os recursos dos membros, que os partici- pantes do discurso têm interiorizado e trazem consigo para o processamento textual e o próprio texto. (FAIRCLOUGH, 2001, pág. 109). Três dos principais itens sociocognitivos que integram a pratica discursiva são: a força dos enuncia- dos(tipos de atos de fala); a coerência do texto que é uma propriedade das interpretações na qual um texto coerente seria aquele que mantém uma relação de perfeita harmonia entre as partes integrantes do texto e o sentido objetivado; e a intertextualidade trata da propriedade que determinado texto tem de ser cheio de fragmentos de outros textos, característica bastante frequente no fragmento da peça que este trabalho analisa. Na ultima dimensão o discurso é tido como uma prática social, em que o autor: /.../discutirei o conceito de discurso em relação à ideologia e ao poder e situa o discurso em uma concepção de poder como hegemonia e em uma concep- ção da evolução das relações de poder como luta hegemônica. (FAIRCLOU- GH, 2001, pág. 116). Nesta dimensão o autor entende que ideologias são construções da realidade em que são construídas varias formas das práticas discursivas que contribuem para a produção ou transformação das relações de dominação. Já hegemonia diz respeito ao poder e domínio exercido em determinada sociedade, e no que diz respeito à análise discursiva, avalia-se não só o exercício deste poder, mas toda a estrutura de luta hegemô- nica que se trava entre os detentores e submissos. 1.2 IDEOLOGIA: CONCEITOS E MODOS DE OPERAÇÃO. O termo ideologia carrega em si o peso de seu uso ao longo do tempo, assim, a compreensão histórica do termo é essencial para entender sua aplicação usual no senso comum e contrapropostas a esse uso e tam- bém tentar traçar uma definição mais condizente com sua real dimensão na linguagem, portanto, será posto os principais conceitos e usos históricos da ideologia e o conceito adotado neste trabalho. Destutt de Tracy introduziu o conceito de ideologia como uma definição para o que seria uma ciência das ideias, sendo inicialmente posto como um sistema de análise das ideias e sensações, acreditando que as coisas não podem ser conhecidas em si mesmas, mas apenas as ideias formadas pelas sensações que se tem delas. Ao passo em que a expressão começou a ser utilizada em meio político, seu conceito sofreu uma reviravolta e foi usado por Napoleão contra os filósofos, não para se referir a uma ciência positiva e eminente, mas a um corpo de ideias apartadas da realidade, assim, ideologia corresponderia a ideias utópicas e ilusó- rias. Nas obras de Marx é possível flagrar vários significados distintos atribuídos ao mesmo termo- ideologia-, primeiramente tem-se um conceito dito polêmico na obra a ideologia alemã, na qual denota, ao criticar as ideias dos jovens hegelianos, que ideologia seria uma concepção teórica que acredita utopicamente nas ideias como auto-suficientes e que não consegue compreender as características históricas e sociais da realidade física, conceito que muito se assemelha ao uso que Napoleão fez do termo, ao postular que ideologia seria a ideia afastada da política pratica, e por isso deveria ser desprezada. Já na concepção epifenomênica, Marx concebe ideologia como um conjunto de ideias que expressam os interesses da classe dominante e que re- presenta as relações de classe de forma ilusória. Há ainda uma concepção que J. B. Thompson nomeou de concepção latente, na qual:
  • 54. 54 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. /.../Ideologia é um sistema de representações que servem para sustentar relações existentes de dominação de classe através da orientação das pes- soas para o passado em vez de para o futuro, ou para imagens e ideais que escondem relações de classe e desviam da busca coletiva de mudança social. Eu descreveria isso como a “concepção latente” de ideologia. (THOMPSON, 1998, pág. 58). Após os três usos de Karl Marx: polêmica, epifenomênica e latente, o conceito de ideologia emergiu com certa importância no meio das disciplinas sociais e chamou para si a atenção de vários outros filósofos e sociólogos abordaram a temática da ideologia em duas concepções, a crítica, onde se insere a concepção marxista e também a de Thompson, que baseado na concepção latente de Marx, nega que a ideologia teria que necessariamente ser algo ilusório, que oculte a realidade, mas mantém como característica o objetivo de manter as relações de dominação, postulando que: “ideologia são as maneiras como o sentido serve para estabelecer e sustentar relações de dominação” ( J. B. THOMPSON, 1998, pág.76). Em relação a Marx, Thompson também diverge quando diz que as relações de dominação estão aquém das relações de classe, in- cluindo gênero, raça e outras. Já a concepção neutra, concebe ideologia como sendo uma espécie de visão de mundo, a qual não serve necessariamente a manutenção de um discurso dominante, já que as minorias, por exemplo, teriam sua visão de mundo, sua ideologia própria, tal qual o discurso feminista frente ao discurso machista patriarcal dominante. Lênin, quando argumenta em favor de uma “ideologia socialista”, contribui bastante para a neutralização do termo. No presente artigo, a concepção de ideologia traçada se aproxima bastante da concepção neutra do termo ideologia quando postula que ideologia deve ser tratada como ingrediente essencial ao discurso, sem juízo de valor acerca do conteúdo ideológico, como faz a concepção crítica ao atribuir a ideologia um conjunto de ideias que seria torpe e serviria para a manutenção das relações de poder, aqui ideologia se é posta apenas como um aglomerado de ideias que podem ser relacionadas a determinados grupos e sociedades, ou seja, não apenas o discurso dominante seria a manifestação dos ideais da classe detentora do poder, como também todo e qualquer discurso está fadado a refletir as opiniões e posicionamentos de quem o prolata, assim sendo, todo ele é ideológico. Quando uma pessoa apresenta-se ao publico no inicio de um discurso, têm-se duas escolhas ao abor- dar a plateia, que seriam: senhores; ou senhores e senhoras. Em qualquer uma das escolhas se faz presente a ideologia de um grupo, seja ele dominante ou dominado, em que se demonstra ou a preocupação com o frequente apagamento do gênero feminino da língua portuguesa ou a ratificação deste apagamento. Sendo assim, a ideologia esta sempre presente, pois, por mais que o individuo se proponha a ser neutro, o ser hu- mano que discursa esta imbuído de suas próprias crenças e concepções, transparecendo-as sempre na sua produção intelectual. A premissa de que todo discurso é ideológico é de suma importância para o desenvolvimento deste trabalho, considerando que a análise crítica empenhada na ADPF 186, que trata das cotas, pode sugerir que as cotas estão sendo aqui criticadas, quando na verdade, por trata todo discurso como impregnado por ideolo- gia, nos propomos apenas a identificar tais estratégias linguísticas no trecho em questão e não fazer qualquer juízo de valor negativo acerca deste direito social conquistado pelos negros. Compreendido o sentido de ideologia, para a análise crítica do discurso jurídico serão considerados os seus modos de operação, propostos por J. B. Thompson( ....) que são estratégias típicas de construção simbó- lica, as quais serão compiladas e transcritas a seguir: 1. Legitimação: relações de dominação são estabelecidas e sustentadas como legitimas. • Racionalização: uma cadeia de raciocínios procura justificar um conjunto de relações ou institui- ções sociais. • Universalização: acordos institucionais que servem aos interesses de alguns indivíduos são apre- sentados como servindo ao interesse de todos.
  • 55. 55 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. • Narrativização: histórias que contam o passado e tratam o presente como parte de uma tradição eterna e aceitável. 2. Dissimulação: relações de dominação são estabelecidas e sustentadas sendo ocultadas, negadas, obscurecidas ou representadas de maneira que desvia a atenção. • Deslocamento: um termo usado para se referir a um determinado objeto ou pessoa é usado para se referir a outro, deslocando conotações positivas ou negativas. • Eufemização: ações, instituições ou relações sociais são descritas com uma valoração positiva. • Tropo: uso das formas simbólicas da linguagem. • Sinédoque: junção semântica da parte ao todo. • Metonímia: um termo toma o lugar de um atributo para se referir a própria coisa. • Metáfora: aplicação de um termo a um objeto ao qual ele não pode ser aplicado. Dissi- mula relações de dominação através de sua representação ou de grupos a e indivíduos nela implicados. 3. Unificação: construção simbólica de uma unidade coletiva • Padronização: referencial padrão é proposto como fundamento partilhado. • Simbolização da unidade: construção de símbolos de unidade e identificação coletiva 4. Fragmentação: segmentação de indivíduos e grupos que possam desafiar os grupos dominantes. • Diferenciação: ênfase as distinções entre pessoas e grupos que os desunem e impede de constituir uma força expressiva de contestação do poder atuante. • Expurgo do outro: construção de um inimigo contra qual os indivíduos são chamados a resistir. 5. Reificação: retratação de uma situação transitória como permanente e atual. • Naturalização: criação social e histórica tratada como natural. • Eternalização: fenômenos sócio históricos apresentados como permanentes. • Nominalização e passivização: sentenças são transformadas em nomes/verbos são colocados na voz passiva. A proposta de Thompson de categorizar os modos de operação da ideologia está, nos seus conceitos, mergulhados na própria definição de ideologia do autor, que em sua concepção crítica, a considera apenas para a manutenção das relações de poder. Como a definição que este trabalho aborda é outra, considerando ideologia como intrínseca a qualquer discurso iremos utilizar tais modos de operação para decifrar a ideologia permeada na peça, mesmo que não seja um discurso utilizado para manter uma relação de poder pré-exis- tente, já que a peça analisada concede um direito a uma minoria historicamente oprimida, portanto, não é um discurso que se proponha a manter uma relação de poder já consolidada, mesmo assim esta repleto de ideologia, como qualquer outro discurso. Ideologia essa que temos como escopo tentar decifrar. 2. ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO JURÍDICO E ATUAÇÃO DA IDEOLOGIA NA ADPF 1861 . 1  “Análise Crítica do Discurso Jurídico” é a disciplina oferecida por Virginia Colares no Curso de Mestrado do Programa de Pós- -graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, desde sua criação, em 2005. Assim como é o título do relatório de pesquisa, apresentado em julho de 2009, como resultado do Edital MCT/CNPq 50/2006 - Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas; Protocolo n° 2546463711149023.
  • 56. 56 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Este trabalho propõe a análise do trecho “igualdade formal versus material” retirado da ADPF 186, recorrendo aos modos de operação da ideologia bem como a tridimensionalidade do discurso para evidenciar as estratégias discursivas que sustentam a decisão de Lewandowski. Para começar a análise do texto, faremos observações com ênfase na dimensão prática do dis- curso, segunda dimensão proposta por Fairclough, que trata da produção, distribuição, consumo; aspectos que podem ser examinados como exteriores ao corpo físico da decisão. Quanto à produção de uma decisão do STF acerca do controle de constitucionalidade, temos um procedimento formal descrito na constituição brasileira. O rito da produção de uma decisão inicia-se apenas quando o judiciário é provocado, e neste caso, tem que ser provocado acerca da suposta colisão com a constituição federal, já que o STF é o órgão guardião desta. Quando o DEM impetrou a ADPF 186, alegando inconstitucionalidade das cotas, justificando que es- tas iriam contra o principio da isonomia, presente no artigo 5° CF, o judiciário teve que se manifestar sobre, e daí advém a explicação de Lewandowski sobre a igualdade da qual trata o referido artigo. Assim, descrito um rito estritamente formal de produção, prolatado pela mais alta corte do país, temos um discurso tido como de autoridade, respeitável, visto como sólido e confiável. Quanto à distribuição e consumo, decisões não são textos acessíveis à maioria da população, sendo um conteúdo tido como erudito o qual, dada a formatação do texto, apelidada como “juridiquez”, revela uma identidade unitária entre os produtores e consumidores, sen- do necessária o mínimo de conhecimento jurídico para a compreensão da sentença prolatada, a capacidade interpretativa restringe os consumidores e a maioria da população fica a mercê de meios que “mastiguem a informação” pra si, passando a impressão de que quem produz tal conteúdo é dotado de grande saber. 97. IGUALDADE FORMAL VERSUS MATERIAL 98. De acordo com o artigo 5º, caput, da Constituição, “todos são iguais 99. perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”. Com essa expressão 100. legislador constituinte originário acolheu a ideia – que vem da tradição 101. liberal, especialmente da Declaração do Homem e do Cidadão francesa 102. de 1789 - de que ao Estado não é dado fazer qualquer distinção entre 103. aqueles que se encontram sob seu abrigo. Fragmento 01 Neste fragmento é notável a presença da ‘intertextualidade’, descrita como estratégia que traz ao texto recorte de outros textos, geralmente discursos famosos, como forma de solidificar a argumentação que se pretende construir. Além dos recortes, têm-se também datas e fatos históricos, que corroboram para a construção da percepção de confiabi- lidade na ideia que se pretende defender. 104. É escusado dizer que o constituinte de 1988 – dada toda a evolução 105. política, doutrinária e jurisprudencial pela qual passou esse conceito – 106. não se restringiu apenas a proclamar solenemente, em palavras 107. grandiloquentes, a igualdade de todos diante da lei. 108. À toda evidência, não se ateve ele, simplesmente, a proclamar o 109. princípio da isonomia no plano formal, mas buscou emprestar a máxima 110. concreção a esse importante postulado, de maneira a assegurar a
  • 57. 57 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 111. igualdade material ou substancial a todos os brasileiros e estrangeiros 112. que vivem no País, levando em consideração – é claro - a diferença que os distingue por 113. razões naturais, culturais, sociais, econômicas ou até 114. mesmo acidentais, além de atentar, de modo especial, para a 115. desequiparação ocorrente no mundo dos fatos entre os distintos grupos 116. sociais. Fragmento 02 Na linha 111 do recorte acima é perceptível o uso da ‘universalização’, estratégia típica que apresenta o interesse de uma classe ou categoria como se fossem um interesse coletivo, comum a todos, quando na verdade a igualdade material á qual o texto remete só beneficia, neste caso, os detentores dos direitos a cotas, ou seja, os negros. A partir da linha 112 também temos uma ‘fragmentação’, modo de operação que separa grupos que poderiam apresentar um real desafio ao poder dominante, caso atuasse juntos, são fragmentados em detrimento de suas características únicas. Tem-se ainda nas linhas 114, 115 e 116 uma ‘eternalização’, ou seja, fenômenos sócio-históricos apresentados como permanentes. 117. Para possibilitar que a igualdade material entre as pessoas seja 118. levada a efeito, o Estado pode lançar mão seja de políticas de cunho 119. universalista, que abrangem um número indeterminado de indivíduos, 120. mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que 121. atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a 122. estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a 123. superação de desigualdades decorrentes de situações históricas 124. particulares. Fragmento 03 Na linha 118 temos uma ‘eufemização’, estratégia que legitima instituições e suas ações. Neste caso, o quando se diz que o estado pode lançar mãos de um determinado tipo de política para se alcançar um bem maior-igualdade material-, tem-se uma valoração positiva desta instituição e de sua ação. Na 121 novamente temos uma ‘segmentação’, ao tratar de grupos sociais determinados, legitimando a atribuição de tratamento especifico a estes grupos em detrimento de características particulares. Já nas linhas 123 e 124, é flagrante a ‘narrativização’ na qual histórias do passado justificam o presente e novamente a ‘eternalização’. 125. Nesse sentido, assenta Daniela Ikawa: 126. “O princípio formal de igualdade, aplicado com exclusividade, 127. acarreta injustiças (...) ao desconsiderar diferenças em identidade. 128. (...)
  • 58. 58 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 129. Apenas o princípio da igualdade material, prescrito como 130. critério distributivo, percebe tanto aquela igualdade inicial, quanto 131. essa diferença em identidade e contexto. Para respeitar a igualdade 132. inicial em dignidade e a diferença, não basta, portanto, um princípio 133. de igualdade formal. 134. (...) 135. O princípio da universalidade formal deve ser oposto, primeiro, 136. a uma preocupação com os resultados, algo que as políticas 137. universalistas materiais abarcam. Segundo deve ser oposto a uma 138. preocupação com os resultados obtidos hoje, enquanto não há recursos 139. suficientes ou vontade política para a implementação de mudanças 140. estruturais que requerem a consideração do contexto, e enquanto há 141. indivíduos que não mais podem ser alcançados por políticas 142. universalistas de base, mas que sofreram os efeitos, no que toca à 143. educação, da insuficiência dessas políticas. São necessárias, por 144. conseguinte, também políticas afirmativas. 145. (...) 146. As políticas universalistas materiais e as políticas afirmativas 147. têm (...) o mesmo fundamento: o princípio constitucional da igualdade 148. material. São, contudo, distintas no seguinte sentido. Embora ambas 149. levem em consideração os resultados, as políticas universalistas 150. materiais, diferentemente das ações afirmativas, não tomam em conta 151. a posição relativa dos grupos sociais entre si”. Fragmento 04 Todo este fragmento se trata de um recorte de outro texto, ou seja, novamente presente a ‘intertex- tualidade’ usada para sustentar a posição do autor. Nas linha 127 segmenta-se novamente a minoria negra para justificar o direito social a cotas e postular a injustiça presente num modo de acesso a educação superior que ignore as diferenças sociais entre os concorrentes. Já na linha 131, ao se falar em identidade e contexto, tem-se uma ‘unificação’ em que se constrói uma identidade simbólica coletiva, no caso- negros. 152. A adoção de tais políticas, que levam à superação de uma 153. perspectiva meramente formal do princípio da isonomia, integra o 154. próprio cerne do conceito de democracia, regime no qual, para usar as
  • 59. 59 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 155. palavras de Boaventura de Sousa Santos, 156. “(...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos 157. inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade 158. nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça 159. as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou 160. reproduza as desigualdades ”. Fragmento 05 Na linha 154, ao relacionar tais políticas ao próprio cerne da democracia temos um discurso que pos- tula a evolução das relações de poder como luta hegemônica, estratégia postulada na terceira dimensão- aná- lise do discurso como prática social- e que diz repeito a luta de classes historicamente oprimidas pela atuação no poder. Ou seja, quando se coloca um direito de uma minoria ao alcance da possibilidade de um curso que pode ser sua chance de alternar de classe social como alvo do regime político e econômico vigente no país, que em tese sempre favorece a classe dominante, temos uma flagrante luta contra as relações de dominação vigentes no regime atual. Já a partir da linha 155, temos novamente a ‘intertextualidade’, utilizando-se de um famoso discurso no ambiente jurídico. 161. Aliás, Dalmo de Abreu Dallari, nessa mesma linha, adverte que a 162. ideia de democracia, nos dias atuais, exige a superação de uma concepção 163. mecânica, estratificada, da igualdade, a qual, no passado, era definida apenas 164. como um direito, sem que se cogitasse, contudo, de convertê-lo em uma 165. possibilidade, esclarecendo o quanto segue: 166. “O que não se admite é a desigualdade no ponto de partida, que 167. assegura tudo a alguns, desde a melhor condição econômica até o 168. melhor preparo intelectual, negando tudo a outros, mantendo os 169. primeiros em situação de privilégio, mesmo que sejam socialmente 170. inúteis ou negativos” . Fragmento 06 Todo este trecho se compõe através da ‘intertextualidade’. Nas linhas 164 e 165, na contraposição dos conceitos de “igualdade” e “possibilidade” temos uma ‘metáfora”, uma vez que aplica-se um termo a uma significação ao qual ele não poderia ser aplicado, considerando que igualdade e possibilidade são significantes totalmente distintos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse trabalho analisa o voto do ministro Ricardo Lewandowski na ADPF/186-DF, no que concerne a “igualdade formal versus material”. A tese do DEM de que as cotas seriam inconstitucionais por ferir o princípio da isonomia, presente no caput do artigo 5º da carta magna, é contestada pelo relator no que se refere às cotas como direitos sociais dos negros. A metodologia adotada é a análise crítica do discurso jurídi-
  • 60. 60 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. co(ACDJ), em especial os modos de operação da ideologia, propostos inicialmente por J. B. Thompson. Como resultados identifica-se o uso reinterado da estratégia de intertextualidade. Ao longo da análise proposta, percebe-se o uso de diversas estratégias e modos gerais de operação da ideologia, mas, diferentemente das analises clássicas em que tais estratégias são utilizadas para fundamentar discursos atuantes em prol da classe detentora do poder, desta vez são empregadas para conceder um direito social a uma minoria, ou seja, em uma flagrante luta hegemônica em prol de uma configuração social mais justa. REFERÊNCIAS FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. Brasilia: UnB, 2001. PIMENTEL, Alexandre Freire; BARROSO, Fábio Túlio; DE GOUVEIA, Lúcio Grassi. Processo, hermenêutica e efe- tividade dos processos. Recife: APPODI, 2015. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.
  • 61. 61 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A PROTEÇÃO JUDICIAL DAS MINORIAS: A UNIÃO HOMOAFETIVA NO STF E NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Ana Catarina Silva Lemos Paz Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da CAPES no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. Monitora da cadeira de Direito Constitucional I na Universidade Católica de Pernambuco. catarina.lemospaz@gmail.com Luiz Manoel da Silva Júnior Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Pós graduando no PPGD Unicap. Advogado. luizmsj@live.com Arthur Albuquerque de Andrade Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista da CAPES no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. albuquerquearthur@hotmail.com SUMÁRIO: Introdução; 1. União homoafetiva no Sistema Interamericano de Direitos Humanos; 1.1. Direito Internacional dos Direitos Humanos: breve histórico; 1.2. O Sistema Interamericano de Direitos Humanos; 1.3. O Sistema interamericano e os direitos LGBTI; 2. O tratamento jurídico da união homoafetiva; 3. A controvérsia acerca do regime jurídico das uniões homoafetivas no brasil; 3.1. O reconhecimento jurídico da união homoafetiva pelo STF; 3.2. Estatuto da Família: Supremacia judicial e proibição ao retrocesso; Conclusão; referências. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo analisar a discussão acerca da definição de entidade familiar, mais precisamente devido à sua repercussão no reconhecimento da união estável e do casamento homoafe- tivos. É sabido que, sob a perspectiva do constitucionalismo democrático, um dos mais relevantes papéis atribuídos aos Tribunais consiste na proteção dos direitos das minorias. Essa proteção vem sendo intensificada noâmbitonacional,sobretudoperanteoSupremoTribunalFederal(STF),etambémemâmbitosupranacional, considerando a atuação da Corte Interamericana de Direitos Humanos na defesa dos direitos humanos diante dos países signatários da Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Dessa forma, em sede de controle de constitucionalidade direto, através da Ação Direta de Inconsti- tucionalidade (ADI) 4277 e da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 132, o STF reconheceu a extensão do conceito jurídico de união estável para os casais do mesmo sexo, o que, conse- quentemente, viabilizou-se o casamento igualitário. Entretanto, uma parcela política conservadora, baseada em argumentos eminentemente religiosos, pretende a aprovação no Congresso Nacional do Projeto de Lei nº 6.583/2013 (Estatuto da Família) que apenas reconheça como entidade familiar a união entre homem e mulher, excluindo, portanto, o reconheci- mento do casamento e da união estável homoafetiva.
  • 62. 62 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Nesse diapasão, são analisadas as possíveis repercussões da aprovação do referido projeto no que tan- ge ao fato de contrariar decisão já prolatada pelo STF, trazendo à tona questões como a supremacia judicial na interpretação da constituição e a aplicabilidade do princípio da proibição do retrocesso para a atividade parlamentar, quando direitos de minorias estão sob ameaça. 1. UNIÃO HOMOAFETIVA NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS. 1.1 DIREITO INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: BREVE HISTÓRICO. A tarefa de definir Direitos Humanos não é fácil. Alguns doutrinadores entendem que direitos huma- nos e direitos fundamentais seriam sinônimos, uma vez que ambos são inerentes aos seres humanos, intima- mente ligados à ideia de dignidade da pessoa humana, e ainda, ambos possuem o condão de limitar a ação do Estado. São exemplos dos que seguem essa concepção: Paulo Gustavo Gonet Branco (2002), Alexandre de Morais (2013), e João Baptista Herkenhoff (1994). Há, entretanto, aqueles que entendam que embora sejam comumente utilizadas como sinônimas, as duas expressões guardam entre si importantes diferenças a serem apontadas. José Joaquim Gomes Canotilho (1998, p.59) aponta distinções no que tange às origens e aos significados, pois que Direitos Humanos (ou Direitos do Homem, como coloca o autor) são aqueles inerentes a todos os povos e em qualquer espaço de tempo. Já os direitos fundamentais são aqueles direitos do homem que possuem resguardo jurídico-institu- cional, e são percebidos num determinado espaço de tempo. Assim, os direitos humanos seriam aqueles os quais originam-se diretamente da natureza humana, enquanto que os direitos fundamentais dependem de uma ordem jurídica vigente. No mesmo sentido, Ingo Wolfgang Sarlet (2005, p.35 e 36) leciona: “[...] o termo direitos fundamentais se aplica para aqueles direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional po- sitivo de determinado Estado, ao passo que a expressão direitos humanos guardaria relação com os documentos de direito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser humano como tal, inde- pendentemente de sua vinculação com determinada ordem constitucional, e que, portanto aspiram à validade universal, para todos os povos e tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional.” Como se pode perceber, portanto, embora guardem alguma semelhança, Direitos humanos e Direitos fundamentais não se confundem, pois este é referente ao direito positivado, ao direito garantido constitu- cionalmente pelos estados em seus diplomas legais, enquanto que aquele refere-se ao direito inerente ao homem por ser homem, e guarda cunho universal, intertemporal e inviolável (CANOTILHO, 1998, p.59), não dependendo de positivação em nenhuma ordem jurídica. Nas palavras de Perez Luño (1999, p. 48) Los derechos humanos aparecen como un conjunto de facultades e institu- ciones que, en cada momento histórico, concretan las exigencias de la digni- dad, la libertad y la igualdad humana, las cuales deben ser reconocidas posi- tivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel nacional e internacional. Desta forma, a expressão direitos humanos é comumente utilizada para referir-se ao homem sujeito de direitos na ordem internacional, conotação que ganhou força no pós-guerra. Assim, o Direito Internacional de Direitos Humanos, um movimento bastante recente na história, nasceu mediante resposta da população mundial às atrocidades cometidas durante o nazismo. As preocupa-
  • 63. 63 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. ções primordiais do movimento eram: (i) universalizar e internacionalizar o tema, a fim de que fosse possível uma normatização internacional dos direitos; (ii) marcar a concepção contemporânea de direitos humanos como aquela que advém da dignidade humana como fundamento de proteção. Inicia-se assim a “era dos direitos”. (BOBBIO, 1992; p. 49) Dessa forma, a proteção aos direitos humanos deixou de ser apenas de carácter regional e passou a ser objeto de proteção da comunidade internacional, sendo a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (DUDH), de 1948, seu maior expoente (PIOVESAN, 2010, p. 121-122). Os sistemas internacional e nacional se complementam, pois, os dois consagram o valor da primazia da pessoa humana, proporcionando por tanto, um maior arcabouço de proteção e uma maior efetividade na tutela e promoção dos direitos fundamentais. Assim, a sistemática internacional funciona como uma garan- tia adicional, pois institui mecanismos de responsabilização e controle dos Estados, evitando a omissão na implementação de tais direitos. Em sequência à Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, diversos outros diplomas nor- mativos internacionais foram editados, como os tratados e as convenções de direitos humanos. Todos esses diplomas contavam, também, com a natureza de fiscalização e promoção dada pela declaração. São bons exemplos: o Pacto Internacional dos direitos civis e políticos; o Pacto Internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais; a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de Discriminação Ra- cial; a Convenção Internacional sobre a eliminação de todas as formas de violência contra a mulher (PIO- VESAN, 2010, p. 161-237). Além dos tratados e convenções, também surgiram outros sistemas de proteção dos direitos humanos, onde podemos citar o sistema africano, o europeu e o interamericano, como complementares do sistema global.1 1.2 O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS O Sistema Interamericano de Direitos Humanos é um dos sistemas regionais que complementam o sistema global de proteção a esses direitos. Ele é composto por dois regimes, aquele que é regido pela Con- venção Americana de direitos humanos, e aquele que é regido pela Carta da Organização dos Estados Ame- ricanos. O presente trabalho, no entanto, limita-se a explicar a atuação do sistema no que tange ao regime baseado na convenção. A Convenção Americana de Direitos Humanos - também denominada Pacto de São José da Costa Rica - é um dos principais instrumentos normativos do SIDH e foi assinada em São José da Costa Rica em 1969, entrando em vigor apenas em 1978.2 O Brasil é seu signatário desde 19923 . É o mais extenso instru- mento internacional de proteção aos direitos humanos, contando com 82 artigos (VASAK, 1982; p. 558 e 559). Dentre eles, podemos achar bastante semelhança com aqueles elencados pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, como por exemplo: direito à personalidade jurídica, à vida, ao tratamento humano, à liberdade pessoal, à privacidade. Os direitos sociais, culturais e econômicos não estão enunciados de forma específica na convenção, esta apenas limita-se a determinar que os Estados busquem meios de alcançar, progressivamente, a plena re- alização desses direitos. Esses meios podem ser medidas legislativas ou outras apropriadas para a persecução 1  A temática da orientação sexual e da identidade de gênero era ainda incipiente, possuindo abordagem bastante pontual. Uma maior discussão sobre o tema, entretanto, foi possível após a apresentação da Resolução “Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero” na ONU, em 2003. Mesmo retirada posteriormente por pressão de países islâmicos, dos EUA e do Vaticano (PAZELLO, 2004, p. 29-30), foi novamente reintegrada em 2011, demonstrando seu importante valor no que consta sobre a dis- cussão do tema em âmbito mundial. 2  Disponível em: http://www.cidh.org/comissao.html. Acesso em: 25 de janeiro de 2016. Importante assinalar que apenas os Estados-membros da Organização dos Estados Americanos possuem o direito de aderir à Convenção. Até janeiro de 2014, a OEA contava com 24 Estados- partes. (PIOVESAN, 2015; p. 340) 3  Decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992. Disponível com a tradução em português em: http://www2.mre.gov.br/ dai/m_678_1992.html. Acesso em: 25 de janeiro de 2016.
  • 64. 64 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. do objetivo final. Posteriormente a Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos adotou o Pro- tocolo de San Salvador, que concerne, justamente, aos direitos sociais, econômicos e culturais (PIOVESAN, 2015; p. 341). Dessa forma, é possível perceber que, embora a convenção elenque direitos e garantias que não de- vem ser violados pelos Estados-membros, ela também cuida de mecanismos que visam a garantir a efetiva realização desses direitos. Sendo assim, ao mesmo tempo que os Estados-membros respeitam os direitos e garantias prescritos na convenção, eles também devem assegurá-los e, assim sendo, a convenção estabelece dois órgãos responsáveis pelo monitoramento e implementação dos direitos nela elencados: a comissão inte- ramericana de direitos humanos e a corte interamericana de direitos humanos. A competência da Comissão Interamericana se estende por todos os Estados-partes da Convenção Americana, e também pelos Estados-membros da Organização dos Estados Americanos. Ora, a comissão exerce diversas atribuições - das quais podemos citar o papel de conciliadora, crítica, assessora, legitimado- ra, promotora, etc4 - as mais relevante para esse estudo são as modalidades de controle: exame de petições encaminhadas - por indivíduos ou grupo de indivíduos, ou ainda, organizações, sejam elas governamentais ou não5 - referentes à violação de algum direito protegido em qualquer dos instrumentos normativos de com- petência da comissão; elaboração de informes, sobre a situação dos Direitos Humanos em qualquer dos Es- tados que sejam parte do Sistema Interamericano; e investigações “in loco” nos países (PINTO, 1993; p. 83) A comissão é composta por sete membros os quais podem ser de qualquer Estado-membro da OEA. São eleitos por assembleia geral, podendo ser reeleitos apenas uma vez e devem ser dotados de reconhecido saber jurídico no que tange aos Direitos Humanos e também alta autoridade moral. A Corte interamericana de Direitos Humanos é o outro aparato trazido pelo SIDH com função de monitorar e viabilizar o cumprimento dos direitos expostos na convenção. Órgão jurisdicional do sistema regional, é composto por juízes dos Estados-membros da OEA em número de sete. Possui competência tanto consultiva como contenciosa. Ou seja, quanto à sua competência contenciosa, a Corte IDH pode responsabilizar o Estado-parte pela violação dos direitos os quais ratifica a convenção, isso porque os signatários comprometeram-se a não só respeitar, como também garantir esses direitos, usando de todos os seus recursos para punir os infratores de acordo com suas normas internas. Quanto à sua competência consultiva, a corte emitirá pareceres, à pedido dos Estados-parte, manifestando-se sobre a compatibilidade entre qualquer das normas elencadas na convenção a as leis dos respectivos Estados (GUERRA, 2010; p. 05-07). Dessa forma, no âmbito procedimental, a comissão recebe uma petição fazendo o juízo de admissi- bilidade6 e, em seguida, solicita informações do Governo denunciado. Uma vez recebidas as informações ou transcorrido o prazo para tal, é verificada existência ou subsistência dos motivos arrolados na petição. Em seguida, a comissão decide pelo arquivamento ou pelo prosseguimento do exame do assunto, o qual, após 4  Para mais informações vide Héctor Fix-Zamudio, Proteccíon jurídica de los derechos humanos, p. 152. 5  A convenção americana, diferente das outras convenções e tratados de direitos humanos, não estabelece à vítima, exclusi- vamente, o direito de peticionar junto à comissão. Qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos ou qualquer organização poderá fazê-lo. (BUERGUENTHAL, 1981; p. 148) 6  O juízo de Admissibilidade é feito segundo o artigo 46 da CIDH, assim prescrita: 1. Para que uma petição ou comunicação apresentada de acordo com os artigos 44 ou 45 seja admitida pela Comissão, será ne- cessário: a. que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os princípios de direito internacional geralmente reconhecidos; b. que seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido notificado da decisão definitiva; c. que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro processo de solução internacional; e d. que, no caso do artigo 44, a petição contenha o nome, a nacionalidade, a profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pes- soas ou do representante legal da entidade que submeter a petição. 2. As disposições das alíneas a e b do inciso 1 deste artigo não se aplicarão quando: a. não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido violados; b. não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de esgotá-los; e c. houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.
  • 65. 65 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. realizado, será depreendido esforço no sentido de buscar uma solução amigável entre as partes, ou seja, entre o peticionante e o Estado. Caso essa negociação não seja bem-sucedida, a comissão elaborará um relatório, apresentando os fatos e as conclusões pertinentes ao caso e o enviará ao Estado-parte para que no período de três meses possam ser tomadas as devidas providências. Dentro desse príodo de tempo, o caso pode ser ou solucionado plas próprias partes, ou então poderá ser remetido à Corte IDH. 1.3 O SISTEMA INTERAMERICANO E OS DIREITOS LGBTI. A OEA, vem, repetidamente, através dos anos, editando resoluções em sua assembleia geral, que visam assegurar os direitos humanos da população LGBTI, assim como reprimir qualquer tipo de discrimina- ção e violência que possam incorrer devido à orientação sexual ou identidade de gênero da vítima. A primei- ra, a Resolução nº 2435/2008 – Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero –, foi aprovada pela Assembleia Geral da OEA em 03 de junho de 2008. O documento foi fruto de iniciativa do Estado brasi- leiro e apoiou-se nas disposições normativas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Declaração Americana dos Direitos do Homem e na Carta da OEA. Em sequência, foi aprovada a Resolução nº2504 em 2009, com as mesmas fundamentações normativas da anterior, mas levando também em consideração a nota da Declaração da ONU sobre Orientação Sexual e Identidade de Gênero7 , e inova ao sugerir que os Estados membros considerem a adoção de medidas que enfrentem o tratamento discriminatório motivado por orien- tação sexual e identidade de gênero, e que a Comissão IDH faça um estudo temático sobre discriminação e violência contra a população LGBTI. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2010, p. 02). Na mesma linha seguiram a Resolução nº 2653/2011, aprovada em 07 de junho de 2011, estabelecendo o plano de trabalho “Direitos das Pessoas LGBTI”. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2011b, p. 01- 02); a Resolução nº 2721/2012, de 04 de junho de 2012, a qual propõe a criação junto à Comissão IDH da Unidade de Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais (LGBTI) (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2012b, p. 02); e, por fim, a Resolução nº 2807/2013, de 06 de junho de 2013, a qual incentiva os Estados-membros a fazer o levantamento para políticas públicas de proteção pesso- al LGBTI. (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2013b, p. 02-04). O primeiro caso levado à comissão sobre orientação sexual e identidade de gênero foi o caso Marta Alvarez vs. Colombia. Esse caso trata sobre a negação ao tratamento igualitário por parte do denunciado con- tra a denunciante, uma vez que esta teve por proibidas suas visitas conjugais no sistema prisional por causa da sua orientação sexual. Houve, portanto, a inobservância dos arts.5º (integridade física, psíquica e moral), 8º (respeito à dignidade enquanto pessoa privada de liberdade), 11 (direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade) e 24 (igualdade perante a lei e igual proteção desta), em razão da recusa das autoridades prisionais em autorizar o exercício do seu direito à visita íntima por causa de sua orientação sexual. O caso ainda aguarda decisão definitiva (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇOES UNIDAS, 1999). Outro caso emblemático sobre direito LGBT levado à comissão, foi o caso Atala Riffo y niñas vs. Chile. De acordo com a comissão, houve o descumprimento dos arts.11 (Proteção da honra e da dignidade), 17.1 e 17.4 (Proteção da família), 19 (Direitos da criança), 24 (Igualdade perante a lei), 8 (Garantias judiciais) e 25.1 e 25.2 (Proteção judicial) da Convenção, em relação ao artigo 1.1 do mesmo instrumento. Isso porque se alega a responsabilidade internacional do Estado pelo tratamento discriminatório, interferindo, arbitraria- mente, na vida privada e familiar das denunciantes, observadas no processo judicial que resultou na retirada da custódia das filhas da senhora Atala. O Estado foi condenado a adotar de medidas de reparação. (ORGA- NIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2012a). Por fim, é de suma importância citar o caso José Alberto Pérez Meza vs. Paraguay (ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS, 2001), o qual, embora rejeitado no juízo de admissibilidade por não preen- cher o requisito do esgotamento dos recursos internos, além de não verificar tratamento discriminatório no julgamento do reconhecimento da sociedade de fato, vez que trata-se do único caso que chegou até a corte tratando especificamente do reconhecimento de uniões homoafetivas, o então objeto desse estudo. No caso 7  Declaração nº A/63/635 – Direitos humanos, Orientação Sexual e Identidade de Gênero”, de 22 de dezembro de 2008. (OR- GANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2008)
  • 66. 66 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. em questão o peticionante tentara ter reconhecida sua sociedade com o seu falecido companheiro homoafe- tivo. Apesar dos esforços empenhados, não restou comprovada a união de fato, quando, então, o peticionante resolveu pleitear nas instancias internas o reconhecimento de união homoafetiva. Cuida que tanto o Código Civil paraguaio quanto a Constituição, expressamente proíbem a união e casamento entre pessoas do mesmo sexo, prevendo apenas a existência desses institutos quando se tratando de homem e mulher. Ao apresentar à comissão o caso, José Alberto Pérez alegou a inobservância dos artigos 24 (igualdade perante a lei e igual proteção desta) e 25 (direito ao acesso à justiça eficaz e em prazo razoável) do Pacto de São José da Costa Rica. Entretanto, conforme falado anteriormente, a CIDH julgou pela inadmissibilidade do caso por questões técnicas, mas não de mérito. Como será demonstrado adiante, se a petição tivesse sido admitida, era possível fazer um paralelo entre as decisões em sede de controle de constitucionalidade feitas pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro e uma possível sentença dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, uma vez que, assim como o ordenamento jurídico brasileiro, a CADH não prevê proibição expressa à união homoafetiva, no que, pelo ou- tro lado, expressamente proíbe qualquer forma de discriminação perante a lei. Poderia ser um caso bastante importante no que tange tanto aos Direitos LGBTI, quanto ao estudo do diálogo entre corte, no que tange à tutela Multinível dos Direitos Humanos. 2. O TRATAMENTO JURÍDICO DA UNIÃO HOMOAFETIVA. A Constituição Federal e o Código Civil brasileiros tratam de entidade familiar como aquela formada por um homem e uma mulher, excluindo, a princípio, qualquer outro tipo de relação afetiva que não se en- quadre neste contexto. Assim prescreve a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. (grifo nosso) Da mesma forma, prescreve o Código Civil de 2002: Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o ho- mem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. § 1º A união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1.521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente. § 2º As causas suspensivas do art. 1.523 não impedirão a caracterização da união estável. A Convenção Interamericana de Direitos Humanos também faz menção à família e coloca-a como um dos principais pilares da sociedade. Assim prescreve: Artigo 17. Proteção da família. 1. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser pro- tegida pela sociedade e pelo Estado. 2. É reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e de fundarem uma família, se tiverem a idade e as condições para isso exi- gidas pelas leis internas, na medida em que não afetem estas o princípio da não-discriminação estabelecido nesta Convenção.
  • 67. 67 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Esses artigos não devem, entretanto, ser interpretados de forma isolada. É preciso contextualizá-los dentro dos diplomas normativos nos quais estão inseridos. Nesse diapasão, deve-se observar a importância de dois princípios fundamentais no estudo dos direitos humanos: o princípio da igualdade e o princípio da não-discriminação. Ambos estão codificados tanto na Constituição brasileira (arts. 3º, IV e 5º)8 , como na Convenção Americana (arts. 1.1 e 24)9 . A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, na Opinião Consultiva nº. 18, expressou que o princípio da igualdade está intimamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa humana, pois os dois advém do próprio gênero humano. Sendo assim, seria incompatível a supremacia ou inferioridade de um determinado grupo perante outro, se de qualquer forma esse tratamento enseje hostilidade ou discriminação no gozo dos direitos de ambos. (Corte IDH. Condición Jurídica y Derechos de los Migrantes Indocumentados. Opinião Consultiva OC-18/03 de 17 de setembro de 2003. Série A No. 18, § 87). Outros diplomas normativos também reconhecem a importância do princípio da igualdade e da não discriminação como basilares ao respeito e proteção dos direitos humanos. Para citar alguns exemplos: Carta da Organização dos Estados Americanos, 1997 (art. 3.1); Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), 1969 (arts. 1 e 24); Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948 (art. 2); Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Protocolo de San Salvador), 1988 (art. 3); Carta das Nações Unidas, 1945 (art. 1.3); Declaração Universal de Direitos Humanos, 1948 (arts. 2 e 7); Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966 (arts. 2.2 e 3); Pacto Internacional de Direitos Civis e Polí- ticos, 1966 (arts. 2 e 26); Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, 1968 (art. 2); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, 1979 (arts. 2, 3, 5 a 16); Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerância e Discriminação Fundadas na Religião ou nas Convicções, 1981 (arts. 2 e 4); Convenção No. 111 da Organização Interna- cional do Trabalho (OIT) relativa à Discriminação em Matéria de Emprego e Ocupação, 1958 (arts. 1 a 3); Proclamação de Teerã, 1968 (parágrafos 1, 2, 5, 8 e 11); Declaração e Programa de Ação de Viena, 1993 (I.15; I.19; I.27; I.30; II.B.1, arts. 19 a 24; II.B.2, arts. 25 a 27); Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas, 1992 (arts. 2, 3, 4.1 e 5); Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, 2000 (arts. 20 e 21); Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, 1950 (arts. 1 e 14); Carta Social Europeia, 1961 (art. 19.4, 19.5 e 19.7); Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, 1981 (Carta de Banjul) (arts. 2 e 3); Carta Árabe sobre Direitos Humanos, 1994 (art. 2); e Declaração do Cairo sobre Direitos Humanos do Islã, 1990 (art. 1). (Nota de rodapé nº 33 da Opinião Consultiva OC-18/03) Dessa sorte, mesmo não havendo proteção expressa à união homoafetiva em nenhum dos dois sis- temas jurídicos - nem na convenção americana e nem no ordenamento jurídico brasileiro - eles acabam por proteger, de outra forma esse direito da população LGBTI. Garantir e promover a igualdade significa tratar igual os grupos iguais e desigual os grupos desiguais. Convém lembrar, contudo, que a diferença de tratamen- to deve ser pautada em motivos objetivos e razoáveis. Advém Robert Alexy (1997) que o tratamento igual deve ser depreendido a todos sempre que o tratamento desigual não for pautado em nenhuma razão suficiente. Nesse contexto, não há fundamentação nem fática nem jurídica que corrobore para a diferença de tratamento entre casais hétero e homoafeitvos no que tange à união estável. Muito pelo contrário. É certo dizer que o entendimento acerca da temática é que mesmo não havendo menção expressa a entidade fa- miliar formada por casais homoafetivos, o que se encontra disposto não é taxativo, mas sim exemplificativo, englobando, portanto, outros tipos de família, não só aquela formada por um homem e uma mulher. 8  Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. 9  Art. 1.1 - Os Estados-Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garan- tir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social [...] Art. 24 - Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação alguma, à igual proteção da lei.
  • 68. 68 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Essa mudança se dá no momento em que o direito acompanha a nova realidade da sociedade mun- dial. Novos padrões e novas práticas éticas e morais vêm surgindo, e com elas, uma nova forma de ver a nor- ma jurídica, uma forma que atribui aos direitos um carácter mais “prático e efetivo, não teor ético e ilusório”. (Corte IDH. Condición Jurídica y Derechos de los Migrantes Indocumentados. Opinião Consultiva OC-18/03 de 17 de setembro de 2003. Série A No. 18, §120) 3. A CONTROVÉRSIA ACERCA DO REGIME JURÍDICO DAS UNIÕES HOMOAFETIVAS NO BRASIL. Há muito que as uniões homoafetivas são cada vez mais comuns no cenário não só brasileiro, como mundial. A falta de regulamentação jurídica dessa situação corresponde à violação de direitos fundamentais importantes, vez que esse direito é ao mesmo tempo individual, social e difuso. O ordenamento jurídico brasileiro não possui proteção legal expressa à união homoafetiva. Outros países já reconhecem a união civil entre casais homossexuais, como é o caso da Dinamarca (1989), Noruega (1993), Suécia (1994), Holanda (1995) e Reino Unido (2001). Diversos projetos de Lei versando sobre a regulamentação da situação da união homoafetiva, desde o primeiro em 1995, não chegam ao plenário da câmara. Esse descaso acerca da matéria demonstra a inércia de parte do legislativo em se envolver, tanto por questões políticas, como também religiosas. 3.1 O RECONHECIMENTO JURÍDICO DA UNIÃO HOMOAFETIVA PELO STF. A primeira decisão judicial brasileira reconhecendo a união entre casais do mesmo sexo ocorreu na década de 90, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.10 O Supremo Tribunal Federal, em cinco de maio de 2011, analisa a temática das uniões homoafetivas, através da conjugação das questões vertidas na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 427711 , de propositura da Procuradoria Geral da República, e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 132, de legitimação ativa do governo do Estado do Rio de janeiro12 . As duas ações foram relatadas pelo então Ministro Ayres Britto, e objetivavam, mediante interpreta- ção conforme a constituição, a equiparação da união entre pessoas do mesmo sexo com a união estável, a fim de adquirirem status de entidade familiar, assegurada, no artigo. 226, §3º. A falta de reduto positivo no que concerne à união entre pessoas do mesmo sexo, não significa que não haja tal proteção por parte do ordenamento jurídico brasileiro. Nas palavras do Ministro Gilmar Mendes, o fato de que tanto a Constituição quanto o Código Civil apenas fazem menção à entidade familiar formada por casais heterossexuais, não significa a negativa da proteção à união homoafetiva. Ainda segundo os Ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa e Cármen Lúcia, o supracitado art. 226, §3º da Constituição deve ser interpretado sistematicamente com os artigos 3º, IV e 5º. Portanto, na inexis- tência de proibição expressa e consagrando a constituição so princípios da igualdade e da não discriminação, deveriam ser reconhecidas as uniões homoafetivas como equiparadas às uniões civis. Assevera o Ministro Luiz Fux que o conceito ontológico de família engloba as uniões marcadas por afetividade, estabilidade, con- tinuidade, publicidade e identificação recíprocas de seus integrantes como formadores de uma família. Assim, seguindo o exposto pelo Ministro Relator, o pleno do STF, por unanimidade, decidiu por dar provimento às pretensões expostas nas duas ações supracitadas. 10  TJRS, AI 599075496, 8ª. Câm. Civ., j. 17.06.1999, rel.Des. Breno Moreira Mussi. 11  Era inicialmente ADPF 178, na qual se intentava o reconhecimento de uniões homoafetivas como entidade familiar, esten- dendo-se a elas, portanto, o mesmo tratamento jurídico da união civil. 12  Nesta ação intentava-se aplicar o regime de união estável aos casais homoafetivos funcionários públicos civis do estado com base no argumento de que a negativa de tal feito contrariava preceitos constitucionais fundamentais.
  • 69. 69 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. As mesmas teses poderiam ter sido alegadas no caso do José Alberto Pérez Meza vs. Paraguay, basea- das nos artigos 11 (proteção da honra e da dignidade) e 24 (igualdade perante a lei e igual proteção por parte desta) da CADH, uma vez que esta também não proíbe expressamente a união civil entre pessoas do mesmo sexo. É certo dizer que representaria um avanço hermenêutico de grande importância histórica, levando em consideração o contexto sociopolítico atual. 3.2 ESTATUTO DA FAMÍLIA: SUPREMACIA JUDICIAL E PROIBIÇÃO AO RETROCESSO. O judicial review teve início no emblemático caso Marbury vs. Madison, e desde então, tem sido adotado por diversos ordenamentos jurídicos13 , inclusive pela nossa atual Contituição. Desde então, o dualis- mo existente entre constitucionalismo e democracia tem tomado forma e representa um dos assuntos mais discutidos até hoje na área acadêmica. Sem pretensões de encerrar o assunto, teceremos alguns comentários sobre essa controvérsia. A jurisdição constitucional nasceu nos Estados Unidos, e portanto se fundamenta em moldes de uma sistemática definida por James Madison. Esse sistema assenta a constante e permanente necessidade de re- concialiação entre dois princípios opostos: o de autogoverno - ou governo da maioria -, e o de abstaenção da maioria quando as ações por ela adotadas possam ser ofensivas a direitos das minorias. (BORK, 1991; P.139). É baseado nesse contexto que Bickel (1986), o principal teórico a enfrentar o dilema Madisoniano, descreve o que ele chama de dificuldade contramajoritária. em sua obra ele tenta explicar como o controle de consti- tucionalidade, uma insittuição não democrática, pode ser justificado num governo baseado em legitimidade democrática dos representantes. Em verdade, a crítica de Bickel é demasiadamente paradoxal, e foi bastante criticada, por basear-se em deixar a cargo dos juízes da Suprema Corte decidirem pautados em ideais de sabedoria e imperativos morais. Outro importante doutrinador que tentou justificar a legitimidade da jurisdição constitucional foi Ronald Dworkin. Para ele, o direito é naturalmente interpretativo e apenas pode ser conhecido através do processo de interpretação das normas. O direito, como um todo, só pode ser entendido, portanto, dentro de casos concretos, onde o juíz irá interpretar a lei segundo a situação que ali se encontra. (DWORKIN, 2009; p.14-15). Já a democracia é um ideal a ser seguido, não bastando apenas democracia de carácter procedimental - leia-se eleições majoritárias - para que num Estado possa haver o autogoverno. Antes, é preciso que o povo sinta-se parte de determinada comunidade para se autogovernar e isso só ocorre quando o tratamento entre os membros de uma mesma comunidade é igualitário. (DWORKIN, 2002, p. 305-369). Nesse contexto que encontramos o papel e a legitimidade da juridicção constitucional. à ela cabe o papel de evitar que maiorias eventuais sobreponham seus desejos e vontade sobre todos, prejudicando o direito das minorias. É certo que, apesar das controvérsias existentes acerca do controle de constitucionalidade e sua legitimidade, a Constituição Federal brasileira adota essa prática jurídica e prevê, portanto, a função do judiciário como intérprete da constituição. Ou seja, (CITTADINO, 2009; p.62) o Ordenamento Constitucional Brasileiro, apesar de não ter transformado o Supremo Tribunal Federal em uma corte constitucional propriamente dita, veio por restringir sua compêntica à matéria de cunho constitucional - assim, cabe ao STF a guarda da Constituição. Essa função de guardião, nada mais é do que a expressão do carácter político que assume o Supremo nesse novo desenho constitucional, uma vez que função de interpretar e, portanto, decla- rar o alcance e o sentido de normas jurídicas é ação - se não política - de grande repercursão politico-social. 13  O controle de constitucionalidade, apesar do grande perído que passou inerte nos Estados Unidos, passou a ser uma prática comum nas cortes de todo o mundo, tendo início com a sua adoção pelas novas repúblicas da antiga união soviética, posteriormen- te na europa ocidental no pós- Segunda Guerra e então pelos países da América Latina e península ibérica após os seus períodos de governos ditatoriais. (VICTOR, 2008; p. 87 e ss)
  • 70. 70 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Nesse contexto, com o passar dos anos o STF tem assumido diversos posicionamentos políticos acer- ca de assuntos14 das mais diversas ordens, tomando por base, em alguns momentos específicos um posicio- namento ativista. Isso se deve a diversos fatores, como por exemplo, o fortalecimento do judiciário diante da atual desconfiança nacional no que se refere ao legislativo - principalmente pelos recorrentes escândalos de corrupção; mas também ao posicionamento inerte do órgão legislativo, vez que se exime de discutir algumas questões “polêmicas”, deixando sua resolução à cabo do judiciário uma vez que este não passa pelo processo eleitoral. Essa prática demonstra a relação existente entre o legislativo e o judiciário brasileiro. Pois de um lado encontramos uma instituição que, por diversas vezes ampliou sua esfera de atuação, buscando legitimar-se democraticamente; enquanto de de outro lado, há o poder político organizado, sofrendo uma grave crise de legitimidade democrática, experimentando um descrédito recorrente e suas próprias limitações políticas em uma sociedade fragmentada pelos interesses conflitivos (SILVA et al , 2010, p. 14). Interessante notar que, o posicionamento majoritário do Supremo Tribunal Federal, ao longo de 21 anos15 (de 1988 até 2009) foi o de deferência com relação as decisões tomadas pelo legislativo. Ou seja, a cor- te não têm demonstrado um o exercício de um poder contramajoritário, pelo menos não de forma relevante. Sempre que possível, são aproveitadas partes das leis que sofreram o controle de constitucionalidade, ou, em caso de omissões legislativas, o Tribunal procurou conceder prazo para que o congresso suprimisse a irnércia. Ocorreu diferente, porém, no caso das uniões homoafetivas. Diante do já mencionado silêncio legis- lativo, o Supremo Tribunal Federal reconheceu, através de interpretação conforme a constituição, o status de entidade familiar às uniões formadas por casais do mesmo sexo. Em resposta à atuação do guarda da constituição, foi proposto na câmara dos deputados o Projeto de Lei nº 6583 de 2013, também conhecido com Estatuto da Família, de autoria do Deputado Federal anderson Ferreira do PR/PE16 . Essa reação parte da bancada religiosa tradicionalista do congresso nacional, e tem por fim a restrição do significado de “entidade familiar” para aquela formada apenas pela união entre homem e mulher, e também das unidades monoparentais - dái o nome ser “Estatuto da Família”, no singular, defen- dendo a existência de apenas uma forma de família. Os argumentos apresentados para legitimação do projeto de lei, pautam-se principalmente em dois: o primeiro, referente à utilidade procriativa do casamento - sendo portanto imperativo para a espécie humana que as uniões heterossexuais permaneçam intactas e reconhecidas como pivô da sociedade -, e a segunda à tradição cristã do Estado brasileiro - muito embora o Brasil seja um estado laico 17 . O projeto encontra-se em trâmite na câmara dos deputados e ainda não foi votado pelo plenário. Quais seriam, entretanto, as consequências jurídicas da aprovação do “Estatuto da Família”? Ora, o diálogo institucional não é institucionalizado no Brasil, o que não significa que não ocorra. O Supremo Tribunal Federal, embora seu eminente caráter político - principalmente em questões controversas 14  O supremo Tribunal Federal já analisou caso referente ao uso de armas de fogo ((ADI 3112/DF), à pesquisa com células- -tronco embrionárias (ADI 3510/DF), à liberdade de expressão e os discursos com conteúdo racista (HC 82424/RS), à liberdade de informação jornalística (ADPF 130/DF), a processos seletivos diferenciados para pessoas de origens sociais e raciais diferentes (ADI 3330/DF), e à interrupção da gravidez de feto anencéfalo (ADPF 54/DF). 15  Para informações e dados completos da pesquisa, vide POGREBINSCHI, Thamy. Judicialização ou Representação?: Política, direito e democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011. 16  Para leitura do tero completo do PL: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=597005. 17  Art. 5. VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garan- tida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias; VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva; VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei; Art. 150 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:VI - instituir impostos sobre: b) templos de qualquer culto; Art. 210 § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de en- sino fundamental.
  • 71. 71 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. como aborto de feto anencéfalo, entre outros - em diversos casos também houve recalcitrância do judiciário em afirmar-se o último intérprete da Carta Magna. No entanto, o direito de constituir família é direito fundamental e está resguardado pela nossa conti- tuição. Assim como demostramos acima, os direitos à igualdade e não discriminação são direitos humanos de suma importância e o fundamento principal de diversos diplomas jurídicos, entre eles a nossa constituição e a CADH. Assevera o Ministro Gilmar Mendes: Liberdade e igualdade constituem os valores sobre os quais está fundado o Estado constitucional. A história do constitucionalismo se confunde com a história da afirmação desses dois fundamentos da ordem jurídica. Não há como negar, portanto, a simbiose existente entre liberdade e igualdade e o Estado democrático de direito. Isso é algo que a ninguém soa estranho – pelo menos em sociedades construídas sobre valores democráticos [...] Assim, o direito objeto de estudo, aqui, constitui direito de uma minoria frente ao possível desejo de uma maioria representada no congresso. Nesse caso, qual deverá prevalecer? Entramos novamente na dis- cussão acerca da jurisdição constitucional e do constitucionalismo, essa problemática interfere diretamente na questão do poder contramajoritário do Tribunal. Entretanto, defendemos que deva haver uma supremacia judicial na questão, pautados nos seguintes argumentos: (i) A proteção dos direitos das minorias é ethos da jurisdição constitucional; (ii) pelo fenômeno que ficou conhecido como “leis in your face” (VICTOR, 2013; p.169); (iii) pelo princípio da poribição ao retrocesso. Apesar de já discutida acima, faz-se mister frisar que o mais importante papel do Supremo Tribunal Federal é o de guardião da constituição. é no contexto de seu exercício que existe o Estado de Direito, pois este depende da efetivação de direitos e garantias fundamentais. Nesse diapasão, a fim de garantir o cumprimento desses direitos, o papel da corte não possui o con- dão de interferir nas atividades do legislador democrático. Não há, portanto, que se falar que o judiciário, ao exercer a jurisdição constitucional age em detrimento dos demais poderes, mas garante o ral funcionamento da democracia, pois é a tensão entre esta e o controle de constitucionalidade “ que alimenta e engrandece o Estado Democrático de Direito tornando possível o seu desenvolvimento, no contexto de uma sociedade aberta e plural, baseado em princípios e valores fundamentais.” (MENDES, 2001) A própria Carta Magna, ao definir procedimentos específicos para a atuação do legislador, prevê que os atos praticados pelos orgão de representação possam ser criticados e controlados. (MENDES, 2001) As- sim, o judicial review seria uma espécie de “fiscalização democrática” no que tange a guardar os direitos das minorias frente as maiorias tiranas. Quanto à questão do “leis in your face”, é um fenômeno que representa a reação do legislativo, com edição de lei que contraria entendimento já estabelecido pelo judiciário. Nesses casos, é comum que este útlimo reaja. Um bom exemplo foi no caso da edição da Súmula 394, o qual estendia o foro por prerrogativa de função para o julgamento de processos criminais relativamente aos atos praticados no exercício da antiga função pública. Proposta uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 2860), o Supremo entendeu por declarar inconstitucional a prerrogativa no caso referido acima, sem, no entento, alteração do texto. A Lei nº 10.628 foi aprovada pelo congresso nacional no final de 2002, revertendo o entendimento do Supremo Tribunal Federal e extendendo, novamente, o foro por prerrogativa de função para os ex-detentores de cargos públicos. Essa lei foi impugnada, posteriormente, através da ADI 2797, na qual o STF declarou, por maioria de votos, a incostitucionalidade da lei, por tentar superar uma interpretação constitucional da Corte.
  • 72. 72 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Diante disso, é possível que, caso aprovado, o Estatuto da Família venha a sofrar impugnação através de ação direta de inconstitucionalidade, e pode o Supremo Tribunal Federal decidir por manter o seu en- tendimento e declarar inconstitucional a lei por ir de encontro com interpretação constitucional já firmada. Um outro motivo pelo qual deve haver a supremacia judicial no caso do casamento igualitário, refe- re-se ao princípio da proibição ao retrocesso. A proibição ao retrocesso se perfaz no contexto da segurança jurídica, corolário do Estado de direito e protegido em diversos diplomas constitucionais, inclusive na nossa Carta Magna de 1988. O direito Fundamental (e humano) à segurança, possui várias faces. Ele possui a condição de direito fundamental da pessoa humana (em seu âmbito pessoal e social) e, simultaneamente, é princípio fundamen- tal da ordem jurídica estatal e internacional - já que se encontra firmada tanto nos diplomas nacionais como também em vários diplomas supranacionais (SARLET, 2008; p. 5-6). Em verdade, a idéia de segurança jurídica e proteção da confiança (do cidadão e da sociedade) está intimamente ligada à ideia de dignidade da pessoa humana. Ora, O princípio da dignidade da pessoa huma- na, como já explicitado nesse estudo , é o berço e o fundamento dos direitos humanos, e estes de concretizar através da eficácia e eficiência dos direitos fundamentais em cada Estado e da proteção da ordem internacio- nal. Assim sendo, só é possível vizualizar a realização dos direitos fundamentais em um estado que forneça o mínimo de segurança (aqui em sentido amplo, pois não envolve apenas a jurídica, mas também a econômica, a pessoal e a social, entre tantas outras) aos seus cidadão. É preciso que o cidadão confie no ordenamento jurídico e no Direito do seu Estado, que não se sinta refém e não seja apenas manipulado pelo Estado para fazer o que esse bem entender. Assim, o direito à segurança encontra-se ligado (e nesse sentido também a proibição ao retrocesso) ao Estado não apenas em seu sentido formal - na proteção do ato jurídico perfeito, do direito adquirido e da coisa julgada -, ou seja, um Estado Liberal de Direito, mas também em sentido material, sendo, de fato, um Estado Democrático de direito. A ação do Estado, portanto, - no que diz respeito aos direitos sociais - deve ser de carácter positivo - no que se refere à prestação de serviços essenciais a garantir o direito à segurança -, mas também de carácter negativo - no que tange a não violar os direitos humanos e fundamentais de seus cidadãos. (SARLET, 2008; p.7-8). Com efeito, a proteção dada à confiança e, consequentemente, à segurança jurídica - pelo menos no que tange à à sua relação com a dignidade da pessoa humana - não refere-se apenas aos atos de cunho retroativo, mas também aqueles atos de cunho retrocessivo, ou seja, que não alcançaram as figuras dos direitos adquiridos, do ato jurpidico perfeito e da coisa julgada, mas que de alguma forma houveram por prejudicar os direitos humanos e fundamentais de uma parcela de seus cidadãos. Neste diapasão, também a proibição do retrocesso encontra-se devidademente prevista em nosso or- denamento jurídico. Exemplos são os já mencionados ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada, mas não deixam de ser importantes - e na realidade de extrema relevância para esse estudo - as restrições legislativas dos direitos fundamentias, e até mesmo as limitações feitas ao poder constituinte reformador (li- mitações materiais e também formais18 ). E, da mesma forma como na segurança jurídica, como bem colocar Ingo Sarlet (2008, p. 9), a proibi- ção ao retrocesso não se restringe, tão somente, a atos passados, mas também a atos futuros: Com efeito, na esteira do que tem sido reconhecido na seara do direito cons- titucional alienígena e, de modo particular, em face do que tem sido experi- mentado no âmbito da prática normativa (muito embora não exclusivamente nesta esfera), cada vez mais se constata a existência de medidas inequivoca- mente retrocessivas que não chegam a ter caráter propriamente retroativo, pelo fato de não alcançarem posições jurídicas já consolidadas no patrimônio de seu titular, ou que, de modo geral, não atingem situações anteriores. As- 18  Vide SARLET, Ingo. A Eficácia dos Direitos Fundamentais,5a ed., especialmente p. 371 e ss., para maiores informações sobre os limites materiais à reforma constitucional.
  • 73. 73 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. sim, por paradoxal que possa parecer à primeira vista, retrocesso também pode ocorrer mediante atos com efeitos prospectivos. A união homoafetiva e o direito de constituir família, é direito humanos e fundamental, o qual perpas- sa tanto os direitos individuais, como os sociais. Sendo assim, uma possível violação desses direitos já asseru- garados pelo STF, representaria uma afronta tanto à segurança jurídica, quanto principal e especificamente ao princípio da proibição ao retrocesso. Isso porque, mesmo representando ato futuro do poder legislativo - uma vez que ainda não foi apro- vado o projeto de Lei do Estatuto da Família - este representa uma retrocessão ao estado anterior, já que os indívios da comunidade LGBTI estariam privados de exercer a união estável e todos os direitos que advém da sua realização. Isso seria uma falha na eficácia protetiva dos direitos fundamentais.19 Portanto, no que tange ao casamento igualitário, defendemos a idéia de supremacia judicial primeiro porque a aprovação e efetivação do Estatuto da Família representaria um retrocesso, o que claramente não é aceito pelo nosso ordenamento jurídico. Em segundo lugar, porque cabe à jurisdição constitucional a pro- teção ào direito das minorias, e dessa forma, não estaria o Supremo Tribunal Federal usurpando a função do legislador, mas sim exercendo a sua própria função em prol de um grupo marginalizado. Em terceiro lugar, porque é esperada uma reção do pretório excelsior frente à possível “violação” do legislativo no que se refere à entendimento já pacificado no judiciário. O Projeto de Lei (PL) nº 6583 de 2013, também conhecido como Estatuto da Família, foi proposto pelo Deputado Federal Anderson Ferreira do PR/PE. A propositura desse PL é consequência direta do reconhecimento da união homoafetiva e sua posterior conversão em casamento, por parte da banca evangélica tradicionalista que compõe o congresso nacional. CONCLUSÃO A equiparação da união entre casais do mesmo sexo à união civil para fins de entidade familiar foi um avanço e um ganho no ordenamento jurídico brasileiro. Em duas ações emblemáticas o Supremo Tribunal Federal agiu no sentido de defender a constituição e efetivar os direitos fundamentais, exercendo seu papel de guardião da constituição através da jurisdição constitucional. Embora o ordenamento jurídico brasileiro não preveja, expressamente, a possibilidade de formação de núcleo familiar por pessoas homoafetivas, ao interpretar a Carta Magna como um todo, é possível perceber que há espaço para a realização de tal feito, uma vez que a Constituição expressamente proíbe qualquer tipo de discriminação e preza pela concretização do princípio da igualdade. Da mesma forma, a CADH não dispõe proibição referente ao casamento igualitário, mas assim como a nossa carta magna, proíbe a discriminação e pressa pela igualdade. Baseado nisso, é provável que diante de um caso de violação de direitos humanos, como seria a provação do Estatuto da Família pelo congresso brasileiro, a corte pudesse agir no sentido de punir o Estado, aproveitando para atualizar seu entendimento sobre questões desse gênero, como aconteceu com o emblemático caso Atala Rifo e ninãs vs. Chile. A aprovação do Estatuto da família representaria uma ação retrógrada movida por setores conserva- dores e tradicionalistas do congresso nacional. Seria uma afronta não só à própria constituição brasileira, mas também a diversos diplomas internacionais e supranacionais sobre direitos humanos, diplomas normativos dos quais o brasil é signatário, ensejando penalização. Por todas essas razões, esperamos uma reação do Supremo Tribunal Federal caso o projeto de lei do Estatuto da Família seja aprovado pelo congresso. Esperamos pela declaração de inconstitucionalidade da referida lei, e pela prevalência da interpretação feita pelo pretório excelsior, assegurando o direito de todas as pessoas em constituírem família. 19  idem. p. 361 e ss.
  • 74. 74 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. REFERÊNCIAS Alexy, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997. BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. BUERGUENTHAL, Thomas. The inter-american system for the protection of humans rights. Anuário Jurídi- co intermaericano: Organização dos Estados Americanos, 1981. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3 ed. Coimbra: Alme- dina, 1998. Corte IDH. Condición Jurídica y Derechos de los Migrantes Indocumentados. Opinião Consultiva OC-18/03 de 17 de setembro de 2003. Série A No. 18. FIX- ZAMUDIO, Héctor.Proteccíon jurídica de los derechos humanos. México:Comisión Nacional de Dere- chos Humanos, 1991. In: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 2000. GUERRA, Sidney. A proteção internacional dos Direitos Humanos no âmbito da Corte Interamericana e o controle de convencionalidade. Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, v. 32.2, jul./dez., p. 341-366. 2012. Disponível em: http://mdf.secrel.com.br/dmdocuments/Sidney%20Guerra.pdf. Acesso em: 25 de jan de 2016. HERKENHOFF, João Baptista. Gênese dos direitos humanos. 1ª ed., São Paulo: Editora Acadêmica, 1994. LUÑO, Antonio Enrique Pérez Luño. Derechos Humanos, Estado de Derecho y Constitucion. 6 ed. Madrid: Tecnos, 1999. MENDES, Gilmar Ferreira., COELHO, Inocêncio Martires., BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. 1ª ed., 2ª tiragem, Brasília: Brasília Jurídica, 2002. MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 10ª ed., São Paulo: Atlas, 2013. ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Comissão Interamericana de direitos humanos. Decla- ração americana dos direitos e deveres do homem. 1948. Disponível em: http://www.cidh.oas.org/basicos/ portugues/b.Declaracao_Americana.htm. Acesso em: 25 de jan de 2016. ______. Convenção americana de direitos humanos. Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 1969. Disponível em: http://www.cidh.oas.org/Basicos/Portugues/c.Convencao_Americana.htm. Acesso em: 25 de jan de 2016. ______. Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Marta Lucía Álvarez Giraldo vs. Colombia – 04 de maio de 1999. Disponível em: http://www.cidh.oas.org/annualrep/99span/Admisible/Colombia11656. htm. Acesso em: 25 de jan de 2016. ______. Comisión Interamericana de Derechos Humanos. José Alberto Pérez Meza vs. Paraguay – 10 de ou- tubro de 2001. Disponível em: http://www.cidh.oas.org/annualrep/2001sp/Paraguay.19.99.htm. Acesso em: 25 de jan de 2016.
  • 75. 75 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. ______. Asamblea general. Resolución n. 2435/2008 de 03 de jun. de 2008. Derechos humanos, orientación sexual e identidad y expresión de gênero. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/AG-RES_2435_XXX- VIII-O-08.pdf. Acesso em: 25 de jan de 2016. ______. Asamblea general. Resolución n. 2504, de 04 de jun. de 2009a. Derechos humanos, orientación se- xual e identidad y expresión de gênero. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/AG-RES_2504_XXXIX- -O-09.pdf. Acesso em: 15 de jan de 2016. ______. Asamblea general. Resolución 2600, de 08 de jun. de 2010. Derechos humanos, orientación sexual e identidad y expresión de gênero. Disponível em: https://www.oas.org/dil/esp/AG-RES_2600_XL-O-10_esp. pdf . Acesso em: 25 de jan de 2016. ______. Asamblea general. Resolución n. 2653, de 07 de jun. de 2011b. Derechos humanos, orientación sexual e identidad y expresión de gênero. Disponível em: http://www.oas.org/dil/esp/AG-RES_2653_XLI- -O-11_esp.pdf. Acesso em: 25 de jan de 2016. ______. Corte Interamericana de Derechos Humanos. Atala Riffo y Niñas vs. Chile.Sentencia, 24 fev. 2012a. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_239_esp.pdf. Acesso em: 15 de jan de 2016. ______. Asamblea general. Resolución n. 2721, de 04 de jun. de 2012b. Derechos humanos, orientación sexual e identidad y expresión de gênero. Disponível em: http://www.oas.org/dil/esp/AG-RES_2721_XLII- -O-12_esp.pdf. Acesso em: 25 de jan de 2016. ______. Asamblea general. Resolución n. 2807, de 06 de jun. de 2013b. Derechos humanos, orientación se- xual e identidad y expresión de gênero. Disponível em: http://www.oas.org/es/sla/ddi/docs/AG-RES_2807_ XLIII-O-13.pdf. Acesso em: 25 de jan de 2016. PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 2000. PINTO, Monica. Derecho internacional de los derechos humanos: breve visión de los mecanismos de pro- tección en el sistema interamericano. In: Derecho internacional de los derechos humanos. Montevideo: Comisión Internacional de Juristas/ Colegio de Abogados del Uruguay, 1993. In: PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 2000. Robert Alexy. Teoria de los Derechos Fundamentales. Centro de Estúdios Constitucionales, Madrid, 1997. SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 5 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
  • 76. 76 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. DIREITO AO PROTESTO E SUA TUTELA JUDICIAL: UM ESTUDO DE CASO SOBRE A OCUPAÇÃO DA RUA NETO CAMPELO PELO MOVIMENTO OCUPE ESTELITA ANA PAULA DA SILVA AZEVÊDO Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, vinculada à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos, com bolsa da CAPES/PROSUP. Pesquisadora do Grupo REC - Recife Estudos Constitucionais LETÍCIA MALAQUIAS MENDES BARBOSA Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direitos Humanos da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, vinculada à linha de pesquisa Cidadania e Práticas Sociais. Pesquisadora do Grupo Novo Constitucionalismo Latino-americano VITÓRIA CAETANO DREYER DINU Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, vinculada à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos, com bolsa da CAPES/PROSUP. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia SUMÁRIO: Introdução; 1. O movimento ocupe estelita (#ocupeestelita) e o porquê do estudo da ocupação da rua neto campelo; 2. Direito ao protesto como o “primeiro direito”; 3. Análise da decisão interlocutória do processo de nº 0024756-03.2015.8.17.0001; Considerações finais; Referências. INTRODUÇÃO A pesquisa busca promover a discussão sobre a tutela judicial do direito ao protesto a partir do pro- cesso de nº 0024756-03.2015.8.17.0001, de maio de 2015, envolvendo a ocupação da Rua Neto Campelo, na capital pernambucana, por manifestantes do Movimento Ocupe Estelita (#OcupeEstelita), após aprovação e sanção da Lei Municipal nº 18.138/2015, relativa ao plano urbanístico apresentado pelo Consórcio Novo Recife para o Cais de Santa Rita, José Estelita e Cabanga. Para tanto, utiliza-se da metodologia qualitativa do estudo de caso, exatamente porque são as singu- laridades do caso que puderam indicar se o Poder Judiciário atuou (ou não) como poder contramajoritário em amparo à efetivação de direitos fundamentais das minorias. A abordagem volta-se a discutir o direito ao protesto e as interações entre o espaço público e o privado no processo analisado quando houve a ocupação da Rua Neto Campelo, endereço do Prefeito, e posterior desocupação determinada pelo Poder Judiciário nos autos do processo supracitado, ajuizado pela Procuradoria do Município de Recife. A reflexão construída envolve os confrontos práticos entre os direitos fundamentais relativizados atra- vés da realização dos protestos, de um lado, e as formas de representação dos protestos com vistas a alcançar impacto na sociedade, por outro, que também não deixam de constituir direitos fundamentais tutelados. Esse cuidado no trato da matéria faz-se necessário para garantir que a suposta defesa da sociedade não se volte contra ela própria, oprimindo-a e constituindo instrumento ilegítimo de manutenção de forças políticas no poder.
  • 77. 77 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Desta feita, o propósito desse artigo não é realizar um juízo de valor peremptório da decisão que ordenou a desocupação da rua onde o Prefeito reside. Como se estava diante de um conflito de direitos fun- damentais, múltiplas poderiam ser as interpretações para a resolução do caso. A pergunta de partida, pois, pode ser sintetizada da seguinte forma: em que medida o magistrado contemplou a discussão sobre direitos fundamentais no caso da ocupação e desocupação da Rua Neto Campelo? Assim, independentemente do re- sultado final da decisão, o objetivo a que se busca é analisar se os caminhos percorridos pelo juiz contemplam a discussão dos protestos como arena de construção democrática, conforme indicado pela Constituição, ou não. Com este intuito, adotou-se como marco teórico a perspectiva de Roberto Gargarella sobre o direito ao protesto como um direito fundamental de liberdade coletiva. Neste contexto, o trabalho propõe-se, inicial- mente, a compreender as manifestações populares de rua como um direito constitucionalmente protegido, mormente em tempos de crise da democracia representativa, envolvendo ainda a proteção dos direitos de reunião e de liberdade de expressão coletiva, tidos com essenciais para que haja a proteção da crítica feita ao poder. Após, com o fito de construir as reflexões sobre o tema, como já indicado, são apresentados os ensi- namentos de Gargarella, especialmente a doutrina do foro público, que aduz serem as ruas, as praças e as avenidas os locais historicamente vocacionados para a expressão coletiva de opinião. Por fim, analisa-se a decisão do processo de nº 0024756-03.2015.8.17.0001, que ordenou a retirada dos manifestantes da Rua Neto Campelo. Embora inicialmente houvesse expectativas de identificar elemen- tos no processo relacionados ao sopesamento dos direitos fundamentais envolvidos – considerando a ocupa- ção como manifestação do direito ao protesto –, assim como as interações entre o espaço público e o privado, verificou-se que a decisão foi proferida reduzindo a causa a um problema administrativo referente à falta de autorização/licença para ocupação de espaço público. A partir do caso escolhido, tendo como pano de fundo o conturbado cenário recifense envolvendo a pauta sobre o direito à cidade, é fundamental compreender a diretriz adotada quando há o conflito entre interesses diversos e o direito ao protesto, velando para que a discussão e o dissenso, imprescindíveis à demo- cracia, não sejam tolhidos pelo Judiciário sob a justificativa de proteção de direitos supostamente prevalentes. 1.OMOVIMENTOOCUPEESTELITA(#OCUPEESTELITA)EOPORQUÊDOESTUDODAOCUPAÇÃO DA RUA NETO CAMPELO. O Movimento Ocupe Estelita ou #OcupeEstelita, como divulgado na página do facebook e em outras mídias sociais, corresponde a um movimento iniciado em 2012 que se apresenta como sendo composto por diversas identidades as quais se uniram em torno de um propósito, qual seja, o ideal de um crescimento ur- bano democrático inclusivo para a cidade do Recife, em confronto ao empreendimento imobiliário intitulado Novo Recife, com impacto nas áreas do Cais de Santa Rita, Cabanga e José Estelita, envolvendo, entre outros itens, a proposta de construção de um complexo habitacional luxuoso. A busca pelo propósito do Movimento Ocupe Estelita é feita, precipuamente, a partir de ocupações urbanas organizadas e não violentas – realizadas em espaços públicos, em sua maioria, e concentradas no entorno do Cais José Estelita –, como símbolo na busca pela efetivação dos direitos urbanos. A forma de apre- sentação do movimento, entre a ocupação e o manifesto, exteriorizada e propagada pelas mídias sociais, é um dos diferenciais do movimento, permitindo a sua análise contextualizada ao direito ao protesto e ao direito de resistência, destacando a sua relevância no cenário nacional, entre outras razões, por sinalizar a decadência do regime democrático representativo e o anseio por participação na política de forma direta e ativa, onde todos podem ser ouvidos e respeitados em suas subjetividades. No dia 04.05.2015, foi aprovado pela Câmara Municipal de Recife o Projeto de Lei 008/2015, em uma situação peculiar de violação do acesso do povo ao debate político. Na ocasião, a Câmara Municipal convocou às pressas uma audiência para aprovação do Projeto, desconsiderando a recomendação do Ministério Público
  • 78. 78 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Estadual de que o PL precisaria ser primeiramente discutido pelo Conselho da Cidade antes de ser inserido na pauta da Câmara dos Vereadores. Apesar das críticas dos poucos vereadores oposicionistas, e apesar do restrito acesso à casa legislativa ofertado ao povo para a sessão indicada, o Projeto foi aprovado e encaminha- do ao Prefeito Geraldo Júlio para sanção, cujo ato também ocorreu no mesmo dia. Na noite do dia 07.05.2015, uma quinta-feira, manifestantes apoiadores do Movimento Ocupe Este- lita decidiram, de forma espontânea, ocupar a rua onde reside o Prefeito da Cidade do Recife, Geraldo Júlio, como forma de protesto contra a sanção da Lei Municipal nº 18.138/2015. A mensagem que os manifestan- tes tentaram passar com esse ato foi bastante simbólica: se o Prefeito estava supostamente imiscuindo os interesses públicos com os privados na condução do plano urbanístico dos Cais de Santa Rita, José Estelita e Cabanga, os manifestantes, de forma análoga, iriam adentrar na seara privada do Prefeito, acampando na frente do prédio onde reside, a fim de pressionar pela prevalência dos interesses públicos. Durante a ocupação, os manifestantes foram acusados de jogar ovos no prédio, fazer bastante ba- rulho, bater latas no local, fazer ameaças, impedir o livre trânsito dos moradores e daqueles que passavam naquela rua. Mesmo que se possam levantar ressalvas éticas e morais contra a atitude dos manifestantes, que não atrapalharam apenas a vida do Prefeito, mas a vivência de moradores de toda uma rua, estava-se diante de um caso de exercício do direito de protesto em via pública. Diante da repercussão, a Procuradoria do Município do Recife ingressou com Ação de Obrigação de Fazer contra os integrantes do Movimento Ocu- pe Estelita e do Grupo Direitos Urbanos, sob o fundamento de que a ocupação da Rua Neto Campelo, como bem público destinado à circulação e ao lazer das pessoas em geral, deveria ter sido precedida de licença ou autorização por parte da Administração Pública. Se de um lado o Executivo Municipal não é capaz de atender as demandas sociais e volta-se à satisfa- ção de interesses alheios à sociedade para viabilizar o atendimento de interesses de grandes grupos econômi- cos – normalmente grandes financiadores de campanhas –, de outro, o Legislativo Municipal, composto pela base governista, é instrumento de afirmação e continuidade dos projetos tocados pelo Executivo. O Poder Judiciário, neste contexto, como terceiro e independente poder, deveria se afirmar como poder contramajo- ritário, tutelando as garantias e direitos fundamentais, mas há grande distinção entre o discurso e a prática, escancarando a falácia do discurso democrático apresentado à população. Daí surge o interesse para a utilização da metodologia do estudo de caso. Por mais que este método seja, em tese, passível da crítica da dificuldade de generalização, ele se faz útil no presente trabalho exata- mente porque são as suas singularidades que demonstram, de forma clara, os impasses que precisam ser en- frentados pelo Poder Judiciário ao julgar o conflito de direitos fundamentais existentes em qualquer protesto. Afinal, está-se diante de um exemplo de judicialização do direito ao protesto, com uma farta discussão sobre os limites de utilização do meio público como forma de exercício democrático. Se porventura há críticas quanto à objetividade desse método, uma possível resposta é que: [...] a validação do conhecimento gerado pela pesquisa, a aprovação de sua confiabilidade e relevância pela comunidade acadêmica, exige que o pesqui- sador se mostre familiarizado com o estado atual do conhecimento sobre a temática focalizada, de modo que ele possa, de alguma forma, inserir sua pesquisa no processo de produção coletiva do conhecimento (ALVES-MAZ- ZOTTI, 2006, p. 638). Assim sendo, acredita-se que o presente estudo de caso irá contribuir para a elucidação da proble- mática envolvendo o respeito ao protesto como um direito constitucionalmente tutelado. Isso porque, a partir de um caso extremado, em que manifestantes ocupam a calçada em frente ao prédio do Prefeito, é possível extrair conclusões que podem ser aplicadas em outros contextos (VENTURA, 2007, p. 386), fortalecendo-se a hipótese de que ainda falta amadurecimento do Judiciário para compreender os protestos como instrumen- tos legítimos de participação democrática popular e, por conseguinte, como verdadeiro direito que, em um caso concreto, pode vir a colidir com outros, fazendo-se necessária a ponderação.
  • 79. 79 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 2. DIREITO AO PROTESTO COMO O “PRIMEIRO DIREITO”. O direito ao protesto tem se mostrado, nos últimos anos, muito importante para a compreensão do Direito como instrumento para a solução de conflitos, ganhando destaque tanto na seara do Direito Consti- tucional quanto do Direito Penal. Roberto Gargarella, desenvolveu vasta obra acerca do derecho a la protesta social, demonstrando o quanto se faz necessário refletir acerca desse direito que pode ser considerado como o “primeiro direito”. Quando Gargarella (2012) fala da relação do direito com o protesto, está se referindo às respostas do poder público diante dos protestos sociais e, muito especialmente, das respostas conferidas pelo Poder Judici- ário. Inclusive, Gargarella dedica muito dos seus textos a abordagem do papel que o Judiciário, especialmente o Judiciário argentino, vem desenvolvendo na temática do direito ao protesto. Por sua vez, quando tal autor menciona “protestos”, está se referindo às reclamações/reivindicações feitas por determinados grupos de pessoas, que veem suas necessidades básicas constantemente insatisfei- tas. Essas reivindicações, por conseguinte, referem-se a problemas envolvendo a carência de trabalho, de moradia digna, de assistência sanitária, de proteção social, dentre tantas outras violações a direitos básicos do cidadão (GARGARELLA, 2012). De acordo com Gargarella (2012), ao pensar sobre os protestos sociais, experimenta-se uma tensão entre as aspirações democráticas, de um lado, e as preocupações com os direitos de cada indivíduo, do outro. Uma Constituição, por seu turno, convida a pensar numa maneira de como pensar essas duas preocupações de forma conjunta. Contudo, quando o protesto social chega ao âmbito do Judiciário, o autor aponta o se- guinte: Quando os juízes se encontram diante de um conflito que envolve o protesto social, devem se expressar sobre o modo como eles mesmos concebem a democracia. En- tretanto, algumas vezes por preguiça, outras por torpeza, ou por uma falta de atenção devida, eles passam por esses problemas sem tomar consciência da importância do que está em jogo1 . (GARGARELLA, 2012, p. 23). Com isso, o autor chama atenção para a necessidade de o Poder Judiciário aprofundar as reflexões acerca dos conceitos de democracia, direitos, justiça, interpretação constitucional, enfim, acerca dos assun- tos que envolvem muitos tópicos centrais da Filosofia Política e da Teoria Constitucional, para que se possa debruçar sobre a questão dos protestos sociais de modo mais acurado, e não genericamente, como vem ocor- rendo (GARGARELLA, 2012). Citando o artigo 22º da Constituição da Argentina, segundo o qual “o povo não delibera nem governa senão por meio dos seus representantes” 2 , Gargarella atenta para o fato de que, nos casos concretos envol- vendo os protestos sociais, os juízes argentinos, de um modo ou de outro, acabam efetuando uma interpreta- ção acerca do significado daquela norma constitucional, demonstrando diferentes graus de aprofundamento. Sobretudo, o que ficou em evidência foi o fato de que os juízes, em sua maioria, seguiram a tendência de uma interpretação mais restritiva, limitada e elitista acerca da democracia, movendo-se em direção do que Gargarella (2012) denomina de princípio da desconfiança. Essa desconfiança estaria exatamente na discussão pública e no que os cidadãos poderiam realizar através dela e iria de encontro ao que Gargarella (2012) chamou de princípio alternativo da confiança, segundo o qual a confiança estaria depositada “no cidadão, em nossas capacidades coletivas, na discussão pública” 3 (GARGARELLA, 2012, p. 23). 1  Tradução livre. 2  Tradução livre. 3  Tradução livre.
  • 80. 80 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Sem dúvidas, interpretar a democracia de modo restritivo, acreditando que aquela se encerraria com o sufrágio, é uma visão muito pobre acerca da democracia e do que ela pode proporcionar aos cidadãos de qualquer país. Se comportando dessa maneira, o poder público e os juízes acabam não auxiliando a popu- lação nas suas aspirações coletivas e terminam por espalhar o medo oriundo das possíveis consequências penais da participação em uma greve ou manifestação, por exemplo. Para Gargarella, a ideia de democracia deveria estar associada à ideia de um processo de discussão coletiva, no qual todos os envolvidos pudessem intervir e expressar suas opiniões em face do que se está por decidir, principalmente, aqueles cidadãos que seriam mais afetados por tais decisões. A participação da popu- lação em expressões diretas de democracia, como manifestações e greves, por exemplo, pode ser um meio de os cidadãos cobrarem dos seus representantes eleitos ações condizentes com os motivos que levaram aqueles a escolher estes como seus porta-vozes. No que diz respeito às reivindicações por necessidades básicas insatisfeitas, há, ainda, outro fator que as tornaria mais graves, qual seja: o fato de que, não apenas na Argentina, mas em diversos outros países, como salienta Gargarella, o espaço concedido nos meios de comunicação para reclamações não depende da urgência destas, por exemplo, mas sim, e, sobretudo, da capacidade econômica de quem pretende ser ouvido (GARGARELLA, 2012). Por outro lado, se o Poder Judiciário se põe contra as minorias, perseguindo-as ou penalizando suas reivindicações, isso pode ter um resultado extremamente negativo, tendo em vista que alguns grupos mino- ritários já não gozam de popularidade, o que deveria levar o Judiciário a tomar atitudes que os protegessem. Entretanto, parece que os juízes, ao promoverem suas decisões, revelam-se de acordo com as opiniões de uma maioria hostil. Com relação à interpretação que é conferida ao texto de uma Constituição, pode-se afirmar, desde já, que se trata de uma tarefa delicada, tendo em vista que o próprio ponto de partida, onde se encontra o intérprete, já revela dificuldades, pois os textos constitucionais normalmente são repletos de conceitos vagos e genéricos, como por exemplo, justiça, igualdade e liberdade, fazendo tortuoso o trabalho do hermeneuta. O que Gargarella aponta é para o fato de um juiz poder livremente se amparar em qualquer doutrina existente para justificar algum entendimento proferido através das suas decisões e, com má fé ou não, acabar cometendo alguns abusos. Certamente, a tarefa de interpretar as normas constitucionais e aplicá-las aos casos concretos não é fácil, e ações judiciais envolvendo a colisão de certos direitos demandam um esforço reflexivo maior por par- te do juiz, o qual, ao invés de afirmar, simplesmente, que o direito de um termina onde começa o direito do outro, deveria questionar-se acerca de onde está, mais especificamente, esse limite ou quais os fundamentos nos quais se lastreia para dizer que determinado direito termina aqui, ao passo que outro direito começa ali. Gargarella ainda traz, com relação à forma como as manifestações acontecem, a distinção entre “ex- pressão pura” (que inclui escritos políticos e panfletos, por exemplo) e “expressão com agregados” (o plus speech), a qual faz referência a marchas, por exemplo, utilizada em alguns países, como nos Estados Unidos. Essa distinção vem sendo utilizada para proteger as chamadas “expressões puras”, deixando sem proteção as manifestações com agregados. Por sua vez, Gargarella (2007) propõe o desfazimento dessa dicotomia, citando a posição de Harry Kalven, segundo o qual toda manifestação/expressão inclui, necessariamente, o chamado plus speech (GARGARELLA, 2007). Por mais que seja trabalhoso, o que Gargarella sugere é que, apesar das críticas, deve ser preservado o conteúdo das manifestações, o que ele chama de el componente expressivo (o componente expressivo) (GAR- GARELLA, 2007). Assim, o ato de queimar uma bandeira ou de arremessar um ovo em algum político, tem obrigado os doutrinadores a pensar com mais cuidado sobre esse tipo de atitude por parte dos manifestantes, levando em consideração a potencialidade das mensagens que tais atos carregam. Para Gargarella (2007), não prestar a devida atenção a esse ponto significa desconsiderar uma questão crucial.
  • 81. 81 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Com relação à chamada doutrina do foro público, a doutrina e a jurisprudência internacional tem se posicionado em sua defesa. Segundo o foro público as ruas, praças e avenidas são lugares tradicionalmente utilizados para protestos e que merecem, por esse motivo, uma proteção especial (GARGARELLA, 2012, p. 28). Assim, pode-se perceber o quanto é atual e extremamente necessário o debate envolvendo o direito ao protesto, pois as manifestações se tornaram comuns nos últimos tempos. Insatisfações variadas motivam as pessoas a saírem de suas casas e trabalhos para reclamarem nas ruas tudo o que lhes causa incômodo. É por isso que o papel do Poder Judiciário se torna tão essencial4 , tendo em vista que, no âmbito legislativo, o direito ao protesto não encontra respaldos. Da mesma forma, a doutrina ainda é tímida quando o assunto é protesto social. O Poder Judiciário trata-se de um Poder com ampla liberdade para decidir os rumos do Direito Cons- titucional de um país, porém, é justamente aquele que temos menos possibilidades institucionais de contro- lar. Além disso, a própria composição do Judiciário é seletiva demais (homens brancos e de classe média). Como, então, esperar decisões não segregadoras e elitistas por parte dos magistrados? Por mais que a decisão de um juiz esteja claramente fundamentada em normas e princípios, acres- cidos da doutrina mais especializada no assunto, inocência não atentar para as convicções pessoais dos magistrados que, embora não apareçam de modo explícito na fundamentação de uma decisão, certamente determinam esta. Se, de um lado, é a polícia quem censura uma manifestação, utilizando-se de meios exageradamente violentos, por outro, o Judiciário parece não saber lidar com o tema do direito ao protesto, oferecendo tam- bém decisões que aproximam as manifestações à prática delituosa ou, simplesmente, proferindo reflexões genéricas e rasas acerca desse importante direito. 3. ANÁLISE DA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DO PROCESSO DE Nº 0024756-03.2015.8.17.0001. Consoante já exposto, a Procuradoria do Município do Recife ajuizou o Processo de nº 0024756- 03.2015.8.17.0001, com o objetivo de “garantir a desocupação da Rua Neto Campelo, seu entorno e passeios públicos, no Bairro da Torre, Recife-PE”, vez que o Município do Recife estaria “impedido de exercer o seu poder de polícia e reestabelecer a paz social que se faz mister” 5 após manifestantes terem ocupado a rua para forçar a revogação do projeto urbanístico relativo aos Cais de Santa Rita, José Estelita e Cabanga pelo Prefeito da cidade. Em breve síntese, o magistrado concedeu a antecipação dos efeitos da tutela, a fim de que houvesse a imediata desocupação da rua e seus entornos, cuja circulação estava sendo impedida pelos manifestantes, chegando, inclusive, a arbitrar multa diária de dois mil reais por pessoa por descumprimento da decisão. Em virtude do pronunciamento judicial, os ocupantes saíram pacificamente da localidade. A questão que se impõe, todavia, é a pobreza da decisão no que tange aos debates sobre direitos fun- damentais. Em verdade, por mais que o magistrado tenha feito referência ao art. 5º, inc. XVI, da CF/88, o qual institui o direito de reunião para fins pacíficos (albergando, pois, o direito ao protesto), trata-se de uma citação meramente pró forma, tanto que se ignorou por completo o fato de que, para um protesto, não há necessidade de autorização administrativa. 4  Segundo Gargarella, o Judiciário, ao enfrentar casos relativos a protestos, deveria atuar com base em dois princípios: o princípio da imparcialidade ou distância deliberativa, e o princípio das violações sistemáticas (2007, p. 42/45). O primeiro princípio estabelece que, quando os manifestantes não são membros plenamente integrados na sociedade deliberativa, o Judiciário deve ser mais sensível às demandas desse grupo, de forma a conferir maior proteção às formas de comunicação eleitas para expor as demandas. O segundo princípio, por sua vez, indica que as autoridades públicas devem dar atenção especial aos protestos decorrentes de sistemáticas violações a direitos básicos, sopesando este fator ao analisar as circunstâncias de realização do protesto. Assim, quando a injustiça é particularmente grave e persistente, os juízes deveriam estar mais abertos a tolerar ações que, em outras situações, poderiam ser reprovadas. 5  Os trechos entre aspas foram extraídos da decisão interlocutória em comento.
  • 82. 82 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A decisão, de forma simplória, reduziu toda a questão a uma querela meramente administrativa, como se a ocupação da Rua Neto Campelo fosse uma simples utilização irregular de bem público, e não um protesto, com proteção constitucional diferenciada, portanto. Nos termos do douto juiz, “a Rua Neto Cam- pelo e demais ruas e calçadas em seu entorno, por serem espaços utilizados para a circulação e lazer das pessoas em geral, são consideradas juridicamente como bens públicos, e como tal, qualquer ocupação delas, (sic) está sujeita a licença ou autorização por parte da Administração Pública”. Como é cediço, a Constituição Federal de 1988 (CF/88) consagrou o modelo do Estado Democrático de Direito, seguindo a tendência dos Estados Ocidentais, mas também como reação aos abusos e arbitrarie- dades cometidos durante a ditadura militar. Nada mais natural, portanto, que tenha se dado bastante ênfase aos direitos e garantias fundamentais, dentre eles os direitos de expressão e participação política, a fim de possibilitar a construção de uma sociedade pluralista, em que múltiplas opiniões tenham vez e voz. Só assim é possível constituir uma verdadeira democracia, pois, sem que haja um debate livre de ideias e amplas in- formações, não há como os cidadãos, exercendo a sua autodeterminação, posicionarem-se livremente. Diante disso, por mais que a CF/88 não tenha falado expressamente em um “direito ao protesto”, há um desenho institucional que garante essa dimensão coletiva da liberdade de expressão (SANTOS; GOMES, 2014, p. 590-591). Afinal, se o exercício democrático demanda opiniões públicas diversas, é necessário per- mitir que as pessoas, mesmo que não tenham acesso aos meios usuais de comunicação, possam expor ideias contrárias ao status quo, o que pode se dar via manifestações de rua. Só assim a opinião pública será, efeti- vamente, constituída pelo cruzamento de inúmeras fontes, para que os cidadãos possam tomar as decisões fundamentais da comunidade de forma embasada, em um verdadeiro espaço público de discussão. Com o objetivo de proteger essa participação do cidadão na sociedade civil, pode-se afirmar que a CF/88 consubstanciou o direito ao protesto, primeiramente, na defesa do pluralismo como fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, inc. V), bem como no âmbito do exercício das liberdades (SANTOS; GOMES, 2014, p. 593). Têm-se, assim, a liberdade de reunião (art. 5º, inc. XVI) e a liberdade de expressão (art. 5º, inc. IX, e art. 220) conferindo o substrato para a defesa do exercício coletivo da manifestação do pensamento. Muito embora o art. 5º, inc. XVI, da CF/88, diga explicitamente que, para o direito de reunião, não se faz necessária autorização administrativa, toda a decisão é construída sobre o fato de que, não tendo havido solicitação prévia para o uso do espaço, a ocupação seria ilegal, o que contraria em absoluto as disposições constitucionais. A impressão que fica é a de que o magistrado ignorou o fato notório de que a ocupação tratava-se de um protesto, e, assim atuando, deixou de exercer o caráter contramajoritário que deveria ser a marca do Poder Judiciário. Tão raso foi, que sequer fez considerações sobre o fato de que não houve comunicação prévia da reunião às autoridades públicas, este sim requisito constitucional para o exercício do direito de reunião. Neste ponto, cumpre destacar, todavia, que ainda sim há críticas quanto à peremptoriedade deste mandamento, o qual tolheria o caráter espontâneo e imprescindível de muitos protestos. Como nos relembra Gargarella, seria necessário um esforço para identificar o “componente expressivo” dessas ações (2007, p. 34), que pode estar exatamente em sua espontaneidade. Talvez, a ideia de comunicação prévia possa ser interpretada no sentido apenas de evitar que se frustre outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, e não como uma forma de tornar ilegal todo e qualquer protesto que não tenha sido comunicado às autoridades, sob pena de tolher de forma des- proporcional e impedir o exercício da liberdade de expressão coletiva. De toda forma, trata-se de assunto o qual ainda precisa de elaboração doutrinária (conforme aduz SANTOS; GOMES, 2014), a qual não é o foco do presente trabalho. Após toda a explanação sobre a importância do direito constitucional ao protesto, é preciso deixar claro que, por evidência, não se trata de um direito absoluto, havendo condições para o seu exercício. Com o pós-positivismo e a declaração da força normativa dos princípios constitucionais, eis que a subsunção cedeu espaço para outro método de aplicação de normas, a ponderação, segundo a qual, num conflito de princípios,
  • 83. 83 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. se deve efetuar um balanceamento, a fim de identificar qual o princípio que irá prevalecer no caso concreto, bem como as suas consequências normativas. Desta feita, a depender da circunstância, o direito ao protesto pode, em tese, ser legitimamente restringido. Se o conflito de regras se resolve no plano da validade, o mesmo não ocorre com o conflito de prin- cípios. Pelo fato de eles serem mandamentos ou comandos de otimização, eles jamais podem ser realizados completamente6 . Portanto, em uma colisão de princípios, como ambos os comandos normativos apresentam a mesma hierarquia e o mesmo valor, o objetivo da ponderação seria restringir o mínimo possível um princí- pio, para que o outro seja protegido (CAMBI, 2011, p. 92/93), o que se dá por meio do postulado da propor- cionalidade e seus deveres de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito (ÁVILA, 2001). Mesmo que haja críticas a essa forma de interpretação das disposições constitucionais, no caso em análise, o magistrado não considerou o direito ao protesto como um direito fundamental, empobrecendo por demais a discussão jurídica e ignorando o conflito de direitos entre a livre circulação e a manifestação popu- lar. Independentemente de o momento ser ou não de retirada dos manifestantes do passeio público, a ausên- cia de cotejo sobre o caráter democrático dos protestos reforça a hipótese de que ainda há muito para que o direito ao protesto seja plenamente efetivado e respeitado. Tem-se, assim, uma situação em que a prática do sistema não raro opera em total desrespeito às diretrizes constitucionais, com a repressão desproporcional aos manifestantes, por mais que as manifestações de rua sejam constitucionalmente protegidas. Está-se, pois, numa situação de desconstitucionalização fática ou concretização desconstitucionalizante, nos termos utilizados por Marcelo Neves (1996). Em outras palavras, significa que o texto constitucional é uma referên- cia distante dos agentes estatais e dos cidadãos, de forma que a prática desenvolve-se à margem do modelo estabelecido na Constituição. A constitucionalização simbólica funcionaria, assim, “como álibi em favor dos agentes políticos dominantes e em detrimento da concretização constitucional” (NEVES, 1996, p. 327). Jamais um direito constitucional e internacional exercido regularmente poderia configurar um ilícito (ZAFFARONI, 2010, p. 6). Não obstante, sob o manto da defesa da segurança pública de toda a comunidade, estão se olvidando direitos constitucionalmente protegidos, dentre eles o direito ao protesto. E pior: muitas vezes, a realização dos protestos se dá exatamente porque, de forma prévia, houve, por parte do Executivo, um triplo mecanismo de violação dos direitos fundamentais (prestacionais, políticos e de defesa), tudo sob a justificativa da tutela de interesses de outras pessoas (direito de propriedade, de liberdade de locomoção, etc.): As pessoas protestam pela falta de políticas públicas prestacionais (privação de direitos sociais). Não conseguem influenciar os processos políticos oficiais e por isso protestam publicamente. A seguir, o Estado reprime esses cidadãos que exercem seus direitos fundamentais de cunho político, pois o ato de pro- testar corresponde a um direito político muito importante nas democracias. Nesse contexto, o Estado organiza a repressão por meio de atos de violência, de detenções ilegais atingindo os direitos de liberdade (direitos de defesa) com prisões, lesões corporais e até morte. A ordem é: nenhuma tolerância com quem o Estado considera “intolerante” (SABADELL; SIMON, 2014, p. 532, grifos dos autores). CONSIDERAÇÕES FINAIS A ocupação da Rua Neto Campelo, na capital pernambucana, por manifestantes do Movimento Ocu- pe Estelita (#OcupeEstelita), apresenta-se como peculiar na medida em que permite a reflexão sobre os es- paços de atuação política destinados aos cidadãos na democracia representativa contemporânea. Ao ter sido 6  Não obstante as dificuldades de conceituação dos princípios, traz-se a definição elaborada por Humberto Ávila: “[...] pode-se definir os princípios como normas que estabelecem diretamente fins, para cuja concretização estabelecem com menor exatidão qual o comportamento devido (menor grau de determinação da ordem e maior generalidade dos destinatários), e por isso dependem mais intensamente da sua relação com outras normas e de atos institucionalmente legitimados de interpretação para a determinação da conduta devida” (2001, p. 21).
  • 84. 84 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. vedado o acesso à Câmara Municipal de Recife, manifestantes do movimento dirigiram-se à rua onde se situa a residência do Chefe do Executivo Municipal, forçando a reflexão sobre os limites entre o público e o pri- vado, entre o direito de protestar e resistir dos cidadãos manifestantes e a liberdade daqueles cidadãos even- tualmente prejudicados pelo processo de ocupação urbana, ainda que pacífica. O processo de nº 0024756- 03.2015.8.17.0001 criava expectativas acerca deste debate, envolvendo direitos e garantias fundamentais. Todavia, após a leitura da decisão em análise, que tem por fundamentação uma citação doutrinária descontextualizada sobre poder de polícia, autorização e licença, fica a frustração pela ausência de debate sobre direitos fundamentais, logo quando se está diante de um caso de exercício democrático via pressão popular na rua da residência do Prefeito. Em tese, protestos “desarrazoados” são reprimidos tendo por base o exercício legítimo da força pelo Estado. Todavia, cabe o questionamento sobre até que ponto esse uso da violência institucional é cabível, para que o Estado não sirva, em verdade, à perpetuação de situações de dominação, mormente ao ignorar o caráter fundamental do direito de reunião. Quando os casos chegam ao Judiciário, este fica diante de duas concepções de democracia: uma mais restritiva, em que se tolhe o direito ao protesto, e outra mais inclusiva e ampla. Ora, por se estar em uma democracia representativa, o Judiciário deveria ser mais atento às manifestações de crítica ao poder constituído, até porque o poder emana do povo. Não obstante, não é incomum que os magistrados punam os supostos excessos cometidos em protestos com base no argumento de que “todo direito tem limites”, sem qualquer fundamentação mais aprofundada sobre que limites seriam esses. Não se cumpre, pois, o dever do ônus argumentativo do intérprete, mais acentuado em se tratado de cláusulas abertas como a referida. No estudo de caso analisado: a casa do povo (Legislativo) deixa de ser de acesso público e de parti- cipação da sociedade; o Judiciário deixa de analisar a importância e o contexto das manifestações e o argu- mento dos excluídos; e a ordem é para desocupar as ruas. É tempo de refletir sobre os espaços destinados à participação dos cidadãos e o direito fundamental de oposição ao sistema, pilares de um regime político dito democrático. REFERÊNCIAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. Usos e abusos dos estudos de caso. Cadernos de Pesquisa, São Paulo,  v. 36,  n. 129,  p. 637/651,  set./dez. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pi- d=S0100-15742006000300007script=sci_abstracttlng =pt . Acesso em: 16 set. 2015. ARGENTINA. Constitución de la Nación Argentina. 1994. ÁVILA. Humberto. A distinção entre princípios e regras e a redefinição do dever de proporcionalidade. Revis- ta Diálogo Jurídico, Centro de Atualização Jurídica, ano I, vol. I, n° 4, Salvador, jul/2001. Disponível em: http://www.direitopublico.co m.br/pdf_4/DIALOGO-JURIDICO-04-JULHO-2001-HUMBERTO-AVILA. pdf. Acesso em: 29 nov. 2014. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo: Direitos fundamentais, políticas pú- blicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. GARGARELLA, Roberto. Un diálogo sobre la ley y la protesta social. Postdata, Ciudad Autónoma de Bue- nos Aires, n. 12,  ago. 2007. Disponível em: http://www.scielo.org.ar/sciel o.php?script=sci_arttextpi- d=S1851-96012007000100007lng=esnrm=iso. Acesso em: 28 mai. 2015. _______. El derecho de resistência en situaciones de carência extrema. Barcelona: Astrolabio - Revista in- ternacional de filosofia, n. 4, 2007.
  • 85. 85 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. ______. El Derecho frente a la protesta social. Temas, Havana, n. 70, abr./jun. 2012, p. 22/29. NEVES, Marcelo. Constitucionalização simbólica e desconstitucionalização fática: mudança simbólica da Constituição e permanência das estruturas reais de poder. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 33, n. 132, 1996, p. 321/330. SABADELL, Ana Lucia; SIMON, Jan-Michel. Protestos sociais, direitos fundamentais e direito a desobe- diência civil. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais, ano 8, nº 30, set./dez. 2014. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014, p. 521/544. SANTOS, Gustavo Ferreira; GOMES, Ana Cecília de Barros. Direito ao protesto e Constituição: parâmetros constitucionais para uma cidadania ativa. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Instituto Brasileiro de Estudos Constitucionais, ano 8, nº 30, set./dez. 2014. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014, p. 587/603. VENTURA, Magda Maria. O estudo de caso como modalidade de pesquisa. Revista da Sociedade de Car- diologia do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 20, n. 5, p. 383/386, set./out. 2007. Disponível em: http://sociedades.cardiol.br/socerj/revista/2007_05/a2007_v20_n05_art10.pdf. Acesso em: 16 set. 2015. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Derecho Penal y Protesta Social. In: BERTONI, Eduardo. ¿Es legítima la cri- minalización de la protesta social? – derecho penal y libertad de expresión em América Latina. Buenos Aires: Universidad de Palermo, 2010.
  • 86. 86 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. QUEM TEM DIREITO À ÚLTIMA PALAVRA? O INSTITUTO DA REVISÃO JUDICIAL À LUZ DAS TEORIAS DE DWORKIN, DAHL E WALDRON ANA TEREZA DUARTE LIMA DE BARROS Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Bacharela em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista de Mestrado do CNPq. E-mail: anaterezadlb@gmail.com MARIANA COCKLES TEIXEIRA Mestranda e Bacharela em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista de Mestrado da Facepe. E-mail: marianacockles@gmail.com SUMÁRIO: introdução; 1. Revisão judicial como elemento da democracia (ou não): as visões de Ro- nald Dworkin e Jeremy Waldron; 2. O judiciário seria realmente neutro e imparcial? A visão de Robert Dahl; Conclusão; Referências. INTRODUÇÃO Judiciário ou legislativo? Quem tem direito à última palavra em questões políticas relevantes e con- troversas é assunto sobre o qual, desde a obra histórica de Dahl, escrita em 1957, vários teóricos políticos, juristas e constitucionalistas têm se posicionado. Primeiramente é explorada a visão de Ronald Dworkin - que se opõe claramente à de Dahl e Waldron – que defende ser o Judiciário a instituição competente para decidir questões políticas que envolvam morali- dade. Igualmente, defende que a Corte estaria mais apta a proteger a minoria contra a “tirania da maioria”, uma vez que a premissa majoritária não implica democracia. O procedimento democrático também não de- finiria qual autoridade é a legitimada para proteger direitos, importando mais o conteúdo da decisão do que “quem decide”. Igualmente, é abordada a visão de Jeremy Waldron - o maior crítico de Dworkin – quem considera que, no que diz respeito às questões morais, sempre haverá discordância, não havendo uma resposta corre- ta. A única forma, portanto, de se garantir uma decisão democrática seria através do procedimento, não do conteúdo. Seria o Judiciário não-responsivo perante os eleitores e, portanto, ilegítimo para decidir questões políticas, que só poderão ser plenamente debatidas, com igualdade, no âmbito legislativo. Também é analisado o entendimento de Robert Dahl, quem, contrariamente a Dworkin, considera uma falácia o argumento de que o Judiciário é realmente neutro e serve para proteger o direito das minorias. Dahl demonstra que a Suprema Corte sempre se alia à aliança nacional dominante e que, em muitos poucos casos, decidiu contra a maioria, pondo, por água abaixo, o argumento de Dworkin. Por fim, faz-se uma breve conclusão, contrapondo a visão dos autores trabalhados.
  • 87. 87 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 1. REVISÃO JUDICIAL COMO ELEMENTO DA DEMOCRACIA (OU NÃO): AS VISÕES DE RONALD DWORKIN E JEREMY WALDRON. Para os defensores da revisão judicial, como Ronald Dworkin, dito instrumento aprofundaria a de- mocracia, ao proteger os direitos das minorias contra a “tirania da maioria”. Dworkin defende que a leitura moral realizada pela Suprema Corte é extremamente necessária. Como exemplo, cita o caso Brown, em que a atuação da Corte foi necessária para que se pudesse extinguir a segregação oficial nas escolas. O autor, igualmente, defende que uma alternativa intermediária é impossível, e que resta aos juristas e constitucio- nalistas aceitar a leitura moral realizada pelos juízes (DWORKIN, 2006, p. 18-21). Citando Conrado Hübner Mendes: Para Dworkin, a política do mundo civilizado deve estar subordinada ao im- pério do direito, do princípio, da integridade. Deve respeitar não apenas o direito posto, legislado, mas também suas premissas morais. E os juízes se- riam um veículo institucional adequado para carregar e impor a dimensão de princípio às decisões políticas. Não nega que o legislador também deva ser guardião de princípios, e que tenha responsabilidade de não produzir deci- sões institucionais. Mas o ambiente legislativo não seria o ideal para questões de escolha sensível. Dworkin não admite uma cultura jurídica leniente, segundo a qual o Direito é uma questão de força e autoridade, e os argumentos baratos intercambiá- veis. É possível buscar o melhor argumento, a resposta certa, ainda que não demonstráveis (MENDES, 2008, p. 77). A tese principal de Dworkin ataca a premissa majoritária, ou seja, a premissa de que as decisões políticas a que se chega devam ser as favorecidas pela maioria dos cidadãos. Tal premissa não implicaria de- mocracia. Conforme sua concepção comunitária - segundo a qual as decisões políticas deveriam ser tomadas pelo “povo” enquanto tal, e não por “indivíduos encarados um a um” - “uma sociedade em que a maioria despreza as necessidades e perspectivas de uma minoria é não só injusta como ilegítima” (DWORKIN, 2006, p. 24-26/ 31/ 38-39). Se a democracia fosse entendida no sentido subminimalista, como o fazem Schumpeter (1961) e Przeworski (1999), a proteção ao direito das minorias pouco importaria, pois, democracia existiria em todo lugar onde houvessem eleições limpas, sendo este o único requisito democrático. Porém, Dworkin, contrariamente a Schumpeter e Przeworski, defende que democracia é conteúdo, não procedimento. O que importa é o conteúdo da decisão a que se chega, não importando “quem” seja a autoridade que a profira. Para Dworkin, quando juízes anulam uma decisão tomada pelo legislativo, em lugar de estarem indo de encontro à democracia, estão aprofundando-a, uma vez que a democracia não se reduz à regra da maioria, mas é resultado da combinação entre procedimento e substância (MENDES, 2008, p. 34/ 59/ 76-77). A Corte, então, seria considerada o “fórum do princípio”, de modo que não haveria necessidade de representação nos moldes tradicionais, ao contrário do que defendem os que se opõem à revisão judicial, como Waldron. Para evitar que a maioria se torne juíza da própria causa, não deveria ser ela quem decide quais decisões majoritárias devem ser aceitas (DOWRKIN, 2010, p. 222-223). As decisões a respeito dos direitos contra a maioria não são questões que de- vam, por razões de equidade, ser deixadas a cargo da maioria. O constitucio- nalismo – a teoria segundo a qual os poderes da maioria devem ser limitados para que se protejam os direitos individuais – pode ser uma teoria política boa ou má, mas foi adotada pelos Estados Unidos, e não parece justo ou coerente permitir que a maioria julgue em causa própria. Dessa forma, os princípios
  • 88. 88 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. de justiça parecem posicionar-se contra o argumento derivado da democra- cia, e não a seu favor (DWORKIN, 2010, p. 222-223). Uma das principais críticas feitas à revisão judicial, e que será feita por Waldron, é justamente essa aparente falta de legitimidade dos juízes. No entanto, para seus defensores, como é o caso de Dworkin, a proteção aos direitos individuais, ou seja, ao conteúdo, compensa. Além do mais, teriam os juízes melhor formação técnica e não estariam subordinados às pressões políticas (LEIBIR; DUTRA, [s.d], p. 8-9). Nas pa- lavras de Dworkin (2005, p. 17): “os juízes não são eleitos nem reeleitos, e isso é sensato porque as decisões que tomam ao aplicar a legislação tal como se encontra devem ser imunes ao controle popular”. Conclui Dworkin que os tribunais devem ser ativistas, de modo que estejam preparados a formular e dar respostas a questões de moralidade política. Se deixarmos as decisões de princípio exigidas pela Constituição a cargo dos juízes, e não do povo, estaremos agindo dentro do espírito da legalidade, tan- to quanto nossas instituições o permitam, mas correremos o risco de que os juízes venham a fazer as escolhas erradas (DWORKIN, 2005, p. 231-232). Dahl, como veremos, irá derrubar esse argumento de Dworkin, ao provar que o Judiciário sempre se alia à aliança nacional dominante, logo, não seria neutro. Contrariamente a Dworkin, Jeremy Waldron se opõe à chamada revisão judicial “forte”, que é a exis- tente nos Estados Unidos da América (e no Brasil), em que os tribunais têm autoridade para declarar que determinada norma não será aplicada, transformando-a em letra morta. Waldron parte do pressuposto de que existe um compromisso por parte da maioria dos membros da sociedade e da maioria de seus funcio- nários em respeitar os direitos individuais e das minorias (WALDRON, 2006, p. 1354/ 1360). Pergunto-me em quantos países ocidentais a maioria da população os respeita e os leva em consideração para tomar suas decisões. Acredito que em poucos. Assim, Waldron, diferentemente de Dworkin, acredita que os membros de uma sociedade sempre irão discordar a respeito de se determinada decisão viola ou não direitos, não existindo uma única decisão correta. Como resposta a esse problema de desentendimento moral, Waldron defende a legitimidade do pro- cedimento, contrapondo-se à visão de Dworkin, que preza pelo conteúdo (WALDRON, 2006, p. 1369- 1370). Nas palavras de Waldron: Todavia, dada a inevitabilidade do desacordo sobre tudo isso, uma teoria da justiça e dos direitos deve ser complementada por uma teoria da autoridade. Uma vez que pessoas discordam sobre o que a justiça requer e quais direitos temos, precisamos perguntar: quem deve ter poder para tomar decisões (...)? Saber o que conta como uma boa decisão é uma questão que não desaparece no momento em que respondemos à questão “Quem decide”? Pelo contrário, a função de uma teoria da justiça e dos direitos é aconselhar seja lá quem for identificado (pela teoria da autoridade) como a pessoa para tomar a decisão (WALDRON, 1993, p. 32). Waldron salienta o insulto que é considerar que os cidadãos não deveriam dirimir seus conflitos por meio do procedimento majoritário, outorgando a um seleto grupo de juízes a autoridade de fazê-lo. Na verda- de, o procedimento adotado pelos tribunais para se chegar a uma decisão é o mesmo: a votação majoritária. Quando cidadãos ou seus representantes discordam sobre quais direitos te- mos ou sobre o que estes direitos impõem, parece quase um insulto dizer que isto não é algo que se lhes permite resolver por meio de procedimento majoritário, mas que deve ser atribuído para determinação final a um pe- queno número de juízes. É particularmente insultante quando descobrem
  • 89. 89 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. que juízes discordam entre exatamente pelas mesmas linhas que cidadãos e representantes, e que juízes tomam suas decisões, também, por votação ma- joritária. Cidadãos podem sentir que, se desacordos nesses assuntos devem ser resolvidos pela contagem de cabeças, então são as suas cabeças ou as de seus representantes que deveriam ser contadas (WALDRON, 2001, p. 15). Assim, já que ambos decidem de forma majoritária, antes todos os cidadãos decidindo por maioria do que um seleto grupo de juízes fazendo o mesmo. Dessa forma, para o Waldron, a Suprema Corte não seria uma instituição contramajoritária. Tampouco teria o argumento dos juízes ou a qualidade de suas decisões, peso no seu voto (MENDES, 2008, p. 102). Em lugar de falar impessoalmente sobre “a dificuldade contramajoritária”, devemos distinguir entre a Corte decidindo por maioria, e muitos e muitos homens e mulheres comuns decidindo por maioria. Se fizermos isso, nós vemos ainda que a questão “Quem deve participar?” sempre tem priorida- de sobre a questão “Como eles decidem quando discordam?” (WALDRON, 1993, p. 50). A defesa do procedimento como melhor maneira de se obter uma decisão democrática levaria a duas perguntas fundamentais: “por que eles? Por que não eu?” e “no procedimento decisório, por que não foi dado maior peso aos pontos de vista dos legisladores que concordam comigo sobre o assunto?”. Primeiramente, seriam os legisladores quem decide, pois foram eleitos diretamente pelo povo, logo, são responsivos perante este. Nas eleições, os cidadãos decidem, em condição de igualdade, quem deverá assumir o posto privilegia- do de representá-los na tomada de decisões. Em segundo lugar, o princípio majoritário garantiria justiça e tratamento igualitário a todos. Assim, todas as opiniões têm peso igual (WALDRON, 2006, p. 1387-1388). Ao dar mais valor ao procedimento que à substância, Waldron, de certa forma, termina por considerar que mesmo as decisões que contrariam os direitos das minorias, se deliberadas por uma legislatura eleita, serão consideradas democráticas. Assim, uma decisão que fosse contrária ao matrimônio igualitário continu- aria sendo democrática, uma vez que passou pelo debate legislativo. Já para Dworkin, uma decisão legislativa que não reconhecesse esse direito estaria ferindo o direito de uma minoria e precisaria passar pelo crivo do Judiciário. Waldron, igualmente, deveria levar em consideração que, embora a deliberação legislativa suposta- mente deixe todos em situação de igualdade, nem todos possuem a mesma capacidade de influência, restan- do claro que o legislativo também sofre pressões políticas e econômicas. Este foi um dos argumentos trazidos por Dworkin em seu livro “A virtude soberana”, em que reconhece que há uma diferença de influência, no processo político, que determinados grupos possuem em relação a outros. Dessa forma, embora o voto dos eleitores tenha o mesmo impacto, nem todos conseguem exercer a mesma influência no processo político (DWORKIN, 2005, p. 270-271). Assim, considerando que o parlamento pode traduzir uma desigualdade considerável de representação, defende Dworkin que a revisão judicial. Proporciona um fórum político no qual os cidadãos possam discutir, se de- sejarem, e, por conseguinte, o faz de maneira mais diretamente ligada à sua vida moral do que o voto. Além disso, nesse fórum aumenta muito o incentivo das minorias, que praticamente não têm nenhum incentivo na política co- mum (DWORKIN, 2005, p. 288). Quanto ao argumento de que a revisão judicial seria eficiente para proteger direitos das minorias contra a tirania da maioria, Waldron argumenta que tirânico é sempre algo relativo. Sempre que um lado discordar de algo, achará que o lado a favor estará sendo tirânico. Como exemplo, o autor cita a lei que regula o financiamento de campanha. Os que se opõem à referida lei sempre a acharão tirânica (WALDRON, 2006, p. 1395-1396).
  • 90. 90 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 2. O JUDICIÁRIO SERIA REALMENTE NEUTRO E IMPARCIAL? A VISÃO DE ROBERT DAHL. Dahl inovou ao ter sido o primeiro a reconhecer a Suprema Corte norte-americana como sendo, também, uma instituição política. Afinal, é comum que a Suprema Corte tenha de decidir casos em que há severos desacordos dentro da sociedade, como nos casos em que estão em questão a regulação da economia pelo Estado ou a segregação racial. Nesses casos, a decisão da Corte é política, e a sociedade precisa aceitar esse fato (DAHL, 1957, p. 279-280). Dahl demonstra que o entendimento da Suprema Corte está sempre alinhado com o da aliança nacional dominante. Afinal, os ministros são indicados pelo presidente, que não indicaria um juiz que fosse hostil a suas políticas públicas. Dessa forma, estaria a Corte menos propensa a obter sucesso se a iniciativa bloqueada for a de uma maioria. Inclusive, uma maioria legislativa forte sempre conseguiria superar o veto da Corte. Conclui alegando que a Corte não é eficiente protegendo direitos fundamentais e que tem poucos poderes para afetar o curso da política nacional (DAHL, 1957, p. 284-286/ 288/ 292-293). Como as investigações de Dahl se deram em 1957, questiono se ele teria tido as mesmas conclusões se dita pesquisa tivesse sido levada a cabo nos dias atuais. Decisões como a aprovação do casamento iguali- tário e a reforma da saúde afetaram fortemente o curso da política nacional norte-americana e protegeram direitos de minorias, mas são decisões que também estavam totalmente alinhadas com as políticas do exe- cutivo, o que talvez comprove a tese de que o judiciário se alia à aliança nacional dominante. É possível que a Suprema Corte apenas tenha protegido direitos fundamentais de minorias, nesses casos, porque a aliança nacional dominante tem viés progressista. A teoria de Dahl também põe, por água abaixo, o argumento dos defensores da revisão judicial - como Dworkin - de que seria melhor que o Judiciário decidisse as questões importantes, pois seria uma instituição neutra, diferentemente do legislativo, que sofre pressões políticas e econômicas. Ao demonstrar que o enten- dimento da Suprema Corte tende a se alinhar com o da aliança nacional dominante, o status de “neutralida- de” da instituição é posto, claramente, em cheque. CONCLUSÃO É difícil se posicionar quanto a quem deve dar a última palavra, se o judiciário ou o legislativo. Tanto os argumentos de Dworkin a favor da revisão judicial, como os argumentos de Dahl e Waldron, contrários a dito instituto, são bastante convincentes. Talvez os que defendam a revisão judicial, como Dworkin, em boa medida, estejam insatisfeitos com a democracia representativa. Para que se possa defender vigorosamente os legisladores, é preciso acreditar que eles realmente estão sendo representativos. É evidente que, em uma grande quantidade de casos, foi o Judiciário quem protegeu o direito das minorias, como recentemente, quando a Suprema Corte norte-ame- ricana reconheceu o matrimônio igualitário. É verdade, igualmente, que, no citado caso do matrimônio igualitário, dita decisão estava totalmente alinhada com as políticas do presidente, o que favorece a tese de Dahl de que o Judiciário tende a se alinhar à aliança nacional dominante. Talvez a revisão judicial passe a ser mais bem vista, aceita e preferida, em tempos em que o executivo e o judiciário têm viés mais progressista, situação em que irão tender a, de fato, proteger os direitos das minorias não reconhecidos pelo legislativo. No que diz respeito à legitimidade democrática, difícil contestar o argumento de Waldron de que os legisladores são os legitimados, uma vez que foram eleitos diretamente pelos cidadãos e, portanto, são res- ponsivos perante estes. Por outro lado, ao dar mais valor ao procedimento que à substância, Waldron, de certa forma, termina por considerar que, mesmo as decisões que contrariem os direitos das minorias, se delibera- das por uma legislatura eleita, serão consideradas democráticas.
  • 91. 91 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Por fim, não pretendo posicionar-me em favor ou contrariamente a nenhuma das posições. Os argu- mentos dos três autores estudados demostram como, a depender do aspecto a ser observado, uma das posi- ções parece mais acertada que a outra, o que torna difícil a construção de um posicionamento final. BIBLIOGRAFIA DAHL, Robert. Decision-making in a democracy: The Supreme Court as a national policy-maker. The Jour- nal of Public Law, n. 6, 1957, p. 279-295. DWORKIN, Ronald. A virtude soberana. A teoria e a prática da igualdade. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ________________. Uma questão de princípios. São Paulo: Martins Fontes, 2005. ________________. O direito da liberdade: A leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ________________. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martin Fontes, 2010. LEIBIR, Mauro; DUTRA, Letícia. Direitos das minorias e pressupostos democráticos: um paradoxo da jurisdição constitucional. [S.l.], [s.d.]. MENDES, Conrado Hübner. Controle de Constitucionalidade e Democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. WALDRON, Jeremy. A Right-based Critique of Constitutional Rights. Oxford Journal of Legal Studies, v. 13, 1993. _________________. Law and Disagreement. Oxford: Oxford University Press, 2001. _________________. The core of the case against judicial review. Yale Law Journal, n. 115, 2006, p. 1346- 1406. PRZEWORSKI, Adam. Minimalist conception of democracy: a defense. In: Shapiro, Ian e Hacker-Cordón, Casiano (org); Democracy´s Value. Cambridge University Press, 1999, p. 23-55. SCHUMPETER, Joseph A. [1942] Capitalismo, Socialismo e Democracia. Trad. de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961, p. 305-344.
  • 92. 92 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A AUTONOMIA DAS ORDENS LOCAIS INDÍGENAS NA AMÉRICA LATINA SOB O PONTO DE VISTA DO TRANSCONSTITUCIONALISMO E DO NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO ARTHUR ALBUQUERQUE DE ANDRADE Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista da CAPES no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. albuquerquearthur@hotmail.com ANA CATARINA SILVA LEMOS PAZ Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da CAPES no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. Monitora da cadeira de Direito Constitucional I na Universidade Católica de Pernambuco. catarina.lemospaz@gmail.com LUIZ MANOEL DA SILVA JÚNIOR Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Bolsista da CAPES no programa Tutela Multinível de Direitos Humanos. Monitora da cadeira de Direito Constitucional I na Universidade Católica de Pernambuco. luizmsj@live.com SUMÁRIO: Introdução; 1. O Transconstitucionalismo; 2. O Novo Constitucionalismo latina-ameri- cano; 3. A interseção entre o Transconstitucionalismo e o Novo Constitucionalismo; 4. A possibilidade do Transconstitucionalismo na América Latina servir à autonomia da cultura nativa, um dos objetivos do Novo Constitucionalismo; Conclusão; Referências. INTRODUÇÃO De acordo com Luhmann, a formação do Estado moderno ocorreu mediante a diferenciação funcio- nal da sociedade. Manifesta-se, inicialmente, no sistema político e a posteriori, no econômico e no jurídico. A partir da distinção sistêmica, são construídos os paradigmas modernos: a soberania (“staatgeralst”), a eco- nomia de mercado e o monismo jurídico (GALINDO, 2006). A sociedade contemporânea supera os paradigmas mencionados. A Guerra Fria é considerada o mar- co. Segundo o filósofo alemão Kurz, uma das consequências do fato histórico é a globalização e o agravamento da crise das sólidas instituições elaboradas na modernidade. Aponta o surgimento de uma “postura social niilista”, decorrente da incerteza desses paradigmas ocasionada pela citada crise. Estes são considerados insuficientes para coordenar as democracias contemporâneas e os juristas passam a ter de reformulá-los (GALINDO, 2006). Isto porque a sociedade fragmenta-se e apresenta alta complexidade, em um descompasso com os postulados do Estado, mormente o dos campos político e jurídico, os quais se encontram limitados geografi- camente, em oposição aos demais (econômico, informativo, etc.). Na lição de Wolkmer (1994), os mais prejudicados pela falência das instâncias política e jurídica são os grupos vulneráveis. Estes passam a exigir o reconhecimento de um soberano jurídico para cada cultura, no intuito de reverter o contexto de exclusão no qual se encontram devido à explanada falência.
  • 93. 93 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Funda-se, destarte, o pluralismo jurídico, um dos paradigmas contemporâneos do direito. Para ser concretizado, explica Raquel Fajardo (2015), deve haver uma ruptura com o constitucionalismo monista liberal do século XIX e com o constitucionalismo integracionista do século XX. Estabelecido o pluralismo jurídico, diversos questionamentos vêm à tona. 1. O TRANSCONSTITUCIONALISMO. Segundo Marcelo Neves (2010), na sociedade hodierna, a partir da globalização, os problemas de di- reitos humanos e regulamentação do poder, por exemplo, interessam a diversos ordenamentos jurídicos: na- cionais, locais, transnacionais, supranacionais e internacionais. O pluralismo jurídico, ao reconhecer novas ordens normativas, acentua a rede de tutela multinível de direitos (fundamentais) exposta. Nesse contexto, César Garavito (2015) questiona: qual(is) o(s) método(s) para compatibilizar os inúmeros ordenamentos, posto a diversidade e, por vezes, a incompatibilidade entre eles? O presente artigo destaca a teoria de Neves, o transconstitucionalismo. O método desenvolvido por Neves, o transconstitucionalismo, intenta construir pontes transversais entre os ordenamentos jurídicos dissonantes. Estes, para alcançar um consenso, devem, a princípio, se con- ter e perceber a própria incapacidade em ter uma visão holística da celeuma. Trata-se do denominado “ponto cego”, presente em todas as jurisdições, o qual se torna visível a partir de outros. Em paralelo, deve-se com- preender a inexistência de uma última ratio entre os ordenamentos, mais um motivo para ser estabelecido um diálogo entre eles. No que tange à América Latina, sobressaem-se as relações transversais estabelecidas entre as ordens locais indígenas e os Estados. Isto porque, na última década, há surgido, no continente, um movimento constitucional denominado “novo constitucionalismo latino-americano”, pelo qual se intenciona garantir a autonomia das tribos indígenas perante os tribunais estatais: propósito semelhante ao do transconstituciona- lismo referente à problemática. O vínculo aludido, então, esclarece a possibilidade de estudar o método e o movimento conjuntamente. No supracitado estudo, entretanto, notam-se pontos divergentes. É interessante, tanto para o trans- constitucionalismo, como para o novo constitucionalismo, o alcance de uma compatibilização dos menciona- dos pontos, a fim de que possam se fortificar reciprocamente. 2. O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO. Na América Latina, a inclusão almejada pelas tribos indígenas visadas pelo Novo Constitucionalismo pressupõe o reconhecimento de um ordenamento jurídico próprio para cada cultura presente dentro dos Estados. Diante dessa nova configuração, os Estados nacionais são substituídos pelos plurinacionais. Na realidade fática da região, esse projeto não aconteceu igualmente. Ao ponderar o reconhecimento da diversidade étnica nas Constituições vigentes da América Latina, Rodrigo Uprimny (2011) as categoriza em três diferentes tipos. O primeiro reúne as adeptas de um “pluralismo liberal”, as quais não reconhecem nenhum direito especial às comunidades discriminadas. Entre outros Estados, incluem-se nesse grupo o Chile, o Uruguai e a Costa Rica. O segundo promove o multiculturalismo, máxime através da jurisprudência dos Tribunais constitucionais. A Colômbia é um exemplo nítido. Quanto aos dois primeiros grupos, é frequen- te o debate concernente à autenticidade dos processos constitucionais. Indaga-se se os citados ordenamentos jurídicos foram construídos como resposta às demandas e aos desafios sócio-políticos das regiões nas quais se encontram; ou se são uma tentativa de copiar ideais eficazes na conjuntura europeia, contudo ineficazes na complexa realidade latino-americana (GARAVITO, 2015). O terceiro tipo de Constituição, por fim, remete ao Novo Constitucionalismo Latino-Americano e, por conseguinte, ao Equador e à Bolívia. Estas não se restringem a promulgar direitos característicos de um Es- tado multicultural, porém ainda unitário, precipuamente no tocante às diversas nações nele presentes. Inau-
  • 94. 94 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. guram, pois, um Estado plurinacional e intercultural. Em termos práticos, essas Constituições reconhecem a autodeterminação dos povos indígenas, ao atribuir-lhes circunscrições próprias de representação política e judiciária. Ademais, institucionalizam as línguas e os elementos da cultura nativa (UPRIMNY, 2011). Isto posto, vale salientar a existência de outras classificações com critérios deveras semelhantes, tal qual a elaborada por Raquel Fajardo (2011). Analogamente, a jurista divide as Constituições em três ciclos. A ideia é situar os Estados de acordo com o grau de avanço nas questões relacionadas ao pluralismo. Nessa linha, o primeiro ciclo apresenta as Cartas com menor propensão às demandas das comunidades ora trata- das. O terceiro, por sua vez, dispõe os Estados com o maior reconhecimento às problemáticas advindas da diversidade cultural. 3. A INTERSEÇÃO ENTRE O TRANSCONSTITUCIONALISMO E O NOVO CONSTITUCIONALISMO. Diante do exposto, notam-se objetivos comuns entre o transconstitucionalismo e o novo constitucio- nalismo. Ambos pretendem, em perspectivas diversas, garantir a autonomia de determinadas ordens jurídi- cas comumente olvidadas no monismo jurídico estabelecido pelo modelo eurocêntrico moderno. O primeiro como método e o segundo como fenômeno popular de reivindicação de um conjunto direitos. Sendo assim, sustenta-se a hipótese de aplicar o mencionado método ao fenômeno aludido, a fim de promover uma inten- sificação recíproca. No próximo tópico, serão narrados litígios cuja resolução valeu-se do transconstitucionalismo e nos quais um dos litigantes tratava-se de grupo(s) nativo(s). O intuito é sobrelevar a simbiose apontada, para suscitar discussões sobre essa hipótese aos interessados tanto na efetivação do método transconstitucional como no fenômeno do novo constitucionalismo no continente. Antes da narrativa, no entanto, salienta-se a necessidade de aplicar o método de modo distinto. O motivo é a desigualdade de expor normas válidas entre os indígenas e as demais ordens. Como atenta Neves (2010), há um risco destas se imporem àquelas. Ou seja, o transconstitucionalismo, nesses casos, deve funcionar como um instrumento de empoderamento do coletivo indígena, para que se consiga preservá-lo, assim como se faz com os demais. Nas palavras de Marcelo Neves (2010): Um outro lado do transconstitucionalismo aponta para a relação problemáti- ca entre as ordens jurídicas estatais e as ordens extraestatais de coletividades nativas, cujos pressupostos antropológico-culturais não se compatibilizam com o modelo de constitucionalismo do Estado. Evidentemente, nesse caso, trata-se de ordens “arcaicas” que não dispõem de princípios ou regras se- cundárias de organização e, por conseguinte, não se enquadram no modelo reflexivo do constitucionalismo. A rigor, elas não admitem problemas jurí- dico-constitucionais de direitos humanos e de limitação jurídica do poder. Ordens normativas dessa espécie exigem, quando entram em colisão com as instituições da ordem jurídica constitucional de um Estado, um “trans- constitucionalismo unilateral” de tolerância e, em certa medida, de apren- dizado. Essa forma de transconstitucionalismo impõe-se, porque – embora as referidas ordens jurídicas, em muitas de suas normas e práticas, se afas- tem sensivelmente do modelo de direitos humanos e de limitação jurídica do poder nos termos do sistema jurídico da sociedade mundial – a simples outorga unilateral de “direitoshumanos” aos seus membros é contrária ao transconstitucionalismo. Medidas nessa direção tendem a ter consequências destrutivas sobre mentes e corpos, sendo contrárias ao próprio conceito de direitos humanos.
  • 95. 95 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 4. A POSSIBILIDADE DO TRANSCONSTITUCIONALISMO NA AMÉRICA LATINA SERVIR À AUTONOMIA DA CULTURA NATIVA, UM DOS OBJETIVOS DO NOVO CONSTITUCIONALISMO. O transconstitucionalismo na América Latina é narrado em casos emblemáticos envolvendo as tribos Suruahá, Yawanawá, Yanomami, Yakye Axa e Sawhoyamaxa. Sobre as três primeiros tribos, colaciona-se a exposição do transconstitucionalista (NEVES, 2010): Um dos casos mais delicados apresentou-se recentemente na relação entre a ordem jurídica estatal brasileira e a ordem normativa dos índios Suruahá, habitantes do Município de Tapauá, localizado no Estado do Amazonas, que permaneceram isolados voluntariamente até os fins da década de 1970 (SE- GATO, 2011, p. 363, 357-381). Conforme o direito consuetudinário dos Su- ruahá, é obrigatório o homicídio dos recém-nascidos quando tenham alguma deficiência física ou de saúde em geral. Em outra comunidade, a dos indí- genas Yawanawá, localizada no Estado do Acre, na fronteira entre Brasil e Peru, há uma ordem normativa consuetudinária que determina que se tire a vida de um dos gêmeos recém-nascidos. Nesse contexto, também se tornou público o fato de que práticas desse tipo eram comuns entre os Yanomami e outras etnias indígenas. Essa situação levou a polêmicas, pois se tratava de um conflito praticamente insolúvel entre direito de autonomia cultural e di- reito à vida. O problema já tomara destaque na ocasião em que uma indígena Yawanawá, em oficina de direitos humanos da Fundação Nacional do Índio, em 2002, descreveu a obrigatoriedade, em sua comunidade, da prática de homicídio de um dos gêmeos, apresentando-se como vítima dessa prática jurídica costumeira (SEGATO, 2011, p. 357 et seq.). êxito, o contexto em que foi elaborado e a discussão que engendrou apontam para um caso singular de “diálogo” e colisão transconstitucional entre ordem jurídica estatal e ordens normativas locais das comunidades indígenas. Neves (2010), então, prossegue em uma análise crítica à problemática: Os elaboradores e defensores do Projeto de Lei partiram primariamente da absolutização do direito fundamental individual à vida, nos termos da moral cristã ocidental. Secundariamente, também contribuiu para a proposição do Projeto o direito fundamental da mãe à maternidade. Essa postura unilateral pela imposição dos direitos individuais em detrimento da autonomia cultural das comunidades não pareceu adequada para os que se manifestaram em torno do problema em uma perspectiva antropológica mais abrangente. A simples criminalização das práticas indígenas, em nome da defesa do direito à vida, pode ser vista, outrossim, como um verdadeiro genocídio cultural, a destruição da própria comunidade, destruindo suas crenças mais profundas. [...]. As ponderações da antropóloga Rita Laura Segato contribuíram positiva- mente para o esclarecimento dessa colisão de ordens jurídicas, enfatizando a necessidade de um diálogo entre ordens normativas, em termos que se enquadram em um modelo construtivo de transconstitucionalismo. No con- texto do debate, Segato (2011, p. 358) reconheceu que tinha diante de si “a tarefa ingrata de argumentar contra essa lei, mas, ao mesmo tempo, de fazer uma forte aposta na transformação do costume”. No âmbito de sua argumen- tação, ela invocou pesquisa empírica sobre os Suruahá, na qual se verificou que, em um grupo de 143 membros da comunidade indígena, entre 2003 e 2005, houve dezesseis nascimentos, vinte e três suicídios, dois homicídios de recém-nascidos (denominados pelos antropólogos “infanticídio”, sem o senti- do técnico-jurídico do tipo penal) e uma morte por doença. Ou seja, enquan- to 7,6% das mortes ocorreram por “infanticídio”, houve 57,6% de mortes por suicídio entre os Suruahá. Essa situação aponta uma compreensão da vida bem distinta da concepção cristã ocidental. Entre essa comunidade indíge- na, a vida só tem sentido se não for marcada por excessivo sofrimento para
  • 96. 96 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. o indivíduo e a comunidade, se for uma vida tranquila e amena. Assim se justificaria o homicídio de recém-nascido em determinados casos (SEGATO, 2011, p. 364 et seq.). O significado atribuído à vida e à morte pelos Suruahá não seria menos digno do que o sentido que lhes atribui o cristianismo. No que diz respeito às duas últimas tribos, Neves (2010) é claro: “Parece-me de uma relevância especial a decisão da Corte Interamericana de Direito Humanos, nos julgamentos dos casos Yakye Axa vs. Paraguai e Sawhoyamaxa vs. Paraguai30 (CORTEIDH, 2005b), no qual se decidiu sobre o direito de propriedade sobre territórios das comunidades indígenas Yakye Axa e Sawhoyamaxa, localizadas no Paraguai. Nesses interessantes casos, a CorteIDH decidiu não conforme o conceito técnico-jurídico de propriedade privada definido nos termos do direito constitucional estatal, mas sim levan- do em conta primariamente a noção cultural de “propriedade ancestral” das comunidades indígenas sobre os respectivos territórios, sedimentada histori- camente em suas tradições. Assim, deixando em segundo plano um direito fundamental assegurado cons- titucionalmente no plano estatal, a CorteIDH argumentou favoravelmente aos direitos de comunidade local extraestatal sobre o seu território, para as- segurar direitos humanos garantidos no nível internacional. Esse entrela- çamento multiangular em torno dos direitos humanos e fundamentais não seria possível, se não houvesse uma disposição, nas diversas ordens, especial- mente na estatal, para ceder às exigências das perspectivas de outras ordens normativas em relação ao significado e abrangência de direitos colidentes. [...]. Parece-me que os argumentos apresentados no item anterior não per- dem o seu significado em virtude dessa referência ao direito internacional. Nesses casos, cabe não apenas uma releitura complexamente adequada tan- to das normas estatais de direitos fundamentais quanto das normas interna- cionais de direitos humanos. Um universalismo superficial dos direitos hu- manos, baseado linearmente em uma certa concepção ocidental ontológica de tais direitos, é incompatível com um “diálogo” transconstitucional com ordens nativas que não correspondem a esse modelo. Ao contrário, a negação de um diálogo construtivo com as ordens indígenas em torno dessas questões delicadas é contrária aos próprios direitos humanos, pois implicaria uma “ul- tracriminalização” de toda a comunidade de autores e coautores dos respec- tivos atos, afetando-lhes indiscriminadamente corpo e mente mediante uma ingerência destrutiva. No âmbito de um transconstitucionalismo positivo im- põe-se, nesses casos, uma disposição das ordens estatais e internacionais de surpreender-se em um aprendizado recíproco com a experiência do outro, o nativo em sua autocompreensão. Nesse ponto, discute a questão do relativismo e do universalismo dos direitos humanos. Como per- cebe-se, é um debate comum tanto ao transconstitucionalismo, como ao novo constitucionalismo, uma vez que este propõe um Estado plurinacional, ou seja, com diversas jurisdições. Isto posto, é imperioso atentar para a importância de se encontrar pontos de interseção entre as culturas constitucionais, a qual não implica necessariamente em uma uniformidade teórica. O dilema entre o universalismo e o relativismo dos direitos humanos possui uma relevância particular para a América Latina. No ensinamento de Julieta Ripoll (2015), a região padece de uma grande instabilida- de sobre “quem é e quem não é um ‘ser humano’” desde a colonização europeia, quando aos índios não era atribuída a “humanidade” e tampouco direitos. Diante desse quadro, João Paulo Allain Teixeira (2000) enten- de o relativismo como um modo de garantir aos povos historicamente dominados a emancipação da cultura e, portanto, da própria coletividade. Isto porque o universalismo, conforme explanado, tende a valorizar as sociedades dominantes em detrimento das demais – em oposição ao relativismo.
  • 97. 97 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A mesma lógica, em diferentes proporções, da preservação das tribos indígenas pode ser aplicada em outros casos. Entre os quais os negros, vítimas de racismo; da memória dos torturados, nas ditaduras recen- tes, olvidadas pelo Estado; dos moradores de favelas das capitais brasileiras frente às ações abusivas da Polícia Militar. São contextos, por vezes, excluídos de direitos e, portanto, ausentes de humanos. CONCLUSÃO O transconstitucionalismo é originariamente concebido sob a pretensão de promover um diálogo, cujos interlocutores estariam posicionados igualmente. Nesse sentido, Neves afirma haver poucos Estados capazes de aplica-lo. Contudo, em um desdobramento do conceito, amplia a ideia de diálogo para a de aber- tura a novas razões normativas, sem o estabelecimento de uma final ou superior. Esse aprendizado converge com o novo constitucionalismo no que concerne à reformulação do Judiciário nos pretendidos Estados pluri- nacionais. O presente artigo demonstra a intersecção entre o método e o fenômeno. Por óbvio, trata-se tanto de uma teoria, como de uma prática assaz complexa e, portanto, impossível de ser verticalizada dentro dos limites inerentes a esse artigo. Este ambiciona ser o ponto de partido para futuras discussões sobre a hipótese avençada e assim o faz. REFERÊNCIAS FAJARDO, Raquel Z. Yrigoyen. El horizonte del constitucionalismo pluralista: del multiculturalismo a la des- colonización. In: GARAVITO, César Rodríguez (Coord.). El derecho en América Latina: Un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores S.a., 2011. Cap. 6. p. 139-160. Disponível em: http://www.justiciaglobal.net/files/actividades/fi_name_recurso.8.pdf. Acesso em: 15 out. 2015. GALINDO, Bruno. Teoria Intercultural da Constituição: A Transformação Paradigmática da Te- oria da Constituição Diante da Integração Interestatal na União Européia e no Mercosul. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. GAVARITO, César Rodríguez. Navegando la globalización: un mapamundi para el estudio y la práctica del derecho en América Latina. El derecho en América Latina: Un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores S.a., 2011. Cap. 3. p. 69-86. Disponível em: http://www. justiciaglobal.net/files/actividades/fi_name_recurso.8.pdf. Acesso em: 15 set. 2015. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Martins Fontes, 2010. RIPOLL, Julieta Lemaitre. ¿Constitución o barbarie? Cómo repensar el derecho en las zonas “sin ley”. In: GARAVITO, César Rodríguez (Coord.). El derecho en América Latina: Un mapa para el pensamiento jurídico del siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores S.a., 2011. Cap. 2. p. 46-67. Disponível em: http://www.justiciaglobal.net/files/actividades/fi_name_recurso.8.pdf. Acesso em: 28 set. 2015. UPRIMNY, Rodrigo. Las transformaciones constitucionales recientes en América Latina: tendencias y desa- fios. In: GARAVITO, César Rodríguez (Coord.). El derecho en América Latina: Un mapa para el pensa- miento jurídico del siglo XXI. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores S.a., 2011. Cap. 5. p. 109-138. Dispo- nível em: http://www.justiciaglobal.net/files/actividades/fi_name_recurso.8.pdf. Acesso em: 10 set. 2015. WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico. Fundamentos de uma nova cultura no direito. São Pau- lo: Alfa-Ômega, 1994.
  • 98. 98 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate.
  • 99. 99 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. ESCRAVISMO CONTEMPORANEO E INTEGRAÇÃO ECONÔMICA: UM ESTUDO ACERCA DOS POSSÍVEIS IMPACTOS DA ADESÃO DA BOLÍVIA AO MERCOSUL BRUNA DE OLIVEIRA MACIEL Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, com concentração na área da Teoria Geral do Direito, Direito Internacional Público e Direitos Humanos. Advogada pública concursada da Caixa Econômica Federal. brunaolimaciel@ gmail.com JAQUELINE MARIA DE VASCONCELOS Graduanda em Direito pela Faculdade Boa Viagem, monitora em Direito Constitucional, pesquisadora do PICT/FBV DeVry-Brasil, colaboradora do Núcleo Multidisciplinar de Pesquisa em Direito e Sociedade (NPD/CNPq/UFRPE) e estagiária concursada da Caixa Econômica Federal. jmv.direito@outlook.com SUMÁRIO: 1. Contextualização; 2. A regulamentação do direito comunitário e brasileiro no combate à escravidão contemporânea no âmbito da indústria têxtil; 3. Costurando sonhos: Possíveis reflexos da adesão da Bolívia ao Mercosul; Considerações finais; Bibliografia CONTEXTUALIZAÇÃO A busca pelo crescimento econômico por meio da formação de blocos regionais é uma estratégia que foi, e continua sendo, adotada por diversos países. A contextura do atual cenário econômico global se carac- teriza pela existência de uma ampla mobilidade no fluxo de capitais e dos demais fatores de produção. A instalação de um capitalismo global é inegável, sendo possível visualizar uma dupla e contraditória dinâmica entre concentração e fragmentação. Onde se tem, por um lado, uma voraz competitividade que, por meio de fusões e aquisições empresariais, visa a concentração de capital em busca de reconhecimento e liderança; de outro lado, a fragmentação da produção em escala mundial, por meio dos processos de sub- contratação, terceirização e informalização do trabalho, para suprir a demanda desse mercado globalizado (DUPAS, 1999). Para legitimar o pretendido crescimento econômico frente ao desenvolvimento humano, o Tratado de Assunção assinado em 26 de março de 1991, pelas Repúblicas da Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, buscou deixar consignado em seu preâmbulo uma preocupação (retórica e falaciosa) acerca da justiça social. Na verdade, a questão social toma relevância nos espaços regionais, especificamente no Mercosul, na medida em que a abertura de mercados mostra ampla repercussão na estrutura dos empregos. Os tra- balhadores passam a ser o único fator de produção imóvel, enquanto capital e meios de produção circulam livremente. Desta maneira, surge o chamado “dumping social”, em virtude da disparidade do nível de desen- volvimento da legislação sócio laboral de cada um dos países signatários do Mercosul. Nesse sentido, a iminente adesão da Bolívia ao Mercosul acarreta uma fundada preocupação acerca de seus reflexos no combate à escravidão contemporânea no âmbito da indústria têxtil no Brasil. Tendo em
  • 100. 100 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. vista que os problemas flutuantes sobre as imigrações bolivianas com intuito laboral, são flagrantes e existen- tes desde a intensificação do fluxo migratório de bolivianos na década de 80 (ILLES, et. al., 2008). O acordo entre Brasil e Seul, que teve como objetivo “aliviar o desemprego que atingia a Coreia do Sul – em função da grande leva de pessoas que fugiram do regime comunista da Coreia do Norte, inflando a oferta de mão-de-obra no sul –” (ROSSI, 2005, p. 22), marca as raízes da celeuma. A primeira leva de coreanos desembarcou no porto de Santos no dia 12 de fevereiro de 1963, do navio Tjitjalenk, sendo destinados ao comércio de roupas intermediado pelos judeus, proprietários de grandes lojas do ramo. Os coreanos foram ousados, investiram na confecção de peças e na produção familiar, recebendo maior abertura no momento em que os judeus passaram a trabalhar em outros segmentos. O mercado pas- sou a exigir uma produção em larga escala concomitante ao período em que os bolivianos fugiam da situação crítica de seu país, sendo rapidamente absorvidos pela demanda coreana (ROSSI, 2005). Fausto Brito (1995) defende em seus estudos a existência da chamada ilusão imigratória contida no imigrante internacional. Onde de um lado se está diante de uma racionalidade imersa na decisão de emigrar e por outro lado, há a consideração (ou miragem) das condições da região escolhida. Atualmente a imagem acerca da existência de trabalho digno no Brasil auxiliado à expectativa de as- censão social, continua presente na percepção do povo boliviano, em especial, os provenientes da região de La Paz e Cochabamba (SILVA, 2006). O fato é que as senzalas do século XXI revelam um cenário tão crítico quanto o de outrora, caracteri- zado, acima de tudo, pela ausência de efetividade das proteções constitucionais sócio laborais para esse nicho específico de trabalhadores, considerados como suspeitos para segurança nacional diante da interpretação do anacrónico Estatuto do Estrangeiro. Com isso, a presente pesquisa se destina a extrair as perspectivas pragmáticas de proteção em aspec- tos mínimos de desenvolvimento humano para os imigrantes bolivianos com a iminente expansão do bloco econômico. 1. A REGULAMENTAÇÃO DO DIREITO COMUNITÁRIO E BRASILEIRO NO COMBATE À ESCRAVIDÃO CONTEMPORÂNEA NO ÂMBITO DA INDÚSTRIA TÊXTIL. Desde a formação do Mercosul, a ideia de livre circulação de pessoas encontrava acepções vagas e di- vergentes entre os integrantes do bloco. A livre circulação em um Mercado Comum, de acordo com o modelo europeu, deverá implicar na formação de um mercado de trabalho único, o qual, por força da incorporação normativa do princípio da dignidade da pessoa humana, deverá se pautar pela igualdade de direitos entre os trabalhadores do bloco, o que se reflete numa vedação de discriminação do trabalhador em função de sua nacionalidade. No intuito de amenizar o impacto social da circulação de pessoas entre países com diferentes padrões socioeconômicos e jurídicos, em dezembro de 1991, o Encontro dos Ministros do Trabalho do Mercosul su- geriu a criação do Subgrupo nº 11 como órgão consultivo na estrutura do Mercosul, aprovada na reunião do Conselho do Mercado Comum em 17/11/1991. O principal objetivo do Subgrupo é que todos os trabalhadores, independentemente da origem, pos- sam se beneficiar da proteção dada pela legislação trabalhista do país onde esteja trabalhando, bem como da integração dos sistemas previdenciários. Diante da dificuldade de uniformização da legislação, de forma a aplicar o mesmo texto legal para todos os integrantes, em um bloco econômico que não reconhece instancias supranacionais, a meta do órgão é a harmonização das normas de cunho sócio laboral. No trabalho de harmonização legislativa das condições de trabalho no Mercosul destacam-se as ati- vidades da Comissão Temática nº 1 do antigo Subgrupo nº 11, que tem por objeto a análise comparativa dos
  • 101. 101 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. sistemas de relações de trabalho entre os países integrantes. Para a verificação das simetrias e assimetrias a comissão vem se socorrendo de um método comparativo genérico, da legislação como um todo. José Alves de Paula, coordenador do estudo em 1992 apontava a vantagem do método, uma vez que, para a quantificação dos custos trabalhistas e encargos sociais, é possível a manutenção de vantagens maiores oferecidas por alguns países, uma vez compensadas por outras menores. Assim, o trabalho de harmonização prescinde da convergência de cada instituto individualmente (NASCIMENTO, 2004). Para que a livre circulação de trabalhadores possa se tornar uma realidade no Mercosul, não é sufi- ciente a liberdade de acesso ao emprego. A circulação do trabalhador depende, sobretudo, das condições de permanência no país onde se trabalha. Atualmente, a discussão da eficácia jurídica dos direitos trabalhistas no espectro internacional passa pela conveniência de sua vinculação ao comércio internacional. A influência do comércio nos custos laborais se revela na medida em que países que abrem mão do maior número de direitos trabalhistas conseguem des- locar para si determinados setores produtivos, caracterizando o chamado “dumping social”. No intuito de estabelecer patamares mínimos de direitos trabalhistas, foi aprovada, em 10 de dezem- bro de 1998, a Declaração Sócio Laboral do Mercosul, trazendo parâmetros a serem adotados como diretrizes na atividade legislativa e na elaboração de políticas públicas de cada país integrante. Para garantir a efetivi- dade do direito de livre circulação do trabalhador no âmbito comunitário merece também destaque o Acordo Previdenciário Multilateral, aprovado por meio do Decreto n° 19/97 do Conselho Mercado Comum. Maria Cristina Irigoyen Peduzzi, Ministra do TST, defende que a Declaração Sócio Laboral do Mer- cosul não se confunde com uma decisão do Conselho Mercado Comum, regida pelo direito comunitário (PE- DUZZI, 2005). Tratando-se de um instrumento internacional assinado pelos presidentes dos países membros deve ser regida pelas normas gerais de Direito Internacional Público, respeitada a característica de tratar-se de norma de consagração de direitos humanos sociais. A noção de bloco de constitucionalidade está presente no Brasil nas discussões sobre controle de constitucionalidade e foi tratada com grande clareza pelo Min. Celso de Mello, no julgamento da ADI 595-ES, na qual discorre sobre a existência de uma tendência ampliativa de, no conceito de Constituição, da seguinte forma: Considerados não apenas os conceitos de índole positiva, expressamente pro- clamados em documento formal (que consubstancia o texto escrito da Cons- tituição), mas, sobretudo, que sejam havidos, igualmente, por relevantes, em face de sua transcendência mesma, os valores de caráter suprapositivo, os princípios cujas raízes mergulham no direito natural e o próprio espírito que informa e dá sentido à Lei Fundamental do Estado (TAVARES, 2005, p, 99). A aplicabilidade da teoria do bloco de constitucionalidade se fortaleceu com o advento da Emenda Constitucional nº 45 de 08 de dezembro 2004, a qual confere aos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos o tratamento de norma formalmente constitucional, quando incorporados ao ordenamento interno segundo o processo legislativo das emendas constitucionais. A discussão sobre a hierarquia normativa da Declaração Sócio Laboral do Mercosul é relevante na medida em que a legislação nacional que trata do trabalhador migrante apresenta inúmeros óbices à meta da livre circulação. No Brasil, a questão do trabalhador estrangeiro, em linhas gerais, pela Lei nº 6.815 de 19 de agosto de 1980, o Estatuto do Estrangeiro, regulamentada pelo Decreto 86.715 de 10 de dezembro de 1981. Cumpre destacar que a Consolidação das Leis do Trabalho, em seu art. 352 e seguintes, segundo um princípio de nacionalização do trabalho vigente na época de sua promulgação, instituiu uma proporção de dois terços de empregados brasileiros nas empresas nacionais.
  • 102. 102 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Além disso, o Constituinte de 1998, em prol da segurança e do interesse nacionais estabeleceu a ve- dação de alguns cargos e atividades para estrangeiros. No art. 12, § 3º estão enumerados determinados cargos privativos de brasileiros natos, quais sejam o de Presidente da República, e, por conseguinte, a ocupar a linha sucessória de substituições, o de Vice Presidente da República, de Presidente da Câmara dos Deputados, de Presidente do Senado Federal e de Ministro do STF; assim como os cargos de Carreira Diplomática, de Oficial das Forças Armadas e de Ministro de Estado da Defesa. A Constituição Federal restringe ainda aos estrangeiros a propriedade de empresa jornalística e de rádio difusão sonora e de sons e imagens. De acordo com a redação dada ao art. 222 pela Emenda Constitu- cional nº 36 de 28 de maio de 2002, a propriedade está restrita a brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos e a pessoas jurídicas constituídas sobre as leis brasileiras e que tenham sede no país. Neste último caso, não podendo a participação do capital estrangeiro exceder trinta por cento do capital total e volante das empresas, conforme regulamentação do §1º do art. 222 dada pela Lei 10.610 de 20/12/02. Apontadas as limitações constitucionais ao exercício de determinadas atividades laborais pelo estran- geiro, observa-se que a questão do trabalhador migrante não mereceu tratamento específico pelo legislador infraconstitucional. O Estatuto do Estrangeiro mostra-se anacrônico no trato da questão, pois não se compa- tibiliza com a realidade das disposições comunitárias. As hipóteses de concessão de vistos correspondem a uma classificação de ingressos que ignora o di- reito à livre circulação do trabalhador no âmbito comunitário: trânsito, turismo, temporário e permanente. O visto temporário, tratado pelo art.13 do Estatuto do Estrangeiro, abrange apenas determinadas ca- tegorias profissionais especializadas, destinando-se ao estrangeiro em viagem cultural ou missão de estudos; em viagem de negócios; na condição de artista ou desportista; na condição de estudante; na condição de cientista, professor, técnico ou profissional de outra categoria, sob regime de contrato ou a serviço do Governo brasileiro; na condição de correspondente de jornal, revista, rádio, televisão ou agencia noticiosa estrangeira; e na condição de ministro de confissão religiosa ou membro de instituto de vida consagrada e de congregação ou ordem religiosa. Por outro lado, o visto permanente restringe ainda mais a possibilidade de residência, posto que só será conferido a quem seja tido como mão-de-obra especializada, capaz de contribuir com a política nacional de desenvolvimento do país, incrementando a produtividade e assimilação de tecnologia, dentre outros requi- sitos a serem estipulados por meio de resoluções pelo Conselho Nacional de Imigração. Em todos os casos, o estrangeiro trabalhador está proibido de exercer diversas atividades elencadas no art. 106 do Estatuto. O que se observa no Brasil é que seja para o visto permanente ou temporário, a entrada do trabalha- dor migrante está sempre condicionada à solicitação da empresa interessada em contratar, conforme dispos- to na Resolução Administrativa nº 07 de 06 de outubro de 2004 do Conselho Nacional de Imigração. A mais recente Resolução Normativa do Conselho é a de nº 64 de 13 de setembro de 2005 e trata dos requisitos para quem pretenda vir ao Brasil sob visto temporário. A resolução especifica exigências de comprovação da qualificação e/ou experiência profissional compatível com a atividade que irá ser exercida a pedido da empresa requerente. Por meio de diplomas, certificados ou declarações, o estrangeiro deverá comprovar experiência de três anos, para atividades artísticas e culturais que independam de formação escolar; dois anos de experiên- cia e escolaridade mínima de nove anos para o exercício de profissão de nível médio; experiência de um ano a partir da conclusão da graduação para profissões de nível superior; ou a conclusão de curso de mestrado na área que irá desempenhar. Torna-se evidente que só mão-de-obra bastante qualificada será capaz de preencher tais requisitos. A livre circulação é ficcional para o trabalhador de baixa qualificação. No próprio âmbito comunitário, os meca- nismos de circulação do trabalhador se concentram na área de serviços. No ano de 2000 o Conselho Mercado Comum aprovou o Decreto nº 48, que permite dispensa de visto a determinadas categorias profissionais, como artistas, professores, cientistas, profissionais e técnicos especializados, cujo propósito seja desenvolver
  • 103. 103 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. suas atividades por até noventa dias corridos, prorrogáveis por igual período, no limite de cento e oitenta dias anuais. Quanto ao reconhecimento de títulos, o Brasil, por meio do Decreto Legislativo nº 800 de 2003, incorporou a sua ordem jurídica o “Acordo de admissão de títulos e graus universitários para o exercício de atividades acadêmicas no Estados Partes do Mercosul” por meio do qual se estabelece uma carga horária mí- nima para reconhecimento de títulos de graduação e pós-graduação, bem como um Sistema de Informação e Comunicação do Mercosul, que proporcionará informação sobre as agências credenciadoras dos Países, os critérios de avaliação e os cursos credenciados. Por fim, a mais recente conquista em prol da livre circulação, com reflexos no trabalhador, que en- controu acolhida na ordem jurídica interna foi o “Acordo sobre Regularização Migratória Interna de Cidadãos do Mercosul”, por meio do Decreto Legislativo nº 928 de 2005, por meio do qual se busca a facilitação dos trâmites migratórios para os cidadãos dos Estados Partes do MERCOSUL, no sentido de permitir sua regula- rização migratória sem a necessidade de regressar a seu país de origem. O Estado brasileiro reconhece o problema do trabalho análogo ao de escravo e a exploração de bolivia- nos em oficinas de costura e tem buscado implementar iniciativas de inclusão desses imigrantes à sociedade brasileira. Exemplo disso foi a sanção do projeto de lei 1.664/2007, responsável pela anistia e legalização de milhares de migrantes no país. Nessa linha ainda se segue o projeto de lei n.º 288/2013 do senador Aloysio Nunes Ferreira, já reme- tida à Câmara dos Deputados, buscando, dentre outros, a efetiva substituição do Estatuto do Estrangeiro, como é possível extrair da explicação da ementa da iminente lei: Explicação da Ementa: Dispõe sobre os direitos e deveres do migrante e re- gula a entrada e estada de estrangeiros no Brasil, revogando, em parte, o Es- tatuto do Estrangeiro (Lei nº 6.815/80). Regula os tipos de visto necessários para ingresso de estrangeiros no país. Estabelece os casos e os procedimentos de repatriação, deportação e expulsão. Dispõe sobre a naturalização, suas condições e espécies e os casos de perda de nacionalidade. Trata da situação do emigrante brasileiro no exterior. Tipifica o crime de tráfico internacional de pessoas para fins de migração e infrações administrativas relativas a en- trada irregular no país. Altera a Lei nº 8.213/91 (Previdência Social), para facilitar a contribuição à Previdência do trabalhador brasileiro referente ao período em que tenha trabalhado em país estrangeiro (BRASIL, 2013). 2. COSTURANDO SONHOS: POSSÍVEIS REFLEXOS DA ADESÃO DA BOLÍVIA AO MERCOSUL. Segundo Rossi (2005), a maior parte dos funcionários utilizados na indústria têxtil brasileira é com- posta pelos imigrantes latino-americanos em situação ilegal no Brasil. São ele paraguaios, chilenos, bolivia- nos, peruanos que saem dos seus países de origem buscando a sobrevivência do sonho de uma vida melhor. Atualmente é possível constatar que entre os hispano-americanos, os imigrantes bolivianos no Brasil são a maioria, localizados, em especial, no estado de São Paulo. De acordo com os dados trazidos por Silva (2008), no Censo de 2000 houve o registro de 20.388 imi- grantes bolivianos que residiam no Brasil e no Censo de 2010, já se tinha 38.826 o que constitui um aumento de 90,43% somente naquele período. Do ponto de vista espacial, os bolivianos (as) estão concentrados em bairros da Zona Central da cidade, como Bom Retiro, Brás, Pari, Barra Funda, Cam- buci, Mooca, entre outros. Entretanto, há também uma significativa presen- ça deles em bairros da Zona Leste, como Belém, Tatuapé, Penha, Itaquera,
  • 104. 104 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Cangaíba, Engenheiro Goulart, Ermelino Matarazzo, Guaianases, São Ma- teus, e em bairros da Zona Norte, como Vila Maria, Vila Guilherme, Casa Verde, Cachoeirinha, entre outros. Entretanto, nos últimos anos, a presença de bolivianos extrapolou os limites do município de São Paulo, podendo ser encontrada em cidades como Guarulhos, Osasco, Santo André, Diadema, e em outras cidades do interior paulista, como Jundiaí, Campinas, Americana, entre outras (SILVA, 2006, p. 160). Nesse ponto, toma-se cuidado para que com o exposto não se chegue a uma falsa premissa. Pois é co- mum e falacioso deduzir que o processo migratório ocorre de forma espontânea, ao livre arbítrio das pessoas que vão em busca de melhores condições. Ocorre que esse processo é, na verdade, induzido. Observe que a Bolívia é um dos países mais pobres da América Latina. Em sua própria pátria os bolivianos são expostos e submetidos a atividades laborais precárias, sem perspectiva de crescimento e sem condições dignas vida, são coagidos pelo próprio meio no qual estão inseridos a migrar, para que sejam componentes efetivos do sistema capitalista (MARINUCCI, 2005). Nota-se que a mão-de-obra boliviana é estratégica para alimentar esse sistema. Os donos das oficinas de costura se utilizam dos sonhos que envolvem a ascensão social e se projetam para os imigrantes como se fossem os responsáveis pelo resgate de uma vida sem perspectivas. Dessa forma, diferentemente dos escravos ligados à produção rural da fronteira agrícola da Amazônia, que sofrem intensiva e constante coação física, a submissão à condição degradante e de superexploração dos bolivianos na indústria têxtil se dá por meios indiretos de coação moral e psicológica. “Em nome da fidelidade e da possibilidade de trabalhar, o imigrante clandestino exerce um contrato de trabalho verbal no qual ele é remunerado por peça, totalizando um salário-hora muito abaixo da mão de obra local e exercendo uma jor- nada extensa de trabalho, que pode atingir 16 ou 18 horas por dia” (CACCIAMALI, AZEVEDO, 2005, p.137). Não obstante, ainda é propagado um sentimento de insegurança já existente. Ou seja, os bolivianos que estão de forma irregular no Brasil passam a ser constantemente amedrontados no sentido de que a qual- quer momento podem ser abordados pela polícia federal e consequentemente deportados. Com isso, sabe-se o porquê de a mão-de-obra local ser preterida frente à boliviana. O empregado do meio urbano brasileiro, que é envolvido por um ambiente mais protecionista conquanto à legislação trabalhista, visualiza de forma mais racional a exploração submetida. Sabe-se que se porventura for submetido ao trabalho degradante, em nenhum momento os direitos trabalhistas serão negados (SILVA, 1995). Teoricamente, tanto a Bolívia quanto o Brasil trazem um arcabouço normativo de repressão ao tra- balho escravo contemporâneo. Na dicção dos artigos 8° e 5° da Constituição boliviana de 1967, tem-se de forma expressa a proibição do trabalho forçado. No Brasil, a valorização do trabalho e a dignidade da pessoa humana constituem o próprio fundamento da República Federativa, sem olvidar dos diversos dispositivos do código penal brasileiro e dos compromissos internacionais firmados, como: a Convenção das Nações Unidas sobre Escravatura (1926), promulgada pelo Decreto nº 58.563/1966; a convenção nº 29 da Organização In- ternacional do Trabalho sobre o Trabalho Forçado, promulgada pelo Decreto nº 41.721/1957 e a Convenção nº 105 da Organização Internacional do Trabalho sobre a Abolição do Trabalho Forçado, promulgada pelo Decreto nº 58.822/1966 (MATTIOLI, 2015). Com isso, nota-se que o abismo entre a teoria e a prática consiste justamente na ineficácia dos dispo- sitivos jurídicos existentes e/ou na prevalência do Estatuto do Estrangeiro (lei 6.815/1981) que trata os imi- grantes como inimigos da segurança nacional, favorecendo a clandestinidade e os altos custos burocráticos de mudança territorial e é justamente nesse aspecto que se visualiza os possíveis reflexos da adesão da Bolívia como membro pleno do Mercosul. Segundo o jornal El País (2015), todos os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e Venezuela) já assinaram na cúpula de Brasília um novo protocolo de adesão à união aduaneira. Na verdade, esse acordo já havia sido firmado em 2012, mas o aval do Paraguai não foi possível devido à sua suspensão do bloco decorrente da destituição do presidente Fernando Lugo, sendo o fato avaliado pelo Mercosul como uma
  • 105. 105 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. afronta aos princípios democráticos que norteiam o bloco. Hoje para o ingresso do sexto membro ao bloco, necessita-se apenas da ratificação dos Congressos do Paraguai e do Brasil. Sabe-se que o Mercosul é constituído através de acordos sejam eles regionais ou bilaterais sobre a eliminação de direitos aduaneiros e restrições alfandegárias à circulação de mercadorias; a livre circulação de bens, serviços, fatores produtivos. Dentre outros fatores, o Mercosul é dependente de mercado comum de trabalho e por isso, busca viabilizar a liberdade de acesso dos trabalhadores entre os Estados-Membros, com um tratamento paritário e previdenciário. O direito de livre circulação de trabalhadores encontra fundamento no prin- cípio da não discriminação, que comporta a igualdade de tratamento entre todos os trabalhadores que desempenham sua atividade no âmbito de um Mercado Comum, superando-se todo discriminação quanto aos trabalhado- res estrangeiros face aos trabalhadores nacionais. A discriminação cria difi- culdade para a livre circulação e pode criar «reservas de mercado» para os trabalhadores nacionais (no Brasil, recordem-se que vigora, atualmente, a Lei 6.815/80 Estatuto do Estrangeiro, que define a situação jurídica do es- trangeiro do Brasil e cria o Conselho Nacional de Imigração; o Decreto lei 691/69, que dispõe sobre técnicos estrangeiros; a Lei 7.064/82, que trata do deslocamento de trabalhadores contratados por empresas de engenharia que prestam serviços em outros países) (MATTIOLI, 2015, p. 4). Nesse passo, observa-se que o processo de integração do Mercosul não incrementa apenas as relações comerciais entre os Estados em uma economia mais globalizada, os reflexos são mais amplos do que esses. A adesão de novos membros ao bloco anuncia também um nível mais elevado do ponto de vista humanitário dentro do mercado comum, no qual compreende a livre circulação de pessoas. A livre circulação de pessoas implica na abolição das discriminações existentes calcadas na nacio- nalidade, estatuindo igualdade de direitos com os países-membros do MERCOSUL, de forma a favorecer o combate ao trabalho degradante em prol do desenvolvimento humano pleno (AZEVEDO, 2005). Se não é assim, observa-se o feito pela Reunião dos Ministros do Trabalho do MERCOSUL no dia 26 de junho de 2015, assinando uma nova versão da Declaração sócio-laboral do MERCOSUL, no qual reforçou o compromisso com os direitos sociais e trabalhistas, como se observa nos trechos abaixo: Trabalhadores migrantes e fronteiriços Art. 4º Todos os trabalhadores migrantes, independentemente de sua nacio- nalidade, têm direito à ajuda, informação, proteção e igualdade de direitos e condições de trabalho reconhecidos aos nacionais do país em que estive- rem exercendo suas atividades. Os Estados Partes comprometem-se a adotar medidas tendentes ao estabelecimento de normas e procedimentos comuns relativos à circulação dos trabalhadores nas zonas de fronteira e a levar a cabo as ações necessárias para melhorar as oportunidades de emprego e as condições de trabalho e de vida destes trabalhadores. Eliminação do trabalho forçado Art. 5º Toda pessoa tem direito ao trabalho livre e a exercer qualquer ofício ou profissão, de acordo com as disposições nacionais vigentes. Os Estados Partes comprometem-se a eliminar toda forma de trabalho ou serviço exigido a um indivíduo sob a ameaça de uma pena qualquer e para o qual dito indivíduo não se ofereça voluntariamente. Ademais, comprometem-se a adotar medidas para garantir a abolição de toda utilização de mão-de-obra que propicie, autorize ou tolere o trabalho forçado ou obrigatório. De modo especial, suprime-se toda forma de trabalho forçado ou obrigatório que possa utilizar-se: a) como meio de coerção ou de educação política ou como castigo por não ter ou expressar determinadas opiniões políticas, ou por manifestar oposição
  • 106. 106 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. ideológica à ordem política, social ou econômica estabelecida; b) como méto- do de mobilização e utilização da mão-de-obra com fins de fomento econômi- co; c) como medida de disciplina no trabalho; d) como castigo por haver par- ticipado em greves; e) como medida de discriminação racial, social, nacional ou religiosa (MERCOSUL, 2015, p. 2) CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa trabalhou em um primeiro momento questões acerca do fluxo migratório de trabalha- dores e buscou identificar as origens do trabalho análogo ao escravo no Brasil. O segundo capítulo explorou o arcabouço legislativo local e comunitário, identificando que o aparato normativo brasileiro é ineficiente no combate à exploração de mão-de-obra imigrante. Tendo em vista que o Estatuto do Estrangeiro, Lei 6.815, em vigor desde 1980, e posteriormente alterado pela Lei 6.964/81, é apresentado como um mecanismo de restrição e repressão. Mostrando-se desatualizado e desalinhado com o atual contexto sócio-político-econô- mico nacional e mundial. O referido estatuto trabalha os imigrantes como criminosos, clandestinos, em perene ilegalidade fa- cilitando a fragilidade trabalhista concernente ao quadro de empregabilidade dos bolivianos. O projeto de lei n.º 288 de 2013 que visa à substituição do Estatuto do Estrangeiro, constituirá no cenário latino-americano um grande avanço no combate ao trabalho escravo contemporâneo. Contudo a presente pesquisa se deteve à relação Brasil-Bolívia, uma vez que o projeto de lei abarcará todos aqueles considerados imigrantes, sejam eles bolivianos, peruanos, chilenos. Trabalhar a Bolívia também não foi uma escolha aleatória. Em regiões específicas do estado de São Paulo, como Bom Retiro, Brás, Pari Cambuci, a predominância dos imigrantes bolivianos é sensível aos olhos e os dados comparativos entre os censos de 2000 e 2010 somente ratificaram a hegemonia desse contingente. A importância deste trabalho se pauta justamente na atualidade do tema desenvolvido. O processo de adesão da Bolívia como membro pleno do Mercosul está neste último semestre de 2015 em seus trâmites finais, aguardando tão-somente o aval do Congresso brasileiro e paraguaio. A expansão do bloco com a integração da Bolívia trará as pretendidas benesses de cunho econômico, mas principalmente, de forma reflexa, no desenvolvimento humano, ao passo que questões laborais Brasil- -Bolívia serão abarcadas pelas diretrizes da livre circulação de pessoas prevalente no MERCOSUL, ratificada no segundo semestre de 2015 com a assinatura da nova versão da Declaração sócio-laboral do bloco. REFERÊNCIAS AZEVEDO, Flávio Antonio Gomes de. A presença de trabalho forçado urbano na cidade de São Pau- lo: Brasil/Bolívia. São Paulo, 2005. 2012. Tese de Doutorado. Dissertação (Mestrado)-USP. BRASIL, Senado Federal. Projeto de lei n.° 288 de 2013. Ementa: Institui a Lei de Migração e regula entrada e estada de estrangeiros no Brasil. Disponível em http://www25. senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/113700 . Acesso em dez de 2015. BRITO Fausto. Os Povos em Movimento: As migrações internacionais no desenvolvimento do ca- pitalismo. PATARRA, Neide (org). Emigração e Imigração Internacionais no Brasil Contemporâneo. Vol1: 1995. CACCIAMALI, M. C. e AZEVEDO, F. A. G. de. Entre o tráfico humano e a opção da mobilidade social: a situação dos imigrantes bolivianos na cidade de São Paulo. In: Seminário Internacional Trabalho Escravo por Dívida e Direitos Humanos, GPTEC – Centro de Filosofia e Ciências Humanas/UFRJ. Rio de Janeiro: 2005.
  • 107. 107 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. DUPAS, Gilberto. A questão do Emprego e da Exclusão Social na Lógica da Economia Global. In Direitos Humanos no Século XXI. Paulo Sérgio Pinheiro e Samuel Pinheiro Guimarães (org.). Brasília: IPRI, 1999. EL, País. Países do Mercosul aprovam entrada da Bolívia. Buenos Aieres, 2015. Disponível em: http://brasil.elpais.com/ brasil/2015/07/17/internacional/1437169098_127047.html . Acesso em dez de 2015. ILLES, Paulo; TIMÓTEO, Gabrielle Louise Soares; FIORUCCI, Elaine da Silva. Tráfico de Pessoas para fins de exploração do trabalho na cidade de São Paulo. Cadernos Pagu, n. 31, p. 219-251, 2008. MARINUCCI, R.; MILESI, R. (Rosita Milesi). Migrações Internacionais Contemporâneas. Brasília: IMDH, 2005. Disponível em http://www.ufjf.br/pur/files/2011/04/MIGRA%C3%87%C3%83O-NO-MUN- DO.pdf. Acesso em nov. de 2015 MATTIOLI, Maria Cristina. Circulação de trabalhadores no Mercosul. Disponível em http://hotto- pos.com/harvard1/mattioli.htm . Acesso em nov. de 2015. MERCOSUL, Declaração Sociolaboral do Mercosul. Preambularmente: Adotam os seguintes princípios e direitos na área do trabalho, que passam a constituir a “Declaração sociolaboral do Mercosul”, sem prejuízo de outros que a prática nacional ou internacional dos Estados partes tenha instaurado ou venha instaurar. Brasília, 2015. Disponível em Acesso em dez de 2015. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: Saraiva, 2004. PEDUZZI, Maria Cristina Irigoyen. Aplicabilidade da Declaração Sócio-Laboral do Mercosul nos Estados-Partes.Disponível em www.stf.gov.br/imprensa/peduzzi.pdf Acesso em 05 dez. 2005. ROSSI, Camila Lins. Nas costuras do trabalho escravo. Trabalho de conclusão de curso. Universidade de São Paulo, 2005. SILVA, P. O. da. Aspectos gerais da migração fronteiriça entre Brasil e Bolívia. In: ENCONTRO NA- CIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 16., 2008, Caxambu. SILVA, Sidney Antônio. Bolivianos em São Paulo: entre o sonho e a realidade. Estudos Avançados, 2006. SILVA, S. Costurando sonhos: etnografia de um grupo de imigrantes bolivianos que trabalham no ramo da costura em São Paulo. Tese de mestrado, PROLAM/USP,1995. TAVARES, André Ramos; LENZA, Pedro; ALARCÓN Pietro de Jesus Lora (Coord.), Reforma do Judiciá- rio, São Paulo: Método, 2005.
  • 108. 108 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate.
  • 109. 109 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate.
  • 110. 110 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. O PODER-DEVER DO ESTADO NA PROTEÇÃO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO ÂMBITO FAMILIAR À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Bruna de Oliveira Maciel Graduada e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco, com concentração na área da Teoria Geral do Direito, Direito Internacional Público e Direitos Humanos. Advogada pública concursada da Caixa Econômica Federal.brunaolimaciel@ gmail.com Jaqueline Maria de Vasconcelos Graduanda em Direito pela Faculdade Boa Viagem, monitora em Direito Constitucional, pesquisadora do PICT/FBV DeVry-Brasil, colaboradora do Núcleo Multidisciplinar de Pesquisa em Direito e Sociedade (NPD/CNPq/UFRPE) e estagiária concursada da Caixa Econômica Federal. jmv.direito@outlook.com SUMÁRIO: 1. Contextualização: A evolução do conceito de família e sua proteção legal; 2. A caracte- rização da alienação parental e seu tratamento na ordem jurídica brasileira; 3. Princípios Constitucio- nais que fundamentam a igualdade parental; 4. As falsas memorias e suas repercussões na dignidade da pessoa humana. Considerações Finais; Referências. 1. CONTEXTUALIZAÇÃO: A EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE FAMÍLIA E SUA PROTEÇÃO LEGAL O presente estudo parte de concepções preliminares imprescindíveis ao objetivo do trabalho, compor- tando o devido entendimento do papel do Estado imerso em uma lógica neoconstitucional diante do princípio da proteção integral da criança e do adolescente. O marco histórico do constitucionalismo – Magna Carta de 1215 – completou os seus oitocentos anos de luta com o intuito político-jurídico de limitação do poder estatal. Os ideais existentes para conter o poderio do Leviatã foram perpassados, servindo como reflexo para outras vitórias como a Constituição Norte-Ame- ricana de 1787, a Constituição Francesa de 1791, que traziam em seu âmago os direitos negativos (ou de primeira dimensão), além da configuração de um Estado Liberal. O pleito pela aquisição de mais e de novos direitos prosseguiu, fazendo emergir a segunda, terceira e até mesmo a quarta dimensão de direito, pondo termo àquele modelo liberal. Mas foi o Pós-Segunda Guerra Mundial que quebrou os paradigmas fazendo com que a sociedade buscasse muito mais do que um Estado Social ou Estado Democrático de Direito, imerso em uma constituição simbólica, tendo em vista a pouca aplicabilidade de suas normas. O marco pós-moderno impulsionou uma onda neoconstitucional que pugna pela ampliação da juris- dição constitucional, pela hermenêutica do ordenamento jurídico equivalente aos seus princípios e, sobretu- do, pela eficácia de suas diretrizes. Com isso, tem-se o poder-dever do Estado na proteção integral da criança e do adolescente cristalizado na Constituição Federal de 1988. Ocorre que, pragmaticamente um trabalho que deveria ser executado de forma holística, é negligenciado pelo Estado no tocante ao resguardo dos menores no âmbito familiar, dando margem à Síndrome da Alienação Parental.
  • 111. 111 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Trabalhar com o tema Alienação parental requer mais do a interdisciplinaridade de matérias, carece de um retrospecto às raízes do problema. Dessa forma, verifica-se que o próprio modelo patriarcal de família, segundo destaca Côrrea (2009), é herança da concepção romano-cristã e tendo a sua essência constituída pelo matrimônio, de modo que só eram tidos como filhos os que nascessem na constância de um casamento legítimo. Vale lembrar que a adoção do Cristianismo como religião oficial do Estado Romano fez com que somente pessoas que profetizassem o catolicismo pudessem se casar e ter a família protegida pela lei (NO- RONHA PARRON, 2012, p. 04). Com a adoção das Ordenações Filipinas no Brasil, às mulheres somente era concedido o papel exclu- sivo de mãe e aos homens o protagonismo matrimonial, o pátrio poder (SCANDELARI, 2013). Nessa linha, o Código Civil de 1916 consagra na sociedade a mentalidade patriarcal da época romano-cristã embutindo a ideia da superioridade do homem sobre a mulher e os filhos, fixando em seus artigos a relativa incapacida- de da esposa e comparando-a com os pródigos, índios e menores entre 18 e 21 anos (VERSIANI; ABREU; SOUZA; TEIXEIRA, 2008). Por longo período, a educação fornecida à mulher tinha como objetivo a formação de boas mães para criarem grandes homens. Mas, com a Revolução Industrial esses preconceitos ainda amarrados passam a ser desatados, com a gradativa participação feminina no trabalho das fábricas, processo que teve seu auge na Primeira Guerra Mundial. Somente então se fortaleceu a luta por educação, mercado de trabalho e direitos de participação política, através do movimento feminista. No Brasil, o Estatuto da Mulher Casada, Lei 4.121 de 27/08/1962, caracterizou uma das maiores conquistas desse movimento. Dentre tantas modificações trazidas, a mais notória foi a revogação do princípio da capacidade relativa, concedendo o pátrio poder a mulher nos casos em que o seu marido fosse, por algum motivo, impedido. Em 1977, A Lei do Divórcio (lei n. 6515/77) trouxe maior facilidade ao rompimento matrimonial e refletiu um maior nível de aceitação social desta realidade. Concomitante a isso, a luta feminista já havia surtido alguns efeitos e o progressivo crescimento do aumento da independência financeira das mulheres, certamente reduziu sua tolerância à ideia de submissão marital, o que fez com que o número de divórcios aumentasse substancialmente. No entanto, somente com promulgação da Constituição Federal de 1988 a concepção de família para o Direito de fato passa a ter uma nova roupagem. Não apenas porque a Constituição reconheceu o divór- cio como instrumento para a dissolução do casamento civil (§6º do art. 226 da CF), mas porque, com ela, adentrou no sistema jurídico brasileiro o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, considerado por muitos doutrinadores o ponto de partida para a transformação do paradigma do tratamento legal da família. Bolivar da Silva Telles (2011) afirma que a dignidade na proteção da família deve ser compreendida como igual dignidade para todas as entidades familiares e interpreta que seria indigno proporcionar trata- mentos diferenciados aos diversos tipos de constituição familiar. Associado a este princípio, tem-se ainda o Princípio da Igualdade que garante aos homens, às mulheres e aos filhos adotivos e provenientes ou não do casamento, o mesmo tratamento. Por isso mesmo, as famílias constituídas através da união estável, foram equiparadas em direitos e deveres ao casamento (NORONHA PARRON, 2012). Esse arcabouço constitucional reflete que a concepção de organização familiar, tradicionalmente co- nhecida, já não comporta as relações familiares atuais. Hodiernamente a mãe trabalha, estuda, projeta sua carreira e, com a evolução da ciência, opta por ter ou não mais filhos devido aos mecanismos contraceptivos. A figura do pai é recriada, pois passam a ser mais presentes e capazes de cuidar dos filhos, dividindo inclusive as atividades domésticas (PAULO, 2011). A mudança do tratamento legal da família vai além. Com um teor democrático e cooperativo de fa- mília na Constituição de 1988, os filhos, que antes eram tidos como objeto da relação matrimonial, agora se tornam o foco principal da proteção do Estado, caracterizando-se como sujeitos de direito. Dentro dessa lógi- ca, o poder familiar passa a ser entendido como um instituto de obrigações, encargos e deveres de ambos os
  • 112. 112 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. pais (SCANDELARI, 2013). Outra decorrência é que os filhos devem ser detentores de uma atenção especial do Estado e seu aparato judiciário, seja quanto aos deveres compartilhados pelos pais na constância de sua união, seja diante dos potenciais conflitos decorrentes da separação dos pais, situação que se constitui como objeto do presente trabalho. 2. A CARACTERIZAÇÃO DA ALIENAÇÃO PARENTAL E SEU TRATAMENTO NA ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA A problemática que motiva o presente trabalho é que essa concepção de família contemporânea pa- rece que ainda não transpôs as barreiras da sociedade conjugal, sobretudo no que diz respeito às consequên- cias da separação do casal no tocante ao compartilhamento do poder familiar sobre as crianças. Pretende-se tratar especificamente, da resposta da ordem jurídica brasileira às condutas dos pais titulares da guarda da criança após a separação, que ocasionam no menor a Síndrome da Alienação Parental (SAP). A nomenclatura foi cunhada pelo o psiquiatra Richard A. Gardner1 em 1985, que verificou um com- portamento atípico comum às crianças e adolescentes envolvidos no fim da sociedade conjugal, que possui como característica marcante o sentimento repugnante que os filhos passaram a demonstrar pelo genitor que não detinha a sua guarda. Gardner identificou três estágios do fenômeno: No estágio considerado como leve, tem-se a desmoralização do genitor de forma discreta e uma su- posta onda de esquecimento toma conta do genitor alienador. Por exemplo, “esquece” de informar sobre os compromissos escolares e fala à criança que o outro genitor poderia ter ido às festividades, mas não quis ou deu pouca importância e esqueceu. Nesse estágio é também comum criar outras atividades e até mesmo lamentar a solidão que sente durante o período de visitação para que isso cause um sentimento de remoço e faça com que a criança sempre tenha que tomar a difícil escolha entre a mãe ou o pai (LOGANO, 2011). No estágio moderado, o genitor alienado é malvado e o outro é bonzinho. Segundo Jorge Trindade (2010), são utilizadas táticas de exclusão do outro genitor e além da intensificação dos atos do estágio inicial, a criança passa a apresentar um comportamento inadequado e as visitas deixam de acontecer por motivações fúteis. No último estágio, os filhos já compactuam com a paranoia do alienador. Ficam em pânico, gritam e choram com a ideia de ter que visitar o outro genitor (ROSA, 2008). François Podevyn ainda apresenta atitudes comumente verificadas durante o processo alienatório, tais como: “a) Recusar de passar as chamadas telefônicas aos filhos [...]; j) Envolver pessoas próximas (sua mãe, seu novo conjugue, etc.) na lavagem cerebral de seus filhos[...]; q) Culpar o outro genitor pelo mau comportamento dos filhos” (PODEVYN, 2001). A Lei 12.318, que dispõe sobre alienação parental no Brasil, ainda elenca de forma meramente exem- plificativa algumas condutas típicas da alienação parental. Tais como a desqualificação de um dos genitores no exercício da maternidade ou paternidade; mudar de domicílio para um local distante sem uma justifica- tiva plausível ou até mesmo não informar o novo endereço; dificultar o exercício do direito de convivência familiar, assim como omitir informações pessoais relevantes sobre os filhos no tocante aos estudos, saúde dificultando assim, o exercício da autoridade parental.2 De acordo com o art. 2° da referida lei, o ato não é promovido exclusivamente pela mãe ou pelo pai, mas sim por qualquer pessoa que possa interferir na formação psicológica da criança ou do adolescente com o intuito de romper os laços afetivos com um dos genitores. 1  Richard Alan Gardner nasceu em 28 de abril de 1931. Muitas de suas obras são autoridade na área da pedopsi- quiatria, dentre elas “Parental Alienation Syndrome”, citadas como referência pela American Psychiatric Association. Professor na Universidade de Columbia de 1963 a 2003, ele foi o primeiro nos Estados Unidos a elaborar jogos que permitem a expressão da criança durante a avaliação. Impressionado pelos comportamentos estranhos das crianças no contexto do divórcio, ele identificou certos mecanismos e publicou sua primeira obra sobre a SAP em 1985. 2  BRASIL. Lei 12. 318 de Agosto de 2010. Dispõe sobre a Alienação Parental.
  • 113. 113 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Nesse sentido, observemos o trecho de um acórdão que decidiu de forma unanime em negar provi- mento ao apelo dos avós maternos que pretendia obter a guarda da neta, após o falecimento da mãe, e com isso provocava a alienação parental. A guarda de VICTÓRIA foi deferida ao pai [...] Numa mistura de mágoa e rancor, os apelantes assumem a posição de vítimas, procuram responsabilizar o apelado pelas mortes do neto e da filha, sem se dar conta de que, com isso, permitem que esses sentimentos negativos embotem o amor que sentem pela neta, transferindo para ela o peso de ser o único consolo dos avós velhinhos, a única coisa que restou da mãe. [...] Ao invés de se mobilizarem em desfazer da figura do pai – ensejando a síndrome de alienação parental noticiada na petição e laudo de fls. 438/443, o que de melhor a família materna fazer por esta menina é um esforço para superar as diferenças e se empenhar para que ela se sinta amada a afetivamente amparada por todos aqueles a quem ama, inclusive o pai. Esse esforço é fundamental para evitar as graves seqüelas da Síndrome de Alienação Parental, que podem se manifestar como depressão crônica, incapacidade de adaptação em ambiente psico-social normal, trans- tornos de identidade e de imagem, desespero, sentimento incontrolável de culpa, sentimento de isolamento, comportamento hostil, falta de organiza- ção, dupla personalidade a às vezes suicídio.3 Seja ou não intencional, é a criança ou o adolescente quem mais sofre com o fim da sociedade con- jugal, tendo que por vezes optar com qual dos genitores irá ficar e isso pode lhe parecer como uma forma de mensurar, ou melhor, quantificar o amor que sente pela mãe ou pelo pai. Decerto, como diz a Promotora de Justiça Raquel Pacheco: “ o maior sofrimento da criança não advém da separação em si, mas do conflito e do fato de se ver abruptamente privada do convívio com um de seus genitores, apenas porque o casamento deles fracassou”. Com a alienação parental princípios como o melhor interesse da criança e do adolescente, da preva- lência e convivência familiar, da afetividade e da paternidade são infringidos. O art. 3° da lei 12. 318 ratifica a necessidade de o Estado “empreender diligências suficientes para amparo dos direitos e garantias fundamen- tais de sobrevivência e desenvolvimento humano” das crianças e adolescente que sofre de tamanho abuso moral. Com o presente trabalho, pretende-se demonstrar que há no processo da Alienação Parental uma verdadeira afronta a uma norma fundamental do Estado Democrático de Direito. Dentre os princípios cons- titucionais atingidos durante o processo da alienação parental, este trabalho se concentra nos pilares da Igualdade e da Dignidade da Pessoa Humana. O primeiro princípio será direcionado à igualdade parental que, como visto, por um longo lapso temporal, foi lesado pelo poder patriarcal. O segundo princípio será com- preendido sob a ótica da prole e do genitor alienado que são lesados em sua dignidade durante os diversos níveis da síndrome em questão, que pode escalar da privação dos laços de afetividade familiar a repercussões mais severas, como ocorre em casos extremos, onde quem detém a guarda induz na criança falsas memórias, inclusive de abuso sexual. 3. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS QUE FUNDAMENTAM A IGUALDADE PARENTAL A Constituição da República Federativa do Brasil em seu art. 226, §§ 3º e 5º reconhece a igualdade entre homens e mulheres no que tange à sociedade conjugal, constituída tanto pelo casamento quanto pela união estável. Sob a égide desse princípio, tem-se a despatriarcalização das relações familiares, já que a figura paterna não mais exerce a dominação e o poder absoluto de outrora. Observa-se que organização familiar é democrática e colaborativa, desaparecendo o conceito e a essência do pátrio poder, permitindo que inclusive os filhos exponham suas opiniões (TARTUCE, 2006). 3  BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70017390972. Relator. DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS.
  • 114. 114 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. O princípio da igualdade aplicado no âmbito familiar se refere ao tratamento entre homem e mulher quanto à chefia da sociedade conjugal. Nas palavras de Maria Berenice Dias: “A organização e a própria di- reção da família repousam no princípio da igualdade de direitos e deveres dos cônjuges, tanto que compete a ambos a direção da sociedade conjugal em mútua colaboração. São estabelecidos deveres recíprocos e atri- buídos igualitariamente tanto ao marido quanto à mulher” (DIAS, p 63, 2007). A expressão poder familiar é o a que mais se adequa a contemporânea concepção de família, que devido ao advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069/1990) passou a ser guiada pelo princípio da igualdade, conferindo assim um caráter protetivo e um tratamento isonômico para ambos os cônjuges. Para Carlos Roberto Gonçalves e Maria Helena Diniz o poder familiar é tido como múnus de direitos e deveres e que a convivência com um dos pais não concede a titularidade do poder familiar (FONTELES, 2014). O Código Civil de 2002 em seu art. 1.631 concomitante ao art. 1.579 ratifica a permanência do poder familiar em casos de separação judicial, divórcio ou dissolução da união estável sem que haja modificação dos direitos e deveres relacionados aos filhos. Para atender ao princípio da igualdade, no âmbito do direito de família, atualmente, a legislação e a jurisprudência brasileira utilizam-se do instituto da guarda compartilhada para minimizar as consequências geradas na disputa pelos menores, além de haver um diploma legal específico para caracterizar o fenômeno Alienação Parental e suas consequências no âmbito do direito de família (Lei 12.318/2010). Por isso, antes de avançar, necessária se faz a distinção entre guarda alternada e guarda compartilhada. A própria dicção da expressão guarda alternada induz um teor antagônico e de alternância, ou seja, ora se está com o pai, ora se está com a mãe. Segundo Grisard Filho, a guarda alternada não é saudável para a prole, pois haverá uma confusão relacionada a qual orientação seguir e até mesmo qual moradia chamar de sua. Nessa mesma tendência segue à jurisprudência: A guarda alternada, permanecendo o filho uma semana com cada um dos pais não é aconselhável pois ´as repetidas quebras na continuidade das rela- ções e ambiência afetiva, o elevado número de separações e reaproximações provocam no menor instabilidade emocional e psíquica, prejudicando seu normal desenvolvimento, por vezes retrocessos irrecuperáveis, a não reco- mendar o modelo alternado, uma caricata divisão pela metade em que os pais são obrigados por lei a dividir pela metade o tempo passado com os filhos´ (RJ 268/28).´ (TJSC - Agravo de instrumento n. 00.000236-4, da Capital, Rel. Des. Alcides Aguiar, j. 26.06.2000). A guarda compartilha, por sua vez, visa uma participação em nível de igualdade dos genitores nas decisões relacionadas aos filhos. Há uma equidade de contribuições dos pais na formação dos filhos, seja educacional, moral, espiritual. Sendo assim, não há privilégios para nenhum dos pais, mas sim a busca pelo melhor interesse do menor (BONFIM, 2005). Observa-se que, em teoria, a guarda compartilhada é a melhor maneira de prevenir a Alienação Pa- rental (NÚÑEZ, 2013). Esse instituto jurídico regulamentado pela Lei Federal n° 11.698/2008 evita que os filhos venham a se afastar de um de seus pais e permite que tanto a mulher quanto o homem possam ser titulares do princípio da igualdade e desta forma exercer, independente das contendas existentes, o papel de pai e mãe. 4. AS FALSAS MEMÓRIAS E SUAS REPERCUSSÕES NA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. O princípio da Dignidade da Pessoa Humana que está previsto no art. 1°, III da Constituição da Re- pública Federativa do Brasil de 1988, no qual garante ao ser humano a preservação da integridade física e psíquica. Além disso, a Constituição Federal assegura à criança, dentre outros, o direito à dignidade e dentro
  • 115. 115 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. do ambiente familiar é que a criança ou o adolescente pode constrói sua personalidade para a concretização de uma vida digna. Assim, a alienação parenta se torna inaceitável não só por afrontar princípios constitucionais e direi- tos da criança e do adolescente, mas expor pessoas ainda tão vulneráveis e pleno desenvolvimento a graves consequências psicológicas (GUILHERMANO, 2012). Como visto, a alienação parental pode ou não ser intencional e sua finalidade é denegrir o outro ge- nitor como também afastá-lo da convivência com o filho (GARDNER, 2002). Todavia, Jorge Trindade (2010) alerta que, embora a síndrome da alienação parental comece como um distúrbio de cunho afetivo, depen- dendo da intensidade com que é provocada, pode acarretar, inclusive, o surgimento das falsas memórias na criança. A implantação de falsas memórias ocorre através de sugestões fabricadas ou forjadas, de forma total ou parcial, de fatos inverídicos. A criança passa a crer em um fato que nunca aconteceu, como por exemplo o abuso sexual, e reage como se de fato tivesse acontecido (VELLY, 2010). As crianças envolvidas no processo de falsas memórias podem sofrer de patologias afetivas, sexuais ou psicológicas, assim como as que de fato sofreram abuso sexual. As consequências da alienação parental não possuem um rol taxativo, mas os efeitos são direcionados a produzir uma tendência ao isolamento, a de- pressão, incapacidade de comunicação. Por vezes, pessoas que foram vítimas da alienação parental passam a desenvolver um sentimento de culpa, quando adultas, por se considerar cúmplice mesmo que de forma inconsciente da injustiça praticada contra o genitor alienado, podendo acarretar transtornos psíquicos resul- tando no suicídio (MAZZONI, MARTA, 2011). Crime sexual ou síndrome da alienação parental? Posto está o desafio para os Tribunais. Afinal, quan- do o problema chega às mãos do Estado, encontram-se, de uma lado, crianças com um enorme repúdio a um dos genitores ou ente familiar e até mesmo alegando sofrer algum tipo de abuso. Por outro lado, está a defesa do outro genitor arguindo a existência de falsas memórias decorrentes da alienação parental. O fato desencadeia uma das mais delicadas “situações do mundo jurídico, com o dever de tomar imediatamente uma atitude e com o receio da denúncia não ser verdadeira” (LOGANO, 2011). No último estágio da alienação parental, muitas vezes caracterizado pela implantação de falsas me- mórias, o juiz toma medidas de proteção à criança e realiza o afastamento da prole com o genitor injustiçado. Estudiosos observam que, neste momento, no qual a criança ou o adolescente mais necessita do aparato do Estado para resguardar seus interesses, depara-se com profissionais do Direito, psicólogos, peritos sem um preparo técnico e emocional para lidar com a situação e identificar os verdadeiros casos de alienação parental e de abuso sexual (MAZZONI, MARTA 2011). A jurisprudência já coleciona precedentes onde houve para o reconhecimento de falsas memórias decorrentes da síndrome da alienação parental. Nesse sentido segue um excerto jurisprudencial que negou provimento a pedido de guarda da mãe que implantou falsas memórias na filha, “segundo a menor de 07 anos, eu pai, além de bater maltrata-la, teria cometido abuso sexual e ao afirmar isso disse apontado com dedo indicador para o meio de suas pernas ‘ele me machucou aqui’”4 e fez com que o filho relatasse maus tratos. Após diversas perícias o Superior Tribunal de Justiça compreendeu que: Pelo que se verifica, genitora vai continuar empregando todos os mecanis- mos par afastar os filhos do pai, pois conforme se vê na petição de fls. 264, a genitora não permitiu o convívio das crianças com o pai nas datas festivas nem nas férias, com dispõe o acordo em vigência, desrespeitando os limites do poder familiar: ‘A existência de limites configura poder familiar não ape- nas com um poder (assim como era o pátrio poder), mas também com um dever dos pais. [...] Por tudo isso, entendo que alteração da guarda é media que impõe como forma de salvaguarda as crianças da prática manipuladora da mãe (BRASIL, p. 18-20). 4  BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência n° 94.723 –RJ ( 2008/0060262-5. Relator. Ministro Aldir Passarinho Junior.
  • 116. 116 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Caetano Lagrasta, desembargador e presidente da Coordenadoria de Projetos Especiais e Acompa- nhamento Legislativo do Tribunal de Justiça de São Paulo, considera a implantação de falsas memórias como “diabólica” e defende a prisão do alienador que chega a tal estágio, sob alegação de tortura. Em suas palavras: “Nestes casos fica evidente que o alienador tortura e a tortura é crime previsto constitucionalmente, logo, a prisão do alienador-torturador deve ser aplicada” (OLIVEIRA, 2012). Não se pode perder de vista que é um dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, assegurando assim o direito à convivência familiar (art. 19 ECA), à liberdade e dignidade como pessoas em pleno processo de desenvolvimento garantido pela Constituição Federal e pelo ECA (art. 15), assim como o direito a participação na vida familiar, da inviolabilidade da integridade física e psíquica e moral para que seja possível a preservação da imagem, da identidade, dos valores, crenças e ideais. Deve-se iniciar a reinvindicação do Princípio da Igualdade e Dignidade da Pessoa Humana pela base da família. Se a família falha em atender o comando constitucional de cuidados a integridade emocional da criança, o Estado deve intervir para assegurar não só a proteção da criança e do adolescente, mas também da dignidade da pessoa humana (filhos e genitores alienados) tão lesada durante a alienação parental. CONSIDERAÇÕES FINAIS Como visto, a Síndrome da Alienação Parental não é um fenômeno novo, inédito ao Século XXI. A emancipação da mulher e a evolução do mundo moderno modificou não só conceito, mas a própria orga- nização e estrutura familiar. Passou-se por uma verdadeira metamorfose, e a busca pela igualdade entre o casal constituiu o elemento propulsor dessa transição. Como visto, a igualdade concedida foi aparente e ol- vidou-se da igualdade parental, já que a prática judiciária não consegue distinguir situações de manipulação das emoções da criança como forma de atingir o ex-parceiro, mantendo-se de forma irrefletida uma cultura maniqueísta que jamais põe em cheque a figura da boa mãe, herdada da era patriarcal. Apesar de possuirmos uma Lei definindo o conceito e exemplificando características comuns à Alie- nação Parental, estipulando que qualquer indivíduo, mãe, pai, avós, podem ser os responsáveis pela prática alienante, e listando uma série de medidas que podem ser tomadas a título de atenuação dos efeitos da sín- drome, observa-se na jurisprudência que os profissionais militantes da área do Direito de Família (operadores do direito, psicólogos, peritos), por vezes, desconhecem a profundidade e as graves consequências do tema em questão. Essa incompetência técnica pode aumentar a injustiça levando um inocente à prisão Não o bas- tante, a luta histórica pela igualdade parental retrocede e Dignidade da Pessoa Humana é afetada. Daí concluímos que, para dar a concretude devida ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, seriam necessárias políticas públicas direcionadas a divulgar para população a existência e os danos causados aos envolvidos na síndrome da alienação parental. Como também seria imprescindível capacitar os profissio- nais que trabalham na área, pois o estudo prático da alienação parental denuncia a carência de profissionais preparados e comprometidos com o estudo da Síndrome em questão, capazes de se despir de rótulos precon- cebidos sobre a família tradicional. REFERÊNCIAS BONFIM, Paulo Andreatto. Guarda compartilhada x guarda alternada: delineamentos teóricos e práticos. Jus Navigandi, Teresina, ano, v. 10, 2008. BRASIL. Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm . Acesso em agosto de 2014. _________. Lei 12. 318 de Agosto de 2010. Dispõe sobre a Alienação Parental. Disponível em http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12318.htm . Acesso em agosto de 2014.
  • 117. 117 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. __________. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível Nº 70017390972. Relator. DES. LUIZ FELIPE BRASIL SANTOS. Disponível em http://paisporjustica.files.wordpress.com/2008/11/acor- dao-sap-desencadeada-pelos-avos-rs.pdf . Acesso em agosto de 2014. CORRÊA, Marise Soares. A história e o discurso da lei: o discurso antecede à história. Porto Alegre: PUCRS, 2009. Tese (Doutorado em História), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Univer- sidade Católica do Rio Grande do Sul, 2009 DIAS, Maria Berenice. Incesto e a síndrome da alienação parental. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2010. DIAS, M.B. Manual de Direito das Famílias. 4. Ed. rev e ampl. Revista dos Tribunais, São Paulo, 2007. FONTELES, Celina Tamara Alves. A guarda compartilhada: um instrumento para inibir a síndro- me da alienação parental. In Jus Navigandi, 2014. Disponível em http://jus.com.br/artigos/27631/a- -guarda-compartilhada-um-instrumento-para-inibir-a-sindrome-da-alienacao-parental/1 . Acesso em 17 de abril de 2015. GARDNER, Richard. O DSM-IV tem equivalente para o diagnóstico de Síndrome de Alienação Parental (SAP). Alienação Parental. Trad. Rita Rafaeli, 2002. Disponível em: http://www. alienacaopa- rental. com. br/textos-sobre-sap-1/o-dsm-iv-tem-equivalente. Acesso em 11 de setembro de 2015. GUILHERMANO, Juliana Ferla. Alienação Parental: Aspectos Jurídicos e Psíquicos. In Trabalho de Conclusão de Curso defendido na Faculdade de Direito da Pontíficia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, 2012. Disponível em http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/traba- lhos2012_1/juliana_guilhermano.pdf . Acesso em dezembro de 2014. LOGANO, Vanessa Arruda. Formas de Alienação Parental. Ver. Npi/Fmr. Ago 2011. Disponível em http://www. Fmr.edu.br/npi.html. Acesso em agosto de 2014. MAZZONI, Henata M. O.; MARTA, Taís Nader. Alienação Parental. In Revista Eletrônica Direito: Família e Sociedade – Volume 1 – n° 1- 2011. NORONHA, Maressa Maelly Soares PARRON, Stênio Ferreira. A evolução do Conceito de Família. Pitágoras, 2012. NÚÑEZ, Carla Alonso Barreiro. Guarda Compartilhada: Um Caminho para Inibir a Alienação Pa- rental. Instituto Brasileiro de Direito de Família –IBDFAM, 2013. OLIVEIRA, Mariana; PAES Cintia; NENO, Mylène. Crianças são usadas pelos pais no divórcio, dizem os juristas. In G1. São Paulo, 2012. Disponível em http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/08/criancas- sao-usadas-pelos-pais-no-divorcio-dizem-juristas.html . Acesso em setembro de 2015. PAULO, Beatrice Marinho. Alienação parental: Identificação, Tratamento e Prevenção. Revista Bra- sileira de Direito das Famílias e Sucessões, nº 19 (Dezembro/Janeiro de 2011). p. 05/25. Editora Magister, 2011. PINHEIRO, Janâ; POLIPPO. Alienação parental sofrimento para pais e filhos. In. Coordenadoria de Comunicação do TJMT, 2013. SCANDELARI, Thatyane Kowalski Lacerda. Família, o Estado e a Alienação Parental. Revista Eletrô- nica do Curso de Direito das Faculdades Opet, Curitiba, v. 9, ano IV, 2013.
  • 118. 118 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. TARTUCE, Flávio. Novos princípios do Direito de Família brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1069, 5 jun. 2006. TELLES, Bolivar da Silva. O Direito de família no ordenamento jurídico na visão codificada e constitucionalizada. Rio Grande do Sul, 2011. .Disponível em http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/ poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2011_1/bolivar_telles.pdf . Acesso em agosto de 2015. ROSA, F. N.. A síndrome de alienação parental nos casos de separações judiciais no direito civil brasileiro. Monografia. Curso de Direito. PUCRS, Porto Alegre, 2008 TRINDADE Jorge. Manual de Psicologia Jurídica para Operadores do Direito – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. VELLY, Ana Maria Frota. A síndrome de alienação parental: uma visão jurídica e psicológica. In: Comunica- ção apresentada no II Congresso de Direito de Família do Mercosul–IBDFAM. Porto Alegre. 2010. VERSIANI, T. G.; ABREU, M.; SOUZA, I. M.; TEIXEIRA, A.C L.. A Síndrome da Alienação Parental na Reforma do Judiciário. Revista Do Instituto dos Advogados de Minas Gerais, 2008.
  • 119. 119 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. de poder, conclui-se que a sua democratização representa a potencialidade da democratização da cultura política, da formação da opinião pública e dos costumes (MARTÍN-BARBERO, 2001). Na sociedade de massas contemporânea, a opinião pública não se forma, como no passa- do, sob o manto da tradição e pelo círculo fechado de inter-relações pessoais de indivíduos ou grupos. Ela é plasmada, em sua maior parte, sob a influência mental e emocional das transmis- sões efetuadas, de modo coletivo e unilateral, pelos meios de comunicação de massa.   A liberdade de opinião na esfera pública se torna a garantia básica da liberdade de expressão, porque é através da imprensa que a opinião pública se concretiza como uma prática comunicativa regular (MAR- QUES, 1997). Tal concepção vai além da liberdade de expressão como direito individual. Sendo a imprensa a mediadora das relações política e privada, então, esta liberdade relaciona, já na sua origem, uma liberdade individual negativa e uma liberdade social positiva – como uma só dimensão, uma extensiva à outra: a liber- dade de expressão sendo relacionada à livre manifestação de idéias e opiniões, e, a liberdade de imprensa, aquela que media e garante a liberdade de expressão através dos meios de comunicação (MARQUES, 1997). 1. ESFERA PÚBLICA, DEMOCRACIA E DIREITO À COMUNICAÇÃO A mídia é o âmbito em que se dá a produção e circulação de bens simbólicos, constituindo-se como campo de embate crucial para os processos de representações sociais e formação de identidades. Situa-se, a imprensa, no que compreende-se como esfera pública, definida por Habermas como sendo um espaço de articulação entre a esfera privada e o Estado (HABERMAS, 1991), em que os interesses e pretensões da sociedade civil apresentam-se discursivamente e argumentativamente, de forma aberta e racional. (GO- MES,1998). A esfera pública surge com a consolidação da burguesia enquanto classe. Alijada de participação po- lítica no contexto do Estado Absolutista da Idade Moderna, subjugada pelas autoridades política e religiosa, a burguesia, que detinha o poderio econômico, identifica, na esfera pública, um reduto onde se fará possível o debate livre das hierarquias dominantes. Esta nova esfera, embora fosse um local de debate entre homens privados – destituídos de poder estatal – era investida de relevância pública, passando a integrar um inter- câmbio social extenso, induzido e controlado publicamente, tornando-se relevante e autônoma, composta pela sociedade civil emancipada (à época, representada pela burguesia) (GOMES, 1998, p. 160). É dessa forma, ainda de acordo com Gomes, que surge a ideia de esfera pública como um local de mediação entre o Estado e a sociedade civil. Tornando-se instrumento essencial à tomada e à legitimação de decisõespolíticas,diantedessenovofórumpúblico,aimprensavaiestarassociada,desdeentão,principalmente ao espectro da opinião pública política (GOMES, 1998), de modo que a liberdade de opinião na esfera pública passa, desde então, a ser sede da liberdade de expressão. Inobstante, analisando as transformações da esfera pública, sobretudo a partir da segunda metade do século XX – compondo os fenômenos de consolidação do capitalismo contemporâneo - Habermas identificará seu desvirtuamento, com a conversão da imprensa em empresa capitalista e a transformação do “cidadão” em “consumidor de serviços”. Sob o signo da troca de conhecimentos e intercâmbios culturais, e com a perspectiva de domínio e expansão comerciais, houve um intenso investimento para a instrumentalização da comunicação com o objetivo de impulsionar a economia industrializada. Thompson, por exemplo, acredita que a mídia criou uma nova concepção de esfera pública, desterritorializada e não dialógica (1995, p.42). Os grandes grupos de comunicação falam da liberdade de imprensa apenas quando alguma medida estatal tenta intervir em sua produção, seja por censura ou por regulamentação. Mas esquecem-se que a liberdade de expressão requer meios de fala, para garantir a diversidade de interesses e representação dos diversos grupos e setores sociais. Portanto, o direito à comunicação, na sociedade contemporânea, depende da “universalidade da liberdade de expressão individual”. Ou seja, para que o direito fundamental à liberdade de expressão seja garantido a todos e implique no direito à comunicação, precisa ser assegurado um conjunto
  • 120. 120 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. de condições para um ciclo positivo de comunicação, cujo ponto de partida é o acesso aos meios de comuni- cação em massa.(INTERVOZES, 2010, p. 23). 2. OS LIMITES DA CONCEPÇÃO BURGUESA DO DIREITO À LIBERDADE DE EXPRESSÃO Em seu livro “Direito à Comunicação – possibilidades, contradições e limites para a lógica dos movi- mentos sociais”, Renata Rolim (2011, p. 33) elucida que “Naturalizada a ordem capitalista, o uso público da razão transformou-se em operacional de administração dos conflitos dentro dos limites das condições sociais existentes – privilégio de uma intelligentsia capaz de traduzi-la para as massas na esperança de transforma- -las em seres racionais”. Ao final da batalha contra o absolutismo monárquico, que culminou no fim do antigo regime e defini- tiva ascensão da burguesia, assistiu-se ao triunfo da concepção liberal na condução da imprensa mediante a positivação de seus elementos essenciais para o domínio capitalista, a liberdade de publicação e de empresa. Mediante a apropriação empresarial dos meios de produção da informação, a burguesia viabilizou a imposi- ção temática de sua esfera pública – autonomia individual, fundada na liberdade econômica, a que deve se submeter toda organização política – sufocando outras interpretações e projetos, intentando – sem direito ao contraditório - a consolidação da democracia política liberal. Com a ajuda do Estado, a burguesia utilizou-se de mecanismos restritivos para afastar os trabalhadores e a população em geral do acesso às tecnologias de produção da informação. A ingerência estatal nem sempre é mal vista pelos defensores do free trade (RO- LIM, 2011). 3. ESPAÇO MIDIÁTICO: CONCENTRAÇÃO, PRIVATIZAÇÃO E SEGMENTAÇÃO Historicamente, a negação seletiva do poder de voz nos ambientes públicos de debate é utilizada como uma eficiente ferramenta de exclusão e controle sociais. Tal restrição atua na subjetividade dos grupos que se intenta controlar e marginalizar, vez que trabalha na perspectiva sistemática destituí-los de sua capacida- de de argumentação, ação, reflexão e poder de auto representação, reverberando não apenas na impotência ante a tomada desse espaço público, mas refletindo na própria identidade e auto-estima grupais. O início de um ciclo positivo de comunicação imprescinde, portanto, da diversidade de conteúdo, e, consequentemente, da diversidade da propriedade dos meios de comunicação (INTERVOZES, 2010, p. 23). Ao estudar o desenvolvimento do cenário da comunicação brasileira, Renato Ortiz (1991) marca que, aliada ao fenômeno do capitalismo tardio, a consolidação da cultura midiática de massa ganha forma mais definida no contexto da Ditadura Civil-Militar brasileira, entre as décadas de 1970 e 1980. Apesar do fim de tal regime, a lógica da concessão pública de outorgas mantém uma relação muito parecida ainda hoje. Durante o regime ditatorial, a outorga e a concessão públicas dadas a estes veículos dependiam diretamente da relação destes com a linha ideológica ditatorial – além do crivo da própria censura, pelo qual qualquer programação passaria, independentemente. Apesar de a abordagem dos grandes veículos de comunicação não ser mais plenamente vertical, suas diretrizes continuam correspondendo à manutenção dos privilégios de elites políticas e econômicas domi- nantes, à lógica do capital, do status quo, e, como consequência, à ideologia dominante. Em um cenário em que poucos grupos empresariais controlam as comunicações no país, vale dizer que existem outros fatores - para além dos mecanismos de controle estatais, hoje refreados - que restringem a liberdade de imprensa – e, consequentemente, de expressão - àqueles que não dispõem do controle sobre os meios de comunicação. Desse modo, a censura não mais caracteriza-se como sendo monopólio do Estado, mas “também está sendo privatizada” (LIMA, 2010, pag. 105). Tal aparente incoerência em relação a quê/quem ameaça ou censura a liberdade de imprensa de- monstra a necessidade do debate livre e racional acerca do tema que é de interesse público - bem como do resgate à teoria da esfera pública. Porém, afirma Kucinski que existe a interdição a este debate por parte da chamada grande mídia, que costuma acusar qualquer tentativa de regulação democrática do setor como
  • 121. 121 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. sendo “censura” (KUCINSKI, 2002) numa clara reivindicação da perpetuação de seu privilégio no controle destes meios, e, por conseguinte, de controle sobre a poderosa opinião pública. Afirma a chamada grande mídia que a regulação (qualquer que seja) representaria restrição ao di- reito fundamental absoluto à liberdade de expressão - como se este direito lhes fosse privativo - invocando o fantasma da censura estatal quando, em realidade, as iniciativas de regulamentar o setor vêm, de forma con- tundente, não do Estado, ou do governo, mas da própria sociedade civil organizada, e dos movimentos sociais. Assim, evitam que o debate floresça – o que lhes é bastante fácil, vez que detém os meios de comunicação e “censuram” a entrada nestes desta discussão – e silenciam todos os atores políticos que pleiteiam voz e representatividade na esfera pública, esterilizando qualquer tentativa de aprofundamento do debate através da rotulação de “censura”, “restrição”, “repressão”. Nesse caso, o efeito silenciador vem do próprio discurso. Em 2002, projeto inédito desenvolvido por Daniel Heinz e intitulado Donos da Mídia desvendou as ramificações das seis principais redes nacionais de tv aberta – veículo de comunicação que exerce até hoje papel estruturador no conjunto do mercado de mídia – quais sejam: Globo, Record, SBT, Bandeirantes, RedeTV! e CNT. O estudo constatou que, por meio de grupos afiliados, as redes geram um vasto campo de influência, em escala de massas, que capilariza por 294 emissoras de tv em VHF (90% do total de emissoras do País), 15 em UHF, 122 emissoras de rádio AM, 184 de FM e 2 de rádio em onda tropical (OT), além de 50 jornais. Os 667 veículos ligados às seis redes privadas nacionais são a base de um sistema de poder econômico e político que se ramifica por todo o Brasil e se enraíza fortemente nas regiões (HERZ, 2002). Não é difícil concluir que, diante dos fenômenos da consolidação do capitalismo e da globalização mundial, a comunicação é instrumentalizada para atendimento, manutenção e criação de mercados, detur- pando seu caráter primordial, situação esta que reflete em problemas relacionados à representatividade quais reverberarão nas esferas políticas e pessoais dentro da sociedade. 4. LIBERDADE DE IMPRENSA X DIREITO À COMUNICAÇÃO Na maioria dos países latino-americanos, a mídia desenvolveu-se com o apoio de governos autoritá- rios, tendo a lógica do capital como embasamento para sua ampliação. Toda a infraestrutura necessária para a expansão do rádio e da televisão foi promovida por tais governos, quais limitaram aos movimentos populares o acesso às tecnologias de produção da informação, enquanto viabilizavam a adoção de políticas neoliberais que intensificaram as economias de escala e a maior integração e dependência do setor em relação ao siste- ma global comercial (ROLIM, 2011). Na América Latina, foi adotado o free flow of information, isto é, a versão informacional da livre cir- culação de capitais. Na década de 80, quando esse modelo foi implantado, apenas cinquenta corporações globais dominavam quase todos os meios de comunicação existentes, número este que foi, ainda, diminuindo com a chegada dos anos 90, em que apenas oito corporações detinham tal domínio - obtido através de estra- tégias de desestatização das telecomunicações, como a permissão de investimentos estrangeiros e a liberali- zação da propriedade de meios audiovisuais (ROLIM, 2011). O free flow information ocasionou a diminuição do espaço para a criação de meios de comunicação mais democráticos e de produções que não se adequam ao retorno de capital imediato, sendo responsável por tornar vulnerável o mercado de trabalho da indústria cultural latino-americana em relação à concorrência com os países centrais. O que é produzido pelos grandes grupos midiáticos tem como principal escopo a dis- tração da audiência para o retorno econômico imediato, de modo que o processo comunicacional não reflete a experiência social destes indivíduos (ROLIM, 2011). 5. O DIREITO À COMUNICAÇÃO NA AMÉRICA LATINA Segundo Paulo Freire, não há possibilidade de haver comunicação dentro de uma via de mão única, uma vez que a comunicação se constrói na busca de significação dos significados entre os interlocutores. De
  • 122. 122 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. acordo com a sua teoria da comunicação “somente o diálogo, que implica um pensar crítico, é capaz, tam- bém, de gerá-lo. Sem ele não há comunicação e sem esta não há verdadeira educação” (PAULO FREIRE, 1970, p. 83). A comunicação, portanto, não deve ser vista como relação entre um sujeito ativo e outro passivo, mas implica numa reciprocidade que não pode ser rompida.  O direito à comunicação, no entanto, sempre encontrou barreiras nos oligopólios midiáticos. Esses grupos são responsáveis por adotar estratégias de censura à liberdade de informação, quando, por exemplo, têm o poder de decidir o conteúdo que irá ou não ser veiculado em seus domínios (DÊNIS DE MORAES, 2013), bem como quando são capazes de silenciar as vozes que fazem oposição a seus interesses políticos. Nos países latino-americanos, a adoção de políticas públicas foi de grande importância para possibi- litar um maior acesso ao direito à comunicação - imprescindível que tais medidas viessem acompanhadas da desconcentração do espaço midiático (DÊNIS DE MORAES, 2012), cedendo espaço a vozes contra he- gemônicas. Devido ao seu contexto social e político, a Argentina é hoje um dos países que adotou de forma bastante satisfatória a ampliação do direito à comunicação. Dênis de Moraes (2011) em seu livro Vozes da América Latina aborda como as políticas públicas devem direcionar-se à redefinição do setor de mídia em bases mais equitativas, tornando as relações mais simétricas, combatendo os privilégios que vêm favorecendo a iniciativa privada. Aponta como as campanhas opositoras orquestradas pelas elites empresariais detentoras do oligopólio midiático combatem a referida diversificação da radiodifusão sob concessão pública, objetivando a manutenção de seus privilégios. Essas campanhas denunciam uma suposta ameaça à liberdade de expressão imposta pelos governos progressistas, reduzindo a liberdade de expressão à liberdade de imprensa e, esta, à liberdade de empresa. A efetivação do direito à comunicação na América Latina nas décadas de 1960 e 1970 era pretendida a partir da criação de meios de comunicação alternativos, em que a propriedade e o controle seriam coletivos, a partir da ampla participação na elaboração da programação. Na Venezuela foram implementados progra- mas de incentivo às rádios e TVs comunitárias; na Bolívia, Evo Morales estimulou as rádios comunitárias doando equipamentos e isentando-as do pagamento da licença e uso das frequências. Um fato importante a ser destacado foi a criação da TELESUR, composta pela Argentina, Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua e Ve- nezuela. Trata-se de uma empresa pública multiestatal que tem como escopo a integração dos povos latino-a- mericanos e que pretende ser uma alternativa ao discurso das corporações midiáticas (DÊNIS DE MORAES, 2011). Desse modo, as políticas públicas desses governos progressistas além de apoiarem os meios que não atendem à lógica do capital e uma nova configuração do serviço público de radiodifusão, também ajudam na difusão de conteúdos com incentivo à produção cultural e o estímulo à indústria audiovisual nacional. 5.1 O CASO DA ARGENTINA Considerado um dos primeiros países a reformular seu marco regulatório da comunicação, a Argenti- na tornou-se referência para aqueles que lutam pela democratização da mídia. Dentre os países latino-ame- ricanos a Argentina era o que adotava políticas neoliberais mais rigorosas, onde os processos de concentração econômica tiveram grande avanço, além da desnacionalização do espaço midiático. Consequência disso foi a concentração desses meios nas mãos dos dois maiores grupos presente no país, ADMIRA e Clarín, responsá- veis por retransmitir várias produções importadas dos Estados Unidos. Durante a redemocratização do país, no entanto, houve diversas tentativas de diversificação do es- paço midiático, num longo processo que teve a sua culminância na promulgação de novo marco regulatório. Vários movimentos sociais, comunitários e sindicatos uniram-se em torno da Coalizão por uma Radiodifusão Democrática (CRD), a fim de atuar pela democratização dos meios de comunicação (BRÁULIO RIBEIRO, 2012). Esse projeto teve grande apoio da população, que se organizou em diversos atos, e, posteriormente, foi apoiado pela presidente Cristina Kirchner. Tal apoio acarretou o embate direto entre o governo e os grupos midiáticos, devido ao fortalecimento da crise política.
  • 123. 123 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Os oligopólios midiáticos se utilizaram das medidas adotadas para acusar Kirchner de atentar contra a liberdade de imprensa e de expressão, enquanto os setores populares e seus aliados que ansiavam pela de- mocratização dos espaços midiáticos demonstraram apoio à continuidade do governo, organizando protestos decisivos para a aprovação do marco regulatório. 5.2. LEI DE MEIOS A Lei n. 26.522/2009, conhecida como a Ley de Medios, reorganizou o espaço midiático através da desconcentração da concorrência, permitindo que outros atores obtivessem concessões para produzirem outros conteúdos audiovisuais, não necessariamente alinhados com a ideologia dominante. Importante citar as soluções normativas encontradas para equilibrar a democratização da mídia com os mecanismos de pro- dução comuns do modo de produção capitalista. A lei de meios pretendeu regular os critérios de outorga de licenças e operação, bem como o monito- ramento da qualidade do serviço e do atendimento a critérios de pluralismo (LINS, 2009). Para garantir um amplo acesso aos meios de comunicação foram tomadas medidas com o intuito de inibir a sua concentração. Dentre elas, encontra-se a limitação do número de outorgas de licenças – quais são concedidas através de um processo licitatório. Essas licenças passaram a ter um prazo de 10 anos, podendo ser renovadas uma única vez; findo o prazo da renovação passou a ser necessário outro processo licitatório, havendo a possibilidade de que antiga outorgatária concorra em condições de igualdade com outros pleiteantes (LINS, 2009). Alguns artigos da lei tornaram-se os mais polêmicos por impor limites à concessão de faixas de radio- difusão e audiovisual a grupos empresariais. Visando a coibir a tendência concentradora vigente no sistema privado, a lei estabeleceu dois limites: o primeiro deles é o número de licenças e o segundo é a cota de mer- cado. Outra exigência da lei é a proibição da coexistência de vínculos societários entre empresas de radio- difusão, agências de publicidade e de jornais e revistas, como forma de impedir os processos de integração vertical e horizontal. A lei estabelece, a nível nacional, um limite de uma licença de radiodifusão por satélite, e até 10 li- cenças de serviços de comunicação audiovisual por radiodifusão. A nível local, são estabelecidos os limites de uma única licença de radiodifusão sonora em AM, uma única em FM, ou até duas, se houver mais de oito emissoras na localidade. Quando se tratar da única frequência disponível, não pode ser outorgatário quem já tenha outorga na mesma área ou em áreas adjacentes (LINS, 2009). Quanto à cobertura, as licenças conce- didas estão proibidas de atingir um número superior a 35% da população. Como restrição à formação de re- des, passou-se a exigir autorização formal do governo para que uma emissora atue como afiliada a uma rede. A Ley de Medios reconheceu a importância das emissoras comunitárias, que deixam de sofrer res- trições com o advento da lei, cabendo a elas 33% de todas as frequências de radiodifusão. Além disso, não sofrem com restrições geográficas de alcance ou de temática e recebem autorização para se constituírem em redes, desde que observadas as cotas de programação (ROLIM, 2011). A fim de que a Lei de Meios pudesse ter sua efetivação garantida, foram criadas entidades regulado- ras para atuarem de modo conjunto com a autoridade competente na matéria de telecomunicação. A Autori- dade Federal de Serviços de Comunicação Audiovisual (Afsca) tem como escopo a interpretação e a aplicação da lei com independência orçamentária e administrativa em relação ao governo nacional (ROLIM, 2011). Tem como objetivos a melhoria da qualidade técnica dos serviços de radiodifusão, a igualdade de acessos e a pluralidade de informações, bem como o controle da programação, a avaliação do conteúdo, bem como a fiscalização, identificação de infrações e aplicação das sanções adequadas (INTERVOZES, 2010). Embora a Lei de Meios seja reconhecida por abrir espaço para novas vozes e ser reconhecida como uma das leis mais avançadas do mundo, ainda sofre bastante com entraves impostos tanto pelo Judiciário quanto pela resistência por parte dos grandes grupos midiáticos. Mauricio Macri, que assumiu a presidência da Argentina, atendendo a interesses dos grupos midiáticos, em 15 dias de mandato emitiu decretos presi- denciais considerados nocivos para os ganhos já obtidos em relação ao direito à comunicação (INTERVO-
  • 124. 124 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. ZES, 2016). O último decreto modificou profundamente o que estava previsto na Lei de Meios, ampliando a quantidade de licenças permitidas para cada empresa e acabando com o alcance máximo de 35%, que se trata de uma restrição à oligopolização do setor (REVISTA FÓRUM, 2016). 6. SISTEMA PÚBLICO DE COMUNICAÇÃO O horizonte da mídia pública como sistema comunicacional engloba a quebra do paradigma da comu- nicação como atividade comercial direcionada à obtenção de lucro para proprietários privados ou acionistas, e, ao mesmo tempo, com a “alternativa” a esse sistema estatista que proponha a excessiva ingerência e domí- nio governamentais. Intenta-se promover a participação pública, de cidadãos, no gerenciamento do sistema comunicacional, forjando-o cada vez mais autônomo, sendo justamente essa a medida do caráter realmente público que é capaz de atingir: a autonomia em relação ao mercado e ao Estado e, como condição essencial, a abertura à participação, com poder deliberativo, ao cidadão (PEREIRA, 2011). Quando se fala em sistema público de comunicação pensa-se justamente em um conjunto de mídias públicas (nos diversos suportes, como rádio, televisão, internet etc.) que operam de modo integrado e sistê- mico, tendo como horizonte o interesse dos cidadãos. Instituições de mídia cujos financiamentos se baseiam na comercialização de sua audiência no mercado publicitário não podem encaixar-se nesta categoria. E, se a agência pública de comunicação necessita de autonomia frente ao mercado, necessita também de inde- pendência face às influências políticas governamentais para cumprir o seu papel de servir ao interesse dos cidadãos. Meios de comunicação de massa financiados por dinheiro público e livre do controle privado comer- cial tem sido um modelo de comunicação bastante explorado e consolidado na maioria das democracias mo- dernas. Segundo pesquisa realizada no ano de 2006 em sete países (França, Coréia do Sul, Alemanha, Reino Unido, Itália, Estados Unidos e Japão) pelo Instituto NHK de Pesquisa em Radiodifusão (NHK Broadcasting Culture Research Institute, 2006), 4 em cada 5 cidadãos consideram necessário existir um sistema público de comunicação. Em países como Alemanha, Japão e Reino Unido – onde há cobrança de imposto específico que financia mídias públicas – 60% dos entrevistados consideraram importante pagar este tipo de tributo para sustentar tais corporações. No Brasil, o tema da democratização da mídia ainda é tratado como uma espécie de tabu, o que se dá, em parte, pelo fato de ter sido este debate abafado durante quase todo o século XX. Principalmente sob o incentivo do regime militar, após os anos 60, o país desenvolveu um sistema de comunicação de perfil majoritariamente comercial. Tal realidade fez com que, no Brasil, pouco se saiba sobre o real papel da mídia pública (PEREIRA, 2011). A sociedade brasileira convive com o modelo comercial achando que ele é único, o que impede qualquer reivindicação transformadora. As iniciativas de radiodifusão pública que surgem a partir do final da década de 1960 no Brasil são tímidas e sem forças para concorrer com o modelo hegemônico es- tabelecido. Sofrem da falta de recursos, das ingerências político-partidárias e da ausência de programas de ação de médio e longo prazo. Além das pressões abertas ou veladas dos radiodifusores comerciais contra uma possível concor- rência do modelo público (LEAL apud PEREIRA, 2011, p. 4). A despeito da negligência do Estado e das políticas públicas mesmo no período em que se vivenciou a redemocratização do país após o término da Ditadura Militar, o projeto de um sistema público de comuni- cação ganhou novo fôlego nas décadas subsequentes e culminou na criação da Empresa Pública de Comu- nicação (EBC) através do Decreto Presidencial 6.689 de 11 de dezembro de 2008. Em seu artigo primeiro, o decreto estipula que a EBC é “uma empresa pública, organizada sob a forma de sociedade anônima de capital fechado, vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República” (BRASI, 2008).
  • 125. 125 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Dentre as finalidades da Empresa Pública de Comunicação, elencadas pelo art. 2º do Decreto nº 6.689, de 11 de dezembro de 2008, estão a complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal; a promoção do acesso à informação por meio da pluralidade de fontes de produção e distribuição do conte- údo; a produção e programação com finalidades educativas, artísticas, culturais, científicas e informativas; a promoção da cultura nacional, estímulo à produção regional e à produção independente; a autonomia em relação ao Governo Federal para definir produção, programação e distribuição de conteúdo no sistema públi- co de radiodifusão; e, finalmente, a participação da sociedade civil no controle da aplicação dos princípios do sistema público de radiodifusão, respeitando-se a pluralidade da sociedade brasileira (BRASIL, 2008). Intimamente ligado ao problema da blindagem em relação a interesses de natureza partidária ou privada, isto é, da autonomia e independência de uma mídia efetivamente pública, está o problema da legiti- midade democrática, que remete à questão da participação. A Empresa Brasil de Comunicação possui uma instância deliberativa (Conselho Curador) que tem as prerrogativas de aprovar o plano de trabalho anual da empresa, bem como a sua linha editorial, fiscalizando e fazendo recomendações de acolhimento obrigatório pela diretoria executiva da organização. O Conselho Curador da EBC é composto por 22 membros. São 15 re- presentantes da sociedade civil (indicados pelo presidente da República nesta primeira gestão), 4 do Governo Federal (representantes dos ministérios da Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia e Comunicação Social, também indicados pelo Executivo Federal), 2 do Congresso Nacional (Câmara e Senado) e 1 dos funcionários da empresa. Os membros têm mandato de quatro anos, com possibilidade de renovação a cada dois anos. A legislação também prevê que a renovação das vagas dos representantes da sociedade civil será feita através de uma consulta pública – apesar disso, o formato desta consulta ainda não está definido. A existência de uma instância mista e com poder de decisão na EBC é significativamente positiva, mas ainda é necessária a qualificação do modo de escolha de seus membros – o atual modelo é frágil e omisso quanto aos critérios de indicação, o que põe em xeque a necessária autonomia da agência. A falta de objetivi- dade na escolha dos componentes do órgão deliberativo acaba revestindo de personalismo as indicações a se- rem feitas pelo Presidente da República, o que, por sua vez, faz com que tal instância passe a ser influenciada por uma política de governo e não por uma política de Estado, como deveria ser e como acontece nos países onde o sistema é mais consolidado (VALENTE, 2011). Necessário seria que esta instância fosse composta por representantes indicados por um maior número possível de entidades da sociedade civil, algo que seja aberto a ponto de garantir que o Conselho tenha proporcionalidade regional, diversidade de segmentos, pluralidade, onde todos os setores como cinema, audiovisual, cultura se sintam representados. Além das emissoras educativas-estatais e aquelas ligadas a fundações civis sem fins lucrativos, dois outros segmentos também entram no debate sobre o campo público de comunicação: as emissoras univer- sitárias e os canais comunitários de rádio e TV. Embora sustentem formatos bastante distintos de conteúdo e transmissão, ambos os segmentos se vinculam ao campo através de sua aproximação com as comunidades ou nichos públicos em que atuam, seja as comunidades universitárias, as comunidades de bairros urbanas ou em pequenas localidades do interior e povoados rurais. Os canais comunitários, de suma importância para a consolidação de uma mídia democrática e po- pular, caracterizam-se por sua aproximação com o campo público, e em sua forma de gestão enraizada nas comunidades. Seu caráter eminentemente comunitário, tanto no protagonismo para a criação de conteúdo quanto em sua natureza autóctone, diferencia-as em relação aos demais veículos públicos de comunicação, em razão da relação orgânica que possuem com o entorno – o que significa estar abertas à participação de moradores e movimentos sociais da localidade, garantir o contraditório e a pluralidade de opiniões, prestarem serviços de utilidade pública, estar comprometida com as lutas e demandas da comunidade (SÓTER apud PEREIRA, 2009). Peruzzo (1991, p. 162) defende que a participação na comunicação popular é fundamental para o processo emancipatório, qual contribui para cidadania e possibilita ao homem tornar-se sujeito. A necessida- de de conscientização e mobilização popular implica na demanda por meios de comunicação populares, aces- síveis, a fim de que a prática comunicacional seja experienciada enquanto dinâmica social transformadora, atuando simultaneamente como meio de conscientização, mobilização, educação e agenciamento cultural.
  • 126. 126 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. É esse processo de construção da cidadania que propicia e aponta para o desenvolvimento local, mediante a combinação eficiente das potencialidades de cada território, de seus recursos e de sua força empreendedora. CONCLUSÃO Objetivo deste trabalho foi identificar, na teoria e na prática, o direito fundamental à liberdade de expressão e a inter-relação que este possui, numa realidade midiatizada, com o direito à comunicação. Como poderia se desenvolver democraticamente ao prescindir do acesso aos ve- ículos através dos quais essa comunicação se dá? Intentou-se discutir, portanto, a situação da comunicação – enquanto direito - em um cenário em que poucos grupos empresariais contro- lam os veículos de imprensa no país, privatizando e restringindo o acesso a um espaço de fala qual se constitui como principal lócus de desenvolvimento da própria opinião pública. Ademais, objetivou-se compreender de que forma poderia se desenvolver um marco re- gulatório para a comunicação no Brasil, por meio do qual fossem regulamentados os artigos 5, 21, 220, 221, 222 e 223 da Constituição Federal, efetivando a força normativa constitucional por eles ostentada, promovendo o direito à comunicação como direito fundamental e corolário da liberdade de expressão, para que a comunicação social seja orientada por princípios outros, devidamente positivados em conformidade à exegese constitucional, que não o poderio econô- mico e político dos locutores. Desde 2013, movimentos sociais, organizações que compõem o Fórum Nacional pela Democratiza- ção da Comunicação (FNDC) e ativistas pelo direito à comunicação, recolhem assinaturas para apresentação ao Congresso de um projeto de lei de iniciativa popular para a criação de um marco regulatório para a comu- nicação no Brasil, que regulamenta os artigos 5, 21, 220, 221, 222 e 223 da Constituição Federal. Inspirada nos tratados internacionais já ratificados pelo Brasil e em experiências regulatórias de países como a França e a Espanha, a Lei da mídia democrática propõe mecanismos de implementação dos mencionados dispositivos constitucionais, quais são objeto de retumbante omissão legislativa, carecendo de legislação infraconstitucio- nal que os regulamente. Entre os principais dispositivos presentes no projeto de lei estão o veto à propriedade de emissoras de rádio e TV por políticos, a proibição do aluguel de espaços da grade de programação, a defi- nição e delimitação de regras para impedir a formação de oligopólios, a criação de um Conselho Nacional de Comunicação e de um Fundo Nacional de Comunicação Pública. Para além da elaboração de um novo marco regulatório que reorganize a comunicação como um todo, uma série de propostas e teses vem sendo publicadas por instituições, associações e movimentos sociais sobre o tema “sistema púbico de comunicação”. É possível listar alguns horizontes ou diretrizes que vem sendo apontadas e reforçadas através dessas manifestações: ampliação do número de emissoras e fortalecimento das já existentes no campo público (estatais, culturais, comunitárias, educativas); aumento da participação civil nas empresas públicas de comunicação, através de instâncias deliberativas, com participação de repre- sentantes da sociedade civil criteriosamente estabelecida e objetivada; estipulação de metas em torno de percentuais a serem cumpridos quanto ao desenvolvimento entre os sistemas público, privado e estatal (seja através de cotas na concessão de canais, seja através de fomento e políticas públicas de desenvolvimento para atingir tal equilíbrio); fomento à produção independente e fortalecimento da cadeia produtiva entre os canais e emissoras do campo público; criação de fundos para fomento do sistema público de comunicação; criação de tributos ou redirecionamento de tributos já existentes para financiamento direto da comunicação pública; tributação do sistema comercial para financiamento do sistema público, dentre várias outras. Segundo GRAMSCI (2002), o enfrentamento da hegemonia só é possível quando o grupo social su- balternizado possui condições de superar seus patamares de subalternidade até que seja capaz de “sair da fase econômico-corporativa para elevar-se à fase da hegemonia político-intelectual na sociedade civil e polí- tica” (1999, p. 460). Ao identificar o poder de palavra e da participação nos meios de políticos, grupos histo- ricamente excluídos da esfera pública e, consequentemente das decisões políticas, através da comunicação, são capazes de mudar a estrutura das representações sociais e mobilizar debates e iniciativas, integrando, de fora efetiva, as movimentações populares que lutam por transformação social.
  • 127. 127 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. REFERÊNCIAS BRASIL. Presidência da República. Decreto Presidencial 6.689 de 11 de dezembro de 2008. Brasília, 2008. FÓRUM, Revista. Argentina: juízes federais anulam decretos de Mauricio Macri e estabelecem Lei de Meios. Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/2016/01/12/argentina-juizes-federais-anu- lam-decretos-de-mauricio-macri-e-restabelecem-lei-de-meios/ Acesso em 30 de janeiro de 2016. GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Tradução de Carlos Nelson Coutinho com a colaboração de Luiz Ser- gio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 2002. v. 5. GOMES, Wilson (1998). Esfera pública política e media: com Habermas, contra Habermas in RUBIM, Antônio Albino Canelas; BENTZ, Ione Maria Ghislene PINTO, Milton José (orgs.). Produção e Recepção dos Sentidos Midiáticos. Petrópolis, Vozes. HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Tradução: Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. 398p HABERMAS, JURGEN. Três modelos normativos de democracia. Texto do seminário “Teoria da demo- cracia”, Universidade de Valência, 1991. HERZ, Daniel. Quem são os donos da mídia. Carta Capital. 6 de março de 2002. Disponível em: http:// donosdamidia.com.br/media/documentos/DonosCarta.pdf. INTERVOZES. Contribuições para a construção de indicadores do direito à comunicação. São Paulo: Intervozes - Coletivo Brasileiro de Comunicação Social, 2010. INTERVOZES. Lei de Meios argentina sofre desmonte autoritário com governo Macri. Disponível em: http:// www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/lei-de-meios-argentina-sofre-desmonte-autoritario-com-governo-macri Acesso em 30 de Janeiro de 2016. INTERVOZES. Órgãos Reguladores da Radiodifusão em 10 Países. Disponível em: http://intervozes.org.br/ wp-content/uploads/2015/10/orgaosreguladores.pdf Acesso em 29 de Janeiro de 2016. Kucinski, Bernardo. ―A primeira vítima: a autocensura durante o regime militar. In: Carneiro, Maria Luiza Tucci Carneiro (org). Minorias Silenciadas. História da Censura no Brasil. São Paulo: Edusp/ Imprensa Oficial/ FAPESP, 2002. LIMA, Venício A. de. Liberdade de expressão x Liberdade de imprensa: Direito à comunicação e de- mocracia. São Paulo: Publisher Brasil, 2010. p. 160. LINS, Bernardo Felipe Estellita. Argentina: Nova Lei dos Meios Audiovisuais. Disponível em: http:// www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/estnottec/areas-da-conle/tema4/2009_17122. pdf Acesso em 29 de Janeiro de 2016. LOPES, Ivonete da Silva. Cultura Política e Democratização da Comunicação no Brasil. Rio de Ja- neiro, 2011. Disponível em: http://www.compolitica.org. MARQUES, Francisca Ester de Sá. As contradições entre a liberdade de expressão e a liberdade de informação. 1997. Disponível em: http://www.bocc.ubi.pt/pag/marques-ester-contradicoes-liberdades. pdf
  • 128. 128 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. MARTÍN-BARBERO, J. Globalização comunicacional e transformação. In: MORAES, Dênis de (org.). Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 57-86. MORAES, Dênis de; RAMONET, Ignacio; SERRANO, Pascual. Mídia, Poder e Contrapoder – da con- centração monopólica à democratização da informação. São Paulo. Boitempo, 2013. MORAES, Dênis de. Vozes Abertas da América Latina: Estado, políticas públicas e democratiza- ção da comunicação. Rio de Janeiro: Mauad X: Faperj, 2014. PEREIRA, Sivaldo. Sistema público de comunicação no Brasil: as conquistas e os desafios. Dispo- nível online em: http://docs.google.com/viewer?a=vq=cache:5RzjO_w8AJ4J:www.direitoacomunicacao. org.br/content.php%3 Foption%3Dcom_docman%26task%3Dd PERUZZO, C.M.K. . Revisitando os conceitos de comunicação popular, alternativa e comunitária. In: XXIX Congresso Brasileiro de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2006, Brasília. XXIX Congers- so INTERCOM. São Paulo: Intercom, 2006. RIBEIRO, Bráulio Costa. O modelo de desconcentração do mercado audiovisual da Argentina pro- posto pela nova Lei de Meios. Disponível em: dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/3919535.pdf Aces- so em 29 de janeiro de 2016. ROLIM, Renata. Direito à Comunicação – possibilidades, contradições e limites para a lógica dos movimentos sociais. Recife: Oito de Março Gráfica e Editora, 2011. THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de co- municação de massa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995, 427 págs.
  • 129. 129 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. LIBERDADE RELIGIOSA: UMA ABORDAGEM DO PONTO VISTA DAS RELAÇÕES ENTRE OS MODELOS DE ESTADO E IGREJA E O CASO LAUTSI CONTRA ITALIA CAMILA LEITE VASCONCELOS Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (2015). Especialista em Direito Processual pela Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes. Professora Universitária SUMÁRIO: Introdução; 1. Modelos de estado e igreja e sua relação com a liberdade religiosa; 2. Lautsi contra Italia: sobre a liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do esta- do; Conclusão. Referências. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por finalidade analisar as relações entre o Estado e o direito constitucional de liberdade religiosa a partir dos artigos dos professores Winfried Brugger e José Ignacio Solar Cayón. Winfried Brugger identifica e descreve seis tipos de relações entre Estado e Igreja, quais sejam: hos- tilidade agressiva, separação rígida na teoria e na prática, separação e alguma acomodação, divisão e coope- ração, unidade formal, unidade material entre Igreja e Estado. O referido autor aborda de maneira mais intensa os modelos da separação rígida na teoria e na práti- ca, separação e alguma acomodação, divisão e cooperação e unidade formal, pois entende que a hostilidade agressiva e a unidade material entre Igreja e Estado estão em contradição com o Direito Constitucional e o Direito Internacional, bem como promovem discriminação e coação. Após explanar todas essas relações, o professor Brugger fundamenta a exclusão do primeiro e do sexto modelos no direito moderno. No final do artigo o autor também destaca as decisões proferidas pelas Cortes Constitucionais nos hard cases, apontando semelhanças e diferenças entre os modelos 2 e 5. O artigo escrito pelo professor José Ignacio Solar Cayón, denominado Lautsi contra Itália: sobre a liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do Estado, tem como objeto analisar os fundamentos da decisão definitiva do Tribunal Europeu de Direitos Humanos no que diz respeito a presença de crucifixos em salas de aula italiana e tenta demonstrar as discrepâncias existentes provocadas pela Corte. 1. MODELOS DE ESTADO E IGREJA E SUA RELAÇÃO COM A LIBERDADE RELIGIOSA. Na introdução do artigo de Brugger consta que a disputa entre o catolicismo e o protestantismo termi- nou se estendendo para uma questão política, e a busca pelo domínio político e religioso tornou impraticável a formação de relações pacíficas. Em razão disso, o mundo vivenciou grandes guerras e catástrofes civis. Nesse período Igreja e Estado se confundiam enquanto instituições legítimas de poder em que ambas tinham pretensões em normatizar e regular o corpo e a mente dos sujeitos, detendo assim o monopólio da violência simbólica no campo social.
  • 130. 130 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. No Brasil, a Constituição de 1824 adotou o catolicismo a religião oficial do país, conferindo a Igreja Católica os mesmos poderes e prerrogativas da época do império, o que evidencia que nesse período histórico a separação entre Igreja e Estado praticamente não existia e consequentemente não havia liberdade religiosa enquanto direito subjetivo. Somente era tolerada manifestações de outras religiões em espaços privados ou domésticos, não sendo possível aos indivíduos exercerem publicamente qualquer outra religião que não fosse a católica. (EMMERICK, 2010) Com o passar dos anos pareceu inevitável a necessidade de fazer a política se preocupar tão somente com aspectos mundanos voltados para o bem estar, enquanto que a religião se dedicaria apenas a obtenção da salvação eterna sem utilizar o Estado como meio de impor a religião preferida do poder político. Esse mo- vimento de divisão estrutural dos assuntos pertinentes ao Estado e à Igreja ficou bastante evidente na maioria dos Estados da Europa e nos Estados Unidos. Outrossim, a busca pela salvação eterna deveria partir da consciência de cada individuo, declarando- -se religioso ou não pautado no principio da liberdade. Para tanto, as constituições modernas separaram as áreas de domínio do Estado e da Igreja por meio de uma norma estrutural e inserem a liberdade religiosa no capítulo dos direitos fundamentais. O referido autor cita exemplos clássicos como o da primeira emenda da Constituição dos Estados Unidos, a qual definiu que “O Congresso não deve elaborar lei relacionada ao estabelecimento da religião, ou à proibição do seu exercício…”. Verifica-se nesse texto legal tanto uma distinção estrutural no tocante a definição do campo de atuação do Estado e da Igreja como também a questão da liberdade religiosa. A Consti- tuição de Weimar também é citada como exemplo ao contemplar o direito de liberdade de confissão religiosa e ao explicitar que não existe uma igreja do Estado. De acordo com as palavras de Brugger, a proteção da liberdade religiosa passou a compreender a liberdade de pensamento, de consciência e religiosa, o direito a mudar de religião e de ideologia, a liberdade do exercício dessas atividades de forma individual ou coletiva, em que se abrangem o culto ou a missa, o en- sinamento e o respeito pelos costumes religiosos. Desse modo, o Estado de Direito ocidental passou a ser distinguido por meio da liberdade religiosa como instrumento de combate contra a coerção do Estado no tocante a essas relações contenciosas e tam- bém por meio de uma divisão estrutural do campo de domínio pertencente ao Estado de um lado e a Igreja do outro. O primeiro modelo da relação entre Estado e Igreja citado no artigo de Brugger é o da Hostilidade Agressiva entre Estado e Igreja. Essa relação se caracteriza pela adoção de atitudes hostis contra reli- giões e igrejas por parte de alguns países. Em outras palavras seria dizer que o regime político de um país pode ser instituído eliminando as religiões e as igrejas, propagando um ateísmo e introduzindo na mente dos sujeitos uma “ideologia cietífico-materialista”. Nesse contexto, a hostilidade imposta contra a Igreja a impede de participar dos assuntos políticos e estatais, fazendo reinar um Estado tipicamente totalitário, tendo em vista que na medida que o Estado proíbe o indivíduo escolher uma religião, ele termina infringindo o princípio da liberdade religiosa. O segundo modelo introduzido pelo autor seria o da Separação Rígida na Teoria e na Prática. De acordo esse modelo, deveria haver uma total separação espacial nas relações entre Estado e Igreja, de modo que por meio de uma parede se evitaria o envolvimento de Igrejas na esfera pública e organizacional. Como exemplo, Brugger cita o caso norte-americano Everson v. Board of Education, em que os alu- nos de orientação religiosa cristã não podiam utilizar o transporte de ônibus custeado pelo Estado para se deslocarem até a escola por violar a cláusula da primeira emenda da Constituição norte-americana. Assim, vejamos o que diz o mencionado professor em torno da separação rígida:
  • 131. 131 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Só por meio de um respeito rígido [do dever de separação], o Estado pode preservar sua neutralidade e, unilateralmente, impedir o partidarismo com as disputas, que se originam inevitavelmente quando grupos religiosos con- correm entre si para obter fundos do Estado para a educação e aulas religio- sas ou outras atividades federativas, sejam essas diretas ou indiretas. (BRU- GGER, 2010, p.18) Portanto, esse modelo se caracteriza por uma separação rígida em que as mensagens de conteúdo se referem ao bem estar, com resultados para uma área privada e pública de uma liberdade religiosa forte e no âmbito estatal se verifica uma liberdade religiosa negativa maximizada contra paternalismo. O terceiro modelo diz respeito a Separação Rígida na Teoria, Acomodação na Prática. Ou seja, seria uma visão mais moderada quando comparada ao segundo modelo. Nesse sentido, a separação entre Estado e Igreja por meio de uma parede não seria tão espessa e densa. Segundo esse modelo, o Estado tinha que se manter neutro perante as Igrejas, mas ao mesmo tem- po essa neutralidade não poderia se transformar em uma hostilidade, de modo a não prejudicar a liberdade religiosa. O teste “Lemon”, desenvolvido pela Corte Americana em 1971 prevê que a “lei precisa ter uma fi- nalidade legislativa secular, o efeito primário não pode promover e nem prejudicar a religião e a lei não pode conduzir a um excessivo almagamento entre governo e religião”. Ao final, reza que “haverá inconstituciona- lidade se só um dos critérios também não for satisfeito”. O quarto modelo foi intitulado por Brugger como Divisão e Cooperação. Nesse modelo não existe a parede separando espacialmente a Igreja e o Estado, pois o que há é uma cooperação entre eles em deter- minadas áreas. Essa relação se caracteriza pelo fato do Estado e da Igreja serem titulares de direitos fundamentais de um lado e do outro a organização do Estado tem o dever de direitos fundamentais. A igreja não pode se formar de cima para baixo, ou seja, não pode se formar a partir do Estado. Ela tem que se instituir de baixo para cima através dos fieis e dos militantes. Não há uma separação total entre o Estado e a religião, em que se faz presente a coordenação mútua nos trabalhos em conjunto. O exemplo trazido pelo autor para visualizar esse modelo em termos práticos é a possibilidade de se ter aulas de religião nas escolas públicas e de se conferir status de entidade de Direito Público a determinadas sociedades religiosas. O quinto modelo é a Unidade Formal da Igreja e do Estado com Divisão de Conteúdo. Esse modelo se concretiza quando há a criação de uma igreja estatal ou quando se adota uma igreja nacional. Nas palavras de Brugger, vislumbra-se esse modelo quando “a entidade política constitui formalmente uma igreja estatal ou, de outra forma reconhecível, se identifica, como Igreja nacional, com uma determinada Igreja”. São características da Unidade Formal da Igreja e do Estado com Divisão de Conteúdo: (1) Ambas as entidades configuram basicamente suas próprias organizações. (2) Elas buscam diferentes objetivos (bem estar versus salvação). (3) Elas chegam às suas próprias decisões. (4) A Igreja não é um poder do Estado no sentido estrito, não pode, portanto, exercitar qualquer coação dura do ponto de vista externo. (5) A liberdade de crença e de religião de todos os fiéis e infiéis é fundamentalmente respeitada”. (BRUGGER, 2010, p.21) De acordo com o autor, países escolhem esse tipo de modelo com o intuito de se manter uma tradição religiosa na comunidade, com cautelas para que isso não se transforme em imposição e consequentemente
  • 132. 132 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. ferir a liberdade de confissão religiosa. No caso de Israel, a adoção desse modelo de Unidade Formal com divisão de conteúdo seria para proteger os judeus espalhados pelo mundo inteiro e seu território. Esse modelo confere um tratamento diferenciado aos fies da igreja nacional/estatal, diferindo diante da situação dos direitos fundamentais constitucionais de cada Estado. O autor cita os principais níveis de diferenciação, quais sejam: diferença apenas simbólica (onde não há tratamento diferenciado entre fiéis e infiéis), diferenças consideradas “suaves” como, por exemplo, os incentivos financeiros conferidos a Igreja Estatal e as diferenças “duras” como proibir infiéis de assumirem cargos públicos. O sexto e último modelo identificado por Brugger é Unidade Material e Formal entre Igreja e Estado. Nesse modelo não mais se visualiza aquela divisão estrutural entre Estado e Igreja, ao contrário, “o imperativo jurídico é, portanto, em muitos casos, o imperativo religioso e, tendencialmente, a violação jurídi- ca também é um pecado”. Portanto, não há separação entre o Estado e a Igreja. Faz-se presente a desvalorização da liberdade religiosa negativa, em que o Estado passa a ficar vincu- lado a Igreja, aproximando-se de uma teocracia. Há uma obrigatoriedade da população adotar e permanecer na religião oficial, não podendo contradizer os mandamentos religiosos. Outras religiões não são tratadas igualmente, ocorrendo coação e discriminação dos fiéis que não adotam a religião oficial. Brugger cita como exemplo a decisão da Suprema Corte do Paquistão. Em suma, Corte entendeu que: O Direito Islâmico ou Sharia é o Direito de maior hierarquia no País, e qual- quer forma de elaboração de lei, inclusive a Constituição, a ele se submete. O Direito Islâmico é o Direito conhecido e estabelecido, que não pode ser aplicado sem modificação ou ajuste, a fim de responder a todos os problemas, com os quais um Estado Moderno se confronta, inclusive com os assuntos de governabilidade constitucional e direitos individuais fundamentais. As pres- crições dos direitos humanos internacionais estão sujeitas aos ditames do Di- reito Islâmico e, por isso, são irrelevantes com relação a questões pertinentes à liberdade religiosa num Estado muçulmano. (BRUGGER, 2010, p. 23) No tópico II do seu artigo, Brugger ressalta a necessidade de se excluir o primeiro e o último modelo no Direito Moderno, uma vez que o primeiro modelo não se distancia tanto assim do sexto, pois não pode ser negado ao indivíduo o direito e a liberdade de escolher uma determinada religião. Impor uma religião é tão hostil quanto impedi-lo de eleger uma. Quando o Estado prega um ateísmo excessivo ou impõe uma religião estatal, ele termina se transformando em um Estado Totalitário. No item III, o autor faz uma análise do sistema do quinto modelo de unidade formal. Para ele, esse sistema se adequa bem a organizações estatais que necessitam da religião como instrumento para se promo- ver uma liberalização e pluralização pacífica das religiões. O fundamento para esse tipo de sistema ainda se manter presente é justamente a garantia da liber- dade religiosa como direito humano de todos os fieis e infiéis. Tal sistema de unidade formal pode ser visto na Grécia e no Reino Unido. No tópico IV, Brugger procura promover a estrutura da ponderação nos modelos 02, 03 e 04 de se- paração e de divisão. Para esse professor, esses modelos seriam a melhor forma de organização da relação Estado x Igreja. Vejamos: À separação estrutural de Estado e Igreja, ou melhor, de religiões corres- pondem os padrões de independência, neutralidade, tratamento igual e não- -identificação. No caso dos direitos fundamentais, o modelo de separação conduz à liberdade religiosa, como direito de liberdade, com a exclusão da coação à religião, e à igualdade religiosa, com o mandamento da não-discri- minação. (BRUGGER, 2010, p.25)
  • 133. 133 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A aplicação das características de um determinado tipo de modelo de relação entre Estado e Igreja a um caso concreto por parte dos tribunais vai depender do “texto Constitucional, da situação histórica inicial, do ambiente político, da compreensão de integração, do teste jurisdicional para a interpretação das normas relativas ao Estado e à Igreja, e da própria compreensão passiva e ativista dos tribunais constitucionais”. Por isso, o autor defende que a jurisprudência poderá orientar e analisar o conflito, esclarecendo to- das as vantagens e desvantagens ao se escolher aplicar determinado modelo de sistema relacionado a Estado e Igreja. Contudo, essa atividade deve ser feita de forma limitada, de modo que ninguém melhor do que os julgadores que vivem dentro daquele Estado para avaliar a melhor solução a ser aplicada ao caso concreto. Na parte final do artigo, o autor traz casos reais que foram objeto de análises por parte de Cortes Constitucionais. De acordo com a Corte Constitucional Americana, aulas de religião não devem ocorrer em escolas públicas, fazendo-se presente uma parede para separar espacialmente e de forma rígida as relações entre Estado e Igreja. Por outro lado, servidores públicos podem dar aulas de disciplinas leigas tanto em escolas públicas quanto em escolas particulares e o Estado pode financiar livros para ambas as escolas, verificando assim a inexistência de qualquer tratamento desigual. O servidor público ao ingressar no serviço não precisa fazer o juramento para não prejudicar a liber- dade religiosa e por haver a separação rígida entre Estado e Igreja. No que diz respeito ao uso de símbolos religiosos por parte do Estado, há um debate acalorado entre os defensores do modelo de separação rígida e moderada na jurisprudência norte-americana, pois aqueles defendem a impossibilidade de se montar, por exemplo, uma árvore de Natal nos parques da cidade, em ruas ou repartições públicas, enquanto os moderados relativizam essa posição rígida e defendem que não há violação da liberdade religiosa desde que se deixe explícito que no Estado não há nenhuma preferencia por uma determinada religião. No tocante as cruzes fixadas nas paredes de escolas públicas, salvo melhor juízo, Brugger entendeu que não há que se falar em transgressão a liberdade religiosa quando esses símbolos fazem referencia ao caráter histórico do país. Entretanto, o Tribunal Constitucional interpreta o crucifixo como sendo uma men- sagem cristã que gera discriminação e apela para os alunos não cristãos. O autor conclui afirmando ser impossível distinguir por completo Estado e Religião, seja como campo da política, seja judicialmente. Percebe-se de maneira clara que Brugger aceita os modelos 02, 03 e 04 de relações entre Estado e Igreja no Direito Moderno. Acredita ainda que o quinto modelo também pode ser implantado com ressalvas, sob a justificativa de que em todos esses modelos de Estado, cada indivíduo pode decidir confessar uma cren- ça e ainda continuar sendo ideologicamente livre. 2. LAUTSI CONTRA ITALIA: SOBRE A LIBERTADE RELIGIOSA E OS DEVERES DE NEUTRALIDADE E IMPARCIALIDADE DO ESTADO. O artigo escrito pelo professor José Ignacio Solar Cayón, denominado Lautsi contra Itália: sobre a liberdade religiosa e os deveres de neutralidade e imparcialidade do Estado, tem como objeto analisar os fun- damentos da decisão definitiva do Tribunal Europeu de Direitos Humanos no que diz respeito a presença de crucifixos em salas de aula italiana. No ano de 2002, a Sra. Lautsi pleiteou a retirada do crucifixo fixado na sala de aula da escola públi- ca onde estudavam seus dois filhos Dataico e Sami Albetin perante a diretoria da instituição. Diante do seu pedido negado, a mãe recorreu ao Conselho Escolar, ao Tribunal Administrativo de Veneza, bem como ao Conselho de Estado, onde também lhe foram negados o pedido.
  • 134. 134 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. O caso Lautsi contra a Itália teve início em razão das várias e sucessivas demandas da Sra. Lautsi ao impugnar judicialmente a presença de crucifixos nas salas de aula das escolas públicas, sob o fundamento de que a exposição desses símbolos nos centros públicos estava ferindo o seu direito de criar e educar os seus filhos em conformidade com as suas convicções filosóficas e religiosas. A demandante argumentava que a fixação das cruzes era inconstitucional porque era uma verdadei- ra violação do princípio da laicidade do Estado, o qual estava expressamente contemplado na Constituição italiana. A Sra. Lautsi defendeu que a sua liberdade religiosa estava sendo violada e que o Estado não estava cumprindo com o disposto no Art. 9° da Convenção Europeia. Além do mais, a obrigação de expor crucifixos em sala de aula provém de normas que foram promulgadas durante o regime fascista de Mussolini e por isso carecem de legitimidade democrática. A demandante alegou violação do art. 9º e 14 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, bem como o art. 2 de protocolo nº 1, que seguem abaixo transcritos: Convenção Européia de Direitos Humanos Artigo 9° Liberdade de pensamento, de consciência e de religião 1. Qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de crença, assim como a liberdade
de manifestar a sua religião ou a sua crença, individual ou colectivamente, em público e em privado, por meio do culto, do ensino, de práticas e da celebração de ritos. 2. A liberdade de manifestar a sua religião ou convicções, individual ou co- lectivamente, não pode ser objecto de utras restrições senão as que, previstas na lei, constituírem disposições necessárias, numa sociedade democrática, à segurança pública, à protecção da ordem, da saúde e moral públicas, ou à protecção dos direitos e liberdades de outrem. Artigo 14° Proibição de discriminação O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qual- quer outra situação. Artigo 2° (do Protocolo nº 1) Direito à instrução A ninguém pode ser negado o direito à instrução. O Estado, no exercício das funções que tem de assumir no campo da educação e do ensino, respeitará o direito dos pais a assegurar aquela educação e ensino consoante as suas convicções religiosas e filosóficas. 1 Em contrapartida, o governo italiano sustentou como principal linha de defesa que a exposição de crucifixos em salas de aula não possui significado religioso, mas se trata de um símbolo que faz parte da his- tória e da identidade do povo italiano. Em face dessas decisões, a Sra. Soile Lautsi interpôs no ano de 2006 um recurso ao Tribunal Euro- peu de Direitos Humanos, o qual julgou no ano de 2009 por unanimidade que a conduta do governo italiano efetivamente violou o Art. 9º da Convenção Europeia de Direitos Humanos c/c o Art. 2º do Protocolo n° 01 da mesma Convenção. Decidiu-se ainda não analisar a questão sob o enfoque do Art. 14 da citada Convenção. 1  http://www.echr.coe.int/Documents/Convention_POR.pdf. Último acesso em 18.02.2015
  • 135. 135 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. No ano de 2010, o governo italiano requereu a reanálise da matéria pela Grande Sala do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, conforme previsão legal. No julgamento, a Grande Sala decidiu por quinze votos contra dois que a presença do crucifixo na escola pública não violava os mencionados dispositivos da Convenção Europeia. De imediato, verifica-se as incoerências com algumas decisões prévias do próprio tribunal. De acordo com os argumentos para embasar a decisão definitiva, a Grande Sala entendeu que apenas há violação ao princípio da laicidade quando o Estado ultrapassa a imparcialidade, ou seja, o Estado não pode objetivar doutrinação ou direcionamento a uma determinada religião. Outra ideia central presente no julgado é a da “margem de apreciação dos Estados” no respeito aos direitos humanos, ou seja, os Estados possuem uma margem de conduta para atuar, atentando-se aos limites previstos na Convenção Europeia de Direitos Humanos. O Tribunal Europeu de Direitos Humanos adota a doutrina da margem de apreciação nacional, por meio da qual confere as autoridades nacionais uma certa discricionariedade na hora de justificar a adoção de medidas que a princípio poderia interferir no exercício dos direitos reconhecidos na Convenção, mas que seria possível atender e solucionar as peculiaridades do contexto doméstico. A margem da apreciação nacional leva em conta diversos fatores, tais como: a natureza do direito afetado e a sua importância, o fim perseguido pela medida estatal questionada, as circunstancias do caso. De acordo com José Ignácio, a existência ou não de um consenso em torno da matéria que está sendo discutida, funciona como uma espécie de válvula de segurança que alivia as pressões do sistema, permitindo ao tribunal reforçar ou rebater o nível de supervisão e controlar as atuações estatais em cada matéria. Assim, o Tribunal Europeu no âmbito da liberdade religiosa confere as autoridades nacionais uma ampla margem de discricionariedade, pois a concepção de religião não uniforme, variando de um país para o outro e por isso cresce a importância das autoridades nacionais em solucionar as demandas de acordo com o contexto doméstico. O autor destaca ainda em seu artigo a questão do uso de símbolos religiosos nos centros de ensino. Nesse sentido, destaca o Cayón: (...) o tribunal enfatizou que a ampla margem de apreciação que corresponde as autoridades nacionais em matéria religiosa se impõe especialmente quan- do os Estados regulam o uso de símbolos religiosos nos centros de educativos dada a disparidade de soluções legislativas adotadas nesse tema. (CAYÓN, 2011, p. 578) O autor coloca em pauta caso Leyla Sahin contra Turquía. Em 1998, o vice-reitor da Universidade de Istambul proibiu a utilização de véus islâmicos que cobrissem a cabeça da estudante e o uso de barba em cursos e aulas ministradas na universidade. Em 1998, Sahin levou seu caso à CEDH. Em 2005, a Corte Europeia proferiu seu veredicto, afirman- do a inexistência de violação ao artigo 9° da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Ora, verifica-se uma incoerência no tocante aos fundamentos utilizados pela Corte ao decidir sobre li- berdade religiosa. No caso da Sra. Lautsi, a Grande Sala julgou que a presença de crucifixos nas salas de aula das escolas não violava a sua liberdade religiosa de educar seus filhos conforme as suas convicções religiosas. Por outro lado, analisando o caso Leyla contra a Turquia, a mesma foi impedida de expressar publicamente a sua religião ao usar um véu nos centros de ensino. Um véu pode representar um símbolo religioso tão inocente quanto um crucifixo. Ao mesmo tempo, esses símbolos podem de fato serem capazes de influenciar na formação religiosa dos demais alunos. Contu- do, questiona-se qual foi o fundamento utilizado pela Corte para definir o significado passivo de um crucifixo
  • 136. 136 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. e o caráter perigoso de um véu. Um crucifixo pode representar um símbolo religioso tão influente quanto um véu. Por outro lado, esses símbolos podem exercer intensa dominação. Outro caso que demonstra intensa incoerência dos critérios utilizados pelo Tribunal se faz presente no caso Dahlab contra Suiza. A Corte julgou que a decisão de determinada escola suíça de proibir que uma de suas professoras usasse o véu islâmico durante suas aulas, que eram ministradas para alunos de primário, era uma medida “necessária em uma sociedade democrática”. No entanto, o próprio Tribunal reconheceu a dificuldade de provar o impacto que o uso do véu por parte de uma professora pode ter sobre as crenças dos alunos. Ressalte-se que não havia nada que provasse que ao longo dos quatro anos em que Dahlab estava exercendo suas tarefas como docente usando o véu, tenha produzido qualquer tipo de influencia. Assim, de acordo com as palavras de Cayón, Dahlab precisaria provar que o uso do véu não provo- cava qualquer tipo de efeito sobre as crenças religiosas dos alunos. Lautsi, por sua vez, teria que provar a exposição do crucifixo em sala de aula exercia influencias nas convicções religiosas dos seus filhos e dos de- mais alunos. Dessa forma, verifica-se uma total discrepância e divergências nos fundamentos utilizados para decidir sobre questões religiosas, levando a crer a existência de uma verdadeira parcialidade por parte das autoridades julgadoras. Cayón, conclui o seu artigo afirmando que por meio do seu trabalho procurou demonstrar as estraté- gias argumentativas utilizadas pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos ao decidir sobre liberdade religio- sa. Segundo ele, o Tribunal utiliza como estratégia argumentativa de forma abusiva a doutrina da “margem de apreciação nacional” que por sua vez só faz gerar uma jurisprudência voltada para a proteção das religiões majoritárias e uma atuação estatal que não corresponde aos ideais de neutralidade e imparcialidade, preju- dicando o pluralismo. CONCLUSÃO Enfim, tanto o professor Winfried Brugger quanto José Ignacio Solar Cayón procuram enfatizar a te- mática das relações entre Igreja e Estado. A Corte Constitucional da Itália se pronunciou por diversas vezes que a Constituição impõe o princípio da separação entre Estado e Igreja. Contudo, a adoção do princípio da separação não significa dizer que o Estado é indiferente às religiões, pois tem o dever de garantir a liberdade religiosa diante da existência de um pluralismo cultural, permitindo nesse liame que as crenças, culturas e tradições coexistam sem qualquer discriminação. Entretanto, na prática se percebe que os fundamentos utilizados pela Suprema Corte para assegurar a liberdade religiosa em seu sentido amplo, muitas vezes termina por gerar violações desse direito, em espe- cial naqueles indivíduos, cujas convicções religiosas estão em menor número. REFERÊNCIAS CAYÓN, José Ignacio Solar. Lautsi contra Italia: sobre la libertad religiosa y los deberes de neu- tralidad e imparcialidad del estado. Cuadernos Electrónicos de Filosofía del Derecho. Universidad de Cantabria, 2011. BRUGGER, Winfried. Da hostilidade passando pelo reconhecimento até a identificação – modelos de estado e igreja e sua relação com a liberdade religiosa. Disponível em http://www.dfj.inf.br/Arquivos/ PDF_Livre/10_Dout_Estrangeira_1.pdf
  • 137. 137 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. EMMERICK, Rulian. As relações Igreja/Estado no Direito Constitucional Brasileiro. Um esboço para pensar o lugar das religiões no espaço público na contemporaneidade. Disponível em http:// www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/SexualidadSaludySociedad/article/view/383/823. MORAIS, Márcio Eduardo Pedrosa. RELIGIÃO E DIREITOS FUNDAMENTAIS: O PRINCÍPIO DA LIBER- DADE RELIGIOSA NO ESTADO CONSTITUCIONAL DEMOCRÁTICO BRASILEIRO. Revista Brasilei- ra de Direito Constitucional–RBDC n, v. 18, p. 225, 2011. Disponível em: http://www.esdc.com.br/RBDC/ RBDC-18/RBDC-18-225-Artigo_Marcio_Eduardo_Pedrosa_Morais_%28Religiao_e_Direitos_Fundamentais_o_Principio_da_Li- berdade_Religiosa%29.pdf http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/viewFile/1718/1364
  • 138. 138 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL AO OLIGOPÓLIO MIDIÁTICO E O DIREITO À COMUNICAÇÃO: A NECESSIDADE DA SUPERAÇÃO DO DOMÍNIO ECONÔMICO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO EM MASSA PARA SUA REGULAÇÃO DEMOCRÁTICA Camila Freire Monteiro de Araújo Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Izídia Carolina Rodrigues Monteiro Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Nara Fonseca de Santa Cruz Oliveira Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Direito Público, Graduada em Direito na AESO/PE. narasantacruz@hotmail.com. SUMÁRIO: Introdução; 1. Esfera Pública, Democracia e Direito à Comunicação; 2. Os limites da con- cepção burguesa do direito à liberdade de expressão; 3. Espaço midiático: concentração, privatização e segmentação; 4. Liberdade de imprensa x direito à comunicação; 5. O Direito à comunicação na América Latina; 5.1. O caso da Argentina; 5.2. Lei de meios; 6. Sistema Público de Comunicação; Conclusão; Referências. INTRODUÇÃO Embora a redemocratização da sociedade brasileira tenha ocorrido há mais de duas décadas, as re- gras que regulamentam a radiodifusão constituída no país pela rádio e televisão abertas permanecem, ainda hoje, praticamente inalteradas, e a patente concentração dos meios de comunicação nas mãos de cinco famílias (LOPES, 2011) talvez seja um dos exemplos mais explícitos da contradição da democratização no Brasil. O oligopólio constituído durante o regime ditatorial militar permanece; como avanços no campo da comunicação social, houve alguns, tímidos, como a criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) pelo governo federal em 2007, bem como a realização, em dezembro de 2009, da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Para o professor Murilo César Ramos (2000), o desenvolvimento do sistema de comunicação brasi- leiro foi caracterizado por compadrio, patronagem, clientelismo e patrimonialismo. Associados a uma cultura política e social arcaica, esses elementos desenvolveram-se pelo Brasil e sofisticaram-se por meio da rádio e da televisão, servindo como instrumentos de reforço de dominação e manutenção das injustiças sociais e contribuindo, sobretudo ideologicamente, para a manutenção da hegemonia do grupo econômico-político- -militar que estava governando o país. Em razão de ocupar lugar central no processo de construção da hegemonia, desde a segunda me- tade da década de 1960 (LOPES, 2011, p. 2), a televisão precisa ser considerada como um dos elementos fundamentais para pensar a democratização, tanto da comunicação quanto da própria sociedade brasileira. Partindo-se do reconhecimento de que este meio de comunicação implica em um estratégico instrumento
  • 139. 139 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. REPENSANDO A AUTOTUTELA ADMINISTRATIVA: A (IM)POSSIBILIDADE DE INCIDÊNCIA DO “ABATE-TETO” SOBRE REMUNERAÇÃO, SUBSÍDIO OU PROVENTO DA APOSENTADORIA DE AGENTE PÚBLICO CUMULADOS COM BENEFÍCIO DE PENSÃO POR MORTE DO CÔNJUGE/COMPANHEIRO SERVIDOR DO ESTADO Carla Cristiane Ramos de Macêdo Bacharela em Direito pela Faculdade ASCES, participante do programa de Iniciação Cientifica da Faculdade ASCES (INICIA), e integrante do Projeto de pesquisa Cidadania e Segurança Pública na Sociedade do/de Risco. E-mail: carlamacedo4@gmail.com Roberta Cruz da Silva Bacharela e Mestre em Direito, pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Professora de Direito Administrativo e de Prática Constitucional-Administrativa da Faculdade ASCES; da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), do Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ) e das pós-graduações da Faculdade ASCES; da ESMATRA/PE e do Complexo de Ensino Renato Saraiva (CERS-Recife). Advogada. SUMÁRIO: Introdução; 1. Acumulação de remuneração, subsídio ou aposentadoria com pensão por morte como direito, o princípio da autotutela do estado e a obrigação do respeito ao devido processo legal; 2. Enriquecimento sem causa por parte do estado em relação às contribuições previdenciárias na aplicação desarrazoada do “abate-teto”; 3. O entendimento da jurisprudência quanto á aplicação do “abate-teto”; Conclusão; Referências. INTRODUÇÃO O presente trabalho objetiva fundamentado nos conceitos e entendimentos jurisprudenciais atuais, destacar e demonstrar determinados aspectos do que se entente por devido processo legal, por enriqueci- mento sem causa por parte do Estado e como se dá a aplicação do “abate-teto”, com ênfase em explicar que a acumulação de remuneração, subsídio ou proventos de agente público com pensão por morte de cônjuge/ companheiro também agente público é possível, pois os valores vem de dois instituidores diferentes, e que é preciso repensar a autotutela administrativa. Por meio dos métodos hipotético–dedutivo, histórico e comparativo será feita a análise dos efeitos no âmbito da Administração e do Judiciário, os princípios constitucionais violados e a recepção deste fenôme- no jurídico. Também será feita uma vasta explanação do entendimento jurisprudencial, por intermédio da exposição de súmulas, acórdãos e decisões singulares, pareceres da Controladoria Geral da União (CGU), da Advocacia Geral da União (AGU), do Tribunal de Contas da União (TCU) e doutrinário sobre os temas abordados. Tal tema foi escolhido pela total relevância econômica, para a Administração Pública quanto para os dependentes do servidor instituidor; social, já que esta pratica pode ou não ferir direitos constitucio- nalmente garantidos, e jurídica, vez há uma disparidade entre o entendimento de todas as instâncias judi- ciárias e da Administração sobre o assunto, visto que, há diversos julgados, das mais variadas linhas sobre a constitucionalidade ou não da aplicação imediata e sem prévio aviso ao recebedor dos valores, do “abate-te- to”.
  • 140. 140 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Neste contexto, o trabalho, desenvolvido como projeto de Iniciação Cientifica da Faculdade ASCES (INICIA) com foco nas áreas de direito administrativo e constitucional, teve como objeto o estudo sobre a aplicação ou não do abate-teto nestes casos específicos. 1. ACUMULAÇÃO DE REMUNERAÇÃO, SUBSÍDIO OU APOSENTADORIA COM PENSÃO POR MORTE COMO DIREITO, O PRINCÍPIO DA AUTOTUTELA DO ESTADO E A OBRIGAÇÃO DO RESPEITO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL O direito à aposentadoria constitui direito fundamental do cidadão, ligado à noção de dignidade da pessoa humana. A Ministra Carmem Lúcia Antunes Rocha esclarece que o ato de aposentadoria, em verdade, não é uma concessão do Estado, mas um direito que é assegurado ao agente público, formalizado por meio de um processo de reconhecimento de sua aquisição pelo interessado. Sob esse prisma, a aposentadoria visa a ga- rantir os recursos financeiros indispensáveis ao beneficiário, de natureza alimentar, quando este já não tenha condições de obtê-los por conta própria. (ROCHA, 2005. p. 413.) Não se trata, contudo, de nenhum privilégio, favor ou condescendência do Estado, mas sim de um direito fundamental do servidor-trabalhador garantido pela Carta Magna como uma das formas de se assegu- rar a dignidade da pessoa humana. (BITTENCOURT, 2014.)       Desta feita, a concessão da aposentadoria constitui uma prerrogativa constitucional do servidor for- malizada por intermédio de um ato administrativo emanado pelo Estado, em consequência do preenchi- mento dos requisitos legais não havendo discricionariedade neste ato. Porém, mesmo sendo um direito do recebedor, a Administração Pública tem aplicado o “abate-teto” aos casos de acumulação de remuneração, subsídio ou proventos de um servido com pensão por morte deixada por outro servidor sem a devida análise do caso, sem possibilitar sequer a ciência anterior do beneficiário sobre o fato até o momento que recebe o valor a menor. Muitas vezes com base no parecer do Ministro Benjamim Zymler, que será visto adiante, e não foi aca- tado pela Corte, a Administração Pública aplica o “abate-teto” na soma de dois valores recebidos pela mesma pessoa, cônjuge/companheiro, mas proveniente de contribuintes distintos e com fatos geradores diferentes. É justamente diante deste acumulo de uma pensão por morte com alguma outra renda própria do servidor beneficiário, que a Administração usa a autotutela. Como se pode observar a autotutela estatal é um princípio administrativo que nesta aplicação em concreto fere a segurança jurídica do beneficiário, que já tinha sua família, incluindo o de cujus, em uma situação estabilizada. A Administração deve garantir o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa (Constituição Federal de 1988, artigo 5º, LIV e LV), visando este fim, tem-se os recursos administrativos são meios formais, previstos em diversas leis, de controle administrativo, por meio dos quais o interessado inconformado postula, junto a órgãos superiores da Administração, a revisão de determinado ato administrativo de órgãos inferiores, lesivos ou não a direito próprio, visando à reforma de determinada conduta, por ilegalidade, inoportunidade ou inconveniência. O recurso tramita pela via administrativa, sem ingerência da função jurisdicional. Há garantia do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa. (MEDEIROS, 2014)  Desse modo, fica evidente que não obstante exista o poder de autotutela ele não pode se sobrepor aos interesses de terceiros, sem que a esses seja garantida a possibilidade de manifestação, aí entendida a ampla defesa e o contraditório. (QUEIROS, 2014) Não se pode admitir que a Administração Pública tome medidas unilaterais que afetem direitos de terceiros sem que o faça mediante o devido processo legal, por meio do qual se oportuniza a manifestação prévia do interessado, fazendo valer os princípios constitucionalmente fixados. (QUEIROS, 2014)
  • 141. 141 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Desse modo, não se fala em devido processo legal apenas em situações que existam acusados, ou que se vise a aplicação de uma pena, mas sempre que um ato possa atingir direitos de terceiros, garantindo a esses a possibilidade de manifestação prévia. No uso deste poder de autotutela a aplicação do “abate-teto” está sendo feita de maneira automática e sem ao menos haver a comunicação aos dependentes, quiçá a ampla defesa, tudo com base no teto-remu- neratório. A doutrina majoritária defende que o dispositivo que abarca o “abate-teto” (artigo 37. XI, CF/88) é flagrantemente inconstitucional, porque fere o direito adquirido à irredutibilidade de vencimentos (artigo 37, XV, CF/88). Tal dispositivo feriu uma cláusula pétrea. O que poderá ser feito pela Administração é manter a remuneração irreajustável até que chegue no limite remuneratório constitucional. (QUEIROS, 2014) Feita as devidas considerações sobre como está se dando o processo para se aplicar o “abate-teto” na Administração e como deveria ser corretamente feito, tratar-se-á agora sobre o entendimento jurisprudên- cias de tal desconto. 2. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA POR PARTE DO ESTADO EM RELAÇÃO ÀS CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS NA APLICAÇÃO DESARRAZOADA DO “ABATE-TETO” Uma das situações que tem gerado controvérsia no que tange à aplicação do limite remuneratório de que trata o inciso XI do art. 37 da CF/ 88 consiste na acumulação de pensão por morte com outras verbas sujeitas ao referido limite, como a remuneração decorrente do exercício de cargo, função ou emprego público e os proventos de aposentadoria. Pelo que se observa do referido comando constitucional, estão incluídas no chamado teto remunera- tório as seguintes verbas: a remuneração e/ou subsídio ou quaisquer outras verbas remuneratórias devidas aos agentes públicos, os proventos de aposentadoria e as pensões, percebidos cumulativamente ou não. Porém, no caso da pensão por morte, tendo em vista que o instituidor é pessoa diversa do benefici- ário, entende-se que esse benefício não deveria ser cumulado com verbas remuneratórias ou proventos de aposentadoria, para efeito de incidência do chamado “abate-teto” visto que tal verba, em sua origem, tanto como remuneração e/ou subsídio quanto como aposentadoria do instituidor, já sofreu em sua base de cálculo a incidência do “abate-teto”. Por meio do Acórdão nº 2079/2005 – Plenário do Tribunal de Contas da União, por maioria, concluiu que o servidor que recebe simultaneamente remuneração ou proventos de aposentadoria e pensão por morte instituída por outro servidor público, não se submete ao teto, embora cada verba, individualmente, se subme- ta à limitação, como dito no parágrafo acima, prevista no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal. Diante da divergência quanto à aplicação do teto remuneratório à soma de pensão com eventuais verbas remuneratórias ou proventos de aposentadoria percebidos cumulativamente pelo beneficiário é im- prescindível a lição de Couto e Silva: A Administração Pública, quando lhe cabe esse direito [à invalidação] relati- vamente aos seus atos administrativos, não tem qualquer pretensão quanto ao destinatário daqueles atos. Este, o destinatário, entretanto, fica meramen- te sujeito ou exposto a que a Administração Pública postule a invalidação perante o Poder Judiciário ou que ela própria realize a anulação, no exercício da autotutela administrativa. (COUTO; SILVA, 2004. pp. 7-59.) Neste momento faz-se necessário analisar a jurisprudência sobre o assunto.
  • 142. 142 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 3. O ENTENDIMENTO DA JURISPRUDÊNCIA QUANTO Á APLICAÇÃO DO “ABATE-TETO” Há decisões do Tribunal de Contas da União que protegem o direto do beneficiário a receber o que lhe é de direito, como por exemplo, a resposta ao pedido formulado em requerimento administrativo para a Secretaria de Recursos Humanos/MP por uma servidora aposentada no sentido de que não seja aplicado o denominado abate-teto sobre o somatório dos seus proventos de aposentadoria com a pensão por morte dei- xada por seu esposo, citando em seu favor precedente do Tribunal de Contas da União. (BRASIL,TCU, 2005) A resposta para sua manifestação foi no sentido de que: O abate-teto deverá incidir sobre o montante resultante da acumulação de proventos de aposentadoria com remuneração de cargo comissionado, mas que eventual pensão recebida pela mesma pessoa deveria ser considerada separadamente para efeito de teto salarial. (AGU, 2007, grifo nosso) Para fundamentar seu entendimento, a Secretaria de Recursos Humanos/MP citou uma decisão ad- ministrativa do Conselho Nacional de Justiça, no artigo 6º da resolução nº 13, de 21 de março de 2006, que dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional e do subsídio mensal dos membros da magis- tratura, segundo a qual o teto remuneratório não deveria incidir sobre a soma da remuneração do servidor com pensão por morte, tomando por base o Acórdão nº 2079/2005 – Plenário, do TCU que firmou entendi- mento de que o servidor que recebe simultaneamente remuneração ou proventos de aposentadoria e pensão por morte instituída por outro servidor público não se submete ao teto, embora cada verba, individualmente, se submeta à limitação prevista no art. 37, XI, da Constituição Federal. (BRASIL, CNJ, 2006) Resolução nº 13/2006 do CNJ. Art. 6º Para efeito de percepção cumu- lativa de subsídios, remuneração ou proventos, juntamente com pensão decorrente de falecimento de cônjuge ou companheira(o), observar-se-á o limite fixado na Constituição Federal como teto remunera- tório, hipótese em que deverão ser considerados individualmente. (grifo nosso) Porém diferentemente do entendimento do TCU e da SRH/MP o Advogado-Geral da União entendeu que deve incidir o “abate-teto” nestes casos: Conforme exposto pelo Ministro Benjamim Zymler, em seu Voto Revisor, as limitações do art. 37, XI, da Constituição são destinadas ao recebedor, sem qualquer ressalva à origem dos benefícios que vier a acumular. Neste ponto, cabe transcrever o seguinte trecho do mencionado Voto, às fls. 18 dos autos: “As disposições do art. 37 sobre limite de remuneração são des- tinadas ao recebedor (aquele que percebe, na forma do texto constitucional) de remuneração e ‘benefícios’, inclusive considerados de forma cumulativa. Creio que se o objetivo da norma fosse restringir a aplicação do teto consti- tucional em razão da origem do benefício – ou seja, conforme o instituidor -, a redação conferida deveria ser outra. Se houvesse um limite específico para pensões, que não se comunicasse com os demais tipos de renda oriundas do Tesouro, essa circunstância deveria ter sido expressamente prevista, pois não pode ser extraída da redação aprovada”. (Voto prolatado por ocasião do julgamento do qual resultou o Acórdão nº 2079/2005 – Plenário, do TCU.) Ante o exposto, proponho que se responda à consulta em tela no sentido de que o teto constitucional incide sobre o montante resultante da acumulação de benefício de pensão com remuneração de cargo efetivo ou em comissão, e sobre o montante resultante da acumulação do benefício de pensão com proventos da inatividade”. [...] (BRASIL, AGU, 2005)
  • 143. 143 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Neste ponto o Advogado-Geral da União concorda com o Ministro Benjamim Zymler, que o texto do artigo 37 da CF/ 88 deveria ser diferente para se garantir a não incidência do “abate-teto”. [...] Acerca do rigor do art. 37, XI, da CF/88, assim afirma Celso Antônio Bandeira de Mello: “O rigor quanto à determinação do teto, como se vê, é bastante grande, pois sua superação nem mesmo é admitida quando resultante do acúmulo de car- gos constitucionalmente permitido. Aliás, no que concerne a isto, a vedação está reiterada no inciso XVI, última parte, do mesmo art. 37, assim como, no que atine a proventos ou proventos cumulados com vencimentos ou subsídio, no § 11 do art. 40”. (MELLO, 2006. p. 260.) [...] Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Macêdo tratam do tema em seu livro “Nova previdência social do servidor público” e admitem expressa- mente a incidência do teto sobre o somatório de pensão com aposentadoria, quando assim afirmam: “Caso o servidor perceba pensão da União e aposentadoria do Poder Exe- cutivo do Estado-membro, por exemplo, deverá ser respeitado, no tocante à parcela paga pelo Estado-membro, o teto estadual. Quanto ao valor pago pela União, o teto será o valor do subsídio de Ministro do Supremo. A soma das duas parcelas não poderá exceder este último”. (DIAS; MACÊDO, 2006. p. 155.) [...] Os autores Celso Antônio Bandeira de Mello, Eduardo Rocha Dias e José Leandro Monteiro de Macê- do reafirmam a opinião de que a soma dos valores percebidos devem se limitar ao teto constitucional e caso o ultrapassem deve sofrer a incidência do “abate-teto”. [...] Por fim, considerando que o presente parecer contrasta com o entendimento majoritário do Tribunal de Contas da União, sedimentado pelo Acórdão nº 2079/2005 – Plenário, entendemos pertinente sugerir que a Advocacia-Geral da União emita Parecer sobre a questão, a fim de que os órgãos e entidades da Administração Federal passem a seguir o posicionamento que vier a ser adotado pela AGU, nos termos do art. 4º, X, da Lei Complementar nº 73/93, ipsis litteris: Art. 4º São atribuições do Advogado-Geral da União: [...] X - fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e demais atos normativos, a ser uniformemente seguida pelos órgãos e entidades da Admi- nistração Federal; Ante o exposto, somos pela aplicação do teto salarial fixado no art. 37, XI, da Constituição Federal à soma de pensão por morte com proventos de aposen- tadoria percebidos pelo mesmo beneficiário, sugerindo o encaminhamento dos autos ao Gabinete do Advogado-Geral da União para que seja fixado en- tendimento sobre a questão, nos termos do art. 4º, X, da LC nº 73/93, uma vez que o Tribunal de Contas da União adotou posição contrária à defendida no presente Parecer. (BRASIL, AGU, 2005) É justamente com base neste parecer que a Administração Pública vem aplicando o “abate-teto” indiscriminadamente. Como será mostrado adiante, assim como foi afirmado no próprio parecer do Advogado-Geral da União, o entendimento majoritário não é este que ela adotou e sim um totalmente diverso.
  • 144. 144 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. O Acordão nº 2079/2005 Plenário, do TCU é um marco neste entendimento, da não aplicação do “abate-teto” sobre a acumulação de remuneração, subsídio ou aposentadoria com pensão por morte, pois mesmo com divergências este foi o entendimento majoritário, como se verá a seguir. O Ministério Público, solicitado a se manifestar nos autos deste Acordão 2079/2005, manifesta-se conforme a seguir transcrito, por meio do parecer do Procurador Marinus Eduardo de Vries Marsico: A consulta, à primeira vista, reveste-se de singeleza. Entretanto, as nuances envolvidas indicam necessário cuidado e atenção para que a interpretação dos dispositivos se dê conforme a Constituição. A Constituição de 1988 buscou estabelecer um limite máximo de remunera- ção para o serviço público. Em seu texto original, a Constituição refletia um limite inflexível que era robustecido pela dicção do art. 17 do ADCT, que re- cusava a invocação de direito adquirido ou a percepção de excesso a qualquer título. O que parecia ser de simples aplicação, no entanto, logo foi modificado por decisões do Supremo Tribunal Federal que entendeu existirem variadas exceções à expressão ‘a qualquer título’. Assim, na esteira de inúmeras decisões judiciais, foram se ampliando as ex- ceções na legislação até que, em 1994, a Lei nº 8.852/94 já contemplava a previsão de dezessete exclusões. O estabelecimento de limites remuneratórios retorna com a edição da EC nº19/98, fixando-se limites máximos intransponíveis ‘a qualquer título’. Pre- tensão já contornada anteriormente e que, na prática, voltaria a ser inócua ante a não publicação de lei reguladora de iniciativa conjunta do Presidente da República, do Presidente do Supremo Tribunal Federal e dos Presidentes da Câmara e do Senado Federal para definição do valor do teto. (BRASIL, TCU, 2005) A Emenda Constitucional 41/2003 trouxe as novas regras e tentou esclarecer as dúvidas existentes sobre os limites aos tetos remuneratórios dos servidores públicos. Como será visto adiante, serão analisados julgados que destoam do entendimento da AGU, do Minis- tro Benjamim Zymler e do Procurador Marinus Eduardo de Vries Marsico, para fundamentar a possibilidade de acumulação sem a incidência do “abate-teto”. Este embargo foi apresentado com a finalidade de contestar de quem é a competência para fazer o desconto do “abate-teto” e esclarecer outras dúvidas. [...] 16.Afirma (o embargante) que o CNJ, em 2007, amadurecendo o enten- dimento sobre o tema, editou a Resolução nº 42 admitindo a incidência isolada do teto no caso de percepção cumulativa de subsídios, re- muneração ou proventos, com pensão. 18.Acrescenta que, ainda que prosperasse tese diversa àquela por ele defendida, a administração estaria diante de dificuldades operacionais para controlar e glosar parte da remune- ração daqueles que recebem por mais de uma fonte. A aplicação do dispositi- vo constitucional depende de definições normativas inexistentes que venham orientar o procedimento do administrador em face de algumas questões, tais como: de quem seria a responsabilidade pelo corte de valores que ultrapassem o teto? da fonte responsável pelo pagamento de maior valor, do órgão com vínculo mais recente ou seria dada a opção ao agente?; no caso de vínculos com órgãos públicos de diferentes esferas de governo, que teto aplicar? que esfera efetuaria o desconto do valor excedente? Deste modo, o administrador, para dirimir estas dúvidas, depende de definições mediante lei. 29. Ele se baseia nas Resoluções nºs 13 e 14/2006 do Conselho Nacional de Justiça e na Resolução nº 10/2006 do Conselho Nacio- nal do Ministério Público, que consideram individualmente, para a
  • 145. 145 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. incidência do teto remuneratório constitucional, as remunerações dos membros da Magistratura e do Ministério Público e dos servi- dores do judiciário decorrentes do exercício do magistério e da fun- ção eleitoral, além da pensão decorrente de falecimento de cônjuge ou companheiro. (BRASIL, TCU, 2009. Grifo nosso) Além do já exposto há resoluções do Conselho Nacional de Justiça versando sobre o tema. A Reso- lução nº 13/2006 do CNJ que dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional e do subsídio mensal dos membros da magistratura. (BRASIL, CNJ, 2006.) Há, também, a Resolução nº 14/2006 do CNJ que dispõe sobre a aplicação do teto remuneratório constitucional para os servidores do Poder Judiciário e para a magistratura dos Estados que não adotam o subsídio. (BRASIL, CNJ, 2006.) Por sua vez, a Resolução nº 42, de 11 de setembro de 2007, do Conselho Nacional de Justiça, afirma que o “abate-teto” deve ser aplicado as parcelas de cumulação de subsídio, remuneração ou proventos soma- dos a pensão por morte consideradas individualmente. (BRASIL, CNJ, 2006.) Tem-se, também, a Resolução nº 10/2006 do CNMP que dispõe sobre a aplicação do teto remune- ratório constitucional para os servidores do Ministério Público da União e para os servidores e membros dos Ministérios Públicos dos Estados que não adotam o subsídio. (BRASIL, CNMP,2006) Conforme se pode observar destas resoluções, os Conselhos excepcionaram situações muito especí- ficas para a não-incidência do teto, fazendo uma interpretação sistêmica da Constituição que, por um lado instituiu o teto e, por outro, possibilitou o exercício do magistério e, ainda, determinou que os órgãos da justi- ça eleitoral fossem compostos por membros de outros órgãos do judiciário, então estas pessoas devem receber pelo seu trabalho. Já quanto à norma que dispõe que a pensão decorrente de falecimento de cônjuge deva ser considerada individualmente para observação do teto, acredita-se que a exceção se dá porque o fato gerador ocorreu por pessoa distinta daquela que recebe o benefício. O Agravo de Instrumento 25883 demostra o entendimento do Tribunal Regional Federal da Terceira Região, que concede a antecipação de tutela para que pare de incidir o “abate-teto” no somatório total da acumulação da pensão por morte, relativa ao seu marido, da aposentadoria relativa a cargo público ante- riormente ocupado pela requerente e remuneração pela atividade que atualmente desempenha. (BRASIL, TRF-3, 2012) O Tribunal Regional Federal da Primeira Região demonstra na Apelação Cível 4939, não só, o enten- dimento que o “abate-teto” deve incidir de maneira individual em cada benefício, como ainda estabelece a devolução dos valores já descontados indevidamente, corrigidos monetariamente. (BRASIL, TRF-1, 2010) A Apelação Cível 424834 cível julgada pelo Tribunal Regional Federal da Quinta Região coaduna com o entendimento de que as verbas devem ser consideradas isoladamente, e não cumulativamente, para efeitos de aplicação do “abate-teto”. (BRASIL, TRF-5, 2004) Como já abordado anteriormente, pode-se perceber no relato dos fatos a aplicação unilateral, por parte da Administração Pública, do “abate-teto”, sem possibilidade de ampla defesa ou de contraditório por parte do beneficiário. Também o Tribunal de Justiça de Pernambuco no Agravo de Instrumento nº: 0294.343-7 entende que o “abate-teto” não deve ser aplicado a soma de proventos com pensão por morte pois, a fonte de custeio e o fato gerador das duas verbas tem caráter distintos arcados individualmente por cada um de seus institui- dores e por isso devem ser individualmente consideradas. [...] É o que deflui dos julgados infratranscritos: “Teto remuneratório - Cumu- lação Irredutibilidade - Aposentadoria e Pensão - O pagamento cumulativo de proventos de aposentadoria e pensão por morte cuja soma dos valores
  • 146. 146 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. ultrapasse o teto remuneratório constitucional não viola o artigo 37, inci- so  XI da Constituição Federal. Espécies remuneratórias que apresentam fundamento jurídico diverso. A limitação de vencimentos não pode desconsiderar os princípios constitucionais básicos e a garantia da irredutibilidade de vencimentos e proventos. Exige, no mínimo, que seja respeitado o valor pago que resta congelado até que o valor do teto o ultrapasse. Recurso adesivo da autora provido e improvidos o recurso da ré e o reexame necessário.”.(TJ-SP - APL: 424305620108260053 SP 0042430-56.2010.8.26.0053, Relator: Lineu Peinado, Data de Jul- gamento: 29/11/2011, 2ª Câmara de Direito Público, Data de Publi- cação: 01/12/2011)”Servidora pública municipal - Cumulação - Aposenta- doria e Pensão - Teto remuneratório - O pagamento cumulativo de proventos de aposentadoria e pensão por morte cuja soma dos valores ultrapasse o teto remuneratório constitucional não viola o artigo 37, inciso XI da Constituição Federal. Espécies remuneratórias que apresentam fundamento jurídico di- verso. Recursos improvidos.”.(TJ-SP - -....: 21736020108260191 SP , Relator: Lineu Peinado, Data de Julgamento: 14/12/2010, 2ª Câ- mara de Direito Público, Data de Publicação: 29/12/2010) “[...]. Pro- ventos de aposentadoria e pensão por morte. Acumulção. Possibilidade. Teto constitucional. Verbas analisadas individualmente. Recurso desprovido. [...]. 2. Na linha da jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral, do Conselho Nacional de Justiça e do Tribunal de Contas da União, a soma dos valores percebidos a título de pensão por morte e de proventos de aposentadoria podem ultrapassar o teto constitucional. [...].”(Ac. de 13.8.2009 no REs- pe nº 28.307, rel. Min. José Delgado.) Ante todo o exposto, DEFIRO A ANTECIPAÇÃO DE TUTELA RECURSAL ALMEJADA, para fins de sus- pender os descontos decorrentes do “excedente de remuneração unificado” incidente sobre o montante global dos proventos de apo- sentadoria e pensão percebidos pela demandante. (PERNAMBUCO, TJPE, 2007. Grifo nosso.) Foi com base nestes julgados, que o Tribunal de Justiça de Pernambuco prolatou a sua decisão da não aplicabilidade do “abate-teto” sobre as somas da pensão por morte com a renda própria do cônjuge sobrevi- vente. O Ministro-Relator Ubiratan Aguiar explana em seu voto o entendimento da Corte. Cada servidor, mediante desconto mensal para a seguridade social, conforme parâmetros fixados em lei, contribui para o fundo, genericamente falando, que, no futuro, arcará com os desembolsos decorrentes do pagamento de sua aposentadoria ou da pensão de seus beneficiários. O fato gerador do direito à pensão é a morte do segurado. Já no caso da remuneração e da aposentado- ria é o exercício do cargo público e o preenchimento dos requisitos definidos para a inatividade. Nesse sentido, a cada servidor são assegurados esses be- nefícios. [...]; (BRASIL,TCU, 2005.) Um dos fundamentos que o Ministro Relator Ubiratan Aguiar, do Tribunal de Contas da União, uti- lizou para lastrear seu voto, foi que o instituidor da pensão já havia pago as contribuições necessárias para garantir o direito de sua esposa a receber o benefício de pensão por morte, quando assim afirmou: [...]Não há, portanto, que se confundir servidores distintos, detentores de direitos distintos, constitucional e legalmente garantidos. A cada um, indi- vidualmente, aplicam-se todos os dispositivos relacionados à acumulação de cargos e ao teto de remuneração, em especial quando se fala daqueles de natureza restritiva. Todavia, não é plausível querer extrapolar essas restrições para o somatório dos direitos individuais. A prevalecer essa tese, estaríamos restringindo direitos que a Constituição Federal não restringiu.
  • 147. 147 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Tomemos como exemplo marido e mulher, ambos servidores públicos, per- cebendo remunerações próximas ao teto. Quando na atividade, a cada um se aplicam as restrições anteriormente mencionadas. As respec- tivas remunerações devem observar o teto constitucional. Só são permiti- das as acumulações de cargos que a Constituição Federal considera legais. Portanto, no exercício do cargo público, ou ao desfrutar da aposentadoria, a cada um será permitido receber a remuneração/provento, ou o somatório de remunerações/proventos de cargos legalmente acumuláveis, até o limite fixado no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal. Qual o fundamento, portanto, para concluir que, na hipótese de um dos dois vir a fale- cer, passando o outro a ser beneficiário de pensão, nos termos da lei, estaria criada uma nova situação em que seriam desconside- rados os fatos geradores da remuneração/provento a que cada um tem direito? Não encontro amparo legal para prosseguir em tal linha de raciocínio, pois não se trata de verificação de renda familiar em face do teto constitucional. Caso contrário, estaríamos admitindo a hipótese absurda de ser mais vantajoso ao beneficiário da pensão exonerar-se de seu cargo. (BRA- SIL, TCU, 2005. Grifo nosso) Este entendimento se coaduna com o artigo 75 da Lei n° 8.213 (BRASIL,1991), que trata justamente deste tema: Art. 75: O valor mensal da pensão por morte será de cem por cento do valor da aposentadoria que o segurado recebia ou daquela a que teria direito se estivesse aposentado por invalidez na data de seu falecimento, observado o disposto no art. 33 desta lei. (grifo nosso) Continua o Ministro Ubiratan Aguiar: [...]Por essas razões, entendo que os dispositivos da Constituição Federal só permitem a compreensão de que todas as restrições referem-se sempre a uma única pessoa. Quer dizer: remuneração, proventos e pensões decorrentes do exercício de cargo ou emprego por uma determinada pessoa estão submetidos ao teto constitucional. Por outro lado, quando se trata do recebimento de pensão, que é a única situação em que pessoa diferente do instituidor receberá seus benefícios, cumulativamente com remuneração ou com proventos de aposentadoria, verifico que a Constituição Fede- ral não contém dispositivo que permita extravasar o entendimento da aplicação do teto, pois se trata de situações de servidores distintos que geraram direitos distintos. E, como se trata de direito, não cabe ao intérprete adotar entendimento restritivo quando a própria lei não o fez. (BRASIL, TCU, 2005.) Pode-se perceber com esta leitura que a Constituição Federal de 1988 não abarcou todas as situação da aplicabilidade do teto constitucional, se propositalmente ou não, não se sabe, mas com as palavras do próprio Ministro Ubiratan Aguiar “como se trata de direito, não cabe ao intérprete adotar entendimento res- tritivo quando a própria lei não o fez”. (...) Entendo que as conclusões acima representam a aplicação de restrição quan- do a Constituição Federal não quis restringir, pois, como busquei demonstrar, todas as menções ao limite constitucional referem-se à remuneração e pro- ventos de uma mesma pessoa, inclusive nos casos de acumulação previstos na Carta Magna. Ao contrário da percepção do ilustre Representante do Mi- nistério Público, verifico que a aplicação do teto às situações objeto da pre- sente Consulta é que representaria mutação constitucional, haja vista que a Carta Magna não contempla dispositivo nesse sentido.
  • 148. 148 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. O beneficiário da pensão não receberá melhor tratamento do que o institui- dor. Da relação estabelecida em vida pelo instituidor com o Estado resulta o direito do beneficiário à pensão, cujo valor submete-se ao teto constitucional. De outra relação, constituída por outro servidor com o Estado, resulta o di- reito à remuneração, quando na atividade, e ao provento de aposentadoria, quando na inatividade. A cada uma das relações constituídas aplica- -se, isoladamente, o teto constitucional. Ademais, esse entendimento não pretende excluir as pensões do teto, até mesmo porque, com a edição da Emenda Constitucional n° 20/98, o provento de pensão passou a constar expressamente do limite estabelecido no art. 37, inciso XI, da Constituição Federal. (BRASIL, TCU, 2005.) A Corte de Contas da União acompanha o voto do Ministro Ubiratan Aguiar com o entendimento que não deve ser despendido melhor tratamento para o recebedor da pensão por morte, como também não deve este ser tratado de forma pior que o instituidor da pensão, haja vista que as verbas recebidas por este já sofriam a limitação do teto constitucional. Devido ao elevado número de julgados, em todas as esferas de jurisdição, com o mesmo entendi- mento da não incidência do “abate-teto” sobre a soma da pensão por morte com remuneração/ subsídio ou proventos, faz-se necessário parar esta análise e demonstrar outros pontos controversos do objeto de estudo. Ao se falar em enriquecimento sem causa tomar-se-á como conceito para este trabalho a definição de enriquecimento sem causa como a situação na qual o Estado aufere vantagem indevida em face do empobre- cimento de outro, sem motivo que o justifique. O conceito será melhor demonstrado, fazendo-se necessária antes uma análise do instituo no âmbito geral. O enriquecimento sem causa tratado pelo artigo 884 da lei 10.406 (BRASIL,2002) que instituiu o novo Código Civil, configura-se pela existência de um enriquecimento obtido as custas de outrem sem uma causa justificativa para o enriquecimento. O enriquecimento sem causa, tem o condão de fazer com que o enriquecido restitua o empobrecido com aquilo que se locupletou somente, sendo o foco central a vantagem auferida, e não o empobrecimento necessariamente, sendo a restituição ao empobrecido uma espécie de reparação indireta, não se falando, portanto em verba indenizatória, perdas e danos e etc. (SOUSA, [2015]) Como pode-se verificar no voto do Ministro relator Cezar Peluso, no recurso extraordinário, o Supe- rior Tribunal Federal condena o enriquecimento sem causa por parte do Estado: Processo: RE-AgR239552.Relator (a): Min. CEZAR PELUSO. Tribunal: STF. Data da Decisão: 31/08/2004. Data da Publicação:17/09/2004. EMENTA: RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Servidor público. Aposenta- doria. Férias e licença-prêmio não gozadas na atividade. Indenização. Direi- to reconhecido. Vedação do enriquecimento sem causa e responsa- bilidade civil do Estado. Fundamentos autônomos infraconstitucionais. Ofensa indireta à Constituição. Agravo regimental não provido. Precedentes. A questão de indenização, na aposentadoria de servidor público, por férias e licença-prêmio não gozadas na atividade, fundada na proibição do enriqueci- mento sem causa da Administração e na responsabilidade civil do Estado, é matéria infraconstitucional, insuscetível de conhecimento em recurso extra- ordinário. (BRASIL, STF, 2004. Grifo nosso) E é com embasamento no enriquecimento sem causa que o Ministro Relator Ubiratan Aguiar, do Tribunal de Contas da União, embasou seu Voto, quando afirmou que o instituidor da pensão já havia pago
  • 149. 149 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. as contribuições necessárias para garantir o direito de sua esposa a receber o benefício de pensão por morte, não podendo o Estado se apropriar destes valores: (...) 20.Concordo com o Ministro Benjamim Zymler quando afirma que o cará- ter contributivo é relativo, tanto é que o servidor que acumula remunera- ções, e proventos, tem sua renda limitada pelo teto. Mas, extrapolar esse en- tendimento é desvirtuar totalmente o caráter contributivo da contribuição. Ademais, em se tratando de regime acima de tudo contributivo, interpretação distinta, mais que proteger os cofres públicos estaria, de fato, ocasionando enriquecimento sem causa da União, uma vez que as contribuições de toda uma vida laboral, cujo objetivo do instituidor foi amparar a si ou a seus dependentes na hora devida, passará a ser apropriada pelo Estado. Defendo, sim, o estado de direito, mas não o abuso do poder estatal. (BRASIL, TCU, 2005. Grifo nosso) Por fim, observa-se que ao aplicar o “abate-teto” sem os devidos procedimentos legais e sem a análise necessária por parte da Administração Pública, além de toda a ofensa, já comentada, que é cometida contra o beneficiário, o Estado ainda enriquece às custas das contribuições pagas pelo servidor falecido. CONCLUSÃO Inicialmente é necessário esclarecer que o entendimento do TCU é que, devido ao caráter con- tributivo dos benefícios, previsto no art. 40, caput, da Constituição Federal de 1988, o teto constitucional aplica-se à soma dos valores percebidos pelos instituidores individualmente, mas não para a soma de valores percebidos de instituidores distintos, portanto não incide o teto constitucional sobre o montante resultante da acumulação de benefício de pensão com remuneração de cargo efetivo ou em comissão, e sobre o montante resultante da acumulação do benefício de pensão com proventos da inatividade, por serem decorrentes de fatos geradores distintos, em face do que dispõem os arts. 37, XI, e 40, § 11, da Constituição Federal de 1998. (BRASIL, TCU, 2005 De acordo com as pesquisas que fundamentaram a elaboração deste trabalho, foi possível destacar a importância do tema em debate, pois, explanando suas características, requisitos e evolução, pode-se enten- der a importância da criação do teto remuneratório e da aplicação legal do “abate-teto”. Sendo este, um assunto bastante polêmico e atual, pois é prática adotada na Administração Pública, com habitualidade, de modo que desnatura o escopo previsto pela lei, ou seja, de ter a retribuição pecuniária paga em razão do trabalho caráter alimentício, e que não deveria sofrer nenhum desconto, principalmente sento este desconto proveniente de um fato gerador diverso do que está sendo adotado como razão para a sua aplicação. Podendo-se afirmar, assim, que a reiteração desta prática, está tomando força, o que vem sendo, inclusive, repudiado por decisões judiciais, que reconhecem o acordo entre o instituidor da pensão por morte e o Estado, já que, em vida, o servidor contribuía com a sua previdência para garantir a sua aposentadoria ou pensão por morte para seu/sua cônjuge/companheiro(a) e a segurança econômica de sua família. O “abate-teto” surgiu e se firmou por meio do estabelecimento do teto remuneratório com a adven- to a Emenda Constitucional 41/2003, que em seu artigo 9º reestabelece o artigo 17 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias. Inquestionável é a sua aplicabilidade ao subsídio/remuneração ou proventos de um servidor público, porém o que se questiona é a sua aplicação sobre à renda de um servidor cumulada na pensão deixada por outro. Ainda que não haja dispositivo legal expresso quanto a esse ponto, restou demonstrado que tanto a doutrina quanto a jurisprudência dominantes reconhecem a invalidade desta postura da Administração Pública. Mas em que pese toda a evolução do ordenamento pátrio no que se refere ao reconhecimento e
  • 150. 150 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. determinação dos efeitos do instituto, faz-se necessária a positivação de normas de como o Estado deve agir neste sentido. O Brasil é um país com dimensões continentais, em que muitos entes administrativos alegam não fazer o devido desconto ou fazer desarrazoadamente por não ter o controle de quantos vínculos o servidor tem e qual os valores percebidos por ele. Ante o exposto, conclui-se que as limitações constitucionais relativas ao teto remuneratório do ser- viço público e o entendimento doutrinário e jurisprudencial não permitem a aplicação automática do “aba- te-teto”, e quando isso é feito, está se desrespeitando o devido processo legal, sem se garantir ampla defesa e contraditório, sobre benefícios com fontes de custeio distintas na cumulação de subsídio/remuneração ou proventos de aposentadoria com pensão por morte em valor que supere o subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Como se tal fato já não fosse o suficiente para a não aplicação automática do “abate-teto”, ainda ocorre o locupletamento dos valores por parte da Administração Pública sobre as contribuições do servidor falecido, visto que este contribuiu para com o Estado com a promessa de no futuro, em caso de idade avan- çada ou de sua morte, receber ele mesmo os proventos ou o seu cônjuge/companheiro(a) vir a receber a sua pensão por morte para garantir a subsistência e o padrão de vida de sua família, visto que com esta finalidade o contribuinte trabalhou a vida inteira. Por conseguinte, não deve ser aplicado o chamado “abate-teto” sobre a soma de pensão por morte com proventos de aposentadoria, subsídio ou remuneração decorrente do exercício de cargos, funções ou empregos públicos, quando percebidos cumulativamente pelo mesmo beneficiário: a autotutela é legal, mas a seara pública deve respeito ao devido processo legal. REFERÊNCIAS BITTENCOURT, Isabela Cristina Pedrosa. Acumulação de duas aposentadorias pelo servidor e a decadência para a administração rever seus atos. Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,acumulacao-de-du- as-aposentadorias-pelo-servidor-e-a-decadencia-para-a-administracao-rever-seus-atos,48771.html#_ftn9. Acesso em 22/11/2014. BRASIL. Lei n° 8.213/1991, de 24 de Julho de 1991. __________. Lei 10.406/2002, DE 10 de Janeiro de 2002. __________. ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO (AGU). Consultoria Jurídica do Ministério Do Planeja- mento, Orçamento e Gestãoparecer/Mp/Conjur/Fnf/Nº 1077 - 3.22 / 2007. __________. CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO (CNMP). Resolução Nº 10, de 19 de junho de 2006. Disponível em: http://www.cnmp.mp.br . Acesso em 01/01/2015. __________. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). RESOLUÇÃO Nº 13, DE 21 DE MARÇO DE 2006. Disponível em: http://www.cnj.jus.br. Acesso em 01/01/2015. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 21 ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 260. __________. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). RESOLUÇÃO Nº 14, DE 21 DE MARÇO DE 2006. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/resolucoespresiden- cia/12129-resolu-no-14-de-21-de-marde-2006. Acesso em 01/01/2015.
  • 151. 151 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. __________. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). RESOLUÇÃO Nº 42, DE 11 DE SETEM- BRO DE 2007. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/323-reso- lucoes/12157-resolu-no-42-de-11-de-setembro-de-2007. Acesso em 06/01/2015. __________. SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL (STF). RE-AgR239552. Ministro Relator: Cezar Peluso __________. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Acordão 2079/2005. Ministro Relator: UBIRA- TAN AGUIAR. Disponível em: https://contas.tcu.gov.br. Acesso em 01/01/2015. __________. TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO (TCU). Acordão 2274-40/09-P. Ministro Relator: Au- gusto Nardes. Disponível em: http://static.congressoemfoco.uol.com.br . Acesso em 01/01/2015.) __________. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL (TRF-1). Apelação Civel 4939 BA 2010.33.00.004939- 6.P.10/05/2013. __________. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL (TRF-3). Agravo de Instrumento 25883 MS 0025883- 07.2012.4.03.0000.P. 20/05/2013. __________. TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL (TRF-5). Apelação Civel 424834 CE 0023211- 97.2004.4.05.8100.P.17/09/2009. __________. PERNAMBUCO. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE PERNAMBUCO (TJPE). Terceira Câmara de Direito Público. Agravo de Instrumento nº: 0294.343-7. Relator: Des. Luiz Carlos de Barros Figueirê- do.P.08/19/2013. COUTO E SILVA, Almiro do. O Princípio da Segurança Jurídica (Proteção à Confiança) no Direito Público Brasi- leiro e o Direito da Administração Público de Anular os seus Próprios Atos: o prazo decadencial do art. 54 da Lei do Processo Administrativo da União (Lei n 9.784/99). Revista Brasileira de Direito Público RBDP, Porto Alegre, vol. 06, n. jul/set, 2004. pp. 7-59.) DIAS, Eduardo Rocha e MACÊDO, José Leandro Monteiro de. Nova previdência social do servidor pú- blico. São Paulo: Método, 2006, p. 155. MEDEIROS, Shirley. Direito Administrativo. Disponível em:http://www.ebah.com.br/content/ABAAAA- 5aMAI/direito-administrativo. Acesso em 22/11/2014. QUEIROS, Vanessa. Limites à Autotutela. Disponível em: http://www.jurisite.com.br/doutrinas/admi- nistrativa/doutadm20.html . Acesso em 23/11/2014. ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio da coisa julgada e o vício de inconstitucionalidade. In: Constituição e segurança jurídica: direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum, 2005. p. 413. SOUSA, Vinícius Eduardo Silva. Enriquecimento sem causa como cláusula geral do Código Ci- vil: Interpretação civil-constitucional e aplicabilidade judicial. Disponível em: http://www.ambi- tojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leituraartigo_id=9921#_ftnref2 . Acesso em 10/01/2015.
  • 152. 152 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate.
  • 153. 153 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. TRANSEXUALIDADE E DIGNIDADE: OS DESAFIOS JURÍDICOS E SOCIAIS PARA A GARANTIA PLENA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS Carlos Henrique Felix Dantas Aluno graduando do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco carloshenriquefd@hotmail.com Raissa Lustosa Coelho Ramos Aluna graduanda do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco. raissa.lustosa@hotmail.com SUMÁRIO: Introdução; 1. A pessoa transexual, o movimento transgênero e a busca por direitos fun- damentais; 2. Contexto da medicina em relação à transexualidade; 3. Do direito à mudança de nome independentemente da cirurgia de transgenitalização; Considerações finais; Referências. INTRODUÇÃO Sem dúvidas, o “fenômeno transexual” indica grandes modificações históricas da percepção cientí- fica, cultural e política da identidade sexual durante a história (CASTEL, 1995). Significa uma quebra de paradigmas históricos que definem homens e mulheres a partir de uma genitália feminina ou masculina, sem meio termos, em que pessoas nascem e se adaptam com sua forma biológica sem se questionar a respeito do que é gênero e o que é papel social. A pessoa transexual é aquela que não se identifica com o seu sexo biológico; em outras palavras, um homem que se sente “preso” no corpo de uma mulher, ou vice-versa. Uma adequação justificada pelo fato de que a genitália e os aspectos fenótipos e genótipos de um indivíduo podem não corresponder à personalidade psíquica com a qual ele se sente representado. Adaptar-se em sociedade quando se é um indivíduo transexual passa pelo constante preconceito e desrespeito que emana do exterior. O direito à identidade, que é inerente a todo ser humano, passa a ser, em parte, negado para aqueles que se identificam como pessoas transexuais. E, considerando que a identidade é o elo que liga o indivíduo e o resto da sociedade (BITTAR, 2015), não poder exercer sua personalidade e identidade em conjunto representa uma agressão significativa. Esse preconceito pode ser percebido de for- mas mais sutis, como o significativo afastamento de algumas pessoas do indivíduo tendo como motivo sua transexualidade, ou mesmo de formas mais enérgicas, como a própria agressão física ou verbal, ou proibir a entrada desse indivíduo em determinados ambientes, dentre outras ações. É neste ponto que o Direito deve atuar como um defensor dos interesses individuais nessas situações de vulnerabilidade. É um princípio da Constituição do Brasil promover o bem de todos, independentemente de condição social, financeira, raça, ou outra condição de vulnerabilidade, o que deve ser estendido à transexualidade (ARAÚJO, 2000). 1. A PESSOA TRANSEXUAL, O MOVIMENTO TRANSGÊNERO E A BUSCA POR DIREITOS FUNDAMENTAIS.
  • 154. 154 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Os quatro pilares da sexualidade humana são: Gênero, orientação sexual, papel sexual e identidade sexual. O gênero é o sexo biológico do indivíduo, a orientação sexual tem a ver com o desejo, com atração, o papel sexual tem a ver com o comportamento – por exemplo, um homem que pinta as unhas está num papel feminino –, o papel sexual não tem nada a ver com a orientação sexual, ou seja, um homem dito como “afeminado” ou uma mulher “masculinizada” não necessariamente são homossexuais e por fim, a identidade sexual é como o indivíduo se percebe, alguns chamam de “sexo cerebral”. Transexual é o indivíduo que nasce biologicamente pertencente a um determinado sexo, mas sen- te-se, percebe-se e tem a vivência psíquica de pertencer ao outro sexo. A identidade de gênero (homem ou mulher) não é congruente com o sexo anatômico, biológico, ou seja, o que define o transexual é que o seu corpo é de um sexo, mas seu cérebro é de outro. São mulheres presas num corpo de homem, ou vice-versa. A sigla LGBTTT tem sido utilizada hoje para designar o grupo de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneras e travestis, respectivamente. O termo transgênero se refere a uma pessoa que se identifica psiquicamente com o gênero oposto ao seu de nascimento, ou que pertença a ambos ou nenhum dos dois sexos, estando incluídas nessa classe travestis, pessoas intersexuais, pessoas transexuais, e mesmo Drag Queens e Drag Kings. É importante frisar que o Movimento Transgênero (Transgender Movement) é distinto do do Movimento LGBTTT, que difere por reivindicações próprias (ÁVILA; GROSSI, 2012). A diferença entre transexuais e transgênero pode ser definida, de maneira básica, porque o Transgênero, apesar de possuir uma identidade de gênero distinta da biológica, como ocorre com os transexuais, não visa enquadrar-se de forma completa em um só gênero, ou deseja transitar entre esses, como é o caso das Drag Queens e Drag Kings, pois acreditam que essa é a melhor forma de expressar sua identidade e dignidade. Infelizmente, atitudes homofóbicas e transfóbicas ainda estão arraigadas na construção de valores sociais pelo mundo todo. E isso se agrava quando o preconceito é o que diferencia aqueles que têm acesso aos seus direitos básicos daqueles que não têm. É função primordial do Direito impossibilitar disparidades no que diz respeito à efetivação de direitos, garantia constitucional de todos. É claro que não se pode englobar e enumerar, em um texto apenas, todas as violações e agressões sofridas pela comunidade LGBTTT, pois estas são, infelizmente, demasiadas. Mas tentaremos, na perspectiva da dignidade e da autonomia de tomar decisões e ter acesso à direitos básicos, exemplificar algumas questões que merecem a atenção do Estado e da população. 2. CONTEXTO DA MEDICINA EM RELAÇÃO À TRANSEXUALIDADE. Atualmente, no Brasil, o grupo de pessoas que corresponde aos transexuais possui a extensão de seus direitos em eminência. No entanto, ainda não se sabe quando alguns direitos fundamentais serão finalmente garantidos, não sendo somente visto na teoria, mas, sim, também na prática. Nesse sentido, pode-se dizer que o respeito a diferença não é algo impossível ou inalcançável, mas, sim, que pode ser trabalhado e proces- sualmente aferido pela parcela da população que a rejeita, através da educação e do discernimento. A partir disso, poderá ser falado que os direitos individuais poderão ser garantidos através da dignidade da pessoa humana, como também através do princípio da autonomia da vontade, isonomia e do direito à liberdade. Muitas pessoas não fazem ideia de como é a perspectiva de mundo das pessoas transgêneras. Viver numa condição incompatível com o gênero que se tem é um fardo extremamente traumático. Isso ocorre porque a sociedade tem necessidade em enquadrar as pessoas em papeis sociais, de acordo com a cultura de cada lugar (EDWARDS, 1991). A não identificação emana não só da composição biológica, do corpo em si, como muitos pensam, mas do próprio status de homem ou mulher. Desde os primeiros anos de vida, a pessoa transgênera tem que conviver com todo o estereótipo do sexo oposto ao qual se identifica. Quando se entra em lojas para produtos infantis, a separação é bem clara: o polo rosa, e o polo azul. Menino, menina. A dife- renciação se faz bem marcante, como se a sociedade impusesse, mesmo que de formas subjetivas, a necessi- dade de separar e distinguir um gênero do outro, desde cedo. Os meninos com carrinhos, e as meninas com suas bonecas. Portanto, o sofrimento da pessoa “trans” começa desde cedo, vivendo num mundo que não é
  • 155. 155 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. seu, cercada por rótulos que a sociedade imprime e com o eterno sentimento de deslocamento psicológico, e isso é um problema sociológico (BENTO, 2012). Por causa do desconforto com o gênero biológico, algumas pessoas podem optar pela intervenção médica para o processo de transformação em seu corpo. Os profissionais da medicina analisam e proferem o diagnóstico clínico às pessoas transexuais de transexualismo, termo que designa transtorno psíquico de gênero. Uma vez dado esse diagnóstico, um psicólogo ou psiquiatra deve estudar o paciente e emitir um parecer que comprove o estado no qual vive o indivíduo, ou seja, diferente em gênero de sua natureza bioló- gica. Depois disso, feitos todos os requisitos e análises, é preciso tratar com um profissional endocrinologista para que se inicie o tratamento hormonal, sempre acompanhado de terapia psicológica. Quando o indivíduo decide realizar a cirurgia de transgenitalização, aceita passar por todas essas etapas de transformação conhe- cidas popularmente por “mudança de sexo”. A cirurgia de redesignação sexual tem finalidade terapêutica de proporcionar ao paciente a identificação com seu corpo biológico e bem-estar. O Conselho Nacional de Me- dicina é responsável pela autorização dos profissionais aptos a realizar o procedimento, e é necessário que os estabelecimentos (hospitais, clínicas, consultórios) possuam uma equipe preparada e multidisciplinar para realizar todas as etapas do processo. Vale ressaltar, ainda, como bem entendem alguns estudiosos da área, que as pessoas transexuais se dividem, também, entre as que são operadas e as que não são operadas. Desse modo, existem pessoas tran- sexuais que tem interesse de fazer a transgenizatalização e as que não tem interesse em fazer a cirurgia de mudança de sexo, devido às consequências possíveis da operação, como mutilação genital ou a possibilidade, se a cirurgia for mal feita, de que o indivíduo que passou pela mudança de sexo não venha mais a sentir prazer. Nesse sentido, parte do grupo de pessoas transexuais sofrem, pelo medo de fazer a cirurgia, hiper- potencializando, assim, um sofrimento comum que se alicerça com o sofrimento que é fruto da sociedade. O campo da Medicina guarda a polêmica de estar constantemente batendo de frente com a ideolo- gia transexual, ao qualificar tal fenômeno como transtorno. Os métodos de análise e diagnóstico funcionam como se, efetivamente, se tratasse como uma doença. E a comunidade “trans” ainda não se decidiu, de for- ma una, o que pensar sobre isso. Há um medo muito grande de que se perca o direito de realizar o tratamento e a cirurgia popularmente tratada como “mudança de sexo”, como cada passo é lento e conquistado através de muita luta, é normal que a população transexual sinta-se intimidada. E no campo jurídico não se há uma resposta sobre o problema. Quando se pleiteia que esse tratamento seja gratuito e custeado pelo Estado, ve- rifica-se um choque no que diz respeito ao tratamento dessa condição como doença. Presencia-se dentro da própria comunidade transexual e transgênera ideias opostas nesse sentido, o que é normal por se tratar de uma questão polêmica. Afinal de contas, nem todo mundo tem condições financeiras para arcar com os cus- tos desse procedimento e, sendo realizado pelo meio de saúde pública, seria necessário o enquadramento do fenômeno como uma doença. E uma das lutas defendidas pelo Movimento Transgênero é justamente contra a medicalização e patologização da transexualidade (ÁVILA; GROSSI, 2012), pois acreditam que o contexto de doença não os representa, ou representa sua verdadeira condição como pessoa humana digna. A transexualidade – tratada como transexualismo na Medicina – foi enquadrada no Manual Diag- nóstico e estatístico das Desordens Mentais desde 1987 (CASTEL, 2001), sendo considerada, portanto, uma doença atribuída para pessoas com “disforia de gênero”, que demonstrassem vontade de transformar o seu sexo corpóreo e gênero social, vontade esta que só seria concedida após o acompanhamento do paciente du- rante dois anos por profissionais da área, tendo o aval clínico para tal. O fenômeno chamado pela Medicina de transexualismo também pode ser encontrado na Classificação Internacional de Doenças como “transtorno de identidade de gênero”. É claro que não é aceitável, no âmbito dos Direitos Fundamentais, que um indivíduo seja enquadrado como “doente” porque é transgênero, sem qualquer debilidade ou incapacidade física ou psicológica. O pro- cesso de precisar de um tratamento, de ter que se submeter à avaliação e às decisões de um profissional para decidir se o indivíduo pode ou não pode submeter-se a uma cirurgia de transgenitalização e ao tratamento hormonal é uma violência gravíssima. Não poder viver adequadamente sua identidade de gênero já é uma violação à dignidade, e passar por todas essas etapas torna-se uma violação ainda maior (BUTLER, 2006).
  • 156. 156 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 3. DO DIREITO À MUDANÇA DE NOME INDEPENDENTEMENTE DA CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO. É fato que qualquer questão relacionada à sexualidade e suas nuances, inadequações, modificações não condizentes com os padrões heteronormativos e cisgêneres, desperta rejeição social. Épocas transcorreram na história da humanidade sem que as diferenças fossem aceitadas ou mesmo ouvidas. Os registros históricos da humanidade trazem a informação de que a sexualidade foi estigmatizada e moldada segundo padrões de comportamento que não dizem respeito a um sentimento unânime – embora majoritário –, deixando dessa maneira classes de pessoas à margem da aceitação social. Desde a Idade Média, os avanços da Ciência costumam aborrecer o conservadorismo e a área jurí- dica, e não só o Clero e a Igreja, como muitos pensam. É fato que, durante muito tempo e talvez até hoje, o ordenamento jurídico tenha tendência a seguir os padrões sociais e os preconceitos populares, as prefe- rências majoritárias, por assim dizer. Hoje, a biologia afirma que a determinação do gênero de uma pessoa não é necessariamente decorrente da formação de uma genitália externa feminina ou masculina, e suas características anatômicas. Embora existam, doutrinariamente, dentro da psicologia e medicina, explicações diferentes para o fenômeno da não identificação psíquica com o corpo biológico – seja causada pelos próprios genes da pessoa, seja uma formação diferenciada do feto justificada na diferença temporal entre o período de formação do cérebro e o período de formação da genitália – o entendimento de que a transexualidade existe é irrefutável. Ainda que a pessoa transexual reúna em si fisicamente todos os atributos do seu sexo biológico, pode sentir-se psiquicamente direcionada com o sexo oposto. É um fato recente a possibilidade de uma pessoa transexual poder alterar seu nome nos registros públicos, direito este que passou muito tempo sendo negado pelo Estado. Fechar os olhos a uma realidade explícita não vai fazê-la desaparecer e a omissão legal conseguirá apenas fomentar ainda mais a discriminação e o preconceito (DIAS, 2011.). O importante é perceber que nem sempre a vontade da maioria deve ser sobreposta a interesses individuais, principalmente se estes estão ligados a direitos fundamentais inerentes à pessoa humana. “Minorias” devem ser respeitadas também, independente de aprovação social. Na lei Lei 6015/73 de Registros Públicos, há a disposição de que qualquer pessoa pode mudar seu prenome (primeiro nome) caso prove que seu “apelido público notório” – a forma como ela é popularmente conhecida – é diferente desde prenome civil. O que não limita, semanticamente, que se interprete de forma inclusiva ao nome social no caso das pessoas transexuais. Tal lacuna possibilita, dessa forma, que é válido o entendimento de que este dispositivo pode ser voltado ao direito da pessoa transexual de substituir seu prenome de nascença pelo seu nome social, que condiz com o gênero com a qual ela se identifica e não a provoca sofrimento ou constrangimento. Infelizmente, como o ordenamento jurídico brasileiro ainda se faz demasiadamente omisso à causa transexual, é necessário conquistar os direitos da população transexual através de analogias e interpretações do texto legal já existente, além de jurisprudências. Sem nenhuma menção expressa no Código Civil ou na Lei de Registros Públicos. Nada mais justo, portanto, que seja permitido à pessoa transexual alterar seu nome para adequar-se ao gênero correto, mesmo sem antes ter efetuado a cirurgia e o tratamento para a mudança física. Não se poderia exigir isso das pessoas, em primeiro lugar, porque se feita completamente de forma privada, esse tipo de procedimento médico pode facilmente ultrapassar a marca de 40 mil reais. Em segundo, caso se opte por pleitear a realização da cirurgia através do serviço médico público, seria necessário entrar numa fila imensa que pode durar anos, ou mesmo décadas para ser realizada. Até porque, para que uma pessoa possa pas- sar por esse tipo de procedimento cirúrgico, precisaria de laudos médicos e psiquiátricos comprovando seu estado de desconexão com o sexo biológico, um procedimento que também requer tempo, como informa a resolução 1955/2010 do Conselho Federal de Medicina.   O processo de mudança de gênero com intervenção cirúrgica, hormonal e terapêutica é uma das opções para que a pessoa transexual se sinta melhor sobre si mesma. Apesar de algumas preferirem per- manecer com o aspecto físico e biológico que já possuem, exigindo apenas a mudança jurídica e social, boa parte da população “trans” tem necessidade dessa intervenção. Entretanto, muitos ainda não fazem ideia a
  • 157. 157 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. quem recorrer quando tomam essa decisão. Todo o procedimento de cirurgias de transgenitalização no Brasil é muito complicado e burocrático. Por esse motivo, muitos transexuais procuraram ajuda médica em outros países, o que é um privilégio para poucas pessoas que integram esse segmento de indivíduos, o que, em face a isso, acarreta uma procura de maneiras ilícitas de transgenitalizações, ora trazendo resultados esperados, ora ocasionando mutilações no corpo ou mesmo morte. Nesse sentido, a ilegalidade carrega um escopo jurídico que precisa ser superado, que seria a facilidade procedimental de mudança e adequamento desse indivíduo em fiel conexão com sua personalidade. Exigir a comprovação de que a pessoa transexual passou por todas essas etapas antes de concedê-la o direito de ter um nome social é ignorar toda a realidade composta por barreiras pela qual essa comunidade é forçada a conviver durante anos, por bem dizer, ás vezes vida inteira. Superado esse obstáculo, felizmente, várias jurisprudências com o objetivo de Ação de retificação de registro público para alterar o nome de nascença da pessoa transexual já estão sendo aplicadas em cartó- rios e tribunais em todo o País, depois de muita luta. Porque se torna cada vez mais claro, com o passar do tempo e das lutas reivindicatórias da classe LGBTTT, a regra que sempre predominou que o sexo é ditado pela genitália – e seria a genitália a responsável por separar um homem de uma mulher – tornou-se um pensamento ultrapassado. O que faz um homem, afinal? O que faz uma mulher? Antes de nascermos, a primeira coisa que todos querem saber é: É um menino, ou uma menina? Parece uma necessidade urgente da sociedade definir o sexo da criança antes mesmo que ela saiba se reconhecer como um indivíduo. E quando nasce uma criança hermafrodita – com a combinação dos dois sexos – imediatamente os médicos e a família sentem-se compelidos a reduzir sua ambiguidade através de uma intervenção cirúrgica, para que seja determinado um sexo apenas (MYERS, 1999). A mensagem que fica é de que nós temos, obriga- toriamente, que ter um sexo designado, nada que fique no meio, nada que misture ambos. Segundo o psi- cólogo norte-americano David Myers: Entre o dia e a noite há o crepúsculo. Mas entre homem e mulher, em termos sociais, não há nada. A sociedade é muito radical em sua necessidade de definir um binarismo de gêneros, e gêneros es- ses determinados exclusivamente por uma genitália. Tal pensamento não condiz mais com a realidade de muitas pessoas, portanto não pode ser representada pelo Direito, que deve ser um instrumento de todos. Essa cultura de papeis sociais predefinidos por gênero (EDWARDS, 1991.) é nociva para aquelas pessoas que não estão dispostas a adaptar-se a todo custo a uma sociedade que não as aceita ou define. O GADvS – Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e a ABGLT – Associação Brasileira de Lés- bicas, Gays, Travestis e Transexuais protocolaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI nº. 4275), movida pela Procuradoria-Geral da República em 2009 pedindo o reconhecimento do direito das pessoas transexuais mudarem seu nome e sexo sem que seja necessário realizar a cirurgia de transgenitalização, mas mediante a apresentação de laudos psiquiátricos comprovando a transexualidade do indivíduo. Paulo Iotti, advogado e constitucionalista e atual diretor-presidente do GADvS, representou o GADvS e ABGLT no processo referido. Sua proposta de levar para o Supremo Tribunal Federal uma visão contemporânea de sexualidade e gênero, conseguiu grande repercussão nacional. O direito de ratificar o nome, adequando-se à condição psíquica do indivíduo está ligado intimamente à identidade pessoal e social da pessoa, sendo indis- pensável para obtenção da sua qualidade de vida e bem-estar. Ademais, pode ser citado como uma vitória para a comunidade transexual o Decreto 49476, de 15/8/2012, que instituiu a Carteira de Nome Social para Travestis e Transexuais no Estado do Rio Grande do Sul. Embora tal decreto apenas vincule um estado, em todo o Brasil esse direito deve ser respeitado, como dita as jurisprudências sobre esse tema. Segundo a avaliação do presidente da ABGLT, Toni Reis, essa é a forma correta de julgar os pedidos. Para visar conforto à população e atender suas necessidades, ao conceder nome adequado, diferente do de nascença, à pessoa transexual, sob a alegação de que essas pessoas são ci- dadãs, que merecem o respeito da mesma forma que outras pessoas. Também vale ser citada a Lei 3/2007, de 15 de março, que regula os requisitos de acesso para alterar o registro do sexo de uma pessoa no cartório, quando esse registro não reflete a sua identidade de gênero. CONSIDERAÇÕES FINAIS
  • 158. 158 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Os avanços na área do Direito da Diversidade têm aumentado não só no Brasil, como no mundo. No entanto, ainda sim é preciso que se faça mais, que se estude mais. As constituições e códigos ainda são muito arcaicos, e não só em relação à comunidade LGBTTT, mas às novas formas de se relacionar das sociedades em geral. A pessoa transexual, bem como a transgênera, precisa ter mais visibilidade dentro da sociedade, pois muitos ainda tratam o tema como um “tabu”. E, quando essas pessoas estão numa posição dentro do Gover- no, a vulnerabilidade se torna evidente pela falta de políticas públicas inclusivas, pela falta de legislação sobre o tema, mas, especialmente, pelo ódio e medo do diferente que ainda assola as sociedades pelo mundo. É necessário que se complemente as leis já existentes com medidas novas que acompanhem as necessidades atuais. É importante que se continue fazendo, dentro dos tribunais, o papel importante de retificação de nome para as pessoas da comunidade “trans”, o que foi uma grande vitória para a Justiça brasileira. A urgên- cia não começou há pouco tempo, é uma questão que vem sendo há muito tempo debatida e requerida pelo povo. É ao povo que o legislador deve servir e atender, afinal de contas. No mais, além de no âmbito jurídico, é necessário que se mude o jeito de pensar das pessoas, e isso é feito com campanhas, atos públicos, ajuda da mídia e de veículos de comunicação em geral, mecanismos públicos, ações direcionadas a reduzir o preconceito também. Nenhum padrão é rompido facilmente, mas, para o bem de uma sociedade bem estabelecida e preparada para acolher a diversidade, faz-se necessário uma construção coletiva de um novo pensar. Ademais, o direito de mudança de nome social, o direito de ser e existir, assim como outros direitos fundamentais, são tidos, por muitos, como novos direitos; mas será que são novos, ou sempre existiram e nunca foram “ouvidos”? Nesse sentido, não são novos direitos porque são novos, são novos direitos porque sempre foram tidos como direitos inexistentes. São novos direitos, portanto, porque historicamente há um fluxo maior de pessoas a impulsionar respaldo jurídico e estatal a respeito da questão da transexualidade. É um direito de ser e existir que deve ser considerado como infungível, fundamental e inalienável. Não há mais como negar a existência e a voz das pessoas transexuais. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo, SP: Saraiva, 2000. ÁVILA, Simone; GROSSI, Miriam Pillar. Transexualidade e Movimento Transgênero na Perspectiva da Diáspora Queer. Universidade Federal de Santa Catarina. Publicado em Cadernos Pagu (38), Janeiro- -Junho de 2012; 441-451. Disponível em:  http://nigs.ufsc.br/publicacoes/artigos-da-equipe/ Acesso em: 7 nov. 2015. BENTO, Berenice. A diferença que faz a diferença: corpo e subjetividade na transexualidade. Rio de Janeiro, 2012. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade – 8° ed. São Paulo: Saraiva, 2015. BUTLER, Judith. Deshacer el gênero. Barcelona: Paidós, 2006. CASTEL, Pierre-Henri. 2001. Algumas Reflexões para estabelecer a cronologia do “fenômeno tran- sexual” (1910-1995). Revista Brasileira. vol. 21, nº 41, p. 77 – 111. Disponível em www.scielo.br/scioelo. Acesso em 20.09.2015. Acesso em 29.10.2015 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Código de ética profissional do psicólogo. Disponível em www. pol.org.br/legislacao/pdf/cod_etica_novo.pdf . Acesso em 28.10.2015.
  • 159. 159 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. DIAS, Maria Berenice. Diversidade Sexual e Direito Homoafetivo. Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2011. EDWARDS, C. P. Behavioral sex diferences in children of diverse cultures: The Case of Nurtu- rance to Infants. In M. Pereira L. Fairbanks (Eds.), Juveniles Comparative Sociology. Oxford: Oxford University Press, 1991. NÁCIO, Marlene; VERDUGUEZ, Elisa del Rosario Ugarte. Experiência em Avaliação Psicológica da Transexualidade no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. In: VIEIRA, Tereza Rodrigues; PAIVA, Luiz Airton Saavedra de. (Org). Identidade Sexual e Transe- xualidade. São Paulo: Roca, 2009, p. 64. MYERS, David G. Social Psychology. The McGraw-Hill Companies, INC, 1999.
  • 160. 160 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA E TOMADA DE DECISÃO APOIADA: DESAFIOS E PROPOSTAS PARA UM EFETIVO ACESSO À JUSTIÇA Carlos Henrique Felix Dantas Aluno graduando do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco. carloshenriquefd@hotmail.com Raissa Lustosa Coelho Ramos Aluna graduanda do curso de direito da Universidade Católica de Pernambuco. raissa. lustosa@hotmail.com SUMÁRIO: Introdução; 1. Interpretação e evolução histórica do início da personalidade jurídica no brasil e no mundo; 1.1. Distinção lógica entre personalidade jurídica e capacidade civil; 2. Personali- dade jurídica da pessoa com deficiência; 3. Tomada de decisão apoiada: desafios e propostas para um efetivo acesso à justiça; 4. O acesso à justiça da pessoa com deficiência como ferramenta efetiva para a busca da garantia dos direitos fundamentais; Considerações finais; Referências. INTRODUÇÃO Ao decorrer da vida do indivíduo que possui algum tipo de deficiência, a interatividade com o coletivo se apresenta de maneira diferenciada; seu espaço no núcleo social, por diversas vezes, é limitado, restando a esse indivíduo a posição de passividade ou impotência atrelada a sua deficiência. Essa lógica, no entanto, nos parece um pouco controversa e insatisfatória. Em plenitude, entende-se, graças ao modelo social, gra- dualmente implantado, que o assistencialismo, caractere principal do modelo médico, precisa ser mitigado e transformado num processo de capacitação, para dar ensejo ao pleno desenvolvimento da capacidade de agir e da capacidade de exercício da pessoa com deficiência, para garantir, então, que esse seja um cidadão em plenitude, capaz de praticar atos na vida civil acompanhados ou não da tomada de decisão apoiada. Nesse sentido, é necessário o debate acerca dos direitos intrínsecos a personalidade das pessoas com deficiência e de que forma eles precisam, em plenitude, ser garantidos tanto na esfera dos interesses privados, como na esfera de interesses coletivos, por conseguinte, salvaguardado na ideia dos direitos fun- damentais. Ademais, o verdadeiro sentido por trás da lógica dos direitos fundamentais e dos direitos da per- sonalidade, são a inexcusábilidade e a inalienabilidade desses direitos ora tidos como individuais, ora tido e visto como coletivos, “são direitos que se relacionam com atributos inerentes à condição da pessoa humana”. (BITTAR, 2015, p. 38). A partir dessa lógica, deve-se ater a noção de respeito à diferença e a plena intenção de garantir os direitos disponíveis de cada indivíduo. Ademais, desde a Convenção da ONU, sobre os direitos da pessoa com deficiência, que existe a clara intenção de garantir direitos fundamentais, fragmentados pela noção de dependência e da ideia de falta de capacidade das pessoas com deficiência em gerir determinados atos em autonomia de suas vidas. Os direitos da personalidade, pois, surgem a partir do nascimento do indivíduo,
  • 161. 161 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. isto é, desde a sua concepção com vida. No entanto, a intolerância e a falta de um olhar humanitário para o outro tornaram de muita importância a ratificação de direitos tidos como óbvios, como o direito à autonomia, direito à reprodução, direito pleno de ser e existir, assim como direito à pratica de determinados atos que não sejam até negociais. Esses direitos, portanto, não novos, sempre existiram, e contemplam a plena noção de direitos da personalidade. Esse artigo, desse modo, procura abordar de que maneira há uma inclinação, a partir do Estatuto da pessoa com deficiência, em reconhecer esses direitos imprescindíveis e inalienáveis. Diante disso, vale ressaltar que o respeito aos direitos da personalidade, de qualquer indivíduo, se iniciam a partir do modo de tratamento que se dá o outro. Logo, é necessário falar a respeito do uso correto de tratamento da pessoa que possua qualquer tipo de deficiência. Entende-se atualmente, por exemplo, que não se é mais correto o uso do termo deficiente, sendo necessário, portanto, o uso do termo pessoa, afrente do termo deficiência. Atualmente, a expressão utilizada é “pessoa com deficiência”. A idéia de “porta”, “conduzir” deixou de ser a mais adequada. A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que ingressou no sistema constitucio- nal brasileiro por força do Decreto-Legislativo n. 186 de 09 de julho de 2008 e do Decreto de Promulgação n. 6949, de 25 de agosto de 2009, utiliza-se da expressão contemporânea, mais adequada. A pessoa (que continua sendo o núcleo central da expressão) tem uma deficiência (e não a porta). Com a aprovação da Convenção, que tem equivalência com a Emenda à Constitui- ção, por força do parágrafo terceiro, do artigo quinto, da Constituição Federal, a terminologia nova revogou a antiga. Assim, apesar de os textos impressos trazerem a expressão “pessoa portadora de deficiência”, a aprovação da Con- venção, com status equivalente a Emenda Constitucional, tratou de alterar o dispositivo constitucional. Assim, a Constituição deveria já estar retificada para “pessoa com deficiência”, nome atual, constante de norma posterior, convencional, de mesmo porte de uma emenda. Sendo assim, a Constituição já foi alterada neste tópico. (ARAÚJO, 2011, p. 16) Percebe-se, portanto, que além de qualquer deficiência que o indivíduo possa ter, há a necessidade de usar o termo “pessoa” como indispensável, afim de garantir o respeito aos direitos da personalidade, mais precisamente, ao direito de identidade, à honra e ao respeito, por exemplo. É imprescindível para garantir a noção de igual, humanamente igual, perante o direito de qualquer ser humano. Desse modo, se é possível perceber que não é mais correto o uso do termo portador de enfermidade ou o uso do termo doente mental. O primeiro é incorreto pelo simples fato de que a pessoa com deficiência não porta a sua deficiência, mas sim vive com ela. Nesse sentido, “portar” traz a ideia de transitoriedade, algo que alguém porta num momento, mas que pode simplesmente deixar de portar, como uma camisa. O segundo, é incorreto pelo simples fato de “deficiente” carregar consigo a noção de algo negativo, de menos, de algo incompleto ou vicioso. 1. INTERPRETAÇÃO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO INÍCIO DA PERSONALIDADE JURÍDICA NO BRASIL E NO MUNDO. Há uma controvérsia entre o pensamento dos autores de diferentes Estados nacionais que delimitam a respeito do começo da personalidade civil do indivíduo. Essa diferente percepção acompanha cronologica- mente uma perspectiva de pensamento que segue em modificação e, em alguns casos, que segue na insistên- cia da manutenção do pensamento, dentro do ensejo do meio jurídico de cada país. Particularmente o Estado brasileiro, que é o foco desse trabalho, se apegou a noções do direito romano – que em tese influenciou de grande maneira boa parte do mundo ocidental – além de outras teorias que em breve serão explanadas. O direito romano parte da perspectiva de que a personalidade jurídica coincidiria com o nascimento, antes do qual não seria possível falar a respeito de sujeito de direito ou objeto do mesmo. Para tal corrente de pensamento, o feto, dentro da mãe, corresponderia a uma parte dela, “portio mulieris vel viscerum”, e não a um ente ou um corpo, como bem explana o autor Caio Pereira (2002). Somado a isso, não significa que o feto
  • 162. 162 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. não teria seus interesses assegurados. Como particularidade, a mesma corrente pontua que mesmo sendo necessário o nascimento para a adesão de direitos, enuncia, também, a regra da antecipação presumida de seu nascimento, “nasciturus pro iam nato habetur quoties de eiues commodis agitu”. Desse modo, farar-se-á uma equiparação do feto ao já nascido, não para considera-lo pessoa, mas com o propósito de assegurar seus interesses novamente. Observando o Código Civil brasileiro de 2002, que trata do surgimento da personalidade civil no seu artigo 2º, percebe-se que o legislador abre espaço para diversas discussões doutrinárias, pois o texto aborda o tema de maneira vaga. Fica entendido a partir do dispositivo que a personalidade civil de uma pessoa só pode começar a partir de seu nascimento com vida, mas, ao mesmo tempo, a lei assegura desde o momento da concepção os direitos do nascituro, o que dá uma certa ideia de confusão. A controvérsia reside justamen- te no fato de o nascituro ter alguns direitos assegurados, e ao mesmo tempo ter o reconhecimento de uma personalidade negado expressamente pelo Código Civil. A questão é que esse tema é extremamente subjetivo e não se pode ainda afirmar uma verdade absoluta sobre ele, e por esse motivo é que existem correntes dou- trinárias distintas. A discussão a respeito das teorias Natalista e Concepcionista são trazidas também pelo Código Civil. A que possui maior relevância, é claro, é a que em abrangência o Código Civil brasileiro ado- tou, entretanto, é de extrema relevância se falar a respeito da outra, já que se fez necessário a discussão. A Natalista se refere a ideia de que a personalidade só seria adquirida a partir do nascimento com vida, de tal forma, o nascituro só seria pessoa em meio extrauterino, gozando antes, apenas, de mera expectativa de direito. Ao contrário dessa conotação, a concepcionista parte do princípio de que o nascituro já é pessoa. Logo, adquire personalidade desde a concep- ção, inclusive no que tange a certos direitos patrimoniais. Ainda os concepcionistas afirmam que, quanto ao direito à herança não há consolidação desse direito, exigindo-se o nascimento (se abortar não haverá transmissão). Dentre ambas teorias abordadas, evidentemente, a ado- tada pelo Código Civil foi a Natalista. Representando essa linha de pensamento, Carlos Roberto Gonçalves define que o nascimento ocorre no momento em que a criança é separada do corpo da mãe, seja através de parto natural ou por meio de intervenção cirúrgica, sendo essencial apenas que se desfaça a uni- dade biológica que vincula os dois corpos – o cordão umbilical – sendo que os dois corpos possuam, depois disso, vida orgânica separada. Outro ponto que carece de ser bem explanado, como bem coloca o autor Salvo Venosa (2003), seria o de que o nascituro é um ser já concebido, isto é, ele se difere daquele que não foi, obviamente, mas que poderá ser sujeito de direito no futuro, dependendo de uma “prole eventual”. Um ponto característico dessa afirmação, seria a noção de direito eventual, que se- ria um direito em mera potencialidade. Logo, no Brasil, entendemos que a concepção do nasci- turo extrapola a concepção da expectativa de direito. Sob o prisma da ideia de direito eventual, pode-se entender que a questão está longe de estar pacífica na doutrina, tanto é que a teoria Concepcionista é de extrema importância, como foi dito anteriormente, por em diversos pontos do sistema brasileiro ser sentida a sua influência, “na medida que o nascituro é tratado como se fosse pessoa” (BEVILÁQUA, 1975, p. 98). A partir do que foi ressaltado, pode-se perceber que a então ideia do começo da personalidade jurídi- ca do indivíduo, começa a partir do nascimento com vida, baseada na ideia da Teoria Natalista e do Direito romano. Mas, para aprofundar-se, o que corresponderia a vida e o nascimento para a concepção do Código Civil brasileiro? Para Caio Pereira (2002), nascimento ocorreria quando o feto é separado do ventre materno, quer seja a partir do parto natural, induzido ou artificial. O mesmo afirma que não há o que cogitar a respeito de gestação, ou indagar se o nascimento ocorreu nos termos ou antecipadamente, seriam questões desnecessá- rias. Para o Direito Civil é suficiente e necessário apenas que se desfaça a unidade biológica, de modo a serem mãe e filho, dois corpos com economia orgânica próprios.
  • 163. 163 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Já a vida se espelharia na ideia do momento em que se opera a primeira troca oxicarbônica com o meio ambiente. De acordo com o autor, viveu a criança que tiver inalado ar atmosférico, mesmo que morra instantes depois; ou seja, depois de ter respirado, viveu: a entrada de ar nos pulmões denota vida, mesmo que não tenha sido cortado o cordão umbilical e as suas provas serão feitas através da visualização do choro, movimentos e mais especificamente, quando houver padecimento, nos processos técnicos de que se utiliza a medicina legal. 1.1 DISTINÇÃO LÓGICA ENTRE PERSONALIDADE JURÍDICA E CAPACIDADE CIVIL A noção de personalidade se atrela a ideia de começo, de início de vida, findo o que já foi con- versado, portanto, e a direitos inerentes a personalidade da pessoa jurídica, sendo essa física ou natural, por exemplo. A personalidade jurídica, por conseguinte, é a aptidão para ser titular de direitos e contrair obriga- ções na órbita jurídica. É importante falar, também, que é o atributo do sujeito de direito. Para o direito o sen- tido de personalidade tem um sentido técnico, é a qualidade do sujeito de direito. A pessoa física e a pessoa natural, portanto, é dotada dessa aptidão genérica. A pessoa jurídica também é dotada desse atributo, dessa personalidade jurídica. Logo, o sujeito de direito é dotado de personalidade jurídica. (GAGLIANO, 2010, p. 124). Diante disso, a ideia de personalidade jurídica carrega consigo a ideia de direitos inerentes a própria constituição do indivíduo, sendo lhe carregado de direitos e obrigações que devem ser cumpridos para melhor permitir o desenvolvimento interpessoal daquele indivíduo sujeito de direitos e obrigações, e é a partir dessa lógica que se encaixa a ideia de capacidade civil. A capacidade civil está atrelada a lógica de possibilidade de exercício de direitos e obrigações. O indivíduo, por exemplo, que obtiver personalidade jurídica, será aquele que em potência poderá praticar atos jurídicos. No entanto, nem todo ato jurídico é possível, existem atos ilícitos que contemplam e viciam a celebrações de negócios jurídicos. Um indivíduo, que, em pleno exercício de sua capacidade civil desejar praticar atos patrimoniais, diz o Código Civil, deverá ser capaz, possuir capa- cidade civil para constituir ato jurídico válido. Mas o que seria ato válido e de que forma ele atrelaria a lógica de possibilidade e eficácia na celebração de um ato jurídico? Um ato possível e que produza eficácia, precisa, primeiramente, existir. É necessário que o indivíduo seja capaz, que possua validade e haja boas intenções e ausência de má-fé. A capacidade, portanto, está atrelada também, a lógica de idoneidade da celebração de qualquer ato jurídico. Em gênese, a ideia de capacidade, antes da lógica da Lei N° 13.146, colocava na figura do curador prerrogativas que, por vezes, alienavam a capacidade de dizer e manifestar vontade do indivíduo que tivesse deficiência. A partir da alteração da nova lei, houve uma tentativa de devolver a autonomia para esse indiví- duo, respaldada, obviamente, ainda de uma assistência, de um acompanhamento, assunto que será tratado adiante. Nesse sentido, a ideia de capacidade é a possibilidade de ditar direito de acordo com a vontade do promitente, do indivíduo dotado de personalidade que deseja praticar, provocar ou se eximir de qualquer possibilidade de direito atinente a sua personalidade. Nesse sentido, a capacidade civil é classificada em capacidade de direito e capacidade de exercício. A capacidade civil de direito, também conhecida como capacidade jurídica, é a aptidão para adquirir e trans- mitir direitos e para a sujeição a deveres jurídicos. Já a capacidade de exercício, é a também conhecida por capacidade de fato, entendida como a capacidade de agir ou a capacidade negocial, isto é, a capacidade de a pessoa também agir com eficácia jurídica, em especial a capacidade de produzir, mediante negócio jurídico, efeitos jurídicos. (LÔBO, 2013, p. 107, p.108). 2. PERSONALIDADE JURÍDICA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA Em verdade, se é possível ratificar que ao longo da história da humanidade houverem inúmeros mo- mentos em que a pessoa com deficiência foi tratada de maneira desumana, sendo, inapropriadamente, colo- cada na condição de animal, na condição de menos, na condição de pouca importância, como em sociedades da Idade Antiga, por exemplo. Nesse período, havia a predominância do antropocentrismo, que é um olhar
  • 164. 164 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. do mundo voltado para o homem, também marcado pelo equilíbrio e a perfeição. A partir dessas caracterís- ticas se é possível, entender, por exemplo, que era nada mais do que comum o olhar para o outro em busca de uma perfeição que, em tese, era de difícil encontro. Diante disso, ora as pessoas com deficiência eram na História Antiga e Medieval tratadas com uma política assistencialista e ora com uma eliminação sumária de outro – políticas essas adotadas veemente em muitos estados soberanos ainda hoje. Em Esparta, por exemplo, os bebês e as pessoas que adquirissem algum tipo de deficiência eram descartados dentro da lógica cultural de utilidade e perfeição do período. (SILVA, 1987). O conceito de perfeição e utilidade dentro de uma lógica político-cultural segue em um performático dinamismo até os dias de hoje. Nesse sentido, por exemplo, a tutela jurídica do direito incide nesses indivídu- os nos dias de hoje, graças a uma evolução histórico-cultural, principalmente a partir da idade moderna, de que existe, sim, um lugar, uma utilidade, o que revela uma triste realidade que associa a vida e a existência da pessoa com deficiência no tempo condicionada a necessidade de utilidade definida por padrões generica- mente impostos. A ideia de personalidade jurídica, portanto, se atrela a noção de vida. Por conseguinte, uma série de direitos e obrigações são constituídos como inerentes ao indivíduo concebido a partir da simples troca oxi- carbônica. Nesse sentido, a ideia de personalidade jurídica da pessoa com deficiência nada se diferencia com a personalidade jurídica de qualquer outro indivíduo que não possua qualquer deficiência, apesar do dife- rente tratamento concebido historicamente pelas sociedades primitivas até as sociedades contemporâneas. Há, portanto, um olhar associado a utilidade e trabalho daquele que seria o ideal de produção. A existência condicionada a realidade de, do que vale nascer homem, se não tem utilidade prática associada a produção? Diante disso, não importa quais seriam os elementos entendidos como diferentes para constituir com a ideia de deficiência atribuído ao homem. O que importa seriam os mecanismos desenvolvidos pela sociedade para tentar minimizar e melhorar a qualidade de vida das pessoas que possuam qualquer barreira atitudinal ou física. Hoje, entende-se que o conceito de pessoa com deficiência está conectado a relação com o meio, com o ambiente, e não com a deficiência propriamente dita, sendo ela genética ou em consequência do dia a dia. A deficiência seria uma atribuição do meio. O meio que precisa se readequar. Essa lógica é permitida a partir da noção do modelo social quanto a deficiência. Por muito tempo se entendeu, graças ao modelo já em uma processual transgressão e desuso, de que a pessoa com deficiência precisava ser colocada numa posição de tutela assistencialista, o que muitas vezes não permitia em potência o pleno desenvolvimento de todas as habilidades possíveis daquela pessoa que estava sendo curatelada. A partir da evolução desse pensamento, de modelo social, houve um processual amadurecimento da sociedade civil brasileira, que ainda sim precisa aprender muito, que a deficiência em sí não o que em grau dificulta a inserção da pessoa com deficiência no meio, o que dificulta seriam as barreiras que em grau de qualidade permitiriam o pleno desenvolvimento da personalidade daquele indivíduo que muitas vezes teve a sua pessoalidade negada. Diante disso, se carece de um resguardo dos pais. Existe uma Responsabilidade Civil inerente ao po- der familiar de cada família que existe uma pessoa com deficiência de permitir o pleno desenvolvimento de todos os direitos inerentes a personalidade jurídica daquele indivíduo, como o direito à sexualidade, dando respaldo o direito a reprodução, o direito a educação efetiva, assim como o acesso à justiça, constitucional- mente assegurado. Apesar da Convenção dos Direitos da Pessoa com deficiência (2009) ratificar esses direi- tos expostos aqui, assim como outros, foi necessário a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência (2015) tentar ratificar mais uma vez esses direitos que existem, mas continuam sendo taxados pelos juristas e pela sociedade civil como invisíveis, por mais dizer, inexistentes, apesar de assegurados pelo ordenamento jurí- dico. São direitos novos, que na verdade sempre existiram. São necessários, portanto, a partir da ideia da tutela do direito à liberdade, que sejam assegurados, para demonstrar que não existe nenhum direito que seja menos importante do que outro e que toda humanidade deve ser em plenitude observada e assegurada para todos em plena igualdade. 3. TOMADA DE DECISÃO APOIADA: DESAFIOS E PROPOSTAS PARA UM EFETIVO ACESSO À JUSTIÇA.
  • 165. 165 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A ideia de tomada de decisão apoiada é inserida na Lei N° 13.146, que visa reafirmar os direitos que já haviam sendo explorados a partir da Convenção sobre os direitos da pessoa com Deficiência (2008). No entanto, foi somente a partir do Estatuto da pessoa com deficiência (2015) que, ironicamente, a sociedade civil e alguns juristas passaram a se aperceberem melhor do assunto atinente as pessoas com deficiência. O conceito de tomada de decisão apoiada tem um cunho assistencialista, mas não um assisten- cialismo que poda a autonomia do exercício da vontade da pessoa com deficiência. O sentido associado se baseia na ideia de que pessoas idôneas, ou seja, sem pré-disposição de desfavorecer ou prejudicar, ou que tenha vontade viciada, contribuam para uma escolha positiva do indivíduo que esteja sendo assistido. Nesse sentido, há, sim, um avanço na lei quanto a disposição de autonomia e legitimidade para o exercício de di- reitos e deveres da pessoa com deficiência. Existe, nesse sentido, um aprimoramento e uma assistência de duas pessoas, e não somente uma, decidindo e “roubando” a vontade da pessoa curatelada. Há, portanto, um acompanhamento, de duas pessoas, que devem melhor orientar a pessoa com deficiência na tomada de sua decisão sobre os atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos de informação necessários para que possa exercer a sua capacidade. É, portanto, a tomada de decisão apoiada, um mecanismo que reforça a validade dos negócios praticados pelas pessoas com deficiência, o que não implica numa necessária perca de capacidade da pessoa que a requer. A tomada de decisão apoiada é o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações neces- sários para que possa exercer sua capacidade. (BRASIL. Lei 13.146, 2015, art. 1.783-A, caput) A lei prevê ainda que a escolha de indicação dos apoiadores será feita pela pessoa com defici- ência, cabendo a ela escolher a quem delegar esse papel. Além disso, ainda para garantir que sua vontade seja melhor representada, os escolhidos poderão ser pessoas com quem mantenham vínculos e confiem. Será traçado também, afim de garantir a idoneidade do processo e legitimidade da tomada de decisão apoiada, para não findar desrespeito ou talhamento de direitos, que em juízo seja delimitado os limites do apoio a ser oferecido e os compromissos dos apoiadores, inclusive o prazo de vigência do acordo e o respeito à vontade, aos direitos e aos interesses da pessoa que deve apoiar, findado na lógica de respeito dos direitos à persona- lidade jurídica da pessoa com deficiência, sempre visando um completo desenvolvimento intersubjetivo da pessoa em questão. Ademais, afim de garantir o pleno exercício da tomada de decisão apoiada, o Estatuto da Pessoa com deficiência, traz, também, a noção de que se o apoiador agir com negligência, não adimplir com as obrigações devidas ou chegar a exercer pressão indevida, poderá a pessoa apoiada ou qualquer outra pessoa prestar denúncia ao Ministério Público ou ao Juiz de ofício. Ouvida a denúncia, sendo ela procedente, o juiz desti- tuirá o apoiador e nomeará, ouvida a pessoa com deficiência, e se for do seu interesse, outra pessoa para lhe prestar apoio. Por demais, a pessoa com deficiência, pode, a qualquer tempo, decidir cessar o acordo firmado do processo de tomada de decisão apoiada. Existe ainda, a noção de que o apoiador também pode solicitar ao juiz a exclusão de sua participação do processo de tomada de decisão, sendo seu desligamento condicionado à manifestação do juiz. Aplica-se, portanto, a noção de autonomia, resguardado numa preocupação em devolver a pessoa com deficiência a titularidade de seus direitos, de modo a lhe fazer parte de suas decisões e escolhas na pres- tação de apoio a que lhe deve, sendo-lhe facultada sempre, a permanência ou não dos indivíduos firmados no processo de prestação de tomada de decisão apoiada. A noção de curatela associada unilateralmente a von- tade do curador está mitigada e transformada na noção de em potência o exercício da capacidade da pessoa curatelada em gozo e dignidade dos seus desejos, respeitando a noção de dignidade e de tutela à liberdade da pessoa humana.
  • 166. 166 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Por a lei estabelecer que os limites da tomada de decisão apoiada deve ser definida em acordo, vale ressaltar, por conseguinte, que haverá modelos distintos. A tomada de decisão apoiada poderá ser diferente para cada indivíduo que a utilize como mecanismo eficaz de acesso aos seus direitos disponíveis. Além disso, é mister destacar que para parte dos doutrinadores brasileiros, no campo de Direito Civil, a tomada de decisão apoiada ainda é um ponto de incógnita. Para alguns, a hipótese de substituição não seria nada mais do que óbvio, baseado na ideia de que a tomada de decisão apoiada não surge em substituição, de modo a excluir a curatela. Ela surgiria de modo a coexistir com a curatela, em caráter concorrente. Nesse sentido, haveria a possibilidade de que a curatela entre em desuso ou não com o tempo. Outra parte dos doutrinadores brasileiros, no entanto, acredita que a interdição seria medida excepcional, a regra passaria a ser, portanto, a Tomada de Decisão apoiada, que se trata de um processo em que a pessoa com deficiência so- licitará, como foi visto, duas pessoas de sua confiança, para dar mais visibilidade a sua autonomia de decisão. Ainda há dúvidas também sobre de que modo se daria a tomada de decisão apoiada em casos em que haveria incapacidade total do sujeito quanto a expressão de vontade, devido a algum tipo de deficiência. A ideia que nos parece mais lógica ainda sim seria a tomada de decisão apoiada, visto que mesmo não havendo a nítida expressão de vontade, haveria a possibilidade de auxílio de profissionais especializados, como psicó- logos e afins, para auxiliar, em percepção de modo haveria um maior benefício daquele indivíduo a partir de determinada tomada de decisão. O apoiador, de acordo com a nova lei, não impede que seja, por exemplo, um dos apoiadores um profissional especializado. Ademais, é fato que a regra geral se basearia na afirmativa de que a pessoa com deficiência deveria escolher as pessoas que lhes pareça mais adequadas a partir da sua confiança, no entanto, essa escolha passa por aval de um juiz togado e adequado para o caso em questão. O mesmo juiz, portanto, num caso de tomada de decisão apoiada em que haja um indivíduo que possua incapa- cidade absoluta, poderá nomear, a partir da verocimidade das relações afetivas entre a pessoa com deficiência e o apoiador aquele que melhor represente o indivíduo na respectiva decisão. 4. O ACESSO À JUSTIÇA DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA COMO FERRAMENTA EFETIVA PARA A BUSCA DA GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS O Estado Moderno, em especial o brasileiro, adotou para si o princípio do monopólio estatal de justiça, trazendo, dessa forma, um modo de solução de conflito pacífico, marcado por heteronomia, isto é, a juris- dição é marcada por um juiz imparcial e sem pré-disposição para favorecer uma das partes. Nesse sentido, através da Ação, há uma tentativa de efetivo encontro entre a prestação jurisdicional e a satisfação da preten- são insatisfeita de uma das partes. Além disso, se é possível falar, que apesar da tentativa de se estabelecer um modo de solução pacífico de conflito, há também, um problema inerente a própria constituição do modo de solução de conflito: como atender a todos que possuem um direito subjetivo que precisa ser satisfeito? Afim de responder a essa pergunta, há, atualmente, assegurado na constituição brasileira, alguns princípios decisivos que buscam consagrar o livre acesso ao judiciário, como o princípio da proteção judicial efetiva (art. 5°, XXXV), do juiz natural (art 5°, XXXVII e LIII) e do devido processo legal (art. 5°, LV), que tem influenciado decisivamente o processo organizatório da justiça, especialmente no que concerne as garantias da magistratura e à estruturação independente dos órgãos (MENDES, 2013). Ademais, ainda se é possível falar que existem obstáculos que precisam ser ultrapassados para garan- tir um pleno e efetivo acesso à justiça tanto das pessoas com deficiência, como das pessoas que não possuem quaisquer barreiras para um pleno e efetivo desenvolvimento psicossocial. A Lei Brasileira de Inclusão, tam- bém conhecido por Estatuto da Pessoa com Deficiência, no seu Art. 3°, IV, define barreira como qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que limite ou impeça a participação social da pessoa com de- ficiência no meio social, bem como impeça o gozo, a fruição ou o exercício de seus direitos à acessibilidade, à liberdade de movimento e de expressão, por exemplo. A Lei N° 13.146 ainda procura definir, taxativamente, que existem cinco tipos de barreiras, tais quais: Barreiras: [...]
  • 167. 167 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. a) barreiras urbanísticas: as existentes nas vias e nos espaços públicos e pri- vados abertos ao público ou de uso coletivo; b) barreiras arquitetônicas: as existentes nos edifícios públicos e privados; c) barreiras nos transportes: as existentes nos sistemas e meios de transpor- tes; d) barreiras nas comunicações e na informação: qualquer entrave, obstáculo, atitude ou comportamento que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens e de informações por intermédio de sistemas de comunicação e de tecnologia da informação; e) barreiras atitudinais: atitudes ou comportamentos que impeçam ou pre- judiquem a participação social da pessoa com deficiência em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas; f) barreiras tecnológicas: as que dificultam ou impedem o acesso da pessoa com deficiência às tecnologias; (BRASIL. Lei N° 13.146, 2015, art. 1°, IV) Diante disso, se é possível falar que o processo de tomada de decisão apoiada, a partir da noção da Lei Brasileira de Inclusão, é uma das medidas que visa ir de encontro a uma acessibilidade quanto aos direitos da pessoa com deficiência. O acesso à justiça, atualmente, é um dos maiores paradigmas da sociedade moderna. Cada socieda- de, a seu modo, procura eximir a linha tênue que é a efetiva prestação jurisdicional e a pretensão insatisfeita de cada cidadão. No entanto, além das barreiras comuns, que atingem a maior parte dos cidadãos, como o acesso à informação, o acesso ao local, etc., as pessoas com deficiência, como a Lei N° 13.146 procura res- saltar, enfrentam barreiras a mais, estas, no entanto, fruto de uma sociedade corporativista, tal qual procura voltar a sua atenção para os cidadãos que não possuam quaisquer tipo de deficiência que limitem a sua re- lação com o meio social. A partir dessa noção, é nítida a percepção egoística de exclusão para qual é voltada cerca de 45,6 milhões de brasileiros que declaram ter alguma deficiência, segundo o censo do IBGE de 2010. Essa parcela, corresponde a cerca de 23,9 % da população brasileira. Esse percentual representa cerca de um quarto da população brasileira total, o que significa que se deve haver maior atenção pública para essas pessoas que são sectarizadas e tratadas ora de maneira desigual, ora de maneira a inferiorizar. O respeito a diferença é o primeiro passo de encontro ao acesso à justiça das pessoas com deficiência. A proposta de melhora de vida para essas pessoas, mais frisada neste artigo, é através da ideia de ca- pacidade relacionada com a autonomia, que é almejada através da tomada decisão apoiada, como ferramenta que impulsiona, a seu modo, o acesso à justiça. Consideramos que o direito de manifestar a própria vontade não deve ser violado, pois a capacidade de pensar da pessoa com deficiência deve ser considerado, indepen- dente da deficiência, contrariando a lógica de interdição, o qual talha esse direito à autonomia e o direito à manifestação de vontade. Dessa forma, preservar os direitos inerentes à personalidade, assim como os direi- tos fundamentais, são de mister importância para preservar em essência a humanidade daquele indivíduo muitas vezes visto como inválido ou menos humano. CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do presente estudo, observou-se que há uma necessidade de respeito à diferença. Esse res- peito perpassa, ainda, na ideia da garantia de direitos inerentes à personalidade jurídica do indivíduo que possua qualquer tipo de deficiência que venha dificultar a sua interação com o meio social. Nesse sentido, o respeito à diferença e a garantia dos direitos da personalidade da pessoa com deficiência, representam o que de mais óbvio deve ser garantido a qualquer ser humano, para que em igualdade de oportunidade esse possa a vir, equitativamente, desempenhar um papel de agente modificador de seu próprio destino, e não mais um agente passivo, perante o velho sistema de interdição que incapacita e coloca na condição de sujeito inváli- do, imprestável, a pessoa com deficiência que pode, sim, praticar atos na esfera civil com maior autonomia, através do auxílio da Tomada de Decisão apoiada ou não.
  • 168. 168 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Findo essa ideia, se é necessário, ratificar ainda, que há uma necessidade instransponível de qual- quer cidadão, assim como dos juristas, de observar um fenômeno tão importante, como o acesso à justiça. O acesso à justiça é um processo dinâmico e indispensável para garantir uma efetiva prestação jurisdicional de qualidade em qualquer sociedade. Nesse sentido, observar de que forma cada seguimento da sociedade pode vencer as suas barreiras é indispensável. Bem como aponta a Lei 13.146, existem, para as pessoas com de- ficiência, algumas barreiras específicas, que acompanham esse agrupamento, além das que já existem para qualquer cidadão. Nesse sentido, um olhar cuidadoso e mais humanitário é indispensável para que o acesso à justiça jamais seja confundido com utopia ou displasia atitudinal. REFERÊNCIA ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Bra- sília: Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência – 4 ed. Brasília: 2011. Dis- ponível em: http://www.pessoacomdeficiencia.gov.br/app/sites/default/files/publicacoes/a-protecao-consti- tucional-das-pessoas-com-deficiencia_0.pdf . Acessado em 18/01/2016. BEVILÁQUA, Clovis. Teoria Geral do Direito Civil. Rio de Janeiro: Rio, 1975. BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade – 8° ed. São Paulo: Saraiva, 2015. BRASIL, Código Civil (2002). Lei N° 13.146, de 6 de julho de 2015. Brasília: Senado. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13146.htm Acesso em: 05/12/2015. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro, volume 1: teoria geral do direito – 28. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2011. FERRAZ. Carolina Valença. LEITE. Glauber Salomão. Manual dos Direitos da Pessoa com Deficiên- cia. São Paulo: Saraiva, 2012. ______. Direito à diversidade. São Paulo: Atlas, 2015. GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de Direito Civil, volume 1: parte geral. – 12 ed. rev e atual. – São Paulo: Saraiva, 2010. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil brasileiro, volume 1: parte geral. - 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. LÔBO, Paulo. Direto civil: parte geral. São Paulo: Saraiva: 2013. ______. Direto civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2015. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional – 8 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. NADER, Paulo. Curso de direito civil, parte geral – vol. 1 / Paulo Nader. – Rio de Janeiro: Forense, 2004. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro, Forense, 2002. SILVA, Otto Marques da. Epopéia Ignorada – a História da Pessoa Deficiente no mundo de ontem e de hoje. São Paulo: 1987. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3. Ed. – São Paulo: Atlas, 2003.
  • 169. 169 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE SOBRE A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL NO ÂMBITO DOS CONFLITOS DOMÉSTICOS Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Professora da graduação em Direito da Universidade Maurício de Nassau Hallane Raissa dos Santos Cunha Estudante da graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, vinculada ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), orientada pela Profa. Dra. Marília Montenegro Pessoa de Mello Túlio Vinícius Andrade Souza Estudante da graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco, vinculado ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), orientado pela Profa. Dra. Marília Montenegro Pessoa de Mello. SUMÁRIO: Introdução; 1. A lei 11.340/2006 e suas implicações no âmbito criminal; 2. Considera- ções sobre uma pesquisa de campo; 3. A atuação da vara de violência doméstica e familiar contra a mulher da cidade do recife (vvdfmr); 4. A (re)vitimização da mulher; 5. Violência doméstica e a seletividade da clientela penal; 6. Lei maria da penha, teorias da pena e a revitalização do penal; Considerações finais; Referências. INTRODUÇÃO No Brasil cada vez mais é possível a observação de uma sociedade punitivista, que cada dia mais solicita a aplicação de um sistema penal como alternativa para reduzir a criminalidade. Essa requisição é alimentada pelo sentimento de impunidade e sensação de insegurança, frequentemente expostos pela mídia como conteúdo de exigências criminalizantes. Diante disso, o que se questiona é se o sistema de justiça cri- minal promove, verdadeiramente, a contenção da criminalidade, uma de suas funções declaradas. Em nome da proteção da família, da defesa da honra e da garantia do pátrio poder, desenvolveu-se uma sociedade machista, onde os padrões atribuídos pelo sistema penal legitimavam exigências de deter- minados comportamentos femininos, sobretudo no que diz respeito à sexualidade e, ainda, ressaltaram as diversas formas de controle sobre as mulheres (BARATTA, 1999, p. 19-80). No passado, em razão da desigualdade legal entre homens e mulheres, a maioria dos crimes de gêne- ro não era alvo de reconhecimento das autoridades e, assim, acarretavam no que se denomina “cifra oculta” do crime. Consequentemente, tinha-se a sensação de que não existia violência contra a mulher. Todavia, com a Constituição Federal Brasileira de 1988, os direitos entre os homens e mulheres se equipararam e, assim, a violência contra a mulher começou a ocupar um espaço diferente no sistema de justiça do Brasil. Quando o assunto é violência doméstica e familiar, a ineficiência do sistema para combater ou preve- nir a criminalidade fica evidente. Aqui, a justiça criminal se mostra inapropriada para a resolução dos con- flitos domésticos, complexos socialmente, principalmente após as medidas despenalizadoras serem descar-
  • 170. 170 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. tadas com o argumento de que elas eram insuficientes. Com a regulação da conduta por uma norma penal severa, espera-se não só a proteção da vítima, mas uma “pena exemplar” para o agressor. Diante desse cenário, tentou-se comprovar que um sistema incapaz de cumprir com suas próprias funções, atuando de modo diverso, não seria capaz de tutelar um conflito doméstico, que é muito mais complexo do que a norma penal pode prever. Indo mais além, buscou-se desconstruir o argumento de que o sistema de justiça de criminal é o grande responsável por dar fim ao ciclo de violência doméstica e familiar sofrido pela mulher. 1. A LEI 11.340/2006 E SUAS IMPLICAÇÕES NO ÂMBITO CRIMINAL. Primeiramente, é importante observar que, através da Lei 9.099/1995, foram criados os Juizados Es- peciais Criminais, nos quais, dentre outras inovações, permitiu-se a aplicação dos institutos despenalizadores aos crimes de menor potencial ofensivo, como a ameaça e lesões corporais leves. Foi também dentro destes Juizados, por intermédio dos indicadores oficiais, que se evidenciou a alarmante presença de inúmeros ca- sos de violência doméstica e familiar contra a mulher, até então desconhecidos (ou ignorados) na sociedade brasileira. Constatou-se, pois, que a família, espaço de proteção onde laços de amor e afeto são construídos, é também, paradoxalmente, um local de violência e violação. No contexto da violência doméstica, então, o homem, marido e companheiro passou a ser confundido com o suposto agressor (ANDRADE, 2005, p. 95). Criada para julgar os crimes de menor potencial ofensivo e tendo como para- digma o comportamento individual violento masculino, a Lei 9.099/95 aca- bou por recepcionar não a ação violenta e esporádica (...), mas a violência cotidiana, permanente e habitual (...). Assim, os crimes de ameaças e de lesões corporais que passaram a ser julgados pela “nova” Lei são majoritaria- mente cometidos contra as mulheres e respondem por cerca de 60% a 70% do volume processual dos Juizados. (CAMPOS; CARVALHO, 2006, p. 4-5). Houve, portanto, uma modificação no tratamento normativo dispensado à “violência conjugal”, as- sumindo a caracterização de crime de menor potencial ofensivo, o que garantiu uma nova sistemática de re- solução de tais práticas delitivas. O enquadramento dos casos de “violência conjugal” como sendo um crime de menor potencial ofensivo acabou levando para a Justiça um crime que até então raramente chegava ao Judiciário, e fez com que esses casos representassem o maior volume de processos nos Juizados (MORAES; SORJ, 2009, p.52). No entanto, o tratamento oferecido pelos Juizados sofreu inúmeras críticas, principalmente de alguns setores dos movimentos feministas, cujas pressões por respostas estatais mais incisivas contra a criminalida- de no âmbito doméstico, juntamente com a de outros setores da sociedade, resultaram na promulgação da Lei 11.340/2006. A então nova legislação, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha, criou os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e ficou conhecida pelo rigor punitivo dispensado aos crimes de menor potencial ofensivo cometidos contra a mulher no contexto doméstico, já que lhes vedou a aplicação da lei 9.099/95 e, consequentemente, dos institutos despenalizadores. A dogmática jurídico-penal cumpre uma das mais importantes funções que tem encomendada à atividade jurídica geral em um Estado de Direito: a de garantir os direitos fundamentais do indivíduo frente ao poder arbitrário do Estado (ANDRADE, 2006, p.170). No entanto, analisando essas funções declaradas em confronto com a realidade, observa-se que elas não são o foco do sistema de justiça criminal. Como bem afirma Vera Regina de Andrade (2006, p.175): Há, no âmbito do sistema penal, um profundo déficit histórico do cumpri- mento das funções declaradas da dogmática penal ao mesmo tempo em que
  • 171. 171 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. o cumprimento excessivo de outras funções não apenas distintas, mas inver- sas às oficialmente declaras. Assim, surgem questionamentos acerca da ineficácia/deslegitimação do sistema em questão, pois se percebe uma clara atuação oposta a sua real proposta declarada. Nesse sentido, é possível afirmar que é um sistema de justiça que se sustenta meramente sobre suas funções simbólicas, que constrói uma imagem ideal para ocultar a sua real funcionalidade. Dessa maneira, no contexto da violência doméstica e familiar contra as mulheres, percebe-se que uma quantidade significativa de mulheres que recorre às delegacias para apresentar à queixa ou à de- núncia contra o suposto agressor, em seguida, desiste de prosseguir o inquérito policial, objetivando, somen- te, utilizar o poder policial para renegociar a relação conjugal, ao invés de buscar a criminalização do agressor. As inovações que a Lei 11.340/2006 trouxe são divergentes em relação à proposta minimalista da Criminologia Crítica, alterando os tipos penais incriminadores com o aumento de penas e nas circunstâncias de aumento das sanções com as agravantes e a obstrução dos institutos “diversificacionistas”, como a compo- sição civil, transação penal e suspensão condicional do processo. No entanto, tal argumentação de aumentar as penas e obstruir as medidas diversificadoras, vem consolidando uma visão extremamente punitivista da administração da justiça. De tal modo, a Lei 11.340/2006 retrocedeu ao propor o encarceramento, assim como, foi de encon- tro às propostas do movimento feministas, visto que as medidas alternativas apresentam maior eficácia em relação à prisão, além de demonstrar maior possibilidade de solucionar os conflitos domésticos e familiares. Foucault (1999) afirma que as prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou, ainda pior, aumenta. Assim, constata-se que o sistema penal é falho e a maior prova disso é o índice de reincidência cada vez mais alto. Onde, ao invés de haver uma redução da criminalidade, ressocializando o condenado, produz efeitos contrários a uma ressocialização, isto é, a consolidação de verdadeiras carreiras criminosas (ANDRA- DE, 2006). Dessa forma, é notório que se este sistema, aclamado por uma sociedade movida pelo medo, é incapaz de proteger bens jurídicos, de reduzir a criminalidade ou ressocializar o preso, também não atuará com eficácia no âmbito da violência doméstica, pois não considera o grau de subjetividade e de afinidade dessas mulheres com seus agressores. 2. CONSIDERAÇÕES SOBRE UMA PESQUISA DE CAMPO. Para o desenvolvimento do presente artigo foram utilizadas duas técnicas de pesquisas, a bibliográfi- ca, com a realização em análise de livros, revistas especializadas, jurisprudências; e a técnica empírica, que analisa os assuntos críticos e interpretativos a respeito do tema em questão, fazendo-se o levantamento de dados da pesquisa de campo. Em outras palavras, essas técnicas, apesar de serem distintas, são complemen- tares, já que uma fornece elementos para a possível construção da outra: a documentação indireta e a do- cumentação direta (LAKATOS; MARCONI, 1991, p. 174-183). Não é seguro afirmar que a utilização dessas técnicas aconteceu em momentos distintos e sucessivos, pois elas foram empregadas simultaneamente. Para a obtenção dos dados quantitativos da pesquisa, optou-se por realizar uma pesquisa documental, a qual, como o próprio nome já sugere, compreende a coleta e análise de documentos, considerados fontes de informações que ainda não passaram pela sistematização, contemplação e tratamento científicos (SAN- TOS, 2007, p. 27-29). As fontes documentais escolhidas foram processos criminais sentenciados na 1º Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife (VVDFMR). Trataram-se, pois, de documentos jurídicos, tal que seu conteúdo está previsto, ordenado e procedimentalizado pelo Direito.
  • 172. 172 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Nesse contexto, para fins de aproximação representativa da realidade da VVDFMR, pareceu razoá- vel a limitação da pesquisa à análise de todos1 os processos criminais com sentenças prolatadas ao longo de 01 ano na VVDFMR, precisamente, de 01 de junho de 2013 a 31 de maio de 2014. Mencionado recorte foi escolhido pelas seguintes razões: atualidade dos resultados, possibilidade de retratação de uma realidade, facilidade de acesso ao material da pesquisa e, por fim, possibilidade e viabilidade da análise do material de pesquisa em tempo de entregar o presente trabalho dentro dos prazos estabelecidos2 . Dessa forma, preten- deu-se obter, através dessa análise documental, o perfil socioeconômico das partes, bem como particularida- des do relacionamento familiar dessas pessoas envolvidas no conflito doméstico e se a persecução criminal tem respondido aos interesses da mulher. Desses processos analisados, dados específicos foram colocados em um formulário antecipadamente elaborado para análise. Assim, por existirem uma série de meios informáticos que, a depender das necessi- dades do pesquisador, facilitam a manipulação e processamento de dados levantados em pesquisa, optou-se, para o armazenamento, gestão e tratamento do conjunto de dados obtidos e posterior análise estatística, pela utilização do programa SPSS (Statistical Package for Social Sciences), software especialmente projetado para estes fins em pesquisas na área de Ciências Sociais. 3. A ATUAÇÃO DA VARA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DA CIDADE DO RECIFE (VVDFMR). A 1º Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife está localizada no bairro de Santo Amaro, bairro onde se localiza também a delegacia especializada de atendimento a mulher. É fundamental ressaltar que as mulheres que procuram a Vara, por serem a maioria de baixa escolaridade e pertencerem a uma classe mais abastada da sociedade, normalmente desconhecem todo o rito concernente a um processo judicial, especialmente ao processo penal. Por isso, ao descobrirem que não podem retirar mais desistir do processo ou que seus agressores estão/serão presos, sentem-se ainda mais vitimizadas por não terem suas vontades atendidas. Então, se por um lado as mulheres que chegam à Vara na esperança de serem ouvidas e terem seus desejos atendidos – os quais normalmente não estão voltados para a prisão de seus agressores, mas para o rompimento dos ciclos de agressão – por outro, findam por se sentirem frustradas quando descobrem que suas pretensões frente ao conflito doméstico são olvidadas e suas falas são moldadas de acordo com as pre- tensões dos agentes criminais. Nesse contexto, muitas vezes acabam por modificar na audiência seus depoimentos em detrimento das informações prestadas na delegacia; muitas vezes, chegam até a se culpar pelas lesões sofridas. No mais, com frequência, tentam minimizar a gravidade dos fatos ocorridos; tudo com a intenção de livrar o ente familiar querido – que podem ser, dentre outros, ex-companheiros, companheiros, namorados, maridos, ex- -maridos, pais e filhos – da persecução criminal. Dessa forma, os atores penais da Vara tratam essas mulheres com certo desdém, já que estas são rotuladas como “mentirosas” ou como “mulheres que gostam de apanhar”, porque mudam suas versões dos fatos, para que seus agressores não sejam punidos com a privação de liberdade. Com isso, os atores penais desconsideram todo o grau de afeto por trás da relação violenta que existe entre mulheres e homens. Nesse contexto, percebe-se, por parte do poder judiciário, uma atuação tradicional, apartada das peculiaridades que envolvem a violência de gênero no contexto doméstico e familiar. 4. A (RE)VITIMIZAÇÃO DA MULHER. 1  No total, 177 processos criminais foram sentenciados no recorte temporal determinado, no entanto, 09 deles não foram en- contrados na Vara, apesar dos inúmeros esforços para sua procura, tanto por parte dos pesquisadores, quanto dos funcionários do Tribunal. Assim, foram analisados 168 processos criminais. 2  A presente pesquisa foi desenvolvida pelos autores no âmbito do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PI- BIC), exercício 2014/2015, da Universidade Católica de Pernambuco, orientados pela Profa. Dra. Marília Montenegro pessoa de Mello. Ademais, está ligada à dissertação de mestrado da Ma. Carolina Salazar l’Armée Queiroga de Medeiros, tal que representa um recorte de sua pesquisa empírica realizada na Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife.
  • 173. 173 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. No Direito Penal comum, o “homem agressor” é denunciado pela “mulher agredida” e esse fato é tipificado como crime e, existindo indícios de autoria e materialidade, deve ser iniciado o processo para impor uma pena justa ao violador da lei. Assim, Hulsman (1993, p. 82) afirma que o sistema coloca o acontecimen- to sob o ângulo extremamente limitado do desforço físico, vendo apenas uma parte dele, mas para o casal que viveu o fato, o que verdadeiramente importa: este desforço físico ou tudo aquilo que houve na sua vida em comum? A vítima, ao entrar na Justiça Criminal tradicional, passa a não ser mais detentora do conflito, con- figurando a primeira consequência. Não poderá deter a ação pública, nem opinar sobre a medida que deve ser aplicada ao agressor, bem como ignorará tudo o que acontecerá a ele depois do processo. Para o agressor, configura-se um processo de despersonalização, pois tudo o que acontecerá será friamente abstrato, basean- do-se no fato praticado, ignorando a sua história de vida (MEDEIROS; MELLO, 2015, p. 219). A busca pelas funções declaradas do sistema de justiça criminal é o que leva a mulher a procurar uma solução no sistema penal, funções essas: a defesa de bens jurídicos, a repressão da criminalidade, o condicionamento e a neutralização das atitudes dos infratores reais ou potencias de forma justa. Operando o sistema, desde o encaminhamento à autoridade policial até o término da instrução e julgamento, que pode ou não culminar com a pena, a mulher é literalmente deixada de lado; a pena, quando aplicada, em nada minora seus conflitos e em nada alenta a sua dor. O sistema punitivo, portanto, termina por implicar, acredita Baratta (1997, p. 302): “[...] mais problemas de quantos pretende resolver. Em lugar de compor con- flitos, os reprime e, aos poucos, estes mesmos adquirem um caráter mais gra- ve em seu próprio contexto originário ou também por efeito da intervenção penal, podem surgir conflitos novos.”. Quanto maior o distanciamento entre as partes envolvidas no conflito, menor é o envolvimento e a compreensão da dor da aplicação da pena. Diferentemente ocorre quando existe aproximação entre as partes, pois nesses casos mais facilmente se compreende os efeitos da pena e a estigmatização por essa produzida, configurando tipicamente os casos de violência doméstica e familiar. Em 73,7% dos casos de vio- lência doméstica que chegaram a VVDFMR, homem ou mulher eram ou já tinham sido parceiros íntimos. Nesses casos, inclusive, os relacionamentos de longa duração (aqueles com mais de sete anos) foram os mais frequentes (52,6%) e, nos processos em que o casal estava separado na data do registro da ocorrência (52,3%), essa separação, normalmente, tinha ocorrido há pouco tempo (46,6% das separações haviam ocor- rido há, no máximo, seis meses). Adicione-se, por fim, que 64% dos homens e mulheres que chegaram a ter um relacionamento íntimo, tiveram filhos, e que 89,8% desses filhos eram menores de idade na data da ocorrência da violência. Nos casos de violência doméstica, a vítima passa a ter a real ideia das consequências negativas da prisão na vida daquele homem, pois é ela, geralmente, a primeira pessoa que vai visitá-lo no sistema prisional. Na violência doméstica a intervenção estereotipada do Direito Penal age duplamente sobre a vítima, pois não leva em conta a sua singularidade, os seus laços com o suposto agressor. O sistema penal visualiza todas as vítimas, seja de um roubo, de uma lesão corporal ou de uma injúria, da mesma maneira, independente das idiossincrasias. Assim, existe essa dupla vitimização da mulher, principalmente nos casos em que ocorrerem à prisão provisória. A mulher passa a se sentir culpada pela prisão do seu companheiro, e ela é diretamente atingida com isso, tanto nos aspectos emocionais como financeiros, desestabilizando a organização social (MEDEIROS; MELLO, 2014, p. 458-460). 5. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A SELETIVIDADE DA CLIENTELA PENAL. Como previsto nas análises bibliográficas, quanto ao perfil socioeconômico, observou-se que as partes envolvidas nesse conflito representam a seletividade da clientela do sistema penal, pois, em sua grande maio- ria, pertencem a classes sociais economicamente pouco abastadas, já que possuem baixo grau de escolarida-
  • 174. 174 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. de (31% das mulheres que chegaram a VVDFMR sequer completaram o ensino fundamental e apenas 10% possuem o ensino superior completo; no que diz respeito ao grau de escolaridade dos homens, 37,5% deles sequer chegaram a completar o ensino fundamental e apenas 6,5% possuem ensino superior completo). Ademais, moram em bairros da periferia e têm empregos com expectativa de baixa remuneração (ob- servou-se que 25,6% das mulheres se dedicam unicamente à atividade doméstica, circunstância que indica, muitas vezes, a ausência de independência econômica da mulher; no caso masculino, 13% eram vendedores, seguido de 8% de pedreiros). Com relação à cor dos homens e mulheres, ressalte-se que, na maioria dos pro- cessos (85% para as mulheres e 75,6% para os homens), não havia informação sobre a sua cor, prevalecendo, entre ambos, porém, nos casos informados, a cor parda (11% para as mulheres e 16,7% para homens). Essa seletividade corrobora com a afirmação de Alessandro Baratta (1997, p. 167) ao apresentar que o cárcere representa, em suma, a ponta do iceberg que é o sistema penal burguês, o momento culminante de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema penal, com a discriminação social e escolar, com a intervenção dos institutos de controle do desvio de menores. O cárcere representa, ge- ralmente, a consolidação de uma carreira criminosa. Esse processo de seleção referido por Baratta crimina- lizará (primariamente e secundariamente) os setores vulneráveis, permitindo a ampla imunização daqueles setores resistentes ao sistema. Esta vulnerabilidade é inversamente proporcional à detenção de poder, seja ele político, econômico ou científico. Estes setores imunes, que mesmo assim praticam as condutas tidas como socialmente negativas, farão parte da chamada criminalidade oculta. Com base nos dados acima, as funções declaradas da pena e, por extensão, do próprio sistema penal que se evidencia através dela, serão basicamente reproduzir a desigualdade e o status quo. O sistema penal não possui eficácia quanto aos seus objetivos declarados, mas sim em relação ao que não diz, ou seja, quanto as suas funções latentes. Em verdade, o sistema punitivo atua na sua forma mais tradicional, selecionando a sua clientela e reproduzindo violência e dor (MEDEIROS, 2015, p. 60-61). 6. LEI MARIA DA PENHA, TEORIAS DA PENA E A REVITALIZAÇÃO DO PENAL. Buscar uma explicação para a aplicação das Penas Privativas de Liberdade como formas de resolução de conflitos é, no mínimo, ponderar e avaliar os fundamentos de “punir”. Nesse sentido, Salo de Carvalho (2010, p. 83), incita um desconhecimento dos fundamentos da pena. Então, faz uma análise sobre os diver- sos institutos penais e quais deveriam ser as suas consequências com relação a sua aplicação. No entanto, em seus estudos, ao observar que as penas privativas de liberdade não conseguem atingir sua função declarada, ou seja, realmente ressocializar os indivíduos (e, analogicamente, no contexto da violência doméstica, sanar os problemas decorrentes), ou trazer uma prevenção, seja ela geral ou especial (SANTOS, 2002), surge o questionamento do por que da aplicação de penas tão desestruturadoras quanto a Pena Privativa de Liber- dade. Juarez Cirino dos Santos (2002, p. 53-57), por sua vez, mostra, basicamente, o que justificaria a aplicação de tais penas, que seria a retribuição da culpabilidade, a prevenção geral e a prevenção especial. No entanto, também observa a ineficácia da pena para atingir tais objetivos. Nesse mesmo cenário, Ferrajoli (2006), com sua teoria do garantismo penal, incita a técnica do estranhamento ao sistema penal, para que possamos observar o seu caráter segregador e a aplicação da “Culpabilidade por Vulnerabilidade”, criada por Eugenio Raúl Zaffaroni (2004). Assim, parte-se da ideia de que a Vulnerabilidade é responsável pela conceituação do criminoso. No entanto, uma das ideias despertadas pelos estudos da criminologia crítica é que não existem apenas sujeitos criminosos, na verdade são os sujeitos criminalizados que estão vulneráveis a esse tipo de sistema. Quando falamos de violência doméstica, a pesquisa de campo apontou que praticamente todas as infrações penais (99,5%) que foram processadas na VVDFMR se encaixam no conceito de baixa lesividade descrito na Lei n.º 9.099/95, dentre as quais se destacam a ameaça (55%) e as lesões corporais leves (23%). Ademais, o meio percentual (0,5%) restante é referente a um crime de médio potencial ofensivo (incêndio),
  • 175. 175 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. abarcado, pois, pela redação do artigo 89 da Lei 9.099/95 a qual viabiliza, em geral, a suspensão condicional do processo. Nesse sentido, os resultados encontrados na pesquisa desenvolvida comprovam as expectativas de que as infrações penais que seriam encontradas se tratariam, sobretudo, daquelas que se encaixam no con- ceito legal de baixa potencialidade lesiva. Todavia, mesmo se tratando desse tipo de infrações, observou-se que elas têm como consequência uma razoável quantidade de prisões, pois, em 17% dos casos analisados, o réu esteve preso durante todo ou parte do processo. Além disso, muito embora 38% desses presos tenham sido posteriormente condenados, a pena que lhe foi imposta, na maior parte dos casos (67%), sequer chegou a lhes privar da liberdade, já que suas penas foram substituídas por restritivas de direito, suspensas condicio- nalmente ou declaradas extintas já que haviam sido cumpridas durante a prisão provisória. Percebe-se, também, que o tempo dessas prisões processuais concentrou-se principalmente na faixa entre 03 (três) e 04 (quatro) meses. Nesse contexto: A tendência, pois, é atuar em nome de uma suposta prevenção mediante uma contenção provisória, que consiste efetivamente numa pena antecipa- da, ocasionando uma inversão do sistema penal onde tudo é motivo para a privação de liberdade (MEDEIROS, 2015, p. 136). Do mesmo modo, foi também em razão desses crimes de baixa lesividade, que um quarto dos pro- cessos pesquisados terminou com a condenação do réu. No entanto, embora tenham se reservado quase exclusivamente a penas privativas de liberdade de curta duração (95,4%), as sentenças chegaram a ocasionar o encarceramento de 15% dos condenados; os remanescentes (85%) tiveram suas penas suspensas condicio- nalmente ou substituídas por restritivas de direitos. Imprescindível, assim, realizar uma análise mais aprofundada com o objetivo de não gerar conclusões simplórias. De início, necessário lembrar que são principalmente os crimes de menor potencial ofensivo que ocasionam esse encarceramento. Assim, como abarcados pela Lei nº 9.099/95, dificilmente ocasionariam um processo criminal. Segundamente, ainda considerando que são crimes de baixa lesividade, ressalta-se a necessária cautela anunciada por Christie (1998, p. 15-17) quando da interpretação de números sobre o encarceramento, os quais, segundo o autor, são extremamente relativos, tal que uma cifra baixa de encarce- ramento tanto pode indicar muitos presos com penas de curta duração, como também poucos presos com pe- nas muito altas. De acordo com a pesquisa realizada, 95,4% das penas privativas de liberdade dos condenados na VVDFMR sequer superaram um ano; havendo, ainda, um grande percentual de penas que não superou a faixa dos três meses (20,9%) ou dos seis meses (41,9%). Nesse contexto, os dados relacionados ao encarceramento na Lei Maria da Penha se tornam alarman- tes e levam ao entendimento de que a proibição da utilização dos institutos despenalizadores, em geral, dei- xou de contemplar a crise do atual sistema punitivo, uma vez que não considerou a possibilidade da utilização de alternativas, evitando penas encarceradoras desumanas. Apesar das críticas que podem ser feitas aos institutos despenalizadores, eles surgiram com a finalidade de descentralizar e minimizar a pena privativa de liberdade. Então, muito embora se entenda que os institutos diversificacionistas tenham aumentado o âm- bito do controle social penal, é inegável que qualquer aprisionamento é menos vantajoso que sua aplicação (CARVALHO, 2010, p. 47-49). Percebe-se, com isso, na tentativa de enfrentamento a violência doméstica, uma maior utilização de medidas penais, em contradição ao apoio às mulheres, com as idealizadas medidas não penais, aparentemente mais adequadas. CONSIDERAÇÕES FINAIS A Lei Maria da Penha (11.340/2006) trouxe inovações em relação ao combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, porque, através de sua redação, além de reconhecer e institucionalizar esse tipo de violência conseguiu dedicar grande atenção à assistência e proteção das mulheres vítimas. No entanto, no
  • 176. 176 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. que se refere ao aspecto penal, tem se observado certo desvio de finalidade, uma vez que as mulheres quando procuram o sistema, nem sempre desejam punir o agressor, mas sim, conseguir alguma proteção em relação aos comportamentos violentos sofridos, assim como formas alternativas de resolução do conflito. As relações de afeto e intimidade existente entre vítimas e acusados, com a expansão do Direito Pe- nal, deixaram de ser contempladas, bem como as expectativas e necessidades das mulheres violadas, que, preocupadas com o bem-estar da família e almejando a cessação da violência e o restabelecimento da harmo- nia familiar, não se voltam para persecução penal de seus agressores. Logo, quando conhecem da possibilida- de de privação da liberdade do sujeito ativo, as vítimas têm dificuldades em denunciar o abuso sofrido. Com efeito, a irreversibilidade do procedimento processual penal, findará por inibir a procura do auxílio judicial e contribuirá para o ressurgimento das “cifras ocultas” da violência doméstica contra a mulher, pois o próprio instrumento reservado à proteção feminina irá penalizá-la. De tal modo, considerando a ineficácia do Direito Penal, entende-se que sua aplicação deve ser sub- sidiária, pois não é a forma mais adequada para resolver os conflitos familiares e domésticos, principalmente, por causa da sua função seletiva e simbólica. Assim, o Estado precisa investir na atuação social, na prevenção equilibrada da reprodução de um ambiente doméstico e familiar saudável, para que, posteriormente, não precise reprimir o conflito social por meio do controle penal repressivo e arbitrário, sabendo que o Direito Pe- nal, através do punitivismo, vem se afastando do seu referencial minimalista, tornando-se incapaz de resolver os referidos conflitos. O Direito Penal além de não recuperar, não ressocializa o agressor. Observando a incapacidade da superação dos conflitos interpessoais pela via formal da justiça cri- minal, visto que ela se apropria do conflito das vítimas, fugindo aos propósitos das partes envolvidas, não apresentando soluções e efeitos positivos sobre os envolvidos ou sequer prevenindo as situações de violência, resta, então, reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como um problema social, o que não implica que o Direito Penal seja a melhor solução. Nessa perspectiva, é importante a discussão de meios alternativos para a solução de conflitos, principalmente transferindo a responsabilidade para outros ramos do Direito, como também pela utilização de medidas pedagógicas, psicoterapêuticas e conciliadoras, rompendo com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal. No entanto, para os comportamentos mais lesivos, pode se pensar ainda na criminalização, porque não se defen- de a prática de crimes realizados contra a mulher no âmbito doméstico e familiar, contudo, pretende-se que seja encontrado um meio mais adequado do que o direito penal, priorizando a intervenção mínima, ou seja, colocando o direito penal como um meio subsidiário para as respostas ao conflito. Enquanto o direito penal pregar uma eficácia garantidora simbólica, ele continuará sendo ineficaz. Isso acarreta em um discurso simbólico que visa à segurança jurídica, com igualdade e justiça nas decisões para exercer um controle cada vez mais arbitrário e seletivo sobre a camada social mais vulnerável, tendo uma ajuda muito importante da mídia nesse processo, pois ela superficializa as realidades sociais e distorce o modo de enxerga-las, de modo que a essência dos problemas passa a ser ignorada. Além disso, é perceptível que esse discurso punitivista pregado pelo sistema se propaga rapidamente e, fazendo uso dele, o movimento feminista não só conseguiu dar uma maior visibilidade à violência domés- tica contra mulher através da Lei Maria da Penha, mas também possibilitou um maior debate sobre as pecu- liaridades trazidas pela lei e sobre os seus efeitos, que, para a surpresa das feministas, divergiram do esperado pela ausência do desejo das vítimas de criminalizar seus agressores. Portanto, fica claro que a Lei 11.340/06, apesar da sua importância, se mostra como mais uma forma de o Estado aumentar o seu poder, possuindo legitimidade clamada mais uma vez pela própria sociedade, devido as suas inseguranças, seus anseios e seus medos. No que tange aos resultados alcançados com a pesquisa de campo na 1º Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife, fica claro quem são essas mulheres e seus agressores, ou seja, mais uma vez, o sistema penal possui seus atores pré-selecionados, com cor e perfil socioeconômico determinado, atuando com seu discurso falacioso e sua máscara de proteção a essas mulheres que acabam sendo reviti- mizadas, pois diferentemente do caso ocorrido à Maria da Penha, as verdadeiras “Marias do Recife” sofrem mais uma vez ao terem suas vozes silenciadas e seus anseios arrancados pelos punhos fechados do Estado.
  • 177. 177 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Necessário pontuar, ainda, que não se defende que os crimes praticados contra a mulher no contexto doméstico sejam ignorados, mas, até que outro sistema menos famélico seja encontrado, é preciso que o Di- reito Penal seja utilizado conforme os princípios que o regem, no caso específico, os da intervenção mínima, da subsidiariedade e o da fragmentariedade, de modo que haja uma máxima contenção do paradoxal sistema punitivo. As políticas de prevenção e combate à violência contra a mulher devem focar na construção de um ambiente doméstico e familiar equilibrado, superando, de tal modo, os empecilhos da ultrapassada, medieval e maniqueísta inquirição do suposto agressor culpado e de uma eterna vitimização feminina. Por fim, é válido compreender que as questões familiares, a relação vítima e agressor, não devem ne- cessariamente passar pelo tratamento do sistema penal, pois a ampliação do Direito Penal deixou de contem- plar as relações de intimidade e afeto existentes na família, bastante complexas. Ele também não superou os interesses e expectativas das vítimas que almejam o fim da violência e o restabelecimento dos laços familiar, e, principalmente, o bem-estar da família, que não está direcionado a criminalização do agressor, justifican- do, assim, os dados encontrados na pesquisa de campo realizada na 1º Vara de Violência Doméstica e Fami- liar Contra a Mulher do Recife. Assim, é necessária, portanto, a superação e não disseminação, no intelecto social, dos preconceitos, ainda existentes, decorrentes de uma sociedade patriarcal e machista, que levam à ideia da mulher como um ser passivo e desigual que se pode dominar e de quem se pode dispor. Logo, é pre- ciso se voltar às origens do problema, essencialmente familiar e de origens históricas, da violência doméstica e, definitivamente, a máxima intervenção punitiva do Estado não é a solução para isso. REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Sequência, Florianópolis, ano XXV, n. 50, p. 71-102, julho, 2005. ______. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Seqüência. Florianópolis, ano XXVI, n. 52, julho, 2006. BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Car- men Hein de (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: Instituto Carioca de Criminologia, 1997. BEST, J. W. Como investigar en educación. 2. Ed. Madrid: Morata, 1972. CARVALHO, Salo de. O papel dos atores do sistema penal na Era do punitivismo – Col. Criminolo- gias. Editora Lumen Juris, 2010. CHRISTIE, Nils. A indústria do controle do crime: a caminho dos GULAGs em estilo ocidental. Rio de Janeiro: Forense, 1998. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2. ed. São Paulo: RT, 2006. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 20. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. GARLAND, David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Ja- neiro: Revan, 2008. HULSMAN, Louk. CELIS, Jacqueline Bernat de. Penas perdidas. O sistema penal em questão. Trad. Ma- ria Lúcia Karam. Niterói: Luam, 1993.
  • 178. 178 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia científica. 3. Ed. São Paulo: Atlas, 1991. MEDEIROS, Carolina S. L. Q. de; MELLO, Marília M. P. de. O que vale a pena? O impacto da lei maria da penha no encarceramento de “agressores” e seus efeitos colaterais sobre a mulher vítima de violência do- méstica e familiar. In: CONPEDI/UFPB (Org.). Criminologias e política criminal I: XXIII CONGRESSO NACIONAL DO CONPEDI. Florianópolis: CONPEDI, 2014. p. 447-469. ______. Entre a renúncia e a intervenção penal: uma análise da ação penal no crime de violência doméstica contra a mulher. In: MONTENEGRO, Marília. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Rio de Janeiro: Revan, 2015. MEDEIROS, Carolina Salazar L’armée Queiroga de. Reflexões sobre o ‘punitivismo’ da Lei Maria da Penha com base em pesquisa empírica numa Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife. 2015. 158 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Direito, Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Católica de Pernambuco, Recife, 2015. MORAES, Aparecida Fonseca; SORJ, Bila. Gênero, violência e direitos na sociedade brasileira. Edi- tora 7 letras, 2009. OLIVEIRA, Luciano. Relendo Vigiar e Punir. Brasil: Sociedade Indisciplinar. Disponível em:http:// dc361.4shared.com/doc/n3Rnz-ts/preview.html. Acesso em: 23 set. 2014. PINTO, Alessandro Nepomoceno Pinto. O sistema penal: suas verdades e mentiras. In: Verso e reverso do controle penal: (des) aprisionando a sociedade da cultura punitiva. Vol. 2. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2002 SANTOS, Antônio Raimundo dos. Metodologia científica: a construção do conhecimento. 7. Ed. Lampa- rina: Rio de Janeiro, 2007. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Culpabilidade por vulnerabilidade. In: Discursos sediosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2004.
  • 179. 179 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. DIÁLOGO INTERJUDICIAL: REALIDADE GLOBAL NO BRASIL E A EXIGÊNCIA DE NOVOS DIREITOS ATRAVÉS DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS Caroline Alves Montenegro Advogada. Mestra em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco – Brasil - na linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos. Especialista em Direito Processo Civil e Ciências Criminais pela UNIPÊ. Especialização em jurisdição constitucional pela Universidade de Pisa/Itália. cacamontenegro@hotmail.com Renata Santa Cruz Coelho Advogada. Mestranda em Direitos Humanos pela Universidade Católica de Pernambuco – Brasil - na linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos. Bolsista da CAPES. Especialista em Direito do Trabalho pela UFPE. Contato – renatasantacruzcoelho@hotmail.com SUMÁRIO: Introdução; 1. Natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro; 2. Controle de convencionalidade e a tutela multinivel de direitos fundamentais; Considerações finais; Referências. INTRODUÇÃO O nosso trabalho está organizado em três partes. Inicialmente, pretendemos abordar o Brasil no contexto histórico de nossa Constituição de 1988 em razão de uma crescente preocupação com os direitos fundamentais dos cidadãos, assim como, a proteção dos direitos humanos como formas de reconhecer e consolidar a democracia. Em seguida, como tem sido a atuação do nosso país no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, as novas interpretações jurisprudências no ambiente interno em razão de uma releitura de determinados casos com enfoque no que diz a Convenção Americana de Direitos Humanos (Daremos destaque aos casos do depositário infiel e a audiência de custódia). Enfim, pretendemos analisar o diálogo multinível de direitos fundamentais que pode gerar uma teoria constitucional dinâmica, já que as diversas ordens podem acolher e reelaborar os direitos previstos nos diversos níveis, seja a partir da verificação das suas normatividades, seja a partir da influência da própria jurisprudência das Cortes. Os direitos humanos suscitam um processo de lutas e reivindicações sociais em busca da promoção da dignidade humana. Assumem destaque, com a Declaração Universal de 1948, a partir da qual o respeito à dignidade humana passou a ser objeto de todos os tratados e declarações de direitos humanos, que integram o Direito Internacional dos Direitos Humanos (PIOVESAN, 2011). A Constituição Federal do Brasil possui cláusulas abertas aos direitos e garantias previstos em tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, que complementam o texto constitucional. Alguns países latinos americanos, que fazem parte do Sistema Regional Interamericano deram passos dinâmicos e evoluí- dos com relação ao reconhecimento dos tratados internacionais de direitos humanos no ambiente constitu- cional de cada Estado. Esses países foram muito influenciados não apenas pelas jurisprudências da CrIDH1 , 1  CrIDH, neste texto, quer dizer Corte Interamericana de Direitos Humanos
  • 180. 180 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. como também, pelas recomendações da CIDH2 , e também pelas consultas encaminhadas ao sistema que deram origem a importantes modificações legislativas em seus ambientes jurídicos internos. A Competência jurisdicional da CrIDH foi reconhecida pelo Brasil através do Decreto legislativo nº89, de 03/12/1998. O Brasil tem o caso do depositário infiel e edição da Súmula Vinculante n. 25 que por força da Convenção Americana de Direitos Humanos considera a prisão civil do depositário infiel ilegal, qualquer que seja a sua modalidade do depósito. Há também o caso da audiência de custódia – preso levado imediatamente à presença do juiz. Repe- tição do depositário infiel. Influência da Convenção Americana (art.7º, §5º). Ainda não há discussão no STF sobre esse caso. O CNJ quer implementar em todo o país, o preso passará imediatamente a ser levado a uma audiência de custódia e não ser mais apenas comunicado por meio de um papel ao juiz. 1. NATUREZA JURÍDICA DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO3 Segundo Piovesan (2013), não é demais recordar que os tratados internacionais são considerados obrigações assumidas espontaneamente pelos Estados, portanto, após a sua constituição, precisa haver o seu adequado cumprimento, em razão do seu caráter obrigatório e vinculante. Em termos mais específicos, aqueles acordos internacionais podem ser considerados como convenções, pactos, cartas, etc. Não é demais ressaltar, o posicionamento de Ramos (2013) sobre a internacionalização dos direitos humanos e as obrigações internacionais, a saber: [...] a internacionalização dos direitos humanos é uma realidade incontor- nável. Graças a ela, temos obrigações internacionais vinculantes na seara ora dominada pelas Constituições e leis locais. O descumprimento de uma obrigação internacional pelo Estado torna-o responsável pela reparação dos danos porventura causados (RAMOS, 2013, p.31). Ainda com base em Piovesan (op. cit.), existe um processo de formação dos tratados internacionais na Constituição Brasileira de 1988, cuja competência privativa é do Presidente da República, art.84, VIII, mas precisa do referendo do Congresso Nacional. É um processo complexo constituído pela celebração do Chefe do Executivo nacional e aprovação mediante decreto legislativo do Congresso Nacional. O procedimento para a incorporação de um tratado de direito internacional no ordenamento jurídi- co brasileiro é desenvolvido da seguinte maneira: inicialmente, o tratado necessita da assinatura de um dos representantes legislativos4 ; em seguida, é levado ao Presidente da República, que encaminha ao Congresso Nacional um requerimento de aprovação, então, é submetido para aprovação ou reprovação no Senado. Se esta casa legislativa o aprovar, segue para aprovação ou reprovação na Câmara Federal. Caso seja aprovado, compete ao Presidente do Senado elaborar um decreto legislativo para o Presidente da República, que, dis- cricionariamente, pode ratificar5 o tratado. Quando este confirma, o tratado é conduzido para publicação 2  CIDH, neste texto, significa Comissão Interamericana de Direitos Humanos 3  Uma versão anterior de parte deste tópico está disponível em: dissertação – Montenegro, Caroline Alves. STF e CrIDH: Anistia dos Crimes por motivação política no Brasil no período da ditadura militar. p.91-92 e 94-95, jun.2014 4  Os representantes legislativos deste procedimento no Brasil são os seguintes: 1- Chefe de Estado – no nosso país é um dos atributos do Presidente da República (privativamente – art.84, VIII da CF/88); 2- Pleni Potenciário – pessoa escolhida pelo Chefe do Estado e do governo (Brasil Presidente da República) com a confirmação do Ministro das Relações Exteriores – geralmente corresponde a um diplomata – que possui seus poderes plenos, mas restrito ao que dispõe a carta, que aquele recebe; 3- delegação nacional – a forma de escolha é igual à do pleni potenciário, corresponde a um grupo em missão especial para negociar e assinar um tratado internacional, que tem seus poderes submetidos ao que dispõe a carta e 4- Ministros das Relações Exteriores – ele prescinde da carta de pleno poderes. 5  O Presidente poderá deixar de ratificar um tratado internacional se houver perda de interesse, quando não cuida de interesse ao Brasil, ou, outra norma de direito internacional mais benéfica for aprovada anteriormente. O decreto legislativo apenas autoriza a ratificar, não o obriga.
  • 181. 181 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. no Diário Oficial da União. A partir de então, já existe, possui vigência, validade e obrigatoriedade no direito estatal, ou seja, está apto a produzir os efeitos jurídicos. Para Piovesan (op. cit.): [...] Há, portanto, dois atos complementares distintos: a aprovação do tratado pelo Congresso Nacional, por meio de um decreto legislativo, e a ratificação pelo Presidente da República, seguida da troca ou depósito do instrumento de ratificação. Assim, celebrado por representante do Poder Executivo, apro- vado pelo Congresso Nacional e, por fim, ratificado pelo Presidente da Repú- blica, passa o tratado a produzir o efeito jurídico (PIOVESAN, 2013, p. 138). Por outro lado, ainda com base em Piovesan (op. cit.), os tratados internacionais de direitos huma- nos, por serem considerados normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais, não necessitam do processo de formação legislativo, como os tratados internacionais tradicionais, nem do decreto de execução. Aqueles tratados internacionais de direitos humanos são automaticamente incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro, enquanto estes tradicionais necessitam se submeter ao processo não automático. Convém ressaltar que Piovesan (2011) e também Cançado Trindade são adeptos de uma corrente minoritária, os quais entendem que para os tratados de direitos humanos se adota o sistema de recepção automática, pois estes tratados seriam self- executing, ou melhor, eles se incorporam ao direito brasileiro as- sim que ratificados. Para a professora citada, o Brasil adota a concepção dualista para a vigência interna dos tratados em geral, mas no que se refere aos de direitos humanos a concepção monista, que não necessita da promulgação, em virtude da eficácia imediata que o art.5º, §1ºe 2º, lhes outorga. O professor André Carvalho tem um posicionamento distinto e para ele a incorporação de um Tratado Internacional de Direitos Humanos no ordenamento jurídico interno, não é distinto do comum, portanto, necessita obedecer às quatro fases descritas acima. Esse é o entendimento da doutrina majoritária, e, assim, estes doutrinadores são adeptos ao sistema de recepção legislativa. Observa-se, assim, que o nosso país passou por um processo de progressivo crescimento quanto ao reconhecimento dos tratados internacionais no cenário jurídico interno. Além disso, desde a promulgação da Constituição cidadã, inúmeras interpretações surgiram, atribuindo um tratamento diferenciado aos tratados relacionados aos direitos internacionais dos humanos, em razão do §2º e 3º do art.5º da CF/88. Ab initio, o STF sustentava6 que os tratados internacionais incorporados no ordenamento jurídico brasileiro gozavam de status equivalentes ao de uma lei ordinária. O grande inconveniente desta posição hierárquica consiste no fato de as leis ordinárias serem passíveis de perda de eficácia, quando surgem leis posteriores tratando do mesmo assunto de forma idêntica ou contrária. Sendo assim, o Brasil não ficava obri- gado a cumprir o tratado internacional anterior, pois não possuía nenhuma validade interna. Todavia, em 20087 , o pleno do STF, em uma maioria apertada (dos 9 ministros presentes – a vota- ção encerrou em 5x4), consagrou caráter supralegal e infraconstitucional aos tratados de direitos humanos internacionais ratificados antes da EC n°45/04. Definiu-se, a partir de então, que os direitos fundamentais não estão apenas no artigo 5° da CF/88, mas em outros dispositivos do próprio texto constitucional, de nor- mas infraconstitucionais e de tratados de que a República Federativa do Brasil faça parte. Com isso, esses tratados internacionais de direitos humanos incorporados no direito brasileiro, como direitos fundamentais, são cláusulas pétreas, correspondem aos do artigo 5°§ 2°8 da CF/88 e também possuem o mesmo quórum de uma lei ordinária. 6  Posicionamento firmado em 1977, quando o STF julgou o RE 80.004/SE. 7  Posicionamento firmado em 2008, quando o pleno do STF julgou o RE 466.343. 8  § 2º do artigo 5°da CF/88 - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
  • 182. 182 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Para Piovesan (2013), esses tratados de direitos humanos do artigo 5º § 2º, através de uma interpre- tação sistemática e teleológica, como possuem um caráter especial, são considerados normas constitucionais de aplicabilidade imediata. A jurista justificou seu posicionamento em razão do jus cogens, ou seja, esses tratados de direitos humanos constituem um direito cogente e inderrogável. Caso os tratados firmados pelo Brasil sejam tão somente internacionais, são considerados supralegais e de hierarquia infraconstitucional, em razão do princípio da boa-fé e do que diz o artigo 27 da Convenção de Viena. Partindo-se do posicionamento de Piovesan (2013), constata-se que os tratados de direitos humanos, mesmo ratificados antes da EC/45, que excederam o quorum necessário para tornar-se uma Emenda Cons- titucional, seriam recepcionados como normas materialmente constitucionais. O quorum qualificado tão so- mente reforça a natureza constitucional, fundamentada em razão de o tratado ser considerado internacional de direitos humanos. Neste sentido: [...] Com efeito, nunca é demais lembrar que a tese da paridade entre a Constituição e os tratados de direitos humanos é anterior à EC45 e encon- tra sustentação já no teor do §2º do mesmo artigo, que, na sua condição de norma inclusiva, consagrando a abertura material do catálogo constitucional de direitos fundamentais, já vinha- e a doutrina já colacionada em prol da hierarquia constitucional assim já o sustenta há tempos – sendo interpretado como recepcionando os direitos humanos oriundos de textos internacionais na condição de materialmente constitucionais (SARLET, 2010, p.90). Não restam dúvidas o crescimento progressivo das questões relacionadas aos direitos humanos, assim como, a necessidade dos países membros dos sistemas internacionais e regionais se comprometerem com a consolidação destes direitos, para evitar qualquer forma de enfraquecimento, debilidade, restrição da poten- cialidade daqueles sistemas. O Brasil, enquanto um Estado democrático de direito, vem adotando, a partir da Constituição cidadã (CF/88), atos relacionados à sua soberania externa como: tratados, acordos e convenções regionais e inter- nacionais relacionadas aos direitos humanos. Ademais, em conflitos de normas de direitos internacionais dos direitos humanos há uma tendência de se faz valer a primazia da norma mais favorável à dignidade humana, quer dizer, o princípio internacional pro homine, não importa se é um decreto, ou, qualquer tipo de lei, assim como, o princípio da proibição do retrocesso. Em síntese, o que se constata é que há quatro correntes com relação à natureza jurídica do Tratado Internacional de Direitos Humanos, antes da EC/45, a saber: 1ª corrente – supraconstitucionalidade 2ª corrente – constitucionalidade 3ª corrente – supralegalidade 4ª corrente – legal Convém ressaltar que, a tese atual do STF é da natureza jurídica supralegal às normas internacionais de direitos humanos anteriores a EC/45. Ademais, já se decidiu no STF que, a Convenção Americana quando amplia direito das pessoas deve ser aplicada, ainda que a CF/88 ofereça uma proteção menor, seja pela tese da supralegalidade, seja pela tese da norma mais benéfica. 2. CONTROLE DE CONVENCIONALIDADE E A TUTELA MULTINIVEL DE DIREITOS FUNDAMENTAIS O Brasil é detentor de direitos e obrigações na área de direitos humanos que devem ser cumpridos sob pena de ofensa as normas positivadas na Constituição e na Convenção Americana, já que o nosso país não
  • 183. 183 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. apenas é membro da OEA assim como, ratificou a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) em 1992, reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana9 , e também é signatário de tratados de direitos humanos tanto no âmbito interamericano quanto universal (leia-se das Nações Unidas). A importância da internacionalização dos direitos humanos no Brasil se justiça também através do art.7º do ADCT10 . Constata-se como afirma Ramos (2013) que o “Diálogo das Cortes” entre órgãos interna- cionais de direitos humanos não consiste em uma obrigação que deve ser realizada pelos juízos nacionais, sob pena de ofensa a independência funcional e ao Estado Democrático de Direito. No entanto, deve-se ter em mente que, o Controle da Constitucionalidade cabe ao STF e nosso país deve também se submeter a um controle de convencionalidade, como um mecanismo interno do cumprimento de obrigações internacionais, decorrentes da Convenção Americana. A existência de um controle de convencionalidade no país – leis comuns (ordinárias e complemen- tares) e a obediência também dos tratados internacionais de direitos humanos, da Convenção Americana. O controle de convencionalidade possui dois efeitos: 1- revogam as normas infraconstitucionais contrárias à Convenção Americana e 2- impedem que normas infraconstitucionais contrárias à Convenção ingressem no sistema normativo. Para Ramos (2013), um exemplo do duplo controle (Constitucionalidade e Convencionalidade) exis- tente no Brasil corresponde a ADPF nª153 e o Caso Gomes Lund vs.Brasil. Com a decisão do STF, houve por maioria de votos, uma anistia dos agentes da ditadura militar no Brasil. Já, para CrIDH: não se pode invocar a anistia pelos mesmos agentes. Constata-se que para ocorrer um diálogo entre a jurisdição nacional e a internacional é preciso que ocorra uma interpreção dinâmica, ficando a cargo dos tratados internacionais esclarecerem e desenvolverem os princípios e regras neles estabelecidos. A partir do momento em que há um cumprimento das obrigações internacionais, observa-se também, uma maior abertura para a utilização das jurisprudências dos órgãos in- ternacionais de proteção de direitos humanos, consequentemente, uma tendência à formação de um diálogo multinível de proteção destes direitos. A tutela multinível de direitos fundamentais e/ou humanos tem sido um assunto de tendência inter- nacional e de grande importância para o direito constitucional. Por meio deste estudo, podem-se introduzir novas formas de jurisdição, quer seja por meio de uma constitucionalização de direitos, ou, de uma interna- cionalização de direitos fundamentais previstos nas Constituições. Podem-se citar, como uma forma de reflexão sobre a proteção multinivel dos direitos fundamentais, debatendo-se a atuação do nosso país no Sistema Interamericano de Direitos Humanos, as novas interpre- tações jurisprudenciais no ambiente interno em razão de uma releitura de determinados casos com enfoque no que diz o Pacto de São José da Costa Rica. O caso do depositário infiel e da audiência de custódia serão abordados. A audiência de custódia é oriunda de um projeto de lei do Senado Federal (PL nº554/2011) com a finalidade de alterar a redação do §1º do art.306 do CPP, como uma tentativa de combater a tortura e maus tratos dos presos em flagrante, permitindo um contato imediato do preso com o juiz, na presença do Minis- tério Público e com defensor, o preso não mais será apenas comunicado por meio de um papel ao juiz. Há também a ADPF nº347, em que o Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu parcialmente cautelar, solici- tada, que pede providências para a crise prisional do país. O Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu parcialmente cautelar, solicitada na Arguição de Des- cumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, que pede providências para a crise prisional do país, a fim de determinar aos juízes e tribunais que passem a realizar audiências de custódia, no prazo máximo 9  O Brasil reconheceu a jurisdição da CrIDH em dezembro de 1998 por meio do decreto legislativo n.89 de 3 de dezembro de 1998. 10  Art. 7º. O Brasil propugnará pela formação de um tribunal internacional dos direitos humanos.
  • 184. 184 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. de 90 dias, de modo a viabilizar o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária em até 24 horas contadas do momento da prisão. Na ADPF 347 postulou-se, em síntese, que o STF reconheça e declare o estado de coisas inconstitu- cional do sistema prisional brasileiro, e, diante disso, imponha a adoção de uma série de medidas voltadas à promoção da melhoria das condições carcerárias do país e a contenção e reversão do processo de hiperencar- ceramento que o Brasil vivencia. Mesmo sem ainda ter sido aprovado no Congresso Nacional, a audiência de custódia tem sido utilizada como uma sugestão do CNJ para ser implementada em todo país, com garantia do que dispõe a Convenção Americana em seu §5º, art. 7º. Nesse sentido, observa-se o que trata Lima (2015), a saber: Apesar de tal projeto ainda não ter sido aprovado pelo Congresso Nacional, o Conselho Nacional de Justiça e alguns Tribunais de Justiça dos Estados já vem adotando resoluções e procedimentos com o objetivo de implementá-la, porquanto se trata de garantia convencional decorrente da própria Conven- ção Americana sobre os direitos humanos (Dec.678/92), dotada de status normativo supralegal, cujo art.7º, §5º, dispõe que:”toda pessoa detida ou re- tida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autori- dade pela lei que exercer funções judiciais.”[...] (LIMA, 2015, p.927) No Brasil tem o caso do depositário infiel e a edição da Súmula Vinculante n. 25, que por força da- quela Convenção considera a prisão civil do depositário infiel ilegal, qualquer que seja a sua modalidade do depósito. Há interpretações no sentido de que a partir de então, houve uma mutação informal na constitui- ção, não admitindo a prisão civil no caso citado, com sucedâneo na Convenção Americana. Para estes juristas a natureza jurídica dos tratados internacionais de direitos humanos seria constitucional. Tese não admitida no STF, pois o posicionamento atual da Suprema Corte é de que as normas internacionais de direitos huma- nos anteriores a EC/45 tem natureza jurídica supralegal. CONSIDERAÇÕES FINAIS A proteção do dos Direitos Humanos tem se ampliado, complementando o sistema jurídico nacional, não sendo causa de antinomias, nem sendo forma de ofensa à soberania nacional, mas conferindo maior cooperação à efetividade destes direitos, frente às violações mundiais, principalmente após as Guerras Mun- diais do século passado e as arbitrariedades dos regimes nazista e fascista, não deixando de lado as ditaduras da América na década de 70. O Sistema Interamericano é formado pelos países das Américas, que fazem parte da OEA, possui como principal instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica, além de alguns protocolos e tratados de direitos humanos. Alguns Estados partes deram passos dinâ- micos e evoluídos com relação ao reconhecimento dos tratados internacionais de direitos humanos em suas constituições internas, o que é muito importante, pois associado a esse pressuposto deve existir instituições democráticas e Estados de direito, para evitar qualquer forma de enfraquecimento, debilidade, restrição da potencialidade do Sistema no continente americano. O controle de convencionalidade no Brasil representa um importante avanço no constitucionalismo interno, sendo uma das formas de se concretizar o desejado Estado constitucional e humanista de direito, as- sim como, ser uma forma de validade normativa nacional. Ademais, leva ao Estado brasileiro e demais países da América, membros da OEA e signatários do Pacto de San José da Costa Rica, a adequarem a sua produção legislativa às obrigações internacionais ajustadas, caso contrário, eles se tornam sujeitos de responsabilidade internacional. Há uma tendência ao tratamento diferenciado dos direitos e garantias fundamentais na Constituição de 1988, por conseguinte, uma maior abertura em relação às normas internacionais, resultando em uma
  • 185. 185 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. ampliação do “bloco de constitucionalidade”. Esse fato é importante para a aplicação da tutela multinível de direitos fundamentais e/ou humanos que tem sido um assunto de tendência internacional e de grande importância para o direito constitucional. REFERÊNCIAS CASA CIVIL. 1988. Constituição da Republica Federativa do Brasil. Brasília. Senado Federal. Dispo- nível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm#adct Acesso em: 10.01.16. LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. Bahia: Editora JusPodvim, 2015. MONTENEGRO, Caroline Alves. STF e CrIDH: Anistia dos Crimes por motivação política no Brasil no período da ditadura militar. CDU 342.7(81). p.91-92 e 94-95, defesa em jun.2014 NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e Direito Constitucional Internacional. 12ed. São Paulo: Sa- raiva, 2011. ___________________. Manual de Direito Internacional Público. 19ed. São Paulo: Saraiva, 2011. ___________________. Temas de Direitos Humanos. 6 ed. São Paulo: Saraiva 2013. RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de direitos Humanos. 3ed. São Paulo: Saraiva, 2013. SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos Fundamentais e Tratados de Direitos Internacionais em matéria de Direitos Humanos: Revisitando a Discussão em torno dos Parágrafos 2º e 3º do art.5º da Constituição Federal de 1988. In: NEVES, Marcelo (Coord.). Transnacionalidade do Direito: Novas Perspectivas dos Con- flitos entre Ordens Jurídicas. São Paulo: Quartier Latin, 2010.
  • 186. 186 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A CRISE CONTEMPORÂNEA DOS REFUGIADOS, DIREITOS HUMANOS E POLÍTICAS PÚBLICAS David Cavalcante Mestre em Ciência Política-UFPE e Graduando em Direito-UNICAP SUMÁRIO: Introdução; 1. Os refugiados e os direitos humanos no pós-segunda guerra; 2. O brasil e os direito humanos dos refugiados; Considerações finais; Referências. INTRODUÇÃO Há anos um tema humanitário internacional não chamava tanta atenção da sociedade civil, dos governos e da imprensa mundial quanto o tema dos refugiados, oriundos principalmente da Síria para a Europa. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) responde pela assistência internacional prestada aos refugiados e, sob determinadas condições, aos deslocados internos e apátridas. Em 2012, o número de pessoas com necessidade de apoio no mundo atingiu 45,2 milhões, número que vem crescendo com o recrudescimento da Guerra Civil na Síria. OBrasilésignatárioda ConvençãoInternacionalsobreoEstatutodosRefugiadosde1951 edo Protocolo de 1967 – além de integrar o Comitê Executivo do ACNUR, desde 1958. Esses tratados normatizam a relação do país com os refugiados e apátridas que poderão solicitar refúgio no Brasil, devido a fundado temor de ser perseguido por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social específico ou opinião política, encontrem-se fora de seu país de nacionalidade e não possam devido a tais temores, ou não queiram retornar ao país de origem, buscando preservar suas vidas. A política brasileira para o acolhimento de refugiados avançou bastante nas últimas duas décadas, após a promulgação do Estatuto do Refugiado (Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997). Essa lei instituiu as normas aplicáveis aos refugiados e aos solicitantes de refúgio no Brasil e criou o Comitê Nacional para os Re- fugiados (CONARE) – órgão responsável por analisar os pedidos e declarar o reconhecimento, em primeira instância, da condição de refugiado, bem como por orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados. Este trabalho busca analisar o avanço do marco jurídico no trato da questão dos refugiados, ao passo que analisa de forma crítica a insuficiência de políticas públicas reais para recepcioná-los com mais ênfase na agenda contemporânea governamental brasileira, principalmente diante do cenário na crise do Oriente Médio. 1. OS REFUGIADOS E OS DIREITOS HUMANOS NO PÓS-SEGUNDA GUERRA A temática do refúgio humanitário internacional não chamava tanta atenção da sociedade civil e da imprensa mundial, desde a Segundo Guerra Mundial. Jornais, revistas, sites, declarações de governos e instituições evidenciam a progressiva e dolorosa travessia de milhões de refugiados da África e da Ásia para Europa ou para países vizinhos oriundos das regiões em conflitos violentos, guerras civis e drásticas crises econômicas.
  • 187. 187 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. O fator mais emblemático dos últimos anos para o aumento dos refugiados é a Guerra Civil na Síria onde as informações dão conta que mais de 4 milhões de pessoas já foram expulsas de suas casas e ci- dades devido aos enfrentamentos militares, ou seja, quase ¼ da população total daquele país. As informações de ativistas de direitos humanos, dentro e fora da Síria, dão conta que o número de mortos no conflito pode passar das 220 mil pessoas, sendo a grande maioria de civis, sendo que mais de 130 mil pessoas teriam sido detidas pelas forças de segurança do governo.  A grande maioria dos 4 milhões de sírios que já teriam buscado refúgio no exterior para fugir dos combates, tentam abrigo nos países vizinhos, como no Líbano, Jordânia, Iraque e Turquia. No entanto, esses países, já atingidos por fortes conflitos internos e sem grandes infraestruturas para receber uma po- pulação tão numerosa, acabam por estimular também um corredor migratório para a Europa, mediado pelo tráfico clandestino de pessoas, pelas travessias perigosas do Mar Mediterrâneo até o velho continente, através da Grécia e Itália. Esta nova rota migratória soma-se aos já constantes e massivos fluxos oriundos da África. O fenômeno do refúgio não é novo. Os povos, ao longo da história, sempre se depararam com migrações em massa resultantes das guerras e conflitos militares entre os países e até mesmo intraregionais. O conceito de “refugiados” compreendido de forma lato sensu é um fenômeno histórico e social presente na humanidade desde a antiguidade, mas localizando-o no âmbito jurídico e político do Direito Internacional e dos Direitos Humanos é o tratamento diferenciado que os Estados passam a ofertar às populações migrantes forçadas a se retirarem de suas pátrias originárias por motivos de ameaças iminentes às suas vidas e/ou de proteção familiar. De modo que o estatuto de proteção ao refúgio adquire relevância no âmbito da ascensão contemporânea dos Direitos Humanos: Quando se relacionam refugiados e direitos humanos, imediatamente perce- be-se uma conexão fundamental: os refugiados tornam-se refugiados porque um ou mais direitos fundamentais são ameaçados. Cada refugiado é conse- quência de um Estado que viola os direitos humanos. Todos os refugiados têm sua própria história – uma história de repressão e abusos, de temor e medo. Há que se ver em cada um dos homens, mulheres e crianças que buscam refúgio o fracasso da proteção dos direitos humanos em algum lu- gar. Os mais de 20 milhões de refugiados acusam esse dado [...] Há assim uma relação estreita entre a Convenção de 1951 e a Declaração Universal de 1948, em especial seu art. 14, sendo hoje impossível conceber o Direito Internacional dos Refugiados de maneira independente e desvinculada do Direito Internacional dos Direitos Humanos. Esses Direitos têm em comum o objetivo essencial de defender e garantir a dignidade e a integridade do ser humano. [...] (PIOVESAN, 2015, p. 254) A resultante destrutiva das forças produtivas e da humanidade, herdadas da Segunda Guerra Mun- dial, desenvolveram um nova consciência política-jurídica e iniciativas humanitárias que pudessem acolher às milhões de vítimas do maior conflito bélico já registrado no planeta. Além dos mais de 50 a 70 milhões de mortes, confiscos de propriedades e toda a modificação da geopolítica internacional, os sobreviventes da destruição constituíram as correntezas humanas em busca de países viáveis para trabalhar e viver com suas famílias, já anteriormente desfeitas e abaladas por perdas materiais e de seus parentes. Somente nos Estados Unidos, país que não teve seu território continental atingido pelos conflitos militares, entre os anos de 1945 e 1952, admitiram em seu território 400.000 sobreviventes do nazismo, deslocados de guerra, e entre eles 96.000, cerca de 24%, eram judeus. Nesse contexto, em face da necessidade de acolhimento das migrações dos sobreviventes da II Guer- ra que cujos países foram destruídos foi aprovada no âmbito da Conferência da Organizações das Nações Unidas – ONU, realizada em 28 de julho de 1951, A Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados que constitui um inovador status jurídico para os refugiados. A citada Convenção, em seu art. 1, § 1, alínea c, define que são refugiados as pessoas que se encon- tram fora do seu país por causa de fundado temor de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade,
  • 188. 188 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. opinião política ou participação em grupos sociais, e que não possam (ou não queiram) voltar para casa. Tam- bém são refugiados as pessoas obrigadas a deixar seu país devido a conflitos armados, violência generalizada e violação massiva dos direitos humanos. Naquela data, a Convenção se restringia a contemplar somente os refugiados resultantes dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, mas posteriormente essa restrição temporal foi substituída por uma maior amplitude no Protocolo de 1967 Relativo ao Estatuto dos Refugiados, seu Art. 1º, § 2º, ampliando a cobertura temporal e geográfica da Convenção: Para os fins do presente Protocolo, o termo “refugiado”, salvo no que diz respeito à aplicação do §3 do presente artigo, significa qualquer pessoa que se enquadre na definição dada no artigo primeiro da Convenção, como se as palavras “em decorrência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janei- ro de 1951 e...” e as palavras “...como conseqüência de tais acontecimentos” não figurassem do §2 da seção A do artigo primeiro.[...] O presente Protocolo será aplicado pelos Estados Membros sem nenhuma limitação geográfica; en- tretanto, as declarações já feitas em virtude da alínea “a” do §1 da seção B do artigo1 da Convenção aplicar-se-ão, também, no regime do presente Proto- colo, a menos que as obrigações do Estado declarante tenham sido ampliadas de conformidade com o §2 da seção B do artigo 1 da Convenção. A Convenção e o Protocolo ressignificaram a relação dos Estados que aderiram às mesmas, decisão que foi resultante da Assembleia Geral de 1950 (Resolução n. 429 V), convocando em Genebra, em 1951, a Conferência de Plenipotenciários das Nações Unidas para redigir a Convenção regulatória que atribui um novo status legal dos refugiados. A partir de tal ano, consolidam-se prévios instrumentos legais internacionais relativos aos refugiados, fornecendo a mais compreensiva codificação dos direitos dos refugiados a nível internacional, estabelecendo padrões básicos para o tratamento de refugiados, sem, no entanto, impor limites para que os Estados possam desenvolver esse tratamento, pois o amparo não atenta contra a soberania das nações.   A Convenção somente entra em vigor em 22 de abril de 1954, mas deve ser compreendida no cená- rio político das pressões da nova consciência planetária sobre as Nações Unidas, que também, já em 1950, constitui o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). O ACNUR foi criado pela As- sembleia Geral da ONU, em 14 de dezembro de 1950, para proteger e assistir às vítimas de perseguição, da violência e da intolerância. Tal agência já ajudou mais de 50 milhões de pessoas, sendo atualmente uma das principais agências humanitárias do mundo. O crescimento contemporâneo dos fluxos de refugiados remete-nos à II Guerra Mundial. As seqüelas humanitárias da II Guerra e do após-Guerra são incomensuráveis, demonstrando que para além das redefi- nições geopolíticas e da emergência do novo sistema mundial de Estados, as perdas e os desterros humanos são a face mais cruel já registrada na história mundial. Como destaca Paiva: O final da II Guerra Mundial marcou o início da colocação, fora da Europa, de um contingente significativo de pessoas vítimas do conflito. Os números são controversos, mas não seria equivocado afirmar que aproximadamente dois milhões de pessoas estavam fora de suas regiões de origem após o con- flito, vítimas de deslocamentos forçados por forças de ocupação. [...] Em sua maioria, eram egressos de países que foram situados, após o conflito, na zona denominada Leste Europeu e, portanto, na órbita política da União Sovié- tica. A organização de campos de refugiados na Alemanha, Áustria, Itália e Grécia, e a posterior inserção desses sujeitos em diversos países, demonstrou quão complexas eram as formas da política internacional a partir da segunda metade do século XX. Entre 1947 até 1951 a Organização Internacional de Refugiados foi a principal responsável pela realocação desse contingente em diversos países do bloco ocidental, dentre eles Israel, Estados Unidos, Aus- trália, África do Sul, Nova Zelândia, Venezuela, Argentina, Peru, Canadá, etc. (PAIVA, 2009)
  • 189. 189 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Percebe-se que a principal vítima das Guerras são os Direitos Humanos, onde os direitos funda- mentais são pisoteados em nome das conquistas, naquele contexto, das correntes ideológicas nacionalistas, exacerbadas principalmente pelo nazismo alemão e pelo fascismo italiano que desencadearam máquinas assassinas de extermínio humano, principalmente no continente europeu. Assim, localiza-se historicamente o surgimento da Declaração Universal dos Direitos dos Direitos Humanos de 1948 como referência político-jurídica normativa para a constitucionalização dos Direitos Hu- manos em diversos países bem como para os tratados e convenções internacionais que envolvam a temática dos direitos referidos. Piovesan lembra que: [...] a Declaração de 1948 vem a inovar ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivi- sibilidade desses direitos. Universalidade porque clama pela extensão uni- versal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a ga- rantia dos direitos civis e político é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais. (PIOVESAN, 2015, p 49) A derrota do nazifascismo pela aliança do Ocidente com a URSS foi um marco histórico mun- dial para a reemergência dos Direitos Humanos como uma pauta universal, já que a guerra, os regimes totali- tários e a ideologia da unidade nacional, em detrimento da democracia e dos direitos contra o inimigo externo foi que prevaleceu na pauta política e no regime político da maioria dos países, inclusive onde havia tradição democrática anterior. Sem dúvida a construção de uma nova agenda internacional dos Direitos Humanos é a resultante do sentimento ético mundial em repúdio aos massacres da II Guerra que resultou, a partir da constituição do novo sistema mundial de Estados, na formação da Organização das Nações Unidas, em 1945, como bem define sua Carta de Fundação1 : Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vin- douras do flagelo da guerra, que, por duas vezes no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igual- dade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes de direito internacional possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla [...] E para tais fins praticar a tolerância e viver em paz uns com os outros, como bons vizinhos, unir nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais, garantir, pela acei- tação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será usada a não ser no interesse comum, e empregar um mecanismo interna- cional para promover o progresso econômico e social de todos os povos [...] As crises humanitárias relacionadas aos fatores políticos, econômicos e mili- tares, são recorrentes e mesmo depois da criação da ONU, logo em seguida, novos fatores geopolíticos de disputas de territórios e recursos naturais no planeta são os grandes causadores dos processos migratórios forçados, prin- cipalmente àqueles relacionados com os interesses dos países imperialistas e beligerantes. Basta destacar que, já em 1947, apenas 2 anos após o fim da Segunda Guerra, em seguida à criação do Estado de Israel, mais de 700 mil 1  http://nacoesunidas.org/conheca. Acesso em 25 de set. 2015.
  • 190. 190 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. palestinos foram expulsos por medo, massacres de civis ou pela Guerra Israel x países árabes. Os refugiados da Palestina foram as primeiras vítimas, depois da Segunda Guerra, de uma migração forçada em massas. Daí surge a Agência das Nações Unidas para os Refugiados Palestinos - UNRWA, que trabalham com a definição de que os refugiados palestinos são as “pessoas cujo lugar de residência habitual era o Mandato Britânico da Palestina entre junho de 1946 e maio de 1948 e que perderam suas casas e meios de vida como consequência da Guerra árabe-israelense de 1948”, ou seja, aos milhares foram aqueles obri- gados a deixar a região da Palestina onde se constituiu o Estado de Israel, refugiando-se nas outras partes da região e países vizinhos. O número de refugiados palestinos chega a mais de 4 milhões de pessoas, sendo que a Resolução 194 da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 11 de dezembro de 1948, seria a primeira de uma série de resoluções da ONU a mencionar a necessidade de se chegar a um acordo justo para o retorno dos refugiados ou para compensá-los pelas perdas e danos sofridos. A ONU considera também os descendentes dos refugia- dos de 1948, de modo que o número total de refugiados registrados seria, atualmente, superior a população palestina que vive sob os territórios ocupados da Cisjordânia e Faixa de Gaza. No entanto, na contemporaneidade - destacando-se nas últimas décadas a crise do Estado de Bem Estar Social Europeu e a Primara Árabe - o número de refugiados no mundo não pode ser visto sem relações com a economia global que, por um lado, está cada vez mais internacionalizada, informatizada e financeiri- zada, por outro, cada vez mais excludente e concentradora de riqueza nas mãos de uma pequena minoria de bilionários, principalmente a partir da Crise Financeira desencadeada nos Estados Unidos em 2008, o que aprofundou a crise do capitalismo global, aumentando o número de refugiados no mundo, agregando mais motivações para guerras e migrações também relacionadas aos problemas econômicos, como bem demonstra o gráfico: Figura 1 - Aumento das migrações forçadas2 No caso dos refugiados sírios, tal tragédia se inicia com a resposta interna que o governo do Presi- dente Bashar al Assad oferece à revolta popular por democracia e direitos civis ocorrida em vários países do Oriente Médio e Norte da África, conhecida como Primavera Árabe, que ao chegar à Síria, foi respondida por massacres de militares a civis e o uso de armas química. O Presidente Assad governa a Síria desde o ano de 2000, quando sucedeu seu próprio pai, após 30 anos de poder absoluto do genitor, mas o país vive uma guerra civil onde vários grupos internos e externos atuam e controlam parte daquele território, como é demonstrado no mapa da guerra civil, que já dura mais de 4 anos, onde o governo controla apenas uma pequena parte do território e as outras 4 partes são contro- ladas pelos Curdos e suas organizações políticas e militares, pelo Estado Islâmico cujo poder se expande até o Iraque, pelo Exército Livre da Síria e pelo grupo terrorista, Frente Al Nusra/Al Qaeda; entre tantos outros grupos. 2  Fonte: ACNUR. Disponível em http://www.acnur.org/t3/portugues/. Acesso em 25 de set. de 2015.
  • 191. 191 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A guerra civil agravou algumas rotas de fuga para os refugiados aos países vizinhos, mas também para a Europa como bem evidencia o noticiário internacional. A rota de migração para a Europa passa pela Turquia, Grécia e Itália de forma que as viagens são extremamente perigosas e submetem famílias inteiras, incluindo crianças, a condições sub-humanas de viagens de milhares de quilômetros à pé, sem alimentação nem direito a acampamentos organizados, submetidos às humilhações, agressões e aos “coiotes” que são os mercenários que organizam as trilhas sob condições extorsivas, sendo que as viagens não-raramente termi- nam em mortes por afogamento, estupros, doenças ou fome. 2. O BRASIL E OS DIREITO HUMANOS DOS REFUGIADOS O Brasil, partindo de um atraso histórico de desenvolvimento econômico e social, típico da resultante do processo de colonização e desenvolvimento tardio do capitalismo nos países latino-americanos e nesta esteira, também permeado por um anacronismo na edificação de uma sociedade civil ativa bem como de instituições e instâncias de poder estatais modernas e democráticas. Bem ao inverso, a evolução política do país tem como marcas fundantes uma herança monárquica que, ao contrário dos países vizinhos em seus processos de libertação nacional, perdurou por quase 70 anos no Século XIX, resultando ainda numa república oligárquica e elitista em seus primórdios, bem como um re- tardo na garantia dos direitos civis e mais ainda, dos direitos sociais e coletivos, agravados por toda a herança escravocrata. Neste aspecto, a Constituição de 1988 é considerada a Constituição Cidadã, em razão dos princípios norteadores de sua aprovação pela Assembleia Constituinte de 1987-88 estarem referenciados no primado dos Direitos Fundamentais que foram totalmente vilipendiados pelo regime ditatorial de 1964-84. Sobre o processo de transição à democracia e o papel da Constituição de 1988, o historiador Boris Fausto destaca: Com todos os seus defeitos, a Constituição de 1988 refletiu o avanço ocor- rido no país especialmente na área da extensão de direitos sociais e políti- cos aos cidadãos em geral e às chamadas minorias. Entre outros avanços, reconheceu-se a existência de direitos e deveres coletivos, além dos indivi- duais. A partir daí, a faculdade de impetrar mandado de segurança contra autoridade pública para proteger direitos líquidos foi estendida aos partidos políticos com representação no Congresso e às organizações sindicais. Os constituintes criaram também a figura do habeas-data, pela qual o cidadão pode assegurar a obtenção de informações relativas a sua pessoa, constan- tes de registros de entidades governamentais. O objetivo desse direito é o de impedir que registros secretos, especialmente de natureza policial, sejam utilizados contra as pessoas, como ocorreu no regime autoritário. No que diz respeito as minorias, um capítulo da Constituição reconheceu aos índios “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos ori- ginários sobre as terras eu tradicionalmente ocupam. O texto constitucional é bastante abrangente, mas, mais do que em qualquer outro campo, há aqui uma enorme distância entre o que diz a lei e o que acontece na prática. [...] (FAUSTO, 2013, p. 446) No vácuo do processo de transição desencadeado pelas mobilizações sociais por democracia, liberda- de e direitos civis, é promulgada a Carta Magna de 1988 e também com suas contradições e limitações, mas com avanços significativos, incorpora em seus princípios fundamentais o perfil garantista principiológico e normativo dos direitos humanos fundamentais. Neste esteio, é que se erigem no elenco dos direitos constitucionalmente garantidos por força do art. 5º, § 2º, a hierarquia dada aos tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, assentados na dig- nidade da pessoa humana, entre os quais estão incluídos os tratados que abrangem o direito dos refugiados. Porém, somente em 1997 é sancionada a Lei nº 9.474/97 que trata da regulamentação e define mecanismo para implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951.
  • 192. 192 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A partir da Lei nº 9.474/97 nasce o Comitê Nacional dos Refugiados-CONARE, órgão colegiado, vin- culado ao Ministério da Justiça, que reúne segmentos representativos da área governamental, da Sociedade Civil e das Nações Unidas, e que tem por finalidade: a) analisar o pedido sobre o reconhecimento da condição de refugiado; b) deliberar quanto à cessação “ex officio” ou mediante requerimento das autoridades compe- tentes, da condição de refugiado; c) declarar a perda da condição de refugiado; d) orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência, integração local e apoio jurídico aos refugiados, com a participação dos Ministérios e instituições que compõem o Conare; e e) aprovar instruções normativas que possibilitem a execução da Lei nº 9.474/97. O CONARE é composto por representantes do Ministério da Justiça, que o preside; Ministério das Relações Exteriores, que exerce a Vice-Presidência; Ministério do Trabalho e do Emprego; Ministério da Saú- de; Ministério da Educação; Departamento da Polícia Federal; Organização não-governamental, que se dedi- ca a atividade de assistência e de proteção aos refugiados no País – Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e Rio de Janeiro; e Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, com direito a voz, sem voto. Percebe-se que no âmbito normativo o Brasil tem sido referência para o continente, no que diz respei- to das garantias dos direitos humanos ao estrangeiro refugiado, no entanto como destaca Piovesan, o aspecto normativo deve ser acompanhado de medidas práticas duradouras haja vista as dificuldades de assistência até mesmo para utilização dos recursos jurídicos no âmbito da postulação da inserção social na comunidade nacional. [...] É necessário que a problemática dos refugiados seja enfrentada sob a perspectiva dos direitos humanos. Hoje é amplamente reconhecida a inter- -relação entre o problema dos refugiados, a partir de suas causas principais (as violações de direitos humanos) e, em etapas sucessivas, os direitos hu- manos. Assim, devem os direitos humanos ser respeitados antes do processo de solicitação de asilo ou refúgio, durante ele e depois dele (na fase final das soluções duráveis). Há uma relação direta entre a observância das normas de direitos humanos, os movimentos de refugiados e os problemas da proteção, sendo necessário abarcar a problemática dos refugiados não apenas a partir do ângulo da proteção, mas também da prevenção e da solução (duradoura ou permanente). (PIOVESAN, 2015, p. 257) Das informações oficiais do Ministério da Justiça, há registros de menos de 5 mil refugiados no país. Número que diante da situação internacional revela-se bastante reduzido haja vista as levas de refugia- dos noticiados na imprensa mundial que se somam aos milhões. A importância de recepção dos refugiados no território nacional reforçaria nossos laços de intercâmbio culturais e abrangência das relações humanitárias entre a população brasileira e os povos do mundo inteiro, exemplo que deve ser praticado ante a o aprofun- damento do processo da globalização onde prevalecem os interesses comerciais e financeiros em detrimento dos interesses da pessoa humana. CONSIDERAÇÕES FINAIS Vimos que no campo normativo há importantes avanços no reconhecimento dos Direitos Humanos que incidem também na esfera internacional pelas resoluções e convenções das Nações Unidas com relação ao tratamento jurídico e acolhimento dos refugiados no mundo, no espírito de que a liberdade constitui um direito humano fundamental universal, tal como o refúgio. Neste âmbito, a detenção de solicitantes de refúgio não deve ser aceita, tendo como referência a Con- venção sobre Refugiados. Principalmente quando se incluem pessoas muito vulneráveis – crianças, mulheres sozinhas e pessoas que necessitam de cuidados especiais de caráter médico ou psicológico, como é o caso daqueles que foram objeto de tortura. Os requerentes de asilo não devem ser considerados criminosos, pois sofreram muitos infortúnios e o seu encarceramento é um procedimento abusivo.
  • 193. 193 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A Convenção de 1951 relativa ao Estatuto dos Refugiados e o Protocolo de 1967 Relativo ao Estatu- to dos Refugiados são dois grandes referenciais relevantes universais para a temática mais abrangente dos Direitos Humanos internacionais cujo impacto na constitucionalização dos direitos humanos no Brasil se traduziu também na criação do Conselho Nacional para Refugiados-CONARE. O passo mais difícil são as medidas dos governos conservadores da Europa, os quais muitas vezes fecham as fronteiras e acabam dificultando ainda mais as condições de travessia ou permanência dos povos refugiados em busca de um lar para viver. O outro passo é desenvolver políticas públicas internacionais e nacionais que possam acolher os refugiados nos países receptores para incluí-los em condições de tratamento igualitário aos migrantes legais, onde possam ter moradia, trabalho, saúde e escolas. Este último é o mais distante em vista de que diante de uma profunda crise econômica internacional os governos apelam para os sentimentos nacionalistas e xenófobos para dificultar e impedir a permanência dos povos refugiados. Daqui se deduz o papel que deve o papel da sociedade civil, organizações sindicais, movimentos so- ciais, organizações não-governamentais e de solidariedade, governos estaduais e locais, no sentido de pres- sionar os parlamentos e os governos, bem como as instituições e eventos internacionais para que busquem superar as boas intenções e tratem de efetivar orçamentos e políticas públicas reais para apoiar os refugiados do mundo inteiro. O Brasil pela sua tradição política e jurídica pode ampliar suas políticas públicas, envolvendo a socie- dade civil, no sentido de receber uma maior quantidade de refugiados, bem como desenvolver mecanismos de inserção dos refugiados na comunidade e na economia locais com vistas ao cumprimento dessa missão humanitária tão relevante nos dias atuais. REFERÊNCIAS BRASIL. Presidência da República. Lei nº 9.747, de 22 de julho de 1997. Define mecanismos para a implementação do Estatuto dos Refugiados de 1951, e determina outras providências. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14ª Ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º ao 5º da Constituição de República Federativa do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2011. PAIVA, Odair da Cruz. Refugiados da Segunda Guerra Mundial e os Direitos Humanos. Disponível em http:// diversitas.fflch.usp.br/node/2180. Acesso em 25 de set. de 2015. PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2015.
  • 194. 194 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate.
  • 195. 195 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. LEI MARIA DA PENHA: UMA ANÁLISE CRÍTICA DA OCORRÊNCIA DE PRISÕES PREVENTIVAS E DAS FORMAS DE RESOLUÇÃO DE CONFLITOS DOMÉSTICOS Débora de Lima Ferreira Mestranda-bolsista CAPES-PROSUP do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. Advogada Marília Montenegro Pessoa de Mello Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora do programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Pernambuco e da Graduação em Direito da UNICAP e UFPE. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Asa Branca de Criminologia. SUMÁRIO: 1. O movimento feminista no Brasil e a luta no combate a violência contra mulher; 2. As estratégias punitivas da Lei Maria da Penha para o enfrentamento da violência doméstica contra a mulher e o simbolismo penal; 3. Investigando a realidade da aplicação das prisões preventivas e das formas de resolução dos conflitos domésticos à luz da criminologia crítica; Conclusão; Referências. 1. O MOVIMENTO FEMINISTA NO BRASIL E A LUTA NO COMBATE A VIOLÊNCIA CONTRA MULHER No Brasil, o reconhecimento das mulheres enquanto novo sujeito social deveu-se, essencialmente, ao estabelecimento do feminismo, um movimento que visa consagrar não só os direitos das mulheres, mas também os direitos sociais, humanos e políticos. Neste sentido, as feministas têm um desafio político e pe- dagógico - o da formação de mulheres conscientes da experiência de ser mulher sob o sistema patriarcal e o capitalista (CAMURÇA, 2007, p. 37). O feminismo como movimento social busca a transformação de um nascer mulher, para um tornar-se “mulher”1 , baseando-se no enfrentamento das questões de gênero, um termo identificado como categoria de análise para demonstrar e sistematizar as relações de dominação e subordinação, que en- volvem homens e mulheres, em que aqueles se impõem sobre estas (TELES, 2003, p. 16). Sobre a construção do conceito de gênero Joan Scott destaca: Na sua utilização mais recente, “gênero” parece primeiro ter feito sua apa- rição entre as feministas americanas que queriam insistir sobre o caráter fundamentalmente social das distinções fundadas sobre o sexo. A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológica implícito no uso de termos 1  Paráfrase à famosa assertiva de Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo” que identifica a construção social do gênero como meio de estabelecimento das divisões sociais.
  • 196. 196 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. como “sexo” ou “diferença sexual”. O gênero enfatizava igualmente o aspecto relacional das definições normativas da feminilidade. Aquelas que estavam preocupadas pelo fato de que a produção de estudos femininos se centrava sobre as mulheres de maneira demasiado estreita e separada utilizaram o termo “gênero” para introduzir uma noção relacional em nosso vocabulário de análise (1990, p. 5). A perspectiva de gênero para a mulher enquanto sujeito político pode ser sintetizada: “Para nós, trata- -se de uma categoria de análise sobre como se constroem e se manifestam as relações de poder na sociedade, fundamentadas na percepção das diferenças entre os sexos” (LARANJEIRA, 2008, p. 13). As ideias feministas partem do pressuposto de que a sociedade patriarcal sempre usou a violência como mecanismo de contenção da mulher no âmbito privado, em que o homem, dominando-a, impunha-lhe o regramento da vida, subordinando as potencialidades femininas às pretensões culturais patriarcais em que homem e mulher exerciam papéis sociais definidos. Sobre o patriarcado, Saffioti apresenta a seguinte compreensão: [...] patriarcado como um conjunto de relações sociais que tem uma base material e no qual há relações hierárquicas entre homens, e solidariedade entre eles, que os habilitam a controlar as mulheres. Patriarcado é, pois, o sistema masculino de opressão das mulheres (Apud. CASTILLO-MARTÍN; OLIVEIRA, 2005, p. 41). Não obstante a realidade patriarcal, o anseio dos movimentos feministas é o da libertação das mulhe- res de seus cativeiros privados ou públicos e da luta pela igualdade entre homens e mulheres. Maria Betânia Ávila resume bem o propósito, “O feminismo, como movimento político, nasce confrontando a relação entre liberdade pública e dominação privada” (2007, p. 6). As dimensões das relações na sociedade inferiorizaram a mulher, tendo em vista os pilares de seus estabelecimentos: o patriarcalismo e o capitalismo. Reservou-se a elas os aspectos estáticos e privados, em razão de um controle social neutralizado, que reflete padrões e comportamentos construídos e aceitos cultu- ralmente. O poder exercido sobre as mulheres é reflexo de fundamentos ideológicos e não naturais e condi- ciona a repartição dos recursos e a posição superior de um dos sexos (BARATTA, 1999, p. 19), estabelecendo, assim, limites específicos para as mulheres exercerem sua cidadania e autonomia. A violência doméstica, como exemplo dessa subordinação tem fundamento em causas eminentemen- te sociais. Segundo Maria Berenice Dias Ninguém dúvida que a violência sofrida pela mulher não é exclusivamente culpa do agressor2 . A sociedade ainda cultiva valores que incentivam a vio- lência, o que impõe a necessidade de tomar a consciência que, na verdade, a culpa é de todos. O fundamento é cultural e decorre da desigualdade no exercício do poder, que levam a uma postura de dominante e dominado. [...] Daí o absoluto descaso de que sempre foi vítima a violência doméstica (2010, p.18). O movimento feminista, em contrapartida aos modelos e padrões que vitimizam e exercem opressão sobre as mulheres, objetiva estabelecer uma “reconstrução social do gênero” (BARATTA, 1999, p. 22) a fim de garantir espaços sociais, políticos e econômicos através de práticas cidadãs e democráticas. 2  Entretanto, não se quer dizer com isso que se assume uma postura de considerar a mulher como corresponsável pelas agressões, assim como propõem parcela da vitimodogmática.
  • 197. 197 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A história das “mulheres” como novo sujeito social, entendidas assim como um movimento, um gru- po de transformação social, é marcada por uma série de barreiras e preconceitos, baseados em apenas uma característica: ser do sexo (biológico) feminino, ter nascido mulher. Na esteira das evoluções dos direitos das mulheres, salienta-se a importância do feminismo brasileiro na realização de políticas públicas a fim de estabelecer cidadania e democracia. Sabe-se, ademais, que a luta dos movimentos feministas são continuas e árduas, pois as injustiças e mazelas causadas em nossa sociedade como consequência de uma colonização patriarcal capitalista fragmentam-se no espaço e no tempo, atingin- do gerações. A “cartografia da opressão nunca está terminada, nem mesmo agora” (CAMURÇA, 2007, p. 15). No entanto, os movimentos feministas passam a ganhar reconhecimento e a partir da década de setenta se organizaram no país, empreendendo muitas lutas em favor da emancipação da mulher e da igual- dade entre os sexos (ANDRADE, 2003a, p. 133-134). O ano de 1975 tem sido considerado um momento inaugural do feminismo brasileiro. Até então o movimento estava restrito a grupos muito específicos, fechados e intelectualizados, chegando mesmo a se configurar mais como uma atividade privada, que acontecia na casa de algumas pessoas. Todavia, os interesses do movimento feminista da década de 70 já não correspondiam mais aos da maioria das mulheres, ou porque já tinham sido atendidos, ou porque as mulheres pretendiam debater assuntos mais específicos sobre a condição feminina, como sexualidade, direito ao corpo e violência doméstica (MANINI, 2011, p. 56). Neste sentido, a década de 80 foi um marco para o movimento feminista e, inclusive, para a demo- cratização do país. Surgiram pelo Brasil inúmeras organizações de apoio à mulher vítima de violência; a primeira delas foi a SOS Mulher, inaugurado no Rio de Janeiro em 1981. A trajetória desse tipo de ação femi- nista é particularmente interessante na medida em que aponta para uma tendência que será predominante no movimento na década de 1980. O objetivo dos SOS Mulher era constituir um espaço de atendimento de mulheres vítimas de violência e também um espaço de reflexão e de mudança das condições de vida des- sas mulheres. No entanto, logo nos primeiros anos, as feministas entraram em crise, pois seus esforços não resultavam em mudanças de atitude das mulheres atendidas, que, passado o primeiro momento de acolhi- mento, voltavam a viver com seus maridos e companheiros violentos, não retornando aos grupos de reflexão promovidos pelo SOS Mulher. Em verdade, esses movimentos, em todos os países, sempre estiveram comprometidos com o comba- te a todas as formas de discriminação e opressão, sobretudo, as que eram julgadas resultantes das relações de gênero (RORIZ, 2010, p. 41). A partir de 1985, a questão da violência contra a mulher toma outros rumos com a criação da pri- meira delegacia especializada. As DEAMs constituíram política pública de combate e prevenção à violência contra a mulher no Brasil, especialmente a violência conjugal (MORAES; SORJ, 2009, p. 14). Entretanto, percebeu-se, com sua criação, que muito embora tenha possibilitado demonstrar os verdadeiros índices de agressão, a sua função legal de usar o poder policial para reduzir tais violências não estava sendo e nem po- deria ser cumprida. Os anseios dessas vítimas, contraditoriamente à expectativa feminista, eram apenas de não serem mais agredidas. As mulheres que tomavam a frente dos movimentos eram “cultas e politizadas” e geralmente não eram vítimas desse tipo de violência (MELLO, 2009, p. 48). Mas, o feminismo pretendia criminalizar a vio- lência doméstica e assim, conscientizar tanto agressores como vítimas dos direitos das mulheres. Segundo asseveram Aparecida Fonseca e Bila Sorj: O uso das DEAMs pelas mulheres parece seguir uma lógica diversa da lógica da instituição policial e da inspiração do movimento feminista, uma vez que a mais freqüente motivação das mulheres em procurar as delegacias espe- cializadas consiste em usar o poder policial para renegociar o pacto conjugal
  • 198. 198 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. e não para criminalizar o parceiro. [...] a polícia é procurada, predominante- mente, como forma extraoficial de arbitragem com vistas à renegociação dos pactos domésticos (2009, p.14). Essas delegacias se popularizaram por todo o país e, em 1992, já somavam 141, nas mais diversas regiões. Essa foi uma política pública bem-sucedida que, em primeiro lugar, atendia a uma demanda das feministas, ou seja, a criação de um espaço na polícia no qual o ambiente não fosse hostil à mulher agredi- da. A grande queixa dos delegados de polícia é a mesma, apenas em outra esfera, das feministas do SOS: as mulheres vão às delegacias no momento da agressão, mas dificilmente mantêm a queixa; o que realmente elas desejam do órgão policial é que o agressor seja chamado e se comprometa a não prosseguir na conduta agressiva. O feminismo, as feministas e as delegacias da mulher não resolveram a ques- tão da violência contra a mulher. Houve uma tendência nas últimas décadas de um aumento generalizado da violência tanto contra as mulheres como contra todas as pessoas que se encontram em posição de fragilidade, mes- mo que circunstancial. Mesmo assim, para a mulher houve um avanço fun- damental quanto à questão da violência: ela se tornou reconhecida como vítima, daí ter direito ao tratamento dado pelos órgãos públicos às demais vítimas (PINTO, 2003, p. 82). O feminismo brasileiro, e também mundial, mudou, e não somente em relação àquele movimento sufragista, emancipacionista do século XIX, mudou também em relação aos anos 1960, 1970, até mesmo aos 1980 e 1990. Na verdade, vem mudando cotidianamente, a cada enfrentamento, a cada conquista, a cada nova demanda, em uma dinâmica impossível de ser acompanhada por quem não vivencia suas entranhas. O movimento feminista brasileiro, enquanto “novo” movimento social, extrapolou os limites do seu status e do próprio conceito. Foi mais além da demanda e da pressão política na defesa de seus interesses específicos. Entrou no Estado, interagiu com ele e ao mesmo tempo conseguiu permanecer como movimento autônomo. [...]. No espaço do movimento, reivindica, propõe, pressiona, monitora a atuação do Estado, não só com vistas a garantir o atendimento de suas demandas, mas acompanhar a forma como estão sendo atendidas (COSTA, 2009, p. 75). O movimento feminista, portanto, representou um grande marco na história do Brasil e de importân- cia indiscutível no combate à violência contra mulher. 2.ASESTRATÉGIASPUNITIVASDALEIMARIADAPENHAPARAOENFRENTAMENTODAVIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER E O SIMBOLISMO PENAL Na perspectiva de emancipação da mulher e seu respectivo empoderamento, um dos importantes pleitos dos movimentos feministas foi uma novel legislação – Lei nº 11.340/2006 - a título de equilíbrio, que pretende proteger a mulher nas situações em que ela possa ser fragilizada pela violência. Cabe à lei ordinária tratar desigualmente os desiguais em determinadas situações excepcionais e específicas (MELLO, 2009, p. 474). A Lei Maria da Penha nasce no sentido de atender esta demanda feminista, e a despeito de inúmeras críticas que foram lançadas, afastou do âmbito do JECRIM o julgamento dos crimes perpetrados com violên- cia doméstica e familiar contra a mulher. Assim, todas as infrações, quando cometidas em razão de vínculo de natureza familiar, estão sob a égi- de da Lei Maria da Penha. Nesses casos há possibilidade de aplicação de penas restritivas de direitos, exceto as de natureza pecuniária, e penas privativas de liberdade.
  • 199. 199 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. As pretensões de inibição das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher fundamenta- ram o discurso criminalizador, isto é, a estratégia penal, em falência no cenário atual, foi selecionada como maneira de enfrentamento daquelas formas, representando, portanto, o falacioso discurso oficial de eman- cipação da mulher. Percebe-se, assim, que as modificações nos tipos penais incriminadores surgiram conforme a atual tendência política de se recorrer ao sistema penal (criando novos crimes ou aumentando a pena de delitos preexistentes) para solucionar um problema social, muito embora pesquisas não consigam demonstrar a relação entre o aumento do rigor penal e a diminuição de determinada criminalidade (CID; LARRAURI, 2009). Como a grande maioria dos crimes praticados contra a mulher no contexto doméstico e familiar é, notadamente, de menor potencial ofensivo, a vedação de aplicação da Lei n.º 9.099/95 implicou na impos- sibilidade de utilização da transação penal, suspensão condicional do processo e composição civil em incon- táveis casos onde, prioritariamente, seriam possíveis. Nesse contexto, a proibição de utilização dos institutos descriminalizadores, em sentido amplo, deixou de contemplar a crise do atual sistema punitivo, tal que des- programou a possibilidade de utilização de alternativas capazes de evitar a ampliação da intervenção penal e aplicação de penas encarceradoras e desumanas. No entanto, até mesmo o poder Judiciário, capaz de oferecer resistência às estratégias expansionistas do Direito Penal, cedeu às pressões populares (especialmente de alguns setores do movimento feminista) e, ao julgar a ADI 44243 , optou por limitar as possibilidades de diálogo e escolheu a regra da ação pública incon- dicionada à representação da ofendida, no caso da violência doméstica. A Lei Maria da Penha nasce a partir deste discurso a depeito de inúmeras críticas que foram lan- çadas sobre a Lei dos Juizados Especiais no tratamento dos conflitos domésticos e familiares. No entanto, resta questionar: as aspirações de emancipação feminina viabilizadas via discurso criminalizador têm sido atendidas? As situações de violência domésticas e familiar contra a mulher reduziram desde a promulgação da Lei Maria da Penha? Ou vislumbra-se, ainda que por meio dessa nova legislação penal específica, que as situações de violência doméstica contra a mulher ganharam outras formas, “fazendo funcionar a ordem social como uma imensa máquina simbólica tendente a ratificar a dominação masculina sobre a qual se ali- cerça, condenando tudo que pudesse ofuscar tal dominação, já que os discursos não mudaram muito do final do século XIX até hoje?” (BOURDIEU, 2003, p.18). Com efeito, as soluções contemporâneas dadas ao crime ganham um novo semblante bastante para- doxal, visto que na tentativa de se tutelar bens jurídicos, garantir a segurança populacional e educar a moral societária, são utilizadas leis penais. Contudo, tais legislações são simbólicas, pois não conseguem cumprir, sequer minimamente, as funções que lhes são atribuídas, como também, muitas vezes, põem em risco os próprios bens que pretendem proteger (FAYET JÚNIOR; MARINHO JÚNIOR, 2009, p. 86-89). Diante do exposto, a Lei Maria da Penha, no contexto das legislações de emergência, trouxe muitas alterações recrudescedoras para o mundo jurídico-penal, de modo que foi bastante aclamada pelos militantes em prol dos direitos das mulheres e tida como um marco para autonomia e segurança feminina. No entanto, as pretensões da criminalização provedora são tidas como falaciosas e inócuas. Nesse sentido, Marília Montenegro assegura: O uso simbólico do direito penal foi sem dúvida um forte argumento do mo- vimento feminista para justificar a sua demanda criminalizadora. É certo que as normas penais simbólicas causam, pelo menos de forma imediata, uma sensação de segurança e tranquilidade iludindo os seus destinatários por meio de uma fantasia de segurança jurídica sem trabalhar as verdadei- ras causas dos conflitos. Daí a afirmação que mais leis penais, mais juízes, 3  O STF, no dia 09/02/2012, julgou em plenário a Ação Direta de Constitucionalidade, proposta pela Procuradoria Geral da República, e decidiu pela constitucionalidade da Lei 11.340/2006 e pela ação penal pública incondicionada do crime de violência doméstica. A decisão tomada possui caráter vinculante.
  • 200. 200 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. mais prisões, significam mais presos, mas não menos delitos. O direito penal não constitui meio idôneo para fazer política social, as mulheres não podem buscar a sua emancipação através do poder punitivo e sua carga simbólica (MELLO, 2010b, p. 940). A legislação, portanto, trouxe, através de sua redação, a simbólica criminalização de complexos pro- blemas sociais, a qual legitima a ação do sistema penal. No entanto, os estudos de criminologia crítica com- provam o quanto esse sistema está deslegitimado por produzir um falso discurso de erradicação da violência e promoção da segurança (CASTILHO, 2007, p. 104-106). 3. INVESTIGANDO A REALIDADE DA APLICAÇÃO DAS PRISÕES PREVENTIVAS E DAS FORMAS DE RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS DOMÉSTICOS À LUZ DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA Visando compreender a realidade da aplicação da Lei Maria da Penha, foi realizada pesquisa de cam- po no Juizado da Mulher da cidade do Recife a fim de compreender em que medida aquelas pretensões do movimento feministas foram atendidas, isto é, a pesquisa de campo trouxe um estudo com relação à aplica- bilidade das penas mais rigorosas previstas na Lei Maria da Penha, seja durante o processo, através da prisão preventiva, seja ao final do processo, através da prisão pena. A abordagem acerca dos dados coletados será realizada à luz do discurso da criminologia crítica, o qual atribui “o fracasso histórico do sistema penal aos objetivos ideológicos (funções aparentes) e identifica nos objetivos reais (funções ocultas) o êxito histórico do sistema punitivo, como aparelho de garantia e de reprodução do poder social” (SANTOS, 2008, p. 88). A vertente criminológica parte do pressuposto de que o Direito deve declarar a função de proteger a ordem social e assim o fazer, sem mistificações a essa pretensão. Investiga-se essa coerência por meio de uma metodologia dialética a qual visa identificar funções latentes, não declaradas, ideologicamente encobertas para “assegurar a realização das funções que ela tem no interior do conjunto da estrutura social” (BARATTA, 2004, p. 95) e as declaradas, que no caso dos movimentos feministas se dá pela emancipação da mulher e a diminuição dos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Mais especificamente, a criminologia feminista surge no âmbito da criminologia crítica com o objetivo de trazer a crítica feminista ao direito e à ciência penal. No entanto, tendo em vista a crescente tendência dos movimentos feministas de buscarem no sistema penal um suporte para a defesa dos direitos das mulheres, essa criminologia percebeu-se também no papel de trazer para esses movimentos uma base teórica, que pos- sa orientá-los em suas opções político-criminais (ANDRADE, 1999, p. 111), pois parte do pressuposto de que esse sistema não está apto a garantir direitos, uma vez que atua simbolicamente, criando a sensação apenas ilusória de segurança jurídica. É neste sentido que a criminologia afirma que o Direito reproduz desigualdade como mecanismo de reprodução da realidade social, e o pior, legitimando as relações de produção a partir de um consenso seja ele real ou artificial. Ou seja, a reprodução social da imagem de vítima em busca do apoio penal, por meio do enrijecimento normativo em nada contribui para um projeto de emancipação da mulher. Tal incoerência entre o poder que se busca para as mulheres e o reforço a sua imagem de sujeito vitimado também evidencia, de certo modo, o “engano” que envolve o substrato dessas legislações, o qual é tão caracterizador do direito penal simbólico (RORIZ, 2009, p. 48). Nesse contexto, assevera Vera Andrade: A pretensão de que a pena possa cumprir uma função instrumental de efe- tivo controle (e redução) da criminalidade e de defesa social na qual se ba- seiam as teorias da pena deve, através de pesquisas empíricas nas quais a reincidência é uma constante, considerar-se como promessas falsificadas ou, na melhor das hipóteses, não verificadas nem verificáveis empiricamente. Em geral, está demonstrado, nesse sentido, que a intervenção penal estigma-
  • 201. 201 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. tizante (como a prisão) ao invés de reduzir a criminalidade ressocializando o condenado, produz efeitos contrários a uma tal ressocialização, isto é, a consolidação de verdadeiras carreiras criminosas (ANDRADE, 1999, p. 291). As estratégias de empoderamento, via enrijecimento penal até as suas últimas consequências, defen- didas pelos movimentos feministas supostamente retribuiriam o mal ao homem e evitaria a violência domés- tica contra a mulher. No entanto, esses resultados não são alcançados na realidade brasileira. Na pesquisa de campo (técnica da documentação direta), pretendeu-se conhecer o andamentodes- fecho de 30 processos criminais sentenciados no ano de 2014 na I Vara de Violência Doméstica e Familiar do Recife, número este que representa a metade de todas as sentenças do referido ano. A pesquisa empírica possuiu um caráter quantitativo, pois foi traçado um quadro com o número de penas privativas de liberdade e respectivo regime, referente aos processos crimes das mulheres vítimas da violência doméstica que procu- ram o auxílio estatal, no ano de 2014. Dos 30 processos-crimes analisados, em apenas 2 foi aplicado o regime fechado de cumprimento de pena privativa de liberdade e, em apenas 1 processo aplicou-se o regime semi-aberto. Nos demais casos, foi aplicado o regime aberto, em virtude das penas privativas de liberdade determinadas ao caso concreto. A amplíssima aplicação do regime aberto aos casos de violência doméstica justifica-se em virtude das penas mais brandas aplicadas aos crimes de lesão corporal leve, ameaça e crimes contra a honra, mais co- muns no âmbito em estudo. Importante, através destes dados, reconhecer a violência doméstica e familiar contra a mulher como um problema social, que vai além do Direito Penal. Por isso a importância da discussão dos objetivos decla- rados e não declarados da Lei Maria da Penha, a fim de que haja o rompimento com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal. A abordagem utilizada na análise dos dados da presente pesquisa reflete o discurso da criminologia crítica, o qual atribui o fracasso histórico do sistema penal aos objetivos ideológicos (funções aparentes) e identifica nos objetivos reais (funções ocultas) o êxito histórico do sistema punitivo, como aparelho de garan- tia e de reprodução do poder social (SANTOS, 2008, p. 88). Em seguida, a pesquisa voltou-se para a análise do número de prisões preventivas nos 30 proces- sos-crimes sentenciados no ano de 2014 na I Vara de Violência Doméstica e Familiar. Apesar de o discurso declarado ou o conteúdo programático do direito processual brasileiro erigir a presunção de inocência a prin- cípio fundamental, com assento na Constituição Federal e, portanto, como regra que impede o tratamento de culpado àqueles que não tenham sido condenados pela prática de um crime, mais de 50% (cinquenta por cento), dentre todos os processos analisados, experimentaram prisão preventiva, número que chama a atenção de criminólogos, mas também de pesquisadores de diversas outras áreas, bem como de uma parce- la da sociedade civil, para a opção feita pelo sistema de justiça criminal de privação da liberdade anterior à condenação. Esse número causou estranhesa, senão, um verdadeiro contrasenso em relação á programação nor- mativa da legislação do país. Prender é, sem dúvidas, penar, causar dor e mortificação. Ocorre, portanto, antes da condenação, o fenômeno do encarceramento em massa que destrói vidas e famílias. Existe uma contradição estrutural ou eficácia invertida do sistema penal entre aquilo que a legislação declara e aquilo que efetivamente se cumpre. Neste sentido, a seletividade policial realizada, como demonstram os estudos da criminologia crítica sobre os extratos mais débeis e precários da sociedade, é chancelada pela seletividade judicial, que contribui decisivamente para que o sistema penal realize suas reais funções de neutralização e disciplina das classes sociais inferiores. CONCLUSÃO
  • 202. 202 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Por tudo, conclui-se que o direito penal teoriza funções declaradas – combater a violência e estabe- lecer a paz social – e realiza outras funções não declaradas, mas, na verdade, a qual perpetua aquela, o que Vera Andrade denomina de eficácia invertida, pois a eficácia das funções não declaradas sobrepõe-se à das declaradas (ANDRADE, 2003, p. 74). O manejo do sistema punitivo para assegurar a emancipação feminina é ferramenta ineficaz no âm- bito das políticas, uma vez que esse reproduz o sistema social no qual está inserido - em sendo a sociedade culturalmente patriarcalista, naturalmente o sistema o será. Esses dispositivos recrudescedores trazidos pela Lei Maria da Penha não causaram mudanças na re- alidade da violência ora tratada, apenas instituíram uma percepção social limitada e limitadora do problema, forjando uma falsa imagem de que as mulheres, agora, estão protegidas. Enfim, o sistema penal é só mais umas das instâncias do controle social, inclusive sobre as mulheres, resproduzindo desigualdades, razão pela qual esse sistema não pode favorecer qualquer processo de eman- cipação. O processo de empoderamento que as mulheres têm buscado construir nas últimas décadas e a asso- ciação à figura da vítima, de sujeito passivo, em nada contribui, antes ratificam a imagem da mulher como ser frágil, carente de proteção especial, reproduzindo, assim o papel social que lhe foi historicamente determi- nado, esclarecendo a real fundamentação da política criminal de combate a violência contra a mulher. Nesse contexto, é urgente que se ampliem as discussões a respeito das melhores formas de resolução dos conflitos domésticos para além do sistema penal. Importante, assim, que sejam discutidos e apresentados meios al- ternativos para a solução de conflitos, principalmente através transferência da responsabilidade para outros ramos do Direito, como também pela utilização de medidas psicoterapêuticas, conciliadoras e pedagógicas, rompendo assim com o paradigma penalista tradicional de que só se resolve o problema da criminalidade com rigor penal. A partir dos dados, constatou-se a contradição ou disfunção entre o discurso legal declarado e o mun- do dos fatos, no que respeita ao encarceramento de pessoas que não foram ainda julgadas e, estão, portanto, presas “preventivamente”. Segundo Zaffaroni (2011, p. 67), esta região do globo optou pelo exercício do poder punitivo por meio de medidas de constrição antecipadas, ou seja, com a determinação de prisão antes do julgamento definitivo e prolação de sentença. Observa-se na realidade da violência doméstica a necessidade, por parte do poder punitivo, mesmo que antecipada, da imposição de sofrimento irreparável e de consequências irreparáveis. Grande contradição do sistema de justiça criminal, tendo em vista que a prisão não é aplicada ao final do processo (amplíssima aplicação do regime aberto). Todo encarceramento tem, ontologicamente, natureza punitiva, importando (em todos os casos) em um tratamento como culpado, contribuindo para o controle social e construção es- tigmatizante e seletiva da criminalidade. REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo: da mulher como vítima à mulher como sujei- to. In: CAMPOS, Carmen Hein de. Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. ____, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência à violência do con- trole penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003a. ____, Vera Regina Pereira de. Sistema penal máximo x cidadania mínima: códigos de violência na era da globalização. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
  • 203. 203 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. ____, Vera Regina Pereira de. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Revista Sequência, Florianópolis, ano XXV, n. 50, p. 71-102, julho, 2005. ____, Vera Regina Pereira de. Minimalismos e abolicionismos: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Revista da ESMESC, Florianópolis, v. 13, n. 19, p. 459-488, jan./dez., 2006. ____, Vera Regina Pereira de. Por que a Criminologia (e qual Criminologia) é importante no Ensino Jurídico. Carta Forense, v. 58, p. 22-23, 2008. ÁVILA, Maria Betânia. Radicalização do Feminismo, Radicalização da Democracia. In: Cadernos de Críti- ca Feminista: reflexões feministas para transformação social. Recife: Oxfam e SOS Corpo, p. 6-11, 2007. BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Car- men Hein de (org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. ____, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito pe- nal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2002. ____, Alessandro. Criminología y sistema penal (compilación in memoriam). Buenos Aires: editorial B de F, 2004. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. CAMPOS, Carmen Hein de; CARVALHO, Salo de. Violência doméstica e Juizados Especiais Criminais: aná- lise a partir do feminismo e do garantismo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, vol. 14, n. 2, p. 409-422, mai./ago., 2006. CAMPOS, Carmen Hein de; CARVALHO, Salo de. Tensões atuais entre a criminologia feminista e a crimino- logia crítica: a experiência brasileira. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Lei Maria da Penha comen- tada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2011. CAMURÇA, Sílvia. “Nós mulheres” e nossa experiência comum. In: Cadernos de Crítica Feminista: re- flexões feministas para transformação social. Recife: Oxfam e SOS Corpo, p. 12-23, 2007. CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. A Lei nº 11.340/06 e as novas perspectivas da intervenção do estado para superar a violência de gênero no âmbito doméstico e familiar. In: SANTOS, Luiz Felipe Brasil; BRUXEL, Ivan Leomar (coords.). Lei Maria da Penha – lei nº 11.340/06 [e] Lei de Tóxicos – lei nº 11.343/06: 2º ciclo de estudos. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: centro de estudos, 2007. CID, José; LARRAURI, Elena. Development of crime, social change, mass media, crime policy, sanctioning practice and their impact on prison population rates. Sistema Penal Violência, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p.1-21, jul./dez. 2009. COSTA, Ana Alice Alcântara. O movimento feminista no Brasil: dinâmica de uma intervenção política. Olhares Feministas. 1. ed. Brasília, 2009. DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
  • 204. 204 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. FAYET JÚNIOR, Ney; MARINHO JÚNIOR, Inezil Penna. Complexidade, insegurança e globalização: repercussões no sistema penal contemporâneo. Sistema Penal Violência, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p.84-100, jul./dez. 2009. LARANJEIRA, Márcia. Gênero e Mobilização de Recursos: reflexões para um debate. Recife, Oxfam e SOS Corpo, 2008. LARRAURI, Elena. Mujeres y sistema penal: violencia domestica. Montevideo-Buenos Aires: Editorial IBdef, 2008. MANINI, Daniela. A crítica feminista à modernidade e o projeto feminista no Brasil dos anos 70 e 80. Disponível em: http://www.ifch.unicamp.br/ael/website-ael_publicacoes/cad-3/Artigo-2-p45.pdf. Aces- sado em 17 de julho de 2014. MELLO, Marília Montenegro Pessoa de. Lei de violência doméstica: Lei nº 11.340/2006. In: DAOUN, Ale- xandre Jean; FLORÊNCIO FILHO, Marco Aurélio (Coord.). Leis penais comentadas. São Paulo: Quar- tier Latin, 2009. ____, Marília Montenegro Pessoa de. Da mulher honesta à lei com nome de mulher: o lugar do feminismo na legislação penal brasileira. Revista Videre, Dourados, ano II, n. 3, p. 137-159, jan./jun., 2010a. ____, Marília Montenegro Pessoa de. A Lei Maria da penha e a força simbólica da “nova criminalização” da violência doméstica contra a mulher. In: XIX ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, 2010b, Fortaleza. Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2010b. p.936 - 950. MORAES, Aparecida Fonseca; BILA, Sorj. Os paradoxos da expansão dos direitos das mulheres no Brasil. In: MORAES, Aparecida F.; SORJ, Bila (Org.). Gênero, Violência e Direitos na Sociedade Brasileira. Rio de Janeiro: Sete Letras, p. 10-22, 2009. PINTO, Céli Regina Jardim. Uma história do feminismo no Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003. RORIZ, Regina, Célia Lopes Lustosa. Mulher, Direito Penal e Justiça Restaurativa: da proteção sim- bólica revitimizante à possibilidade da restauração. Dissertação (Mestrado em Direito) Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010. SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero e Patriarcado. p. 35-76. In: CASTILLO-MARTÍN, Márcia e OLIVEIRA, Suely de. (org.). Marcadas a ferro: violência contra a mulher uma visão multidisciplinar. Brasília: Secreta- ria Especial de Políticas para as Mulheres, 2005. SANTOS, Juarez Cirino. A Criminologia Radical. Curitiba: ICPC: Lúmen Júris, 2008. SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre: UFR- GS, 1990. TELES, Maria Amélia de Almeida. MELO, Mônica de. O que é violência contra a mulher. São Paulo: Brasiliense, 2003. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 3ª ed. Rio de Janeiro:Revan, 2011.
  • 205. 205 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. O DIREITO PENAL SIMBÓLICO: DA PROMESSA DE PROTEÇÃO À EFICÁCIA INVERTIDA – UM OLHAR SOBRE A PROTEÇÃO À VÍTIMA ÉRICA BABINI LAPA DO AMARAL MACHADO Doutora em Direito pela UFPE. Mestre em Direito Penal pela UFPE. Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco –UNICAP - Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Asa Branca de Criminologia ANDRIELLY S. GUTIERRES SILVA Graduanda em Direito na Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Bolsista do Programa de Iniciação Científica – PIBIC/UNICAP. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Asa Branca de Criminologia WILLAMS FRANÇA SILVA Graduando em Direito na Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Bolsista do Programa de Iniciação Científica – PIBIC/UNICAP. Pesquisador do Grupo de Pesquisa Asa Branca de Criminologia SUMÁRIO: Introdução; 1. Do liberalismo radical ao intervencionismo excessivo: a relação proble- mática entre Estado de Polícia e o Estado de Direito; 2. Política Criminal e o Estado Democrático de Direito; 3. Uma política criminal dirigida à proteção da vítima; 4. A necessidade de uma política criminal racional e os efeitos do realismo de esquerda; Considerações finais; Referências. INTRODUÇÃO O poder punitivo, caracterizado pelo confisco do conflito pelo Estado, foi e é exercido de acordo com certas decisões arbitrárias do poder (estado de polícia) ou disposições legais igualitárias (Estado de Direito). Essa divisão, de simples fim pedagógico, não pode ser entendida como características ou temporalidades separadas ou puras, já que o Estado de Direito sempre encerra em seu interior um Estado de Polícia, gestando um jogo de forças relacional-dialético: o primeiro aspira conter o exercício real do poder punitivo; o segundo pretende ampliá-lo (ZAFFARONI, 2007). O substrato temporal – político, social e cultural – é fundamental para a compreensão da relação incessante entre o Estado de Direito e o Estado de Polícia e assinala o modelamento maleável deste, na medida em que pode acomodar e apropriar, ideologicamente, discursos, no seio do estado penal mínimo, tornando-os, paradoxalmente, úteis à expansão punitiva. Importante observar como a ampliação do discurso de combate à violência mostra-se aqui em sua tessitura mais sutil: pode, disfarçadamente, sugerir um suposto empoderamento de certos grupos ou seguimentos sociais considerados frágeis. Na estreiteza desse arcabouço, esse trabalho discute como o conceito de vulnerabilidade da vítima é redimensionado e posto à serviço do Estado Penal máximo, especialmente na lógica política de movimentos sociais, o que se denominou de esquerda punitiva (KARAM, 2001).
  • 206. 206 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. O objetivo é identificar as reformas penais que perpassam pela questão da criminalização de mino- rias – justificada a partir da vítima – desde o Código Penal de 1940 até agosto de 2014, de modo a aferir suas tendências político-criminais. Para tanto, utilizou-se do banco de dados produzido pela pesquisa “Descarcerização e Sistema Penal: a construção de políticas públicas de racionalização do poder punitivo”, vinculada ao CNJ Acadêmico e coordenada pelo Grupo de Pesquisa de Políticas Públicas de Segurança e Administração da Justiça Penal (GPESC/PUC/RS) em parceria com o Grupo Candango de Criminologia (UnB) e o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança (UFPE). O banco de dados contém todas as reformas penais aprovadas no Brasil entre 1940 e 2010 (totalizando 320 legislações), bem como as justificativas dos projetos de leis que as originaram. Ora, as problemáticas trabalhadas a partir da análise supracitada não podem caminhar sem a com- preensão das dificuldades que circundam e subscrevem a Política Criminal. Levando-se em consideração a sua importância no corpo das ciências criminais, a falta de definição clara do seu campo de conhecimento e, consequentemente, o modo como ela “serve” às gamas variadas de concepções e interesses, impõe-se como obrigação necessária lançar um olhar questionador e crítico sobre sua natureza e função (FREITAS, 2008). Ultimamente, a doutrina nacional faz alusões recorrentes à Política Criminal sem, no entanto, haver um consenso mínimo entre os doutrinadores do que realmente seja ela, exigência básica para a postulação de um estatuto teórico. Assim, no lugar da rigidez científica, há a preponderância de uma Política Criminal marcadamente empirista e entregue à baila do jogo de forças político-ideológicas de cada época. A Política Criminal, carente de um arcabouço teórico, encontra-se imersa na dimensão propriamente prática. Essa completa indefinição e incerteza que circunda a Política Criminal tem sido um instrumento útil à maximização do Estado de Polícia em detrimento do Estado de Direito, galgado, entre outras coisas, no uso (ideológico) da vulnerabilidade da vítima. A pergunta é se o Congresso Nacional, orientado por uma Política Criminal sem qualquer delineamento, não tem se apropriado de discursos tradicionalmente identificados como de esquerda para expandir o controle penal sob o pressuposto ideológico de proteção às vítimas consi- deradas vulneráveis, seja por condições biológicas, sociais ou históricas. 1. DO LIBERALISMO RADICAL AO INTERVENCIONISMO EXCESSIVO: A RELAÇÃO PROBLEMÁTICA ENTRE ESTADO DE POLÍCIA E O ESTADO DE DIREITO. Apontando a necessidade da exigência de uma política criminal, necessário se faz retomar a discussão sobre a relação incessante entre Estado de Polícia e Estado de Direito, ressaltando o percurso histórico, ainda que brevemente, para viabilizar a compreensão do acentuado intervencionismo penal na atualidade. Ora, é impossível compreender satisfatoriamente o direito concebendo-o como simples fenômeno desapegado do contexto histórico no qual foi produzido e ao qual é útil (MIAILLE, 1978). O direito desempenha funções concretas de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira. É imperioso lançar um cuidadoso olhar sobre a conjuntura histórica que condiciona e é condicionada pelo modelamento do aparelho punitivo estatal dentro das relações interativas – conflitivas ou não – de cada momento. Nesses termos, é importante perceber que em cada modelo de conjuntura sócio-política subjaz con- struções ideológicas sustentadoras e fins a serem operacionalizados. O Estado politicamente absoluto, por exemplo, ensejou um sistema de punição que funcionou como instrumento de manutenção da ordem so- cial e defesa do príncipe ancorado por discursos que exigia “a transmissão total do poder dos indivíduos ao soberano” (HOBBES, 2006). As práticas punitivas concretizaram-se com completa arbitrariedade, o que corroborou para a difusão de um clima de incerteza, insegurança e injustificado terror. O iluminismo – século XVIII – agrupou alguns pensadores em torno de ideias fundamentadas na li- berdade e dignidade da pessoa humana e na separação necessária entre o público e o privado, reduzindo ao máximo a intervenção do Estado na vida de cada indivíduo. Aqui, a crítica viabilizada pelas percepções liberais
  • 207. 207 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. de Montesquieu, Rousseau e Locke, dentre outros, abalou definitivamente as estruturas do Absolutismo: na perspectiva econômica, o liberalismo buscou a defesa da propriedade privada dos meios de produção e a economia de mercado, baseada na livre iniciativa e competição; no aspecto político, o liberalismo se baseou nas teorias contratualistas para assentar as formas de legitimação do poder como expressão do consentimento dos cidadãos; do lado ético, o liberalismo pregou a garantia dos direitos individuais, tais como liberdade de pensamento e expressão, o que supõe um estado de direito em que seja evitado o arbítrio, as prisões sem culpa provada, a tortura e as penas cruéis (ARANHA, 2009). Com a base da Ilustração surge um Estado cuja atuação está circunscrita pelo campo da necessidade. O poder estatal, de forma geral, e mais ainda em sua vertente punitiva, só pode atuar quando as circunstân- cias concretas exigirem tal intervenção e quando os direitos individuais não forem ameaçados de violação por tal intromissão. Nasce daí o que se costuma conceituar por Estado de Direito, isto é, um Estado cujo poder está limitado formal e substancialmente pelos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos (FERRAJOLI, 2002). Mas o liberalismo não concretizou todas as suas promessas de valorização do ser humano e liberdade do indivíduo. Nos grandes centros da Europa, apesar da difusão das ideias democráticas, permaneceram sem solução questões econômicas que afligiam a crescente massa de operários: pobreza, jornada de trabalho de quatorze a dezesseis horas, mão-de-obra mal paga de mulheres e crianças. As gravíssimas crises econômicas no inicio do século XX apontaram para a necessidade urgente de uma reviravolta no plano político, econômico e social. O “Estado Mínimo” não contou com a ajuda milagro- sa da “mão invisível”: a perspectiva formal, e porque não dizer, ideológica de liberdade, não logrou êxito no campo das relações concretas da maioria dos indivíduos. As contradições aprofundaram-se ainda mais com o aumento da concentração de renda, o aprofundamento da pobreza e da violência urbana, além da precarização do trabalho. Em razão disso, o Estado Liberal de Direito se transmuta, a partir da primeira metade do século pas- sado, em Estado Social-Democrático de Direito ou, simplesmente, Estado Social de Direito. Este toma como ponto de partida os valores e princípios políticos liberais, visando ampliá-los e afirmando a necessidade de maior intervenção do Estado no sentido de assegurar proteção e igualdade social aos indivíduos, mas sem o sacrifício de seus direitos civis. O Estado Intervencionista duramente criticado pelos filósofos liberais revivi- fica-se, não mais para conservar a ordem político-social, mas para proteger a grande massa de vulneráveis. O Estado agora, sob essa nova roupagem, é convidado a interferir ativamente no plano social realizan- do prestações positivas. Ou seja, a sociedade exige a participação estatal efetiva por considerá-la fundamental para a promoção e garantia dos direitos individuais (legado liberal), bem como para a proteção e fortaleci- mento dos grupos hipossuficientes (perspectiva social). Assim, o Estado se expandiu demarcando presença nos mais diversos campos considerados fundamentais ao bem estar e à dignidade da pessoa humana. O combate à pobreza e à miséria, a criação de postos de trabalhos, a garantia de moradias, a limpeza urbana, os serviços públicos de saúde, educação e segurança – em tudo isso a incumbência majoritária recai sobre o Estado que deve fazê-los sem ofender a liberdades individuais. O desafio de harmonizar tais perspectivas apresenta-se problemática diante de um Estado que, em nome da segurança e da paz social, tornou-se um ente, em certo sentido, onipresente. Em nome da garantia das liberdades individuais de certos grupos considerados mais vulneráveis, e legitimados pelos mais diversos seguimentos sociais, o poder estatal protege para envolver, promove para expandir-se. Espraia-se num cont- ínuo até a realização de sua onipresença. Afirma-se. Maximiza-se não só o Estado garantidor e protetor: o discurso de combate à criminalidade se robus- tece ao usar como âncora, entre outras coisas, o conceito de vulnerabilidade (GARLAND, 2008). Se os valores que fundamentam e perpassam o Estado Social Democrático de Direito dirigem-se à con- templação, promoção e proteção das minorias profundamente desapoderadas, o discurso estatal assistencial de defesa (principalmente penal) dessas minorias, apodera-se. Se ao Estado cabe intervir em favor dos
  • 208. 208 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. grupos historicamente fragilizados, caber-lhe-á ainda mais reprimir qualquer tipo de violência ou ameaça de violência intentada contra tais grupos. Esta nova perspectiva torna-se extremamente problemática diante da seguinte proposição: o modelo de punição hodierno carece de justificação. Os coletivos, os movimentos sociais e as instituições de direitos humanos conhecem e denunciam isso. É inquestionável a verdade de que o sistema punitivo necessita da mais elementar legitimação constitucional para continuar existindo num Estado Democrátivco de Direito. É sabido que o Sistema de Justiça Criminal é, estruturalmente, racista, sexista e classista e que é com base nessa estrutura que ele seleciona sua “clientela” (BARATTA, 2002). É indiscutível que as prisões são depósitos de almas e corpos “indesejados” e condenados ao etiquetamento atroz, mortífero e desumano. É notório que o Direito Penal não evita e, em geral, não diminui, nem põe termo à violência. É verificável que os instrumentos processuais de punição trazem, por baixo do seu figurino, mecanismos de nova vitimização da vítima, ao silenciá-la completamente (ANDRADE, 2005). Mesmo assim, nos últimos anos, tem-se demandado, em montantes assustadores, a intervenção desse mesmo sistema de violência estatal para proteger grupos historicamente vulneráveis, através da aniquilação da violência e punição dos agressores. O que assusta é que grande parte desses demandantes é oriunda de movimentos sociais que esboçam uma visão desconstrutivista das prisões (KARAM, 2001). A lógica operante é a seguinte: o Sistema de Justiça Criminal é ineficaz, duplicador da violência, desumano e, num Estado Democrático de Direito, essencialmente ilegítimo. Porém, goza, mesmo manten- do todas essas características, de uma legitimidade exógena: a condição de vulnerabilidade da vítima. Se o cárcere, por um lado, não é o lugar de seres humanos, ainda que rotulado de criminosos, poderá ser – e de- verá ser – o lugar de certos seres humanos agressores de determinados grupos vulneráveis. A favor desses, a proteção, ainda que inócua; contra aqueles, a punição, ainda que mortificadora. O problema do intervencionismo penal agrava-se ainda mais pelo fato de não haver, como foi sinaliza- do acima, um arcabouço epistemológico que defina e circunscreva os limites e as condições de possibilidade de uma Política Criminal. Vale ressaltar que a política criminal está umbilicalmente ligada à configuração da política em geral (BARATTA, 2002) e, na inexistência de um conteúdo bem definido, colonizada por esta. Entregue aos devaneios doutrinários, ao oportuno populismo legislativo e ao fortíssimo apelo midiático, a Política Criminal se apresenta como instrumento por meio do qual se espraia o Estado Penal Máximo. 2. POLÍTICA CRIMINAL E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. Não é possível oferecer uma definição única à Política Criminal. O esforço por conceituá-la exige, necessariamente, estabelecer as características mais gerais e essenciais extraídas do universo das diversas contribuições doutrinárias nesse sentido (FREITAS, 2008). Aqui basta fazer referências a duas classificações: Política Criminal em sentido amplo e estrito e Política Criminal em sentido teórico e prático. A primeira classificação denota a abrangência e amplitude da atuação da Política Criminal. Assim, no sentido estrito ou rigoroso do termo, ela é o conjunto de “princípios ou recomendações para a reforma ou transformação da legislação criminal e dos órgãos encarregados de sua aplicação, compreendendo a política de segurança pública, a política judiciária e a política penitenciária” (BATISTA, 2007). No seu aspecto amplo, a Política Criminal não se limita aos problemas propriamente penais de contro- le do desvio (direito penal, direito processual penal, direito penitenciário), mas alcança reflexões, elaborações e execuções de políticas mais extensas de intervenção social (FREITAS, 2008). Fala-se aqui, portanto, em políticas sociais gerais de enfretamento às causas do fenômeno criminal, sendo a intervenção essencialmente penal (política criminal em sentido estrito) seu elemento último e mais gravoso. Nota-se, pois, que há uma relação do tipo gênero-espécie entre a política criminal em sentido amplo e política criminal em sentido estrito, conforme verificamos na lúcida explicação de Ricardo de Brito (2009):
  • 209. 209 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Ao englobar o conjunto das políticas sociais e econômicas de controle social, a política criminal em sentido amplo mantém com a política penal uma relação do tipo gênero/espécie, sendo que esta última se ocupa apenas dos meios penais de contenção da criminalidade. Enquanto a política penal consiste numa resposta à questão criminal circunscrita no âmbito do exercício da função punitiva do Estado, a política criminal em sentido amplo é uma política de transformação social. A segunda classificação coloca no centro da discussão a existência ou não de um estatuto teóri- co, e, portanto, científico, da Política Criminal. No sentido prático, a política criminal se configura como o universo de atividades dirigidas ao enfretamento racional à criminalidade. O sentido teórico denota o estudo e a elaboração de princípios teóricos que se destinariam a nortear e racionalizar as atividades práticas de combate à criminalidade. No primeiro caso, a política criminal é considerada eminentemente prática e, as- sim, destituída de caráter científico. No segundo sentido, a política criminal é definida como atividade teórica destinada a fins práticos e por isso passível de ser considerada uma ciência criminal (FREITAS, 2008). Note-se que há um entrecruzamento entre ambas as classificações: a política criminal como saber teórico tem como objeto, tanto a política criminal sentido amplo, como a política criminal em sentido estrito. A partir dessa sistemática se compreende o contexto atual marcado pela inflação legislativa no campo penal: o Congresso Nacional, ante uma política criminal sem diretrizes, regra geral, despreza as contribuições de pesquisas e estudos científicos, rendendo-se ao “populismo penal” midiático e invocando práticas demagó- gicas que se amparam no sentimento de vingança e exploração do medo da população. Os momentos de instabilidade são mais notáveis nesse sentido, vez que neles, invariavelmente, aparecem respostas milagrosas, rápidas e viáveis administrativamente, mesmo que ineficazes do ponto de vista da redução da criminalidade ou de resolução dos conflitos sociais. Essas medidas legislativas que nascem sem qualquer discussão que tenha o mínimo de rigor teóri- co e científico, recrudescem ainda mais a política criminal nacional quando se abastece da condição de vulnerabilidade da vítima. Se a política criminal prática é vazia de conteúdo e, por isso, incapaz de limitar o exercício do poder punitivo estatal, o discurso assentado sobre a condição desfavorável da vítima aguça ainda mais o “populismo legislativo” e possibilita a composição de uma “legislação penal do terror” e, como tal, mitigadora dos direitos e garantias fundamentais (CARVALHO, 2010). A análise às legislações aqui apresentadas, portanto, aponta para um Congresso Nacional que trabalha incansavelmente e com total discricionariedade no campo da repressão penal – sobretudo em razão da falta de uma teoria própria à política criminal que circunscreva limites à atuação estatal nesse campo – e cujo efeito inevitável é a superposição do Estado de Polícia ao Estado de Direito. O resultado é, como se pode ver no gráfico abaixo, uma elevação exponencial das legislações penais – 320 leis no período de 1940 a 2010:
  • 210. 210 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 3. UMA POLÍTICA CRIMINAL DIRIGIDA À PROTEÇÃO DA VÍTIMA. O banco de dados formulado pela pesquisa que ora se apresenta mostra uma inflação legislativa ocor- rida ao longo dos anos. O recorte temático da proteção à vítima, perpassado pela justificação de situação de vulnerabilidade desta, pode ser observado no universo de 44 leis, distribuídas, em termos de ano, da seguinte maneira: Todas essas legislações têm iniciativa no Congresso Nacional e perpassam diversas matérias, desde tipos penais que visam proteger a vida, a honra e a dignidade da pessoa humana, a tipos penais que propõem a proteção `a mulher, a igualdade racial... São todas legislações punitivas, porque prevêm em seu bojo ou a criação de um tipo penal ou a ma- joração de pena. O fato é que os argumentos que justificam a lei trazem sempre uma suposta intenção de defesa efetiva do bem jurídico tutelado, especialmente para as pessoas que apresentam algum tipo de hipos- suficiência. A título de exemplo, a justificativa da Lei n.º 10.886 de 2003, que trata da violência doméstica, cami- nha no sentido de sustentar que “não se deve tratar da mesma maneira um delito praticado por um estranho e o mesmo delito praticado por alguém de estreita convivência”, e prossegue aprofundando os apelos com fins explícitos de materializar o agravamento penal quando diz: O delito praticado por extranhos em poucos casos voltará a acontecer, muitas vezes agressor e vítima se quer voltam a se encontrar, já o delito praticado por pessoa da convivência tende a acontecer novamente, bem como, pode acabar em delitos de maior gravidade, como é o caso de homicídio de mu- lheres inúmeras vezes espancadas anteriormente – esta especificidade da violência doméstica exclui os delitos decorrentes dessa forma de violência da classificação “menor potencial ofensivo”. Embora tecnicamente levando-se em consideração a pena – no caso de lesões corporais leves e da ameaça – a classificação seja menor potencial ofensivo, as circunstâncias que cercam o delito majoram esse potencial. Vê-se aqui, portanto, construções jurídico-penais aparentemente bem intencionadas e sofisticadas, com argumentos que favorecem o agravamento penal em razão da proteção de vítimas que, por sua condição de convivência com o agressor, apresentam certa vulnerabilidade. Em nenhum momento, porém, a justifica- tiva problematiza acerca das consequências reais da intromissão do Estado penal nas relações intersubjetivas e privadas, tampouco indaga se a lei tem o potencial necessário à resolução concreta do conflito real. A jus- tificativa da Lei n.º 11. 340 de 2006, intitulada simbolicamente de “Lei Maria da Penha” segue esse mesmo caminho argumentativo, quando propõe que, É contra as relações desiguais que se impõem os direitos humanos das mu- lheres. O respeito à igualdade está a exigir, portanto, uma lei específica que dê proteção e dignidade às mulheres vítimas de violência doméstica. Não haverá democracia efetiva e igualdade real enquanto o problema da violência doméstica não for devidamente considerado. Os direitos à vida, à saúde e à integridade física das mulheres são violados quando um membro da família tira vantagem de sua força física ou posição de autoridade para infligir maus tratos físicos, sexuais, morais e psicológicos. Não há ao longo da argumentação justificadora da criação da supracitada lei nenhum fundamento minimamente crítico e comprometido com a extensão da probabilidade de realização fática da afirmação de que uma mera lei pode garantir dignidade e proteção às mulheres vítimas de violência doméstica.
  • 211. 211 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. O que se percebe, na verdade, são construções argumentativas com signos linguísticos em certo sentido até coerentes, mas sobrecarregados de elementos simbólicos, e por isso ideológicos, sem qualquer compromisso com a realidade interativa e conflitiva da dinâmica social. O que importa, para além de qualquer função declarada da lei, é a perpetuação e a expansão do Direito Penal como fórmula tradicional de controle social. E aqui o direito penal expancionista mostra sua feição mais perversa: apropria-se de conceitos, causas, lutas e pautas sociais, historicamente ligadas aos mo- vimentos políticos, ideologicamente de esquerda, e sob o pressuposto de defesa de indivíduos desapoderados, realiza o efeito reverso: maximiza o Estado policialesco. Ora, a sociedade contemporânea é transpassada por uma infinitude de questões caracterizadoras do que se passou a denominar “a sociedade do risco” (BECK, 2009). O medo distribuído indiscriminadamente, sobretudo pela mídia, gesta no imaginário geral, a impressão de que ser vítima de violência é uma possibili- dade mais que real, algo iminente. Resultado disso é uma sociedade marcada pela incerteza, cujos membros, pelo menos potencialmente, se veem identificados com qualquer pessoa que esteja em situação vitimatória. Nesse contexto, e em nome da proteção, sobretudo, dos hipossuficientes, o rigor do direito penal não vê limites: se os riscos (virtuais ou não) no convívio social são incalculáveis e múltiplos, a multiplicação de leis penais rigorosas está legitimada. 4. A NECESSIDADE DE UMA POLÍTICA CRIMINAL RACIONAL E OS EFEITOS DO REALISMO DE ESQUERDA . Ocorre que essas leis têm razoável conotação simbólica, uma vez que o impacto carcerário que pro- vocam não é significativo, pois, como é claramente divulgado, os principais tipos penais que têm levado ao hiperencarceramento é tráfico de entorpecentes e crimes contra o patrimônio. Importante pontuar que o simbolismo não é uma qualidade exclusiva do Direito Penal. Mesmo assim, chama a atenção a grande produção legislativa com forte caráter simbólico. O direito penal simbólico denota uma disparidade entre a realidade e a aparência, o implícito e o explícito, entre o que é querido e o que de outra forma é aplicado. É possível dizer que o simbolismo penal visa satisfazer a pressão social e produzir confiança na capacidade de atuação do Estado, por meio da distribuição (desigual) da punição, sem atentar, necessariamente, para a resolução dos problemas. As normas penais, nesse sentido, tendem a produzir um engano, vez que não são criadas para serem aplicadas com toda efetividade, nem muito menos para por fim aos conflitos concretos, mas para gerar resul- tados e alcançar fins não declarados. Não se trata aqui do simbolismo (denominado positivo) manejado pelo Direito Penal para reforçar a função instrumental de controle de condutas desviadas, protegendo valores selecionados como os mais importantes pela coletividade, tal como “O Direito Penal ganha legitimidade quando se reveste da função de proteger bens jurídicos, por isso é uníssono na doutrina afirmar-se que tutelar os bens jurídicos é a missão do Direito Penal” (BRANDÃO, 2007, p. 7). Como se vê, sendo a função instrumental voltada aos fins do Direito Penal, no caso, a proteção de bens jurídicos, a função simbólica (positiva) volta-se à função de transmitir à sociedade certas mensagens ou conteúdos valorativos com poder de influenciar as consciências com representações mentais para a conformidade com a norma e que o faz através da criminalização. Todavia, quando se constata que não é capaz de operacionalizar, sua capacidade legislativa perderá toda a credibilidade, de modo que a aparência não poderá sustentar a função declarada do sistema de proteger bens jurídicos. Trata-se, desse modo do uso do Direito Penal em desacordo com o próprio discurso legitimador do jus puniendi estatal, sendo a adjetivação “simbólico” sinalizadora de um direito penal cuja função de pro- teger bens jurídicos é corrompida, levando ao descrédito da justiça estatal. Logo, sob esse viés, é Direito Penal simbólico aquele no qual a função de prevenção geral positiva, ou seja, a função de formação de con-
  • 212. 212 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. vicções jurídicas é exacerbada, visando à imposição de valores morais através do progressivo agravamento da ameaça penal, configurando-se numa apelação na qual a função estabilizadora dos conflitos sociais é apenas aparente. A caracterização de um direito penal simbólico é, pois, decorrente da predominância, ou mesmo, da exclusividade dessas pretensões ideológicas. A estratégia de aparente eficácia não é à toa, é destinada a acalmar a demanda social, alarmada, e exonerar o Estado de ampliar e realizar políticas sociais. Isto é, as políticas punitivas têm o traço comum de serem alarmistas e causar uma ansiedade difusa, de modo que ao canalizá-la à figura do delinquente de rua, a severidade penal que passa a ser uma necessidade vital, desvia a atenção daquilo que não consegue realizar: uma política social eficaz. No Brasil, tais problemáticas ganham dimensões ainda maiores, dada a fragilidade da política crimi- nal eminentimente prática, cujo conteúdo e alcance são determinados, com certa prepoderância, pela supe- resposição midiática com respaldo no forjado consenso popular sedento por segurança pública e punição. Por outro lado, parcela da “esquerda” nacional não se dá conta dos efeitos reversos maléficos que, inevitavelmen- te, resulta da opção pelo Direito Penal como fórmula e remédio para resolução os conflitos sociais. Por tudo já dito, percebe-se a urgente necessidade de se pensar em uma política criminal fundamen- tada em saberes teóricos roubustos e racionais, de modo a evitar a expansão desregrada do Estado penal com a consequente mitigação das liberdades individuais e a flexibilização dos direitos fundamentais. CONSIDERAÇÕES FINAIS No decorrer do século XX nasce uma outra modalidade de Estado chamado Estado Social de Direito, que teria o propósito de agir como motor ativo na vida da sociedade, modificando efetivamente as relações sociais, sem, contudo, abandonar as conquistas do Liberalismo. Do Estado Liberal dito “imparcial” se passa a um Estado Social “intervencionista”. No que diz respeito aos seus caracteres básicos, o Estado Social De- mocrático de Direito defende, ao menos em tese, a observância do princípio da legalidade, da igualdade e a supremacia da lei, como garantia máxima de segurança jurídica para todos os cidadãos. Como já fora discutido mais acima, a relação entre Estado de Direito e Estado Social Democrático de Direito é complexa e delicada, de modo a exigir moderação quando da necessidade de reivindicar recuos ou ações prestacionais positivas desse mesmo Estado. Assim, e com base em todas as reflexões aroladas no corpo desse trabalho, se faz necessário está completamente em alerda nesse momento em que se demanda em montantes assustadores a intervenção estatal por meio do Direito Penal. Põe-nos sob alerta o fato de que ultimamente vem crescendo movimentos reividincatórios por uma ainda maior intervenção do Direito Penal para efetivar uma transformação social ou para promover a eman- cipação e proteção dos oprimidos ou vulneráveis. Adimira que tais “solusões” sejam requeridas por setores políticos de esquerda, aqueles usualmente atentos às desigualdades que definem e caracteriza historicamen- te o Estado brasileiro. Esta “esquerda punitiva” (KARAM, 2008), contraditoriamente, contribui no sentido da fragilzação das bases do próprio Estado de Direito, reivivicando o denebroso Estado de Polícia, ao tentar dar feições positivas a um instrumento que, pela sua natureza e poder, se contrapõe as liberdades individuas, dentre ou- tras conquistas históricas. Assim, a título de conclusão, como bem lucidamente conclui Maria Lúcia Karam (2008), O rompimento com a excludente e egoística lógica do lucro e do mercado, há que ser acompanhado do rompimento com qualquer forma de autoritarismo, para que a bens econômicos socializados corresponda a indispensável garan- tia da liberdade individual e do direito à diferença, para que a solidariedade no convívio supere e afaste a crueldade da repressão e do castigo, para que um exercício democratizado do poder faça do Estado tão somente um instru- mento assegurador do exercício dos direitos e da dignidade de cada indivíduo.
  • 213. 213 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina de. A Soberania Patriarcal: O Sistema de Justiça Criminal no Tratamento da Violên- cia Contra a Mulher. Revista Sequência. Florianópolis, ano XXV, n. 50, p. 71-102, junho, 2005. ARANHA, M. L. A. de; MARTINS, M. H. P. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 2009. BARATA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. BECK, Urich. Apus FAYET, Ney. Complexidade, Insegurança e Globalização: respercuções no sistema penal contemporâneo. Sistema penal e violência. Porto Alegre, volume 1, página 84-100 – junho-desembro, 2009. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. v. 1.11. ed. atual.  São Paulo: Sara- iva, 2007. BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. Rio de Janeiro: Forense, 2007. CARVALHO, Salo de. O Papel Dos Atores do Sistema Penal Na Era do Punitivismo: o exemplo privi- legiado da aplicação da pena. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revistas dos Tribunais, 2002. FREITAS, Ricardo de Brito A. P. O Estatuto Teórico da Política Criminal. In: FÖPPEL, Gamil. Novos desa- fios do direito penal no terceiro milênio: estudos em homenagem ao Prof. Fernando Santana. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. ______. Princípio da legalidade penal e estado democrático de direito: do direito penal mínimo à maximi- zação da violência punitiva. In: BRANDÃO, Claudio, CAVALCANTI, Francisco, ADEODATO, João Maurício Adeodato (coord.). Princípio da legalidade: da dogmática jurídica à teoria do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.366-375. GARLAND, David. A cultura do controle. Crime e ordem social na sociedade contemporânea. Rio de Ja- neiro: Revan, 2008. HOBBES, Thomas. Leviatã. Ed. Martin Claret, São Paulo, 2006. KARAM, Maria Lúcia. A Esquerda Punitivista: Entrevista com Maria Lúcia Karam. In: Revista de Estudos Criminais – ITEC. Porto Alegre, n 1, 2001, p 11 e ss. MIAILLE, Michel. Uma Introdução Crítica ao Direito. Trad. Ana Prata. Lisboa, Moraes editora, 1979 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
  • 214. 214 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate.
  • 215. 215 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. ENTRE RETRIBUIÇÃO, NEUTRALIZAÇÃO, SOCIALIZAÇÃO E CONTROLE – A REPRESENTAÇÃO DOS MAGISTRADOS SOBRE A FINALIDADE DA MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO EM PERNAMBUCO Érica Babini L. do Amaral Machado Doutora pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Professora de Direito Penal e Criminologia da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. Maurilo Miranda Sobral Neto Mestrando no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, vinculado à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos. Pesquisador do Grupo Asa Branca de Criminologia. Vitória Caetano Dreyer Dinu Mestranda no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Católica de Pernambuco - UNICAP, vinculada à linha de pesquisa Jurisdição e Direitos Humanos, com bolsa da CAPES/PROSUP. Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. SUMÁRIO: Introdução; 1. A doutrina da proteção integral e seus paradoxos na realidade latino ame- ricana; 2. Análise dos dados; Considerações finais; Referências. INTRODUÇÃO A Doutrina da Proteção Integral marca a transição do paradigma tutelar de menores para o da eman- cipação de sujeitos de direito, a partir da inserção desses sujeitos nas bases dos Direitos Humanos. No entanto, a prática dos agentes das instituições formais de controle não corresponde a essa mu- dança de lentes. Pesquisas recentes apresentam uma dicotomia entre passado e presente. Desde a década de 80, as pesquisas sobre violência, criminalidade, segurança pública e sistema de justiça se tornaram temáticas institucionalizadas nas contribuições sociológicas (KANT DE LIMA, MISSE, MIRANDA, 2000). Antes mesmo, na década de 70, com o trabalho pioneiro sobre delinquência juvenil de MISSE (1973), discutiu-se a forma de responsabilização de adolescentes conduzida pelo Judiciário, que, à época, não cum- pria os preceitos estabelecidos na legislação menorista. Atualizando a problemática, com estudo em sede de recursos, pesquisa encomendada pelo Ministério da Justiça, na Série Pensando O Direito, em 2010, também aponta sérias críticas aos fundamentos das medidas socioeducativas de internação dados pelo Poder Judici- ário. A execução das medidas socioeducativas de internação, na prática, reproduz as problemáticas do sis- tema prisional (seletividade e estigmatização), e é possível comprovar tal afirmativa em trabalhos específicos de dissertações e teses, como a de MELLO (2004), que constatou, na realidade das unidades de internação de Pernambuco, que o caráter pedagógico da medida não a torna mais branda que a pena, porque privar a liberdade de pessoa em desenvolvimento, no auge da conquista do gozo da liberdade, é uma resposta pior do que a própria pena. FACHINETTO (2008) se debruçou sobre a realidade do sistema socioeducativo de adolescentes do sexo feminino no Rio Grande do Sul; MALLART (2014), em versão antropológica, retratou a
  • 216. 216 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. realidade de unidade de internação de adolescentes do sexo masculino em São Paulo, e MACHADO (2014) se debruçou sobre a realidade da unidade de internação de adolescentes do sexo feminino em Pernambuco, apontando as mesmas conclusões: a medida socioeducativa de internação, em essência, em nada se diferen- cia da pena privativa de liberdade. Institucionalmente, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ, 2015), com o objetivo de atualizar pesqui- sa de 2012 que já apontava diversas formas de violações de direitos no âmbito da Justiça da Infância e da Juventude, mapeou a realidade das instituições de internação para adolescentes do sexo feminino em PE, PA, SP, DF e RS, apontando que O Estado, no exercício da proteção e diretos, falha na consagração dos direi- tos mínimos à cidadania e na execução das medidas socioeducativas, faz das unidades de internação depósitos de contenção de adolescentes demoniza- das em suas trajetórias, rotuladas como incapazes de viver socialmente. Sob esse prisma, a medida socioeducativa de internação tem o mesmo sentido da prisão: castigo (CNJ, 2015, p. 212). Diante de várias pesquisas já realizadas, percebe-se a manutenção da dicotomia entre tutela e eman- cipação de sujeitos. Nesse sentido, a pesquisa busca identificar o que os magistrados entendem sobre as finalidades da medida socioeducativa de internação, por meio da análise dos fundamentos de sentenças de aplicação de medida de internação proferidas no Estado de Pernambuco para adolescentes do sexo feminino. O corpus da pesquisa é constituído por 28 sentenças de adolescentes internadas no Centro de Aten- dimento Socioeducativo (CASE) Santa Luzia em abril/20121 , sendo que, dessas, a análise se deteve sobre 9 (32% do total) que utilizaram o argumento da finalidade da medida, dentre outros, para justificar a interna- ção. Para tanto, utiliza-se a metodologia da Análise de Conteúdo, de forma a possibilitar aos pesquisado- res encontrar o latente nas sentenças, em um estudo exploratório, descritivo e qualitativo de documentos (BARDIN, 1977). Daí se inferiu que, quando os magistrados aludem às finalidades da medida, constroem basicamente dois raciocínios: ou a internação tem por fim a pura retribuição/neutralização – bastando auto- ria, materialidade, e o ato infracional ser grave –, ou serve à retribuição/socialização – mesmo que não reste comprovado o cometimento do ato infracional – supostamente, como julga, colmatando lacunas de educação deixadas pela família e pela comunidade. Considerando que o objetivo é identificar representações de magistrados sobre a finalidade da medida socioeducativa de internação, nada melhor do que compreender os discursos que permeiam o texto. É importante ponderar que representação é “algo que alguém nos conta sobre algum aspecto da vida social” (BECKER, 2009, p. 18). São informações que orientam as práticas e relações humanas, construídas através de comunicações sociais e apreendidas socialmente (MOSCOVICI apud ANCHIETA; GALINKIN 2005), além de variar em função dos extratos econômicos e culturais em que se inserem os indivíduos ou grupos (PORTO, 2006). As representações sociais funcionam como princípios orientadores e indutores de condutas de indi- víduos, grupos ou instituições, de modo que, compreender como a magistratura representa a finalidade das medidas socioeducativas de internação importa desvendar o que se pensa sobre o instituto, captando seus significados, expondo seus sentidos. Deste modo, o estudo da representação social da magistratura acerca da finalidade da medida socioe- ducativa de internação não se dirige ao juiz, mas aos conteúdos que eles simbolizam. O magistrado, ausente enquanto tal, está presente como expressão de padrões de organização social, de modelo de comportamento 1  Esse número refere-se à quantidade de adolescentes internadas no Centro de Atendimento Socioeducativo (CASE) Santa Luzia em abril de 2012, momento no qual a pesquisa etnográfica na unidade, realizada pela primeira autora, no âmbito do dou- toramento, teve início. Na verdade, existiam 35 adolescentes, porém, 7 delas estavam na modalidade de internação sanção, o que não compõe o universo da pesquisa.
  • 217. 217 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. interpessoal e de um certo tipo de saber. É certo que o quadro organizacional de que se fala está a associado a modelos de comportamentos interpessoais que nele se inspiram e se reproduzem. Enfim, a representação social do magistrado veicula um modelo de homem e de sociedade. A partir daí, problematizam-se esses argumentos à luz da Criminologia Crítica e das diretrizes da Sociedade de Controle. Enquanto a primeira demonstra que o Sistema de Justiça Criminal – ou, no caso, o Sistema de Justiça Juvenil –, embora não declare funções de defesa social, é esse o valor que norteia as avaliações judiciais2 ; o marco da Sociedade de Controle aduz que indivíduos identificados como constantes agentes de “riscos”, seja por serem inseridos em uma classe economicamente excluída, ou por possuírem um padrão vida que não interessa aos mecanismos de produção da sociedade, são comumente alvos de interven- ções das inúmeras instituições de controle do Estado. Siga-se adiante. 1. A DOUTRINA DA PROTEÇÃO INTEGRAL E SEUS PARADOXOS NA REALIDADE LATINO AMERICANA. Com o objetivo de compreender como se desenvolveu o atual paradigma do trato jurídico sobre a infância e a juventude, não se pode deixar de expor brevíssimo aporte histórico3 . Ao se olhar para o passado, não se pretende explicar o presente como uma mera e inescapável evolução da humanidade; pelo contrário, objetiva-se estabelecer diálogos entre as racionalidades de ontem e de hoje. Nesse sentido, a dicotomia teórica da Doutrina da Proteção Integral com um ranço prático da Doutri- na da Situação Irregular nos operadores do Direito pode ser explicada na realidade latino-americana. Primeiramente, é preciso acabar com a ideia de que o “novo” suplanta totalmente o “antigo”. Afinal, a história vai muito além de simples divisões binárias. Nessa linha, elucidativa a colocação de Patrice Schuch: [...] ao colocarmos o ECA numa economia geral discursiva que vem configu- rando o domínio jurídico-estatal da infância e juventude, no Brasil, desde o início do século XX, poderemos tentar problematizar as rupturas maniqueís- tas entre o ‘ontem’ e o ‘hoje’, que contribuem para um obscurecimento das relações de poder vivenciadas no presente (2005, p. 70). Anteriormente, o controle incidente sobre a juventude era justificado pela Doutrina da Situação Irre- gular, fundamento do Código de Menores de 1979, que se estruturava em torno da categoria menor. Foi uma tendência nascida da corrente filosófica do positivismo, segundo a qual a situação de abandono criava uma necessidade protetiva, ao considerar o menor objeto de compaixão e repressão ao mesmo tempo (TUARDES DE GONZÁLEZ, 1996). A teoria considerava que os menores sempre estariam em situação irregular e, por isso, mereceriam a segregação, sem nenhuma preocupação com o seu desenvolvimento, incapacidades de socialização e po- tencialidades. Na sua vigência, as garantias individuais eram desprezadas sob o falacioso argumento de que incidiam apenas no processo de adultos, não tendo razão para sua incidência no campo do Direito do Menor. Menores eram aqueles supostamente4 abandonados, excluídos, ao passo que os incluídos em famílias e suas escolas eram crianças e adolescentes, a partir de um processo de construção estigmatizante. Assim, as 2  Até porque, além do sistema penal em sentido estrito, existem outros paralelos, compostos por agências de menor hierarquia, destinado a operar com punição a menor, razão pela qual goza de maior discricionariedade e arbitrariedade. Porém, tal qual o punitivo, admite técnicas (ilícitas) subterrâneas normalizadas em termos estatais, dado o fim que promete cumprir (ZAFFARONI, 2003). 3  Nesse ponto, seguindo o alerta de Luciano Oliveira, não se pretende descrever a evolução histórica como um simples ritual e demonstrar uma visão simplória das mudanças de concepção ao longo do tempo (2015, p. 163). 4  Supostamente porque o estado de abandono era decretado por juízes rotineiramente, apenas fazendo uma relação com a carência de recursos materiais, independentemente de fatos infratores. Não é por outra razão que os textos clássicos da cultura
  • 218. 218 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. infrações dos incluídos eram resolvidas no âmbito da esfera privada, mesmo se constituísse um delito, posto que a amplitude judicial e o poder direcional do juiz resolveriam de forma particular; mas, se fosse um ato de menores, é porque estes estavam em situação irregular e demandavam a tutela do Estado para serem corrigidos, educados. Se encontrados em “situação irregular” – o que era definido, primordialmente, em função da situação de pobreza (SCHUCH, 2005, p. 59) – poderiam ser levados para internação, de forma indistinta. O referido processo de internação, no Brasil do início do século XX, chegou inclusive a apresentar um viés civilizatório, fazendo parte das preocupações de construção da nova República brasileira (SCHUCH, 2005, p. 57). Desta feita, por mais que fossem declarados os objetivos de salvar as crianças, de protegê-las do perigo moral, havia esse viés de controle e de verdadeira salvaguarda mais eficaz da sociedade (MÉNDEZ, 2004, p. 31). Diversas foram as críticas a esse modelo, mormente pela primazia da internação, pelo tratamento indiferenciado de crianças abandonadas e crianças supostamente criminosas, bem como pela imposição de padrões comportamentais aos “menores” com o propósito de proteger a sociedade de futuros delinquentes – sendo esta última característica presente até hoje. Sobre a temática, precisas são as palavras de Edson Passetti: A integração se dá pelo avesso na ilegalidade; a vida austera mortifica indivi- dualidades e dispõe os indivíduos enfileirados para ações delinquenciais. E mesmo com a falência dos internatos, eles se transformaram no estandarte dos amedrontados que clamam por mais segurança, muitas vezes exigindo prisões de segurança máxima e até a pena de morte (2010, p. 356). A Doutrina da Situação Irregular passou a ser abalada no contexto pós Segunda Guerra Mun- dial, com a proclamação de direitos universais, acima de qualquer identidade, bem como com a constatação de que a atitude paternalista dos Tribunais de Menores vilipendiava esses direitos, desrespeitando a legali- dade em nome de uma suposta proteção. Assim, as crianças e adolescentes também passaram a ter os seus direitos fundamentais enumerados. Daí surge a primeira característica do novo paradigma, a Doutrina da Proteção Integral: as crianças e adolescentes não mais são objetos de compaixão e repressão, mas sim sujei- tos de direitos. Além disso, outro grande marco do novo paradigma foi o término da confusão na gestão dos abandonados e dos adolescentes transgressores (BARATTA, 1995, p. 5). De forma sintética, as grandes características da Doutrina da Proteção Integral – albergadas juridica- mente pela Convenção Internacional dos Direitos da Criança, pelas Regras de Beijing, pelas Regras Mínimas das Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade e pelas Diretrizes de Riad – são as seguintes: as normas são para o conjunto da categoria infância, e não apenas para aqueles indivíduos em situações difí- ceis (“menores”); presença obrigatória de advogado e papel de controle do Ministério Público; não é mais a criança ou o adolescente que se encontra em situação irregular, mas a pessoa ou instituição responsável pela ação ou omissão; eliminação das internações não vinculadas ao cometimento de ato infracional; crianças e adolescentes como sujeitos plenos de direitos; incorporação dos princípios constitucionais de segurança (MÉNDEZ, 2004, p. 13). No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi o responsável pela introdução da nova doutrina no ordenamento, dividindo a infância e juventude entre aqueles que estão no exercício da cidada- nia, as crianças e adolescentes sujeitos a medidas de proteção (abandonados), e os adolescentes sujeitos a medidas socioeducativas (em virtude do cometimento de atos infracionais). No que tange a este último gru- po, a ideia da Doutrina da Proteção Integral é a de introduzir uma pedagogia de responsabilidade e a assun- ção de direitos por parte dos menores, de forma que o adolescente seja um ator social (RODRIGUES, 1999). menorista referem-se ao juiz como um pai de família que, não podendo forçar o estado em suas políticas públicas, deve institucio- nalizar a criança para protegê-la.
  • 219. 219 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Todavia, todo o exposto é o que se vislumbra do ponto de vista normativo. A superação da Doutrina da Situação irregular não é tão clara e simples assim, em virtude da existência de aparatos de poder e con- trole mesmo que sob a égide da Proteção Integral. Como alertou Patrice Schuch, a troca de paradigma é um processo complexo, em que estão em jogo vários fatores, dentre eles a permanência e/ou mudança de valores (2005, p. 81). Daí que se utilizará o marco teórico da Criminologia Crítica, a fim de desvelar o que está por trás das funções declaradas do novo paradigma – mormente no que tange ao julgamento de adolescentes acu- sados do cometimento de atos infracionais –, bem como da Teoria da Sociedade do Controle, para entender o real objetivo da incidência das normas sobre determinados adolescentes, e não outros. Sim, pois a juventude brasileira tem sido cada vez mais o maior alvo do sistema punitivo (formal e informal), especialmente quando diante da atuação das polícias brasileiras. O Anuário Brasileiro de 2014, apresentando dados de 2013, aponta um total de 809 casos de pessoas mortas pelas Polícias militar e civil brasileiras, quando em serviço no ano de 2013. Isso significa cinco pessoas mortas pela Polícia por dia no Brasil (FBSP, 2014). Em 2015, esse número é 3.022, com aumento de 37% (FBSP, 2015). Entretanto, o relatório da Anistia Internacional, analisando tão somente a realidade do estado do Rio de Janeiro, discute a ausência de transparência e sistematização desses dados. Esse cenário é repetido nos dados sobre as mortes violentas intencionais em todo o país. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2014 aponta o crescimento da vitimação juvenil, chegando a representar, com os dados de 2012, 53,4% dos homicídios ocorridos (FBSP, 2014). Portanto, é possível perceber o extenso número de mortes com autorização social de uma população quemuito além do descaso histórico em relação à precariedade das condições de vida e da indiferença social, essas populações sofreram toda sorte de violência, em especial a física, perpetrada pelos muros da internação e pela arbitrariedade policial materializada sob a forma de tortura e maus tratos que por vezes terminam em morte (VARGAS, 2011, p. 30). Essa continuidade, porém, tem uma peculiaridade. A reatualização da dicotomia abandonado/delin- quente da Doutrina da Situação Irregular: ontem, os considerados pivetes estavam vinculados à prática de furto e roubo, hoje, estão vinculados ao tráfico. Os dados apresentados por Joana Vargas (2011) indicam os argumentos empíricos da atuação das polícias no sentido da dezumanização do humano. Por outro lado, o Poder Judiciário parece alheio a todo esse processo, não impondo resistências aos arbítrios do controle repressivo da ordem pública, deixando evidente que o Estado ainda convive com a in- capacidade do controle da violência ilegal, a manutenção de uma imensa desigualdade social e econômica, além de baixíssima legitimidade das instituições representativas, envolvidas em processos de corrupção, ile- galidades, violências etc. O fato é que, levando em conta o alto índice de seletividade do sistema punitivo, os adolescentes de classes sociais mais baixas, com histórico de desvantagens econômicas, são mais punidos do que os adolescentes de classes mais avantajadas, de modo que o sistema protege aqueles que têm mais chance de socialização e é injusto e viola a dignidade daqueles que têm menos chance (COUSO, 2006). Esse quadro é esquizofrênico, pois as vítimas do sistema punitivo são os mais débeis e são exatamente os que precisam do poder público para representá-los e atuar por eles, porém este poder público não tem tido a capacidade de responder à questão – quem custodiará os custodiados? (MELOSSI, 1996) Não obstante a crise, não se pode parar de exigir, como dever cívico de garantia da vida democrática, menos violência. São os adolescentes autores de atos infracionais jovens-resultados. Resultados de um somatório de fracassos - de suas famílias, de suas comunidades, das políticas sociais públicas... resultado do insucesso do projeto de desenvolvimento do país (KONZEN, 2005), mas sujeitos de direito que não podem ser revitimiza- dos no sistema infracional, cabendo aos representantes do Estado juiz, no momento da prolação das senten- ças, reconhecer esta realidade, e não se reduzir à retórica da percepção da realidade presumida. Assim, no que tange aos adolescentes, por mais que a divisão entre abandonados e jovens em conflito com a lei tenha sido importante em termos de conferir um tratamento jurídico adequado para cada grupo, o
  • 220. 220 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. refinamento dessa dicotomia acabou por recrudescer o estigma de criminoso dos adolescentes selecionados pelo sistema que cometem atos infracionais, sobre os quais recai todo um discurso punitivista. Por mais que haja um discurso de “infância universal”, una, com direitos garantidos a todos, a prática evidencia a dico- tomia entre crianças “em perigo” e “perigosas”, sendo que estas, em nome da “defesa da sociedade”, estão tendo direitos suprimidos. Para enfrentar os desafios dessa “via de mão dupla” da Proteção Integral, é preciso relembrar, como aduz Baratta (1995, p. 10), que o trato dos adolescentes em conflito com a lei não deixa de ser uma espécie de responsabilização penal, com diferença de grau e nas sanções aplicadas. Desta feita, todos os filtros para a imposição do poder punitivo sobre os adultos também devem atuar na definição das medidas socioeducativas para os adolescentes, sob pena de violação das garantias penais e processuais penais. Com esse alerta sobre a Proteção Integral em mente, é que se passará, mais adiante, à análise das sentenças objeto desse trabalho. 2. ANÁLISE DOS DADOS. Nas 28 sentenças integrantes do corpus desta pesquisa, quando se trata de ato infracional que não é grave ou não há indícios de autoria e materialidade, a principal fundamentação da imposição da medida socioeducativa de internação assenta-se no que os magistrados definem como deficiências, entendidas essas as referentes à pessoa da adolescente e a sua história pessoal, fazendo uma retrospectiva da sua vida que, mais a frente, vai justificar (ou não) a medida socioeducativa. Todas as vezes que estes elementos aparecem nas sentenças, são utilizados para justificar a necessi- dade da medida socioeducativa, sem qualquer discussão quanto à prática do ato infracional, como se ela fosse responsabilizada pela sua conduta de vida, sua personalidade a até de seus familiares, como se verá adiante, independentemente do que tenha praticado. Conforme já indicado, das 28 sentenças, 9 delas (32%) apresentam como argumento para a imposi- ção da internação a finalidade da medida socioeducativa – apontada de forma ambígua nas diversas senten- ças –, sendo possível definir dois grandes grupos sobre este item. O primeiro grupo trata a medida de internação como retribuição do mal praticado, e assim o faz na- quelas situações em que exclusivamente só foi analisada materialidade e autoria e o ato infracional é grave, sem nenhuma consideração dos itens referentes à pessoa e à trajetória da adolescente. Neste grupo inserem- -se as sentenças que veem na medida de internação um instrumento de neutralização da adolescente, para proteger a sociedade e a própria adolescente. O segundo grupo indica as medidas socioeducativas como instrumentos de supressão das deficiências de socialização do adolescente, mencionando, inclusive, incapacidades educacionais da família, cabendo ao poder público ensinar os pais como educar. Isso não exclui o fato de que, na grande maioria das vezes, também menciona a retributividade da medida de internação. No primeiro grupo, a consideração sobre a gravidade do ato infracional é que justifica a medida, tanto que as sentenças tratam dos atos infracionais de homicídio (5), roubo (3), tráfico (2) e lesão corporal (1) – essa última foge à regra da gravidade, mas, considerando ter sido realizada com o irmão e com faca, esse dado pode ter sido levado em consideração. A perspectiva da retribuição é verificada na pretensa compreensão do mal praticado que se espera que a medida possa instrumentalizar, como se vê neste trecho: “reconhecer as consequências de seus atos, que chegou ao extremo de atingir o bem mais precioso de todo o ser humano, a vida, necessitando medida mais severa” (SENTENÇA 3). Em muitos momentos, são evidentes a ansiedade para a neutralização da adolescente e até a exemplificação (prevenção geral), mas, como isso não pode ser reconhecido, o eufemismo se apresenta, como neste trecho: “ao mesmo tempo que a internação protege a sociedade, também resguarda a integri- dade física do adolescente infrator que na grande maioria das vezes encontra-se envolvido com quadrilha e
  • 221. 221 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. traficantes” (SENTENÇA 13). Ou seja: no caso, proteger a adolescente justificou a internação, quando não há sentido em alguém ter a liberdade cerceada para a própria proteção. Mais uma vez, tem-se o discurso da proteção como uma via de violação de direitos. Estes trechos apresentam a seguinte visão da magistratura: “A adolescente tem tendência para a prática de ato infracional, sendo imperativa a retirada da comunidade onde vive justificando a aplicação da medida socioeducativa de internação” (SENTENÇA 8). Daí, os juízes passam a narrar a gravidade dos atos infracionais como as piores coisas da humanida- de - o tráfico ilícito é conduta grave, tem como vítima a sociedade, sendo dever do Estado, como medida de proteção, afastar os menores da vivência da marginalidade (SENTENÇA 13). O trecho abaixo exemplifica esta visão: É sabido que o tráfico vem sendo considerado o flagelo da humanidade, cres- cendo cada vez mais, destruindo famílias, sem contar com a cooptação de crianças e adolescentes para as trincheiras do tráfico, sempre ao argumento e que, por não constar no rol daqueles atos infracionais passíveis de inter- nação, são postos, imediatamente em liberdade, retornando as crianças e adolescentes seu lugar de destaque no tráfico de entorpecentes [...] a medida é a mais recomendável a ser aplicada, considerando a conduta dos mesmos e para que não voltem a delinquir, tornando-se profissionais dos tráfico; afastá- -los do perigo iminente de serem resgatados pelo tráfico é que tenho a medi- da como imprescindível (SENTENÇA 25). No caso de um ato infracional relativo a roubo, praticado pelo namorado da adolescente, que, segun- do as testemunhas, ela só chegara, procurando-o (porque estava grávida e intuíra que algo estava aconte- cendo, narra a adolescente), quando o roubo já estava consumado, a opinião judicial é que “trata-se de ato infracional de natureza grave, praticado mediante violência e grave ameaça contra a pessoa, sendo conduta extremamente reprovável, reclamando, portanto, rígida intervenção estatal” (SENTENÇA 21). Em relação à prática de homicídio em que a magistrada reconhece não ter sido a adolescente a dis- parar a arma de fogo, e que coube a ela, somente, “atrair a vítima para emboscada”, tem-se que: A conduta infracional praticada pelo representado demonstra um compor- tamento totalmente primitivo e reprovável, exorbitando os padrões normais aceitáveis do adolescente médio. A população intimidada, chega a desacredi- tar das autoridades, porque muitas vezes desconhecem os trâmites proces- suais e as dificuldades com que trabalha o aparato policial. [...] entretanto ressalto que fundamento precípuo da medida socioeducativa é a ressociali- zação do adolescente em conflito coma lei, com a finalidade de reintegrá-lo ao contexto da comunidade, para o seu desenvolvimento e amadurecimento social e não como simples punição (SENTENÇA 23). Após todo o exposto, observa-se o quanto o fato de o crime ser grave foi decisivo para a imposição da medida socioeducativa de internação. Ou seja, a finalidade retributiva da medida acabou sobressaindo na fundamentação das sentenças, seja esse argumento explicitamente verbalizado ou não. Todavia, dar ênfase a um caráter retributivo não se coaduna com a ideia de Proteção Integral. Mesmo que o Estatuto não tenha um dispositivo indicando as finalidades da medida socioeducativa – diferentemente do Código Penal, o qual aponta as funções de reprovação e prevenção da pena (art. 59 do CP) –, é possível inferir, pelo escopo da Proteção Integral, que o foco deve ser a integralização do adolescente à vida coletiva. Aliás, aqui se justifica a próxima crítica, baseada na teoria da sociedade do controle. Ora, se a infância é “universal”, a “proteção integral” conferida às crianças e adolescentes sujeitos às medidas de proteção especial deve ser equivalente à conferida aos adolescentes sujeitos às medidas socioeducativas. Daí ser possível afirmar que, em paralelo ao estatuído pelo art. 100 do Estatuto (relativo às
  • 222. 222 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. medidas de proteção), a aplicação das medidas socioeducativas também deve levar “em conta as necessida- des pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários”. Ou seja, no que tange à medida socioeducativa de internação, deve ela – além de ser excepcional (conforme o art. 121 do ECA) – se afastar de uma ideia retributiva, não indicada em nenhum momento pelo Estatuto. Pelo contrário, se o foco é fortalecimento de vínculos, a meta é a integração social, e não punição. Por mais que o ECA fale que é preciso analisar a gravidade da infração para imposição da medida (art. 121, §1º), outras questões devem ser sopesadas – como as circunstâncias e a capacidade de cumprir a me- dida socioeducativa, indicadas no mesmo dispositivo –, sob pena de uma espécie de bis in idem: se o adulto não pode ser submetido a regime de pena mais severo por conta da gravidade da infração, por si só (Súmula 718 do STF), porque o adolescente deveria o ser? Portanto, impor internação porque o crime é grave, sem considerações sobre o que seria melhor para a integralização da adolescente à vida coletiva, no caso concreto, ou sobre a sua “culpabilidade”5 , não coadu- na com a Proteção Integral – ou melhor, é prática que se opera sob o pretexto da referida doutrina. Prevalece, assim, uma prevenção especial negativa, em seu caráter de neutralização da adolescente. No segundo grupo, as considerações sobre a finalidade da medida socioeducativa são diversas. Na grande maioria, volta-se à moralização e à necessidade de controle, o que fica claro quando reite- radamente se fala em fiscalização: “a menor seja submetida a controle e fiscalização do seu comportamento” (SENTENÇA 22); “o que sinaliza a necessidade de conduta mais enérgica, para que surta efeito pedagógico esperado, através do acompanhamento sistemático em meio fechado” (SENTENÇA 6); “acompanhamento sistemático para que seja demonstrado orientação no sentido de reconhecer as consequências dos seus atos, necessitando de medidas mais enérgicas” (SENTENÇA 3). Este trecho exemplifica uma situação: levando em consideração a gravidade do ato infracional contra a pessoa e o perfil da adolescente, que não demonstrou arrependimento pelo fato, con- venço-me de que a internação é a medida socioeducativa ideal, pois implica, além da apreensão do desvalor do ato perpetrado, uma obrigatória escolariza- ção/profissionalização da adolescente (SENTENÇA 5). O fato de haver menção às questões pessoais das adolescentes não exclui considerações sobre a gra- vidade do ato, de forma semelhante como feito no item anterior, mas nesse caso, com sentença proferida por magistrado de outra comarca: deve-se destacar a extrema gravidade do tráfico ilícito de entorpecentes que muito contribui para o aumento desenfreado da violência vivenciado pela sociedade e tão veemente repelida. Sabe-se que a droga não só danifica a seu usuário, mas atinge famílias e seu mal se espalha de forma incontrolável, vin- do a destruir lares, vidas, estando a sociedade cada vez mais contaminada por esta destruição. Assim, qualquer ato que venha contribuir para a proliferação deste mal deve ser repreendido e levado muito a sério, a fim de evitar que mais pessoas venham ser atingidas e destruídas (SENTENÇA 1). E, em razão dessa gravidade, encerra a avaliação: “não nos é permitido deixar de aplicar a medida socioeducativa, visto ser necessário que a representada pare para pensar e sentir as consequências da prática infracional” (SENTENÇA 1). 5  É bem verdade que inexiste, no âmbito da análise do ato infracional, a culpabilidade, que em si representa o elemento na teoria do delito responsável pela avaliação do autor do fato. Porém, é ela imprescindível para gerar a responsabilização socioeducativa de adolescentes em conflito com a lei, devendo ser entendida como especial capacidade de culpabilidade, fundada no princípio da autonomia ética da pessoa humana que não pode ser utilizada como meio para outro fim, e tão somente fim em si mesma Portanto, a imposição da medida socioeducativa “depende não apenas do desvalor do resultado, mas, principalmente, do desvalor da ação ou omissão do adolescente, ou seja, do comportamento consciente ou negligente” (CILLERO BRUÑOL, 2011, p. 20).
  • 223. 223 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Então, por ora cabe à medida “interferir na realidade familiar e social do adolescente, tencionando resgatar, mediante apoio técnico a sua potencialidade” (SENTENÇA 20) e, por ela, possa a adolescente “dar direcionamento à sua vida” (SENTENÇA 4), na medida em que oferece “uma obrigatória escolarização e profissionalização” (SENTENÇA 5), tornando-se portanto “cidadão útil” (SENTENÇA 18); por ora, cabe à retribuição do mal praticado e até mesmo, por vezes, cabe a ela oferecer “terapias psicológicas” (SENTENÇA 16), quando a adolescente é diagnosticada por profissionais da saúde como portadora de transtornos mentais. Todas essas situações justificam a medida, mesmo quando ela não é cabível, pois não inserida nas hipóteses do art. 121, ECA; como foi o caso de tráfico, já tantas vezes mencionado, e o caso de um ato infra- cional equiparado à ameaça que “por si só” não justificaria a internação, “entretanto, diante” (SENTENÇA 10) do risco pessoal, das ameaças de traficantes e dos distúrbios de conduta agravados pelo uso de drogas, a medida está justificada. Todas as confusões possíveis entre socioeducar, neutralizar, retribuir, são resumidas nesta passagem: “ser necessário que a representada pare para pensar e sentir as consequências de sua prática infracional [...] conduta mais enérgica para que surta o efeito pedagógico esperado através de acompanhamento mais sistemático em meio fechado” (SENTENÇA 11). Ou será melhor percebido neste trecho?! “Considerando a capacidade da adolescente cumprir a medida, as circunstâncias e a gravidade da infração, assim como sua personalidade e a possibilidade de entender o efeito pedagógico da medida e a ilicitude do ato pratico, tenho por bem aplicá-la” (SENTENÇA 20). Enfim, o que realmente quer dizer este efeito pedagógico – castigo pelo mal que fez ou complemen- tação das problemáticas relativas à socialização? Para uma ou outra coisa, há enorme arbitrariedade. Caso a educação seja via retribuição, o efeito da media socioeducativa é penal, sendo que este é aplicado sem qualquer discussão sobre a culpabilidade. Por outro lado, se a finalidade educacional da medida busca suprir lacunas de sociabilidade, abre-se espaço para as práticas “menoristas”, com violações aos direitos fundamen- tais dos adolescentes; mas parece que, neste caso, as ilegalidades seriam justificadas em nome da proteção... Essas contradições são repetidas, na medida em que a maioria das sentenças nega o caráter penal da medida, porém indicam veementemente a necessidade de ser compreendido o desvalor da ação, em clara perspectiva retribucionista. A ideia de retribuição está presente nesta passagem: “para que possa pensar e sentir as consequên- cias de sua prática infracional”. Mas também a indicação da necessidade pedagógica é evidenciada neste outro trecho que se mistura com a retribuição: “implica além de compreensão do desvalor, uma obrigatória escolarização/profissionalização” (SENTENÇA 5). Este último caso é interessante porque não trabalha qualquer fundamento sobre a necessidade da medida, como se homicídio fosse tão grave e suficiente por si só. Mas depois aplica a medida afirmando que a adolescente necessita de escolarização, sem fazer qualquer referência sobre a condição escolar dela – isto é, sem nada saber sobre a realidade da mesma, pelo menos em termos da sentença. É como se presumisse que a medida é necessária, afinal “A medida socioeducativa deve ser pautada na ressocialização do adolescente, com a finalidade de reintegrá-lo ao convívio da comunidade para o seu amadurecimento e desenvolvimento” (SENTENÇA 9). No segundo grupo, portanto, a finalidade da medida socioeducativa de educação/ressocialização é um dos fundamentos para a escolha pela internação. A nosso ver, essa função socializadora da medida con- substancia uma representação falaciosa dos magistrados quanto à internação, demonstrando a falta de co- nhecimento deles da realidade das instituições, com grandes dificuldades para a efetivação de uma prática pedagógica. Nas duras palavras de Juarez Cirino dos Santos, as medidas privativas de liberdade (art. 120 e 121 do ECA) podem ser qualquer coisa, menos socioeducativas (2001). 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS.
  • 224. 224 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Qual seria, então, o significado de ressocialização, no contexto do Estatuto, em consonância com o princípio basilar de Proteção Integral? Neste ponto, importante destacar que coadunamos com a concepção de Jaime Couso (2006) sobre o papel desse escopo de ressocialização: não se trata de um “fundamento” das medidas socioeducativas, mas de um limite à aplicação delas. Isso significa que, quando da análise de qual medida socioeducativa deve ser aplicada, é preciso ter em mente que é impossível ressocializar uma pessoa apartando-a da sociedade, conforme é denunciado pela Criminologia Crítica há tempos. Com efeito, denuncia-se inclusive a potencialidade criminógena do encarce- ramento, com “efeitos dessocializantes devastadores” (RODRIGUES, 1999, p. 290). Consequentemente, a ideia de ressocialização deve promover a redução da gravidade da medida aplicada (constituindo, pois, limite à medida), de forma que a internação, de fato, constitua exceção. Caso se busque uma verdadeira socialização, o que deve haver é desencarceramento, e não a prática de fundamentar o encarceramento sob pretextos educacionais. Essa “educação”, em verdade, ao invés de promover o aprendizado para a vida na sociedade, com respeito às individualidades, apresenta-se como dire- cionamento de comportamentos, em que a tônica é o controle social (COUSO, 2006). Como se percebe, as representações dos magistrados sobre as medidas socioeducativas de internação consistem no controle da juventude, daquilo que eles consideram como sendo uma “juventude normal”. A evidência está nas sentenças que, sob o argumento de que as adolescentes precisam das finalidades da internação em suas vidas, a fim de que haja a Proteção Integral, descumprem o devido processo legal e ignoram a condição de sujeitos de direito, em claro desrespeito às diretrizes constitucionais. Na verdade, a construção metódica que concede racionalidade ao ato judicial, revestido do método silogístico da dogmática, encobre que a imposição de medida socioeducativa tem por base questões relativas à socialização da adolescente. Se a finalidade da medida é castigo, tem-se o efeito penal e, se é penal, está sendo aplicada medida sem nenhuma observância da culpabilidade da adolescente; por outro lado, se o efei- to pedagógico é para complementar as deficiências, está-se diante de um direito de menores, com violações à legalidade, ao devido processo legal e à presunção de inocência, ao se impor um verdadeiro direito penal do autor. Nesta prática, não se tem educação, mas apenas controle social. Esses argumentos serão melhor tratados adiante. Assim, os magistrados ignoram a realidade, bem como violam a Proteção Integral, ao utilizarem-se do projeto preventivo-especial das medidas de internação se limitando à simples constatação de autoria e mate- rialidade, para, ao cabo, determinar a internação. Não obstante o art. 122 do ECA indicar como requisito da internação ato cometido com grave ameaça ou violência à pessoa ou reiteração de infrações graves, isso não quer dizer que, obrigatoriamente, adolescentes os quais se encaixem nessas hipóteses devam ser internados, até por conta da excepcionalidade da medida. Quanto aos atos infracionais mais leves, o ideal de ressocialização, ao invés de impedir que a adoles- cente tenha sua liberdade privada, acaba exercendo um papel inverso, justificando a internação como possi- bilidade salvadora de educação da jovem. Todavia, conforme exposto ao longo deste trabalho, é preciso refletir sobre que educação para sociabilidade é essa, cuja execução se dá em ambiente de privação de liberdade, em um inegável paradoxo. Embora a ressocialização devesse buscar manter vínculos familiares e comunitários, o que acaba por emergir é uma espécie de direito penal juvenil do autor. Desta forma se acredita que o ar- gumento ressocializador deva ser usado para a redução da intensidade da intervenção estatal na vida dos adolescentes em conflito com a lei. Nesse contexto, evidencia-se como o ideal de Proteção Integral, por mais que tenha efetuado uma ruptura histórica com o paradigma da “menoridade”, presta-se a possibilitar supressão de direitos, sob o véu de que tudo está sendo feito em favor dos adolescentes. Diante de uma estrutura normativa tão fluida, mais do que nunca os juristas devem estar atentos e repensar quais são suas representações sobre as finalidades da medida socioeducativa, a fim de que a prática não se aparte das diretrizes constitucionais, e os adolescentes, “sujeitos de direitos”, não tenham suas garantias penais e processuais penais olvidadas.
  • 225. 225 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Nesse sentido, mesmo que a Doutrina da Proteção Integral represente, normativamente, um avanço na tutela dos direitos humanos, no Brasil, a categoria menor é reatulizada, sob a perspectiva do controle. Não obstante a mudança, para Liana de Paula (2015), a pobreza6 é uma categoria catalizadora do tratamento do adolescente em conflito com a lei, que, em si, tornou-se um campo de discursos e práticas, organizado em torno da criminalidade urbana. De fato, é isso que os dados apontam. Por mais que haja uma legislação avançada, como é indicado por vários autores os quais se debruçam sobre a matéria, a ampla discricionariedade permitida pelas normas, bem como a mentalidade jurídica no Brasil – que permanece penalizadora e cada vez mais contrária ao ECA (PASSETI, 2010, p. 371) –, acabam fazendo com que haja a permanência de estruturas de controle sobre os adolescentes em conflito com a lei. Imprescindível, pois, o cuidado no trato com a Doutrina da Proteção Integral, que pode se prestar a esconder violações de direitos fundamentais sob a retórica de proteção desses mesmos direitos. REFERÊNCIAS ANCHIETA, Vânia Cristine Cavalcante; GALINKIN, Ana Lúcia. Policiais Civis: representando a violência. Psicologia Sociedade, n. 17 (1), p. 17-28, Jan/abr, 2005. BARATTA, Alessandro. Elementos de um nuevo derecho para la infância y la adolescência. Capítulo crimi- nológico, v. 23, n. 1, Maracaibo, enero-junio 1995. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. BECKER, Howard. Outsiders: studies in the sociology do desviance. Nova York: The Free Press, 1963. _______. Falando da sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janei- ro: Jorge Zahar, 2009. CILLERO BRUÑOL, Miguel. Nulla Poena Sine Culpa. Un límite necesario al castigo penal de adolescentes. Revista Pensamiento Penal, n. 124, Santiago del Chile, 2011. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatório de Pesquisa. Dos espaços aos direitos: a realidade da ressocialização na aplicação das medidas socioeducativas de internação das adolescentes do sexo feminino em conflito com a lei nas cinco regiões. Brasília, 2015. COUSO, Jaime. Principio educativo y (re) socialización en el derecho penal juvenile. In: UNICEF. Justicia y derechos del niño, n. 8. Chile, 2006. DE PAULA, Liana. Da “questão do menor” à garantia de direitos. Discursos e práticas sobre o envolvimento de adolescentes com a criminalidade urbana. Civitas, Porto Alegre, v. 15, n. 1, p. 27-43, jan.-mar. 2015. FACHINETTO, Rochele Fellini. A “casa de bonecas”: um estudo de caso sobre a unidade de atendimento sócio-educativo feminino do RS. Dissertação. UFRGS. Programa de Pós Graduação em Sociologia. Porto Alegre, 2008. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 8º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. São Paulo: FBSP, 2014. 6  Como salienta Michel Misse (2011), pobreza e criminalidade são variáveis, tidas, pelas ciências sociais, como causas a partir do século XIX, substituindo a patologia médica (lombrosiana) pela patologia social.
  • 226. 226 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. KANT DE LIMA, Roberto; MISSE, Michel; MIRANDA, Ana Paula Mendes de. Violência, criminalidade, se- gurança pública e justiça criminal no Brasil: uma bibliografia. BIB, Rio de Janeiro, n. 50, 2 semestre, 2000, p. 45-123. KONZEN, Afonso Armando. Pertinência Socioeducativa. Reflexões sobre a natureza juridical das medi- das. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005. MACHADO, Érica Babini L. Do A. Medida socioeducativa de internação: do discurso (eufemista) à prática judicial (perversa) e à execução (mortificadora): um estudo do continuum punitivo sobre adolescentes do sexo feminino em conflito com a lei na cidade do Recife, PE. Tese (Doutorado em Direito) – UFPE, 2014. MALLART, Fábio. Cadeias Dominadas. A fundação Casa, suas dinâmicas e trajetórias de jovens internos. São Paulo: Terceiro Nome, 2014. MELLO, Marília Montenegro Pessoa de. (In)imputabilidade penal. Adolescentes infratores: punir e (res) socializar. Recife: Nossa Livraria, 2004. MISSE, Michel. A categoria “bandido” como identidade para o extermínio: algumas notas sobre sujeição criminal a partir do caso do Rio de Janeiro. In: Cesar Barreira; Leonardo Sá; Jânia Perla de Aquino. (Org.). Violência e Dilemas Civilizatórios. As práticas de punição e extermínio. 1ed.Campinas, SP: Pontes, 2011, v. 1, p. 31-58. ________. Delinquência juvenil na Guanabara. Rio de Janeiro: Tribunal de Justiça da Guanabara, 1973. MELOSSI, Darío. Ideología y Derecho Penal. Garantismo Jurídico y criminologia crítica: ?Nuevas ideologias de la subordinacíon? Revista Nueva Doctrina Penal. Buenos Aires, p. 75-86, Del Porto Ed, 1996. MÉNDEZ, Emilio Garcia. Infancia: De los derechos y de la justicia. Buenos Aires: Editores Del Puerto, 2004. OLIVEIRA, Luciano. Manual de Sociologia Jurídica. Petrópolis: Vozes, 2015. PASSETI, Edson. Crianças carentes e políticas públicas. In: PRIORE, Mary Del (org.). História das Crian- ças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2010, p. 347/375. PORTO, Maria Stella Grossi. Crenças, valores e representações sociais da violência, Sociologias, n. 16, p. 250-273, 2006. RODRIGUES, Anabela Miranda. Política Criminal e Política de Menoridade. Psicologia – Teoria, investiga- ção e prática, Centro de Estudos em Educação e Psicologia, Universidade do Minho, v. 4, n. 2, p. 283/292, out. 1999. SANTOS, Juarez Cirino dos. O adolescente infrator e os direitos humanos. In: Revista do Instituto Brasi- leiro de Direitos Humanos, ano 02, v. 02, nº 02, 2001, p. 90/99. Disponível em: http://www.ibdh.org.br/ ibdh/revistas/revista_do_IBDH_numero_02.pdf. Acesso em: 18 out. 2015. SCHUCH, Patrice. Práticas de Justiça: Uma Etnografia do “Campo de Atenção ao Adolescente Infrator” no Rio Grande do Sul depois do Estatuto da Criança e do Adolescente. Tese de doutorado apresentada no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRGS. Porto Alegre, 2005. TUARDES DE GONZÁLEZ, Trina. Tendencias evolutivas em la proteccion del niño y del adolescente: de la situacion irregular a la proteccion integral, Capítulo Criminológico, v. 24, n, 2, 1996, p. 119-136
  • 227. 227 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. VARGAS, Joana Domingues. Adolescentes infratores no Rio de Janeiro: violência e violação de direitos fun- damentais. Revista do CFCH, Rio de Janeiro, ano 2, n. 4, p. 24-41 , dez. 2011. ZAFFARONI, E. R. Criminología: aproximación desde una márgen. Colombia: Editorial Temis, 2003.
  • 228. 228 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. DEMOCRACIA, EFETIVIDADE E DIREITOS SOCIAIS: UM OLHAR SOBRE OS CONSELHOS MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS – A PARTICIPAÇÃO COMO CONCRETIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Erika Patrícia Ferreira dos Santos Bacharelanda em Direito pela Faculdade ASCES Isabel Cristina Souza Queiroz Bacharelanda em Direito pela Faculdade ASCES Marco Aurélio da Silva Freire Bacharel em Direito pela Faculdade ASCES e em Ciência Contábeis pela FAFICA. Mestrando em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professor universitário na Faculdade ASCES. SUMÁRIO: Introdução; 1. Direitos Sociais; 1.1. Democracia; 2. Conselhos de políticas públicas; Conclusão; Referências. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem o escopo de analisar os Conselhos Municipais de Educação como meio de concretização da cidadania, da democracia e, por conseguinte, do fortalecimento dos direitos sociais. Para isso, foi feita uma pesquisa bibliográfica e documental. Inicialmente, tratar-se-á da transformação e fortale- cimento dos direitos sociais, estes, que como veremos mais adiante, passaram por várias etapas resultantes de vários momentos históricos. Com isso podemos dizer que os direitos sociais são produtos de um longo processo de constitucionalização que se estende até o período atual, onde os direitos são garantidos, mas nem todos são efetivados, necessitando, por vezes, do acionamento do Poder Judiciário ou até mesmo de normas infraconstitucionais que garantam sua eficácia plena. Pois, sabemos que a ativação dos direitos sociais é um meio para se atingir um mundo econômico, sócio-político e ético-cultural melhor e mais justo. Logo mais adiante, abordar-se-á a democracia e os tipos de exercê-la, ressaltando os prós e os contras da democracia representativa e apresentando a democracia participativa como um escape para uma demo- cracia representativa, esta que está perdendo o respeito da sociedade. Apresentar-se-á também alguns tipos de democracia participativa, destacando, por sua vez, os conselhos de políticas públicas. Dentre os conselhos, merecerá destaque o Conselho Municipal de Educação, visto que a educação apresenta resultados para além de si e podendo ser, se bem administrada, a solução para muitos dos problemas sociais e estruturais enfren- tados pelo Brasil – como, por exemplo, as drogas, a violência e a corrupção. No decorrer do trabalho também trataremos a respeito do funcionamento dos conselhos municipais de educação, sua formação, como se dão as reuniões entre os membros da sociedade civil e representantes do Estado, estas que podem ser de cunho deliberativo ou consultivo, além de analisar sua eficácia. Soma-se a isso que serão expostos alguns dos problemas enfrentados pelos conselhos tendo em vista que muitas vezes estes são objetos de clientelismo e coronelismo, resultam na escolha de conselheiros mal informados e pouco representativos.
  • 229. 229 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 1. DIREITOS SOCIAIS Os direitos sociais, são direitos de 2ª (segunda) dimensão, referentes à igualdade. Segundo José Afon- so da Silva os direitos sociais são: Prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situ- ações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito ao di- reito de igualdade. Valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que criam condições materiais mais propícias ao aferimento da igualdade real, o que, por sua vez, proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade. (SILVA, 2010, p. 286-287) Ao analisar a história dos direitos sociais, no Brasil, percebe-se que os mesmos sofreram constantes transformações devido aos contextos históricos diversos, as mudanças demográficas e as variações nas con- cepções político-econômicas. Sabe-se que na década de 30, o Brasil, passava por transformações estruturais. Os altos níveis de migrações para os centros urbanos ocasionaram problemas sociais e atingiram diretamente a infraestrutura do país. Neste mesmo período histórico, a posse do poder estava com a elite e o Estado tinha o domínio sobre quase tudo, instaurando um estado hobbesiano, ou seja, uma política de controle. Esse dirigismo estatal prevaleceu até o governo Dutra, pois, surgem nesse período histórico movi- mentos sociais e associações civis que tinham, dentre outros objetivos, reivindicar ao Estado, a ampliação dos direitos sociais. Instala-se no Brasil, então, um resquício de democracia, onde será marcado por grandes conquistas como, por exemplo, ampliação dos direitos trabalhistas e previdenciários. Porém, em 1964, com a instalação do regime ditatorial, ocorre a extinção dos direitos políticos e civis, que, por conseguinte, prejudicou a manutenção de alguns direitos sociais. Ainda no ano 1967, grande parte da sociedade não tinha acesso aos seus direitos fundamentais, mesmo estes sendo garantidos no artigo 150 da Constituição de 1967, e dos direitos sociais previstos no artigo 158. Em 1988 foi promulgada a atual Constituição Federal, garantindo a redemocratização. Porém, como é sabido, nem todos direitos sociais por ela ofertados foram implementados, tornando-se um período de “po- lítica social sem direitos sociais” (VIEIRA, 1997, p. 14). Sabe-se que até os dias atuais alguns direitos sociais não são efetivados necessitando, por vezes, acio- nar o Poder Judiciário para concretização desses direitos. De acordo com Barroso: O judiciário é o guardião da Constituição e deve fazê-la valer, em nome dos direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusi- ve em face dos outros Poderes. Eventual atuação contramarjoritária, nessas hipóteses, se dará a favor e não contra a democracia (BARROSO, 2009, p. 346). Para Peter Häberle, há uma relação umbilical entre a democracia e os direitos sociais na constituição de um Estado Democrático de Direito, sendo exigidos pela democracia os direitos sociais, além destes serem necessários para participação política. Infere-se, portanto, que os direitos sociais devem servir para o controle da política por parte dos cidadãos, sendo assim o pressuposto básico da democracia. 1.1 DEMOCRACIA
  • 230. 230 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Entende-se por democracia o exercício dos princípios da cidadania e da soberania popular. Ou seja, democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo1 . Segundo Norberto Bobbio em “O Futuro da Demo- cracia”, a democracia é caracterizada: Por um conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem está autorizado a tomar as decisões coletivas e com quais procedimen- tos. Mas até mesmo as decisões de grupo são tomadas por indivíduos (o grupo como tal não decide). Por isto, para que uma decisão tomada por indivíduos (um, poucos, muitos, todos) possa ser aceita como decisão coletiva é preciso que seja tomada com base em regras (não importa se escritas ou consuetu- dinárias) que estabeleçam quais são os indivíduos autorizados a tomar as decisões vinculatórias para todos os membros do grupo, e à base de quais procedimentos (BOBBIO, 1986). Podemos classificar a democracia de modo geral em: direta, indireta ou semidireta. Na democracia indireta ou representativa, o povo, o soberano, escolhe seus representantes, outorgando-lhes poderes para que por eles e para eles governem o país. Enquanto que na democracia direta o poder é exercido pelo povo, sem representações. Já na democracia semidireta ou participativa, haverá representatividade e a participa- ção direta do povo nos atos estatais. De acordo com Robert Dahl é possível definir alguns critérios de um processo democrático: • Participação efetiva. Antes de ser adotada uma política pela associação, todos os membros devem ter oportunidades iguais e efetivas para fazer os outros membros conhecerem suas opiniões sobre qual deveria ser esta política. • Igualdade de voto. Quando chegar o momento em que a decisão sobre a política for tomada, todos os membros devem ter oportunidades iguais e efetivas de voto e todos os votos devem ser contados como iguais. • Entendimento esclarecido. Dentro de limites razoáveis de tempo, cada membro deve ter oportunidades iguais e efetivas de aprender sobre as políticas de aprender sobre as políticas alternativas importantes e suas prováveis consequências. • Controle de programa de planejamento. Os membros devem ter a opor- tunidade exclusiva para decidir como e, se preferirem, quais as questões que devem ser colocadas no planejamento. Assim, o processo democráti- co exigido pelos três critérios anteriores jamais é encerrado. As políticas da associação estão sempre abertas para a mudança pelos membros, se assim estes escolherem. • Inclusão dos adultos. Todos ou, de qualquer maneira, a maioria dos adul- tos residentes permanecentes deveriam ter o pleno direito de cidadãos implícito no primeiro de nossos critérios. Antes do século XX, este critério era inaceitável para maioria dos defensores da democracia. Justificá-lo exigiria que examinássemos por que devemos tratar os outros como nos- sos iguais políticos. (DAHL, 2001) Pode-se perceber, porém, que muitos desses critérios elencados por Dahl ainda não são plenamente concretizados, precisando, por vezes, democratizar a democracia. No Brasil criou-se uma cultura onde os políticos são vistos pela população como uma classe superior e inatingível, distanciando, desta forma, o polí- tico do contexto social. Tal fato atinge então a democracia representativa, visto que com o distanciamento do representante, político, do representado, sociedade, aquele usa o poder como meio de satisfação dos próprios anseios ou até 1  SILVA, De Plácido. Vocabulário jurídico. 31ª edição. Rio de Janeiro, Forense, 2014
  • 231. 231 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. mesmo como instrumento de dominação da classe dominante, esta que lhe rendeu ou renderá mais votos para que possa ser reeleito. Quanto a isso Norberto Bobbio faz uma crítica direta: As democracias representativas que conhecemos são democracias nas quais por representante entende-se uma pessoa que tem duas características bem estabelecidas: a) na medida em que goza da confiança do corpo eleitoral, uma vez eleito não é mais responsável perante os próprios eleitores e seu mandato, portanto, não é revogável; b) não é responsável diretamente pe- rante os seus eleitores exatamente porque convocado a tutelar os interesses gerais da sociedade civil e não os interesses particulares desta ou daquela categoria. (BOBBIO, 1986) Sendo assim, forma-se uma nova classe, a dos políticos de profissão. Estes vivem para política e da política, buscando sempre a manutenção do poder e os interesses particulares, esquecendo-se, por sua vez, das necessidades do soberano, o povo. Como escape para uma democracia representativa em crise, tem-se a democracia participativa ou direta, onde os cidadãos poderão participar ativamente das políticas públicas e fiscalizar os atos estatais. De acordo com Fernando Novelli Bianchini, entende-se por democracia participativa: O processo político que possibilita e estimula a participação do cidadão e de sua comunidade, via de regra de forma direta e por vezes de forma semidi- reta, na elaboração da vontade e dos atos próprios do governo já construído, em suas tarefas legais e administrativas, descartando a representação por meio de uma assembleia eletiva para tanto. Em sua essência a democracia participativa é caracterizada por um conjunto de pressupostos normativos que incorporam a participação da sociedade civil na regulação da vida cole- tiva dentro de uma agenda previamente determinada de assuntos. Pode-se afirmar que a democracia participativa impõe o exercício da cidadania nos atos de governo, significando, em última análise, um sistema no qual os ci- dadãos possam efetivamente participar das decisões políticas fundamentais. (BIANCHINI, 2009, p. 15) Há alguns instrumentos para efetivação da democracia participativa. Os mais comuns citados pela ciência política e jurídica são: referendo, projeto de lei de iniciativa popular, orçamento participativo, audiên- cias públicas, ação popular, conselhos de políticas públicas, entre outros. Merecerá destaque e será abordado mais adiante, os conselhos de políticas públicas, mais especificamente, os conselhos municipais de educação. Insta salientar, todavia, que a democracia participativa e a democracia representativa devem ser desenvolvidas respectivamente, visto que são complementares. Dessa forma, haverá a concretização dos princípios da soberania, da cidadania e da democracia, instaurando assim um legítimo Estado Democrático de Direito. 2. CONSELHOS DE POLÍTICAS PÚBLICAS A participação da sociedade nos atos do governo é algo recente, principalmente, na gestão de políti- cas públicas. Como já foi dito, a democracia sempre esteve muito limitada ao voto direto e após essa decisão a população passava apenas a agir de forma passiva dentro das relações estatais. Políticas públicas são aqui entendidas como ações do governo que objetivam a inclusão social, seus elementos principais são: possibilitam a distinção entre o que o governo pretende fazer e o que, de fato faz; envolvem vários níveis de atores e decisões, incluindo participantes in- formais; são abrangentes e não se limitam a leis e regras; são ações intencio- nais, com objetivos e metas a serem cumpridas; costumam produzir impacto em logo prazo.” (SOUZA, Celina. 2006, p. 24).
  • 232. 232 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Com o déficit de participação advindo da democracia representativa, a partir da década de 90 começam a surgir outros mecanismos de participação que iriam além do voto. podemos citar como exemplo os conselhos, que devem ter preferencialmente formação paritária entre membros da sociedade civil e mem- bros do poder público. Deu-se a esses conselhos competência para programar e fiscalizar políticas públicas desenvolvidas pelo governo. A participação do povo na gestão da coisa pública reflete algumas implicações: 1. A participação social promove transparência na deliberação e visibilidade das ações, democrati- zando o sistema decisório. 2. A participação social permite maior expressão e visibilidade das demandas sociais, provocando um avanço na promoção da igualdade e da equidade nas políticas públicas; e 3. A sociedade, por meio de inúmeros movimentos e formas de associativismo, permeia as ações estatais na defesa e alargamento de direitos, demanda ações e é capaz de executá-las no interesse público.2 O conceito mais apreciado dos conselhos de políticas públicas é o de Maria da Glória Gohn, onde são definidos como “canais de participação que articulam representantes da população e membros do poder pú- blico estatal em práticas que dizem respeito à gestão de bens públicos”. (GOHN, 2001, p. 7). A nossa análise permeia na relação desses conselhos com a efetivação da democracia, percebemos até aqui que esses órgãos permitem de fato a presença de entes não governamentais, que se caracterizam como atores informais e que são garantidores da participação que concretiza os direitos sociais constitucionalmente dispostos. Dessa forma, a constituição Federal de 1988 estabeleceu em diversas nor- mas a obrigatoriedade da cooperação entre a sociedade civil e as instâncias de governo, que ocorre ordinariamente por meio dos Conselhos de Políticas Públicas, para: (1) o planejamento municipal (art. 29, XII); (2) a gestão da seguridade social que compreende um conjunto integrado de ações de ini- ciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinado a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social, deve se pautar pelo caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados (inciso IV, parágrafo único, art. 194); (3) assegurar a participação da comunidade na gestão das ações e serviços públicos de saúde que devem integrar uma rede regionalizada e hie- rarquizada e constituem um sistema único (art. 198, III); (4) a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis, das ações governamen- tais na área da assistência social realizadas com recursos do orçamento da seguridade socialv(art. 201, II); (5) a gestão democrática do ensino público (art. 206, VI); (6) participação de entidades não governamentais em progra- mas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, promovidos pelo Estado, mediante políticas específicas (art. 227, parágrafo 1º.). (ALVES, 2013, p. 234.) Com isso podemos afirmar que os Conselhos de Políticas Públicas são órgãos do poder público de composição preferencialmente paritária entre o governo e a população, estão previstos na constituição e garantem a participação social efetivando direitos sociais. São várias as áreas de atuação desses conselhos, podemos destacar o Conselho Nacional do Meio Ambiente, Conselho Nacional de Política Criminal e Previ- denciária, Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, Conselho Nacional de Educação entre outros. Decidi- mos especificar nosso estudo ao Conselho de Educação no âmbito municipal. Esclareceremos aqui que nossa escolha tem fundamento na grande importância da educação, não só no contexto social atual, mas também, 2  SILVA, Frederico Barbosa da, JACCOUD, Luciana, BEGHIN, Nathalie. Políticas Sociais no Brasil: Participação Social, Conse- lhos e Parcerias. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/livros/questaosocial/Cap_8.pdf. Acesso em 06 dez. 2015. P. 375.
  • 233. 233 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. no futuro, já que os resultados originados das deliberações feitas nesse conselho são de caráter mediato, ou seja, têm um longo prazo para se efetivar e atinge a maior parte da população, tanto quem está diretamente ligado às questões educacionais, (pais, alunos e professores), quanto os que indiretamente são atingidos por meios de reflexos, pois, a educação é importante para se construir um mundo sócio-político, econômico e cultural melhor. Além das áreas de atuação os conselhos podem ser analisados a partir de sua função, destacamos as mais importantes na esfera do CME, função deliberativa, quando os conselheiros podem decidir de forma direta sobre matérias específicas e elaborar normas de estruturação das políticas sociais no respectivo âmbito de atuação, e a função consultiva, quando os membros emitem parecer, quanto às questões propostas, que vão influenciar nas decisões que serão tomadas mais a frente, é uma maneira de assessorar as deliberações. O exercício dessas funções permite que, de forma direta, a população possa interferir na construção e toma- da de decisão por parte do Estado. Faz-se necessária a existência de discussões dentro desse conselho, pois só assim podemos subentender que está havendo ponderação de direitos, não se preza o consenso rápido e imediato, e sim, a forte deliberação, pois, por ser formado pela sociedade e pelo poder público esse órgão tem por princípio de constituição a representatividade e o respeito às diferentes vontades. Entretanto, não podemos inferir que a existência do conselho efetiva e concretiza de fato a demo- cracia, é preciso analisar a eficácia de sua atuação, “quando se compreende eficácia como capacidade de deliberar, controlar e fazer cumprir suas decisões”. (CARVALHO E TEIXEIRA, 2000, P. 93). Sabe-se que a escolha dos conselheiros não é feita através do voto, dessa forma eles não se sentem obrigados a deliberar e correspondendo anseios sociais como forma de recompensa ao voto. Quanto à representatividade, é difícil assegurar que a escolha dos conselheiros seja democrática, sob a perspectiva da sociedade civil, da mesma forma que os membros não estão sujeitos a quaisquer processos de controle e responsabilização. Os representantes populares nos conselhos não são submetidos a qualquer procedimento de legitimação substantiva, já que não são eleitos pelo voto universal, e por isso não recebem uma delegação explícita, como seria desejável em qualquer regime democrático. (ALVES, 2013, p. 238.) Sendo escolhidos por sua relação com as entidades ou setores da sociedade representados, com os quais devem manter um processo de interlocução permanente, os conselheiros representantes da população devem corresponder com as necessidades apresentadas pelo setor social, já que, estes estão ligados e são beneficiados com as escolhas tomadas. Então, em contraposição ao que foi trazido pelo autor, acreditamos que a escolha dos conselheiros pode beneficiar a efetivação democrática, mas, se esses representantes deli- beram conforme sua vontade a eficácia estará será reduzida. Somado a isso, é importante analisar se há um conhecimento por parte da sociedade sobre a existência desse órgão, muitas vezes a falta de eficácia está atrelada ao pouco envolvimento da sociedade civil no conselho, isso pela falta de divulgação das reuniões e da importância funcional do mesmo. CONCLUSÃO A implementação de uma política pública por parte do Estado, faz garantir um direito de cidadania, por meio da participação da sociedade civil, que assegura a manifestação da vontade social ante as decisões da coisa pública. É perceptível que esse direito é um direito político, mas precisamente a democracia, pois: considerando que a democracia só pode acontecer em contextos igualitários, em que as condições de participação e deliberação pública são precedidas por condições materiais assecuratórias de que a esfera pública irá se constituir a partir de atores não meramente formais, os direitos fundamentais sociais se constituem em verdadeira condição material de ocorrência do político. (ALVES, 2013, p. 256). Dessa forma, podemos olhar para os conselhos municipais de educação e enxerga-los como órgãos que permitem a participação popular e concretizam os direitos dispostos na Constituição Federal, como traz
  • 234. 234 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Leonardo Avritzer (2009, p. 146) “a criação de conselhos como mecanismo institucional para dar concretude ao direito constitucional à participação, entendida, assim, como a intervenção efetiva da sociedade na formu- lação, implementação e controle da política pública”. Os conselhos podem ser considerados como uma das mais avançadas formas de exercício da demo- cracia, ele garante a participação e a interferência da população, que por um longo tempo foi agente passiva na política de decisão, e que agora é vista como ativa dentro do processo de formação e tomada de decisão de assuntos que dizem respeito à gestão da coisa pública. Entretanto não podemos nos prender tão somente a existência do conselho, é preciso verificar como está se dando sua atuação e assim, confirmar se a concretização dos direitos sociais é garantida através desse órgão, que permite um diálogo permanente entre a sociedade civil e o poder público. É de grande importân- cia a construção desses conselhos no âmbito municipal, porém, ainda mais valioso é o interesse da sociedade em procurar manter a eficácia desse órgão, seja por meio da fiscalização ou por meio da participação direta dos conselheiros da sociedade civil, que podem garantir essa eficácia deliberando conforme as necessidades da população que tem relação com a área de atuação do conselho. Portanto, os conselhos devem constituir-se “como o espaço legítimo de interlocução e de deliberação, com presença constante nas reuniões, e o devido respeito à autonomia dos membros da sociedade civil”. (AVRITZER, 2009, p. 150) No que diz respeito à eficácia dos conselhos, os grandes obstáculos apresentados são justamente a escolha dos conselheiros e a falta de envolvimento por parte da sociedade civil, é notável ainda que a forte presença autoritária do Estado muitas vezes orienta as relações estatais sociais, esse é um problema presente nas mais diversas formas de efetivação da democracia participativa. Por fim acrescentamos a necessidade de movimentos sociais para a construção de políticas públicas que realmente funcionam, pois, aquelas que veem de forma imposta pelo Estado na maioria das vezes apre- sentam caráter de anexos da atuação do poder público. A pressão social é responsável também pelas ações do Estado, e quando esse se compromete a atender a demanda social a população deve continuar agindo para que essa ação continue com efeito qualitativo. REFERÊNCIAS ALVES, Fernando de Brito. Constituição e participação popular: a construção histórico-discursiva do conte- údo jurídico-político da democracia como direito fundamental./ Curitiba: Juruá, 2013. AVRITZER, Leonardo. Experiências nacionais de participação social. Cortez Editora, 2009. BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 4ª edição. São Pau- lo, Saraiva, 2009; BIANCHINI, Fernando Novelli. Democracia Representativa sob a crítica de Schmitt e democracia participativa na apologia de Tocqueville. Campinas/SP, Millennium, 2014. BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo. 6ª edição. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. DAHL, Robert Alan. Sobre a democracia. Brasília, Universidade de Brasília, 2001. GOHN, Maria da Glória. Conselhos Gestores e Participação Sociopolítica. Cortez São Paulo, 2001. HÄBERLE, Peter. Dignita dell’uomo e diritti social nelle costituzioni degli Stati di Diritto. In: BORGHI, Marco. Costituzione e Diritti Sociali: per um approccio interdisciplinare. Fribourg (Suiça): Institut du fédéralisme, 1990.
  • 235. 235 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. SILVA, De Plácido. Vocabulário jurídico. 31ª edição. Rio de Janeiro, Forense, 2014. SILVA, Frederico Barbosa da, JACCOUD, Luciana, BEGHIN, Nathalie. Políticas Sociais no Brasil: Parti- cipação Social, Conselhos e Parcerias. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/livros/questaosocial/ Cap_8.pdf. Acesso em 06 dez. 2015. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional positivo. 33ª ed. atual. São Paulo. Malheiros, 2010. SOUZA, Celina. Políticas Públicas: uma revisão de literatura. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 16, jul./ dez. 2006. TEIXEIRA, Elenaldo Celso. Efetividade e eficácia dos Conselhos. In: CARVALHO, Maria do Carmo A. A., TEIXEIRA, Ana Cláudia C. (orgs.) Conselhos Gestores de Políticas Públicas. São Paulo, Pólis, 2000. VIEIRA, Evaldo. Políticas sociais e direitos sociais no Brasil. Comunicação Educação, São Paulo, 1997.
  • 236. 236 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. REAÇÃO LEGISLATIVA FRENTE À JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO BRASIL PÓS 88 Eriverton Felipe de Souza Bacharelando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Monitor da Disciplina de Direito Constitucional III na mesma Instituição de Ensino. Estagiário da Procuradoria Regional da República da 5ª região. SUMÁRIO: Introdução; 1. A jurisdição constitucional no Brasil pós 88: breves apontamentos; 2. O Poder Legislativo e a Jurisdição Constitucional: eficácia subjetiva das decisões no controle de consti- tucionalidade; 3. A reação/superação legislativa; 4. O efeito backlash como impulsionador da reação/ superação legislativa; 5. Considerações finais; Referências INTRODUÇÃO É de larga sapiência que o Poder Judiciário vem exercendo um protagonismo em relação aos demais Poderes constituídos nas democracias contemporâneas, pelo menos no lado ocidental do globo terrestre, isso vem acontecendo a partir segunda metade do Século XX. Sobretudo no que diz respeito ao exercício da jurisdição constitucional por meio das Cortes Constitucionais ou dos Tribunais Constitucionais. E no Brasil não foi diferente, notadamente após a promulgação da atual Constituição em 1988. Sendo assim, o presente trabalho discute a reação legislativa frente às decisões do controle de cons- titucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal. Buscou-se debater quais os mecanismos utiliza- dos para que haja uma reversão dessas decisões no âmbito do Poder Legislativo. O objetivo deste trabalho é discutir os meios que o Poder Legislativo se utiliza para reverter tais decisões. E quais os limites a serem obedecidos por essas reações. A investigação bibliográfica compõe a principal metodologia utilizada neste trabalho. O tema foi pes- quisado em teses, dissertações e artigos disponíveis na internet em revistas especializadas. Bem como se utilizou de livros que tratam direta ou indiretamente sobre a temática. Além de se proceder ao estudo de algumas decisões do STF e os votos de seus ministros. O trabalho começa tratando da jurisdição constitucional e suas características no Brasil pós Consti- tuição de 1988. Segue tratando dos efeitos das decisões no controle de constitucionalidade e sua relação com o Poder Legislativo. Trata também do chamado “ativismo congressual” que nada mais é que a superação le- gislativa da jurisprudência do STF. E por fim, discute-se o efeito backlash como um impulsionador da reação legislativa. 1. A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NO BRASIL PÓS 88: BREVES APONTAMENTOS; Inicialmente convém dizer, em linhas gerais, o que viria a ser a jurisdição constitucional. Entende-se como jurisdição constitucional a outorga de poderes jurisdicionais a determinado órgão, juiz ou tribunal, no afã de conferir a conformidade de um ato normativo com o texto constitucional, que é o centro de onde emana todo o ordenamento jurídico. O controle de constitucionalidade é o meio pelo qual se busca aferir essa conformidade.
  • 237. 237 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. No Brasil vigora um modelo hibrido de controle de constitucionalidade e essa peculiaridade faz com que o modelo vigente aqui seja único. Como dito, o controle de constitucionalidade das leis à brasileira com- bina aspectos de dois modelos, o desenvolvido nos Estados Unidos da América, chamado de sistema difuso ou concreto, onde qualquer juiz ou tribunal pode declarar a inconstitucionalidade de uma lei. Sendo que nesse caso os efeitos são interpartes. E também combina aspectos do modelo desenvolvido na Europa, idealizado por Hans Kelsen, o sistema concentrado ou abstrato, no qual somente um Tribunal é responsável por decla- rar a inconstitucionalidade de uma lei. Aqui os efeitos são erga omnes (contra todos) e vinculante. Esse último recebe especial atenção, sobretudo após o advento da Constituição de 1988, porque foi através dela que vieram as inovações que contribuíram para uma expansão da atividade do Judiciário no país, notadamente do Supremo Tribunal Federal (STF). Desde já, alerta-se que esse fenômeno ocorre no mundo todo. Tanto a quantidade de ações do controle concentrado, bem como a variedade de assuntos e o extenso rol de legitimados para propô-las, são fatores que influenciam no ganho de maior atividade do Judiciário em detrimento dos demais poderes. Segundo Luís Roberto Barroso (2014, p.3-4) a jurisdição constitucional compreende duas atuações que são feitas de modo muito particular, A primeira, de aplicação direta da Constituição às situações nela contempla- das. Por exemplo, o reconhecimento de que determinada competência é do Estado, não da União; ou do direito do contribuinte a uma imunidade tribu- tária; ou do direito à liberdade de expressão, sem censura ou licença prévia. A segunda atuação envolve a aplicação indireta da Constituição, que se dá quando o intérprete a utiliza como parâmetro para aferir a validade de uma norma infraconstitucional (controle de constitucionalidade) ou para atribuir a ela o melhor sentido, em meio a diferentes possibilidades (interpretação conforme a Constituição). Em suma: a jurisdição constitucional compreende o poder exercido por juízes e tribunais na aplicação direta da Constituição, no desempenho do controle de constitucionalidade das leis e dos atos do Po- der Público em geral e na interpretação do ordenamento infraconstitucional conforme a Constituição. Junte-se a isso outro fenômeno que acontece por aqui, que é a judicialização da política. Este fenô- meno faz com que o Tribunal tenha sua atuação expandida para decidir questões que anteriormente eram resolvidas por outros departamentos do poder político, interna corporis. Nas palavras de BARROSO (2014, P. 4) “Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo.” Ainda segundo BARROSO (2014, p.4) as naturezas das causas que explicam o fenômeno da expan- são do Poder Judiciário e da Judicialização são diversas, nesse sentido: A primeira delas é o reconhecimento da importância de um Judiciário forte e independente, como elemento essencial para as democracias modernas. Como consequência, operou-se uma vertiginosa ascensão institucional de juízes e tribunais, assim na Europa como em países da América Latina, parti- cularmente no Brasil. A segunda causa envolve certa desilusão com a política majoritária, em razão da crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral. Há uma terceira: atores políticos, muitas vezes, prefe- rem que o Judiciário seja a instância decisória de certas questões polêmicas, em relação às quais exista desacordo moral razoável na sociedade. No Brasil o fenômeno ganhou proporções maiores devido às características da própria constituição, a qual é abrangente e analítica, o que gerou a constitucionalização do Direito1 . A consequência disso aponta 1  […] constitucionalizar é, em última análise, retirar um tema do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões judicia- lizáveis – e do sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós, em que é amplo o acesso ao Supremo Tribunal Federal
  • 238. 238 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. BARROSO (2014, p.6), é que “quase todas as questões de relevância política, social e moral foram discutidas ou já estão postas em sede judicial, especialmente perante o Supremo Tribunal Federal”. Insta diferenciar, neste momento, o fenômeno da judicialização do ativismo judicial, embora não se- jam objeto direto deste estudo, mas guardam com ele estreitas relações. A primeira é decorrente do modelo de desenho institucional adotado no Brasil, já este último, em linhas bem gerais, haja vista a dificuldade de sua conceituação, deve ser entendido como uma atitude, uma escolha deliberada do Tribunal de interpretar a Constituição, expandindo seus poderes de atuação. Existe, nesse sentido, uma proatividade. E como bem sabido, o ativismo pode ser tanto liberal quanto conservador. Como decorrência da supremacia constitucional e da supremacia judicial, idealizou-se um dogma de que o STF tem a “última palavra” em termos de interpretação constitucional, ou seja, criou-se uma preva- lência da concepção juriscêntrica na interpretação da Constituição. Neste trabalho, parte-se da premissa de que não há última palavra em muitos casos. Entende-se que há de fato um pronunciamento provisório do STF em matéria constitucional que, a depender da matéria veiculada ou da repercussão obtida, pode sofrer uma reversão. Como se pretende demostrar. Obviamente, não se quer esvaziar o importante papel que tem o Tribunal na construção do significado da Constituição. Mas, como adverte SARMENTO (2013, p. 136-137), ”Uma decisão do STF é, certamente, um elemento de grande relevância no diálogo sobre o sentido de uma norma constitucional, mas não tem o condão de encerrar o debate sobre uma controvérsia que seja verdadei- ramente importante para a sociedade”. SARMENTO (2013, p.136) ainda afirma que a premissa de o STF ter a “última palavra” lhe parece equivocada tanto sob o ângulo descritivo quanto sob o ângulo prescritivo. Pois para ele, não é verdade que o STF dê sempre a “última palavra” sobre a interpretação constitucional, pelo simples fato, de que em muitos casos não há última palavra. Ainda sobre o tema, assevera o referido autor, Sob o ângulo prescritivo, não é salutar atribuir a um órgão qualquer a prer- rogativa de dar a última palavra sobre o sentido da Constituição. Definitiva- mente, a Constituição não é o que o Supremo diz que ela é. Em matéria de interpretação constitucional, a Corte, composta por intérpretes humanos e falíveis, pode errar, como também podem fazê-lo os poderes Legislativo e Executivo. É preferível adotar-se um modelo que não atribua a nenhuma instituição – nem do Judiciário, nem do Legislativo - o “direito de errar por último”, abrindo-se a permanente possibilidade de correções recíprocas no campo da hermenêutica constitucional, com base na ideia de diálogo, em lugar da visão mais tradicional, que concede a última palavra nessa área ao STF. (SARMENTO, 2013, p. 137) Nesse sentido, não há se falar em última palavra, o que pode haver, em verdade, é uma estabilização do sentido da constituição. Porque, até aquele momento, em virtude da controvérsia que a envolvia, já que os desacordos não haviam cessado. Além de que, quando se fala em “última palavra” somos remetidos a uma ideia de sobreposição, de imposição de vontade de um Poder sobre o outro. Algo que em um ambiente demo- crático não parece acertado. Como bem salienta Juliano Zaidan BENVINDO (2014, p.81) A tese a ser defendida é que a própria construção argumentativa de algum Poder ‘de- tentor da última palavra’ é, por si só, uma afirmação que aparece como discurso por mais poder. Até porque não existe, em uma democracia constitucional, que prima pela cidadania, um órgão que possa arvorar-se o detentor da última palavra. 2. O PODER LEGISLATIVO E A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL: EFICÁCIA SUBJETIVA DAS DECISÕES NO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. por via de ações diretas. ( BARROSO,2014, p.6)
  • 239. 239 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A eficácia subjetiva das decisões do controle concentrado de constitucionalidade é erga omnes (con- tra todos) e vinculante, segundo previsão do art. 102, § 2º da CFRB/88. Contudo, tais efeitos dizem respeito relativamente, além dos particulares, aos demais órgãos do Poder judiciário e a Administração Pública, direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. Dessa forma, caso haja algum descumprimento caberá reclamação perante o STF. Deve-se lembrar também que essas decisões não vinculam o próprio Tribunal que, mais tarde, pode rever o seu posicionamento em virtude de mudanças de ordem econômica , política ou até mesmo social. Inclusive, uma mudança na composição do próprio Tribunal. Conforme se nota, o Poder Legislativo, em sua função típica de legislar, não está vinculado às decisões do STF em sede de controle concentrado. Nessa toada, o Legislativo poderia editar nova lei com o conteúdo idêntico ao que fora declarado inconstitucional pelo STF ou, no exercício do poder constituinte reformador, editar uma emenda à Constituição visando a reversão da jurisprudência da Corte. Isso evita que haja um con- gelamento da Constituição. E atente-se ao fato de que, nesse caso, não é cabível uma Reclamação. Trata-se exatamente do espaço de livre conformação do legislador, o qual não sofre influencia dos efeitos do controle de constitucionalidade. Essa reação legislativa não necessariamente ocasionará na inconstitucionalidade, de pronto, da emen- da ou lei editada. Isso porque, como fora dito a pouco, o legislador tem certa liberdade. E além de que ,existe um potencial epistêmico na reação legislativa que contribui para um diálogo entre os Poderes. É claro que o Legislativo pode não vir a contribuir com um melhor entendimento do texto constitucional. Mas também é verdade que a interpretação dada por ele poderá trazer novas luzes a determinada temática de elevada controvérsia constitucional. A esse respeito, transcreve-se o entendimento de Mariana WILLEMAN (2013, p.II-23), que pontua: De fato, reconhecer que juízes e legisladores ostentam condições de partilhar a interpretação constitucional de maneira dialógica, mediante o estabeleci- mento de uma relação consideração recíproca para o exercício de tal respon- sabilidade, representa grande avanço em termos interpretativos e de busca por efetividade da Constituição. E assim o é não apenas porque tais instân- cias encontram-se situadas institucionalmente de maneira diversa, mas tam- bém porque cada uma delas pode trazer perspectivas distintas e valiosas para os conflitos constitucionais exatamente em função dessas características e responsabilidades institucionais distintas. Dessa forma, frente à reação/superação legislativa da jurisprudência, existem, dois caminhos a se- rem tomados pelo STF. Ou o Tribunal revê a sua jurisprudência, acatando os novos argumentos apresentados pelo Legislativo ou o Tribunal reafirma sua jurisprudência, fazendo prevalecer seu entendimento. Não se busca defender a ideia de que o Legislativo tem o poder irrestrito e pleno, ao discordar de uma decisão do STF. Pelo contrário, se quer defender o entendimento de que existe a possibilidade do Tribunal errar, e em isso ocorrendo, o Legislativo também é um importante intérprete da Constituição. O que se quer dizer é que toda e qualquer tentativa de superar a jurisprudência do Tribunal é legítima. Há nesse caso, a devolução ao Legislativo da oportunidade de conformação legislativa. E em assim sendo, assevera ROTHEMBURG (2007), Essa atitude pode não revelar apenas um episódio de teimosia, mas uma reapreciação ponderada da situação, com a consideração dos argumentos tecidos em sede de jurisdição constitucional. Se, após o momento 1, em que o Legislativo editara a norma com a qual expressara sua interpretação da Constituição (no espaço de conformação legislativa dado por esta), o Judici- ário, no momento 2, declarara a inconstitucionalidade dessa norma, fazendo a sua interpretação da Constituição, o momento 3 pode aparecer como a síntese de um processo democrático de instrução e reflexão, de avaliação das expectativas da sociedade, em que o Legislativo conclui pelo acerto de sua opção original (momento 1), produz outra norma semelhante ou idêntica àquela, e essa opção é enfim aceita pelo Judiciário.
  • 240. 240 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A prática da superação das decisões constitucionais do STF mostra-se como um instrumento viável de comunicação das preferências do povo e de seus representantes com o STF. Dessa forma, tem-se uma espécie de accountability e uma abertura do processo de interpretação e aplicação da Constituição (BRAN- DÃO, 2012, p.304-305). 3. A REAÇÃO/SUPERAÇÃO LEGISLATIVA; Tendo em vista que as decisões do controle de constitucionalidade não vinculam o Poder Legislativo, como já mencionado, então entende-se como natural a ocorrência de uma eventual reação com o objetivo de superar tais decisões. Assim, tem-se a chamada Reação ou superação legislativa da jurisprudência. Reação legislativa ou superação legislativa da jurisprudência é o ato praticado pelo Poder Legislativo em contrariedade às decisões do Supremo Tribunal Federal no controle de constitucionalidade. É o que tem sido considerado como sendo uma espécie de “ativismo congressual”. Sob esse ponto de vista o Congresso Nacional visa reverter as decisões de inconstitucionalidade do STF, onde fiquem evidentes situações de au- toritarismo judicial ou comportamento antidialógico, incompatível com a separação de poderes. Pode ocorrer por meio de Emenda à Constituição ou por meio de edição de lei ordinária superadora. Sobre a temática assim se pronunciou o Ministro Luiz Fux (2015, p.4) , relator da ADI 51052 : Por uma vertente descritiva, há diversos precedentes de reversão legislativa a decisões do Supremo Tribunal Federal, seja por emenda constitucional, seja por lei ordinária, que per se desautorizariam a concepção de última palavra definitiva. Essa práxis dialógica, além de não ser incomum na realidade interinstitucional brasileira, afigura-se perfeitamente legítima – e, por vezes, desejável –, estimulando prodigioso ativismo congressual, desde que, é claro, observados os balizamentos constitucionais. De início, pode-se entender que uma situação de autoritarismo judicial ou comportamento antidia- lógico esteja relacionada com uma decisão classificada de ativista, mas nem sempre uma decisão tida por ativista, necessariamente, significa um autoritarismo judicial ou um comportamento antidialógico, já que muitas vezes esses tipos de decisão visam salvaguardar direitos fundamentais ou proteger as regras do jogo democrático. Ou seja, são decisões necessárias às concretizações de determinados direitos. Na decisão supramencionada o Tribunal buscou delimitar o espaço de conformação do legislador para proceder às correções jurisprudenciais. Para tanto, fez uso de dois argumentos, o primeiro foi de que, do ponto de vista do Estado de direito, não se quer deixar vulnerar o conteúdo da Constituição, e o segundo, do ponto de vista democrático, pretende-se não fossilizar o sentido das disposições constitucionais. Percebe-se que foi o próprio Tribunal o responsável por tornar mais clara as limitações à reação legislativa, baseado em sua própria jurisprudência. A Constituição de 1988 confiou ao STF a faculdade de invalidar qualquer lei ou ato normativo prove- niente das instâncias políticas majoritárias. Nesse caso, o Tribunal exerce uma de suas funções que é a con- tra majoritária. O que sob a ótica formal tornaria o Tribunal o detentor da última palavra. Tudo isso porque, de um ponto de vista democrático, os seus pronunciamentos não se sujeitam a qualquer controle posterior. Ocorre que tal entendimento se mostra equivocado, como bem salienta o Ministro Luiz Fux (2015, p.4) em seu voto, e assevera: Sucede que, a despeito desse arranjo, não se pode advogar que o arquétipo constitucional pátrio erigiu um modelo de supremacia judicial em sentido 2  As disposições impugnadas na referida ADI decorreram de superação legislativa da interpretação conferida pelo Supremo Tri- bunal Federal ao art. 47, § 2º, II, da Lei nº 9.504/97, nas ADIs 4.430 e 4.795, ambas de relatoria do eminente Ministro Dias Toffoli. Naquela oportunidade, o Plenário deu interpretação conforme ao indigitado preceito da Lei das Eleições, no afã de salvaguardar aos partidos novos, criados após a realização de eleições para a Câmara dos Deputados, o direito de acesso proporcional aos dois terços do tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão. Meses depois, o Congresso Nacional editou a Lei nº 12.875/2013, a qual veiculava as disposições combatidas na ADI 5105/DF.
  • 241. 241 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. forte ( ou material), de vez que, além de equivocada, sob a ótica descritiva, não se afigura desejável sob o ângulo prescritivo. Os mecanismos por meio dos quais o Congresso Nacional pratica esse “ativismo congressual” são as Emendas Constitucionais e as Leis Ordinárias, cada qual com suas limitações. No caso das “emendas su- peradoras”, essas encontram obstáculos, e poderão ser declaradas inconstitucionais, quando não respeitar as cláusulas pétreas ou o procedimento necessário para a sua aprovação, conforme previsão do art. 60 da CFRB/88. Ou seja, quando houver desrespeito aos limites materiais (cláusulas pétreas) , formais, objetivos e subjetivos, e circunstanciais, aos quais o poder reformador está submetido. Aliás, a exemplo do que já acon- tece normalmente com as emendas. Sendo que no caso ora apresentado, ela visa superar jurisprudência do STF sobre determinada matéria. Poder-se-ia considerar esse como sendo um caminho mais curto para mudar o entendimento firma- do no âmbito do STF que tenha causado alguns dissabores. Ocorre que uma “emenda superadora” não pode simplesmente visar tal objetivo sem que para isso apresente significativas justificativas e excelentes argu- mentos passíveis de contribuir, verdadeiramente, para a solução mais adequada de determinada controvérsia constitucional. Sob pena de ser taxada de puro revanchismo ou de instrumento na disputa por mais poder político. No que diz respeito aos limites materiais, não fica claro no julgamento mencionado, mas entende-se que tal limitação compreende tanto as cláusulas pétreas explícitas quanto as implícitas. Sobre as “emendas superadora”, WILLEMAN (2014, p. II-16), assim se posiciona: À luz do modelo constitucional brasileiro de 1988, fortemente baseado na supremacia judicial da interpretação constitucional, a resposta do legislativo a uma decisão do STF em matéria constitucional demanda, via de regra, a atuação do poder constituinte derivado, por meio da aprovação de emenda à Constituição. Assim, o Congresso Nacional manifesta sua divergência para com a interpretação conferida pelo STF a uma norma mediante a reforma do próprio parâmetro de controle, com a ressalva de que tal expediente ape- nas se revela possível nos casos em que não haja qualquer cláusula pétrea envolvida. Em seu voto na ADI 5105/DF o Ministro busca inventariar todas as hipóteses de reação legislativa pela via das emendas superadoras e para isso enumera alguns casos paradigmáticos como as EC’s 41/20033 , 52/20064 , 57/20085 e a 58/20096 . Todas sofreram uma apreciação posterior perante o tribunal, embora não tivessem sido capazes de mudar a jurisprudência firmada e terem sido declaradas inconstitucionais por violarem os limites há pouco mencionados. Mas serviram como tentativas de promoção de superação da jurisprudência do Tribunal que atestam a ocorrência, legítima, da prática da reação legislativa. Há, porém, 3  [...]a EC nº 41/2003 dispôs expressamente que as vantagens pessoais estariam albergadas no cômputo do teto remuneratório, bem como consagrou a autoaplicabilidade do novo teto, em tentativa de superar o entendimento fixado por esta Suprema Corte, que apontava exatamente em sentido oposto. 4  A mencionada EC estabeleceu a plena e imediata autonomia dos partidos políticos de formarem coligações sem vínculos entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal e o Tribunal, na ADI nº 3.685, entendeu pela verticalização das coligações partidárias para as eleições gerais de 2006, prestigiando, em consequência, a interpretação fixada pelo Tribunal Superior Eleitoral ao art. 6º da Lei das Eleições, materializada na Resolução nº 21.002/2002 (STF, ADI nº 3.685, rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 10/08/2006). 5  Referida emenda exsurgiu no contexto em que reconhecida, pelo STF1, a inertia deliberadi do Congresso Nacional para pro- mulgar a Lei Complementar, a que se refere o art. 18, § 4º, da CRFB (redação dada pela EC nº 15/96), que deveria disciplinar os critérios de criação dos municípios. 6  A Emenda Constitucional nº 58/2009 também representa hipótese de correção legislativa, na medida em que objetivou su- perar a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no RE nº 197.917/SP, rel. Min. Maurício Corrêa (Caso Mira Estrela) e, posteriormente, na ADI nº 3.345, rel. Min. Celso de Mello.
  • 242. 242 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. outros casos em que houve a buscada reversão jurisprudencial, são exemplos as emendas 19/19987 , 29/20008 e 39/20029 . E como não houve ofensas aos limites já mencionados, não restou alternativa ao Tribunal que não a de aceitar a manifestação legítima, do Poder Constituinte reformador como tendo o argumento mais adequado. Em se tratando das leis ordinárias superadoras, essas deverão comprovar que as premissas fáticas e/ ou jurídicas sobre as quais se fundaram a decisão do STF no passado, deixaram de existir. Nesse último caso, em que há colisão com a jurisprudência do Supremo, a lei nasce com uma presunção relativa de inconstitu- cionalidade que deverá ser aferida por meio próprio, embora mais rigoroso, e não tida por inconstitucional de pronto, tendo em vista o potencial construtivo da espécie. Quando se tratar de lei ordinária superadora como assevera FUX (2015, p.17) “caberá ao legislador o ônus de demonstrar, argumentativamente, que a correção do precedente se afigura legítima”. Deve-se atentar ao fato de que se assim proceder, o Legislativo poderá contribuir para que haja uma mudança de entendimento jurisprudencial ou pode ser que a lei superadora sirva apenas para que o Tribunal possa confirmar que o seu argumento é o mais acertado. O que não se pode negar é esse ambiente de diálogo entre os Poderes. Esse também é o entendimento adotado por Rodrigo BRANDÃO (2012, p.302), in verbis: Desta forma, tanto na hipótese de lei idêntica à declarada inconstitucional pelo STF quanto na de lei que veicule interpretação constitucional diversa da atribuída pelo STF, deveria o Tribunal reexaminar o conteúdo das novas leis, podendo manter o seu entendimento anterior (declarando, portanto, a inconstitucionalidade das leis) ou aderir às novas razões trazidas pelo legis- lador( pronunciando, assim, a sua constitucionalidade). Contudo, tais leis nasceriam presunção relativa de inconstitucionalidade, diante da sua incom- patibilidade com a atual interpretação constitucional do STF. O relator também menciona um caso paradigmático em que a reação se deu por meio de lei ordinária, como é o caso da Lei nº 10.628/200210 que tivera sua constitucionalidade questionada na ADI 2797, DJE 19/12/2006, cuja relatoria coube ao Ministro Sepúlveda Pertence. O caso merece tal destaque porque na ocasião de seu julgamento foram apresentados vários argumentos e fundamentos, os quais tornam evidente que ao legislador é franqueada a capacidade de interpretação da Constituição, a despeito de decisões de in- constitucionalidade do STF. Da análise dos citados diplomas, o Ministro relator chega a seguinte conclusão: 7 “Por meio da Emenda Constitucional n. 19/98, conhecida como ‘reforma administrativa’, o legislador constituinte derivado claramente pretendeu revisitar a interpretação conferida pelo STF à abrangência do denominado teto remuneratório do funcio- nalismo público. Isso porque, de acordo com a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal no julgamento da ADI n. 14, não deveriam ser computadas, para fim de aferição do teto previsto no artigo 37, inciso XI, da CRFB, as vantagens de caráter pessoal. Em resposta, a Emenda Constitucional n. 19/98, dentre outras providências, alterou a norma para deixar expresso que as referidas vantagens de índole pessoal incluem-se no limite máximo remuneratório.” WILLEMAN (2014 p. II-17) 8  “Da mesma forma, a Emenda n. 29/2000 traduziu inequívoca reação legislativa à jurisprudência firme do STF no sentido da inconstitucionalidade de alíquotas progressivas de IPTU que levassem em consideração a capacidade econômica do contribuinte. De acordo com o pacífico entendimento da Corte, sendo o IPTU um imposto de natureza real, a progressividade de suas alíquo- tas não poderia decorrer de critérios atinentes à capacidade econômica do contribuinte, admitindo-se a progressividade apenas para o fim extrafiscal de assegurar o cumprimento da função social da propriedade (à luz do artigo 182, §4º, inciso II, da CRFB).” WILLEMAN (2014, p. II-17) 9 “ Por fim, também a Emenda Constitucional n. 39/2002 pretendeu reverter um posicionamento do STF, novamente em maté- ria tributária. Tratava-se, dessa vez, de descontentamento com os precedentes – sumulados no Enunciado n. 67049 – do Tribunal que rejeitavam a possibilidade de o serviço de iluminação pública ser custeado por meio de taxa. Como forma de contornar o en- tendimento consolidado, aprovou-se a referida emenda que expressamente passou a contemplar a possibilidade de instituição de contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública – em franca reação à jurisprudência constitucional que considerava que o serviço deveria ser suportado por meio da receita de impostos.” WILLEMAN (2014, p. II-18) 10  Mencionado diploma alterou o art. 84, §§ 1 e 2º, do Código de Processo Penal, a fim de restabelecer o foro por prerrogativa de função a ex-detentores de cargos ou mandatos eletivos. À época, a orientação consolidada na Corte era no sentido de que o término do mandato implicaria, consequentemente, a perda do foro aos ex-ocupantes de cargos político-eletivos, orientação firmada pelo STF no julgamento da Questão de Ordem no Inquérito nº 687, rel. Sydney Sanchez, DJ de 25/08/1997, e que culminou, como todos sabem, com o cancelamento da Súmula nº 394. Na ocasião, o referido diploma foi declarado inconstitucional por apresentar vício formal.
  • 243. 243 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. [...] (i) o Tribunal não subtrai ex ante a faculdade de correção legislativa pelo constituinte reformador ou legislador ordinário, (ii) no caso de reversão jurisprudencial via emenda constitucional, a invalidação somente ocorrerá, nas hipóteses estritas, de ultraje aos limites preconizados pelo art. 60, e seus §§, da Constituição, e (iii) no caso de reversão jurisprudencial por lei ordi- nária, excetuadas as situações de ofensa chapada ao texto magno, a Corte tem adotado um comportamento de autorrestrição e de maior deferência às opçõespolíticas do legislador. Destarte, inexiste, descritivamente, qualquer- supremacia judicial nesta acepção mais forte. ( ADI 5105-DF,2015, p.10) Há de se pontuar a diferença existente entre uma emenda constitucional superadora e uma lei or- dinária superadora, além de se tratarem de espécies normativas distintas. Na primeira há uma alteração formal, tendo em vista que esse é o mecanismo habitual por meio do qual o Poder Constituinte reformador se manifesta e mantém a Constituição atualizada, enquanto na segunda há uma alteração interpretattiva do sentido que fora atribuído a determinada norma pelo Tribunal, ou seja, uma mutação constitucional por iniciativa do legislador11 . A esse propósito, assim se pronunciou BRANDÃO (2012, p.307), in verbis: Note-se, porém, que há diferenças significativas em relação à reversão da jurisprudência do STF por emenda constitucional e por lei ordinária. Na primeira hipótese, há alteração formal da Constituição ,de maneira que ao alterar-se o dispositivo constitucional interpretado pelo STF, modifica-se a interpretação final. O ministro FUX (2015, p.17), baseado na doutrina de Conrado Hübner Mendes, concebe o STF como um catalisador deliberativo quando se funda em premissa dialógica e plural de interpretação da Consti- tuição. Dessa forma, promove uma interação e o diálogo institucional, maximizando a qualidade democrática na obtenção dos melhores resultados no que diz respeito à apreensão do significado da Constituição. E como bem saliente WILLEMAN (2013, p.II-22), Não parece legítimo, portanto, simplesmente coarctar a atuação legislativa e presumir, antecipadamente, que toda e qualquer lei “corretiva” será inevita- velmente inconstitucional por contrariar a “última palavra” ditada pela Cor- te Constitucional. Muito pelo contrário, se o legislador ordinário manifesta divergência com a interpretação conferida pelo STF em determinado tema constitucional, essa circunstância não pode ser, de plano, ignorada, mere- cendo ser encarada como uma forma de se fazer instaurar uma dialética que atue em prol do desenvolvimento do direito constitucional. Como já fora dito, existe um potencial construtivo na reação/superação legislativa. Isso significa que o fato de haver a colaboração de dois atores, Legislativo e Judiciário, na busca da democratização da construção do sentido da constituição, pode-se chegar a uma solução mais adequada. A esse propósito, registra Mariana WILLEMAN (2013, p. II -22), A compreensão ora preconizada acerca do fenômeno da reação ou da respos- ta legislativa à jurisprudência constitucional busca enfatizar o potencial cons- trutivo que divergências interpretativas naturalmente apresentam e, nesse sentido, procura maximizar a dinâmica dialógica da jurisdição constitucional criando espaços que propiciem a formulação de melhores respostas para as questões constitucionais, combinando as perspectivas de variados atores de forma a se alcançar equilíbrio em relação ao significado constitucional. 11  “Não se pode desconsiderar a hipótese de o Supremo restar convencido de ter cometido um erro no julgamento anterior, diante da insistência e, especialmente, das novas razões expostas pelo Legislativo. Tratar-se-ia, no caso, de mutação constitucional por iniciativa do legislador, já que o sentido da norma constitucional teria mudado, sem alteração do seu texto, por provocação do legislador.” (BRANDÃO, 2012, p.306)
  • 244. 244 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 4. O EFEITO BACKLASH COMO IMPULSIONADOR DA REAÇÃO/ SUPERAÇÃO LEGISLATIVA; Este ponto do trabalho pretende discutir a partir de qual momento e por quais razões estaria o Con- gresso Nacional autorizado a buscar a superação de uma decisão proferida pelo STF no controle de cons- titucionalidade. As decisões do STF, como já fora dito, produzem efeitos para além do mundo jurídico, elas também têm desdobramentos políticos e sociais. Da mesma forma, como já fora mencionado, além de ser o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasi- leiro, o STF é um Tribunal Constitucional e como tal, tem atuação política. Sendo assim, o que autorizaria o Congresso Nacional a reagir de modo a reverter o que fora decido no âmbito daquele Tribunal? Do ponto de vista democrático, essa reação seria legítima? Vimos que sim, essa reação é legítima. Mas quais as motivações que levariam a uma eventual reação legislativa? Algo que pode ser considerado um motivador para que se opere a referida reação legislativa é o que o constitucionalismo democrático norte-americano12 chamou de Efeito Blacklash13 14 . O Backlash é uma forma de resistência contra decisões judiciais que divergem profundamente dos anseios do povo e expressa o desejo desse povo, que é livre, de influenciar o conteúdo de sua constituição (POST, SIEGAL, 2007 p; 376). Como salientam Robert Post e Reva Siegal (2007, p. 374), “If courts interpret the Constitution in terms that diverge from the deeply held convictions of the American people, Americans will find ways to communicate their objections and resist judicial judgments.”15 Nas palavras de Mariana Montebello WILLEMAN ( 2013, p.5), o efeito Backlash deve ser “[…] as- sim considerado, no contexto do direito constitucional, o movimento de intensa reprovação ou rejeição de uma decisão judicial, acompanhado da adoção de medidas de resistência tendentes a minimizar ou a retirar sua carga de efetividade.”. Deve-se salientar que a resistência por traz do efeito backlash não alcança toda e qualquer decisão judicial, é preciso esclarecer que são as decisões proveniente das Cortes ou Tribunais Cons- titucionais e que tenham alta carga de controvérsia constitucional. O estudo do efeito backlash não é uma total novidade no cenário internacional, pois o fenômeno da reação social ou institucional a uma decisão originária do Tribunal Constitucional tem merecido especial atenção na elaboração doutrinária americana dedicada ao estudo desse fenômeno (VALLE, 2015). O Backlash desempenha uma importante função, pois desconstrói a presunção usualmente aceita de que as decisões judiciais em matéria constitucional devem ser objeto de deferência sem protesto do Poder Legislativo (WILLEMAN, 2013, p.6). Nesse sentido, reconhece-se que o povo pode influenciar no conteúdo da Constituição, como dito, através seja da sociedade civil organizada, da opinião pública, de agentes go- vernamentais ou de seus representantes no Poder Legislativo. Aliás, esses últimos, por excelência legítimos representante do povo, com grandes chances de colher bons resultados na construção do significado da 12  “A premissa sobre a qual se baseia o constitucionalismo democrático considera que a autoridade da Constituição depende de sua legitimidade democrática, ou seja, de sua capacidade para fazer com que seus destinatários a reconheçam como a sua consti- tuição. Nessa linha de raciocínio, eventuais resistências a interpretações judiciais podem atuar em fortalecimento da legitimidade democrática da Constituição e, portanto, a partir de tal perspectiva, o fenômeno do backlash ostenta um potencial construtivo que não deve ser ignorado.”( WILLEMAN, 2013, p.7) 13  “É de Stern (1965, p. 156-157), ainda na década de 60, o registro da rotinização do emprego da palavra backlash na arena política norte-americana a partir de reações às decisões da Suprema Corte envolvendo a proteção a direitos civis havidas na década de 60. Post e Siegel (2007, p. 1-66) por sua vez apontam que a expressão passou a designar contra forças libertas por mudanças tidas por verdadeira ameaça ao status quo numa reprodução bastante fiel ao conceito metajurídico acima exposto.” (VALLE, 2013) 14  “No plano coloquial, a palavra backlash tem como significado primário um súbito e intenso movimento de reação, em resposta a uma mudança igualmente brusca na trajetória do movimento. O conceito inicial tem origem na física, aludindo à dinâmica, e se identifica com a enunciação da terceira Lei de Newton - a toda ação corresponde uma reação igual e em sentido contrário. Esse mesmo princípio se viu transposto para a realidade social, igualmente associado a uma forte e violenta reação a uma mudança também intensa e expressiva no ambiente, nas regras de convívio, etc. A transposição desse significado verdadeiramente natura- lístico da palavra para o campo do direito foi um desdobramento natural de sua incorporação ao universo de relações humanas: mudanças bruscas num padrão de comportamento têm a aptidão de determinar reação de mesma intensidade, no mais das vezes em sentido contrário.” (VALLE, 2013) 15  Tradução Livre “Se a corte interpreta a Constituição de modo que divirja profundamente das convicções mantidas pelo povo americano, eles podem encontrar maneiras de expressar suas objeções e resistir às decisões judiciais.”
  • 245. 245 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Constituição, haja vista os mecanismo que tem a sua disposição (emendas constitucionais e leis ordinárias superadora) e a possibilidade de trazer novos argumentos à discussão constitucional. De acordo com George Marmelstein (2015), o efeito backlash é uma espécie de efeito colateral das decisões judiciais constitucionais polêmicas, decorrente de uma reação do poder politico contra a pretensão do poder judiciário de controla-lo. Assim resume o autor o processo do efeito backlash:  (1) Em uma matéria que divide a opinião pública, o Judiciário profere uma decisão liberal, assumindo uma posição de vanguarda na defesa dos direitos fundamentais. (2) Como a consciência social ainda não está bem consolida- da, a decisão judicial é bombardeada com discursos conservadores inflama- dos, recheados de falácias com forte apelo emocional. (3) A crítica massiva e politicamente orquestrada à decisão judicial acarreta uma mudança na opi- nião pública, capaz de influenciar as escolhas eleitorais de grande parcela da população. (4) Com isso, os candidatos que aderem ao discurso conservador costumam conquistar maior espaço político, sendo, muitas vezes, campeões de votos. (5) Ao vencer as eleições e assumir o controle do poder político, o grupo conservador consegue aprovar leis e outras medidas que correspon- dam à sua visão de mundo. (6) Como o poder político também influencia a composição do Judiciário, já que os membros dos órgãos de cúpula são indicados politicamente, abre-se um espaço para mudança de entendimento dentro do próprio poder judicial. (7) Ao fim e ao cabo, pode haver um retro- cesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que a que havia antes da decisão judicial, prejudicando os grupos que, supostamente, seriam beneficiados com aquela decisão. O autor associa a ocorrência do efeito backlash ao ativismo judicial, para ele o referido efeito ocorre a medida em que o Tribunal decide de modo mais liberal. Acredita que haverá sempre uma reação conser- vadora a essa decisão ativista. De modo que, do seu ponto de vista, uma decisão ativista é sempre liberal e uma reação ou superação legislativa é sempre conservadora. Em que pese o brilhantismo e a inteligência do autor, tal entendimento não merece prosperar, pois olvidou o mesmo que existe o ativismo liberal e o ativismo conservador. Assim, nem sempre uma reação/superação legislativa será conservadora. Um outro importante aspecto do efeito backlash é que a possibilidade de sua ocorrência pode ser le- vado em consideração pelos Tribunais e Cortes constitucionais como um mecanismo influenciador nas suas decisões. Desse modo, tendo em vista os vários efeitos causados pelas decisões no judicial review, entre eles o backlash, o Tribunal poderá ter uma postura mais ativa ou mais minimalista a depender do grau do efeito backlash que elas podem causar. Convém destacar que no Brasil o efeito backlash tem ocorrido, sobretudo como resposta ao aumento do protagonismo judicial exercido pelo STF. Mas por uma questão de espaço e por não ser o principal objeto do presente trabalho, não será aprofundado. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho demonstrou que não é acertado se falar em “última palavra” sobre a interpreta- ção da Constituição, pelo menos não materialmente. E que as decisões do controle de constitucionalidade não vinculam o legislador a ponto de impedi-lo de buscar reverter a jurisprudência do STF no controle de constitucionalidade. Também ficou demonstrado que além de legítima, a prática da reação legislativa buscando reverter a jurisprudência do STF, é um instrumento viável de comunicação das preferências do povo e de seus repre- sentantes com o Tribunal. Registra-se da mesma forma que existe um potencial epistêmico quando ocorre a reação legislativa. E por fim, entendeu-se que o efeito backlash pode ser tido como um fator impulsionador para que haja uma eventual reação legislativa.
  • 246. 246 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Em conclusão, o propósito principal deste trabalho foi discutir, sem pretensão exaustiva, os meca- nismos que o Poder legislativo se utiliza para reagir à jurisdição constitucional. Bem como a potencialidade dessa reação para o fortalecimento de um quadro de diálogo entre os Poderes Legislativo e Judiciário, nota- damente sobre o sentido da Constituição. Verificou-se que tanto por meio de emenda constitucional quanto pode meio de lei ordinária, essa reação pode ocorrer, e as vezes de modo eficiente, vindo a contribuir signifi- cativamente para a construção do significado da Constituição.. E que há limitações para ambas as espécies normativas no que diz respeito ao tema por elas tratados. REFERÊNCIAS BARROSO, Luís Roberto. Jurisdição constitucional: a tênue fronteira entre o direito e a polí- tica. Disponível em :http://www.migalhas.com.br/arquivos/2014/2/art20140204-06.pdf Acessado em : 03/12/2015. BENVINDO, Juliano Zaidan. A última palavra, o poder e a história. Ano 51 Número 201 Jan./Mar.. 2014 BRANDÃO, Rodrigo. Supremacia Judicial versus diálogos constitucionais: a quem cabe a última palavra sobre o sentido da constituição? Rio de Janeiro; Lumen Juris, 2012. BRASIL. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 5 de ou- tubro de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm. Acessa- do em 03/01/2016. _________. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5105/ DF. Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 1/10/2015, Tribunal Pleno, Informativo nº 801. MARMELSTEIN, George. Efeito Backlash da jurisdição Constitucional: reações políticas à atu- ação judicial. http://direitosfundamentais.net/2015/09/05/efeito-backlash-da-jurisdicao-constitucional- -reacoes-politicas-a-atuacao-judicial/ Acessado em 22/12/15. POST, Robert C.; SIEGEL, Reva B. Roe Rage: democratic constitutionalism and backlash. Faculty Scholarship Series. Paper 169 (2007). Disponível em: http://digitalcommons.law.yale.edu/fss_papers/169. ROTHEMBURG, Walter Claudius. “A dialética da democracia: entre legisladores e jurisdição cons- titucional”, do livro “Direitos humanos e democracia”, coordenado por Clèmerson Merlin Clève, Ingo Wol- fgang Sarlet e Alexandre Coutinho Pagliarini (Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 429-440 – ISBN 978-85-309- 2488-1) SARMENTO, Daniel. DE SOUZA NETO, Claudio Pereira. Notas sobre jurisdição constitucional e democracia: a questão da”última palavra” e alguns parâmetros de autocontenção judicial – ANO 2013 - Revista Quaestio Iuris - vol.06, nº02. ISSN 1516-0351. Disponível em : http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/quaestioiuris/article/view/11773 Acessado em :20/01/2016 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Backlash à decisão do Supremo tribunal Federal: pela naturalização do dissenso como possibilidade democrática. Disponível em: https://www.academia.edu/5159210/ Backlash_%C3%A0_decis%C3%A3o_do_Supremo_Tribunal_Federal_pela_naturaliza%C3%A7%C3%A3o_ do_dissenso_como_possibilidade_democr%C3%A1tica acessado em : 20/01/2015. WILLEMAN, Marianna Montebello. Constitucionalismo democrático, backlash e resposta legisla- tiva em matéria constitucional no brasil. Nº 33 – janeiro/fevereiro/março de 2013 – Salvador – Bahia – Brasil - ISSN 1981-187X.
  • 247. 247 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. NEGOCIADO X LEGISLADO: O DIREITO DO TRABALHO EM PERIGO Fábio Túlio Barroso Advogado. Pós-Doutor em Direito pela Universidad de Granada, Espanha. Doutor em Direito pela Universidad de Deusto, Bilbao, Espanha. Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP. Presidente Honorário da Academia Pernambucana de Direito do Trabalho - APDT. Membro Efetivo do Instituto de Advogados Brasileiros - IAB. Membro Efetivo do Instituto de Advogados de Pernambuco – IAP (Presidente da Comissão de Direito e Processo do Trabalho). Membro da Asociación Española de Salud y Seguridad Social. Professor da Universidade Católica de Pernambuco–UNICAP (Graduação e PPGD). Professor da Faculdade de Direito de Recife - FDR, da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Professor da Faculdade Integrada de Pernambuco - FACIPE. Líder do grupo de pesquisa Efetividade das Normas Trabalhistas na Pós-modernidade. SUMÁRIO: Introdução; 1. Contextualização - Disciplinamento da matéria trabalhista; 2. A subver- são do Direito do Trabalho; 3. Conclusão; Referências Bibliográficas. INTRODUÇÃO Como o presente texto tem-se como perspectiva expandir o debate sobre tema atual nas relações de trabalho, cuja ideia mais recente é a aplicação da regulamentação da matéria por meio de negociação cole- tiva, impondo um novo panorama em que o conteúdo do que for negociado possui maior segurança jurídica do que o legislado, supostamente. A regulamentação autônoma coletiva possui limites e finalidades presentes na estrutura trabalhista e precisa de discussões com maior acuidade, evitando que se tenha como resultado a afronta ao princípio do não retrocesso social. Logo, serão abordados vários elementos de discussão, perpassando o elemento formal e o político-ju- rídico para que seja possível contribuir e enriquecer o debate. 1. CONTEXTUALIZAÇÃO – DISCIPLINAMENTO DA MATÉRIA TRABALHISTA. Os Direitos sociais nascem na maioria das vezes de demandas e pressões sociais. Com o Direito do Trabalho não foi diferente. Com a revolução industrial e as precárias condições de trabalho que os obreiros eram submetidos, aliado ao abstencionismo estatal e ao contratualismo que permitia que trabalhadores e do- nos dos meios de produção estabelecessem as regras do pacto laboral, não demorou muito para que houvesse uma insatisfação generalizada que colocou em risco a continuidade da sociedade capitalista. Em uma relação em que os sujeitos são naturalmente desiguais, a igualdade formal não pode ser mantida, em face do natural desequilíbrio da igualdade material.
  • 248. 248 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Cabe o registro ainda que nas sociedades burguesas do período inicial da revolução industrial, havia o fomento à liberdade individual, com repressão por parte do Estado à liberdade coletiva, motivo pelo qual o associativismo era caracterizado como delito. (SORIA, José Vida e outros, 2011, pág. 17) Destaca-se neste universo de situações políticas e normativas o Combina- tion Act, 1799, no Reino Unido, o Código Penal de Napoleão, em 1810, na França, o Codice Penale Sardo, 1859, na Itália, dentre outras normas, que foram emitidas pelos países, que tinham além do ideal liberal a realidade industrial em plena expansão. Contudo, a mais contundente de todas, foi a Lei le Chapelier, de 1791 na França, que caracterizou as corporações como atentatórias aos direitos do homem e do cidadão. (BARROSO, Fábio Túlio. 2010, págs. 24 e 25) Logo, o ambiente produtivo era desprovido de regulamentações estatais no sentido de limitar a utili- zação da mão de obra assalariada, que assumia o risco da atividade empresarial junto com o empreendedor, em uma condição sub-humana de prestação de serviços1 . Não obstante, a classe trabalhadora passa a ser reconhecida como sujeito coletivo, sobretudo por meio de elementos ideológicos, como o Manifesto do Partido Comunista de Carl Marx e Friederich Engels de 1848, cujo panfleto proclamava a classe trabalhadora à união e à reforma da sociedade, sem que houvesse mais a exploração dos trabalhadores naquelas condições degradantes. Como aparecimento de uma sociedade de classes, duas obras são de funda- mental importância para entender os fenômenos consequentes e a sociedade do trabalho que se instaura a partir de então: O Manifesto do Partido Comu- nista, de Marx e Engels, em 1848 e a Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII, em 1891.Ambos documentos relatam a situação e a necessidade de mudanças no ambiente do trabalho. O Manifesto do Partido Comunista serve como um instrumento ideológico de agregação da classe trabalhadora contra a exploração proporcionada pelo capitalista. Propõe a extinção da so- ciedade de classes e o fim do Estado burguês, por meio da tomada do poder e a administração dos meios de produção pelos próprios trabalhadores. O fim do capitalismo.Já a encíclica Rerum Novarum, critica a situação absurda que os trabalhadores eram submetidos, pleiteando uma alteração da forma de utilização da mao de obra, de forma predatória ao passo que criticava as medidas marxistas. (BARROSO, Fábio Túlio. 2010, págs. 26). Obviamente que a organização dos trabalhadores se sobrepõe a elemento meramente ideológico, mas a união de interesses levou à exigência de reconhecimento de condições dignas de trabalho, o que paula- tinamente foi sendo reconhecido pelos Estados industrializados, ao admitir as demandas sociais presentes nas relações de trabalho e suas representações por meio de entidades de classe (CARINCI, Franco e outros, 2015, pág. 30). Na Inglaterra, em 1824, com a criação de entidades coletivas de representação de classes e em 1871, com o Trade Union Act, proporciona-se o movimento sindical mais antigo do mundo. Na França, a lei Waldeck-Russeau de 1884 revoga a lei le Chapelier. Na Alemanha, o Código Industrial Prussiano de 1869, admite associa- ção profissional e em 1919, a Constituição de Weimar expande garantias sociais aos trabalhadores, possibilitando a liberdade de associação profissional e econômica . A Constituição do México, mesmo sem ser um país do centro do sistema capitalista industrial, inova em 1917, sendo o primeiro diploma constitucional a tratar das con- dições de Trabalho, com proteção ao trabalho assalariado e à organização coletiva de trabalhadores. (BARROSO, Fábio Túlio. 2010, págs. 26) 1  Sobre as condições de trabalho e discussões sobre o porvir das relações industriais, sugere-se a leitura da obra clássica Germinal, de Emile Zola. São Paulo, Martin Claret, 2006.
  • 249. 249 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Ocorre que finalmente em 1919, se tem a sistematização do Direito do Trabalho como disciplina jurídica, com a criação da Organização Internacional do Trabalho – OIT, no Tratado de Versalhes, que esta- beleceu um padrão internacional de comportamentos entre os sujeitos da relação de trabalho, seja no âmbito individual, seja coletivo. Sendo assim, com o intervencionismo estatal cria-se uma sistematização de normas mínimas de pro- teção social aos trabalhadores para a utilização no âmbito do contrato de trabalho, podendo ser melhorada por meio de elementos negociais presentes nas normas coletivas, que por sua vez, deverão estabelecer con- dições de trabalho específicas e mais favoráveis aos trabalhadores, que aqui no Brasil são as convenções e os acordos coletivos de trabalho. Desde el entedimiento de la naturaleza contradictória del Derecho del Traba- jo, ésta, al legalizar a la clase obrera, expresa la explotación de la fuerza de trabajo y la represión de la acción obrera, al mismo tiempo que expresa y le- galiza esta lucha y las ventajas que ha permitido conquistar. La tesis central se resume en la idea de que el Derecho del Trabajo, tal y como existe hoy en los países del capitalismo maduro, es esencialmente Derecho del capitalismo, sector específico del orden jurídico de una sociedad altamente compleja y “pluriconflictual”. (...) el Derecho del Trabajo participa en la misma consti- tución de las relaciones de producción: expresa y “codifica” las relaciones de producción al mismo tiempo que las enmascara y posibilita su reproducción. (...) el ordenamiento laboral es, asimismo, un elemento y una apuesta de la acción de la clase obrera contra el orden capitalista, y un elemento de lucha de la clase dominante contra la acción de los trabajadores (PÉREZ, José Luis Monereo, 1996, págs. 24 e 25). Ou seja, o Direito do Trabalho como disciplina jurídica consegue manter a ordem econômica vigente como elemento de manutenção da ordem e da continuidade das relações produtivas, estabelecendo condi- ções mínimas de dignidade e de inserção do trabalhador na dinâmica do sistema econômico, ao passo que, ao reconhecer as entidades representativas de classe, os sindicatos, permite e fomenta um constante diálogo entre os representantes de cada lado da sociedade do trabalho como elemento de pacificação, conhecimento recíproco e redução de conflitos sociais, tudo isso dentro da legalidade: limita o conflito de interesses na pers- pectiva de implementar uma ordem civilizatória. Evidenciou-se inquestionável, em suma, que a existência de um sistema de- sigual de criação, circulação e apropriação de bens e riquezas, com um meio social fundado na diferença econômica entre seus componentes (como o capitalismo), mas que convide com a liberdade formal dos indivíduos e com o reconhecimento jurídico-cultural de um patamar mínimo para a convivên- cia na realidade social (aspectos acentuados com a democracia), não pode mesmo desprezar ramo jurídico tão incrustado no âmago das relações de trabalho. (DELGADO, Maurício Godinho, 2015, pág. 104). Ou seja, o Direito do Trabalho por meio de suas normas estabelece elementos mínimos de proteção social ao trabalhador e estabilidade econômica ao empregador, devendo, em regra, melhorar estas condições mínimas por meio do negociado, que é acessório do legislado. Apenas excepcionalmente, quando o legislador permitir, é que poderá haver a redução destas garantias mínimas previstas em lei ao trabalhador, como no caso das normas do art. 7º, VI, XIII e XIV da Constituição da República. 2. A SUBVERSÃO DO DIREITO DO TRABALHO. Pois bem, pautado o Direito do Trabalho como instrumento mínimo de inserção social com dignidade do trabalhador na dinâmica do sistema capitalista, tem-se uma sistematicidade normativa e principiológico que estabelece os limites mínimos desta proteção social.
  • 250. 250 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A negociação coletiva é fomentada pelo Estado, pautado em valores de tutela aos hipossuficientes como forma de equilíbrio das relações materiais pelo formalismo legal. Assim, tem-se nos artigos 7º, XVI, 8º, VI, ambos da Constituição da República e 611 e seguintes da CLT os elementos que propiciam a criação de condições específicas e mais favoráveis para os trabalhadores por meio de procedimentos negociais, que deverão ser formalizados nas convenções ou acordos coletivos de trabalho. Estas normas autônomas coletivas servem como instrumento de ratificação da vontade social do Estado, reconhecendo que o legislado é o mínimo assegurado e que o negociado assegurará a melhoria da condição social do trabalhador, como previsto e programado na carta maior. Tal projeção para as normas coletivas deverá ser sistematicamente respeitado e coadunado com os princípios do Direito do Trabalho, em especial, o da indisponibilidade de suas normas. O princípio da indisponibilidade dos direitos ou da irrenunciabilidade de di- reitos baseia-se no mandamento nuclear protetivo segundo o qual não é dado ao empregado dispor (renunciar ou transacionar) de direito trabalhista, sen- do, por conta disso, nulo qualquer ato jurídico praticado contra esta disposi- ção. Tal proteção, que em última análise, visa proteger o trabalhador das suas próprias fraquezas está materializada em uma série de dispositivos da CLT, entre os quais se destaca o seu art. 9º. Esta atuação legal impede que o vul- nerável, sob a miragem do que lhe seria supostamente vantajoso, disponha dos direitos mínimos que a custa de muitas lutas históricas lhe foram assegu- radas nos termos da lei. (MARTINEZ, Luciano, 2013, pág. 108) Ou seja, o conteúdo mínimo previsto em lei não poderá ser modificado, salvo o já previsto na Cons- tituição, pois a disponibilidade na aplicação da norma trabalhista retira a sua função social de proteção ao hipossuficiente. Nessa esteira, fica nítido que qualquer proposta que venha a desvirtuar o elemento tutelar do Direito do Trabalho, acaba por desqualificar ou desconstituir sua estrutura normativa e principiológica, em defesa de interesses que desestabilizam a regulação do trabalho sob um supedâneo mínimo de proteção e equilíbrio social. Em momentos de crise como a que o país passa no momento, são vários os argumentos, boa parte deles falaciosos, que a flexibilização das normas trabalhistas trará mais empregos, proteção social e segurança jurídica, dando protagonismo à negociação coletiva para a sua implementação, clamando por uma “moderni- zação” das relações de trabalho. De logo, o sindicato em sua função representativa não possui ferramentas éticas e legais para dispo- nibilizar o direito em que é mero representante, consonante norma fundamental prevista no art. 8º, III da Constituição. Por sua vez, a CLT é uma dos diplomas mais atualizados, com menos de 20% do seu conteúdo original. O desvirtuamento das funções sindicais para que possa negociar o direito dos trabalhadores, no sen- tido de disponibilizar a sua aplicação vai no sentido unívoco de potencializar a autonomia privada coletiva e reduzir o poder e a eficácia das normas legisladas, que passam a ser meros dispositivos ou instrumentos de combinação de interesses, de acordo com o momento econômico e político que o país atravessa, sem qual- quer perspectiva de retorno a elementos tutelares aos hipossuficientes. Ou seja, a ideia de dividir em várias parcelas o gozo das férias e o pagamento do décimo terceiro salá- rio, por exemplo, rompe com o mínimo de proteção social previsto em lei. Se estabelece uma lógica de retorno ao abstencionismo estatal no tocante à aplicação das normas, com um catálogo mínimo de normas trabalhistas que serão utilizadas ao bel prazer das conjunturas, e o mais grave, com sindicatos com enorme dificuldade de representatividade, o que reverbera em um enorme retro- cesso social.
  • 251. 251 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Isso acontece de várias formas, com o estabelecimento de variados modelos de realização. Serve, inclusive para legitimar a execução da política de fle- xibilidade laboral, como consequência do modelo neoliberal nas relações de trabalho em uma escala jamais vista na história da humanidade, como resul- tado da globalização.Essa nova realidade acerca das funções, das matérias tratadas, dos sujeitos que compõem a negociação coletiva e da intervenção estatal de forma material e ideológica, estabelece novos fundamentos com práticas diferenciadas ao citado modelo clássico de relações de trabalho, ao se utiliza do princípio da adequação setorial negociada em sua vertente ne- gativa, justamente para estabelecer condições de trabalho in pejus ao traba- lhador, levando-se em conta a negociação coletiva de primeira geração ou o modelo industrial de negociação em que são sujeitos as entidades sindicais de base, geralmente. (BARROSO, Fábio Túlio, 2012, págs. 105 e 106) Naturalmente, que esta nova função designada às entidades sindicais estabelecem um negativa do papel representativo presente na estrutura sindical, inserida na sistematicidade das normas de Direito do Trabalho, pois, caberá a estas entidades defender os interesses, no caso dos trabalhadores, no sentido de melhoria da sua condição social, em paralelo ao princípio do não retrocesso social, o que deixa de ocorrer. Por essa razão, comumente são arrolados dois principais conteúdos do princí- pio da vedação do retrocesso social: Positivo e o negativo. O conteúdo positivo reside no dever de o legislador perseverar no propósito de ampliar, progressi- vamente e de acordo com as condições fáticas e jurídicas, o grau de concre- tização dos direitos fundamentais sociais, “não se trata de mera manutenção do status quo, mas de imposição da obrigação de avanço social”. O negativo, refere-se a imposição ao legislador de, na atividade legiferante, respeitar a não supressão ou a não redução do grau de densidade normativa que os direitos fundamentais já tenham alcançado por meio do arcabouço normati- vo-positivo. (MESQUITA, Carolina Pereiria Lins, 2012, pág. 176) No Brasil, foram várias as alterações ocorridas, sobretudo, a partir da década de 1990 do século pas- sado, quando a negociação coletiva viabilizou e legitimou a flexibilização do Direito do Trabalho. A título de exemplo, tem-se o contrato de trabalho por prazo determinado sem causa, pela lei nº 9.601/98, a modificação do contrato ordinário de trabalho para o contrato a tempo parcial por cláusula negocial, art. 58-A, § 2º da CLT e a natureza não salarial dos valores decorrentes da participação nos lucros e resultados da empresa, conforme a lei nº 10.101/00. No plano constitucional, tem-se a possibilidade de redução das garantias mínimas sociais como ex- cepcionalidade, como a redução de salários, a compensação de jornada e a alteração dos turnos ininterruptos de revezamento, como acima indicado os respectivos incisos do art. 7º. Observa-se em todas as medidas que pretendem estabelecer a prevalência do negociado ao legislado a tentativa de ruptura do modelo ordinário de relações de trabalho, implementando uma disciplina jurídica que prima pela falaciosa autonomia e empoderamento das partes negociais, principalmente os trabalhadores, bastante presente na fonte material do direito que se destaca, a ideologia neoliberal. Há uma sistemática crítica à necessária proteção do hipossuficiente, como se fosse um pecado capital a defesa de um sujeito em condição de inferioridade diante do outro. Na prática, tem-se uma proposta de redução do custo do trabalho, da capacidade de organização dos trabalhadores, com o fomento a competitividade entre eles, reduzindo a possibilidade de solidariedade e acuidade do diálogo entre os envolvidos na negociação coletiva. Nos países que utilizaram o modelo flexível de legislação do trabalho de natureza neoliberal foi obser- vado uma ruptura da garantia social presente na legislação do trabalho do modelo anterior.
  • 252. 252 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A proposta de se utilizar a legislação do trabalho como mero elemento ilustrativo de direitos, com ampla disposição na sua aplicação é uma subversão ao conteúdo humanista e democrático das relações de trabalho o que também vai de encontro com toda estrutura normativa e principiológica da disciplina jurídica que alberga o trabalhador como sujeito de direitos e obrigação, mas com dignidade. 3. CONCLUSÕES. Temas desta natureza não comportam conclusões, visto que a matéria trabalhista é a síntese do con- flito de interesses. Contudo, quando se tem perspectiva de retrocesso social diante da desconstrução de um modelo de relações jurídica que acarreta dignidade à pessoa é preciso se chegar a sínteses, ainda que mo- mentâneas, visto que diante de natureza da matéria sempre haverá novas situações dignas de estudo. Assim, não se pode concordar com proposta de utilização da negociação coletiva como instrumento de flexibilização do Direito do Trabalho, visto que o elemento mínimo de proteção social ao trabalhador já está previsto no seu conteúdo legal que não comporta disponibilidade. Qualquer alteração ao conteúdo material e prático das normas desta natureza somente poderá acontecer para trazer melhoria da condição social, em absoluta adequação ao princípio do não retrocesso social. A negociação coletiva não poderá servir como instrumento de legitimação de uma política econômica que desconsidera a hipossuficiência jurídica e a dignidade do trabalhador, já asseguradas nas normas legis- ladas e que não poderão ser disponibilizadas. Tampouco poderá servir para a desconstrução do Direito do Trabalho. A prevalência do negociado sobre o legislado é a subversão ao conteúdo humanista e democrático das relações de trabalho o que também vai de encontro com toda estrutura normativa e principiológica da disci- plina jurídica que alberga o trabalhador como sujeito de direitos e obrigação, mas com dignidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, Fábio Túlio. Manual de Direito Coletivo do Trabalho, LTR, São Paulo, 2010. BARROSO, Fábio Túlio. Novos Parâmetros da Negociação Coletiva na Sociedade Contemporânea, em: BAR- ROSO, Fábio Túlio e MELO FILHO, Hugo Cavalcanti. Direito do Trabalho, Valorização e Dignidade do Tra- balhador no século XXI. Estudos em Homenagem ao Professor José Guedes Corrêa Gondim Filho, São Paulo, LTR, 2012. CARINCI, Franco, TAMAJO, Raffaele de Luca, TOSI, Paolo e TREU, Tiziano. Colaboradores: BROLLO, Ma- rina, CAMPANELLA, Piera e LUNARDON, Fiorella. Derecho del Trabajo. 1. El Derecho Sindical. Tradução: AVILÉS, José Antonio fernández, MURRONE, Maria Giovanna, MARTÍNEZ, Luis Angel Triguero, INSUA, Belén del Mar López, BERNANRDINO, Manuela Durán e SÁNCHEZ, Sonia Fernández. Coordenador da tradução José Antonio Fernández Aviléz. Granada, Comares, 2015. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho, 14ª edição, São Paulo, LTR, 2015. MARTINEZ, Luciano. Curso de Direito do Trabalho, 4ª edição, São Paulo, saraiva, 2013. MESQUITA, Carolina Pereira Lins. Teoria Geral do Direito do Trabalho. Pela Progressividade Sociojurídica do Trabalhador, São Paulo, LTR, 2012. PÉREZ, José Luis Monereo. Introducción al nuevo Derecho del Trabajo. Una Reflexión Crítica Sobre el Dere- cho Flexible del Trabajo, Valência, Tirant lo Blanch, 1996.
  • 253. 253 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. SORIA, José Vida, PÉREZ, José Luis Monereo e NAVARRETE, Cristóbal Molina. Manual de Derecho del Tra- bajo, 9ª edição, Granada, Comares, 2011. ZOLA, Emile, Germinal. São Paulo, Martin Claret, 2006.
  • 254. 254 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. NOTAS SOBRE A AUTONOMIA SINDICAL BRASILEIRA Fábio Túlio Barroso INTRODUÇÃO Uma das principais dificuldades dos operadores do Direito Sindical no Brasil após a Constituição da República de 1988 está relacionada à validade das normas sobre a matéria presentes na CLT, visto que o texto constitucional estabeleceu ampla autonomia, quando não cabe ao poder público interferência nem interven- ção na organização sindical. Isso quer dizer que após a carta maior ser promulgada, deverá prevalecer o conteúdo dos estatutos das entidades sindicais sobre a lei, em clara obediência à natureza associativa das entidades sindicais. Contudo, alguns institutos do período anterior à Constituição foram mantidos, como a unicidade e a contribuição sindical compulsória que contrariam a ampla liberdade sindical, estabelecendo um modelo de autonomia, visto que estas limitações são de ordem legal, cogentes. Sendo assim, este texto faz uma análise sobre o modelo de autonomia sindical brasileiro, que precisou ser aperfeiçoado em alguns momentos pela jurisprudência, no sentido de estabelecer comportamentos ou limites objetivos à aplicação das normas sindicais no Brasil. O texto não tem a pretensão de esgotar o tema, apenas apresentar alguns elementos científicos sobre esta interessante matéria. 1. O SINDICALISMO À BRASILEIRA – AUTONOMIA SINDICAL. A estrutura sindical brasileira é bastante complexa e por vezes contraditória. Tem-se na sua organi- zação originária um modelo de organização por unicidade sindical, que é um resquício do corporativismo de Estado e sua mais recente atualização foi no sentido de reconhecer formalmente as centrais sindicais que não fazem parte desta estrutura, organizando-se por pluralidade, em absoluto paradoxo técnico entre as for- mas de associativismo, podendo ser considerado suis generis (BARROSO, Fábio Túlio. 2014). Por sua vez, o Brasil não ratificou a Convenção nº 87 da OIT, que trata da Liberdade Sindical e Proteção ao Direito de Sindicalização, paradigma normativo internacional sobre a liberdade sindical. Contudo, várias de suas normas que tratam da matéria do associativismo foram recepcionadas na própria carta magna, sem que houvesse a necessidade de formalização do teor da referida norma internacional. Nesse espeque, tem-se ainda que o modelo internacional de liberdade sindical está estabelecido em um espectro normativo ainda mais amplo, com a convergência dos postulados presentes nas Convenções nº 981 e 1352 da OIT, respectivamente, ambas ratificadas pelo Brasil. A doutrina internacional é neste sentido, ao reconhecer a amplitude das normas de liberdade sindical além do conteúdo estabelecido em sua norma paradigmática: 1  Aprovação: Decreto Legislativo n. 49, de 27.8.52, do Congresso Nacional. Promulgação: Decreto n. 33.196, de 29.6.53. http:// www.oitbrasil.org.br/node/465. 2  Aprovação: Decreto Legislativo n. 86, de 14.12.89, do Congresso Nacional. Promulgação: Decreto n. 31, de 22.5.91. http:// www.oitbrasil.org.br/node/489
  • 255. 255 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. La aprobación por la OITdel Convenio nº 87, relativo a la libertad sindical y a la protección del derecho de sindicación (1948), y el Convenio nº 98, sobre aplicación de los princípios del derecho de sindicación y negociación colectiva (1949), marcará un cambio radical. Estas normas pueden considerarse, pese a sus carencias y contradicciones, como dos de las piezas normativas más señeras del enterro Derecho Internacional del Trabajo. La preocupación de la OIT por crear los princípios y las reglas de un nuevo modelo de regulación de la autonomia colectiva de los trabajadores se proyectará en otros instrumentos normativos posteriores, tanto en Convenios cuanto en Recomendaciones. (...) Y después con la adicción de nuevos instrumentos, fundamentalmente el Convenio nº 135 (y la Recomendación nº 143), sobre protección y facilidades a otorgar a los representantes de los trabajadores en la empresa (1971), que configuran, en contraste con la posición anterior del próprio movimiento asociativo, la acción en la empresa como un contenido esencial de la libertad sindical. (PEREZ, José Luis e outros, pág. 26) A liberdade sindical em seu aspecto mais amplo deverá ser entendida como: (...) a impossibilidade de qualquer agente estranho, alheio à entidade sindical, seja ele o Estado ou mesmo qualquer pessoa física ou jurídica, que possa mitigar ou limitar a criação, o exercício de suas atividades negociais, de filiação ou desfiliação, de representatividade e de administração A ordem jurídica deverá garantir uma atividade sindical sem que haja intervenções de agentes estranhos à atividade interna e externa das entidades sindicais, nem tampouco que seja possível a interferência nas suas atividades específicas no seio da sociedade do trabalho, quando o exercício sindical deverá ser desatrelado de compromissos ou limitações que tenham por finalidade desvirtuar a representatividade dos interesses próprios das bases que conformam os coletivos sindicais, econômicos ou profissionais, seja administrativamente ou judicialmente (BARROSO, Fábio Túlio. 2010, pág. 86) Entendido ainda que a liberdade sindical se estabeleceu como direito fundamental em diversos diplomas internacionais. (CARINCI, Franco e outros, 2015, pág. 110 e DUARTE, Bento Herculano e MORAES, José Diniz de. 2016, pág. 60). E é justamente neste contexto em que se enquadra o sindicalismo brasileiro no seu aspecto formal, porém, com limitações que serão apresentadas a seguir. Como o país não ratificou a norma paradigma internacional sobre liberdade sindical, possui basicamente os limites do seu modelo de liberdade sindical presentes na unicidade e na contribuição sindical. Não fossem estes limites acima indicado, as demais previsões da referida convenção da OIT foram admitidas no ordenamento. Este poder de autorregulamentar-se foi absorvido pela ordem constitucional brasileira, ao estabelecer na parte final do inciso I do art. 8º, em que estão vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical. Entendido que a interferência é o ato de persuasão, ingerência imaterial e a intervenção é o ato físico de intromissão nos assuntos sindicais, que tem em sua origem a organização, que é própria de uma pessoa jurídica de direito privado e que não cabe em hipótese nenhuma estas formas de participação estatal na vida das entidades sindicais. (BARROSO, Fábio Túlio, 2010, pág. 93) Quanto à autonomia, há impedimento por norma constitucional de a lei exigir autorização do Estado para criação de entidade sindical, não devendo haver qualquer “interferência ou intervenção na organização sindical”, como se tem do art. 8º, I da carta maior. Ou seja, deverá prevalecer o conteúdo do estatuto da entidade sindical sobre a lei, o que também impede que haja a dissolução ou a suspensão da entidade por via administrativa. Naturalmente que a previsão constitucional está relacionada à impossibilidade de qualquer órgão estatal definir limites de criação das entidades associativas sindicais por limitativos legais, como havia no período anterior à Constituição, quando se aplicava o enquadramento sindical do art. 570-577 da CLT. De igual modo, não é possível admitir que a lei venha a exigir autorização do Estado apenas para a criação de entidade sindical de base, sindicatos, visto que a estrutura sindical brasileira está montada em várias entidades de classe, cujo sindicato é apenas uma delas. Ora, se no sistema confederativo de organização sindical, onde se aplica a unicidade em qualquer grau, tem-se
  • 256. 256 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. os sindicatos como entidades de base e as federações e as confederações como entidades de grau superior (arts. 516, 533-535 da CLT), todas perfazendo uma estrutura nos termos consolidados antes mesmo da Constituição de 1988. Ou seja, a carta maior admitiu que o modelo de organização sindical tanto do setor profissional quanto do econômico se organizam por unicidade, em obediência ao conteúdo do art. 8º, II. Ainda assim, a criação das entidades sindicais caberá aos “trabalhadores e empregadores” interessados, não mais havendo definição dos critérios pré-existentes ao Estado, quando enquadrava as atividades econômicas e profissionais nos termos do anexo ao art. 577 consolidado. Ou seja, mesmo com delimitação quantitativa, qualitativa e territorial de organização sindical para as entidades do sistema confederativo, caberá apenas aos interessados a criação das respectivas entidades, com os limites impostos pela unicidade sindical, o que vai de encontro ao modelo proposto pela OIT, em sua Convenção nº 87. Por sua vez, quando se fala nas garantias ao emprego aos dirigentes sindicais, tema relacionado à liberdade sindical individual, tem-se na estabilidade provisória prevista nos arts. 8º, VIII3 da Constituição e 543, § 3º4 da CLT uma série de limitações estabelecidas pelo Poder Judiciário, em aplicação da autonomia sindical. Inicialmente, porque as normas que tratam tanto do quantitativo de dirigentes, quanto da forma como se dará a manutenção no emprego são anteriores à Constituição e com forte interferência do Estado no comportamento dos sindicatos. Assim, as súmulas de nº 197 do STF e 379 do TST, acabam por delimitar de que forma deverá se dar a apuração da falta grave que justifica a terminação do contrato de trabalho do dirigente estável, como se tem a seguir: Súmula 197/STF - 12/07/2016. Trabalhista. Sindicato. Sindicalista. Estabilidade provisória. Inquérito para apuração da falta grave. CLT, art. 543. O empregado com representação sindical só pode ser despedido mediante inquérito em que se apure falta grave. Súmula nº 379 do TST DIRIGENTE SINDICAL. DESPEDIDA. FALTA GRAVE. INQUÉRITO JUDICIAL. NECESSIDADE (conversão da Orientação Jurisprudencial nº 114 da SBDI-1) - Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005 O dirigente sindical somente poderá ser dispensado por falta grave mediante a apuração em inquérito judicial, inteligência dos arts. 494 e 543, §3º, da CLT. Cabe especial registro para o fato de a legislação do trabalho não possuir norma específica que trate do inquérito judicial para o dirigente sindical, utilizando-se as originariamente previstas para os estabilitários decenais. Ainda no tocante à estabilidade provisória dos dirigentes sindicais, chama a atenção o conteúdo da Súmula nº 369 do TST: Súmula nº 369 do TST DIRIGENTE SINDICAL. ESTABILIDADE PROVISÓRIA (redação do item I alterada na sessão do Tribunal Pleno realizada em 14.09.2012) - Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012 I - É assegurada a estabilidade provisória ao empregado dirigente sindical, ainda que a comunicação do registro da candidatura ou da eleição e da posse seja realizada fora do prazo previsto no art. 543, § 5º, da CLT, desde que a ciência ao empregador, por qualquer meio, ocorra na vigência do contrato de trabalho. 3  Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: (...) VIII - é vedada a dispensa do empregado sindicalizado a partir do registro da candidatura a cargo de direção ou representação sindical e, se eleito, ainda que suplente, até um ano após o final do mandato, salvo se cometer falta grave nos termos da lei. 4  Art. 543 - O empregado eleito para cargo de administração sindical ou representação profissional, inclusive junto a órgão de deliberação coletiva, não poderá ser impedido do exercício de suas funções, nem transferido para lugar ou mister que lhe dificulte ou torne impossível o desempenho das suas atribuições sindicais. § 3º - Fica vedada a dispensa do empregado sindicalizado ou associado, a partir do momento do registro de sua candidatura a cargo de direção ou representação de entidade sindical ou de associação profissional, até 1 (um) ano após o final do seu mandato, caso seja eleito inclusive como suplente, salvo se cometer falta grave devidamente apurada nos termos desta Consolidação.
  • 257. 257 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. II - O art. 522 da CLTfoi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. Fica limitada, assim, a estabilidade a que alude o art. 543, § 3.º, da CLT a sete dirigentes sindicais e igual número de suplentes. III - O empregado de categoria diferenciada eleito dirigente sindical só goza de estabilidade se exercer na empresa atividade pertinente à categoria profissional do sindicato para o qual foi eleito dirigente. IV - Havendo extinção da atividade empresarial no âmbito da base territorial do sindicato, não há razão para subsistir a estabilidade. V - O registro da candidatura do empregado a cargo de dirigente sindical durante o período de aviso prévio, ainda que indenizado, não lhe assegura a estabilidade, visto que inaplicável a regra do § 3º do art. 543 da Consolidação das Leis do Trabalho. Em especial, nos seus itens I, II e V. Isso porque para as respectivas normas, tem-se muito mais a interpretação teleológica do conteúdo da autonomia, aliado ao formalismo da norma consolidada. Nesses casos, não era possível estabelecer um paradigma restrito à norma consolidada, visto que o teor do § 5º do art. 5435 representa uma clara violação à autonomia. De igual modo, o intervencionismo do art. 5226 consolidado estabelecia limites impensáveis numa realidade de não se ter interferência ou intervenção na organização sindical. Logo, para o TST, deverá haver a comunicação ao empregador para que o mesmo tenha conhecimento da estabilidade do candidato ou dirigente, de qualquer forma inequívoca, desde que durante o vínculo empregatício. Contudo, o limite de validade do aviso no curso do contrato esbarra no aviso prévio, visto que a partir de então não caberá mais pleitear estabilidade, segundo a combinação do conteúdo dos itens I e V da Sumula nº 369. Por sua vez, no tocante ao item II, acabou por estabelecer que o limite que antes era máximo, de 7 (sete) dirigentes, que, levando-se em conta que o conteúdo da sumula possui natureza normativa, impõe um limite mínimo de dirigentes, com seus suplentes, que poderá ser ampliado por norma autônoma coletiva; convenção coletiva de trabalho. Isso se dá pela possibilidade de se estabelecer conteúdo mais favorável aos trabalhadores, estabelecendo um número superior a sete, por meio de autocomposição, com a participação de entidades do setor econômico. Asoluçãoacabousendonormativapelolimitedarazoabilidade,poisnãohaviaqualqueroutroparadigmanormativo a ser aplicado, ainda que, tal conclusão, stricto sensu, acaba ainda por colidir com a capacidade de autorregulamentação dos sindicatos, a autonomia sindical, visto que um outro órgão estatal, o judiciário, estabelece limites na organização sindical. Outra situação referente a autonomia sindical se deu com o reconhecimento formal das centrais como entidades desta natureza, por meio da lei nº 11.648 de 2008, deveria haver o mesmo respeito aos elementos de autonomia de criação das respectivas entidades. Contudo, o posicionamento legal foi diferente. Como se tem dos arts. 2º a 4º7 da referida lei, o poder público delimitou injustificadamente a qualidade e a quantidade das entidades constitutivas das centrais sindicais, conseguindo 5  § 5º - Para os fins deste artigo, a entidade sindical comunicará por escrito à empresa, dentro de 24 (vinte e quatro) horas, o dia e a hora do registro da candidatura do seu empregado e, em igual prazo, sua eleição e posse, fornecendo, outrossim, a este, comprovante no mesmo sentido. O Ministério do Trabalho e Previdência Social fará no mesmo prazo a comunicação no caso da designação referida no final do § 4º. 6  Art. 522. A administração do sindicato será exercida por uma diretoria constituída no máximo de sete e no mínimo de três membros e de um Conselho Fiscal composto de três membros, eleitos esses órgãos pela Assembleia Geral. 7  Art. 2o Para o exercício das atribuições e prerrogativas a que se refere o inciso II do caput do art. 1o desta Lei, a central sindical deverá cumprir os seguintes requisitos: I - filiação de, no mínimo, 100 (cem) sindicatos distribuídos nas 5 (cinco) regiões do País; II - filiação em pelo menos 3 (três) regiões do País de, no mínimo, 20 (vinte) sindicatos em cada uma; III - filiação de sindicatos em, no mínimo, 5 (cinco) setores de atividade econômica; e IV - filiação de sindicatos que representem, no mínimo, 7% (sete por cento) do total de empregados sindicalizados em âmbito nacional. Parágrafo único. O índice previsto no inciso IV do caput deste artigo será de 5% (cinco por cento) do total de empregados sindicalizados em âmbito nacional no período de 24 (vinte e quatro) meses a contar da publicação desta Lei.
  • 258. 258 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. afrontar ao mesmo tempo tanto o modelo de liberdade sindical brasileiro previsto no art. 8º da Constituição, quanto o proposto pela Convenção nº 87 da OIT. CONCLUSÕES Como se observa, a Constituição estabeleceu limites à intervenção do poder público nas atividades sindicais. Contudo na aplicação da autonomia sindical, ainda se tem um formal elemento cultural do sindicalismo de Estado no pais. Tal cultura se observa tanto nas normas interventivas do período anterior à carta maior, quanto na interpretação jurisprudencial, que acaba por estabelecer paradigmas por meio do modelo anterior de sindicalismo. Na mesma seara, normas atuais também acabam por remanescer na cultura controladora do sindicalismo brasileiro, como é o caso da lei que reconheceu as centrais sindicais, que incorre em flagrante inconstitucionalidade, ao afrontar o modelo próprio de liberdade sindical brasileiro e até mesmo o previsto pela OIT.. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARROSO, Fábio Túlio. Complexidades e Contradições do Sindicalismo Brasileiro. http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/ complexidades-e-contradicoes-do-sindicalismo-brasileiro/14849. BARROSO, Fábio Túlio. Manual de Direito Coletivo do Trabalho, LTR, São Paulo, 2010. CARINCI,Franco,TAMAJO,RaffaeledeLuca,TOSI,PaoloeTREU,Tiziano.Colaboradores:BROLLO,Marina,CAMPANELLA, Piera e LUNARDON, Fiorella. Derecho del Trabajo. 1. El Derecho Sindical. Tradução: AVILÉS, José Antonio fernández, MURRONE, Maria Giovanna, MARTÍNEZ, Luis Angel Triguero, INSUA, Belén del Mar López, BERNANRDINO, Manuela Durán e SÁNCHEZ, Sonia Fernández. Coordenador da tradução José Antonio Fernández Aviléz. Granada, Comares, 2015. DUARTE, Bento Herculano e MORAES, José Diniz de, A liberdade Sindical Como Direito Fundamental e a não ratificação da Convenção nº 87 da OIT pelo Brasil: Os Limites da Negociação Coletiva e a Proteção em Face de Atos Antissindicais. Em: FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa Franco e MAZZUOLI, Valério de Oliveira (organizadores). Direito Internacional do Trabalho. O Estado da Arte Sobre a Aplicação das Convenções Internacionais da OIT no Brasil. São Paulo, LTR, 2016. PÉREZ, José Luis Monereo, NAVARRETE, Cristóbal Molina y VIDA, Maria Nieves Moreno. Manual de Derecho Sindical, 9ª edição, Granada, Comares, 2014. Art. 3o A indicação pela central sindical de representantes nos fóruns tripartites, conselhos e colegiados de órgãos públicos a que se refere o inciso II do caput do art. 1o desta Lei será em número proporcional ao índice de representatividade previsto no inciso IV do caput do art. 2o desta Lei, salvo acordo entre centrais sindicais. § 1o O critério de proporcionalidade, bem como a possibilidade de acordo entre as centrais, previsto no caput deste artigo não poderá prejudicar a participação de outras centrais sindicais que atenderem aos requisitos estabelecidos no art. 2o desta Lei. § 2o A aplicação do disposto no caput deste artigo deverá preservar a paridade de representação de trabalhadores e empregadores em qualquer organismo mediante o qual sejam levadas a cabo as consultas. Art. 4o A aferição dos requisitos de representatividade de que trata o art. 2o desta Lei será realizada pelo Ministério do Trabalho e Emprego. § 1o O Ministro de Estado do Trabalho e Emprego, mediante consulta às centrais sindicais, poderá baixar instruções para disciplinar os procedimentos necessários à aferição dos requisitos de representatividade, bem como para alterá-los com base na análise dos índices de sindicalização dos sindicatos filiados às centrais sindicais. § 2o Ato do Ministro de Estado do Trabalho e Emprego divulgará, anualmente, relação das centrais sindicais que atendem aos requisitos de que trata o art. 2o desta Lei, indicando seus índices de representatividade.
  • 259. 259 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate.
  • 260. 260 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. O “DIREITO AO CONFLITO” NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: POTENCIALIDADES E RISCOS Fernanda Fonseca Rosenblatt Doutora em Criminologia pela University of Oxford (Inglaterra). Professora de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Orientadora na Iniciação Científica (PIBIC/ UNICAP). Pesquisadora do Grupo Asa Branca de Criminologia. ffrosenblatt@unicap.br. João André da Silva Neto Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do Grupo Asa Branca de Criminologia e voluntário na Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP). joao.law. neto@gmail.com Maria Júlia Poletine Advincula Graduanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do Grupo Asa Branca de Criminologia e bolsista na Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP). juliapoletine@gmail.com Pedro Henrique Ramos Coutinho dos Santos Graduando em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, integrante do Grupo Asa Branca de Criminologia e bolsista na Iniciação Científica (PIBIC/UNICAP). Email: pedrohrcoutinho@gmail.com SUMÁRIO: 1. Considerações introdutórias sobre a ineficácia e crise de legitimidade do sistema penal; 1.1. O “Roubo” dos Conflitos pelo Estado e a Necessidade de Devolução destes às Partes Di- retamente Envolvidas; 1.2. Do Esquecimento ao Indispensável Protagonismo da Vítima no Processo Penal; 2. O caso específico da violência doméstica no brasil; 2.1. O Surgimento da Lei Maria da Pe- nha; 2.2. A Persistência da Violência Doméstica, a Revitimização Secundária e a (In)Eficácia da Lei 11.340/2006; 2.3. A Ação Direta de Inconstitucionalidade 4424 e mais um “Roubo” de Conflitos pelo Estado; 3. A justiça restaurativa como alternativa aos conflitos de violência doméstica; 3.1. A Experi- ência Internacional; 3.2. Sobre alguns Riscos da Aposta Restaurativa; 4. Considerações finais sobre o uso da justiça restaurativa em casos de violência doméstica e a sua operacionalização no brasil; Referências. 1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS SOBRE A INEFICÁCIA E CRISE DE LEGITIMIDADE DO SISTEMA PENAL. Como bem ressalta Gonçalves (2012, p. 23): O homem é um ente social e gregário. [...] Entre as necessidades humanas mais profundas está a do convívio social, a de estabelecer relações com outros homens, com as mais diversas finalidades e os mais variados graus de inten- sidade (GONÇALVES, 2012, p. 23).
  • 261. 261 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Com efeito, é inerente ao ser humano um caráter de socialização essencial à espécie. Estado e Di- reito, portanto, surgem com o objetivo de controlar a vida em sociedade, de forma a sustentar as relações interpessoais. Ocorre que as primeiras experiências humanas pautadas em regras de convivência foram in- troduzida pelo famigerado “Direito Penal do Terror”, assim denominado por ter sido marcado pela “vingança privada”, caracterizada fortemente pelo arbítrio, o autoritarismo e o punitivismo. Nesse contexto, o conflito já nascia sendo interpretado de forma negativa: “A vingança e a pena, confundindo-se uma com a outra, redu- zia-se a um ferimento tal que bastasse para ressarcir a vítima ou seus amigos, ou a dor causada ao ofendido” (LOMBROSO, 2007, p. 91). A partir do fracasso dessa lógica, há a necessidade de analisar os conflitos criminalizados à luz da Criminologia Crítica, pautada na questão dos direitos humanos e na importância de se encontrar alternati- vas viáveis à justiça meramente retributiva, tão retrógrada e falha. Como possibilidade de mudança, surge a Justiça Restaurativa, definida por Howard Zehr (2012, p. 49.) como Um processo para envolver, tanto quanto possível, todos aqueles que têm in- teresse em determinada ofensa, num processo que coletivamente identifica e trata os danos, necessidades e obrigações decorrentes da ofensa, a fim de promover o restabelecimento das pessoas e endireitar as coisas, na medida do possível. É justamente diante da possibilidade restaurativa, ou através de “lentes restaurativas” (ZEHR, 2008), que se pretende, nesse primeiro momento, denunciar a ineficácia e a crise de eficiência do modelo tradi- cional de justiça criminal. Dentre as mais diversas e possíveis críticas ao sistema penal, entretanto, e já em vista da temática central do presente artigo, dar-se-á destaque à apropriação dos conflitos pelo Estado e ao consequente negligenciar da vítima no curso dos processes penais contemporâneos. 1.1 O “ROUBO” DOS CONFLITOS PELO ESTADO E A NECESSIDADE DE DEVOLUÇÃO DESTES ÀS PARTES DIRETAMENTE ENVOLVIDAS. Seguindo a linha de pensamento de Christie (1977), é indispensável enquadrar os conflitos como benéficos para toda e qualquer comunidade que deseje desconstruir, amadurecer e se fazer renovável. La- mentavelmente, porém, a existência destes é normalmente “sufocada” pelo Estado, o qual concede certo monopólio de controle aos professional thieves (CHRISTIE, 2004), profissionais especializados em se apro- priar dos conflitos pertencentes às partes diretamente atingidas por eles. Com efeito, advogados, promotores, juízes, dentre outros profissionais da “Justiça”, são treinados para “roubar” os conflitos dos jurisdicionados e “resolvê-los” (na verdade, “decidi-los”) num ritmo e segundo ritos e regras típicas de uma lógica amarra- da à busca por soluções-padrão e impessoais. Impende destacar, entretanto, que enquanto os profissionais decidem o que é relevante e pertinente, a vítima e o ofensor são distanciados do – ou silenciados no – seu próprio caso, de modo que essas partes normalmente não experimentam um senso de “justiça procedimen- tal” (TYLER, 1990). Por outro lado, a comunidade em nada contribui para o – e nada leva do – processo de resolução daquele conflito. Em compatibilidade com essa lógica fria e automatizada, o crime, qualquer que seja ele, ao invés de representar uma ofensa contra indivíduos, é tradicionalmente (e muito abstratamente) concebido como uma infração cometida contra o Estado (ROSENBLATT, 2015). A “justiça”, então, é “terceirizada” ao profissional, representante do Estado, que raciocina em termos de fato típico, antijurídico e culpável, pouco importando as subjetividades que circundam o caso. Temos por consequência, e no dia-a-dia dos fóruns criminais, a busca por uma ideia abstrata de “justiça vertical”, aquela que se utiliza da punição para manter o status quo, qualquer que seja ele. Ocorre que, como bem destacado por Zehr (2012, p. 47), “[a] justiça deve reconhecer tanto nossa condição de interconexão quanto a nossa individualidade. O valor da particularidade nos adverte que o contexto, a cultura e a personalidade são fatores importantes que devem ser respeitados”. Nesse ínte- rim, a Justiça Restaurativa, diferentemente do modelo tradicional de justiça criminal, busca envolver todos aqueles que tenham interesse no conflito, buscando como principal desfecho a reparação dos danos advindos
  • 262. 262 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. do crime. Desse modo, trata-se de um modelo de justiça “horizontal”, onde os conflitos são “devolvidos” às partes diretamente afetadas por ele. 1.2 DO ESQUECIMENTO AO INDISPENSÁVEL PROTAGONISMO DA VÍTIMA NO PROCESSO PENAL. A total “despersonalização” do processo penal causa, dentre outros fracassos e frustrações, o fenôme- no da “vitimização secundária”. Ou seja, no que a vítima perde seu papel de protagonista dentro do processo penal, ela sofre duas vezes: pela agressão que lhe foi dirigida (quer dizer, pelo crime sofrido) e pelo confisco de “seu” conflito pelo Estado (ROSENBLATT, 2015). Segundo Zehr (2012, p. 25), Não raro as vítimas se sentem ignoradas, negligenciadas ou até agredidas pelo processo penal. Isto acontece devido à definição jurídica do crime, que não inclui a vítima. O crime é definido como ato cometido contra o Estado, e por isso o Estado toma o lugar da vítima no processo. No entanto, em geral as vítimas têm uma série de necessidades a serem atendidas pelo processo judicial. Com efeito, nos processos penais contemporâneos, altamente profissionalizados, a vítima é geral- mente tratada como uma mera “testemunha”, não como o “ator” central do drama entre ela e o “ofensor” (CHRISTIE, 2010). Assim, enquanto se brada fazer “justiça” em nome da vítima, suas vontades e necessida- des, na verdade, são corriqueiramente negligenciadas. Como ensina Pallamolla (2008, p. 4), tendo como uma das suas inspirações o movimento vitimológico contemporâneo iniciado nos anos 80, “a justiça restaurativa surge como uma resposta à pequena atenção dada às vítimas no processo penal”. Com efeito, a Justiça Restaurativa valoriza no processo de resolução de conflitos a interação entre vítima e agressor, pois considera que, a partir do diálogo, os sentimentos indivi- duais são expostos e debatidos – e, assim, os danos provocados pelo crime, esclarecidos e enfrentados. E por promover o diálogo entre as partes diretamente afetadas pelo conflito criminalizado, trata-se de um modelo de justiça espontaneamente mais atento às necessidades das vítimas. Nas palavras de De Vitto (2005, p. 48), A Justiça Restaurativa representa um novo paradigma aplicado ao processo penal, que busca intervir de forma efetiva no conflito que é exteriorizado pelo crime, e restaurar as relações que foram abaladas a partir desse evento. As- sim, e desde que seja adequadamente monitorada essa intervenção, o mode- lo traduz possibilidade real de inclusão da vítima no processo penal sem abalo do sistema de proteção aos direitos humanos construído historicamente. Com efeito, no processo restaurativo, o objetivo de reconduzir a vítima a um papel que um dia lhe foi retirado é o de conhecer e tornar evidente qual foi o dano e como é possível a sua reparação. Nesse pro- cesso, as vítimas são empoderadas através da valorização de sua contribuição e participação na definição de necessidades e resultados ou decisões (ZEHR, 2012, p. 79). Ademais, para a Justiça Restaurativa, além da chamada vítima primária, que é a mais atingida pela ofensa, seus familiares, testemunhas e a comunidade em geral também sofrem e devem ser incluídas no processo de resolução do conflito. O crime, como sugerido acima, é tido como um ato praticado contra indivíduos – e não abstratamente concebido como um atentado contra o Estado. O Estado, portanto, deve investigar os fatos, mas não é enquadrado como vítima, apenas um mero facilitador. Para que a vítima se sinta parte integral do processo, ela precisa ter acesso a informações judiciais de forma clara e objetiva. Sua narrativa da história deve ser considerada como elemento essencial, de forma que haja uma reflexão terapêutica do ato sofrido. A questão do empoderamento, porém, é ainda mais importante, pois
  • 263. 263 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Em geral as vítimas sentem que a ofensa sofrida privou-lhes do controle so- bre sua propriedade, seu corpo, suas emoções, seus sonhos. Envolver-se com o processo judicial e suas várias fases pode ser uma forma significativa de devolver um senso de poder às vítimas (ZEHR, 2012, p. 26). É óbvio que a ampliação do poder das vítimas associada ao poder estatal pode resultar em uma socie- dade ainda mais punitiva (CHRISTIE, 2010, p. 118), o que seria incompatível com a índole crítica – e, até, abolicionista (ACHUTTI, 2014) – da Justiça Restaurativa. Como esclarecido por Christie (2010, p. 118), é importante destacar que A diferença essencial entre os encontros de resolução alternativa de conflitos e os nas cortes penais é a questão do poder de punir. Punição significa trans- ferir dor, intencionalmente como dor. Em encontros de justiça restaurativa não estamos querendo criar dor, mas criar entendimento. Sem espada [refe- rência ao símbolo da Justiça no Direito], e consequentemente sem necessi- dade de prevenir o abuso da espada. Com efeito, o processo restaurativo [...] atravessa a superficialidade e mergulha fundo no conflito, enfatizando as subjetividades envolvidas, superando o modelo retributivo, em que o Es- tado figura, com seu monopólio penal exclusivo, como a encarnação de uma divindade vingativa sempre pronta a retribuir o mal com outro mal (PINTO, 2005, p. 21). Mas seria o modelo restaurativo indicado aos casos de violência doméstica? Antes de problematizar essa questão e ensaiar caminhos para uma possível resposta, é importante compreender a ineficácia do sis- tema penal em relação especificamente aos casos de violência doméstica no Brasil. 2. O CASO ESPECÍFICO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL. Para falar sobre violência doméstica no Brasil e, principalmente, sobre o tratamento legal (em es- pecial, penal) dado a esse tipo de conflito em nosso País, é necessário lembrar alguns aspectos em torno do movimento feminista brasileiro, peculiarmente diferente em relação ao tempo e às interações sociais com outros movimentos sociais se comparado com os movimentos feministas da América do Norte e da Europa (CAMPOS; CARVALHO, 2006). No Brasil, o movimento feminista surgiu na década de 70, mas não se estabeleceu tão radical como os movimentos de mulheres de outros países. Ele seguiu, aqui, uma agenda política compatível com outros movimentos, representando, muitas vezes, uma junção de ideias ou, de fato, lutas semelhantes em comuni- cação (CAMPOS; CARVALHO, 2006). Muito embora não se possa falar de um feminismo apenas1 , dentre às suas associações, o movimento feminista brasileiro, de um modo geral, aliou-se à sede por “justiça” própria dos movimentos em prol do recrudescimento do Direito Penal. Quer dizer, a luta pelo respeito aos direitos constitucionais das mulheres quase sempre passou, em nosso País, pela ideia de mais Direito Penal, mais polícia, mais punição e mais prisão. Várias críticas foram tecidas a essas correntes do movimento feminista por se associarem a um mal (o Sistema de Justiça Criminal) como forma de expurgar outros males (dentre eles, a violência doméstica). Para Andrade (1999), por exemplo, enquanto as mesmas mulheres, tão progressistas, lutavam também por uma maior intervenção penal em determinadas áreas (dentre elas, a da violência doméstica), existia, ali, um caráter ambíguo em sua busca por maior liberdade, reconhecimento e proteção. Com efeito, a sua força reivindicatória e o seu caráter libertário, quando unidos com um movimento tão retrógrado como o penal, 1  De fato, deveria se falar em diferentes correntes ou em diferentes feminismos brasileiros (ANDRADE, 1999).
  • 264. 264 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. acabaram por se converter na revitimização das mulheres que recorrem à polícia e acabam por conhecer, muitas contra a sua vontade, as Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Mas por que retrógrado e por que dizer que a busca por proteção não deveria ser feita pelo âmbito do sistema penal? Nas palavras de Andrade (1999, p. 112-113): Isto se trata de um subsistema de controle social, seletivo e desigual, tanto de homens quanto de mulheres e porque é, ele próprio, um sistema de violência institucional, que exerce seu impacto também sobre as vítimas. E, ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de controle social (Lei, polícia, Ministério Público, Justiça, prisão), que representa, por sua vez, a culminação de um processo de controle que certamente inicia na família, o sistema penal duplica, em vez de proteger, a vitimização feminina. No âmbito da violência doméstica contra a mulher, e ignorando esse alerta, surge a Lei Maria da Pe- nha, festejada justamente pelo enrijecimento penal que promove. 2.1 O SURGIMENTO DA LEI MARIA DA PENHA. A Lei 11.340/2006, mais conhecida pela alcunha de “Lei Maria da Penha”, surgiu num momento histórico de clamor público incitado pela mídia, e representou, politicamente, uma ação de cunho eleitoreiro em resposta àquele clamor. Mas não foi esta Lei a primeira tentativa de resposta ao problema da violência contra a mulher. Num passeio muito rápido pela história, e já na década de 80, merece destaque a consolidação das chamadas “Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher”, as quais surgiram em resposta àquelas pressões feministas da década de 70. Já naquela época, percebeu-se que as mulheres passaram a buscar es- sas delegacias, não para criminalizar o seu companheiro, mas para criar um ambiente no qual o seu agressor fosse intimidado. Uma forma de coação informal ou até de mediação (MELLO, 2015). Na década de 90, a criação dos Juizados Especiais pela Lei 9099/95 abarcou um grande número de crimes, definidos como sendo de menor potencial ofensivo. O imenso número de casos evidenciados, a partir destes Juizados, de mulheres que sofriam algum tipo de violência, serviu para descortinar algo que antes en- contrava-se mantido dentro dos lares por uma sociedade extremamente patriarcal: a violência praticada pelos companheiros, pais, pelo homem contra a mulher (MELLO, 2015). Contudo, conforme destacado alhures, [...] por mais que os JECrims tenham implicado no desvelamento da violên- cia doméstica, tal fato não foi capaz de minimizá-la ou de encontrar outras formas de tratamento preventivo ou repressivo [...]. A substituição das Penas Privativas de Liberdade por Penas Restritivas de Direitos (na maioria das ve- zes, penas de multa e pagamento de cestas básicas) foi vista por muitos como uma banalização da violência de gênero. E também foi criticado o fato de o conceito de Crime de Menor Potencial Ofensivo não compreender as particu- laridades da violência doméstica (BARBOSA et al., 2015, p. 4). A impossibilidade de visualização das nuances da violência doméstica e consequentemente uma so- lução para o conflito, conjuntamente com a pressão política, acabara por fazer com que o Governo tomasse uma atitude: a criação da Lei Maria da Penha. Tendo sido muito bem recebida por tratar-se de uma lei de caráter protecionista (pela facilidade no acesso à justiça e a possibilidade da aplicação de medidas protetivas), a Lei Maria da Penha trouxe maior enrijecimento penal. Os processos que antes se encontravam na jurisdição dos Juizados Especiais Criminais foram destes retirados, sendo “escanteadas” as medidas despenalizadoras e entrando em seu lugar penas mais rígidas abstratamente.
  • 265. 265 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 2.2 A PERSISTÊNCIA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, A REVITIMIZAÇÃO SECUNDÁRIA E A (IN)EFICÁCIA DA LEI 11.340/2006. Em quase uma década de Lei Maria da Penha, a violência doméstica contra a mulher continua la- tente. Quer dizer, mesmo com as medidas adotadas a pedido de movimentos sociais, principalmente segui- mentos do movimento feminista, este tipo de violência continua a ser um grande problema no Brasil. Com efeito, uma das primeiras cidades a criar o Juizado da Mulher, a cidade do Recife, que hoje sedia duas Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (VVDFM), serve para mostrar três problemas: a violência persiste; existe uma revitimização das mulheres que frequentam essas Varas; e a Lei Maria da Penha, para muitas, é ineficaz (MEDEIROS, 2015). Em pesquisa empírica concluída pela pesquisadora Medeiros (2015)2 naquela comarca, evidenciou- -se que a regra do cárcere necessário dentro das VVDFMs não respeita a vontade das mulheres enquanto age da forma mais agressiva possível. Ao contrário, ao longo do processo penal orquestrado pela Lei Maria da Penha, o que ocorre é o silenciamento quase por completo destas mulheres, as quais, ironicamente, procu- ram na Lei um lugar para ter sua voz ouvida, para encerrar o ciclo de violência, e recebem, em troca, mais violência contra aqueles que ama e, de fato, contra si mesmas. A forma como a Lei atua faz com que a mulher seja resumida à mera informante. Dentro da sala de audiência, um momento que deveria ser de fala e protagonismo, vemos o imperialismo de um Sistema que é guiado por fatos típicos e sua adequação a um artigo específico do Código Penal. As pessoas que ali estão, suas vidas e singularidades são subsumidas e suas vozes roubadas. Mulheres que procuram apenas o cessar da violência acabam por deparar-se com uma triste realidade: seu companheiro de anos, muitas vezes de décadas, será preso provisoriamente por uma injúria ou uma ameaça (BARBOSA et al., 2015; MEDEIROS, 2015; MELLO, 2015). Partem então, estas mesmas mulheres, em busca da liberdade daquele que lhe agrediu. Dentro das Varas são tidas como loucas, tratadas como irracionais por não entenderem o “bem” que lhes foi feito. São, em outras palavras, revitimizadas. Sofrem pela violência e pelas perdas promovidas pelo processo penal, além das consequências sociais. Com efeito, muitas são economicamente dependentes daquele homem que foi preso inteira ou parcialmente. Sua renda é baixa e existem filhos para criar. O Sistema de Justiça Criminal cria, então, um problema maior que o antes existente (BARBOSA et al., 2015; MEDEIROS, 2015; MELLO, 2015). Corroborando com o exposto, Barbosa et al. (2015) afirma que: O Sistema Penal foi criado em uma lógica que trabalha com delitos que en- volvem partes que pouco se conhecem (ou nem se conhecem) e lida com tais delitos de forma objetiva, pragmática. Entretanto a violência doméstica foge completamente a essa lógica. Trata-se de um crime que envolve, em sua maioria (73,7%), pessoas que já foram ou ainda são parceiros íntimos e que, por sua vez, possuem um forte laço afetivo, com o qual o Sistema Penal não está preparado para trabalhar. E ainda, dos homens e mulheres que tiveram um relacionamento íntimo, 64% deles tiveram filhos; o que só tende a au- mentar a ligação afetiva entre vítima e suposto agressor. Nesse contexto, as mulheres, em grande parte, procuram a Justiça como forma de obter as medidas protetivas de urgência, sendo que o Sistema de Justiça Criminal, engessado pelo seu ímpeto encarcerador, atrela as medidas protetivas à existência de uma ação penal, ignorando o fato de que a vontade das mulheres, no mais das vezes, não é de continuar essa ação e sim encerrá-la.3 2  Um dos co-autores do presente artigo, o pesquisador João André da Silva Neto, participou ativamente da referida pesquisa, contribuindo para a coleta e a análise dos dados empíricos aqui comentados. 3  A pesquisa de campo realizada por Barbosa et al. (2015) evidencia que 43,5% dos processos observados foram extintos sem resolução do mérito por motivos diretamente relacionados à vontade da mulher: 29,8% por retratação; 10,1% por decadência; 2,4
  • 266. 266 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Mostra-se a Lei, então, ineficaz para o que se propõe. Aliás, atinge, a Lei, um efeito contrário: por temer as reações do Sistema de Justiça Criminal, muitas mulheres acabam por não comunicar a existência das agressões, sendo a Lei, que veio para proteger, na verdade, um dos fatores de perpetuação da violência. 2.3 A AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4424 E MAIS UM “ROUBO” DE CONFLITOS PELO ESTADO. Mesmo diante de todos esses fatores, o Legislador não tem recuado e muito menos o Judiciário. A política criminal encarceradora continua a ser praticada e, no caso específico da Lei 11.340/2006, sem ne- nhum tipo de estudo de impacto – e apesar dos estudos empíricos já publicados e debatidos no âmbito aca- dêmico-científico. Não bastasse esta atuação desmedida, a mulher, que já não tem vez e voz, foi mais uma vez silencia- da com o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4424 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Com efeito, o entendimento do STF, ao julgar a ADI 4424, chancela a apropriação pelo Estado de um “conflito” pertencente às partes, vez que retira da mulher a decisão sobre representar ou não representar nos casos de lesão corporal leve. De fato, na medida em que a ação penal deixa de ser pública condicionada e passa a ser pública incondicionada, nos casos de lesão corporal leve praticada no âmbito da Lei Maria da Penha, ao invés de empoderada, a mulher acaba como escrava da sua vontade de revelar a violência sofrida às autoridades. 3. A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO ALTERNATIVA AOS CONFLITOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. A questão motivadora do presente artigo é se a Justiça Restaurativa, enquanto processo que tem como fim o entendimento e não o “gerar dor” (CHRISTIE, 2010), se configura como alternativa de resolu- ção do conflito de violência doméstica – como visto acima, um conflito tão peculiar, marcado pela afetividade entre o agressor e a vítima. Como argumenta Christie, “quanto mais próximos estamos do outro, mais hesitamos em querer, in- tencionalmente, deixar o outro sofrer” (CHRISTIE, 2010, p. 120). O desejo da maioria das mulheres vítimas de violência doméstica de não punir seus agressores, entretanto, não implica no fato de que essas mulheres não querem que seus agressores assumam a responsabilidade pelo dano que causaram e, consequentemente, trabalhem formas de reparar esse dano e de desistir do seu comportamento violento. Mas será que é possível garantir à mulher o “direito ao conflito” em casos de violência doméstica, geralmente marcados pela “de- sigualdade de poder”? Seria o uso da Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica uma saída sim- plesmente ineficaz e que ainda pode a revitimizar? Por enquanto, enquanto engatinhamos no tema aqui no Brasil, o que podemos fazer, em termos empíricos, é observar a experiência que vem de fora do País. 3.1 A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL. Em agosto de 2014, a Convenção de Istambul4 entrou em vigor na Europa, proibindo a imposição de modos de resolução alternativa de conflitos em casos que envolvem violência doméstica (DROST et al., 2015), assim como havia sido recomendado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 2009.5 O que se proibiu, portanto, não foi a utilização voluntária (quer dizer, não imposta às partes) de práticas restaurativas em casos de violência doméstica, mas a imposição do processo restaurativo nesses casos. Dessa proibição, entretanto, podemos extrair um certo pessimismo na utilização da justiça restaurativa nos casos de violência doméstica, na medida em que foi dado destaque aos potenciais riscos em torno da empreitada restaurativa, como a possibilidade de manipulação do processo pelo infrator e consequente sobrevitimização da vítima, % por renúncia ao direito de queixa ou perdão; e 1,2% por perempção. 4  Istanbul Convention ou Council of Europe Convention on Preventing and Combating Violence against Women and Domestic Violence. 5  No ano de 2009, a ONU publicou, no Handbook for Legislation on Violence against Women, a recomendação de proibição de mediação em todos os casos de violência contra a mulher, tanto antes como durante processos penais.
  • 267. 267 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. nesses que são conflitos tipicamente marcados pelo desequilíbrio de poder entre as partes. Apesar desta apa- rente “rejeição”, existem inúmeras experiências de aplicação (voluntária) da Justiça Restaurativa em casos de violências doméstica em países europeus, a exemplo da Áustria, Dinamarca, Finlândia, Grécia, Holanda e Reino Unido, as quais foram comparadas em estudo recente, financiado pela Comissão Europeia (DROST et al., 2015, p. 7). Nestes países, a Justiça Restaurativa pode ser observada em todas as fases do processo criminal (DROST et al., 2015, p. 19), entretanto, em alguns países, existem critérios específicos de elegibilidade para aplicação da Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica. Na Grécia, por exemplo, a mediação vítima-ofensor é possível apenas nos casos de violência doméstica que envolvam contravenções, ameaça, insulto ou coerção. Além disso, alguns pressupostos são necessários como a “palavra de honra” do ofensor de não mais praticar violência doméstica; a saída do ofensor da residência da vítima quando a mesma desejar; a compensação do ofensor à vítima; e a participação do ofensor em programa psicoterapêutico (DROST et al., 2015). O serviço de mediação para casos de violência doméstica da Áustria, conhecido como Neustart, tem um método diferente para a realização de encontros restaurativos. O Neustart trabalha, por ano, com mais de 1200 casos envolvendo violência doméstica (DROST et al, 2015, p. 21). Quanto à condução do encontro restaurativo, primeiramente, o ofensor e a vítima são entrevistados separadamente a fim de se analisar se o encontro é um meio apropriado, assim como para preparar a mediação vítima-ofensor. Daí o primeiro mo- mento ser chamado de “trabalhando em dois times”. Posteriormente, num segundo momento, são realizados encontros com a vítima e o ofensor ao mesmo tempo, mas em diferentes salas. Logo depois, há a sessão de mediação com a presença das partes envolvidas. Os mediadores contam o que ouviram para cada um – o que é chamado de “espelho de histórias” – para somente depois as partes poderem comentar, corrigir e modificar o que ouviram (DROST et al, 2015, p. 23). Ainda na Áustria, as mediações são aplicadas a casos envolvendo violência doméstica desde o começo dos anos 90. No ano de 1999, pesquisas qualitativas demonstraram o potencial dessas “resoluções” no pro- cesso de empoderamento das vítimas. Em estudo realizado dez anos depois, por meio da aplicação de ques- tionários, da observação de sessões de mediação e de entrevistas, os resultados foram de que 83% das vítimas de violência doméstica não reportaram mais violência – e para 80% dessas mulheres, a violência cessou por causa das mediações. Outrossim, para 40% das mulheres que continuaram o relacionamento ou que ainda estavam em contato com o ofensor e não tiveram experiências violentas novamente, os parceiros mudaram de comportamento como resultado da mediação (LOSEBY; NTZIADIMA; GAVRIELIDES, 2014). Nos países analisados pelo estudo comparado, o modelo de prática restaurativa mais utilizado em casos de violência doméstica é a mediação vítima-ofensor. (DROST et al, 2015, p. 21). É importante ressal- tar que em todos os países analisados, o consentimento da vítima é pré-condição do processo restaurativo e a saída da mesma pode ocorrer a qualquer momento do processo (DROST et al, 2015, p. 20). Em todos os países analisados na pesquisa, com exceção da Grécia, o ofensor e a vítima podem, como regra geral, levar pessoas de sua confiança para acompanhá-los e desempenharem um papel de “suporte” durante a mediação vítima-ofensor (DROST et al, 2015, p. 24). Na maioria dos países, a consequência do encontro restaurativo é uma espécie de acordo entre as partes – que podem ou não decidir manter o relacionamento. Os acordos nos casos de violência doméstica geralmente consistem na busca de ajuda e terapia para o comportamento violento do agressor e/ou para o seu envolvimento com o álcool, mas a maioria dos acordos tem por foco principal o comportamento do agressor no futuro (DROST et al, 2015, p. 25). Na Áustria e na Grécia, o sucesso do desenvolvimento do encontro restaurativo pode culminar na desistência da persecução criminal. Na Holanda e na Finlândia, o resultado do encontro restaurativo pode ocasionar o fim do caso ou ser considerado, pelo juiz, no momento da sentença. Já na Dinamarca, a media- ção vítima-ofensor não se configura como alternativa à punição. No Reino Unido, após a realização – com sucesso – do encontro restaurativo, o juiz receberá um relatório e poderá aplicar uma sentença mais leniente (DROST et al, 2015, p. 20).
  • 268. 268 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 3.2 SOBRE ALGUNS RISCOS DA APOSTA RESTAURATIVA. Conforme já afirmamos alhures (ROSENBLATT; MELLO, 2015, p. 107), ao buscar a reparação de danos e de relacionamentos, um dos riscos atribuídos à Justiça Restaurativa é de que ela pode acabar forçan- do uma reconciliação entre as partes. Isto é, enquanto o modelo tradicional de justiça criminal pode acabar forçando o rompimento da relação entre as partes, este modelo alternativo pode acabar tolhendo a vontade que algumas vítimas de violência doméstica têm de romper com o seu parceiro. De uma forma ou de outra, a mulher permaneceria silenciada no processo de resolução do seu próprio conflito – quer dizer, o conflito permaneceria “roubado”. É importante salientar, entretanto, que a Justiça Restaurativa não se confunde com a mediação nem tem como objetivo principal o perdão ou a reconciliação (ZEHR, 2012). No caso específico de conflitos de vio- lência doméstica, elementos típicos da mediação como o conceito de “culpa compartilhada” e a “linguagem neutra” não são adequados, uma vez que as vítimas podem se sentir insultadas (ZEHR, 2008). Com efeito, a Justiça Restaurativa não busca um retorno à vingança privada, mas também não tem como foco o perdão incondicional: De fato, algum grau de perdão, ou mesmo reconciliação, realmente ocorre com mais frequência do que no ambiente litigioso do processo penal. Con- tudo, esta é uma escolha que fica totalmente a cargo dos participantes. Não deve haver pressão alguma no sentido de perdoar ou de buscar reconciliação (ZEHR, 2012, p. 18). Destaca-se, outrossim, que os que defendem a não aplicação da mediação vítima-ofensor em casos de violência doméstica comumente desconsideram a “lógica” do sistema tradicional de justiça criminal – que tem a punição como fim e não se preocupa com os desejos/necessidades da vítima. Ocorre que, nos debates sobre Justiça Restaurativa e Violência Doméstica, não se pode ignorar o fracasso do sistema de justiça cri- minal na satisfação das necessidades das vítimas de crimes. Por outro lado, é importante destacar (e, claro, melhor avaliar) os dados empíricos coletados em outros países, os quais, como se viu acima, sugerem um otimismo das vítimas de violência doméstica em relação à sua experiência restaurativa. Os céticos da aplicação da Justiça Restaurativa para casos de violência doméstica também normal- mente ignoram a distinção entre as vítimas de “terrorismo doméstico” (intimate terrorism) e as de situações esporádicas e isoladas de violência entre o casal (situational couple violence). É evidente que a aplicação da Justiça Restaurativa nos casos de “terrorismo doméstico” – nos quais a vítima vive permanentemente com medo e sofre reiterados atos de violência combinados com o “exercício” de poder e controle – é bastante pro- blemática, além de perigosa (DROST et al, 2015, p. 9). Mas será que os casos de situational couple violence merecem as mesmas preocupações? Ademais, inclusive os favoráveis à aplicação da Justiça Restaurativa em casos de violência doméstica que envolvam traumas graves destacam a necessidade de imposição de “bar- reiras protetoras” em prol da segurança das vítimas, a qual deve ser prioritária no processo: a participação voluntária da vítima, assim como a possibilidade de desistência do processo a qualquer momento; o benefício de serviços de apoio às vítimas antes, durante e depois do processo; o reconhecimento da responsabilidade do agressor; e a formação apropriada dos facilitadores para a “administração do conflito” em questão (JAC- COUD, 2005, p. 175). 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O USO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA EM CASOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A SUA OPERACIONALIZAÇÃO NO BRASIL. O Projeto de Lei Nº 7006 que prevê a implementação de procedimentos da Justiça Restaurativa no Sistema de Justiça Criminal brasileiro está em tramitação na Câmara nos Deputados desde 2006. Se, por um lado, esse projeto de lei representa a inércia política do movimento restaurativo brasileiro, de outro, o Con-
  • 269. 269 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. selho Nacional de Justiça vem demonstrando bastante entusiasmo quanto à (tentativa de) operacionalização da Justiça Restaurativa no Brasil (ROSENBLATT; MELLO, 2015). Por óbvio, a implementação da Justiça Restaurativa no Brasil não pode consistir em uma mera “im- portação” de práticas para uma realidade, a nossa, tão violenta, punitivista e marcada pela desconfiança da população em relação às instituições do Sistema de Justiça Criminal (ROSENBLATT; FERNÁNDEZ, 2015). Além da necessidade de uma “latinização” da justiça restaurativa (ROSENBLATT; FERNÁNDEZ, 2015), este processo de operacionalização inspira cuidados quanto aos perigos da aplicação de práticas restaurati- vas no âmbito dos mais diversos crimes, inclusive nos casos de violência doméstica contra a mulher. Preci- samos nos perguntar sobre as potencialidades e os riscos de se aplicar a Justiça Restaurativa aos conflitos domésticos, mas também precisamos explorar os riscos da sua não aplicação. Nesse ínterim, mais uma vez, a experiência estrangeira destacada deve servir de fonte de inspiração. Entretanto, ainda mais no ano que a Lei Maria da Penha completa 10 anos, sem atingir os fins pelos quais foi criada, é importante iniciarmos um debate nacional mais detalhado e aplicado à realidade brasileira acerca da possibilidade restaurativa para os casos de violência doméstica contra a mulher. Este, portanto, foi apenas um ensaio para lançar um tema que ainda não foi entusiasticamente abraçado no nosso País. REFERÊNCIAS ACHUTTI, Daniel. Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal: contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil. São Paulo: Saraiva, 2014. ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Criminologia e feminismo. In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Cri- minologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999. BARBOSA, Iricherlly Dayane da Costa Barbosa; SILVA NETO, João André da; MELO, Luíza Azevedo de; e MELLO, Marília Montenegro Pessoa de. Marias que não são “Da Penha”: uma análise crítica do en- frentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher pelo sistema de justiça criminal [Artigo não publicado]. 2015. CAMPOS, Carmen Hein de; CARVALHO, Salo de. Violência doméstica e Juizados Especiais Criminais: análise a partir do feminismo e do garantismo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 14, n. 2, p. 409-422, mai./ago., 2006. CHRISTIE, Nils. Conflicts as Property. British Journal of Criminology, v. 17, n. 1, p. 1–15, 1977. CHRISTIE, Nils. A suitable amount of crime. New York: Routledge, 2004. CHRISTIE, Nils. Victim movements at a crossroad. Punishment and Society, v. 12, n. 2, p. 115-122, 2010. DE VITTO, Renato Campos Pinto. Justiça Criminal, Justiça Restaurativa e Direitos Humanos. In: Catherine Slakmon; Renato Campos Pinto De Vitto; Renato Sócrates Gomes Pinto (Orgs.). Justiça Res- taurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005. DROST, Lisanne; HALLER, Birgitt; HOFINGER, Veronika; KOOIJ, Tinka van der; LüNNEMANN, Katinka; WOLTHUIS, Annemieke. Restorative Justice in Cases of Domestic Violence: best practice exam- ples between increasing mutual understanding and awareness of specific protection needs. Utrecht: Ver- wey-Jonker Instituut, 2015. PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é Possível no Brasil? In: Catherine Slakmon; Renato Campos Pinto De Vitto; Renato Sócrates Gomes Pinto (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, 2005, p. 19-39.
  • 270. 270 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. GONÇALVES, Marcus Vinicius Rios. Novo curso de direito processual civil: teoria geral e processo de conhecimento. v. 1. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. JACCOUD, Mylène. In: Catherine Slakmon; Renato Campos Pinto De Vitto; Renato Sócrates Gomes Pinto (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desen- volvimento – PNUD, 2005, p. 163-186. LOMBROSO, Cesare, 1885-1909. O homem delinquente. Trad. Sebastião José Roque. São Paulo: Ícone, 2007. LOSEBY, Grace; NTZIADIMA, Andriana; GAVRIELIDES, Theo. Restorative Justice and Domestic Vio- lence: A Critical Review. Londres: IARS Publications, 2014. MEDEIROS, Carolina Salazar L’Armée Queiroga de. Reflexões sobre o Punitivismo da Lei “Maria Da Penha” com base em Pesquisa Empírica numa Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do Recife. Dissertação de Mestrado. Universidade Católica de Pernambuco. Recife, 2015. MELLO, Marília Montenegro Pessoa de. Lei Maria da Penha: uma análise criminológico-crítica. Rio de Janeiro: Revan, 2015. PALLAMOLLA, Raffaella da Porciúncula. A Justiça Restaurativa da teoria à prática: relações com o sistema da Justiça criminal e implementação no Brasil. Dissertação de Mestrado. PUC do Rio Gran- de do Sul. Porto Alegre, 2008. PIEDADE JÚNIOR, Heitor. Vitimologia: evolução no tempo e no espaço. Rio de Janeiro: Maanaim, 2007. ROSENBLATT, Fernanda Fonseca. Uma Saída Restaurativa ao Processo de Vitimização Secundária. In: Wanderley Rebello Filho; Heitor Piedade Junior; Ester Kosovski. (Orgs.). Vitimologia na Contemporanei- dade. Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015, p. 84-96. ROSENBLATT, Fernanda Fonseca; BOLÍVAR FERNÁNDEZ, Daniela. Paving the way toward a ‘Latin’ resto- rative justice. Restorative Justice, v. 3, p. 149-158, 2015. ROSENBLATT, Fernanda Fonseca; MELLO, Marília Montenegro Pessoa de. O uso da justiça restaurativa em casos de violência doméstica contra a mulher: potencialidades e riscos. In: Luciano Oliveira; Marilia Monten- gro Pessoa de Mello; Fernanda Fonseca Rosenblatt. (Orgs.). Para além do Código de Hamurábi: estudos sóciojurídicos. Recife: ALIDI, 2015, p. 95-110. TYLER, Tom R. Why People Obey the Law. New Haven: Yale University Press, 1990. ZEHR, Howard. Trocando as Lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008. ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa: Teoria e Prática. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • 271. 271 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A DESCRIMINALIZAÇÃO DO USO PESSOAL DE DROGAS EM DEBATE NO STF: UM PASSO RUMO À SUPERAÇÃO DA GUERRA ÀS DROGAS? Fernanda Thaynã Magalhães de Moraes Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco- UNICAP Laís Emanuella da Silva Lima Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco- UNICAP Maria Eduarda Moreira de Medeiros Bacharelanda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco- UNICAP SUMÁRIO: Introdução; 1. A política antidrogas no Brasil: a guerra às drogas; 2. A indistinção usuário x traficante de drogas; 3. Análise dos Votos relatados pelos Ministros: Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso; Considerações finais. INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo analisar os discursos proferidos até então pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal, em seus respectivos votos, no recurso extraordinário 635659, que discute a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. O recurso discute a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, Lei 11.343/2006, o qual, em seu texto atual, tipifica como crime o porte de drogas para uso próprio e penaliza a conduta com advertência, prestação de serviços à comunidade e compareci- mento à programa ou curso educativo. Até então, verificou-se que os votos tendem a problematizar a violação à liberdade, individualidade e a personalidade do indivíduo, afetando, também, os princípios da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade das penas, caracterizando uma conduta e impondo uma atuação autoritária e paternalista ao direito penal com relação a uma conduta que só atinge a esfera individual, não lesionando bem jurídico alheio, e desrespeitando direitos fundamentais previstos no artigo 5º da nossa Cons- tituição Federal, como o direito à intimidade e à vida privada. É válido ressaltar que, infelizmente, a liberdade, sendo condição humana essencial, é secundarizada e muitas vezes suprimida, acentuando um Estado de Polícia de supremacia de poder sobre as pessoas. A criminalização do uso de entorpecentes obedece a uma agenda de guerra às drogas, cujas principais conse- quências são uma maior estigmatização do usuário perante a sociedade e, por muitas vezes, também a sua efetiva prisão, enquadrando-o como traficante, já que não existe um critério objetivo para a distinção das duas condutas, ficando essa imputação – de uso ou tráfico - arbitrariamente sujeita a um entendimento sub- jetivo e seletivo do poder policial. Então, rediscutir a política de drogas é uma forma de enfrentar a questão da violência que assola o país desde a sua origem e restringir o atual sistema de repressão. Não obstante, fica claro observar a utopia da criminalização por meio da ineficácia das guerras às drogas, que se esconde ainda em um discurso sanitarista, mas sempre abusou do poder para impor o controle de populações específicas. Com isso, tomando como impulso o caso do cidadão Francisco Benedito da Silva que foi flagrado com três gramas de maconha para uso próprio, o STF discute a pauta da descriminalização com o objetivo de pôr fim à estigmatização e ao modelo proibicionista. Por fim, a análise terá como marco teórico a criminologia crítica
  • 272. 272 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. e a metodologia utilizada será o método indutivo por levantamento bibliográfico e análise dos votos dos minis- tros, bem como as legislações vigentes acerca do tema. 1. A POLÍTICA ANTIDROGAS NO BRASIL: A GUERRA ÀS DROGAS. Segundo a definição da Organização Mundial da Saúde droga é qualquer substância não produzida pelo organismo que tem a propriedade de atuar sobre um ou mais de seus sistemas, produzindo alterações em seu funcionamento. Drogas que alteram o funcionamento cerebral e causam modificações no estado mental e no psiquismo do indivíduo que faz uso são chamadas de psicoativas ou psicotrópicas, substâncias estas que têm a capacidade de provocar dependência. Também chamadas de substâncias entorpecentes, as drogas podem ser classificadas como lícitas, permitidas para consumo, como exemplo das bebidas alcoólicas e o cigarro de nicotina; ou ilícitas, aquelas que são criminalizadas e proibidas, como exemplo da maconha, cocaína e crack. A Lei 11. 343/2006 trata dos crimes relacionados às drogas, porém não define quais as substâncias são criminalizadas no Brasil, isso fica a cargo da ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) por meio da Portaria nº 344 de 1988 de listar todas as substâncias. E neste caso estamos diante de uma Lei Penal em Branco, pois somente a Lei 11.343/06 não seria capaz de criminalizar uma conduta por si só, precisando ser complementada por outra lei, nesse caso a Portaria nº 344/98. As drogas sempre existiram na sociedade e o homem sempre fez uso delas, seja de maneira natural como fumando a planta da maconha ou fazendo chás com outras ervas, seja misturando substâncias que proporcionavam um efeito diferente no seu organismo. Há notícias do uso de drogas pelo homem vem desde os primórdios da sociedade, quando achados arqueológicos e desenhos pré-históricos demonstraram que provavelmente o uso e consumo de substâncias psicoativas vem desde os primórdios da humanidade. Nem sempre a palavra droga foi sinônimo de guerra e violência, nem sempre ela foi tão estigmatizada e combatida como hoje em dia em que vivemos uma política criminal de guerra às drogas apoiado por um discurso médico-jurídico que traz o uso das drogas como uma patologia que precisa ser tratada, respaldada ainda num discurso sanitarista, e uma criminalidade que precisa ser sanada. “Droga vem do holandês Droog, que significa folha seca. A mesma começou sua história como remédio devido ao uso indiscriminado para fins recreativos, passou a ser considerada ilícita, principalmente quando saiu do âmbito médico, ganhando as ruas.” Essas proibições permeiam até hoje em nossa sociedade, mas em sua historicidade as drogas não tinham um peso moral, elas eram vistas em termos religiosos, culturais e filosóficos. O estereótipo do doente, o dependente, surge quando as drogas começam a ganhar um alto consumo entre os jovens da classe média e alta e não mais é visto como algo dos pobres, negros de periferia. Com isso surge a necessidade de separar quem fornece de quem consome, o usuário, agora de classe média-alta, se torna vítima e não mais delinquente e é preciso diferenciá-lo daquele que vende a droga, de quem trafica, geralmente o marginal, de classe mais baixa, no qual recai a responsabilidade. Até o final do século XIX não há muita preocupação em relação as drogas, mas é a partir do século XX que surgirão as primeiras leis criminalizando o uso de certas drogas, a posse ilícita de substância entor- pecente não era punida, logo mais passa a ser, e com o passar dos anos essas leis vão sendo expandidas para mais tipos de substâncias, aumentando também os verbos que compõe suas criminalizações e o tipo básico do tráfico começa a acumular núcleos (exemplo: “vender, ministrar, dar, trocar, ceder, ou de qualquer modo, proporcionar”). Já em meados do século XX, no fim da década de 60, após a criação da Organização das Nações Uni- das, surge, pela primeira vez, uma diretiva mundial de como lidar com a problemática das drogas. Conven- ções que buscavam um mundo livre das drogas. E o presidente Richard Nixon se tornou o exemplo mais claro desse tipo de política, no início do seu mandato declarou “guerra às drogas”. Nixon aumentou investimentos e tornou o combate às substâncias psicoativas prioridade para todo o aparato estatal, especialmente a polícia, declarando as drogas como “inimigo número um”. Essa política dos EUA refletiu em vários países, inclusive
  • 273. 273 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. no Brasil, onde a guerra às drogas se intensificou nos anos 80, quando o Brasil aparece como rota de tráfico para os EUA e a Europa. Nesse período traficantes instalaram-se nos morros, nas favelas e o Estado reagiu mandando soldados para atacarem e prenderem os traficantes. Com esse cenário instalado os conflitos se tor- nam cada vez mais recorrentes, causando mortes e preocupação para os que vivem no meio desse conflito ar- mado de ambos os lados. O mercado de tráfico de drogas expandiu e se consolidou fazendo com que o Estado se sentisse cada vez mais ameaçado e querendo reagir cada vez mais forte. Em 2006 surge a Lei 11.343-2006 que traz várias medidas voltadas as condutas relacionadas às drogas, e a clara distinção em relação as penas para traficante e usuário, porém, mesmo o usuário não tendo como pena a prisão, ele ainda é um sujeito que comete uma ação típica e precisa ser punido de forma diferente. O traficante se torna o inimigo, o culpado por todo esse caos causado e sentido pela sociedade, e que segundo Becker “é o indivíduo que vivendo em uma sociedade, comete o comportamento que segundo essa sociedade é tomado como desviado” (Outsiders, 1960), é o Outro que precisa levar a culpa, que pode ser julgado por valores estabelecidos por quem está no topo da sociedade. E pautado nessa certeza é que em 2007 o Rio de Janeiro vira palco de uma das maiores represen- tações da política de drogas no Brasil, a guerra às drogas toma proporções cada vez maiores, mais violentas. Favelas passam a ser invadidas constantemente, o número de vítimas só aumenta e o tráfico também. Criam- -se medidas cada vez mais extremas, através da GLO ( Garantia de Lei e Ordem) estabelecida em sua 1º edição pela Portaria nº 3416 de 2013, estabelece a permissão para as forças armadas, respaldadas sobre o objetivo de preservar a ordem pública, poderem invadir algum lugar suspeito e passar por cima até dos direi- tos constitucionais de cada cidadão, um estado de guerra declarado que só aconteceram dentro das favelas, principalmente do Rio de Janeiro, fazendo tantas vítimas por guerra em nome da paz, também chamadas de PPP’s , Programa de Polícia Pacificadora. 2. A INDISTINÇÃO USUÁRIO X TRAFICANTE DE DROGAS Como explanado anteriormente, a lei 11.343/06 fere a ideia de liberdade, proclamada pela Revolução Francesa e, hoje, assegurada constitucionalmente como direito fundamental. É imprescindível ressaltar que não só a liberdade individual é ferida como também o direito à privacidade e à intimidade, elementos funda- mentais para garantia da dignidade da pessoa humana. Então qual o real sentido da tão anunciada “guerra às drogas” pelo Estado “Democrático” brasileiro? Os legisladores que acreditam que esse modelo proibicionista aniquilará o consumo/produção de drogas estão completamente destoados de razão. As substancias alucinó- genas sempre existiram na natureza ou por criação química do homem e não possuem expectativa para seu fim. Mas uma coisa é certa: a lei alimenta o mercado ilegal, o medo e o crime. Para se ter ideia do poderio do tráfico de drogas, é sabido que, por ano, o crime organizado movimenta cerca de 750 bilhões de dólares, sendo 500 bilhões gerados pelo narcotráfico.1 E quem ocupa essa figura do narcotraficante? De acordo com o discurso estereotipado, divulgado pela mídia, este é um “criminoso orga- nizado, violento, poderoso e enriquecido através da circulação ilegal desta mercadoria, conhecida em nossa legislação como “entorpecente” e hoje, genericamente, como “droga”. (ZACCONE, 2007, p.01). A busca insanável por derrotar esse “inimigo” fez crescer na sociedade o sentimento de punição, aflorado com a falta de informação que engloba grande parte da população brasileira. Por conseguinte, a lei 11.343/06 aumentou o número de presos por tráfico de drogas; de 2003 a 2013 a população carcerária triplicou e a grande contribuinte para o real fato foi a margem apreciativa que os poli- ciais passaram a possuir para distinguir o usuário do traficante – seria redundante enunciar que milhares de usuários foram/estão presos. Segundo o Conselho Nacional de Justiça, a legalização das drogas ou a adoção de penas alternativas para o pequeno traficante poderia liberar até 25% das vagas em presídios para combater a superpopulação carcerária no país, que atualmente está em torno de 563 mil pessoas”2 . 1  ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: Quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro, Editora Revan, 2007. 2  LIMA, Helder. Fim da guerra às drogas poderia liberar 25% da população carcerária. Disponível em:http://www.redebrasilatual. com.br/cidadania/2015/06/fim-da-guerra-as-drogas-pode-liberar-25-da-populacao-carceraria-no-pais-2889.html Acessado em 26 de Janeiro de 2016.
  • 274. 274 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Bem, voltemos a discussão acerca da figura do narcotraficante. A seletividade punitiva engloba todo o sistema do Direito Penal sendo majorada pela busca da “eficiência”, ou “resposta ao crime” (prisões). É essa a ideação de Zaffaroni e Nilo Batista (2003, p. 43, apud Zaccone), quando concluem que “como a inati- vidade acarretaria o seu desaparecimento, elas seguem a regra de toda democracia e procedem à seleção”, ressaltando que esse poder de seleção corresponde, fundamentalmente às agências policiais. Posto isto, a veracidade dos fatos relata que os homens e mulheres que são presos por tráfico de drogas são pobres, com baixa escolaridade, detidos na maioria dos casos sem resistência, popularmente conhecidos como “aviõezi- nhos”. Essa política de seleção tem início com a ação da polícia que indiretamente delimita a faixa de atua- ção da Magistratura e do Ministério Público, responsáveis pelo processo e julgamento. De acordo com José Nabuco3 : É curioso observar como a figura do traficante é mitificada. A maior parte deles é varejista – pessoas excluídas socialmente, vítimas de um estado negligente. No entanto, a imagem do traficante, no imaginário, é a daquele sujeito com fuzil a tiracolo, quando não a caricatura do vendedor de pipocas que induz as crianças e os adolescentes a se viciarem. Um dos grandes problemas da política de segurança pública brasileira é o olhar concatenado aos ín- dices que são postos pela polícia. É um erro pensar que a criminalidade sofreu um impulso nos últimos anos, pois crime sempre existiu, mas a atuação da polícia se tornou mais repressiva e os números são exemplos dis- so. As frases “policial que prende é policial bom” ou “bandido bom é bandido preso”, já viraram jargões, não é verdade? Isso é o reflexo do sentido que a polícia tem para a sociedade, quanto mais presos, mais eficiência e maior a segurança. Contudo, é preso aquele que porta cinco quilos de crack e aquele com três gramas de maconha, e aqui que reside a indistinção usuário x traficante. 3. ANÁLISE DOS VOTOS RELATADOS PELOS MINISTROS: GILMAR MENDES, EDSON FACHIN E LUÍS ROBERTO BARROSO. Por meio de Recursos Extraordinários, os ministros relatores do STF, até então citados, proferiram seus votos declarando a descriminalização do uso de drogas para o consumo próprio. Sendo um tema atual, mas um debate antigo da Criminologia Crítica, esse debate tirou o assunto do âmbito da invisibilidade bus- cando melhores adequações sociais, sem discursos autoritários, paternalistas e moralistas. É positivamente destacado quando o órgão mais alto coloca em pauta essa questão visando um efeito erga omnes, pois é mais um passo no combate das guerras às drogas implantado pelos EUA que proibia o uso das drogas a fim de reduzir o comércio ilegal. É válido ressaltar que é defendido a descriminalização, e não a despenalização ou legalização, porque, comumente, esses três termos são confundidos fazendo com que surjam leituras e interpretações equivoca- das. Os ministros apoiam a exclusão de sanções criminais para a posse de drogas individual, permanecendo em determinadas condutas a adoção de medidas administrativas. Tudo isso, declarando a inconstitucionali- dade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) que define como crime “adquirir, guardar, tiver em de- pósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”, já que viola direitos fundamentais. Tais direitos dos cidadãos devem até mesmo ser limitadores do Poder Constituinte, pois esse usurpa a soberania do povo e retira o seu prota- gonismo político. Então, é necessário uma legítima interpretação da carta constitucional, principalmente em pontos ambíguos, que permita a real efetivação do que está escrito e mutualmente consentido por meio da participação do povo. Por isso, é relatado nos votos que essa criminalização viola o artigo 5º da CF no qual é dito “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas...”. As escolhas individuais desde que não ofensivas a terceiros ou a bens jurídicos alheios, não podem ser consideradas crime. 3  FILHO, José Nabuco. O caminho é a descriminalização de drogas. Disponível em: http://www.diariodocentrodomun- do.com.br/o-caminho-e-a-descriminalizacao-das-drogas/ Acessado em 26 de Janeiro de 2016.
  • 275. 275 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A forte repressão atual precisa ser modificada devido a vários fatores, já que só traz malefícios à socie- dade. O discurso do Ministério Público alega que a conduta da descriminalização contribui para a propagação do vício no meio social e que viola o direito à saúde e à segurança. Gilmar e Barroso citam explicitamente que o uso não afeta a saúde alheia semelhantemente ao álcool e ao tabaco e que é a criminalização que exclui e marginaliza socialmente. É indispensável se perguntar porque essa conduta ainda é tipificada de uma forma seletivista e de acordo com estereótipos. Ficamos à mercê de relatos Policiais que maquiam constantemente quem é usuário e traficante por meio do gênero e da classe. Muitos jovens são apreendidos como traficantes sendo primários e sensíveis à enquadração do sistema criminal, provocando uma superlotação nas cadeias e ficando sujeitos a aprender na “escola do crime”. Para isso, é primordial estabelecer a diferença traficante x usuário, dando Barroso um passo maior em relação aos outros por estabelecer quantidades limites de 25g e 6 plantas fêmeas. É preciso ter o controle de evidência e de justificabilidade, verificando se o bem jurídico é legitimado de forma correta pelo legislador e se a apreciação é objetiva e confiável pelas fontes de conheci- mento. Diferentemente de Gilmar Mendes, Barroso e Fachin foram limitadores restringindo a descriminali- zação apenas para a maconha alegando ser o melhor caminho o da autocontenção. Surgiram várias críticas a partir disso, se os ministros afirmam que a guerra as drogas fracassou porque continuar criminalizando determinadas drogas como o crack ou porque continuar com tal estigma ao limitar apenas a uma droga dita burguesa. Apesar de tais dissensos, todos os votos estão na direção da descriminalização até o julgamento ser interrompido por um pedido de vista pelo ministro Teori Zavascki.. E isso deve ser o maior propósito quebran- do o estigma dos argumentos perfeccionistas que justificam o tratamento penal do uso por meio da reprova- bilidade moral dessa conduta, ou seja, acabar com discursos moralistas que desejam impor um padrão. De acordo com Fachin, “A dependência é o calabouço da liberdade mantida em cárcere privado pelo traficante”, com isso é necessário perceber que o dependente não deve ser tratado como criminoso e sim como vítima. Sendo importante refletir que todos nós somos vítimas de um sistema e expressões vivas do meio em que vivemos. A preocupação com conceitos é excessiva e tudo e todos são blindados contra a ordem do mundo não podendo nada “sair do padrão” imposto. É necessário parar com tais estigmatizações e expandir o poder da mente para novas descobertas e soluções. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por fim, a análise dos votos do STF é uma importante porta de entrada para um novo entendimento político acerca das drogas, abarcando estudos na sua produção e regulamentação. É válido lembrar que o usuário é o menor dos problemas na “luta contra as drogas”, pois é sabido que muito mais gente morre em decorrência da violência gerada por essa “guerra” do que pelo seu consumo excessivo. Não se trata de apolo- gia ao uso, mas de uma visão destoada de preconceitos, dogmas e conservadorismos. Nas palavras do Mestre José Nabuco Filho, “ É preciso deixar de lado o míope fanatismo proibitivista e avançar rumo à descriminali- zação das drogas. Essa é a melhor maneira de combatê-las”. REFERÊNCIAS BARROSO, Luis Roberto. Descriminalização do porte de drogas para consumo próprio. Disponível em http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2015/09/Anota%C3%A7%C3%B5es-para-o- -voto.pdf Acessado em 26 de Janeiro de 2016. BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais, n° 20. São Paulo: IBCCRIM/Revista dos Tribunais, 1997. BECKER, Howard Saul. Outsiders: Estudos de sociologia do desvio; tradução Maria Luiza X. de Bor- ges. 1ª edição, Rio de Janeiro, editora Jorge Zahar, 2008.
  • 276. 276 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. DEL OLMO, Rosa. A Face Oculta da Droga. Rio de Janeiro, editora Revan, 1990. FILHO, José Nabuco. O caminho é a descriminalização de drogas. Disponível em: http://www.dia- riodocentrodomundo.com.br/o-caminho-e-a-descriminalizacao-das-drogas/ Acessado em 26 de Janeiro de 2016. LIMA, Helder. Fim da guerra às drogas poderia liberar 25% da população carcerária. Disponível em:http:// www.redebrasilatual.com.br/cidadania/2015/06/fim-da-guerra-as-drogas-pode-liberar-25-da-populacao-carceraria-no- -pais-2889.html Acessado em 26 de Janeiro de 2016. NIEL, Marcelo. Descriminalização das drogas: do debate a guerra. Disponível em: http://revista- visaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/86/descriminalizacao-das-drogas-do-debate-a-guer- ra-293295-1.asp Acessado em 26 de Janeiro de 2016. PORTAL DA EDUCAÇÃO. Disponível em: http://www.portaleducacao.com.br/psicologia/artigos/53577/ aspectos-psicossociais-que-envolvem-o-uso-de-substancias-psicoativas Acessado em 26 de Janeiro de 2016 PORTAL SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticia- NoticiaStf/anexo/RE635659EF.pdf Acessado em 26 de Janeiro de 2016. ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: Quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro, Editora Revan, 2007.
  • 277. 277 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO E SEUS REFLEXOS PARA O PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Fernando Flávio Garcia da Rocha Graduando em Direito na AESO (FIBAM); Membro do Grupo de Estudos Direito e Tecnologias; Membro do Grupo REC (Recife Estudos Constitucionais); Ex-Monitor de Direito Constitucional; Pesquisador no programa PIVIC com projeto de pesquisa: Democracia e Cibercultura. João Paulo Allain Teixeira Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2005). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1999), Mestre em Teorías Críticas Del Derecho pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha (2000), Graduado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (1995). Professor Adjunto na Universidade Federal de Pernambuco, Professor Assistente na Universidade Católica de Pernambuco e Professor Titular nas Faculdades Integradas Barros Melo. Avaliador “ad hoc” do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) do Ministério da Educação (MEC). Membro da Comissão de Qualificação de Eventos para a área Direito da CAPES. Líder do Grupo de Pesquisa “Jurisdição Constitucional, Democracia e Constitucionalização de Direitos” no Diretório Geral de Grupos de Pesquisa CNPq. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Filosofia do Direito e Teoria Geral do Direito e do Estado, atuando principalmente nos temas Jurisdição Constitucional, Hermenêutica, Pluralismo e Teoria da Democracia. SUMÁRIO: Introdução; 1. Roberto Viciano Pastor: delimitando o tema; 2. Considerações a respei- to das constituições: 2.1 Brasil (1988); 2.2 Colômbia (1991); 2.3 Venezuela (1999); 2.4 Equador (2008); 2.5 Bolívia; 3 Neoconstitucionalismo Europeu e Novo Constitucionalismo Latino-Americano; 4 Reflexos no Pensamento Jurídico Brasileiro Contemporâneo; Considerações Finais; Referências. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo analisar o movimento latino-americano denominado “Novo Constitucionalismo Latino-Americano”, que vem tomando espaço na academia desde o final do século XX e até o presente. O novo constitucionalismo é uma mudança paradigmática, que vem acontecendo na América Latina especificamente em Equador, Bolívia, Venezuela e Colômbia. Sua proposta consiste em distanciar-se das culturas europeias e norte americana, que, de certa forma, tiveram influência no processo civilizatório dos países da América Latina. No primeiro momento, far-se-á a delimitação do tema a partir das considerações de Roberto Viciano Pastor. Segundo Brandão, Viciano foi o primeiro a estudar o a temática sob o viés da Teoria da Constituição (2015, p.12).1 1  Ressalta-se que a afirmação hoje não pode ser entendida no sentido absoluto, visto que muitos autores tiveram e continuam tendo influência no estudo.
  • 278. 278 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Em seguida, tecer-se-á comentários ao Neoconstitucionalismo Europeu, tentando, assim, diferenciar do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Essa análise pretende suscitar uma reflexão para saber se um pode servir de continuidade do outro, ou seja, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano pode ser entendido como extensão do Neoconstitucionalismo Europeu?! Por fim, não pretendendo esgotar a complexidade do tema, estudaremos e tentaremos refletir os re- flexos do Novo Constitucionalismo Latino-Americano no Brasil. 1. PERSPECTIVA DE ROBERTO VICIANO PASTOR: DELIMITANDO O TEMA. À primeira vista é necessário sugerir limites ao exagero terminológico, que gera entendimentos equi- vocados sobre a matéria em análise. Vê-se a baixo o rol de nomenclaturas que permeiam o debate do Novo Constitucionalismo Latino-Americano: i) novo constitucionalismo latino-americano; ii) constitucionalismo mes- tiço; iii) constitucionalismo andino; iv) neoconstitucionalismo transfor- mador; v) constitucionalismo do sul; vi) constitucionalismo pluralista; vii) constitucionalismo experimental ou constitucionalismo transformador; viii) constitucionalismo plurinacional e democracia consensual plural do novo constitucionalismo latino-americano; ix) novo constitucionalismo indoafro- latino-americano; x) constitucionalismo pluralista intercultural; xi) constitu- cionalismo indígena; xii) constitucionalismo plurinacional comunitário; xiii) o novo constitucionalismo indigenista; xiv) constitucionalismo da diversida- de; xv) constitucionalismo ecocêntrico; e xvi) nuevo constitucionalismo so- cial comunitário desde América Latina (BRANDÃO, p.10). Entende-se ser preocupante a extensa linhagem de termos que envolve o estudo do Novo Constitu- cionalismo Latino-Americano, por essa razão, considera-se mais correto: novo constitucionalismo latino-a- mericano. Roberto Viciano Pastor faz a seguinte análise sobre o tema: primeiro, distingue o Novo Constituciona- lismo Latino-Americano do Neoconstitucionalismo Europeu. Assim, este seria uma teoria do direito, enquan- to que aquele uma teoria da Constituição porque visa a uma análise da dimensão positiva da Constituição. Nesse sentido, não busca uma ruptura, apenas converter o Estado de Direito em Estado Constitucional de Direito, embora reconheça a centralidade e o fortalecimento da Constituição, especificamente com a forte presença dos princípios no ordenamento jurídico (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Ru- bén. p., 17-18). Brandão pondera que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano é um movimento surgido das reivindicações e manifestações populares, diferente do Neoconstitucionalismo Europeu que é uma corrente doutrinária fruto da academia, dos professores de direito constitucional (2015, p. 13). Enquanto que Pastor, entende que aquele é uma corrente constitucional em período de construção doutrinária, com elementos co- muns, mas sem um modelo hermético (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 4). Em seguida, faz saber que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, ao mesmo tempo em que absorve alguns comandos do Neoconstitucionalismo Europeu, especificamente a constituição no ordena- mento jurídico, ostenta preocupação central com a legitimidade democrática da constituição, garantindo a participação política, de forma que só a soberania popular pode determinar a alternativa da constituição, e recuperando a origem democrático-radical do constitucionalismo liberal revolucionário jacobino (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 18-19). Ademais, uma das principais diferenças que marca o Constitucionalismo Velho da América Latina, em relação ao Novo Constitucionalismo Latino-Americano, refere-se aos processos constituintes. Enquanto que aquele era fruto de um acordo de elites, baseado em interesses comuns, este faz parte de uma dinâmica participativa e marcada por tensões (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 22).
  • 279. 279 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Logo após, diz que a Constituição brasileira de 1988, ainda que tenha traços essenciais, não é consi- derada um exemplo do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, visto que o seu processo constituinte é deficitário de legitimidade democrática na Assembleia Constituinte, pois ainda era condicionada às regras do Regime Militar (VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén., p., 318-319). Levando em consideração o exposto, acredita-se ter introduzido o tema para uma melhor compre- ensão do tema ora proposto. 2. CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DAS CONSTITUIÇÕES. Não pretendemos esgotar a complexidade do tema sobre as Constituições, visto o notório arca- bouço teórico e empírico. Nesse sentido, procuraremos colocar apenas os pontos que entendemos ser os mais importantes. Verifica-se presente, em primeiro lugar nessas constituições, o plebiscito como elemento legitimador das constituições, visto ser condição indispensável para dar valor legal a todos os atos decorrentes da sua aplicação. Aliás, foi a pré-condição estabelecida pela própria ditadura. Perpassaram oito anos e nada de ple- biscito. O uso deste foi uma das características da ditadura fascista e nazista nas décadas de 1920 e 1930, sempre com o intuito de buscar apoio popular a uma medida já em curso. Segundo Villa, o século XXI, os novos caudilhos Latino-Americanos, como Venezuela, Bolívia, Equa- dor e Colômbia, usaram diversas vezes desse instrumento, sempre como o mesmo intuito: aprovar medidas que feriam as liberdades democráticas (2011, p. 76). Contribui também Barros e Gomes Neto: A proposta das constituições, fruto da doutrina constitucional “novo constitu- cionalismo latino-americano”, é romper com esse constitucionalismo liberal importado e construir um Estado que reconheça que a sociedade latino-ame- ricana não é homogênea, mas plural, dando voz a grupos antes excluídos do processo político, como os povos indígenas (2015, p. 2148). A par disso, começa-se a observar as constituintes: 2.1. BRASIL, (1988). Rocha e Saldanha (2014, p. 6) entendem que diferente das constituintes anteriores do Brasil, esta previu uma organização tanto quanto satisfatória albergando todas as garantias e direitos dos cidadãos. Com- preende, assim, em nove títulos, que cuidam: 1 Dos direitos fundamentais; 2 Dos direitos e garantias funda- mentais; 3 Organização do Estado; 4 Organização dos Poderes; 5 Defesa do Estado e das Instituições Demo- cráticas; 6 Da Tributação e do Orçamento; 7 Ordem Econômica e Financeira; 8 Ordem Social; 9 Disposições Gerias. Embora possa ser considerada uma constituição que não faz parte o Novo Constitucionalismo Latino- -Americano, pode-se dizer que após Emendas à Constituição, bem como às Emendas Revisionais, o cenário permutou para uma legislação mais avançado, ao ponto se ser entendida, no sentido formal, como parte do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Brandão observa que a Constituição brasileira de 1988, ainda que anuncie alguns traços essenciais, não é considerada um exemplo desse Novo Constitucionalismo Latino-Americano, devido ao seu processo constituinte deficitário de legitimidade democrática em sua Assembleia Nacional Constituinte, condicionada às regras ditatórias (BRANDÃO apud VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén 2015, p. 16). 2.2. COLÔMBIA, (1991) .
  • 280. 280 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. A Constituição Colombiana de 1991, pode ser considerada um marco, em razão de sua proposta de ruptura, de transformação da ordem política e através da ativação direta do poder constituinte, traços que se repetiram nas cartas posteriores Venezuela, Bolívia e Equador (ORIO apud PASTOR e DALMAU, p. 172). É de se ressaltar o impasse que essa Constituição passa, visto que alguns entendem que ela não faz parte do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, porém entendemos que, embora ela não tenha se desenvolvido como as outras, foi a primeira a prever mudanças paradigmáticas em detrimento aos modelos colonizados. Brandão entende que a Constituição Colombiana, entre outras coisas, foi a pioneira no reconheci- mento da jurisdição autônoma indígena, contribuindo para o desenvolvimento do pluralismo jurídico nos ordenamentos jurídicos de nosso continente. É claro que há outras constituições que contribuíram, com menor intensidade, para o surgimento do Novo Constitucionalismo Latino-Americano, porém a experiência colombiana se destaca no campo constitucional de nossa região (2015, p. 85-86). 2.3. VENEZUELA, (1999). A Constituição da Venezuelana está no limbo, ou seja, entre a pioneira ou precursora do Novo Cons- titucionalismo Latino-Americano, ao lado na Colombiana que fora acima estudada. Ora, são citadas como precedente desse movimento, outrora enquanto sua parte integrante, porém sem grande desenvolvimento acerca de suas inovações e de sua importância, de modo que merecem uma atenção especial (BRANDÃO, 2015 p. 85). A Venezuela com o restabelecimento da ordem democrática após a queda de ditador Marcos Pérez Jiménez, 1958, constituiu-se numa chamada “democracia de vitrine”. Assim, erigida sobre e para a manu- tenção da hegemonia das mesmas forças políticas e absolutamente incapaz de enfrentar problemas como a desigualdades socioeconômicas e étnicas, o que se agudizou profundamente com a crise econômica dos anos 80, culminando num acirramento da luta de classes e na demarcação nítida dos campos políticos (ORIO 2013, p. 167). 2.4. EQUADOR, (2008). Orio (2013, p. 169) observa que, no Equador os processos transformadores haviam alcançado desfe- cho interessante do ponto de vista da tomada do poder por forças contra hegemônicas ainda em 2002, com a eleição de Lucio Gutierrez para a presidência com apoio do movimento indígena, centralizado na Confede- ração de Nacionalidade Indígenas do Equador (CONAIE). Acrescenta o mesmo autor, o que se viu, todavia, foi um governo de orientação neoliberal, fazendo com que logo após seu início o movimento indígena se lhe afastasse e acabasse por se dividir e consequente- mente, perder forças e legitimidade. O cenário equatoriano para a derrubada do Presidente Lucio, destarte, foi permeado por um movimento opositor difuso e semi-espontâneo, um amálgama de setores oriundos de diversas correntes de esquerda, de cidadãos independentes e de organizações e ONGs que lutavam por ética na política e contra a partidocracia (ORIO 2013, p.169) Brandão denota que a Constituição Equatoriana é a que parece mais comprometida com a transfor- mação radical da sociedade, inserindo no novo constitucionalismo elementos que antes eram estranhos à teoria da constituição. A cosmovisão indígena incorporada por essa constituição é a experiência que certa- mente reconstrói e, no mesmo interim, desconstrói a racionalidade monolítica a que o direito e a moderni- dade estão acostumados (2015, p. 140). 2.5. BOLÍVIA, (2009). A Bolívia, com as Guerras da Água e do Gás, desencadeada nas cidades bolivariana de Cochabomda e El Alto, respectivamente, foram respostas à medida de aumento extraordinário no preço das tarifas do serviço de distribuição de água, administradas por uma empresa transnacional, e à intenção do governo Sánchez de
  • 281. 281 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Lozada de exportar o gás bolivariano através do Chile, sem perspectiva de atendimento da demanda interna (ORIO, 2013 p. 167) Ademais, à medida que a repressão estatal tornava-se violenta, houve crescente aderência da so- ciedade civil e outros setores organizados, culminando num movimento de espectro amplo, que não só rei- vindicava a nacionalização dos recursos naturais bolivarianos, como também inaugurava novos marcos de participação política e articulação social, pautado, especificamente, uma nova ordem política, protagonizada por novos sujeitos políticos, tradicionalmente excluídos, em detrimento do monopólio das elites nos espaços de deliberação (ORIO, 2013, p. 168). Conclui-se este capítulo, afirmando que não se fez esgotado o tema das Constituições Latino-Ameri- canas, porém procuramos tecer apenas alguns comentários sobre elas a fim de esclarecer um pouco de suas virtudes. Verifica-se ainda que, essas são uma viravolta nos modelos de participação popular, visto ter um regramento inovador; além de matérias referentes à natureza, dentre outros temas que serão analisados em trabalhos futuros. 4. NEOCONSTITUCIONALISMO EUROPEU E O NOVO CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO: UMA PROPOSTA DE CONTINUIDADE. Observa-se que, atualmente, são veiculados em sites, blogs, revistas e em livros, artigos que têm com o condão de estudar o Novo Constitucionalismo Latino-Americano, bem como o Neoconstitucionalismo Europeu. Todavia, na maioria das vezes, não se consegue distinguir ambos os sistemas, tendo em vista a ter- minologia utilizada, com isso não se sabe, em razão da falta de clareza. Por essa razão, sugerimos a utilização da seguinte nomenclatura Novo Constitucionalismo Lati- no-Americano e não Neoconsconstitucionalismo, quando a pretensão for estudar o movimento Latino-Ame- ricano. O Neoconstitucionalismo Europeu surge logo após a 2º Guerra Mundial, na Europa Conti- nental, especificamente no Itália, Alemanha, Portugal e Espanha (BARROSO, 2007 p. 3), para fortificar as esperas jurídicas contra as forças de violação de direitos humanos. As Constituições dos países mencionados têm como características comuns: a extensa decla- ração de Direitos e Garantias Fundamentais, de forte conteúdo axiológico e cultural dotado de historicidade, que representam a permuta de regime autoritários para democráticos, e adentram em temas que antes eram estranhos à constituição. André Rufino do Vale entende que esse movimento tem como características: mais princípios que regras, mais ponderação que subsunção, mais constituição que lei, mais juiz que legislador (VALE apud Pie- tro Sanchis, 2007 p. 68). Surge, assim, para proteger os Direitos Humanos dos regimes fascistas (Alemanha Nazista, por exemplo). O maior legado do Neoconstitucionalismo Europeu é o fortalecimento do ser humano no centro do ordenamento jurídico. Em razão disso, acredita-se que esse sistema serviu de base para o Novo Constitucio- nalismo Latino-Americano, ponto que será estudado mais a frete. Pode-se dizer que a Dignidade Humana foi regulada na Constituição brasileira de 1988 e nas eu- ropeias da Alemanha 1949, Itália 1947, Portugal 1976, Espanha 1978 e na própria Declaração de Direitos Humanos 1948. Portanto, entende-se que o Neoconstitucionalismo Europeu trouxe a fortificação da Consti- tuição e o reconhecimento da Dignidade Humana nos países Latino-Americanos. Por outro lado, o Novo Constitucionalismo Latino-Americano reconhece o Pluralismo Político e os atores antes excluídos do processo democrático. Assim, esse sistema começa a surgir no fim do século XX, e até hoje continua sendo pesquisado e bastante discutido, inclusive sendo proposta de vários congressos mundo afora.
  • 282. 282 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. César Augusto Baldi explica que, em fins do século XX, no continente americano, há importantes modificações dentro daquilo que Raquel Yrigoyen denomina de “Horizonte Pluralista”, assim estudado em três ciclos (BALDI, 2013, p. 92). O primeiro ciclo o Constitucionalismo Multicultural 1982-1988, introduz o conceito de diversidade cultural, ou seja, o reconhecimento da configuração multicultural da sociedade e alguns direitos específicos para indígenas. Assim, os atores começam a surgir (BALDI apud Raquel Yrigoven 2013 p. 92). O segundo ciclo o Constitucionalismo Pluricultural 1989-2005, marca a internalização, na maior par- te do continente, da Convenção 169- OIT, que revisa a anterior Convenção 107 e reconhece um amplo leque de direitos indígenas (língua, educação, bilíngue, terras, consulta, formas de participação jurisdição indígena, etc), (BALDI apud Raquel Yrigoven 2013 p. 93). A jurisdição indígena é reconhecida na Constituição colom- biana de 1991 e depois pelo Peru 1993, Bolívia 1994-2003, Equador 1998 e Venezuela 1992. O Terceiro ciclo o Constitucionalismo Plurinacional 2006-2009, está conformado pelas constituições boliviana e equatoriana, reconhecendo, assim, os direitos dos povos indígenas. Fundado em dispositivo para a refundação do Estado, e entendendo os indígenas como nações/povos e nacionalidades e, portanto, como sujeitos políticos coletivos com o direito a definir seu próprio destino, governar-se em autonomias e participar nos pactos de Estado (BALDI apud Raquel Yrigoven 2013 p. 93-94). Com a apresentação dos três ciclos, torna-se evidente a diferença do Neoconstitucionalismo Europeu do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Ressalta-se que o apresentado, como marco de distinção foi a cosmovisão indígena, significa dizer que os modelos de matrizes europeia não reconheceram detalhadamen- te essa questão, portanto, à luz dessa realidade colocou ao crivo para diferenciar ambos sistemas. A proposta de continuidade, que propomos neste tópico, surge em razão da lógica temporal, isto é, o Neoconstitucionalismo Europeu advém após fim da 2º Guerra Mundial 1945 e o Novo Constitucionalismo Latino-Americano nasce no fim do século XX, e continua sendo estudo em pleno XXI. Nesse sentido, a fortificação da Constituição que provém daquele ainda está presente neste, bem como a dignidade humana, ambos corolários do sistema de matriz europeia. Então, não se trata necessaria- mente de uma negação absoluta do Neoconstitucionalismo Europeu, pois há pontos de convergência entre os dois movimentos (BRANDÃO, 2015 p. 63). O que há, no caso apresentado, é uma mudança paradigmática nos agentes legitimados a alterar o poder constituído, enquanto que no Novo Constitucionalismo Latino-Americano é o povo o detentor dessa prerrogativa, no Neoconstitucionalismo Europeu, são os mandatários e agentes legitimados. Transpassando essas considerações, vamos estudar no item a seguir os reflexos desse movimento Latino-Americano no contexto do pensamento jurídico brasileiro contemporâneo. 5. REFLEXOS NO PENSAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Neste penúltimo capítulo, vai-se elencar um quadro comparativo com as Constituições do Equador e da Bolívia, a fim de comparar com a Constituição Federal do Brasil de 1988. Com isso, evidenciaremos os avanços e os reflexos para o pensamento jurídico brasileiro. Verifica-se na Constituição do Equador: I Elementos constitutivos del estado; II Derechos de las per- sonas y grupos de atención prioritária; III Derechos de las comunidades, pueblos y nacionalidades; IV Dere- chos de participación; V Garantías constitucionales; VI Participación y organización del poder; VII Función Judicial y justicia indígena; VIII Biodiversidad y recursos naturales (Constituição do Equador, 2008). Observa-se na Constituinte da Bolívia: I Bases Fundamentales del Estado; II Principios, Valores y Fines del Estado; III sistema de gobierno; IV Derechos fundamntales y garantias; VI derechos civiles y po- líticos; VII Derechos de las Naciones y Pueblos Indígena Originario Campesinos; VIII Derechos Sociales y Económicos; IX composición y atribuciones del órgano ejecutivo (Constituição Bolívia, 2009).
  • 283. 283 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Percebe-se na Constituição de Federal do Brasil: I Dos direitos fundamentais; II Dos direitos e garan- tias fundamentais; III Organização do Estado; IV Organização dos Poderes; V Defesa do Estado e das Insti- tuições Democráticas; VI Da Tributação e do Orçamento; VII Ordem Econômica e Financeira; VIII Ordem Social; IX Disposições Gerias (Constituição Federal, 1988). É notório, tanto primeira, quanto na segunda, o respeito aos direitos dos indígenas, talvez esse seja a maior contribuição de mudança no cenário Latino-Americano. Além de do mais, a participação social da população, incluindo os indígenas. O que se pode ter em mente é que as três Constituições têm em comum garantias e preocupações parecidas, porém em certos casos a brasileira se distancia. Em razão de haver inú- meras características, analisaremos as duas exposta aqui. Segundo César Augusto Baldi, tanto a Constituição do Equador, quanto a da Bolívia, preveem o di- reito à consulta prévia, livre, informada e de boa fé relativamente a medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetar as comunidades indígenas, em especial programas de exploração de recursos não reno- váveis (BALDI, 2013, p. 101). Nesse sentido, portanto, percebemos que o Novo Constitucionalismo Latino-Americano pode influen- ciar o Brasil a criar “novas medidas tendentes a respeitar com maior extensão os direitos dos indígenas”, bem como “assegurar uma participação popular mais efetiva”, além de prever a “possibilidade de autodetermina- ção dos povos indígena” ao ponto de permitir aos indígenas a possibilidade criar seus próprios Tribunais sem a interfere do direito estatal. O Brasil no sentido normativo, em razão dos avanços legais (emendas à constituição, por exemplo), mostra-se ter as características do Novo Constitucionalismo Latino-Americano. Por outro lado, o que o dis- tancia é a falta de atividades sem a participação popular, enquanto que no Equador e na Bolívia é pré-requi- sito para o exercício a manifestação do povo. Finalmente, entendemos que o diálogo entre Estados/Constituições pode ser positivo tanto para o crescimento, quanto para o fortalecimento de medidas nacionais. Assim, Marcelo Neves destaca que a ra- cionalidade transversal, quando não houver possibilidade de violação de direitos humanos, com mais de dois sistemas viabiliza o intercâmbio construtivo entre política, direito e economia (NEVES, 2009, p. 50-51). CONSIDERAÇÕES FINAIS Ante o exposto, conclui-se ressaltando a importância de se estudar o tema na América Latina, visto ser uma temática em constante desenvolvimento que repercute no plano nacional e, também, no interna- cional. Os reflexos do Novo Constitucionalismo Latino-Americano no Brasil dizem respeito ao modo de pen- sar dos cidadãos, bem como dos mandatários. Assim, estes terão o condão criar medidas mais integrativas e tendentes a dar vida ao texto normativo, enquanto que aqueles a responsabilidade de reivindicar os direitos violados. Por fim, não tivemos a pretensão de esgotar o tema, porém entendemos que podemos contribuir com o debate. REFERENCIAS BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito: o triun- fo tardio do direito constitucional do Brasil. Disponível em: http://ww3.lfg.com.br/material/marce- lo_novelino/mpfemagisfed_201207_aula1_novelino.pdf. Acessado em: 21 dez. 2015. BALDI, César Augusto. Novo Constitucionalismo Latino-Americano: considerações conceituais e discussões epistemológicas. In: crítica jurídica na américa latina. Disponível em: https://www.
  • 284. 284 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. ucm.es/data/cont/docs/603-2013-12-19-Crica%20Juridica%20na%20America%20Latina.pdf. Acessado em: 20 jan. 2016. BRANDÃO, Pedro. O Novo Constitucionalismo Pluralista Latino-Americano. 2015. 1º Edição. Ed. Lumen Juris. BARROS, Ana Tereza Duarte Lima de; GOMES NETO, José Mario Wanderley. Liberalismo, republica- nismo e democracia no marco do novo constitucionalismo latino-americano. Revista Eletrônica Direito e Política, Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica da UNIVALI, Itajaí, v.10, n. 4, 3º quadrimestre de 2015. Disponível em: www.univali.br/direitoepolitica - ISSN 1980-7791. Acessado em: 08 jan. 2016. BOLÍVIA, Constitución Política del Estado Plurinacional. Constituição da Bolívia 2009. Disponível em: http://www.harmonywithnatureun.org/content/documents/159Bolivia%20Consitucion.pdf. Acessado em: 27 jan. 2016. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, Sena- do, 1998. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm. Acessado em: 27 jan. 2016. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. 2009. 1º Edição. Ed. Martinsfontes. ORIO, Luís Henrique. Situando o novo: um breve mapa das recentes transformações do consti- tucionalismo latino-americano. In: crítica jurídica na américa latina. Disponível em: https://www. ucm.es/data/cont/docs/603-2013-12-19-Crica%20Juridica%20na%20America%20Latina.pdf. Acessado em: 08 jan. 2016. ROCHA, Fernando Flávio Garcia da, e SALDANHA, Paloma Mendes. O Processo Judicial Eletrônico e o Acesso à Justiça na Contemporaneidade (trabalho em andamento). VALE, André Rufino. Aspectos do Neoconstitucionalismo. Disponível em: http://www.esdc.com.br/ RBDC/RBDC-09/RBDC-09-067-Andre_Rufino_do_Vale.pdf. Acessado em: 20 dez. 2015. VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Fundamentos teóricos y prácticos del nuevo constitucionalismo latino-americano. Disponível em: http://www.gacetaconstitucional.com. pe/sumario-cons/doc-sum/GC%2048%20%20Roberto%20VICIANO%20y%20Ruben%20MARTINEZ.pdf. Acessado em: 23 dez. 2015. VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Presentación. Aspectos generales del nue- vo constitucionalismo latinoamericano. In: Corte Constitucional de Ecuador para del Perído transición. El nuevo constiyucionalismo em América Latina. Disponível em: http://www.direito. ufg.br/up/12/o/34272355-Nuevo-Constitucionalismo-en-America-Latina.pdf?1352146325. Acessado em: 07. Jan.2016. VICIANO PASTOR, Roberto; MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Se puede hablar de un nuevo constitu- cionalismo latinoamericano como corriente doctrinal sistematizada? 2011. P.1-23. Disponível em: http://www.juridicas.unam.mx/wccl/ponenciais/13/245.pdf. Acessado em: 07. jan. 2016. VILLA, Marcos Antonio. A História das Constituições Brasileiras. 2011. 2º Edição. Ed. Leya. Constituyente, Asamblea. Constitución del Ecuador 2008. Disponível em: http://www.stf.jus.br/reposito- rio/cms/portalStfInternacional/newsletterPortalInternacionalFoco/anexo/ConstituicaodoEquador.pdf. Aces- sado em: 27. Jan. 2016.
  • 285. 285 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. AS TRANSFORMAÇÕES DO ENSINO JURÍDICO A PARTIR DA UTILIZAÇAO DAS NOVAS TECNOLOGIAS DA INFORMAÇÃO Fernando Flávio Garcia da Rocha Graduando em Direito na AESO (FIBAM); Membro do Grupo de Estudos Direito e Tecnologias; Membro do Grupo REC (Recife Estudos Constitucionais); Ex-Monitor de Direito Constitucional; Pesquisador no programa PIVIC com projeto de pesquisa: Democracia e Cibercultura. Paloma Mendes Saldanha Mestranda em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Especialista em Direito da Tecnologia da Informação pela Universidade Cândido Mendes (UCAM/RJ). Professora. Advogada. Membro da Comissão de Tecnologia da Informação da OAB/PE. Multiplicadora do Processo Judicial Eletrônico pelo Conselho Federal da OAB SUMÁRIO: Introdução; 1. Cibercultura sob a Perspectiva do Estado Democrático de Direito. 2. Novas formas de Ensino: Educação versus Internet. 3. As novas tecnologias no ensino jurídico. Con- clusão. Referências. INTRODUÇÃO Durante muitos anos entendeu-se o ensino jurídico como algo geometrizado, ou seja, por analogia o alunado deveria participar de um “jogo de memória” para apostar num futuro de conhecimento. Ocorre que através da geometrização tem-se a criação de uma ilusão de segurança, certeza e fechamento para o Direito. Entretanto, é esse método matemático que torna o Direito inseguro e o ensino jurídico sem qualquer manifestação de pensamento ou despertar de senso crítico. É o que chamamos de ensino baseado no dog- matismo. Entretanto a dogmática jurídica é uma “herança” que temos que decidir o que será feito com ela: aperfeiçoamos ou a transformamos? A partir de um novo contexto social baseado na evolução das novas tecnologias da informação, sobre- tudo, com o advento da internet surgiram outras formas de transmissão de conhecimento. A cibercultura ao trazer seu universo de informações, amplifica, exterioriza e modifica numerosas funções cognitivas huma- nas. Dessa forma, o alunado que cresce sob a influência da “nova educação” termina por ter um pensamento e raciocínio aberto, contínuo e não-lineares. Assim, a utilização de novas metodologias acrescidas às novas tecnologias da informação terminam por não aceitar o pensamento cartesiano, trazendo, portanto, a retirada do dogmatismo, da univocidade da lei, bem como da interpretação literal desta. “Abrem-se as portas” para o pensamento crítico, para a herme- nêutica, colocando, por sua vez, o direito como ciência da compreensão e trazendo para sala de aula, por exemplo, um processo de ensino-aprendizagem baseado em jurisprudências. Diante disso, pretende-se analisar novos paradigmas educacionais advindos da participação das novas tecnologias no processo de ensino-aprendizagem jurídico, bem como analisar quais os benefícios e as melho- rias com a utilização desses novos paradigmas educacionais para o operador do Direito e para o meio jurídico propriamente dito.
  • 286. 286 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. 1. CIBERCULTURA SOB A PERSPECTIVA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. A partir do contexto contemporâneo, é normal surgirem conceitos que envolvem tanto a Teria Geral do Direito, quanto à Filosofia, à Sociologia, à Antropologia, à Hermenêutica e, assim, por diante. Ademais, é comum haver definições que não corresponde à essência de cada instituto. Dessa forma, mesmo a Cibercul- tura e o Ciberespaço tendo conceitos antagônicos e pretensões opostas, na prática acabam por se confundir. Segundo Pierre Lévy: O ciberespaço é o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores. Essa definição inclui o conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos (aí incluídos os conjun- tos de redes hertzianas e telefônica clássica), na medida em que transmi- tem informações provenientes de fontes digitais ou destinadas à digitalização (LÉVY, p. 102). Sabendo disso, é notável que atualmente o conhecimento é fruto de fontes diversas às quais sedimen- taram o contexto Pós Segunda Guerra Mundial. Ou seja, modelo em que os receptores ficam submersos aos transmissores. Como mudança, o ciberespaço traz um novo paradigma a ser absorvido pelas gerações mais antigas vez que as novas gerações de indivíduos parecem já nascer predisposto ao acesso e vivência no meio virtual. Aurélio entende que a Cibercultura é conjunto de padrões culturais com a Internet e a comunicação em redes de computadores. Isto é, enquanto que o conceito de ciberespaço especifica o que de fato é o espa- ço, este esclarece a cultura pode ser desenvolvida por meio espações dinâmicos (FERREIRA, 2010). Dessa forma, os conceitos não se confundem. Considerando os pontos apresentados, verifica-se que a lógica dinâmica da rede é uma saída para difundir o conhecimento. Assim, não precisando ficar adstrito a modelos ultrapassados de fomentação do conhecimento. Sabendo disso, passa-se a análise dos instrumentos constitucionais de inclusão do cidadão ao ensino. José Afonso da Silva (2015, p. 853) entende que a Constituição de 1988: deu relevância à cultura tomando esse termo no sentido abrangente da for- mação educacional do povo, expressão criadora da pessoa e das projeções do espirito humano materializadas em suportes expressivos, portadores de re- ferências à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, que se exprimem por vários artigos, formando aquilo que se considera ordem constitucional da cultura, ou constituição cultural. A Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 205, prevê que: a base constitucional para o ensino. Dessa forma, a educação, direito de todos e dever do Estado e da Família, será promovida e incentivada com a colabora- ção da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Acredita-se que, em razão da prevalência da Constituição, os entes Federativos (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) devem procurar sempre criar mecanismos para a concretização do direito fundamental à educação. Ressalta-se que, a educação privada ou publica não interferem na proposta deste
  • 287. 287 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. trabalho, mas, sim, como ela está sendo reconhecida como forma de conhecimento. Portanto, cibercultura e ciberespaço são elementos que podem servir de instrumentos para divulgação do conhecimento. Assim, pergunta-se: A Cibercultura e o Ciberespaço podem contribuir à propagação de conhecimen- to? De que forma a tecnologia influencia no ensino jurídico e como podemos designar esse novo processo de ensino-aprendizagem tendo em vista a inclusão/participação das novas tecnologias da informação? 2. NOVA FORMA DE ENSINO E APRENDIZADO: EDUCAÇÃO VERSUS INTERNET. Ao consultar o DICIONÁRIO AURÉLIO, educação é: O princípio comunicativo, utilizado pelas sociedades, para desenvolver no indivíduo a consciência de suas potencialidades, a partir de interpretação dos sinais gráficos até a construção dos conhecimentos que favoreçam o desen- volvimento d um raciocínio comportamental e disciplinar, na sua individuali- dade, diante do grupo social e no meio ambiente de que vive. A partir dessa premissa, é de salutar pertinência observar a importância do Ensino e até mesmo o que se espera de um Estado através dos entes públicos e privados. Denota-se ainda que, o ensino privado, embora seja criada por entes privados, o estado tem muita incidência em sua construção. Sabe-se que a educação é um Direito Fundamental, além de ser um dever Estado Democrático pro- mover políticas de prevenção e incentivo, bem como sendo um dever dos entes federativos desenvolver téc- nicas tendentes a concretizá-la e/ou tornar presente e evidente. Sabendo disso, indaga-se como relacionar a educação com a internet? Internet, relembrando, encontra-se vinculada diretamente com o ciberespaço ou cibercultura, mas para definir é necessário para qual fim o acesso é utilizado. Com o advento da internet/ou ciberespaço o conteúdo das disciplinas lecionadas em salas de aulas de grandes universidades passou a ser compartilhado. Os grandes livros passaram a ser de acesso de todos, sem que seja necessário, por exemplo, visitar um outro país para adquirir o exemplar. No Brasil expande-se a oferta de cursos à distância através da internet, consequentemente o cenário é alterado significativamen- te deixando de lado os métodos tradicionais. As novas tecnologias da informação com o auxílio/suporte da internet trouxeram para as salas de aula uma maior dinâmica, fazendo com que o aluno deixe de ser mero receptor de informações e passe a ser participante ativo no processo de ensino-aprendizagem. A construção do conhecimento, a partir do processamento multimídico, é mais «livre», menos rígida, com conexões mais abertas, que passam pelo sensorial, pelo emocional e pela organização do racional; uma organização provisória, que se modifica com facilidade, que cria convergências e divergências instantâneas, que precisa de processamento múltiplo instantâneo e de resposta imediata (MORAN 1998, pp. 148-152). Ou seja, para captar e expressar de maneira absoluta todo o conteúdo que se pretende discutir, o ser humano conecta informações, relaciona dados, acessa novos objetos e os integra das mais variadas formas. Pensar é aprender a raciocinar através de critérios e razões bem fundamentadas. As informações chegadas tendem a seguir o processamento lógico-sequencial que se define pela expressão da linguagem falada e escrita, ou seja, a construção se dá aos poucos. Em outros momentos, conseguimos processar a informação de maneira hipertextual. Ou seja, histórias se interconectam levando a ampliações e novos significados, o que garante uma comunicação “linkada”. O paradigma na era digital, na sociedade da informação, enseja uma prática docente assentada na construção individual e coletiva do conhecimento. Não basta a aula expositiva para conhecer. O conheci- mento se dá cada vez mais pela relação prática, teoria, pesquisa e análise. Assim, numa sociedade conectada e multímidia, o conhecimento edifica-se melhor no equilíbrio entre as atividades individuais e grupais, com muita interação e práticas significativas. A sala de aula passa a ser um locus privilegiado como ponto de en- contro para acessar o conhecimento, discuti-lo, depurá-lo e transformá-lo. A troca de informações entre os usuários pode acontecer em nível local, estadual, nacional e internacional. A pesquisa de dados, a assinatura
  • 288. 288 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. de revistas eletrônicas e o compartilhamento de experiências em comum podem vir a anexar um novo sig- nificado à prática docente. O uso da Internet com critério pode tornar-se um instrumento significativo para o processo educativo em seu conjunto. Ela possibilita o uso de textos, sons, imagens e vídeo que subsidiam a produção do conhecimento. Além disso, a Internet propicia a criação de ambientes ricos, motivadores, inte- rativos, colaborativos e cooperativos. Dessa forma, as TIC´s possibilitam a utilização do que se chama de metodologias ativas. Ou seja, o trabalho em parceria com a aprendizagem colaborativa e significativa. A ideia é trazer o aluno para o plano de protagonista da aula através do seu conhecimento prévio. Todos os alunos possuem um ponto de vista sobre tudo, cabendo, apenas, ao professor direcionar esse olhar para o lado correto instigando o aluno a pensar através de questionamentos que sejam feitos pelo professor ou até mesmo por outro aluno. A interação em sala passa a trazer produtividade e fixação de conhecimento. Ao explicar um conceito e verificar dúvidas na sala de aula, o Professor pode, por exemplo, solicitar ao aluno que disse ter compre- endido o assunto que o explique para os demais que não entenderam. A linguagem e os exemplos utilizados serão outros e, provavelmente, mais próximos da realidade do alunado. Esse momento é importante para o Professor captar se houve de fato compreensão do que fora dito. E assim a aula segue com a participação dos alunos e do Professor como facilitador do conhecimento. Retira-se a aula cujo objetivo é a transmissão de conhecimento e dá-se lugar a criação do conhecimento. MORAN (2011) entende que: As redes digitais possibilitam organizar o ensino e a aprendizagem de for- ma mais ativa, dinâmica e variada, privilegiando a pesquisa, a interação e a personalização dos estudos, em múltiplos espaços e tempos presenciais e virtuais. Assim, a organização escolar precisa ser reinventada para que todos aprendam de modo mais humano, afetivo e ético, integrando os aspectos in- dividual e social, os diversos ritmos, métodos e tecnologias, para ajudarmos a formar cidadãos plenos em todas dimensões Para DAMASCENO (2016), A educação desprovida de novas tecnologias resumida ao uso das tecnologias antigas e no simples discurso do professor admite que o espaço da aula trans- figure-se num ambiente de monotonia sem estímulo algum aos principais elementos de mobilidade do processo. Cabe ao professor buscar o conhe- cimento sobre o uso adequado das novas tecnologias, uma vez que todo e qualquer instrumento utilizado para mediar à interação professor/aluno é considerado ferramenta tecnológica. Entretanto, antes de ter competências técnicas, o professor deve ser capaz de identificar e de valorizar suas próprias competências, conforme assegura Phillippe PERRENOUD (2000) quando diz que ”competên- cia em educação é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos, como saberes, habilidades e informações, para solucionar problemas com pertinência e eficácia”. 3. AS NOVAS TECNOLOGIAS NO ENSINO JURÍDICO. Edgard MORIN (2002, p. 47) adverte que o ensino do futuro deve ser “centrado na condição huma- na” e que os seres humanos “devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo tempo reco- nhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano”. É necessário que se entendam em toda a sua complexidade, e para isso não se pode estudá-los de forma desunida, é essencial que se tenha uma visão tan- to oriunda das ciências naturais quanto das ciências humanas, assim como das humanidades, a fim de que se chegue mais perto da compreensão da complexidade humana e da tomada de consciência dessa condição.
  • 289. 289 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. Seguindo o contexto da cibercultura, o Judiciário também enfrenta sua virtualização. Questões que antes eram tratadas única e exclusivamente por via física, passam a ter como opção (e em alguns casos a obrigatoriedade) o uso do Processo Eletrônico. Este, por sua vez, requer a utilização de aplicativos virtuais para a confecção e envio das, agora, chamadas petições eletrônicas. E as provas, que antes eram de caráter unicamente físico, passam a ter sua origem também no mundo virtual. BERNARDES E ROVER (2010, p. 31) afirmam que: “[...] a partir da idéia que o direito deve servir para solucionar problemas decorrentes das novas relações sociais (que estão cada vez mais complexas), para os quais nem sempre a legislação oferece respostas em suas normas. É que desponta a necessidade de formação de profissionais sensíveis às trans- formações culturais e novas demandas sociais existentes, ou seja, desde a graduação os profissionais do direito deveriam ser treinados para apresentar um pensamento dialético.” Dessa forma, com a introdução das TIC´s, o ensino jurídico sai do tradicionalismo de abarcar unica- mente áreas conservadoras e passa a fazer parte do mundo virtual com temas como contratos eletrônicos, E-commerce, relação consumerista no ambiente virtual, privacidade on-line, assinatura e segurança ele- trônica, direitos autorais, crimes cibernéticos e teletrabalho. Para melhor compreensão dos temas tratados, faz-se necessária a introdução ao ambiente que se é estudado. Ou seja, ambiente virtual. Então, do ponto de visa metodológico, entende-se que o que se constata é que além de aulas expositivas (fundadas na educação bancária), quase nada mais é oferecido ao aluno. Assim, a faculdade de di- reito que deveria ser o locus apropriado para o aluno aprender a pesquisar, raciocinar, compreender e, sobretudo, interpretar, pouco faz no sentido de preparar o futuro profissional para o mercado, o que dificulta sobremaneira a empregabilidade do diplomado e contribui para aumentar a falta de con- fiança da população no advogado. (BERNARDES E ROVER (2010, p.30-31) As novas ferramentas do processo de ensino-aprendizagem permitem que o alunado do ensino ju- rídico se visualize como protagonista do procedimento a partir do momento em que, por exemplo, trazem instantaneamente para dentro da sala de aula uma decisão recente sobre o tema discutido. Ora, qual seria a proposta da utilização das novas tecnologias no ensino jurídico que não a promoção do debate a partir de análise crítica entre as partes envolvidas? Logo, a utilização de chats, fóruns, redes sociais, blogs, etc. antes, durante e depois das aulas jurídicas pode ser vista como uma imersão conjunta necessária para o desenvolvimento mais apropriado do conteúdo proposto pelo Professor, uma vez que todo o aparato tecnológico permite o desenvolvimento do raciocínio no modo hipertexto. O que ocasiona uma maior evolução quanto a capacidade/habilidade de participação e promoção de debates aprofundados que, consequentemente, gera uma mente crítica. Os conteúdos teóricos não deixam de existir, pois não se aprende nada desvinculado do conhecimen- to teórico, mas trata-se de trabalhar essas informações de forma diferente dando-lhes um significado, assim como afirma Jean PIAGET (1987): O primeiro objetivo da educação é criar pessoas capazes de fazer coisas no- vas, e não simplesmente de repetir o que outras gerações fizeram. Pessoas criativas, inventivas e descobridoras. O segundo objetivo da educação é for- mar mentes que possam ser críticas, possam verificar e não aceitar tudo o que lhes é oferecido. O maior perigo, hoje, é o dos slogans, opiniões coletivas, tendências de pensamento ready-made. Temos de estar aptos a resistir (...), a criticar, a distinguir entre o que está demonstrado e o que não está. Portanto, precisamos de discípulos ativos, que aprendam a encontrar as coisas por si
  • 290. 290 DIREITO, DEMOCRACIA E INTERNACIONALIZAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO: Direito(s) em debate. mesmos, em parte por sua atividade espontânea e, em parte, pelo material que preparamos para eles. Dessa forma, para se conseguir uma maior dinamização, bem como o pensamento linkado, trazendo o aluno como protagonista do