UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ
         PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPH
     ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FRONTEIRAS, POPULAÇÕES E BENS CULTURAIS




                   GIULIANO MARANHO-JACINTHO




AS RELAÇÕES NATURAIS: A RELEITURA DA DRAMATURGIA DE QORPO-SANTO

                  POR LUIZ CARLOS MACIEL EM 1968.




                              MARINGÁ
                                 2007
GIULIANO MARANHO-JACINTHO




AS RELAÇÕES NATURAIS: A RELEITURA DA DRAMATURGIA DE QORPO-SANTO

                POR LUIZ CARLOS MACIEL EM 1968.




                         Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
                         Graduação em História (Mestrado) da Universidade
                         Estadual de Maringá. Linha de pesquisa “Fronteiras,
                         Populações e Bens Culturais”, sob a orientação da
                         professora Dra. Sandra de Cássia Araújo Pelegrini
                         como requisito parcial para a obtenção do grau de
                         Mestre em História.




                           MARINGÁ
                              2007




                                2
GIULIANO MARANHO-JACINTHO




AS RELAÇÕES NATURAIS: A RELEITURA DA DRAMATURGIA DE QORPO-SANTO
                    POR LUIZ CARLOS MACIEL EM 1968.




                                Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
                                Graduação em História (Mestrado) da Universidade
                                Estadual de Maringá. Linha de pesquisa “Fronteiras,
                                Populações e Bens Culturais”, sob a orientação da
                                professora Dra. Sandra de Cássia Araújo Pelegrini
                                como requisito parcial para a obtenção do grau de
                                Mestre em História.



Aprovado em ___de___________2007

                           BANCA EXAMINADORA



              ______________________________________________
                   Profa. Dr a . Sandra de Cássia Araújo Pelegrine
                    Universidade Estadual de Maringá - UEM



              ______________________________________________
                            Prof. Dr. Reginaldo Dias
                    Universidade Estadual de Maringá - UEM



              ______________________________________________
                        Prof. Dr. Alexandre Busko Valim
                              Faculdade - FAFIPA




                                       3
Dedico este trabalho a meus pais Zeneide e Sebastião.




                          4
AGRADECIMENTOS



À professora Sandra de Cássia de Araújo Pelegrini pelo incentivo, confiança, amizade e

pela orientação precisa e aberta à interdisciplinaridade.



A Luiz Carlos Maciel pela recepção aprazível e calorosa em sua residência.



A Mario Donadon Leal pelas suas aulas de Semiologia.



À professora Hilda Pívaro Stadniky pela solidariedade num momento de precisão.



A Rosana Steinke pelo incentivo inicial.



A Isabela Campoi pela companhia agradável no Rio de Janeiro.



À coordenação do Programa de Pós-Graduação e aos professores pela disposição e atenção

dispensadas.



A Gisele Moraes, secretária do Programa de Pós-Graduação, pelo atendimento cordial.




                                               5
VAN GOGH: O SUICIDADO PELA SOCIEDADE


                                          Antonin Artaud




     “(...)

     Não, van Gogh não estava louco, mas suas telas eram jorros de

substância incendiária, bombas atômicas cujo ângulo de visão, ao contrário de

toda a pintura com prestígio na sua época, teria sido capaz de perturbar

seriamente o conformismo espectral da burguesia do Segundo Império e dos

esbirros de Thiers, Gambetta, Félix Faure, assim como os de Napoleão III.

     Pois a pintura de van Gogh ataca, não um determinado conformismo dos

costumes, mas das instituições. E até a natureza exterior, com seus climas,

suas marés e suas tormentas equinociais não pode mais manter a mesma

gravitação depois da passagem de van Gogh pela Terra.

     Tanto mais razão para, no plano social, as instituições se decomporem e

a medicina parecer um hediondo e imprestável cadáver que declara louco a

van Gogh.

     (...)”




                                   6
RESUMO
       Investigamos neste trabalho as possibilidades de re-significação da comédia As
Relações Naturais, escrita em 1866 por Qorpo-Santo; e encenada em 1968 pelo grupo
Teatro Jovem, sob a direção de Luiz Carlos Maciel. Apreendemos este produto cultural
numa leitura também produtiva, confirmando, com Roger Chartier, que “anular o corte
entre produzir e consumir é antes de mais nada afirmar que a obra só adquire sentido
através da diversidade de interpretações que constroem as suas significações”. Situamos o
texto e seu autor no contexto histórico do século XIX; e a encenação de Maciel em seu
contexto, num período de grandes embates estéticos e políticos, a década de 1960. Depois
analisamos o acirramento da crítica de Yan Michalski sobre esta encenação.
Empreendemos, a seguir, uma leitura semiológica sobre o corpus principal desta
investigação, constituída de: texto da comédia As Relações Naturais, de Qorpo-Santo; e
entrevista com Luiz Carlos Maciel, realizada por nós em 2006, a qual se constitui em nosso
documento oral. Descobrimos, com Maciel, o poder de representação do teatro de invenção
e o aproximamos, por nosso lado, do conceito de defasagem entre a cena e o texto, que
liberta a encenação da necessidade de seguir ao pé da letra o que diz o texto.


Palavras-chave: Qorpo-Santo; Luiz Carlos Maciel; Teatro; História cultural; Semiologia
Teatral; re-significação.




                                              7
ABSTRACT
This work investigates the re-meaning possibilities of the comedy As relações naturais,
written by Qorpo Santo, played in 1968 by the Teatro Jovem company, and directed by
Luiz Carlos Maciel. The understanding of this cultural product occurs also through a
productive reading, confirming, according to Roger Chartier, that annul the cut between
producing and consuming is before affirming the work acquires meaning only through the
diversity of understandings that construct their meanings. The text and its author are
considered into the historic context of the 19th century; and the Maciel’s staging in his
context, in a period of strong aesthetic and political clashes, the 1960’s decade. After
analyzing the Yan Michalski’s critical point of view about this staging, the procedure was
the understanding of a semiological reading about the main corpus of this investigation,
constituted by: the text of the comedy As relações naturais, by Qorpo Santo, and the
interview with Luiz Carlos Maciel, achieved in 2006, that constitutes an oral document.
According to Maciel, the power of representation of the theater of invention can be
approached to the concept of imbalance between the scene and the text, that frees the
staging from the needy to follow what the text means literally.


Key-words: Qorpo-Santo; Luiz Carlos Maciel; Theatre; Cultural History; Theatrical
Semiology ; Re-meaning.




                                             8
SUMÁRIO



INTRODUÇÃO............10



UNIDADE I – TEXTOS E CONTEXTOS DA CRIAÇÃO TEATRAL: UM DESTAQUE

À OBRA DE QORPO-SANTO

1.1 – Luiz Carlos Maciel e a sociedade na década de 1960.................23

1.2 – A polêmica crítica de Yan Michalski.................45



UNIDADE II – QORPO-SANTO E MACIEL – UMA LEITURA SEMIOLÓGICA

2.1 – Qorpo-Santo e a paródia ao realismo das convenções teatrais...............51

2.2. – Luiz Carlos Maciel no Teatro Jovem...............71



UNIDADE III – A ATUALIDADE CRÍTICA DE AS RELAÇÕES NATURAIS

3.1 – A semiologia teatral e a re-significação na expressão e no conteúdo da

      obra...............95

3.2 – Outras possibilidades cênicas de As Relações Naturais................101

3.3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............126

BIBLIOGRAFIA BÁSICA E FONTES ..............134




                                                9
INTRODUÇÃO:




       Passados mais de cem anos da publicação dos textos do dramaturgo brasileiro

Qorpo-Santo, no emblemático ano de 1968, foi encenada a comédia As Relações Naturais.

O grupo Teatro Jovem, sob a direção de Luiz Carlos Maciel se incumbiu dessa tarefa e

escolheu o Teatro Nacional de Comédia do Rio de Janeiro para apresentá-la ao público.

Espectadores ávidos por críticas ao autoritarismo e às “perspectivas” mais conservadoras

das relações familiares naquele momento histórico. Nessa comédia, escrita originalmente

em 1866, os personagens formam uma família que oscila entre o lar e o bordel, tendo como

referência, por um lado, a conservadora moral patriarcal e, por outro, o comportamento

humano infiltrado no cotidiano urbano em transformação. A peça assume o tom crítico do

autor quando ele defende uma “igualdade ética” entre as “autoridades” e o “povo”,

representado pelo bem comum. Sob essa ótica, Flávio Aguiar, estudioso da obra do

dramaturgo gaúcho, afirma que Qorpo-Santo pretendia:




       “(...) que indivíduo e sociedade formassem um todo harmônico – o que, em
       termos qorpo-santenses, que se pautassem pela mesma moralidade. A moral
       do governante deve ser a mesma do governado: o primeiro não pode colocar
       os seus interesses acima dos da coletividade; o segundo não pode ter
       interesses que contrariem os da comunidade. Os males adviriam da
       subversão desse compromisso ético que deveria dirigir as atividades de
       todos”1




1
 AGUIAR, Flávio Wolff de. Os homens precários: inovação e convenção na dramaturgia de Qorpo-Santo.
Porto Alegre: A Nação/ Instituto Estadual do Livro, 1975, p. 65.

                                               10
Tal encenação, no final da década de 1960, gerou polêmica e tensão entre o diretor

do espetáculo Luiz Carlos Maciel e o crítico de teatro do Jornal do Brasil, Yan Michalski,

autor de críticas contundentes à concepção cênica adotada na montagem. Maciel propôs

uma reformulação quase completa do que a crítica especializada até então havia emitido

sobre a obra de Qorpo-Santo, alegando que a transformação de suas comédias em teatro do

absurdo2 implicaria um amortecimento da sua potencialidade crítica. No entanto, para

Maciel, as comédias desnudavam uma estrutura mental objetiva das relações estabelecidas

numa sociedade burguesa.3 Após esta encenação, houve debates acirrados na imprensa e a

intervenção da Censura Federal.4



        Vamos encarar o desafio de entender o contexto político e cultural no qual se insere

o teatro nos anos 1960, durante o governo militar. Nessa época emergem aqueles que, mais

tarde, seriam considerados grupos de “teatro de protesto” 5, que buscavam restabelecer o

teatro de autoria brasileira – não somente o texto, mas também o espetáculo do homem de

teatro brasileiro, valorizando a originalidade de temas nacionais, estabelecendo um diálogo

com a arte popular.6 Era a crítica e a semeadura de uma proposta que iria deixar um legado

definitivo à criação teatral no Brasil. Neste cenário, de alterações sensíveis na política e,


2
 Segundo Marvin Carlson, (1997) essa denominação foi criada pelo crítico inglês Martin Esslin, em sua obra
Theatre of the absurd (1961). Este autor chamou Teatro do Absurdo ao um novo estilo de drama anti-realista
que surgiu na França na década de 1950, teatro de vanguarda representado por dramaturgos como Samuel
Beckett (1906-1989), Eugène Ionesco (1912-1994) e Arthur Adamov (1908-1971).
3
 MACIEL, Luiz Carlos. O “caso” Qorpo-Santo. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 26/05/1968 e AGUIAR,
Flávio Wolff de. Os homens precários; inovação e convenção na dramaturgia de Qorpo-Santo. Porto Alegre:
A Nação/ Instituto Estadual do Livro, 1975.
4
  Segundo Aguiar: “todos os jornais noticiaram o assunto, uns mais fortemente, outros menos. A cobertura
mais ampla foi a do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, de 22/05/1968 a 18/06/1968”.
5
  Em termos práticos, o teatro de protesto assenta-se no inconformismo do indivíduo e na sua impotência
frente às imposições de determinado mundo social. Trata-se de entender o teatro que envolve o dramaturgo, a
explorar sua própria personalidade como idéia ou personagem. (Cf. BRUSTEIN, Robert. O Teatro de
Protesto. Rio de Janeiro: Zahar, 1967).
6
  Afirmação dos fundadores do Grupo Opinião, Armando Costa, Vianinha e Paulo Pontes. Revista de Defesa
da Cultura Nacional. Preservação da Memória Nacional. São Paulo: Artes Gráficas e Editora, 1984.

                                                    11
conseqüentemente, na produção do teatro brasileiro, foi encenada a obra de Qorpo-Santo.

Certamente, sob a direção de Luiz Carlos Maciel e produção de Ginaldo de Souza, o grupo

Teatro Jovem, que encenou a comédia As Relações Naturais, insere-se nessa trama cultural

que vivia plena transformação.

           Por que essa retomada da comédia de Qorpo-Santo, escrita em 1866? Apreender o

significado das apresentações de 1968 suscita a possibilidade de análise do processo de

apropriação cultural e sua re-significação simbólica. Conforme o conceito de cultura

sugerido por Roger Chartier:

             “(...) Esta partilha – que postula, por um lado, que uma das instâncias, o econômico, é
             determinante, e, por outro, que o cultural ou ideológico formam um nível à parte
             (claramente identificável e acantonado em limites reconhecíveis) da totalidade social –
             parece já não ser aceitável. Na verdade, é preciso pensar em como todas as relações,
             incluindo a que designamos por relações econômicas ou sociais, se organizam de
             acordo com lógicas que põem em jogo, em ato, os esquemas de percepção e de
             apreciação dos diferentes sujeitos sociais, logo as representações constitutivas daquilo
             que poderá ser denominado uma ‘cultura’, seja esta comum ao conjunto de uma
             sociedade ou própria de um determinado grupo”.7


           As percepções dos diferentes sujeitos sociais, na sociedade do século XX em

mudanças constantes e rápidas, revelam-se em termos da identidade cultural, “formada e

transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou

interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Assim, o sujeito social assume

identidades diversas em diferentes momentos porque estas não são centradas num eu

“coerente”. 8

           Por outro lado, nem sempre a cultura teve sentidos polissêmicos ou conteve uma

acepção antropológica em seus conceitos: mais recentemente ela pode ser vista como um

conjunto de atitudes, crenças, códigos de comportamento próprios de grupos e classes num




7
    CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 66.
8
    HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 13-14.

                                                       12
certo período histórico. As agregações ao termo cultura no século XIX foram vinculadas,

genericamente, às artes.

       Com efeito, a noção polissêmica de cultura deve aos estudos antropológicos sobre: a

natureza de instituições sociais; os padrões de cultura; o aspecto simbólico-expressivo do

comportamento humano. Sob esta influência, entre os historiadores, cada vez mais a

atenção volta-se à cultura popular, com especial destaque às atitudes e aos valores de

pessoas comuns e suas formas de expressão; os historiadores não se limitam mais apenas

aos estudos culturais das obras de arte e de literatura reconhecidas oficialmente. Enfim, o

conceito cultura adquire vários sentidos: ela foge desse padrão oficial e, ampliando a

dimensão cultural, atinge outras formas expressivas social e historicamente localizadas,9 tal

como aparece na dramaturgia de Qorpo-Santo.



       Nossa proposta se fundamenta em identificar na obra do dramaturgo brasileiro

Qorpo-Santo – especificamente, a comédia As Relações Naturais, escrita em 1866 – a

crítica à sociedade do século XIX; analisar a encenação da dramaturgia de Qorpo-Santo

levada a termo pelo grupo do Teatro Jovem, da cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1968.

Para isso buscamos relacionar esse grupo com o contexto de sua produção teatral; e

investigar como ocorreu a identificação do grupo Teatro Jovem, na conjuntura

sociocultural da década de 1960, com a obra de Qorpo-Santo. Além disso, procuramos

apreender as estratégias e práticas culturais adotadas na encenação; descobrir até que ponto

é possível entender como Luiz Carlos Maciel foi apreendido pela leitura do texto; e

verificar possíveis maneiras de re-significar, nos dias de hoje, século XXI, esta comédia do

século XIX. Com efeito, a re-significação da comédia As Relações Naturais implica: 1)


9
 BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes,
2004; p.56.

                                               13
reconhecer esses dois universos: o do autor e o da re-apresentação, como o de Maciel cem

anos depois, por exemplo; 2) observar a potencialidade da crítica contida na obra, em

ambas as épocas, através da semiologia teatral. Em síntese, visamos compreender o

processo de apropriação e transmissão cultural relacionado à produção dramatúrgica de

Qorpo-Santo, no âmbito da proposta e identidade que o Teatro Jovem cunhou para si; e

mapear as novas ou velhas atribuições de sentido à comédia, sem perder de vista o universo

político e social no Brasil, na década de 1960.

       A reflexão sobre essas questões tende a viabilizar a comprovação da hipótese de que

as posturas dos artistas, que viviam em constante tensão social, e a emergência do chamado

"teatro de protesto", assentavam-se no inconformismo do indivíduo e na sua impotência

frente às imposições do autoritarismo do governo militar.

       Tal hipótese desmembra-se em outras possibilidades interpretativas. Primeiramente,

lembramos que o inconformismo de Qorpo-Santo, afastado do convívio social, motivou a

sua criação literária, suas frementes críticas à sociedade do século XIX e motivou ainda, no

século XX, a retomada da comédia As Relações Naturais por Luiz Carlos Maciel, com o

grupo Teatro Jovem. Ademais, os temas suscitados por esta comédia podem ser vistos

como formas de tensão frente ao cenário político antidemocrático de 1968. Portanto, tais

temas e sua relação simbólica com o contexto sociocultural da década de sessenta revelam

riquezas de conteúdo crítico.

       Vale ressaltar que, embora existam alguns estudos sobre a obra de Qorpo-Santo,

bem como vasta bibliografia sobre o período do regime militar, há ainda uma relativa

escassez de pesquisas históricas sobre a produção teatral neste período. Por outro lado, vale

igualmente frisar que há poucas investigações propriamente numa perspectiva histórica,




                                             14
algumas aqui citadas e trabalhadas10, sobre a dramaturgia de Qorpo-Santo e as áreas de

teoria teatral e lingüística.

        Buscamos, nesta pesquisa, superar o enfoque cronológico linear, detectado em

estudos que se ocuparam da análise da obra de Qorpo-Santo. Nossa abordagem evidencia

os processos de apropriação, historicamente deflagrados, na montagem da comédia As

Relações Naturais por Maciel. Esta montagem renovou a crítica social, tornou-se um

deboche a respeito da família patriarcal brasileira do século XIX; e de sua permanência na

elite do século XX.

        Partimos, então, do reconhecimento da dramaturgia como elaboração de

representações sobre a sociedade e cujo sentido simbólico mira-se num jogo de ordenação

ambígua: por um lado, a hierarquização da própria estrutura social e ,por outro, o simbólico

como mediador capaz de intervir nas diferentes modalidades de apreensão do “real”. Sob

esse enfoque, a história cultural nos permite detectar as estratégias que determinam as

tensões nas relações, as quais levam cada classe, grupo ou meio a serem compreendidos

pela leitura de sua representação.

        No contexto sociocultural dos costumes “provinciais” (hábitos rurais) em que

Qorpo-Santo escreveu suas comédias, percebemos os elementos que lhe conferem

singularidade. Em outras palavras, as influências ideológicas e plásticas medidas pela

natureza dos grupos sociais nos quais se originam; por situações específicas de seus

produtores; e pelo locus no qual se manifestam, no tempo e no espaço.11 Da mesma forma,

buscamos refletir sobre: os termos simbólicos, junto a um clima de violenta repressão,

tanto dentro como fora do Brasil na década de 1960; as categorias mentais e conceituações

10
   Entre eles podemos citar: Os Homens Precários, de Flávio Aguiar; Qorpo-Santo: surrealismo ou absurdo,
de Eudinyr Fraga e O Moderno Teatro de Qorpo-Santo, de Leda Maria Martins.
11
   PELEGRINI, Sandra C. A. A teledramaturgia de Oduvaldo Vianna Filho: da tragédia ao humor – a utopia
da politização do cotidiano. São Paulo: tese de doutorado defendida no Programa de História Social,
FFLCH/USP, 2000.

                                                  15
subjacentes às comédias de Qorpo-Santo; e a apropriação de seus textos por jovens grupos

teatrais brasileiros.

        Qorpo-Santo e Maciel, atores, produtores, críticos e público como sujeitos e agentes

sociais contribuem para dar função significante à representação de As Relações Naturais

em 1968. Se Roger Chartier mostra-nos que “o historiador deve poder vincular em um

mesmo projeto o estudo da produção, da transmissão e da apropriação do texto”12, a

semiologia teatral nos fala de uma da “correlação” entre expressão e conteúdo, em que o

código associa elementos de um “sistema veiculante” (expressão ou significante) aos

elementos de um “sistema veiculado” (conteúdo ou significado). 13

        A junção da leitura semiológica com os instrumentos do universo historiográfico

reforça a interpretação da história cultural, ao trabalhar temas que abarcam as práticas

sociais subjacentes às áreas do teatro e da história. Uma análise que pretenda, como

trabalho historiográfico, explanar sobre as representações existentes nas manifestações

culturais, reconhecemos, não deixa de ter alguns interstícios ao transitar pela arte. No

entanto, é sempre importante retomar o diálogo aberto entre estas representações e a

própria história cultural. Deste diálogo emerge um fértil conhecimento histórico, onde o

manuseio da documentação oferece a possibilidade de tratá-la de forma entrecruzada e não

hierarquizada.

        Chegar no campo específico da historiografia é pensar nas suas interpretações,

como as da história social e cultural, em colaboração com outras disciplinas. A importância

dessa iniciativa circunscreve-se ao fato da história sociocultural possibilitar uma leitura

crítica da sociedade e de suas representações. Para tanto, tomaremos como referencial o


12
   CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP – Imprensa
Oficial do Estado, 1999, P. 18.
13
   PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro.São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 351.

                                                16
historiador Roger Chartier14 que indica a possibilidade de relações de troca entre universos

distintos, simultâneos e entrecruzados.




          “A definição de história cultural pode (...) encontrar-se alterada. Por um lado, é
          preciso pensá-la como a análise do trabalho de representação, isto é, das classificações
          e das exclusões que constituem, na sua diferença radical, as configurações sociais e
          conceituais próprias de um tempo ou de um espaço. As estruturas do mundo social não
          são um dado objetivo, tal como o não são as categorias intelectuais e psicológicas:
          todas elas são historicamente produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais,
          discursivas) que constroem as suas figuras. São estas demarcações, e os esquemas que
          as modelam, que constituem o objeto de uma história cultural levada a repensar
          completamente a relação tradicionalmente postulada entre o social, identificado com
          um real bem real, existindo por si próprio, e as representações, supostas como
          refletindo-o ou dele se desviando.
                 Por outro lado, esta história deve ser entendida como o estudo dos processos
          com os quais se constrói o sentido. Rompendo com a antiga idéia que dotava os textos
          e as obras de um sentido intrínseco, absoluto, único – o qual a crítica tinha a obrigação
          de identificar –, dirige-se às práticas que, pluralmente, contraditoriamente, dão
          significado ao mundo. Daí a caracterização das práticas discursivas como produtoras
          de ordenamento, de afirmação de distâncias, de divisões; daí o reconhecimento das
          práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação.”15




        Assim, a apreensão da encenação de As Relações Naturais do grupo Teatro Jovem

volta-se para a tentativa de relacionar o corpo documental a uma análise historiográfica

pertinente, cuja importância pode ser delineada através da contribuição para a interpretação

plural dos meandros da cultura nacional deste período. A partir da proposta acima traçada,

a metodologia envolve uma abordagem sócio-histórica e semiológica da dramaturgia de

Qorpo-Santo, apontando para sua veiculação e sua relação com a cultura brasileira

contemporânea, após distanciar-se cem anos de sua origem. Portanto, propomo-nos a

investigar o diálogo estabelecido entre o teatro de Qorpo-Santo e a ação cultural do grupo

14
   Referimo-nos especialmente aos seguintes estudos de Roger Chartier: A história cultural entre práticas e
representações. Lisboa: Difel, 1990; o artigo A visão do historiador modernista. In: FERREIRA, Marieta
Moraes & AMADO, Janaína. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 1998; A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do
Estado, 1999.
15
   CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 28.

                                                    17
Teatro Jovem, na década de 1960, de modo a detectarmos o significado e o lugar da ação

cultural do grupo na história cultural brasileira do período. Alcançaremos algum resultado

pelo “estudo do posicionamento social, a origem e a situação específica de seus produtores

e pelo locus no qual se manifestaram”, tal como Pelegrini investigou a produção televisiva

de Oduvaldo Viana Filho.16

        Para tanto, utilizamos como corpo documental, além da comédia As Relações

Naturais, artigos de jornais, artigos e entrevistas publicadas em revistas, programas das

peças e depoimentos do diretor Luiz Carlos Maciel. Com os devidos cuidados,

interpretamos as fontes mencionadas tendo em mente os seguintes pressupostos: apreendê-

las no contexto de sua produção e nos limites de suas proposições. Neste sentido, as

matérias vêm “mostrar os vários conflitos existentes entre os setores” geradores dos bens

culturais: os artistas, a crítica especializada e o Estado.

        O registro jornalístico enquanto fonte histórica revela-nos, conforme Capelato, “os

vários conflitos existentes entre os vários setores, (...) as práticas políticas [que] ocorriam

conforme as necessidades impostas pela luta social”.17 Nesse sentido, as matérias

jornalísticas contribuem para a apreensão mais completa de um momento histórico, seja por

nos oportunizar o acesso aos discursos, ainda que parciais, de outros agentes; seja por

terem elas uma narrativa que pretende representar o social. Sendo assim, o jornal nos

possibilita apreender mais de uma versão entre tantas leituras do mundo. No caso

específico desse estudo, convém lembrar que a imprensa, na conjuntura social de 1968, foi

vigiada, censurada e muitas vezes usada pelo governo militar, para manipular interesses.




16
  PELEGRINI, Sandra C. A. A teledramaturgia de Oduvaldo Vianna Filho: da tragédia ao humor – a utopia da
politização do cotidiano. São Paulo: FFCH/USP, 2000.
17
  CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista 1920-1945. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1989, p.241.

                                                  18
A manipulação das informações durante o regime militar se acentuou a partir de

1968. O governo passou a controlar os jornais, através da censura a conteúdos críticos.

Ainda assim, podemos afirmar que não era possível o controle total. Mas, ao analisarmos as

matérias críticas de jornais sobre o teatro em 1968, vislumbramos “os discursos dentro do

contexto social imediato onde foram produzidos”.18

        Outro procedimento adotado foi entrevistar, no Rio de Janeiro, o então diretor do

Teatro Jovem em 1968, Luiz Carlos Maciel, que dirigiu a comédia do escritor gaúcho e que

gerou a polêmica já mencionada. Com base nos métodos da historia oral, realizamos esta

entrevista e colhemos depoimentos a respeito: da linguagem adotada na montagem

(cenário, vestimenta, diálogos); do público alvo; da censura, entre outras questões. Com

isso, buscamos abrir possibilidades de novas leituras da obra numa perspectiva da história

sociocultural.19 A partir de tais procedimentos, passamos a investigar a importância da re-

significação cultural do tema da comédia, a crítica à sociedade brasileira: nos séculos XIX

e XX. A identificação de um discurso, a partir de fontes oral e escrita, aponta outros

aspectos da formação social, não restritos às questões econômicas apenas. Nesse sentido,

nos debruçamos sobre a entrevista, que contém um teor bastante particular e com formato

específico, e ainda, exige do pesquisador o entendimento claro das ligações entre o

universal e o particular, para tecer sua narrativa histórica.20 Uma vez esclarecidas tais

considerações, podemos lançar mão de variados recursos documentais, entre eles o registro

da história oral.


18
   A enunciação, de acordo com Bakhtin, não ocorre de forma isolada, mas envolvida no contexto social. Este
determina a estrutura da enunciação direcionada para os possíveis ouvintes. Assim, o discurso não é
desprovido de intenção: a descrição, os dados e os argumentos, nos textos literários, são elementos que podem
revelar as posições e visões do social. (BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
Hucitec, 1986).
19
   FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro:
Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998.
20
   Indicativos nesse sentido podem ser observados nas obras de: M. Halbwachs, Michael Pollak, Pierre Nora,
Dea Fenelon, Etienne François, Danièle Voldman.

                                                     19
Entendemos que o sentido da constituição do corpo documental resulta da busca do

historiador pela essência do campo delimitado para investigação. Assim, a metodologia da

história oral contribuiu potencialmente para a elucidação de alguns entraves ao presente

estudo. Sua metodologia também nos leva a lugares sombrios que podem ser iluminados

pela memória aflorada nas entrevistas, pois estas são entendidas como um processo de

produção de documento, constituído de cortes e versões. Nessa busca indiciária, o

historiador acaba transformando a entrevista num documento a ser utilizado como fonte de

pesquisa justaposta às outras fontes e dada a ser lida e reinterpretada. Por pequenos que

possam parecer, os vestígios da fonte oral, sua natureza, os detalhes essenciais nas

“verdades” que ela expressa possibilitam a micro-análise. Para tanto, buscamos a

abordagem disciplinar que objetiva a apreensão de como os processos de comunicação se

completam.21

       Nesta direção a primeira unidade deste trabalho ocupa-se das práticas sociais

subjacentes ao teatro brasileiro no final da década de 1960; e transita pelas representações

das memórias, pertencentes a uma época que valorizava a ação cultural e interagia de forma

intensa com o imaginário social-histórico e com as demandas políticas do governo militar.

Buscamos, portanto, apreender as representações da obra As Relações Naturais elaboradas

por determinados segmentos sociais, sua relação com a práxis social brasileira. Assim, na

última unidade desta dissertação nos defrontamos com experiências em diferenciados

espaços de convivência humana; e investigamos como a produção teatral de Qorpo-Santo

re-apropriada por um encenador em 1968 poderia ser re-significada nos dias de hoje.




21
  GOMEZ, Hector Vargas. Um trajeto reflexivo. La configuración de la mirada cultural. Médios de
comunicación, transformaciones culturales y progresiones orgánicas, 2001.

                                              20
Sem dúvida, chama-nos especial atenção a obra de Qorpo–Santo, pela sua inovação,

expressa na união entre a comédia de costumes22 e a paródia ao realismo das convenções

teatrais da época: ele evocava a sua condição de interditado judicialmente; isso faz de sua

obra, ainda hoje, importante composição artística contra a repressão e os falsos moralismos.

O autor gaúcho respondeu com criatividade e ironia ao tratamento que recebeu da

sociedade do século XIX e seus tentos, ainda hoje, podem se converter numa ferramenta

irreverente de luta política.




22
 A comédia de costumes é o “estudo do comportamento do homem em sociedade, das diferenças de classes,
meio e caráter”. (cf.: PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 55.)


                                                 21
UNIDADE I – TEXTOS E CONTEXTOS DA CRIAÇÃO TEATRAL: UM DESTAQUE

À OBRA DE QORPO-SANTO




                              22
1.1 - LUIZ CARLOS MACIEL E A SOCIEDADE NA DÉCADA DE 1960


           Vamos identificar, nesta unidade, as “estruturas do mundo social” no século XIX e

na década de 1960. Com efeito, localizaremos, com a ajuda de Roger Chartier, as práticas

políticas, sociais e discursivas articuladas e comuns à Porto Alegre de Qorpo-Santo,

primeiro; e ao Rio de Janeiro de Luiz Carlos Maciel, no século seguinte. Como estas

práticas construíram as figuras de suas “categorias intelectuais e psicológicas”? Veremos se

estas práticas comuns a cada época podem se constituir em objeto de uma história cultural.

Comecemos pelo contexto do século XIX.23

           Para entendermos o contexto em que foi escrita a comédia As Relações Naturais e

porque gerou tanta polêmica em 1968, convém aqui fazer uma pequena retrospectiva. José

Joaquim de Campos Leão, Qorpo-Santo, nome incorporado por ele mesmo, viveu na cidade

de Porto Alegre, na segunda metade do século XIX, e era um homem materialmente

próspero. Nesta cidade, foi professor de primeiras letras, ou gramática, no Colégio São

João; jornalista de um tablóide criado por ele mesmo – A Justiça –; e também vereador. Em

1867, Qorpo-Santo começou a ter problemas de relacionamento social, considerados pelos

da época como decorrentes de suas perturbações mentais, e foi interditado por ordem

judicial, impedido de gerir sua pessoa e seus bens. Conseqüentemente, foi afastado do

magistério e da família. Em 1868, Qorpo-Santo foi para o Rio de Janeiro, levando consigo

um ofício da junta médica de Porto Alegre dizendo ser ele portador de monomania, para

submeter-se a novo exame no Hospício D. Pedro II, de onde foi liberado com o diagnóstico

contrário ao anterior:




23
     CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 28.


                                                       23
“e nem se nota este círculo de idéias fixas formado pela insanidade da imaginação. Não
           acharam o produto mórbido monomania no que diz respeito às concepções delirantes
           que constitui as anomalias dos sentidos”24.


        Em novos exames no Rio de Janeiro, dessa vez na “Casa de Saúde Doutor Eiras”, o

Dr. Torres Homem julga-o “apto para gozar de seu livre-arbítrio”. Após isso, o juiz Dom

Luís de Assis Mascarenhas julga-o “no estado de poder reger sua pessoa e bens”, e Qorpo-

Santo retorna a Porto Alegre com um novo documento, o salvo-conduto emitido pela

Secretaria da Polícia da Corte. No entanto, os médicos da capital da província gaúcha não

reconheceram o documento; e ele não conseguiu sair da condição de interdito. Sendo assim,

o contexto em que se insere As Relações Naturais aponta para uma pressão injusta contra o

dramaturgo, uma vez que a junta médica da Corte não havia confirmado o diagnóstico de

Porto Alegre.

        No século XIX não havia no Brasil uma psiquiatria médica formada e os asilos de

alienados eram, na maioria das vezes, administrados por instituições religiosas. Os

alienistas defendiam um local específico para os loucos, alegando que estes eram perigosos.

O conceito de monomania no século XIX25 deu suporte teórico a uma nova noção e

definição de loucura. Para além do delírio, estabeleciam uma forte relação entre doença

24
   Cf.: CÉSAR, Guilhermino. O Criador do Teatro do Absurdo. In: Qorpo-Santo: As Relações Naturais e
Outras comédias. Porto Alegre, Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969,
p. 19. Neste livro, Guilhermino apresenta este documento (auto de exame de sanidade dos médicos do
Hospício de D. Pedro II) e os demais citados abaixo.
25
   Significado atual de “Monomania: 1. sinônimo obsoleto de paranóia. Paranóia: psicose caracterizada
sobretudo por ilusões fixas. É um sistema delirante durável. As ilusões de perseguição e grandeza são mais
duradouras e mais sistematizadas que na esquizofrenia paranóide. Os ressentimentos são profundos e o
paranóico geralmente procura agredir aqueles que estiverem presentes em seus conflitos. É um tipo perigoso
para a sociedade: egocêntrico e destruidor, conhece seus inimigos e julga que sua grandeza depende da
eliminação de pessoas que o prejudicam. Há delírios de reivindicação, de interpretação e de imaginação.” 2.
“Monomania: transtorno mental caracterizado por idéias fixas ou dominantes que se dão junto com uma
personalidade integrada em outros aspectos.” 3. “delírio parcial. Crença patológica em fatos irreais ou
concepções imaginativas destituídas de base. Os temas mais comuns são grandes idéias de grandeza,
perseguição, ciúmes, culpabilidade, etc. Sua justificativa efetua-se seja por interpretações falsas, seja por
falsas percepções (alucinações). Trata-se, às vezes, de elaborações mais ou menos incoerentes e fantásticas,
puramente imaginativas.” (Cf.: 1. DORIN, L. Enciclopédia de Psicologia Contemporânea. São Paulo:
Iracema, 1981, pp. 212-242; 2. WARREN, Howard C. Dicionário de Psicologia. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1991, p. 231; 3. e PIÉRON, Henri. Dicionário de Psicologia. Porto Alegre: Editora Globo, 1966,
p. 111).

                                                     24
mental e comportamento violento desviante. Havia grande dificuldade em identificar as

pessoas com tais desvios, porque as faculdades mentais estavam ilesas até ocorrer um ato

violento. A monomania surge neste contexto e parece ter funcionado como uma noção

estratégica: não ocorria a prisão comum, mas os médicos defendiam a criação de um espaço

para a reclusão e tratamento. Por volta de 1870 podemos encontrar no Brasil um

movimento, entre os médicos, em defesa da criação de manicômios criminais, retirando os

doentes mentais delinqüentes da área médica.26

       Em 1887, mesmo interditado, Qorpo-Santo publicou em tipografia própria sua obra

escrita: Ensiqlopédia ou Seis Meses de Uma Enfermidade, composta de 9 volumes. Ele

propôs, nesta obra, uma reforma ortográfica, por isso incorporou a letra Q, no lugar de C,

em seu pseudônimo. As dezessete comédias, escritas alucinadamente entre janeiro e maio

1866, inclusive As Relações Naturais, compõem sua antologia teatral, no volume IV,

juntamente com outros escritos.27

       O século XIX, na consolidação do Estado Imperial brasileiro, tinha o liberalismo

europeu como referência para a “criação” e funcionamento das instituições que o

constituíam. O liberalismo no Brasil buscou inspiração na Europa, servindo aqui para

legitimar o funcionamento de instituições fundadas todas em relações sociais escravistas.

Um dos esteios da sociedade escravista moderna foi a família, nos moldes patriarcais,




26
   PERES, Maria Fernanda Tourinho. A estratégia da periculosidade: psiquiatria e justiça penal em um
hospital de cústódia e tratamento. In: PSYCHIATRY on Line Brasil – Current Issues, nº (3), 08/1998.
27
   Dramaturgia completa: Mateus e Mateusa; As Relações Naturais; Hoje Eu Sou Um, Amanhã Outro; Eu Sou
Vida, Eu Não Sou Morte; A Separação de Dois Esposos; O Marido Extremoso, Ou O Pai Cuidadoso; Um
Credor Da Fazenda Nacional; Certa Entidade Em Busca De Outra; Uma Pitada De Rapé; Um Assovio;
Lanterna De Fogo; Um Parto; O Hóspede Atrevido, Ou O Brilhante Escondido; A Impossibilidade da
Santificação, Ou A Santificação Transformada; O Marinheiro Escritor; Duas Páginas Em Branco; e Dous
Irmãos, que está incompleta.

                                                 25
caracterizada pela concentração da autoridade na figura masculina do casal – o pater

familias – herança romana na vida política do Império. 28

        Na comédia As Relações Naturais, a moral patriarcal é um tema constantemente

retomado e ponto de tensão: quanto ao tema, a moral é enfatizada pela fidelidade ao

casamento; enquanto que a tensão surge da necessidade impulsiva de ter relações fora do

casamento. Dessa tensão, surgem, nesta comédia, críticas satirizando instituições como a

família e o próprio Estado Imperial, personalizado na figura dos governantes. O

pesquisador Flávio Aguiar (1975) considerou que Qorpo-Santo foi um crítico ferrenho da

sociedade da época, portanto, processá-lo como louco fora uma maneira de silenciar suas

revolucionárias idéias frente a pequena Porto Alegre de então. Diante da originalidade

biográfica e dramatúrgica de Qorpo-Santo, interessa-nos destacar o significado e a

atualidade de suas críticas.

        A instituição do casamento no período colonial se realizava por interesses

familiares, sob o domínio patriarcal, considerando particularmente os benefícios

econômicos e sociais; dentro dos novos padrões de comportamento, o contrato conjugal se

tornou uma opção feita unicamente entre o casal, enquanto a prole passou a ser o centro da

atenção familiar. As relações típicas da sociedade colonial foram encaradas como

desobediência civil, políticos e médicos se encarregaram de atacar tais comportamentos. O

lema era o amor à família, o amor ao Estado. Vários setores da sociedade passaram a

combater os comportamentos inadequados, no sentido de uma nova moral da vida e do

corpo, a mesma defendida pelos médicos.

        Vale lembrar que a partir da consolidação do Estado Nacional brasileiro, houve um

crescente interesse do governo pela normatização dos comportamentos sociais. Isso

28
  MALERBA. Jurandir. Os brancos da lei: liberalismo, escravidão e mentalidade patriarcal no Império do
Brasil. Maringá: EDUEM, 1994.

                                                 26
aconteceu com o advento da independência política do país, quando as políticas públicas de

saúde passaram a interferir no cerne das famílias, com intuito de preservar o recente

contrato social “democrático” e burguês. O destino das pessoas passou a subordinar-se ao

destino político da burguesia, segundo seus padrões de corpo, sexo, sentimentos conjugais,

parentais e filiais. O Estado queria a modernização das mentalidades e costumes. Assim,

em 1851, foi criada pelo governo imperial a “Junta Central de Higiene Pública”,

instrumentada de poderes justificados na ciência médica, com objetivos claros de

determinar os novos padrões de comportamento, considerados corretos para as relações

familiares.29

       Os políticos visavam, supostamente, resolver um problema social, o das moradias

dos pobres; no entanto, o real motivo aos poucos apareceu: o de fixar o ideal burguês como

sinônimo de civilização. Baseada em uma ciência médica, foi iniciada uma campanha

normativa, alinhando a desobediência civil ao comportamento colonial atrasado. Foi

estabelecida a conexão entre a ideologia higienista e o imaginário engendrado entre os

políticos e os governantes. Iria prevalecer, desde então, a idéia de que a civilização tem um

caminho a seguir, o do “aperfeiçoamento moral e material”; e de que os governantes devem

“zelar” para que seu povo siga-o; e solucionar os problemas de higiene pública, pois só

assim a nação conseguiria alcançar a prosperidade dos “países mais cultos”. Segundo o

historiador Sidney Chalhoub, a partir dessas duas operações mentais configuraram-se os

pressupostos da higiene como ideologia: várias medidas técnicas, que conduziriam o país a

civilização e às quais ficaria submetida todo o jogo político.30




29
  COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
30
  CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiço e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996, p. 34-35.


                                               27
Continuemos o nosso reconhecimento às “configurações sociais e conceituais”, mas

passemos, agora, ao século XX, ou, mais precisamente, à década de 1960. Sabemos,

através de Chartier, que a história cultural “deve ser entendida como o estudo dos processos

com os quais se constrói o sentido”. A obra de Qorpo-Santo obteve uma leitura libertadora

com Luiz Carlos Maciel, em 1968, quando este diretor re-significou a comédia As Relações

Naturais e deu novo sentido a ela, tomando-a, a nosso ver, como uma “prática de

apropriação cultural” enquanto forma diferenciada de interpretação.31

           Dada a significativa e constante presença do teatro na vida de Luiz Carlos Maciel,

achamos importante fazer, também para ele, um retrospecto de sua vida teatral anterior a

1968, para depois iniciarmos uma reflexão acerca de seu repertório teatral, durante sua

estada no Teatro Jovem. Maciel fez teatro amador em vários grupos na cidade de Porto

Alegre, Rio Grande do Sul, tais como: Teatro Universitário, Clube de Teatro e Teatro de

Equipe. Participou como ator em espetáculos como: Nossa Cidade, de Thonrton Wilder;

Seis Personagens a Procura de um Autor, de Pirandello; A Margem da Vida, de Tennesse

Williams – entre outras. Dirigiu também as peças Os Cegos, de Michel de Ghelderode; e

Esperando Godot, de Samuel Beckett. Em 1959, ganhou uma bolsa para a Escola de Teatro

da Universidade da Bahia, então dirigida por Martim Gonçalves; no ano seguinte, ganhou

outra bolsa de estudos da Fundação Rockefeller, para o Carnegie Institute of Technology,

em Pittsburgh, nos Estados Unidos, onde estudou direção teatral durante dezoito meses.

Voltou a Salvador em 1961 como professor da Escola de Teatro. Nesse período, dirigiu as

peças: A História do Zoológico e A Morte de Bessie Smith, de Edward Albee, Morte e Vida

Severina, de João Cabral de Melo Neto, Major Bárbara, de Bernard Shaw, e Leonce e

Lena, de Georg Buchner. Em 1964, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde deu aulas de
31
     CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 28.

                                                       28
teatro no Conservatório Dramático Nacional; e, em 1967, fundou o grupo Teatro de

Repertório, com Tite de Lemos e Paulo Afonso Grisolli, com os quais dirigiu a peça O

Labirinto, de Arrabal, no Teatro de Arena da Guanabara.32 O que percebemos nesses

trabalhos é que eles fazem parte de uma dramaturgia moderna, contemporânea; e, muitas

vezes, situados entre as maiores obras de vanguarda do teatro ocidental.


        A participação de Luiz Carlos Maciel no Teatro Jovem do Rio de Janeiro foi curta,

apenas em 1968; em comparação com o que havia realizado até então. Já era experiente

cenicamente e acostumado com a linguagem de vanguarda da época. Importa-nos saber que

as duas montagens do grupo, dirigidas por Maciel, foram contundentes do ponto de vista

crítico-social. São elas: Barrela, de Plínio Marcos33 e As Relações Naturais, de Qorpo-

Santo. Ambas as obras estiveram, certamente, em diálogo com a crítica social: entendida

aqui como ato de interpretação de uma realidade através da arte. Barrela revelava, por uma

linguagem realista, as pessoas marginalizadas da sociedade brasileira; enquanto que As

Relações Naturais representava um ato libertário, um deboche a respeito do

conservadorismo na sociedade. Esta última montagem tinha uma linguagem mais livre e

inovadora, como comenta Maciel: “era a preocupação da juventude com a repressão

sexual” que estava sendo exposta no palco diante de todos. Assim, as conexões entre

história e teatro, arte e sociedade, remetem à mudança comportamental do jovem dos anos

de 1960 e seu vínculo com o ato cênico.


        Mas, resolver montar a comédia As Relações Naturais, de Qorpo-Santo, foi quase

uma conseqüência da proibição de Barrela, pois o texto de Plínio Marcos foi proibido um


32
   Cf. dados disponíveis no site oficial de Luiz Carlos Maciel, http:/www.luizcarlosmaciel.zip.net. Acesso em
03/2006.
33
   Plínio Marcos foi um dos autores mais premiados do teatro brasileiro. Surgiu como dramaturgo na década
de 1960. Sua temática buscava representar o submundo e as pessoas marginalizadas.

                                                     29
dia antes da estréia do espetáculo. A censura, ao que tudo indica, propositalmente, demorou

a dar resposta ao grupo de teatro, que havia mandado o texto com bastante antecedência

para ser analisado e liberado. Diante desse ato dos censores do regime militar houve

protesto no Teatro Jovem, ocorreram reuniões para decidir o que os artistas deveriam fazer

diante da proibição. O próprio Plínio Marcos participou dessas reuniões, como afirmou

Maciel em seu depoimento34, que de nada adiantaram, o texto foi proibido na íntegra. O

grupo, mesmo assim, fez algumas apresentações clandestinas no Teatro Jovem, à meia-

noite. Yan Michalski, crítico do Jornal do Brasil, escreveu uma crítica positiva sobre a

montagem, contudo, mesmo com essa crítica, o produtor do espetáculo Ginaldo de Souza,

encerrou as apresentações, por conta do prejuízo que implicava e propôs a Maciel montar

outro texto dramatúrgico. Foi quando Luiz Carlos Maciel teve a idéia de encenar a comédia

de Qorpo-Santo, As Relações Naturais.35


       É importante observar, nesse trabalho, como aconteciam as estratégias dos artistas

diante da censura prévia: os textos teatrais eram enviados aos censores, passavam por uma

análise de conteúdo, para serem liberados, ou não, para montagem. Como diz Maciel,

quando se refere ao momento em que o grupo estava aguardando a liberação do texto

Barrela por parte da censura federal:



     “E aconteceu tudo isso, a censura nos sacaneou bastante, porque a gente mandou o
     texto pra Brasília com muita antecedência, e eles não davam nunca uma resposta sobre
     a liberação do texto. A gente ficou achando que: ‘– não, eles vão cortar algumas coisas,
     tem muito palavrão...’ porque na cadeia tudo mundo fala palavrão, o tempo todo... ‘–
     então vamos botar mais palavrão!’ Até porque a gente tinha essa estratégia do boi de
     piranha: botava bastante coisa pra ser cortada; pra eles deixarem... (risos) a gente
     exagerava para eles cortarem no exagero; e sobrar o resto! Mas em Barrela eles não



34
   MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração
1h20min.
35
   MACIEL, Luís Carlos. Negócio Seguinte. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, p.14. Duração 1h20min.

                                               30
fizeram isso não, eles seguraram até o dia da estréia. O espetáculo estava pronto pra
      estrear e vetaram, proibindo a peça toda, completamente...”36


        A dificuldade em trabalhar foi ficando cada vez mais evidente e constante. Na

década de 1970, Plínio Marcos chegou ao ponto de não conseguir mais exercer seu teatro.

Aquele tipo de dramaturgia, que representava explicitamente as duras realidades do Brasil e

que tinha um afã de esquerda aos olhos dos militares, mesmo que não o fosse, era

previamente proibido. Tal atitude por parte do governo militar, mesmo parecendo não ter

sentido, tinha sua lógica: impedir que o público tivesse contato com conteúdos críticos.

Referimo-nos aqui àquela “cultura de oposição”, resultante do encontro entre público e

teatro, conforme diz Rosangela Patriota em seu trabalho sobre Vianinha:



        “durante o período militar construiu-se uma ‘cultura de oposição’, presente no teatro, no
        cinema, na música, na literatura entre outras formas de manifestação, permitindo que se
        estabelecesse uma ‘identidade’ entre produtores e consumidores de bens culturais,
        propiciada pelo engajamento artístico, que se tornou uma das pilastras da resistência
                      37
        democrática.”


        Não podemos perder de vista, no entanto, que o Estado brasileiro, através da

censura e da violência física, procurou dar suporte a uma nova fase capitalista no país. Esta

nova fase sustentou-se nas seguintes idéias propagadas:

          “desenvolvimento nacional, integração e segurança, com investimentos no crescimento
          econômico acelerado e artificial, colocado em prática através de sistemas de créditos e
          subsídios governamentais que foram viabilizados por empréstimos internacionais,
          arrocho salarial da classe trabalhadora, concentração de renda e desigualdades sociais.
          Ocorrendo a militarização do social e o intervencionismo do Estado na economia, com
          o objetivo de legitimar a idéia de que a nação estava retomando o crescimento e se
          modernizando de maneira responsável.”38




36
   MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006.
37
   PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração do seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999, p.
16.
38
   PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. A UNE nos anos 60: utopias e práticas políticas no Brasil.
Londrina: Ed. Da UEL, 1997, p. 141.

                                                 31
Além disso, iniciou-se nos meios de comunicação também uma nova fase, onde a

utopia artística começou a perder espaço para um violento processo de massificação da

cultura popular. É dentro deste contexto que vamos refletir sobre a resistência, no teatro, e

interpretar, com o auxílio da história, as origens dela. De onde vem tal resistência a tão

fortes transformações sociais? A resposta está no contexto social, conforme veremos a

seguir.



          O teatro brasileiro na década de 1960 esteve em constante contato com a cultura

popular, por meio dos CPCs, Centros Populares de Culturas, do Teatro de Arena, do Show

Opinião, entre outros. Também devemos lembrar que a partir da Semana de 1922 houve

uma grande reflexão em busca do caráter de nossa cultura. Os modernistas também

estabeleceram diálogos com a cultura popular. E, mais ainda, quando chegamos na década

de 1950, temos o cinema novamente ventilando as questões do Brasil e a produção

hollywoodiana propagando as concepções políticas da chamada “Guerra Fria”. Os embates

entre os Estados Unidos da América e a União Soviética, expressos nas produções culturais

entre 1945 e 1950, sem dúvida, reproduziam as metáforas da “Americam way of life”

versus as do “Comunist way of life” nas décadas seguintes. Especialmente a produção

fílmica tomou os protagonistas estadunidenses representantes do “mundo cristão, de

recursos abundantes, valores democráticos, (...) liberdades civis e políticas”, enquanto os

“vilões” comunistas personalizavam o “mal absoluto”, ou seja, “o mundo ateu” e

“antidemocrático”.39 Mas a paulatina imposição das produções fílmicas nos mercados

culturais impulsionavam leituras particulares das demandas da “Guerra Fria”.




39
  Cf.: VALIM, Alexandre Busko. Imagens vigiadas: uma história social do cinema no alvorecer da Guerra
Fria (1945-1954). Niterói, RJ, Tese de doutoramento defendida na UFF, 2006.

                                                 32
A partir da contestação das ideologias estadunidenses e do repensar sobre a função

social ou o papel da dramaturgia, os artistas brasileiros propuseram-se a estabelecer

relações interativas entre as práticas e as representações políticas na década de 1960. Essas

relações:

            “geram apropriações do sentido da arte, de acordo com interesses sociais, com as
            imposições e resistências políticas, as motivações e necessidades que se confrontam no
            mundo humano”.40


          Os prodígios do “mundo democrático”, preconizado nas Américas, confrontavam-se

com as “utopias comunistas”, que pressupunham a possibilidade de um mundo igualitário.

A dominação e o poder eclodiam no âmbito político e cultural, deixando evidências da

força do governo instaurado no Brasil em 1964; e da reação de parte significativa dos

produtores culturais, que contestavam as proposições autoritárias, impregnadas nas

“benesses democráticas” e no “terror comunista” disseminados pelos militares.

          Na gestão do general Arthur da Costa e Silva, entre 15/03/1967 a 31/8/1969,

iniciaram-se grandes movimentos da sociedade brasileira de resistência ao governo militar.

Costa e Silva ao tomar posse prometeu restaurar o regime democrático, restabelecer a

ordem jurídica e fazer reformas necessárias na estrutura sócio-econômica do país, que

contava com uma população crescente de 87 milhões de habitantes. Na área econômica,

Delfim Neto, ministro da fazenda, despontava como o novo líder. Ele procurou impor uma

política econômica, com resultados de curto prazo, para ser sentida no cotidiano dos

brasileiros. Em abril de 1967, Delfim Neto reduziu as taxas de juros e o ministro do

Trabalho Jarbas Passarinho prometeu aumentar o poder de consumo dos trabalhadores. Tais

medidas tiveram total apoio por parte dos segmentos empresariais, mas os trabalhadores,




40
     BARROS. Idem: 2004; P. 88.

                                                 33
não acreditando nas promessas do governo, reivindicaram a liberdade sindical, anistia e

cancelamento dos decretos-leis do antigo governo.

       Essas medidas foram legitimadas pelo discurso de que seu objetivo era fazer o país

alcançar novos patamares de desenvolvimento econômico. Segundo Carlos Fico, o regime

militar desenvolveu um estilo de propaganda específica, por ser pretensamente

despolitizada, sendo politizada. À tecnização política acresceu-se uma “espiritualização da

propaganda”: a super-valorização dos “sentimentos nobres” e dos “valores brasileiros”

preencheu o conteúdo da propaganda política. Com isso o governo militar buscou

conformar o padrão de comportamento social aos patamares de desenvolvimento

econômico que levariam o povo ao mundo desenvolvido.41 Sendo assim, as estratégias de

poder e dominação impressas pelo governo militar deram-se em consonância com medidas

econômicas e com a propagação ideológica, através das mídias, que veiculava a idéia de

que todo brasileiro estava participando e contribuindo para o avanço econômico do Brasil.

       Contudo, apesar da eficácia da propaganda ocorrida nesse período nem todos os

segmentos sociais estiveram passivos diante do investimento do governo militar, que

buscou legitimar e cultivar nas pessoas um imaginário social consensual. As abordagens

sobre a história recente do Brasil têm nos indicado que nunca houve na história a

hegemonia da cultura; por mais que os dominadores buscassem meios para consegui-la,

sempre houve os nichos de resistência.

       O movimento estudantil e a luta armada foram à expressão mais contundente de

oposição ao governo militar entre 1967-1968. Conforme Marcos Napolitano: “Os dois




41
   FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de
Janeiro: FGV, 1997, p. 23.

                                                34
movimentos freqüentemente iriam se entrecruzar: os estudantes forneciam quadros para a

guerrilha e a guerrilha estimulava as ações de massa”. 42

          Portanto, os grupos de esquerda se organizaram numa ação política radical de

oposição ao governo militar. Outro movimento, o sindical, reaparecia em duas greves

operárias, em Contagem (MG) e Osasco (SP). Portanto, vários setores da sociedade

manifestavam seus descontentamentos e os protestos políticos se radicalizaram num

crescente. Contudo, inexistiu uma aproximação mais concreta dos operários junto aos

estudantes e guerrilheiros.

          Outro fenômeno político do período foi a fragmentação do Partido Comunista

Brasileiro:



          “o PCB, fragmentou-se em meio às avaliações e autocríticas de seus membros. O
          Partido, capitaneado pelo legendário Luís Carlos Prestes, insistia na formação de
          uma frente democrática (que incluía setores da burguesia liberal) contra a
          ditadura, atuando por vias pacíficas pela derrubada do regime militar.”43


          Não concordando com tal proposta, muitos dirigentes de esquerda decidiram criar

seus próprios grupos, como: Ação Libertadora Nacional (ALN), liderado por Carlos

Mariguela, tinha o propósito de começar um processo de guerrilha urbana e depois rural; e

o PCdoB, que surgiu em 1962 ao se desmembrar do PCB. O PCdoB, em 1967, montou uma

base de guerrilheiros na região do Araguaia, com objetivo de organizar um contingente

camponês para uma guerra popular. Houve outros: Partido Comunista Brasileiro

Revolucionário (PCBR); Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8); Vanguarda

Popular Revolucionária (VPR) ao qual pertencia Carlos Lamarca. A ação desses grupos

revolucionários de esquerda gerou certo efeito sobre a opinião pública: assaltos a bancos,


42
     NAPOLITANO, Marcos. O regime militar brasileiro: 1964-1985. São Paulo: Atual, 1998, 26-27.
43
     NAPOLITANO. Idem. 1998.

                                                    35
seqüestros de diplomatas estrangeiros, foram formas de conseguir dinheiro para a guerrilha,

mas também tinha objetivos revolucionários efetivos, desestabilizar e derrubar um governo

militar golpista. Contudo, a luta armada empreendida pelos grupos de esquerda logo seria

controlada pelo exército, a sua forma de luta nunca foi adotada pela sociedade.

          No ano de 1968 ocorreram inúmeros acontecimentos dramáticos que marcaram a

história recente brasileira. A morte do estudante secundarista Edson Luís em 28 de março

de 1968 no Rio de Janeiro, baleado pela polícia na manifestação do Restaurante Calabouço,

segundo Sandra Pelegrini, desencadeou protestos em nível nacional. “Sob o clima de

perplexidade e revolta, o corpo foi velado por uma multidão na Assembléia Legislativa do

Rio”.44

          Devido à grande repercussão desse ocorrido, o movimento estudantil passou a

contar com o apoio popular amplo, o que ocorreu através de “greves, atos públicos e

comícios relâmpagos, todos acompanhados de perto por cães, policiais, bombas de gás

lacrimogêneo e de efeito moral”.45

          Em 21 de junho a cidade do Rio de Janeiro foi palco da chamada “sexta-feira

sangrenta”: violento choque de rua resultando na morte de quatro manifestantes e mais de

vinte feridos a bala. No dia 26 de junho de 1968, políticos, artistas, intelectuais,

trabalhadores e grande número de estudantes, juntamente com a sociedade civil, uniram-se

para manifestar repúdio ao regime militar no evento conhecido como “Passeata dos Cem

Mil”. Era o início de uma ampla luta contra o governo militar. 46




44
   PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. A UNE nos anos 60: utopias e prática políticas no Brasil.
Londrina: Ed. da UEL, 1997, p. 158.
45
   PELEGRINI. Idem. p. 159.
46
   NAPOLITANO. Idem. p. 31.

                                              36
Como todos os movimentos do período, havia também divergências internas no

movimento estudantil. Este, a partir de 1968, buscou novos caminhos e, nesse processo, as

rivalidades internas entre a esquerda e a direita, sediada no Mackenzie, aumentou.



        “No dia 12 de outubro se realizou de forma clandestina o XXX Congresso da UNE,
        em Ibiúna (SP). Este foi descoberto pela polícia e várias lideranças nacionais como
        José Dirceu, Vladimir Palmeira, Luís Travassos, entre outros foram presos.47


        Para Marcos Napolitano estas prisões geraram o enfraquecimento do movimento

estudantil de massa, que perdeu seu poder de organização.48 Daí para frente a fragmentação

do movimento estudantil entrou num crescente. Após 1969 os agentes da ordem adotaram a

repressão sem “distinção entre os segmentos sociais que desfrutavam de certa

imunidade”.49 E como o aparato coercitivo do regime sabia que a maioria do quadro que

compunha a guerrilha urbana era de pessoas pertencentes aos mais altos segmentos sociais

(profissionais liberais, executivos, filhos de famílias abastadas), passam a agir sem

distinção, não havendo mais privilégios a tais segmentos.

        Contudo, os conflitos resultantes das oposições à ordem vigente, em 1968, eram

diversos e nem sempre ocorriam através da violência física ou luta armada:



        “No campo comportamental iniciaram-se questionamentos de padrões de moral,
        de política e de relacionamento humano que negavam o exercício da autoridade.
        Os ditos novos movimentos sociais cada qual com suas estratégias de ação e
        política de identidade negavam o status quo dominante: feminismo, revolução
        sexual, liberação dos costumes, movimento negro, entre outros estimularam a
        revisão das relações pessoais e trabalhistas propondo mais igualdade de relações
        na produção”.50




47
   PELEGRINI. Idem. p. 167.
48
   NAPOLITANO. Idem, p. 33.
49
   PELEGRINI, Sandra C. A. A institucionalização da violência: embates entre militares e universitários no
Brasil. In: Cultura e cidadania: ANPUH-PR, 1996, v. 1, p. 207.
50
   PELEGRINI. Idem.

                                                   37
Na área artística também ocorreram inquietudes na música, no cinema e no teatro.

Nas artes em geral, outros padrões conceituais, temáticos e de linguagem, com outras

formulações práticas que se propunham revolucionar a tradição artística, são

estabelecidas.51 Contra a crítica tradicional, levantaram-se os gritos de liberdade dos

artistas:



           “Contra a opinião dos conservadores, no entanto, levantaram-se o artista plástico
           Hélio Oiticica, os compositores Gilberto Gil e Caetano Veloso, o cineasta Glauber
           Rocha e o teatrólogo José Celso Martinez Corrêa, gritando novas palavras de ordem e
           conclamando para a “guerrilha cultural”: “Abaixo o preconceito”, “Por uma nova
           estética”, “Por uma nova moral”, “Abaixo a cultura de elite” e “A imaginação no
           poder”.52


           Portanto, tais gritos provinham dos ecos dos vários movimentos sociais que

contestavam as imposturas do regime militar. Nesse sentido, os gritos contra a crítica

tradicional ultrapassaram a esfera das artes, por questionar as posições conservadoras da

sociedade como um todo.

           Em 1968, enquanto uma parcela da população manifestava seus desejos por

transformações que se expressavam em variados níveis do relacionamento humano

iniciava-se entre os militares a luta pelo poder. O discurso de Márcio Moreira Alves na

Câmara dos Deputados, responsabilizando o governo militar pela violência contra os

estudantes, foi utilizado, pelo governo, como pretexto para editar o AI-5 em 13 de

dezembro de 1968. Iniciou-se o terror de Estado através desse Ato: cassação generalizada a

parlamentares e cidadãos; suspensão do habeas-corpus de presos políticos; mais

centralização do poder Executivo federal; o Gabinete Militar da Presidência passou a

coordenar diretamente a repressão; ampliação do poder político do Conselho de Segurança


51
     PELEGRINI. Idem, p. 161-162.
52
     NOSSO SÉCULO. (1960/1980): sob as ordens de Brasília. São Paulo: Abril Cultural, 1986, P. 160.

                                                     38
Nacional. Tais núcleos do poder foram definidores na disputa sucessória para a Presidência

da República, que levaria o general Emílio Garrastazu Médici ao poder em 1969. 53


           Notamos que a censura se manifestava por motivos políticos sobre o teatro, que

defendia a volta da democracia. Também era justificada a censura por motivos morais,

atingindo o teatro que satirizava a sociedade beneficiária do golpe militar. Assim, a

Doutrina de Segurança Nacional, uma instituição que desde 1949 deu suporte ideológico

aos militares brasileiros, assumiu a orientação dos órgãos de censura. Esta orientação tem

origem em fatores históricos em nível internacional. Após a II Guerra Mundial adveio a

bipolarização do mundo entre países capitalistas (sob tutela dos E.U.A.) e países

comunistas (sob os auspícios da U.R.S.S.). Baseando-se nessa divisão, a DSN estabeleceu

diretrizes para uma contra-ideologia de contenção do avanço do ideário comunista no

território brasileiro.54


           Tal orientação foi passada para os órgãos de censura nacionais. Estes, por sua vez,

formularam propostas político-culturais para determinar entre aquilo que deveria ser

permitido e do que sofreria proibição. Assim, se estabeleceu o nível de relacionamento

entre a censura e a produção cultural no país. No contexto cultural de 1968 tais órgãos

criaram agências, que passaram a agir para obter um complexo de informações a fim de

detectar todo e qualquer movimentação subversiva, que viesse a “ameaçar” a segurança

nacional. Nesse processo ocorreu a militarização do social:


           “Supondo que a propaganda comunista não visava ao confronto armado, mas sim à
           penetração nas mentes da população brasileira, o possível país alvo da sua índole
           insurrecional, a DSN passava a identificar o social como potencial inimigo interno,
           daí toda e qualquer crítica ao Estado ou reivindicação ser interpretada como
           resultado da infiltração do comunismo no país. Por seu turno, essa visão legitimaria

53
     NAPOLITANO. Idem, p.33.
54
     Este tema pode ser aprofundado a partir da consulta de Alexandre Busko Valim, entre outros autores.

                                                       39
a ilimitada ação repressora do Estado e de seus agentes, acionada por intermédio da
        concessão de poderes irrestritos aos militares, empenhados na erradicação da
        ‘ameaça vermelha’.”55

        A partir de 1968 a repressão aos subversivos ampliou-se a medida que os métodos

repressores se sofisticaram:


        “o controle mais sistemático sobre a imprensa (...) as autoridades militares
        utilizavam-se de incontáveis meios de terror e vigilância para manter a chamada
        ‘ordem’. Escuta telefônica, serviços de recorte e análise, circulação suspensa de
        periódicos, invasão dos próprios por policiais militares portando metralhadoras e
        revolveres, explosão de agencias por meio de bombas, detenção de diretores,
        redatores e jornalistas julgados suspeitos tornaram-se medidas cotidianamente
        aplicadas nesse meio.”56

        A ação repressora se voltou sistematicamente sobre os meios formadores de opinião

se interpondo as notícias sobre o país. Assim, concomitantemente, essas ações impediam

que a imprensa revelasse de maneira crítica o que vinha ocorrendo e ocultava as próprias

violências exercidas por parte dos policiais militares.


        No campo das artes (diversões públicas) a ação da censura se fundamentou nos

pressupostos do Serviço Nacional de Informação, como comentou Pelegrini a respeito do

programa deste órgão:


        “ (...) cuja expressão tornava o artista e sua produção uma ameaça direta e
        constante aos ditos valores democráticos do ocidente cristão. Com vistas a
        oferecer subsídios e certo conhecimento técnico do assunto, organizavam-se
        cursos de formação para censores.”57

        Em tais cursos o objetivo era “instruir” os censores para o completo conhecimento

do “inimigo” e, assim, detectar e destruir nas mentes “infectadas” pelo ideário comunista.

Mas tudo era feito em nome da democracia ocidental cristã. Nesse sentido, juntamente a



55
   PELEGRINI, Sandra A. C. A censura e os embates contra um inimigo comum em potencial. In. ROLIM,
Rivail Carvalho, PELEGRINI, Sandra e DIAS, Reginaldo (Orgs). História, espaço e meio ambiente. Maringá:
ANPUH-PR, p. 83, 2000.
56
   PELEGRINI. Idem, 2000, p. 89.
57
   PELEGRINI. Idem, 2000, p. 91.

                                                  40
repressão houve forte propaganda ufanista do Brasil que reforçava a idéia de que os críticos

sociais, na concepção dos militares, eram na “verdade”, inimigos da nação.58


       No decorrer dos acontecimentos a arte passou a ser observada sob a suspeita de

lugar propagandista do ideal comunista e, portanto, subversivo. Assim, as interdições sobre

os espetáculos teatrais, sem distinção, acentuaram-se:


        “No pós-1968 a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) geraria o recrudescimento da
        repressão e da arbitrariedade da censura. Em 1968 tomariam vulto as difamações do
        teatro.”59

       Ocorreu que diante de todo terror e violência os artistas passaram a buscar

alternativas possíveis para continuar trabalhando. “Houve aqueles que continuaram se

expressando através do realismo crítico; outros utilizavam alegorias para dar sua mensagem

e artistas com uma postura mais anárquica”.60 Essas variadas vias de mensagem atestam

uma diversidade expressiva que tiveram em comum resistir e fomentar, em certo sentido,

uma oposição ao truculento governo militar.


       Quando refletimos a respeito da censura e a forte repressão sobre o teatro de autoria

nacional, principalmente a partir de 1968 pós-AI-5, podemos mencionar duas tendências: o

teatro político; e o teatro de vanguarda. No caso do teatro político, que designa “uma

produção teatral vinculada a um ideário político ou a uma temática social fortemente

destacada”61, a intenção política geralmente teve uma orientação de esquerda. Esse teatro

foi fortemente reprimido e até interrompido, como sabemos. Mas, o teatro da criação do

espetáculo, a censura não sabia muito bem o que era. Era mais difícil de censurar. A


58
   FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de
Janeiro: FGV, 1997, p. 23.
59
   PELEGRINI. Idem. p. 95, 2000.
60
   PELEGRINI. Idem. p. 95, 2000.
61
   PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração do seu tempo. São Paulo: Hucitec, p.
15,1999.

                                                41
censura ocorria como no caso do espetáculo As Relações Naturais, em nome da moral e dos

bons costumes. A censura federal justificou a proibição do espetáculo alegando que este era

de “sacanagem”, uma “imoralidade”. Mas, de resto certas intenções no teatro da invenção62

teatral eram muito difíceis de detectar.


        Sendo assim, são duas linhas diferentes de abordar e questionar as repressões

impostas pela ditadura militar: uma com certa identidade de esquerda, marxista; e a outra, a

do grupo Teatro Jovem, em consonância com a contracultura norte-americana e européia,

que estavam mais interessados nas discussões levantadas por Herbert Marcuse e Wilhelm

Reich. Segundo Theodore Roszak, a proeminência da juventude da década de 1960 foi o

principal fator potencializador da contracultura dentro da sociedade norte-americana e

européia. Nos E.U.A., como em vários países europeus, um pouco mais de 50% da

população tinha menos de vinte e cinco anos de idade. Essa grande população de jovens fez

com que a juventude sentisse a sua potencialidade, que em grande parte deveu-se à

máquina publicitária da sociedade de consumo que dedicou atenção especial a essa

consciência etária. À constituição desse grupo de jovens que se agruparam a fim de

contestar e manifestar contra os valores tradicionais da sociedade vigente foi chamada de

“Força Jovem”.63


        Além desses embates que afloravam entre os movimentos sociais e artísticos, havia

a questão da cultura popular e da identidade nacional, sendo que a primeira para os

intelectuais e artistas poderia ser a matéria-prima primordial. A conceituação de identidade

nacional no Brasil se vinculou a questão problemática da cultura popular. Segundo Renato


62
   Termo creditado a Paulo Afonso Grisolli, diretor de teatro da década de 1960. As soluções cênicas e de
linguagem ficava a cargo do poder criativo e imaginativo do diretor, sendo que o texto era apenas a base para
conceber o espetáculo.
63
   ROSZAK, Theodore. A Contracultura. São Paulo: Vozes, 1972.

                                                     42
Ortiz, os intelectuais brasileiros que se propuseram a compreender as crises e os problemas

sociais tinham como objetivo “elaborar uma identidade que se adequasse ao Estado

Nacional”. Sendo assim, a relação que se estabeleceu entre o nacional e o popular esteve

centrado no Estado e fazem parte de duas ordens de fenômenos: enquanto a cultura popular

é considerada heterogênea e o saber popular existe na memória das pessoas. Essa “memória

coletiva” está na vivência entre grupos restritos e são referentes à manifestações artísticas

(o congado é um exemplo desse tipo de cultura). A memória nacional é uma criação

histórica, universalista e abrange toda a sociedade na forma de ideologia. Esta é constituída

a partir da mediação racional de agentes históricos – os intelectuais – segundo uma

interpretação, a qual, o particular (cultura popular) e o universal (cultura nacional) são

ligados. Portanto, ocorre que na vida social a dimensão política é uma de suas partes e as

relações de poder penetram o domínio da esfera cultural. Geralmente os grupos dominantes

da burguesia se apropriam das particularidades da cultura popular para estabelecer um

projeto mais amplo – da cultura nacional e os quer como valores de uma sociedade. 64


           Nesse sentido, a busca dos valores brasileiros na década de 1960 também esteve

cada vez mais em evidência nas artes: um povo festivo, alegre, criativo por um lado; por

outro lado um povo vivendo com tudo isso numa conjuntura subdesenvolvida:

analfabetismo, mortalidade infantil, pobreza e opressão. As questões nacionais estiveram

presentes nas artes em todos os momentos e, de uma forma ou de outra buscou respeitar o

valor peculiar e “pitoresco” de nossa cultura. Contudo, devemos dizer que a partir de 1968

tal valorização passou a interagir com os acontecimentos na Europa e na América do Norte.

O “novo pensamento político”, uma nova utopia de sociedade, o movimento hippie ou

contracultural, ora somavam, ora se opunham aos ideais socialistas e marxista-leninistas.


64
     ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994. pp. 138-139-142.

                                                       43
Uma nova utopia, negadora, de um mundo capitalista, cada vez mais globalizado aparecia

no cenário político enquanto alternativa de sociedade. Era contracultural porque buscava

outra forma de associação diante da cultura burguesa secular.


           Exposto isso, convém retomarmos as críticas efetuadas e as polêmicas criadas em

torno da encenação de As Relações Naturais na década de 1960. Aprendemos com Roger

Chartier, e Luiz Carlos Maciel vem nos confirmar isso através de sua leitura produtiva da

obra de Qorpo-Santo, que um texto apresenta muitas possibilidades de re-significação; e,

sendo assim, a história cultural deve romper:

             “com a antiga idéia que dotava os textos e as obras de um sentido intrínseco, absoluto,
             único – o qual a crítica tinha a obrigação de identificar –, dirige-se às práticas que,
             pluralmente, contraditoriamente, dão significado ao mundo.”65


           No entanto, como veremos, não é fácil romper com a idéia de um sentido intrínseco

que o crítico deve identificar. Veremos como a polêmica envolvendo Maciel e Yan

Michalski fez acirrar dois pontos de vista opostos, sobre a postura do diretor em relação ao

texto. Por um lado, Maciel defendia uma leitura livre do texto que, conforme veremos, tem

origem em Antonin Artaud e outros teatrólogos; Michalski, por outro lado, esperava que a

encenação fosse pura literatura dramática, em que o espetáculo no palco fosse fiel ao texto

o máximo possível.




65
     CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 28.

                                                       44
1.2 – A POLÊMICA CRÍTICA DE YAN MICHALSKI


       A encenação da comédia As Relações Naturais, em 1968, gerou polêmica e tensão

entre o diretor Luiz Carlos Maciel e o crítico de teatro do Jornal do Brasil, Yan Michalski,

autor de críticas contundentes à concepção cênica adotada na montagem. Yan Michalski

assumiu em 1963 a coluna teatral do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, onde permaneceu

até 1982. Foi professor assistente do Centro de Letras e Artes da Uni-Rio (1970-1982) e

presidente da Associação Carioca de Críticos Teatrais (1974-1976). Publicou diversos

livros sobre o teatro: O palco amordaçado (1979); O teatro sob pressão (1985); Teatro e

Estado – As companhias oficiais do teatro no Brasil: História e polêmica (1992);

Ziembinski e o teatro brasileiro (1995). Faleceu em 12 de abril de 1990.

       O trabalho dos críticos teatrais, na década de 1960, foi acompanhar a diversidade

criativa; e o Teatro Jovem também fez parte da complexa trama cultural desse período.

Através de matérias críticas de jornal, nós podemos analisar certas opiniões e julgamentos a

respeito da concepção cênica adotada por Maciel na montagem da comédia. Ao refletirmos

sobre a participação da crítica teatral na montagem das Relações Naturais pelo Teatro

Jovem, devemos levar em consideração a constatação de que Yan Michalski tinha um

posicionamento bem definido com relação à maneira da nova geração teatral fazer o seu

teatro, e esteve até em conflito com ela. Nesse sentido, vamos averiguar até que ponto

Michalski direcionava a sua crítica à linguagem teatral, a partir de um padrão aceitável,

convencional, de espetáculo.

       Uma vez feita tais considerações, entendemos o trabalho do crítico e do artista, duas

partes de um mesmo movimento, portanto portadores de identidades, ou campos de atuação



                                            45
bastante próximos e até mesmo idênticos. O que vai mudar é o locus do discurso. Em

outras palavras, ambos fazem parte de um fenômeno, o artístico, e são produtores de bens

culturais. Entendemos esse fenômeno artístico enquanto práticas políticas de oposição ao

governo militar.

       Sendo assim, a comédia As Relações Naturais, montada no Teatro Jovem e dirigida

por Maciel, juntamente com as matérias críticas feitas por Michalski sobre a mesma,

revelam a diversidade de leituras, de cada parte acerca de uma mesma obra. Estas leituras

ocorreram a partir de referenciais pertencentes a determinados grupos sociais, mas que

também podem ser bastante particulares, por serem práticas políticas de sujeitos atuantes;

estes, envolvidos em processos de apropriação existentes na vida em sociedade. Quando

afirmam que a dramaturgia de Qorpo-Santo é teatro do absurdo e comprova-se, ao menos

teoricamente, o motivo de tal afirmação, a esse exercício teórico de convencimento se

estabelece uma leitura, que se especifica conforme os referenciais de quem formula e ao

grupo social a que este pertence. O mesmo ocorre, podemos dizer, com as compreensões do

que venha a ser o significado do título da comédia de Qorpo-Santo, As Relações Naturais:

para Guilhermino César, defensor da tese do teatro do absurdo, as relações naturais seriam

interpretadas como o sexo dentro do casamento; compreensão que está de acordo com o

universo moral do século XIX. Luiz Carlos Maciel, por outro lado, entende por relações

naturais o sexo livre, sem repressão; interpretação mais livre do termo, mais de acordo com

o momento vivido pelo o diretor teatral em 1968 e que tem como referência a linguagem de

vanguarda e a contracultura.

       Ao retomarmos a questão da polêmica entre o Maciel e Yan Michalski temos que

dar conta de certos nós que a compõe: o conflito do crítico em face a nova geração teatral,

mais experimental e por isso sob o risco do “erro” cênico; as compreensões do que é teatro

para cada um: um fenômeno cênico que se utiliza da obra “aberta” para o primeiro; uma

                                            46
literatura dramática, em que o espetáculo de palco deve ser fiel ao texto o máximo possível,

para o segundo. A partir dessas considerações poderemos analisar: as críticas de Michalski,

tendo-as enquanto um discurso estético que se opõe à concepção cênica do espetáculo

dirigido por Maciel; e, o quanto essa crítica, isolada no seu viés intelectual esteticista, se

afasta da crítica social implícita na montagem e aproxima-se dos motivos, menos estéticos e

sim políticos, da proibição do espetáculo por parte da censura.

        No 1º Caderno do Jornal do Brasil de 15 de maio de 1968, página 16, Yan

Michalski empreendeu uma primeira critica ao espetáculo dirigido por Maciel.66 Ele

afirmou que a concepção cênica adotada diminuía e amesquinhava o alcance da obra de

Qorpo-Santo e que “sobrou apenas grossura”. O crítico de teatro insistiu sobre o caráter

poético da obra e, admitindo que o texto da comédia As Relações Naturais dava margens a

interpretações que poderiam fugir da “fidelidade convencional”, foi irredutível quanto à

leitura de Maciel, alegando que “a infidelidade formal só é aceitável dentro de um clima de

respeito àquilo que a obra original tem de mais válido no seu fundo, no seu conteúdo, na

sua personalidade”. Por sua vez, Luiz Carlos Maciel disse que a crítica feita por Michalski

tinha um viés estetizante, ou seja, o crítico ressaltava o valor da dramaturgia enquanto obra

que tem uma estrutura peculiar e que não pode ser alterada.

        Abrimos um parêntese: não pretendemos aqui resolver os impasses existentes no

campo estético. Simplesmente evidenciamos que enquanto o crítico, em sua posição

confortável de observador, estrutura seu trabalho a partir da obra; o diretor encontrará a


66
   O Jornal do Brasil exerceu grande influência na formação da opinião política do país. A partir de 1957
passou por uma intensa reforma. Em 1960 os classificados passaram a compor um caderno separado (Caderno
C), concomitantemente surgiu o Caderno B, voltado para as artes em geral, com destaque para o cinema e o
teatro. De 1961 a 1973 consolidou-se a reformulação do jornal sob responsabilidade de Alberto Dines. A
grande efervescência cultural existente nos vários campos artísticos foi estímulo para tal reformulação. Nesse
sentido, havia grande diálogo entre o Jornal do Brasil e os artistas jovens. O clima de trabalho na redação
atraiu intelectuais e jovens jornalistas dispostos a inovar no trabalho jornalístico. (FERREIRA, Marieta de
Moraes. A reforma do Jornal do Brasil. In. ABREU, Alzira Alves de. A imprensa em transição. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 1996, pp. 152-155).

                                                     47
estrutura da encenação na busca das soluções cênicas criativas. Nesse sentido Maciel

afirmou:



           “Mas havia uma reação intelectual... Eu estava me lembrando o negócio do Yan
           Michalski, que era uma coisa assim... era uma reação esteticista, que o que chocava as
           senhoras era essa liberdade em matéria de sexo e para o Yan Michalski era o mau
           gosto, a objeção estética dos intelectuais, da praça, era que tudo aquilo era de muito
           mau gosto.”67


       A infidelidade descabida da concepção cênica apontada por Michalski, traduzida

como mau-gosto, foi aproximada por Maciel da opinião das senhoras dos militares. A

nosso ver, essa aproximação tem raízes na revolução sexual como suporte para a crítica, no

palco, às relações familiares vigentes. A arte, muitas vezes, é expressa através de uma idéia

ou conceito que busca atingir ou criar certo estranhamento na platéia. Portanto, dentro

dessa proposta, nem sempre a via expressiva estética é satisfatória ou coerente ao

imaginário de quem assiste.


       Uma outra questão que é importante, tratando-se de teatro, é a receptividade da

platéia. Ainda que o nosso trabalho não tenha como objetivo estudar a recepção da comédia

As Relações Naturais junto ao público, temos a informação de que a platéia acompanhou a

censura federal dessa comédia. Uma matéria publicada no periódico Correio da Manhã de

02 de junho de 1968, 1º Caderno, página 13, com o título Artistas repelem cortes na peça

de Qorpo-Santo, atesta que os atores da peça (Célia Azevedo, Carlos Guimas, Dinorah

Brillanti, Joel Barcelos, Maria Gladys e Selma Caronezzi) tomaram “a decisão de não

assinar o compromisso com a Censura de acolher os cortes que fez e não improvisarem”.

Segundo a matéria jornalística, o produtor do espetáculo Ginaldo de Souza assinou o termo


67
  MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração
1h20min.

                                                 48
de compromisso apresentado pelo Serviço Federal de Censura, mas este não foi

acompanhado pelo elenco citado. O mais importante desse registro jornalístico é o que

segue: “com essa decisão, que foi explicada e entendida pela platéia, anteontem, a peça

fica interditada por iniciativa do elenco, embora oficialmente liberada pela Censura, depois

que a deformou”. Assim, podemos refletir sobre a cumplicidade entre o grupo teatral e a

platéia.




                                            49
UNIDADE II – QORPO-SANTO E MACIEL – UMA LEITURA SEMIOLÓGICA




                               50
2.1 – QORPO-SANTO E A PARÓDIA AO REALISMO DAS CONVENÇÕES

     TEATRAIS


        A comédia As Relações Naturais destaca-se na dramaturgia brasileira por seu valor

de testemunho, sempre marcado pelo conteúdo social. Denota significativo potencial crítico

em relação à família patriarcal do século XIX. O exagero, o deboche e a comicidade

dramática, referentes ao trato da família, trazem à obra uma tonalidade que escapa à

verossimilhança aristotélica 68. Trata-se de uma criação dramatúrgica que visa, não afirmar

no texto referências históricas diretas; mas sim criar os motivos dramáticos com

transparência, ou seja, Qorpo-Santo representa a resistência às pressões familiares e da

sociedade. No entanto ele é, em sua dramaturgia, tanto um observador das relações naturais

e sociais; quanto um criador de formas cênicas que revelam a sua condição de interditado

no interior dessas relações.

        A dramaturgia qorpo-santense, composta de 17 comédias, com enredos

aparentemente desarticulados, representa constantemente o choque entre a controladora

moral patriarcal, elemento da mentalidade da época; e a subjetividade do autor, ou seja, um

sujeito que pretende exercer a sua liberdade, mas que deve confrontar a presença marcante

de um Estado patriarcal. É neste sentido que vemos surgir a figura do personagem-autor no

enredo de algumas peças, como, por exemplo, nas Relações Naturais, o Impertinente.

        Em As Relações Naturais, os conflitos internos de uma família, refletem os ditames

da sociedade patriarcal e escravocrata brasileira. A ideologia do europeu burguês era o


68
  “(...) foi constante o emprego do conceito de verossímil na estética, a partir de Aristóteles. ‘Narrar coisas
efetivamente acontecidas’ – dizia Aristóteles – ‘não é tarefa do poeta; dele seria a tarefa de representar o que
poderia acontecer, as coisas possíveis segundo verossimilhança ou necessidade’. Nesse sentido, verossímil é
o caráter de enunciados, teorias e expressões que não contradigam as regras da possibilidade lógica ou as das
possibilidades teóricas ou humanas.” ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 1000.


                                                      51
liberalismo, o livre mercado frente aos entraves do mundo feudal. No Brasil, o liberalismo

foi assentado em outras bases sociais, nas quais “não havia uma classe capitalista dinâmica

e ativa capaz de dar suporte a um liberalismo genuíno. O elemento burguês radicado no

país ligava-se aos segmentos reinóis mais retrógrados, que pugnavam por readquirir seus

privilégios coloniais”.69 Tais maneiras de convívio serão defendidas por instituições

públicas que passarão, a partir da segunda metade do século XIX, a alimentar a retórica da

fidelidade no casamento: discussões sobre o comportamento ideal no casamento, no sexo e

na família. A contenção dos impulsos naturais – dos desejos do corpo – constituíam as

principais recomendações morais. Somente assim seria possível um enlace feliz. Portanto,

uma postura moral que “ambiguamente” surgia “como barreira e como salvação social” foi

a vigente na sociedade patriarcal.70

        A partir de tais considerações, e entendendo as visões de mundo inscritas nas vozes

dos personagens da comédia, podemos vislumbrar os conflitos destes frente aos novos

padrões sociais. Observamos a moral patriarcal sendo aos poucos transubstanciada pelos

ideais burgueses de casamento, de sexo, de família e de governo.71 Tais preceitos

aburguesados também passam a ser testados no decorrer da comédia.

        Se tivesse sido encenada em seu tempo, a comédia As Relações Naturais poderia ser

considerada, dentro da dialética do texto e da cena, uma obra que extrapola as acepções do

realismo, uma vez que a redundância cênica, condição da ilusão naturalista, é negada ao

texto; e, pela montagem e encenação dirigida por Luiz Carlos Maciel, cem anos depois,

podemos ver que a defasagem, ou desequilíbrio entre o texto e a encenação, é uma das

principais características dessa obra. A re-significação dada em 1968 remete a um referente
69
   MALERBA, Jurandir. O Brasil Imperial (1808-1889): panorama da história do Brasil no século XIX.
Maringá: Eduem, 1999, p. 112.
70
   AGUIAR, Flavio. Os homens precários: inovação e convenção na dramaturgia de Qorpo-Santo. Porto
Alegre: A Nação/Instituto Estadual do Livro, 1975, p.68 e COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma
familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.47.
71
   BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forence-Universitária, 1981.

                                                 52
sócio-cultural distinto do referente de 1866; e esta diferença permite ampliar o conceito de

realidade representada por esta obra, revelando-se assim obra de vanguarda. Se devemos

pensar o texto de Qorpo-Santo com a sua realidade; e também a re-significação de Maciel

com a sua, devemos ter em mente as suas próprias condições de produção:

                      “(...) nenhum texto (...) mantém uma relação transparente com a realidade que
             apreende. O texto, literário ou documental, não pode nunca anular-se como texto, ou
             seja, como um sistema construído consoante categorias, esquemas de percepção e de
             apreciação, regras de funcionamento, que remetem para as suas próprias condições de
             produção. A relação do texto com o real (que pode talvez definir-se como aquilo que o
             próprio texto apresenta como real, construindo-o como um referente situado no seu
             exterior) constrói-se segundo modelos discursivos e delimitações intelectuais próprios
             de cada situação de escrita. (...) O real assume assim um novo sentido: aquilo que é real,
             efetivamente, não é (ou não é apenas) a realidade visada pelo texto, mas a própria
             maneira como ele a cria, na historicidade da sua produção e na intencionalidade da sua
             escrita.”72


           Esta nova forma de representação da realidade, em Qorpo-Santo, é a tentativa de

representar a incoerência do discurso moralizante do realismo teatral da época,

aproximando-a da farsa, da comédia de costumes de um Martins Pena. Tanto em um quanto

no outro, as suas sátiras contundentes exploram: os valores éticos e morais conservadores

da época, os comportamentos dentro das relações da nova família brasileira burguesa ou da

secular família patriarcal. Para compor suas dezessete comédias, todas escritas no ano de

1866, Qorpo-Santo valeu-se tanto da paródia ao realismo teatral, no qual “a representação

lenta, depende mais do discurso do que da ação cênica”; quanto do universo dramático da

comédia de costumes, que tem uma “movimentação cênica rápida e viva”.73 Abordando

temas sobre a família, casamento, sexo, amor romântico e os governos, o dramaturgo

trouxe, em suas comédias, uma representação estética do tipo de moral existente na

segunda metade do século XIX.




72
     CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 63.
73
     AGUIAR. Idem, p.p.93-94.

                                                      53
Segundo a teoria do teatro e pela dialética do texto e da cena, a convivência dos dois

opostos do universo dramático – realismo teatral e farsa – levou Qorpo-Santo a criar uma

narratividade distante da linha temporal cronológica; e próxima de uma seqüência de

quadros e acontecimentos distendidos num tempo subjetivo. Transportando estes opostos

do universo dramático para o universo moral, temos: o bem, que é representado pela

impostação exagerada, como paródia, da intenção moralista do universo dramático realista

da época; e o mal, representado pelas confusões alegres da farsa. Ao colocar personagens

do bem e do mal a conviverem em cena, o dramaturgo torna risível o bem, a pura

moralidade grotescamente lenta e correta; e faz o mal surgir alegre em suas maliciosas

intenções. Na comédia As Relações Naturais os personagens mudam de comportamento

conforme a conveniência do momento: “Não há confrontos entre o bem e o mal, mas

ligações que acontecem através de tênues elos lógicos seja de amizade, seja de

cumplicidade dos criados em relação aos amos”.74

        Essa linguagem teatral de vanguarda, que abarca universos dramáticos díspares,

expressa com fidelidade as “qouzas enxergadas” por Qorpo-Santo, principalmente aquela

“qouza” que ele não enxergou: a repercussão de sua obra no grupo social da época,

precisamente o terceiro ponto da relação autor- obra-público, de Antonio Candido. Se a

sociedade de então não o reconheceu como o seu intérprete, ele fez a sua parte na tríade: foi

o agente (autor) de sua produção dramática (obra); soube utilizá-la como “veículo de suas

aspirações individuais”; mas não viu florescer o “jogo permanente das relações entre os

três”, pela falta do terceiro elemento da tríade, o público, “fator de ligação entre autor e

obra”.75 Mesmo assim, retratou            com fidelidade as relações proibidas pelo discurso

74
  AGUIAR. Idem, p. 94.
75
  “Os elementos individuais adquirem significado social na medida em que as pessoas correspondem às
necessidades coletivas; e estas, agindo, permitem por sua vez que os indivíduos possam exprimir-se,
encontrando repercussão no grupo. As relações entre o artista e o grupo se pautam por esta circunstância e
podem ser esquematizadas do seguinte modo: em primeiro lugar, a necessidade de um agente individual que

                                                   54
moralizante. Mas, conforme ele mesmo diz em poema Censura, publicado na sua

Ensiqlopédia, sua obra incomodava aqueles que fizeram de tudo para não florescer esse

público:

             “Minhas obras esqritadas
             Não podem ser censuradas!
             Pois estão relacionadas

             Qom as qouzas enxergadas!
             Delas são – fiel retrato,
             Qual de fotografia – acto!”.76


        O Estado Imperial, com a ajuda dos juristas, médicos e políticos, procurou ditar e

estabelecer os novos padrões de convivência e moralidade. As comédias qorpo-santenses

estão, assim, potencialmente em digressão reflexiva com discursos feitos na época para

remediar e “curar” a condição humana, desprovida de ética citadina. Mais um fator que

torna a sua obra relevante e nos obriga a:

           “(...) não tratar as ficções como simples documentos, reflexos realistas de uma realidade
           histórica, mas a atender à sua especificidade enquanto texto situado relativamente a
           outros textos e cujas regras de organização, como a elaboração formal, têm em vista
           produzir mais do que mera descrição. O que leva, em seguida, a considerar que os
           ‘materiais-documentos’ obedecem também a processos de construção onde se investem
           conceitos e obsessões dos seus produtores e onde se estabelecem as regras de escrita
           próprias do gênero de que emana o texto.”77


        Confinado a um isolamento total por ter sido interditado judicialmente, Qorpo-Santo

produziu uma dramaturgia da liberdade e, satirizando o realismo teatral, transformou o

tome a si a tarefa de criar ou apresentar a obra; em segundo lugar, ele é ou não reconhecido como criador ou
intérprete pela sociedade, e o destino da obra está ligado a esta circunstância; em terceiro lugar, ele utiliza a
obra, assim marcada pela sociedade, como veículo das suas aspirações individuais mais profundas. (...)
Desejo voltar à relação inextricável, do ponto de vista sociológico, entre a obra, o autor e o público, cuja
posição respectiva foi apontada. Na medida em que a arte é (...) um sistema simbólico de comunicação inter-
humana, ela pressupõe o jogo permanente de relações entre os três, que formam uma tríade indissolúvel. O
público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza, pois ele é de certo modo o espelho que
reflete a sua imagem enquanto criador. Os artistas incompreendidos ou desconhecidos em seu tempo, passam
realmente a viver quando a posteridade define afinal o seu valor. Deste modo, o público é fator de ligação
entre o autor e sua obra.” (CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária.
São Paulo: Nacional, 1985, p. 23-24 e 33).
76
   Este poema foi publicado na última página do último volume da Ensiqlopédia, livro 9, junto de mais três
poemas, organizados em forma de cruz.
77
   CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 63.

                                                      55
palco no lugar do imaginário, e assim, mostrou, retirando as máscaras, o nível de hipocrisia

e o absurdo da sociedade patriarcal brasileira do século XIX.

        Por outro lado, utilizando-se de artifícios metateatrais78, ele compõe uma

dramaturgia “que fala de si mesma”, ao parodiar as convenções realistas do teatro de então:

em As Relações Naturais vemos a paródia do entreato antes do ato, onde Impertinente, um

escritor (representando o próprio autor), a Consoladora e Intérpreta fazem os papéis de

atores dos intervalos, antes mesmo de começar a peça:

           “(Entra ele com uma menina de 16 anos a quem conhecemos por Intérpreta pelo
           braço.)

           IMPERTINENTE – (para ela, ao transpor a porta) Cuidado! Não se pise nestes
           tapetes, que já estão um tanto velhos! (Para o público, andando para a frente:) Já se vê
           que a escolha que fiz hoje, e que pretendo fazer de uma em cada mês, é a... (Para ela:)
           Digo? Digo?

           INTÉRPRETA – Se quiser, pode dizer!

           IMPERTINENTE – É uma das melhores que se podia encontrar nos maiores rebanhos
           desta...

           INTÉRPRETA – Pois chama de rebanhos às famílias que habitam esta cidade!?

           IMPERTINENTE – Pois o que é mais triste que um grande rebanho de ovelhas
           merinas!?

           INTÉRPRETA – Eu sempre considerei de outro modo: sempre entendo que a mulher
           como o homem é um ente que deve ser por todos respeitado, como a segunda
           primorosa obra do Criador; e que assim não sendo, só milhares de males e transtornos
           se observarão na marcha geral da humanidade!

           IMPERTINENTE – Hã! Hã! Hã! A menina está no mundo da lua! Ainda crê nas
           caraminholas que lhe encaixam na cabeça, de seu avô torto, visto que segundo as
           últimas participações espirituais que tivemos, o direito há muito que é morto!”




78
  “Metateatro: teatro cuja problemática é centrada no teatro que “fala”, portanto, de si mesmo, se “auto-
representa”. (...) Basta que a realidade pintada apareça como já teatralizada: será o caso de peças onde a
metáfora da vida como teatro constitui o tema principal. (...) Assim definido, o metateatro torna-se uma forma
de anti-teatro, onde a fronteira entre a obra e a vida se espuma. (...) Prolonga a antiga teoria do teatro dentro
do teatro: ela continua demasiado vinculada a um estudo temático da vida como palco e não se apóia o
suficiente numa descrição estrutural das formas dramatúrgicas e do discurso teatral.” (PAVIS, P. Dicionário
de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 240)

                                                      56
Certamente, o dramaturgo explora, na expressão, o metateatro, mas sem deixar de

mostrar em cena o conteúdo: os pontos críticos das noções morais na sociedade brasileira

do século XIX; suas comédias rápidas buscam dialogar com a realidade lenta da capital da

província riograndense. Com efeito, Qorpo-Santo compõe um diálogo entre as críticas

divertidas contidas na forma e a crítica social à família brasileira patriarcal do século XIX,

no conteúdo.

       As Relações Naturais revelam imagens da época, não apenas aquelas vivenciadas

pelo escritor e dramaturgo, mas também as representações de um mundo em transição. Daí

o seu conteúdo versar sobre temas polêmicos como sexo, prostituição, adultério, relações

familiares e sociais.

       Na comédia As Relações Naturais, temos uma família que oscila entre o lar e o

bordel; oscila entre a inibição dos “impulsos” do corpo e a realização de seus desejos; e

entre aceitar ou não o novo mundo disciplinado burguês. A ideologia dos médicos

higienistas79 interpretou o comportamento sexual da família colonial brasileira; afirmou que

ela visava a procriação e a satisfação de interesses econômicos; e que o sexo entre os

cônjuges não resultava do amor. Esta interpretação serviu de mote para as relações

familiares da segunda metade do século XIX, quando a escolha do parceiro passa a ser feita

pelo cônjuge, e não pelo pai, e regulada pela noção de amor burguês, romântico e

disciplinado para a vida na cidade. E serviu de mote também para o deboche das Relações

Naturais.

       Na comédia As Relações Naturais, os diálogos, ao contrário da representação

realista, os discursos dos personagens muitas vezes contradizem as suas atitudes em palco,

tornando-se propositalmente incoerentes na representação, ao invés de enganar o público


79
  CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiço e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996, pp. 30 a 35.

                                               57
com a ilusão de uma realidade naturalista.80 Antes, porém, que avancemos neste tema, cabe

alertar que nem todas as falas, conforme o texto, devem ser representados, em cena, no seu

sentido oposto. O caso do personagem-autor é exemplar. Chamamos de personagem-autor,

juntamente com Paulo Bauler81 , àquele personagem que representa o próprio Qorpo-Santo

na peça, como é o caso, em As Relações Naturais, de Impertinente, o escritor; o

Truquetruque, um pensador; e o Indivíduo, um pai de família rejeitado pelas mulheres.

        No entanto, queremos chamar a atenção aos personagens cujas falas contradizem a

cena. O criado Inesperto, por exemplo, a sua fala contradiz até mesmo aquilo que Qorpo-

Santo coloca nas rubricas, na descrição da cena:



        “INESPERTO (criado) - Por mais que arrume (atirando com uma bota para um lado;
        com um livro para outro; com uma bandeja no chão; com espanador para um canto; e
        assim com tudo o mais que se achava arrumado), sempre encontro esta sala, este
        quarto, ou como o quiserem chamar... câmara, dormitório, ou não sei que mais –
        desarrumado! Nada, nada, isto não pode continuar assim! Ou hei de deixar de ser
        criado desta casa, ou as coisas hão de conservar-se nos lugares em que eu arrumo! São
        honras que a ninguém eu cedo...”82


        Neste sentido, Qorpo-Santo já indica à possibilidade de encenar esta comédia com

uma defasagem entre texto e encenação. Nesta dialética, portanto, não se pode falar nem de

um realismo ilusionista em meio cênico; e nem do absurdo total; trata-se, antes, de uma

paródia ao primeiro e de uma farsa da realidade absurda.

        Nessa linha, desde o início da comédia somos surpreendidos pelo autor que ao

utilizar-se de uma espécie de metateatro, começa com um quadro no qual Impertinente, o

personagem escritor, contracena com a Consoladora, a qual queria lhe dar “amparo, guia e


80
   (Cf.: PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 327)
81
     BAULER, Paulo. O manifesto Qorpo-Santo. Disponível na Revista Escrita, no site:
www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br. Acesso em junho 2007.
82
    QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org.
CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
1969.

                                                 58
proteção”, recusados por Impertinente. Mesmo diante das chantagens da mulher, o escritor

a dispensa. Na cena seguinte, ele aparece fazendo corte a uma “menina de 16 anos”, a

Intérpreta, mas ao final vê seus objetivos frustrados. Acontece uma inversão de papéis:

antes a Consoladora havia sido desprezada por Impertinente, agora é ele que é desprezado

pela Intérpreta. Nessa alegoria, o que se apresenta é que o escritor necessita, de fato, de um

intérprete jovem e feminino; mas o que se lhe apresenta é uma consoladora velha e

rabugenta; ou melhor dizendo, Qorpo-Santo ironiza a moral consoladora, o bem,

representado como a paródia do pesado realismo teatral da época; e corteja a farsa, a

perversão metateatral, a beatitude do mal, inocente, alegre e desejado, qual uma menina de

16 anos.

       A comédia As Relações Naturais foi estruturada em quatro atos, com várias cenas

rápidas. Podemos dizer que elas trazem consigo as intenções do efeito dramático que

Qorpo-santo queria gerar: os fragmentos do cotidiano, justapostos em planos aparentemente

desconexos, mas conectados aleatoriamente, os quais evoluem na direção de uma narrativa

não-cronológica; ao contrário do paradigma do realismo da época, com início, meio e fim

bem localizados.

       Outra característica interessante são os nomes dados aos personagens: Impertinente

(o escritor), Consoladora (a pretendente do escritor), Intérpreta (a jovem que o escritor

deseja sexualmente), Júlia, Marca e Mildona (as filhas de Malherbe e Mariposa, que em

cena anterior eram as mulheres da vida), Truquetruque (um velho à porta do prostíbulo),

Mariposa (a mãe que oscila entre o lar e bordel), Inesperto (o criado) e Malherbe (o pai da

casa). Percebemos que os nomes dos personagens não são desprovidos de intencionalidade.

O Truquetruque, um velho com várias artimanhas (truques) para obter informações

privadas das vidas alheias e conseguir algumas vantagens. O criado Inesperto, aquele a

quem lhe falta esperteza, um indivíduo considerado “menor”, “desqualificado”, “pouco

                                             59
hábil” para os valores daquela sociedade. Se entendemos o realismo teatral de Qorpo-Santo

como uma paródia, não podemos esquecer que ele parodia desde os nomes. Os valores

negativos (in-esperto), atribuídos pela sociedade ao criado, não correspondem àqueles

representados na obra, pois eles também são parodiados, mostrando Inesperto consciente de

seus direitos e aberto às relações naturais, o que o configura como pessoa bem esperta:

        “INESPERTO: (...) o que porém é mais notável é que além de me não respeitarem, nem
        obedecerem – não pagam-me também nem a quinta parte dos salários comigo
        contratados! Mas nada me hão de ficar a dever! Quando retirar-me, hei de levar o dobro
        de que houver licitamente ganho, afim de que paguem-me os prêmios, pois não estou
        resolvido a perdê-los! (...)
        INESPERTO: (Pega a escada, põe em lugar próprio, sobe, levando a corda, e depois
        desce.) (À parte:) Estas mulheres não vêem – que não se pode ainda andar com as
        relações naturais; que se umas querem outras não querem; que se umas podem outras não
        podem; que... enfim, são o diabo!” 83



        Aqui, é preciso abrir um parêntese para explicar a fala citada acima. Neste

momento, Inesperto segura o amo (segundo a rubrica do autor, um boneco é usado na cena)

e sobe a escada levando-o ao teto, na cena do ritual de enforcamento. Esta fala não

corresponde ao pensamento de Inesperto, mas antes à do amo que é malhado. Lembremos

que, dentro da recomendação do autor em não se usar ator para representar esta cena, os

personagens que malham é que parodiam a fala de Malherbe, malhado como um Judas; e

este sim nega as relações naturais. Portanto, se Inesperto sabe participar dessa festa

“antropofágica” junto às mulheres, então o seu nome nega o seu modo de ser espirituoso.

        Ao contrário da idéia de fidelidade conjugal evocada pelo nome da Consoladora,

Impertinente é assim auto-designado pelo personagem-autor por parecer e ser um

inoportuno escritor que zomba de qualquer ideologia, higienista ou não, para poder ficar ao

lado da menina de 16 anos, aquela que deveria ser a Intérpreta de sua própria ideologia, a


83
  QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org.
CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
1969, p. 85 e 91.

                                                 60
da livre expressão na arte e no amor: “Já se vê que a escolha que fiz hoje, e que pretendo

fazer de uma em cada mês”. Portanto, o escritor da ficção almeja total liberdade para

exercer sua sexualidade. No final desse primeiro ato Impertinente acaba abandonado pela

menina e também por Consoladora, em completa solidão que pode representar a punição

divina, demasiadamente humana, por ser estética.

        No universo não ficcional da segunda metade do século XIX, o comportamento

libertário de Impertinente diante da moral patriarcal era condenável e passivo de punição.

Lembremos que o meio social que julgou Qorpo-Santo, interditando-o judicialmente, foi

rodeado pelo o universo judaico-cristão e este era uma das bases morais do patriarcalismo.

No cristianismo “as relações naturais corretas” ocorrem dentro do casamento, ou seja, uma

vida sexual para ser saudável, impreterivelmente necessita ser “selada” pela instituição do

casamento e “abençoada” pela Igreja. A Velha Mariposa, ao reunir as filhas para irem a

missa, mostra que pertence a uma linhagem que pratica as relações naturais normatizadas e

é mãe cristã devota; no entanto nós as encontramos, todas elas, como “mulheres da vida”.

Isso é mais uma constatação do poder inventivo de Qorpo-Santo na escolha dos nomes, a

Velha Mariposa e suas filhas transformam-se constantemente, passam da condição de

“santinhas” com quem o Indivíduo (outro nome para o autor, depois de ter sido

Truquetruque) “queria dormir”; para a condição de beatas, que apenas reproduzem “a

pregoeira gaiata da presente época”, como diz uma rubrica da Quarta Cena do Ato

Segundo.84 Quando inicia seu expediente ao anoitecer, a Mariposa proporciona aos homens

(maridos alheios) certas práticas sexuais não permitidas no cerne do lar, onde a mesma

Mariposa exerce sua função de esposa e mãe. O bordel, lugar considerado imoral e quase

nunca defendido em público pelos olhos dos “bons” moradores da cidade; atrai justamente

84
  QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org.
CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
1969, p. 80 e 82.

                                                 61
os homens pertencentes à estirpe desses “bons” moradores: nisto consiste a crítica de

Qorpo-Santo à hipocrisia da época. E é disso que o Impertinente quer se libertar.

        A    forma     expressiva     que     Qorpo-Santo      desenvolveu       para    poder    formar

lingüisticamente o “real” é um dos pontos mais privilegiados para a compreensão da

mesma. Em poucos minutos, se revelam instantâneos rápidos da realidade”. 85 Nesse texto

teatral podemos notar as duas vias de relacionamento existentes entre os personagens de

uma família: ora se comportam com o objetivo de satisfazer desejos sexuais (aquilo que não

pode ser falado); ora defendem as relações conjugais dentro dos padrões burgueses do amor

disciplinador.

        No segundo ato, cena dois, notamos a ambigüidade em que se encontram os

personagens. Truquetruque bate à porta fechada, que logo se abre fazendo aparecer três

mulheres, “Uma Dela, Outra e Outra”, “todas de pés no chão e cabelos desgrenhados”. Elas

se declaram prostitutas; e é Outra quem diz:

        “OUTRA – Não sabe que sempre foi um homem honesto quanto a ... e que nós somos
        todas – prostitutas! É um tolo! Safe-se daqui para fora, Sr. Maroto! Senão, olhe
        (mostrando-lhe o punho) – havemos de esmurrá-lo com esta mão de pilão!”86


        Truquetruque sai de cena e a comédia continua, as prostitutas, então, assumem a

estrutura familiar. Do anonimato que estavam ganham nomes. “Uma delas” passa a se

chamar “Velha Mariposa”, a mãe; e as “Outras”, viram “Marca” e “Julia”, duas de suas

filhas. Uma análise das vozes dos personagens pode ser reveladora das relações entre estes

dois grupos de mulheres. Os diálogos entre elas podem demonstrar duas coisas: 1) se

convencionarmos que existem aí apenas três personagens (da forma como interpretamos até


85
   Cf.: AGUIAR, p. 70. A dramaturgia que Qorpo-Santo apresenta nos textos teatrais são instantâneos rápidos
da realidade, são flashes registrados em poucas horas de trabalho, com atos e personagens que espocam em
poucos minutos e passam a fazer sentido.
86
   QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org.
CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
1969, p. 80.

                                                    62
aqui, e conforme sugere a lista de personagens do autor), então o teor desses diálogos é o da

hipocrisia que caracterizava o relacionamento interno dessa família;87 no entanto 2) se

convencionarmos que existem seis personagens, o teor muda e, então, falaremos que se

trata de representar uma forma discursiva da época. Neste caso, Qorpo-Santo parece estar

mostrando como as pessoas tratavam de modo diferenciado estes dois grupos de mulheres,

chamando pelos nomes próprios as mulheres de famílias burguesas; e por nomes de sentido

pejorativo as profissionais do sexo. Portanto, tanto a crítica moral quanto a crítica do

discurso são conteúdos exploráveis na comédia As Relações Naturais.

          Uma crítica moral aparece, por exemplo, quando as filhas pedem perdão à mãe,

Mariposa, por seus devaneios perniciosos, antes de irem à missa; Este pedido de perdão

significa a retomada das normas, mas apenas no momento conveniente. Qorpo-Santo

representa, em As Relações Naturais, a família e seu oposto, ao mostrar a transformação do

lar em bordel, ambas as instituições seculares que sempre estiveram juntas e, mesmo com o

advento do mundo burguês, continuaram coexistindo em estreita ligação na segunda metade

do século XIX.

          Nesse sentido, as vozes dos personagens da comédia ironizam o discurso dos

higienistas. Percebemos a intenção do dramaturgo em retratar a sociedade em sua

ambigüidade, não se alinhando às intenções moralizadoras e disciplinadoras dos higienistas

brasileiros no século XIX. Como nos revela a literatura especializada na temática

higienista, o esforço da higiene pública e seu caráter moralizador não conseguiu suprimir,

em função da nova disciplina do mundo burguês, os desejos do corpo. Pelo contrário, o




87
     AGUIAR. Idem, p. 168.

                                             63
ideal burguês apenas transformou as ditas “relações naturais”, que se tornaram cada vez

mais antinaturais e fetichizadas.88 Isto se verifica no 3º ato de As Relações Naturais.

        Com efeito, a transposição dessa análise para a comédia acontece aqui. No 3º ato,

cena dois, três personagens, Malherbe, o marido; Inesperto, o criado da esposa; e a Velha

Mariposa, a esposa, participam da cena em que os dois primeiros trocam ameaças de socos

e cadeiradas. Ao que Malherbe expulsa da sala a ambos, evidencia-se na fala de Inesperto, a

existência de “relações naturais”, não entre os cônjuges, mas entre Mariposa e o criado.



        “INESPERTO – Diz bem, minha ama; vamos nós saindo em boa paz! (enfia o braço na
        ama). É melhor – velha, feia, má que nenhuma! (abanando com a mão) Adeus, Sr.
        Estúrdio! Adeus, até mais ver! (Saem.)”89


        Esse diálogo faz alusão ao adultério, em sua secularidade, como herança praticada

desde a colônia. Na cena seguinte, o que surge é a idéia de incesto, quando vemos entre

Malherbe e sua filha Mildona mais do que uma relação pai-filha, mas antes temos aí as

“relações naturais”, fora do casamento mas dentro do núcleo familiar:


      “MILDONA – (entrando) Que saudades eu tinha de meu querido Pai!
      MALHERBE – Ah! és tu, minha querida Mildona? Quanto é doce vermos feitos de
      nossos trabalhos de longos anos! Um abraço, minha estimadíssima, minha mesmo
      queridíssima filha!
      MILDONA – O Sr. não reparou bem; eu não sou a sua encantadora filha; mas a jovem a
      quem o Sr. em vez de amizade, sempre há confessado tributar amor!

88
   COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979. Além do estudo de
Jurandir Freire Costa podemos elencar: BOARINI, Maria Lucia (org.). Higiene e raça como projetos
eugenismo no Brasil. Maringá: Eduem, 2003; BRESCIANI, Maria Stella Martins. Liberalismo: ideologia e
controle social (um estudo sobre São Paulo de 1850 a 1910). São Paulo: USP. Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas, 1976; CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espetáculo do mundo: Juquery, a história
de um asilo. São Paulo: Paz e Terra, 1988. RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade
disciplinar – Brasil 1890/1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; LARA, Silvia Hunold. Campos da
violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988;
e CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiço e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996.
89
   QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org.
CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
1969, p. 86.

                                                    64
ELE – Ah! onde estava eu!? Sonhava; pensava em ti; via, e não te enxergava! Sim, sois
        minha; és minha; e serás sempre minha por todos os séculos dos séculos, Amém!
        (Saem.)”90



          Depois disso, ainda no 3º ato, cena quatro, o criado Inesperto explica, em monólogo,

que não há lugar no lar para descanso de seus amos, nem em seus próprios dormitórios,

referidos no texto como “suas habitações”, ou melhor, a habitação menor do quarto dentro

da habitação maior, que é a casa-célula da família burguesa. Esta intranqüilidade decorre de

uma frustração sexual que ali predomina, e que ameaça tirar a tranqüilidade da casa toda.

Eis aqui a indicação da metamorfose sofrida pelas relações, nas quais tanto homem quanto

mulher são fetichizados, comparados ao “xale” e à “botina”, respectivamente; substituindo,

assim, as “relações naturais”.



           “INESPERTO – (entrando pé-ante-pé) Amolei tudo! Não pensem que farão espadas,
           facas, punhais ou lanças! Mas os amáveis que desprezando todos os direitos dos
           cidadãos brasileiros, matavam e roubavam a seu belo prazer! O tal meu amo entendia
           que cada botina que comprava, e que calçava, era uma mulher que condenava ao
           matadouro de seus desejos! E a tal minha ama procedia do mesmo modo quanto ao
           xale que a cobria; dizia ( pegando e pondo um xale): isto é masculino, está portanto
           relacionado com um homem; é novo; e por isso, assim como eu me cubro com ele,
           também há de me cobrir esta noite um bom moço! E assim é que não havia, Pai, nem
           filho; Mãe ou filha que pudesse, nem por cinco minutos, ter descanso e tranqüilidade
           em suas habitações.”91


          As ações breves de As Relações Naturais trazem o drama existencial humano e

mostra, pela farsa, as condições em que se encontravam a moral e a ética brasileira no

século XIX. Nessa comédia a situação dramática gira em torno das relações sexuais fora do

casamento, atitude condenável pela moral satirizada. As normas, que permitiam o

monopólio do marido sobre a sexualidade da mulher, estão representadas na figura de




90
     QORPO-SANTO. Idem, p. 87.
91
     QORPO-SANTO. Idem, p. 88.

                                                 65
Malherbe. 92 A impossibilidade de fugir dessas normas, aceitas pela sociedade, e de manter

relações fora do casamento, aparecem na forma de contradições, expressas nos

relacionamentos entre três idéias distintas entre os personagens: 1) as intenções de amor

livre e de antropofagia entre as mulheres, e mais o criado; 2) as ideologias higienistas de

Malherbe; 3) e as sínteses do autor-personagem, através das personagens que representam

Qorpo-Santo na comédia. Entre as mulheres, a metamorfose por que passam (de prostitutas

a mulheres de família e, por fim, a adeptas das “relações naturais” livres), indica as

pretensões do autor em mostrar três momentos no devir do ser apreendido na peça.

          Em primeiro lugar, as “mulheres da vida” aparecem como significantes das idéias

do amor livre, mas elas também têm a sua moral, distinta da ética higienista. Traços dessa

moral podem ser verificados no diálogo que mantém com Truquetruque, quando este vai ao

bordel:

          “OUTRA – Não sabe que sempre foi um homem honesto quanto a... e que nós somos
          todas – prostitutas!? É um tolo! Safe-se daqui para fora, Sr. maroto! Senão, olhe
          (mostrando-lhe o punho) – havemos de esmurrá-lo com esta mão de pilão! (...)
          TRUQUETRUQUE – Minhas santinhas; (com muita humildade) minhas santinhas, eu
          queria dormir com vocês esta noite.” (...)
          UMA – (para Outra) Não queres ver, Mana, o desaforo, a petulância desse estúrdio!?
          Querer passar conosco a noite, quando nós sabemos que ele é conde e tem filhos
          carnais!”93



          Por outro lado, as mulheres de família, Mariposa, Julia e Marca, oscilam entre a

defesa da “pregoeira gaiata” do discurso moralista cristão; e as fugas constantes para

encontrarem-se com seus namorados extra-conjugais. O que vemos na cena quatro do 2º ato

é um discurso oposto ao da cena dois do 4º ato; e, no entanto, é a mesma Mariposa que fala:

                 Diálogo 1:


92
  AGUIAR. Idem, p. 170.
93
  QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org.
CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
1969, p. 80.

                                                 66
“MARIPOSA – Onde estão? Não me diz? Ainda não me vieram tomar a benção, sendo
          entretanto mais de oito horas! (Entram os outros filhos.)
          ELES – (estendendo as mãos) Sua benção, minha Mãe.
          MARIPOSA – (fazendo sinal com a mão) Deus abençoe a todos, que eu faço em
          particular a cada um. Sim, meninas, são horas de missa; vamos cobrir nossos véus, e
          sigamos a orar ao Senhor – por nós e por nossos avós!
          TODOS – Prontos a obedecê-la, a seguir-la.(Sem todos) (...)”


                 Diálogo 2:
          MARIPOSA – Pois eu, como gosto muito do meu criado, e ele é mel de abelha, já se sabe
          o que eu de hoje em diante hei de sempre comer ou beber! (para o marido de papelão): E
          o Sr., Sr. Tralhão, que não quis acompanhar-nos nas relações naturais, importando-se
          sempre com direitos; não vendo que o próprio direito autoriza, dizendo que cada um pode
          viver como quiser e com quem quiser; há de ficar aqui pendurado para eterna glória das
          mulheres, e exemplo final dos homens malcriados! Contamos (para o criado) com teu
          auxílio.”94



          Concluímos, assim, que a personagem muda o discurso e, ao invés de as mulheres

irem à missa, elas pedem o auxílio do criado para prepararem o ritual antropofágico, no

qual irão esquartejar e comer Malherbe, por ser “preguiçoso, vaidoso ou orgulhoso”, mas

acima de tudo, por ele representar a ideologia repressora das “relações naturais”.



          Não podemos esquecer que as idéias do personagem-autor fazem a ligação entre

estes discursos extremos: os do fogo que recalca e os do fogo que ilumina. Através destes

personagens especiais, o autor fala e assume uma posição favorável às “relações naturais”

livres; diante da força da repressão moralista da época. Este ritual que se inicia, tem o

propósito de restaurar a alegria perdida, o gozo sem o incômodo do trabalho:

            “IMPERTINENTE – (...) Estou só a escrever, a escrever; e sem nada ler; sem nada ver
            (muito zangado). Podendo estar em casa de alguma bela gozando, estou aqui me
            incomodando! Levem-me trinta milhões de diabos para o Céu da pureza, se eu pegar
            mais em pena antes de ter... Sim! Sim! Antes de ter numerosas moças com quem passe
            agradavelmente as horas que eu quiser. (Mais brabo ainda) Irra! Irra! Com todos os
            diabos! Vivo qual burro de carga a trabalhar! A trabalhar! Sempre a me incomodar! E
            sem nada gozar! Não quero mais! Não quero mais! E não quero mais! Já disse! Já
            disse! E hei de cumpri-lo! Cumpri-lo! Sim! Sim! Está dito!”.
94
     QORPO-SANTO. Idem, p. 84, 91.

                                                 67
No final da comédia podemos vislumbrar, nos versos cantados pelas mulheres, mais

uma evidência de nossa hipótese sobre a defasagem da dialética do texto e da encenação.

Conforme vimos, a canção final da peça faz parte de um ritual maior, talvez um ritual

antropofágico; mas é a expressão da “alegria da cultura” e, assim, não devemos esperar

nada de mau-humor. Se quisermos saber se o que as mulheres falam, na letra da canção,

realmente corresponde àquilo que encenam divertidamente no palco, basta comparar esta

fala do Impertinente com a última estrofe do poema das mulheres. Impertinente: “Vivo qual

burro de carga a trabalhar! A trabalhar! Sempre a me incomodar! E sem nada gozar! Não

quero mais!”; Enquanto que, Elas: “Basta o trabalho,/Certo, não falho;/Para vivermos;/E

mil gozos termos.” Pelo que vemos nas vozes delas, sabemos que desejam poder “gozar”,

no entanto elas parecem cantar o contrário. Mas é inocência imaginar que essas mulheres

qorpo-santenses acreditam mesmo “que basta o trabalho” para se ter “mil gozos”. Pela

intervenção do personagem-autor, Impertinente, podemos ver que se trata do oposto:

trabalhar sim, principalmente quando se é um escritor que parodia as convenções do

realismo teatral. Mas não só trabalhar; gozar é fundamental. No entanto, há outras formas

de saber que esta canção contém esta paródia. Confira o diálogo 2, acima, quando Mariposa

confirma que deseja o criado, da mesma forma que se deseja a comida ou a bebida. Numa

interpretação rápida, vê-se aí que ela quer o criado-namorado para manter relações livres; e

aí reside um dos motivos de nossa aproximação com o ritual de antropofagia cultural.

Verificamos, ademais, que Malherbe, este sim, é dissimulado o bastante (confira acima

nossos comentários a respeito do incesto com a sua filha Mildona) para ter esse discurso da

canção, justificando a nossa hipótese de que elas cantam satirizando a ideologia dele, mas

não falam aí seriamente o que sentem ou pensam.




                                            68
Portanto, podemos re-significar a canção abaixo como sendo a galhofa que as

mulheres fazem para Malherbe (apresentado na rubrica como o “marido de papelão”), após

o ritual de antropofagia em que este é esquartejado, com a ajuda do namorado de Mariposa,

o Inesperto. É preciso ter em mente, durante a leitura do poema abaixo, que, no jogo

cênico, as atitudes das mulheres enquanto cantam não correspondem ao texto, pois trata-se

aqui de enxergarmos a defasagem na dialética do texto e da encenação:



           “1º
          - Não nos meteremos
          Mais com relações;
          Maridos procuraremos;
          Pois temos corações!


          2º
          A nenhum mais tentaremos
          Destruir seus sentimentos!
          A um só nós serviremos,
          P’ra não ter duros tormentos!

          3º
          Com nenhum nos contentarmos,
          Ou a todos não querermos;
          É assim querer matar-nos,
          Pondo todos quase enfermos.

          4º
          Tenhamos pois juízo!
          Cada qual com seu esposo!
          Se não, não há paraíso!
          Tudo inferno! – nenhum gozo!”

          (...)
          8º
          Basta o trabalho,
          Certo, não falho;
          Para vivermos;
          E mil gozos termos.”95




95
     QORPO-SANTO. Idem, p. 94.

                                           69
Assim sendo, nossa afirmação de que as ações da comédia são representações de

conflitos intrafamiliares do meio conturbado em que Qorpo-Santo viveu, decorre da

reflexão sobre conteúdo da peça e o seu contexto. Tal exercício teórico buscou investigar os

padrões morais da segunda metade do século XIX, mostrados na comédia.



     A seguir vamos falar sobre a concepção cênica adotada pelo diretor Luiz Carlos

Maciel, que entendia a comédia As Relações Naturais como uma ação libertária contra a

repressão e pelo amor livre. Certamente, como vimos acima, a sociedade, ou as instituições

pautadas pela moral patriarcal, cobrava um controle dos desejos, e este ideal se chocava

com os desejos do impulso natural das pessoas, conforme foram representados na comédia.

Isso abriu caminho para a leitura empreendida por Maciel. Portanto, o ponto de partida para

a interpretação dessa comédia é o da ligação plena entre os contextos dos dois momentos

históricos, 1866 e 1968, ou seja, entre uma ideologia repressora; e os anseios pela liberdade

sexual através da contestação aos tabus da sociedade, em ambos os momentos.




                                             70
2.2 – LUIZ CARLOS MACIEL NO TEATRO JOVEM




       A montagem de As Relações Naturais, realizada em 1968, teve a direção de Luiz

Carlos Maciel; produção de Ginaldo de Souza; figurinos de Arlindo Rodrigues; o elenco

formado por Joel Barcelos, Maria Gladys, Célia Azevedo, Carlos Guimas; e outros

componentes do grupo Teatro Jovem, criado por Kleber Santos. Maciel relata em seu

depoimento96 fatos relevantes sobre vários tópicos: a vanguarda e a escolha da obra, “uma

peça de vanguarda bem maluca mesmo”; sobre Qorpo-Santo, “esse esquizofrênico, que era

o verdadeiro avanço”; sobre “equação entre repressão política e repressão sexual”, que são

coisas “correlatas” e “intimamente ligadas”; mostra como os autores de sua época

afastaram-se da redundância defendida pelos críticos: “a coisa que mais preocupava os

críticos de teatro era que o espetáculo fosse fiel ao texto”; e de como os diretores passaram

a valorizar a defasagem: “a minha geração foi a primeira que disse que o teatro não era

literatura dramática, o teatro é sim um fenômeno cênico”.


       Antes de enfrentarmos a questão das identidades forjadas na década de 1960 e

apreendermos as práticas e as memórias que delas permaneceram nas lembranças de Luiz

Carlos Maciel, consideramos necessário explicitar que recorremos aos métodos da história

oral para dar conta das proposições desse estudo. A compreensão de como a história oral

formulou o seu arcabouço teórico tornou-se ponto de referência para a fundamentação de

conceitos relativos às memórias coletiva e individual. Nesta análise, por certo, a memória

estabelece um locus, ou seja, “as lembranças das fases da vida se entrecruzam com os


96
  MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração:
1h20min.

                                              71
acontecimentos coletivos. O mesmo acontece com as lembranças dos acontecimentos

coletivos”.97


        Assim sendo, devemos estar atentos e refletir sobre a memória em suas relações no

contexto da década de 1960. Vamos partir da afirmação de Stuart Hall a respeito do

impacto das mudanças neste período:



      “novos movimentos sociais que emergiram nesse período – o feminismo, as revoltas
      estudantis, os movimentos juvenis contraculturais e antibelicista, as lutas pelos direitos
      civis, os movimentos revolucionários do ‘Terceiro Mundo’, os movimentos pela paz –
      foram partes que compunham uma grande oposição, tanto à política liberal capitalista do
      Ocidente, quanto à política ‘stalinista’ do Oriente; suspeitavam de todas as formas
      burocráticas de organização e favoreciam a espontaneidade e os atos de vontade política;
      e refletiam o enfraquecimento ou o fim da classe política e das organizações políticas de
      massa com elas associadas, bem como sua fragmentação em vários e separados
      movimentos sociais. Nesse sentido, cada movimento apelava para a identidade social de
      seus sustentadores”.98



        Devemos destacar que os caminhos das memórias, em suas tênues ligações com o

processo de sociabilidade, levam-nos à política de identidade de cada grupo. Como lembra

Alessandro Portelli,

          “a ‘memória coletiva’ nada tem a ver com as memórias de indivíduos, não mais
          podemos descrevê-la como expressão direta e espontânea de dor, luto, escândalo, mas
          como uma formalização igualmente legítima e significativa, mediada por ideologias,
          linguagens, senso comum e instituições.”99


        Ou, como comenta Henry Rousso a respeito da relação entre a lembrança coletiva e

a individual:

                “Se o caráter coletivo de toda memória individual nos parece evidente, o
          mesmo não se pode dizer da idéia de que existe uma memória coletiva, isto é, uma


97
   POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3,
1989, pp. 3-15.
98
   HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 44.
99
   PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiano (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e
política, luto e senso-comum. In.: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína (Orgs.). Usos &
abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 127.

                                                 72
presença e portanto uma representação do passado que sejam compartilhadas nos
           mesmos termos por toda uma coletividade”.100


        As lembranças de Luiz Carlos Maciel nos possibilitam, hoje, uma reflexão legítima

sobre o passado, mas não podemos esquecer que elas são mediadas por ideologia e

linguagem bem particulares, e devem ser interpretadas levando-se em conta a sua narrativa,

conforme esta é influenciada ora pela razão, ora pelos seus sentimentos a respeito dos

acontecimentos que narra. Corroborando para apreendermos a identidade de Maciel com as

questões de sua época, suas reminiscências tornam significativos os sentimentos dos jovens

de esquerda, artistas e estudantes da contracultura, apoiados em leituras de autores que

insistiam na liberdade política e sexual, como Wilhelm Reich e                        Herbert Marcuse101 ,

confirmando assim o caráter coletivo de seu depoimento sobre a década de 1960.

        Descobrimos no seu depoimento, além disso, que, sob a direção de Maciel, também

a releitura de As Relações Naturais e a atitude cênica do grupo Teatro Jovem assumiam

uma posição libertária: “contra a repressão política, sexual e contra a repressão estética!

Então a arte que tinha que ser feita deveria ser des-repressora também!”102



        Essa atitude constitui a ocorrência da expressão, enquanto que a posição libertária é

o conteúdo da contracultura. Não vamos fazer aproximações com a expressão do teatro
100
    ROUSSO, Henr y. A memória não é mais o que era. In.: Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro:
Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 95.
101
    “Seria instrutivo comparar Marcuse e Reich, do ponto de vista da correlação entre opressão sexual e
conformismo. Para este último (...) a opressão sexual gera personalidades dóceis, totalmente influenciáveis
por ideologias autoritárias. (...) Para Marcuse, tudo se passa como se, pelo contrário, fosse a liberalização da
sexualidade que estimula ao conformismo. (...) À primeira vista, a divergência entre Marcuse e Reich parece
reduzir-se a uma ‘querelle de mots’. Podemos dizer que para ambos a opressão erótica leva à formação de
personalidades submissas, com a diferença de que para Marcuse essa opressão erótica é produzida, não pela
supressão da sexualidade, mas por sua liberação controlada. Mas a discrepância é mais que terminológica:
pois não é indiferente, do ponto de vista da coesão social, reprimir através de controles diretos, ou reprimir
através de técnicas de liberalização, mesmo parciais. Enquanto os primeiros são compatíveis com uma
contestação real, em algum momento, as segundas favorecem a identificação inquestionada com um status
quo visto como globalmente racional.”(ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria Crítica e psicanálise. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986, p. 235 a 236.)
102
    MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração
1h20min.

                                                      73
hippie e seu conteúdo; nem com o estilo do grupo norte-americano Living Theatre, cujo

conteúdo expressado era de uma outra a liberdade interior do ser humano. A entrevista e os

demais documentos nos permitem entender apenas uma parte dessa re-significação de

Qorpo-Santo em 1968, pois mesmo o relato, gravado em fita-cassete, de Luiz Carlos

Maciel não preenche a lacuna de não termos assistido a esta montagem, nem a outra

qualquer, de As Relações Naturais.

       Mas, ainda assim, devemos partir da entrevista, se não para captarmos a releitura

integral do Teatro Jovem, pelo menos ela nos ajudará a pensar em outras releituras

possíveis. Quando a presença de Maciel, hoje ainda um homem sóbrio e bem humorado,

alcança a história através de sua memória individual, este outrem, que fala ao historiador,

fala também sobre o presente: através de suas palavras e de seus gestos, interagindo

divertidamente e recuperando a história cultural brasileira com autenticidade. Em um

momento de descontração, por exemplo, enquanto ele falava sobre a repressão sexual, o

assunto HIV surgiu entre nós e sua opinião abarcou todo este período, desde o presente até

a década de 1968:

         “Na nossa época não tinha HIV, mas tinha a repressão... era aquele negócio: Puxa! a
         menina que “desse” antes de casar era uma coisa horrorosa! Então havia uma
         necessidade mesmo dessa insurreição pedindo os direitos sexuais da juventude.”103


       Em outro momento da entrevista, quando Maciel fala dos personagens marginais

criados por Plínio Marcos, na peça Barrela, Maciel também comenta sobre o problema da

violência social no presente:



         “(...) o teatro de Plínio Marcos que era sobre marginais, presos, que é uma camada da
         população muito esquecida, muito excluída, muito, muito desdenhada e até odiada, e
         tudo. Não é a toa que estão atentando agora, estão se vingando. Eles estão dando o

103
   MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração
1h20min.

                                              74
troco, mas numa outra visão totalmente terrorista... O Plínio queria chamar a atenção
         pra essas pessoas, pra esses marginais da sociedade brasileira.”104


       Essa “reconstituição” da história através da memória implica posicionamentos

diante de fatos políticos e culturais, capazes de constituir uma identidade do próprio

entrevistado, que, em seu depoimento, re-significa os acontecimentos do presente

rememorando aqueles do passado; e re-significa também os fatos do passado, tendo por

base o presente. Assim, conforme o exemplo acima, Maciel parece sugerir que o tema de

Barrela continua atual até os dias de hoje, sobretudo por ainda ser um problema social. Nas

entrelinhas, sugere que em situações extremas de violência urbana, de forte repressão por

parte do Estado e de suas instituições, o artista deve se expor e reclamar por mudanças.

Podemos reforçar essa idéia da identidade de Maciel com a resistência contra as repressões,

em todos os níveis, intercalando um texto de 1982, no qual comenta sobre movimento da

juventude de 1968 por liberdade, posteriormente destruído pelo AI-5. A partir de 1964, os

atos institucionais, entre eles, o Ato Institucional nº5 (AI-5), de 1968, resultaram em

violenta repressão sobre o pensamento de esquerda brasileiro, ao qual, grande parte dos

artistas de teatro pertencia. Uma “dura realidade” que frustrou os sonhos de sua geração:

                 “O ano de 68 foi aquele agito, aquele agito completo. Quer dizer, foi o
         momento em que uma geração em todas as sociedades ocidentais mais evoluídas – e o
         Brasil como país em desenvolvimento também foi envolvido neste processo –, a
         juventude da época, fez um lance. Um lance fundo, de pretensão juvenil de ser gente,
         homem feito, e já poder mudar as coisas. As aspirações juvenis vieram ao primeiro
         plano, como sendo uma tentativa de ‘vamos tomar o poder’. Havia esse sonho em 68. E
         esse sonho foi frustrado pela dura realidade. Então, para toda esta geração, 68 foi
         realmente o ano da morte da cultura. Não foi para outras gerações que continuaram
         cultivando a cultura tradicional e a levando até o ponto em que não sabemos onde
         poderá ser levada, mas o fato é que, para a visão juvenil da vida, para a maneira de ver
         dos jovens, 68 foi o momento em que de repente se apostou tudo – e se perdeu.”105




104
    MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração
1h20min.
105
    MACIEL, Luís Carlos. Negócio Seguinte. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, p. 9.

                                               75
O depoimento de Luiz Carlos Maciel nos possibilitou, portanto, o “reencontro” com

uma das fontes de um passado de resistência à violência e à repressão.106



        A partir do momento em que alguém conta a sua história de vida, ele reconstrói sua

identidade em relação aos acontecimentos e aos outros. Segundo Michael Pollak:



                “A despeito de variações importantes, encontra-se um núcleo resistente, um
        fio condutor, uma espécie de leitmotiv em cada história de vida. Essas características
        de todas as histórias de vida sugerem que estas últimas devem ser consideradas como
        instrumentos de reconstrução da identidade, e não apenas como relatos factuais. Por
        definição reconstrução a posteriori, a história de vida ordena acontecimentos que
        balizaram uma existência. Além disso, ao contarmos nossa vida, em geral tentamos
        estabelecer uma certa coerência por meio de laços lógicos entre acontecimentos-
        chaves (que aparecem então de uma forma cada vez mais solidificada e estereotipada)
        e de uma continuidade, resultante da ordenação cronológica. Através desse trabalho
        de reconstrução de si mesmo, o indivíduo tende a definir seu lugar social e suas
                                  107
        relações com os outros”.



        Devemos lembrar que o depoimento de Maciel suscita a representação de momentos

de lutas e embates, entre os segmentos sociais vinculados ao teatro e à censura militar. No

entanto, é preciso distinguir: o movimento, ou devir, de continuidade dos fatos, cada qual

em sua posição cronológica; e os “laços lógicos entre acontecimentos-chaves”, não

estereotipados, das lutas sociais vividas por Maciel. Nesse sentido, suas experiências

vivenciadas, enquanto sujeito, foram organizadas, em seu depoimento, também dentro de

uma lógica, elas não são apenas “relatos factuais”. Quando, na citação acima, ele comenta

sobre a “morte da cultura”, ele o faz tendo como referência o ano de 1969, conforme indica

o parágrafo seguinte àquele:

                    “No Brasil, particularmente, 69 foi o período em que a repressão começou a se
           intensificar, porque 68 tinha sido o ano de todo aquele movimento estudantil, toda
106
    Nesta fase da história do Brasil o governo militar criou uma Doutrina Política de Segurança Nacional no
intuito de frear a propagação do ideal comunista. Neste sentido, qualquer pessoa que criticasse publicamente o
Estado poderia ser acusada de inimiga da nação e ser presa pelos agentes da polícia política.
107
    POLLAK. Idem. 1989, p. 13.

                                                     76
aquele agitação, passeatas, a rebeldia generalizada. Os órgãos de segurança entraram no
           congresso da UNE no interior de São Paulo e acabaram com o movimento estudantil
           brasileiro. A repressão passou a se intensificar para evitar que aquela agitação
           acontecesse de novo. Então, 69 foi um ano em que começou muito down (vamos dizer
           assim), foi um ano repressivo, em que as esperanças juvenis tinham se desfeito. E aqui
           no Brasil, coincidentemente, foi um ano em que havia essa paranóia crescente em
           função da repressão crescente.”108



        Da mesma forma, não são relatos factuais os encadeamentos lógicos encontrados na

entrevista. Um exemplo disso são as relações de causa e efeito entre a dependência da

bilheteria e a liberdade na escolha da obra a ser encenada. No “fazer teatral” existem

elementos de identificação e empatia entre os artistas, que determinam a união e as atitudes

do grupo (produtores, atores, diretor) diante de suas posturas estética e profissional; e de

suas posturas política e social. Essa identidade, segundo Maciel, decorria dos esforços que

o grupo direcionava à formação de uma “classe teatral” enquanto grupo social particular,

que buscava se distinguir dos outros grupos na maneira de ver as coisas, distinguir o

“bastante para dar conta de sua situação comum específica dentro da sociedade em que

vivemos.”109 Isso significava independência na criação e encenação. Até mesmo a produção

da comédia As Relações Naturais, do Teatro Jovem, foi financiada pelo produtor Ginaldo

de Souza, com dinheiro próprio,110 não houve patrocínio público ou mecenato, tratava-se de

uma produção só dependente da bilheteria, do público pagante e da determinação do grupo:

                “O retorno era a bilheteria, tinha que ser bilheteria. Tanto é que o Ginaldo
         quebrou a cara duas vezes e não teve condições de fazer um terceiro espetáculo durante
108
    MACIEL, Luís Carlos. Negócio Seguinte. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, pp. 9-10.
109
    “A classe teatral constitui um grupo social bem definido. Praticamente todas as profissões o são e é sabido
que os artistas de modo geral, mais do quaisquer outros profissionais, gostam de viver em grupo, freqüentar-
se com assiduidade, criar interlocuções estreitas e um mundo particular para sua circulação privada quase
sempre inacessível aos não iniciados. Por força de sua missão de expressar, conscientizam melhor que a
maioria dos outros grupos sociais, a visão de mundo que partilham em cada época. É verdade que entre os
trabalhadores do teatro e das demais artes – literatura, pintura, música, cinema etc. – existem diferenças na
maneira de ver as coisas, (...) que o são bastante para dar conta de sua situação comum específica dentro da
sociedade em que vivemos.” MACIEL, Luiz Carlos. Quem é quem no teatro brasileiro: estudo socio-
psicanalítico de três gerações. In.: Revista Civilização Brasileira – ano IV, caderno especial, nº 2, p. 50. Rio
de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968.
110
    MACIEL, Idem. 2006 & MACIEL, Luís Carlos. Negócio Seguinte. Rio de Janeiro: Codecri, 1982 PP.11-
13-14.

                                                      77
muito tempo, depois ele voltou a produzir teatro, já em outros esquemas fazendo
       espetáculo de sexta-feira santa na praça com subvenção da prefeitura, aí ele começou a se
       virar, muito mais nessa coisa mais contemporânea que se faz teatro com dinheiro público
       ou dinheiro de empresas particulares. Mas nesses espetáculos o Ginaldo bancava com a
       grana dele...”111



       Essa dependência de bilheteria trouxe alguma independência que proporcionava

uma liberdade de escolha: seja da dramaturgia, seja da linguagem, seja da postura crítica

diante das questões políticas e sociais. A escolha da dramaturgia de Qorpo-Santo indica

para a identidade do grupo com o conteúdo crítico da obra As Relações Naturais, aberto à

re-significação.


       Luiz Carlos Maciel escolhe, para encenar em 1968, a peça As Relações Naturais

não por mero acaso, mas antes por ser ele mesmo um integrante da juventude que “fez um

lance fundo” com aspirações de “mudar as coisas” e de “tomar o poder”, como se já

esperassem por um recrudescimento da repressão militar, a qual vinha crescendo desde

1964. Naquele momento, o seu instrumento de luta e de resistência ao regime autoritário

era o teatro; e a escolha da comédia tinha uma lógica bem fundamentada:

               “Isso correspondia muito ao nosso momento, de nossas próprias vidas. Era uma
         coisa assim da geração, da juventude daquela época, que brigava contra a repressão
         sexual e tinha uma bandeira de luta. Nos acontecimentos da época de 68 e tudo, havia
         uma equação entre repressão política e repressão sexual, se achava que era a mesma
         coisa ou então coisas tão correlatas, intimamente ligadas... Uma coisa estava ligada a
         outra, era uma coisa que vinha de Reich, Marcuse também, de que há uma relação entre
         a repressão sexual e a repressão política...”112



       É possível entender a importância atribuída, em 1968, à crítica da ideologia,

empreendida pela psicanálise de Wilhelm Reich, contrária à submissão do explorado frente


111
    MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração
1h20min.
112
    MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração
1h20min.

                                               78
ao explorador, pois ela correspondia aos anseios por liberdade, tanto política quanto sexual.

A comédia de Qorpo-Santo também nota os pontos críticos do respeito à moral e à religião;

e mostra como esta obediência se reflete no discurso da fidelidade no casamento, exigida

pela autoridade patriarcal. Mas na re-significação de Maciel, esta crítica aparece à luz da

idéia de repressão sexual em Reich, o “represamento pulsional” como causa do “sistema de

valores normativos” e também da “angústia religiosa”. Por outro lado, em As Relações

Naturais existe uma tensão constante que força os personagens a manter relações fora do

casamento, numa referência direta à hipocrisia de um discurso moral religioso que é, ele

próprio, uma farsa do poder para impor sua ideologia:




             “Só a psicanálise (ou a economia sexual, nome que Reich propõe, nessa fase, para
             caracterizar sua leitura de Marx e Freud) permite explicar a Umstrukturierung psíquica
             (a desestruturação e reestruturação) sem a qual a ideologia não pode realizar-se
             subjetivamente. Qual é essa explicação? É óbvia, à luz do que precede: a condição sine
             qua non do processo de ideologização é a repressão sexual. Pois é ela que leva, em
             primeiro lugar, à formação de personalidades débeis, vulneráveis ao poder e indefesas
             diante da ideologia, fragilidade que resulta da circunstância de que a repressão exige a
             mobilização de energias consideráveis para manter o represamento pulsional. É ela que,
             utilizando parte dessas energias psíquicas, não descarregadas na genitalidade normal,
             cria e consolida a moral, enquanto sistema de valores normativos, os quais, numa ação
             de retorno, são utilizados para levar adiante o processo de repressão. É ela que
             predispõe o aparelho psíquico à formação e consolidação da angústia religiosa,
             igualmente causa e efeito da repressão.”113



           Sendo assim, a comédia As Relações Naturais foi, de fato, muito apropriada para o

momento, permitiu representar com humor: essa “angústia religiosa”; o “sistema de valores

normativos” da sociedade; e, acima de tudo, uma revolução antropofágica contra o

“represamento pulsional”. Isso era tudo o que a juventude de vanguarda esperava de uma

obra de arte como instrumento de luta contra a repressão sexual.



113
      ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria Crítica e psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986, p. 38.

                                                      79
“E o assunto do momento era uma coisa relacionada com o conteúdo da peça: é sobre
          uma condenação à repressão sexual! O Qorpo-Santo fica reclamando da repressão
          sexual, ele se sentia reprimido, sufocado. Na peça, tem toda uma necessidade em dar
          vazões aos impulsos, e que as relações sejam naturais. Então as relações naturais
          significa isso, amor livre, sexo livre, quem quiser fazer...”114



        A juventude de vanguarda da década de 1960, para Maciel, tinha o espírito de

emancipação, tal como o cinema de Glauber Rocha:

          “Na filosofia estética do Glauber, o cinema brasileiro deveria ser um cinema de
          vanguarda, ao nível internacional, uma vanguarda internacional. Isso emanciparia a
          cultura brasileira da sua condição colonizada, e ditadora [sic], da cultura do primeiro
          mundo, a européia ou americana!”115



        E este espírito de emancipação tinha motivos políticos, a repressão atingia a todos

em constantes vigilância e controle do cotidiano da sociedade brasileira.116 As ações

desencadeadas pela Doutrina de Segurança Nacional organizaram um complexo de

informações que, na década de 1960, foi transformado pelo governo militar em uma

Doutrina Política de Segurança Nacional, baseada na ilimitada militarização do meio

social: seu centro foi a Guerra Fria: a divisão do mundo entre o Oriente comunista e o

Ocidente democrata e cristão. A fim de barrar o avanço comunista essa organização

repressora produziu a necessidade de acionar uma contra-ideologia, a se antepor ao avanço

do ideário comunista. Nesse sentido, a guerra não mais se restringia ao aspecto militar, mas

envolvia a política, a economia, a cultura; e mobilizava amplos contingentes civis e

militares. Para a DSN, o inimigo passou a ser interno e qualquer crítica ao Estado passou a

ser encarada como a influência das idéias do comunismo no país. Essa visão legitimou a

114
    MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração
1h20min.
115
    MACIEL, Idem. Obs.: Maciel quis dizer que: a “cultura do primeiro mundo, a européia ou americana” é a
“ditadora” que submete a “cultura brasileira”, e por isso a vanguarda viria para emancipá-la.
116
    PELEGRINI, Sandra C. A. A censura e os embates contra um inimigo em potencial. In.: ROLIM, Rivail
Carvalho, PELEGRINI, Sandra Araújo e DIAS, Reginaldo (Orgs). História, espaço e meio ambiente.
Maringá: ANPUH-PR, 2000, p. 85.

                                                   80
ilimitada ação repressora do Estado, e poderes irrestritos aos militares e seus agentes. A

delação, a tortura, e a infiltração constituíram alguns dos meios de intervenção utilizados

para obter informações e desmobilizar oposições. A desconfiança pairava sobre todos e,

pelo que observamos na entrevista, o texto de As Relações Naturais passou pela censura,

não por atacar diretamente esse sistema, mas por causa de seu viés reichiano, que não o

salvou, no entanto, da proibição da encenação:

           “(...) consta que aconteceu é que muitas senhoras de militares foram assistir ao
           espetáculo e ficaram indignadas e chocadas com certas marcações, com certas
           liberdades que a gente tomava, foram liberdades até pequenas em face de outros
           espetáculos malucos que vieram depois, que as pessoas ficavam mais nuas. (...) E
           houve uma ordem militar para a censura do espetáculo, que estava proibido.”117



        A indignação das mulheres dos militares tinha origem na leitura que faziam da

encenação do espetáculo, no modo como se apropriavam da obra de arte e produziam

significados novos para ela. Com efeito, nos parece que a leitura que faziam não lhes

permitiam alcançar o sentido mais libertário da comédia:

           “A leitura é sempre apropriação, invenção, produção de significados. Segundo a bela
           imagem de Michel de Certeau, o leitor é um caçador que percorre terras alheias.
           Apreendido pela leitura, o texto não tem de modo algum – ou ao menos totalmente – o
           sentido que lhe atribui seu autor, seu editor ou seus comentadores. Toda história da
           leitura supõe, em seu princípio, essa liberdade do leitor que desloca e subverte aquilo
           que o livro lhe pretende impor. Mas esta liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é
           cercada por limitações derivadas das capacidades, convenções e hábitos que
           caracterizam, em suas diferenças, as práticas de leitura. Os gestos mudam segundo os
           tempos e lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas atitudes são inventadas,
           outras se extinguem.”118



        Talvez possamos tirar conjecturas a partir dessa reação polêmica das esposas dos

militares (sem, no entanto, fazermos trocadilhos com a Mariposa de As Relações Naturais),


117
   MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração
1h20min.
118
   CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP – Imprensa Oficial do
Estado, 1999, p. 77.


                                                      81
lembrando o ponto central da indignação delas, o fato de uma atriz ter realizado uma

“mímica”, na encenação da comédia, que elas interpretaram, em sua leitura, como

agressiva; mas que no fundo representava apenas uma liberdade interpretativa da releitura

de Qorpo-Santo, através de Maciel. Naquele momento, o diretor diante dessa situação

adversa, tinha apenas sua forma de expressão para divulgar o conteúdo crítico com que

enfrentava, como em um ato político, a censura e a violência. As várias manifestações

foram formas de fazer política: o palco foi um dos locais onde se revelou a crítica à

sociedade brasileira, muitas vezes, denunciando as injustiças. Este foi um exemplo de uso

do palco como um local de protesto político:

         “(...) as moças usavam uma roupa que o figurinista tinha pintado os peitos e tal, os
         pentelhos na chereca, sabe? uma coisas assim, mas pintadas, era tudo de mentirinha,
         mas tinha essas coisas. E durante os ensaios eu dei muita liberdade para os atores
         improvisarem coisas, porque como o texto tinha essa abertura, se quisessem ficar uma
         ou duas horas conversando, sobre vários assuntos, até que podia! (...) então tinha umas
         marcações que inventaram e eu deixei e trouxeram uma atriz conhecida pra fazer isso,
         que ela fazia uma mímica de abrir a braguilha, tirar o ‘peru’ pra fora e urinar em cima
         da platéia, mas isso tudo era mímica não acontecia nada. Ela fazia tudo em mímica, e
         ela fazia questão... ela ficava indignada com a teoria freudiana da inveja do pênis, que
         as mulheres tem inveja do pênis...”119




       Esta manifestação da mímica, a qual aproximamos de seu sentido de protesto

político, utilizava-se, na expressão, de um código teatral específico que condizia com o

conteúdo vinculado à juventude de vanguarda, a necessidade de liberdade de expressão.

Para parte do público, composta de mulheres de militares, o sistema de códigos dominado

era outro, elas foram apreendidas pela encenação de modo a interpretá-la como agressiva,

ou seja, a expressão ganhou novo conteúdo. Enquanto que os atores, e a atriz que faz a

mímica em especial, o diretor e mesmo o autor da comédia transitam por um código


119
   MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração
1h20min.

                                               82
estético livre; este público específico não conseguiu sair de um código ideológico que

refletia o regime militar. Com efeito, entre os artistas, por um lado, a performance da atriz,

ao “tirar o ‘peru’ pra fora e urinar em cima da platéia”, representava: 1) uma quebra da

“quarta parede”, a qual no código específico do teatro é a quebra de “uma parede

imaginária que separa o palco da platéia”120, e 2) mostrava uma indignação, segundo

Maciel, da atriz “com a teoria freudiana da inveja do pênis”.. Entre a platéia conservadora

de 1968, por outro lado, a mesma mímica representava nada mais que pura agressividade.

Enfim, esse fato, é sim, por isso, um exemplo de uso do palco enquanto lugar de resistência

política, por quebrar a “quarta parede” e enfrentar os representantes do autoritarismo com

uma “marcação” livre (aproximando esta performance do “teatro de protesto”); mas é

também, e acima de tudo, um exemplo de modos conflitantes de dar sentido a um mesmo

fato cênico.


         Sendo apenas mais uma leitura entre tantas outras, o sentido de agressão atribuído,

por estas mulheres presentes no espetáculo, à mímica da atriz, parece ter refletido uma

expressão da época, como nos mostra Marcos Napolitano:


          “Retomemos as três imagens: implosão, fechamento, abertura. ‘Implosão’ porque a
          partir de 1967, o teatro se fará ‘contra’ o público, tendo como paradigma as peças O rei
          da vela e Roda viva, do Grupo Oficina, não por acaso exemplo de ‘teatro de agressão’,
          conforme a expressão da época. ‘Fechamento’ porque, a partir de 1965, se fez um
          cinema para pequenos círculos, em parte por causa dos problemas de distribuição e da
          força esmagadora do cinema norte-americano, em parte por opção estética. Finalmente,
          falamos em ‘abertura’ do público para qualificar o progresso da música popular, pois,
          nessa área, também a partir de 1965 (com o programa O fino da bossa, por exemplo), o
          público será potencializado pela entrada das canções engajadas numa impressionante
          dinâmica de mercado televisivo e fonográfico, confirmando a vocação para a audiência
          massiva que a música popular brasileira já possuía, antes mesmo da explosão da bossa
          nova.”121




  PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro.São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 315.
120
121
  NAPOLITANO, Marcos. In.: Estudos Históricos, número 28, 2001. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e
Documentação da História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulia Vargas, 1988, p. 105-106.

                                                83
No entanto, deste autor não podemos concordar com as idéias de “implosão” do

público; nem de “fechamento” ou “abertura” para o público. Preferimos dizer que, no

encontro entre as diferentes formas de leitura e as três expressões artísticas referidas por

Napolitano, existe no máximo um desacordo entre códigos, conforme nossa análise vem

mostrando. Cada grupo social, de acordo com seu código, associa “os elementos de um

sistema veiculante” (expressão, ou significante); com os “elementos de um sistema

veiculado” (conteúdo, ou significado) e determina o signo teatral. O fato de a música ter

formado em torno de si um público que completou um “sistema” parece guiar o raciocínio

de Napolitano e, portanto, não queremos dizer que essas idéias não valem:

           “Delimitarei minha análise em três áreas de expressão: o teatro, o cinema e a música.
           Essas três ‘artes de espetáculo’ (...) ocuparam a cena principal numa época de ‘relativa
           hegemonia cultural de esquerda’, entre a segunda metade dos anos 50 e o final da
           década de 60. No caso da música popular, os anos 60 consolidaram um verdadeiro
           ‘sistema’ musical-popular, articulando ‘autor-obra-público-crítica’ e instaurando uma
           nova maneira de pensar e viver a música popular em nosso país.”122



        Pelo nosso lado, não vamos delimitar, mas, pelo contrário, vamos ampliar as

possibilidades de leitura. Pensamos que não precisa, necessariamente, existir uma

“explosão de público” para uma obra de arte ter importância cultural; e nem podemos

tomar uma “expressão da época” e cristalizá-la para rotular determinado autor. Talvez a

peça O rei da vela, escrita por Oswald de Andrade, possa ser mais aproximada de um

“teatro da crueldade”, que nos remete a Artaud123 ; do que de um “teatro agressivo”. Sua

encenação, em setembro de 1967, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, no Teatro
122
   NAPOLITANO, Idem. p. 103.
123
   “Teatro da crueldade – Expressão forjada por Antonin Artaud (1938) para um projeto de representação que
faz com que o espectador seja submetido a um tratamento de choque emotivo, de maneira a libertá-lo do
domínio do pensamento discursivo e lógico para encontrar uma vivência imediata, uma nova catarse e uma
experiência estética e ética original. O teatro da crueldade nada tem a ver, entretanto, pelo menos em Artaud,
com uma violência diretamente física imposta ao ator ou ao espectador. O texto é proferido numa espécie de
encantamento ritual (em vez de ser dito em cima do modo da interpretação psicológica). O palco todo é usado
como num ritual e enquanto produtor de imagens (hieróglifos) que se dirigem ao incosciente do espectador:
ele recorre aos mais diversos meios de expressão artísticos.” PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo:
Perspectiva, 1999, p. 377.

                                                     84
Oficina, causou escândalo por representar um “teatro anárquico, cruel, grosso como a

grossura da apatia em que vivemos.” Mas, nas entrelinhas, notamos que não se trata de se

posicionar “contra o público”, como fala Napolitano, mas sim com o público. O público

revolucionário, claro: “o sentido da eficácia do teatro hoje é o sentido da guerrilha

teatral”.124




        Mas é bom retomar a interpretação da mímica da atriz como “agressão”. Afirmamos

que esta leitura não tem, neste trabalho, todo esse valor, não pode ser considerada a causa

de algum fato histórico maior: seja o fato da explosão, seja o da implosão do público. O

que nos importa aqui é que Maciel, por exemplo, pôde retomar a sua re-leitura da mímica

por outro viés. Enquanto diretor, ele oferecia a seus atores e atrizes uma liberdade de

improvisação: “tinha umas marcações que inventaram e eu deixei e trouxeram uma atriz

conhecida pra fazer isso, que ela fazia uma mímica”; portanto, não havia essa vontade

deliberada de agressão, no máximo a atriz quisesse fazer o seu protesto particular, (“e ela

fazia questão... ela ficava indignada com a teoria freudiana da inveja do pênis”) e o diretor

soube aproveitar-se disso para a re-leitura de As Relações Naturais.

        No entanto, esta liberdade cênica adotada por Maciel foi igualmente julgada, por

Yan Michalski, crítico do Jornal do Brasil, como “de mau-gosto” justamente por que

“sobrou [de As Relações Naturais] apenas grossura” no palco. O crítico teatral pretendia

ver a “fidelidade convencional” da “literatura dramática”; obviamente contrária a esta

leitura libertária de Maciel:

          “a literatura dramática apenas havia alimentado esse fenômeno cênico durante muitos
          séculos. Quer dizer, a gente procurava se colocar na tradição teatralista que existe no
          teatro ocidental, europeu, desde Olren Grayt, Artaud, Maierhoud que eram teatralistas,
124
   MARTINEZ, José Celso. In.: Nosso Século. (1960/1980): sob as ordens de Brasília. São Paulo: Abril
Cultural, p. 160.

                                                85
que achavam isso. Artaud, então, era o radical desse ponto de vista, o teatro é uma
         liturgia, um acontecimento, não precisa praticamente de literatura dramática, abaixo as
         obras primas, ele esculhambava as obras primas: Shakespeare, Sófocles, mas o que
         interessava era a criação cênica.”125



       Quando Maciel se distancia dessa releitura no sentido de “literatura dramática”, ele

se afasta também da leitura cênica redundante; e se aproxima de uma defasagem

hermenêutica. Com efeito, a teoria do teatro apresenta o realismo das convenções teatrais

no interior de uma “dialética do texto e da cena”, a qual se divide em duas partes:

                  “a. Potencialidade cênica do texto: (...) aquele da redundância cênica, a
         encenação limitou-se a procurar signos cênicos que ilustram ou dão a ilusão, ao
         espectador, de ilustrar o referente do texto. (...) Esta teoria do texto considera em
         definitivo que o texto contém uma boa encenação que basta encontrar e que a
         representação e o trabalho cênico não estão em conflito com o sentido textual, mas a
         serviço dele. (...) b. Defasagem hermenêutica irredutível: Inversamente parece muito
         mais justo notar uma certa defasagem entre o texto e a encenação. A partir do momento
         em que a encenação se liberta de seu papel ancilar frente ao texto, cria-se uma distância
         de significação entre os dois componentes, e um desequilíbrio entre o visual e o textual.
         Este desequilíbrio gera um novo olhar sobre o texto e uma nova maneira de mostrar a
         realidade sugerida pelo texto. A separação é aquela de um fosso intransponível entre o
         texto e o espaço/tempo onde ele é proferido. Talvez, escreve Bernard DORT, nosso
         prazer no teatro tenha a ver precisamente com ver inserir um texto, por definição alheio
         ao tempo e ao espaço, no momento passageiro e na era delimitada do espetáculo. Assim
         a representação teatral não seria o local de uma unidade reencontrada, mas aquele de
         uma tensão nunca apaziguada entre o eterno e o passageiro, entre o universal e o
         particular, entre o abstrato e o concreto, entre o texto e a cena. Ela não realiza mais ou
         menos um texto: ela o critica, o força, o interroga. Ela se confronta com ele e o
         confronta com ela. Ela é não um acordo e, sim, um combate.”126



       Se a “criação cênica” importa mais a Maciel do que a “literatura dramática”, é

porque a “defasagem” entre texto e encenação é mais importante do que a “redundância”.

O texto da comédia As Relações Naturais não sofreu alterações, foi usado sem os “cacos”;

e, na encenação, o diretor deu margem à liberdade de expressão:

         “Não tinha muito ‘caco’ de texto, não, não precisava, o texto falava por si só. Na
         marcação é que havia muita liberdade. Exatamente, a gente teve o cuidado de não botar
125
    MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração
1h20min.
126
    PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 407.

                                                86
‘caco’ em palavras porque o texto havia sido liberado, então se a gente bota ‘caco’ em
         palavras, tudo podia ser proibido porque aquelas falas não faziam parte do texto
         liberado pela censura... então eu disse: Não, vamos fazer o texto como eles liberaram!
         Agora, era na mise en scène que tinha essa coisa libertária, maluca, debochada em
         muitos momentos.”127



       Assim, Maciel pôde usar a idéia da defasagem entre o texto e a cena (“na mise en

scène que tinha essa coisa libertária, maluca, debochada”) como um instrumento para

burlar a censura (“se a gente bota ‘caco’ em palavras, tudo podia ser proibido”). No

entanto, é preciso observar que o termo “defasagem” não é usado por Maciel; e para isso

faremos a digressão a seguir.

       O teatro brasileiro da década de 1960 era bastante conhecido por seu viés politizado,

engajado e conscientizador. Mas ocorreu no interior dos embates entre o teatro engajado

(CPC, Opinião, Arena, por exemplo) e a repressão por parte do governo militar, o

desenvolvimento também do teatro de criação, ou seja, um teatro que dialogava com as

vanguardas ocidentais; com diferentes formas de linguagem; e com a contracultura

ocidental sobre questões ideológicas. Esse novo formato foi denominado “Teatro da

Invenção”, para o qual a dramaturgia continua importante, mas é aberta para a interpretação

do diretor e seu poder imaginativo. Segundo Maciel foi o diretor teatral Paulo Afonso

Grisolli que elaborou o termo:

         “Teatro de Invenção, que obriga você inventar, porque se você não inventar nada, você
         não tem nada! No nosso caso não estávamos preocupados em inventar assim, não
         tínhamos a obrigação de inventar. A gente tinha apenas a... queríamos apenas
         reivindicar a liberdade de poder inventar o que nos desse na veneta. Como dava na
         veneta, se inventava. E com o Grisolli o trabalho era mais programado, uma coisa mais
         intelectual, pensada como uma espécie de proposta de trabalho: a invenção!”128

       Essa estratégia confundia a censura, pois apesar do texto dizer uma coisa no papel, o

espetáculo mostrava outra coisa no palco, totalmente diferente. No “teatro de invenção”, o

127
    MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração
1h20min.
128
    MACIEL, Idem.

                                              87
diretor passa a ser um co-autor; o teatro transforma-se num fenômeno cênico não restrito à

literatura dramática, ao texto. Essa estratégia buscou a liberdade de criação do espetáculo

cênico, como assinalou Luiz Carlos Maciel. Por nosso lado, tomamos a liberdade de

traduzir esse “teatro de invenção” para o sentido de: expressão da defasagem entre o texto e

a encenação.


          No entanto, podemos refletir sobre um exemplo do uso dessa estratégia frente a

censura prévia, no caso específico da segunda montagem de Maciel no Teatro Jovem, a

comédia As Relações Naturais, de Qorpo-Santo. Esta comédia, escrita em 1866, ao que

indica, não trouxe nenhuma suspeita subversiva aos censores de Brasília; e foi liberada para

ser montada e apresentada pelo Teatro Jovem. A estréia da comédia aconteceu no Teatro

Nacional de Comédia, na avenida Rio Branco. Tratava-se, portanto, do prédio do governo

federal, pertencente ao Serviço Nacional de Teatro. Por trás dessa aparente ingênua

intenção, montar uma comédia do século XIX, existiu uma estratégia para obter da censura

a liberação do texto e, assim, realizar suas apresentações.


            “(...) a gente tinha essa estratégia do boi de piranha: botava bastante coisa pra ser
            cortada; pra eles deixarem... (risos) a gente exagerava para eles cortarem no exagero; e
            sobrar o resto!”129

           Diferentemente do teatro com conteúdo de mensagem política, onde se detectava

com mais facilidade a subversão na dramaturgia; no teatro de invenção de Maciel, a

censura não sabia muito bem identificar, no texto, o lado subversivo. Era mais difícil de

censurar. No entanto, após a estréia tudo mudaria:


            “E foi assim que As Relações Naturais, num belo dia chegou o documento da censura
            dizendo que o texto estava liberado, mas o espetáculo estava proibido, e foi assim...” 130


129
      MACIEL, Idem.
130
      MACIEL, Idem.

                                                   88
Mesmo descoberta depois da estréia, valeu a estratégia. Os censores militares não

conseguiram imaginar a possibilidade de uma defasagem, entre o texto, que censuravam, e

a encenação que estava por vir.

          Onde assentava-se a defasagem na re-significação de As Relações Naturais?

Principalmente na leitura reichiana de Maciel, politizada e subversiva. Esta defasagem,

tanto no sentido da expressão, quanto no do conteúdo, Bernard Dort a vê como uma

“tensão nunca apaziguada entre o eterno e o passageiro, entre o universal e o particular,

entre o abstrato e o concreto, entre o texto e a cena”. Mas ainda, no sentido do conteúdo,

esta defasagem sugere, entre outras significações e tensões: repressões existenciais e

psicológicas sofridas por Qorpo-Santo, ele mesmo enquanto indivíduo, na província de

Porto Alegre do século XIX, por um lado; e as repressões políticas sofridas pelos

brasileiros após 1964, por outro:

            “Então agora vamos botar pra quebrar, vamos fazer uma peça de vanguarda bem
            maluca mesma, porque tem esse autor lá da minha terra, eu não sei se ele é vanguarda
            ou não, mas ele era louco, sabe? (risos) Isso já tinha uma coisa que, depois, com a
            evolução dos acontecimentos e o aparecimento da contracultura, a loucura ficou sendo
            cada vez mais prestigiada. Você sabe que pra você ser considerado uma pessoa com
            mente avançada, você tinha que ser no mínimo psicótico (risos). Mas enfim, esse
            esquizofrênico era o verdadeiro avanço, então quem melhor que o maluco lá de Porto
            Alegre pra gente fazer o espetáculo em cima do texto dele?!”131



          A encenação da comédia As Relações Naturais foi carregada dessa tensão dialética

entre o texto e a cena. A encenação é a expressão concreta de um conteúdo abstrato, ou

aberto à apreensão. A re-significação de Maciel é uma leitura particular da comédia, que é

o universal. O aparecimento da contracultura na década de 1960 é temporal e passageiro,

diante da obra escrita, eterna e criada pela loucura criativa de Qorpo-Santo:




131
      MACIEL, Idem.

                                                89
“(...) nas Relações Naturais, que todos os personagens são muito loucos – o autor é o
             mais louco de todos – então você tinha um espaço pra invenção cênica para um tipo de
             teatralidade que vai ser, precisa ser, inventada, vai ser criada, ela não está, de maneira
             nenhuma, determinada pelo texto.”132



           Conforme vimos acima, Luiz Carlos Maciel retomou o conteúdo básico de Qorpo-

Santo: a crítica à autoridade patriarcal e à sua moral; e a crítica ao casamento e à religião. A

partir desse ponto, re-significa, na expressão, à luz da teoria reichiana do “represamento

pulsional” como causa do “sistema de valores normativos” e da “angústia religiosa”. Não é

difícil verificar que a liberdade interpretativa de Maciel constitui em uma defasagem

criativa, a qual, também em seu teatro, passou a ser um sistema veiculante de mensagens

políticas. Mas a sua busca não era a de, necessariamente, veicular uma mensagem política;

ainda que a força expressiva de As Relações Naturais permitisse e até potencializasse o

conteúdo político:

             O Ginaldo chegou para mim e disse que tínhamos de montar outra. Eu peguei uma
             outra peça em um ato, daquele autor gaúcho do século passado, Qorpo-Santo, chamada
             As Relações Naturais. Este texto foi enviado para a cesura e passou. Mas o espetáculo
             era muito louco, na perspectiva das coisas que estavam acontecendo na época: teatro da
             nudez, moda de Marcuse, ser contra a repressão sexual, essas coisas que o Fernando
             Gabeira brilhantemente aponta como questões da nossa sociedade atual e já eram
             questões naquela época de 68, pois já estavam na pauta de muita gente. Ficou um
             espetáculo meio desaforado, meio debochado. Tinha um figurino de Arlindo Rodrigues
             em que as mulheres não ficavam nuas, mas as roupas estavam pintadas com peitos,
             xoxota e pentelhos. Nós estreamos e, cinco dias depois, começou a fofoca porque a
             gente fez o espetáculo no TNC e a crítica malhou. O Yan Michalski analisou o
             espetáculo dizendo que a gente tinha reduzido os dons poéticos do Qorpo-Santo a uma
             debilidade mental. Eu escrevi um artigo em resposta sobre repressão sexual e Wilhelm
             Reich. Claro, o Reich estava na moda. Era um espetáculo de desrepressão, era
             maluquinho mesmo, mas era um lance do que estava acontecendo no momento.”133




           A geração de 1968 foi a primeira a compreender o teatro enquanto fenômeno cênico

e se dispôs a empreendê-lo. Ela não tratou o teatro apenas com o realismo dramático, ou

132
      MACIEL, Idem.
133
      MACIEL, Luís Carlos. Negócio Seguinte. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, pp. 13-14.

                                                      90
seja, não o tratou pelo viés da “redundância” dramática, mas sim pela “defasagem” entre

texto e a encenação. O fenômeno cênico da defasagem, imprimia maior liberdade de

criação ao trabalho do diretor, muitas vezes, transformado-se em co-autor da dramaturgia.

Se a loucura estava “cada vez mais prestigiada”, em função da contracultura em moda, isso

aconteceu, em grande parte, por causa de Artaud, que deu prioridade à autonomia da

encenação em relação ao texto. Maciel, entendendo a força expressiva dessa autonomia, na

mise em scène do grupo Teatro Jovem, fez valorizar ainda mais a obra já monumental de

Qorpo-Santo. Entre as propostas da prática teatral de vanguarda, as de uso mais correntes

foram experimentadas primeiro por Artaud: a criação coletiva; a invenção e improvisação

da cena; a importância do gesto e da expressão corporal; as formas de comunicação não-

verbal; a quebra da “quarta parede”; happening; performance; e body art, todas propostas

envolvendo o fenômeno cênico, o plano principal de atuação da “defasagem hermenêutica”:


                  “O teatro, arte independente e autônoma, deve por si próprio, para ressuscitar,
          ou simplesmente para viver, marcar bem o que o diferencia do texto, da palavra pura,
          da literatura, e de todos os outros meios escritos e fixados. Pode-se perfeitamente
          continuar a conceber um teatro baseado na preponderância do texto, e num texto cada
          vez mais verbal, difuso e cansativo, ao qual estaria submetida à estética da cena. Mas
          esta concepção, que consiste em fazer sentar personagens num certo número de
          cadeiras ou de sofás colocados em fila e em contar histórias, por mais maravilhosas que
          sejam, talvez não seja a negação absoluta do teatro... seria mais a sua perversão.”134




       A palavra liberdade foi a haste das bandeiras de luta dessa geração: contra a

repressão sexual do jovem; contra a repressão política; e pela livre inventividade da

linguagem nas peças teatrais. Para Maciel, a proposta de liberdade de criação da sua

geração foi vitoriosa:




134
   ARTAUD, Antonin. Carta a B. Crémieux, 1931. In.: DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São
Paulo: Perspectiva, 2002, p. 156-157.

                                                91
“Essa proposta de luta foi plenamente vitoriosa, porque às novas gerações que vieram
           isso passou a ser lugar comum, passou ser o que todos os diretores queriam fazer.
           Gerald Thomas nunca se preocupou em pegar um texto pra montar, ele cria o texto que
           é parte do espetáculo dele. Tanto é que, se você quiser montar um texto do Gerald
           Thomas, ele não deixa. Ele diz: O texto do meu espetáculo é feito 135 a luz do
           espetáculo, feito a mise en scène, é feito o cenário, feito a direção dos atores, como é
           que vai tirar, desligar esse texto do resto, do resto da expressão do espetáculo?! Não
           pode. Mas isso foi... É nisso que minha geração teve um trabalho pioneiro. Os diretores
           começaram a fazer isso de diferentes maneiras, com diferentes ênfases, e tudo.”136

      Mas é preciso reconhecer que aprendemos algo mais com Luiz Carlos Maciel, que o

texto “é feito a mise em scéne”. Se o texto é de uma natureza idêntica à natureza da mise em

scéne, isto significa para nós que a expressão, ocorrência concreta e livre de seu espetáculo

em 1968, trouxe novos conteúdos, ou antes, novos sentidos à comédia As Relações

Naturais, sentidos, aliás, de natureza idêntica à sua expressão. Entendemos que Maciel nos

mostra que a apropriação de um produto cultural, como a obra de Qorpo-Santo, deve ser

feita através de uma leitura produtiva. É preciso ousadia para re-significar, aproximar da

leitura novos sentidos, totalmente inesperados. Um outro autor gaúcho, Luiz Antonio de

Assis Brasil, em 1987, deu-nos um exemplo de como re-significar toda uma época, ao criar

personagens e acontecimentos para seu romance de ficção Cães da província, inspirados

em pessoas e fatos da Província de Porto Alegre no século XIX. Com a precisão de um

ficcionista e o critério de um historiador, Assis Brasil apresenta-nos uma composição

artística de sensações inspiradas em documentos variados, desde as obras de Qorpo-Santo,

como As Relações Naturais, até as pesquisas das notícias de jornal. Ele consegue criar o

ambiente da Província apropriado para situar o protagonista Qorpo-Santo, em uma

narrativa que une fantasia a fatos e descrições históricos:



135
    Maciel usa o termo “é feito” no sentido da fórmula cultural: “Esta coisa é feito aquela outra!” Isto é: “Esta
coisa é da mesma natureza daquela outra. Assim: “o texto do meu (de Gerald Thomas) espetáculo” é da
mesma natureza daquela coisa, daquela “luz do espetáculo”, daquela “mise em scéne”, daquele “cenário”, da
mesma natureza da “direção dos atores”.
136
    MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração
1h20min.

                                                      92
“Qorpo-Santo atira longe as cobertas, sufoca-se, mesmo na imensidão do quarto
           solitário, não consegue dormir. Às apalpadelas, estende a mão para o lado, a mulher não
           está ali. A cada noite repete o gesto, só para depois constatar que de fato está apartado de
           Inácia há um bom tempo, sem possibilidade de reconciliação. E as relações naturais,
           como é que se podem processar, desse jeito? Levanta-se, toca uma sineta, abre as
           janelas. A cidade, adormecida. A rua da praia é uma débil linha de amarelados pontos de
           azul, os malditos lampiões que largam um cheiro enjoativo de óleo de baleia. Do rio vem
           um ar gordo, pesado, de água, e que no largo da Quitanda se mistura com o fartum das
           frutas apodrecidas, chegando ao seu nariz como o fedor da Humanidade. Durmam,
           rebanho!, diz bem alto para a seqüência dos telhados baixos, mal entrevistos na meia-luz
           do céu branquejante.”137


         Nós não vamos fazer como Assis Brasil, na seqüência deste trabalho, não criaremos

uma re-significação ambientada no século XIX. Apesar de sua imaginação nos fazer

transportar para a própria rua de Qorpo-Santo na “cidade adormecida”, e ouvi-lo gritar pela

janela “durmam, rebanho!”; e apesar de entendermos que a releitura de Assis Brasil nos

traz uma bela re-significação do dramaturgo em sua época; não vamos seguir este caminho.

Interessa-nos, antes, ampliar as possibilidades de ambientação, para que cada época e cada

cultura, ao aproximarem-se das culturas popular e primitiva, possam fundir suas próprias

composições de ambientes em cada encenação possível da comédia de Qorpo-Santo.

         Ainda que não pretendamos fazer o mesmo que eles, nós vamos seguir os exemplos

de Maciel e Assis Brasil, vamos ampliar, neste trabalho, as possibilidades de re-

significação de As Relações Naturais, buscando, como diria Roger Chartier, novas

maneiras de utilizar este produto cultural, mergulhando-o na diversidade de interpretações.

Para tanto, tomaremos como ferramenta de trabalho da história cultural a semiologia

teatral, conforme veremos na próxima unidade.




137
      ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Cães da Província. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003, p. 46.

                                                     93
UNIDADE III - A ATUALIDADE CRÍTICA DE AS RELAÇÕES NATURAIS




                                 94
3.1 – A SEMIOLOGIA TEATRAL E A RE-SIGNIFICAÇÃO NA EXPRESSÃO E NO

CONTEÚDO DA OBRA

           Conforme analisamos na unidade anterior existem diferenças entre as leituras da

expressão mímica da atriz, em sua performance na comédia As Relações Naturais. Isto é,

nós podemos re-significá-la de quatro modos, no mínimo: a) ou como indignação da atriz

contra a teoria freudiana da inveja do pênis; b) ou como protesto contra as repressões

sexual e política; c) ou como expressão de conteúdo agressivo; d) ou ainda como expressão

de mau-gosto, conforme disseram alguns críticos teatrais. Esta diferença consiste na

correlação, ou não, entre a “leitura produtiva do encenador”, no “plano da expressão”; e a

“leitura receptiva do espectador”, no “plano do conteúdo”. Para darmos conta da semântica

dos signos, dentro da complexidade do espetáculo, seria mais adequado falarmos da

semiologia do teatro:

              “o signo é concebido como o resultado de uma semiósis, isto é, de uma correlação e de
              uma pressuposição recíproca entre plano da expressão (significante saussuriano) e
              plano de conteúdo (significado saussuriano). Esta correlação não é dada de imediato,
              ela se acha instituída pela leitura produtiva do encenador e a leitura receptiva do
              espectador. Estas funções significantes em ação na representação dão uma imagem
              dinâmica da produção do sentido: elas substituem uma tipologia ou um inventário de
              signos e uma concepção mecanicista de códigos de substituição entre significados e
              significantes; elas permitem um certo jogo na decupagem dos significantes e demarcam
              significados ou significantes ao longo do espetáculo.138



           A cultura flui no universo simbólico das sociedades para se materializar na criação

de expressões que dão sentido à vida e ao mundo. Embora de forma diferente das artes, a

comunicação de massas, na década de 1960, intensificou a circulação do conteúdo




138
      PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro.São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 351.

                                                       95
global.139 No Brasil, muito antes de 1968, meios de comunicação como o rádio, as revistas

e os jornais, já faziam parte da vida cotidiana nas maiores cidades brasileiras e passaram,

cada vez mais, a atribuir sentido aos hábitos das populações urbanas. A televisão foi o

veículo de contato com a cultura global e sua grande divulgadora; o telejornalismo que foi

implantado buscou seguir os padrões dos telejornais dos E.U.A. Contudo, os jornais e

revistas impressos e o rádio eram de maior circulação que a TV; mas esta, logo a seguir,

simbolizou mais uma fase na concretização da rede de comunicação de massa, divulgadora

dos produtos industrializados, culminando com o desenvolvimento e o estabelecimento

definitivo da sociedade de consumo.

                “De 1960 a 1969, em cada ano desta década, em cada um dos cinco continentes,
          em quase todos os 145 países de vários sistemas políticos, o mundo conheceu a
          rebelião dos jovens. Ao lado das guerras – mais do que o sexo –, as manchetes dos
          jornais falaram da odisséia de 519 milhões de inconformados.
                Mutantes da nova ‘era oral e tribal em dimensões planetárias, produzida pelas
          comunicações de massa’, segundo Marshall McLuhan, os jovens entre 15 e 24 anos –
          um sexto da população da Terra – são ao mesmo tempo mito e desmistificadores da
          sociedade. Consumindo e consumidos, contestando e contestados, eles lutaram com
          todas as armas para destruir o velho e impor o novo.”140



        Dentro deste contexto, Maciel fez a re-leitura de As Relações Naturais, em 1968,

assumindo uma atitude muito mais voltada à arte marginal; do que aos jovens “pequeno-

burgueses” que fundaram o Teatro Brasileiro de Comédia em 1948. Conforme relata em

um texto de 1968:

          “Os intelectuais pequeno-burgueses, em conseqüência do próprio avanço de sua classe,
          sentiram necessidade de falar mais alto. Sem acesso aos grandes meios de comunicação
          com a massa, na época (jornal, rádio e cinema), alguns deles encontraram no teatro uma
          solução menor, insatisfatória, mas inevitavelmente tentada em nome da cultura e
          caráter sagrado da arte. Embora a invasão tivesse tido pouca ou nenhuma importância

139
    HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 50. Hall nos
explica sobre o grande impacto do processo de globalização sobre a identidade nacional imaginada, que cada
vez mais está sendo deslocada pela globalização da cultura.
140
    VENTURA, Zuenir (Org,). Os anos 60. A década que mudou tudo. In.: MARQUES, Adhemar Martins.
História do tempo presente. São Paulo: Contexto, 2003, p. 186.

                                                   96
para a dinâmica das relações de poder, em nosso corpo social e político, a situação
                                                                             141
             interna de nosso teatro sofreu (...) uma transformação radical.”



           Nesse sentido, a estética da utopia revolucionária, geralmente, vinculada a uma

expressividade artística mais comprometida com a mudança da realidade política e social

brasileira foi se tornando inconciliável com a lógica econômica burguesa. Em 1953 surgiu

o grupo Teatro de Arena, como um grupo experimental dentro do Teatro Brasileiro de

Comédia; alguns anos depois Augusto Boal dirigiria Ratos e Homens, no Arena; e

Gianfrancesco Guarnieri encenaria Eles não usam black-tie.                 Os espaços teatrais se

transformaram em lugares destinados a debates a respeito dos problemas brasileiros. Às

vezes até criticando os meios de comunicação de massa, os “artistas da geração posterior ao

TBC”, mais os intelectuais e o público, estimulados e abertos para novas formas

expressivas, dialogavam com a estética da cultura popular brasileira e debatiam sobre os

rumos da cultura:

             “o projeto original da geração posterior ao TBC foi, não mais a ascensão social, mas a
             transformação da sociedade. Seu processo de amadurecimento humano e artístico
             coincidiu com um processo geral de radicalização política verificada no Brasil, no
             início da década de 60. Esses jovens pequeno-burgueses, marginalizados como seus
             colegas mais velhos, embora dotados do mesmo apuro estético e cultural que eles,
             descobriram um sentido mais amplo para seu conflito original com os valores
             tradicionais: a esperança de uma sociedade mais justa e mais humana. Iniciou-se um
             processo quase geral de esquerdização do teatro brasileiro. Ninguém queria mais ser
             grã-fino; pelo contrário, aspirava-se por um teatro popular. Ninguém mais se encantava
             com a Forma, a Beleza ou a Arte; pelo contrário, queria-se entregar às platéias
             mensagens filosófica e politicamente conseqüentes. Tal projeto, infelizmente, não foi
             isento de sonhos vãos. Na verdade, chegou quase a ser dissolvido pelo golpe militar de
             abril de 1964.”142




141
   MACIEL, Luiz Carlos. Quem é quem no teatro brasileiro. In.: Revista Civilização Brasileira. “Caderno
Especial”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Ano IV, nº 2, jul/1968, p. 53.
142
      MACIEL. Idem.. P. 58.

                                                  97
A busca de novas formas expressivas e idéias que circulavam no meio teatral foi

intensa até 1964. Novas formas teatrais, novos espaços para apresentação de seus

espetáculos, novo público. Nesta busca, a influência estrangeira poderia ser acrescentada à

expressão da juventude de vanguarda, mas o que deveria prevalecer no conteúdo era a

realidade local, tal como a cultura popular brasileira. No entanto, o teatro engajado, após

1964, foi se desvinculando da cultura genuinamente brasileira, gradativamente encobertas

pelo discurso preparado pela indústria da cultura do entretenimento. Maciel segue o

caminho de uma arte marginal e revolucionária, de caráter reichiano, independente do

sistema industrial, e por isso pôde criticar tanto a geração do Teatro Brasileiro de Comédia,

quanto a posterior, que não lograram esse intento:

             “No fundo, a geração posterior ao TBC não soube levar a termo um rompimento
             efetivo com a tradição – já então inadequada – estabelecida pelos seus antecessores do
             TBC. (...)
             Sob a aparência externa de seu ímpeto, portanto, escondia-se seu caráter submisso e
             passivo. Embora mais conscientes, os novos pequeno-burgueses sentiam-se fiéis
             continuadores dos mais velhos. Recolheram deles, e os aceitaram, todos os valores
             existenciais, promulgados então para a classe teatral, inclusive a humanidade em face
             da Arte, a disposição para sacrifício etc, que juntamente com o novo sentimento de luta
             heróica por causa humanista, os tingiu de masoquismo. Essa postura existencial talvez
             possa ser melhor compreendida se for comparada com as dos jovens da mesma geração
             que criaram o Cinema Novo brasileiro. Ao contrário do teatro, o cinema é uma
             indústria. Em conseqüência, o processo da marginalização não foi tão profundo neles.
             E, em segundo lugar, a tradição anterior do cinema brasileiro não lhes merecia o
             respeito que se votava ao teatro do TBC: era a desprezível chanchada que precisava ser
             erradicada para sempre e substituída por um cinema moderno e empenhado. Os jovens
             cineastas realizavam, na sua área, da noite para o dia, um salto que levara duas décadas
             para ser completado na área do teatro. O rompimento que efetuaram foi radical:
             inventaram um novo modo de produção (‘a câmara na mão e a idéia na cabeça’) e,
             neles, não havia timidez alguma, mas muito espírito de aventura e muito drive. Em
             conseqüência, mostraram-se também mais resistentes à frustração de 1964 do que os
             seus companheiros do palco.”143




           Quando Maciel faz a sua crítica à geração do Teatro Brasileiro de Comédia, e volta

a fazer a mesma crítica à geração posterior ao Teatro Brasileiro de Comédia, o que ele

143
      MACIEL. Idem.. P. 59-60.

                                                   98
critica é a convenção tradicional do teatro, sustentada pela primeira; e continuada fielmente

pela segunda geração. “Pequeno-burgueses” o bastante para não ousarem uma revolução

cênica, estes falsos “marginais” não conseguiram fazer aquilo que Antonin Artaud

propunha, a libertação da tirania do texto. Conforme vimos, em Artaud, o teatro “baseado

na preponderância do texto” tal qual o seguido pelo Teatro Brasileiro de Comédia, seria

considerado “perversão” do teatro. É isso que nos mostra Jacques Derrida sobre a crítica de

Artaud ao teatro tradicional ocidental:


             “O Ocidente – e essa seria a energia da sua essência – sempre teria trabalhado para a
             destruição da cena. Pois uma cena que apenas ilustra um discurso já não é totalmente
             uma cena. a sua relação com a palavra é a sua doença e ‘repetimos que a época está
             doente’ [Artaud]. Reconstruir a cena, encenar finalmente e destruir a tirania do texto é
             portanto um único e mesmo gesto. ‘Triunfo da encenação pura’.

             Este esquecimento clássico da cena confundir-se-ia portanto com a história do teatro e
             com toda a cultura do Ocidente, ter-lhes-ia mesmo assegurado a sua abertura. E
             contudo, apesar deste ‘esquecimento’, o teatro e encenação viveram esplendidamente
             durante mais de vinte e cinco séculos: experiência de mutações e agitações que não
             podemos desprezar, apesar da pacífica e impassível imobilidade das estruturas
             fundadoras. Não se trata portanto apenas de um esquecimento ou de uma simples
             recobertura de superfície. Uma certa cena manteve com a cena ‘esquecida’ mas na
             verdade violentamente apagada, uma comunicação secreta, uma certa relação de
             traição, se trair é desnaturar por infidelidade mas também de si deixar-se traduzir e
             manifestar o fundo da força. Isto explica que o teatro clássico, aos olhos de Artaud, não
             seja simplesmente a ausência, a negação ou o esquecimento do teatro, não seja um não-
             teatro: antes uma obliteração deixando ler o que ela recobre, uma corrupção também e
             uma ‘perversão’, uma sedução, a distância de uma aberração cujo sentido e medida só
             aparecem acima do nascimento, na véspera da representação teatral, na origem da
             tragédia.”144




           Como nos mostra Jacques Derrida, para Artaud havia, no teatro clássico, uma “certa

relação de traição”, ao insistir no “esquecimento da cena”; ao criar uma cena que “apenas

ilustra um discurso”; e ao “trabalhar para a destruição da cena”, seguindo a tradição do

ocidente. Isso nos faz lembrar da forma irônica de Qorpo-Santo tratar o realismo das


144
      DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 155-156.

                                                      99
convenções teatrais da época: metamorfoseando-o pela paródia das convenções do

realismo. Conforme já vimos, na análise semiológica de As Relações Naturais, as

personagens mulheres, que cantam ao final da peça, não levam muito a sério, na encenação,

o que manda o texto “moralmente correto”. A cena recomendada pela rubrica para se tornar

ocorrência concreta, que deve de fato ser representada no palco, enquanto cantam, é a cena

de um alegre ritual. Com a ajuda da semiologia teatral, nós vamos retomar a seguir esta

cena, a qual denominamos acima apenas como ritual antropofágico, num diálogo com a

cultura brasileira da semana de 22, e re-significá-la de quatro outros modos diferentes.




                                             100
3.2 – OUTRAS POSSIBILIDADES CÊNICAS DE AS RELAÇÕES NATURAIS


        Vamos tomar como hipótese a possibilidade de encenação de As Relações Naturais

no século XXI; isto é, vamos lançar as bases interpretativas para uma possível “ocorrência

concreta do elemento pertinente da expressão” a partir de uma nova re-significação. Com a

aproximação de novos significados, pretendemos potencializar a re-leitura dessa obra.


      No quarto ato vemos o início do ritual, no incêndio da primeira cena, com as

presenças dramáticas dos elementos fogo e água. Este ritual pode ser re-significado, com a

ajuda da semiologia teatral, enquanto expressão de outros conteúdos culturais. Com efeito,

podemos interpretá-lo como expressão de: 1) conteúdo modernista; 2) conteúdo religioso;

3) conteúdo de cultura popular; 4) conteúdo de cultura primitiva. Desde já, podemos falar

da presença rápida do fogo pela peça. Vejamos a rubrica, a qual parecerá, aos olhos

desavisados, muito mais um conto do que rubrica:

        “ Tudo corre; tudo grita (mulher; filhos; marido; criado, que por um dia foi amo do amo).
        Incêndio! Incêndio! Incêndio! Venham bombas! Venham água! (É um labirinto, que
        ninguém se entende, mas o fogo, a fumaça que se observa não passa, ou o incêndio não é
        real, mas aparente).
        Pegam em barris dágua, em canecas ou outros vasos; e todos atiram água para o ar; chega
        uma bomba pequena, e com ela também atiram água, por espaço de alguns minutos, mas
        o incêndio parece lavrar com mais força até que se extingue ou desaparece.”145



      É evidente que esta rubrica indica toda uma situação dramática, e não apenas

convenções teatrais. A consciência de que a encenação deveria mostrar um fogo ritualístico

e uma água transcendental que tudo apaga (“o incêndio parece lavrar com mais força até

que se extingue ou desaparece”) faz com que Qorpo-Santo indique uma cena toda através

145
   QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org.
CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
1969, p. 89.

                                                 101
da rubrica, em que aparece, à primeira vista, a família diante de um lar em

desmoronamento. Mas não podemos ler o fogo (para falarmos primeiro deste elemento da

natureza) pela ótica da destruição; em nossa releitura vamos falar em uma “purificação”, ou

seja, conforme Gaston Bachelard:

                  “O recalque está na origem do pensamento atento, reflexivo, abstrato. Todo
           pensamento coerente é construído sobre um sistema de inibições sólidas e claras. Há uma
           alegria da rigidez no fundo da alegria da cultura. O recalque bem conduzido é dinâmico e
           útil na medida em que é alegre.
                  (...) Mas quão mais forte é esse gozo, quando o conhecimento objetivo é o
           conhecimento objetivo do subjetivo, quando descobrimos em nosso próprio coração o
           universal humano, quando, psicanalizando lealmente o estudo de nós mesmos,
           integramos as regras morais nas leis psicológicas! Então, o fogo que nos queimava de
           repente nos ilumina. A paixão reencontrada torna-se a paixão querida. O amor torna-se
           família. O fogo torna-se lar. Essa normalização, essa socialização, essa racionalização
           passam frequentemente, com o peso de seus neologismos, por arrefecimentos. Despertam
           a zombaria fácil dos partidários de um amor anárquico, espontâneo, repleto ainda do
           calor dos instintos primitivos. Mas, para quem se espiritualiza, a purificação é de uma
           estranha doçura e a consciência da pureza prodigaliza uma estranha luz. Somente a
           purificação pode nos permitir dialetizar, sem destruí-la, a fidelidade de um amor
           profundo. Embora abandone uma pesada massa de matéria e de fogo, a purificação tem
           mais possibilidades, e não menos, que o impulso natural. Só um amor purificado faz
           descobertas afetuosas. É um amor individualizante. Permite passar da originalidade ao
           caráter.”146



         O ritual que analisamos contém esse mesmo espírito de “purificação”, Qorpo-Santo

coloca em cena esse “conhecimento objetivo do subjetivo”. Ou seja, ele mesmo coloca as

regras morais integradas com as “leis psicológicas dos personagens”. Ele transforma o

“fogo”: se antes o fogo era o recalque, que queimava; agora o fogo ilumina o interior de sua

criação, ele compõe uma obra que é a própria alegria da cultura, ao permitir aproximações

tão felizes com outros produtos culturais. É o próprio Qorpo-Santo que se purifica, através

do fogo, agora identificado como a sua obra de arte, ele transforma o lar e a família. Ele

elimina o elemento repressor patriarcal e estético; e institui o “calor dos instintos




146
      BACHELARD, Gaston. Psicanálise do fogo. são Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 147-148.

                                                    102
primitivos” e “o amor anárquico, espontâneo”, em sua nova família, que satiriza a família

do realismo teatral.

      E este fogo que proporciona tal calor, Qorpo-Santo não via em Malherbe, por isso o

escolheu para parodiar as convenções teatrais em chamas, diante da casa queimada,

adivinhando o seu final infeliz:

         “MALHERBE – (depois de todos tranqüilos) – Sempre a desordem nas casas sem
        ordem! Sempre as perdas; os desgostos: os incômodos de todas as espécies! Santo Deus!
        Por que não crucificais aqueles que desrespeitam vossos santos preceitos!? Mas, que
        digo? Se continuo, estas mulheres são capazes de – pendurar-me naquela travessa, e aqui
        deixarem-me exposto, por não querer acompanhá-las em seus modos de pensar e de
        julgar! O melhor é retirar-me!”147



        Não é difícil observar que os “santos preceitos” são destruídos, ou transformados,

no ritual; e as mulheres representam a “alegria da cultura” buscada pelo estilo irreverente

de Qorpo-Santo. Talvez possamos imaginar Malherbe, já sabendo que as mulheres eram

capazes de pendurá-lo “naquela travessa”, como sendo o único insatisfeito no palco, na

cena do incêndio; enquanto que o resto da família pode ser imaginada comemorando a

queda do antigo lar, o fim das tradições sociais e das convenções teatrais que queimam e

reprimem o autor e sua obra. São as mulheres da casa que fazem a sublevação cultural. São

elas que saboreiam o banquete de Malherbe. Entendemos, assim, pois o autor indica pela

reiteração das falas, o motivo pelo qual Malherbe é castigado pelas mulheres, ele renega as

relações naturais e, consequentemente, renega o desejo e as “Leis” das mulheres.

Comparemos os motivos pelos quais Malherbe pode ser castigado, alegados por cada uma

das personagens a seguir. Malherbe alega que poderá ser pendurado pelas mulheres na

travessa: “por não querer acompanhá-las em seus modos de pensar e de julgar!” Elas,


147
   QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org.
CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
1969, p. 89.

                                                 103
“umas para as outras”, combinam de “pregar um susto neste mariola”; e dão o seu motivo:

“Já que ele não quer obedecer aos nossos chamados espirituais, e aos das outras mulheres;

já que é preguiçoso, vaidoso, ou orgulhoso...” Todas alegam que Malherbe desobedece ás

Leis, das relações naturais, claro; e este é o motivo para se divertirem com ele: “Ou ele há

de ser obediente às Leis, ou havemos de enforcá-lo, ainda que seja só por alguns momentos

de divertimento!”. Por fim, o motivo maior, expressado por Mariposa, para levar o marido

malcriado a ficar pendurado, é que ele deve ser sacrificado, “para eterna glória das

mulheres”:

            “E o Sr., Sr. Tralhão, que não quis acompanhar-nos nas relações naturais, importando-
            se sempre com direitos; não vendo que o próprio direito autoriza, dizendo que cada um
            pode viver como quiser e com quem quiser; há de ficar aqui pendurado para eterna
            glória das mulheres, e exemplo final dos homens malcriados!”148



          Notamos que as leis das mulheres foram desobedecidas, ou, em outras palavras,

alguma promessa anterior foi quebrada por Malherbe, ele traiu a confiança das mulheres:

renegou a mulher. Não parece difícil, neste ponto, fazer uma aproximação com o outro

elemento da cena inicial do quarto ato, o elemento água. Genericamente, inicia-se uma

maior aproximação com a cultura popular, através de uma personagem da tradição oral: a

Mãe d’Água. Durante o uso da água nesta cena, conforme vemos na rubrica, “o incêndio

parece lavrar com mais força até que se extingue ou desaparece.” Mas como assim, se

extingue ou desaparece? Essa água tão poderosa que apaga assim o fogo, poderia ser

comparada a uma “deusa água” ou, talvez, seja a própria Mãe d’Água? Retomemos o conto:


                   “Quer casar comigo? disse a Mãe d’Água.
                   O rapaz nem titubiou: – Quero muito!
                   A Mãe dÁgua deu uma risada e continuou:
                   – Então vamos casar. Na noite da quinta para a sexta-feira, na outra lua,
            venha me buscar. Traga roupa para mim. Só traga roupa de cor branca, azul ou verde.
            Veja que não venha alfinete, agulha ou cousa alguma que seja de ferro. Só tenho uma
148
      QORPO-SANTO. Idem, p. 84, 91.

                                                104
condição para fazer. Nunca arrenegue de mim nem dos entes que vivem no mar.
          Promete?
                 O rapaz, que estava enamorado por demais, prometeu tudo e deixou a Mãe
          d’Água que desapareceu nas ondas e cantou até sumir.”149


       Luís da Câmara Cascudo, em seu belo livro Contos tradicionais do Brasil fala

de uma tradição oral, de onde nos vem a história do Marido da Mãe d’Água. O trecho

supracitado mostra o encontro de um pescador com esta entidade feminina do mar,

resultante de uma história contada desde a África meridional e relatada por Gabriel

Ferrand, em Contes Populaires Malgaches, Paris, 1893. No Brasil, este conto foi muito

divulgado pelo nome indígena da deusa: Iara, a Mãe d’Água. O conto, no entanto, não

está desligado da história do marido dela, que, nesta versão publicada por Cascudo é um

pescador que tem sua sorte mudada por ocasião da união, em casamento, com a

entidade feminina do mar. A condição que a deusa impõem ao futuro marido é que ele

“não arrenegue dela”. Depois de um tempo vivendo juntos, ele põe-se a notar as

diferenças e, após uma noite de bebedeira, o marido ingrato “arrenega” da mulher. O

resultado disso é a volta à condição de pobre, para ele; e a volta à condição de entidade

das águas, para ela:



                   (...) O mal-agradecido, sentando-se numa cadeira, de cara franzida, não tendo
          o que dizer, começou a resmungar:
                   – Bem feito! Quem me mandou casar com uma mulher do mar em vez de
          gente da terra? Bem feito. É tudo misterioso, cheio de histórias. Coisas do mar... hi...
          eu te arrenego!
                   Logo que disse essas palavras, a Mãe d’Água deu um gemido comprido e
          ficou da cor da cal da parede. Levantou as duas mãos e as águas do mar alcançaram
          como um castigo, numa onda grande, coberta de espuma, roncando como um bicho
          feroz. O rapaz, morrendo de medo, deu uma carreira de veado, subindo o monte perto
          da casa. Lá de cima se virou para ver. Casa, varanda, cercado, animais, tudo
          desaparecera. No lugar estava uma lagoa muito calma, pegada a um braço de mar. Ao
          longe ouvia uma cantiga triste, triste como quem está se despedindo do mundo.
                   Nunca mais viu a Mãe d’Água.”150
149
    CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil – nº 1442. Rio de Janeiro: Tecnoprint –
Edições de Ouro, s/d, p. 94-95.
150
    CASCUDO. Idem. p. 96-97.

                                                105
Vemos na rubrica de Qorpo-Santo que a casa de Malherbe desaparecera, tal qual a

casa do pescador marido da Mãe d’Água. Supondo-se a encenação da peça As Relações

Naturais nos dias de hoje, provavelmente o diretor ainda encontrasse dificuldades na sua

montagem, teria que enfrentar a necessidade da aquisição de um espaço teatral com uma

estrutura tal, que permitisse o uso abundante de água, com escoamento prático e sem

surpresas desagradáveis em cena. Podemos imaginar, um cenário de uma “trave” em

primeiro plano, um casarão com piscina, “barris” e “bomba d’água pequena”, “canecas” e

“outros vasos”; tudo isso entre um público restrito, ocupando lugares (comprados em

bilheteria) do cenário, em fusão com o cenário; um espetáculo contemporâneo, quem sabe

inspirado em Luiz Carlos Maciel: espetáculo como “invenção totalmente irresponsável,

porque (...) invenção de uma liberdade completa”.


       Mas, voltemos à re-significação. Notemos, ainda, que, na comédia, Malherbe não

receberá o mesmo castigo que o pescador, não apenas cairá na pobreza, mas também será

oferecido em sacrifício; ou seja, a água que se derrama sobre o palco anuncia uma libação,

e esses “barris”, “canecas” e “vasos” estão cheios de vinho, leite e licor, bebidas que são

derramadas em honra da Mãe d’Água.


       Uma vez respeitada a libação, elas podem dar continuidade à cerimônia. Façamos

uma leitura da segunda cena, na continuidade desse ritual:

         “ELA – (umas para as outras) Preparemo-nos para pregar um susto neste mariola! Já
         que ele não quer obedecer aos nossos chamados espirituais, e aos das outras mulheres;
         Já que é preguiçoso, vaidoso, ou orgulhoso; ao menos preguemos-lhe um susto!

         TODAS – Apoiado! Apoiadíssimo! Ou ele há de ser obediente às Leis, ou havemos de
         enforcá-lo, ainda que seja só por alguns momentos de divertimento! Deixemos ele vir.
         (Preparam uma corda; e tudo mais que as pode auxiliar para tal fim; conversam sobre
         os resultados e conseqüências de sua empresa, e o que farão depois; entretanto entra o



                                              106
criado com ele [Malherbe] em figura forte de papelão, abraçado para poder
          acompanhá-lo; e é esta a 3ª Cena. Cumprimentam-se todos muito alegremente.)

          UMA DELAS – (para o criado) Ora muito bem! Já se vê quanto é bom viver
          conforme as relações naturais. Eu gosto de mingau de araruta ou de sagu, por exemplo
          – como; e porque está relacionado com certo jovem a quem amo; ele aqui me aparece,
          e eu gozo! Já se vê pois que, vivendo conforme elas, é em duplicata!

          OUTRA – É verdade, mana; eu, como a comida de que mais gosto é coco; e porque
          este se relaciona com certo amigo de meu Pai, ele aqui também virá, e o meu prazer
          não será só de paladar, mas também aquele que provém do amar!

          OUTRA – Pois eu, como o que mais aprecio é chocolate, bebê-lo-ei, bebê-lo-ei; e por
          idênticas razões gozarei dele e de quem não quero dizer! Mas o diabo é que assim
          ficam sem coisa alguma!”151



        Segue-se a estas falas, a de Mariposa, reproduzida acima, no Diálogo 2. Diante de

Malherbe, as filhas (Uma Delas, Outra e Outra) e a esposa (Mariposa), falam de

alimentação. Se não nos afastarmos da tentativa de re-significar a alimentação deste ritual,

então talvez seja lícito fazer uma correspondência entre este discurso, a palavra dita, das

mulheres qorpo-santenses e a confusão de Alice com as palavras e a comida, conforme nos

mostra Gilles Deleuze:


          “No jantar de cerimônia de Alice, comer o que se vos apresenta ou ser apresentado ao
          que se come. Comer, ser comido, é o modelo da operação dos corpos, o tipo de sua
          mistura em profundidade, sua ação e paixão, seu modo de coexistência um do outro.
          (...) E se falarmos de alimento, como evitar fazê-lo diante daquele que deve servir de
          alimento? Assim, temos as gafes de Alice diante do camundongo. Como evitar comer o
          pudim ao qual se foi apresentado?”152




        Há, nas falas das mulheres, a relação comida e namorado. Elas apresentam o que

gostam de comer, tanto na culinária, quanto no sexo. No entanto, há a pergunta: “se

falarmos de alimento como evitar fazê-lo diante daquele que deve servir de alimento?” Esta

151
    QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org.
CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
1969, p. 89-90.
152
    DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. são Paulo: Perspectiva, 1974, p. 25.

                                                 107
questão nos remete à possibilidade cênica mais conveniente para a interpretação deste

ritual, como ritual de antropofagia: se é Malherbe que está diante das mulheres que falam,

então é Malherbe que deve servir de alimento na encenação. O fato de Qorpo-Santo ter

recomendado, em sua rubrica, que não se usasse um ator para representar Malherbe, mas

sim um boneco, não deve nos confundir, foi apenas uma solução cênica. Se ele o fez foi

porque a cena exigia o esquartejamento do personagem, o que seria complicado tendo em

cena um ator. Com efeito, a fala de Inesperto, o criado que carrega Malherbe para o alto da

escada, indica para a validade de nossa interpretação:


                   “INESPERTO – Não precisamos ter trabalho, porque ele está dormindo, com
          certa flor que lhe dei a cheirar!”153




        O autor, com esta fala, desculpa-se ao público por ser obrigado a fazer a cena com

um “boneco de papelão”, como se dissesse: entendam esse boneco como se fosse Malherbe

dormindo sob o efeito de uma droga qualquer. Qorpo-Santo tem tanta consciência do efeito

cômico do boneco no palco que, com a finalidade de deixar claro de tratar-se de Malherbe,

faz este personagem falar, ou ralhar contra as mulheres e as relações naturais. Mas o faz

através da fala ventríloqua de Inesperto, enquanto este e Mariposa manipulam a marionete:


          “ELAS – Oh! então melhor! Venham as cordas! (para o criado:) Vê uma escada; trepa
          lá; sobe naquela trave; leva esta corda, que nós cá o amarremos pelo pescoço, e depois
          tu o sungas.

          INESPERTO – Sim; mas como o diabo há de ser! Ah! É preciso a Sra. pegar nele para
          não cair...

          MARIPOSA – Eu seguro!



153
   QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org.
CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
1969, p. 91.

                                                 108
INESPERTO – (Pega a escada, põe no lugar próprio, sobe, levando a corda, e depois
            desce.) (À parte:) Estas mulheres não vêem – que não se pode ainda andar com as
            relações naturais; que se umas querem, outras não querem; que se umas podem, outras
            não podem; que... enfim, são o diabo! Mas elas agora vão conhecer que eu sou
            homem, e que por isso mesmo hei de defender e amparar aqueles a quem elas
            quiserem crucificar! (Amarra a corda ao pescoço da figura; e diz:) Está bem atada!
            Agora vou sungá-lo! (Sobe a escada, monta na trave, e puxando:) Pesa como o diabo!
            Não terá dez arrobas? Mas quinze eu juro que pesa! Irra! (Puxando.) Irra! Arriba!
            Agora, agora já está seguro!”154




          Uma encenação que pretenda potencializar, ao máximo, esta cena, deve levar em

consideração que Qorpo-Santo indica para um humor próximo da crueldade: 1) Inesperto e

Mariposa posicionam-se no palco, de modo a deixarem o boneco (para nós, marionete)

entre eles; 2) eles manipulam a marionete; 3) e Inesperto faz a fala do boneco, como um

ventríloquo, enquanto ambos manipulam-no. Somente essa seqüência permite entender a

fala de Inesperto, pois não faria sentido o seu discurso contrário às relações naturais, sendo

que ele mesmo ajuda as mulheres: “(Puxando.) Irra! Arriba! Agora, agora já está seguro!”.

No entanto, a marionetização de Malherbe é a “marionetização do ser humano”; ou seja, o

ator poderia fazer, até certo ponto, esta cena de Malherbe. Em Qorpo-Santo o ator não

deveria ser apenas aquilo que as convenções realistas exigem, ele não deveria apenas

realizar as suas “confissões acidentais” no palco, mas antes fazer do corpo uma obra de

arte:


            “DIDEROT, no Paradoxo sobre o Comediante, já encarava o ‘grande ator’ como
            ‘outro fantoche maravilhoso cujos cordões o poeta segura, e ao qual ele indica, em
            cada linha, a verdadeira forma que deve assumir”. Esta marionetização do ser humano
            culmina na supermarionete de Gordon CRAIG. Porque o ator não é capaz de fazer de
            seu próprio corpo uma ‘obra de arte’, mas somente ‘uma série de confissões
            acidentais’, é que CRAIG queria substituí-lo por uma marionete humana que
            controlasse todas as emoções e fizesse do palco um espaço puramente simbólico:
            ‘Suprima o ator e estará retirando de um realismo grosseiro os meios para florescer em
            cena. Não haverá mais personagem viva para confundir em nosso espírito arte e


154
      QORPO-SANTO. Idem. P. 91-92.

                                                 109
realidade; não haverá mais personagem viva na qual as fraquezas e estremecimentos
           da carne sejam visíveis’.”155




        Está claro, portanto, que foi de Malherbe o discurso contrário às relações naturais,

proferido ironicamente por Inesperto. Como vimos acima, Malherbe não quis obedecer aos

“chamados espirituais” das mulheres (não apenas delas, da família, mas também de “outras

mulheres”, o que podemos traduzir por todas as mulheres), ele as renegou. Este foi o

motivo de Malherbe ser o escolhido para o banquete; agora elas podem livrar o pensamento

do “grilo”156, enforcando a “autoridade” que as impedia de gozar:


           “ELAS – (Uma para as outras) Há de ficar pendurado! Ah! ah! ah! Há de, há de!
           (Batem palmas.) Que triunfo! Viva! Viva! Agora, maninha; já que enforcamos este,
           havemos de enforcar também certo grilo; e andar com as relações à vontade dos
           corações!

           TODAS – Apoiado! Apoiado! Enforquemos tudo quanto é autoridade que nos quer
           estorvar de gozar, como se estivéssemos em um paraíso terrial!”157



        Devemos observar que a corda não serve apenas para enforcar Malherbe; também

serve para suspendê-lo, como se fosse marionete; e ainda para sungá-lo até a trave onde

será enforcado. Aqui, cabe observar, conforme já vimos em nosso estudo da dialética do

texto e da encenação, que o final do quarto ato é o ponto culminante do efeito, criado por

Qorpo-Santo, de paródia ao realismo das convenções teatrais. Conforme já notamos,

enquanto comem alegremente no palco, as mulheres encenam o contrário do que fala a letra

da canção: “Basta o trabalho,/ Certo, não falho;/ Para vivermos;/ E mil gozos termos”.

Como estamos vendo, aqui também, antes mesmo da canção, elas não devem ser

155
    PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 233.
156
    Fizemos uma leitura livre do significante grilo, que não necessariamente tem ligação com a significação
convencionada na gíria; para nós o termo grilo pode ser tomado em vários sentidos, pelo seu sonoro cri-cri na
cabeça, por exemplo.
157
    QORPO-SANTO. Idem. P. 92.

                                                    110
interpretadas tristes ou irritadas, enquanto recebem os membros de Malherbe jogados por

Inesperto. Pelo contrário, devemos interpretá-las devorando-os saborosamente, num alegre

banquete. Isto observado, podemos dar continuidade à releitura do ritual.


          Uma vez sungado à trave, as mulheres comemoram com alegria. Vejamos como

segue o ritual:


            “INESPERTO – (Depois de haver prendido o corpo da figura na trave) Pois não! Não
            vê que meu amo havia de ser enforcado, para as Sras. fazerem quando quiserem! Boas!
            Lá vai bola! Relações, metralha (arranca um braço, atira numa delas.)

            MARCA – Ah! traidor! (Encolhe-se.)

            INESPERTO – Lá vai estilhaço. Toma relação! (Atira outro braço noutra)

            JULIA – Bárbaro! Louco!

            INESPERTO – Mais outro! (Arranca a cabeça, ou o chapéu, e atira em outra dizendo:)
            Querem mais!? Se quiserem, venham buscar cá em cima, que eu vou juntar-me ao meu
            muito respeitável amo. (Levanta-se em cima da trave e sai ou desaparece.)

            ELAS – (Uma para as outras a enxugarem os olhos:) Que tirano! Que cruel! Que
            bárbaro! Que assassino! De modo que assim sendo, se pode ainda hoje fazer...
            Cantemos todas:”158

          Este uso da corda, para elevar Malherbe como uma marionete; e a ação de

esquartejá-lo permitem, para efeito de uma re-significação de As Relações Naturais uma

aproximação com alguns rituais mágicos, fundamentados em “cordas e marionetes”, na

Índia , relatados por Mircea Eliade:


                    “Asvagosha conta em seu poema Buddhacarita, que Buda visitou, pela
            primeira vez depois da Iluminação, sua cidade natal Kapilavastu, e fez uma
            demonstração de alguns ‘poderes milagrosos’ (siddhi). Para convencer os seus de suas
            forças espirituais e preparar a conversão deles, elevou-se nos ares e cortou o próprio
            corpo em pedaços que deixou cair no chão, para reuni-los em seguida sob os olhares
            admirados dos espectadores. Esse milagre é parte tão íntima da tradição mágica hindu
            que se tornou o prodígio típico do faquirismo. O célebre ‘milagre da corda’ (rope-trick)
            dos faquires e dos prestidigitadores cria a ilusão de uma corda que se eleva muito alto
            no céu e na qual o mestre faz subir um jovem discípulo até que este desapareça. O

158
      QORPO-SANTO. Idem. P. 92.

                                                  111
faquir então lança uma faca para o ar e os membros do rapaz caem no chão um após o
              outro.”159

           Não poderíamos deixar de notar as semelhanças entre os rituais, mas não queremos

afirmar, com isso, que Qorpo-Santo tivesse conhecimento da magia dos faquires. Importa-

nos empreender a leitura produtiva, não passiva, que re-signifique a comédia para os dias

atuais; e que nos remeta a possibilidades de novas aproximações com outras formas

culturais, incluindo as          posteriores aos momentos históricos estudados nos capítulos

anteriores. Se analisássemos uma possível “ocorrência concreta” da encenação de As

Relações Naturais no século XXI, deveríamos encontrar, nesta obra, uma relação coerente

entre a sua expressão hoje e os conteúdos culturais mais recentes? Essa nossa apropriação

da comédia de Qorpo-Santo deveria ser considerada apenas mais uma “maneira de utilizar”

um produto cultural, da forma mais racionalizada e espetacular?


           Tais indagações nos levam a recorrer novamente a Roger Chartier, quando ele

afirma:


                      “Restituir essa historicidade exige em primeiro lugar que o ‘consumo’ cultural
              ou intelectual seja ele próprio tomado como uma produção, que evidentemente não
              fabrica nenhum objeto, mas constitui representações que nunca são idênticas às que o
              produtor, o autor ou o artista, investiram na sua obra. Por esse motivo é sem dúvida
              necessário atribuir um alcance geral à definição que dá M. de Certeau do consumo
              cultural de massas que caracteriza atualmente as sociedades ocidentais: ‘A uma
              produção racionalizada, expancionista, tanto quanto centralizada, estrondosa e
              espetacular, corresponde uma outra produção qualificada como ‘consumo’. Esta é
              ardilosa, encontra-se dispersa, mas insinua-se por toda parte, silenciosa e quase
              invisível, uma vez que não assinala a sua presença com produtos próprios mas com
              maneiras de utilizar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante’.
              Anular o corte entre produzir e consumir é antes de mais afirmar que a obra só adquire
              sentido através da diversidade de interpretações que constroem as suas significações. A
              do autor é uma entre outras, que não encerra em si a ‘verdade’ suposta como única e
              permanente da obra. Dessa maneira, pode sem dúvida ser devolvido um justo lugar ao
              autor, cuja intenção (clara ou inconsciente) já não contém toda a compreensão possível
              da sua criação, mas cuja relação com a obra não é, por tal motivo, suprimida. 160



159
      ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o andrógino. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 171.
160
      CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p.59.

                                                      112
Agora fica evidente que a construção das significações para o ritual descoberto na

comédia de Qorpo-Santo, através destas interpretações à luz da semiologia do teatro, nos

coloca diante de sentidos interligados com outros produtos culturais.                    Aventamos a

possibilidade de criar vizinhanças: 1) com a cultura popular e o conto, de tradição oral, do

marido da Mãe d’Água; 2) com as religiosidades e os rituais estudados por Mircea Eliade;

3) com a cultura primitiva e suas influências sobre Paul Gauguin e outros artistas; 4) e com

o modernismo brasileiro da Semana de 1922 e o Manifesto Antropófago de Oswald de

Andrade.


           Já vimos o suficiente sobre a primeira vizinhança, vejamos o que ainda falta falar

sobre as demais:


             “(...) o milagre da corda, da forma atual de roteiro imaginário, de relato fabuloso ou de
             prestidigitação, tem uma história, e essa história só pode ser elucidada se levarmos em
             conta ritos, símbolos e crenças religiosas arcaicas.

                   É oportuno distinguir dois elementos: 1º) o despedaçamento do aprendiz; 2º) a
             ascenção ao céu por meio de uma corda. Os dois são característicos dos ritos e da
             ideologia do xamanismo. Analisemos, para começar, o primeiro tema. Sabe-se que,
             durante seus ‘sonhos iniciáticos’, os aprendizes xamãs assistem a seu próprio
             despedaçamento por ‘espíritos’ ou ‘demônios’, que desempenham o papel de mestres
             da iniciação: sua cabeça é cortada, seu corpo é feito em pedaços pequenos, seus ossos
             são limpos, etc., e, ao final, os ‘demônios’ reagrupam os ossos e os recobrem com
             carne nova. Neste caso estamos diante de experiências extáticas de estrutura inciática:
             uma morte simbólica é seguida por uma renovação dos órgãos e pela ressurreição do
             candidato.”161

           Uma encenação de As Relações Naturais realmente inovadora não deveria deixar de

remeter à idéia de “morte simbólica” do próprio autor, acima de tudo quando um dos

personagens que representam Qorpo-Santo, Truquetruque, logo no início anuncia essa

morte, não por acaso através de uma pergunta enigmática à qual se deve decifrar, como se

remetesse à tradição dos oráculos:



161
      ELIADE, Mircea. Idem. P. 176-177.

                                                    113
“(Para o público:) Como se chamam estes cujos pés fazem... quando estão lá em pé têm
          as solas dos sapatos, se não andam de botas, voltadas para a sala dos nossos? Hein?
          Anfíbios, não! Isto é coisa que anda no mar, e em terra! Hermafroditos! não; isto
          também é outra coisa, é o que é macho e fêmea! Cabrito não é. Não me posso
          lembrar.”162

        Evidencia-se, de início, o corpo estendido ao comprido, como um morto: “cujos pés

(...) quando estão em pé”, “têm as solas dos sapatos (...) voltadas para a sala dos nossos”. O

significado correspondente à morte simbólica, o de passagem de um estado impuro para um

estado de pureza, é consciente no autor, isso é o que vemos no uso de alguns elementos: 1)

os “anfíbios”, como o sapo e a rã, sofrem metamorfose, isto é, morre o girino, a água, e

nasce o sapo, a terra; 2) o “hermafrodito”, no qual morre a parte e nasce a unidade

masculino-feminino; e 3) o “cabrito”, ou bode, animal oferecido em sacrifício, em alguns

rituais, para expiar, simbolicamente, as culpas que pesam sobre o povo.


        Como observamos, sobram elementos que justifiquem a nossa leitura do ritual no

sentido das religiosidades. Para o teatro, essa interpretação permite-nos estender a função

desse ritual para a função de um efeito cênico, criado na antiguidade: o deus ex machina:


          “O deus ex machina (literalmente o deus que desce numa máquina) é uma noção
          dramatúrgica que motiva o fim da peça pelo aparecimento de uma personagem
          inesperada.

          (...) Em certas encenações de tragédias gregas (especialmente EURÍPIDES), recorria-se
          a uma máquina suspensa por uma grua, a qual trazia para o palco um deus capaz de
          resolver, ‘num passe de mágica’, todos os problemas não resolvidos. Por extensão e
          figurativamente, o deus ex machina representa a intervenção inesperada e providencial
          de uma personagem ou de alguma força qualquer capaz de desenredar uma situação
          inextricável. Segundo ARISTÓTELES (Poética), o deus ex machina só deve intervir
          ‘para acontecimentos que se passaram antes, acontecimentos que o homem não pode
          saber, ou por acontecimentos que se passaram depois e têm necessidade de ser preditos
          e enunciados’. A surpresa deste tipo de desenlace é, necessariamente, total.”163




162
    QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org.
CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
1969, p. 79.
163
    PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 92.

                                                 114
Digamos, de passagem, que até mesmo este efeito do deus ex machina é parodiado

pelo autor, uma vez que quem ocupa o lugar do “aprendiz de xamã” é Malherbe, ainda que

este não se recomponha depois (fato que, por si só, já é risível); enquanto que o “espírito”,

ou o “mestre de iniciação” que esquarteja-o é Inesperto (“criado que por um dia foi amo do

amo”).


         Ampliando a nossa aproximação com a antropofagia do modernismo brasileiro da

Semana de 1922 e toda a re-significação que ela traz, poderíamos elevar Qorpo-Santo à

condição de artista moderno, pioneiro na fusão de culturas? Em caso afirmativo, vale

retomar as palavras do próprio Oswald de Andrade:


                   “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
                   Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de
          todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz.
                   Tupi, or not tupi, that is the question.
                   Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos.
                   Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
                   Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama.
          Freud acabou com o enigma mulher e com os outros sustos da psicologia impressa.
                   (...) A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela
          contradição permanente do homem e seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi
          capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A
          humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a
          antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males
          identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do
          instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se
          torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativa, a ciência. Desvia-se e
          transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados
          de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos
          cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.”164


         Se nosso maior “herói sem caráter”, Macunaíma, de Mario de Andrade, tem

propositalmente o espírito antropofágico, estas mulheres qorpo-santenses poderiam ser

tomadas como precursoras dele? Como não ler o Manisfesto Antropófago de Oswald sem a


  ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. Revista de Antropofagia. São Paulo: nº 1, maio de 1928. In.:
164

ADES, Dawn. Arte na América Latina – A era moderna, 1920-1980. São Paulo: Cosac & Naify Edições,
1997, p. 312-313.

                                                 115
impressão de que ele fala de uma arte ao modo do que fez o artista gaúcho, no século XIX?

Não vamos nos deter no neologismo “Incriado”, próximo de neologismos como

“Inesperto”, que é, por ironia, o criado da comédia; pensemos em relações mais profundas

entre os modernistas e o dramaturgo. Com efeito, há em As Relações Naturais também esta

“contradição permanente do homem e seu Tabu”, são as mulheres que fazem a “absorção

do inimigo sacro”, Malherbe, e o transformam em “totem”; além disso, para evitar os

“males catequistas”, Qorpo-Santo representa a “antropofagia carnal”, sem a “sublimação do

instinto sexual”, mas com o “instinto antropofágico” como forma de alcançar um amor

mais “afetivo”.


        Parece evidente que as preocupações de Oswald de Andrade seguem uma tendência

européia. A busca do elemento cultural primitivo entre os artistas da Europa, desde os

contemporâneos de Qorpo-Santo, foi determinante na abertura para a arte moderna. Paul

Gauguin, por exemplo, chegou a mudar-se de Paris para o Taiti, de onde escreveu algumas

cartas para os familiares e amigos falando de suas impressões sobre o primitivismo:


                   “O tupapau (espírito dos mortos) é o indicado. Para os canacas, é o medo
          constante. À noite uma lâmpada permanece sempre acesa. Ninguém circula pelas
          estradas quando não há lua, a não ser que haja uma lanterna, e ainda assim em grupos.
                   Uma vez encontrado meu tupapau, apego-me a ele, e faço dele o motivo do
          quadro. O nu passa para o segundo plano.
                   Que significará para uma canaca uma alma do outro mundo? Ela não conhece
          teatro, a leitura de romances, e, quando pensa num morto, pensa necessariamente em
          alguém que já viu. Minha alma de outro mundo só pode ser uma mulherzinha qualquer.
          Sua mão se adianta como que para apanhar a presa.
                   O senso decorativo me leva a salpicar o fundo de flores. Flores de tupapau,
          fosforescências, indício de que a alma do outro mundo se preocupa com você. Crenças
          do Taiti.
                   O título Manao tupapau tem duplo sentido: a canaca pensa na alma ou a alma
          pensa na canaca.
                   (...) Parte literária: o Espírito de uma viva ligado ao Espírito dos mortos. A
                           165
          Noite e o Dia.”


165
   GAUGUIN, Paul. Cahier pour Aline – carta a sua filha Aline, Taiti, 1893. In.: CHIPP, H. B. Teorias da
arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 66.

                                                  116
Não cabe aqui fazer uma crítica aos olhares ocidentais, dos autores acima, sobre a

cultura dita primitiva; interessa-nos apenas notar como esta cultura exerceu influência

decisiva sobre os artistas da chamada cultura civilizada, a partir do século XIX.


       Qorpo-Santo, por mais que esta releitura tenha colaborado muito para tal conclusão,

tinha, talvez de modo intuitivo, a sabedoria de um contador de histórias; e reunia em torno

delas indícios de manifestações culturais diversas. Fazendo a sua paródia ao realismo das

convenções teatrais, o dramaturgo abriu o campo das possibilidades, criou um carnaval de

sensações para o palco e nos devolveu a algumas histórias dos antepassados, tal como

desejava Oswald de Andrade em seu Manifesto, sem aqueles estereótipos que levam, por

exemplo, a uma visão romântica de nosso índio:


         “Esse modelo romântico é repudiado porque não se pode ignorar que segundo o
         manifesto antropófago: ‘(s)ó a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente.
         Filosoficamente.’ É preciso reconhecer o fato de que, ainda segundo o manifesto,
         ‘nunca fomos catequizados. Fizemos foi carnaval’. Deste carnaval moderno participam
         todos: tupis, guaranis, astecas, incas, sioux, cheyennes, subvertendo a música dos
         colonizadores com seus instrumentos exóticos.
               Se a História nos conta a derrota de um povo, de vários povos, vencidos pela
         tecnologia, pelas doenças, pela exploração; a Literatura nos devolve a todos eles como
         antepassados cheios de vitalidade e de potencial, e explora suas contradições com as
         liberdades da releitura. Transforma-os, ou melhor, devora-os – alimento mágico das
         ‘crônicas’ modernas.”166

       Assim como a literatura, o teatro repudia essa visão romântica do índio, parece dizer

Qorpo-Santo, como um Policarpo Quaresma e sua nova gramática, sua nova língua. A

iluminação é esta, devemos voltar ao primitivo, ao popular, ao religioso, ao moderno, à

vanguarda e à arte marginal? Esta volta é a “alegria da cultura”, Qorpo-Santo nos ensina o

quanto é produtiva a descoberta de nossa subjetividade, “quando, psicanalizando lealmente

o estudo de nós mesmos, integramos as regras morais nas leis psicológicas! Então, o fogo

que nos queimava de repente nos ilumina. A paixão reencontrada torna-se a paixão

166
  BETTENCOURT, Lucia. Cartas brasileiras: visão e revisão dos índios. In.: GRUPIONI, Luís Donisete
Benzi (org.). Índios do Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 46.

                                               117
querida.167” Qorpo-Santo reencontrou esta paixão na literatura e no teatro, e esta tornou-se a

sua “paixão querida”; e a encontrou em si mesmo. Alimentar-se desse material cultural,

“alimento mágico” da arte, parece ser uma opção do artista.


           As Relações Naturais não tem inicio-meio-fim, são camadas entrecruzadas, planos

de composição sem função de relato cronológico, mas com possibilidades de vizinhanças

dramáticas influentes entre si. A liberdade das vizinhanças levam às liberdades na

encenação hipotética dessa comédia no século XXI. A mesma liberdade que será, quem

sabe um dia, expressa pelas mulheres, ao final do ritual, levantando taças de vinho

(elemento água); numa alegria de êxtase (elemento fogo); devorando os ossinhos de

Malherbe (elemento terra); e liberando a mente dos “grilos”, cantando (o elemento ar).

Tudo bem equilibrado. Mas, podemos confiar totalmente na liberdade da releitura marginal

e “irresponsável”? Não podemos esquecer que estamos falando de dois universos distintos:

1) o universo da arte aproveita-se, como vimos em nossa leitura semiológica, de

aproximações das imagens em planos de composição; 2) o universo da História, enquanto

ciência, parece desconfiar, não sem motivos, de aproximações e vizinhanças.


           Com efeito, se defendemos a idéia de que Qorpo-Santo nos proporcionou tantas

aproximações culturais, devemos estar apoiados nesta apropriação de sua comédia, no

mínimo, em uma crítica da arte e da literatura. O encontro decisivo com a “teoria do sentido

arquetípico”, de Northrop Frye, talvez nos ajude a encontrar uma elucidação a respeito da

importância dessa nossa re-significação de As Relações Naturais. Se permitimo-nos falar

tanto em Mircea Eliade, como em Paul Gauguin e em Oswald de Andrade é porque

fizemos, acima, a leitura semiológica de uma obra de arte; no entanto cabe mostrar onde



167
      BACHELARD, Gaston. Psicanálise do fogo. são Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 147-148.

                                                    118
nos localizamos dentro da teoria da crítica, a saber, na expressão artística de imagens

míticas. Frye mostra-nos como:


             “(...) organizam-se os mitos e os signos arquetípicos em literatura. (...) há o mito não
             deslocado, que geralmente se preocupa com deuses ou demônios, e que toma a forma de
             dois mundos contrastantes e de total identificação metafórica, um desejável e outro
             indesejável. Esses mundos identificam-se amiúde com os céus e infernos existenciais
             das religiões contemporâneas de tal literatura. Chamamos a estas duas formas de
             organização metafórica, respectivamente, apocalíptica e demoníaca.
                      (...) Em religião o mundo espiritual é uma realidade distinta do mundo físico.
             Em poesia o físico ou real se opõe, não ao espiritualmente existencial, mas ao
             hipotético. Deparamos no primeiro ensaio com o princípio de que a transmutação do ato
             em mimo, o progresso entre desempenhar um rito e representar no rito, é um dos
             característicos básicos da evolução da selvageria para a cultura. É fácil ver uma
             imitação da luta no tênis e no futebol, mas, por essa própria razão precisamente, os
             jogadores de tênis e futebol representam uma cultura superior à das escolas de duelistas
             e gladiadores. A metamorfose do ato literal em peça é uma forma fundamental da
             liberalização da vida, que surge em planos mais intelectuais como educação liberal, a
             liberação do fato em imaginação. De acordo com isso é que o simbolismo eucarístico do
             mundo apocalíptico, a identificação metafórica dos corpos vegetal, animal, humano e
             divino, teria de ter as imagens do canibalismo como sua paródia demoníaca. A última
             visão do inferno humano, em Dante, é a de Ugolino roendo o crânio de seu
             atormentador; a última visão maior alegórica de Spenser é a de Serena desnuda e
             preparada para um festim canibal. As imagens do canibalismo habitualmente incluem
             não apenas imagens de tortura e mutilação, mas também do que tecnicamente se
             conhece como sparagmós, ou despedaçamento do corpo sacrifical, imagem esta que se
             encontra nos mitos de Osíris, Orfeu e Penteu. O gigante canibal, o ogro dos contos
             populares, que entra na literatura como Polifemo, se relaciona com isso, como se
             relaciona uma longa série de sinistras transações com carne e sangue, da história de
             Tiestes ao contrato de Shylock.168

           Sabemos que os atores, no palco, não desempenham um rito antropofágico, no

sentido de deixarem-se dominar por uma entidade mítica; mas antes representam um papel

no rito. Ou, melhor dizendo: os atores representam os papéis dos personagens do ritual, que

significam, na peça, a “identificação metafórica dos corpos vegetal, animal, humano e

divino”. E, no caso do ritual que descobrimos em As Relações Naturais, os atores deverão

representar o “canibalismo”, (ou, segundo nossa leitura livre, o ritual antropofágico)

enquanto paródia, uma “paródia demoníaca” à identificação metafórica típica do

“simbolismo eucarístico do mundo apocalíptico”. Obviamente, não tomamos literalmente o


168
      FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973, p.141 e 149-150.

                                                      119
ato do “sparagmós”, como uma leitura apressada da comédia de Qorpo-Santo poderia tomar.

Através de nossa interpretação semiológica houve uma “metamorfose do ato literal em

peça” artística. Saímos de um aparente absurdo contido no “ato literal” (o esquartejamento

de Malherbe); e passamos a outro patamar cultural, da metáfora do ritual de antropofagia,

paradigma de grandes obras literárias desde os gregos. A ocorrência concreta dessa re-

significação, através desta leitura da semiologia teatral, não se opõe “ao espiritualmente

existencial” contido no “ato literal” da antropofagia; mas também não se opõe ao

“hipotético” do conteúdo cultural: tomamos o conteúdo cultural como hipótese de re-

significação. Realizamos uma releitura para uma montagem de uma peça artística, enquanto

“mimo”, para oferecer aos deuses de todas as culturas, na hipótese de eles protegerem mais

àquele que lhes dá presentes.


          Se empreendemos uma leitura produtiva de As Relações Naturais, para o século

XXI, com aproximações de imagens culturais diversas, é porque não entendemos, aqui, o

ritual antropofágico como “ato literal”, tal qual é possível ler nos relatos de Hans Staden.

Este utiliza-se da narrativa mítica para relatar fatos reais e, por isso, aproxima-se do divino

para mostrá-lo enquanto “ameaça aos que comem carne humana”169. Evidente que ele tem

seus motivos para querer combater o canibalismo; mas, quanto a nós, percebemos que

acontece um salto de significações e correlações entre: 1) o fato do ritual de canibalismo,

169
     “Hans Staden é o aventureiro alemão, herói-viajante que ocupava lugar central na estrutura da narrativa
mítica. Logo, a personagem deveria de ter o papel invertido. Tomado por português e inimigo, Staden seria
preso pelos tupinambás, ameaçado de morte e devoração canibal. O conquistador torna-se prisioneiro. Do
espaço aberto do mar, passa ao interior do cativeiro na aldeia indígena. O desfecho da história irá pressupor
nova inversão de papel. A astúcia de Staden consistirá em controlar, ou melhor, simular controle sobre os
fenômenos da natureza. Como a sobrevivência dos índios, baseada na pesca e na plantação, se mostrasse
subordinada à influência do sol, da lua, dos ventos e das tempestades, a esperteza do herói estaria em simular
controle sobre a natureza pelo poder de sua mente ou pela força de seu Deus. O texto mítico vale-se ainda das
inversões e reconversões de conteúdo, jogando com o que é com o que parece ser.
(...) A salvação do herói seria comemorada como vitória da sabedoria cristã sobre as práticas mágicas, mas
não passa desapercebido ao leitor que o herói opera por adivinhação e que, no centro da argumentação, a
punição divina aparece como ameaça aos que comem carne humana.” BELLUZZO, Ana Maria de M. A
lógica das imagens e os habitantes do Novo Mundo. In.: GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.). Índios do
Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 47-48 e 49.

                                                     120
entendido como ato de selvageria que deve ser substituído por outro produto cultural,

cristão, como nas narrações de Staden; 2) e o artefato cultural erigido por esta re-

significação da obra criada por Qorpo-Santo, prevendo a possibilidade de um ritual

antropofágico como peça ou produto da cultura, ou como paródia do simbolismo do

“mundo apocalíptico” de um Hans Staden, por exemplo. Ainda que toda a sociedade siga,

sem o saber, diversos rituais, todos os dias, tais como o jogo de futebol e o tênis; quando

vemos o tema central girando em torno deste ritual antropofágico, ficamos assustados, a

princípio. No entanto, basta aproximarmos, da história cultural, este tema, para logo

entendermos o seu potencial de alcance.


          Não apenas a cena do ritual antropofágico pode ganhar sentidos novos com uma re-

significação semiológica, mas também a figura do personagem-autor pode ser redesenhada

com a análise da situação cênica do entreato antes do ato, envolvendo três personagens,

Impertinente, Consoladora e Intérpreta. Não nos parece por acaso que a primeira

personagem que fala com o personagem-autor, Impertinente, seja Consoladora. Com efeito,

Consoladora quer retirar do irritadiço escritor de comédias, Impertinente, todas as roupas

que criam uma distância cerimonial entre eles; ela despe-o, mas nunca consegue fazê-lo nu;

e como último signo ritualístico, fica nele apenas um “boné em forma piramidal”170 .

Perderíamos a oportunidade se não fizéssemos outras aproximações culturais aqui; mas não

nos estenderemos a explanações dos significados semióticos. Bela possibilidade de re-

significação ganha a Consoladora, quando a aproximamos da idéia de consolação da

filosofia, por exemplo; a sedução da anciã filosofia, a amiga do saber seria esta “mulher

ricamente vestida”171, ostentando toda a pesada pompa cerimonial do corpo social ideal,

existente apenas no “hemisfério” brilhante do mundo das idéias, em torno da qual ela gira

170
      QORPO-SANTO, Idem, p. 76.
171
      QORPO-SANTO, Idem, p. 74.

                                             121
como um “cometa”172. E, no entanto, Impertinente tem os pés no chão, não quer viver no

mundo ideal, esperando que a “sarna gálica” do pensamento celeste guie seus “passos”,

suas “ações”, suas “palavras”. Ao contrário, ele quer “estar em casa de uma bela

gozando”173 e aparece com uma “menina de 16 anos”, a Intérpreta do personagem-autor; ou

seja, nós a interpretamos como a Intérpreta do próprio Qorpo-Santo: a personagem que

interpreta a preferência estética dele pelas imagens míticas demoníacas, usadas na

construção de situações dramáticas que envolvam sexualidade e, em especial, que

envolvam suas personagens femininas:


                   “A relação erótica demoníaca torna-se violenta paixão destruidora, que age
           contra a lealdade ou decepciona aquele que a possui. É geralmente simbolizada por
           uma rameira, bruxa, sereia, ou outra mulher tentadora, um alvo físico do desejo, que é
           buscado como posse e portanto não pode jamais ser possuído. A paródia demoníaca do
           casamento, ou a união de duas almas numa só carne, pode tomar a forma do
           hermafroditismo, do incesto (a modalidade mais comum), ou da homossexualidade. A
           relação social é a da ralé, que é essencialmente a sociedade humana em busca de um
           pharmakós, e a ralé é frequentemente identificada com alguma sinistra figura animal
           como a hidra, a Fama de Vergílio ou a derivação da Besta Barulhenta de Spenser.”174


        Precisaríamos de licença poética para emprestar o predicado de besta barulhenta

para Impertinente, o comediante; por oposição à besta do Apocalipse, que desde o seu

significado rígido revela austeridade? Ao ser desprezado por Intérpreta, Impertinente ralha

com as dores de mais uma frustração antropofágica, “é a trigésima, vigésima e décima vez

que me prega esses carões! Diabo! Diabo! e Diabo!”175. Enquanto isso, Intérpreta, é a

“mulher tentadora, um alvo físico do desejo, que é buscado como posse e portanto não pode

jamais ser possuído”176 . É a “menina de 16 anos” proibida, ágil e intuitiva; por oposição à

desajeitada Consoladora, atrevida e não desejada. Mas Intérpreta nem sequer sonha em


172
    QORPO-SANTO, Idem, p. 76.
173
    QORPO-SANTO, Idem, p. 73.
174
    FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973, p.: 150.
175
    QORPO-SANTO, Idem, p. 78.
176
    FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973, p.: 150.

                                                    122
competir com a suposta rival Consoladora, muito menos quando o bem disputado seria o

amor de Impertinente. É para interpretar o sentimento geral das mulheres para com o

comediante barulhento, que Intérpreta diz a Impertinente: “vou-me embora; e aqui não

entro mais; o Sr. enganou-me: quis enganar-me, mas enganou-se a si próprio!”177 Mas, por

que Intérpreta aplica esta pena ao escritor? Por dois motivos: primeiro ele renega a

consolação filosófica da Consoladora; depois ele deseja comer a proibida “ovelha merina”

em um ritual antropofágico. Ora, prestemos atenção ao que vem antes desta fala de

Intérpreta, para descobrirmos em quê Impertinente “enganou-se a si próprio”.

       Depois de muito bajular a menina, Impertinente dá a indicação de que pretende

oferecer uma “ovelha” em sacrifício, e ainda fazê-lo a cada mês, ou conforme ele diz: “a

escolha que fiz hoje, e que pretendo fazer uma em cada mês”178. Qorpo-Santo, em As

Relações Naturais, cria personagens observando estes caracteres: 1) os masculinos,
                                                                    179
representam a “ralé” humana “em busca de um pharmakós”                 , ou da posse do que não

pode ser possuído; 2) a maioria das personagens femininas desejam, cada uma a seu modo,

quebrar as leis contrárias às relações naturais, encaminhando a situação dramática para a

antropofagia cultural, sendo motivo principal das revoluções da peça; 3) os demais

personagens surgem como elementos da composição de uma “paródia demoníaca do

casamento, ou a união de duas almas numa só carne”, a qual tem seu caso exemplar nesta

comédia, com a insinuação do incesto de Malherbe com Mildona. Agora, sim, podemos

entender a afirmação de Intérpreta a Impertinente, “quis enganar-me, mas enganou-se a si

próprio”; ela quer dizer que: ele buscava nela tão somente um pharmakós, fingindo, porém,

que estava interessado nas relações naturais; mas, obviamente, ela não acreditou na


177
    QORPO-SANTO, Idem, p. 77.
178
    QORPO-SANTO, Idem, p. 76.
179
    “Pharmakós – Personagem, numa ficção irônica, que faz o papel de bode expiatório ou vítima
arbitrariamente escolhida.” (FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973, p.: 362.

                                                123
conversa desse “monte de carne, sem lei, sem moral, sem religião”180 . Sabendo do risco que

corriam as mulheres diante dos homens que ele jogou no palco, Qorpo-Santo inventa uma

intérprete de suas intenções enquanto escritor e comediante: ele quer rir de si mesmo, não

porque não tenha amor próprio; mas porque este amor precisa de um pharmakós, Intérpreta,

a qual ele oferece às musas que lhe inspiram a produzir seu “improfícuo”181, mas divertido

trabalho, sua obra cultural que transforma o “fogo que queima” em “fogo que ilumina”182 .

José Joaquim de Campos Leão precisa dessa iluminação; ele precisa que não tomemos o

seu amor pela menina de 16 anos ao pé da letra; e que aceitemos, integralmente, a sua

função de comediante, cujo ofício é mentir: “É preciso dizer-lhe o contrário do que

penso”183; ele precisa ainda, como iluminado, que o chamemos pelo nome de Qorpo-Santo.

Neste sentido, podemos afirmar que Impertinente, no limite de nossa leitura livre, não

apenas deseja comer a proibida “ovelha merina” em um ritual antropofágico, conforme

afirmamos antes; mas ele realmente se alimenta dela, para poder escrever na juventude e na

pureza de fina lã, com um estilo cômico macio, apesar de demoníaco. É este alimento que o

livra de “escrever em um morto”, o seu próprio corpo de antes deste alimento: o corpo que

só ouvia os “ecos que inspiram pranto e dor” 184, mas que, ao final do jantar, será purificado.


          Assim, depois dessa leitura produtiva de As Relações Naturais para o século XXI,

em que fizemos aproximações de imagens culturais diversas e descobrimos indícios da

consciência de Qorpo-Santo quanto a seu papel de escritor, podemos tirar algumas

conclusões. Esta comédia nos ensina como agir diante de todo o conjunto da obra de




180
    QORPO-SANTO, Idem, p. 77.
181
    QORPO-SANTO, Idem, p. 73.
182
    BACHELARD, Gaston. Psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 148.
183
    QORPO-SANTO, Idem, p. 74.
184
    QORPO-SANTO, Idem, p. 73.

                                                 124
Qorpo-Santo: buscando re-significações possíveis, aproximações culturais variadas, leituras

viáveis para novos produtos culturais.




                                           125
3.3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS




       Quando afirmamos que o conjunto da obra de Qorpo-Santo pode ser entendida,

enquanto produto cultural que deve ser preservado, através da leitura semiológica e suas re-

significações possíveis; queremos dizer que a defesa de sua obra, como patrimônio

histórico intangível, passa pela História e pela Semiologia Teatral, tal qual fazemos aqui.

Vimos que os personagens criados por Qorpo-Santo aparecem, no interior da situação

dramática, elaborando “representações constitutivas daquilo que poderá ser denominado

uma cultura”; e se chegamos a esta conclusão foi porque a nossa leitura da comédia, As

Relações Naturais, através da semiologia teatral, levou-nos a aproximações culturais

importantes para todo e qualquer bem cultural. Encontramos valores necessários tanto para

a História quanto à Semiologia Teatral, tais como as culturas primitiva, popular e religiosa,

enquanto desejadas por serem um “bem comum” ao conjunto de uma sociedade. Com a

semiologia teatral nós conseguimos uma ferramenta para o estudo “cultural e ideológico”

do texto; ou melhor, uma ferramenta para a descoberta das “lógicas que põem em jogo, em

ato, os esquemas de percepção e de apreciação”, lógicas estas criadas por Qorpo-Santo,

“dos diferentes sujeitos sociais” representados no texto e na sua possível encenação

(incluindo a de Luiz Carlos Maciel), enquanto ocorrências concretas. Com Roger Chartier,

diremos que o dramaturgo gaúcho: 1) representou na sua dramaturgia os “diferentes

sujeitos sociais” de sua época; 2) esta representação é fruto de seus “esquemas” de

“percepção” e “apreciação” da sociedade; 3) e ele elaborou suas próprias “lógicas”




                                             126
artísticas, que colocam “em jogo, em ato” estes esquemas, na forma de paródia do realismo

das convenções teatrais, por exemplo. 185

        Uma vez que é preciso cumprir o papel do historiador, o qual, segundo Chartier,

“deve poder vincular em um mesmo projeto o estudo da produção, da transmissão e da

apropriação do texto”; vamos, agora, avaliar se o nosso trabalho pode ser usado para

reafirmar a importância de se reconhecer a obra de Qorpo-Santo como um “bem cultural”

ou um dos patrimônios intangíveis da sociedade brasileira. Nunca tivemos a intenção de

fazer uma abordagem psicanalítica deste dramaturgo da capital da província, Porto Alegre,

por isso escolhemos a semiologia teatral para nos auxiliar na leitura de As Relações

Naturais; e não consideramos que faça sentido a “célebre questão psicanalítica” notada por

Maria José Rago Campos: “o que distingue a obra verdadeira da obra-sintoma?”186

Pensamos que “cada artista é um caso singular, pode flutuar entre os limites do gênio e da

loucura”; e, conforme nos lembra Campos, citando Wilhelm Szilasi, desde Aristóteles

existe um “certo elemento de loucura não doentia” que “pertence à natureza do artista”:

             “O que pertence à natureza de um homem, como um todo, pode tornar-se doente, e
             isso acontece quando a doença dá independência a um determinado elemento de
             natureza própria e faz desse elemento o desmedido; mas é errado falar de doença
             quando toda a natureza do homem é por si mesma desmedida, é a própria natureza
             que transborda no desmedido, pois a natureza é demoníaca e não divina.”187


        É desnecessário estender uma lista enorme de nomes eminentes, tais como os de

Antonin Artaud e Van Gogh, com o título de vizinhos “espirituais” de Qorpo-Santo.


185
    CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 66.
186
    Campos nos mostra que “a psicanálise compromete a autenticidade da arte” ao considerá-la “a partir da
perspectiva da neurose”, ao considerá-la “obra-sintoma”. Segundo ela, Freud tenta “decifrar” como a arte
manifesta o “desejo de criar”, produzido pela “sublimação”; ou melhor, ele tenta “decifrar a estratégia que faz
da criatividade uma espécie de desvio”. Assim, para livrar-se das “neuroses do inconsciente o artista volta ao
real através da fantasia”, “projeção”. CAMPOS, Maria José Rago. Arte e verdade. São Paulo: Edições Loyola,
1992.
187
    SZILASI, Wilhelm. Apud. BORNHEIM, G. A. Introdução ao filosofar. Porto Alegre: Ed. Globo, 1978,
1978, p. 16, nota 24. “Szilasi faz comentários de textos dos ‘Problemas’, do Corpus Aristotelicum
(Aristóteles). O trecho citado refere-se à melancolia do filósofo, que é também a do artista, distinta da
melancolia doentia.” In.: CAMPOS, Maria José Rago. Arte e verdade. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

                                                     127
Importa-nos, apenas, apontar o local em que a loucura se torna genialidade nestes autores,

ou, pelo menos, no último dos três. Queremos afirmar que é possível re-significar toda a

obra dramatúrgica de Qorpo-Santo, este homem de “natureza por si mesma desmedida”,

partindo do pressuposto de que ele tinha consciência de estar cometendo comédia com

requintes de paródia. Se não, por quê nossa leitura iria observar, com a ajuda de Northrop

Frye, a ocorrência dominante do elemento mítico identificado, na teoria crítica, com a

“organização metafórica demoníaca”, presente na história da arte desde os gregos? Eis que

agora temos Szilasi para reafirmar esse fato. Na comédia não existem os sentimentalismos

apocalípticos que há nas tragédias; e cada situação dramática da comédia exige a saturação

de todos os afetos e sensações que a compõem, sendo que todos são destinados ao

pensamento; e não à emoção. Diderot, no século XVIII, em seu Paradoxo sobre o

comediante, afirma:

          “Quanto a mim, quero que [o comediante] tenha muito discernimento; acho necessário
          que haja nesse homem um espectador frio e tranqüilo; exijo dele, por conseqüência,
          penetração e nenhuma sensibilidade, arte de tudo imitar, ou, o que dá no mesmo, uma
          igual aptidão para toda espécie de caracteres e papéis.”188


           E se, por um lado, o comediante precisa ser “um espectador frio” para “imitar”

com “igual aptidão toda espécie de caracteres e papéis”; por outro lado, a leitura

semiológica de sua comédia deve revelar um autor consciente de sua função de comediante.

Vejamos como Qorpo-Santo mostra que deseja ver a platéia rir. Já re-significamos o ritual

antropofágico, que acontece em As Relações Naturais, segundo algumas aproximações

culturais; no entanto não demos a devida importância ao fato de que não é apenas este

ritual que respeita a um ritual, nesta comédia. O que é risível, para Qorpo-Santo, é que toda

a sociedade respeita a um ritual, a um “cerimonial”; ou, conforme Henri Bergson:

188
   DIDEROT. Cf. MATOS, Luiz F. Franklin de. A careta de Garrick, o comediante segundo Diderot. In:
NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras; Brasília: Ministério da Cultura;
Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996, p. 315.

                                                   128
“Risível será, pois, a imagem que nos surgirá à idéia de uma sociedade que se disfarce
          e, por assim dizer, de um carnaval. Ora, essa idéia se forma a partir do momento em
          que percebemos o inerte, o já feito, o confeccionado, enfim, na superfície da sociedade
          viva. É da rigidez ainda que se trata, e que não se coaduna com a flexibilidade interior
          da vida. O aspecto cerimonioso da vida social deverá, portanto, encerrar certa
          comicidade latente, a qual só espera uma ocasião para exibir-se plenamente.
          Poderíamos dizer que as cerimônias são para o corpo social o que a roupa é para o
          corpo individual: devem a sua seriedade a se identificarem para nós com o objeto sério
          a que as liga o uso, e perdem essa austeridade no momento em que nossa imaginação
          as isola dele. Assim, para uma cerimônia tornar-se cômica, basta que nossa atenção se
          concentre no que ela tem de cerimonioso, e esqueçamos sua matéria, como dizem os
          filósofos, para só pensar na forma.
          (...) Uma vez que esqueçamos o objeto austero de uma solenidade ou cerimônia, os
          que tomam parte dela nos causam o efeito de se moverem no ambiente como
          marionetes. A mobilidade deles rege-se pela imobilidade de uma fórmula. É
          automatismo.”189


        Uma paródia do realismo das convenções teatrais não poderia deixar de parodiar a

“seriedade” das cerimônias do cotidiano, representada com toda a “austeridade” pelo

ilusionismo naturalista que pretende ser realista e, acima de tudo, pretende representar o

uso ritualístico que se faz do “objeto sério” nos cerimoniais do corpo social. Qorpo-Santo

faz essa paródia, cria o carnaval de uma sociedade que se disfarça, uma sociedade

inflexível, movida “pela imobilidade de uma fórmula” congelada, mecanizada, tornada

“inerte na superfície da sociedade viva”.

        Conforme afirmamos no capítulo anterior, durante o ritual antropofágico era o

próprio Qorpo-Santo quem se purificava naquela cerimônia cômica, através da alegria da

cultura que é sua obra de arte. Seguindo os indícios na fala de Impertinente, notamos que

ele anuncia o ritual antropofágico desde o início da peça: “já que minha ingrata e nojenta

imaginação tirou-me um jantar, pretendia ao menos conversar com quem m’o havia

oferecido”190. Que tipo de “jantar” é esse que a sua “ingrata e nojenta imaginação” lhe

“tirou”, fez nascer, afinal? Sendo um escritor que fala, devemos ler assim: a imaginação de

Impertinente, “ingrata e nojenta” como uma boa imaginação de comediante, “tirou” de si
189
    BERGSON, Henri. O riso, ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983,
pp. 30-31.
190
    QORPO-SANTO, Idem, p. 73.

                                                  129
mesma um “jantar” antropofágico e ofereceu-lhe; agora, ele “pretendia ao menos

conversar” com esta imaginação que lhe “havia oferecido” este jantar medonho; por isso

escreverá, um tanto irritado com o ofício mas escreverá, uma obra de arte. Parece que resta-

lhe apenas isso, ser comediante: “leve o diabo essa vida de escritor! É melhor ser

comediante!”191 Fica evidente a contradição em que se encontra o escritor: sendo ele

próprio irritadiço e mau amado; e tendo a obrigação de fazer o público rir. Para compensar

o fato de não poder efetuar, de fato, a “antropofagia carnal”, restrita às “puras elites”; ele

escreve uma comédia, parodiando este banquete “que traz em si o mais alto sentido da vida

e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas”, como diria Oswald de

Andrade no século XX. Qorpo-Santo faz, com esta primeira fala de Impertinente em As

Relações Naturais, a apresentação da peça. Ele deixa que Impertinente, seu representante

enquanto personagem-autor, anuncie que, mesmo sem poder “gozar”, vai produzir uma

obra cultural; e, para que não haja dúvidas a respeito da sua relação íntima com o tempo

histórico do incompreendido autor de As Relações Naturais, fala, não sem uma dose

cômica de paródia à austeridade cerimoniosa dos cabeçalhos dos documentos médicos. Sem

que haja esforço, podemos rir da voz de Impertinente:

                   “São hoje 14 de maio de 1866, Vivo na cidade de Porto Alegre, capital da
            Província de S. Pedro do Sul; e para muitos, – Império do Brasil... Já se vê pois que é
            isto uma verdadeira comédia!” 192


          Mas vamos rir de novo, depois de ler um cabeçalho austero como este, retirado de

um dos documentos recebidos por Qorpo-Santo e catalogados por ele na Ensiqlopédia, o

Auto de exame de sanidade:

            “Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1867, aos nove dias do mês de
            Março do dito ano, nesta leal e valorosa cidade de Porto Alegre, em casa da residência
            do juiz de órfãos o Dr. Augusto César de Pádua Fleury, onde eu escrivão vim, e

191
      QORPO-SANTO, Idem, p. 73.
192
      QORPO-SANTO, Idem, p. 73.

                                                 130
presentes os Drs. Dionísio de Oliveira Silveira e Carlos Benjamin Petrasi, pelo dito juiz
          lhes foi deferido.”193


        Chartier ensinou-nos que não se deve “tratar as ficções como simples documentos,

reflexos realistas de uma realidade histórica”194 , e essa simples comparação nos coloca,

assim, diante de duas representações, opostas, de uma mesma realidade histórica: a ficção

parodiando a descrição (não levemos em consideração o fato de, nas citações acima, a

paródia ter sido produzida antes do parodiado, pois cabeçalhos são reiterações de

convenções de escrita). Mas, se as ficções não devem ser tratadas como meros “reflexos

realistas de uma realidade”195; o Auto de exame de sanidade, uma descrição fiel do

“exame”, escrita pelo escrivão, por si só também não deve sê-lo, uma vez que há nela

também uma característica de ficção. Em nosso caso, não é a descrição do escrivão o fator

que reforça a leitura de Qorpo-Santo; mas é, antes, a paródia de Impertinente que nos faz

enxergar a Província de Porto Alegre movendo-se com certa rigidez de marionete, como se

ela fosse regida “pela imobilidade de uma fórmula”196 , só para lembrar Bergson. E Chartier,

com efeito, explica que, para ler um texto de ficção, o historiador deve: “atender à sua

especificidade enquanto texto situado relativamente a outros textos e cujas regras de

organização, como a elaboração formal, têm em vista produzir mais do que mera

descrição”197. E foi isso o que buscamos fazer ao aproximarmos, no núcleo de nossa re-

significação de As Relações Naturais, as imagens inventadas por Qorpo-Santo com outras

representações culturais, desde as primitivas até as de vanguarda ou filosófica, todas estas

produções que são mais do que “mera descrição”. Não podemos esquecer que, manuseando


193
    Cf.: CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, 1969, p. 16.
194
    CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 63.
195
    CHARTIER, Idem, p. 63.
196
    BERGSON, Henri. O riso, ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983,
pp. 30-31.
197
    CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 63.

                                                  131
uma obra de ficção como esta comédia, nosso “material-documento”198, nós estamos, de

fato, também diante do autor; estamos diante de “processos de construção onde se investem

conceitos e obsessões” do seu produtor e “onde se estabelecem as regras de escrita próprias

do gênero de que emana o texto.”199 E, se não fosse pela liberdade interpretativa, sugerida

pelo próprio Qorpo-Santo e entendida por Luiz Carlos Maciel e por nós, não estaríamos

falando em defasagem entre o texto e encenação, não estaríamos abrindo ao ilimitado as

possibilidades de re-significação da comédia As Relações Naturais e, por conseqüência,

toda a obra de Qorpo-Santo.

          Recentemente, a UNESCO reconheceu a obra de Ingmar Bergman, diretor sueco

morto em 2007, como “memória” a ser preservada pela humanidade. Passados mais um

século da morte de Qorpo-Santo, sua obra também não poderia ser alvo de semelhante

ação? Nós pensamos que sim, e mostramos neste trabalho que o reconhecimento de sua

criação artística como “memória” pode ser defendida. Ora, se é mesmo possível defender

não apenas a sua dramaturgia, mas também os poemas e a Ensiqlopédia, enquanto

patrimônio cultural imaterial, então uma boa defesa será por esse caminho de uma re-

significação que permita aproximações culturais e históricas múltiplas e surpreendentes.

Sua dramaturgia, conforme demonstramos, pode ser encenada em qualquer época; já vimos

como foi que Maciel re-significou As Relações Naturais em 1968, descobrindo nesta

comédia uma força política libertadora e revolucionária. Do nosso ponto de vista,

mostramos, neste trabalho, a possibilidade ilimitada, ainda hoje no século XXI, de re-

significações gravitando em torno desta obra, em particular, de Qorpo-Santo, ao permitir o

encontro da História com a Semiologia Teatral. Mas, quiçá um dia poder-se-á pensar

melhor na hipótese da ampliação das descobertas deste nosso trabalho para serem


198
      CHARTIER, Idem, p. 63.
199
      CHARTIER, Idem, p. 63.

                                           132
investigadas sobre um corpus maior, o conjunto da obra de Qorpo-Santo, quem sabe com o

objetivo de proteger seu acervo cultural como patrimônio intangível.




                                            133
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b) Entrevista com Luiz Carlos Maciel.
MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006.
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2º Caderno, p. 3.

BITTENCOURT, Dario de. Algumas Idéias de Qorpo-Santo. Porto Alegre, Correio do
Povo, 124-08/1966, p. 4.

CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro. Artistas Repelem Cortes na Peça de Qorpo-Santo
- 2/6/1968, 1º Caderno, p. 19.



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CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro. Ator Não Assina Acordo com a Censura Federal
- 1/6/1968, 1º Caderno, p. 13.

CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro. Censor veta `As Relações Naturais´ - 22/5/1968,
1º Caderno, p. 1.

CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro. Censura Quer Sua Estética no Teatro -
29/5/1968, 1º Caderno, p. 9.

CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro. Peça de Santo Foi Proibida no Rio: Relações
Naturais - 22/5/1968, 1º Caderno, p. 10.
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Porto Alegre, Correio do Povo, 1/11/1973, p. 13.

LARETTI, Pedro. Qorpo-Santo. Rio de Janeiro. O Pasquim, n.º 79, 6/12/1071, p. 31. (Nota
sobre a montagem de Hoje Sou Um, Amanhã Outro, dirigida por Pedro Touron).

LOPES, Rosita Thomas. Matheus e Matheusa. In: Informa. Rio de Janeiro, Correio da
Manhã, 7/6/1968, 2º Caderno, p. 3 (Nota sobre a encenação desta peça no Conservatório
Nacional de Teatro).

MACIEL, Luís Carlos. O ‘caso’ Qorpo-Santo. Rio de Janeiro, Correio da Manhã,
26/05/1968.


                                          141
MAGALDI, Sábato. Os Erros desta Montagem de Qorpo-Santo. In: Divirta-se. São Paulo,
Jornal da Tarde, 2/10/1972, p. 43.

MAGNO, Paschoal Carlos. Estudante Quebra Preconceitos no Teatro. Rio de Janeiro,
Correio da Manhã, 2/2/1968, 1º Caderno, p. 7 (Entrevista).

MANCUSO, Delmar. Qorpo-Santo, Apenas o Artista. Porto Alegre, Diário de Notícias, 2º
Caderno, 22/12/1968, p. 2.

MICHALSKI, Yan. O Promissor Pacto Entre Gente e Boneco. Rio de Janeiro, Jornal do
Brasil. Caderno B, 25/10/1970, p. 7.
--------------. O Sensacional Qorpo-Santo. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, caderno B,
8/2/1968 (Este artigo foi reproduzido no Correio do Povo de Porto Alegre a 11/2/1968).


--------------. Primeira Crítica: As Relações Naturais. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil. 1º
Caderno, 15/5/1968, p. 16.


--------------. Qorpo-Santo em Livro. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil. Caderno B,
8/10/1969, p. 2.


PIGNATARI, Décio. Qorpo-Santo. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 26/03/1967, 4º
Caderno. Reimpresso em Contracomunicação. São Paulo, Perspectiva, 1971.


PILLA, Maria Regina. Qorpo-Santo em Três Direções. Porto Alegre, Zero Hora,
21/10/1966, p. 31.

RODRIGUES, Jaime. Censura, Essa Dama Indigna. Rio de Janeiro, Correio da Manhã,
5/6/1968, 2º Caderno, p. 4 (Sobre a proibição pela Censura Federal de montagem de As
Relações Naturais pelo Teatro Jovem).


SANDRONI, Cícero. S/ título. In: Quatro Cantos. Rio de Janeiro, Correio da Manhã,
21/6/1968, 1º Caderno, p. 7. (Nota sobre a montagem de As Relações Naturais pelo Teatro
Jovem).



b) Matérias críticas em revistas:

Teatro/ Realmente Louco. Veja e Leia. São Paulo, Editora Abril, 18/11/1970. (Sobre a
montagem de Hoje Sou Um, Amanhã sou Outro, sob a direção de Pedro Touron).




                                            142
Teatro/Panorama Carioca. Fatos & Fotos. Rio de Janeiro, Editora Bloch, 30/05/1968.
(Comentário sobre a montagem de As Relações Naturais pelo Teatro Jovem).




                                       143
ANEXO – Comédia As Relações Naturais.
[Retirado de: CÉSAR, Guilhermino. Qorpo-Santo: As Relações Naturais e Outras comédias. Porto Alegre,
Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969.]




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Final

  • 1. UNIVERSIDADE ESTADUAL DE MARINGÁ PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPH ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: FRONTEIRAS, POPULAÇÕES E BENS CULTURAIS GIULIANO MARANHO-JACINTHO AS RELAÇÕES NATURAIS: A RELEITURA DA DRAMATURGIA DE QORPO-SANTO POR LUIZ CARLOS MACIEL EM 1968. MARINGÁ 2007
  • 2. GIULIANO MARANHO-JACINTHO AS RELAÇÕES NATURAIS: A RELEITURA DA DRAMATURGIA DE QORPO-SANTO POR LUIZ CARLOS MACIEL EM 1968. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História (Mestrado) da Universidade Estadual de Maringá. Linha de pesquisa “Fronteiras, Populações e Bens Culturais”, sob a orientação da professora Dra. Sandra de Cássia Araújo Pelegrini como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História. MARINGÁ 2007 2
  • 3. GIULIANO MARANHO-JACINTHO AS RELAÇÕES NATURAIS: A RELEITURA DA DRAMATURGIA DE QORPO-SANTO POR LUIZ CARLOS MACIEL EM 1968. Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em História (Mestrado) da Universidade Estadual de Maringá. Linha de pesquisa “Fronteiras, Populações e Bens Culturais”, sob a orientação da professora Dra. Sandra de Cássia Araújo Pelegrini como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em História. Aprovado em ___de___________2007 BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ Profa. Dr a . Sandra de Cássia Araújo Pelegrine Universidade Estadual de Maringá - UEM ______________________________________________ Prof. Dr. Reginaldo Dias Universidade Estadual de Maringá - UEM ______________________________________________ Prof. Dr. Alexandre Busko Valim Faculdade - FAFIPA 3
  • 4. Dedico este trabalho a meus pais Zeneide e Sebastião. 4
  • 5. AGRADECIMENTOS À professora Sandra de Cássia de Araújo Pelegrini pelo incentivo, confiança, amizade e pela orientação precisa e aberta à interdisciplinaridade. A Luiz Carlos Maciel pela recepção aprazível e calorosa em sua residência. A Mario Donadon Leal pelas suas aulas de Semiologia. À professora Hilda Pívaro Stadniky pela solidariedade num momento de precisão. A Rosana Steinke pelo incentivo inicial. A Isabela Campoi pela companhia agradável no Rio de Janeiro. À coordenação do Programa de Pós-Graduação e aos professores pela disposição e atenção dispensadas. A Gisele Moraes, secretária do Programa de Pós-Graduação, pelo atendimento cordial. 5
  • 6. VAN GOGH: O SUICIDADO PELA SOCIEDADE Antonin Artaud “(...) Não, van Gogh não estava louco, mas suas telas eram jorros de substância incendiária, bombas atômicas cujo ângulo de visão, ao contrário de toda a pintura com prestígio na sua época, teria sido capaz de perturbar seriamente o conformismo espectral da burguesia do Segundo Império e dos esbirros de Thiers, Gambetta, Félix Faure, assim como os de Napoleão III. Pois a pintura de van Gogh ataca, não um determinado conformismo dos costumes, mas das instituições. E até a natureza exterior, com seus climas, suas marés e suas tormentas equinociais não pode mais manter a mesma gravitação depois da passagem de van Gogh pela Terra. Tanto mais razão para, no plano social, as instituições se decomporem e a medicina parecer um hediondo e imprestável cadáver que declara louco a van Gogh. (...)” 6
  • 7. RESUMO Investigamos neste trabalho as possibilidades de re-significação da comédia As Relações Naturais, escrita em 1866 por Qorpo-Santo; e encenada em 1968 pelo grupo Teatro Jovem, sob a direção de Luiz Carlos Maciel. Apreendemos este produto cultural numa leitura também produtiva, confirmando, com Roger Chartier, que “anular o corte entre produzir e consumir é antes de mais nada afirmar que a obra só adquire sentido através da diversidade de interpretações que constroem as suas significações”. Situamos o texto e seu autor no contexto histórico do século XIX; e a encenação de Maciel em seu contexto, num período de grandes embates estéticos e políticos, a década de 1960. Depois analisamos o acirramento da crítica de Yan Michalski sobre esta encenação. Empreendemos, a seguir, uma leitura semiológica sobre o corpus principal desta investigação, constituída de: texto da comédia As Relações Naturais, de Qorpo-Santo; e entrevista com Luiz Carlos Maciel, realizada por nós em 2006, a qual se constitui em nosso documento oral. Descobrimos, com Maciel, o poder de representação do teatro de invenção e o aproximamos, por nosso lado, do conceito de defasagem entre a cena e o texto, que liberta a encenação da necessidade de seguir ao pé da letra o que diz o texto. Palavras-chave: Qorpo-Santo; Luiz Carlos Maciel; Teatro; História cultural; Semiologia Teatral; re-significação. 7
  • 8. ABSTRACT This work investigates the re-meaning possibilities of the comedy As relações naturais, written by Qorpo Santo, played in 1968 by the Teatro Jovem company, and directed by Luiz Carlos Maciel. The understanding of this cultural product occurs also through a productive reading, confirming, according to Roger Chartier, that annul the cut between producing and consuming is before affirming the work acquires meaning only through the diversity of understandings that construct their meanings. The text and its author are considered into the historic context of the 19th century; and the Maciel’s staging in his context, in a period of strong aesthetic and political clashes, the 1960’s decade. After analyzing the Yan Michalski’s critical point of view about this staging, the procedure was the understanding of a semiological reading about the main corpus of this investigation, constituted by: the text of the comedy As relações naturais, by Qorpo Santo, and the interview with Luiz Carlos Maciel, achieved in 2006, that constitutes an oral document. According to Maciel, the power of representation of the theater of invention can be approached to the concept of imbalance between the scene and the text, that frees the staging from the needy to follow what the text means literally. Key-words: Qorpo-Santo; Luiz Carlos Maciel; Theatre; Cultural History; Theatrical Semiology ; Re-meaning. 8
  • 9. SUMÁRIO INTRODUÇÃO............10 UNIDADE I – TEXTOS E CONTEXTOS DA CRIAÇÃO TEATRAL: UM DESTAQUE À OBRA DE QORPO-SANTO 1.1 – Luiz Carlos Maciel e a sociedade na década de 1960.................23 1.2 – A polêmica crítica de Yan Michalski.................45 UNIDADE II – QORPO-SANTO E MACIEL – UMA LEITURA SEMIOLÓGICA 2.1 – Qorpo-Santo e a paródia ao realismo das convenções teatrais...............51 2.2. – Luiz Carlos Maciel no Teatro Jovem...............71 UNIDADE III – A ATUALIDADE CRÍTICA DE AS RELAÇÕES NATURAIS 3.1 – A semiologia teatral e a re-significação na expressão e no conteúdo da obra...............95 3.2 – Outras possibilidades cênicas de As Relações Naturais................101 3.3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS ...............126 BIBLIOGRAFIA BÁSICA E FONTES ..............134 9
  • 10. INTRODUÇÃO: Passados mais de cem anos da publicação dos textos do dramaturgo brasileiro Qorpo-Santo, no emblemático ano de 1968, foi encenada a comédia As Relações Naturais. O grupo Teatro Jovem, sob a direção de Luiz Carlos Maciel se incumbiu dessa tarefa e escolheu o Teatro Nacional de Comédia do Rio de Janeiro para apresentá-la ao público. Espectadores ávidos por críticas ao autoritarismo e às “perspectivas” mais conservadoras das relações familiares naquele momento histórico. Nessa comédia, escrita originalmente em 1866, os personagens formam uma família que oscila entre o lar e o bordel, tendo como referência, por um lado, a conservadora moral patriarcal e, por outro, o comportamento humano infiltrado no cotidiano urbano em transformação. A peça assume o tom crítico do autor quando ele defende uma “igualdade ética” entre as “autoridades” e o “povo”, representado pelo bem comum. Sob essa ótica, Flávio Aguiar, estudioso da obra do dramaturgo gaúcho, afirma que Qorpo-Santo pretendia: “(...) que indivíduo e sociedade formassem um todo harmônico – o que, em termos qorpo-santenses, que se pautassem pela mesma moralidade. A moral do governante deve ser a mesma do governado: o primeiro não pode colocar os seus interesses acima dos da coletividade; o segundo não pode ter interesses que contrariem os da comunidade. Os males adviriam da subversão desse compromisso ético que deveria dirigir as atividades de todos”1 1 AGUIAR, Flávio Wolff de. Os homens precários: inovação e convenção na dramaturgia de Qorpo-Santo. Porto Alegre: A Nação/ Instituto Estadual do Livro, 1975, p. 65. 10
  • 11. Tal encenação, no final da década de 1960, gerou polêmica e tensão entre o diretor do espetáculo Luiz Carlos Maciel e o crítico de teatro do Jornal do Brasil, Yan Michalski, autor de críticas contundentes à concepção cênica adotada na montagem. Maciel propôs uma reformulação quase completa do que a crítica especializada até então havia emitido sobre a obra de Qorpo-Santo, alegando que a transformação de suas comédias em teatro do absurdo2 implicaria um amortecimento da sua potencialidade crítica. No entanto, para Maciel, as comédias desnudavam uma estrutura mental objetiva das relações estabelecidas numa sociedade burguesa.3 Após esta encenação, houve debates acirrados na imprensa e a intervenção da Censura Federal.4 Vamos encarar o desafio de entender o contexto político e cultural no qual se insere o teatro nos anos 1960, durante o governo militar. Nessa época emergem aqueles que, mais tarde, seriam considerados grupos de “teatro de protesto” 5, que buscavam restabelecer o teatro de autoria brasileira – não somente o texto, mas também o espetáculo do homem de teatro brasileiro, valorizando a originalidade de temas nacionais, estabelecendo um diálogo com a arte popular.6 Era a crítica e a semeadura de uma proposta que iria deixar um legado definitivo à criação teatral no Brasil. Neste cenário, de alterações sensíveis na política e, 2 Segundo Marvin Carlson, (1997) essa denominação foi criada pelo crítico inglês Martin Esslin, em sua obra Theatre of the absurd (1961). Este autor chamou Teatro do Absurdo ao um novo estilo de drama anti-realista que surgiu na França na década de 1950, teatro de vanguarda representado por dramaturgos como Samuel Beckett (1906-1989), Eugène Ionesco (1912-1994) e Arthur Adamov (1908-1971). 3 MACIEL, Luiz Carlos. O “caso” Qorpo-Santo. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 26/05/1968 e AGUIAR, Flávio Wolff de. Os homens precários; inovação e convenção na dramaturgia de Qorpo-Santo. Porto Alegre: A Nação/ Instituto Estadual do Livro, 1975. 4 Segundo Aguiar: “todos os jornais noticiaram o assunto, uns mais fortemente, outros menos. A cobertura mais ampla foi a do Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, de 22/05/1968 a 18/06/1968”. 5 Em termos práticos, o teatro de protesto assenta-se no inconformismo do indivíduo e na sua impotência frente às imposições de determinado mundo social. Trata-se de entender o teatro que envolve o dramaturgo, a explorar sua própria personalidade como idéia ou personagem. (Cf. BRUSTEIN, Robert. O Teatro de Protesto. Rio de Janeiro: Zahar, 1967). 6 Afirmação dos fundadores do Grupo Opinião, Armando Costa, Vianinha e Paulo Pontes. Revista de Defesa da Cultura Nacional. Preservação da Memória Nacional. São Paulo: Artes Gráficas e Editora, 1984. 11
  • 12. conseqüentemente, na produção do teatro brasileiro, foi encenada a obra de Qorpo-Santo. Certamente, sob a direção de Luiz Carlos Maciel e produção de Ginaldo de Souza, o grupo Teatro Jovem, que encenou a comédia As Relações Naturais, insere-se nessa trama cultural que vivia plena transformação. Por que essa retomada da comédia de Qorpo-Santo, escrita em 1866? Apreender o significado das apresentações de 1968 suscita a possibilidade de análise do processo de apropriação cultural e sua re-significação simbólica. Conforme o conceito de cultura sugerido por Roger Chartier: “(...) Esta partilha – que postula, por um lado, que uma das instâncias, o econômico, é determinante, e, por outro, que o cultural ou ideológico formam um nível à parte (claramente identificável e acantonado em limites reconhecíveis) da totalidade social – parece já não ser aceitável. Na verdade, é preciso pensar em como todas as relações, incluindo a que designamos por relações econômicas ou sociais, se organizam de acordo com lógicas que põem em jogo, em ato, os esquemas de percepção e de apreciação dos diferentes sujeitos sociais, logo as representações constitutivas daquilo que poderá ser denominado uma ‘cultura’, seja esta comum ao conjunto de uma sociedade ou própria de um determinado grupo”.7 As percepções dos diferentes sujeitos sociais, na sociedade do século XX em mudanças constantes e rápidas, revelam-se em termos da identidade cultural, “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Assim, o sujeito social assume identidades diversas em diferentes momentos porque estas não são centradas num eu “coerente”. 8 Por outro lado, nem sempre a cultura teve sentidos polissêmicos ou conteve uma acepção antropológica em seus conceitos: mais recentemente ela pode ser vista como um conjunto de atitudes, crenças, códigos de comportamento próprios de grupos e classes num 7 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 66. 8 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 13-14. 12
  • 13. certo período histórico. As agregações ao termo cultura no século XIX foram vinculadas, genericamente, às artes. Com efeito, a noção polissêmica de cultura deve aos estudos antropológicos sobre: a natureza de instituições sociais; os padrões de cultura; o aspecto simbólico-expressivo do comportamento humano. Sob esta influência, entre os historiadores, cada vez mais a atenção volta-se à cultura popular, com especial destaque às atitudes e aos valores de pessoas comuns e suas formas de expressão; os historiadores não se limitam mais apenas aos estudos culturais das obras de arte e de literatura reconhecidas oficialmente. Enfim, o conceito cultura adquire vários sentidos: ela foge desse padrão oficial e, ampliando a dimensão cultural, atinge outras formas expressivas social e historicamente localizadas,9 tal como aparece na dramaturgia de Qorpo-Santo. Nossa proposta se fundamenta em identificar na obra do dramaturgo brasileiro Qorpo-Santo – especificamente, a comédia As Relações Naturais, escrita em 1866 – a crítica à sociedade do século XIX; analisar a encenação da dramaturgia de Qorpo-Santo levada a termo pelo grupo do Teatro Jovem, da cidade do Rio de Janeiro, no ano de 1968. Para isso buscamos relacionar esse grupo com o contexto de sua produção teatral; e investigar como ocorreu a identificação do grupo Teatro Jovem, na conjuntura sociocultural da década de 1960, com a obra de Qorpo-Santo. Além disso, procuramos apreender as estratégias e práticas culturais adotadas na encenação; descobrir até que ponto é possível entender como Luiz Carlos Maciel foi apreendido pela leitura do texto; e verificar possíveis maneiras de re-significar, nos dias de hoje, século XXI, esta comédia do século XIX. Com efeito, a re-significação da comédia As Relações Naturais implica: 1) 9 BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004; p.56. 13
  • 14. reconhecer esses dois universos: o do autor e o da re-apresentação, como o de Maciel cem anos depois, por exemplo; 2) observar a potencialidade da crítica contida na obra, em ambas as épocas, através da semiologia teatral. Em síntese, visamos compreender o processo de apropriação e transmissão cultural relacionado à produção dramatúrgica de Qorpo-Santo, no âmbito da proposta e identidade que o Teatro Jovem cunhou para si; e mapear as novas ou velhas atribuições de sentido à comédia, sem perder de vista o universo político e social no Brasil, na década de 1960. A reflexão sobre essas questões tende a viabilizar a comprovação da hipótese de que as posturas dos artistas, que viviam em constante tensão social, e a emergência do chamado "teatro de protesto", assentavam-se no inconformismo do indivíduo e na sua impotência frente às imposições do autoritarismo do governo militar. Tal hipótese desmembra-se em outras possibilidades interpretativas. Primeiramente, lembramos que o inconformismo de Qorpo-Santo, afastado do convívio social, motivou a sua criação literária, suas frementes críticas à sociedade do século XIX e motivou ainda, no século XX, a retomada da comédia As Relações Naturais por Luiz Carlos Maciel, com o grupo Teatro Jovem. Ademais, os temas suscitados por esta comédia podem ser vistos como formas de tensão frente ao cenário político antidemocrático de 1968. Portanto, tais temas e sua relação simbólica com o contexto sociocultural da década de sessenta revelam riquezas de conteúdo crítico. Vale ressaltar que, embora existam alguns estudos sobre a obra de Qorpo-Santo, bem como vasta bibliografia sobre o período do regime militar, há ainda uma relativa escassez de pesquisas históricas sobre a produção teatral neste período. Por outro lado, vale igualmente frisar que há poucas investigações propriamente numa perspectiva histórica, 14
  • 15. algumas aqui citadas e trabalhadas10, sobre a dramaturgia de Qorpo-Santo e as áreas de teoria teatral e lingüística. Buscamos, nesta pesquisa, superar o enfoque cronológico linear, detectado em estudos que se ocuparam da análise da obra de Qorpo-Santo. Nossa abordagem evidencia os processos de apropriação, historicamente deflagrados, na montagem da comédia As Relações Naturais por Maciel. Esta montagem renovou a crítica social, tornou-se um deboche a respeito da família patriarcal brasileira do século XIX; e de sua permanência na elite do século XX. Partimos, então, do reconhecimento da dramaturgia como elaboração de representações sobre a sociedade e cujo sentido simbólico mira-se num jogo de ordenação ambígua: por um lado, a hierarquização da própria estrutura social e ,por outro, o simbólico como mediador capaz de intervir nas diferentes modalidades de apreensão do “real”. Sob esse enfoque, a história cultural nos permite detectar as estratégias que determinam as tensões nas relações, as quais levam cada classe, grupo ou meio a serem compreendidos pela leitura de sua representação. No contexto sociocultural dos costumes “provinciais” (hábitos rurais) em que Qorpo-Santo escreveu suas comédias, percebemos os elementos que lhe conferem singularidade. Em outras palavras, as influências ideológicas e plásticas medidas pela natureza dos grupos sociais nos quais se originam; por situações específicas de seus produtores; e pelo locus no qual se manifestam, no tempo e no espaço.11 Da mesma forma, buscamos refletir sobre: os termos simbólicos, junto a um clima de violenta repressão, tanto dentro como fora do Brasil na década de 1960; as categorias mentais e conceituações 10 Entre eles podemos citar: Os Homens Precários, de Flávio Aguiar; Qorpo-Santo: surrealismo ou absurdo, de Eudinyr Fraga e O Moderno Teatro de Qorpo-Santo, de Leda Maria Martins. 11 PELEGRINI, Sandra C. A. A teledramaturgia de Oduvaldo Vianna Filho: da tragédia ao humor – a utopia da politização do cotidiano. São Paulo: tese de doutorado defendida no Programa de História Social, FFLCH/USP, 2000. 15
  • 16. subjacentes às comédias de Qorpo-Santo; e a apropriação de seus textos por jovens grupos teatrais brasileiros. Qorpo-Santo e Maciel, atores, produtores, críticos e público como sujeitos e agentes sociais contribuem para dar função significante à representação de As Relações Naturais em 1968. Se Roger Chartier mostra-nos que “o historiador deve poder vincular em um mesmo projeto o estudo da produção, da transmissão e da apropriação do texto”12, a semiologia teatral nos fala de uma da “correlação” entre expressão e conteúdo, em que o código associa elementos de um “sistema veiculante” (expressão ou significante) aos elementos de um “sistema veiculado” (conteúdo ou significado). 13 A junção da leitura semiológica com os instrumentos do universo historiográfico reforça a interpretação da história cultural, ao trabalhar temas que abarcam as práticas sociais subjacentes às áreas do teatro e da história. Uma análise que pretenda, como trabalho historiográfico, explanar sobre as representações existentes nas manifestações culturais, reconhecemos, não deixa de ter alguns interstícios ao transitar pela arte. No entanto, é sempre importante retomar o diálogo aberto entre estas representações e a própria história cultural. Deste diálogo emerge um fértil conhecimento histórico, onde o manuseio da documentação oferece a possibilidade de tratá-la de forma entrecruzada e não hierarquizada. Chegar no campo específico da historiografia é pensar nas suas interpretações, como as da história social e cultural, em colaboração com outras disciplinas. A importância dessa iniciativa circunscreve-se ao fato da história sociocultural possibilitar uma leitura crítica da sociedade e de suas representações. Para tanto, tomaremos como referencial o 12 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP – Imprensa Oficial do Estado, 1999, P. 18. 13 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro.São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 351. 16
  • 17. historiador Roger Chartier14 que indica a possibilidade de relações de troca entre universos distintos, simultâneos e entrecruzados. “A definição de história cultural pode (...) encontrar-se alterada. Por um lado, é preciso pensá-la como a análise do trabalho de representação, isto é, das classificações e das exclusões que constituem, na sua diferença radical, as configurações sociais e conceituais próprias de um tempo ou de um espaço. As estruturas do mundo social não são um dado objetivo, tal como o não são as categorias intelectuais e psicológicas: todas elas são historicamente produzidas pelas práticas articuladas (políticas, sociais, discursivas) que constroem as suas figuras. São estas demarcações, e os esquemas que as modelam, que constituem o objeto de uma história cultural levada a repensar completamente a relação tradicionalmente postulada entre o social, identificado com um real bem real, existindo por si próprio, e as representações, supostas como refletindo-o ou dele se desviando. Por outro lado, esta história deve ser entendida como o estudo dos processos com os quais se constrói o sentido. Rompendo com a antiga idéia que dotava os textos e as obras de um sentido intrínseco, absoluto, único – o qual a crítica tinha a obrigação de identificar –, dirige-se às práticas que, pluralmente, contraditoriamente, dão significado ao mundo. Daí a caracterização das práticas discursivas como produtoras de ordenamento, de afirmação de distâncias, de divisões; daí o reconhecimento das práticas de apropriação cultural como formas diferenciadas de interpretação.”15 Assim, a apreensão da encenação de As Relações Naturais do grupo Teatro Jovem volta-se para a tentativa de relacionar o corpo documental a uma análise historiográfica pertinente, cuja importância pode ser delineada através da contribuição para a interpretação plural dos meandros da cultura nacional deste período. A partir da proposta acima traçada, a metodologia envolve uma abordagem sócio-histórica e semiológica da dramaturgia de Qorpo-Santo, apontando para sua veiculação e sua relação com a cultura brasileira contemporânea, após distanciar-se cem anos de sua origem. Portanto, propomo-nos a investigar o diálogo estabelecido entre o teatro de Qorpo-Santo e a ação cultural do grupo 14 Referimo-nos especialmente aos seguintes estudos de Roger Chartier: A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990; o artigo A visão do historiador modernista. In: FERREIRA, Marieta Moraes & AMADO, Janaína. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998; A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP/Imprensa Oficial do Estado, 1999. 15 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 28. 17
  • 18. Teatro Jovem, na década de 1960, de modo a detectarmos o significado e o lugar da ação cultural do grupo na história cultural brasileira do período. Alcançaremos algum resultado pelo “estudo do posicionamento social, a origem e a situação específica de seus produtores e pelo locus no qual se manifestaram”, tal como Pelegrini investigou a produção televisiva de Oduvaldo Viana Filho.16 Para tanto, utilizamos como corpo documental, além da comédia As Relações Naturais, artigos de jornais, artigos e entrevistas publicadas em revistas, programas das peças e depoimentos do diretor Luiz Carlos Maciel. Com os devidos cuidados, interpretamos as fontes mencionadas tendo em mente os seguintes pressupostos: apreendê- las no contexto de sua produção e nos limites de suas proposições. Neste sentido, as matérias vêm “mostrar os vários conflitos existentes entre os setores” geradores dos bens culturais: os artistas, a crítica especializada e o Estado. O registro jornalístico enquanto fonte histórica revela-nos, conforme Capelato, “os vários conflitos existentes entre os vários setores, (...) as práticas políticas [que] ocorriam conforme as necessidades impostas pela luta social”.17 Nesse sentido, as matérias jornalísticas contribuem para a apreensão mais completa de um momento histórico, seja por nos oportunizar o acesso aos discursos, ainda que parciais, de outros agentes; seja por terem elas uma narrativa que pretende representar o social. Sendo assim, o jornal nos possibilita apreender mais de uma versão entre tantas leituras do mundo. No caso específico desse estudo, convém lembrar que a imprensa, na conjuntura social de 1968, foi vigiada, censurada e muitas vezes usada pelo governo militar, para manipular interesses. 16 PELEGRINI, Sandra C. A. A teledramaturgia de Oduvaldo Vianna Filho: da tragédia ao humor – a utopia da politização do cotidiano. São Paulo: FFCH/USP, 2000. 17 CAPELATO, Maria Helena. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista 1920-1945. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989, p.241. 18
  • 19. A manipulação das informações durante o regime militar se acentuou a partir de 1968. O governo passou a controlar os jornais, através da censura a conteúdos críticos. Ainda assim, podemos afirmar que não era possível o controle total. Mas, ao analisarmos as matérias críticas de jornais sobre o teatro em 1968, vislumbramos “os discursos dentro do contexto social imediato onde foram produzidos”.18 Outro procedimento adotado foi entrevistar, no Rio de Janeiro, o então diretor do Teatro Jovem em 1968, Luiz Carlos Maciel, que dirigiu a comédia do escritor gaúcho e que gerou a polêmica já mencionada. Com base nos métodos da historia oral, realizamos esta entrevista e colhemos depoimentos a respeito: da linguagem adotada na montagem (cenário, vestimenta, diálogos); do público alvo; da censura, entre outras questões. Com isso, buscamos abrir possibilidades de novas leituras da obra numa perspectiva da história sociocultural.19 A partir de tais procedimentos, passamos a investigar a importância da re- significação cultural do tema da comédia, a crítica à sociedade brasileira: nos séculos XIX e XX. A identificação de um discurso, a partir de fontes oral e escrita, aponta outros aspectos da formação social, não restritos às questões econômicas apenas. Nesse sentido, nos debruçamos sobre a entrevista, que contém um teor bastante particular e com formato específico, e ainda, exige do pesquisador o entendimento claro das ligações entre o universal e o particular, para tecer sua narrativa histórica.20 Uma vez esclarecidas tais considerações, podemos lançar mão de variados recursos documentais, entre eles o registro da história oral. 18 A enunciação, de acordo com Bakhtin, não ocorre de forma isolada, mas envolvida no contexto social. Este determina a estrutura da enunciação direcionada para os possíveis ouvintes. Assim, o discurso não é desprovido de intenção: a descrição, os dados e os argumentos, nos textos literários, são elementos que podem revelar as posições e visões do social. (BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986). 19 FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998. 20 Indicativos nesse sentido podem ser observados nas obras de: M. Halbwachs, Michael Pollak, Pierre Nora, Dea Fenelon, Etienne François, Danièle Voldman. 19
  • 20. Entendemos que o sentido da constituição do corpo documental resulta da busca do historiador pela essência do campo delimitado para investigação. Assim, a metodologia da história oral contribuiu potencialmente para a elucidação de alguns entraves ao presente estudo. Sua metodologia também nos leva a lugares sombrios que podem ser iluminados pela memória aflorada nas entrevistas, pois estas são entendidas como um processo de produção de documento, constituído de cortes e versões. Nessa busca indiciária, o historiador acaba transformando a entrevista num documento a ser utilizado como fonte de pesquisa justaposta às outras fontes e dada a ser lida e reinterpretada. Por pequenos que possam parecer, os vestígios da fonte oral, sua natureza, os detalhes essenciais nas “verdades” que ela expressa possibilitam a micro-análise. Para tanto, buscamos a abordagem disciplinar que objetiva a apreensão de como os processos de comunicação se completam.21 Nesta direção a primeira unidade deste trabalho ocupa-se das práticas sociais subjacentes ao teatro brasileiro no final da década de 1960; e transita pelas representações das memórias, pertencentes a uma época que valorizava a ação cultural e interagia de forma intensa com o imaginário social-histórico e com as demandas políticas do governo militar. Buscamos, portanto, apreender as representações da obra As Relações Naturais elaboradas por determinados segmentos sociais, sua relação com a práxis social brasileira. Assim, na última unidade desta dissertação nos defrontamos com experiências em diferenciados espaços de convivência humana; e investigamos como a produção teatral de Qorpo-Santo re-apropriada por um encenador em 1968 poderia ser re-significada nos dias de hoje. 21 GOMEZ, Hector Vargas. Um trajeto reflexivo. La configuración de la mirada cultural. Médios de comunicación, transformaciones culturales y progresiones orgánicas, 2001. 20
  • 21. Sem dúvida, chama-nos especial atenção a obra de Qorpo–Santo, pela sua inovação, expressa na união entre a comédia de costumes22 e a paródia ao realismo das convenções teatrais da época: ele evocava a sua condição de interditado judicialmente; isso faz de sua obra, ainda hoje, importante composição artística contra a repressão e os falsos moralismos. O autor gaúcho respondeu com criatividade e ironia ao tratamento que recebeu da sociedade do século XIX e seus tentos, ainda hoje, podem se converter numa ferramenta irreverente de luta política. 22 A comédia de costumes é o “estudo do comportamento do homem em sociedade, das diferenças de classes, meio e caráter”. (cf.: PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 55.) 21
  • 22. UNIDADE I – TEXTOS E CONTEXTOS DA CRIAÇÃO TEATRAL: UM DESTAQUE À OBRA DE QORPO-SANTO 22
  • 23. 1.1 - LUIZ CARLOS MACIEL E A SOCIEDADE NA DÉCADA DE 1960 Vamos identificar, nesta unidade, as “estruturas do mundo social” no século XIX e na década de 1960. Com efeito, localizaremos, com a ajuda de Roger Chartier, as práticas políticas, sociais e discursivas articuladas e comuns à Porto Alegre de Qorpo-Santo, primeiro; e ao Rio de Janeiro de Luiz Carlos Maciel, no século seguinte. Como estas práticas construíram as figuras de suas “categorias intelectuais e psicológicas”? Veremos se estas práticas comuns a cada época podem se constituir em objeto de uma história cultural. Comecemos pelo contexto do século XIX.23 Para entendermos o contexto em que foi escrita a comédia As Relações Naturais e porque gerou tanta polêmica em 1968, convém aqui fazer uma pequena retrospectiva. José Joaquim de Campos Leão, Qorpo-Santo, nome incorporado por ele mesmo, viveu na cidade de Porto Alegre, na segunda metade do século XIX, e era um homem materialmente próspero. Nesta cidade, foi professor de primeiras letras, ou gramática, no Colégio São João; jornalista de um tablóide criado por ele mesmo – A Justiça –; e também vereador. Em 1867, Qorpo-Santo começou a ter problemas de relacionamento social, considerados pelos da época como decorrentes de suas perturbações mentais, e foi interditado por ordem judicial, impedido de gerir sua pessoa e seus bens. Conseqüentemente, foi afastado do magistério e da família. Em 1868, Qorpo-Santo foi para o Rio de Janeiro, levando consigo um ofício da junta médica de Porto Alegre dizendo ser ele portador de monomania, para submeter-se a novo exame no Hospício D. Pedro II, de onde foi liberado com o diagnóstico contrário ao anterior: 23 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 28. 23
  • 24. “e nem se nota este círculo de idéias fixas formado pela insanidade da imaginação. Não acharam o produto mórbido monomania no que diz respeito às concepções delirantes que constitui as anomalias dos sentidos”24. Em novos exames no Rio de Janeiro, dessa vez na “Casa de Saúde Doutor Eiras”, o Dr. Torres Homem julga-o “apto para gozar de seu livre-arbítrio”. Após isso, o juiz Dom Luís de Assis Mascarenhas julga-o “no estado de poder reger sua pessoa e bens”, e Qorpo- Santo retorna a Porto Alegre com um novo documento, o salvo-conduto emitido pela Secretaria da Polícia da Corte. No entanto, os médicos da capital da província gaúcha não reconheceram o documento; e ele não conseguiu sair da condição de interdito. Sendo assim, o contexto em que se insere As Relações Naturais aponta para uma pressão injusta contra o dramaturgo, uma vez que a junta médica da Corte não havia confirmado o diagnóstico de Porto Alegre. No século XIX não havia no Brasil uma psiquiatria médica formada e os asilos de alienados eram, na maioria das vezes, administrados por instituições religiosas. Os alienistas defendiam um local específico para os loucos, alegando que estes eram perigosos. O conceito de monomania no século XIX25 deu suporte teórico a uma nova noção e definição de loucura. Para além do delírio, estabeleciam uma forte relação entre doença 24 Cf.: CÉSAR, Guilhermino. O Criador do Teatro do Absurdo. In: Qorpo-Santo: As Relações Naturais e Outras comédias. Porto Alegre, Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969, p. 19. Neste livro, Guilhermino apresenta este documento (auto de exame de sanidade dos médicos do Hospício de D. Pedro II) e os demais citados abaixo. 25 Significado atual de “Monomania: 1. sinônimo obsoleto de paranóia. Paranóia: psicose caracterizada sobretudo por ilusões fixas. É um sistema delirante durável. As ilusões de perseguição e grandeza são mais duradouras e mais sistematizadas que na esquizofrenia paranóide. Os ressentimentos são profundos e o paranóico geralmente procura agredir aqueles que estiverem presentes em seus conflitos. É um tipo perigoso para a sociedade: egocêntrico e destruidor, conhece seus inimigos e julga que sua grandeza depende da eliminação de pessoas que o prejudicam. Há delírios de reivindicação, de interpretação e de imaginação.” 2. “Monomania: transtorno mental caracterizado por idéias fixas ou dominantes que se dão junto com uma personalidade integrada em outros aspectos.” 3. “delírio parcial. Crença patológica em fatos irreais ou concepções imaginativas destituídas de base. Os temas mais comuns são grandes idéias de grandeza, perseguição, ciúmes, culpabilidade, etc. Sua justificativa efetua-se seja por interpretações falsas, seja por falsas percepções (alucinações). Trata-se, às vezes, de elaborações mais ou menos incoerentes e fantásticas, puramente imaginativas.” (Cf.: 1. DORIN, L. Enciclopédia de Psicologia Contemporânea. São Paulo: Iracema, 1981, pp. 212-242; 2. WARREN, Howard C. Dicionário de Psicologia. México: Fondo de Cultura Econômica, 1991, p. 231; 3. e PIÉRON, Henri. Dicionário de Psicologia. Porto Alegre: Editora Globo, 1966, p. 111). 24
  • 25. mental e comportamento violento desviante. Havia grande dificuldade em identificar as pessoas com tais desvios, porque as faculdades mentais estavam ilesas até ocorrer um ato violento. A monomania surge neste contexto e parece ter funcionado como uma noção estratégica: não ocorria a prisão comum, mas os médicos defendiam a criação de um espaço para a reclusão e tratamento. Por volta de 1870 podemos encontrar no Brasil um movimento, entre os médicos, em defesa da criação de manicômios criminais, retirando os doentes mentais delinqüentes da área médica.26 Em 1887, mesmo interditado, Qorpo-Santo publicou em tipografia própria sua obra escrita: Ensiqlopédia ou Seis Meses de Uma Enfermidade, composta de 9 volumes. Ele propôs, nesta obra, uma reforma ortográfica, por isso incorporou a letra Q, no lugar de C, em seu pseudônimo. As dezessete comédias, escritas alucinadamente entre janeiro e maio 1866, inclusive As Relações Naturais, compõem sua antologia teatral, no volume IV, juntamente com outros escritos.27 O século XIX, na consolidação do Estado Imperial brasileiro, tinha o liberalismo europeu como referência para a “criação” e funcionamento das instituições que o constituíam. O liberalismo no Brasil buscou inspiração na Europa, servindo aqui para legitimar o funcionamento de instituições fundadas todas em relações sociais escravistas. Um dos esteios da sociedade escravista moderna foi a família, nos moldes patriarcais, 26 PERES, Maria Fernanda Tourinho. A estratégia da periculosidade: psiquiatria e justiça penal em um hospital de cústódia e tratamento. In: PSYCHIATRY on Line Brasil – Current Issues, nº (3), 08/1998. 27 Dramaturgia completa: Mateus e Mateusa; As Relações Naturais; Hoje Eu Sou Um, Amanhã Outro; Eu Sou Vida, Eu Não Sou Morte; A Separação de Dois Esposos; O Marido Extremoso, Ou O Pai Cuidadoso; Um Credor Da Fazenda Nacional; Certa Entidade Em Busca De Outra; Uma Pitada De Rapé; Um Assovio; Lanterna De Fogo; Um Parto; O Hóspede Atrevido, Ou O Brilhante Escondido; A Impossibilidade da Santificação, Ou A Santificação Transformada; O Marinheiro Escritor; Duas Páginas Em Branco; e Dous Irmãos, que está incompleta. 25
  • 26. caracterizada pela concentração da autoridade na figura masculina do casal – o pater familias – herança romana na vida política do Império. 28 Na comédia As Relações Naturais, a moral patriarcal é um tema constantemente retomado e ponto de tensão: quanto ao tema, a moral é enfatizada pela fidelidade ao casamento; enquanto que a tensão surge da necessidade impulsiva de ter relações fora do casamento. Dessa tensão, surgem, nesta comédia, críticas satirizando instituições como a família e o próprio Estado Imperial, personalizado na figura dos governantes. O pesquisador Flávio Aguiar (1975) considerou que Qorpo-Santo foi um crítico ferrenho da sociedade da época, portanto, processá-lo como louco fora uma maneira de silenciar suas revolucionárias idéias frente a pequena Porto Alegre de então. Diante da originalidade biográfica e dramatúrgica de Qorpo-Santo, interessa-nos destacar o significado e a atualidade de suas críticas. A instituição do casamento no período colonial se realizava por interesses familiares, sob o domínio patriarcal, considerando particularmente os benefícios econômicos e sociais; dentro dos novos padrões de comportamento, o contrato conjugal se tornou uma opção feita unicamente entre o casal, enquanto a prole passou a ser o centro da atenção familiar. As relações típicas da sociedade colonial foram encaradas como desobediência civil, políticos e médicos se encarregaram de atacar tais comportamentos. O lema era o amor à família, o amor ao Estado. Vários setores da sociedade passaram a combater os comportamentos inadequados, no sentido de uma nova moral da vida e do corpo, a mesma defendida pelos médicos. Vale lembrar que a partir da consolidação do Estado Nacional brasileiro, houve um crescente interesse do governo pela normatização dos comportamentos sociais. Isso 28 MALERBA. Jurandir. Os brancos da lei: liberalismo, escravidão e mentalidade patriarcal no Império do Brasil. Maringá: EDUEM, 1994. 26
  • 27. aconteceu com o advento da independência política do país, quando as políticas públicas de saúde passaram a interferir no cerne das famílias, com intuito de preservar o recente contrato social “democrático” e burguês. O destino das pessoas passou a subordinar-se ao destino político da burguesia, segundo seus padrões de corpo, sexo, sentimentos conjugais, parentais e filiais. O Estado queria a modernização das mentalidades e costumes. Assim, em 1851, foi criada pelo governo imperial a “Junta Central de Higiene Pública”, instrumentada de poderes justificados na ciência médica, com objetivos claros de determinar os novos padrões de comportamento, considerados corretos para as relações familiares.29 Os políticos visavam, supostamente, resolver um problema social, o das moradias dos pobres; no entanto, o real motivo aos poucos apareceu: o de fixar o ideal burguês como sinônimo de civilização. Baseada em uma ciência médica, foi iniciada uma campanha normativa, alinhando a desobediência civil ao comportamento colonial atrasado. Foi estabelecida a conexão entre a ideologia higienista e o imaginário engendrado entre os políticos e os governantes. Iria prevalecer, desde então, a idéia de que a civilização tem um caminho a seguir, o do “aperfeiçoamento moral e material”; e de que os governantes devem “zelar” para que seu povo siga-o; e solucionar os problemas de higiene pública, pois só assim a nação conseguiria alcançar a prosperidade dos “países mais cultos”. Segundo o historiador Sidney Chalhoub, a partir dessas duas operações mentais configuraram-se os pressupostos da higiene como ideologia: várias medidas técnicas, que conduziriam o país a civilização e às quais ficaria submetida todo o jogo político.30 29 COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979. 30 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiço e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 34-35. 27
  • 28. Continuemos o nosso reconhecimento às “configurações sociais e conceituais”, mas passemos, agora, ao século XX, ou, mais precisamente, à década de 1960. Sabemos, através de Chartier, que a história cultural “deve ser entendida como o estudo dos processos com os quais se constrói o sentido”. A obra de Qorpo-Santo obteve uma leitura libertadora com Luiz Carlos Maciel, em 1968, quando este diretor re-significou a comédia As Relações Naturais e deu novo sentido a ela, tomando-a, a nosso ver, como uma “prática de apropriação cultural” enquanto forma diferenciada de interpretação.31 Dada a significativa e constante presença do teatro na vida de Luiz Carlos Maciel, achamos importante fazer, também para ele, um retrospecto de sua vida teatral anterior a 1968, para depois iniciarmos uma reflexão acerca de seu repertório teatral, durante sua estada no Teatro Jovem. Maciel fez teatro amador em vários grupos na cidade de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, tais como: Teatro Universitário, Clube de Teatro e Teatro de Equipe. Participou como ator em espetáculos como: Nossa Cidade, de Thonrton Wilder; Seis Personagens a Procura de um Autor, de Pirandello; A Margem da Vida, de Tennesse Williams – entre outras. Dirigiu também as peças Os Cegos, de Michel de Ghelderode; e Esperando Godot, de Samuel Beckett. Em 1959, ganhou uma bolsa para a Escola de Teatro da Universidade da Bahia, então dirigida por Martim Gonçalves; no ano seguinte, ganhou outra bolsa de estudos da Fundação Rockefeller, para o Carnegie Institute of Technology, em Pittsburgh, nos Estados Unidos, onde estudou direção teatral durante dezoito meses. Voltou a Salvador em 1961 como professor da Escola de Teatro. Nesse período, dirigiu as peças: A História do Zoológico e A Morte de Bessie Smith, de Edward Albee, Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, Major Bárbara, de Bernard Shaw, e Leonce e Lena, de Georg Buchner. Em 1964, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde deu aulas de 31 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 28. 28
  • 29. teatro no Conservatório Dramático Nacional; e, em 1967, fundou o grupo Teatro de Repertório, com Tite de Lemos e Paulo Afonso Grisolli, com os quais dirigiu a peça O Labirinto, de Arrabal, no Teatro de Arena da Guanabara.32 O que percebemos nesses trabalhos é que eles fazem parte de uma dramaturgia moderna, contemporânea; e, muitas vezes, situados entre as maiores obras de vanguarda do teatro ocidental. A participação de Luiz Carlos Maciel no Teatro Jovem do Rio de Janeiro foi curta, apenas em 1968; em comparação com o que havia realizado até então. Já era experiente cenicamente e acostumado com a linguagem de vanguarda da época. Importa-nos saber que as duas montagens do grupo, dirigidas por Maciel, foram contundentes do ponto de vista crítico-social. São elas: Barrela, de Plínio Marcos33 e As Relações Naturais, de Qorpo- Santo. Ambas as obras estiveram, certamente, em diálogo com a crítica social: entendida aqui como ato de interpretação de uma realidade através da arte. Barrela revelava, por uma linguagem realista, as pessoas marginalizadas da sociedade brasileira; enquanto que As Relações Naturais representava um ato libertário, um deboche a respeito do conservadorismo na sociedade. Esta última montagem tinha uma linguagem mais livre e inovadora, como comenta Maciel: “era a preocupação da juventude com a repressão sexual” que estava sendo exposta no palco diante de todos. Assim, as conexões entre história e teatro, arte e sociedade, remetem à mudança comportamental do jovem dos anos de 1960 e seu vínculo com o ato cênico. Mas, resolver montar a comédia As Relações Naturais, de Qorpo-Santo, foi quase uma conseqüência da proibição de Barrela, pois o texto de Plínio Marcos foi proibido um 32 Cf. dados disponíveis no site oficial de Luiz Carlos Maciel, http:/www.luizcarlosmaciel.zip.net. Acesso em 03/2006. 33 Plínio Marcos foi um dos autores mais premiados do teatro brasileiro. Surgiu como dramaturgo na década de 1960. Sua temática buscava representar o submundo e as pessoas marginalizadas. 29
  • 30. dia antes da estréia do espetáculo. A censura, ao que tudo indica, propositalmente, demorou a dar resposta ao grupo de teatro, que havia mandado o texto com bastante antecedência para ser analisado e liberado. Diante desse ato dos censores do regime militar houve protesto no Teatro Jovem, ocorreram reuniões para decidir o que os artistas deveriam fazer diante da proibição. O próprio Plínio Marcos participou dessas reuniões, como afirmou Maciel em seu depoimento34, que de nada adiantaram, o texto foi proibido na íntegra. O grupo, mesmo assim, fez algumas apresentações clandestinas no Teatro Jovem, à meia- noite. Yan Michalski, crítico do Jornal do Brasil, escreveu uma crítica positiva sobre a montagem, contudo, mesmo com essa crítica, o produtor do espetáculo Ginaldo de Souza, encerrou as apresentações, por conta do prejuízo que implicava e propôs a Maciel montar outro texto dramatúrgico. Foi quando Luiz Carlos Maciel teve a idéia de encenar a comédia de Qorpo-Santo, As Relações Naturais.35 É importante observar, nesse trabalho, como aconteciam as estratégias dos artistas diante da censura prévia: os textos teatrais eram enviados aos censores, passavam por uma análise de conteúdo, para serem liberados, ou não, para montagem. Como diz Maciel, quando se refere ao momento em que o grupo estava aguardando a liberação do texto Barrela por parte da censura federal: “E aconteceu tudo isso, a censura nos sacaneou bastante, porque a gente mandou o texto pra Brasília com muita antecedência, e eles não davam nunca uma resposta sobre a liberação do texto. A gente ficou achando que: ‘– não, eles vão cortar algumas coisas, tem muito palavrão...’ porque na cadeia tudo mundo fala palavrão, o tempo todo... ‘– então vamos botar mais palavrão!’ Até porque a gente tinha essa estratégia do boi de piranha: botava bastante coisa pra ser cortada; pra eles deixarem... (risos) a gente exagerava para eles cortarem no exagero; e sobrar o resto! Mas em Barrela eles não 34 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração 1h20min. 35 MACIEL, Luís Carlos. Negócio Seguinte. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, p.14. Duração 1h20min. 30
  • 31. fizeram isso não, eles seguraram até o dia da estréia. O espetáculo estava pronto pra estrear e vetaram, proibindo a peça toda, completamente...”36 A dificuldade em trabalhar foi ficando cada vez mais evidente e constante. Na década de 1970, Plínio Marcos chegou ao ponto de não conseguir mais exercer seu teatro. Aquele tipo de dramaturgia, que representava explicitamente as duras realidades do Brasil e que tinha um afã de esquerda aos olhos dos militares, mesmo que não o fosse, era previamente proibido. Tal atitude por parte do governo militar, mesmo parecendo não ter sentido, tinha sua lógica: impedir que o público tivesse contato com conteúdos críticos. Referimo-nos aqui àquela “cultura de oposição”, resultante do encontro entre público e teatro, conforme diz Rosangela Patriota em seu trabalho sobre Vianinha: “durante o período militar construiu-se uma ‘cultura de oposição’, presente no teatro, no cinema, na música, na literatura entre outras formas de manifestação, permitindo que se estabelecesse uma ‘identidade’ entre produtores e consumidores de bens culturais, propiciada pelo engajamento artístico, que se tornou uma das pilastras da resistência 37 democrática.” Não podemos perder de vista, no entanto, que o Estado brasileiro, através da censura e da violência física, procurou dar suporte a uma nova fase capitalista no país. Esta nova fase sustentou-se nas seguintes idéias propagadas: “desenvolvimento nacional, integração e segurança, com investimentos no crescimento econômico acelerado e artificial, colocado em prática através de sistemas de créditos e subsídios governamentais que foram viabilizados por empréstimos internacionais, arrocho salarial da classe trabalhadora, concentração de renda e desigualdades sociais. Ocorrendo a militarização do social e o intervencionismo do Estado na economia, com o objetivo de legitimar a idéia de que a nação estava retomando o crescimento e se modernizando de maneira responsável.”38 36 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. 37 PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração do seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 16. 38 PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. A UNE nos anos 60: utopias e práticas políticas no Brasil. Londrina: Ed. Da UEL, 1997, p. 141. 31
  • 32. Além disso, iniciou-se nos meios de comunicação também uma nova fase, onde a utopia artística começou a perder espaço para um violento processo de massificação da cultura popular. É dentro deste contexto que vamos refletir sobre a resistência, no teatro, e interpretar, com o auxílio da história, as origens dela. De onde vem tal resistência a tão fortes transformações sociais? A resposta está no contexto social, conforme veremos a seguir. O teatro brasileiro na década de 1960 esteve em constante contato com a cultura popular, por meio dos CPCs, Centros Populares de Culturas, do Teatro de Arena, do Show Opinião, entre outros. Também devemos lembrar que a partir da Semana de 1922 houve uma grande reflexão em busca do caráter de nossa cultura. Os modernistas também estabeleceram diálogos com a cultura popular. E, mais ainda, quando chegamos na década de 1950, temos o cinema novamente ventilando as questões do Brasil e a produção hollywoodiana propagando as concepções políticas da chamada “Guerra Fria”. Os embates entre os Estados Unidos da América e a União Soviética, expressos nas produções culturais entre 1945 e 1950, sem dúvida, reproduziam as metáforas da “Americam way of life” versus as do “Comunist way of life” nas décadas seguintes. Especialmente a produção fílmica tomou os protagonistas estadunidenses representantes do “mundo cristão, de recursos abundantes, valores democráticos, (...) liberdades civis e políticas”, enquanto os “vilões” comunistas personalizavam o “mal absoluto”, ou seja, “o mundo ateu” e “antidemocrático”.39 Mas a paulatina imposição das produções fílmicas nos mercados culturais impulsionavam leituras particulares das demandas da “Guerra Fria”. 39 Cf.: VALIM, Alexandre Busko. Imagens vigiadas: uma história social do cinema no alvorecer da Guerra Fria (1945-1954). Niterói, RJ, Tese de doutoramento defendida na UFF, 2006. 32
  • 33. A partir da contestação das ideologias estadunidenses e do repensar sobre a função social ou o papel da dramaturgia, os artistas brasileiros propuseram-se a estabelecer relações interativas entre as práticas e as representações políticas na década de 1960. Essas relações: “geram apropriações do sentido da arte, de acordo com interesses sociais, com as imposições e resistências políticas, as motivações e necessidades que se confrontam no mundo humano”.40 Os prodígios do “mundo democrático”, preconizado nas Américas, confrontavam-se com as “utopias comunistas”, que pressupunham a possibilidade de um mundo igualitário. A dominação e o poder eclodiam no âmbito político e cultural, deixando evidências da força do governo instaurado no Brasil em 1964; e da reação de parte significativa dos produtores culturais, que contestavam as proposições autoritárias, impregnadas nas “benesses democráticas” e no “terror comunista” disseminados pelos militares. Na gestão do general Arthur da Costa e Silva, entre 15/03/1967 a 31/8/1969, iniciaram-se grandes movimentos da sociedade brasileira de resistência ao governo militar. Costa e Silva ao tomar posse prometeu restaurar o regime democrático, restabelecer a ordem jurídica e fazer reformas necessárias na estrutura sócio-econômica do país, que contava com uma população crescente de 87 milhões de habitantes. Na área econômica, Delfim Neto, ministro da fazenda, despontava como o novo líder. Ele procurou impor uma política econômica, com resultados de curto prazo, para ser sentida no cotidiano dos brasileiros. Em abril de 1967, Delfim Neto reduziu as taxas de juros e o ministro do Trabalho Jarbas Passarinho prometeu aumentar o poder de consumo dos trabalhadores. Tais medidas tiveram total apoio por parte dos segmentos empresariais, mas os trabalhadores, 40 BARROS. Idem: 2004; P. 88. 33
  • 34. não acreditando nas promessas do governo, reivindicaram a liberdade sindical, anistia e cancelamento dos decretos-leis do antigo governo. Essas medidas foram legitimadas pelo discurso de que seu objetivo era fazer o país alcançar novos patamares de desenvolvimento econômico. Segundo Carlos Fico, o regime militar desenvolveu um estilo de propaganda específica, por ser pretensamente despolitizada, sendo politizada. À tecnização política acresceu-se uma “espiritualização da propaganda”: a super-valorização dos “sentimentos nobres” e dos “valores brasileiros” preencheu o conteúdo da propaganda política. Com isso o governo militar buscou conformar o padrão de comportamento social aos patamares de desenvolvimento econômico que levariam o povo ao mundo desenvolvido.41 Sendo assim, as estratégias de poder e dominação impressas pelo governo militar deram-se em consonância com medidas econômicas e com a propagação ideológica, através das mídias, que veiculava a idéia de que todo brasileiro estava participando e contribuindo para o avanço econômico do Brasil. Contudo, apesar da eficácia da propaganda ocorrida nesse período nem todos os segmentos sociais estiveram passivos diante do investimento do governo militar, que buscou legitimar e cultivar nas pessoas um imaginário social consensual. As abordagens sobre a história recente do Brasil têm nos indicado que nunca houve na história a hegemonia da cultura; por mais que os dominadores buscassem meios para consegui-la, sempre houve os nichos de resistência. O movimento estudantil e a luta armada foram à expressão mais contundente de oposição ao governo militar entre 1967-1968. Conforme Marcos Napolitano: “Os dois 41 FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997, p. 23. 34
  • 35. movimentos freqüentemente iriam se entrecruzar: os estudantes forneciam quadros para a guerrilha e a guerrilha estimulava as ações de massa”. 42 Portanto, os grupos de esquerda se organizaram numa ação política radical de oposição ao governo militar. Outro movimento, o sindical, reaparecia em duas greves operárias, em Contagem (MG) e Osasco (SP). Portanto, vários setores da sociedade manifestavam seus descontentamentos e os protestos políticos se radicalizaram num crescente. Contudo, inexistiu uma aproximação mais concreta dos operários junto aos estudantes e guerrilheiros. Outro fenômeno político do período foi a fragmentação do Partido Comunista Brasileiro: “o PCB, fragmentou-se em meio às avaliações e autocríticas de seus membros. O Partido, capitaneado pelo legendário Luís Carlos Prestes, insistia na formação de uma frente democrática (que incluía setores da burguesia liberal) contra a ditadura, atuando por vias pacíficas pela derrubada do regime militar.”43 Não concordando com tal proposta, muitos dirigentes de esquerda decidiram criar seus próprios grupos, como: Ação Libertadora Nacional (ALN), liderado por Carlos Mariguela, tinha o propósito de começar um processo de guerrilha urbana e depois rural; e o PCdoB, que surgiu em 1962 ao se desmembrar do PCB. O PCdoB, em 1967, montou uma base de guerrilheiros na região do Araguaia, com objetivo de organizar um contingente camponês para uma guerra popular. Houve outros: Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR); Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8); Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) ao qual pertencia Carlos Lamarca. A ação desses grupos revolucionários de esquerda gerou certo efeito sobre a opinião pública: assaltos a bancos, 42 NAPOLITANO, Marcos. O regime militar brasileiro: 1964-1985. São Paulo: Atual, 1998, 26-27. 43 NAPOLITANO. Idem. 1998. 35
  • 36. seqüestros de diplomatas estrangeiros, foram formas de conseguir dinheiro para a guerrilha, mas também tinha objetivos revolucionários efetivos, desestabilizar e derrubar um governo militar golpista. Contudo, a luta armada empreendida pelos grupos de esquerda logo seria controlada pelo exército, a sua forma de luta nunca foi adotada pela sociedade. No ano de 1968 ocorreram inúmeros acontecimentos dramáticos que marcaram a história recente brasileira. A morte do estudante secundarista Edson Luís em 28 de março de 1968 no Rio de Janeiro, baleado pela polícia na manifestação do Restaurante Calabouço, segundo Sandra Pelegrini, desencadeou protestos em nível nacional. “Sob o clima de perplexidade e revolta, o corpo foi velado por uma multidão na Assembléia Legislativa do Rio”.44 Devido à grande repercussão desse ocorrido, o movimento estudantil passou a contar com o apoio popular amplo, o que ocorreu através de “greves, atos públicos e comícios relâmpagos, todos acompanhados de perto por cães, policiais, bombas de gás lacrimogêneo e de efeito moral”.45 Em 21 de junho a cidade do Rio de Janeiro foi palco da chamada “sexta-feira sangrenta”: violento choque de rua resultando na morte de quatro manifestantes e mais de vinte feridos a bala. No dia 26 de junho de 1968, políticos, artistas, intelectuais, trabalhadores e grande número de estudantes, juntamente com a sociedade civil, uniram-se para manifestar repúdio ao regime militar no evento conhecido como “Passeata dos Cem Mil”. Era o início de uma ampla luta contra o governo militar. 46 44 PELEGRINI, Sandra de Cássia Araújo. A UNE nos anos 60: utopias e prática políticas no Brasil. Londrina: Ed. da UEL, 1997, p. 158. 45 PELEGRINI. Idem. p. 159. 46 NAPOLITANO. Idem. p. 31. 36
  • 37. Como todos os movimentos do período, havia também divergências internas no movimento estudantil. Este, a partir de 1968, buscou novos caminhos e, nesse processo, as rivalidades internas entre a esquerda e a direita, sediada no Mackenzie, aumentou. “No dia 12 de outubro se realizou de forma clandestina o XXX Congresso da UNE, em Ibiúna (SP). Este foi descoberto pela polícia e várias lideranças nacionais como José Dirceu, Vladimir Palmeira, Luís Travassos, entre outros foram presos.47 Para Marcos Napolitano estas prisões geraram o enfraquecimento do movimento estudantil de massa, que perdeu seu poder de organização.48 Daí para frente a fragmentação do movimento estudantil entrou num crescente. Após 1969 os agentes da ordem adotaram a repressão sem “distinção entre os segmentos sociais que desfrutavam de certa imunidade”.49 E como o aparato coercitivo do regime sabia que a maioria do quadro que compunha a guerrilha urbana era de pessoas pertencentes aos mais altos segmentos sociais (profissionais liberais, executivos, filhos de famílias abastadas), passam a agir sem distinção, não havendo mais privilégios a tais segmentos. Contudo, os conflitos resultantes das oposições à ordem vigente, em 1968, eram diversos e nem sempre ocorriam através da violência física ou luta armada: “No campo comportamental iniciaram-se questionamentos de padrões de moral, de política e de relacionamento humano que negavam o exercício da autoridade. Os ditos novos movimentos sociais cada qual com suas estratégias de ação e política de identidade negavam o status quo dominante: feminismo, revolução sexual, liberação dos costumes, movimento negro, entre outros estimularam a revisão das relações pessoais e trabalhistas propondo mais igualdade de relações na produção”.50 47 PELEGRINI. Idem. p. 167. 48 NAPOLITANO. Idem, p. 33. 49 PELEGRINI, Sandra C. A. A institucionalização da violência: embates entre militares e universitários no Brasil. In: Cultura e cidadania: ANPUH-PR, 1996, v. 1, p. 207. 50 PELEGRINI. Idem. 37
  • 38. Na área artística também ocorreram inquietudes na música, no cinema e no teatro. Nas artes em geral, outros padrões conceituais, temáticos e de linguagem, com outras formulações práticas que se propunham revolucionar a tradição artística, são estabelecidas.51 Contra a crítica tradicional, levantaram-se os gritos de liberdade dos artistas: “Contra a opinião dos conservadores, no entanto, levantaram-se o artista plástico Hélio Oiticica, os compositores Gilberto Gil e Caetano Veloso, o cineasta Glauber Rocha e o teatrólogo José Celso Martinez Corrêa, gritando novas palavras de ordem e conclamando para a “guerrilha cultural”: “Abaixo o preconceito”, “Por uma nova estética”, “Por uma nova moral”, “Abaixo a cultura de elite” e “A imaginação no poder”.52 Portanto, tais gritos provinham dos ecos dos vários movimentos sociais que contestavam as imposturas do regime militar. Nesse sentido, os gritos contra a crítica tradicional ultrapassaram a esfera das artes, por questionar as posições conservadoras da sociedade como um todo. Em 1968, enquanto uma parcela da população manifestava seus desejos por transformações que se expressavam em variados níveis do relacionamento humano iniciava-se entre os militares a luta pelo poder. O discurso de Márcio Moreira Alves na Câmara dos Deputados, responsabilizando o governo militar pela violência contra os estudantes, foi utilizado, pelo governo, como pretexto para editar o AI-5 em 13 de dezembro de 1968. Iniciou-se o terror de Estado através desse Ato: cassação generalizada a parlamentares e cidadãos; suspensão do habeas-corpus de presos políticos; mais centralização do poder Executivo federal; o Gabinete Militar da Presidência passou a coordenar diretamente a repressão; ampliação do poder político do Conselho de Segurança 51 PELEGRINI. Idem, p. 161-162. 52 NOSSO SÉCULO. (1960/1980): sob as ordens de Brasília. São Paulo: Abril Cultural, 1986, P. 160. 38
  • 39. Nacional. Tais núcleos do poder foram definidores na disputa sucessória para a Presidência da República, que levaria o general Emílio Garrastazu Médici ao poder em 1969. 53 Notamos que a censura se manifestava por motivos políticos sobre o teatro, que defendia a volta da democracia. Também era justificada a censura por motivos morais, atingindo o teatro que satirizava a sociedade beneficiária do golpe militar. Assim, a Doutrina de Segurança Nacional, uma instituição que desde 1949 deu suporte ideológico aos militares brasileiros, assumiu a orientação dos órgãos de censura. Esta orientação tem origem em fatores históricos em nível internacional. Após a II Guerra Mundial adveio a bipolarização do mundo entre países capitalistas (sob tutela dos E.U.A.) e países comunistas (sob os auspícios da U.R.S.S.). Baseando-se nessa divisão, a DSN estabeleceu diretrizes para uma contra-ideologia de contenção do avanço do ideário comunista no território brasileiro.54 Tal orientação foi passada para os órgãos de censura nacionais. Estes, por sua vez, formularam propostas político-culturais para determinar entre aquilo que deveria ser permitido e do que sofreria proibição. Assim, se estabeleceu o nível de relacionamento entre a censura e a produção cultural no país. No contexto cultural de 1968 tais órgãos criaram agências, que passaram a agir para obter um complexo de informações a fim de detectar todo e qualquer movimentação subversiva, que viesse a “ameaçar” a segurança nacional. Nesse processo ocorreu a militarização do social: “Supondo que a propaganda comunista não visava ao confronto armado, mas sim à penetração nas mentes da população brasileira, o possível país alvo da sua índole insurrecional, a DSN passava a identificar o social como potencial inimigo interno, daí toda e qualquer crítica ao Estado ou reivindicação ser interpretada como resultado da infiltração do comunismo no país. Por seu turno, essa visão legitimaria 53 NAPOLITANO. Idem, p.33. 54 Este tema pode ser aprofundado a partir da consulta de Alexandre Busko Valim, entre outros autores. 39
  • 40. a ilimitada ação repressora do Estado e de seus agentes, acionada por intermédio da concessão de poderes irrestritos aos militares, empenhados na erradicação da ‘ameaça vermelha’.”55 A partir de 1968 a repressão aos subversivos ampliou-se a medida que os métodos repressores se sofisticaram: “o controle mais sistemático sobre a imprensa (...) as autoridades militares utilizavam-se de incontáveis meios de terror e vigilância para manter a chamada ‘ordem’. Escuta telefônica, serviços de recorte e análise, circulação suspensa de periódicos, invasão dos próprios por policiais militares portando metralhadoras e revolveres, explosão de agencias por meio de bombas, detenção de diretores, redatores e jornalistas julgados suspeitos tornaram-se medidas cotidianamente aplicadas nesse meio.”56 A ação repressora se voltou sistematicamente sobre os meios formadores de opinião se interpondo as notícias sobre o país. Assim, concomitantemente, essas ações impediam que a imprensa revelasse de maneira crítica o que vinha ocorrendo e ocultava as próprias violências exercidas por parte dos policiais militares. No campo das artes (diversões públicas) a ação da censura se fundamentou nos pressupostos do Serviço Nacional de Informação, como comentou Pelegrini a respeito do programa deste órgão: “ (...) cuja expressão tornava o artista e sua produção uma ameaça direta e constante aos ditos valores democráticos do ocidente cristão. Com vistas a oferecer subsídios e certo conhecimento técnico do assunto, organizavam-se cursos de formação para censores.”57 Em tais cursos o objetivo era “instruir” os censores para o completo conhecimento do “inimigo” e, assim, detectar e destruir nas mentes “infectadas” pelo ideário comunista. Mas tudo era feito em nome da democracia ocidental cristã. Nesse sentido, juntamente a 55 PELEGRINI, Sandra A. C. A censura e os embates contra um inimigo comum em potencial. In. ROLIM, Rivail Carvalho, PELEGRINI, Sandra e DIAS, Reginaldo (Orgs). História, espaço e meio ambiente. Maringá: ANPUH-PR, p. 83, 2000. 56 PELEGRINI. Idem, 2000, p. 89. 57 PELEGRINI. Idem, 2000, p. 91. 40
  • 41. repressão houve forte propaganda ufanista do Brasil que reforçava a idéia de que os críticos sociais, na concepção dos militares, eram na “verdade”, inimigos da nação.58 No decorrer dos acontecimentos a arte passou a ser observada sob a suspeita de lugar propagandista do ideal comunista e, portanto, subversivo. Assim, as interdições sobre os espetáculos teatrais, sem distinção, acentuaram-se: “No pós-1968 a decretação do Ato Institucional nº 5 (AI-5) geraria o recrudescimento da repressão e da arbitrariedade da censura. Em 1968 tomariam vulto as difamações do teatro.”59 Ocorreu que diante de todo terror e violência os artistas passaram a buscar alternativas possíveis para continuar trabalhando. “Houve aqueles que continuaram se expressando através do realismo crítico; outros utilizavam alegorias para dar sua mensagem e artistas com uma postura mais anárquica”.60 Essas variadas vias de mensagem atestam uma diversidade expressiva que tiveram em comum resistir e fomentar, em certo sentido, uma oposição ao truculento governo militar. Quando refletimos a respeito da censura e a forte repressão sobre o teatro de autoria nacional, principalmente a partir de 1968 pós-AI-5, podemos mencionar duas tendências: o teatro político; e o teatro de vanguarda. No caso do teatro político, que designa “uma produção teatral vinculada a um ideário político ou a uma temática social fortemente destacada”61, a intenção política geralmente teve uma orientação de esquerda. Esse teatro foi fortemente reprimido e até interrompido, como sabemos. Mas, o teatro da criação do espetáculo, a censura não sabia muito bem o que era. Era mais difícil de censurar. A 58 FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 1997, p. 23. 59 PELEGRINI. Idem. p. 95, 2000. 60 PELEGRINI. Idem. p. 95, 2000. 61 PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração do seu tempo. São Paulo: Hucitec, p. 15,1999. 41
  • 42. censura ocorria como no caso do espetáculo As Relações Naturais, em nome da moral e dos bons costumes. A censura federal justificou a proibição do espetáculo alegando que este era de “sacanagem”, uma “imoralidade”. Mas, de resto certas intenções no teatro da invenção62 teatral eram muito difíceis de detectar. Sendo assim, são duas linhas diferentes de abordar e questionar as repressões impostas pela ditadura militar: uma com certa identidade de esquerda, marxista; e a outra, a do grupo Teatro Jovem, em consonância com a contracultura norte-americana e européia, que estavam mais interessados nas discussões levantadas por Herbert Marcuse e Wilhelm Reich. Segundo Theodore Roszak, a proeminência da juventude da década de 1960 foi o principal fator potencializador da contracultura dentro da sociedade norte-americana e européia. Nos E.U.A., como em vários países europeus, um pouco mais de 50% da população tinha menos de vinte e cinco anos de idade. Essa grande população de jovens fez com que a juventude sentisse a sua potencialidade, que em grande parte deveu-se à máquina publicitária da sociedade de consumo que dedicou atenção especial a essa consciência etária. À constituição desse grupo de jovens que se agruparam a fim de contestar e manifestar contra os valores tradicionais da sociedade vigente foi chamada de “Força Jovem”.63 Além desses embates que afloravam entre os movimentos sociais e artísticos, havia a questão da cultura popular e da identidade nacional, sendo que a primeira para os intelectuais e artistas poderia ser a matéria-prima primordial. A conceituação de identidade nacional no Brasil se vinculou a questão problemática da cultura popular. Segundo Renato 62 Termo creditado a Paulo Afonso Grisolli, diretor de teatro da década de 1960. As soluções cênicas e de linguagem ficava a cargo do poder criativo e imaginativo do diretor, sendo que o texto era apenas a base para conceber o espetáculo. 63 ROSZAK, Theodore. A Contracultura. São Paulo: Vozes, 1972. 42
  • 43. Ortiz, os intelectuais brasileiros que se propuseram a compreender as crises e os problemas sociais tinham como objetivo “elaborar uma identidade que se adequasse ao Estado Nacional”. Sendo assim, a relação que se estabeleceu entre o nacional e o popular esteve centrado no Estado e fazem parte de duas ordens de fenômenos: enquanto a cultura popular é considerada heterogênea e o saber popular existe na memória das pessoas. Essa “memória coletiva” está na vivência entre grupos restritos e são referentes à manifestações artísticas (o congado é um exemplo desse tipo de cultura). A memória nacional é uma criação histórica, universalista e abrange toda a sociedade na forma de ideologia. Esta é constituída a partir da mediação racional de agentes históricos – os intelectuais – segundo uma interpretação, a qual, o particular (cultura popular) e o universal (cultura nacional) são ligados. Portanto, ocorre que na vida social a dimensão política é uma de suas partes e as relações de poder penetram o domínio da esfera cultural. Geralmente os grupos dominantes da burguesia se apropriam das particularidades da cultura popular para estabelecer um projeto mais amplo – da cultura nacional e os quer como valores de uma sociedade. 64 Nesse sentido, a busca dos valores brasileiros na década de 1960 também esteve cada vez mais em evidência nas artes: um povo festivo, alegre, criativo por um lado; por outro lado um povo vivendo com tudo isso numa conjuntura subdesenvolvida: analfabetismo, mortalidade infantil, pobreza e opressão. As questões nacionais estiveram presentes nas artes em todos os momentos e, de uma forma ou de outra buscou respeitar o valor peculiar e “pitoresco” de nossa cultura. Contudo, devemos dizer que a partir de 1968 tal valorização passou a interagir com os acontecimentos na Europa e na América do Norte. O “novo pensamento político”, uma nova utopia de sociedade, o movimento hippie ou contracultural, ora somavam, ora se opunham aos ideais socialistas e marxista-leninistas. 64 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994. pp. 138-139-142. 43
  • 44. Uma nova utopia, negadora, de um mundo capitalista, cada vez mais globalizado aparecia no cenário político enquanto alternativa de sociedade. Era contracultural porque buscava outra forma de associação diante da cultura burguesa secular. Exposto isso, convém retomarmos as críticas efetuadas e as polêmicas criadas em torno da encenação de As Relações Naturais na década de 1960. Aprendemos com Roger Chartier, e Luiz Carlos Maciel vem nos confirmar isso através de sua leitura produtiva da obra de Qorpo-Santo, que um texto apresenta muitas possibilidades de re-significação; e, sendo assim, a história cultural deve romper: “com a antiga idéia que dotava os textos e as obras de um sentido intrínseco, absoluto, único – o qual a crítica tinha a obrigação de identificar –, dirige-se às práticas que, pluralmente, contraditoriamente, dão significado ao mundo.”65 No entanto, como veremos, não é fácil romper com a idéia de um sentido intrínseco que o crítico deve identificar. Veremos como a polêmica envolvendo Maciel e Yan Michalski fez acirrar dois pontos de vista opostos, sobre a postura do diretor em relação ao texto. Por um lado, Maciel defendia uma leitura livre do texto que, conforme veremos, tem origem em Antonin Artaud e outros teatrólogos; Michalski, por outro lado, esperava que a encenação fosse pura literatura dramática, em que o espetáculo no palco fosse fiel ao texto o máximo possível. 65 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 28. 44
  • 45. 1.2 – A POLÊMICA CRÍTICA DE YAN MICHALSKI A encenação da comédia As Relações Naturais, em 1968, gerou polêmica e tensão entre o diretor Luiz Carlos Maciel e o crítico de teatro do Jornal do Brasil, Yan Michalski, autor de críticas contundentes à concepção cênica adotada na montagem. Yan Michalski assumiu em 1963 a coluna teatral do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, onde permaneceu até 1982. Foi professor assistente do Centro de Letras e Artes da Uni-Rio (1970-1982) e presidente da Associação Carioca de Críticos Teatrais (1974-1976). Publicou diversos livros sobre o teatro: O palco amordaçado (1979); O teatro sob pressão (1985); Teatro e Estado – As companhias oficiais do teatro no Brasil: História e polêmica (1992); Ziembinski e o teatro brasileiro (1995). Faleceu em 12 de abril de 1990. O trabalho dos críticos teatrais, na década de 1960, foi acompanhar a diversidade criativa; e o Teatro Jovem também fez parte da complexa trama cultural desse período. Através de matérias críticas de jornal, nós podemos analisar certas opiniões e julgamentos a respeito da concepção cênica adotada por Maciel na montagem da comédia. Ao refletirmos sobre a participação da crítica teatral na montagem das Relações Naturais pelo Teatro Jovem, devemos levar em consideração a constatação de que Yan Michalski tinha um posicionamento bem definido com relação à maneira da nova geração teatral fazer o seu teatro, e esteve até em conflito com ela. Nesse sentido, vamos averiguar até que ponto Michalski direcionava a sua crítica à linguagem teatral, a partir de um padrão aceitável, convencional, de espetáculo. Uma vez feita tais considerações, entendemos o trabalho do crítico e do artista, duas partes de um mesmo movimento, portanto portadores de identidades, ou campos de atuação 45
  • 46. bastante próximos e até mesmo idênticos. O que vai mudar é o locus do discurso. Em outras palavras, ambos fazem parte de um fenômeno, o artístico, e são produtores de bens culturais. Entendemos esse fenômeno artístico enquanto práticas políticas de oposição ao governo militar. Sendo assim, a comédia As Relações Naturais, montada no Teatro Jovem e dirigida por Maciel, juntamente com as matérias críticas feitas por Michalski sobre a mesma, revelam a diversidade de leituras, de cada parte acerca de uma mesma obra. Estas leituras ocorreram a partir de referenciais pertencentes a determinados grupos sociais, mas que também podem ser bastante particulares, por serem práticas políticas de sujeitos atuantes; estes, envolvidos em processos de apropriação existentes na vida em sociedade. Quando afirmam que a dramaturgia de Qorpo-Santo é teatro do absurdo e comprova-se, ao menos teoricamente, o motivo de tal afirmação, a esse exercício teórico de convencimento se estabelece uma leitura, que se especifica conforme os referenciais de quem formula e ao grupo social a que este pertence. O mesmo ocorre, podemos dizer, com as compreensões do que venha a ser o significado do título da comédia de Qorpo-Santo, As Relações Naturais: para Guilhermino César, defensor da tese do teatro do absurdo, as relações naturais seriam interpretadas como o sexo dentro do casamento; compreensão que está de acordo com o universo moral do século XIX. Luiz Carlos Maciel, por outro lado, entende por relações naturais o sexo livre, sem repressão; interpretação mais livre do termo, mais de acordo com o momento vivido pelo o diretor teatral em 1968 e que tem como referência a linguagem de vanguarda e a contracultura. Ao retomarmos a questão da polêmica entre o Maciel e Yan Michalski temos que dar conta de certos nós que a compõe: o conflito do crítico em face a nova geração teatral, mais experimental e por isso sob o risco do “erro” cênico; as compreensões do que é teatro para cada um: um fenômeno cênico que se utiliza da obra “aberta” para o primeiro; uma 46
  • 47. literatura dramática, em que o espetáculo de palco deve ser fiel ao texto o máximo possível, para o segundo. A partir dessas considerações poderemos analisar: as críticas de Michalski, tendo-as enquanto um discurso estético que se opõe à concepção cênica do espetáculo dirigido por Maciel; e, o quanto essa crítica, isolada no seu viés intelectual esteticista, se afasta da crítica social implícita na montagem e aproxima-se dos motivos, menos estéticos e sim políticos, da proibição do espetáculo por parte da censura. No 1º Caderno do Jornal do Brasil de 15 de maio de 1968, página 16, Yan Michalski empreendeu uma primeira critica ao espetáculo dirigido por Maciel.66 Ele afirmou que a concepção cênica adotada diminuía e amesquinhava o alcance da obra de Qorpo-Santo e que “sobrou apenas grossura”. O crítico de teatro insistiu sobre o caráter poético da obra e, admitindo que o texto da comédia As Relações Naturais dava margens a interpretações que poderiam fugir da “fidelidade convencional”, foi irredutível quanto à leitura de Maciel, alegando que “a infidelidade formal só é aceitável dentro de um clima de respeito àquilo que a obra original tem de mais válido no seu fundo, no seu conteúdo, na sua personalidade”. Por sua vez, Luiz Carlos Maciel disse que a crítica feita por Michalski tinha um viés estetizante, ou seja, o crítico ressaltava o valor da dramaturgia enquanto obra que tem uma estrutura peculiar e que não pode ser alterada. Abrimos um parêntese: não pretendemos aqui resolver os impasses existentes no campo estético. Simplesmente evidenciamos que enquanto o crítico, em sua posição confortável de observador, estrutura seu trabalho a partir da obra; o diretor encontrará a 66 O Jornal do Brasil exerceu grande influência na formação da opinião política do país. A partir de 1957 passou por uma intensa reforma. Em 1960 os classificados passaram a compor um caderno separado (Caderno C), concomitantemente surgiu o Caderno B, voltado para as artes em geral, com destaque para o cinema e o teatro. De 1961 a 1973 consolidou-se a reformulação do jornal sob responsabilidade de Alberto Dines. A grande efervescência cultural existente nos vários campos artísticos foi estímulo para tal reformulação. Nesse sentido, havia grande diálogo entre o Jornal do Brasil e os artistas jovens. O clima de trabalho na redação atraiu intelectuais e jovens jornalistas dispostos a inovar no trabalho jornalístico. (FERREIRA, Marieta de Moraes. A reforma do Jornal do Brasil. In. ABREU, Alzira Alves de. A imprensa em transição. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996, pp. 152-155). 47
  • 48. estrutura da encenação na busca das soluções cênicas criativas. Nesse sentido Maciel afirmou: “Mas havia uma reação intelectual... Eu estava me lembrando o negócio do Yan Michalski, que era uma coisa assim... era uma reação esteticista, que o que chocava as senhoras era essa liberdade em matéria de sexo e para o Yan Michalski era o mau gosto, a objeção estética dos intelectuais, da praça, era que tudo aquilo era de muito mau gosto.”67 A infidelidade descabida da concepção cênica apontada por Michalski, traduzida como mau-gosto, foi aproximada por Maciel da opinião das senhoras dos militares. A nosso ver, essa aproximação tem raízes na revolução sexual como suporte para a crítica, no palco, às relações familiares vigentes. A arte, muitas vezes, é expressa através de uma idéia ou conceito que busca atingir ou criar certo estranhamento na platéia. Portanto, dentro dessa proposta, nem sempre a via expressiva estética é satisfatória ou coerente ao imaginário de quem assiste. Uma outra questão que é importante, tratando-se de teatro, é a receptividade da platéia. Ainda que o nosso trabalho não tenha como objetivo estudar a recepção da comédia As Relações Naturais junto ao público, temos a informação de que a platéia acompanhou a censura federal dessa comédia. Uma matéria publicada no periódico Correio da Manhã de 02 de junho de 1968, 1º Caderno, página 13, com o título Artistas repelem cortes na peça de Qorpo-Santo, atesta que os atores da peça (Célia Azevedo, Carlos Guimas, Dinorah Brillanti, Joel Barcelos, Maria Gladys e Selma Caronezzi) tomaram “a decisão de não assinar o compromisso com a Censura de acolher os cortes que fez e não improvisarem”. Segundo a matéria jornalística, o produtor do espetáculo Ginaldo de Souza assinou o termo 67 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração 1h20min. 48
  • 49. de compromisso apresentado pelo Serviço Federal de Censura, mas este não foi acompanhado pelo elenco citado. O mais importante desse registro jornalístico é o que segue: “com essa decisão, que foi explicada e entendida pela platéia, anteontem, a peça fica interditada por iniciativa do elenco, embora oficialmente liberada pela Censura, depois que a deformou”. Assim, podemos refletir sobre a cumplicidade entre o grupo teatral e a platéia. 49
  • 50. UNIDADE II – QORPO-SANTO E MACIEL – UMA LEITURA SEMIOLÓGICA 50
  • 51. 2.1 – QORPO-SANTO E A PARÓDIA AO REALISMO DAS CONVENÇÕES TEATRAIS A comédia As Relações Naturais destaca-se na dramaturgia brasileira por seu valor de testemunho, sempre marcado pelo conteúdo social. Denota significativo potencial crítico em relação à família patriarcal do século XIX. O exagero, o deboche e a comicidade dramática, referentes ao trato da família, trazem à obra uma tonalidade que escapa à verossimilhança aristotélica 68. Trata-se de uma criação dramatúrgica que visa, não afirmar no texto referências históricas diretas; mas sim criar os motivos dramáticos com transparência, ou seja, Qorpo-Santo representa a resistência às pressões familiares e da sociedade. No entanto ele é, em sua dramaturgia, tanto um observador das relações naturais e sociais; quanto um criador de formas cênicas que revelam a sua condição de interditado no interior dessas relações. A dramaturgia qorpo-santense, composta de 17 comédias, com enredos aparentemente desarticulados, representa constantemente o choque entre a controladora moral patriarcal, elemento da mentalidade da época; e a subjetividade do autor, ou seja, um sujeito que pretende exercer a sua liberdade, mas que deve confrontar a presença marcante de um Estado patriarcal. É neste sentido que vemos surgir a figura do personagem-autor no enredo de algumas peças, como, por exemplo, nas Relações Naturais, o Impertinente. Em As Relações Naturais, os conflitos internos de uma família, refletem os ditames da sociedade patriarcal e escravocrata brasileira. A ideologia do europeu burguês era o 68 “(...) foi constante o emprego do conceito de verossímil na estética, a partir de Aristóteles. ‘Narrar coisas efetivamente acontecidas’ – dizia Aristóteles – ‘não é tarefa do poeta; dele seria a tarefa de representar o que poderia acontecer, as coisas possíveis segundo verossimilhança ou necessidade’. Nesse sentido, verossímil é o caráter de enunciados, teorias e expressões que não contradigam as regras da possibilidade lógica ou as das possibilidades teóricas ou humanas.” ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 1000. 51
  • 52. liberalismo, o livre mercado frente aos entraves do mundo feudal. No Brasil, o liberalismo foi assentado em outras bases sociais, nas quais “não havia uma classe capitalista dinâmica e ativa capaz de dar suporte a um liberalismo genuíno. O elemento burguês radicado no país ligava-se aos segmentos reinóis mais retrógrados, que pugnavam por readquirir seus privilégios coloniais”.69 Tais maneiras de convívio serão defendidas por instituições públicas que passarão, a partir da segunda metade do século XIX, a alimentar a retórica da fidelidade no casamento: discussões sobre o comportamento ideal no casamento, no sexo e na família. A contenção dos impulsos naturais – dos desejos do corpo – constituíam as principais recomendações morais. Somente assim seria possível um enlace feliz. Portanto, uma postura moral que “ambiguamente” surgia “como barreira e como salvação social” foi a vigente na sociedade patriarcal.70 A partir de tais considerações, e entendendo as visões de mundo inscritas nas vozes dos personagens da comédia, podemos vislumbrar os conflitos destes frente aos novos padrões sociais. Observamos a moral patriarcal sendo aos poucos transubstanciada pelos ideais burgueses de casamento, de sexo, de família e de governo.71 Tais preceitos aburguesados também passam a ser testados no decorrer da comédia. Se tivesse sido encenada em seu tempo, a comédia As Relações Naturais poderia ser considerada, dentro da dialética do texto e da cena, uma obra que extrapola as acepções do realismo, uma vez que a redundância cênica, condição da ilusão naturalista, é negada ao texto; e, pela montagem e encenação dirigida por Luiz Carlos Maciel, cem anos depois, podemos ver que a defasagem, ou desequilíbrio entre o texto e a encenação, é uma das principais características dessa obra. A re-significação dada em 1968 remete a um referente 69 MALERBA, Jurandir. O Brasil Imperial (1808-1889): panorama da história do Brasil no século XIX. Maringá: Eduem, 1999, p. 112. 70 AGUIAR, Flavio. Os homens precários: inovação e convenção na dramaturgia de Qorpo-Santo. Porto Alegre: A Nação/Instituto Estadual do Livro, 1975, p.68 e COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.47. 71 BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forence-Universitária, 1981. 52
  • 53. sócio-cultural distinto do referente de 1866; e esta diferença permite ampliar o conceito de realidade representada por esta obra, revelando-se assim obra de vanguarda. Se devemos pensar o texto de Qorpo-Santo com a sua realidade; e também a re-significação de Maciel com a sua, devemos ter em mente as suas próprias condições de produção: “(...) nenhum texto (...) mantém uma relação transparente com a realidade que apreende. O texto, literário ou documental, não pode nunca anular-se como texto, ou seja, como um sistema construído consoante categorias, esquemas de percepção e de apreciação, regras de funcionamento, que remetem para as suas próprias condições de produção. A relação do texto com o real (que pode talvez definir-se como aquilo que o próprio texto apresenta como real, construindo-o como um referente situado no seu exterior) constrói-se segundo modelos discursivos e delimitações intelectuais próprios de cada situação de escrita. (...) O real assume assim um novo sentido: aquilo que é real, efetivamente, não é (ou não é apenas) a realidade visada pelo texto, mas a própria maneira como ele a cria, na historicidade da sua produção e na intencionalidade da sua escrita.”72 Esta nova forma de representação da realidade, em Qorpo-Santo, é a tentativa de representar a incoerência do discurso moralizante do realismo teatral da época, aproximando-a da farsa, da comédia de costumes de um Martins Pena. Tanto em um quanto no outro, as suas sátiras contundentes exploram: os valores éticos e morais conservadores da época, os comportamentos dentro das relações da nova família brasileira burguesa ou da secular família patriarcal. Para compor suas dezessete comédias, todas escritas no ano de 1866, Qorpo-Santo valeu-se tanto da paródia ao realismo teatral, no qual “a representação lenta, depende mais do discurso do que da ação cênica”; quanto do universo dramático da comédia de costumes, que tem uma “movimentação cênica rápida e viva”.73 Abordando temas sobre a família, casamento, sexo, amor romântico e os governos, o dramaturgo trouxe, em suas comédias, uma representação estética do tipo de moral existente na segunda metade do século XIX. 72 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 63. 73 AGUIAR. Idem, p.p.93-94. 53
  • 54. Segundo a teoria do teatro e pela dialética do texto e da cena, a convivência dos dois opostos do universo dramático – realismo teatral e farsa – levou Qorpo-Santo a criar uma narratividade distante da linha temporal cronológica; e próxima de uma seqüência de quadros e acontecimentos distendidos num tempo subjetivo. Transportando estes opostos do universo dramático para o universo moral, temos: o bem, que é representado pela impostação exagerada, como paródia, da intenção moralista do universo dramático realista da época; e o mal, representado pelas confusões alegres da farsa. Ao colocar personagens do bem e do mal a conviverem em cena, o dramaturgo torna risível o bem, a pura moralidade grotescamente lenta e correta; e faz o mal surgir alegre em suas maliciosas intenções. Na comédia As Relações Naturais os personagens mudam de comportamento conforme a conveniência do momento: “Não há confrontos entre o bem e o mal, mas ligações que acontecem através de tênues elos lógicos seja de amizade, seja de cumplicidade dos criados em relação aos amos”.74 Essa linguagem teatral de vanguarda, que abarca universos dramáticos díspares, expressa com fidelidade as “qouzas enxergadas” por Qorpo-Santo, principalmente aquela “qouza” que ele não enxergou: a repercussão de sua obra no grupo social da época, precisamente o terceiro ponto da relação autor- obra-público, de Antonio Candido. Se a sociedade de então não o reconheceu como o seu intérprete, ele fez a sua parte na tríade: foi o agente (autor) de sua produção dramática (obra); soube utilizá-la como “veículo de suas aspirações individuais”; mas não viu florescer o “jogo permanente das relações entre os três”, pela falta do terceiro elemento da tríade, o público, “fator de ligação entre autor e obra”.75 Mesmo assim, retratou com fidelidade as relações proibidas pelo discurso 74 AGUIAR. Idem, p. 94. 75 “Os elementos individuais adquirem significado social na medida em que as pessoas correspondem às necessidades coletivas; e estas, agindo, permitem por sua vez que os indivíduos possam exprimir-se, encontrando repercussão no grupo. As relações entre o artista e o grupo se pautam por esta circunstância e podem ser esquematizadas do seguinte modo: em primeiro lugar, a necessidade de um agente individual que 54
  • 55. moralizante. Mas, conforme ele mesmo diz em poema Censura, publicado na sua Ensiqlopédia, sua obra incomodava aqueles que fizeram de tudo para não florescer esse público: “Minhas obras esqritadas Não podem ser censuradas! Pois estão relacionadas Qom as qouzas enxergadas! Delas são – fiel retrato, Qual de fotografia – acto!”.76 O Estado Imperial, com a ajuda dos juristas, médicos e políticos, procurou ditar e estabelecer os novos padrões de convivência e moralidade. As comédias qorpo-santenses estão, assim, potencialmente em digressão reflexiva com discursos feitos na época para remediar e “curar” a condição humana, desprovida de ética citadina. Mais um fator que torna a sua obra relevante e nos obriga a: “(...) não tratar as ficções como simples documentos, reflexos realistas de uma realidade histórica, mas a atender à sua especificidade enquanto texto situado relativamente a outros textos e cujas regras de organização, como a elaboração formal, têm em vista produzir mais do que mera descrição. O que leva, em seguida, a considerar que os ‘materiais-documentos’ obedecem também a processos de construção onde se investem conceitos e obsessões dos seus produtores e onde se estabelecem as regras de escrita próprias do gênero de que emana o texto.”77 Confinado a um isolamento total por ter sido interditado judicialmente, Qorpo-Santo produziu uma dramaturgia da liberdade e, satirizando o realismo teatral, transformou o tome a si a tarefa de criar ou apresentar a obra; em segundo lugar, ele é ou não reconhecido como criador ou intérprete pela sociedade, e o destino da obra está ligado a esta circunstância; em terceiro lugar, ele utiliza a obra, assim marcada pela sociedade, como veículo das suas aspirações individuais mais profundas. (...) Desejo voltar à relação inextricável, do ponto de vista sociológico, entre a obra, o autor e o público, cuja posição respectiva foi apontada. Na medida em que a arte é (...) um sistema simbólico de comunicação inter- humana, ela pressupõe o jogo permanente de relações entre os três, que formam uma tríade indissolúvel. O público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza, pois ele é de certo modo o espelho que reflete a sua imagem enquanto criador. Os artistas incompreendidos ou desconhecidos em seu tempo, passam realmente a viver quando a posteridade define afinal o seu valor. Deste modo, o público é fator de ligação entre o autor e sua obra.” (CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Nacional, 1985, p. 23-24 e 33). 76 Este poema foi publicado na última página do último volume da Ensiqlopédia, livro 9, junto de mais três poemas, organizados em forma de cruz. 77 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 63. 55
  • 56. palco no lugar do imaginário, e assim, mostrou, retirando as máscaras, o nível de hipocrisia e o absurdo da sociedade patriarcal brasileira do século XIX. Por outro lado, utilizando-se de artifícios metateatrais78, ele compõe uma dramaturgia “que fala de si mesma”, ao parodiar as convenções realistas do teatro de então: em As Relações Naturais vemos a paródia do entreato antes do ato, onde Impertinente, um escritor (representando o próprio autor), a Consoladora e Intérpreta fazem os papéis de atores dos intervalos, antes mesmo de começar a peça: “(Entra ele com uma menina de 16 anos a quem conhecemos por Intérpreta pelo braço.) IMPERTINENTE – (para ela, ao transpor a porta) Cuidado! Não se pise nestes tapetes, que já estão um tanto velhos! (Para o público, andando para a frente:) Já se vê que a escolha que fiz hoje, e que pretendo fazer de uma em cada mês, é a... (Para ela:) Digo? Digo? INTÉRPRETA – Se quiser, pode dizer! IMPERTINENTE – É uma das melhores que se podia encontrar nos maiores rebanhos desta... INTÉRPRETA – Pois chama de rebanhos às famílias que habitam esta cidade!? IMPERTINENTE – Pois o que é mais triste que um grande rebanho de ovelhas merinas!? INTÉRPRETA – Eu sempre considerei de outro modo: sempre entendo que a mulher como o homem é um ente que deve ser por todos respeitado, como a segunda primorosa obra do Criador; e que assim não sendo, só milhares de males e transtornos se observarão na marcha geral da humanidade! IMPERTINENTE – Hã! Hã! Hã! A menina está no mundo da lua! Ainda crê nas caraminholas que lhe encaixam na cabeça, de seu avô torto, visto que segundo as últimas participações espirituais que tivemos, o direito há muito que é morto!” 78 “Metateatro: teatro cuja problemática é centrada no teatro que “fala”, portanto, de si mesmo, se “auto- representa”. (...) Basta que a realidade pintada apareça como já teatralizada: será o caso de peças onde a metáfora da vida como teatro constitui o tema principal. (...) Assim definido, o metateatro torna-se uma forma de anti-teatro, onde a fronteira entre a obra e a vida se espuma. (...) Prolonga a antiga teoria do teatro dentro do teatro: ela continua demasiado vinculada a um estudo temático da vida como palco e não se apóia o suficiente numa descrição estrutural das formas dramatúrgicas e do discurso teatral.” (PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 240) 56
  • 57. Certamente, o dramaturgo explora, na expressão, o metateatro, mas sem deixar de mostrar em cena o conteúdo: os pontos críticos das noções morais na sociedade brasileira do século XIX; suas comédias rápidas buscam dialogar com a realidade lenta da capital da província riograndense. Com efeito, Qorpo-Santo compõe um diálogo entre as críticas divertidas contidas na forma e a crítica social à família brasileira patriarcal do século XIX, no conteúdo. As Relações Naturais revelam imagens da época, não apenas aquelas vivenciadas pelo escritor e dramaturgo, mas também as representações de um mundo em transição. Daí o seu conteúdo versar sobre temas polêmicos como sexo, prostituição, adultério, relações familiares e sociais. Na comédia As Relações Naturais, temos uma família que oscila entre o lar e o bordel; oscila entre a inibição dos “impulsos” do corpo e a realização de seus desejos; e entre aceitar ou não o novo mundo disciplinado burguês. A ideologia dos médicos higienistas79 interpretou o comportamento sexual da família colonial brasileira; afirmou que ela visava a procriação e a satisfação de interesses econômicos; e que o sexo entre os cônjuges não resultava do amor. Esta interpretação serviu de mote para as relações familiares da segunda metade do século XIX, quando a escolha do parceiro passa a ser feita pelo cônjuge, e não pelo pai, e regulada pela noção de amor burguês, romântico e disciplinado para a vida na cidade. E serviu de mote também para o deboche das Relações Naturais. Na comédia As Relações Naturais, os diálogos, ao contrário da representação realista, os discursos dos personagens muitas vezes contradizem as suas atitudes em palco, tornando-se propositalmente incoerentes na representação, ao invés de enganar o público 79 CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiço e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, pp. 30 a 35. 57
  • 58. com a ilusão de uma realidade naturalista.80 Antes, porém, que avancemos neste tema, cabe alertar que nem todas as falas, conforme o texto, devem ser representados, em cena, no seu sentido oposto. O caso do personagem-autor é exemplar. Chamamos de personagem-autor, juntamente com Paulo Bauler81 , àquele personagem que representa o próprio Qorpo-Santo na peça, como é o caso, em As Relações Naturais, de Impertinente, o escritor; o Truquetruque, um pensador; e o Indivíduo, um pai de família rejeitado pelas mulheres. No entanto, queremos chamar a atenção aos personagens cujas falas contradizem a cena. O criado Inesperto, por exemplo, a sua fala contradiz até mesmo aquilo que Qorpo- Santo coloca nas rubricas, na descrição da cena: “INESPERTO (criado) - Por mais que arrume (atirando com uma bota para um lado; com um livro para outro; com uma bandeja no chão; com espanador para um canto; e assim com tudo o mais que se achava arrumado), sempre encontro esta sala, este quarto, ou como o quiserem chamar... câmara, dormitório, ou não sei que mais – desarrumado! Nada, nada, isto não pode continuar assim! Ou hei de deixar de ser criado desta casa, ou as coisas hão de conservar-se nos lugares em que eu arrumo! São honras que a ninguém eu cedo...”82 Neste sentido, Qorpo-Santo já indica à possibilidade de encenar esta comédia com uma defasagem entre texto e encenação. Nesta dialética, portanto, não se pode falar nem de um realismo ilusionista em meio cênico; e nem do absurdo total; trata-se, antes, de uma paródia ao primeiro e de uma farsa da realidade absurda. Nessa linha, desde o início da comédia somos surpreendidos pelo autor que ao utilizar-se de uma espécie de metateatro, começa com um quadro no qual Impertinente, o personagem escritor, contracena com a Consoladora, a qual queria lhe dar “amparo, guia e 80 (Cf.: PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 327) 81 BAULER, Paulo. O manifesto Qorpo-Santo. Disponível na Revista Escrita, no site: www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br. Acesso em junho 2007. 82 QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org. CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969. 58
  • 59. proteção”, recusados por Impertinente. Mesmo diante das chantagens da mulher, o escritor a dispensa. Na cena seguinte, ele aparece fazendo corte a uma “menina de 16 anos”, a Intérpreta, mas ao final vê seus objetivos frustrados. Acontece uma inversão de papéis: antes a Consoladora havia sido desprezada por Impertinente, agora é ele que é desprezado pela Intérpreta. Nessa alegoria, o que se apresenta é que o escritor necessita, de fato, de um intérprete jovem e feminino; mas o que se lhe apresenta é uma consoladora velha e rabugenta; ou melhor dizendo, Qorpo-Santo ironiza a moral consoladora, o bem, representado como a paródia do pesado realismo teatral da época; e corteja a farsa, a perversão metateatral, a beatitude do mal, inocente, alegre e desejado, qual uma menina de 16 anos. A comédia As Relações Naturais foi estruturada em quatro atos, com várias cenas rápidas. Podemos dizer que elas trazem consigo as intenções do efeito dramático que Qorpo-santo queria gerar: os fragmentos do cotidiano, justapostos em planos aparentemente desconexos, mas conectados aleatoriamente, os quais evoluem na direção de uma narrativa não-cronológica; ao contrário do paradigma do realismo da época, com início, meio e fim bem localizados. Outra característica interessante são os nomes dados aos personagens: Impertinente (o escritor), Consoladora (a pretendente do escritor), Intérpreta (a jovem que o escritor deseja sexualmente), Júlia, Marca e Mildona (as filhas de Malherbe e Mariposa, que em cena anterior eram as mulheres da vida), Truquetruque (um velho à porta do prostíbulo), Mariposa (a mãe que oscila entre o lar e bordel), Inesperto (o criado) e Malherbe (o pai da casa). Percebemos que os nomes dos personagens não são desprovidos de intencionalidade. O Truquetruque, um velho com várias artimanhas (truques) para obter informações privadas das vidas alheias e conseguir algumas vantagens. O criado Inesperto, aquele a quem lhe falta esperteza, um indivíduo considerado “menor”, “desqualificado”, “pouco 59
  • 60. hábil” para os valores daquela sociedade. Se entendemos o realismo teatral de Qorpo-Santo como uma paródia, não podemos esquecer que ele parodia desde os nomes. Os valores negativos (in-esperto), atribuídos pela sociedade ao criado, não correspondem àqueles representados na obra, pois eles também são parodiados, mostrando Inesperto consciente de seus direitos e aberto às relações naturais, o que o configura como pessoa bem esperta: “INESPERTO: (...) o que porém é mais notável é que além de me não respeitarem, nem obedecerem – não pagam-me também nem a quinta parte dos salários comigo contratados! Mas nada me hão de ficar a dever! Quando retirar-me, hei de levar o dobro de que houver licitamente ganho, afim de que paguem-me os prêmios, pois não estou resolvido a perdê-los! (...) INESPERTO: (Pega a escada, põe em lugar próprio, sobe, levando a corda, e depois desce.) (À parte:) Estas mulheres não vêem – que não se pode ainda andar com as relações naturais; que se umas querem outras não querem; que se umas podem outras não podem; que... enfim, são o diabo!” 83 Aqui, é preciso abrir um parêntese para explicar a fala citada acima. Neste momento, Inesperto segura o amo (segundo a rubrica do autor, um boneco é usado na cena) e sobe a escada levando-o ao teto, na cena do ritual de enforcamento. Esta fala não corresponde ao pensamento de Inesperto, mas antes à do amo que é malhado. Lembremos que, dentro da recomendação do autor em não se usar ator para representar esta cena, os personagens que malham é que parodiam a fala de Malherbe, malhado como um Judas; e este sim nega as relações naturais. Portanto, se Inesperto sabe participar dessa festa “antropofágica” junto às mulheres, então o seu nome nega o seu modo de ser espirituoso. Ao contrário da idéia de fidelidade conjugal evocada pelo nome da Consoladora, Impertinente é assim auto-designado pelo personagem-autor por parecer e ser um inoportuno escritor que zomba de qualquer ideologia, higienista ou não, para poder ficar ao lado da menina de 16 anos, aquela que deveria ser a Intérpreta de sua própria ideologia, a 83 QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org. CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969, p. 85 e 91. 60
  • 61. da livre expressão na arte e no amor: “Já se vê que a escolha que fiz hoje, e que pretendo fazer de uma em cada mês”. Portanto, o escritor da ficção almeja total liberdade para exercer sua sexualidade. No final desse primeiro ato Impertinente acaba abandonado pela menina e também por Consoladora, em completa solidão que pode representar a punição divina, demasiadamente humana, por ser estética. No universo não ficcional da segunda metade do século XIX, o comportamento libertário de Impertinente diante da moral patriarcal era condenável e passivo de punição. Lembremos que o meio social que julgou Qorpo-Santo, interditando-o judicialmente, foi rodeado pelo o universo judaico-cristão e este era uma das bases morais do patriarcalismo. No cristianismo “as relações naturais corretas” ocorrem dentro do casamento, ou seja, uma vida sexual para ser saudável, impreterivelmente necessita ser “selada” pela instituição do casamento e “abençoada” pela Igreja. A Velha Mariposa, ao reunir as filhas para irem a missa, mostra que pertence a uma linhagem que pratica as relações naturais normatizadas e é mãe cristã devota; no entanto nós as encontramos, todas elas, como “mulheres da vida”. Isso é mais uma constatação do poder inventivo de Qorpo-Santo na escolha dos nomes, a Velha Mariposa e suas filhas transformam-se constantemente, passam da condição de “santinhas” com quem o Indivíduo (outro nome para o autor, depois de ter sido Truquetruque) “queria dormir”; para a condição de beatas, que apenas reproduzem “a pregoeira gaiata da presente época”, como diz uma rubrica da Quarta Cena do Ato Segundo.84 Quando inicia seu expediente ao anoitecer, a Mariposa proporciona aos homens (maridos alheios) certas práticas sexuais não permitidas no cerne do lar, onde a mesma Mariposa exerce sua função de esposa e mãe. O bordel, lugar considerado imoral e quase nunca defendido em público pelos olhos dos “bons” moradores da cidade; atrai justamente 84 QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org. CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969, p. 80 e 82. 61
  • 62. os homens pertencentes à estirpe desses “bons” moradores: nisto consiste a crítica de Qorpo-Santo à hipocrisia da época. E é disso que o Impertinente quer se libertar. A forma expressiva que Qorpo-Santo desenvolveu para poder formar lingüisticamente o “real” é um dos pontos mais privilegiados para a compreensão da mesma. Em poucos minutos, se revelam instantâneos rápidos da realidade”. 85 Nesse texto teatral podemos notar as duas vias de relacionamento existentes entre os personagens de uma família: ora se comportam com o objetivo de satisfazer desejos sexuais (aquilo que não pode ser falado); ora defendem as relações conjugais dentro dos padrões burgueses do amor disciplinador. No segundo ato, cena dois, notamos a ambigüidade em que se encontram os personagens. Truquetruque bate à porta fechada, que logo se abre fazendo aparecer três mulheres, “Uma Dela, Outra e Outra”, “todas de pés no chão e cabelos desgrenhados”. Elas se declaram prostitutas; e é Outra quem diz: “OUTRA – Não sabe que sempre foi um homem honesto quanto a ... e que nós somos todas – prostitutas! É um tolo! Safe-se daqui para fora, Sr. Maroto! Senão, olhe (mostrando-lhe o punho) – havemos de esmurrá-lo com esta mão de pilão!”86 Truquetruque sai de cena e a comédia continua, as prostitutas, então, assumem a estrutura familiar. Do anonimato que estavam ganham nomes. “Uma delas” passa a se chamar “Velha Mariposa”, a mãe; e as “Outras”, viram “Marca” e “Julia”, duas de suas filhas. Uma análise das vozes dos personagens pode ser reveladora das relações entre estes dois grupos de mulheres. Os diálogos entre elas podem demonstrar duas coisas: 1) se convencionarmos que existem aí apenas três personagens (da forma como interpretamos até 85 Cf.: AGUIAR, p. 70. A dramaturgia que Qorpo-Santo apresenta nos textos teatrais são instantâneos rápidos da realidade, são flashes registrados em poucas horas de trabalho, com atos e personagens que espocam em poucos minutos e passam a fazer sentido. 86 QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org. CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969, p. 80. 62
  • 63. aqui, e conforme sugere a lista de personagens do autor), então o teor desses diálogos é o da hipocrisia que caracterizava o relacionamento interno dessa família;87 no entanto 2) se convencionarmos que existem seis personagens, o teor muda e, então, falaremos que se trata de representar uma forma discursiva da época. Neste caso, Qorpo-Santo parece estar mostrando como as pessoas tratavam de modo diferenciado estes dois grupos de mulheres, chamando pelos nomes próprios as mulheres de famílias burguesas; e por nomes de sentido pejorativo as profissionais do sexo. Portanto, tanto a crítica moral quanto a crítica do discurso são conteúdos exploráveis na comédia As Relações Naturais. Uma crítica moral aparece, por exemplo, quando as filhas pedem perdão à mãe, Mariposa, por seus devaneios perniciosos, antes de irem à missa; Este pedido de perdão significa a retomada das normas, mas apenas no momento conveniente. Qorpo-Santo representa, em As Relações Naturais, a família e seu oposto, ao mostrar a transformação do lar em bordel, ambas as instituições seculares que sempre estiveram juntas e, mesmo com o advento do mundo burguês, continuaram coexistindo em estreita ligação na segunda metade do século XIX. Nesse sentido, as vozes dos personagens da comédia ironizam o discurso dos higienistas. Percebemos a intenção do dramaturgo em retratar a sociedade em sua ambigüidade, não se alinhando às intenções moralizadoras e disciplinadoras dos higienistas brasileiros no século XIX. Como nos revela a literatura especializada na temática higienista, o esforço da higiene pública e seu caráter moralizador não conseguiu suprimir, em função da nova disciplina do mundo burguês, os desejos do corpo. Pelo contrário, o 87 AGUIAR. Idem, p. 168. 63
  • 64. ideal burguês apenas transformou as ditas “relações naturais”, que se tornaram cada vez mais antinaturais e fetichizadas.88 Isto se verifica no 3º ato de As Relações Naturais. Com efeito, a transposição dessa análise para a comédia acontece aqui. No 3º ato, cena dois, três personagens, Malherbe, o marido; Inesperto, o criado da esposa; e a Velha Mariposa, a esposa, participam da cena em que os dois primeiros trocam ameaças de socos e cadeiradas. Ao que Malherbe expulsa da sala a ambos, evidencia-se na fala de Inesperto, a existência de “relações naturais”, não entre os cônjuges, mas entre Mariposa e o criado. “INESPERTO – Diz bem, minha ama; vamos nós saindo em boa paz! (enfia o braço na ama). É melhor – velha, feia, má que nenhuma! (abanando com a mão) Adeus, Sr. Estúrdio! Adeus, até mais ver! (Saem.)”89 Esse diálogo faz alusão ao adultério, em sua secularidade, como herança praticada desde a colônia. Na cena seguinte, o que surge é a idéia de incesto, quando vemos entre Malherbe e sua filha Mildona mais do que uma relação pai-filha, mas antes temos aí as “relações naturais”, fora do casamento mas dentro do núcleo familiar: “MILDONA – (entrando) Que saudades eu tinha de meu querido Pai! MALHERBE – Ah! és tu, minha querida Mildona? Quanto é doce vermos feitos de nossos trabalhos de longos anos! Um abraço, minha estimadíssima, minha mesmo queridíssima filha! MILDONA – O Sr. não reparou bem; eu não sou a sua encantadora filha; mas a jovem a quem o Sr. em vez de amizade, sempre há confessado tributar amor! 88 COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979. Além do estudo de Jurandir Freire Costa podemos elencar: BOARINI, Maria Lucia (org.). Higiene e raça como projetos eugenismo no Brasil. Maringá: Eduem, 2003; BRESCIANI, Maria Stella Martins. Liberalismo: ideologia e controle social (um estudo sobre São Paulo de 1850 a 1910). São Paulo: USP. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 1976; CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espetáculo do mundo: Juquery, a história de um asilo. São Paulo: Paz e Terra, 1988. RAGO, Luzia Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar – Brasil 1890/1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985; LARA, Silvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; e CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiço e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. 89 QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org. CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969, p. 86. 64
  • 65. ELE – Ah! onde estava eu!? Sonhava; pensava em ti; via, e não te enxergava! Sim, sois minha; és minha; e serás sempre minha por todos os séculos dos séculos, Amém! (Saem.)”90 Depois disso, ainda no 3º ato, cena quatro, o criado Inesperto explica, em monólogo, que não há lugar no lar para descanso de seus amos, nem em seus próprios dormitórios, referidos no texto como “suas habitações”, ou melhor, a habitação menor do quarto dentro da habitação maior, que é a casa-célula da família burguesa. Esta intranqüilidade decorre de uma frustração sexual que ali predomina, e que ameaça tirar a tranqüilidade da casa toda. Eis aqui a indicação da metamorfose sofrida pelas relações, nas quais tanto homem quanto mulher são fetichizados, comparados ao “xale” e à “botina”, respectivamente; substituindo, assim, as “relações naturais”. “INESPERTO – (entrando pé-ante-pé) Amolei tudo! Não pensem que farão espadas, facas, punhais ou lanças! Mas os amáveis que desprezando todos os direitos dos cidadãos brasileiros, matavam e roubavam a seu belo prazer! O tal meu amo entendia que cada botina que comprava, e que calçava, era uma mulher que condenava ao matadouro de seus desejos! E a tal minha ama procedia do mesmo modo quanto ao xale que a cobria; dizia ( pegando e pondo um xale): isto é masculino, está portanto relacionado com um homem; é novo; e por isso, assim como eu me cubro com ele, também há de me cobrir esta noite um bom moço! E assim é que não havia, Pai, nem filho; Mãe ou filha que pudesse, nem por cinco minutos, ter descanso e tranqüilidade em suas habitações.”91 As ações breves de As Relações Naturais trazem o drama existencial humano e mostra, pela farsa, as condições em que se encontravam a moral e a ética brasileira no século XIX. Nessa comédia a situação dramática gira em torno das relações sexuais fora do casamento, atitude condenável pela moral satirizada. As normas, que permitiam o monopólio do marido sobre a sexualidade da mulher, estão representadas na figura de 90 QORPO-SANTO. Idem, p. 87. 91 QORPO-SANTO. Idem, p. 88. 65
  • 66. Malherbe. 92 A impossibilidade de fugir dessas normas, aceitas pela sociedade, e de manter relações fora do casamento, aparecem na forma de contradições, expressas nos relacionamentos entre três idéias distintas entre os personagens: 1) as intenções de amor livre e de antropofagia entre as mulheres, e mais o criado; 2) as ideologias higienistas de Malherbe; 3) e as sínteses do autor-personagem, através das personagens que representam Qorpo-Santo na comédia. Entre as mulheres, a metamorfose por que passam (de prostitutas a mulheres de família e, por fim, a adeptas das “relações naturais” livres), indica as pretensões do autor em mostrar três momentos no devir do ser apreendido na peça. Em primeiro lugar, as “mulheres da vida” aparecem como significantes das idéias do amor livre, mas elas também têm a sua moral, distinta da ética higienista. Traços dessa moral podem ser verificados no diálogo que mantém com Truquetruque, quando este vai ao bordel: “OUTRA – Não sabe que sempre foi um homem honesto quanto a... e que nós somos todas – prostitutas!? É um tolo! Safe-se daqui para fora, Sr. maroto! Senão, olhe (mostrando-lhe o punho) – havemos de esmurrá-lo com esta mão de pilão! (...) TRUQUETRUQUE – Minhas santinhas; (com muita humildade) minhas santinhas, eu queria dormir com vocês esta noite.” (...) UMA – (para Outra) Não queres ver, Mana, o desaforo, a petulância desse estúrdio!? Querer passar conosco a noite, quando nós sabemos que ele é conde e tem filhos carnais!”93 Por outro lado, as mulheres de família, Mariposa, Julia e Marca, oscilam entre a defesa da “pregoeira gaiata” do discurso moralista cristão; e as fugas constantes para encontrarem-se com seus namorados extra-conjugais. O que vemos na cena quatro do 2º ato é um discurso oposto ao da cena dois do 4º ato; e, no entanto, é a mesma Mariposa que fala: Diálogo 1: 92 AGUIAR. Idem, p. 170. 93 QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org. CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969, p. 80. 66
  • 67. “MARIPOSA – Onde estão? Não me diz? Ainda não me vieram tomar a benção, sendo entretanto mais de oito horas! (Entram os outros filhos.) ELES – (estendendo as mãos) Sua benção, minha Mãe. MARIPOSA – (fazendo sinal com a mão) Deus abençoe a todos, que eu faço em particular a cada um. Sim, meninas, são horas de missa; vamos cobrir nossos véus, e sigamos a orar ao Senhor – por nós e por nossos avós! TODOS – Prontos a obedecê-la, a seguir-la.(Sem todos) (...)” Diálogo 2: MARIPOSA – Pois eu, como gosto muito do meu criado, e ele é mel de abelha, já se sabe o que eu de hoje em diante hei de sempre comer ou beber! (para o marido de papelão): E o Sr., Sr. Tralhão, que não quis acompanhar-nos nas relações naturais, importando-se sempre com direitos; não vendo que o próprio direito autoriza, dizendo que cada um pode viver como quiser e com quem quiser; há de ficar aqui pendurado para eterna glória das mulheres, e exemplo final dos homens malcriados! Contamos (para o criado) com teu auxílio.”94 Concluímos, assim, que a personagem muda o discurso e, ao invés de as mulheres irem à missa, elas pedem o auxílio do criado para prepararem o ritual antropofágico, no qual irão esquartejar e comer Malherbe, por ser “preguiçoso, vaidoso ou orgulhoso”, mas acima de tudo, por ele representar a ideologia repressora das “relações naturais”. Não podemos esquecer que as idéias do personagem-autor fazem a ligação entre estes discursos extremos: os do fogo que recalca e os do fogo que ilumina. Através destes personagens especiais, o autor fala e assume uma posição favorável às “relações naturais” livres; diante da força da repressão moralista da época. Este ritual que se inicia, tem o propósito de restaurar a alegria perdida, o gozo sem o incômodo do trabalho: “IMPERTINENTE – (...) Estou só a escrever, a escrever; e sem nada ler; sem nada ver (muito zangado). Podendo estar em casa de alguma bela gozando, estou aqui me incomodando! Levem-me trinta milhões de diabos para o Céu da pureza, se eu pegar mais em pena antes de ter... Sim! Sim! Antes de ter numerosas moças com quem passe agradavelmente as horas que eu quiser. (Mais brabo ainda) Irra! Irra! Com todos os diabos! Vivo qual burro de carga a trabalhar! A trabalhar! Sempre a me incomodar! E sem nada gozar! Não quero mais! Não quero mais! E não quero mais! Já disse! Já disse! E hei de cumpri-lo! Cumpri-lo! Sim! Sim! Está dito!”. 94 QORPO-SANTO. Idem, p. 84, 91. 67
  • 68. No final da comédia podemos vislumbrar, nos versos cantados pelas mulheres, mais uma evidência de nossa hipótese sobre a defasagem da dialética do texto e da encenação. Conforme vimos, a canção final da peça faz parte de um ritual maior, talvez um ritual antropofágico; mas é a expressão da “alegria da cultura” e, assim, não devemos esperar nada de mau-humor. Se quisermos saber se o que as mulheres falam, na letra da canção, realmente corresponde àquilo que encenam divertidamente no palco, basta comparar esta fala do Impertinente com a última estrofe do poema das mulheres. Impertinente: “Vivo qual burro de carga a trabalhar! A trabalhar! Sempre a me incomodar! E sem nada gozar! Não quero mais!”; Enquanto que, Elas: “Basta o trabalho,/Certo, não falho;/Para vivermos;/E mil gozos termos.” Pelo que vemos nas vozes delas, sabemos que desejam poder “gozar”, no entanto elas parecem cantar o contrário. Mas é inocência imaginar que essas mulheres qorpo-santenses acreditam mesmo “que basta o trabalho” para se ter “mil gozos”. Pela intervenção do personagem-autor, Impertinente, podemos ver que se trata do oposto: trabalhar sim, principalmente quando se é um escritor que parodia as convenções do realismo teatral. Mas não só trabalhar; gozar é fundamental. No entanto, há outras formas de saber que esta canção contém esta paródia. Confira o diálogo 2, acima, quando Mariposa confirma que deseja o criado, da mesma forma que se deseja a comida ou a bebida. Numa interpretação rápida, vê-se aí que ela quer o criado-namorado para manter relações livres; e aí reside um dos motivos de nossa aproximação com o ritual de antropofagia cultural. Verificamos, ademais, que Malherbe, este sim, é dissimulado o bastante (confira acima nossos comentários a respeito do incesto com a sua filha Mildona) para ter esse discurso da canção, justificando a nossa hipótese de que elas cantam satirizando a ideologia dele, mas não falam aí seriamente o que sentem ou pensam. 68
  • 69. Portanto, podemos re-significar a canção abaixo como sendo a galhofa que as mulheres fazem para Malherbe (apresentado na rubrica como o “marido de papelão”), após o ritual de antropofagia em que este é esquartejado, com a ajuda do namorado de Mariposa, o Inesperto. É preciso ter em mente, durante a leitura do poema abaixo, que, no jogo cênico, as atitudes das mulheres enquanto cantam não correspondem ao texto, pois trata-se aqui de enxergarmos a defasagem na dialética do texto e da encenação: “1º - Não nos meteremos Mais com relações; Maridos procuraremos; Pois temos corações! 2º A nenhum mais tentaremos Destruir seus sentimentos! A um só nós serviremos, P’ra não ter duros tormentos! 3º Com nenhum nos contentarmos, Ou a todos não querermos; É assim querer matar-nos, Pondo todos quase enfermos. 4º Tenhamos pois juízo! Cada qual com seu esposo! Se não, não há paraíso! Tudo inferno! – nenhum gozo!” (...) 8º Basta o trabalho, Certo, não falho; Para vivermos; E mil gozos termos.”95 95 QORPO-SANTO. Idem, p. 94. 69
  • 70. Assim sendo, nossa afirmação de que as ações da comédia são representações de conflitos intrafamiliares do meio conturbado em que Qorpo-Santo viveu, decorre da reflexão sobre conteúdo da peça e o seu contexto. Tal exercício teórico buscou investigar os padrões morais da segunda metade do século XIX, mostrados na comédia. A seguir vamos falar sobre a concepção cênica adotada pelo diretor Luiz Carlos Maciel, que entendia a comédia As Relações Naturais como uma ação libertária contra a repressão e pelo amor livre. Certamente, como vimos acima, a sociedade, ou as instituições pautadas pela moral patriarcal, cobrava um controle dos desejos, e este ideal se chocava com os desejos do impulso natural das pessoas, conforme foram representados na comédia. Isso abriu caminho para a leitura empreendida por Maciel. Portanto, o ponto de partida para a interpretação dessa comédia é o da ligação plena entre os contextos dos dois momentos históricos, 1866 e 1968, ou seja, entre uma ideologia repressora; e os anseios pela liberdade sexual através da contestação aos tabus da sociedade, em ambos os momentos. 70
  • 71. 2.2 – LUIZ CARLOS MACIEL NO TEATRO JOVEM A montagem de As Relações Naturais, realizada em 1968, teve a direção de Luiz Carlos Maciel; produção de Ginaldo de Souza; figurinos de Arlindo Rodrigues; o elenco formado por Joel Barcelos, Maria Gladys, Célia Azevedo, Carlos Guimas; e outros componentes do grupo Teatro Jovem, criado por Kleber Santos. Maciel relata em seu depoimento96 fatos relevantes sobre vários tópicos: a vanguarda e a escolha da obra, “uma peça de vanguarda bem maluca mesmo”; sobre Qorpo-Santo, “esse esquizofrênico, que era o verdadeiro avanço”; sobre “equação entre repressão política e repressão sexual”, que são coisas “correlatas” e “intimamente ligadas”; mostra como os autores de sua época afastaram-se da redundância defendida pelos críticos: “a coisa que mais preocupava os críticos de teatro era que o espetáculo fosse fiel ao texto”; e de como os diretores passaram a valorizar a defasagem: “a minha geração foi a primeira que disse que o teatro não era literatura dramática, o teatro é sim um fenômeno cênico”. Antes de enfrentarmos a questão das identidades forjadas na década de 1960 e apreendermos as práticas e as memórias que delas permaneceram nas lembranças de Luiz Carlos Maciel, consideramos necessário explicitar que recorremos aos métodos da história oral para dar conta das proposições desse estudo. A compreensão de como a história oral formulou o seu arcabouço teórico tornou-se ponto de referência para a fundamentação de conceitos relativos às memórias coletiva e individual. Nesta análise, por certo, a memória estabelece um locus, ou seja, “as lembranças das fases da vida se entrecruzam com os 96 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração: 1h20min. 71
  • 72. acontecimentos coletivos. O mesmo acontece com as lembranças dos acontecimentos coletivos”.97 Assim sendo, devemos estar atentos e refletir sobre a memória em suas relações no contexto da década de 1960. Vamos partir da afirmação de Stuart Hall a respeito do impacto das mudanças neste período: “novos movimentos sociais que emergiram nesse período – o feminismo, as revoltas estudantis, os movimentos juvenis contraculturais e antibelicista, as lutas pelos direitos civis, os movimentos revolucionários do ‘Terceiro Mundo’, os movimentos pela paz – foram partes que compunham uma grande oposição, tanto à política liberal capitalista do Ocidente, quanto à política ‘stalinista’ do Oriente; suspeitavam de todas as formas burocráticas de organização e favoreciam a espontaneidade e os atos de vontade política; e refletiam o enfraquecimento ou o fim da classe política e das organizações políticas de massa com elas associadas, bem como sua fragmentação em vários e separados movimentos sociais. Nesse sentido, cada movimento apelava para a identidade social de seus sustentadores”.98 Devemos destacar que os caminhos das memórias, em suas tênues ligações com o processo de sociabilidade, levam-nos à política de identidade de cada grupo. Como lembra Alessandro Portelli, “a ‘memória coletiva’ nada tem a ver com as memórias de indivíduos, não mais podemos descrevê-la como expressão direta e espontânea de dor, luto, escândalo, mas como uma formalização igualmente legítima e significativa, mediada por ideologias, linguagens, senso comum e instituições.”99 Ou, como comenta Henry Rousso a respeito da relação entre a lembrança coletiva e a individual: “Se o caráter coletivo de toda memória individual nos parece evidente, o mesmo não se pode dizer da idéia de que existe uma memória coletiva, isto é, uma 97 POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, pp. 3-15. 98 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 44. 99 PORTELLI, Alessandro. O massacre de Civitella Val di Chiano (Toscana, 29 de junho de 1944): mito e política, luto e senso-comum. In.: FERREIRA, Marieta de Moraes & AMADO, Janaína (Orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 127. 72
  • 73. presença e portanto uma representação do passado que sejam compartilhadas nos mesmos termos por toda uma coletividade”.100 As lembranças de Luiz Carlos Maciel nos possibilitam, hoje, uma reflexão legítima sobre o passado, mas não podemos esquecer que elas são mediadas por ideologia e linguagem bem particulares, e devem ser interpretadas levando-se em conta a sua narrativa, conforme esta é influenciada ora pela razão, ora pelos seus sentimentos a respeito dos acontecimentos que narra. Corroborando para apreendermos a identidade de Maciel com as questões de sua época, suas reminiscências tornam significativos os sentimentos dos jovens de esquerda, artistas e estudantes da contracultura, apoiados em leituras de autores que insistiam na liberdade política e sexual, como Wilhelm Reich e Herbert Marcuse101 , confirmando assim o caráter coletivo de seu depoimento sobre a década de 1960. Descobrimos no seu depoimento, além disso, que, sob a direção de Maciel, também a releitura de As Relações Naturais e a atitude cênica do grupo Teatro Jovem assumiam uma posição libertária: “contra a repressão política, sexual e contra a repressão estética! Então a arte que tinha que ser feita deveria ser des-repressora também!”102 Essa atitude constitui a ocorrência da expressão, enquanto que a posição libertária é o conteúdo da contracultura. Não vamos fazer aproximações com a expressão do teatro 100 ROUSSO, Henr y. A memória não é mais o que era. In.: Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998, p. 95. 101 “Seria instrutivo comparar Marcuse e Reich, do ponto de vista da correlação entre opressão sexual e conformismo. Para este último (...) a opressão sexual gera personalidades dóceis, totalmente influenciáveis por ideologias autoritárias. (...) Para Marcuse, tudo se passa como se, pelo contrário, fosse a liberalização da sexualidade que estimula ao conformismo. (...) À primeira vista, a divergência entre Marcuse e Reich parece reduzir-se a uma ‘querelle de mots’. Podemos dizer que para ambos a opressão erótica leva à formação de personalidades submissas, com a diferença de que para Marcuse essa opressão erótica é produzida, não pela supressão da sexualidade, mas por sua liberação controlada. Mas a discrepância é mais que terminológica: pois não é indiferente, do ponto de vista da coesão social, reprimir através de controles diretos, ou reprimir através de técnicas de liberalização, mesmo parciais. Enquanto os primeiros são compatíveis com uma contestação real, em algum momento, as segundas favorecem a identificação inquestionada com um status quo visto como globalmente racional.”(ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria Crítica e psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986, p. 235 a 236.) 102 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração 1h20min. 73
  • 74. hippie e seu conteúdo; nem com o estilo do grupo norte-americano Living Theatre, cujo conteúdo expressado era de uma outra a liberdade interior do ser humano. A entrevista e os demais documentos nos permitem entender apenas uma parte dessa re-significação de Qorpo-Santo em 1968, pois mesmo o relato, gravado em fita-cassete, de Luiz Carlos Maciel não preenche a lacuna de não termos assistido a esta montagem, nem a outra qualquer, de As Relações Naturais. Mas, ainda assim, devemos partir da entrevista, se não para captarmos a releitura integral do Teatro Jovem, pelo menos ela nos ajudará a pensar em outras releituras possíveis. Quando a presença de Maciel, hoje ainda um homem sóbrio e bem humorado, alcança a história através de sua memória individual, este outrem, que fala ao historiador, fala também sobre o presente: através de suas palavras e de seus gestos, interagindo divertidamente e recuperando a história cultural brasileira com autenticidade. Em um momento de descontração, por exemplo, enquanto ele falava sobre a repressão sexual, o assunto HIV surgiu entre nós e sua opinião abarcou todo este período, desde o presente até a década de 1968: “Na nossa época não tinha HIV, mas tinha a repressão... era aquele negócio: Puxa! a menina que “desse” antes de casar era uma coisa horrorosa! Então havia uma necessidade mesmo dessa insurreição pedindo os direitos sexuais da juventude.”103 Em outro momento da entrevista, quando Maciel fala dos personagens marginais criados por Plínio Marcos, na peça Barrela, Maciel também comenta sobre o problema da violência social no presente: “(...) o teatro de Plínio Marcos que era sobre marginais, presos, que é uma camada da população muito esquecida, muito excluída, muito, muito desdenhada e até odiada, e tudo. Não é a toa que estão atentando agora, estão se vingando. Eles estão dando o 103 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração 1h20min. 74
  • 75. troco, mas numa outra visão totalmente terrorista... O Plínio queria chamar a atenção pra essas pessoas, pra esses marginais da sociedade brasileira.”104 Essa “reconstituição” da história através da memória implica posicionamentos diante de fatos políticos e culturais, capazes de constituir uma identidade do próprio entrevistado, que, em seu depoimento, re-significa os acontecimentos do presente rememorando aqueles do passado; e re-significa também os fatos do passado, tendo por base o presente. Assim, conforme o exemplo acima, Maciel parece sugerir que o tema de Barrela continua atual até os dias de hoje, sobretudo por ainda ser um problema social. Nas entrelinhas, sugere que em situações extremas de violência urbana, de forte repressão por parte do Estado e de suas instituições, o artista deve se expor e reclamar por mudanças. Podemos reforçar essa idéia da identidade de Maciel com a resistência contra as repressões, em todos os níveis, intercalando um texto de 1982, no qual comenta sobre movimento da juventude de 1968 por liberdade, posteriormente destruído pelo AI-5. A partir de 1964, os atos institucionais, entre eles, o Ato Institucional nº5 (AI-5), de 1968, resultaram em violenta repressão sobre o pensamento de esquerda brasileiro, ao qual, grande parte dos artistas de teatro pertencia. Uma “dura realidade” que frustrou os sonhos de sua geração: “O ano de 68 foi aquele agito, aquele agito completo. Quer dizer, foi o momento em que uma geração em todas as sociedades ocidentais mais evoluídas – e o Brasil como país em desenvolvimento também foi envolvido neste processo –, a juventude da época, fez um lance. Um lance fundo, de pretensão juvenil de ser gente, homem feito, e já poder mudar as coisas. As aspirações juvenis vieram ao primeiro plano, como sendo uma tentativa de ‘vamos tomar o poder’. Havia esse sonho em 68. E esse sonho foi frustrado pela dura realidade. Então, para toda esta geração, 68 foi realmente o ano da morte da cultura. Não foi para outras gerações que continuaram cultivando a cultura tradicional e a levando até o ponto em que não sabemos onde poderá ser levada, mas o fato é que, para a visão juvenil da vida, para a maneira de ver dos jovens, 68 foi o momento em que de repente se apostou tudo – e se perdeu.”105 104 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração 1h20min. 105 MACIEL, Luís Carlos. Negócio Seguinte. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, p. 9. 75
  • 76. O depoimento de Luiz Carlos Maciel nos possibilitou, portanto, o “reencontro” com uma das fontes de um passado de resistência à violência e à repressão.106 A partir do momento em que alguém conta a sua história de vida, ele reconstrói sua identidade em relação aos acontecimentos e aos outros. Segundo Michael Pollak: “A despeito de variações importantes, encontra-se um núcleo resistente, um fio condutor, uma espécie de leitmotiv em cada história de vida. Essas características de todas as histórias de vida sugerem que estas últimas devem ser consideradas como instrumentos de reconstrução da identidade, e não apenas como relatos factuais. Por definição reconstrução a posteriori, a história de vida ordena acontecimentos que balizaram uma existência. Além disso, ao contarmos nossa vida, em geral tentamos estabelecer uma certa coerência por meio de laços lógicos entre acontecimentos- chaves (que aparecem então de uma forma cada vez mais solidificada e estereotipada) e de uma continuidade, resultante da ordenação cronológica. Através desse trabalho de reconstrução de si mesmo, o indivíduo tende a definir seu lugar social e suas 107 relações com os outros”. Devemos lembrar que o depoimento de Maciel suscita a representação de momentos de lutas e embates, entre os segmentos sociais vinculados ao teatro e à censura militar. No entanto, é preciso distinguir: o movimento, ou devir, de continuidade dos fatos, cada qual em sua posição cronológica; e os “laços lógicos entre acontecimentos-chaves”, não estereotipados, das lutas sociais vividas por Maciel. Nesse sentido, suas experiências vivenciadas, enquanto sujeito, foram organizadas, em seu depoimento, também dentro de uma lógica, elas não são apenas “relatos factuais”. Quando, na citação acima, ele comenta sobre a “morte da cultura”, ele o faz tendo como referência o ano de 1969, conforme indica o parágrafo seguinte àquele: “No Brasil, particularmente, 69 foi o período em que a repressão começou a se intensificar, porque 68 tinha sido o ano de todo aquele movimento estudantil, toda 106 Nesta fase da história do Brasil o governo militar criou uma Doutrina Política de Segurança Nacional no intuito de frear a propagação do ideal comunista. Neste sentido, qualquer pessoa que criticasse publicamente o Estado poderia ser acusada de inimiga da nação e ser presa pelos agentes da polícia política. 107 POLLAK. Idem. 1989, p. 13. 76
  • 77. aquele agitação, passeatas, a rebeldia generalizada. Os órgãos de segurança entraram no congresso da UNE no interior de São Paulo e acabaram com o movimento estudantil brasileiro. A repressão passou a se intensificar para evitar que aquela agitação acontecesse de novo. Então, 69 foi um ano em que começou muito down (vamos dizer assim), foi um ano repressivo, em que as esperanças juvenis tinham se desfeito. E aqui no Brasil, coincidentemente, foi um ano em que havia essa paranóia crescente em função da repressão crescente.”108 Da mesma forma, não são relatos factuais os encadeamentos lógicos encontrados na entrevista. Um exemplo disso são as relações de causa e efeito entre a dependência da bilheteria e a liberdade na escolha da obra a ser encenada. No “fazer teatral” existem elementos de identificação e empatia entre os artistas, que determinam a união e as atitudes do grupo (produtores, atores, diretor) diante de suas posturas estética e profissional; e de suas posturas política e social. Essa identidade, segundo Maciel, decorria dos esforços que o grupo direcionava à formação de uma “classe teatral” enquanto grupo social particular, que buscava se distinguir dos outros grupos na maneira de ver as coisas, distinguir o “bastante para dar conta de sua situação comum específica dentro da sociedade em que vivemos.”109 Isso significava independência na criação e encenação. Até mesmo a produção da comédia As Relações Naturais, do Teatro Jovem, foi financiada pelo produtor Ginaldo de Souza, com dinheiro próprio,110 não houve patrocínio público ou mecenato, tratava-se de uma produção só dependente da bilheteria, do público pagante e da determinação do grupo: “O retorno era a bilheteria, tinha que ser bilheteria. Tanto é que o Ginaldo quebrou a cara duas vezes e não teve condições de fazer um terceiro espetáculo durante 108 MACIEL, Luís Carlos. Negócio Seguinte. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, pp. 9-10. 109 “A classe teatral constitui um grupo social bem definido. Praticamente todas as profissões o são e é sabido que os artistas de modo geral, mais do quaisquer outros profissionais, gostam de viver em grupo, freqüentar- se com assiduidade, criar interlocuções estreitas e um mundo particular para sua circulação privada quase sempre inacessível aos não iniciados. Por força de sua missão de expressar, conscientizam melhor que a maioria dos outros grupos sociais, a visão de mundo que partilham em cada época. É verdade que entre os trabalhadores do teatro e das demais artes – literatura, pintura, música, cinema etc. – existem diferenças na maneira de ver as coisas, (...) que o são bastante para dar conta de sua situação comum específica dentro da sociedade em que vivemos.” MACIEL, Luiz Carlos. Quem é quem no teatro brasileiro: estudo socio- psicanalítico de três gerações. In.: Revista Civilização Brasileira – ano IV, caderno especial, nº 2, p. 50. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1968. 110 MACIEL, Idem. 2006 & MACIEL, Luís Carlos. Negócio Seguinte. Rio de Janeiro: Codecri, 1982 PP.11- 13-14. 77
  • 78. muito tempo, depois ele voltou a produzir teatro, já em outros esquemas fazendo espetáculo de sexta-feira santa na praça com subvenção da prefeitura, aí ele começou a se virar, muito mais nessa coisa mais contemporânea que se faz teatro com dinheiro público ou dinheiro de empresas particulares. Mas nesses espetáculos o Ginaldo bancava com a grana dele...”111 Essa dependência de bilheteria trouxe alguma independência que proporcionava uma liberdade de escolha: seja da dramaturgia, seja da linguagem, seja da postura crítica diante das questões políticas e sociais. A escolha da dramaturgia de Qorpo-Santo indica para a identidade do grupo com o conteúdo crítico da obra As Relações Naturais, aberto à re-significação. Luiz Carlos Maciel escolhe, para encenar em 1968, a peça As Relações Naturais não por mero acaso, mas antes por ser ele mesmo um integrante da juventude que “fez um lance fundo” com aspirações de “mudar as coisas” e de “tomar o poder”, como se já esperassem por um recrudescimento da repressão militar, a qual vinha crescendo desde 1964. Naquele momento, o seu instrumento de luta e de resistência ao regime autoritário era o teatro; e a escolha da comédia tinha uma lógica bem fundamentada: “Isso correspondia muito ao nosso momento, de nossas próprias vidas. Era uma coisa assim da geração, da juventude daquela época, que brigava contra a repressão sexual e tinha uma bandeira de luta. Nos acontecimentos da época de 68 e tudo, havia uma equação entre repressão política e repressão sexual, se achava que era a mesma coisa ou então coisas tão correlatas, intimamente ligadas... Uma coisa estava ligada a outra, era uma coisa que vinha de Reich, Marcuse também, de que há uma relação entre a repressão sexual e a repressão política...”112 É possível entender a importância atribuída, em 1968, à crítica da ideologia, empreendida pela psicanálise de Wilhelm Reich, contrária à submissão do explorado frente 111 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração 1h20min. 112 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração 1h20min. 78
  • 79. ao explorador, pois ela correspondia aos anseios por liberdade, tanto política quanto sexual. A comédia de Qorpo-Santo também nota os pontos críticos do respeito à moral e à religião; e mostra como esta obediência se reflete no discurso da fidelidade no casamento, exigida pela autoridade patriarcal. Mas na re-significação de Maciel, esta crítica aparece à luz da idéia de repressão sexual em Reich, o “represamento pulsional” como causa do “sistema de valores normativos” e também da “angústia religiosa”. Por outro lado, em As Relações Naturais existe uma tensão constante que força os personagens a manter relações fora do casamento, numa referência direta à hipocrisia de um discurso moral religioso que é, ele próprio, uma farsa do poder para impor sua ideologia: “Só a psicanálise (ou a economia sexual, nome que Reich propõe, nessa fase, para caracterizar sua leitura de Marx e Freud) permite explicar a Umstrukturierung psíquica (a desestruturação e reestruturação) sem a qual a ideologia não pode realizar-se subjetivamente. Qual é essa explicação? É óbvia, à luz do que precede: a condição sine qua non do processo de ideologização é a repressão sexual. Pois é ela que leva, em primeiro lugar, à formação de personalidades débeis, vulneráveis ao poder e indefesas diante da ideologia, fragilidade que resulta da circunstância de que a repressão exige a mobilização de energias consideráveis para manter o represamento pulsional. É ela que, utilizando parte dessas energias psíquicas, não descarregadas na genitalidade normal, cria e consolida a moral, enquanto sistema de valores normativos, os quais, numa ação de retorno, são utilizados para levar adiante o processo de repressão. É ela que predispõe o aparelho psíquico à formação e consolidação da angústia religiosa, igualmente causa e efeito da repressão.”113 Sendo assim, a comédia As Relações Naturais foi, de fato, muito apropriada para o momento, permitiu representar com humor: essa “angústia religiosa”; o “sistema de valores normativos” da sociedade; e, acima de tudo, uma revolução antropofágica contra o “represamento pulsional”. Isso era tudo o que a juventude de vanguarda esperava de uma obra de arte como instrumento de luta contra a repressão sexual. 113 ROUANET, Sérgio Paulo. Teoria Crítica e psicanálise. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986, p. 38. 79
  • 80. “E o assunto do momento era uma coisa relacionada com o conteúdo da peça: é sobre uma condenação à repressão sexual! O Qorpo-Santo fica reclamando da repressão sexual, ele se sentia reprimido, sufocado. Na peça, tem toda uma necessidade em dar vazões aos impulsos, e que as relações sejam naturais. Então as relações naturais significa isso, amor livre, sexo livre, quem quiser fazer...”114 A juventude de vanguarda da década de 1960, para Maciel, tinha o espírito de emancipação, tal como o cinema de Glauber Rocha: “Na filosofia estética do Glauber, o cinema brasileiro deveria ser um cinema de vanguarda, ao nível internacional, uma vanguarda internacional. Isso emanciparia a cultura brasileira da sua condição colonizada, e ditadora [sic], da cultura do primeiro mundo, a européia ou americana!”115 E este espírito de emancipação tinha motivos políticos, a repressão atingia a todos em constantes vigilância e controle do cotidiano da sociedade brasileira.116 As ações desencadeadas pela Doutrina de Segurança Nacional organizaram um complexo de informações que, na década de 1960, foi transformado pelo governo militar em uma Doutrina Política de Segurança Nacional, baseada na ilimitada militarização do meio social: seu centro foi a Guerra Fria: a divisão do mundo entre o Oriente comunista e o Ocidente democrata e cristão. A fim de barrar o avanço comunista essa organização repressora produziu a necessidade de acionar uma contra-ideologia, a se antepor ao avanço do ideário comunista. Nesse sentido, a guerra não mais se restringia ao aspecto militar, mas envolvia a política, a economia, a cultura; e mobilizava amplos contingentes civis e militares. Para a DSN, o inimigo passou a ser interno e qualquer crítica ao Estado passou a ser encarada como a influência das idéias do comunismo no país. Essa visão legitimou a 114 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração 1h20min. 115 MACIEL, Idem. Obs.: Maciel quis dizer que: a “cultura do primeiro mundo, a européia ou americana” é a “ditadora” que submete a “cultura brasileira”, e por isso a vanguarda viria para emancipá-la. 116 PELEGRINI, Sandra C. A. A censura e os embates contra um inimigo em potencial. In.: ROLIM, Rivail Carvalho, PELEGRINI, Sandra Araújo e DIAS, Reginaldo (Orgs). História, espaço e meio ambiente. Maringá: ANPUH-PR, 2000, p. 85. 80
  • 81. ilimitada ação repressora do Estado, e poderes irrestritos aos militares e seus agentes. A delação, a tortura, e a infiltração constituíram alguns dos meios de intervenção utilizados para obter informações e desmobilizar oposições. A desconfiança pairava sobre todos e, pelo que observamos na entrevista, o texto de As Relações Naturais passou pela censura, não por atacar diretamente esse sistema, mas por causa de seu viés reichiano, que não o salvou, no entanto, da proibição da encenação: “(...) consta que aconteceu é que muitas senhoras de militares foram assistir ao espetáculo e ficaram indignadas e chocadas com certas marcações, com certas liberdades que a gente tomava, foram liberdades até pequenas em face de outros espetáculos malucos que vieram depois, que as pessoas ficavam mais nuas. (...) E houve uma ordem militar para a censura do espetáculo, que estava proibido.”117 A indignação das mulheres dos militares tinha origem na leitura que faziam da encenação do espetáculo, no modo como se apropriavam da obra de arte e produziam significados novos para ela. Com efeito, nos parece que a leitura que faziam não lhes permitiam alcançar o sentido mais libertário da comédia: “A leitura é sempre apropriação, invenção, produção de significados. Segundo a bela imagem de Michel de Certeau, o leitor é um caçador que percorre terras alheias. Apreendido pela leitura, o texto não tem de modo algum – ou ao menos totalmente – o sentido que lhe atribui seu autor, seu editor ou seus comentadores. Toda história da leitura supõe, em seu princípio, essa liberdade do leitor que desloca e subverte aquilo que o livro lhe pretende impor. Mas esta liberdade leitora não é jamais absoluta. Ela é cercada por limitações derivadas das capacidades, convenções e hábitos que caracterizam, em suas diferenças, as práticas de leitura. Os gestos mudam segundo os tempos e lugares, os objetos lidos e as razões de ler. Novas atitudes são inventadas, outras se extinguem.”118 Talvez possamos tirar conjecturas a partir dessa reação polêmica das esposas dos militares (sem, no entanto, fazermos trocadilhos com a Mariposa de As Relações Naturais), 117 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração 1h20min. 118 CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP – Imprensa Oficial do Estado, 1999, p. 77. 81
  • 82. lembrando o ponto central da indignação delas, o fato de uma atriz ter realizado uma “mímica”, na encenação da comédia, que elas interpretaram, em sua leitura, como agressiva; mas que no fundo representava apenas uma liberdade interpretativa da releitura de Qorpo-Santo, através de Maciel. Naquele momento, o diretor diante dessa situação adversa, tinha apenas sua forma de expressão para divulgar o conteúdo crítico com que enfrentava, como em um ato político, a censura e a violência. As várias manifestações foram formas de fazer política: o palco foi um dos locais onde se revelou a crítica à sociedade brasileira, muitas vezes, denunciando as injustiças. Este foi um exemplo de uso do palco como um local de protesto político: “(...) as moças usavam uma roupa que o figurinista tinha pintado os peitos e tal, os pentelhos na chereca, sabe? uma coisas assim, mas pintadas, era tudo de mentirinha, mas tinha essas coisas. E durante os ensaios eu dei muita liberdade para os atores improvisarem coisas, porque como o texto tinha essa abertura, se quisessem ficar uma ou duas horas conversando, sobre vários assuntos, até que podia! (...) então tinha umas marcações que inventaram e eu deixei e trouxeram uma atriz conhecida pra fazer isso, que ela fazia uma mímica de abrir a braguilha, tirar o ‘peru’ pra fora e urinar em cima da platéia, mas isso tudo era mímica não acontecia nada. Ela fazia tudo em mímica, e ela fazia questão... ela ficava indignada com a teoria freudiana da inveja do pênis, que as mulheres tem inveja do pênis...”119 Esta manifestação da mímica, a qual aproximamos de seu sentido de protesto político, utilizava-se, na expressão, de um código teatral específico que condizia com o conteúdo vinculado à juventude de vanguarda, a necessidade de liberdade de expressão. Para parte do público, composta de mulheres de militares, o sistema de códigos dominado era outro, elas foram apreendidas pela encenação de modo a interpretá-la como agressiva, ou seja, a expressão ganhou novo conteúdo. Enquanto que os atores, e a atriz que faz a mímica em especial, o diretor e mesmo o autor da comédia transitam por um código 119 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração 1h20min. 82
  • 83. estético livre; este público específico não conseguiu sair de um código ideológico que refletia o regime militar. Com efeito, entre os artistas, por um lado, a performance da atriz, ao “tirar o ‘peru’ pra fora e urinar em cima da platéia”, representava: 1) uma quebra da “quarta parede”, a qual no código específico do teatro é a quebra de “uma parede imaginária que separa o palco da platéia”120, e 2) mostrava uma indignação, segundo Maciel, da atriz “com a teoria freudiana da inveja do pênis”.. Entre a platéia conservadora de 1968, por outro lado, a mesma mímica representava nada mais que pura agressividade. Enfim, esse fato, é sim, por isso, um exemplo de uso do palco enquanto lugar de resistência política, por quebrar a “quarta parede” e enfrentar os representantes do autoritarismo com uma “marcação” livre (aproximando esta performance do “teatro de protesto”); mas é também, e acima de tudo, um exemplo de modos conflitantes de dar sentido a um mesmo fato cênico. Sendo apenas mais uma leitura entre tantas outras, o sentido de agressão atribuído, por estas mulheres presentes no espetáculo, à mímica da atriz, parece ter refletido uma expressão da época, como nos mostra Marcos Napolitano: “Retomemos as três imagens: implosão, fechamento, abertura. ‘Implosão’ porque a partir de 1967, o teatro se fará ‘contra’ o público, tendo como paradigma as peças O rei da vela e Roda viva, do Grupo Oficina, não por acaso exemplo de ‘teatro de agressão’, conforme a expressão da época. ‘Fechamento’ porque, a partir de 1965, se fez um cinema para pequenos círculos, em parte por causa dos problemas de distribuição e da força esmagadora do cinema norte-americano, em parte por opção estética. Finalmente, falamos em ‘abertura’ do público para qualificar o progresso da música popular, pois, nessa área, também a partir de 1965 (com o programa O fino da bossa, por exemplo), o público será potencializado pela entrada das canções engajadas numa impressionante dinâmica de mercado televisivo e fonográfico, confirmando a vocação para a audiência massiva que a música popular brasileira já possuía, antes mesmo da explosão da bossa nova.”121 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro.São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 315. 120 121 NAPOLITANO, Marcos. In.: Estudos Históricos, número 28, 2001. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil da Fundação Getulia Vargas, 1988, p. 105-106. 83
  • 84. No entanto, deste autor não podemos concordar com as idéias de “implosão” do público; nem de “fechamento” ou “abertura” para o público. Preferimos dizer que, no encontro entre as diferentes formas de leitura e as três expressões artísticas referidas por Napolitano, existe no máximo um desacordo entre códigos, conforme nossa análise vem mostrando. Cada grupo social, de acordo com seu código, associa “os elementos de um sistema veiculante” (expressão, ou significante); com os “elementos de um sistema veiculado” (conteúdo, ou significado) e determina o signo teatral. O fato de a música ter formado em torno de si um público que completou um “sistema” parece guiar o raciocínio de Napolitano e, portanto, não queremos dizer que essas idéias não valem: “Delimitarei minha análise em três áreas de expressão: o teatro, o cinema e a música. Essas três ‘artes de espetáculo’ (...) ocuparam a cena principal numa época de ‘relativa hegemonia cultural de esquerda’, entre a segunda metade dos anos 50 e o final da década de 60. No caso da música popular, os anos 60 consolidaram um verdadeiro ‘sistema’ musical-popular, articulando ‘autor-obra-público-crítica’ e instaurando uma nova maneira de pensar e viver a música popular em nosso país.”122 Pelo nosso lado, não vamos delimitar, mas, pelo contrário, vamos ampliar as possibilidades de leitura. Pensamos que não precisa, necessariamente, existir uma “explosão de público” para uma obra de arte ter importância cultural; e nem podemos tomar uma “expressão da época” e cristalizá-la para rotular determinado autor. Talvez a peça O rei da vela, escrita por Oswald de Andrade, possa ser mais aproximada de um “teatro da crueldade”, que nos remete a Artaud123 ; do que de um “teatro agressivo”. Sua encenação, em setembro de 1967, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa, no Teatro 122 NAPOLITANO, Idem. p. 103. 123 “Teatro da crueldade – Expressão forjada por Antonin Artaud (1938) para um projeto de representação que faz com que o espectador seja submetido a um tratamento de choque emotivo, de maneira a libertá-lo do domínio do pensamento discursivo e lógico para encontrar uma vivência imediata, uma nova catarse e uma experiência estética e ética original. O teatro da crueldade nada tem a ver, entretanto, pelo menos em Artaud, com uma violência diretamente física imposta ao ator ou ao espectador. O texto é proferido numa espécie de encantamento ritual (em vez de ser dito em cima do modo da interpretação psicológica). O palco todo é usado como num ritual e enquanto produtor de imagens (hieróglifos) que se dirigem ao incosciente do espectador: ele recorre aos mais diversos meios de expressão artísticos.” PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 377. 84
  • 85. Oficina, causou escândalo por representar um “teatro anárquico, cruel, grosso como a grossura da apatia em que vivemos.” Mas, nas entrelinhas, notamos que não se trata de se posicionar “contra o público”, como fala Napolitano, mas sim com o público. O público revolucionário, claro: “o sentido da eficácia do teatro hoje é o sentido da guerrilha teatral”.124 Mas é bom retomar a interpretação da mímica da atriz como “agressão”. Afirmamos que esta leitura não tem, neste trabalho, todo esse valor, não pode ser considerada a causa de algum fato histórico maior: seja o fato da explosão, seja o da implosão do público. O que nos importa aqui é que Maciel, por exemplo, pôde retomar a sua re-leitura da mímica por outro viés. Enquanto diretor, ele oferecia a seus atores e atrizes uma liberdade de improvisação: “tinha umas marcações que inventaram e eu deixei e trouxeram uma atriz conhecida pra fazer isso, que ela fazia uma mímica”; portanto, não havia essa vontade deliberada de agressão, no máximo a atriz quisesse fazer o seu protesto particular, (“e ela fazia questão... ela ficava indignada com a teoria freudiana da inveja do pênis”) e o diretor soube aproveitar-se disso para a re-leitura de As Relações Naturais. No entanto, esta liberdade cênica adotada por Maciel foi igualmente julgada, por Yan Michalski, crítico do Jornal do Brasil, como “de mau-gosto” justamente por que “sobrou [de As Relações Naturais] apenas grossura” no palco. O crítico teatral pretendia ver a “fidelidade convencional” da “literatura dramática”; obviamente contrária a esta leitura libertária de Maciel: “a literatura dramática apenas havia alimentado esse fenômeno cênico durante muitos séculos. Quer dizer, a gente procurava se colocar na tradição teatralista que existe no teatro ocidental, europeu, desde Olren Grayt, Artaud, Maierhoud que eram teatralistas, 124 MARTINEZ, José Celso. In.: Nosso Século. (1960/1980): sob as ordens de Brasília. São Paulo: Abril Cultural, p. 160. 85
  • 86. que achavam isso. Artaud, então, era o radical desse ponto de vista, o teatro é uma liturgia, um acontecimento, não precisa praticamente de literatura dramática, abaixo as obras primas, ele esculhambava as obras primas: Shakespeare, Sófocles, mas o que interessava era a criação cênica.”125 Quando Maciel se distancia dessa releitura no sentido de “literatura dramática”, ele se afasta também da leitura cênica redundante; e se aproxima de uma defasagem hermenêutica. Com efeito, a teoria do teatro apresenta o realismo das convenções teatrais no interior de uma “dialética do texto e da cena”, a qual se divide em duas partes: “a. Potencialidade cênica do texto: (...) aquele da redundância cênica, a encenação limitou-se a procurar signos cênicos que ilustram ou dão a ilusão, ao espectador, de ilustrar o referente do texto. (...) Esta teoria do texto considera em definitivo que o texto contém uma boa encenação que basta encontrar e que a representação e o trabalho cênico não estão em conflito com o sentido textual, mas a serviço dele. (...) b. Defasagem hermenêutica irredutível: Inversamente parece muito mais justo notar uma certa defasagem entre o texto e a encenação. A partir do momento em que a encenação se liberta de seu papel ancilar frente ao texto, cria-se uma distância de significação entre os dois componentes, e um desequilíbrio entre o visual e o textual. Este desequilíbrio gera um novo olhar sobre o texto e uma nova maneira de mostrar a realidade sugerida pelo texto. A separação é aquela de um fosso intransponível entre o texto e o espaço/tempo onde ele é proferido. Talvez, escreve Bernard DORT, nosso prazer no teatro tenha a ver precisamente com ver inserir um texto, por definição alheio ao tempo e ao espaço, no momento passageiro e na era delimitada do espetáculo. Assim a representação teatral não seria o local de uma unidade reencontrada, mas aquele de uma tensão nunca apaziguada entre o eterno e o passageiro, entre o universal e o particular, entre o abstrato e o concreto, entre o texto e a cena. Ela não realiza mais ou menos um texto: ela o critica, o força, o interroga. Ela se confronta com ele e o confronta com ela. Ela é não um acordo e, sim, um combate.”126 Se a “criação cênica” importa mais a Maciel do que a “literatura dramática”, é porque a “defasagem” entre texto e encenação é mais importante do que a “redundância”. O texto da comédia As Relações Naturais não sofreu alterações, foi usado sem os “cacos”; e, na encenação, o diretor deu margem à liberdade de expressão: “Não tinha muito ‘caco’ de texto, não, não precisava, o texto falava por si só. Na marcação é que havia muita liberdade. Exatamente, a gente teve o cuidado de não botar 125 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração 1h20min. 126 PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 407. 86
  • 87. ‘caco’ em palavras porque o texto havia sido liberado, então se a gente bota ‘caco’ em palavras, tudo podia ser proibido porque aquelas falas não faziam parte do texto liberado pela censura... então eu disse: Não, vamos fazer o texto como eles liberaram! Agora, era na mise en scène que tinha essa coisa libertária, maluca, debochada em muitos momentos.”127 Assim, Maciel pôde usar a idéia da defasagem entre o texto e a cena (“na mise en scène que tinha essa coisa libertária, maluca, debochada”) como um instrumento para burlar a censura (“se a gente bota ‘caco’ em palavras, tudo podia ser proibido”). No entanto, é preciso observar que o termo “defasagem” não é usado por Maciel; e para isso faremos a digressão a seguir. O teatro brasileiro da década de 1960 era bastante conhecido por seu viés politizado, engajado e conscientizador. Mas ocorreu no interior dos embates entre o teatro engajado (CPC, Opinião, Arena, por exemplo) e a repressão por parte do governo militar, o desenvolvimento também do teatro de criação, ou seja, um teatro que dialogava com as vanguardas ocidentais; com diferentes formas de linguagem; e com a contracultura ocidental sobre questões ideológicas. Esse novo formato foi denominado “Teatro da Invenção”, para o qual a dramaturgia continua importante, mas é aberta para a interpretação do diretor e seu poder imaginativo. Segundo Maciel foi o diretor teatral Paulo Afonso Grisolli que elaborou o termo: “Teatro de Invenção, que obriga você inventar, porque se você não inventar nada, você não tem nada! No nosso caso não estávamos preocupados em inventar assim, não tínhamos a obrigação de inventar. A gente tinha apenas a... queríamos apenas reivindicar a liberdade de poder inventar o que nos desse na veneta. Como dava na veneta, se inventava. E com o Grisolli o trabalho era mais programado, uma coisa mais intelectual, pensada como uma espécie de proposta de trabalho: a invenção!”128 Essa estratégia confundia a censura, pois apesar do texto dizer uma coisa no papel, o espetáculo mostrava outra coisa no palco, totalmente diferente. No “teatro de invenção”, o 127 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração 1h20min. 128 MACIEL, Idem. 87
  • 88. diretor passa a ser um co-autor; o teatro transforma-se num fenômeno cênico não restrito à literatura dramática, ao texto. Essa estratégia buscou a liberdade de criação do espetáculo cênico, como assinalou Luiz Carlos Maciel. Por nosso lado, tomamos a liberdade de traduzir esse “teatro de invenção” para o sentido de: expressão da defasagem entre o texto e a encenação. No entanto, podemos refletir sobre um exemplo do uso dessa estratégia frente a censura prévia, no caso específico da segunda montagem de Maciel no Teatro Jovem, a comédia As Relações Naturais, de Qorpo-Santo. Esta comédia, escrita em 1866, ao que indica, não trouxe nenhuma suspeita subversiva aos censores de Brasília; e foi liberada para ser montada e apresentada pelo Teatro Jovem. A estréia da comédia aconteceu no Teatro Nacional de Comédia, na avenida Rio Branco. Tratava-se, portanto, do prédio do governo federal, pertencente ao Serviço Nacional de Teatro. Por trás dessa aparente ingênua intenção, montar uma comédia do século XIX, existiu uma estratégia para obter da censura a liberação do texto e, assim, realizar suas apresentações. “(...) a gente tinha essa estratégia do boi de piranha: botava bastante coisa pra ser cortada; pra eles deixarem... (risos) a gente exagerava para eles cortarem no exagero; e sobrar o resto!”129 Diferentemente do teatro com conteúdo de mensagem política, onde se detectava com mais facilidade a subversão na dramaturgia; no teatro de invenção de Maciel, a censura não sabia muito bem identificar, no texto, o lado subversivo. Era mais difícil de censurar. No entanto, após a estréia tudo mudaria: “E foi assim que As Relações Naturais, num belo dia chegou o documento da censura dizendo que o texto estava liberado, mas o espetáculo estava proibido, e foi assim...” 130 129 MACIEL, Idem. 130 MACIEL, Idem. 88
  • 89. Mesmo descoberta depois da estréia, valeu a estratégia. Os censores militares não conseguiram imaginar a possibilidade de uma defasagem, entre o texto, que censuravam, e a encenação que estava por vir. Onde assentava-se a defasagem na re-significação de As Relações Naturais? Principalmente na leitura reichiana de Maciel, politizada e subversiva. Esta defasagem, tanto no sentido da expressão, quanto no do conteúdo, Bernard Dort a vê como uma “tensão nunca apaziguada entre o eterno e o passageiro, entre o universal e o particular, entre o abstrato e o concreto, entre o texto e a cena”. Mas ainda, no sentido do conteúdo, esta defasagem sugere, entre outras significações e tensões: repressões existenciais e psicológicas sofridas por Qorpo-Santo, ele mesmo enquanto indivíduo, na província de Porto Alegre do século XIX, por um lado; e as repressões políticas sofridas pelos brasileiros após 1964, por outro: “Então agora vamos botar pra quebrar, vamos fazer uma peça de vanguarda bem maluca mesma, porque tem esse autor lá da minha terra, eu não sei se ele é vanguarda ou não, mas ele era louco, sabe? (risos) Isso já tinha uma coisa que, depois, com a evolução dos acontecimentos e o aparecimento da contracultura, a loucura ficou sendo cada vez mais prestigiada. Você sabe que pra você ser considerado uma pessoa com mente avançada, você tinha que ser no mínimo psicótico (risos). Mas enfim, esse esquizofrênico era o verdadeiro avanço, então quem melhor que o maluco lá de Porto Alegre pra gente fazer o espetáculo em cima do texto dele?!”131 A encenação da comédia As Relações Naturais foi carregada dessa tensão dialética entre o texto e a cena. A encenação é a expressão concreta de um conteúdo abstrato, ou aberto à apreensão. A re-significação de Maciel é uma leitura particular da comédia, que é o universal. O aparecimento da contracultura na década de 1960 é temporal e passageiro, diante da obra escrita, eterna e criada pela loucura criativa de Qorpo-Santo: 131 MACIEL, Idem. 89
  • 90. “(...) nas Relações Naturais, que todos os personagens são muito loucos – o autor é o mais louco de todos – então você tinha um espaço pra invenção cênica para um tipo de teatralidade que vai ser, precisa ser, inventada, vai ser criada, ela não está, de maneira nenhuma, determinada pelo texto.”132 Conforme vimos acima, Luiz Carlos Maciel retomou o conteúdo básico de Qorpo- Santo: a crítica à autoridade patriarcal e à sua moral; e a crítica ao casamento e à religião. A partir desse ponto, re-significa, na expressão, à luz da teoria reichiana do “represamento pulsional” como causa do “sistema de valores normativos” e da “angústia religiosa”. Não é difícil verificar que a liberdade interpretativa de Maciel constitui em uma defasagem criativa, a qual, também em seu teatro, passou a ser um sistema veiculante de mensagens políticas. Mas a sua busca não era a de, necessariamente, veicular uma mensagem política; ainda que a força expressiva de As Relações Naturais permitisse e até potencializasse o conteúdo político: O Ginaldo chegou para mim e disse que tínhamos de montar outra. Eu peguei uma outra peça em um ato, daquele autor gaúcho do século passado, Qorpo-Santo, chamada As Relações Naturais. Este texto foi enviado para a cesura e passou. Mas o espetáculo era muito louco, na perspectiva das coisas que estavam acontecendo na época: teatro da nudez, moda de Marcuse, ser contra a repressão sexual, essas coisas que o Fernando Gabeira brilhantemente aponta como questões da nossa sociedade atual e já eram questões naquela época de 68, pois já estavam na pauta de muita gente. Ficou um espetáculo meio desaforado, meio debochado. Tinha um figurino de Arlindo Rodrigues em que as mulheres não ficavam nuas, mas as roupas estavam pintadas com peitos, xoxota e pentelhos. Nós estreamos e, cinco dias depois, começou a fofoca porque a gente fez o espetáculo no TNC e a crítica malhou. O Yan Michalski analisou o espetáculo dizendo que a gente tinha reduzido os dons poéticos do Qorpo-Santo a uma debilidade mental. Eu escrevi um artigo em resposta sobre repressão sexual e Wilhelm Reich. Claro, o Reich estava na moda. Era um espetáculo de desrepressão, era maluquinho mesmo, mas era um lance do que estava acontecendo no momento.”133 A geração de 1968 foi a primeira a compreender o teatro enquanto fenômeno cênico e se dispôs a empreendê-lo. Ela não tratou o teatro apenas com o realismo dramático, ou 132 MACIEL, Idem. 133 MACIEL, Luís Carlos. Negócio Seguinte. Rio de Janeiro: Codecri, 1982, pp. 13-14. 90
  • 91. seja, não o tratou pelo viés da “redundância” dramática, mas sim pela “defasagem” entre texto e a encenação. O fenômeno cênico da defasagem, imprimia maior liberdade de criação ao trabalho do diretor, muitas vezes, transformado-se em co-autor da dramaturgia. Se a loucura estava “cada vez mais prestigiada”, em função da contracultura em moda, isso aconteceu, em grande parte, por causa de Artaud, que deu prioridade à autonomia da encenação em relação ao texto. Maciel, entendendo a força expressiva dessa autonomia, na mise em scène do grupo Teatro Jovem, fez valorizar ainda mais a obra já monumental de Qorpo-Santo. Entre as propostas da prática teatral de vanguarda, as de uso mais correntes foram experimentadas primeiro por Artaud: a criação coletiva; a invenção e improvisação da cena; a importância do gesto e da expressão corporal; as formas de comunicação não- verbal; a quebra da “quarta parede”; happening; performance; e body art, todas propostas envolvendo o fenômeno cênico, o plano principal de atuação da “defasagem hermenêutica”: “O teatro, arte independente e autônoma, deve por si próprio, para ressuscitar, ou simplesmente para viver, marcar bem o que o diferencia do texto, da palavra pura, da literatura, e de todos os outros meios escritos e fixados. Pode-se perfeitamente continuar a conceber um teatro baseado na preponderância do texto, e num texto cada vez mais verbal, difuso e cansativo, ao qual estaria submetida à estética da cena. Mas esta concepção, que consiste em fazer sentar personagens num certo número de cadeiras ou de sofás colocados em fila e em contar histórias, por mais maravilhosas que sejam, talvez não seja a negação absoluta do teatro... seria mais a sua perversão.”134 A palavra liberdade foi a haste das bandeiras de luta dessa geração: contra a repressão sexual do jovem; contra a repressão política; e pela livre inventividade da linguagem nas peças teatrais. Para Maciel, a proposta de liberdade de criação da sua geração foi vitoriosa: 134 ARTAUD, Antonin. Carta a B. Crémieux, 1931. In.: DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 156-157. 91
  • 92. “Essa proposta de luta foi plenamente vitoriosa, porque às novas gerações que vieram isso passou a ser lugar comum, passou ser o que todos os diretores queriam fazer. Gerald Thomas nunca se preocupou em pegar um texto pra montar, ele cria o texto que é parte do espetáculo dele. Tanto é que, se você quiser montar um texto do Gerald Thomas, ele não deixa. Ele diz: O texto do meu espetáculo é feito 135 a luz do espetáculo, feito a mise en scène, é feito o cenário, feito a direção dos atores, como é que vai tirar, desligar esse texto do resto, do resto da expressão do espetáculo?! Não pode. Mas isso foi... É nisso que minha geração teve um trabalho pioneiro. Os diretores começaram a fazer isso de diferentes maneiras, com diferentes ênfases, e tudo.”136 Mas é preciso reconhecer que aprendemos algo mais com Luiz Carlos Maciel, que o texto “é feito a mise em scéne”. Se o texto é de uma natureza idêntica à natureza da mise em scéne, isto significa para nós que a expressão, ocorrência concreta e livre de seu espetáculo em 1968, trouxe novos conteúdos, ou antes, novos sentidos à comédia As Relações Naturais, sentidos, aliás, de natureza idêntica à sua expressão. Entendemos que Maciel nos mostra que a apropriação de um produto cultural, como a obra de Qorpo-Santo, deve ser feita através de uma leitura produtiva. É preciso ousadia para re-significar, aproximar da leitura novos sentidos, totalmente inesperados. Um outro autor gaúcho, Luiz Antonio de Assis Brasil, em 1987, deu-nos um exemplo de como re-significar toda uma época, ao criar personagens e acontecimentos para seu romance de ficção Cães da província, inspirados em pessoas e fatos da Província de Porto Alegre no século XIX. Com a precisão de um ficcionista e o critério de um historiador, Assis Brasil apresenta-nos uma composição artística de sensações inspiradas em documentos variados, desde as obras de Qorpo-Santo, como As Relações Naturais, até as pesquisas das notícias de jornal. Ele consegue criar o ambiente da Província apropriado para situar o protagonista Qorpo-Santo, em uma narrativa que une fantasia a fatos e descrições históricos: 135 Maciel usa o termo “é feito” no sentido da fórmula cultural: “Esta coisa é feito aquela outra!” Isto é: “Esta coisa é da mesma natureza daquela outra. Assim: “o texto do meu (de Gerald Thomas) espetáculo” é da mesma natureza daquela coisa, daquela “luz do espetáculo”, daquela “mise em scéne”, daquele “cenário”, da mesma natureza da “direção dos atores”. 136 MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração 1h20min. 92
  • 93. “Qorpo-Santo atira longe as cobertas, sufoca-se, mesmo na imensidão do quarto solitário, não consegue dormir. Às apalpadelas, estende a mão para o lado, a mulher não está ali. A cada noite repete o gesto, só para depois constatar que de fato está apartado de Inácia há um bom tempo, sem possibilidade de reconciliação. E as relações naturais, como é que se podem processar, desse jeito? Levanta-se, toca uma sineta, abre as janelas. A cidade, adormecida. A rua da praia é uma débil linha de amarelados pontos de azul, os malditos lampiões que largam um cheiro enjoativo de óleo de baleia. Do rio vem um ar gordo, pesado, de água, e que no largo da Quitanda se mistura com o fartum das frutas apodrecidas, chegando ao seu nariz como o fedor da Humanidade. Durmam, rebanho!, diz bem alto para a seqüência dos telhados baixos, mal entrevistos na meia-luz do céu branquejante.”137 Nós não vamos fazer como Assis Brasil, na seqüência deste trabalho, não criaremos uma re-significação ambientada no século XIX. Apesar de sua imaginação nos fazer transportar para a própria rua de Qorpo-Santo na “cidade adormecida”, e ouvi-lo gritar pela janela “durmam, rebanho!”; e apesar de entendermos que a releitura de Assis Brasil nos traz uma bela re-significação do dramaturgo em sua época; não vamos seguir este caminho. Interessa-nos, antes, ampliar as possibilidades de ambientação, para que cada época e cada cultura, ao aproximarem-se das culturas popular e primitiva, possam fundir suas próprias composições de ambientes em cada encenação possível da comédia de Qorpo-Santo. Ainda que não pretendamos fazer o mesmo que eles, nós vamos seguir os exemplos de Maciel e Assis Brasil, vamos ampliar, neste trabalho, as possibilidades de re- significação de As Relações Naturais, buscando, como diria Roger Chartier, novas maneiras de utilizar este produto cultural, mergulhando-o na diversidade de interpretações. Para tanto, tomaremos como ferramenta de trabalho da história cultural a semiologia teatral, conforme veremos na próxima unidade. 137 ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Cães da Província. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003, p. 46. 93
  • 94. UNIDADE III - A ATUALIDADE CRÍTICA DE AS RELAÇÕES NATURAIS 94
  • 95. 3.1 – A SEMIOLOGIA TEATRAL E A RE-SIGNIFICAÇÃO NA EXPRESSÃO E NO CONTEÚDO DA OBRA Conforme analisamos na unidade anterior existem diferenças entre as leituras da expressão mímica da atriz, em sua performance na comédia As Relações Naturais. Isto é, nós podemos re-significá-la de quatro modos, no mínimo: a) ou como indignação da atriz contra a teoria freudiana da inveja do pênis; b) ou como protesto contra as repressões sexual e política; c) ou como expressão de conteúdo agressivo; d) ou ainda como expressão de mau-gosto, conforme disseram alguns críticos teatrais. Esta diferença consiste na correlação, ou não, entre a “leitura produtiva do encenador”, no “plano da expressão”; e a “leitura receptiva do espectador”, no “plano do conteúdo”. Para darmos conta da semântica dos signos, dentro da complexidade do espetáculo, seria mais adequado falarmos da semiologia do teatro: “o signo é concebido como o resultado de uma semiósis, isto é, de uma correlação e de uma pressuposição recíproca entre plano da expressão (significante saussuriano) e plano de conteúdo (significado saussuriano). Esta correlação não é dada de imediato, ela se acha instituída pela leitura produtiva do encenador e a leitura receptiva do espectador. Estas funções significantes em ação na representação dão uma imagem dinâmica da produção do sentido: elas substituem uma tipologia ou um inventário de signos e uma concepção mecanicista de códigos de substituição entre significados e significantes; elas permitem um certo jogo na decupagem dos significantes e demarcam significados ou significantes ao longo do espetáculo.138 A cultura flui no universo simbólico das sociedades para se materializar na criação de expressões que dão sentido à vida e ao mundo. Embora de forma diferente das artes, a comunicação de massas, na década de 1960, intensificou a circulação do conteúdo 138 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro.São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 351. 95
  • 96. global.139 No Brasil, muito antes de 1968, meios de comunicação como o rádio, as revistas e os jornais, já faziam parte da vida cotidiana nas maiores cidades brasileiras e passaram, cada vez mais, a atribuir sentido aos hábitos das populações urbanas. A televisão foi o veículo de contato com a cultura global e sua grande divulgadora; o telejornalismo que foi implantado buscou seguir os padrões dos telejornais dos E.U.A. Contudo, os jornais e revistas impressos e o rádio eram de maior circulação que a TV; mas esta, logo a seguir, simbolizou mais uma fase na concretização da rede de comunicação de massa, divulgadora dos produtos industrializados, culminando com o desenvolvimento e o estabelecimento definitivo da sociedade de consumo. “De 1960 a 1969, em cada ano desta década, em cada um dos cinco continentes, em quase todos os 145 países de vários sistemas políticos, o mundo conheceu a rebelião dos jovens. Ao lado das guerras – mais do que o sexo –, as manchetes dos jornais falaram da odisséia de 519 milhões de inconformados. Mutantes da nova ‘era oral e tribal em dimensões planetárias, produzida pelas comunicações de massa’, segundo Marshall McLuhan, os jovens entre 15 e 24 anos – um sexto da população da Terra – são ao mesmo tempo mito e desmistificadores da sociedade. Consumindo e consumidos, contestando e contestados, eles lutaram com todas as armas para destruir o velho e impor o novo.”140 Dentro deste contexto, Maciel fez a re-leitura de As Relações Naturais, em 1968, assumindo uma atitude muito mais voltada à arte marginal; do que aos jovens “pequeno- burgueses” que fundaram o Teatro Brasileiro de Comédia em 1948. Conforme relata em um texto de 1968: “Os intelectuais pequeno-burgueses, em conseqüência do próprio avanço de sua classe, sentiram necessidade de falar mais alto. Sem acesso aos grandes meios de comunicação com a massa, na época (jornal, rádio e cinema), alguns deles encontraram no teatro uma solução menor, insatisfatória, mas inevitavelmente tentada em nome da cultura e caráter sagrado da arte. Embora a invasão tivesse tido pouca ou nenhuma importância 139 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005, p. 50. Hall nos explica sobre o grande impacto do processo de globalização sobre a identidade nacional imaginada, que cada vez mais está sendo deslocada pela globalização da cultura. 140 VENTURA, Zuenir (Org,). Os anos 60. A década que mudou tudo. In.: MARQUES, Adhemar Martins. História do tempo presente. São Paulo: Contexto, 2003, p. 186. 96
  • 97. para a dinâmica das relações de poder, em nosso corpo social e político, a situação 141 interna de nosso teatro sofreu (...) uma transformação radical.” Nesse sentido, a estética da utopia revolucionária, geralmente, vinculada a uma expressividade artística mais comprometida com a mudança da realidade política e social brasileira foi se tornando inconciliável com a lógica econômica burguesa. Em 1953 surgiu o grupo Teatro de Arena, como um grupo experimental dentro do Teatro Brasileiro de Comédia; alguns anos depois Augusto Boal dirigiria Ratos e Homens, no Arena; e Gianfrancesco Guarnieri encenaria Eles não usam black-tie. Os espaços teatrais se transformaram em lugares destinados a debates a respeito dos problemas brasileiros. Às vezes até criticando os meios de comunicação de massa, os “artistas da geração posterior ao TBC”, mais os intelectuais e o público, estimulados e abertos para novas formas expressivas, dialogavam com a estética da cultura popular brasileira e debatiam sobre os rumos da cultura: “o projeto original da geração posterior ao TBC foi, não mais a ascensão social, mas a transformação da sociedade. Seu processo de amadurecimento humano e artístico coincidiu com um processo geral de radicalização política verificada no Brasil, no início da década de 60. Esses jovens pequeno-burgueses, marginalizados como seus colegas mais velhos, embora dotados do mesmo apuro estético e cultural que eles, descobriram um sentido mais amplo para seu conflito original com os valores tradicionais: a esperança de uma sociedade mais justa e mais humana. Iniciou-se um processo quase geral de esquerdização do teatro brasileiro. Ninguém queria mais ser grã-fino; pelo contrário, aspirava-se por um teatro popular. Ninguém mais se encantava com a Forma, a Beleza ou a Arte; pelo contrário, queria-se entregar às platéias mensagens filosófica e politicamente conseqüentes. Tal projeto, infelizmente, não foi isento de sonhos vãos. Na verdade, chegou quase a ser dissolvido pelo golpe militar de abril de 1964.”142 141 MACIEL, Luiz Carlos. Quem é quem no teatro brasileiro. In.: Revista Civilização Brasileira. “Caderno Especial”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Ano IV, nº 2, jul/1968, p. 53. 142 MACIEL. Idem.. P. 58. 97
  • 98. A busca de novas formas expressivas e idéias que circulavam no meio teatral foi intensa até 1964. Novas formas teatrais, novos espaços para apresentação de seus espetáculos, novo público. Nesta busca, a influência estrangeira poderia ser acrescentada à expressão da juventude de vanguarda, mas o que deveria prevalecer no conteúdo era a realidade local, tal como a cultura popular brasileira. No entanto, o teatro engajado, após 1964, foi se desvinculando da cultura genuinamente brasileira, gradativamente encobertas pelo discurso preparado pela indústria da cultura do entretenimento. Maciel segue o caminho de uma arte marginal e revolucionária, de caráter reichiano, independente do sistema industrial, e por isso pôde criticar tanto a geração do Teatro Brasileiro de Comédia, quanto a posterior, que não lograram esse intento: “No fundo, a geração posterior ao TBC não soube levar a termo um rompimento efetivo com a tradição – já então inadequada – estabelecida pelos seus antecessores do TBC. (...) Sob a aparência externa de seu ímpeto, portanto, escondia-se seu caráter submisso e passivo. Embora mais conscientes, os novos pequeno-burgueses sentiam-se fiéis continuadores dos mais velhos. Recolheram deles, e os aceitaram, todos os valores existenciais, promulgados então para a classe teatral, inclusive a humanidade em face da Arte, a disposição para sacrifício etc, que juntamente com o novo sentimento de luta heróica por causa humanista, os tingiu de masoquismo. Essa postura existencial talvez possa ser melhor compreendida se for comparada com as dos jovens da mesma geração que criaram o Cinema Novo brasileiro. Ao contrário do teatro, o cinema é uma indústria. Em conseqüência, o processo da marginalização não foi tão profundo neles. E, em segundo lugar, a tradição anterior do cinema brasileiro não lhes merecia o respeito que se votava ao teatro do TBC: era a desprezível chanchada que precisava ser erradicada para sempre e substituída por um cinema moderno e empenhado. Os jovens cineastas realizavam, na sua área, da noite para o dia, um salto que levara duas décadas para ser completado na área do teatro. O rompimento que efetuaram foi radical: inventaram um novo modo de produção (‘a câmara na mão e a idéia na cabeça’) e, neles, não havia timidez alguma, mas muito espírito de aventura e muito drive. Em conseqüência, mostraram-se também mais resistentes à frustração de 1964 do que os seus companheiros do palco.”143 Quando Maciel faz a sua crítica à geração do Teatro Brasileiro de Comédia, e volta a fazer a mesma crítica à geração posterior ao Teatro Brasileiro de Comédia, o que ele 143 MACIEL. Idem.. P. 59-60. 98
  • 99. critica é a convenção tradicional do teatro, sustentada pela primeira; e continuada fielmente pela segunda geração. “Pequeno-burgueses” o bastante para não ousarem uma revolução cênica, estes falsos “marginais” não conseguiram fazer aquilo que Antonin Artaud propunha, a libertação da tirania do texto. Conforme vimos, em Artaud, o teatro “baseado na preponderância do texto” tal qual o seguido pelo Teatro Brasileiro de Comédia, seria considerado “perversão” do teatro. É isso que nos mostra Jacques Derrida sobre a crítica de Artaud ao teatro tradicional ocidental: “O Ocidente – e essa seria a energia da sua essência – sempre teria trabalhado para a destruição da cena. Pois uma cena que apenas ilustra um discurso já não é totalmente uma cena. a sua relação com a palavra é a sua doença e ‘repetimos que a época está doente’ [Artaud]. Reconstruir a cena, encenar finalmente e destruir a tirania do texto é portanto um único e mesmo gesto. ‘Triunfo da encenação pura’. Este esquecimento clássico da cena confundir-se-ia portanto com a história do teatro e com toda a cultura do Ocidente, ter-lhes-ia mesmo assegurado a sua abertura. E contudo, apesar deste ‘esquecimento’, o teatro e encenação viveram esplendidamente durante mais de vinte e cinco séculos: experiência de mutações e agitações que não podemos desprezar, apesar da pacífica e impassível imobilidade das estruturas fundadoras. Não se trata portanto apenas de um esquecimento ou de uma simples recobertura de superfície. Uma certa cena manteve com a cena ‘esquecida’ mas na verdade violentamente apagada, uma comunicação secreta, uma certa relação de traição, se trair é desnaturar por infidelidade mas também de si deixar-se traduzir e manifestar o fundo da força. Isto explica que o teatro clássico, aos olhos de Artaud, não seja simplesmente a ausência, a negação ou o esquecimento do teatro, não seja um não- teatro: antes uma obliteração deixando ler o que ela recobre, uma corrupção também e uma ‘perversão’, uma sedução, a distância de uma aberração cujo sentido e medida só aparecem acima do nascimento, na véspera da representação teatral, na origem da tragédia.”144 Como nos mostra Jacques Derrida, para Artaud havia, no teatro clássico, uma “certa relação de traição”, ao insistir no “esquecimento da cena”; ao criar uma cena que “apenas ilustra um discurso”; e ao “trabalhar para a destruição da cena”, seguindo a tradição do ocidente. Isso nos faz lembrar da forma irônica de Qorpo-Santo tratar o realismo das 144 DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 155-156. 99
  • 100. convenções teatrais da época: metamorfoseando-o pela paródia das convenções do realismo. Conforme já vimos, na análise semiológica de As Relações Naturais, as personagens mulheres, que cantam ao final da peça, não levam muito a sério, na encenação, o que manda o texto “moralmente correto”. A cena recomendada pela rubrica para se tornar ocorrência concreta, que deve de fato ser representada no palco, enquanto cantam, é a cena de um alegre ritual. Com a ajuda da semiologia teatral, nós vamos retomar a seguir esta cena, a qual denominamos acima apenas como ritual antropofágico, num diálogo com a cultura brasileira da semana de 22, e re-significá-la de quatro outros modos diferentes. 100
  • 101. 3.2 – OUTRAS POSSIBILIDADES CÊNICAS DE AS RELAÇÕES NATURAIS Vamos tomar como hipótese a possibilidade de encenação de As Relações Naturais no século XXI; isto é, vamos lançar as bases interpretativas para uma possível “ocorrência concreta do elemento pertinente da expressão” a partir de uma nova re-significação. Com a aproximação de novos significados, pretendemos potencializar a re-leitura dessa obra. No quarto ato vemos o início do ritual, no incêndio da primeira cena, com as presenças dramáticas dos elementos fogo e água. Este ritual pode ser re-significado, com a ajuda da semiologia teatral, enquanto expressão de outros conteúdos culturais. Com efeito, podemos interpretá-lo como expressão de: 1) conteúdo modernista; 2) conteúdo religioso; 3) conteúdo de cultura popular; 4) conteúdo de cultura primitiva. Desde já, podemos falar da presença rápida do fogo pela peça. Vejamos a rubrica, a qual parecerá, aos olhos desavisados, muito mais um conto do que rubrica: “ Tudo corre; tudo grita (mulher; filhos; marido; criado, que por um dia foi amo do amo). Incêndio! Incêndio! Incêndio! Venham bombas! Venham água! (É um labirinto, que ninguém se entende, mas o fogo, a fumaça que se observa não passa, ou o incêndio não é real, mas aparente). Pegam em barris dágua, em canecas ou outros vasos; e todos atiram água para o ar; chega uma bomba pequena, e com ela também atiram água, por espaço de alguns minutos, mas o incêndio parece lavrar com mais força até que se extingue ou desaparece.”145 É evidente que esta rubrica indica toda uma situação dramática, e não apenas convenções teatrais. A consciência de que a encenação deveria mostrar um fogo ritualístico e uma água transcendental que tudo apaga (“o incêndio parece lavrar com mais força até que se extingue ou desaparece”) faz com que Qorpo-Santo indique uma cena toda através 145 QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org. CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969, p. 89. 101
  • 102. da rubrica, em que aparece, à primeira vista, a família diante de um lar em desmoronamento. Mas não podemos ler o fogo (para falarmos primeiro deste elemento da natureza) pela ótica da destruição; em nossa releitura vamos falar em uma “purificação”, ou seja, conforme Gaston Bachelard: “O recalque está na origem do pensamento atento, reflexivo, abstrato. Todo pensamento coerente é construído sobre um sistema de inibições sólidas e claras. Há uma alegria da rigidez no fundo da alegria da cultura. O recalque bem conduzido é dinâmico e útil na medida em que é alegre. (...) Mas quão mais forte é esse gozo, quando o conhecimento objetivo é o conhecimento objetivo do subjetivo, quando descobrimos em nosso próprio coração o universal humano, quando, psicanalizando lealmente o estudo de nós mesmos, integramos as regras morais nas leis psicológicas! Então, o fogo que nos queimava de repente nos ilumina. A paixão reencontrada torna-se a paixão querida. O amor torna-se família. O fogo torna-se lar. Essa normalização, essa socialização, essa racionalização passam frequentemente, com o peso de seus neologismos, por arrefecimentos. Despertam a zombaria fácil dos partidários de um amor anárquico, espontâneo, repleto ainda do calor dos instintos primitivos. Mas, para quem se espiritualiza, a purificação é de uma estranha doçura e a consciência da pureza prodigaliza uma estranha luz. Somente a purificação pode nos permitir dialetizar, sem destruí-la, a fidelidade de um amor profundo. Embora abandone uma pesada massa de matéria e de fogo, a purificação tem mais possibilidades, e não menos, que o impulso natural. Só um amor purificado faz descobertas afetuosas. É um amor individualizante. Permite passar da originalidade ao caráter.”146 O ritual que analisamos contém esse mesmo espírito de “purificação”, Qorpo-Santo coloca em cena esse “conhecimento objetivo do subjetivo”. Ou seja, ele mesmo coloca as regras morais integradas com as “leis psicológicas dos personagens”. Ele transforma o “fogo”: se antes o fogo era o recalque, que queimava; agora o fogo ilumina o interior de sua criação, ele compõe uma obra que é a própria alegria da cultura, ao permitir aproximações tão felizes com outros produtos culturais. É o próprio Qorpo-Santo que se purifica, através do fogo, agora identificado como a sua obra de arte, ele transforma o lar e a família. Ele elimina o elemento repressor patriarcal e estético; e institui o “calor dos instintos 146 BACHELARD, Gaston. Psicanálise do fogo. são Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 147-148. 102
  • 103. primitivos” e “o amor anárquico, espontâneo”, em sua nova família, que satiriza a família do realismo teatral. E este fogo que proporciona tal calor, Qorpo-Santo não via em Malherbe, por isso o escolheu para parodiar as convenções teatrais em chamas, diante da casa queimada, adivinhando o seu final infeliz: “MALHERBE – (depois de todos tranqüilos) – Sempre a desordem nas casas sem ordem! Sempre as perdas; os desgostos: os incômodos de todas as espécies! Santo Deus! Por que não crucificais aqueles que desrespeitam vossos santos preceitos!? Mas, que digo? Se continuo, estas mulheres são capazes de – pendurar-me naquela travessa, e aqui deixarem-me exposto, por não querer acompanhá-las em seus modos de pensar e de julgar! O melhor é retirar-me!”147 Não é difícil observar que os “santos preceitos” são destruídos, ou transformados, no ritual; e as mulheres representam a “alegria da cultura” buscada pelo estilo irreverente de Qorpo-Santo. Talvez possamos imaginar Malherbe, já sabendo que as mulheres eram capazes de pendurá-lo “naquela travessa”, como sendo o único insatisfeito no palco, na cena do incêndio; enquanto que o resto da família pode ser imaginada comemorando a queda do antigo lar, o fim das tradições sociais e das convenções teatrais que queimam e reprimem o autor e sua obra. São as mulheres da casa que fazem a sublevação cultural. São elas que saboreiam o banquete de Malherbe. Entendemos, assim, pois o autor indica pela reiteração das falas, o motivo pelo qual Malherbe é castigado pelas mulheres, ele renega as relações naturais e, consequentemente, renega o desejo e as “Leis” das mulheres. Comparemos os motivos pelos quais Malherbe pode ser castigado, alegados por cada uma das personagens a seguir. Malherbe alega que poderá ser pendurado pelas mulheres na travessa: “por não querer acompanhá-las em seus modos de pensar e de julgar!” Elas, 147 QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org. CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969, p. 89. 103
  • 104. “umas para as outras”, combinam de “pregar um susto neste mariola”; e dão o seu motivo: “Já que ele não quer obedecer aos nossos chamados espirituais, e aos das outras mulheres; já que é preguiçoso, vaidoso, ou orgulhoso...” Todas alegam que Malherbe desobedece ás Leis, das relações naturais, claro; e este é o motivo para se divertirem com ele: “Ou ele há de ser obediente às Leis, ou havemos de enforcá-lo, ainda que seja só por alguns momentos de divertimento!”. Por fim, o motivo maior, expressado por Mariposa, para levar o marido malcriado a ficar pendurado, é que ele deve ser sacrificado, “para eterna glória das mulheres”: “E o Sr., Sr. Tralhão, que não quis acompanhar-nos nas relações naturais, importando- se sempre com direitos; não vendo que o próprio direito autoriza, dizendo que cada um pode viver como quiser e com quem quiser; há de ficar aqui pendurado para eterna glória das mulheres, e exemplo final dos homens malcriados!”148 Notamos que as leis das mulheres foram desobedecidas, ou, em outras palavras, alguma promessa anterior foi quebrada por Malherbe, ele traiu a confiança das mulheres: renegou a mulher. Não parece difícil, neste ponto, fazer uma aproximação com o outro elemento da cena inicial do quarto ato, o elemento água. Genericamente, inicia-se uma maior aproximação com a cultura popular, através de uma personagem da tradição oral: a Mãe d’Água. Durante o uso da água nesta cena, conforme vemos na rubrica, “o incêndio parece lavrar com mais força até que se extingue ou desaparece.” Mas como assim, se extingue ou desaparece? Essa água tão poderosa que apaga assim o fogo, poderia ser comparada a uma “deusa água” ou, talvez, seja a própria Mãe d’Água? Retomemos o conto: “Quer casar comigo? disse a Mãe d’Água. O rapaz nem titubiou: – Quero muito! A Mãe dÁgua deu uma risada e continuou: – Então vamos casar. Na noite da quinta para a sexta-feira, na outra lua, venha me buscar. Traga roupa para mim. Só traga roupa de cor branca, azul ou verde. Veja que não venha alfinete, agulha ou cousa alguma que seja de ferro. Só tenho uma 148 QORPO-SANTO. Idem, p. 84, 91. 104
  • 105. condição para fazer. Nunca arrenegue de mim nem dos entes que vivem no mar. Promete? O rapaz, que estava enamorado por demais, prometeu tudo e deixou a Mãe d’Água que desapareceu nas ondas e cantou até sumir.”149 Luís da Câmara Cascudo, em seu belo livro Contos tradicionais do Brasil fala de uma tradição oral, de onde nos vem a história do Marido da Mãe d’Água. O trecho supracitado mostra o encontro de um pescador com esta entidade feminina do mar, resultante de uma história contada desde a África meridional e relatada por Gabriel Ferrand, em Contes Populaires Malgaches, Paris, 1893. No Brasil, este conto foi muito divulgado pelo nome indígena da deusa: Iara, a Mãe d’Água. O conto, no entanto, não está desligado da história do marido dela, que, nesta versão publicada por Cascudo é um pescador que tem sua sorte mudada por ocasião da união, em casamento, com a entidade feminina do mar. A condição que a deusa impõem ao futuro marido é que ele “não arrenegue dela”. Depois de um tempo vivendo juntos, ele põe-se a notar as diferenças e, após uma noite de bebedeira, o marido ingrato “arrenega” da mulher. O resultado disso é a volta à condição de pobre, para ele; e a volta à condição de entidade das águas, para ela: (...) O mal-agradecido, sentando-se numa cadeira, de cara franzida, não tendo o que dizer, começou a resmungar: – Bem feito! Quem me mandou casar com uma mulher do mar em vez de gente da terra? Bem feito. É tudo misterioso, cheio de histórias. Coisas do mar... hi... eu te arrenego! Logo que disse essas palavras, a Mãe d’Água deu um gemido comprido e ficou da cor da cal da parede. Levantou as duas mãos e as águas do mar alcançaram como um castigo, numa onda grande, coberta de espuma, roncando como um bicho feroz. O rapaz, morrendo de medo, deu uma carreira de veado, subindo o monte perto da casa. Lá de cima se virou para ver. Casa, varanda, cercado, animais, tudo desaparecera. No lugar estava uma lagoa muito calma, pegada a um braço de mar. Ao longe ouvia uma cantiga triste, triste como quem está se despedindo do mundo. Nunca mais viu a Mãe d’Água.”150 149 CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil – nº 1442. Rio de Janeiro: Tecnoprint – Edições de Ouro, s/d, p. 94-95. 150 CASCUDO. Idem. p. 96-97. 105
  • 106. Vemos na rubrica de Qorpo-Santo que a casa de Malherbe desaparecera, tal qual a casa do pescador marido da Mãe d’Água. Supondo-se a encenação da peça As Relações Naturais nos dias de hoje, provavelmente o diretor ainda encontrasse dificuldades na sua montagem, teria que enfrentar a necessidade da aquisição de um espaço teatral com uma estrutura tal, que permitisse o uso abundante de água, com escoamento prático e sem surpresas desagradáveis em cena. Podemos imaginar, um cenário de uma “trave” em primeiro plano, um casarão com piscina, “barris” e “bomba d’água pequena”, “canecas” e “outros vasos”; tudo isso entre um público restrito, ocupando lugares (comprados em bilheteria) do cenário, em fusão com o cenário; um espetáculo contemporâneo, quem sabe inspirado em Luiz Carlos Maciel: espetáculo como “invenção totalmente irresponsável, porque (...) invenção de uma liberdade completa”. Mas, voltemos à re-significação. Notemos, ainda, que, na comédia, Malherbe não receberá o mesmo castigo que o pescador, não apenas cairá na pobreza, mas também será oferecido em sacrifício; ou seja, a água que se derrama sobre o palco anuncia uma libação, e esses “barris”, “canecas” e “vasos” estão cheios de vinho, leite e licor, bebidas que são derramadas em honra da Mãe d’Água. Uma vez respeitada a libação, elas podem dar continuidade à cerimônia. Façamos uma leitura da segunda cena, na continuidade desse ritual: “ELA – (umas para as outras) Preparemo-nos para pregar um susto neste mariola! Já que ele não quer obedecer aos nossos chamados espirituais, e aos das outras mulheres; Já que é preguiçoso, vaidoso, ou orgulhoso; ao menos preguemos-lhe um susto! TODAS – Apoiado! Apoiadíssimo! Ou ele há de ser obediente às Leis, ou havemos de enforcá-lo, ainda que seja só por alguns momentos de divertimento! Deixemos ele vir. (Preparam uma corda; e tudo mais que as pode auxiliar para tal fim; conversam sobre os resultados e conseqüências de sua empresa, e o que farão depois; entretanto entra o 106
  • 107. criado com ele [Malherbe] em figura forte de papelão, abraçado para poder acompanhá-lo; e é esta a 3ª Cena. Cumprimentam-se todos muito alegremente.) UMA DELAS – (para o criado) Ora muito bem! Já se vê quanto é bom viver conforme as relações naturais. Eu gosto de mingau de araruta ou de sagu, por exemplo – como; e porque está relacionado com certo jovem a quem amo; ele aqui me aparece, e eu gozo! Já se vê pois que, vivendo conforme elas, é em duplicata! OUTRA – É verdade, mana; eu, como a comida de que mais gosto é coco; e porque este se relaciona com certo amigo de meu Pai, ele aqui também virá, e o meu prazer não será só de paladar, mas também aquele que provém do amar! OUTRA – Pois eu, como o que mais aprecio é chocolate, bebê-lo-ei, bebê-lo-ei; e por idênticas razões gozarei dele e de quem não quero dizer! Mas o diabo é que assim ficam sem coisa alguma!”151 Segue-se a estas falas, a de Mariposa, reproduzida acima, no Diálogo 2. Diante de Malherbe, as filhas (Uma Delas, Outra e Outra) e a esposa (Mariposa), falam de alimentação. Se não nos afastarmos da tentativa de re-significar a alimentação deste ritual, então talvez seja lícito fazer uma correspondência entre este discurso, a palavra dita, das mulheres qorpo-santenses e a confusão de Alice com as palavras e a comida, conforme nos mostra Gilles Deleuze: “No jantar de cerimônia de Alice, comer o que se vos apresenta ou ser apresentado ao que se come. Comer, ser comido, é o modelo da operação dos corpos, o tipo de sua mistura em profundidade, sua ação e paixão, seu modo de coexistência um do outro. (...) E se falarmos de alimento, como evitar fazê-lo diante daquele que deve servir de alimento? Assim, temos as gafes de Alice diante do camundongo. Como evitar comer o pudim ao qual se foi apresentado?”152 Há, nas falas das mulheres, a relação comida e namorado. Elas apresentam o que gostam de comer, tanto na culinária, quanto no sexo. No entanto, há a pergunta: “se falarmos de alimento como evitar fazê-lo diante daquele que deve servir de alimento?” Esta 151 QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org. CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969, p. 89-90. 152 DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. são Paulo: Perspectiva, 1974, p. 25. 107
  • 108. questão nos remete à possibilidade cênica mais conveniente para a interpretação deste ritual, como ritual de antropofagia: se é Malherbe que está diante das mulheres que falam, então é Malherbe que deve servir de alimento na encenação. O fato de Qorpo-Santo ter recomendado, em sua rubrica, que não se usasse um ator para representar Malherbe, mas sim um boneco, não deve nos confundir, foi apenas uma solução cênica. Se ele o fez foi porque a cena exigia o esquartejamento do personagem, o que seria complicado tendo em cena um ator. Com efeito, a fala de Inesperto, o criado que carrega Malherbe para o alto da escada, indica para a validade de nossa interpretação: “INESPERTO – Não precisamos ter trabalho, porque ele está dormindo, com certa flor que lhe dei a cheirar!”153 O autor, com esta fala, desculpa-se ao público por ser obrigado a fazer a cena com um “boneco de papelão”, como se dissesse: entendam esse boneco como se fosse Malherbe dormindo sob o efeito de uma droga qualquer. Qorpo-Santo tem tanta consciência do efeito cômico do boneco no palco que, com a finalidade de deixar claro de tratar-se de Malherbe, faz este personagem falar, ou ralhar contra as mulheres e as relações naturais. Mas o faz através da fala ventríloqua de Inesperto, enquanto este e Mariposa manipulam a marionete: “ELAS – Oh! então melhor! Venham as cordas! (para o criado:) Vê uma escada; trepa lá; sobe naquela trave; leva esta corda, que nós cá o amarremos pelo pescoço, e depois tu o sungas. INESPERTO – Sim; mas como o diabo há de ser! Ah! É preciso a Sra. pegar nele para não cair... MARIPOSA – Eu seguro! 153 QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org. CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969, p. 91. 108
  • 109. INESPERTO – (Pega a escada, põe no lugar próprio, sobe, levando a corda, e depois desce.) (À parte:) Estas mulheres não vêem – que não se pode ainda andar com as relações naturais; que se umas querem, outras não querem; que se umas podem, outras não podem; que... enfim, são o diabo! Mas elas agora vão conhecer que eu sou homem, e que por isso mesmo hei de defender e amparar aqueles a quem elas quiserem crucificar! (Amarra a corda ao pescoço da figura; e diz:) Está bem atada! Agora vou sungá-lo! (Sobe a escada, monta na trave, e puxando:) Pesa como o diabo! Não terá dez arrobas? Mas quinze eu juro que pesa! Irra! (Puxando.) Irra! Arriba! Agora, agora já está seguro!”154 Uma encenação que pretenda potencializar, ao máximo, esta cena, deve levar em consideração que Qorpo-Santo indica para um humor próximo da crueldade: 1) Inesperto e Mariposa posicionam-se no palco, de modo a deixarem o boneco (para nós, marionete) entre eles; 2) eles manipulam a marionete; 3) e Inesperto faz a fala do boneco, como um ventríloquo, enquanto ambos manipulam-no. Somente essa seqüência permite entender a fala de Inesperto, pois não faria sentido o seu discurso contrário às relações naturais, sendo que ele mesmo ajuda as mulheres: “(Puxando.) Irra! Arriba! Agora, agora já está seguro!”. No entanto, a marionetização de Malherbe é a “marionetização do ser humano”; ou seja, o ator poderia fazer, até certo ponto, esta cena de Malherbe. Em Qorpo-Santo o ator não deveria ser apenas aquilo que as convenções realistas exigem, ele não deveria apenas realizar as suas “confissões acidentais” no palco, mas antes fazer do corpo uma obra de arte: “DIDEROT, no Paradoxo sobre o Comediante, já encarava o ‘grande ator’ como ‘outro fantoche maravilhoso cujos cordões o poeta segura, e ao qual ele indica, em cada linha, a verdadeira forma que deve assumir”. Esta marionetização do ser humano culmina na supermarionete de Gordon CRAIG. Porque o ator não é capaz de fazer de seu próprio corpo uma ‘obra de arte’, mas somente ‘uma série de confissões acidentais’, é que CRAIG queria substituí-lo por uma marionete humana que controlasse todas as emoções e fizesse do palco um espaço puramente simbólico: ‘Suprima o ator e estará retirando de um realismo grosseiro os meios para florescer em cena. Não haverá mais personagem viva para confundir em nosso espírito arte e 154 QORPO-SANTO. Idem. P. 91-92. 109
  • 110. realidade; não haverá mais personagem viva na qual as fraquezas e estremecimentos da carne sejam visíveis’.”155 Está claro, portanto, que foi de Malherbe o discurso contrário às relações naturais, proferido ironicamente por Inesperto. Como vimos acima, Malherbe não quis obedecer aos “chamados espirituais” das mulheres (não apenas delas, da família, mas também de “outras mulheres”, o que podemos traduzir por todas as mulheres), ele as renegou. Este foi o motivo de Malherbe ser o escolhido para o banquete; agora elas podem livrar o pensamento do “grilo”156, enforcando a “autoridade” que as impedia de gozar: “ELAS – (Uma para as outras) Há de ficar pendurado! Ah! ah! ah! Há de, há de! (Batem palmas.) Que triunfo! Viva! Viva! Agora, maninha; já que enforcamos este, havemos de enforcar também certo grilo; e andar com as relações à vontade dos corações! TODAS – Apoiado! Apoiado! Enforquemos tudo quanto é autoridade que nos quer estorvar de gozar, como se estivéssemos em um paraíso terrial!”157 Devemos observar que a corda não serve apenas para enforcar Malherbe; também serve para suspendê-lo, como se fosse marionete; e ainda para sungá-lo até a trave onde será enforcado. Aqui, cabe observar, conforme já vimos em nosso estudo da dialética do texto e da encenação, que o final do quarto ato é o ponto culminante do efeito, criado por Qorpo-Santo, de paródia ao realismo das convenções teatrais. Conforme já notamos, enquanto comem alegremente no palco, as mulheres encenam o contrário do que fala a letra da canção: “Basta o trabalho,/ Certo, não falho;/ Para vivermos;/ E mil gozos termos”. Como estamos vendo, aqui também, antes mesmo da canção, elas não devem ser 155 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 233. 156 Fizemos uma leitura livre do significante grilo, que não necessariamente tem ligação com a significação convencionada na gíria; para nós o termo grilo pode ser tomado em vários sentidos, pelo seu sonoro cri-cri na cabeça, por exemplo. 157 QORPO-SANTO. Idem. P. 92. 110
  • 111. interpretadas tristes ou irritadas, enquanto recebem os membros de Malherbe jogados por Inesperto. Pelo contrário, devemos interpretá-las devorando-os saborosamente, num alegre banquete. Isto observado, podemos dar continuidade à releitura do ritual. Uma vez sungado à trave, as mulheres comemoram com alegria. Vejamos como segue o ritual: “INESPERTO – (Depois de haver prendido o corpo da figura na trave) Pois não! Não vê que meu amo havia de ser enforcado, para as Sras. fazerem quando quiserem! Boas! Lá vai bola! Relações, metralha (arranca um braço, atira numa delas.) MARCA – Ah! traidor! (Encolhe-se.) INESPERTO – Lá vai estilhaço. Toma relação! (Atira outro braço noutra) JULIA – Bárbaro! Louco! INESPERTO – Mais outro! (Arranca a cabeça, ou o chapéu, e atira em outra dizendo:) Querem mais!? Se quiserem, venham buscar cá em cima, que eu vou juntar-me ao meu muito respeitável amo. (Levanta-se em cima da trave e sai ou desaparece.) ELAS – (Uma para as outras a enxugarem os olhos:) Que tirano! Que cruel! Que bárbaro! Que assassino! De modo que assim sendo, se pode ainda hoje fazer... Cantemos todas:”158 Este uso da corda, para elevar Malherbe como uma marionete; e a ação de esquartejá-lo permitem, para efeito de uma re-significação de As Relações Naturais uma aproximação com alguns rituais mágicos, fundamentados em “cordas e marionetes”, na Índia , relatados por Mircea Eliade: “Asvagosha conta em seu poema Buddhacarita, que Buda visitou, pela primeira vez depois da Iluminação, sua cidade natal Kapilavastu, e fez uma demonstração de alguns ‘poderes milagrosos’ (siddhi). Para convencer os seus de suas forças espirituais e preparar a conversão deles, elevou-se nos ares e cortou o próprio corpo em pedaços que deixou cair no chão, para reuni-los em seguida sob os olhares admirados dos espectadores. Esse milagre é parte tão íntima da tradição mágica hindu que se tornou o prodígio típico do faquirismo. O célebre ‘milagre da corda’ (rope-trick) dos faquires e dos prestidigitadores cria a ilusão de uma corda que se eleva muito alto no céu e na qual o mestre faz subir um jovem discípulo até que este desapareça. O 158 QORPO-SANTO. Idem. P. 92. 111
  • 112. faquir então lança uma faca para o ar e os membros do rapaz caem no chão um após o outro.”159 Não poderíamos deixar de notar as semelhanças entre os rituais, mas não queremos afirmar, com isso, que Qorpo-Santo tivesse conhecimento da magia dos faquires. Importa- nos empreender a leitura produtiva, não passiva, que re-signifique a comédia para os dias atuais; e que nos remeta a possibilidades de novas aproximações com outras formas culturais, incluindo as posteriores aos momentos históricos estudados nos capítulos anteriores. Se analisássemos uma possível “ocorrência concreta” da encenação de As Relações Naturais no século XXI, deveríamos encontrar, nesta obra, uma relação coerente entre a sua expressão hoje e os conteúdos culturais mais recentes? Essa nossa apropriação da comédia de Qorpo-Santo deveria ser considerada apenas mais uma “maneira de utilizar” um produto cultural, da forma mais racionalizada e espetacular? Tais indagações nos levam a recorrer novamente a Roger Chartier, quando ele afirma: “Restituir essa historicidade exige em primeiro lugar que o ‘consumo’ cultural ou intelectual seja ele próprio tomado como uma produção, que evidentemente não fabrica nenhum objeto, mas constitui representações que nunca são idênticas às que o produtor, o autor ou o artista, investiram na sua obra. Por esse motivo é sem dúvida necessário atribuir um alcance geral à definição que dá M. de Certeau do consumo cultural de massas que caracteriza atualmente as sociedades ocidentais: ‘A uma produção racionalizada, expancionista, tanto quanto centralizada, estrondosa e espetacular, corresponde uma outra produção qualificada como ‘consumo’. Esta é ardilosa, encontra-se dispersa, mas insinua-se por toda parte, silenciosa e quase invisível, uma vez que não assinala a sua presença com produtos próprios mas com maneiras de utilizar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante’. Anular o corte entre produzir e consumir é antes de mais afirmar que a obra só adquire sentido através da diversidade de interpretações que constroem as suas significações. A do autor é uma entre outras, que não encerra em si a ‘verdade’ suposta como única e permanente da obra. Dessa maneira, pode sem dúvida ser devolvido um justo lugar ao autor, cuja intenção (clara ou inconsciente) já não contém toda a compreensão possível da sua criação, mas cuja relação com a obra não é, por tal motivo, suprimida. 160 159 ELIADE, Mircea. Mefistófeles e o andrógino. São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 171. 160 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p.59. 112
  • 113. Agora fica evidente que a construção das significações para o ritual descoberto na comédia de Qorpo-Santo, através destas interpretações à luz da semiologia do teatro, nos coloca diante de sentidos interligados com outros produtos culturais. Aventamos a possibilidade de criar vizinhanças: 1) com a cultura popular e o conto, de tradição oral, do marido da Mãe d’Água; 2) com as religiosidades e os rituais estudados por Mircea Eliade; 3) com a cultura primitiva e suas influências sobre Paul Gauguin e outros artistas; 4) e com o modernismo brasileiro da Semana de 1922 e o Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade. Já vimos o suficiente sobre a primeira vizinhança, vejamos o que ainda falta falar sobre as demais: “(...) o milagre da corda, da forma atual de roteiro imaginário, de relato fabuloso ou de prestidigitação, tem uma história, e essa história só pode ser elucidada se levarmos em conta ritos, símbolos e crenças religiosas arcaicas. É oportuno distinguir dois elementos: 1º) o despedaçamento do aprendiz; 2º) a ascenção ao céu por meio de uma corda. Os dois são característicos dos ritos e da ideologia do xamanismo. Analisemos, para começar, o primeiro tema. Sabe-se que, durante seus ‘sonhos iniciáticos’, os aprendizes xamãs assistem a seu próprio despedaçamento por ‘espíritos’ ou ‘demônios’, que desempenham o papel de mestres da iniciação: sua cabeça é cortada, seu corpo é feito em pedaços pequenos, seus ossos são limpos, etc., e, ao final, os ‘demônios’ reagrupam os ossos e os recobrem com carne nova. Neste caso estamos diante de experiências extáticas de estrutura inciática: uma morte simbólica é seguida por uma renovação dos órgãos e pela ressurreição do candidato.”161 Uma encenação de As Relações Naturais realmente inovadora não deveria deixar de remeter à idéia de “morte simbólica” do próprio autor, acima de tudo quando um dos personagens que representam Qorpo-Santo, Truquetruque, logo no início anuncia essa morte, não por acaso através de uma pergunta enigmática à qual se deve decifrar, como se remetesse à tradição dos oráculos: 161 ELIADE, Mircea. Idem. P. 176-177. 113
  • 114. “(Para o público:) Como se chamam estes cujos pés fazem... quando estão lá em pé têm as solas dos sapatos, se não andam de botas, voltadas para a sala dos nossos? Hein? Anfíbios, não! Isto é coisa que anda no mar, e em terra! Hermafroditos! não; isto também é outra coisa, é o que é macho e fêmea! Cabrito não é. Não me posso lembrar.”162 Evidencia-se, de início, o corpo estendido ao comprido, como um morto: “cujos pés (...) quando estão em pé”, “têm as solas dos sapatos (...) voltadas para a sala dos nossos”. O significado correspondente à morte simbólica, o de passagem de um estado impuro para um estado de pureza, é consciente no autor, isso é o que vemos no uso de alguns elementos: 1) os “anfíbios”, como o sapo e a rã, sofrem metamorfose, isto é, morre o girino, a água, e nasce o sapo, a terra; 2) o “hermafrodito”, no qual morre a parte e nasce a unidade masculino-feminino; e 3) o “cabrito”, ou bode, animal oferecido em sacrifício, em alguns rituais, para expiar, simbolicamente, as culpas que pesam sobre o povo. Como observamos, sobram elementos que justifiquem a nossa leitura do ritual no sentido das religiosidades. Para o teatro, essa interpretação permite-nos estender a função desse ritual para a função de um efeito cênico, criado na antiguidade: o deus ex machina: “O deus ex machina (literalmente o deus que desce numa máquina) é uma noção dramatúrgica que motiva o fim da peça pelo aparecimento de uma personagem inesperada. (...) Em certas encenações de tragédias gregas (especialmente EURÍPIDES), recorria-se a uma máquina suspensa por uma grua, a qual trazia para o palco um deus capaz de resolver, ‘num passe de mágica’, todos os problemas não resolvidos. Por extensão e figurativamente, o deus ex machina representa a intervenção inesperada e providencial de uma personagem ou de alguma força qualquer capaz de desenredar uma situação inextricável. Segundo ARISTÓTELES (Poética), o deus ex machina só deve intervir ‘para acontecimentos que se passaram antes, acontecimentos que o homem não pode saber, ou por acontecimentos que se passaram depois e têm necessidade de ser preditos e enunciados’. A surpresa deste tipo de desenlace é, necessariamente, total.”163 162 QORPO-SANTO, ou José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais e Outras comédias. Org. CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969, p. 79. 163 PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 92. 114
  • 115. Digamos, de passagem, que até mesmo este efeito do deus ex machina é parodiado pelo autor, uma vez que quem ocupa o lugar do “aprendiz de xamã” é Malherbe, ainda que este não se recomponha depois (fato que, por si só, já é risível); enquanto que o “espírito”, ou o “mestre de iniciação” que esquarteja-o é Inesperto (“criado que por um dia foi amo do amo”). Ampliando a nossa aproximação com a antropofagia do modernismo brasileiro da Semana de 1922 e toda a re-significação que ela traz, poderíamos elevar Qorpo-Santo à condição de artista moderno, pioneiro na fusão de culturas? Em caso afirmativo, vale retomar as palavras do próprio Oswald de Andrade: “Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz. Tupi, or not tupi, that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gracos. Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago. Estamos fatigados de todos os maridos católicos suspeitosos postos em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com os outros sustos da psicologia impressa. (...) A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura – ilustrada pela contradição permanente do homem e seu Tabu. O amor cotidiano e o modusvivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria a amizade. Afetivo, o amor. Especulativa, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.”164 Se nosso maior “herói sem caráter”, Macunaíma, de Mario de Andrade, tem propositalmente o espírito antropofágico, estas mulheres qorpo-santenses poderiam ser tomadas como precursoras dele? Como não ler o Manisfesto Antropófago de Oswald sem a ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. Revista de Antropofagia. São Paulo: nº 1, maio de 1928. In.: 164 ADES, Dawn. Arte na América Latina – A era moderna, 1920-1980. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1997, p. 312-313. 115
  • 116. impressão de que ele fala de uma arte ao modo do que fez o artista gaúcho, no século XIX? Não vamos nos deter no neologismo “Incriado”, próximo de neologismos como “Inesperto”, que é, por ironia, o criado da comédia; pensemos em relações mais profundas entre os modernistas e o dramaturgo. Com efeito, há em As Relações Naturais também esta “contradição permanente do homem e seu Tabu”, são as mulheres que fazem a “absorção do inimigo sacro”, Malherbe, e o transformam em “totem”; além disso, para evitar os “males catequistas”, Qorpo-Santo representa a “antropofagia carnal”, sem a “sublimação do instinto sexual”, mas com o “instinto antropofágico” como forma de alcançar um amor mais “afetivo”. Parece evidente que as preocupações de Oswald de Andrade seguem uma tendência européia. A busca do elemento cultural primitivo entre os artistas da Europa, desde os contemporâneos de Qorpo-Santo, foi determinante na abertura para a arte moderna. Paul Gauguin, por exemplo, chegou a mudar-se de Paris para o Taiti, de onde escreveu algumas cartas para os familiares e amigos falando de suas impressões sobre o primitivismo: “O tupapau (espírito dos mortos) é o indicado. Para os canacas, é o medo constante. À noite uma lâmpada permanece sempre acesa. Ninguém circula pelas estradas quando não há lua, a não ser que haja uma lanterna, e ainda assim em grupos. Uma vez encontrado meu tupapau, apego-me a ele, e faço dele o motivo do quadro. O nu passa para o segundo plano. Que significará para uma canaca uma alma do outro mundo? Ela não conhece teatro, a leitura de romances, e, quando pensa num morto, pensa necessariamente em alguém que já viu. Minha alma de outro mundo só pode ser uma mulherzinha qualquer. Sua mão se adianta como que para apanhar a presa. O senso decorativo me leva a salpicar o fundo de flores. Flores de tupapau, fosforescências, indício de que a alma do outro mundo se preocupa com você. Crenças do Taiti. O título Manao tupapau tem duplo sentido: a canaca pensa na alma ou a alma pensa na canaca. (...) Parte literária: o Espírito de uma viva ligado ao Espírito dos mortos. A 165 Noite e o Dia.” 165 GAUGUIN, Paul. Cahier pour Aline – carta a sua filha Aline, Taiti, 1893. In.: CHIPP, H. B. Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 66. 116
  • 117. Não cabe aqui fazer uma crítica aos olhares ocidentais, dos autores acima, sobre a cultura dita primitiva; interessa-nos apenas notar como esta cultura exerceu influência decisiva sobre os artistas da chamada cultura civilizada, a partir do século XIX. Qorpo-Santo, por mais que esta releitura tenha colaborado muito para tal conclusão, tinha, talvez de modo intuitivo, a sabedoria de um contador de histórias; e reunia em torno delas indícios de manifestações culturais diversas. Fazendo a sua paródia ao realismo das convenções teatrais, o dramaturgo abriu o campo das possibilidades, criou um carnaval de sensações para o palco e nos devolveu a algumas histórias dos antepassados, tal como desejava Oswald de Andrade em seu Manifesto, sem aqueles estereótipos que levam, por exemplo, a uma visão romântica de nosso índio: “Esse modelo romântico é repudiado porque não se pode ignorar que segundo o manifesto antropófago: ‘(s)ó a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.’ É preciso reconhecer o fato de que, ainda segundo o manifesto, ‘nunca fomos catequizados. Fizemos foi carnaval’. Deste carnaval moderno participam todos: tupis, guaranis, astecas, incas, sioux, cheyennes, subvertendo a música dos colonizadores com seus instrumentos exóticos. Se a História nos conta a derrota de um povo, de vários povos, vencidos pela tecnologia, pelas doenças, pela exploração; a Literatura nos devolve a todos eles como antepassados cheios de vitalidade e de potencial, e explora suas contradições com as liberdades da releitura. Transforma-os, ou melhor, devora-os – alimento mágico das ‘crônicas’ modernas.”166 Assim como a literatura, o teatro repudia essa visão romântica do índio, parece dizer Qorpo-Santo, como um Policarpo Quaresma e sua nova gramática, sua nova língua. A iluminação é esta, devemos voltar ao primitivo, ao popular, ao religioso, ao moderno, à vanguarda e à arte marginal? Esta volta é a “alegria da cultura”, Qorpo-Santo nos ensina o quanto é produtiva a descoberta de nossa subjetividade, “quando, psicanalizando lealmente o estudo de nós mesmos, integramos as regras morais nas leis psicológicas! Então, o fogo que nos queimava de repente nos ilumina. A paixão reencontrada torna-se a paixão 166 BETTENCOURT, Lucia. Cartas brasileiras: visão e revisão dos índios. In.: GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.). Índios do Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 46. 117
  • 118. querida.167” Qorpo-Santo reencontrou esta paixão na literatura e no teatro, e esta tornou-se a sua “paixão querida”; e a encontrou em si mesmo. Alimentar-se desse material cultural, “alimento mágico” da arte, parece ser uma opção do artista. As Relações Naturais não tem inicio-meio-fim, são camadas entrecruzadas, planos de composição sem função de relato cronológico, mas com possibilidades de vizinhanças dramáticas influentes entre si. A liberdade das vizinhanças levam às liberdades na encenação hipotética dessa comédia no século XXI. A mesma liberdade que será, quem sabe um dia, expressa pelas mulheres, ao final do ritual, levantando taças de vinho (elemento água); numa alegria de êxtase (elemento fogo); devorando os ossinhos de Malherbe (elemento terra); e liberando a mente dos “grilos”, cantando (o elemento ar). Tudo bem equilibrado. Mas, podemos confiar totalmente na liberdade da releitura marginal e “irresponsável”? Não podemos esquecer que estamos falando de dois universos distintos: 1) o universo da arte aproveita-se, como vimos em nossa leitura semiológica, de aproximações das imagens em planos de composição; 2) o universo da História, enquanto ciência, parece desconfiar, não sem motivos, de aproximações e vizinhanças. Com efeito, se defendemos a idéia de que Qorpo-Santo nos proporcionou tantas aproximações culturais, devemos estar apoiados nesta apropriação de sua comédia, no mínimo, em uma crítica da arte e da literatura. O encontro decisivo com a “teoria do sentido arquetípico”, de Northrop Frye, talvez nos ajude a encontrar uma elucidação a respeito da importância dessa nossa re-significação de As Relações Naturais. Se permitimo-nos falar tanto em Mircea Eliade, como em Paul Gauguin e em Oswald de Andrade é porque fizemos, acima, a leitura semiológica de uma obra de arte; no entanto cabe mostrar onde 167 BACHELARD, Gaston. Psicanálise do fogo. são Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 147-148. 118
  • 119. nos localizamos dentro da teoria da crítica, a saber, na expressão artística de imagens míticas. Frye mostra-nos como: “(...) organizam-se os mitos e os signos arquetípicos em literatura. (...) há o mito não deslocado, que geralmente se preocupa com deuses ou demônios, e que toma a forma de dois mundos contrastantes e de total identificação metafórica, um desejável e outro indesejável. Esses mundos identificam-se amiúde com os céus e infernos existenciais das religiões contemporâneas de tal literatura. Chamamos a estas duas formas de organização metafórica, respectivamente, apocalíptica e demoníaca. (...) Em religião o mundo espiritual é uma realidade distinta do mundo físico. Em poesia o físico ou real se opõe, não ao espiritualmente existencial, mas ao hipotético. Deparamos no primeiro ensaio com o princípio de que a transmutação do ato em mimo, o progresso entre desempenhar um rito e representar no rito, é um dos característicos básicos da evolução da selvageria para a cultura. É fácil ver uma imitação da luta no tênis e no futebol, mas, por essa própria razão precisamente, os jogadores de tênis e futebol representam uma cultura superior à das escolas de duelistas e gladiadores. A metamorfose do ato literal em peça é uma forma fundamental da liberalização da vida, que surge em planos mais intelectuais como educação liberal, a liberação do fato em imaginação. De acordo com isso é que o simbolismo eucarístico do mundo apocalíptico, a identificação metafórica dos corpos vegetal, animal, humano e divino, teria de ter as imagens do canibalismo como sua paródia demoníaca. A última visão do inferno humano, em Dante, é a de Ugolino roendo o crânio de seu atormentador; a última visão maior alegórica de Spenser é a de Serena desnuda e preparada para um festim canibal. As imagens do canibalismo habitualmente incluem não apenas imagens de tortura e mutilação, mas também do que tecnicamente se conhece como sparagmós, ou despedaçamento do corpo sacrifical, imagem esta que se encontra nos mitos de Osíris, Orfeu e Penteu. O gigante canibal, o ogro dos contos populares, que entra na literatura como Polifemo, se relaciona com isso, como se relaciona uma longa série de sinistras transações com carne e sangue, da história de Tiestes ao contrato de Shylock.168 Sabemos que os atores, no palco, não desempenham um rito antropofágico, no sentido de deixarem-se dominar por uma entidade mítica; mas antes representam um papel no rito. Ou, melhor dizendo: os atores representam os papéis dos personagens do ritual, que significam, na peça, a “identificação metafórica dos corpos vegetal, animal, humano e divino”. E, no caso do ritual que descobrimos em As Relações Naturais, os atores deverão representar o “canibalismo”, (ou, segundo nossa leitura livre, o ritual antropofágico) enquanto paródia, uma “paródia demoníaca” à identificação metafórica típica do “simbolismo eucarístico do mundo apocalíptico”. Obviamente, não tomamos literalmente o 168 FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973, p.141 e 149-150. 119
  • 120. ato do “sparagmós”, como uma leitura apressada da comédia de Qorpo-Santo poderia tomar. Através de nossa interpretação semiológica houve uma “metamorfose do ato literal em peça” artística. Saímos de um aparente absurdo contido no “ato literal” (o esquartejamento de Malherbe); e passamos a outro patamar cultural, da metáfora do ritual de antropofagia, paradigma de grandes obras literárias desde os gregos. A ocorrência concreta dessa re- significação, através desta leitura da semiologia teatral, não se opõe “ao espiritualmente existencial” contido no “ato literal” da antropofagia; mas também não se opõe ao “hipotético” do conteúdo cultural: tomamos o conteúdo cultural como hipótese de re- significação. Realizamos uma releitura para uma montagem de uma peça artística, enquanto “mimo”, para oferecer aos deuses de todas as culturas, na hipótese de eles protegerem mais àquele que lhes dá presentes. Se empreendemos uma leitura produtiva de As Relações Naturais, para o século XXI, com aproximações de imagens culturais diversas, é porque não entendemos, aqui, o ritual antropofágico como “ato literal”, tal qual é possível ler nos relatos de Hans Staden. Este utiliza-se da narrativa mítica para relatar fatos reais e, por isso, aproxima-se do divino para mostrá-lo enquanto “ameaça aos que comem carne humana”169. Evidente que ele tem seus motivos para querer combater o canibalismo; mas, quanto a nós, percebemos que acontece um salto de significações e correlações entre: 1) o fato do ritual de canibalismo, 169 “Hans Staden é o aventureiro alemão, herói-viajante que ocupava lugar central na estrutura da narrativa mítica. Logo, a personagem deveria de ter o papel invertido. Tomado por português e inimigo, Staden seria preso pelos tupinambás, ameaçado de morte e devoração canibal. O conquistador torna-se prisioneiro. Do espaço aberto do mar, passa ao interior do cativeiro na aldeia indígena. O desfecho da história irá pressupor nova inversão de papel. A astúcia de Staden consistirá em controlar, ou melhor, simular controle sobre os fenômenos da natureza. Como a sobrevivência dos índios, baseada na pesca e na plantação, se mostrasse subordinada à influência do sol, da lua, dos ventos e das tempestades, a esperteza do herói estaria em simular controle sobre a natureza pelo poder de sua mente ou pela força de seu Deus. O texto mítico vale-se ainda das inversões e reconversões de conteúdo, jogando com o que é com o que parece ser. (...) A salvação do herói seria comemorada como vitória da sabedoria cristã sobre as práticas mágicas, mas não passa desapercebido ao leitor que o herói opera por adivinhação e que, no centro da argumentação, a punição divina aparece como ameaça aos que comem carne humana.” BELLUZZO, Ana Maria de M. A lógica das imagens e os habitantes do Novo Mundo. In.: GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.). Índios do Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 47-48 e 49. 120
  • 121. entendido como ato de selvageria que deve ser substituído por outro produto cultural, cristão, como nas narrações de Staden; 2) e o artefato cultural erigido por esta re- significação da obra criada por Qorpo-Santo, prevendo a possibilidade de um ritual antropofágico como peça ou produto da cultura, ou como paródia do simbolismo do “mundo apocalíptico” de um Hans Staden, por exemplo. Ainda que toda a sociedade siga, sem o saber, diversos rituais, todos os dias, tais como o jogo de futebol e o tênis; quando vemos o tema central girando em torno deste ritual antropofágico, ficamos assustados, a princípio. No entanto, basta aproximarmos, da história cultural, este tema, para logo entendermos o seu potencial de alcance. Não apenas a cena do ritual antropofágico pode ganhar sentidos novos com uma re- significação semiológica, mas também a figura do personagem-autor pode ser redesenhada com a análise da situação cênica do entreato antes do ato, envolvendo três personagens, Impertinente, Consoladora e Intérpreta. Não nos parece por acaso que a primeira personagem que fala com o personagem-autor, Impertinente, seja Consoladora. Com efeito, Consoladora quer retirar do irritadiço escritor de comédias, Impertinente, todas as roupas que criam uma distância cerimonial entre eles; ela despe-o, mas nunca consegue fazê-lo nu; e como último signo ritualístico, fica nele apenas um “boné em forma piramidal”170 . Perderíamos a oportunidade se não fizéssemos outras aproximações culturais aqui; mas não nos estenderemos a explanações dos significados semióticos. Bela possibilidade de re- significação ganha a Consoladora, quando a aproximamos da idéia de consolação da filosofia, por exemplo; a sedução da anciã filosofia, a amiga do saber seria esta “mulher ricamente vestida”171, ostentando toda a pesada pompa cerimonial do corpo social ideal, existente apenas no “hemisfério” brilhante do mundo das idéias, em torno da qual ela gira 170 QORPO-SANTO, Idem, p. 76. 171 QORPO-SANTO, Idem, p. 74. 121
  • 122. como um “cometa”172. E, no entanto, Impertinente tem os pés no chão, não quer viver no mundo ideal, esperando que a “sarna gálica” do pensamento celeste guie seus “passos”, suas “ações”, suas “palavras”. Ao contrário, ele quer “estar em casa de uma bela gozando”173 e aparece com uma “menina de 16 anos”, a Intérpreta do personagem-autor; ou seja, nós a interpretamos como a Intérpreta do próprio Qorpo-Santo: a personagem que interpreta a preferência estética dele pelas imagens míticas demoníacas, usadas na construção de situações dramáticas que envolvam sexualidade e, em especial, que envolvam suas personagens femininas: “A relação erótica demoníaca torna-se violenta paixão destruidora, que age contra a lealdade ou decepciona aquele que a possui. É geralmente simbolizada por uma rameira, bruxa, sereia, ou outra mulher tentadora, um alvo físico do desejo, que é buscado como posse e portanto não pode jamais ser possuído. A paródia demoníaca do casamento, ou a união de duas almas numa só carne, pode tomar a forma do hermafroditismo, do incesto (a modalidade mais comum), ou da homossexualidade. A relação social é a da ralé, que é essencialmente a sociedade humana em busca de um pharmakós, e a ralé é frequentemente identificada com alguma sinistra figura animal como a hidra, a Fama de Vergílio ou a derivação da Besta Barulhenta de Spenser.”174 Precisaríamos de licença poética para emprestar o predicado de besta barulhenta para Impertinente, o comediante; por oposição à besta do Apocalipse, que desde o seu significado rígido revela austeridade? Ao ser desprezado por Intérpreta, Impertinente ralha com as dores de mais uma frustração antropofágica, “é a trigésima, vigésima e décima vez que me prega esses carões! Diabo! Diabo! e Diabo!”175. Enquanto isso, Intérpreta, é a “mulher tentadora, um alvo físico do desejo, que é buscado como posse e portanto não pode jamais ser possuído”176 . É a “menina de 16 anos” proibida, ágil e intuitiva; por oposição à desajeitada Consoladora, atrevida e não desejada. Mas Intérpreta nem sequer sonha em 172 QORPO-SANTO, Idem, p. 76. 173 QORPO-SANTO, Idem, p. 73. 174 FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973, p.: 150. 175 QORPO-SANTO, Idem, p. 78. 176 FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973, p.: 150. 122
  • 123. competir com a suposta rival Consoladora, muito menos quando o bem disputado seria o amor de Impertinente. É para interpretar o sentimento geral das mulheres para com o comediante barulhento, que Intérpreta diz a Impertinente: “vou-me embora; e aqui não entro mais; o Sr. enganou-me: quis enganar-me, mas enganou-se a si próprio!”177 Mas, por que Intérpreta aplica esta pena ao escritor? Por dois motivos: primeiro ele renega a consolação filosófica da Consoladora; depois ele deseja comer a proibida “ovelha merina” em um ritual antropofágico. Ora, prestemos atenção ao que vem antes desta fala de Intérpreta, para descobrirmos em quê Impertinente “enganou-se a si próprio”. Depois de muito bajular a menina, Impertinente dá a indicação de que pretende oferecer uma “ovelha” em sacrifício, e ainda fazê-lo a cada mês, ou conforme ele diz: “a escolha que fiz hoje, e que pretendo fazer uma em cada mês”178. Qorpo-Santo, em As Relações Naturais, cria personagens observando estes caracteres: 1) os masculinos, 179 representam a “ralé” humana “em busca de um pharmakós” , ou da posse do que não pode ser possuído; 2) a maioria das personagens femininas desejam, cada uma a seu modo, quebrar as leis contrárias às relações naturais, encaminhando a situação dramática para a antropofagia cultural, sendo motivo principal das revoluções da peça; 3) os demais personagens surgem como elementos da composição de uma “paródia demoníaca do casamento, ou a união de duas almas numa só carne”, a qual tem seu caso exemplar nesta comédia, com a insinuação do incesto de Malherbe com Mildona. Agora, sim, podemos entender a afirmação de Intérpreta a Impertinente, “quis enganar-me, mas enganou-se a si próprio”; ela quer dizer que: ele buscava nela tão somente um pharmakós, fingindo, porém, que estava interessado nas relações naturais; mas, obviamente, ela não acreditou na 177 QORPO-SANTO, Idem, p. 77. 178 QORPO-SANTO, Idem, p. 76. 179 “Pharmakós – Personagem, numa ficção irônica, que faz o papel de bode expiatório ou vítima arbitrariamente escolhida.” (FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973, p.: 362. 123
  • 124. conversa desse “monte de carne, sem lei, sem moral, sem religião”180 . Sabendo do risco que corriam as mulheres diante dos homens que ele jogou no palco, Qorpo-Santo inventa uma intérprete de suas intenções enquanto escritor e comediante: ele quer rir de si mesmo, não porque não tenha amor próprio; mas porque este amor precisa de um pharmakós, Intérpreta, a qual ele oferece às musas que lhe inspiram a produzir seu “improfícuo”181, mas divertido trabalho, sua obra cultural que transforma o “fogo que queima” em “fogo que ilumina”182 . José Joaquim de Campos Leão precisa dessa iluminação; ele precisa que não tomemos o seu amor pela menina de 16 anos ao pé da letra; e que aceitemos, integralmente, a sua função de comediante, cujo ofício é mentir: “É preciso dizer-lhe o contrário do que penso”183; ele precisa ainda, como iluminado, que o chamemos pelo nome de Qorpo-Santo. Neste sentido, podemos afirmar que Impertinente, no limite de nossa leitura livre, não apenas deseja comer a proibida “ovelha merina” em um ritual antropofágico, conforme afirmamos antes; mas ele realmente se alimenta dela, para poder escrever na juventude e na pureza de fina lã, com um estilo cômico macio, apesar de demoníaco. É este alimento que o livra de “escrever em um morto”, o seu próprio corpo de antes deste alimento: o corpo que só ouvia os “ecos que inspiram pranto e dor” 184, mas que, ao final do jantar, será purificado. Assim, depois dessa leitura produtiva de As Relações Naturais para o século XXI, em que fizemos aproximações de imagens culturais diversas e descobrimos indícios da consciência de Qorpo-Santo quanto a seu papel de escritor, podemos tirar algumas conclusões. Esta comédia nos ensina como agir diante de todo o conjunto da obra de 180 QORPO-SANTO, Idem, p. 77. 181 QORPO-SANTO, Idem, p. 73. 182 BACHELARD, Gaston. Psicanálise do fogo. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 148. 183 QORPO-SANTO, Idem, p. 74. 184 QORPO-SANTO, Idem, p. 73. 124
  • 125. Qorpo-Santo: buscando re-significações possíveis, aproximações culturais variadas, leituras viáveis para novos produtos culturais. 125
  • 126. 3.3 – CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando afirmamos que o conjunto da obra de Qorpo-Santo pode ser entendida, enquanto produto cultural que deve ser preservado, através da leitura semiológica e suas re- significações possíveis; queremos dizer que a defesa de sua obra, como patrimônio histórico intangível, passa pela História e pela Semiologia Teatral, tal qual fazemos aqui. Vimos que os personagens criados por Qorpo-Santo aparecem, no interior da situação dramática, elaborando “representações constitutivas daquilo que poderá ser denominado uma cultura”; e se chegamos a esta conclusão foi porque a nossa leitura da comédia, As Relações Naturais, através da semiologia teatral, levou-nos a aproximações culturais importantes para todo e qualquer bem cultural. Encontramos valores necessários tanto para a História quanto à Semiologia Teatral, tais como as culturas primitiva, popular e religiosa, enquanto desejadas por serem um “bem comum” ao conjunto de uma sociedade. Com a semiologia teatral nós conseguimos uma ferramenta para o estudo “cultural e ideológico” do texto; ou melhor, uma ferramenta para a descoberta das “lógicas que põem em jogo, em ato, os esquemas de percepção e de apreciação”, lógicas estas criadas por Qorpo-Santo, “dos diferentes sujeitos sociais” representados no texto e na sua possível encenação (incluindo a de Luiz Carlos Maciel), enquanto ocorrências concretas. Com Roger Chartier, diremos que o dramaturgo gaúcho: 1) representou na sua dramaturgia os “diferentes sujeitos sociais” de sua época; 2) esta representação é fruto de seus “esquemas” de “percepção” e “apreciação” da sociedade; 3) e ele elaborou suas próprias “lógicas” 126
  • 127. artísticas, que colocam “em jogo, em ato” estes esquemas, na forma de paródia do realismo das convenções teatrais, por exemplo. 185 Uma vez que é preciso cumprir o papel do historiador, o qual, segundo Chartier, “deve poder vincular em um mesmo projeto o estudo da produção, da transmissão e da apropriação do texto”; vamos, agora, avaliar se o nosso trabalho pode ser usado para reafirmar a importância de se reconhecer a obra de Qorpo-Santo como um “bem cultural” ou um dos patrimônios intangíveis da sociedade brasileira. Nunca tivemos a intenção de fazer uma abordagem psicanalítica deste dramaturgo da capital da província, Porto Alegre, por isso escolhemos a semiologia teatral para nos auxiliar na leitura de As Relações Naturais; e não consideramos que faça sentido a “célebre questão psicanalítica” notada por Maria José Rago Campos: “o que distingue a obra verdadeira da obra-sintoma?”186 Pensamos que “cada artista é um caso singular, pode flutuar entre os limites do gênio e da loucura”; e, conforme nos lembra Campos, citando Wilhelm Szilasi, desde Aristóteles existe um “certo elemento de loucura não doentia” que “pertence à natureza do artista”: “O que pertence à natureza de um homem, como um todo, pode tornar-se doente, e isso acontece quando a doença dá independência a um determinado elemento de natureza própria e faz desse elemento o desmedido; mas é errado falar de doença quando toda a natureza do homem é por si mesma desmedida, é a própria natureza que transborda no desmedido, pois a natureza é demoníaca e não divina.”187 É desnecessário estender uma lista enorme de nomes eminentes, tais como os de Antonin Artaud e Van Gogh, com o título de vizinhos “espirituais” de Qorpo-Santo. 185 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 66. 186 Campos nos mostra que “a psicanálise compromete a autenticidade da arte” ao considerá-la “a partir da perspectiva da neurose”, ao considerá-la “obra-sintoma”. Segundo ela, Freud tenta “decifrar” como a arte manifesta o “desejo de criar”, produzido pela “sublimação”; ou melhor, ele tenta “decifrar a estratégia que faz da criatividade uma espécie de desvio”. Assim, para livrar-se das “neuroses do inconsciente o artista volta ao real através da fantasia”, “projeção”. CAMPOS, Maria José Rago. Arte e verdade. São Paulo: Edições Loyola, 1992. 187 SZILASI, Wilhelm. Apud. BORNHEIM, G. A. Introdução ao filosofar. Porto Alegre: Ed. Globo, 1978, 1978, p. 16, nota 24. “Szilasi faz comentários de textos dos ‘Problemas’, do Corpus Aristotelicum (Aristóteles). O trecho citado refere-se à melancolia do filósofo, que é também a do artista, distinta da melancolia doentia.” In.: CAMPOS, Maria José Rago. Arte e verdade. São Paulo: Edições Loyola, 1992. 127
  • 128. Importa-nos, apenas, apontar o local em que a loucura se torna genialidade nestes autores, ou, pelo menos, no último dos três. Queremos afirmar que é possível re-significar toda a obra dramatúrgica de Qorpo-Santo, este homem de “natureza por si mesma desmedida”, partindo do pressuposto de que ele tinha consciência de estar cometendo comédia com requintes de paródia. Se não, por quê nossa leitura iria observar, com a ajuda de Northrop Frye, a ocorrência dominante do elemento mítico identificado, na teoria crítica, com a “organização metafórica demoníaca”, presente na história da arte desde os gregos? Eis que agora temos Szilasi para reafirmar esse fato. Na comédia não existem os sentimentalismos apocalípticos que há nas tragédias; e cada situação dramática da comédia exige a saturação de todos os afetos e sensações que a compõem, sendo que todos são destinados ao pensamento; e não à emoção. Diderot, no século XVIII, em seu Paradoxo sobre o comediante, afirma: “Quanto a mim, quero que [o comediante] tenha muito discernimento; acho necessário que haja nesse homem um espectador frio e tranqüilo; exijo dele, por conseqüência, penetração e nenhuma sensibilidade, arte de tudo imitar, ou, o que dá no mesmo, uma igual aptidão para toda espécie de caracteres e papéis.”188 E se, por um lado, o comediante precisa ser “um espectador frio” para “imitar” com “igual aptidão toda espécie de caracteres e papéis”; por outro lado, a leitura semiológica de sua comédia deve revelar um autor consciente de sua função de comediante. Vejamos como Qorpo-Santo mostra que deseja ver a platéia rir. Já re-significamos o ritual antropofágico, que acontece em As Relações Naturais, segundo algumas aproximações culturais; no entanto não demos a devida importância ao fato de que não é apenas este ritual que respeita a um ritual, nesta comédia. O que é risível, para Qorpo-Santo, é que toda a sociedade respeita a um ritual, a um “cerimonial”; ou, conforme Henri Bergson: 188 DIDEROT. Cf. MATOS, Luiz F. Franklin de. A careta de Garrick, o comediante segundo Diderot. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras; Brasília: Ministério da Cultura; Rio de Janeiro: Fundação Nacional de Arte, 1996, p. 315. 128
  • 129. “Risível será, pois, a imagem que nos surgirá à idéia de uma sociedade que se disfarce e, por assim dizer, de um carnaval. Ora, essa idéia se forma a partir do momento em que percebemos o inerte, o já feito, o confeccionado, enfim, na superfície da sociedade viva. É da rigidez ainda que se trata, e que não se coaduna com a flexibilidade interior da vida. O aspecto cerimonioso da vida social deverá, portanto, encerrar certa comicidade latente, a qual só espera uma ocasião para exibir-se plenamente. Poderíamos dizer que as cerimônias são para o corpo social o que a roupa é para o corpo individual: devem a sua seriedade a se identificarem para nós com o objeto sério a que as liga o uso, e perdem essa austeridade no momento em que nossa imaginação as isola dele. Assim, para uma cerimônia tornar-se cômica, basta que nossa atenção se concentre no que ela tem de cerimonioso, e esqueçamos sua matéria, como dizem os filósofos, para só pensar na forma. (...) Uma vez que esqueçamos o objeto austero de uma solenidade ou cerimônia, os que tomam parte dela nos causam o efeito de se moverem no ambiente como marionetes. A mobilidade deles rege-se pela imobilidade de uma fórmula. É automatismo.”189 Uma paródia do realismo das convenções teatrais não poderia deixar de parodiar a “seriedade” das cerimônias do cotidiano, representada com toda a “austeridade” pelo ilusionismo naturalista que pretende ser realista e, acima de tudo, pretende representar o uso ritualístico que se faz do “objeto sério” nos cerimoniais do corpo social. Qorpo-Santo faz essa paródia, cria o carnaval de uma sociedade que se disfarça, uma sociedade inflexível, movida “pela imobilidade de uma fórmula” congelada, mecanizada, tornada “inerte na superfície da sociedade viva”. Conforme afirmamos no capítulo anterior, durante o ritual antropofágico era o próprio Qorpo-Santo quem se purificava naquela cerimônia cômica, através da alegria da cultura que é sua obra de arte. Seguindo os indícios na fala de Impertinente, notamos que ele anuncia o ritual antropofágico desde o início da peça: “já que minha ingrata e nojenta imaginação tirou-me um jantar, pretendia ao menos conversar com quem m’o havia oferecido”190. Que tipo de “jantar” é esse que a sua “ingrata e nojenta imaginação” lhe “tirou”, fez nascer, afinal? Sendo um escritor que fala, devemos ler assim: a imaginação de Impertinente, “ingrata e nojenta” como uma boa imaginação de comediante, “tirou” de si 189 BERGSON, Henri. O riso, ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983, pp. 30-31. 190 QORPO-SANTO, Idem, p. 73. 129
  • 130. mesma um “jantar” antropofágico e ofereceu-lhe; agora, ele “pretendia ao menos conversar” com esta imaginação que lhe “havia oferecido” este jantar medonho; por isso escreverá, um tanto irritado com o ofício mas escreverá, uma obra de arte. Parece que resta- lhe apenas isso, ser comediante: “leve o diabo essa vida de escritor! É melhor ser comediante!”191 Fica evidente a contradição em que se encontra o escritor: sendo ele próprio irritadiço e mau amado; e tendo a obrigação de fazer o público rir. Para compensar o fato de não poder efetuar, de fato, a “antropofagia carnal”, restrita às “puras elites”; ele escreve uma comédia, parodiando este banquete “que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas”, como diria Oswald de Andrade no século XX. Qorpo-Santo faz, com esta primeira fala de Impertinente em As Relações Naturais, a apresentação da peça. Ele deixa que Impertinente, seu representante enquanto personagem-autor, anuncie que, mesmo sem poder “gozar”, vai produzir uma obra cultural; e, para que não haja dúvidas a respeito da sua relação íntima com o tempo histórico do incompreendido autor de As Relações Naturais, fala, não sem uma dose cômica de paródia à austeridade cerimoniosa dos cabeçalhos dos documentos médicos. Sem que haja esforço, podemos rir da voz de Impertinente: “São hoje 14 de maio de 1866, Vivo na cidade de Porto Alegre, capital da Província de S. Pedro do Sul; e para muitos, – Império do Brasil... Já se vê pois que é isto uma verdadeira comédia!” 192 Mas vamos rir de novo, depois de ler um cabeçalho austero como este, retirado de um dos documentos recebidos por Qorpo-Santo e catalogados por ele na Ensiqlopédia, o Auto de exame de sanidade: “Ano do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1867, aos nove dias do mês de Março do dito ano, nesta leal e valorosa cidade de Porto Alegre, em casa da residência do juiz de órfãos o Dr. Augusto César de Pádua Fleury, onde eu escrivão vim, e 191 QORPO-SANTO, Idem, p. 73. 192 QORPO-SANTO, Idem, p. 73. 130
  • 131. presentes os Drs. Dionísio de Oliveira Silveira e Carlos Benjamin Petrasi, pelo dito juiz lhes foi deferido.”193 Chartier ensinou-nos que não se deve “tratar as ficções como simples documentos, reflexos realistas de uma realidade histórica”194 , e essa simples comparação nos coloca, assim, diante de duas representações, opostas, de uma mesma realidade histórica: a ficção parodiando a descrição (não levemos em consideração o fato de, nas citações acima, a paródia ter sido produzida antes do parodiado, pois cabeçalhos são reiterações de convenções de escrita). Mas, se as ficções não devem ser tratadas como meros “reflexos realistas de uma realidade”195; o Auto de exame de sanidade, uma descrição fiel do “exame”, escrita pelo escrivão, por si só também não deve sê-lo, uma vez que há nela também uma característica de ficção. Em nosso caso, não é a descrição do escrivão o fator que reforça a leitura de Qorpo-Santo; mas é, antes, a paródia de Impertinente que nos faz enxergar a Província de Porto Alegre movendo-se com certa rigidez de marionete, como se ela fosse regida “pela imobilidade de uma fórmula”196 , só para lembrar Bergson. E Chartier, com efeito, explica que, para ler um texto de ficção, o historiador deve: “atender à sua especificidade enquanto texto situado relativamente a outros textos e cujas regras de organização, como a elaboração formal, têm em vista produzir mais do que mera descrição”197. E foi isso o que buscamos fazer ao aproximarmos, no núcleo de nossa re- significação de As Relações Naturais, as imagens inventadas por Qorpo-Santo com outras representações culturais, desde as primitivas até as de vanguarda ou filosófica, todas estas produções que são mais do que “mera descrição”. Não podemos esquecer que, manuseando 193 Cf.: CÉSAR, Guilhermino. Porto Alegre: Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969, p. 16. 194 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 63. 195 CHARTIER, Idem, p. 63. 196 BERGSON, Henri. O riso, ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983, pp. 30-31. 197 CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 63. 131
  • 132. uma obra de ficção como esta comédia, nosso “material-documento”198, nós estamos, de fato, também diante do autor; estamos diante de “processos de construção onde se investem conceitos e obsessões” do seu produtor e “onde se estabelecem as regras de escrita próprias do gênero de que emana o texto.”199 E, se não fosse pela liberdade interpretativa, sugerida pelo próprio Qorpo-Santo e entendida por Luiz Carlos Maciel e por nós, não estaríamos falando em defasagem entre o texto e encenação, não estaríamos abrindo ao ilimitado as possibilidades de re-significação da comédia As Relações Naturais e, por conseqüência, toda a obra de Qorpo-Santo. Recentemente, a UNESCO reconheceu a obra de Ingmar Bergman, diretor sueco morto em 2007, como “memória” a ser preservada pela humanidade. Passados mais um século da morte de Qorpo-Santo, sua obra também não poderia ser alvo de semelhante ação? Nós pensamos que sim, e mostramos neste trabalho que o reconhecimento de sua criação artística como “memória” pode ser defendida. Ora, se é mesmo possível defender não apenas a sua dramaturgia, mas também os poemas e a Ensiqlopédia, enquanto patrimônio cultural imaterial, então uma boa defesa será por esse caminho de uma re- significação que permita aproximações culturais e históricas múltiplas e surpreendentes. Sua dramaturgia, conforme demonstramos, pode ser encenada em qualquer época; já vimos como foi que Maciel re-significou As Relações Naturais em 1968, descobrindo nesta comédia uma força política libertadora e revolucionária. Do nosso ponto de vista, mostramos, neste trabalho, a possibilidade ilimitada, ainda hoje no século XXI, de re- significações gravitando em torno desta obra, em particular, de Qorpo-Santo, ao permitir o encontro da História com a Semiologia Teatral. Mas, quiçá um dia poder-se-á pensar melhor na hipótese da ampliação das descobertas deste nosso trabalho para serem 198 CHARTIER, Idem, p. 63. 199 CHARTIER, Idem, p. 63. 132
  • 133. investigadas sobre um corpus maior, o conjunto da obra de Qorpo-Santo, quem sabe com o objetivo de proteger seu acervo cultural como patrimônio intangível. 133
  • 134. BIBLIOGRAFIA BÁSICA E FONTES: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000. AGUIAR, Flávio Wolff de. Os homens precários; inovação e convenção na dramaturgia de Qorpo-Santo. Porto Alegre: A Nação/ Instituto Estadual do Livro, 1975. ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. Revista de Antropofagia. São Paulo: nº 1, maio de 1928. In.: ADES, Dawn. Arte na América Latina – A era moderna, 1920-1980. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1997. AQUINO, Maria Aparecida de. Caminhos Cruzados – Imprensa e Estado Autoritário no Brasil (1964-1980). São Paulo: Tese de Doutoramento defendida na FFLCH/USP, 1994. ASSIS BRASIL, Luiz Antonio de. Cães da Província. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003. BACHELARD, Gaston. Psicanálise do fogo. são Paulo: Martins Fontes, 1999. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forence- Universitária, 1981. BARROS, José D’Assunção. O campo da história: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. BELLUZZO, Ana Maria de M. A lógica das imagens e os habitantes do Novo Mundo. In.: GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.). Índios do Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. BETTENCOURT, Lucia. Cartas brasileiras: visão e revisão dos índios. In.: GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.). Índios do Brasil. São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1992. BERGSON, Henri. O riso, ensaio sobre a significação do cômico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983. BOARINI, Maria Lucia (org.). Higiene e raça como projetos eugenismo no Brasil. Maringá: Eduem, 2003. BORGES, Lenise & GONÇALVES, Eliane. Quem aceita quem? Visibilidade e estigma nas ‘outras’ sexualidades. In. Revista Labla. Nº17, Lima, Peru, 2003. BUARQUE, Chico & PONTES, Paulo. Gota D’água. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983. 134
  • 135. BRESCIANI, Maria Stella Martins. Liberalismo: ideologia e controle social (um estudo sobre São Paulo de 1850 a 1910). São Paulo: USP. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 1976. BRUSTEIN, Robert. O Teatro de Protesto. Rio de Janeiro: Zahar, 1967. CAMPEDELLI, Samira Youssef. Poesia marginal dos anos 70. São Paulo: Editora scipione, 1995. CAMPOS, Maria José Rago. Arte e verdade. São Paulo: Edições Loyola, 1992. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 7 ed. São Paulo: Nacional, 1985. CAPELATO, Maria Helena R. Imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto/Editora da Universidade de São Paulo, 1988. ------------------ Os arautos do liberalismo: imprensa paulista 1920-1945. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989. CARDOSO, Ciro F. & VAINFAS, Ronaldo. História e análise de textos. In. Domínios da História – ensaio de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. CARDOSO, Ciro F. Narrativa, Sentido, História. Campinas: Papirus, 1997. CARLSON, Marvin. Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1997. CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil – nº 1442. Rio de Janeiro: Tecnoprint – Edições de Ouro, s/d. CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiço e epidemias na Corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. ----------------. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP – Imprensa Oficial do Estado, 1999. ----------------. A visão do historiador modernista. In.: FERREIRA, Marieta Moraes & AMADO, Janaína. Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998. COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1979. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. são Paulo: Perspectiva, 1974. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2002. 135
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  • 140. CORPO DOCUMENTAL: 1) CORPUS PRINCIPAL: a) Comédia As Relações Naturais. Ver Anexo 1. QORPO-SANTO, José Joaquim de Campos Leão. As Relações Naturais. In.: CÉSAR, Guilhermino. Qorpo-Santo: As Relações Naturais e Outras comédias. Porto Alegre, Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969. b) Entrevista com Luiz Carlos Maciel. MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Giuliano Maranho em 17 de junho de 2006. Duração: 1h20min. 2) TEXTOS COMPLETOS: AGUIAR, Flávio Wolff de. Os homens precários; inovação e convenção na dramaturgia de Qorpo-Santo. Porto Alegre: A Nação/ Instituto Estadual do Livro, 1975. CÉSAR, Guilhermino. O Criador do Teatro do Absurdo. In.: Qorpo-Santo: As Relações Naturais e Outras comédias. Porto Alegre, Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969. MACIEL, Luís Carlos. Negócio Seguinte. Rio de Janeiro: Codecri, 1982. QORPO-SANTO, (Pseud. de José Joaquim de Campos Leão). Teatro Completo. Rio de Janeiro/ Serviço Nacional de Teatro, Fundação Nacional de Arte, 1980. REVISTA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA. “Caderno Especial”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Ano IV, nº 2, jul/1968. 3) JORNAIS E REVISTAS: a) Matérias críticas em jornal: ARRABAL, José. A Ressurreição de Qorpo-Santo. Rio de Janeiro, O Jornal, 18/02/1968, 2º Caderno, p. 3. BITTENCOURT, Dario de. Algumas Idéias de Qorpo-Santo. Porto Alegre, Correio do Povo, 124-08/1966, p. 4. CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro. Artistas Repelem Cortes na Peça de Qorpo-Santo - 2/6/1968, 1º Caderno, p. 19. 140
  • 141. CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro. Ator Não Assina Acordo com a Censura Federal - 1/6/1968, 1º Caderno, p. 13. CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro. Censor veta `As Relações Naturais´ - 22/5/1968, 1º Caderno, p. 1. CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro. Censura Quer Sua Estética no Teatro - 29/5/1968, 1º Caderno, p. 9. CORREIO DA MANHÃ, Rio de Janeiro. Peça de Santo Foi Proibida no Rio: Relações Naturais - 22/5/1968, 1º Caderno, p. 10. DANTAS, Pedro. Descoberta de Qorpo-Santo. São Paulo, O Estado de São Paulo, 15/12/1968, p. 4. DANTAS, Pedro. Um Século Depois. Rio de Janeiro, Diário de Notícias. 7/1/1969 (Reproduzido na 4ª capa de Qorpo-Santo – As Relações Naturais e Outras Comédias). DAVI, Carlos. Mateus e Mateusa. In: Teatro. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 5/6/1968, 2º Caderno, p. 2 (Sobre a montagem desta peça sob a direção de Djalma Limonge). DAVI, Carlos. Os Fuzis da Sra. Carrar. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 5/7/1968, 2º Caderno, p. 2 (Menção à montagem de Mateus e Mateusa, direção de Djalma Limonge). DAVI, Carlos. Os Impulsos Perigosos. In: Teatro. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 31/5/1968, 2º Caderno, p. 2 (Nota sobre a proibição, pela Censura Federal, da montagem de As relações Naturais pelo Teatro Jovem). DAVI, Carlos. Teatro. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 2/6/1968, 2º Caderno, p. 3 (Nota sobre a encenação de As Relações Naturais no Teatro Nacional de Comédia). DAVI, Carlos. Teatro. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 2/6/1968, 2º Caderno, p. 3. (Sobre a liberação da peça). GALVANI, Valter. Noite de Ontem Passou a Ser no Teatro Histórica: Redescoberta de Qorpo-Santo. Porto Alegre, Folha da Tarde, 27/8/1968, p. 25. HINES, Fred. Universitário Americano no Brasil para Estudar Obra de Qorpo-Santo. Porto Alegre, Correio do Povo, 1/11/1973, p. 13. LARETTI, Pedro. Qorpo-Santo. Rio de Janeiro. O Pasquim, n.º 79, 6/12/1071, p. 31. (Nota sobre a montagem de Hoje Sou Um, Amanhã Outro, dirigida por Pedro Touron). LOPES, Rosita Thomas. Matheus e Matheusa. In: Informa. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 7/6/1968, 2º Caderno, p. 3 (Nota sobre a encenação desta peça no Conservatório Nacional de Teatro). MACIEL, Luís Carlos. O ‘caso’ Qorpo-Santo. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 26/05/1968. 141
  • 142. MAGALDI, Sábato. Os Erros desta Montagem de Qorpo-Santo. In: Divirta-se. São Paulo, Jornal da Tarde, 2/10/1972, p. 43. MAGNO, Paschoal Carlos. Estudante Quebra Preconceitos no Teatro. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 2/2/1968, 1º Caderno, p. 7 (Entrevista). MANCUSO, Delmar. Qorpo-Santo, Apenas o Artista. Porto Alegre, Diário de Notícias, 2º Caderno, 22/12/1968, p. 2. MICHALSKI, Yan. O Promissor Pacto Entre Gente e Boneco. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil. Caderno B, 25/10/1970, p. 7. --------------. O Sensacional Qorpo-Santo. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil, caderno B, 8/2/1968 (Este artigo foi reproduzido no Correio do Povo de Porto Alegre a 11/2/1968). --------------. Primeira Crítica: As Relações Naturais. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil. 1º Caderno, 15/5/1968, p. 16. --------------. Qorpo-Santo em Livro. Rio de Janeiro, Jornal do Brasil. Caderno B, 8/10/1969, p. 2. PIGNATARI, Décio. Qorpo-Santo. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 26/03/1967, 4º Caderno. Reimpresso em Contracomunicação. São Paulo, Perspectiva, 1971. PILLA, Maria Regina. Qorpo-Santo em Três Direções. Porto Alegre, Zero Hora, 21/10/1966, p. 31. RODRIGUES, Jaime. Censura, Essa Dama Indigna. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 5/6/1968, 2º Caderno, p. 4 (Sobre a proibição pela Censura Federal de montagem de As Relações Naturais pelo Teatro Jovem). SANDRONI, Cícero. S/ título. In: Quatro Cantos. Rio de Janeiro, Correio da Manhã, 21/6/1968, 1º Caderno, p. 7. (Nota sobre a montagem de As Relações Naturais pelo Teatro Jovem). b) Matérias críticas em revistas: Teatro/ Realmente Louco. Veja e Leia. São Paulo, Editora Abril, 18/11/1970. (Sobre a montagem de Hoje Sou Um, Amanhã sou Outro, sob a direção de Pedro Touron). 142
  • 143. Teatro/Panorama Carioca. Fatos & Fotos. Rio de Janeiro, Editora Bloch, 30/05/1968. (Comentário sobre a montagem de As Relações Naturais pelo Teatro Jovem). 143
  • 144. ANEXO – Comédia As Relações Naturais. [Retirado de: CÉSAR, Guilhermino. Qorpo-Santo: As Relações Naturais e Outras comédias. Porto Alegre, Faculdade de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1969.] 144