BARBARA BLANCO POZATTO
O RÁDIO COMO ATOR:
ANÁLISE DA PEÇA O VÔO SOBRE O OCEANO, DE
BERTOLT BRECHT, SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN
Londrina
2016
BARBARA BLANCO POZATTO
O RÁDIO COMO ATOR:
ANÁLISE DA PEÇA O VÔO SOBRE O OCEANO, DE
BERTOLT BRECHT, SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Departamento de
Comunicação da Universidade Estadual de
Londrina, como requisito à obtenção do título
de Bacharel em Comunicação Social –
Habilitação em Jornalismo.
Orientador: Prof. Dr. Manoel Dourado Bastos
Londrina
2016
BARBARA BLANCO POZATTO
O RÁDIO COMO ATOR:
ANÁLISE DA PEÇA O VÔO SOBRE O OCEANO, DE
BERTOLT BRECHT, SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Departamento de
Comunicação da Universidade Estadual de
Londrina, como requisito parcial à obtenção
do título de Bacharel em Comunicação
Social – Habilitação em Jornalismo.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
Orientador: Prof. Dr. Manoel Dourado Bastos
Universidade Estadual de Londrina - UEL
____________________________________
Prof. Dr. Silvio Ricardo Demétrio
Universidade Estadual de Londrina - UEL
______________________________
Prof. Dr. Alberto Carlos Augusto Klein
Universidade Estadual de Londrina -UEL
Londrina, _____de ___________de _____.
Dedico este trabalho à minha mãe, que
sempre foi incansável na luta pela minha
felicidade. Do ventre aos fichamentos
desta pesquisa e às confusões
brechtianas, ela foi sempre convicta de
que no final ―vai dar tudo certo‖. É ela o
meu banco para empréstimo de forças,
principalmente a de vontade.
AGRADECIMENTOS
Para que este trabalho se realizasse, devo agradecer, principalmente,
ao meu orientador, Manoel, que foi, para mim, é e será, para muitos alunos, um
professor ―acima da média‖. Um dos males da educação é avaliarmos somente os
alunos, mas eu, como professora também, reparo sua força de vontade em ser
presente, em se dedicar à leitura dos mais diferentes assuntos e a, simples e
eficazmente, ensinar. Mais que isso: trocar. Não sei o que seria desta pesquisa se
não fosse sua bibliografia impossível de ser contabilizada. Ademais, agradeço pela
sua humanidade. São raros os professores que veem os alunos como pessoas, não
como números, porcentagens ou mais textos para corrigir; que enxergam as
potências, incentivam os gostos, aprimoram as qualidades. Agradeço pela paciência
com as minhas crises e dramas, por explicar cinquenta vezes a mesma teoria. Eu só
não agradeço pela sua objetividade em me responder, mas, em contrapartida,
agradeço por se dispor até pelo celular. Agradeço pela rua que me deu de presente,
que acabou virando mais que rua, virou história, memória, afeto. E agradeço por me
emprestar um tanto de ―coragem, pra seguir viagem‖, que vai virar companheira do
medo e das paixões.
Agradeço também à minha família – meu pai, minha mãe e meu irmão
–, que não poupa esforços para que eu me realize. O amor de família é o mais rico
de todos, porque não deixa de existir nem com o tempo, nem com a distância. À
minha genitora, agradeço por essa fortaleza, por ser raiz firme e me ajudar nos
balanços da vida, por me ensinar a cuidar dos frutos que a vida me deu e me dá, a
amadurecê-los, não me deixar cair; por auxiliar com as flores que eu ainda preciso
regar para crescerem. Ao meu pai, agradeço por me mostrar a saudade, por lembrar
que eu ―não sou fraca, não‖ e por acreditar em mim, mesmo às vezes se perdendo
na noção do quanto eu venho crescendo; por ser para sempre ―a sua lindinha‖. Ao
meu irmão, por ser o exemplo mais foda que eu conheço. Você é simples na sua
complexidade. Agradeço por ter aguentado desde as minhas ―escavações ao fundo
do poço‖ até os meus atuais desabafos e confusões. Eu sei que, pela vida afora,
vou levar o amor fraterno (forte tal qual é), os conselhos de irmão mais velho, as
suas conclusões irreversíveis (quero dizer, racionais), as suas piadas sem graça, o
dinheiro que eu roubei do seu cofrinho, a confiança (que eu espero que tenha
voltado a existir depois do cofrinho) e os aprendizados de como lidar com as
pessoas, em todos os âmbitos. ―Vida que segue, zermãozinho querido‖. Espero que
seus passos (muito maiores e mais rápidos que os meus) continuem me levando
para frente, pelos caminhos que a gente se colocar.
Aos meus colegas de sala, que me ensinaram a trabalhar em equipe.
Mostraram o quanto isso requer respeito e paciência, ao jeito e ao tempo do outro.
Fizeram-me enxergar esse ―outro‖ diferente, afinal, são quatro anos de convivência.
No fim, vejo um saldo positivo de afeto, pois ele vem, para mim, com a tolerância e a
harmonia embutidos. Obrigada por serem tão diferentes entre si, e por isso
acrescentarem de diversas maneiras distintas.
À minha amiga Luiza Bellotto, que foi incansável em sua função de
ombro firme, de abraço apertado, de lenço para lágrimas, de parceria para trabalhos
chatos (raros legais), de pernas para danças, de ouvidos atentos para desabafos
intermináveis, de paciência para crises repetitivas, de ―lugarzinho‖ para aconchego
nas angústias e de companhia para dias felizes, outros tristes, alguns lotados, outros
vazios. Agradeço desde já pelo futuro que nos aguarda, pois sei que vamos em
frente por estradas diferentes, mas sei que não vou perder seu número, nem
esquecer sua voz ou seu jeito de me dar broncas.
Ao meu pseudo marido, irmão, pai e filho, José Henrique: você é
presente. Em todos os sentidos que a palavra dá. Você eu ganhei da vida. Acho que
juntaram tudo que faltava em mim e colocaram em você, meu bichinho bonito.
Somos a contradição em forma de amor. Obrigada por me acompanhar em todas,
inclusive nesta.
À Marina Lainetti, a amiga-surpresa que colocaram para mim num
momento não muito amigável do curso, prestes a reprovarmos em Economia.
Agradeço por encarar comigo um cronograma maluco para terminarmos nossos
trabalhos, por topar as minhas doidices, compactuar com os meus gostos, as minhas
manias e por entender a minha loucura que, afinal, parece um pouco com a sua, né?
Agradeço por confiar em mim, por me permitir roubar um pouco da sua essência, da
sua vulnerabilidade e da sua graça e dividir comigo o doce que é essa vida (rs). Sou
grata pelas madrugadas loucas, pelas ideias bizarras e pelas conversas e trocas
sensatas.
À minha terapeuta, por me ajudar a desvendar minha existência e,
consequentemente, desmembrar todo esse processo que foi participar do curso de
Jornalismo e fazer esta pesquisa.
Ao Mateus Dinali, Jamile Monteiro e Iago Salomon, meus amigos ―de
infância‖, que estão sempre a me incentivar e ajudar nas intempéries ou
acompanhar nas peripécias. Estiveram presentes em minha fase de colégio, de
universitária e espero que estejam em todas as próximas, assiduamente. Em
especial, Mateus, pela parte australiana, quer dizer, inglesa do trabalho.
Agradeço aos professores da graduação, em especial ao Emerson
Dias, Márcia Buzalaf, Flávio Freire, Silvio Demetrio e o já mencionado Manoel D.
Bastos, por serem dedicados ao trabalho de passar conhecimento ao próximo.
Aproveito para agradecer à banca pela disposição e atenção e ao senhor Luiz,
servidor da secretaria, o qual nos recepciona todas as noites com um sorriso inteiro
no rosto.
Também agradeço aos meus professores de teatro, Silvio Ribeiro,
Edna Aguiar, Carol Ribeiro e Guilherme Kirchheim, por acreditarem na arte como
resposta às angústias e prisões dessa realidade tão cruel a que estamos
submetidos. Meu ―muito obrigada‖, com todo o meu coração, por me mostrarem que
eu podia ser mil, estando no corpo de uma só; por transformarem meus pontos de
vista, minha maneira de ―enxergar‖ o mundo e me deixar ser inteira, intensa. E,
claro, por terem me apresentado Bertolt Brecht nos palcos.
Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?
Bertolt Brecht
POZATTO, Barbara Blanco. O rádio como ator: análise da peça O vôo sobre o
oceano, de Bertolt Brecht, sob o olhar de Walter Benjamin. 2016. 95. Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social – Habilitação em
Jornalismo) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016.
RESUMO
O dramaturgo alemão Bertolt Brecht buscava o rompimento com a tradição, ou seja,
a arte sempre deveria cumprir um intuito político e social. Para tanto, de acordo com
o contexto em que estava inserido, revolucionou o teatro do século XX. Este trabalho
pretende analisar O vôo sobre o oceano – peça didática radiofônica para rapazes e
moças, escrita em 1928/29, trazendo à tona a perspectiva histórica do rádio e suas
discussões, as quais perduram na atual comunicação social. Explicita, inclusive, a
Teoria do Rádio do próprio Brecht. Além disso, mostra os moldes e ideais do Teatro
épico, bem como das peças de aprendizagem do autor. Apresenta, também, a
perspectiva de pensadores consagrados como Walter Benjamin, por meio de seu
conceito sobre ―A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica‖ e demais
considerações sobre o teatro dialético proposto em convergência com a
comunicação e as forças de produção.
Palavras-chave: Bertolt Brecht. Teatro épico. Teoria do rádio. O vôo sobre o
oceano. Walter Benjamin.
POZATTO, Barbara Blanco. The radio as an actor: analysis of the theater play The
flight across the Ocean, by Bertolt Brecht, through the perspective of Walter
Benjamin. 2016. 95. Course Final Work (Graduation in Social Communication –
specialized in Journalism) – State University of Londrina, Londrina, 2016.
ABSTRACT
The German playwright Bertolt Brecht sought to break with tradition, meaning that the
art should always serve a political and social purpose. To this end, according to the
context in which it was entered, it revolutionized the theater of the twentieth century.
This work intends to analyze The flight across the Ocean - radio didactic play for men
and women, written in 1928/29, revealing the historical radio perspective and its
discussions, which persists in the current social communication. It also explicit the
Radio Theory by Brecht himself. Moreover it shows forms and ideals of the epic
theater, as well as the author's learning plays. It also presents the perspective of
great thinkers, such as Walter Benjamin, through his concept about "The Work of Art
in the Age of Mechanical Reproduction" and other considerations about the
dialectical theater proposed in convergence with the communication and the
production forces.
Key words: Bertolt Brecht. Epic Theater. Radio Theory. The flight across the Ocean.
Walter Benjamin
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..........................................................................................11
2 TEATRO MODERNO................................................................................16
3 BERTOLT BRECHT .................................................................................23
3.1 O TEATRO ÉPICO...........................................................................................28
3.1.1 As Peças de Aprendizagem .......................................................................38
4 SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN ...............................................50
5 O ADVENTO DO RÁDIO NA ALEMANHA...............................................64
5.1 TEORIA DO RÁDIO DE BRECHT .......................................................................66
6 ANÁLISE E APONTAMENTOS SOBRE O VÔO SOBRE O OCEANO ...76
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................86
REFERÊNCIAS.........................................................................................90
ANEXO .....................................................................................................94
ANEXO A – CD-ROM com a peça radiofônica O vôo sobre o oceano
digitalizada (PDF)......................................................................................94
11
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho é resultado da minha afeição com a parte cultural que
envolve comunicação. Ao longo do curso, diversos foram os temas pensados, mas,
depois de muitas discussões acerca do assunto, optou-se por este, que traz à tona o
universo do teatro participando da comunicação e vice-versa.
Traz também minha inquietação para conseguir aproximar os dois
universos, já que, antes – e durante – o curso de Jornalismo, minha vida foi
dedicada à prática teatral.
Trata-se de entender a fundo o que os comunicadores podem
apreender com o teatro, e o que os atores (ou o teatro em geral) podem apreender
com os comunicadores.
Intenta-se, nesta pesquisa, traçar um paralelo da comunicação social
com o teatro, a partir de um dramaturgo, poeta e encenador alemão muito
consagrado pelos seus ideais e pensamentos no século XX, Bertolt Brecht, o qual
tem artigos e peças bastante influentes e significativos para a atualidade.
Faz-se pertinente ressaltar à contextualização de seus pensamentos
que ele se dedicou ao estudo do marxismo e viveu o intenso período das
mobilizações da República de Weimar.
A série de conflitos que ocorriam em diversas partes do mundo
prenunciava a eclosão de uma grande guerra mundial. A Alemanha
ostentava uma oligarquia financeira compacta, resultado de uma
concentração do capital industrial aliado ao capital bancário,
formando monopólios poderosos. Nesse cenário, a classe operária
passava por momentos difíceis e de uma forma bastante tímida no
início, eclodiam esporadicamente movimentos de revolta contra o
regime burguês. Não é, portanto de se estranhar, que toda a obra de
Brecht virá marcada pela luta contra o capitalismo e contra o
imperialismo. (OLIVEIRA, [2013]).
Assim foi a república estabelecida na Alemanha após a Primeira
Guerra Mundial, em 1919, perdurando até o início do regime nazista, com um
sistema de governo chamado de democracia representativa semi-presidencial. O
nome oficial da Alemanha continuou, sob a República, a ser Deutsches Reich
(literalmente, Império Alemão).
Na eleição de 1919, a primeira em que as mulheres puderam votar, o
resultado foi a democracia parlamentar. Então, a Constituição foi promulgada em
12
agosto daquele ano, acentuando a unidade alemã. É preciso salientar que as
dificuldades econômicas do pós-guerra e as rigorosas condições impostas pelo
Tratado de Versalhes originaram um profundo ceticismo em relação à república.
Este período tem o nome de Weimar, pois foi essa cidade que reuniu,
desde 6 de fevereiro até 11 de agosto de 1919, data da aprovação da nova
Constituição, a Assembleia Nacional constituinte da República. A fragilidade dessa
república, formada pelo socialdemocrata Friedrich Ebert, contribuiu para a expansão
de movimentos radicais e para fortalecer os nazistas.
Nesse ambiente conturbado, Adolf Hitler, então chefe do pequeno
Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), tentou um golpe
fracassado em Munique. A época também foi marcada por tentativas dos comunistas
de tomar o poder, até que, em 1933, o regime nazista teve início solidamente.
Sabe-se, inclusive por intermédio de Fredric Jameson (1999, p.89), da
sanha genocida de Hitler, principalmente as relativas ao holocausto. Brecht não quis
―pagar para ver‖ e em 28 de fevereiro de 1933, dia seguinte ao incêndio do
Reichstag, fugiu da Alemanha com a família para o exílio.
Ficou restrito ao campo da esquerda as investidas nazistas contra os
partidos dos trabalhadores e todas as suas organizações. Nas palavras de Eve
Rosenhaft (1994, p. 20):
[...] bares, diretórios de partidos, sindicatos, jornais, livrarias, salas de
leitura, clubes, hospitais, escolas, centros de assistência social e
teatros que fizeram o tecido da cultura de Weimar foram os primeiros
objetos da onda de vandalismo oficial realizada em nome da ordem,
da decência pública e da economia.
O trabalho de Brecht como artista concentrou-se na crítica às relações
humanas no sistema capitalista. Além disso, foi assíduo conhecedor do teatro
político de Erwin Piscator. Outros nomes também foram de suma importância ao
trabalho de Brecht, como Vsevolod Emilevitch Meyerhold e Viktor Chklovski.
Também procurou basear-se no teatro experimental da Rússia soviética.
Passando para o campo da comunicação, este trabalho parte do
pressuposto de que o comunicador tenha consciência cultural, social e política,
fatores concernentes à vivência diária.
Considerando tal proposição, é importante lembrar o sistema a que
estamos submetidos, chamado de capitalista, justamente por ter o ―capital‖ como
13
fator crucial e preponderante nas relações humanas. Esse fato, lembrado com
ênfase nos trabalhos artísticos e teóricos de Brecht, faz de suas criações críticas e
atuais, levando em conta que se deve sempre refletir sobre a situação em que
estamos inseridos. Para o autor, o socialismo era a própria promessa do progresso
social, avanço das forças produtivas rebelando-se contra as relações de produção.
Como meio de criticar artisticamente a realidade e, então, o sistema em
que estava inserido, Bertolt Brecht propôs uma maneira diferente de pensar o teatro:
O teatro que conheceu, o teatro burguês, também é – como ele
percebeu – um substituto para o entorpecente. Sua missão como
pensador foi a de arrancar o teatro dessa condição e restituir-lhe um
sentido efetivo. Sua missão como artista, a de fazer uma realidade
dessa ideia. Desde que o teatro, comparado com os outros, é um
entorpecente fraco, cumpre descobrir sua força no exercício de outra
função. (MACIEL, 1967, p.4).
Portanto, a fim de satisfazer suas indignações com o teatro feito em
sua época, que não o satisfazia como possibilidade de diversão, formulou o teatro
épico, uma das grandes teorias de interpretação do século XX, a qual propõe uma
interpretação gestual, em que o público exerce uma operação crítica do
comportamento humano. Não é oferecido ao público que ele se ludibrie com as
encenações, mas sim que consiga examinar as cenas de forma pensante.
Atendo-me a tais preceitos, este trabalho tem como segundo capítulo
uma breve exposição do Teatro Moderno ou conhecido como Pós-dramático, a fim
de contextualizar a época em que Brecht surgiu e tornou-se atuante e significativo.
Tal teatro é organizado por conta das mudanças sociais e políticas da passagem do
século XIX ao século XX, o que faz a forma teatral ser alterada.
Aparece, então, a questão das novas técnicas de produção e
reprodução, o que chamamos hoje de meios de comunicação. Brecht tenta colocar
em suas obras a discussão sobre a inovação técnica, pelo rádio e o avião, por
exemplo, como aparece na peça-objeto deste trabalho.
Em seguida, dar-se-á a apresentação da biografia, trajetória e legado
de Bertolt Brecht, propondo uma assimilação do que se entende por seu teatro épico
e o interligado Efeito do Distanciamento. Como adendo e a fim de explanar melhor o
objeto em estudo, também trataremos dos preceitos que conceituam as peças de
aprendizagem.
14
Para que se solidifique a ponte entre comunicação e teatro, foi
escolhida como objeto de análise e base para as demais considerações, a peça O
vôo sobre o oceano – peça didática radiofônica para rapazes e moças, escrita em
1928/29, a qual conta a história do primeiro voo sobre o oceano Atlântico feito por
um aviador solitário no comando do avião.
Essa peça, como mostra o subtítulo, foi escrita para ser transmitida por
meio do aparelho radiofônico, o qual, segundo Brecht, deveria ter o imperativo da
interatividade, ou seja, deveria ser feito para permitir a interação entre os homens,
não ser apenas um aparelho de emissão controlado pelos monopólios e a serviço da
lógica mercantil. A peça apresenta uma utilização inédita do rádio: foi feita para o
rádio e o rádio é "personagem" da peça, pois conta, de diversos ângulos, as
intempéries pelas quais passa o herói.
A escolha de Brecht por escrever uma peça radiofônica não aparece
sozinha, pelo contrário, tem o respaldo de ser, ainda, considerada didática. A autora
Urânia de Oliveira cita Ingrid Koudela (1991) e expõe que o termo original em
alemão é Lehrstück. Afirma que a tradução mais correta desse termo seria ‗peça de
aprendizagem‘, ―à medida que o termo ‗didático‘ na acepção tradicional, implica
‗doar‘ conteúdos através de uma relação autoritária entre aquele que ‗detém‘ o
conhecimento e aquele que é ‗ignorante‘‖ (KOUDELA apud OLIVEIRA, [2013]). A
função das Lehrstücke – peças didáticas – era fazer que seus participantes fossem
ativos e reflexivos ao mesmo tempo.
Para expandir o pensamento comunicacional sobre a arte, conceitos e
ponderações de autores relevantes se farão presentes, tais como o de Walter
Benjamin, o qual escreveu artigos pertinentes em relação ao nosso objeto: ―Que é o
teatro épico? – Um estudo sobre Brecht‖ e ―O autor como produtor – Conferência
pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo em Paris, 27 de abril de 1934‖.
Além do mais, Benjamin redigiu importante consideração sobre as
relações entre cultura e os meios de comunicação em ―A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica‖, que também será útil à nossa análise comunicacional.
Isso porque Brecht trabalhou duplamente com a questão da
reprodutibilidade técnica, com a comunicação como conteúdo de uma peça de
teatro, mas também como forma. Pensando em explorar esses conceitos, o quarto
capítulo é intitulado ―Sob o olhar de Walter Benjamin‖.
15
Já que Brecht usa o rádio, considerado um meio de comunicação, para
difundir seus pensamentos e aprendizagens em conjunto, escolheu-se abordar, no
quinto capítulo desta pesquisa, a apresentação do rádio no contexto alemão da
época e a Teoria do rádio para o escritor alemão, na qual ele expõe seus ideais de
como deveria funcionar esse meio de comunicação, ou seja, o ouvinte também
poderia promover o ato de comunicar.
A fim de expandir a possibilidade analítica deste trabalho, destrinchar-
se-á o objeto desta pesquisa, que se trata da peça O vôo sobre o oceano – peça
didática radiofônica para rapazes e moças. A intenção, no sexto capítulo, é
contextualizar a época em que foi escrita, contar do que se trata e considerar os
pormenores significativos ao entendimento e interiorização da obra, partindo dos
pressupostos mencionados nos capítulos subsequentes.
Deve-se considerar e lembrar que a posição de Brecht em relação aos
prazeres da cultura de massas atravessa a tão engendrada oposição entre
populismo e elitismo. Isso significa que a sua função não é o prazer, mas pensar
historicamente estética e cultura, perpassando a comunicação.
Lembro, então, que é preciso ler o texto como um todo, um conjunto
que se complementa, já que aos comunicólogos pode parecer que há muito teatro.
Aos amantes do teatro, parecerá que existe demasiada comunicação. O que quero
mostrar com este trabalho é que, depois de Brecht, é preciso buscar entender a
relação entre os dois.
16
2 TEATRO MODERNO
Para elucidarmos melhor a época em que Brecht apareceu no contexto
mundial, é primordial que adentremos no âmbito da transição do teatro dramático,
denominado aristotélico pelo autor, até o Teatro Moderno, de que Brecht é parte.
Este capítulo objetiva abordar essa época expondo as principais características
inerentes às pesquisas e experimentações de artistas e pensadores de destaque,
nesse período considerado conturbado em relação às mudanças na arte.
A fim de atingir uma melhor compreensão sobre o intervalo de tempo
posto, propõe-se uma gama de autores que refletem, com nomeações variadas,
sobre o Teatro Moderno. Como base para a exposição dos conceitos, usaremos
autores como Peter Szondi e a Teoria do drama moderno [1880 – 1950], Iná
Camargo Costa e suas obras Sinta o drama e Nem uma lágrima: teatro épico em
perspectiva dialética, bem como Raymond Williams e seu livro Drama em cena. Tais
obras também farão parte das reflexões sobre o teatro épico exposto mais adiante.
Não é o objetivo deste capítulo suscitar as características marcantes do
teatro épico formulado e teorizado por Brecht, mas apontar as diferenças enfáticas
entre o teatro postulado como dramático e o aqui chamado de Moderno. É com base
na historicização que ressaltaremos as transformações do teatro para o século XX.
De acordo com Iná Camargo Costa (2012, pp.15-16), podemos elucidar
melhor o que é o drama:
Segundo uma definição quase aceitável por qualquer manual do
século XIX, drama é a forma teatral que pressupõe uma ordem social
construída a partir de indivíduos [...] e tem por objeto a configuração
das suas relações, chamadas intersubjetivas, através do diálogo. O
produto dessas relações intersubjetivas é chamado ação dramática,
e esta pressupõe a liberdade individual (o nome filosófico da livre-
iniciativa burguesa), os vínculos que os indivíduos têm ou
estabelecem entre si, os conflitos entre as vontades e a capacidade
de decisão de cada um. (grifo da autora)
E ela completa explanando que, como característica, o enredo do
teatro dito dramático funciona, principalmente, por meio do diálogo, devendo ter, de
modo claro, começo, meio e fim, em uma determinação tipicamente temporal,
chamada de enredo ou entrecho, com a possibilidade da existência do nó dramático,
nó cego, desenlace, entre outras nomenclaturas.
17
Além disso, o drama pressupõe que se tenha suspense, deixando o
público ―preso‖ pela curiosidade em relação ao desfecho da história. A autora
também exprime que, no drama, ―não há lugar para o inexprimível (o que não se
traduz em discurso, incluindo ‗caras e bocas‘), pois ele expõe relações
intersubjetivas‖ (2012, p.16, grifo da autora). Ademais, os temas que interessam ao
drama precisam estar no âmbito dessas relações, ou seja, precisam pertencer à vida
privada.
Essas exigências levam-nos ao princípio formal do drama: a
autonomia. O drama deve ser um todo autônomo, absoluto. Não
pode remeter a um antes, nem a um depois e muito menos ao que
lhe é exterior. [...] A exigência das unidades dramáticas não é, por
isso, mero arbítrio de críticos ranzinzas, mas consequência
necessária do princípio formal. [...] Assim, trocando mais em miúdos,
sobre os personagens do drama pode-se dizer que devem ser
indivíduos bem caracterizados, e é por essa razão que os críticos
exigem profundidade psicológica dos dramaturgos. Esses indivíduos
devem ser capazes de assumir seu próprio destino, bem como as
consequências dos seus atos, sem se submeterem a instâncias
externas ou superiores (fatalidade, deuses, tradições). (COSTA,
1998, pp. 56-57, grifo da autora).
A profundidade psicológica por parte dos indivíduos da peça será
enfatizada pela interpretação do autor, como mostra Szondi (2001, p.31): ―A arte do
ator também está orientada ao drama como um absoluto. A relação ator-papel de
modo algum deve ser visível; ao contrário, o ator e a personagem têm de unir-se,
constituindo o homem dramático‖.
Outra consequência que tange às interpretações dramáticas é a
relação com o espectador, objetivada na quarta parede, que se trata de uma parede
imaginária situada na frente do palco do teatro. Sendo assim, o ―drama exige do
espectador uma passividade total e irracional: separação ou identificação perfeita‖
(COSTA, 2012, pp.16-17). É por esse fator que a cena frontal é a cena própria para
o drama e o autor se identifica absolutamente com o personagem.
Para ratificar tal elucidação, temos a compreensão de Peter Szondi
sobre o drama e a relação estabelecida com o público:
Assim como a fala dramática não é expressão do autor, tampouco é
uma alocução dirigida ao público. Ao contrário, este assiste à
conversão dramática: calado, com os braços cruzados, paralisado
pela impressão de um segundo mundo. Mas sua passividade total
tem (e nisso se baseia a experiência dramática) de converter-se em
18
uma atividade irracional: o espectador era e é arrancado para o jogo
dramático, torna-se o próprio falante (pela boca de todas as
personagens, bem entendido). A relação espectador-drama conhece
somente a separação e a identidade perfeitas, mas não a invasão do
drama pelo espectador ou a interpelação do espectador pelo drama.
No século XX, que dá voz e vez ao Teatro Moderno, os fundamentos
estéticos e racionais vivenciados no século anterior, em que predominava o
Naturalismo cênico, principalmente no que se refere à interação entre plateia e
atores, foram transgredidos e desafiados, trazendo à tona inovações teatrais, por
meio de experimentações no modo de fazer teatro.
Levando em consideração as análises sobre as mudanças na forma
teatral, em que a classe de operários passa a tomar conta do espaço teatral, de Iná
Camargo Costa (1998, p.20), temos:
A experiência social dessas novas realidades é o novo conteúdo que
a forma do drama já não tinha como configurar. O drama naturalista
foi, historicamente, a primeira tentativa de dar conta dele, por isso
sua natural incapacidade de superar as dificuldades que a camisa de
força da antiga forma impunha: [...] a necessidade de dar voz no
teatro à classe operária que começava a conquistar espaço na cena
política fez com que o drama começasse a narrar e o drama deu o
primeiro passo em direção ao teatro épico. (grifo da autora).
Dessa forma, o conhecido ―melodrama‖ burguês, do final do século
XIX, não aceita em seu conteúdo o que ―quer continuar a enunciar formalmente: a
atualidade intersubjetiva. O que vincula as diversas obras da época e remonta à
mudança ocorrida em sua temática é a oposição sujeito-objeto, que determina seus
novos contornos‖ (SZONDI, 2001, p.92).
Rompe-se, portanto, com o idealismo romântico e faz surgir o
Realismo, cujo um dos representantes foi o russo Anton Tchekhov (1860-1904), o
qual retratava o declínio da burguesia russa. Na concepção de José A. Pasta Júnior
(2001, p.13), analisando a obra de Peter Szondi, temos:
Szondi identifica, na tradição, o momento em que se constitui a forma
do drama propriamente dito. Para ele, o drama da época moderna
surgiu no Renascimento – quando a forma dramática, após a
supressão do prólogo, do coro e do epílogo, concentrou-se
exclusivamente na reprodução das relações inter-humanas, ou seja,
encontrou no diálogo, sua mediação universal. O drama que surge
daí é ―absoluto‖, no sentido de que só se representa a si mesmo –
estando fora dele, quanto realidade que não conhece nada além de
19
si, tanto o autor quanto o espectador, o passado enquanto tal ou a
própria convizinhança dos espaços. (grifo do autor)
Estudando, sucessivamente, Ibsen, Tchékhov, Strindberg, Maeterlinck
e Hauptmann, o procedimento de Szondi será o de examinar, nas peças, a
contradição crescente entre a forma do drama, presente nelas como modelo não
diretamente questionado, e os novos conteúdos que elas tratam de assimilar.
Segundo Pasta Júnior (2001, p.14):
O núcleo do confronto, que caracteriza a crise da forma dramática,
encontra-se na crescente separação de sujeito e objeto – cuja
conversão recíproca era a base da absolutez do drama –, separação
que mais e mais se manifesta nas obras, principalmente pela
impossibilidade de diálogo e pela emersão do elemento épico.
Iná Camargo Costa (2012, p.91), por sua vez, faz um resumo
pertinente sobre as estruturas desses autores enfatizados por Szondi:
Com Hauptmann, vimos a forma do drama burguês operando como
um obstáculo real para a exposição da luta ocorrida na Silésia. Ibsen
questionou objetivamente a universalidade do conceito burguês de
indivíduo, mostrando que ele exclui pelo menos a metade feminina
da humanidade. Tchekhov mostrou que a burguesia e sua forma
teatral não tinham futuro. Strindberg descobriu, com o drama de
estações, uma forma de romper com a objetividade do drama,
abrindo o caminho para o aparecimento do foco narrativo e, com ele,
a possibilidade de ultrapassar as limitações da narrativa dramática,
que exige, entre outras determinações, o encadeamento causal dos
acontecimentos. As duas gerações do Expressionismo consolidaram
a forma épica, e a segunda mostrou o seu interesse para os
trabalhadores na exposição de seus próprios assuntos.
Marca-se, então, a eclosão de novos movimentos que começaram a se
instaurar em oposição às ―regras‖ artísticas antes dominantes. De acordo com Pavis
(1999), no Dicionário do Teatro, o Expressionismo teve início por volta de 1910, na
Alemanha, rejeitando a ilusão criada em cena pelo Naturalismo. O expressionismo
inovou o cenário de forma radical, estilizando e distorcendo os elementos da cena.
Tinha como foco chamar a atenção do público para a arte em si mesma e não para a
imitação da vida.
Retomando um teorema de Peter Szondi: a forma do drama tornou-
se um problema para os dramaturgos naturalistas que estavam
interessados em encenar assuntos definidos como épicos pelos
próprios adeptos do drama. Tornou-se mesmo uma camisa de força
20
que começou a se esgarçar nas mãos dos naturalistas e acabou se
rompendo ao tempo do teatro expressionista [...]. Sem muito
exagero, é possível dizer que dramaturgos expressionistas como
Georg Kaiser e Ernst Toller, na trilha dos experimentos de
Strindberg, já tinham encontrado uma nova forma de teatro não-
dramático. Só lhe faltava um nome. A essa tarefa dedicaram-se os
militantes do teatro político na Alemanha. (COSTA, 1998, p.98).
Georg Kaiser (1878-1945) e Ernst Toller (1893-1939), como apontado,
foram precursores do Expressionismo no teatro, e em seus trabalhos mostravam a
expressão do sentimento humano, em vez de apenas retratar a sua realidade
externa. Além disso, mostravam o homem em luta contra a mecanização
desumanizadora da sociedade industrial.
Mesmo com todas as diferenças que apresentam entre si, os
dramaturgos estudados nesse período se caracterizam pela assunção e
enfrentamento da crise da forma dramática, não se limitando a manifestá-la ou fugir
dela. Pode-se afirmar que, ao contrário,
[...] da perspectiva de Szondi, praticamente todos eles procuraram
―solucionar‖ a crise do drama assumindo como elementos temáticos
e formais, tão plenamente quanto possível, os elementos
contraditórios em cuja emersão ela se manifesta e, assim,
procurando recuperar para o teatro uma integridade estética à altura
dos impasses que ele defronta. (PASTA JÚNIOR, 2001, p. 17).
As duas primeiras décadas do século XX, segundo Costa (1998, pp.16-
17) assistem ao vertiginoso desenvolvimento dessas tendências por quase toda a
Europa e Estados Unidos. São muitos os autores que se colocam à disposição de
tais mudanças. Na Rússia, Gorki, Maiakóvski, Stanislaviski, Meyerhold; na
Alemanha, Hauptmann, Kaiser, Toller, Sternheim, Piscator, Max Reinhardt, entre
outros; na França, depois de Antoine e seus dramaturgos naturalistas, aparecem
Jacques Copeau, Romain Rolland, Jacques Prévert, Baty, Dullin, Jouvet e Pitsoëf;
na Itália, Pirandello e Bragaglia; na Inglaterra temos Bernard Shaw, O‘Casey e
Synge; e nos Estados Unidos, Elmer Rice, O‘Neill e Clifford Odets, entre inúmeros
outros.
Com a ascensão do nazismo, especificamente na Alemanha, em 1920,
muitos artistas estavam preocupados em trabalhar temas coletivos, reforçando a
abordagem anti-naturalista. Essa nova estética passa a ser conhecida como teatro
épico, cujo pioneiro foi Erwin Piscator (1893-1966), que teve como discípulo e
21
militante o alemão dramaturgo e poeta Bertolt Brecht (1898-1956), o qual
abordaremos com afinco no decorrer deste trabalho. As experiências de ambos
―principiam ali onde a contradição entre a temática social e a forma dramática vem à
tona: no ‗drama social‘ do naturalismo‖ (SZONDI, 2001, p.133).
Ainda segundo Szondi (2001, p.26),
As contradições entre a forma dramática e os problemas do presente
não devem ser expostas in abstracto, mas aprendidas no interior da
obra como contradições técnicas, isto é, como ―dificuldades‖. Seria
natural querer determinar, com base em um sistema de gêneros
poéticos, as mudanças na dramaturgia moderna que derivam das
problematizações da forma dramática. Mas é preciso renunciar à
poética sistemática, isto é, normativa, não certamente para escapar a
uma avaliação forçosamente negativa das tendências épicas, mas
porque a concepção histórica e dialética de forma e conteúdo retira
os fundamentos da poética sistemática enquanto tal. (grifo do autor).
E ele completa sua colocação levando a cabo a tensão entre forma e
conteúdo, que:
[...] se atribui à contradição entre a unificação dialógica de sujeito e
objeto na forma e sua separação no conteúdo. A ―dramaturgia épica‖
se desenvolveu à medida que a relação sujeito-objeto situada no
plano do conteúdo se consolida em forma. (Id., p. 98).
Como importante conquista advinda desse novo jeito de fazer teatro,
temos a possibilidade de tratar tanto da subjetividade mais íntima quanto dos mais
amplos assuntos da esfera do épico (históricos, políticos, econômicos). ―Ninguém
mais pode dizer, sem incorrer em conservadorismo acadêmico, ou autoritarismo
religioso, que algum assunto não é próprio para o teatro‖ (COSTA, 2012, p.19).
Já apontando para o que se coloca como teatro épico, o qual será
esmiuçado no capítulo seguinte, temos a superação da forma antiga, que se tornou
problemática, pois os conteúdos, desempenhando uma função formal, precipitam-se
completamente em forma, ―explodindo a forma antiga‖, como afirma Szondi (2001,
p.95).
Hans-Thies Lehmann (2007, p.69), em seu livro O teatro pós-
dramático, tende a acrescentar com uma definição de teatro:
Teatro pós-dramático pode ser concedido não como um teatro que
se encontra além do drama, sem relação alguma, mas muito mais
como desdobramento e florescimento de um potencial de
desagregação, de desmontagem, de desconstrução do próprio
22
drama. Surge um fenômeno impensável hegelianamente, já que o
mero ator individual situa-se acima do teor ético. (grifo do autor).
Além disso, complementa (p.402): ―[...] a representabilidade,
movimento da realidade teatral, não se opõe de modo nenhum à noção de que se
pode tratar da realidade humana sob a condição de que ela permaneça não
representável‖ (grifo do autor). À guisa de conclusão:
O conceito de teatro moderno compreende o processo histórico
desencadeado pela crise da forma do drama através da progressiva
adoção de recursos próprios dos gêneros lírico e épico que culminou
com o aparecimento de uma nova forma de dramaturgia – o teatro
épico. (COSTA, 1998, p.14, grifo da autora).
Com base nas apropriações do que se entende pelo Teatro Moderno,
temos a aproximação com o teatro épico próprio de Bertolt Brecht, o qual será mais
bem aprofundado adiante, voltando a alguns pormenores desenvolvidos neste
capítulo. Em seguida, dar-se-á início às reflexões de Benjamin sobre o teatro
brechtiano e os meios de comunicação – e sua utilização –, como modo de dar
sustentação à teoria do dramaturgo.
23
3 BERTOLT BRECHT1
Para elucidarmos melhor o objeto desta pesquisa, faz-se necessário
apresentar o autor da peça, bem como suas raízes, influências e legados. Trata-se
de Eugen Bertholt Friedrich Brecht, mais conhecido como Bertolt Brecht, que nasceu
no Estado Livre da Baviera, em Augsburg, no extremo sul da Alemanha, em 10 de
fevereiro de 1898.
Brecht se destacou, no século XX, como dramaturgo, poeta e
encenador, influenciando profundamente o Teatro Moderno e tornando-se
mundialmente conhecido.
Sobre sua vida acadêmica, estudou medicina e ciências naturais na
Universidade de Munique e trabalhou no serviço militar como enfermeiro durante a
Primeira Guerra Mundial. Era filho de Berthold Brecht, diretor de uma fábrica de
papel, católico, exigente e autoritário, e de Sophie Brezing, protestante, que fez seu
filho ser batizado nessa religião.
Na segunda metade de 1920, Brecht tornou-se marxista, vivenciando o
período das mobilizações da República de Weimar. Adentrando o contexto
culturalmente e considerando o teatro da época, eram conhecidas e renomadas as
atribuições absolutamente dramáticas ao modo de encenar.
O teatro no século XX, reduzido como o resto a uma mercadoria pelo
amadurecimento corruptor da sociedade capitalista. Desceu a uma
cotação extremamente baixa no mercado. No tempo da indústria, da
produção em série e da destruição da venerável instituição do
original artístico único, o teatro só poderia estar irremediavelmente
condenado a ser a diversão de esnobes, homossexuais
esquizofrênicos, nefelibatas intelectualizados e outros neuróticos ou
o desfastio da ordem estabelecida através de seus burgueses bem-
pensantes e metidos a sensíveis. A idade da indústria destruiu a aura
da obra de arte, como explica Walter Benjamim. (MACIEL, 1967, pp.
3-4).
Foi nesse contexto que Brecht desenvolveu o teatro épico. Sua praxis é
uma síntese dos experimentos teatrais de Erwin Piscator – famoso por suas
cenas Piscator, como eram chamadas, cheias de projeções de filmes e cartazes –
e Vsevolod Emilevitch Meyerhold; do conceito de estranhamento do formalista
1
As informações biográficas de Bertolt Brecht aqui utilizadas foram retiradas, principalmente, do livro Teatro
dialético, do próprio Brecht, com introdução de Luiz Maciel, 1997.
24
russo Viktor Chklovski; do teatro chinês e do teatro experimental da Rússia soviética,
entre os anos 1917 e 1926.
Com 20 anos, escreveu sua primeira peça, Baal (1918), história de um
poeta vagabundo e amoral. Em seguida, tornou-se crítico teatral do Der Volkswille,
em sua cidade natal, e uma espécie de consultor literário do teatro Munich
Kammerspiele.
Os primeiros espetáculos de suas peças Tambores na Noite
(Trommeln in der Nacht), Baal e Eduardo II foram encenados em Munique, em 1922,
1923 e 1924, respectivamente. Por meio de sua participação no teatro, Brecht
conheceu o diretor de teatro e cinema Erich Engel, com quem trabalhou até o fim da
sua vida. Depois da Primeira Guerra Mundial, mudou-se para Berlim, onde o
influente crítico Herbert Ihering chamou-lhe a atenção para a propensão do público
pelo Teatro Moderno. Brecht trabalhou inicialmente com Erwin Piscator, citado
anteriormente. Em Berlim, a peça Im Dickicht der Städte, protagonizada por Fritz
Kortner e dirigida por Engel, tornou-se o seu primeiro sucesso.
Brecht, em 1926, estreia sua comédia Um Homem é um Homem, em
que mostra uma sociedade que começa a encarar a máquina como extensão do ser,
quando não o próprio. Trata-se da obra de transição entre o expressionismo das
primeiras peças e o estilo tipicamente brechtiano que começa a desenvolver por
meio do teatro épico.
De acordo com a biografia escrita por Luiz Carlos Maciel, no ano
seguinte (1927), Brecht apresenta no Festival de Baden-Baden a primeira versão de
Mahagonny, com música de Kurt Weill (1900-1950), o compositor que seguirá sendo
seu parceiro em outras montagens. Em 1928, produzido por Piscator, aparece
Schweik, adaptado em colaboração com Gasbarra e Leo Lania.
A Ópera dos Três Vinténs, também de 1928, é o trabalho de maior
destaque na carreira de Brecht, também com parceria do compositor Kurt Weill.
Essa obra apresentou uma nova forma de teatro musical, misturando a estética de
cabaré com a sátira de cunho social. Ele propunha um teatro politizado, cujo objetivo
era/é modificar a sociedade.
Indo mais a fundo, sabe-se que a peça vira um enorme sucesso,
principalmente por causa da música, mas o que se nota é que as pessoas não
entenderam a essência e a crítica que o autor gostaria de ter passado, há um ―erro‖
25
de interpretação por parte do público, o qual se ateve mais às canções, facilmente
incorporáveis pelo sistema radiofônico.
Seguindo a cronologia proposta por Maciel, em 1929, Brecht volta ao
Festival de Baden-Baden com O Vôo de Lindberg, peça radiofônica que
estudaremos com mais detalhes nos próximos capítulos, e As Peças Didáticas de
Baden. Em 1930, estreia a versão definitiva de Ascensão e Queda da Cidade de
Mahagonny. No mesmo ano, estreia Die Massnahme, com traduções diversas, tal
qual A medida ou A decisão.
A peça A Mãe, adaptada de Górki, estreia em 1932, ano em que ocorre
a ascensão no nazismo. Concomitantemente, o filme Kuhle Wampe escrito por
Brecht, com música de Hanns Eisler e dirigido por Stalan Dudow é censurado e
considerado proibido.
Com a eleição de Hitler, em 1933, terminou, definitivamente, a
república. Embora a constituição de 1919 não tenha sido revista até o final da
Segunda Guerra Mundial (1945), as reformas levadas a cabo pelo partido nazista
invalidaram-na muito antes. Então, Brecht exila-se primeiro na Áustria, depois Suíça
e França, onde apresenta Os Sete Pecados Capitais, no Teatro dos Champs-
Elysées, em Paris.
Ainda de acordo com a retrospectiva história e artística de Brecht, ele
torna-se, em 1936, um dos editores da revista Das Wort, publicada por intelectuais
alemães refugiados em Moscou. Estreia sua peça Cabeças Redondas e Cabeças
Pontudas em Copenhague.
Permanentemente na luta contra o nazismo e o fascismo, estreia, em
1937, em Paris, a peça Os Fuzis da Senhora Carrar, a qual considera ―aristotélica‖,
conceito que será mais bem elucidado no tópico sobre o Teatro épico. Em 1938,
estreia sete cenas de Terror e Miséria do III Reich. Viaja, então, à Dinamarca,
Suécia, Finlândia e Suíça.
O ano de 1940 é marcado pela peça Mãe Coragem, estreada em
Zurique. E, finalmente, em 1941, parte para os Estados Unidos, instalando-se na
Califórnia, onde tentou ganhar a vida com argumentos cinematográficos em relação
a Hollywood. Ainda nos EUA, em colaboração com Joseph Losey, dirigiu a
montagem de sua peça A Vida de Galileu, em 1947.
No mesmo ano, segundo Maciel, depõe perante o Comitê de
Atividades Antiamericanas, em Washington. Eram os tempos da Guerra Fria e o
26
macarthismo – prática política que se caracteriza pelo sectarismo, notadamente
anticomunista, inspirada no movimento dirigido pelo senador Joseph Raymond
McCarthy, nos EUA e que geralmente formula acusações e faz insinuações sem
prova – já estava evidente no país.
Então, volta à Europa, estabelecendo-se novamente na Suíça, onde
escreve o Pequeno Organon Para o Teatro, monta uma adaptação de Antígona, de
Sófocles e sua comédia O Sr. Puntila e Seu Criado Matti. Volta à Alemanha, em
1949, a convite do governo da República Democrática Alemã, instalando-se em
Berlim Oriental, onde funda e dirige a companhia Berliner Ensemble, sustentada pelo
Estado.
Daí em diante, partindo do trabalho prático da companhia, Brecht dá
vazão a todo o seu trabalho de cunho teórico. Em seu teatro, Brecht criou o Efeito de
Distanciamento (Verfremdungseffekt), o qual abordaremos minuciosamente no
tópico que se refere ao teatro épico. Esse efeito permitia ao público distanciar-se dos
personagens e da ação dramática, utilizando recursos de diálogos estilizados, no
uso da canção-narrativa, elementos cênicos informativos, entre outros recursos.
Até 1956, junto à Berliner Ensemble, o dramaturgo realiza uma série de
espetáculos com suas peças e adquire reconhecimento mundial apresentando-se no
Festival do Teatro das Nações, em Paris. Além disso, recebe o Prêmio Stalin, em
Moscou, em 1955.
Seus textos, absolutamente ricos por suas ideias e pensamentos,
fizeram-no conhecido em todo o mundo. Brecht é considerado um dos escritores
fundamentais desse século por revolucionar a teoria e a prática da dramaturgia e da
encenação, mudando completamente a função e o sentido social do teatro, usando-
o como arma de conscientização e politização.
Ele procurava estabelecer uma consciência antilúdica em relação a
toda arte contemporânea. Tentou objetivar, então, a pedagogia aliada ao fazer
teatral.
Seu objetivo era superar a aparente inutilidade do teatro: a função, a
utilidade, o resultado prático eram os critérios fundamentais que
orientaram seu espírito. Sabia que, para provar a excelência de um
bolo, é necessário comê-lo. Fazer um teatro que retomasse, na
plenitude, a sua função social, um teatro útil e consequente, era
tarefa de um homem de teatro que arregaçasse as mangas sobre as
tábuas do palco, não de um autor ou teórico de gabinete. Foi o que
ele fez. (MACIEL, 1967, p.5).
27
Ressalta-se, portanto, que ele buscou colocar em prática seus ideais
perante a arte, principalmente relacionando-se com o teatro. Deve-se ter em mente,
entretanto, que Brecht não escreveu peças marxistas nem procurou formular
propriamente a teoria de um teatro marxista, objetivo que parecem ter sido mais
concernentes a Piscator e seu teatro político. Mas, sem dúvida, Brecht estava
convencido, como afirmou aos macarthistas norte-americanos que o interrogaram,
de que ―não se pode escrever peças inteligentes, hoje em dia, sem conhecer as
teorias de Marx‖ (MACIEL, 1967, p.9).
Segundo Maciel, antes mesmo que qualquer conceituação marxista
proposta por Brecht, o racionalismo, a depreciação do sentimento, o afastamento
deliberado das emoções, o esforço pela compreensão e pela crítica e a valorização
do instinto são aspectos práticos e/ou teóricos fundamentais a serem considerados
em seu teatro, em detrimento à mera diversão.
É importante lembrar, nesse contexto, as relações sociais de produção
e as forças produtivas. Nós, como seres humanos, produzimos a nossa existência
coletivamente, sobrevivemos e vivemos por meio delas. Desenvolvemos as forças
produtivas e por elas nos relacionamos socialmente, tal qual explica Marx, em seu
Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1859:
[...] na produção social da sua vida, os homens contraem
determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade,
relações de produção que correspondem a uma determinada fase de
desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto
dessas relações de produção forma a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de
consciência social. [...] E do mesmo modo que não podemos julgar
um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo, não podemos
tampouco julgar estas épocas de revolução pela sua consciência,
mas, pelo contrário, é necessário explicar esta consciência pelas
contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças
produtivas sociais e as relações de produção. (MARX, 1859, pp.301-
302).
Faz-se crucial lembrar que a época de revolução social, de onde sai a
verdadeira luta de classes, dá-se quando as forças produtivas e as relações sociais
de produção entram em contradição. Nesse caso, com a mudança das forças
produtivas no teatro e a luta de classes aparecendo como assunto, Brecht começa a
28
repensar o teatro e, com ele, a utilização dos meios de comunicação
(desenvolvimento das forças produtivas, também por meio das novas técnicas).
É a partir das problematizações encontradas nas relações de
produção, ocasionadas pelas forças produtivas deficientes, que Brecht vai pensar
seu Teatro épico, mais destrinchado no tópico que segue e a sua Teoria do rádio, a
qual aparecerá neste trabalho, para que se exponha o pensamento do dramaturgo
em decorrência da utilização dos meios de comunicação, inclusive no que concerne
as suas peças.
Voltando a sua biografia, o dramaturgo faleceu em 14 de
agosto de 1956, de trombose coronária, no Estado de Berlim, em Berlim Leste, com
58 anos.
3.1 O TEATRO ÉPICO
O teatro épico é a tentativa mais profunda e mais ampla
no sentido de constituir um teatro moderno, e tem que
superar todas as imensas dificuldades que têm que ser
superadas por todas as forças vivas nos terrenos da
política, da filosofia, da ciência e da arte. (MACIEL,
1967).
Partindo da contextualização sobre o Teatro Moderno e sobre o
dramaturgo Bertolt Brecht, podemos nos aprofundar no teatro épico. Segundo Maciel
(1967), a visão de mundo do dramaturgo o leva, ao mesmo tempo, a determinada
posição ideológica e política, respondendo a uma necessidade de racionalização
das relações humanas.
De acordo com o que escreve Brecht em seu artigo ―Cena de Rua –
Modelo de Uma Cena de Teatro épico‖2
, de 1940 – presente no livro Teatro
Dialético, de 1967, p.141 – durante os quinze anos que se sucedem à Primeira
Guerra Mundial, foi experimentada uma forma bastante nova de interpretação, cujas
características são tipicamente narrativas e descritivas e há a introdução de
comentários em forma de coros e projeções. A essa nova estética dá-se o nome de
épico. Assim sendo, o ator distancia-se do personagem e apresenta as situações de
tal maneira que o espectador seja levado a exercer seu espírito crítico.
2
Os artigos aqui citados estão compilados no livro Teatro dialético, de Bertolt Brecht, de 1967.
29
O demonstrador, que deve ser reconhecido como ator, deve alternar
sua imitação com explicações, o maior número de vezes possível. Os coros e as
projeções de documentos de teatro épico e o apelo direto ao público pelos atores
estão fundamentados no mesmo princípio.
De acordo com o alemão, esse modelo não recorre às justificativas da
apresentação teatral tradicional, ―tais como ‗a necessidade de se exprimir‘, ‗a
capacidade de tornar sua a ‗vida‘ do personagem‘, ‗a aventura psicológica‘, ‗a
necessidade de representar‘, ‗o prazer da invenção‘, etc‖ (BRECHT, 1967, p.149), ao
contrário, procura romper com o tradicionalismo.
Ao serem escritas as obras, o teatro épico não deixa de recorrer a
recursos artísticos, mas corresponde à situação sociológica, destruindo a velha
estética por esta não a satisfazer. O teatro, então, deveria seguir essa inovação,
correspondendo à mesma necessidade, por meio do esclarecimento e da crítica em
detrimento da mera diversão.
Torna-se perceptível que não deve existir um sistema de comunicação
comum enquanto a sociedade estiver dividida em classes antagônicas, pois a arte,
tendo caráter ―apolítico‖, está aliada ao grupo dominante. Fato que não é,
evidentemente, a opção de Brecht.
É no interesse do povo, ou melhor, das amplas massas trabalhadoras,
que a literatura deve fornecer representações verdadeiras da vida, as quais
precisam ser sugestivas e inteligíveis, ou seja, populares.
Entende-se que o escritor deva escrever a verdade no sentido de
que não deve suprimi-la ou silenciá-la, nem escrever inverdades,
nem curvar-se perante os detentores do poder, muito menos enganar
os fracos. Naturalmente, é muito difícil não se curvar diante dos
poderosos e é muito vantajoso enganar os fracos. (BRECHT, 1967,
p. 20).
E Brecht, em seu artigo ―O Popular e o Realista‖, escrito em 1937,
presente no livro Teatro dialético (1967, p.116), ainda completa sua visão sobre o
teatro que atende ao povo:
O povo separou-se claramente de seus superiores: seus opressores
e exploradores romperam com ele e se entregaram a uma guerra
sangrenta contra ele que não pode ser mais ignorada. Ficou mais
fácil escolher um lado. A guerra aberta, de uma certa maneira, foi
deflagrada entre o ―público‖.
30
No mesmo artigo, Brecht (1967) ressalta que passar a verdade ao
espectador parece uma tarefa cada vez mais urgente, pois o sofrimento das massas
aumentou. E há apenas um aliado contra a barbárie: o povo sobre o qual são
impostos esses sofrimentos. Sendo assim, é imprescindível que se recorra a ele,
falando a sua linguagem, a fim de obter melhores perspectivas. Em seu artigo
―Pequeno Organon Para o Teatro‖, de 1948, Brecht coloca que:
Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as
sensações, as idéias e os impulsos que são permitidos dentro do
respectivo contexto histórico das relações humanas (em que as
ações se realizam), mas também que empregue e suscite
pensamentos e sentimentos que ajudem a transformação desse
mesmo contexto. (BRECHT, 1967, p.197).
Quando o dramaturgo se refere à necessidade de uma arte popular,
quer dizer que se deve fazer arte para as amplas massas populares, aos muitos que
são oprimidos por poucos, à grande massa de verdadeiros produtores que sempre
foram o objeto da política e que agora podem tornar-se o seu sujeito. Bertolt Brecht
também tem essa expectativa em sua Teoria do Rádio, a qual ainda será
apresentada neste trabalho.
Tem-se o conceito de um povo combatente e que está transformando o
mundo e a si próprio. Consequentemente, há um conceito combatente de popular.
Falo de experiência própria quando digo que não se deve ter medo
de colocar coisas novas e não habituais diante do proletariado,
desde que tenham algo a ver com a realidade. Haverá sempre
pessoas educadas, conhecedoras de arte, que virão dizer que ―o
povo não vai entender‖. Mas o povo, com impaciência, se livrará
delas para se entender diretamente com o artista. (BRECHT,1967,
p.121).
O dramaturgo representa o aguçamento da consciência antilúdica, não
só do teatro, mas de toda a arte contemporânea, o que se apresenta como uma
negação da consciência estética.
Como Erwin Piscator, Brecht tende, em seu teatro de agitprop, a um
novo objetivo: compor seu teatro com as qualidades do pedagogo: ―a clareza de
exposição, o rigor de visão, o acesso fácil à compreensão, a lógica justa e, uma
palavra, a verdade sem mistificação‖ (MACIEL, 1997, p.6).
31
E Brecht (1967, p.166) completa: ―A principal qualidade do teatro épico
é exatamente ser natural e terrestre, é o seu humor e a sua desistência de todos os
aspectos místicos que desde épocas passadas até aos dias de hoje prendem o
teatro usual‖.
O ponto essencial do teatro épico é, provavelmente, de acordo com
Brecht (1967, p.41), ―que ele apela menos para os sentimentos do que para a razão
do espectador. Em vez de participar de uma experiência, o expectador deve dominar
as coisas.‖ Simultaneamente, seria equivocado negar emoção a essa espécie de
teatro, pois seria o mesmo que tentar negar emoção à ciência moderna.
Sem dúvida, a ciência e a arte atuam de forma bastante diversa.
Contudo, Brecht afirmou em seu artigo intitulado ―Teatro de Diversão ou Teatro
Pedagógico‖ (Brecht, 1967, p.100) que, sem utilizar algumas ciências, não teria a
menor possibilidade de cumprir sua missão como artista: ―E devo confessar,
inclusive, que torço o nariz para pessoas de quem sei que não estão à altura da
compreensão científica, ou seja, que cantam como os pássaros cantam, ou como
nós acreditamos que os pássaros cantem.‖
Também o moderno teatro épico se liga a determinadas tendências. E
ligar-se à ciência significa usar um meio auxiliar para a sua compreensão. Segundo
Brecht, a maioria das grandes nações não se inclina, atualmente, a manifestar seus
problemas no teatro, mas deveria fazê-lo, denotando um espaço divertido e, ao
mesmo tempo, passível de suscitar reflexões e críticas.
É a sua vontade de esclarecimento e crítica, inclusive no teatro, que o
levou à formulação de um Efeito de Distanciamento (Verfremdungseffekt), o qual não
visa, no fundo, à eliminação da emoção na experiência dramática, mas, ao contrário,
à sua salvação:
Brecht não suportava a orgia de emoções corrompidas,
sentimentalizadas, dominadas pelo irracionalismo, que se vê no
teatro burguês como espelho da sociedade de que é produto. Para
sanear a emoção, era necessário que ela fosse subordinada à razão.
Desde que Aristóteles também emite qualquer referência à dimensão
intelectual da experiência dramática – seja a tomando como um
suposto tácito, seja efetivamente a parcializando na catarsis, na pura
purgação. Das emoções de piedade e terror – a emoção pura,
irracional, desumanizada por sua insubordinação à Razão, também
foi apelidada por Brecht de aristotélica. (MACIEL, 1967, p.14, grifo do
autor).
32
A alienação do homem, para Brecht, não se manifesta como produto
da intuição artística. Pelo contrário, Brecht ocupa-se da desalienação do homem, de
maneira consciente e proposital. Então, ele foi buscar na tradição dramática oriental,
particularmente no teatro chinês, a resposta ao distanciamento.
O distanciamento não deve, segundo Maciel em suas interpretações
sobre Brecht, destruir a emoção, mas simplesmente colocá-la em perspectiva crítica,
pois a razão tem como função ―iluminar‖ os sentimentos dos espectadores. As
emoções devem levar ao esclarecimento e serem elas próprias esclarecidas, tendo
função cognoscitiva. As que não o forem são chamadas aristotélicas e não
ultrapassam o nível da diversão.
Com o Efeito do Distanciamento proposto pelo dramaturgo, sua
pretensão era despertar o espectador para uma reflexão crítica, usando meios
artísticos, mas rompendo com a ilusão através do estranhamento, e deixando claro a
todos que teatro não é vida real, ou seja, não os hipnotizava por meio da arte.
Em seu artigo ―Uma Nova Técnica de Representação‖, escrito em
1940, Brecht explica que não eram feitos esforços para colocar o público em transe
e para lhe dar a ilusão de assistir a um acontecimento normal, que não foi ensaiado.
Para tanto, foi preciso abandonar a concepção de que existe uma
―quarta parede‖ separando ficticiamente o palco do público, a qual é causadora da
ilusão de que o pano de boca realmente existe, de que não há público. Brecht
propõe a possibilidade, inclusive, de que o ator se dirija diretamente ao público.
Segundo Szondi (2001, p.138), ―para causar distanciamento em
relação ao decurso da ação, que já não tem mais [...] a necessidade linear da ação
dramática, vale recorrer a projeções e legendas, coros, canções ou mesmo gritos de
‗jornaleiros‘ pelo auditório‖. Isso porque eles comentam e interrompem a ação.
Também para o distanciamento dos espectadores, Brecht propõe que eles assistam
à peça até na companhia do cigarro.
O dramaturgo explica que, no palco, durante todas as passagens
essenciais, o ator deve encontrar e fazer pressentir alternativas que indiquem o
contrário daquilo que está representando, ou seja, deve interpretar de uma maneira
que mostre que a representação pode se dar em outras possibilidades e que ele
está representando apenas uma das variantes possíveis.
Segundo ele, ―O ator não deve permitir que no palco se dê uma
transformação completa da sua pessoa naquela que está representada.‖.
33
Provavelmente, as próprias recomendações iniciais de Brecht sejam mais úteis do
que qualquer análise meramente interpretativa. Ele (1967, p.163) propõe três
―técnicas‖ para seus atores:
Três recursos podem servir para um distanciamento das falas e das
ações de um personagem a ser representado com uma maneira de
interpretar sem transformação completa:
1. A transposição para a terceira pessoa do singular.
2. A transposição para o passado.
3. Dizer o texto acompanhado pelas instruções e comentários do
autor.
A partir dessa explanação, vê-se possível que existam variações na
forma de haver o distanciamento. Pode ser propiciada, inclusive, pela própria dicção,
tendo em vista a importância maior ou menor que precisa ser conferida às
sentenças. Outra circunstância pensada por Brecht é o fato de os atores passarem
naturalmente da fala para o canto. Para ele, essa mudança de ação na cena deve
ser nitidamente reconhecida. E isso pode ser feito por meio de recursos cênicos,
como mudança de iluminação ou emprego de títulos.
O ator, em sua posição, assume uma ―visão crítica da sociedade‖. Ao
estabelecer a linha dos acontecimentos e da caracterização dos personagens, deve
salientar os traços que pertencem ao âmbito da sociedade. Dessa maneira, o ator dá
a possibilidade de o espectador justificar ou condenar a situação de acordo com a
sua classe social.
Além do mais, o ator/demonstrador se comporta com naturalidade,
deixando ao personagem representado o mesmo estigma do comportamento
natural. A apresentação é primordialmente repetitiva, ou seja, o acontecimento já
ocorreu (está escrito na obra), trata-se agora da repetição. Assim como o ator não
mais deve iludir o público mostrando que se trata de uma personagem fictícia no
palco e não dele, também não deve, de acordo com Brecht, simular que o que está
acontecendo no palco não foi ensaiado e que está acontecendo pela primeira e
única vez.
Segundo Brecht (1967, p.147), o ator não deve ―enfeitiçar‖ ninguém,
não deve arrebatar quem quer que seja da realidade cotidiana com o fim de elevá-lo
a uma ―esfera superior‖. Não se deve esquecer, na demonstração, que o ator não é
o personagem representado, é tão somente um demonstrador: ―Em outras palavras,
34
o que o público vê não é uma fusão de demonstrador com o personagem
representado, nem se trata também de um ―terceiro‖ independente e harmônico‖.
Em seu texto ―Observações sobre a ópera ‗Ascensão e queda da
cidade de Mahagonny’”, publicado em 1931, Brecht enumera, em uma tabela,
mudanças de peso na transição do teatro dramático para o épico (apud SZONDI,
2001, pp. 134-135):
Tabela 1 – Transição e diferenças entre o teatro dramático e o épico
Forma dramática de teatro Forma épica de teatro
 o teatro ―incorpora‖ um processo  ele narra um processo
 envolve o espectador em uma
ação
 faz dele um observador
 consome sua atividade  desperta sua atividade
 possibilita-lhe sentimentos  força-o a tomar decisões
 transmite-lhe vivências  transmite-lhe conhecimentos
 o espectador é deslocado para
dentro de uma ação
 ele é contraposto à ação
 trabalha-se com sugestão  trabalha-se com argumentos
 as sensações são conservadas  são estimuladas para chegar às
descobertas
 o homem é pressuposto como
conhecido
 o homem é objeto de investigação
 o homem imutável  o homem mutável e modificador
 expectativa sobre o desfecho  expectativa sobre o andamento
 uma cena em favor da outra  cada cena para si
 os acontecimentos têm curso
linear
 os acontecimentos têm curso em
curvas
 o mundo tal como ele é  o mundo como vem a ser
 o que o homem deve ser  o que o homem tem de ser
 seus impulsos  seus motivos
 o pensamento determina o ser  o ser social determina o
pensamento
Nota-se que a objetividade científica se torna objetividade épica e
aparece em todas as camadas da peça teatral, sua estrutura e linguagem, bem
como sua encenação. Indo ainda mais a fundo, o que foi posto não significa que, ao
representar um apaixonado, por exemplo, o ator deve se mostrar frio.
Somente os sentimentos pessoais do ator é que não devem ser, em
princípio, os mesmos que os da respectiva personagem, a fim de que os
sentimentos do público não se tornem também os da personagem. Nesse aspecto,
―a audiência deve gozar de completa liberdade‖:
35
A liberdade na relação entre o ator e o seu público também consiste
em que ele não o considera uma massa uniforme. Ele não une as
pessoas como se fossem um bloco sem forma com as mesmas
emoções. Ele não se dirige da mesma maneira a todos; ele mantém
as diversões existentes no público, ele chega a torná-las mais
profundas. Ele tem amigos e inimigos, ele é amigável com os
primeiros e hostil com os segundos. Ele toma um partido, nem
sempre aquele do seu personagem, e quando é o caso, ele toma
partido contra o seu personagem. (BRECHT, 1967, p.172).
Brecht explica que se trata de uma técnica de representação que
permite retratar acontecimentos humanos e sociais, necessitando de explanação,
sem parecerem gratuitos ou meramente naturais. A finalidade do Efeito de
Distanciamento é fornecer ao espectador, situado de um ponto de vista social, a
possibilidade de exercer uma crítica construtiva, principalmente em relação à sua
condição social.
Seguindo um velho hábito a atitude crítica é vista como uma atitude
negativa. Para muitos a atitude crítica é considerada a diferença
entre a atitude científica e a artística. Não conseguem pensar o
prazer da arte com as contradições e distanciamentos. Naturalmente
também existe um grau mais desenvolvido na apreciação comum da
arte, que aprecia criticamente, mas a isto é algo completamente
diferente quando se deve observar criticamente, contraditoriamente,
distanciadamente o próprio mundo e não a representação artística do
mundo. (BRECHT, 1967, p.177).
O teatro, com suas reproduções do convívio humano e das relações
interpessoais, tem que surpreender seu público e chegar a isto por uma técnica que
torne o que lhe é familiar em estranho. Uma representação que cria o
distanciamento permite-nos reconhecer seu objeto, ao mesmo tempo com que faz
que ele pareça alheio.
E ele ainda completa: ―O que aparece agora frente ao espectador é
tudo o que não foi rejeitado e que foi submetido a múltiplas repetições: devem ser
apresentadas com completa lucidez para que possam ser recebidas com igual
lucidez‖ (BRECHT, 1967, p. 218).
Como afirma Fredric Jameson (1999, p.99), em seus ―experimentos‖,
Brecht investiu dinheiro e recursos, inclusive pessoais, não apenas a fim de criar um
outro teatro, mas para satisfazer o desejo de um homem de teatro, que é testar
todas as alternativas possíveis e debatê-las. Aqui vale a pena tecer uma nota
biográfica. Brecht preferia usar a palavra ―experimentos‖ a ―experiências‖ por ter
36
estudado originalmente as ciências naturais. Dessa forma ele podia ―protocolar‖ as
reações das pessoas submetidas ao ―experimento‖ (KOUDELA, 2007, p.21).
Nesse ínterim, de acordo com Jameson, sugere-se, como ver-se-á com
mais detalhes no tópico seguinte, que a passagem dos vários atores por todos os
papéis cria necessariamente uma multidimensionalidade, a qual é a própria essência
do teatro de repertório, ou do teatro enquanto tal. Aparecem e se desvanecem
discussões ampliadas, lutas sobre a interpretação e propostas de todos os tipos de
alternativas gestuais e cenográficas.
O exercício do distanciamento proposto pelo dramaturgo fica
imediatamente esclarecido quando se entende o que é gestus. Segundo Jameson
(1999, p.139), ―é o operador de um efeito de estranhamento no sentido próprio; e em
particular que o estranhamento deriva da superposição de cada um destes
significados sobre os demais‖.
Tal conceito – central na estética brechtiana – quer dizer que por vezes
os movimentos físicos do ator no palco são suficientes, como quando o intérprete
chinês – tão levado em consideração por Brecht – mostrando o seu próprio gesto,
destaca-o também ao público, dotando-o de significação.
Desenvolveu-se uma maneira de falar e de usar a linguagem que era,
simultaneamente, estilizada e natural. As posturas tomadas nas frases eram levadas
a cabo, sendo relevadoras das próprias frases, completando-as. Essa simples
expressão dos gestos humanos, ainda de acordo com Jameson (1999, p.140),
Brecht chamou de gestisch ou linguagem gestual.
Chamamos esfera do gesto aquela a que pertencem as atitudes que
as personagens assumem em relação umas às outras. A posição do
corpo, a entonação e a expressão fisionômica são determinadas por
um gesto social [...]. O ator apodera-se da sua personagem
acompanhando com uma atitude crítica de suas múltiplas
exteriorizações; e é com uma atitude igualmente crítica que
acompanha as exteriorizações das personagens que com ele
contracenam e, ainda, as de todas as demais (BRECHT,1978, pp.61-
62).
Trata-se, então, recorrendo à análise de Vanja Poty (2013), ―de um
procedimento predominantemente físico do trabalho do intérprete, designando suas
atitudes e nuances de expressões faciais bem como corporais, de palavras e
entonações, de ritmo e variações com quebras na fala e nos movimentos‖.
37
Jameson (1999, p.139) exemplifica da seguinte maneira, aliando ao
conceito já visto de estranhamento:
O exercício, entretanto, fica imediatamente esclarecido quando
entendemos que gestus é o operador de um efeito de estranhamento
no sentido próprio; e em particular que o estranhamento deriva da
superposição de cada um destes significados sobre os demais,
mostrando-nos, por exemplo, como um movimento involuntário da
mão poderia, em certas circunstâncias (quando executado por Luís
XIV durante uma entrevista particularmente decisiva, mas também
quando desempenhado por um insignificante lojista durante as
elaboradas e imperdoáveis negociações da vida citadina), contar
como um fatídico ato histórico, com consequência sérias e
irreversíveis.
O gestus tem a intenção de tornar compreensível aquilo que é subjetivo
(comportamento subjetivo, atitude subjetiva) a partir do que é intersubjetivo, social.
Mas, é preciso ressaltar que nem todos os gestos são ―sociais‖. Segundo Brecht
(1978, p.107), ―a atitude de defesa perante uma mosca não é em si própria um gesto
social; atitude de defesa perante um cão pode ser um gesto social, se [...] exprimir,
por exemplo, a luta que um homem andrajoso tem que travar com cães de guarda‖.
Compreende-se, então, que é considerado social o gesto que
evidencia uma realidade social, em que se domina a natureza, ou seja, mostra-se ―o
mundo dos homens‖, como é, por exemplo, o gesto de trabalhar. Segundo Koudela
(2007), os modelos de comportamento formados pelas pessoas são decorrentes de
uma cultura determinada por sua classe social, sexo, língua, articulação, entre
outros fatores. Diante disso, Brecht ressalta que:
Por gestus entenda-se um complexo de gestos, mímica e
enunciados, os quais são dirigidos por uma ou mais pessoas a uma
ou mais pessoas. Um homem que vende peixe mostra, entre outras
coisas, o gestus de vender. Um homem que escreve seu testamento,
uma mulher que atrai um homem, um policial que espanca um
homem, um homem que faz o pagamento a dez homens – em tudo
isso está contido o gestus social. Um homem, invocando seu Deus,
só será gestus, nesta definição, se isso ocorrer com vistas a outros
homens ou em um contexto onde apareçam relações de homens
para homens. (BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.101).
Também há de se enfatizar que o gestus é o ―interior‖ se expressando
enquanto a linguagem verbal se exterioriza intelectualmente apenas:
38
[...] ao falar de gestus não nos referimos à gesticulação; não se trata
de movimentos das mãos no intuito de frisar ou explicar a fala, mas
sim de atitudes gerais. Uma linguagem é gestual quando se
fundamenta no gestus, quando revela determinadas atitudes do
indivíduo que fala, assumidas perante outros indivíduos. (BRECHT
apud KOUDELA, 2007, p.101).
A atitude que aparece com o gestus social expressa a relação de
alguém ou de algum grupo com o ambiente e a convivência sociais, esclarecendo,
assim, as relações interobjetivas.
Por meio dessa imitação, dessa expressão do comportamento real, é
que o ―efeito educacional‖, em que o interior é orientado pelo exterior, pode ser
atingido. Decorre daí que o processo de educação da peça didática visa, com a
execução e observação de gestos e atitudes, tornar conscientes posicionamentos
internos, exteriorizando-os. Abordar-se-á essa aprendizagem proporcionada pelo
teatro, com destreza, no tópico seguinte. E vale ressaltar, a fim de retomarmos a
utilização dos métodos teatrais de Brecht para o rádio:
Um gestus pode ser manifestado apenas por meio de palavras (no
rádio); assim será introduzida nas palavras uma determinada
gestualidade e uma determinada mímica, que poderão ser
detectadas (uma reverência humilde, um tapinha nas costas).
(BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.101).
3.1.1 As Peças de Aprendizagem
Nas últimas décadas do século XIX, a série de conflitos que ocorriam
em diversas partes do mundo prenunciava a eclosão da Primeira Guerra Mundial. A
Alemanha ostentava uma oligarquia financeira compacta, resultado de uma
concentração do capital industrial aliado ao capital bancário, formando monopólios
poderosos.
Nesse cenário, a classe operária passava por momentos difíceis e,
inicialmente, de uma forma bastante tímida, apareciam movimentos de revolta contra
o regime burguês. Não é de se estranhar, portanto, que toda a obra de Brecht virá
marcada pela luta contra o capitalismo e contra o imperialismo. Todo o tempo há
uma profunda reflexão sobre a situação do homem num mundo dividido em classes
e condicionado a uma divisão econômica e política.
39
A partir das explanações e considerações sobre o teatro épico e o seu
contexto de aparição, levando em conta as insatisfações sociais de Brecht, bem
como seus recursos de estranhamento/distanciamento e gestus, podemos adentrar
no que tange aos elementos pedagógicos a que quer alcançar o autor. É sob esse
espectro que Brecht desenvolve suas obras, no plano épico, em que o público não é
mero espectador, mas participante e julgador crítico da arte, que representa a
realidade política, a desigualdade e o caráter íntimo de cada ser humano.
Nesse caso, Bertolt Brecht não deseja apenas salientar, em suas
peças, que está atuando de forma a haver o distanciamento entre ator e
personagem, e entre personagem e plateia, mas sim de forma a ser, literalmente,
pedagógico. Para o autor, o sistema socioeconômico é tal como é, mas poderia ser
de um outro jeito e, frente a isso, aquele que assiste a uma peça brechtiana tem que
se posicionar de maneira ativa.
Na perspectiva de Ewen (1991, pp. 219-220), elas ―eram compostas
mais com o olho nos seus participantes do que na plateia e marcaram uma fase
altamente interessante, embora controvertida na evolução do autor‖. Segundo
Oliveira (2013), ainda na visão de Ewen, ―a origem das peças didáticas remonta ao
modelo de instrução jesuíta e humanista‖.
É dessa forma que surge a Lehrstücke, ou peças didáticas de Brecht.
Faz-se importante salientar que, quando, em 1935, o autor traduziu o termo para o
inglês, afirmou que não haveria uma expressão equivalente. No português, a
tradução mais correta seria ―peça de aprendizagem‖, já que o termo ―didático‖, na
acepção tradicional, implica ―doar‖ conteúdos por meio de uma relação autoritária e
doutrinária entre o que detém o conhecimento e aquele que é ―ignorante‖
(KOUDELA, 2007, pp.99-100). Segundo Luciano Gatti (2015, p.12), o ―objetivo de
Brecht era transformar a experiência teatral em ocasião para a formulação de novos
conhecimentos. Trata-se assim de aprender coletivamente com o trabalho teatral‖.
As obras comumente atribuídas ao teatro didático brechtiano são
compostas por seis peças: O vôo sobre o oceano, originalmente intitulada O vôo de
Lindbergh (escrita em 1928/1929); A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo
ou Baden-Baden sobre o acordo (escrita em 1929); Aquele que diz sim; Aquele que
diz não (encenadas sempre em conjunto, escritas em 1929/1930); A decisão (escrita
em 1929/1930) e A exceção e a regra (escrita em 1929/1930). Vê-se que é uma
época em que ele se dedica à criação de tais peças. Elas encontram-se compiladas
40
na coleção Teatro Completo (Brecht, 1992), nos volumes três (as cinco primeiras) e
quatro (a última).
É por meio da peça didática que Brecht rompe com a organização
teatral estabelecida. ―Existem outros meios de produção e difusão do trabalho
teatral, além do público habitual dos teatros. Por exemplo, as crianças nas escolas,
as associações de jovens, os coros operários, muito numerosos na Alemanha‖
(KOUDELA, 2007, p.50). Nesse contexto, o rádio vai aparecer como algo importante
e significativo à época.
Segundo Ingrid Koudela (2007, p.100), o ―aluno‖ deve aprender por si
próprio, sem se confrontar com uma determinação já concluída ou pré-estabelecida,
por isso mesmo não deve existir a figura do diretor, que pode ser somente um
coordenador do processo. Este coloca questões como ―como é introduzido o
processo/para onde se dirige/ como é estruturado‖. A contribuição se dá por meio de
perguntas, dúvidas, multiplicidade de pontos de vista, comparações, lembranças,
experiências, trazendo à tona a realidade vivida ou compreendida pelos atores.
Recorrendo à Gatti (2015, p.51), ele complementa que conferir função
pedagógica ao experimento em cena exige crítica durante o processo de
aprendizado de todo ensinamento preconcebido. De outro modo, o coordenador,
―responsável‖ pelos aprendizes, ou o próprio autor, ver-se-iam reduzidos a
transmissores de doutrinas, sejam elas de teor revolucionário ou não.
A fim de localizar temporalmente a peça didática na obra de Brecht, é
preciso lembrar o conflito legal que se deu após a versão filmada da Ópera dos Três
Vinténs, dirigida por Pabst, em 1930. Brecht, com o ocorrido, sente a necessidade
de produzir arte distante das ideias já engendradas de teatro.
Contextualizando, a fim de compreender melhor os rumos do autor,
houve um mal-entendido nos termos do contrato assinado por Brecht com a Nero
Filmes. A companhia cinematográfica estava interessada apenas em enlatar uma
peça que fora um sucesso de bilheteria do teatro alemão e não fazia questão
nenhuma da intervenção de Brecht (que, de fato, não participou da reestruturação
do roteiro), nem de atender as perspectivas políticas.
O dramaturgo não tinha recursos financeiros suficientes para ―abrir as
portas‖ da Justiça, como conta Iná Camargo, mas foi indenizado por algumas pernas
e danos. Aprendendo com as novas formas de estruturação da arte e a readequação
41
das forças produtivas, só cabia a ele desenvolver, na prática, ―uma crítica de maior
alcance às ideias liberais sobre arte no capitalismo‖ (COSTA, 2012, p. 142).
Resumindo, deu-se, segundo Iná Camargo, a industrialização das artes
do espetáculo, ou seja, as forças produtivas ficaram submissas às determinações do
capital: ―[...] quando venderam os direitos autorais da Ópera dos três vinténs ao
estúdio que produziu o filme, Brecht e Weill caíram na rede do filme musical
enlatado‖ (COSTA, 2012, pp. 138-139).
Brecht aprendeu com sua ingenuidade ao assinar o contrato e vender o
roteiro e passou a entender como funcionam as novas relações de produção que
estavam se estabelecendo. Então, distancia-se da mídia enquanto relações de
produção – ainda submetidas à dinâmica burguesa –, não enquanto forças
produtivas – que apontava para a superação da arte burguesa.
Ou seja, o dramaturgo tenta reestabelecer essas forças produtivas. O
rádio, por exemplo, não estava (nem está) a serviço de novas relações de produção.
As pessoas que detêm o poder econômico não usufruíam o meio como poderiam,
forçando-o a manter relações que estão aquém do que ele podia (e ainda pode)
fazer. Isso significa dizer que, com essa experiência, Brecht aponta para um debate
ainda muito importante no campo da comunicação. Aqueles que afirmam que os
meios técnicos de comunicação que se desenvolveram entre o fim do século XIX e o
início do século XX são imediatamente incapazes de algo que não seja alienador
perdem de vista justamente essa formulação brechtiana.
É então por meio das peças de aprendizagem que, como afirma
Koudela (1966, p.13): ―Brecht propõe a superação da separação entre atores e
espectadores, através do Funktionswechsel (mudança de função) do teatro‖.
Entretanto, a peça didática (Lehrstück), durante um longo período, foi esquecida ou
talvez considerada como parte menos importante da obra do alemão.
O consenso de especialistas era de que as peças didáticas pertenciam
a uma fase de transição no pensamento do dramaturgo, à qual se seguiu, no final da
década de 30, a fase madura do ―teatro épico/dialético‖. Essas peças, então, foram
inicialmente desprezadas por conta de sua rigidez da ação dramática.
De acordo com Oliveira (2013), alguns autores, sobretudo alemães,
iniciaram pesquisas sobre tais peças e destacaram sua importância como proposta
pedagógica inovadora. Dentre esses autores, destaca-se Reiner Steinweg, que em
42
1972 publicou ―A peça didática – a teoria de Brecht para uma educação político-
estética‖.
Aceitava-se, geralmente, o conceito de que as peças épicas faziam
parte do período de transição marxista no pensamento de Brecht, mas Steinweg
contrapõe essa tese. Ele afirma, segundo Koudela (2007, p.4), que a peça didática,
e não a peça épica de espetáculo (episches Schaustück), conduz a um modelo de
ensino e aprendizagem que aponta para um ―teatro do futuro‖.
De acordo com Steinweg (apud Koudela, 2007, p.5), há uma ―regra
básica‖ que diferencia a peça didática e a peça épica de espetáculo e indica que ―a
determinação de atuar para si mesmo é o pressuposto para a realização da peça
didática como ato artístico‖ (grifo do autor). Seguindo tal raciocínio, constata-se que
a peça de aprendizagem serve muito mais aos atuantes que aos observadores.
Diante da ―regra básica‖, inferimos que as apresentações públicas das
peças de aprendizagem não são, portanto, o objetivo único nem o mais importante,
pelo contrário, elas não necessitam de público. Se ele existir, diante de uma atuação
natural, livre e própria ao atuante – o princípio da improvisação –, como é proposto,
pode haver troca de diálogo entre os coros e os espectadores.
Outro pressuposto para o efeito pedagógico da peça didática é a
imitação, a qual aparece na primeira fase da infância e contribui para a formação do
caráter de uma pessoa. A imitação pressupõe sempre uma modificação do modelo,
não podendo se restringir ao modelo fornecido pelo texto. Há de se experimentar
alternativas de atuação, com invenção própria e atual. Para tanto, a realidade de
cada participante e o vínculo que eles possuem com sua própria experiência fazem
toda a diferença no processo.
Ele vai imitar outro ser humano, mas não é como se fosse esse
homem, não com o intuito de esquecer-se de si mesmo. Sua
individualidade é preservada como a de uma pessoa qualquer,
diferente das outras, com seus traços próprios, semelhante assim a
todas as outras que observa. (BRECHT apud KOUDELA, 2007,
p.111).
Outro fator intrínseco para a peça didática é o estudo do efeito de
estranhamento, o qual liberta o ator-aluno ―da obrigação de provocar hipnose‖
(KOUDELA, 2007, p.19). Mas, Brecht (apud Koudela, 2007, p.105, grifo da autora)
explica:
43
No entanto, ele não necessita, nos seus esforços por retratar
determinadas pessoas e mostrar seu comportamento, renunciar
totalmente ao meio da identificação. Utiliza esse meio até o ponto
que qualquer pessoa sem talento ou ambição de interpretação o
utilizaria para representar outra pessoa, isto é, para mostrar seu
comportamento.
Nota-se, portanto, que esse trabalho teatral não pede atores
profissionais. Ao contrário, a premissa é poder trabalhar com amadores, sejam eles
crianças, jovens ou trabalhadores das fábricas, dispostos a representar uma
metáfora da realidade social, um recorte. Assim, o teatro torna-se capaz,
culturalmente, de lidar com problemas que repousam sobre fatos concretos, pois
elaboram experiências individuais e históricas que determinam o comportamento
devido ao valor de aprendizagem (KOUDELA, 2007, p.98).
Aos atuantes, não se faz necessária a reprodução de ações e posturas
apenas consideradas positivas na sociedade. Brecht afirma que posturas e ações
associais podem gerar efeito educacional, já que geram observação, reflexão,
julgamento e discussão sobre a conduta (KOUDELA, 2007, p.68).
O grau de abstração embutido nessas peças existe para que se
entenda que elas não estão acabadas, ou seja, para que novas possibilidades
possam ser realizadas. Na verdade, precisam que os jogadores se sintam forçados a
tomar uma decisão, sendo, então, empreendedores políticos.
No programa da noite de estreia das peças de aprendizagem, Brecht
afirmou que o objetivo delas era evidenciar o comportamento político incorreto,
dessa forma se aprenderia o comportamento correto (GATTI, 2015, p.70).
―Mostrando‖ o personagem ao grupo, pode-se supor que há o aprendizado.
Nesse aspecto, há sempre um indivíduo que se distancia do coletivo, a
partir de experiências negativas, mas úteis para o processo de aprendizagem. Com
esse ―jogo‖ teatral, o coletivo entende que a ―revolução‖ precisa de todos, mesmo
daquele que se distancia temporariamente, portanto é um processo de investigação
em conjunto (GATTI, 2015, p.76).
Sobre a experiência coletiva, Gatti (2015, p.74) afirma que o ator não
vivencia o personagem, mas o compartilha com os demais presentes em cena. Para
isso, deve estudá-lo, compreendê-lo por si mesmo e pelo efeito que produz, depois
deve apresentá-lo aos demais, de modo que sua postura perante o personagem seja
discutida e compartilhada numa experiência coletiva.
44
Tais peças possuem a preocupação genuína de Brecht enquanto
educador. No texto ―Teoria da Pedagogia‖, escrito em 1930, o dramaturgo esclarece
que reúne teatro, política e aprendizagem:
Os filósofos burgueses estabelecem uma grande diferença entre o
atuante e o observador. Essa diferença não é feita pelo pensador. Se
mantivermos essa diferença, então deixaremos a política para o
atuante e a filosofia para o observador, quando na realidade os
políticos deveriam ser filósofos e os filósofos, políticos. Entre a
verdadeira filosofia e a verdadeira política não existe diferença. A
partir desse reconhecimento, aparece a proposta do pensador para
educar os jovens através do jogo teatral, isto é, fazer com que sejam
ao mesmo tempo atuantes e espectadores, como é sugerido nas
prescrições da pedagogia. (BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.15,
grifo do autor).
Há, dessa forma, uma quebra de padrões. No teatro, em que a
comunicação era apenas unilateral, Brecht procura empreender uma comunicação
bilateral, em que o fazer artístico é relevante também em seu próprio ato, no
ensinamento embutido no processo da construção da peça. Temos, portanto, uma
ressignificação do ―meio‖, ou seja, o produto é menos importante que o aprendizado.
De acordo com Oliveira (2013), ―Brecht procura um público novo, para
além dos muros da instituição teatral tradicional. Participantes em escolas e cantores
em corais passam a fazer parte desse universo novo de espectadores‖.
A dialética é caracterizada como método de comportamento e
pensamento. Sendo assim, a peça didática é concebida como modelo para uma
relação dialética entre teoria e prática, como demonstra Gatti (2015, pp.35-36), que
cita uma fala do próprio Brecht:
Pouco antes de morrer, em uma entrevista de 1956, ao responder
quem era o ―público‖ de sua peça, ele reafirma que a peça havia sido
escrita ―para o jogo em grupo. Ela foi escrita não para um público de
leitores, nem para o público de espectadores, mas exclusivamente
para alguns jovens que queriam se dar ao trabalho de estudá-la.
Cada um deles deve passar de um papel ao outro e assumir,
sucessivamente, o lugar do acusado, dos acusadores, das
testemunhas, dos juízes. Nestas condições, cada um deles irá
submeter-se aos exercícios da discussão e terminará por adquirir a
noção – a noção prática – do que é a dialética‖.
Podemos complementar a tese dialética com essa alternância de
papéis realizada durante os experimentos. Essa ação objetivava realçar o caráter
45
teatral do processo, combatendo a empatia ilusionista. Com a apresentação do
personagem de um ponto de vista distanciado, todos podem avaliar o
comportamento apresentado. Para Gatti (2015, p.54), certamente aparecerão
dificuldades na formação coletiva, porém elas também serão discutidas, apenas
assim há um trabalho revolucionário.
Cabia à peça de aprendizagem, então, conferir caráter cênico à prova
de que se aprende melhor pelo experimento prático do que pela observação teórica.
Além disso, novos elementos são incorporados à sua estética teatral, tais como:
descontinuidade, intertextualidade, pluralidade, descontextualização, fragmentação e
valorização do receptor.
Em seu artigo ―Teatro de Diversão ou Teatro Pedagógico‖, escrito em
1936 e publicado somente em 1957, Brecht (1967, p.97) explicita:
O teatro se transformou em assunto para os filósofos, filósofos, diga-
se de passagem, que não pretendiam apenas explicar o mundo,
mas, também, transformá-lo. Começamos também a filosofar;
começamos também a ensinar. E onde foi parar a diversão?
Brecht problematiza o teatro como local para se pensar e, em seguida,
questiona onde está a diversão. Tal pergunta se dá pelo fato de, em um consenso
geral, apenas o aprendizado é útil e somente a diversão é agradável.
O dramaturgo busca, então, que seu teatro épico não seja
extremamente desagradável e cansativo. Para tanto, intenta diferenciar o
aprendizado que se pode ter com o teatro e aquele oriundo da escola:
Sem dúvida, o aprendizado que conhecemos na escola, na
preparação para as profissões, etc., é algo que exige esforço. Mas é
preciso considerar igualmente em que circunstância ele decorre e a
que objetivos serve. Trata-se, propriamente, de uma compra. O
conhecimento é simplesmente uma mercadoria. Ela é adquirida para
ser revendida. (BRECHT, 1967, p. 98).
Paralelamente a essa análise crítica da educação como produto
vendável, Brecht reflete sobre a limitação do aprender, que se dá por fatores que
estão ―fora do alcance da vontade daquele que aprende‖. A partir disso, ele afirma
que existe o desemprego, instância que nenhum conhecimento pode defender. Além
do mais, existe a divisão do trabalho, que ―torna inútil e impossível o conhecimento
46
universal‖. Seguindo tal raciocínio, ele afirma que não há conhecimento que gere
poder, entretanto há conhecimento que só é proporcionado por meio do poder.
Situando-se no campo do aprendizado, o dramaturgo, no mesmo
artigo, situa os melhores alunos, aqueles que estão descontentes com suas
respectivas condições de vida e têm grande interesse em aprender e se orientar. E
completa: ―O desejo de aprender depende, assim, de várias coisas e, portanto,
existe a possibilidade de aprender com gosto, alegria e luta‖ (BRECHT, 1967, p.99).
O teatro possui, então, condições de ensinar e ser, ao mesmo tempo, pedagógico e
divertido.
De acordo com Oliveira (2013), ―tanto o seu teatro épico quanto o
didático são narrativos e descritivos, onde por meio de um processo dialético Brecht
apresentava duas funções: fazer as pessoas se divertirem e pensarem‖.
A função das peças didáticas, ainda segundo Oliveira (2013), era fazer
com que seus participantes fossem ativos e reflexivos ao mesmo tempo. O que
subjaz a essas tentativas era a prática coletiva da arte, que teria também uma
função instrutiva no tocante a certas ideias morais e políticas relativas à época.
Em meio à proletarização dos produtores, ou seja, ao processo em que
os produtores (autores, atores, técnicos) são expropriados dos seus meios de
produção e transformados em proletários, os trabalhadores do teatro e do cinema,
caso queiram fazer arte e não mercadoria, encontrariam na ―peça didática um
método decisivo para alcançar seu objetivo. Mas isto depende de compreenderem
que a peça didática põe na ordem do dia a transferência dos meios de produção aos
verdadeiros produtores‖ (COSTA, 2012, p.143).
Sendo assim, com a peça didática, os meios de produção estão sob o
controle dos envolvidos, não apenas presos ―nas garras‖ do capital. A libertação da
força produtiva depende da apropriação dos meios de produção pelos verdadeiros
produtores, representados aqui pelos artistas e técnicos.
Sob a consideração de Koudela (2007, p.4), o ato artístico pensado e
realizado coletivamente acontece em definitivo por conta da imitação e crítica de
modelos de atitudes, comportamentos e discursos. ―Ensinar/aprender tem por
objetivo gerar atitude crítica e comportamento político, [...] fornecendo um método
para a intervenção do pensamento e da ação no plano social‖.
Com tais peças, intenta-se não apelar para o sentimento do
espectador, o que lhe permitiria reagir apenas esteticamente, mas sim para a sua
47
racionalidade. Os atores devem chamar a atenção de seus espectadores causando
o estranhamento, e o espectador, por sua vez, precisa ―tomar partido‖ em vez de se
identificar.
Brecht passou por uma fase de experimentos e tentativas, a fim de
traduzir os conhecimentos da dialética materialista em formas dramáticas. O autor
intencionava promover a troca da função do teatro, para que ele deixasse de ser
simplesmente uma mercadoria estética vendida aos espectadores e pudesse ser um
espaço/momento de construção participativa da consciência político-estética.
Tanto o público quanto os atuantes passaram a ocupar a posição de
observadores, como defende Gatti (2015, p.37). Ambas as posições se transformam
reciprocamente, e o espetáculo adquire nova função, que é a organização do
público-atuante. Essa estratégia Brecht nomeou de Umfunktionierung, termo que
poderia ser traduzido por ―inverter o funcionamento‖, conferir uma nova função‖ ou
simplesmente ―refuncionalizar‖ as instituições artísticas.
O objetivo de Brecht com as peças de aprendizagem era interferir na
organização social do trabalho (infraestrutura). Ela é concebida para uma ordem
socialista do futuro, portanto carrega um realismo político e busca dissolver a
organização fundamentada na diferença de classes, democratizando o teatro e o
fazer artístico.
E foi no rádio que Brecht encontrou espaço para realizar seus
experimentos pedagógicos teatrais. É como afirma (Brecht, 2007): ―Ao encontro
desse empenho do rádio em configurar artisticamente aquilo que se ensina, viriam
então os esforços da arte moderna, os quais almejam emprestar um caráter
educativo à arte‖.
Além disso, Brecht (2007) complementa com relevantes apontamentos
sobre o uso de novas tecnologias por um teatro que se pretende didático e dialético:
Se a instituição teatral se dedicasse ao teatro épico, à representação
pedagogicamente documentária, então o rádio poderia desenvolver
uma forma absolutamente nova de propaganda para o teatro, isto é,
poderia desenvolver informação real – uma informação
imprescindível.
Suas causas para adentrar esse meio de comunicação serão mais bem
explicitadas no capítulo cinco, o qual propõe um breve relato sobre a História do
rádio na Alemanha e a Teoria do rádio, do próprio Brecht. Como afirma Koudela
48
(2007, p.172), ―Em se tratando de um teatro que recorre diretamente a
procedimentos didático-pedagógicos, desempenha papel importante em um
processo de democratização da arte‖.
Celso Frederico (2007) evidencia melhor a proposta e a estrutura de
tais peças, usando como exemplo a peça-objeto desta pesquisa:
O encontro da intenção política com o espírito vanguardista
manifesta-se inicialmente nas chamadas peças didáticas. Essas
peças não foram escritas para serem encenadas; consistiam
basicamente em exercícios para os atores. O vôo sobre o oceano –
peça didática radiofônica para rapazes e moças é, talvez, a mais
interessante delas. [...] A peça apresenta uma utilização inédita do
rádio: foi feita para o rádio e o rádio é "personagem" da peça, pois é
ele que narra a epopéia do herói. (grifo do autor).
Na peça O vôo sobre o oceano, em uma estrutura radiofônica, ele
problematiza a questão do domínio da natureza. Para tanto, utiliza as forças da
natureza como figuras que dialogam com o aviador. A tentativa desses fatores, como
o nevoeiro, a nevasca e o sono é fazer que o homem – que nunca é representado
por um indivíduo, mas pelo coletivo que produziu a máquina –, não consiga atingir o
seu destino final. Entretanto, ele se mantém firme diante dessas forças pré-
estabelecidas.
No fim, segundo Mello (2014), a peça chega ao seu objetivo didático,
que é mostrar como nada pode ser considerado natural, pois a ideologia da classe
dominante só serve para a manutenção do seu próprio poder. Além disso, as novas
tecnologias devem estar a serviço da revolução, não como meios de manutenção de
um estado pré-determinado. O autor enfatiza, ao final, que ainda há muito o que ser
alcançado. Mais detalhes serão mais bem aprofundados no capítulo seis, o qual tem
análise e apontamentos sobre a peça.
Retomando, portanto, o sentido dessa explanação sobre o Teatro
Moderno e o Teatro épico, vale ressaltar que o objetivo deste trabalho é evidenciar a
compreensão de Brecht de que o teatro é uma força produtiva e o desenvolvimento
dessa força produtiva, necessariamente, levava-o a lidar com o desenvolvimento dos
meios de comunicação, como o rádio e o cinema.
As exposições já explanadas aqui sobre o ator, o Efeito de
Distanciamento, a questão da forma e o conteúdo, entre outros conceitos, fazem
49
parte de um aspecto comunicativo, não só teatral. Por esse motivo, é que
abordaremos, então, os pensamentos e as considerações de Walter Benjamin.
50
4 SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN
Em meio a uma Europa imersa em uma profunda crise política e
intelectual, acontece o encontro entre Walter Benjamin e Bertolt Brecht, figuras
importantes e que fazem parte de um encontro relevante. Os desdobramentos dessa
relação são de suma importância na produção crítica e literária realizada,
principalmente, ao longo da década de 1930.
Desenvolver-se-á neste capítulo que, segundo Benjamin, há uma
defasagem histórica entre o que acontece no desenvolvimento do campo da
indústria, da produção propriamente dita e o resultado disso na cultura. O cinema, o
rádio, a fonografia, por exemplo, são resultados do desenvolvimento da indústria,
trata-se de mudanças ocorridas nas condições de produção, que só depois de
aproximadamente meio século começaram a refletir no campo da cultura.
Walter Benedix Schönflies Benjamin, mais conhecido pelo primeiro e
último nomes, é de origem alemã. Nasceu em meio a uma família judaica, em 1892
e viveu 48 anos. Em sua carreira profissional, foi ensaísta, crítico literário, tradutor,
filósofo e sociólogo. Sempre associado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi
bastante inspirado por autores marxistas, como Bertolt Brecht, e pelo místico judaico
Gershom Scholem.
O seu trabalho, combinando ideias aparentemente antagônicas do
idealismo alemão, do materialismo dialético e do misticismo judaico, constitui um
contributo original para a teoria estética.
Benjamin desenvolveu seu trabalho baseado na concepção kantiana
de crítica como uma forma de reflexão, tanto estética como política. E vale ressaltar
que esse ato de crítica incluía todo o sistema cultural e também sua base
econômica. Dentre suas criações intelectuais, Benjamin articulou a teoria da história,
da tradução, violência, tendências da recepção da obra de arte, dentre outras
questões.
Entre as suas obras mais conhecidas, contam-se ―A Obra de Arte na
Era da Sua Reprodutibilidade Técnica‖ (1936), ―Teses Sobre o Conceito de História‖
(1940), ―Passagens‖, uma obra historiográfica, e a monumental e inacabada ―Paris,
Capital do século XIX‖, enquanto ―A Tarefa do Tradutor‖ constitui referência
incontornável dos estudos literários.
51
De 1934 a 1935, refugiou-se na Itália. Foi quando cresciam as tensões
entre Benjamin e o Instituto para Pesquisas Sociais, associado ao que ficou
conhecida como Escola de Frankfurt, da qual Benjamin foi mais um inspirador que
um simples membro.
A sua morte, em 1940, é envolta em um mistério, pois, em Portbou,
temendo ser entregue à Gestapo, teria cometido o suicídio ou tido uma overdose de
morfina.
Neste capítulo, usar-se-á, principalmente, seus artigos intitulados ―Que
é o teatro épico? - Um estudo sobre Brecht‖, ―O autor como produtor – Conferência
pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo em Paris, 27 de abril de 1934‖ e
a ―Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica‖, textos considerados
importantes no que tange à comunicação social e, consequentemente, aos meios de
comunicação, tal qual o rádio, bastante importante neste trabalho.
Uma curiosidade que aparece no livro ―Benjamin e Brecht – História de
uma Amizade‖, de Erdmut Wizisla, é o projeto de revista de ambos, planejada entre
1930 e 1931, cujo título seria ―Krise und Kritik‖, junto à editora Rowohlt. Além dos
dois, também participaram do projeto Bernard von Brentano e Herbert Hering, e os
colaboradores Ernst Bloch, Siegfried Kracauer, Alfred Kurella e Georg Lukács.
A ideia da revista era um órgão
[...] no qual a inteligência burguesa prestasse conta das exigências e
dos conhecimentos que, nas circunstâncias atuais, permitiam
unicamente a ela uma produção com caráter intervencionista, com
consequências, em oposição às produções habituais arbitrárias e
sem consequências.3
Quando o projeto estava prestes a sair, ocorrem as eleições para o
Reichstag alemão. Os votos para os nazistas aumentaram muito, o que sinalizou
―algo maior que um mero pressentimento do domínio nacional-socialista‖ (WIZISLA,
2013, p.116).
Nenhum número da revista foi publicado, segundo Wizisla (2013,
p.115), mas o projeto merece atenção por ser o processo de política artística
exemplar dos anos anteriores à ditadura nazista. Havia, nos testemunhos desse
3
W. Benjamin, “Memorandum” para a revista Krisis und Kritik. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften.
Editado por Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser com a colaboração de Theodor W. Adorno e
Gershom Scholem. Frankfurt, Suhrkamp, 1972-1999.
52
plano não realizado, convicções estéticas e políticas de artistas e especialistas de
esquerda da época.
No que tange ao olhar crítico de Benjamin sobre Brecht e a
comunicação, iniciamos com as considerações sobre o teatro épico. Segundo Gatti
(2015, p.22), Benjamin fazia questão de ressaltar o quanto as modificações
realizadas por Brecht na dramaturgia aristotélica se inseriam no aparelho teatral com
um conjunto de fatores que incluía, entre outros, o rompimento com a unidade da
ação por técnicas de montagem originárias do cinema e do rádio, a colaboração
entre música e drama, bem como uma nova concepção da arte de atuação, que se
opõe ao registro naturalista.
Trocando em miúdos e adaptando-os à história do teatro, nos países
que conheceram as várias fases de desenvolvimento do teatro
moderno, o capitalismo tardio produziu uma espécie de ―estado de
armistício‖ com suas formas intermediárias – excluído naturalmente o
teatro épico, a forma mais avançada – por aquelas razões que já
esboçamos, a principal sendo a inexistência de um movimento
operário em condições de patrocinar iniciativas que dependessem do
teatro como meio de produção. (COSTA, 1998, p.33).
Considerando as afirmações de Iná Camargo Costa (1998, p.63), os
―homens de teatro‖ da dramaturgia alemã se incomodaram muito com a vocação dita
épica, que transgredia o princípio dramático. Ela explica dizendo que os pobres
estão na esfera do épico, por isso que ―trabalhadores, multidão, greve, guerra,
revolução, tudo que o que não puder ser apresentado de maneira dialogada é épico‖
e, portanto, deve ser evitado nos dramas (ou no teatro, como diziam).
Se os assuntos que interessavam eram considerados como
pertencentes ao âmbito do épico e o teatro que faziam não tinha mais nada a ver
com o drama, tratava-se de dar esse mesmo nome à forma nova. Foi assim que aos
poucos ―teatro épico‖ passou a designar aquelas peças que haviam rompido primeiro
com os assuntos e depois com as formas tradicionais do drama (COSTA, 1998,
p.69).
Entende-se, pelo que aqui já foi esmiuçado, que por meio da empatia
gerada dramaticamente, o espectador se projeta nos acontecimentos, doando seus
sentimentos e emoções à exploração pelo espetáculo, o que também pode ser
transposto ao que ocorre com os meios de comunicação.
53
É um engano, ensina Brecht, supor que um teatro que apela ao
espírito crítico de seu público é manipulador. Ao contrário, é o viciado
nas emoções baratas estimuladas pelo drama e seus subprodutos da
indústria cultural que oferece integralmente seu psiquismo à
manipulação. (COSTA, 1998, p.73).
O drama se restringia à esfera privada, então a condição essencial do
épico é que os acontecimentos sejam de interesse público. Sendo assim, as
transformações provocadas pelo teatro épico só poderiam ser devidamente
consideradas, insistia Benjamin, se ―tomarmos como ponto de referência o palco, e
não o drama. [...] Brecht liquida a ilusão de que o teatro se funda na literatura; isso
não é verdade nem para o teatro comercial nem para o brechtiano‖ (BENJAMIN,
2012, pp.83-84).
Ainda de acordo com Benjamin (apud Gatti, 2015, p.23), não é só a
relação entre texto e encenação que sai favorecida, mas também a formulação do
efeito pedagógico e não ilusionista da peça. O processo de interrupção da ação e
citação de gestos faz com que atores e espectadores se ―assustem‖ diante do que
veem e sejam levados a tomar uma posição perante as cenas e suas respectivas
atuações.
Benjamin (2012, p.83) explica em seu artigo ―Que é o teatro épico?‖
que a separação que havia entre o público e os atores é outra. E ainda afirma que o
―abismo‖ criado com o drama não faz parte do épico: ―O palco ainda ocupa uma
posição elevada, mas não é mais uma elevação a partir de profundidades
insondáveis: ele transformou-se em tribuna. Temos que ajustar-nos a essa tribuna‖.
Segundo o próprio Benjamin (2012, pp.92-93), ―o ‗autocontrole‘ do
palco supõe atores que possuam um conceito do público essencialmente distinto
daquele que o domador tem das feras em suas gaiolas; atores cujos efeitos não
sejam fins, e sim meios‖.
O fato de que ele é modificável por seu ambiente e de que pode
modificar esse ambiente provoca, no público, um sentimento de prazer. Tal
sentimento não é despertado quando o homem é visto como ―algo de mecânico,
completamente aplicável, incapaz de resistência, o que hoje acontece devido a
certas condições sociais‖ (BENJAMIN, 2012, p.95).
Trata-se, então, de um teatro político, que dá lugar às massas
proletárias onde antes só existia espaço para a burguesia. O público deixa de ser
54
―uma massa de cobaias hipnotizadas‖ para se tornar uma ―assembleia de pessoas
interessadas‖ (BENJAMIN, 2012, p.84), cujas exigências precisam ser satisfeitas.
É sabido que as relações sociais são condicionadas pelas relações de
produção. Benjamin era convicto em afirmar que os textos do teatro épico não foram
escritos com a intenção de abastecer o teatro burguês, mas com a intenção de
transformá-lo. E quando a crítica materialista aborda uma obra, costuma-se
questionar de que maneira ela se vinculava às relações sociais de produção da
época.
As respostas às perguntas que artistas e intelectuais procuram por seu
papel e o da arte na sociedade capitalista só serão encontradas, segundo Costa
(2012, p.152), na luta por um lugar na produção, o que equivale a dizer na luta pela
libertação das forças produtivas. O papel de produzir revoluciona todo
comportamento e as ideias.
Em vez de perguntar: como se vincula uma obra com as relações de
produção da época? É compatível com elas, é reacionária ou visa
sua transformação, é revolucionária? – em vez dessa pergunta, ou
pelo menos antes dela, gostaria de sugerir-vos outra. Antes, pois, de
perguntar qual a posição de uma obra literária em relação às
relações de produção da época, gostaria de perguntar: qual é a sua
posição dentro dessas relações? Essa pergunta visa imediatamente
à função exercida pela obra no interior das relações de produção
literárias de uma época. Em outras palavras, ela visa de modo
imediato à técnica literária das obras. (BENJAMIN, 2012, p.132, grifo
do autor).
Esse conceito de técnica representa o ponto inicial dialético para uma
superação do contraste infecundo entre forma e conteúdo. O teatro épico propõe
que se faça o que deveria ocorrer com os meios de comunicação, dos quais se
utiliza o Jornalismo. Tanto os atores quanto a plateia têm de se posicionar perante a
realidade que presenciam. É de suma importância que não seja alienado quem
fornece a informação, nem mesmo quem a recebe.
Os textos das peças épicas têm uma função principal, que não se
configura em ilustrar a ação, e sim interrompê-la. Na prática, isso significa que tanto
a ação de um parceiro será interrompida quanto a sua própria, o que caracteriza o
épico também como teatro gestual: ―A mais importante realização do ator é ‗tornar os
gestos citáveis‘; ele precisa espaçar os gestos, como o tipógrafo espaça as palavras‖
(BENJAMIN, 2012, p.93).
55
Benjamin (2012, p.88) afirma que ―[...] muito mais profunda que sua
ruptura com a concepção do teatro como diversão noturna, é a brecha que ele cria
no teatro como espetáculo social‖, logo, a participação deixa de ser passiva. Os
gestos e ações no decorrer das peças podem mudar na hora mesmo em que estão
acontecendo, isso depende dos atores e da plateia. Perceba a consideração de
Benjamin (2012, p.93):
A peça épica é uma construção que precisa ser considerada
racionalmente, e na qual as coisas precisam ser reconhecidas, e, por
isso, sua representação deve ir ao encontro dessa consideração. A
tarefa maior de uma direção épica é exprimir a relação existente
entre a ação representada e a ação que se dá no ato mesmo de
representar. Se todo o programa pedagógico do marxismo é
determinado pela dialética entre o ato de ensinar e o de aprender,
algo de análogo transparece, no teatro épico, no confronto constante
entre a ação teatral, mostrada, e o comportamento teatral, que
mostra essa ação.
Interessado na crítica ao sistema vigente, o capitalismo, Benjamin
confirma que o personagem brechtiano não oferece um modelo de comportamento,
seja ele positivo ou negativo, mas ―instrumentos de análise e de correção de uma
postura social‖ (GATTI, 2015, p.72), o que se dá por meio da reflexão e
racionalização e visa à transformação e ao entendimento sociais.
Wizisla (2013, p.212) cita Benjamin, que assevera: ―Não se deve
convencer o leitor/ deve-se instrui-lo/ o leitor não deve ser concebido como público,
mas como classe/ há que se divertir o leitor/ não se pretende mudar sua consciência,
mas seu comportamento‖.
Além disso, a dialética visada pelo teatro épico não se limita a uma
sequência cênica no tempo; ela já se manifesta nos elementos gestuais, que estão
na base de todas as sequências temporais e que só podem ser chamados
elementos no sentido figurado, pois não são mais simples que essa sequência. O
que se descobre na condição representada no palco, com a rapidez do relâmpago,
como impressão de gestos, ações e palavras humanas, é um comportamento
dialético imanente.
Como Benjamin afirmara em 1930, em ―Aus dem Brecht-Kommentar”,
GS II-2, PP. 506-507, o principal do experimento de Brecht é a sua ―nova postura‖,
―Este o que tem um nome em Brecht: postura. Ela é nova, e o mais novo nela é que
56
ela pode ser aprendida‖. E Wizisla (2013, pp.215-216) completa: ―todos os
conhecimentos aos quais chega o teatro épico possuem um efeito educativo,
embora, ao mesmo tempo, o efeito educativo do teatro épico se transforme,
imediatamente, em conhecimento‖.
Tal progresso técnico é o ponto de partida para o progresso político. Ao
avaliar a função revolucionária da arte, almeja-se superar oposições tradicionais
como forma e conteúdo ou, nesse caso específico, entre inovação formal e
tendência política correta. Essa tendência não ilusionista exige outra função social
para a arte, que não poderia ser alcançada sem inovações técnicas na composição
da obra de arte.
Pois, segundo as considerações de Walter Benjamin em ―O Autor
como Produtor‖, [...] esta nova postura do artista não se limita a
fornecer produtos, mas procura, sobretudo, desenvolver novos meios
de produção para si e para outros artistas. Seria o progresso técnico
da obra de arte o responsável por oferecer condições para a
refuncionalização das formas artísticas e, deste modo, dos meios de
produção espirituais. (GATTI, 2015, pp.38-39).
A montagem desfaz o caráter orgânico do espetáculo e a interrupção
da ação dramática é o princípio organizador do teatro considerado épico, nesse
ponto análogo às peças de aprendizagem. O princípio da interrupção adota um
procedimento que se tornou familiar a nós com o desenvolvimento do rádio, do
cinema, da imprensa e da fotografia, isto é, ―o material montado interrompe o
contexto no qual é montado‖ (BENJAMIN, 2012, p.131).
A interrupção das sequências faz que se combata a ilusão criada pelo
público, exercendo uma função organizadora. ―Ela mobiliza os acontecimentos e
com isso obriga o ouvinte a tomar uma posição quanto à ação, e o ator, a tomar uma
posição quanto ao seu papel‖ (BENJAMIN, 2012, p.131).
O teatro de Brecht, argumenta Benjamin, transforma a função do
teatro, que passa do entretenimento ao conhecimento, com o qual se supera,
também, a peça política. Esta transformação deflagra, por fim, a ―relação funcional
entre cenário e público, texto e representação, diretor e ator‖ (BENJAMIN apud
WIZISLA, 2013, p. 218).
E aqui cabe prosseguir com a opinião de Benjamin (2012, p. 93): ―A
tese de que o palco é uma instância moral justifica-se somente no caso de um teatro
57
que não se limita a transmitir conhecimentos, mas os produz‖, exatamente o que se
propõe com as Lehrstücke.
É o que constata, nesse quesito, Benjamin (apud Koudela, 2007, p.36):
―A peça didática sobressai como um caso específico, através da pobreza dos
aparatos, simplificando e aproximando a relação do público com os atores e dos
atores com o público. Cada espectador é ao mesmo tempo observador e atuante‖.
De acordo com Wizisla (2013, p.205), no que concerne à obra
brechtiana sob as interpretações de Benjamin, cabe ressaltar que este preocupava-
se em esclarecer e explicar o modo como a linguagem era pertinente e adequada à
expressão artística, bem como à representação da realidade.
Nota-se, portanto, que havia um esforço por parte do dramaturgo em
dar uma forma artística válida à consciência da época, que estava passando pelo
pós-guerra e não poderia ser representada de forma banal. ―Embora não exponha o
que caracteriza Brecht, pode-se deduzir que sua obra significava para Benjamin uma
tentativa de sintetizar o alto nível e a boa técnica‖ (WIZISLA, 2013, p.208).
Para que se atinja esse nível, de acordo com o próprio Benjamin (2012,
p.137) em seu artigo ―O Autor como Produtor‖, ―Brecht criou o conceito de
―refuncionalização‖ para caracterizar a transformação de formas e instrumentos de
produção por uma inteligência progressista‖ e, portanto, mostrou-se interessado na
liberação dos meios de produção, em função da luta de classes. O dramaturgo
confrontou o intelectual com a exigência fundamental: ―não abastecer o aparelho de
produção, sem modificá-lo, na medida do possível, num sentido socialista‖. O que se
propõe são inovações técnicas.
Aliando a técnica aos meios de comunicação, temos uma consideração
importante de Benjamin (2012, pp.133-134), colocando a imprensa como exemplo e
suscitando problematizações, tais quais a efemeridade das matérias e a
colaboração, hoje ainda mais evidente, dos próprios leitores:
Ocorre, assim uma disjunção desordenada e uma perda de relação
entre a ciência e as belas letras, entre a crítica e a produção, entre a
cultura e a política. O jornal é o cenário dessa confusão literária. Seu
conteúdo é a matéria, alheia a qualquer forma de organização que
não seja a que lhe é imposta pela impaciência do leitor. [...] O fato
de que nada prende tanto o leitor a seu jornal como essa
impaciência, que exige uma alimentação diária, foi há muito utilizado
pelas redações, que abrem continuamente novas seções, para
satisfazer suas perguntas, opiniões e protestos. Com a assimilação
58
indiscriminada dos fatos cresce também a assimilação indiscriminada
de leitores, que se veem instantaneamente elevados à categoria de
colaboradores. Mas oculta-se aí um elemento dialético: o declínio da
dimensão literária na imprensa burguesa revela-se a fórmula e sua
renovação na imprensa soviética. Pois na medida em que essa
dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a
distinção entre o autor e o público, que a imprensa burguesa
preserva de modo convencional, começa a desaparecer na imprensa
soviética. Nela, o leitor está sempre pronto a escrever, descrever ou
mesmo prescrever. [...] A competência literária não se funda mais
numa formação especializada, e sim numa formação politécnica, e
com isso transforma-se em direito de todos. Em suma, é a
literarização das condições de vida que resolve as antinomias, de
outra forma insuperáveis, e é no cenário em que se dá a humilhação
mais extrema da palavra – o jornal – que se prepara a sua salvação.
Com isso, Benjamin intentou demonstrar a tese de que o autor como
produtor precisa recorrer à imprensa, pois nela se percebe o processo de fusão,
ultrapassando as distinções convencionais entre os gêneros, ensaístas, escritores,
investigadores e divulgadores. Submete, porém, a distinção entre autor e leitor a
uma revisão. A saber, o autor como produtor deve manter a imprensa como
instância decisiva, entretanto é preciso lembrar que ela ainda pertence ao capital.
A grande ampliação da imprensa coloca à disposição dos leitores uma
quantidade cada vez maior de órgãos políticos, religiosos, científicos, profissionais e
regionais. Assim, um número de leitores começa a escrever, a princípio,
esporadicamente. Hoje em dia, vemos as pessoas se manifestando em toda parte,
como nas redes sociais. Elas publicam episódios profissionais e pessoais,
reclamações, reportagens, avisos, elaboram informação.
Sobre isso, Benjamin (2012, p.199) ressalta: ―Com isso a diferença
essencial entre autor e público está a ponto de desaparecer. Ela se transforma numa
diferença funcional e contingente. A cada instante, o leitor está pronto a converter-se
num escritor‖.
Na atitude de escritor, cabe trair a sua classe de origem, o que consiste
em uma conduta ―que o transforma de fornecedor do aparelho de produção
intelectual em engenheiro que vê sua tarefa na adaptação desse aparelho aos fins
da revolução proletária‖ (BENJAMIN, 2012, p.146). E complementa:
O caráter modelar da produção é, portanto, decisivo: em primeiro
lugar, ela deve poder orientar outros produtores em sua produção e,
em segundo lugar, colocar à disposição deles um aparelho mais
perfeito. E esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz
59
consumidores à esfera da produção, ou seja, quanto maior for sua
capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou
espectadores. Já possuímos um modelo desse gênero, do qual só
posso falar aqui rapidamente. É o teatro épico de Brecht.
(BENJAMIN, 2012, pp. 141-142).
Nesse trecho, Benjamin nos conduz à reflexão sobre as
ressignificações dos lugares ocupados pelas classes sociais. É preciso possuir o
aparelho, seja ele da comunicação ou não, ao invés de apenas achar que o possui e
ser controlado por ele. Se não possuído, torna-se um instrumento contra os
produtores, não um instrumento a serviço deles. E Costa (2001, p.143) constata:
―não existem mais ciência nem arte livres da influência da moderna indústria: ciência
e arte são mercadorias como um todo ou não existem‖ (grifo da autora).
Benjamin, em uma nota de 16 de agosto de 1931 em seu diário, sobre
a dialética das teses ―a arte para o povo‖ versus ―a arte para os especialistas‖,
analisa uma tendência da literatura segundo a qual ―a separação entre autor e
público [...] começa a romper-se de um modo decente‖ (WIZISLA, 2013, p.221).
Seguindo o raciocínio de Benjamin (2012, p.142), o teatro que tenta
chamar a atenção, com inúmeros figurantes e efeitos refinados e catárticos, segue
numa concorrência com o rádio, o cinema e a televisão, com fins a alienar e
―segurar‖ os espectadores, transformando-se em instrumento contra o produtor. O
teatro épico, por sua vez,
[...] em vez de competir com esses novos instrumentos de difusão,
procura aplicá-los e aprender com eles, em suma, [...] busca
confrontar-se com eles. O teatro épico transformou esse confronto
em seu objeto. Ele é, comparado com o nível de desenvolvimento
hoje alcançado pelo cinema e pelo rádio, o teatro adequado ao nosso
tempo.
Perpassando o mérito dos meios comunicacionais em detrimento ao
pensamento crítico e político do teatro épico, temos a noção de aura implícita no
texto ―A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica‖, de Walter Benjamin.
Ele se interessou, por meio do pensamento filosófico, por discorrer sobre as forças
produtivas e as relações de produção no que tange à cultura, afirmando que Marx
escreveu na forma de prognóstico, prevendo o futuro do capitalismo.
Benjamin tenta trazer as discussões de Marx para o campo do debate
da cultura, por isso ele vai se colocar, necessariamente, na discussão sobre cinema
60
e rádio, por exemplo, meios de comunicação que podem ser usados pela cultura
como aparato técnico.
Seguindo esse conceito, as obras de arte têm um ―aqui e agora‖ que
fica ausente em sua reprodução, ―o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica
da obra de arte é sua aura‖ (BENJAMIN, 2012, p.182).
O autor analisa as alterações provocadas pelas novas técnicas de
produção artística na esfera da cultura e desenvolve, como elemento primordial, a
tese de que a reprodutibilidade técnica provoca a superação da aura pela obra de
arte.
Os elementos principais da aura (autenticidade e unicidade) não foram
superados, mas, ao contrário, como vemos atualmente, adaptaram-se às mudanças
técnicas, o que ocorreu, com ênfase, em torno da industrialização, a qual marcou a
produção cultural no século XX.
Para entendermos melhor, é preciso lembrar a tese de Benjamin de
que a forma de percepção do coletivo se transforma ao longo dos períodos históricos
ao mesmo tempo que seu modo de existência. Tal percepção não se organiza
apenas naturalmente, ela também é condicionada historicamente. Assim, intenta-se
orientar ―a realidade em função das massas e as massas em função da realidade‖
(BENJAMIN, 2012, p.185).
Mesmo o conteúdo ficando intacto, as reproduções desvalorizam o seu
―aqui e agora‖, sua autenticidade. Existem circunstâncias que explicam o declínio
atual da aura: a tendência das massas em superar o caráter único dos objetos por
conta de sua reprodutibilidade. É como Benjamin (2012, pp. 181-182, grifo do autor)
explica:
O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade,
e nela, por sua vez, se enraíza a concepção de uma tradição que
identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto,
sempre igual e idêntico a si mesmo. A esfera da autenticidade, como
um todo, escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não
apenas a técnica.
Com o advento da fotografia, a arte foi levada à proximidade de uma
crise. No momento em que o critério da autenticidade deixa de se aplicar à produção
artística, toda a função social da arte se transforma. Em vez de fundar-se no ritual,
ela passa a fundar-se na política. No cinema, por exemplo, a reprodutibilidade
61
técnica não é uma condição externa para sua difusão maciça, ela se torna
obrigatória pelo alto custo de produção de um filme.
Os conceitos de Benjamin são, como se vê, atuais e servem para a
―formulação de exigências revolucionárias na política artística‖ (BENJAMIN, 2012,
p.180). A autenticidade de uma coisa é a ―quintessência de tudo o que foi
transmitido pela tradição‖ (p.182), desde sua duração material até seu testemunho
histórico. Quando a materialidade da obra se esquiva do homem por meio da
reprodução, também o testemunho se perde.
A multiplicação da reprodução substitui, como evidenciado, a existência
única da obra, tornando-a uma existência massiva. O objeto reproduzido é
atualizado na medida em que a técnica permite à recepção vir ao encontro do
espectador.
A arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar
em função da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em
seu centro a obra original. É óbvio, à luz dessas reflexões, por que a
arte dramática é de todas a que enfrenta a crise mais manifesta. Pois
nada contrasta mais radicalmente com a obra de arte sujeita ao
processo de reprodução técnica, e por ele engendrada, a exemplo do
cinema, que a obra teatral, caracterizada pela atuação sempre nova
e originária do ator. (BENJAMIN, 2012, pp. 195-196, grifo do autor).
Paralela à discussão sobre a obra de arte, estão as reflexões de Brecht
sobre a teoria da mídia, as quais são muito atuais, ―sendo que as contradições para
as quais apontam se tornam hoje cada vez mais acirradas‖ (KOUDELA, 2007,
p.163). O sistema social vigente acentua crescentemente a transformação da arte
em mercadoria e esse é um impasse que dificilmente será superado.
Iná Camargo (2001, p.152) ainda vai além quando afirma que a
―teologia da arte‖, a doutrina da arte pura, do esteticismo, chamada assim por
Benjamin, não dará as respostas sobre o papel da arte na sociedade capitalista. As
respostas somente podem ser encontradas na luta por um lugar na produção, ―o que
equivale a dizer na luta pela liberação das forças produtivas (porque artistas e
intelectuais desempregados, como todas as demais categorias de trabalhadores,
também configuram desperdício de forças produtivas)‖.
Já de acordo com Koudela (2007, p.10), Brecht compreendia o trabalho
artístico como produção, a qual proporciona significativas considerações político-
estéticas, voltadas também à realização do teatro épico. A experiência com a plateia
62
presente no teatro da época, com a crítica teatral e principalmente com os aparatos,
ou seja, a mídia, ―induziu Brecht a modificar a ênfase da sua teoria – de uma
discussão de opiniões, ela passou a ser uma luta pelos meios de produção‖.
A monopolização desses meios faz com que a obra de arte assuma o
caráter de mercadoria, tendo seu valor determinado por sua utilidade e adequação.
Ficam ameaçadas, assim, a liberdade do trabalho artístico e da própria criação.
Segundo Koudela (2007, p.11), cabe ao produtor de arte, então, apropriar-se
socialmente dos aparatos midiáticos.
De acordo com Gatti (2015, p.44), Steinweg sustentava sua tese de
que a organização da função no teatro épico superaria a divisão do trabalho entre
quem assiste e quem atua. ―A ênfase na teoria da peça como um modelo de teatro
[...] termina por distanciar o estudo de Steinweg das repercussões mais amplas
pretendidas por Brecht, especialmente da refuncionalização de aparelhos como o
rádio e o concerto‖.
Em seu artigo de título ―A radiodifusão como meio de comunicação -
Discurso sobre a função da radiodifusão‖, escrito em 19324
, Brecht discorre sobre o
fato de sua arte não ter valor de mercado:
Não poria em prática, se não tratasse dos propósitos de tratar das
possibilidades de separar a ópera do drama e ambos do roteiro
radiofônico, ou de resolver questões estéticas do mesmo teor, ainda
que eu saiba que isso talvez seja o que vocês esperam de mim,
posto que se propõem a vender arte mediante seu aparato. Mas,
para estar à venda, a arte tem que ser hoje comprável. E eu preferiria
não vender nada a vocês, mas apenas fazer-lhes a proposta de fazer
da radiodifusão, em princípio, um aparato da comunicação da vida
pública.
Fazendo-se valer, ainda, das considerações sobre a democratização
dos meios, instaurada pela arte de Brecht e pelas reflexões de Benjamin, podemos
nos voltar à relação com o rádio. Wizisla (2013, p.221) esclarece:
Com as conferências para o rádio, as peças radiofônicas, os modelos
para escutar e as encenações experimentais, colocados na prática
pelo veículo de comunicação em questão, Benjamin e Brecht
procuravam aproveitar, de diferentes maneiras, o rádio como meio,
não no sentido de ―abastecê-lo, mas de transformá-lo‖.
4
O artigo mencionado está, na íntegra, no texto intitulado “Teoria do rádio (1927-1932) – Bertolt Brecht/
Tradução de Regina Carvalho e Valci Zuculoto. Fonte: Site do RadioLivre. Disponível em:
<http://www.radiolivre.org/node/3667 >. Acesso em: 17 dez. 2015.
63
Ainda de acordo com Wizisla, Brecht tinha como objetivo fazer
do rádio – também do cinema e do teatro – ―uma coisa realmente democrática‖,
convertendo-o ―em um aparelho de comunicação‖. Remetendo agora à Teoria do
Rádio formulada por Brecht, sabe-se que sua intenção era fazer do rádio um
instrumento de ação, não apenas de recepção e como uma via de mão única.
Benjamin também via possibilidade de que o rádio cumprisse com ―as
exigências de um público que está intimamente vinculado à técnica‖. A ideia básica,
documentada por ambos, de anular a separação entre produção e recepção
demonstra o profundo da discussão entre Benjamin e Brecht em relação ao tema da
democratização da arte pelos meios de comunicação (WIZISLA, 2013, p. 221).
A fim de dar continuidade à discussão sobre a comunicação e seus
meios, o próximo capítulo traz uma pequena contextualização da história do rádio
alemã, evidenciando os problemas da utilização imposta pelo Estado. Em seguida é
apresentada a conceituação da Teoria do rádio, do próprio Brecht, que concretizará
a ponte entre teatro e comunicação e elucidará melhor a análise sobre a peça-objeto
desta pesquisa.
64
5 O ADVENTO DO RÁDIO NA ALEMANHA5
As informações e dados contidos neste capítulo servem de
embasamento para contextualizar o rádio na Alemanha, chegando à época que
perpassa a Teoria do rádio formulada pelo dramaturgo Bertolt Brecht.
Os primórdios dessa forma de comunicação que, mais tarde, iria
transformar-se no rádio, têm início no dia 24 de maio de 1844, quando Samuel F. B.
Morse envia a primeira mensagem a distância, a frase ―Que Deus seja louvado‖,
através do telégrafo. Vale a pena lembrar que o telégrafo, por meio de fios,
juntamente com o Código Morse, é o primeiro sistema de comunicação de longa
distância que o mundo conheceu.
Em 1850, o alemão Daniel Ruhmkoff inventa um aparelho capaz de
transformar baixa tensão de uma pilha em alta tensão: surge o primeiro emissor de
ondas eletromagnéticas. Alguns anos depois, em 1853, o físico australiano Julius
Wilheim Gintl prova ser possível enviar várias mensagens, simultaneamente, por
uma única linha telegráfica.
Entretanto, só em 1867 é que o alemão Siemens cria o dínamo. Daí
para o primeiro serviço permanente de notícias por cabo são oito anos. Em sua
origem, o rádio surgiu como um substituto do telégrafo, sendo, por isso, conhecido
inicialmente como "sem-fio".
Esse aparelho rudimentar era usado nos navios para transmissões
telegráficas em código. Em 1916, houve uma revolta pela independência da Irlanda
e os revoltosos, de forma pioneira, usam o "sem-fio" para transmitir mensagens.
Essa foi a primeira utilização que se conhece do rádio moderno.
Marshall McLuhan (1979, p.342), comentando o episódio, observou:
Até então, o sem-fio fora utilizado pelos barcos como "telégrafo" mar-
terra. Os rebeldes irlandeses utilizaram o sem-fio de um barco, não
para uma mensagem em código, mas para uma emissão radiofônica,
na esperança de que algum barco captasse e retransmitisse a sua
estória à imprensa americana. E foi o que se deu. A radiofonia já
existia há vários anos, sem que despertasse qualquer interesse
comercial.
5
As informações históricas presentes neste capítulo foram retiradas, principalmente, do livro Rádio – o veículo,
a história e a técnica, de Luiz A. Ferraretto.
65
Em 1915, o jornalismo começou a tomar conta das ondas do rádio,
quando surgem na Alemanha as primeiras transmissões internacionais de
programas diários de notícias. Os estudos sobre a história do rádio na Alemanha
mostram, a propósito, que esse meio de comunicação teve a sua origem também
ligada a uma rebelião – a revolução operária de 1918-1919.
À semelhança da Revolução Russa, o movimento operário alemão
organizou-se em soviets. O rádio faz sua estreia durante essa breve experiência
revolucionária, servindo como meio para coordenar o movimento nas várias regiões
do país e manter contato com o regime revolucionário da Rússia. O rádio surge,
portanto, como um instrumento de mobilização política e, só depois de cinco anos,
com a revolução derrotada, é que se estabeleceu a "radiodifusão pública da
diversão", ou seja, passou a ter uma função comercial e a monopolizar o "comércio
acústico", segundo a feliz expressão de Brecht.
Os primeiros aparelhos eram chamados de "receptores detentores" e
funcionavam com fone de ouvido. Depois surgiu o receptor com alto-falantes,
modelo apresentado na Exposição de Radiodifusão de Berlim, em 1924.
Para se ouvir rádio, era preciso pagar uma taxa. Em meio à crise
econômica da República de Weimar, porém, ninguém se importou muito com isso. A
era do rádio, que se iniciava naquele 29 de outubro de 1923, em Berlim, não
empolgou multidões de imediato, mas depois se transformou num grande sucesso.
Até o fim do ano, havia apenas 467 ouvintes registrados na Alemanha,
ou seja, pagantes. Em abril do ano seguinte, eram 8.600, ultrapassando-se a casa
do milhão no final de 1925. A partir de então ninguém segurou sua difusão. "A moda
boba do rádio", como diziam alguns críticos, acabou tomando conta da nação e o
que no início era mais uma curiosidade, transformou-se rapidamente em meio de
comunicação de massas.
Um marco decisivo acontece na Alemanha quando, em 1939, enquanto
caminha para a II Grande Guerra, o governo decide que ouvir rádios estrangeiras
constituía crime capital. O segundo passo ocorre em 1940, quando as rádios alemãs
passam a transmitir a mesma programação de caráter ultranacionalista, já
totalmente sob o domínio nazista.
66
5.1 TEORIA DO RÁDIO DE BRECHT
As primeiras – e principais – reflexões de Brecht sobre o rádio estão
sintetizadas num conjunto de breves artigos, escritos entre 1927 e 1932, no mesmo
período das já mencionadas peças didáticas, sobre esse novo meio de
comunicação.
São cinco os artigos que compõem a Teoria do rádio6
: o mais
importante deles é "O rádio como aparato de comunicação", com tradução de Tercio
Redondo. Os demais textos são "O rádio: um descobrimento antediluviano?",
"Sugestões aos diretores artísticos do rádio", "Aplicações" e "Comentário sobre O
vôo sobre o oceano". O último texto, extraído do caderno I dos Versuche, foi
traduzido para o português por Fernando Peixoto em Brecht (1992a, p.184).
Como exemplo dos exercícios que se utilizam do rádio como aparato
de comunicação, Brecht fez comentários, na semana musical de Baden-Baden, em
1929, sobre O vôo de Lindbergh e a Peça didática de Baden sobre o entendimento.
A fim de iniciarmos as considerações do próprio autor sobre o rádio,
vale lembrar que na época ainda não havia internet, o rádio e o cinema estavam em
ascensão, os aparatos estavam ficando cada vez mais complexos. É o que
complementa Iná Camargo (2012, p.142): ―Independentemente do gosto geral, as
velhas formas (inclusive as impressas) são afetadas pelos novos meios e não
sobreviverão imunes a eles. O avanço tecnológico sobre a produção literária é
irreversível‖, o que vemos também na atualidade, em comunicação.
Trata-se de uma teoria bastante atual, principalmente se trouxermos à
tona a internet, a qual Brecht não tinha como conhecer na época, e que demanda
um tipo de raciocínio enquanto método, não somente quanto ao conteúdo. A internet
tem tantas possibilidades hoje, como o rádio tinha (e ainda tem), mas ficamos presos
a poucas alternativas, por exemplo ao uso das redes sociais (e somente elas) em
meio a uma gama de endereços eletrônicos a serem percorridos.
Brecht é um incansável contestador das relações burguesas
estabelecidas na Alemanha, por isso também, em seu artigo ―O rádio: uma
descoberta antideluviana?‖, ele afirma:
6
Os artigos aqui mencionados estão, na íntegra, no texto intitulado “Teoria do rádio (1927-1932) – Bertolt
Brecht/ Tradução de Regina Carvalho e Valci Zuculoto. Fonte: Site do RadioLivre. Disponível em:
<http://www.radiolivre.org/node/3667 >. Acesso em: 17 dez. 2015.
67
Se eu acreditasse que a burguesia viveria ainda cem anos, estou
convencido de que estaria, também, cem anos esbarrando a
propósito das imensas possibilidades que encerra, por exemplo, o
rádio. Aqueles que valorizam o rádio, fazem-no porque veem nele
uma coisa para qual se pode inventar ―algo‖, teriam razão no
momento em que se inventasse ―algo‖ para o qual se tivesse que
inventar o rádio, se este já não existisse.
Brecht torce, no mesmo artigo, para que esta burguesia à qual se
refere invente outra coisa além do rádio, mas deve ser um invento que torne possível
estabelecer, de uma vez por todas, ―o que se pode transmitir pelo rádio‖. E
complementa: ―Um homem que tem algo para dizer e não encontra ouvintes está em
má situação. Mas estão em pior situação ainda os ouvintes que não encontram
quem tenha algo para lhes dizer.‖
Segundo Celso Frederico (2007), ―em ambas as intervenções
encontram-se o apelo à participação, o incentivo para que o mundo do trabalho tome
a palavra. Os conhecimentos teóricos do teatro épico, diz Brecht, podem e devem
ser aplicados à radiodifusão‖. E continua:
O teatro épico, com o seu caráter numérico, com a separação dos
elementos, quer dizer, com a separação entre imagem e palavra, e
entre as palavras e a música, e, particularmente, com a sua postura
didática, teria a oferecer ao rádio uma infinidade de sugestões
práticas. Contudo, o seu emprego meramente estético, assim como
uma nova moda, de nada serviria, e de velhas modas já estamos
fartos! (BRECHT, 2007).
O novo teatro estabelecido por Brecht e o novo meio de comunicação –
o rádio – podem caminhar juntos para realizar o imperativo de interatividade,
deixando ao retrocesso o antigo conceito que via a cultura como uma forma que não
precisa de qualquer esforço criativo, pois ―a formação cultural já estaria concluída e
a cultura não careceria de nenhum esforço criativo continuado‖ (BRECHT, 2007).
Em "Sugestões aos diretores artísticos do rádio", publicado
originalmente em 1927, o dramaturgo exprime sua insatisfação com a programação
culturalmente limitada, situando o rádio em uma disputa política:
Na minha opinião, vocês deveriam tentar fazer do Rádio uma coisa
realmente democrática. Neste sentido, obteriam logo uma série de
resultados se, por exemplo, dispondo, como dispões, de
maravilhosos aparelhos de difusão, deixassem estar simplesmente
68
produzindo, sem cessar, em vez de tornar produtivos os
acontecimentos atuais mediante uma direção hábil e que economiza
tempo.
No mesmo artigo, na tentativa de reforçar que o rádio não funciona
decentemente a serviço da sociedade, Brecht sugere: ―é requisito indispensável que
prestem contas publicamente das fabulosas somas que o rádio arrecada e
expliquem a aplicação que se dá a este dinheiro público, até o último centavo‖.
O "esforço criador", ainda de acordo com Frederico (2007), tanto no
teatro como na radiodifusão, não se contentava com o melhoramento desses
fatores, de abastecê-los com bons produtos, mas visava à sua transformação
radical. Vale aqui lembrar a famosa passagem de "Notas Sobre Mahagonny",
escritas em 1930 por Brecht (1967, p.56):
Ora, a engrenagem é determinada pela ordem social; então não se
acolhe bem senão o que contribui para a manutenção da ordem
estabelecida. Uma inovação que não ameace a função social da
engrenagem (e esta função é a de ser um divertimento vesperal)
pode por ela ser apreendida. Mas as que tornam iminente a mudança
dessa função e procuram dar à engrenagem uma posição diferente
na sociedade, por exemplo uma aproximação, em certa medida aos
grandes estabelecimentos de ensino ou aos grandes organismos de
difusão, esta mudança é renegada por ela. A sociedade absorve por
meio da engrenagem apenas o que necessita para sua perpetuação.
Brecht (1967, p.56), como marxista, observou muito antes de Adorno o
primado da produção sobre o consumo dos bens simbólicos ao afirmar que "é a
engrenagem que elabora o produto para consumo", pois cada vez mais as
produções dos críticos, compositores e escritores transformam-se em matérias-
primas.
As radicais e muito criativas teses brechtianas sobre o rádio e o teatro
exprimem o momento histórico vivido pelos intelectuais alemães, ainda marcado
pelo entusiasmo provocado pela Revolução Russa de 1917 e pela certeza de que a
revolução, abortada na Alemanha em 1919, em breve triunfaria. A agitação política
do período foi acompanhada por uma intensa discussão sobre o esgotamento das
formas tradicionais de se fazer arte e sobre a busca de novas formas de
comunicação.
Bem como os construtivistas russos, Brecht tinha entusiasmo com o
progresso técnico. O socialismo era a própria promessa do progresso social, avanço
das forças produtivas rebelando-se contra as relações de produção. O teatro, então,
69
é invadido pela técnica e o dramaturgo usa em seus textos, constantemente, termos
como montagem, processo, máquina, instrumento, experimento, ciência, produção.
Ainda de acordo com Frederico (2007), ―o ativismo cultural do período
deve-se à formação de um novo público, produtor e consumidor de arte, que exige a
renovação do fazer artístico.‖ Quando se fala da arte na República de Weimar, a
atenção volta-se exclusivamente para as expressões da "alta cultura" e a tendência
é ignorar o movimento cultural subterrâneo que se desenvolveu em torno do
movimento operário.
O grande meio de comunicação de massa do período era o cinema, o
qual atraía milhões de pessoas fascinadas pela nova arte às salas de projeção que
proliferaram em toda a Alemanha. Em 1932, Brecht, Eisler, Ottwalt e Dudow
produziram o filme Kuhle Wampe, em que exploraram as possibilidades técnicas do
novo meio. No mesmo período, Walter Benjamin (1987) escreveu sobre as
possibilidades abertas pelo rádio.
Aparece, então, em meio a uma revolução operária, que durou de 1918
a 1919, o rádio, o qual foi utilizado para manter as várias regiões do país
interligadas, mantendo contato com o regime revolucionário da Rússia. O rádio
surge para permitir a interação entre os homens, ao contrário do que veio a se tornar
depois: um aparelho de emissão controlado pelos monopólios e a serviço da lógica
mercantil.
Após isso, a tentativa de criar um cinema alternativo ao oficial para
conquistar a audiência popular fracassou com o advento do cinema falado, por volta
de 1926/27, o que encareceu o custo da produção a tal ponto de torná-lo inviável
para os partidos de esquerda e sindicatos.
De acordo com Mello (2014), a imprensa era o principal aliado do
movimento ligado aos operários. ―Marx e Engels, já na metade do século XIX
apontaram para o importante papel da imprensa na Revolução. Para eles, o
jornalismo deveria cumprir o papel de orientação e organização das lutas populares.‖
Segundo Loureiro (2005 apud Mello, 2014), a imprensa atuou de
maneira significativa na Alemanha durante esse processo revolucionário. Por
exemplo, em 1914, a socialdemocracia ―tinha 203 jornais com 1.5 milhão de
assinantes, dezenas de associações esportivas e culturais, movimentos de
juventude e a central sindical mais poderosa‖ (LOUREIRO, 2005, p.36 apud MELLO,
2014).
70
Naquele momento, o jornal passou a atender aos interesses de seus
leitores abrindo novas seções, dando a estes a oportunidade de potencializar a
comunicação. Logo, ao tornarem-se tecnologias disponíveis, a imprensa e o rádio
surgem como produtos de desenvolvimento social, ligados à revolução devido a sua
forte atuação política e pedagógica. Nesse momento, a classe operária passa a
exercer uma participação mais ativa dentro das questões políticas, sociais e culturais
(MELLO, 2014).
Segundo Frederico, a princípio, as rádios ligadas ao movimento
operário proliferam. Inicialmente, os trabalhadores fazem aparelhos de emissão em
larga escala, objetivando divulgar informações políticas e concorrer com as
emissoras oficiais que permaneciam distantes da vida da classe trabalhadora.
Paralelamente, criaram-se as "comunidades de ouvintes", ou seja, eram instalados
amplificadores nas ruas a fim de se ouvir e debater as notícias veiculadas.
Esses grupos operários que construíam rádios reúnem-se em abril de
1924, na Arbeiter-Radio-Klub Deutschland. Segundo informes da polícia, a
associação agrupou cerca de quatro mil sócios. Em 1926, de oitocentos a 1500
(DAHAL, 1981, p.29 apud FREDERICO, 2007).
A existência do movimento das rádios operárias a cada dia vai
conhecendo a presença sufocante da censura. Em meio a esse contexto, Brecht
intervém com sua Teoria do rádio. Não demorou muito e os ativistas passaram a
interceptar as emissoras oficiais para fazer discursos políticos.
Com a derrocada do movimento revolucionário, colocou-se, na
Alemanha, a questão do controle do rádio. A Telefunken e a Lorenz, duas gigantes
da indústria de radiodifusão, além de fabricarem os aparelhos, queriam ter o
monopólio da emissão. O Estado, porém, percebeu a importância estratégica do
rádio e quis mantê-lo sob o seu exclusivo controle. Depois de muita discussão,
chegou-se a um acordo: o Estado mantém o controle, mas fornece concessões para
os grupos interessados.
Embora afastado do poder, o movimento operário alemão, tendo
anterior experiência em radiodifusão, solicitou uma concessão, entretanto ela não foi
concedida pelo Estado, o qual possuía um instrumento político diretamente a serviço
da ascensão do nazismo, mais adiante colocado em função da Indústria Cultural
(FREDERICO, 2007).
71
Brecht, em seu artigo ―O rádio como aparato de comunicação"
questiona não somente a utilização do rádio como aparato emissor e receptor, de
forma cultural, mas também afirma ser ele um meio que deveria servir ao povo
politicamente:
Nosso Governo tem a necessidade da atividade radiofônica da
mesma forma que nossa administração da Justiça. Quando Governo
ou Justiça se opõem a essa atividade radiofônica, é porque têm
medo e não pertencem a tempos anteriores à invenção do rádio,
ainda não anteriores à invenção da pólvora. Desconheço, tanto
quanto vocês, as obrigações, por exemplo, do Chanceler; é tarefa do
rádio explicá-las, mas parte dessas obrigações é constituída pelo fato
de a autoridade suprema informar à Nação, regularmente, através do
rádio, sobre sua atividade e a legitimidade de sua atuação.
A radiodifusão, portanto, deveria tornar possível o intercâmbio, o que
―lhe conferiria uma importância social muito distinta da sua atual postura puramente
decorativa‖, na visão do dramaturgo.
Finalmente – embora infelizmente –, grupos econômicos
monopolizaram esse meio de comunicação, apossaram-se da transmissão e
transformaram o público em mero receptor. Esse fato, de acordo com as afirmações
de Frederico (2007), não implica em razões técnicas, pois uma simples modificação
pode transformar qualquer aparelho de rádio num instrumento que, ao mesmo
tempo, recebe e transmite mensagens. Brecht reivindica, então, a transformação
desse aparelho de distribuição num verdadeiro instrumento de comunicação:
Não cabe aqui investigar em razão de que interesses essas
instituições são inconsequentes; mas, se um invento técnico, dotado
de uma aptidão tão natural para as decisivas funções sociais,
propõe-se um esforço tão desesperado para
permanecer inconsequente, envolvido no entretenimento mais
inofensivo, então surge de modo incontornável a questão sobre a
possibilidade de se defrontarem as forças da desconexão por meio
da organização dos desconectados. (BRECHT, 2007, grifo do autor).
A argumentação do dramaturgo é bastante simples: a comunicação é
um processo interativo e o rádio, substituto do telégrafo, foi feito para permitir a
interação entre as pessoas. Entretanto, os grupos econômicos monopolizaram esse
meio de comunicação, apossaram-se da transmissão e, dessa forma, transformaram
todos em meros receptores.
72
Por isso, o rádio tornou-se um mero aparelho de emissão. ―A atrofia do
rádio é, assim, mais um capítulo da história da contradição entre o desenvolvimento
das forças produtivas e as relações de produção‖, afirma Frederico (2007). Assim,
Brecht (2007) descreve sua proposição em relação à função do rádio:
O rádio seria o mais admirável aparato de comunicação que se
poderia conceber na vida pública, um enorme sistema de canais;
quer dizer, seria, caso ele se propusesse não somente a emitir, mas
também a receber; ou, não apenas deixar o ouvinte escutar, mas
fazê-lo falar; e não isolá-lo, mas colocá-lo numa relação. O rádio
deveria, portanto, sair da esfera do fornecimento e organizar o
ouvinte como fornecedor. Por isso, são absolutamente positivos
todos os esforços do rádio quanto a imprimir nos assuntos públicos
um caráter realmente público. O nosso governo precisa, tanto quanto
a nossa justiça, dos serviços do rádio. Se o governo ou a justiça
opõem-se a tais serviços do rádio, agem assim por receio e mostram
que se ajustam somente à época em que não havia rádio, para não
dizer à época que antecedeu a invenção da pólvora.
Brecht resolve debater em um momento em que coexistem dois lados
no tocante ao rádio: o monopólio dos meios de comunicação e a existência de um
outro tipo de público produtor e consumidor. Ele procura, então, utilizar de forma
inédita os recursos propostos pelo rádio (FREDERICO, 2007). É o que complementa
Mello (2014):
Logo, compreendemos, em seus escritos, dois caminhos de
utilização do rádio a serviço da sociedade: um de forma a
desmascarar a relação de produção, rompendo com as formas
artísticas tradicionais; outro visando sua utilização pedagógica,
dando subsídios, fora de cena, ao público para que este conseguisse
acompanhar essa ruptura, em cena, e refletir criticamente diante
disso.
Ainda segundo Mello (2014), para o dramaturgo, a presença de novas
tecnologias só poderia se basear na necessidade dos indivíduos de se tornarem
sujeitos conscientes da sua situação social. O rádio, portanto, apenas poderia ser
explicado diante da sua possibilidade de dimensionar a comunicação e interação, a
fim de tornar os homens ativos e críticos.
Outro ponto levado em conta por Brecht é o fato de propor constante
renovação, sempre pronto para romper com a tradição e instaurar novas formas
capazes de manter o diálogo com as questões importantes ao seu público.
Entretanto, assim como a literatura produzida na época, sem propósito e empenhada
73
em neutralizar os leitores, o rádio passa a seguir a mesma tendência, ou seja, sem
um propósito evidente, ―tonando-se apenas um aparato de distribuição com a função
de divertir o público‖ (MELLO, 2014).
Para Brecht, seguindo a análise de Mello (2014), isso se deve ao fato
de que as invenções tecnológicas caminham em direção oposta ao desenvolvimento
crítico pela sociedade. Em Adorno (apud COSTA, 1998, p.53) observam-se as
contradições entre a ―evolução das forças produtivas técnicas e os modos humanos
de reagir, as capacidades para utilizar, controlar e aplicar com sentido essas
técnicas‖.
Em seu artigo ―Aplicações‖, o autor propõe quatro tópicos para análise,
absolutamente autoexplicativos:
1. A questão de como se pode utilizar a arte para o rádio e a questão
de como se pode utilizar o rádio para a arte – duas questões muito
distintas – têm que se subordinar sempre a questão, de fato muito
mais importante, de como se pode utilizar a arte e o rádio em geral.
2. Esta questão responder-se-á, se tivermos razão ou se nos a
derem, da seguinte maneira: arte e rádio têm que ser colocados à
disposição de finalidades pedagógicas.
3. A possibilidade de levar a cabo uma dessas formas pedagógicas
diretas de utilização da arte não parece hoje indicada, porque o
Estado não tem nenhum interesse em educar sua juventude para o
coletivismo.
4. A arte deve começar ali onde não há imperfeição. Por mais que o
ver fique eliminado, isso não quer dizer que não se veja nada, mas
precisamente que se vê tão bem que se vê uma infinidade de coisas,
tantas ―como se queira‖. Esses resultados teriam, naturalmente, que
ficar na superfície acústica [...].
Fazendo relação com o objeto de estudo O vôo sobre o oceano, Brecht
(1992b, p.184) observa que a peça não deve ―servir-se da radiodifusão atual, mas
deve modificá-la. A concentração de meios mecânicos, assim como a especialização
crescente na educação [...] requerem uma [...] rebelião por parte do ouvinte, sua
ativação e reabilitação como produtor". E acrescenta: "Esta não é certamente a
maneira mais importante de utilização do rádio, mas sem dúvida se insere em toda
uma série de experiências que caminham nesse sentido".
Em seu artigo ―O rádio como aparato de comunicação - Discurso sobre
a função do rádio‖, Brecht afirma que o rádio tinha "a possibilidade de dizer tudo a
todos, mas, pensando bem, não havia nada a ser dito". O rádio comercial não
74
nasceu porque era necessário: "não era o público que aguardava o rádio, senão o
rádio que aguardava o público". E completa:
No que diz respeito à técnica que se desenvolve em todos esses
empreendimentos, ela se pauta pela tarefa principal de permitir que o
público não apenas seja ensinado, mas que ele também ensine.
Atribuir um caráter interessante a esses empreendimentos
educativos, ou seja, tornar interessante o que interessa, constitui
uma tarefa formal do rádio.
Uma vez inventado e com a sua função alterada, ou seja, sem a
participação bilateral, considera Frederico (2007):
[...] o rádio saiu atrás do público. Onde está o público? Há um público
para o jornal, outro para o esporte, outro para a música etc. O que
fez o rádio? Foi atrás do público "alheio". Passou a transmitir notícias
para atrair os leitores de jornal; esporte, para concorrer com os
estádios esportivos; música, para laçar os frequentadores das salas
de concerto; peças teatrais, para atingir os amantes do teatro etc.
Infere-se, portanto, que o rádio apenas reproduziu os procedimentos
próprios dos meios anteriores. Cada novo meio de comunicação parece condenado
a se satisfazer com a apropriação da utilidade das invenções anteriores.
―Desde o início, o rádio imitou quase todas as instituições existentes
que se relacionavam com a difusão do que era falado ou cantado‖, afirma Brecht
(2007). E completa: ―No que diz respeito a esse objetivo de vida do rádio, ele não
poderá, em minha opinião, consistir simplesmente no embelezamento da vida
pública. Para isso, ele não apenas já se revelou pouco adequado, como também a
nossa vida pública mostra, infelizmente, pouca aptidão para ser embelezada.‖
Levando em conta as palavras de Frederico (2007), essas novas
formas de desvirtuamento dos meios de comunicação expressam
―as possibilidades atrofiadas dos novos meios de comunicação e seus
pífios resultados chamam a atenção para o caráter arcaico das relações de
propriedade‖. E a antiga queixa do direito de propriedade autoral do livro, solapado
pelas fotocopiadoras, tornou-se rápida e atualmente superada pelos recursos da
internet que, a cada novo dia, afloram a irracionalidade das relações de produção.
Enfim, estando certo de suas convicções, Brecht (2007, grifo do autor)
afirma:
75
Por meio de propostas que sempre avançam e nunca cessam,
visando promover um melhor emprego do aparato em razão do
interesse público, temos de abalar a base social desse aparato, e
desacreditar o seu emprego em função do interesse de poucos.
Agora, a fim de complementar e enfatizar a função defendida por
Brecht pelo rádio, ele escreveu em seu artigo sobre o rádio:
Não faço objeções à introdução de aparelhos receptores de rádio nos
albergues dos desempregados e nas prisões (pensa-se
evidentemente que, por seu intermédio, poder-se-á prolongar a baixo
custo o tempo de vida dessas instituições), mas essa não pode ser a
tarefa precípua do rádio. (BRECHT, 2007).
A título de curiosidade, quando Brecht amargou o exílio, o rádio se fez
presente:
– Você, pequena caixa que trouxe comigo
Cuidando para que suas válvulas não quebrassem
Ao correr do barco ao trem, do trem ao abrigo
Para ouvir o que meus inimigos falassem
Junto ao meu leito, para minha dor atroz
No fim da noite, de manhã bem cedo
Lembrando as suas vitórias e o meu medo:
Prometa jamais perder a voz! (BRECHT, 2000, p.272).
76
6 ANÁLISE E APONTAMENTOS SOBRE O VÔO SOBRE O OCEANO
A peça O vôo sobre o oceano – peça didática radiofônica para rapazes
e moças foi escrita pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht, com música composta
por Kurt Weil e Paul Hindemith, colaboração de Elisabeth Hauptmann e tradução de
Fernando Peixoto. Ela é baseada no voo de Charles Augustus Lindbergh, um
pioneiro da aviação, que foi consagrado por ter feito o primeiro voo solitário
transatlântico sem escalas em avião, entre Nova Iorque e Paris, em 1927, gastando
33 horas e meia na travessia.
Estruturalmente, O vôo sobre o oceano é escrito na forma de poema,
constituído pelo ―Prólogo‖ e 17 cenas ao todo. Além do mais, persegue o objetivo de
utilizar o rádio como instrumento pedagógico. Os títulos podem ou não ser ditos
antes da fala dos personagens, desde que sejam atendidas as alterações
estabelecidas por Brecht, como o nome da peça, fato que será mais bem explicado
adiante. Tal experimento com o rádio foi demonstrado com uma encenação no
Festival de Música Baden-Baden, em 1929.
É importante salientar que Lindbergh não foi o primeiro aviador a fazer
um voo transatlântico, feito que pertence a John Alcock e Arthur Whitten Brown, cujo
voo foi feito em 1919; em 1922 os portugueses Gago Coutinho e Artur Sacadura
Cabral realizaram a primeira travessia aérea do Atlântico recorrendo apenas a
navegação astronômica, no que foi também a primeira travessia aérea do Atlântico
Sul; posteriormente foi realizado pelo brasileiro João Ribeiro de Barros, em 1927,
cerca de um mês antes de Lindbergh, entretanto, tais voos foram feitos por mais de
um tripulante; já Lindbergh foi o pioneiro no voo solitário.
Esse fato foi ―amplamente veiculado pelo rádio como um feito heroico
de um indivíduo incomum. Brecht retomou tanto o acontecimento quanto o meio
técnico da difusão radiofônica, mas lhe deu outros contornos‖ (GATTI, 2015, p.49).
Partindo dessa afirmação, constata-se que o voo não é um feito individual, mas uma
conquista coletiva, que inclui os construtores do avião, unidos ao aviador com o
objetivo de vencer limites humanos e da natureza a partir da utilização de recursos
técnicos avançados.
Aprofundando-se na história de vida real do aviador, sabe-se que
Charles Lindbergh era um fascista que manteve estreitas relações com os nazistas e
deixava os grupos antinazistas estadunidenses com muitas dúvidas sobre sua
77
conduta em relação à guerra, já que, na Segunda Guerra Mundial, foi a favor da
neutralidade dos Estados Unidos, mas considerava certa a vitória da Alemanha.
Inclusive, em 1936, esteve presente na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos,
em Berlim, ao lado de Adolf Hitler.
Ressalta-se que, após o ataque a Pearl Harbor, em dezembro
de 1941, e a consequente entrada dos Estados Unidos na guerra, o aviador
ofereceu-se para lutar por seu país (EUA), entretanto seus serviços foram
recusados, provavelmente por seu papel bastante ambíguo no país. Somente
em 1944 foi admitido para o serviço.
Em 1949, a rádio Stuttgart pediu a Brecht autorização para transmitir a
peça. O autor esclareceu, por meio de uma carta, as implicações que deveriam ser
obedecidas para que a transmissão fosse realizada. Sendo assim, o texto deveria
sempre estar acompanhado da carta e também do novo ―Prólogo‖ da peça.
Foi por saber do pensamento nazista que Lindbergh apreciava, que
Brecht optou por alterar o nome da peça de A travessia do oceano pelo capitão
Lindbergh – ou o O vôo de Lindbergh – por A primeira travessia aérea do oceano ou,
como vemos no título deste trabalho, O vôo sobre o oceano. Além disso, na
apresentação dos aviadores e partida do avião, haveria a substituição do nome do
aviador por ―Meu nome não interessa‖. No decorrer da peça, em outro momento era
citado ―Eu sou Charles Lindbergh‖, o que foi trocado por ―Eu sou Fulano de Tal‖. Um
apontamento de Brecht, contido na carta enviada à rádio7
:
É sabido que Lindbergh manteve estreitas relações com os nazistas;
seu relatório entusiástico naquela ocasião sobre a invencibilidade da
Força Aérea nazista provocou um efeito paralisante em inúmeros
países. Como fascista, L. desempenhou um papel bastante ambíguo
nos Estados Unidos.
Nota-se, portanto, a intenção de passar uma lição aos leitores ou
ouvintes a partir das modificações da peça, mesmo que a estrutura do poema fosse
ligeiramente alterada. Segundo Gatti (2015, p.41), ―A façanha heroica do aviador é
então desmistificada como parte de um esforço coletivo fundado no progresso
técnico‖.
7
As afirmações aqui apresentadas sobre as mudanças, sob a autoria de Brecht, fazem parte do arquivo com a
peça – na íntegra –, no formato PDF, salvo em CD-ROM e anexado a este trabalho.
78
Já o prólogo, que deveria ser obrigatoriamente citado antes do início da
transmissão da peça, contém a seguinte explanação sobre a perspectiva do
dramaturgo em relação ao aviador (1928/29): ―[...] Não o venceram, mas seu
semelhante/ O venceu. Uma década/ De glória e de riqueza e o miserável/ Ensinou
os carrascos de Hitler/ A pilotar bombardeiros mortíferos. Por isso,/ Seja apagado
seu nome [...]‖.
Entendida sua objeção em evidenciar o nome de Lindbergh e assim
também ensinar, além de mostrar o feito de atravessar o oceano, Bertolt Brecht
queria mostrar o homem se superando, ou seja, construindo máquinas potentes e
modernas que o fizesse ultrapassar os limites – geográficos e tecnológicos –
anteriormente alcançados. Dessa maneira, faz-se importante suscitar já o desfecho
da peça (Brecht, 1928/29): ―Sem nos deixar esquecer:/ O que ainda não foi
alcançado./ A isto é dedicado este relato‖.
Na encenação de Baden-Baden, o axioma ―O Estado deve ser rico, o
homem deve ser pobre, o Estado deve ter a obrigação de poder muito, ao homem
deve ser permitido poder pouco‖ foi projetado em uma tela ao fundo. O que Brecht
quis passar, segundo Koudela (2007, p.49), é que o Estado deve proporcionar as
condições para a realização do exercício didático, ou seja, deve estar organizado em
função do coletivo, garantindo que seja através do rádio, produzindo os ruídos, a
música e as vozes correspondentes. Ao ouvinte deve caber somente a partitura que
lhe permite assumir um papel.
Crê-se que Brecht não desejava apenas que novas tecnologias fossem
utilizadas de forma a sempre haver inovações, mas que fossem alcançados méritos
pelos operários e trabalhadores, bem como pela sociedade em geral, que
considerassem reprovável qualquer tipo de alienação cultural, social e,
consequentemente, política. O desenvolvimento das forças produtivas (novas formas
de produção) no campo teatral chega ao que chamamos de comunicação.
Aqui, cabe recorrer à Teoria do Rádio de Brecht e o que ele defende
sobre o papel do rádio. Para o dramaturgo,
[...] o rádio (seria) o mais fantástico aparelho de comunicação da vida
pública [...] se soubesse não apenas enviar mensagens como
também recebê-las, fazendo com que o ouvinte não apenas
escutasse como também falasse, e não só o isolasse como também
o pusesse em ação [...] caso os senhores julguem isso utópico,
79
pediria que pensassem por que é utópico. (BRECHT, 1932 apud
KOUDELA, 2007, p.50).
No que tange a esse aspecto, Luciano Gatti (2015, pp.36-37) expõe em
uma nota de rodapé:
Em textos como a ―Teoria da Pedagogia‖, Brecht amplia o escopo da
superação entre ator e espectador operada pela peça de
aprendizagem. Do ponto de vista da educação para a organização
política coletiva – o Estado –, tal superação aponta para outra
relação entre teoria e prática, tornando-se um instrumento de crítica
ideológica à separação burguesa entre agente e observador,
fundamento da neutralidade axiológica pretendida pela ciência
burguesa. Essa crítica é o ponto de partida para as diretrizes de
superação da distinção entre o cientista e o político, de modo a
mobilizar a ciência a favor da emancipação social [...].
Brecht escreveu, juntamente com Peter Suhrkamp, em
―Esclarecimentos para O vôo sobre o Oceano‖, para a edição do texto no livro Obras
Completas que:
1. O Vôo sobre o Oceano, não como prazer, mas como meio de
aprendizagem.
O Vôo sobre o Oceano não tem valor, se a partir dele não for
realizado um aprendizado. Não possui valor artístico que justifique
uma encenação, que não tenha por objetivo a aprendizagem. Ele é
um OBJETO DE APRENDIZAGEM e se divide em duas partes. A
primeira (o canto dos elementos, os coros, os ruídos da água e dos
motores etc.) tem a tarefa de possibilitar o exercício, isto é, introduzi-
lo e interrompê-lo, o que é realizado da melhor forma por um
aparelho. A outra parte PEDAGÓGICA (a do aviador) é o texto para o
exercício: aquele que se exercita é o ouvinte de uma das partes do
texto e o enunciador da outra parte. (BRECHT, 1930 apud
KOUDELA, 2007, p.47, grifo do autor no texto original).
Na peça radiofônica de aprendizagem, além de passar as dificuldades
inerentes a um voo qualquer sobre as águas, nesse caso de Nova Iorque para Paris,
são enfatizadas as intempéries pelas quais passam os aviadores, personagem
colocado sempre no plural, mesmo que na prática houvesse apenas um tripulante.
O coletivo proposto, como já mencionado, traz a ideia de ―aglomerar‖
desde os que criaram o avião, o aviador e até o próprio meio de transporte. Brecht
aborda essa situação problematizando a questão do domínio da natureza. Para isso,
utiliza as forças da natureza como figuras que dialogam com o aviador, como o
80
nevoeiro e a nevasca. Além do sono, personagem que aparece como fator biológico
e psicológico disposto a atrapalhá-lo.
Segundo Jameson (1999, p.225), essa peça traz em si a modernidade
brechtiana, já que representa algo nunca visto anteriormente,
[...] ela surpreende a vacuidade da própria Natureza, o reino deserto
da altitude transoceânica, como o mundo anterior ao aparecimento
da vida: é assim que a própria Névoa se dirige ao corpo estranho que
a penetra:
Sou a névoa...
Há mil anos não se vê
Alguém que tente um vôo no ar vazio:
Quem você pode ser?
E Fredric Jameson (p.226) complementa, traçando um paralelo da
peça com a vida real do aviador:
Mas não apenas os elementos externos vêm ao encontro de
Lindbergh maravilhados e hostis; mesmo um elemento interno, a
grande força natural do próprio Sono desafia-o como personagem,
fazendo dele próprio não alguma subjetividade heroica, mas antes
um elemento em si, um nome. Por isso é uma ironia que Brecht
tenha sido obrigado a mudar este nome – cuja ancestralidade alemã
certamente aumentava seu interesse e apelo europeus, assim como
uma certa nação centro-européia imensamente ampliada e difundida
pelo espaço extraordinário de Novo Mundo – quando o aviador
redescobriu suas próprias origens pelo caminho errado no período de
Hitler.
Sobre a participação do rádio na peça, há um diálogo desse aparelho
de comunicação – o qual assume os papéis de América, Nova Iorque, Europa, um
navio, pescadores, forças da natureza – com o coletivo representado pelo aviador. E
é por meio do papel do aviador que se tem o processo de aprendizagem.
Segundo Koudela (2007, p.45), ao experimentar o papel de Lindbergh,
―rapazes e moças articulam uma forma de comportamento que articula a consciência
da humanidade moderna e as capacidades adquiridas por meio da técnica‖. O
aviador tenta se afirmar durante toda a obra e o faz em relação à opinião pública, às
forças da natureza e aos seus limites físicos.
A fim de nos aprofundarmos na participação do rádio, temos a
seguinte explanação de Gatti (2015, pp. 49-50):
O rádio, por sua vez, adquire outra função. Ele não serve à
construção de um mito heroico para o entretenimento da massa de
81
ouvintes, mas à elucidação de um acontecimento, socialmente
decifrado à luz da equação entre avanço tecnológico e organização
coletiva. Por esse motivo, só é possível entender a peça caso se
lembre que Brecht não se dirigia a quaisquer espectadores, mas
àqueles com uma compreensão do acontecimento predeterminada
pelo rádio.
E ele complementa que é difícil avaliar o alcance da peça se não for
levado em consideração o grau de consciência do público, já que ele conferia
inscrição histórica à peça e balizaria a pretensão de refuncionalizar o rádio.
Jameson (1999, p.224) também tem a acrescentar sobre a participação
do aparelho de comunicação, fator determinante na peça, inclusive no que se extrai
do título deste trabalho:
[...] quero argumentar que o que permanece da tecnologia
modernista/futurista aqui é a sua própria rigidez, que provém da peça
radiofônica em que o próprio rádio como meio representa a máquina
que as vozes desprovidas de corpo não podem expressar. A própria
pureza delas enquanto não corporificadas é a da própria máquina, só
aparentemente inumana: o rádio faz as vezes do avião; seus efeitos
modernizados consistem na abstração da pura voz. Ainda não temos
o tipo de análise do momento breve do rádio, que as pessoas tão
apaixonadamente preteriram pelo cinema por um lado e pela
televisão por outro: mas o modernismo de Brecht – e o próprio
modernismo do seu momento histórico em geral – liga-se ao rádio e
às exigências de reconhecimento da singularidade formal do rádio
como meio, de suas próprias qualificações, uma forma em que a
antítese entre palavras e música não mais se aplica, mas se ensaia e
realiza uma nova simbiose destas duas dimensões anteriormente
separadas. Ao rádio pode então ligar-se uma nostalgia produtiva que
é uma forma historicista de compreensão de toda esta era.
Tratando ainda da modernidade para Jameson (1999, p.226), sabe-se
que esta significa produção, e um problema crucial é trazido às claras com a
produção simbólica dos emblemas modernistas que apresentam a mídia
propriamente dita como o ―suporte tecnológico do transporte e da comunicação: a
ferrovia, o motor a combustão, o navio a vapor, até mesmo o próprio rádio, na forma
como se integra nesta peça radiofônica da narrativa do vôo de Lindbergh‖.
O rádio é colocado como personagem, como ator da peça. Essa
característica é muito importante quando voltamos à dinâmica de atuação esperada
por Brecht. Os atores podem sempre mudar de papel, experimentar estar em
―lugares‖ diferentes na peça, mas a participação do rádio na própria apresentação
da peça pelo aparelho não é substituível durante o enredo.
82
Inscreve-se, nesse ato de representar o próprio meio de comunicação,
a Teoria do rádio do autor. O que se prescreve na peça é que se faça exatamente o
que não é feito nem incentivado pelo Estado: aumentar as possibilidades, usar o
meio de comunicação de maneira plena, aumentando as suas possíveis utilizações
enquanto força produtiva.
O rádio representa a comunicação entre os países e continentes, ele
está no papel da América, de Nova Iorque, da Europa e é, inclusive, usado pelos
pescadores, que avistam algo no céu. Como um ator, o rádio tem todas aquelas
tarefas colocadas no tópico do Teatro épico e da peça didática. Certamente, Brecht
estava tentando resolver com o rádio todas as questões das forças produtivas, as
quais interferem absolutamente nas relações sociais de produção estabelecidas.
De acordo com Jameson, a transformação da matéria-prima natural é
colocada como um ato da práxis como transcendência. A máquina está em
conformidade com a produção, como se lê na peça (BRECHT, 1992b):
Então eu luto contra a Natureza
E contra mim mesmo.
Sejam lá quais foram as coisas estúpidas que eu possa
ter em mente
Quando vôo eu sou
Verdadeiramente ateu.
Pois dez mil longos anos se passaram
Desde que as águas escureceram sob o céu
O próprio Deus entre a luz e o crepúsculo
Emergindo irresistivelmente.
Nesse sentido, ―voar é igual a um ateísmo prático‖, quando a
humanidade se auto afirma diante de duas limitações, como é o caso dos fatores
naturais e biológicos já mencionados (KOUDELA, 2007, p.47).
Seguindo adiante, a oitava cena, intitulada ―Ideologia‖, que tem como
sugestão ser anunciada pelo coro de aviadores, poderia, segundo Gatti (2015, pp.
62-63) ser lida como ―sustentação ideológica da peça, ou seja, como a expressão da
confiança do dramaturgo na capacidade da técnica moderna em superar desafios
naturais‖. O texto não se trata de um objeto de defesa, mas de sóbria ponderação. E
completa: ―Ao transformar a peça em crítica de suas próprias ideologias, Brecht
trabalha aqui contra o enrijecimento de suas próprias certezas‖.
83
Sendo assim, propõe-se que um ―novo tempo‖ tenha se iniciado, o que
significa que, dominando a natureza, o homem pode ter para si próprio uma nova
produtividade, indo de encontro ao ―primitivo‖.
Como evidencia Jameson (1999, p.227), a situação originária e
tradicional do rádio é recriada, em que a passividade e receptividade do auditório de
rádio é invertida de forma radical, ou seja, o ato da audição é redefinido,
transformando-se na práxis exploratória do próprio aviador na medida em que se
arrisca a penetrar o ―novo‖ e lutar, apropriando-se dele.
Podemos verificar, portanto, que Brecht tem uma preocupação estética,
tanto quanto política, social e educacional. Ele procura, com o teatro, uma nova
função para a comunicação. Não se trata somente de ―cultura‖, também é levada em
consideração a passividade diante da cultura. Por meio dos ensinamentos, artigos e
peças do dramaturgo, compreende-se que pode se chegar a uma transformação em
benefício da massa, da sociedade, do trabalhador e dos jovens.
Então, confere-se à arte, e isso é evidenciado na peça-objeto deste
trabalho, a possibilidade de recriar os papéis, não só alternando os personagens nos
ensaios, experimentos e apresentações, mas modificando a forma como é tratado o
público. Ou seja, Bertolt Brecht intenta fazer a sociedade falar (ensinar), ativamente,
em vez de apenas ouvir calada (ser ensinada) e continuar passiva.
E sobre a dificuldade de refuncionalizar a mídia, mais especificamente
o rádio, Ingrid Koudela (2007, p.12) expõe:
A ―troca de função‖ do teatro foi impossível. Na tentativa de utilizar
aparatos técnicos e sociais para os objetivos da peça didática,
grupos de sala de aula, corais etc.; logo esbarraram em empecilhos
semeados pela ordem social, capitalista, vigente. A mídia, como o
rádio e o filme, teria que parar de servir aos interesses de poucos, se
quisesse estabelecer a comunicação com a coletividade. A mídia
teria que funcionar em favor do interesse da maioria [...].
Para o desfecho da peça, Brecht solicita, no caderno I dos Versuche
(Ensaios), onde se lê ―Sem nos deixar esquecer o inatingível‖, que a palavra
―inatingível‖ seja trocada por ―aquilo que ainda não foi alcançado‖. E, nesse quesito,
podemos inferir que diferenças de classe, exploração e ignorância são exemplos de
questões que podem ser superadas e, portanto, devidamente sanadas (alcançadas).
84
Koudela esclarece, ainda no que tange à peça, que esta visa à ação
social, tal como aparece formulado na passagem de ―Ideologia‖, no fim da obra
(BRECHT, 1992b apud Koudela, 2007, p.46):
No tempo em que a humanidade
Começava a se conhecer
Construímos veículos com madeira, ferro e vidro
E atravessamos o oceano voando
Com uma velocidade
Três vezes maior que a do furacão
Nossos motores eram mais fortes que nossos cavalos
Há mil anos
Tudo caía de cima para baixo
Com exceção dos pássaros
Nem mesmo nas mais antigas pedras
Encontramos qualquer indício
De que algum homem
Tenha atravessado os ares voando
Mas nós nos erguemos
Por perto do fim do Terceiro Milênio de nossa era
Mostrando que é possível
Sem nos deixar esquecer
Aquilo que ainda não foi alcançado
A isto nosso relato é dedicado.
De acordo com Mello (2014), no fim da peça Brecht expõe seu caráter
didático, evidenciando que nada deve ser tido como natural, tal qual é a ideologia da
classe dominante, visto que ela serve apenas para a manutenção do seu próprio
poder. As novas tecnologias, como o rádio, devem estar a serviço da revolução, não
como meios de manutenção de um estado pré-determinado. Pelo contrário, exigem
uma reação do ouvinte e sua reintrodução como produtor.
Com a citação do próprio Brecht, em seu artigo ―O Mundo Atual Pode
ser Reproduzido Pelo Teatro?‖, escrito em 1955 (apud Brecht, 1967, p.283), elucida-
se melhor o que o dramaturgo deseja passar, ou melhor, modificar por meio da arte
teatral, alterando também a maneira de considerar a comunicação:
A esta pequena exposição, que peço encarar como uma contribuição
amistosa à vossa discussão, talvez baste que eu comunique minha
opinião de que o mundo atual pode ser representado também no
teatro, mas somente na medida em que compreendido como um
mundo em transformação.
A título de curiosidade, é interessante que se saiba que, após O Vôo
sobre o Oceano, foi estreada A Peça Didática de Baden-Baden sobre o Acordo, em
85
1929, que tem como ponto de partida o ―Relato sobre Aquilo que Ainda não Foi
Alcançado‖, ou seja, começa com o resumo da primeira peça didática O Vôo sobre o
Oceano.
Há, nA Peça Didática de Baden-Baden sobre o Acordo, a formulação
da antítese: ―O pão não ficou mais barato‖, remetendo à técnica aperfeiçoada e ao
domínio da natureza. Nota-se, portanto, que Brecht seria considerado muito ingênuo
em relação ao progresso técnico caso se lesse O Vôo sobre o Oceano isoladamente
(KOUDELA, 2007, p.51).
86
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tem-se, neste trabalho, a intenção de tratar um paralelo significativo
entre a comunicação e a arte, mais especificamente o que se relaciona com o rádio
e o teatro. Buscou-se, para tanto, a análise do objeto-peça O vôo sobre o oceano,
de Bertolt Brecht.
Para tecer os apontamentos, pudemos tratar minuciosamente o
contexto em que Brecht apareceu, no século XX, a fim de revolucionar o teatro,
modificando, em sua época e até a atualidade, o modo de fazer teatral, que deveria
passar da forma dramática para a épica, perpassando a comunicação.
Como se vê na atualidade, o teatro não se limita apenas a essa forma
proposta por Brecht com o teatro épico, inserido no Teatro Moderno. Mas, ao
contrário, utiliza-se de muitas tendências e maneiras de atuação.
Assim mesmo, escolheu-se ressaltar o teatro político e pedagógico de
Brecht a fim de difundir sua concepção sobre a arte em relação à realidade em que
estamos inseridos. Como afirma Iná Camargo (2012, p.146): ―Há muito tempo o
próprio processo de comunicação nada mais é que ligar tudo e todos na forma de
mercadorias‖, discussão sempre presente nos trabalhos de Brecht.
De acordo com o já aqui evidenciado, o dramaturgo procurava fazer da
plateia um lugar de pessoas ativas e pensantes, que pudessem ser consideradas
individualmente, como cidadãos capazes de gerar crítica e, consequentemente,
também fazer arte.
Para melhor explanar o teatro épico, foram expostos o Efeito de
Distanciamento, o conceito de gestus e como funcionam as peças didáticas, já que a
peça-objeto em questão se utiliza de todos esses recursos técnicos para ser
devidamente experimentada pelo público.
Além disso, O vôo sobre o oceano é uma obra feita para o rádio e tem
o rádio como personagem ativo da peça, como ator. Principalmente por esse fator foi
escolhida para ser aqui estudada e esmiuçada. Dessa forma, pudemos evidenciar a
Teoria do rádio proposta por Brecht e o que ele intentava com a utilização desse
meio.
Há a constatação de que as forças produtivas estão em contínua
evolução, desde a época de Brecht, o que interfere diretamente nas relações sociais
de produção, como já dito. Mas, o mais significativo aqui, neste trabalho, é
87
evidenciar as tentativas do dramaturgo em alterar as concepções já enraizadas na
sociedade em relação aos meios de comunicação.
Envolvido absolutamente em seu trabalho, ele foi incansável na luta
pelas possibilidades, principalmente a de aproximar a arte (o teatro) e a
comunicação, usufruindo dos aparatos técnicos de forma bastante inteligente e
intelectual, não apenas aceitando as imposições moldadas pelo capitalismo e,
consequentemente, pelo Estado.
As forças produtivas são também os meios de comunicação, mas estes
não carecem de ser a mercadoria por si só, podem ser usufruto das massas, como
Brecht buscou mostrar por meio das peças didáticas.
Brecht inventou termos teóricos bastante relevantes em sua Teoria
que, atualmente, podemos emprestar para discutirmos a internet, local em que as
pessoas produzem sua própria comunicação.
Atualmente, a comunicação é entendida como algo que tem que ser
rebaixada, instantânea e efêmera. Brecht, por sua vez, apontava para outro tipo de
entendimento e atuação por parte dos meios de comunicação, ou seja, evidenciava
em suas obras, principalmente quando pensou as peças didáticas, que as forças
produtivas estão aquém do que elas poderiam ser. A comunicação, hoje, poderia ser
diferente do que é, ser mais bem elaborada e utilizada pela sociedade.
Tangente a tais conceitos, estão as reflexões de Walter Benjamin, que
tanto buscava inspiração em Brecht e considerava-o um grande pensador, além de
amigo. Benjamin faz considerações bastante relevantes sobre as ideias do
dramaturgo, apoiando sua forma de pensar e usar o rádio, bem como revolucionar
as instâncias teatrais da época.
Ambos os autores passavam por tempos conturbados na Alemanha,
mas não deixavam de compartilhar seus pensamentos marxistas nem de trocar
correspondências sobre novas ideias e críticas sobre seus respectivos trabalhos e
criações, mesmo estando em exílio ou tendo se mudado de cidade/país.
Podemos considerar, a partir de todas as teorias, estudos e citações
expostos, que a obra dos dois é de grande relevância à atualidade, principalmente
no que diz respeito à democratização dos meios de comunicação, nesse caso, com
ênfase na utilização do rádio.
Sabemos de antemão que a Teoria do rádio de Brecht queria fazer do
aparelho um meio em que existisse uma conexão entre o ouvinte e o rádio tão
88
efetiva quanto a já existente do rádio para o ouvinte. Ele imaginava, então, o rádio
com dupla mão de direção e ansiava pela interatividade.
Logicamente, a interatividade pela qual ele lutava, intelectual e
artisticamente, não se trata dessa que fazemos na atualidade, em que a participação
do ouvinte é limitada a pequenas intervenções e possibilidades. Podemos participar,
por exemplo, apenas por telefone, fax, carta ou alguma enquete em um site do
programa.
O que Brecht propunha – e para isso tinha o apoio de Benjamin – era
fazer o próprio programa. Para ele, a massa trabalhadora poderia produzir muito
bem o que gostaria de ouvir, às vezes, melhor que os já tradicionais produtores de
conteúdo. O autor, impossibilitado pelo controle do governo em relação ao meio de
comunicação, queria usar o rádio para ensinar e conscientizar a sociedade,
chegando, inclusive, aos ―rapazes‖ e às ―moças‖.
Há de se pensar no rádio como uma via de mão dupla, já que ele pode
ter essa configuração, como tinha no passado, quando conhecido pelo nome de
―sem-fio‖. Precisa-se refletir sobre esse espaço tão limitado aos ouvintes, que estão
na posição de espectadores passivos e inertes quanto à produção.
De nada adianta novos e eficientes recursos, que aparecem a todo
momento para nosso uso, se não for estabelecida, na visão de Brecht, uma
comunicação eficiente.
No sistema de exploração em que estamos, com uma radiodifusão tão
voltada ao comércio, que majoritariamente sobrevive por meio das propagandas,
parece utópico propor que as pessoas produzam programas. Mas, notamos que a
discussão é válida, já que algumas insatisfações se tornaram ações.
Tais repercussões, na época de Brecht, foram vistas pelas emissoras
operárias, as quais queriam ter um lugar, pretendiam se pronunciar e produzir
programas de interesse do coletivo. Já circunscrevendo à contemporaneidade,
notamos a presença das emissoras piratas, que tanto reivindicam seu direito ao
mercado radiofônico; as rádios populares; as rádios cornetas; as rádios
comunitárias, sempre engajadas em satisfazer a demanda dos movimentos
populares; bem como as emissoras virtuais, cada vez mais presentes
ciberneticamente.
O rádio, de maneira geral, ainda é encarado como meio de segunda
categoria, isso porque a radiodifusão ainda é muito submetida à concessão, em que
89
prevalece o jogo político, a amizade e a troca de favores. Nesse processo, tornam-
se secundários o interesse social e a competência.
E, claro, as mudanças não podem se dar apenas no campo teórico,
mas, para que adentrem a prática, o rádio precisa de investimentos, não somente na
área financeira propriamente dita, mas também na reformulação do sistema de
concessões.
É com essa discussão que entramos no mérito das considerações de
Benjamin. Ele faz apontamentos muito importantes sobre o teatro épico, afirmando
seu caráter ―não-alienante‖, tal qual deveria ser a comunicação. Também
pormenoriza o conceito de gestus e estranhamento, trazendo à tona o entendimento
de que este circunscreve a realidade, mostra o ator realmente mostrando a cena,
sem ilusões.
Em relação às obras de arte em geral, conceitua a reprodutibilidade em
confronto com a aura, muito em voga na discussão dos dias atuais, principalmente
com a difusão rápida das informações proporcionada pela internet, entre outros
meios. Além disso, lembra que a técnica, proporcionada pela industrialização,
tecnologia e a modernidade, deixa qualquer reprodução muito mais rápida, ou seja,
a profundidade se perde em seu sentido figurativo.
Em contrapartida, a democratização dos meios de comunicação ainda
soa problemática e passível de ser melhorada para e pela sociedade. Nota-se a
multiplicação da informação e da notícia, a instantaneidade da comunicação,
principalmente por meio dos tão novos aparelhos celulares.
Com essa proliferação, temos a efemeridade das matérias e das
reportagens cada vez mais evidente. Todo e qualquer leitor, agora, está apto a
produzir notícia, a se manifestar, a divulgar e difundir uma ideia. Claro que não se
pode negligenciar o apuramento esperado das redações e empresas de notícia, mas
já não há muito espaço para novos profissionais, pois já quase não se faz questão
do profissionalismo e do compromisso em meio a um ―mercado de notícias‖.
A notícia, bem como o ensino, são mercadorias. E no mundo em que
estamos inseridos, é preciso vender e comprar a todo tempo, a qualquer custo.
Brecht e Benjamin se negavam absolutamente a simplesmente venderem seus
trabalhos. Com seus artigos e obras, procuravam transformar o meio: tanto o que
viviam quanto o de comunicação. Para esse fim foram incansáveis.
90
REFERÊNCIAS
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Massas. In: Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosófico. Rio de Janeiro:
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_____________. O autor como produtor. In: Magia e técnica, arte e política/ Walter
Benjamin; tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin – 8ª Ed.
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_____________. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e
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Jeanne Marie Gagnebin – 8ª Ed. revista - São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras
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91
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92
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Disponível em: <http://migre.me/rm6Yx>. Acesso em: 28 ago. 2015.
93
PASTA JÚNIOR, José Antônio. Apresentação. In: SZONDI, Peter. Teoria do drama
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Performatus. 6ª Ed. Ano 1. n.6. set. 2013. Disponível em:
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Glendyr. The Cambridge Companion to Brecht. Cambridge University Press, 1994.
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leituras de obras do autor estimula participação ativa de espectadores no TUSP. In:
Revista Cult. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2014/04/a-peca-
didatica-de-brecht-sobre-a-sociedade/>. Acesso em: 30 ago. 2015.
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880 – 1950). Título original: Theorie
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WIZISLA, Erdmunt. Benjamin e Brecht: História de uma Amizade/ Erdmut Wizisla;
tradução Rogério Silva Assis. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2013.
94
ANEXO
Anexo A – CD-ROM
Peça radiofônica O vôo sobre o oceano digitalizada (PDF)

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O rádio como ator

  • 1. BARBARA BLANCO POZATTO O RÁDIO COMO ATOR: ANÁLISE DA PEÇA O VÔO SOBRE O OCEANO, DE BERTOLT BRECHT, SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN Londrina 2016
  • 2. BARBARA BLANCO POZATTO O RÁDIO COMO ATOR: ANÁLISE DA PEÇA O VÔO SOBRE O OCEANO, DE BERTOLT BRECHT, SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina, como requisito à obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo. Orientador: Prof. Dr. Manoel Dourado Bastos Londrina 2016
  • 3. BARBARA BLANCO POZATTO O RÁDIO COMO ATOR: ANÁLISE DA PEÇA O VÔO SOBRE O OCEANO, DE BERTOLT BRECHT, SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo. BANCA EXAMINADORA ____________________________________ Orientador: Prof. Dr. Manoel Dourado Bastos Universidade Estadual de Londrina - UEL ____________________________________ Prof. Dr. Silvio Ricardo Demétrio Universidade Estadual de Londrina - UEL ______________________________ Prof. Dr. Alberto Carlos Augusto Klein Universidade Estadual de Londrina -UEL Londrina, _____de ___________de _____.
  • 4. Dedico este trabalho à minha mãe, que sempre foi incansável na luta pela minha felicidade. Do ventre aos fichamentos desta pesquisa e às confusões brechtianas, ela foi sempre convicta de que no final ―vai dar tudo certo‖. É ela o meu banco para empréstimo de forças, principalmente a de vontade.
  • 5. AGRADECIMENTOS Para que este trabalho se realizasse, devo agradecer, principalmente, ao meu orientador, Manoel, que foi, para mim, é e será, para muitos alunos, um professor ―acima da média‖. Um dos males da educação é avaliarmos somente os alunos, mas eu, como professora também, reparo sua força de vontade em ser presente, em se dedicar à leitura dos mais diferentes assuntos e a, simples e eficazmente, ensinar. Mais que isso: trocar. Não sei o que seria desta pesquisa se não fosse sua bibliografia impossível de ser contabilizada. Ademais, agradeço pela sua humanidade. São raros os professores que veem os alunos como pessoas, não como números, porcentagens ou mais textos para corrigir; que enxergam as potências, incentivam os gostos, aprimoram as qualidades. Agradeço pela paciência com as minhas crises e dramas, por explicar cinquenta vezes a mesma teoria. Eu só não agradeço pela sua objetividade em me responder, mas, em contrapartida, agradeço por se dispor até pelo celular. Agradeço pela rua que me deu de presente, que acabou virando mais que rua, virou história, memória, afeto. E agradeço por me emprestar um tanto de ―coragem, pra seguir viagem‖, que vai virar companheira do medo e das paixões. Agradeço também à minha família – meu pai, minha mãe e meu irmão –, que não poupa esforços para que eu me realize. O amor de família é o mais rico de todos, porque não deixa de existir nem com o tempo, nem com a distância. À minha genitora, agradeço por essa fortaleza, por ser raiz firme e me ajudar nos balanços da vida, por me ensinar a cuidar dos frutos que a vida me deu e me dá, a amadurecê-los, não me deixar cair; por auxiliar com as flores que eu ainda preciso regar para crescerem. Ao meu pai, agradeço por me mostrar a saudade, por lembrar que eu ―não sou fraca, não‖ e por acreditar em mim, mesmo às vezes se perdendo na noção do quanto eu venho crescendo; por ser para sempre ―a sua lindinha‖. Ao meu irmão, por ser o exemplo mais foda que eu conheço. Você é simples na sua complexidade. Agradeço por ter aguentado desde as minhas ―escavações ao fundo do poço‖ até os meus atuais desabafos e confusões. Eu sei que, pela vida afora, vou levar o amor fraterno (forte tal qual é), os conselhos de irmão mais velho, as suas conclusões irreversíveis (quero dizer, racionais), as suas piadas sem graça, o dinheiro que eu roubei do seu cofrinho, a confiança (que eu espero que tenha voltado a existir depois do cofrinho) e os aprendizados de como lidar com as
  • 6. pessoas, em todos os âmbitos. ―Vida que segue, zermãozinho querido‖. Espero que seus passos (muito maiores e mais rápidos que os meus) continuem me levando para frente, pelos caminhos que a gente se colocar. Aos meus colegas de sala, que me ensinaram a trabalhar em equipe. Mostraram o quanto isso requer respeito e paciência, ao jeito e ao tempo do outro. Fizeram-me enxergar esse ―outro‖ diferente, afinal, são quatro anos de convivência. No fim, vejo um saldo positivo de afeto, pois ele vem, para mim, com a tolerância e a harmonia embutidos. Obrigada por serem tão diferentes entre si, e por isso acrescentarem de diversas maneiras distintas. À minha amiga Luiza Bellotto, que foi incansável em sua função de ombro firme, de abraço apertado, de lenço para lágrimas, de parceria para trabalhos chatos (raros legais), de pernas para danças, de ouvidos atentos para desabafos intermináveis, de paciência para crises repetitivas, de ―lugarzinho‖ para aconchego nas angústias e de companhia para dias felizes, outros tristes, alguns lotados, outros vazios. Agradeço desde já pelo futuro que nos aguarda, pois sei que vamos em frente por estradas diferentes, mas sei que não vou perder seu número, nem esquecer sua voz ou seu jeito de me dar broncas. Ao meu pseudo marido, irmão, pai e filho, José Henrique: você é presente. Em todos os sentidos que a palavra dá. Você eu ganhei da vida. Acho que juntaram tudo que faltava em mim e colocaram em você, meu bichinho bonito. Somos a contradição em forma de amor. Obrigada por me acompanhar em todas, inclusive nesta. À Marina Lainetti, a amiga-surpresa que colocaram para mim num momento não muito amigável do curso, prestes a reprovarmos em Economia. Agradeço por encarar comigo um cronograma maluco para terminarmos nossos trabalhos, por topar as minhas doidices, compactuar com os meus gostos, as minhas manias e por entender a minha loucura que, afinal, parece um pouco com a sua, né? Agradeço por confiar em mim, por me permitir roubar um pouco da sua essência, da sua vulnerabilidade e da sua graça e dividir comigo o doce que é essa vida (rs). Sou grata pelas madrugadas loucas, pelas ideias bizarras e pelas conversas e trocas sensatas. À minha terapeuta, por me ajudar a desvendar minha existência e, consequentemente, desmembrar todo esse processo que foi participar do curso de Jornalismo e fazer esta pesquisa.
  • 7. Ao Mateus Dinali, Jamile Monteiro e Iago Salomon, meus amigos ―de infância‖, que estão sempre a me incentivar e ajudar nas intempéries ou acompanhar nas peripécias. Estiveram presentes em minha fase de colégio, de universitária e espero que estejam em todas as próximas, assiduamente. Em especial, Mateus, pela parte australiana, quer dizer, inglesa do trabalho. Agradeço aos professores da graduação, em especial ao Emerson Dias, Márcia Buzalaf, Flávio Freire, Silvio Demetrio e o já mencionado Manoel D. Bastos, por serem dedicados ao trabalho de passar conhecimento ao próximo. Aproveito para agradecer à banca pela disposição e atenção e ao senhor Luiz, servidor da secretaria, o qual nos recepciona todas as noites com um sorriso inteiro no rosto. Também agradeço aos meus professores de teatro, Silvio Ribeiro, Edna Aguiar, Carol Ribeiro e Guilherme Kirchheim, por acreditarem na arte como resposta às angústias e prisões dessa realidade tão cruel a que estamos submetidos. Meu ―muito obrigada‖, com todo o meu coração, por me mostrarem que eu podia ser mil, estando no corpo de uma só; por transformarem meus pontos de vista, minha maneira de ―enxergar‖ o mundo e me deixar ser inteira, intensa. E, claro, por terem me apresentado Bertolt Brecht nos palcos.
  • 8. Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio? Bertolt Brecht
  • 9. POZATTO, Barbara Blanco. O rádio como ator: análise da peça O vôo sobre o oceano, de Bertolt Brecht, sob o olhar de Walter Benjamin. 2016. 95. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016. RESUMO O dramaturgo alemão Bertolt Brecht buscava o rompimento com a tradição, ou seja, a arte sempre deveria cumprir um intuito político e social. Para tanto, de acordo com o contexto em que estava inserido, revolucionou o teatro do século XX. Este trabalho pretende analisar O vôo sobre o oceano – peça didática radiofônica para rapazes e moças, escrita em 1928/29, trazendo à tona a perspectiva histórica do rádio e suas discussões, as quais perduram na atual comunicação social. Explicita, inclusive, a Teoria do Rádio do próprio Brecht. Além disso, mostra os moldes e ideais do Teatro épico, bem como das peças de aprendizagem do autor. Apresenta, também, a perspectiva de pensadores consagrados como Walter Benjamin, por meio de seu conceito sobre ―A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica‖ e demais considerações sobre o teatro dialético proposto em convergência com a comunicação e as forças de produção. Palavras-chave: Bertolt Brecht. Teatro épico. Teoria do rádio. O vôo sobre o oceano. Walter Benjamin.
  • 10. POZATTO, Barbara Blanco. The radio as an actor: analysis of the theater play The flight across the Ocean, by Bertolt Brecht, through the perspective of Walter Benjamin. 2016. 95. Course Final Work (Graduation in Social Communication – specialized in Journalism) – State University of Londrina, Londrina, 2016. ABSTRACT The German playwright Bertolt Brecht sought to break with tradition, meaning that the art should always serve a political and social purpose. To this end, according to the context in which it was entered, it revolutionized the theater of the twentieth century. This work intends to analyze The flight across the Ocean - radio didactic play for men and women, written in 1928/29, revealing the historical radio perspective and its discussions, which persists in the current social communication. It also explicit the Radio Theory by Brecht himself. Moreover it shows forms and ideals of the epic theater, as well as the author's learning plays. It also presents the perspective of great thinkers, such as Walter Benjamin, through his concept about "The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction" and other considerations about the dialectical theater proposed in convergence with the communication and the production forces. Key words: Bertolt Brecht. Epic Theater. Radio Theory. The flight across the Ocean. Walter Benjamin
  • 11. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..........................................................................................11 2 TEATRO MODERNO................................................................................16 3 BERTOLT BRECHT .................................................................................23 3.1 O TEATRO ÉPICO...........................................................................................28 3.1.1 As Peças de Aprendizagem .......................................................................38 4 SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN ...............................................50 5 O ADVENTO DO RÁDIO NA ALEMANHA...............................................64 5.1 TEORIA DO RÁDIO DE BRECHT .......................................................................66 6 ANÁLISE E APONTAMENTOS SOBRE O VÔO SOBRE O OCEANO ...76 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................86 REFERÊNCIAS.........................................................................................90 ANEXO .....................................................................................................94 ANEXO A – CD-ROM com a peça radiofônica O vôo sobre o oceano digitalizada (PDF)......................................................................................94
  • 12. 11 1 INTRODUÇÃO Este trabalho é resultado da minha afeição com a parte cultural que envolve comunicação. Ao longo do curso, diversos foram os temas pensados, mas, depois de muitas discussões acerca do assunto, optou-se por este, que traz à tona o universo do teatro participando da comunicação e vice-versa. Traz também minha inquietação para conseguir aproximar os dois universos, já que, antes – e durante – o curso de Jornalismo, minha vida foi dedicada à prática teatral. Trata-se de entender a fundo o que os comunicadores podem apreender com o teatro, e o que os atores (ou o teatro em geral) podem apreender com os comunicadores. Intenta-se, nesta pesquisa, traçar um paralelo da comunicação social com o teatro, a partir de um dramaturgo, poeta e encenador alemão muito consagrado pelos seus ideais e pensamentos no século XX, Bertolt Brecht, o qual tem artigos e peças bastante influentes e significativos para a atualidade. Faz-se pertinente ressaltar à contextualização de seus pensamentos que ele se dedicou ao estudo do marxismo e viveu o intenso período das mobilizações da República de Weimar. A série de conflitos que ocorriam em diversas partes do mundo prenunciava a eclosão de uma grande guerra mundial. A Alemanha ostentava uma oligarquia financeira compacta, resultado de uma concentração do capital industrial aliado ao capital bancário, formando monopólios poderosos. Nesse cenário, a classe operária passava por momentos difíceis e de uma forma bastante tímida no início, eclodiam esporadicamente movimentos de revolta contra o regime burguês. Não é, portanto de se estranhar, que toda a obra de Brecht virá marcada pela luta contra o capitalismo e contra o imperialismo. (OLIVEIRA, [2013]). Assim foi a república estabelecida na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, perdurando até o início do regime nazista, com um sistema de governo chamado de democracia representativa semi-presidencial. O nome oficial da Alemanha continuou, sob a República, a ser Deutsches Reich (literalmente, Império Alemão). Na eleição de 1919, a primeira em que as mulheres puderam votar, o resultado foi a democracia parlamentar. Então, a Constituição foi promulgada em
  • 13. 12 agosto daquele ano, acentuando a unidade alemã. É preciso salientar que as dificuldades econômicas do pós-guerra e as rigorosas condições impostas pelo Tratado de Versalhes originaram um profundo ceticismo em relação à república. Este período tem o nome de Weimar, pois foi essa cidade que reuniu, desde 6 de fevereiro até 11 de agosto de 1919, data da aprovação da nova Constituição, a Assembleia Nacional constituinte da República. A fragilidade dessa república, formada pelo socialdemocrata Friedrich Ebert, contribuiu para a expansão de movimentos radicais e para fortalecer os nazistas. Nesse ambiente conturbado, Adolf Hitler, então chefe do pequeno Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), tentou um golpe fracassado em Munique. A época também foi marcada por tentativas dos comunistas de tomar o poder, até que, em 1933, o regime nazista teve início solidamente. Sabe-se, inclusive por intermédio de Fredric Jameson (1999, p.89), da sanha genocida de Hitler, principalmente as relativas ao holocausto. Brecht não quis ―pagar para ver‖ e em 28 de fevereiro de 1933, dia seguinte ao incêndio do Reichstag, fugiu da Alemanha com a família para o exílio. Ficou restrito ao campo da esquerda as investidas nazistas contra os partidos dos trabalhadores e todas as suas organizações. Nas palavras de Eve Rosenhaft (1994, p. 20): [...] bares, diretórios de partidos, sindicatos, jornais, livrarias, salas de leitura, clubes, hospitais, escolas, centros de assistência social e teatros que fizeram o tecido da cultura de Weimar foram os primeiros objetos da onda de vandalismo oficial realizada em nome da ordem, da decência pública e da economia. O trabalho de Brecht como artista concentrou-se na crítica às relações humanas no sistema capitalista. Além disso, foi assíduo conhecedor do teatro político de Erwin Piscator. Outros nomes também foram de suma importância ao trabalho de Brecht, como Vsevolod Emilevitch Meyerhold e Viktor Chklovski. Também procurou basear-se no teatro experimental da Rússia soviética. Passando para o campo da comunicação, este trabalho parte do pressuposto de que o comunicador tenha consciência cultural, social e política, fatores concernentes à vivência diária. Considerando tal proposição, é importante lembrar o sistema a que estamos submetidos, chamado de capitalista, justamente por ter o ―capital‖ como
  • 14. 13 fator crucial e preponderante nas relações humanas. Esse fato, lembrado com ênfase nos trabalhos artísticos e teóricos de Brecht, faz de suas criações críticas e atuais, levando em conta que se deve sempre refletir sobre a situação em que estamos inseridos. Para o autor, o socialismo era a própria promessa do progresso social, avanço das forças produtivas rebelando-se contra as relações de produção. Como meio de criticar artisticamente a realidade e, então, o sistema em que estava inserido, Bertolt Brecht propôs uma maneira diferente de pensar o teatro: O teatro que conheceu, o teatro burguês, também é – como ele percebeu – um substituto para o entorpecente. Sua missão como pensador foi a de arrancar o teatro dessa condição e restituir-lhe um sentido efetivo. Sua missão como artista, a de fazer uma realidade dessa ideia. Desde que o teatro, comparado com os outros, é um entorpecente fraco, cumpre descobrir sua força no exercício de outra função. (MACIEL, 1967, p.4). Portanto, a fim de satisfazer suas indignações com o teatro feito em sua época, que não o satisfazia como possibilidade de diversão, formulou o teatro épico, uma das grandes teorias de interpretação do século XX, a qual propõe uma interpretação gestual, em que o público exerce uma operação crítica do comportamento humano. Não é oferecido ao público que ele se ludibrie com as encenações, mas sim que consiga examinar as cenas de forma pensante. Atendo-me a tais preceitos, este trabalho tem como segundo capítulo uma breve exposição do Teatro Moderno ou conhecido como Pós-dramático, a fim de contextualizar a época em que Brecht surgiu e tornou-se atuante e significativo. Tal teatro é organizado por conta das mudanças sociais e políticas da passagem do século XIX ao século XX, o que faz a forma teatral ser alterada. Aparece, então, a questão das novas técnicas de produção e reprodução, o que chamamos hoje de meios de comunicação. Brecht tenta colocar em suas obras a discussão sobre a inovação técnica, pelo rádio e o avião, por exemplo, como aparece na peça-objeto deste trabalho. Em seguida, dar-se-á a apresentação da biografia, trajetória e legado de Bertolt Brecht, propondo uma assimilação do que se entende por seu teatro épico e o interligado Efeito do Distanciamento. Como adendo e a fim de explanar melhor o objeto em estudo, também trataremos dos preceitos que conceituam as peças de aprendizagem.
  • 15. 14 Para que se solidifique a ponte entre comunicação e teatro, foi escolhida como objeto de análise e base para as demais considerações, a peça O vôo sobre o oceano – peça didática radiofônica para rapazes e moças, escrita em 1928/29, a qual conta a história do primeiro voo sobre o oceano Atlântico feito por um aviador solitário no comando do avião. Essa peça, como mostra o subtítulo, foi escrita para ser transmitida por meio do aparelho radiofônico, o qual, segundo Brecht, deveria ter o imperativo da interatividade, ou seja, deveria ser feito para permitir a interação entre os homens, não ser apenas um aparelho de emissão controlado pelos monopólios e a serviço da lógica mercantil. A peça apresenta uma utilização inédita do rádio: foi feita para o rádio e o rádio é "personagem" da peça, pois conta, de diversos ângulos, as intempéries pelas quais passa o herói. A escolha de Brecht por escrever uma peça radiofônica não aparece sozinha, pelo contrário, tem o respaldo de ser, ainda, considerada didática. A autora Urânia de Oliveira cita Ingrid Koudela (1991) e expõe que o termo original em alemão é Lehrstück. Afirma que a tradução mais correta desse termo seria ‗peça de aprendizagem‘, ―à medida que o termo ‗didático‘ na acepção tradicional, implica ‗doar‘ conteúdos através de uma relação autoritária entre aquele que ‗detém‘ o conhecimento e aquele que é ‗ignorante‘‖ (KOUDELA apud OLIVEIRA, [2013]). A função das Lehrstücke – peças didáticas – era fazer que seus participantes fossem ativos e reflexivos ao mesmo tempo. Para expandir o pensamento comunicacional sobre a arte, conceitos e ponderações de autores relevantes se farão presentes, tais como o de Walter Benjamin, o qual escreveu artigos pertinentes em relação ao nosso objeto: ―Que é o teatro épico? – Um estudo sobre Brecht‖ e ―O autor como produtor – Conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo em Paris, 27 de abril de 1934‖. Além do mais, Benjamin redigiu importante consideração sobre as relações entre cultura e os meios de comunicação em ―A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica‖, que também será útil à nossa análise comunicacional. Isso porque Brecht trabalhou duplamente com a questão da reprodutibilidade técnica, com a comunicação como conteúdo de uma peça de teatro, mas também como forma. Pensando em explorar esses conceitos, o quarto capítulo é intitulado ―Sob o olhar de Walter Benjamin‖.
  • 16. 15 Já que Brecht usa o rádio, considerado um meio de comunicação, para difundir seus pensamentos e aprendizagens em conjunto, escolheu-se abordar, no quinto capítulo desta pesquisa, a apresentação do rádio no contexto alemão da época e a Teoria do rádio para o escritor alemão, na qual ele expõe seus ideais de como deveria funcionar esse meio de comunicação, ou seja, o ouvinte também poderia promover o ato de comunicar. A fim de expandir a possibilidade analítica deste trabalho, destrinchar- se-á o objeto desta pesquisa, que se trata da peça O vôo sobre o oceano – peça didática radiofônica para rapazes e moças. A intenção, no sexto capítulo, é contextualizar a época em que foi escrita, contar do que se trata e considerar os pormenores significativos ao entendimento e interiorização da obra, partindo dos pressupostos mencionados nos capítulos subsequentes. Deve-se considerar e lembrar que a posição de Brecht em relação aos prazeres da cultura de massas atravessa a tão engendrada oposição entre populismo e elitismo. Isso significa que a sua função não é o prazer, mas pensar historicamente estética e cultura, perpassando a comunicação. Lembro, então, que é preciso ler o texto como um todo, um conjunto que se complementa, já que aos comunicólogos pode parecer que há muito teatro. Aos amantes do teatro, parecerá que existe demasiada comunicação. O que quero mostrar com este trabalho é que, depois de Brecht, é preciso buscar entender a relação entre os dois.
  • 17. 16 2 TEATRO MODERNO Para elucidarmos melhor a época em que Brecht apareceu no contexto mundial, é primordial que adentremos no âmbito da transição do teatro dramático, denominado aristotélico pelo autor, até o Teatro Moderno, de que Brecht é parte. Este capítulo objetiva abordar essa época expondo as principais características inerentes às pesquisas e experimentações de artistas e pensadores de destaque, nesse período considerado conturbado em relação às mudanças na arte. A fim de atingir uma melhor compreensão sobre o intervalo de tempo posto, propõe-se uma gama de autores que refletem, com nomeações variadas, sobre o Teatro Moderno. Como base para a exposição dos conceitos, usaremos autores como Peter Szondi e a Teoria do drama moderno [1880 – 1950], Iná Camargo Costa e suas obras Sinta o drama e Nem uma lágrima: teatro épico em perspectiva dialética, bem como Raymond Williams e seu livro Drama em cena. Tais obras também farão parte das reflexões sobre o teatro épico exposto mais adiante. Não é o objetivo deste capítulo suscitar as características marcantes do teatro épico formulado e teorizado por Brecht, mas apontar as diferenças enfáticas entre o teatro postulado como dramático e o aqui chamado de Moderno. É com base na historicização que ressaltaremos as transformações do teatro para o século XX. De acordo com Iná Camargo Costa (2012, pp.15-16), podemos elucidar melhor o que é o drama: Segundo uma definição quase aceitável por qualquer manual do século XIX, drama é a forma teatral que pressupõe uma ordem social construída a partir de indivíduos [...] e tem por objeto a configuração das suas relações, chamadas intersubjetivas, através do diálogo. O produto dessas relações intersubjetivas é chamado ação dramática, e esta pressupõe a liberdade individual (o nome filosófico da livre- iniciativa burguesa), os vínculos que os indivíduos têm ou estabelecem entre si, os conflitos entre as vontades e a capacidade de decisão de cada um. (grifo da autora) E ela completa explanando que, como característica, o enredo do teatro dito dramático funciona, principalmente, por meio do diálogo, devendo ter, de modo claro, começo, meio e fim, em uma determinação tipicamente temporal, chamada de enredo ou entrecho, com a possibilidade da existência do nó dramático, nó cego, desenlace, entre outras nomenclaturas.
  • 18. 17 Além disso, o drama pressupõe que se tenha suspense, deixando o público ―preso‖ pela curiosidade em relação ao desfecho da história. A autora também exprime que, no drama, ―não há lugar para o inexprimível (o que não se traduz em discurso, incluindo ‗caras e bocas‘), pois ele expõe relações intersubjetivas‖ (2012, p.16, grifo da autora). Ademais, os temas que interessam ao drama precisam estar no âmbito dessas relações, ou seja, precisam pertencer à vida privada. Essas exigências levam-nos ao princípio formal do drama: a autonomia. O drama deve ser um todo autônomo, absoluto. Não pode remeter a um antes, nem a um depois e muito menos ao que lhe é exterior. [...] A exigência das unidades dramáticas não é, por isso, mero arbítrio de críticos ranzinzas, mas consequência necessária do princípio formal. [...] Assim, trocando mais em miúdos, sobre os personagens do drama pode-se dizer que devem ser indivíduos bem caracterizados, e é por essa razão que os críticos exigem profundidade psicológica dos dramaturgos. Esses indivíduos devem ser capazes de assumir seu próprio destino, bem como as consequências dos seus atos, sem se submeterem a instâncias externas ou superiores (fatalidade, deuses, tradições). (COSTA, 1998, pp. 56-57, grifo da autora). A profundidade psicológica por parte dos indivíduos da peça será enfatizada pela interpretação do autor, como mostra Szondi (2001, p.31): ―A arte do ator também está orientada ao drama como um absoluto. A relação ator-papel de modo algum deve ser visível; ao contrário, o ator e a personagem têm de unir-se, constituindo o homem dramático‖. Outra consequência que tange às interpretações dramáticas é a relação com o espectador, objetivada na quarta parede, que se trata de uma parede imaginária situada na frente do palco do teatro. Sendo assim, o ―drama exige do espectador uma passividade total e irracional: separação ou identificação perfeita‖ (COSTA, 2012, pp.16-17). É por esse fator que a cena frontal é a cena própria para o drama e o autor se identifica absolutamente com o personagem. Para ratificar tal elucidação, temos a compreensão de Peter Szondi sobre o drama e a relação estabelecida com o público: Assim como a fala dramática não é expressão do autor, tampouco é uma alocução dirigida ao público. Ao contrário, este assiste à conversão dramática: calado, com os braços cruzados, paralisado pela impressão de um segundo mundo. Mas sua passividade total tem (e nisso se baseia a experiência dramática) de converter-se em
  • 19. 18 uma atividade irracional: o espectador era e é arrancado para o jogo dramático, torna-se o próprio falante (pela boca de todas as personagens, bem entendido). A relação espectador-drama conhece somente a separação e a identidade perfeitas, mas não a invasão do drama pelo espectador ou a interpelação do espectador pelo drama. No século XX, que dá voz e vez ao Teatro Moderno, os fundamentos estéticos e racionais vivenciados no século anterior, em que predominava o Naturalismo cênico, principalmente no que se refere à interação entre plateia e atores, foram transgredidos e desafiados, trazendo à tona inovações teatrais, por meio de experimentações no modo de fazer teatro. Levando em consideração as análises sobre as mudanças na forma teatral, em que a classe de operários passa a tomar conta do espaço teatral, de Iná Camargo Costa (1998, p.20), temos: A experiência social dessas novas realidades é o novo conteúdo que a forma do drama já não tinha como configurar. O drama naturalista foi, historicamente, a primeira tentativa de dar conta dele, por isso sua natural incapacidade de superar as dificuldades que a camisa de força da antiga forma impunha: [...] a necessidade de dar voz no teatro à classe operária que começava a conquistar espaço na cena política fez com que o drama começasse a narrar e o drama deu o primeiro passo em direção ao teatro épico. (grifo da autora). Dessa forma, o conhecido ―melodrama‖ burguês, do final do século XIX, não aceita em seu conteúdo o que ―quer continuar a enunciar formalmente: a atualidade intersubjetiva. O que vincula as diversas obras da época e remonta à mudança ocorrida em sua temática é a oposição sujeito-objeto, que determina seus novos contornos‖ (SZONDI, 2001, p.92). Rompe-se, portanto, com o idealismo romântico e faz surgir o Realismo, cujo um dos representantes foi o russo Anton Tchekhov (1860-1904), o qual retratava o declínio da burguesia russa. Na concepção de José A. Pasta Júnior (2001, p.13), analisando a obra de Peter Szondi, temos: Szondi identifica, na tradição, o momento em que se constitui a forma do drama propriamente dito. Para ele, o drama da época moderna surgiu no Renascimento – quando a forma dramática, após a supressão do prólogo, do coro e do epílogo, concentrou-se exclusivamente na reprodução das relações inter-humanas, ou seja, encontrou no diálogo, sua mediação universal. O drama que surge daí é ―absoluto‖, no sentido de que só se representa a si mesmo – estando fora dele, quanto realidade que não conhece nada além de
  • 20. 19 si, tanto o autor quanto o espectador, o passado enquanto tal ou a própria convizinhança dos espaços. (grifo do autor) Estudando, sucessivamente, Ibsen, Tchékhov, Strindberg, Maeterlinck e Hauptmann, o procedimento de Szondi será o de examinar, nas peças, a contradição crescente entre a forma do drama, presente nelas como modelo não diretamente questionado, e os novos conteúdos que elas tratam de assimilar. Segundo Pasta Júnior (2001, p.14): O núcleo do confronto, que caracteriza a crise da forma dramática, encontra-se na crescente separação de sujeito e objeto – cuja conversão recíproca era a base da absolutez do drama –, separação que mais e mais se manifesta nas obras, principalmente pela impossibilidade de diálogo e pela emersão do elemento épico. Iná Camargo Costa (2012, p.91), por sua vez, faz um resumo pertinente sobre as estruturas desses autores enfatizados por Szondi: Com Hauptmann, vimos a forma do drama burguês operando como um obstáculo real para a exposição da luta ocorrida na Silésia. Ibsen questionou objetivamente a universalidade do conceito burguês de indivíduo, mostrando que ele exclui pelo menos a metade feminina da humanidade. Tchekhov mostrou que a burguesia e sua forma teatral não tinham futuro. Strindberg descobriu, com o drama de estações, uma forma de romper com a objetividade do drama, abrindo o caminho para o aparecimento do foco narrativo e, com ele, a possibilidade de ultrapassar as limitações da narrativa dramática, que exige, entre outras determinações, o encadeamento causal dos acontecimentos. As duas gerações do Expressionismo consolidaram a forma épica, e a segunda mostrou o seu interesse para os trabalhadores na exposição de seus próprios assuntos. Marca-se, então, a eclosão de novos movimentos que começaram a se instaurar em oposição às ―regras‖ artísticas antes dominantes. De acordo com Pavis (1999), no Dicionário do Teatro, o Expressionismo teve início por volta de 1910, na Alemanha, rejeitando a ilusão criada em cena pelo Naturalismo. O expressionismo inovou o cenário de forma radical, estilizando e distorcendo os elementos da cena. Tinha como foco chamar a atenção do público para a arte em si mesma e não para a imitação da vida. Retomando um teorema de Peter Szondi: a forma do drama tornou- se um problema para os dramaturgos naturalistas que estavam interessados em encenar assuntos definidos como épicos pelos próprios adeptos do drama. Tornou-se mesmo uma camisa de força
  • 21. 20 que começou a se esgarçar nas mãos dos naturalistas e acabou se rompendo ao tempo do teatro expressionista [...]. Sem muito exagero, é possível dizer que dramaturgos expressionistas como Georg Kaiser e Ernst Toller, na trilha dos experimentos de Strindberg, já tinham encontrado uma nova forma de teatro não- dramático. Só lhe faltava um nome. A essa tarefa dedicaram-se os militantes do teatro político na Alemanha. (COSTA, 1998, p.98). Georg Kaiser (1878-1945) e Ernst Toller (1893-1939), como apontado, foram precursores do Expressionismo no teatro, e em seus trabalhos mostravam a expressão do sentimento humano, em vez de apenas retratar a sua realidade externa. Além disso, mostravam o homem em luta contra a mecanização desumanizadora da sociedade industrial. Mesmo com todas as diferenças que apresentam entre si, os dramaturgos estudados nesse período se caracterizam pela assunção e enfrentamento da crise da forma dramática, não se limitando a manifestá-la ou fugir dela. Pode-se afirmar que, ao contrário, [...] da perspectiva de Szondi, praticamente todos eles procuraram ―solucionar‖ a crise do drama assumindo como elementos temáticos e formais, tão plenamente quanto possível, os elementos contraditórios em cuja emersão ela se manifesta e, assim, procurando recuperar para o teatro uma integridade estética à altura dos impasses que ele defronta. (PASTA JÚNIOR, 2001, p. 17). As duas primeiras décadas do século XX, segundo Costa (1998, pp.16- 17) assistem ao vertiginoso desenvolvimento dessas tendências por quase toda a Europa e Estados Unidos. São muitos os autores que se colocam à disposição de tais mudanças. Na Rússia, Gorki, Maiakóvski, Stanislaviski, Meyerhold; na Alemanha, Hauptmann, Kaiser, Toller, Sternheim, Piscator, Max Reinhardt, entre outros; na França, depois de Antoine e seus dramaturgos naturalistas, aparecem Jacques Copeau, Romain Rolland, Jacques Prévert, Baty, Dullin, Jouvet e Pitsoëf; na Itália, Pirandello e Bragaglia; na Inglaterra temos Bernard Shaw, O‘Casey e Synge; e nos Estados Unidos, Elmer Rice, O‘Neill e Clifford Odets, entre inúmeros outros. Com a ascensão do nazismo, especificamente na Alemanha, em 1920, muitos artistas estavam preocupados em trabalhar temas coletivos, reforçando a abordagem anti-naturalista. Essa nova estética passa a ser conhecida como teatro épico, cujo pioneiro foi Erwin Piscator (1893-1966), que teve como discípulo e
  • 22. 21 militante o alemão dramaturgo e poeta Bertolt Brecht (1898-1956), o qual abordaremos com afinco no decorrer deste trabalho. As experiências de ambos ―principiam ali onde a contradição entre a temática social e a forma dramática vem à tona: no ‗drama social‘ do naturalismo‖ (SZONDI, 2001, p.133). Ainda segundo Szondi (2001, p.26), As contradições entre a forma dramática e os problemas do presente não devem ser expostas in abstracto, mas aprendidas no interior da obra como contradições técnicas, isto é, como ―dificuldades‖. Seria natural querer determinar, com base em um sistema de gêneros poéticos, as mudanças na dramaturgia moderna que derivam das problematizações da forma dramática. Mas é preciso renunciar à poética sistemática, isto é, normativa, não certamente para escapar a uma avaliação forçosamente negativa das tendências épicas, mas porque a concepção histórica e dialética de forma e conteúdo retira os fundamentos da poética sistemática enquanto tal. (grifo do autor). E ele completa sua colocação levando a cabo a tensão entre forma e conteúdo, que: [...] se atribui à contradição entre a unificação dialógica de sujeito e objeto na forma e sua separação no conteúdo. A ―dramaturgia épica‖ se desenvolveu à medida que a relação sujeito-objeto situada no plano do conteúdo se consolida em forma. (Id., p. 98). Como importante conquista advinda desse novo jeito de fazer teatro, temos a possibilidade de tratar tanto da subjetividade mais íntima quanto dos mais amplos assuntos da esfera do épico (históricos, políticos, econômicos). ―Ninguém mais pode dizer, sem incorrer em conservadorismo acadêmico, ou autoritarismo religioso, que algum assunto não é próprio para o teatro‖ (COSTA, 2012, p.19). Já apontando para o que se coloca como teatro épico, o qual será esmiuçado no capítulo seguinte, temos a superação da forma antiga, que se tornou problemática, pois os conteúdos, desempenhando uma função formal, precipitam-se completamente em forma, ―explodindo a forma antiga‖, como afirma Szondi (2001, p.95). Hans-Thies Lehmann (2007, p.69), em seu livro O teatro pós- dramático, tende a acrescentar com uma definição de teatro: Teatro pós-dramático pode ser concedido não como um teatro que se encontra além do drama, sem relação alguma, mas muito mais como desdobramento e florescimento de um potencial de desagregação, de desmontagem, de desconstrução do próprio
  • 23. 22 drama. Surge um fenômeno impensável hegelianamente, já que o mero ator individual situa-se acima do teor ético. (grifo do autor). Além disso, complementa (p.402): ―[...] a representabilidade, movimento da realidade teatral, não se opõe de modo nenhum à noção de que se pode tratar da realidade humana sob a condição de que ela permaneça não representável‖ (grifo do autor). À guisa de conclusão: O conceito de teatro moderno compreende o processo histórico desencadeado pela crise da forma do drama através da progressiva adoção de recursos próprios dos gêneros lírico e épico que culminou com o aparecimento de uma nova forma de dramaturgia – o teatro épico. (COSTA, 1998, p.14, grifo da autora). Com base nas apropriações do que se entende pelo Teatro Moderno, temos a aproximação com o teatro épico próprio de Bertolt Brecht, o qual será mais bem aprofundado adiante, voltando a alguns pormenores desenvolvidos neste capítulo. Em seguida, dar-se-á início às reflexões de Benjamin sobre o teatro brechtiano e os meios de comunicação – e sua utilização –, como modo de dar sustentação à teoria do dramaturgo.
  • 24. 23 3 BERTOLT BRECHT1 Para elucidarmos melhor o objeto desta pesquisa, faz-se necessário apresentar o autor da peça, bem como suas raízes, influências e legados. Trata-se de Eugen Bertholt Friedrich Brecht, mais conhecido como Bertolt Brecht, que nasceu no Estado Livre da Baviera, em Augsburg, no extremo sul da Alemanha, em 10 de fevereiro de 1898. Brecht se destacou, no século XX, como dramaturgo, poeta e encenador, influenciando profundamente o Teatro Moderno e tornando-se mundialmente conhecido. Sobre sua vida acadêmica, estudou medicina e ciências naturais na Universidade de Munique e trabalhou no serviço militar como enfermeiro durante a Primeira Guerra Mundial. Era filho de Berthold Brecht, diretor de uma fábrica de papel, católico, exigente e autoritário, e de Sophie Brezing, protestante, que fez seu filho ser batizado nessa religião. Na segunda metade de 1920, Brecht tornou-se marxista, vivenciando o período das mobilizações da República de Weimar. Adentrando o contexto culturalmente e considerando o teatro da época, eram conhecidas e renomadas as atribuições absolutamente dramáticas ao modo de encenar. O teatro no século XX, reduzido como o resto a uma mercadoria pelo amadurecimento corruptor da sociedade capitalista. Desceu a uma cotação extremamente baixa no mercado. No tempo da indústria, da produção em série e da destruição da venerável instituição do original artístico único, o teatro só poderia estar irremediavelmente condenado a ser a diversão de esnobes, homossexuais esquizofrênicos, nefelibatas intelectualizados e outros neuróticos ou o desfastio da ordem estabelecida através de seus burgueses bem- pensantes e metidos a sensíveis. A idade da indústria destruiu a aura da obra de arte, como explica Walter Benjamim. (MACIEL, 1967, pp. 3-4). Foi nesse contexto que Brecht desenvolveu o teatro épico. Sua praxis é uma síntese dos experimentos teatrais de Erwin Piscator – famoso por suas cenas Piscator, como eram chamadas, cheias de projeções de filmes e cartazes – e Vsevolod Emilevitch Meyerhold; do conceito de estranhamento do formalista 1 As informações biográficas de Bertolt Brecht aqui utilizadas foram retiradas, principalmente, do livro Teatro dialético, do próprio Brecht, com introdução de Luiz Maciel, 1997.
  • 25. 24 russo Viktor Chklovski; do teatro chinês e do teatro experimental da Rússia soviética, entre os anos 1917 e 1926. Com 20 anos, escreveu sua primeira peça, Baal (1918), história de um poeta vagabundo e amoral. Em seguida, tornou-se crítico teatral do Der Volkswille, em sua cidade natal, e uma espécie de consultor literário do teatro Munich Kammerspiele. Os primeiros espetáculos de suas peças Tambores na Noite (Trommeln in der Nacht), Baal e Eduardo II foram encenados em Munique, em 1922, 1923 e 1924, respectivamente. Por meio de sua participação no teatro, Brecht conheceu o diretor de teatro e cinema Erich Engel, com quem trabalhou até o fim da sua vida. Depois da Primeira Guerra Mundial, mudou-se para Berlim, onde o influente crítico Herbert Ihering chamou-lhe a atenção para a propensão do público pelo Teatro Moderno. Brecht trabalhou inicialmente com Erwin Piscator, citado anteriormente. Em Berlim, a peça Im Dickicht der Städte, protagonizada por Fritz Kortner e dirigida por Engel, tornou-se o seu primeiro sucesso. Brecht, em 1926, estreia sua comédia Um Homem é um Homem, em que mostra uma sociedade que começa a encarar a máquina como extensão do ser, quando não o próprio. Trata-se da obra de transição entre o expressionismo das primeiras peças e o estilo tipicamente brechtiano que começa a desenvolver por meio do teatro épico. De acordo com a biografia escrita por Luiz Carlos Maciel, no ano seguinte (1927), Brecht apresenta no Festival de Baden-Baden a primeira versão de Mahagonny, com música de Kurt Weill (1900-1950), o compositor que seguirá sendo seu parceiro em outras montagens. Em 1928, produzido por Piscator, aparece Schweik, adaptado em colaboração com Gasbarra e Leo Lania. A Ópera dos Três Vinténs, também de 1928, é o trabalho de maior destaque na carreira de Brecht, também com parceria do compositor Kurt Weill. Essa obra apresentou uma nova forma de teatro musical, misturando a estética de cabaré com a sátira de cunho social. Ele propunha um teatro politizado, cujo objetivo era/é modificar a sociedade. Indo mais a fundo, sabe-se que a peça vira um enorme sucesso, principalmente por causa da música, mas o que se nota é que as pessoas não entenderam a essência e a crítica que o autor gostaria de ter passado, há um ―erro‖
  • 26. 25 de interpretação por parte do público, o qual se ateve mais às canções, facilmente incorporáveis pelo sistema radiofônico. Seguindo a cronologia proposta por Maciel, em 1929, Brecht volta ao Festival de Baden-Baden com O Vôo de Lindberg, peça radiofônica que estudaremos com mais detalhes nos próximos capítulos, e As Peças Didáticas de Baden. Em 1930, estreia a versão definitiva de Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny. No mesmo ano, estreia Die Massnahme, com traduções diversas, tal qual A medida ou A decisão. A peça A Mãe, adaptada de Górki, estreia em 1932, ano em que ocorre a ascensão no nazismo. Concomitantemente, o filme Kuhle Wampe escrito por Brecht, com música de Hanns Eisler e dirigido por Stalan Dudow é censurado e considerado proibido. Com a eleição de Hitler, em 1933, terminou, definitivamente, a república. Embora a constituição de 1919 não tenha sido revista até o final da Segunda Guerra Mundial (1945), as reformas levadas a cabo pelo partido nazista invalidaram-na muito antes. Então, Brecht exila-se primeiro na Áustria, depois Suíça e França, onde apresenta Os Sete Pecados Capitais, no Teatro dos Champs- Elysées, em Paris. Ainda de acordo com a retrospectiva história e artística de Brecht, ele torna-se, em 1936, um dos editores da revista Das Wort, publicada por intelectuais alemães refugiados em Moscou. Estreia sua peça Cabeças Redondas e Cabeças Pontudas em Copenhague. Permanentemente na luta contra o nazismo e o fascismo, estreia, em 1937, em Paris, a peça Os Fuzis da Senhora Carrar, a qual considera ―aristotélica‖, conceito que será mais bem elucidado no tópico sobre o Teatro épico. Em 1938, estreia sete cenas de Terror e Miséria do III Reich. Viaja, então, à Dinamarca, Suécia, Finlândia e Suíça. O ano de 1940 é marcado pela peça Mãe Coragem, estreada em Zurique. E, finalmente, em 1941, parte para os Estados Unidos, instalando-se na Califórnia, onde tentou ganhar a vida com argumentos cinematográficos em relação a Hollywood. Ainda nos EUA, em colaboração com Joseph Losey, dirigiu a montagem de sua peça A Vida de Galileu, em 1947. No mesmo ano, segundo Maciel, depõe perante o Comitê de Atividades Antiamericanas, em Washington. Eram os tempos da Guerra Fria e o
  • 27. 26 macarthismo – prática política que se caracteriza pelo sectarismo, notadamente anticomunista, inspirada no movimento dirigido pelo senador Joseph Raymond McCarthy, nos EUA e que geralmente formula acusações e faz insinuações sem prova – já estava evidente no país. Então, volta à Europa, estabelecendo-se novamente na Suíça, onde escreve o Pequeno Organon Para o Teatro, monta uma adaptação de Antígona, de Sófocles e sua comédia O Sr. Puntila e Seu Criado Matti. Volta à Alemanha, em 1949, a convite do governo da República Democrática Alemã, instalando-se em Berlim Oriental, onde funda e dirige a companhia Berliner Ensemble, sustentada pelo Estado. Daí em diante, partindo do trabalho prático da companhia, Brecht dá vazão a todo o seu trabalho de cunho teórico. Em seu teatro, Brecht criou o Efeito de Distanciamento (Verfremdungseffekt), o qual abordaremos minuciosamente no tópico que se refere ao teatro épico. Esse efeito permitia ao público distanciar-se dos personagens e da ação dramática, utilizando recursos de diálogos estilizados, no uso da canção-narrativa, elementos cênicos informativos, entre outros recursos. Até 1956, junto à Berliner Ensemble, o dramaturgo realiza uma série de espetáculos com suas peças e adquire reconhecimento mundial apresentando-se no Festival do Teatro das Nações, em Paris. Além disso, recebe o Prêmio Stalin, em Moscou, em 1955. Seus textos, absolutamente ricos por suas ideias e pensamentos, fizeram-no conhecido em todo o mundo. Brecht é considerado um dos escritores fundamentais desse século por revolucionar a teoria e a prática da dramaturgia e da encenação, mudando completamente a função e o sentido social do teatro, usando- o como arma de conscientização e politização. Ele procurava estabelecer uma consciência antilúdica em relação a toda arte contemporânea. Tentou objetivar, então, a pedagogia aliada ao fazer teatral. Seu objetivo era superar a aparente inutilidade do teatro: a função, a utilidade, o resultado prático eram os critérios fundamentais que orientaram seu espírito. Sabia que, para provar a excelência de um bolo, é necessário comê-lo. Fazer um teatro que retomasse, na plenitude, a sua função social, um teatro útil e consequente, era tarefa de um homem de teatro que arregaçasse as mangas sobre as tábuas do palco, não de um autor ou teórico de gabinete. Foi o que ele fez. (MACIEL, 1967, p.5).
  • 28. 27 Ressalta-se, portanto, que ele buscou colocar em prática seus ideais perante a arte, principalmente relacionando-se com o teatro. Deve-se ter em mente, entretanto, que Brecht não escreveu peças marxistas nem procurou formular propriamente a teoria de um teatro marxista, objetivo que parecem ter sido mais concernentes a Piscator e seu teatro político. Mas, sem dúvida, Brecht estava convencido, como afirmou aos macarthistas norte-americanos que o interrogaram, de que ―não se pode escrever peças inteligentes, hoje em dia, sem conhecer as teorias de Marx‖ (MACIEL, 1967, p.9). Segundo Maciel, antes mesmo que qualquer conceituação marxista proposta por Brecht, o racionalismo, a depreciação do sentimento, o afastamento deliberado das emoções, o esforço pela compreensão e pela crítica e a valorização do instinto são aspectos práticos e/ou teóricos fundamentais a serem considerados em seu teatro, em detrimento à mera diversão. É importante lembrar, nesse contexto, as relações sociais de produção e as forças produtivas. Nós, como seres humanos, produzimos a nossa existência coletivamente, sobrevivemos e vivemos por meio delas. Desenvolvemos as forças produtivas e por elas nos relacionamos socialmente, tal qual explica Marx, em seu Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1859: [...] na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. [...] E do mesmo modo que não podemos julgar um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo, não podemos tampouco julgar estas épocas de revolução pela sua consciência, mas, pelo contrário, é necessário explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. (MARX, 1859, pp.301- 302). Faz-se crucial lembrar que a época de revolução social, de onde sai a verdadeira luta de classes, dá-se quando as forças produtivas e as relações sociais de produção entram em contradição. Nesse caso, com a mudança das forças produtivas no teatro e a luta de classes aparecendo como assunto, Brecht começa a
  • 29. 28 repensar o teatro e, com ele, a utilização dos meios de comunicação (desenvolvimento das forças produtivas, também por meio das novas técnicas). É a partir das problematizações encontradas nas relações de produção, ocasionadas pelas forças produtivas deficientes, que Brecht vai pensar seu Teatro épico, mais destrinchado no tópico que segue e a sua Teoria do rádio, a qual aparecerá neste trabalho, para que se exponha o pensamento do dramaturgo em decorrência da utilização dos meios de comunicação, inclusive no que concerne as suas peças. Voltando a sua biografia, o dramaturgo faleceu em 14 de agosto de 1956, de trombose coronária, no Estado de Berlim, em Berlim Leste, com 58 anos. 3.1 O TEATRO ÉPICO O teatro épico é a tentativa mais profunda e mais ampla no sentido de constituir um teatro moderno, e tem que superar todas as imensas dificuldades que têm que ser superadas por todas as forças vivas nos terrenos da política, da filosofia, da ciência e da arte. (MACIEL, 1967). Partindo da contextualização sobre o Teatro Moderno e sobre o dramaturgo Bertolt Brecht, podemos nos aprofundar no teatro épico. Segundo Maciel (1967), a visão de mundo do dramaturgo o leva, ao mesmo tempo, a determinada posição ideológica e política, respondendo a uma necessidade de racionalização das relações humanas. De acordo com o que escreve Brecht em seu artigo ―Cena de Rua – Modelo de Uma Cena de Teatro épico‖2 , de 1940 – presente no livro Teatro Dialético, de 1967, p.141 – durante os quinze anos que se sucedem à Primeira Guerra Mundial, foi experimentada uma forma bastante nova de interpretação, cujas características são tipicamente narrativas e descritivas e há a introdução de comentários em forma de coros e projeções. A essa nova estética dá-se o nome de épico. Assim sendo, o ator distancia-se do personagem e apresenta as situações de tal maneira que o espectador seja levado a exercer seu espírito crítico. 2 Os artigos aqui citados estão compilados no livro Teatro dialético, de Bertolt Brecht, de 1967.
  • 30. 29 O demonstrador, que deve ser reconhecido como ator, deve alternar sua imitação com explicações, o maior número de vezes possível. Os coros e as projeções de documentos de teatro épico e o apelo direto ao público pelos atores estão fundamentados no mesmo princípio. De acordo com o alemão, esse modelo não recorre às justificativas da apresentação teatral tradicional, ―tais como ‗a necessidade de se exprimir‘, ‗a capacidade de tornar sua a ‗vida‘ do personagem‘, ‗a aventura psicológica‘, ‗a necessidade de representar‘, ‗o prazer da invenção‘, etc‖ (BRECHT, 1967, p.149), ao contrário, procura romper com o tradicionalismo. Ao serem escritas as obras, o teatro épico não deixa de recorrer a recursos artísticos, mas corresponde à situação sociológica, destruindo a velha estética por esta não a satisfazer. O teatro, então, deveria seguir essa inovação, correspondendo à mesma necessidade, por meio do esclarecimento e da crítica em detrimento da mera diversão. Torna-se perceptível que não deve existir um sistema de comunicação comum enquanto a sociedade estiver dividida em classes antagônicas, pois a arte, tendo caráter ―apolítico‖, está aliada ao grupo dominante. Fato que não é, evidentemente, a opção de Brecht. É no interesse do povo, ou melhor, das amplas massas trabalhadoras, que a literatura deve fornecer representações verdadeiras da vida, as quais precisam ser sugestivas e inteligíveis, ou seja, populares. Entende-se que o escritor deva escrever a verdade no sentido de que não deve suprimi-la ou silenciá-la, nem escrever inverdades, nem curvar-se perante os detentores do poder, muito menos enganar os fracos. Naturalmente, é muito difícil não se curvar diante dos poderosos e é muito vantajoso enganar os fracos. (BRECHT, 1967, p. 20). E Brecht, em seu artigo ―O Popular e o Realista‖, escrito em 1937, presente no livro Teatro dialético (1967, p.116), ainda completa sua visão sobre o teatro que atende ao povo: O povo separou-se claramente de seus superiores: seus opressores e exploradores romperam com ele e se entregaram a uma guerra sangrenta contra ele que não pode ser mais ignorada. Ficou mais fácil escolher um lado. A guerra aberta, de uma certa maneira, foi deflagrada entre o ―público‖.
  • 31. 30 No mesmo artigo, Brecht (1967) ressalta que passar a verdade ao espectador parece uma tarefa cada vez mais urgente, pois o sofrimento das massas aumentou. E há apenas um aliado contra a barbárie: o povo sobre o qual são impostos esses sofrimentos. Sendo assim, é imprescindível que se recorra a ele, falando a sua linguagem, a fim de obter melhores perspectivas. Em seu artigo ―Pequeno Organon Para o Teatro‖, de 1948, Brecht coloca que: Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as idéias e os impulsos que são permitidos dentro do respectivo contexto histórico das relações humanas (em que as ações se realizam), mas também que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que ajudem a transformação desse mesmo contexto. (BRECHT, 1967, p.197). Quando o dramaturgo se refere à necessidade de uma arte popular, quer dizer que se deve fazer arte para as amplas massas populares, aos muitos que são oprimidos por poucos, à grande massa de verdadeiros produtores que sempre foram o objeto da política e que agora podem tornar-se o seu sujeito. Bertolt Brecht também tem essa expectativa em sua Teoria do Rádio, a qual ainda será apresentada neste trabalho. Tem-se o conceito de um povo combatente e que está transformando o mundo e a si próprio. Consequentemente, há um conceito combatente de popular. Falo de experiência própria quando digo que não se deve ter medo de colocar coisas novas e não habituais diante do proletariado, desde que tenham algo a ver com a realidade. Haverá sempre pessoas educadas, conhecedoras de arte, que virão dizer que ―o povo não vai entender‖. Mas o povo, com impaciência, se livrará delas para se entender diretamente com o artista. (BRECHT,1967, p.121). O dramaturgo representa o aguçamento da consciência antilúdica, não só do teatro, mas de toda a arte contemporânea, o que se apresenta como uma negação da consciência estética. Como Erwin Piscator, Brecht tende, em seu teatro de agitprop, a um novo objetivo: compor seu teatro com as qualidades do pedagogo: ―a clareza de exposição, o rigor de visão, o acesso fácil à compreensão, a lógica justa e, uma palavra, a verdade sem mistificação‖ (MACIEL, 1997, p.6).
  • 32. 31 E Brecht (1967, p.166) completa: ―A principal qualidade do teatro épico é exatamente ser natural e terrestre, é o seu humor e a sua desistência de todos os aspectos místicos que desde épocas passadas até aos dias de hoje prendem o teatro usual‖. O ponto essencial do teatro épico é, provavelmente, de acordo com Brecht (1967, p.41), ―que ele apela menos para os sentimentos do que para a razão do espectador. Em vez de participar de uma experiência, o expectador deve dominar as coisas.‖ Simultaneamente, seria equivocado negar emoção a essa espécie de teatro, pois seria o mesmo que tentar negar emoção à ciência moderna. Sem dúvida, a ciência e a arte atuam de forma bastante diversa. Contudo, Brecht afirmou em seu artigo intitulado ―Teatro de Diversão ou Teatro Pedagógico‖ (Brecht, 1967, p.100) que, sem utilizar algumas ciências, não teria a menor possibilidade de cumprir sua missão como artista: ―E devo confessar, inclusive, que torço o nariz para pessoas de quem sei que não estão à altura da compreensão científica, ou seja, que cantam como os pássaros cantam, ou como nós acreditamos que os pássaros cantem.‖ Também o moderno teatro épico se liga a determinadas tendências. E ligar-se à ciência significa usar um meio auxiliar para a sua compreensão. Segundo Brecht, a maioria das grandes nações não se inclina, atualmente, a manifestar seus problemas no teatro, mas deveria fazê-lo, denotando um espaço divertido e, ao mesmo tempo, passível de suscitar reflexões e críticas. É a sua vontade de esclarecimento e crítica, inclusive no teatro, que o levou à formulação de um Efeito de Distanciamento (Verfremdungseffekt), o qual não visa, no fundo, à eliminação da emoção na experiência dramática, mas, ao contrário, à sua salvação: Brecht não suportava a orgia de emoções corrompidas, sentimentalizadas, dominadas pelo irracionalismo, que se vê no teatro burguês como espelho da sociedade de que é produto. Para sanear a emoção, era necessário que ela fosse subordinada à razão. Desde que Aristóteles também emite qualquer referência à dimensão intelectual da experiência dramática – seja a tomando como um suposto tácito, seja efetivamente a parcializando na catarsis, na pura purgação. Das emoções de piedade e terror – a emoção pura, irracional, desumanizada por sua insubordinação à Razão, também foi apelidada por Brecht de aristotélica. (MACIEL, 1967, p.14, grifo do autor).
  • 33. 32 A alienação do homem, para Brecht, não se manifesta como produto da intuição artística. Pelo contrário, Brecht ocupa-se da desalienação do homem, de maneira consciente e proposital. Então, ele foi buscar na tradição dramática oriental, particularmente no teatro chinês, a resposta ao distanciamento. O distanciamento não deve, segundo Maciel em suas interpretações sobre Brecht, destruir a emoção, mas simplesmente colocá-la em perspectiva crítica, pois a razão tem como função ―iluminar‖ os sentimentos dos espectadores. As emoções devem levar ao esclarecimento e serem elas próprias esclarecidas, tendo função cognoscitiva. As que não o forem são chamadas aristotélicas e não ultrapassam o nível da diversão. Com o Efeito do Distanciamento proposto pelo dramaturgo, sua pretensão era despertar o espectador para uma reflexão crítica, usando meios artísticos, mas rompendo com a ilusão através do estranhamento, e deixando claro a todos que teatro não é vida real, ou seja, não os hipnotizava por meio da arte. Em seu artigo ―Uma Nova Técnica de Representação‖, escrito em 1940, Brecht explica que não eram feitos esforços para colocar o público em transe e para lhe dar a ilusão de assistir a um acontecimento normal, que não foi ensaiado. Para tanto, foi preciso abandonar a concepção de que existe uma ―quarta parede‖ separando ficticiamente o palco do público, a qual é causadora da ilusão de que o pano de boca realmente existe, de que não há público. Brecht propõe a possibilidade, inclusive, de que o ator se dirija diretamente ao público. Segundo Szondi (2001, p.138), ―para causar distanciamento em relação ao decurso da ação, que já não tem mais [...] a necessidade linear da ação dramática, vale recorrer a projeções e legendas, coros, canções ou mesmo gritos de ‗jornaleiros‘ pelo auditório‖. Isso porque eles comentam e interrompem a ação. Também para o distanciamento dos espectadores, Brecht propõe que eles assistam à peça até na companhia do cigarro. O dramaturgo explica que, no palco, durante todas as passagens essenciais, o ator deve encontrar e fazer pressentir alternativas que indiquem o contrário daquilo que está representando, ou seja, deve interpretar de uma maneira que mostre que a representação pode se dar em outras possibilidades e que ele está representando apenas uma das variantes possíveis. Segundo ele, ―O ator não deve permitir que no palco se dê uma transformação completa da sua pessoa naquela que está representada.‖.
  • 34. 33 Provavelmente, as próprias recomendações iniciais de Brecht sejam mais úteis do que qualquer análise meramente interpretativa. Ele (1967, p.163) propõe três ―técnicas‖ para seus atores: Três recursos podem servir para um distanciamento das falas e das ações de um personagem a ser representado com uma maneira de interpretar sem transformação completa: 1. A transposição para a terceira pessoa do singular. 2. A transposição para o passado. 3. Dizer o texto acompanhado pelas instruções e comentários do autor. A partir dessa explanação, vê-se possível que existam variações na forma de haver o distanciamento. Pode ser propiciada, inclusive, pela própria dicção, tendo em vista a importância maior ou menor que precisa ser conferida às sentenças. Outra circunstância pensada por Brecht é o fato de os atores passarem naturalmente da fala para o canto. Para ele, essa mudança de ação na cena deve ser nitidamente reconhecida. E isso pode ser feito por meio de recursos cênicos, como mudança de iluminação ou emprego de títulos. O ator, em sua posição, assume uma ―visão crítica da sociedade‖. Ao estabelecer a linha dos acontecimentos e da caracterização dos personagens, deve salientar os traços que pertencem ao âmbito da sociedade. Dessa maneira, o ator dá a possibilidade de o espectador justificar ou condenar a situação de acordo com a sua classe social. Além do mais, o ator/demonstrador se comporta com naturalidade, deixando ao personagem representado o mesmo estigma do comportamento natural. A apresentação é primordialmente repetitiva, ou seja, o acontecimento já ocorreu (está escrito na obra), trata-se agora da repetição. Assim como o ator não mais deve iludir o público mostrando que se trata de uma personagem fictícia no palco e não dele, também não deve, de acordo com Brecht, simular que o que está acontecendo no palco não foi ensaiado e que está acontecendo pela primeira e única vez. Segundo Brecht (1967, p.147), o ator não deve ―enfeitiçar‖ ninguém, não deve arrebatar quem quer que seja da realidade cotidiana com o fim de elevá-lo a uma ―esfera superior‖. Não se deve esquecer, na demonstração, que o ator não é o personagem representado, é tão somente um demonstrador: ―Em outras palavras,
  • 35. 34 o que o público vê não é uma fusão de demonstrador com o personagem representado, nem se trata também de um ―terceiro‖ independente e harmônico‖. Em seu texto ―Observações sobre a ópera ‗Ascensão e queda da cidade de Mahagonny’”, publicado em 1931, Brecht enumera, em uma tabela, mudanças de peso na transição do teatro dramático para o épico (apud SZONDI, 2001, pp. 134-135): Tabela 1 – Transição e diferenças entre o teatro dramático e o épico Forma dramática de teatro Forma épica de teatro  o teatro ―incorpora‖ um processo  ele narra um processo  envolve o espectador em uma ação  faz dele um observador  consome sua atividade  desperta sua atividade  possibilita-lhe sentimentos  força-o a tomar decisões  transmite-lhe vivências  transmite-lhe conhecimentos  o espectador é deslocado para dentro de uma ação  ele é contraposto à ação  trabalha-se com sugestão  trabalha-se com argumentos  as sensações são conservadas  são estimuladas para chegar às descobertas  o homem é pressuposto como conhecido  o homem é objeto de investigação  o homem imutável  o homem mutável e modificador  expectativa sobre o desfecho  expectativa sobre o andamento  uma cena em favor da outra  cada cena para si  os acontecimentos têm curso linear  os acontecimentos têm curso em curvas  o mundo tal como ele é  o mundo como vem a ser  o que o homem deve ser  o que o homem tem de ser  seus impulsos  seus motivos  o pensamento determina o ser  o ser social determina o pensamento Nota-se que a objetividade científica se torna objetividade épica e aparece em todas as camadas da peça teatral, sua estrutura e linguagem, bem como sua encenação. Indo ainda mais a fundo, o que foi posto não significa que, ao representar um apaixonado, por exemplo, o ator deve se mostrar frio. Somente os sentimentos pessoais do ator é que não devem ser, em princípio, os mesmos que os da respectiva personagem, a fim de que os sentimentos do público não se tornem também os da personagem. Nesse aspecto, ―a audiência deve gozar de completa liberdade‖:
  • 36. 35 A liberdade na relação entre o ator e o seu público também consiste em que ele não o considera uma massa uniforme. Ele não une as pessoas como se fossem um bloco sem forma com as mesmas emoções. Ele não se dirige da mesma maneira a todos; ele mantém as diversões existentes no público, ele chega a torná-las mais profundas. Ele tem amigos e inimigos, ele é amigável com os primeiros e hostil com os segundos. Ele toma um partido, nem sempre aquele do seu personagem, e quando é o caso, ele toma partido contra o seu personagem. (BRECHT, 1967, p.172). Brecht explica que se trata de uma técnica de representação que permite retratar acontecimentos humanos e sociais, necessitando de explanação, sem parecerem gratuitos ou meramente naturais. A finalidade do Efeito de Distanciamento é fornecer ao espectador, situado de um ponto de vista social, a possibilidade de exercer uma crítica construtiva, principalmente em relação à sua condição social. Seguindo um velho hábito a atitude crítica é vista como uma atitude negativa. Para muitos a atitude crítica é considerada a diferença entre a atitude científica e a artística. Não conseguem pensar o prazer da arte com as contradições e distanciamentos. Naturalmente também existe um grau mais desenvolvido na apreciação comum da arte, que aprecia criticamente, mas a isto é algo completamente diferente quando se deve observar criticamente, contraditoriamente, distanciadamente o próprio mundo e não a representação artística do mundo. (BRECHT, 1967, p.177). O teatro, com suas reproduções do convívio humano e das relações interpessoais, tem que surpreender seu público e chegar a isto por uma técnica que torne o que lhe é familiar em estranho. Uma representação que cria o distanciamento permite-nos reconhecer seu objeto, ao mesmo tempo com que faz que ele pareça alheio. E ele ainda completa: ―O que aparece agora frente ao espectador é tudo o que não foi rejeitado e que foi submetido a múltiplas repetições: devem ser apresentadas com completa lucidez para que possam ser recebidas com igual lucidez‖ (BRECHT, 1967, p. 218). Como afirma Fredric Jameson (1999, p.99), em seus ―experimentos‖, Brecht investiu dinheiro e recursos, inclusive pessoais, não apenas a fim de criar um outro teatro, mas para satisfazer o desejo de um homem de teatro, que é testar todas as alternativas possíveis e debatê-las. Aqui vale a pena tecer uma nota biográfica. Brecht preferia usar a palavra ―experimentos‖ a ―experiências‖ por ter
  • 37. 36 estudado originalmente as ciências naturais. Dessa forma ele podia ―protocolar‖ as reações das pessoas submetidas ao ―experimento‖ (KOUDELA, 2007, p.21). Nesse ínterim, de acordo com Jameson, sugere-se, como ver-se-á com mais detalhes no tópico seguinte, que a passagem dos vários atores por todos os papéis cria necessariamente uma multidimensionalidade, a qual é a própria essência do teatro de repertório, ou do teatro enquanto tal. Aparecem e se desvanecem discussões ampliadas, lutas sobre a interpretação e propostas de todos os tipos de alternativas gestuais e cenográficas. O exercício do distanciamento proposto pelo dramaturgo fica imediatamente esclarecido quando se entende o que é gestus. Segundo Jameson (1999, p.139), ―é o operador de um efeito de estranhamento no sentido próprio; e em particular que o estranhamento deriva da superposição de cada um destes significados sobre os demais‖. Tal conceito – central na estética brechtiana – quer dizer que por vezes os movimentos físicos do ator no palco são suficientes, como quando o intérprete chinês – tão levado em consideração por Brecht – mostrando o seu próprio gesto, destaca-o também ao público, dotando-o de significação. Desenvolveu-se uma maneira de falar e de usar a linguagem que era, simultaneamente, estilizada e natural. As posturas tomadas nas frases eram levadas a cabo, sendo relevadoras das próprias frases, completando-as. Essa simples expressão dos gestos humanos, ainda de acordo com Jameson (1999, p.140), Brecht chamou de gestisch ou linguagem gestual. Chamamos esfera do gesto aquela a que pertencem as atitudes que as personagens assumem em relação umas às outras. A posição do corpo, a entonação e a expressão fisionômica são determinadas por um gesto social [...]. O ator apodera-se da sua personagem acompanhando com uma atitude crítica de suas múltiplas exteriorizações; e é com uma atitude igualmente crítica que acompanha as exteriorizações das personagens que com ele contracenam e, ainda, as de todas as demais (BRECHT,1978, pp.61- 62). Trata-se, então, recorrendo à análise de Vanja Poty (2013), ―de um procedimento predominantemente físico do trabalho do intérprete, designando suas atitudes e nuances de expressões faciais bem como corporais, de palavras e entonações, de ritmo e variações com quebras na fala e nos movimentos‖.
  • 38. 37 Jameson (1999, p.139) exemplifica da seguinte maneira, aliando ao conceito já visto de estranhamento: O exercício, entretanto, fica imediatamente esclarecido quando entendemos que gestus é o operador de um efeito de estranhamento no sentido próprio; e em particular que o estranhamento deriva da superposição de cada um destes significados sobre os demais, mostrando-nos, por exemplo, como um movimento involuntário da mão poderia, em certas circunstâncias (quando executado por Luís XIV durante uma entrevista particularmente decisiva, mas também quando desempenhado por um insignificante lojista durante as elaboradas e imperdoáveis negociações da vida citadina), contar como um fatídico ato histórico, com consequência sérias e irreversíveis. O gestus tem a intenção de tornar compreensível aquilo que é subjetivo (comportamento subjetivo, atitude subjetiva) a partir do que é intersubjetivo, social. Mas, é preciso ressaltar que nem todos os gestos são ―sociais‖. Segundo Brecht (1978, p.107), ―a atitude de defesa perante uma mosca não é em si própria um gesto social; atitude de defesa perante um cão pode ser um gesto social, se [...] exprimir, por exemplo, a luta que um homem andrajoso tem que travar com cães de guarda‖. Compreende-se, então, que é considerado social o gesto que evidencia uma realidade social, em que se domina a natureza, ou seja, mostra-se ―o mundo dos homens‖, como é, por exemplo, o gesto de trabalhar. Segundo Koudela (2007), os modelos de comportamento formados pelas pessoas são decorrentes de uma cultura determinada por sua classe social, sexo, língua, articulação, entre outros fatores. Diante disso, Brecht ressalta que: Por gestus entenda-se um complexo de gestos, mímica e enunciados, os quais são dirigidos por uma ou mais pessoas a uma ou mais pessoas. Um homem que vende peixe mostra, entre outras coisas, o gestus de vender. Um homem que escreve seu testamento, uma mulher que atrai um homem, um policial que espanca um homem, um homem que faz o pagamento a dez homens – em tudo isso está contido o gestus social. Um homem, invocando seu Deus, só será gestus, nesta definição, se isso ocorrer com vistas a outros homens ou em um contexto onde apareçam relações de homens para homens. (BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.101). Também há de se enfatizar que o gestus é o ―interior‖ se expressando enquanto a linguagem verbal se exterioriza intelectualmente apenas:
  • 39. 38 [...] ao falar de gestus não nos referimos à gesticulação; não se trata de movimentos das mãos no intuito de frisar ou explicar a fala, mas sim de atitudes gerais. Uma linguagem é gestual quando se fundamenta no gestus, quando revela determinadas atitudes do indivíduo que fala, assumidas perante outros indivíduos. (BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.101). A atitude que aparece com o gestus social expressa a relação de alguém ou de algum grupo com o ambiente e a convivência sociais, esclarecendo, assim, as relações interobjetivas. Por meio dessa imitação, dessa expressão do comportamento real, é que o ―efeito educacional‖, em que o interior é orientado pelo exterior, pode ser atingido. Decorre daí que o processo de educação da peça didática visa, com a execução e observação de gestos e atitudes, tornar conscientes posicionamentos internos, exteriorizando-os. Abordar-se-á essa aprendizagem proporcionada pelo teatro, com destreza, no tópico seguinte. E vale ressaltar, a fim de retomarmos a utilização dos métodos teatrais de Brecht para o rádio: Um gestus pode ser manifestado apenas por meio de palavras (no rádio); assim será introduzida nas palavras uma determinada gestualidade e uma determinada mímica, que poderão ser detectadas (uma reverência humilde, um tapinha nas costas). (BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.101). 3.1.1 As Peças de Aprendizagem Nas últimas décadas do século XIX, a série de conflitos que ocorriam em diversas partes do mundo prenunciava a eclosão da Primeira Guerra Mundial. A Alemanha ostentava uma oligarquia financeira compacta, resultado de uma concentração do capital industrial aliado ao capital bancário, formando monopólios poderosos. Nesse cenário, a classe operária passava por momentos difíceis e, inicialmente, de uma forma bastante tímida, apareciam movimentos de revolta contra o regime burguês. Não é de se estranhar, portanto, que toda a obra de Brecht virá marcada pela luta contra o capitalismo e contra o imperialismo. Todo o tempo há uma profunda reflexão sobre a situação do homem num mundo dividido em classes e condicionado a uma divisão econômica e política.
  • 40. 39 A partir das explanações e considerações sobre o teatro épico e o seu contexto de aparição, levando em conta as insatisfações sociais de Brecht, bem como seus recursos de estranhamento/distanciamento e gestus, podemos adentrar no que tange aos elementos pedagógicos a que quer alcançar o autor. É sob esse espectro que Brecht desenvolve suas obras, no plano épico, em que o público não é mero espectador, mas participante e julgador crítico da arte, que representa a realidade política, a desigualdade e o caráter íntimo de cada ser humano. Nesse caso, Bertolt Brecht não deseja apenas salientar, em suas peças, que está atuando de forma a haver o distanciamento entre ator e personagem, e entre personagem e plateia, mas sim de forma a ser, literalmente, pedagógico. Para o autor, o sistema socioeconômico é tal como é, mas poderia ser de um outro jeito e, frente a isso, aquele que assiste a uma peça brechtiana tem que se posicionar de maneira ativa. Na perspectiva de Ewen (1991, pp. 219-220), elas ―eram compostas mais com o olho nos seus participantes do que na plateia e marcaram uma fase altamente interessante, embora controvertida na evolução do autor‖. Segundo Oliveira (2013), ainda na visão de Ewen, ―a origem das peças didáticas remonta ao modelo de instrução jesuíta e humanista‖. É dessa forma que surge a Lehrstücke, ou peças didáticas de Brecht. Faz-se importante salientar que, quando, em 1935, o autor traduziu o termo para o inglês, afirmou que não haveria uma expressão equivalente. No português, a tradução mais correta seria ―peça de aprendizagem‖, já que o termo ―didático‖, na acepção tradicional, implica ―doar‖ conteúdos por meio de uma relação autoritária e doutrinária entre o que detém o conhecimento e aquele que é ―ignorante‖ (KOUDELA, 2007, pp.99-100). Segundo Luciano Gatti (2015, p.12), o ―objetivo de Brecht era transformar a experiência teatral em ocasião para a formulação de novos conhecimentos. Trata-se assim de aprender coletivamente com o trabalho teatral‖. As obras comumente atribuídas ao teatro didático brechtiano são compostas por seis peças: O vôo sobre o oceano, originalmente intitulada O vôo de Lindbergh (escrita em 1928/1929); A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo ou Baden-Baden sobre o acordo (escrita em 1929); Aquele que diz sim; Aquele que diz não (encenadas sempre em conjunto, escritas em 1929/1930); A decisão (escrita em 1929/1930) e A exceção e a regra (escrita em 1929/1930). Vê-se que é uma época em que ele se dedica à criação de tais peças. Elas encontram-se compiladas
  • 41. 40 na coleção Teatro Completo (Brecht, 1992), nos volumes três (as cinco primeiras) e quatro (a última). É por meio da peça didática que Brecht rompe com a organização teatral estabelecida. ―Existem outros meios de produção e difusão do trabalho teatral, além do público habitual dos teatros. Por exemplo, as crianças nas escolas, as associações de jovens, os coros operários, muito numerosos na Alemanha‖ (KOUDELA, 2007, p.50). Nesse contexto, o rádio vai aparecer como algo importante e significativo à época. Segundo Ingrid Koudela (2007, p.100), o ―aluno‖ deve aprender por si próprio, sem se confrontar com uma determinação já concluída ou pré-estabelecida, por isso mesmo não deve existir a figura do diretor, que pode ser somente um coordenador do processo. Este coloca questões como ―como é introduzido o processo/para onde se dirige/ como é estruturado‖. A contribuição se dá por meio de perguntas, dúvidas, multiplicidade de pontos de vista, comparações, lembranças, experiências, trazendo à tona a realidade vivida ou compreendida pelos atores. Recorrendo à Gatti (2015, p.51), ele complementa que conferir função pedagógica ao experimento em cena exige crítica durante o processo de aprendizado de todo ensinamento preconcebido. De outro modo, o coordenador, ―responsável‖ pelos aprendizes, ou o próprio autor, ver-se-iam reduzidos a transmissores de doutrinas, sejam elas de teor revolucionário ou não. A fim de localizar temporalmente a peça didática na obra de Brecht, é preciso lembrar o conflito legal que se deu após a versão filmada da Ópera dos Três Vinténs, dirigida por Pabst, em 1930. Brecht, com o ocorrido, sente a necessidade de produzir arte distante das ideias já engendradas de teatro. Contextualizando, a fim de compreender melhor os rumos do autor, houve um mal-entendido nos termos do contrato assinado por Brecht com a Nero Filmes. A companhia cinematográfica estava interessada apenas em enlatar uma peça que fora um sucesso de bilheteria do teatro alemão e não fazia questão nenhuma da intervenção de Brecht (que, de fato, não participou da reestruturação do roteiro), nem de atender as perspectivas políticas. O dramaturgo não tinha recursos financeiros suficientes para ―abrir as portas‖ da Justiça, como conta Iná Camargo, mas foi indenizado por algumas pernas e danos. Aprendendo com as novas formas de estruturação da arte e a readequação
  • 42. 41 das forças produtivas, só cabia a ele desenvolver, na prática, ―uma crítica de maior alcance às ideias liberais sobre arte no capitalismo‖ (COSTA, 2012, p. 142). Resumindo, deu-se, segundo Iná Camargo, a industrialização das artes do espetáculo, ou seja, as forças produtivas ficaram submissas às determinações do capital: ―[...] quando venderam os direitos autorais da Ópera dos três vinténs ao estúdio que produziu o filme, Brecht e Weill caíram na rede do filme musical enlatado‖ (COSTA, 2012, pp. 138-139). Brecht aprendeu com sua ingenuidade ao assinar o contrato e vender o roteiro e passou a entender como funcionam as novas relações de produção que estavam se estabelecendo. Então, distancia-se da mídia enquanto relações de produção – ainda submetidas à dinâmica burguesa –, não enquanto forças produtivas – que apontava para a superação da arte burguesa. Ou seja, o dramaturgo tenta reestabelecer essas forças produtivas. O rádio, por exemplo, não estava (nem está) a serviço de novas relações de produção. As pessoas que detêm o poder econômico não usufruíam o meio como poderiam, forçando-o a manter relações que estão aquém do que ele podia (e ainda pode) fazer. Isso significa dizer que, com essa experiência, Brecht aponta para um debate ainda muito importante no campo da comunicação. Aqueles que afirmam que os meios técnicos de comunicação que se desenvolveram entre o fim do século XIX e o início do século XX são imediatamente incapazes de algo que não seja alienador perdem de vista justamente essa formulação brechtiana. É então por meio das peças de aprendizagem que, como afirma Koudela (1966, p.13): ―Brecht propõe a superação da separação entre atores e espectadores, através do Funktionswechsel (mudança de função) do teatro‖. Entretanto, a peça didática (Lehrstück), durante um longo período, foi esquecida ou talvez considerada como parte menos importante da obra do alemão. O consenso de especialistas era de que as peças didáticas pertenciam a uma fase de transição no pensamento do dramaturgo, à qual se seguiu, no final da década de 30, a fase madura do ―teatro épico/dialético‖. Essas peças, então, foram inicialmente desprezadas por conta de sua rigidez da ação dramática. De acordo com Oliveira (2013), alguns autores, sobretudo alemães, iniciaram pesquisas sobre tais peças e destacaram sua importância como proposta pedagógica inovadora. Dentre esses autores, destaca-se Reiner Steinweg, que em
  • 43. 42 1972 publicou ―A peça didática – a teoria de Brecht para uma educação político- estética‖. Aceitava-se, geralmente, o conceito de que as peças épicas faziam parte do período de transição marxista no pensamento de Brecht, mas Steinweg contrapõe essa tese. Ele afirma, segundo Koudela (2007, p.4), que a peça didática, e não a peça épica de espetáculo (episches Schaustück), conduz a um modelo de ensino e aprendizagem que aponta para um ―teatro do futuro‖. De acordo com Steinweg (apud Koudela, 2007, p.5), há uma ―regra básica‖ que diferencia a peça didática e a peça épica de espetáculo e indica que ―a determinação de atuar para si mesmo é o pressuposto para a realização da peça didática como ato artístico‖ (grifo do autor). Seguindo tal raciocínio, constata-se que a peça de aprendizagem serve muito mais aos atuantes que aos observadores. Diante da ―regra básica‖, inferimos que as apresentações públicas das peças de aprendizagem não são, portanto, o objetivo único nem o mais importante, pelo contrário, elas não necessitam de público. Se ele existir, diante de uma atuação natural, livre e própria ao atuante – o princípio da improvisação –, como é proposto, pode haver troca de diálogo entre os coros e os espectadores. Outro pressuposto para o efeito pedagógico da peça didática é a imitação, a qual aparece na primeira fase da infância e contribui para a formação do caráter de uma pessoa. A imitação pressupõe sempre uma modificação do modelo, não podendo se restringir ao modelo fornecido pelo texto. Há de se experimentar alternativas de atuação, com invenção própria e atual. Para tanto, a realidade de cada participante e o vínculo que eles possuem com sua própria experiência fazem toda a diferença no processo. Ele vai imitar outro ser humano, mas não é como se fosse esse homem, não com o intuito de esquecer-se de si mesmo. Sua individualidade é preservada como a de uma pessoa qualquer, diferente das outras, com seus traços próprios, semelhante assim a todas as outras que observa. (BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.111). Outro fator intrínseco para a peça didática é o estudo do efeito de estranhamento, o qual liberta o ator-aluno ―da obrigação de provocar hipnose‖ (KOUDELA, 2007, p.19). Mas, Brecht (apud Koudela, 2007, p.105, grifo da autora) explica:
  • 44. 43 No entanto, ele não necessita, nos seus esforços por retratar determinadas pessoas e mostrar seu comportamento, renunciar totalmente ao meio da identificação. Utiliza esse meio até o ponto que qualquer pessoa sem talento ou ambição de interpretação o utilizaria para representar outra pessoa, isto é, para mostrar seu comportamento. Nota-se, portanto, que esse trabalho teatral não pede atores profissionais. Ao contrário, a premissa é poder trabalhar com amadores, sejam eles crianças, jovens ou trabalhadores das fábricas, dispostos a representar uma metáfora da realidade social, um recorte. Assim, o teatro torna-se capaz, culturalmente, de lidar com problemas que repousam sobre fatos concretos, pois elaboram experiências individuais e históricas que determinam o comportamento devido ao valor de aprendizagem (KOUDELA, 2007, p.98). Aos atuantes, não se faz necessária a reprodução de ações e posturas apenas consideradas positivas na sociedade. Brecht afirma que posturas e ações associais podem gerar efeito educacional, já que geram observação, reflexão, julgamento e discussão sobre a conduta (KOUDELA, 2007, p.68). O grau de abstração embutido nessas peças existe para que se entenda que elas não estão acabadas, ou seja, para que novas possibilidades possam ser realizadas. Na verdade, precisam que os jogadores se sintam forçados a tomar uma decisão, sendo, então, empreendedores políticos. No programa da noite de estreia das peças de aprendizagem, Brecht afirmou que o objetivo delas era evidenciar o comportamento político incorreto, dessa forma se aprenderia o comportamento correto (GATTI, 2015, p.70). ―Mostrando‖ o personagem ao grupo, pode-se supor que há o aprendizado. Nesse aspecto, há sempre um indivíduo que se distancia do coletivo, a partir de experiências negativas, mas úteis para o processo de aprendizagem. Com esse ―jogo‖ teatral, o coletivo entende que a ―revolução‖ precisa de todos, mesmo daquele que se distancia temporariamente, portanto é um processo de investigação em conjunto (GATTI, 2015, p.76). Sobre a experiência coletiva, Gatti (2015, p.74) afirma que o ator não vivencia o personagem, mas o compartilha com os demais presentes em cena. Para isso, deve estudá-lo, compreendê-lo por si mesmo e pelo efeito que produz, depois deve apresentá-lo aos demais, de modo que sua postura perante o personagem seja discutida e compartilhada numa experiência coletiva.
  • 45. 44 Tais peças possuem a preocupação genuína de Brecht enquanto educador. No texto ―Teoria da Pedagogia‖, escrito em 1930, o dramaturgo esclarece que reúne teatro, política e aprendizagem: Os filósofos burgueses estabelecem uma grande diferença entre o atuante e o observador. Essa diferença não é feita pelo pensador. Se mantivermos essa diferença, então deixaremos a política para o atuante e a filosofia para o observador, quando na realidade os políticos deveriam ser filósofos e os filósofos, políticos. Entre a verdadeira filosofia e a verdadeira política não existe diferença. A partir desse reconhecimento, aparece a proposta do pensador para educar os jovens através do jogo teatral, isto é, fazer com que sejam ao mesmo tempo atuantes e espectadores, como é sugerido nas prescrições da pedagogia. (BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.15, grifo do autor). Há, dessa forma, uma quebra de padrões. No teatro, em que a comunicação era apenas unilateral, Brecht procura empreender uma comunicação bilateral, em que o fazer artístico é relevante também em seu próprio ato, no ensinamento embutido no processo da construção da peça. Temos, portanto, uma ressignificação do ―meio‖, ou seja, o produto é menos importante que o aprendizado. De acordo com Oliveira (2013), ―Brecht procura um público novo, para além dos muros da instituição teatral tradicional. Participantes em escolas e cantores em corais passam a fazer parte desse universo novo de espectadores‖. A dialética é caracterizada como método de comportamento e pensamento. Sendo assim, a peça didática é concebida como modelo para uma relação dialética entre teoria e prática, como demonstra Gatti (2015, pp.35-36), que cita uma fala do próprio Brecht: Pouco antes de morrer, em uma entrevista de 1956, ao responder quem era o ―público‖ de sua peça, ele reafirma que a peça havia sido escrita ―para o jogo em grupo. Ela foi escrita não para um público de leitores, nem para o público de espectadores, mas exclusivamente para alguns jovens que queriam se dar ao trabalho de estudá-la. Cada um deles deve passar de um papel ao outro e assumir, sucessivamente, o lugar do acusado, dos acusadores, das testemunhas, dos juízes. Nestas condições, cada um deles irá submeter-se aos exercícios da discussão e terminará por adquirir a noção – a noção prática – do que é a dialética‖. Podemos complementar a tese dialética com essa alternância de papéis realizada durante os experimentos. Essa ação objetivava realçar o caráter
  • 46. 45 teatral do processo, combatendo a empatia ilusionista. Com a apresentação do personagem de um ponto de vista distanciado, todos podem avaliar o comportamento apresentado. Para Gatti (2015, p.54), certamente aparecerão dificuldades na formação coletiva, porém elas também serão discutidas, apenas assim há um trabalho revolucionário. Cabia à peça de aprendizagem, então, conferir caráter cênico à prova de que se aprende melhor pelo experimento prático do que pela observação teórica. Além disso, novos elementos são incorporados à sua estética teatral, tais como: descontinuidade, intertextualidade, pluralidade, descontextualização, fragmentação e valorização do receptor. Em seu artigo ―Teatro de Diversão ou Teatro Pedagógico‖, escrito em 1936 e publicado somente em 1957, Brecht (1967, p.97) explicita: O teatro se transformou em assunto para os filósofos, filósofos, diga- se de passagem, que não pretendiam apenas explicar o mundo, mas, também, transformá-lo. Começamos também a filosofar; começamos também a ensinar. E onde foi parar a diversão? Brecht problematiza o teatro como local para se pensar e, em seguida, questiona onde está a diversão. Tal pergunta se dá pelo fato de, em um consenso geral, apenas o aprendizado é útil e somente a diversão é agradável. O dramaturgo busca, então, que seu teatro épico não seja extremamente desagradável e cansativo. Para tanto, intenta diferenciar o aprendizado que se pode ter com o teatro e aquele oriundo da escola: Sem dúvida, o aprendizado que conhecemos na escola, na preparação para as profissões, etc., é algo que exige esforço. Mas é preciso considerar igualmente em que circunstância ele decorre e a que objetivos serve. Trata-se, propriamente, de uma compra. O conhecimento é simplesmente uma mercadoria. Ela é adquirida para ser revendida. (BRECHT, 1967, p. 98). Paralelamente a essa análise crítica da educação como produto vendável, Brecht reflete sobre a limitação do aprender, que se dá por fatores que estão ―fora do alcance da vontade daquele que aprende‖. A partir disso, ele afirma que existe o desemprego, instância que nenhum conhecimento pode defender. Além do mais, existe a divisão do trabalho, que ―torna inútil e impossível o conhecimento
  • 47. 46 universal‖. Seguindo tal raciocínio, ele afirma que não há conhecimento que gere poder, entretanto há conhecimento que só é proporcionado por meio do poder. Situando-se no campo do aprendizado, o dramaturgo, no mesmo artigo, situa os melhores alunos, aqueles que estão descontentes com suas respectivas condições de vida e têm grande interesse em aprender e se orientar. E completa: ―O desejo de aprender depende, assim, de várias coisas e, portanto, existe a possibilidade de aprender com gosto, alegria e luta‖ (BRECHT, 1967, p.99). O teatro possui, então, condições de ensinar e ser, ao mesmo tempo, pedagógico e divertido. De acordo com Oliveira (2013), ―tanto o seu teatro épico quanto o didático são narrativos e descritivos, onde por meio de um processo dialético Brecht apresentava duas funções: fazer as pessoas se divertirem e pensarem‖. A função das peças didáticas, ainda segundo Oliveira (2013), era fazer com que seus participantes fossem ativos e reflexivos ao mesmo tempo. O que subjaz a essas tentativas era a prática coletiva da arte, que teria também uma função instrutiva no tocante a certas ideias morais e políticas relativas à época. Em meio à proletarização dos produtores, ou seja, ao processo em que os produtores (autores, atores, técnicos) são expropriados dos seus meios de produção e transformados em proletários, os trabalhadores do teatro e do cinema, caso queiram fazer arte e não mercadoria, encontrariam na ―peça didática um método decisivo para alcançar seu objetivo. Mas isto depende de compreenderem que a peça didática põe na ordem do dia a transferência dos meios de produção aos verdadeiros produtores‖ (COSTA, 2012, p.143). Sendo assim, com a peça didática, os meios de produção estão sob o controle dos envolvidos, não apenas presos ―nas garras‖ do capital. A libertação da força produtiva depende da apropriação dos meios de produção pelos verdadeiros produtores, representados aqui pelos artistas e técnicos. Sob a consideração de Koudela (2007, p.4), o ato artístico pensado e realizado coletivamente acontece em definitivo por conta da imitação e crítica de modelos de atitudes, comportamentos e discursos. ―Ensinar/aprender tem por objetivo gerar atitude crítica e comportamento político, [...] fornecendo um método para a intervenção do pensamento e da ação no plano social‖. Com tais peças, intenta-se não apelar para o sentimento do espectador, o que lhe permitiria reagir apenas esteticamente, mas sim para a sua
  • 48. 47 racionalidade. Os atores devem chamar a atenção de seus espectadores causando o estranhamento, e o espectador, por sua vez, precisa ―tomar partido‖ em vez de se identificar. Brecht passou por uma fase de experimentos e tentativas, a fim de traduzir os conhecimentos da dialética materialista em formas dramáticas. O autor intencionava promover a troca da função do teatro, para que ele deixasse de ser simplesmente uma mercadoria estética vendida aos espectadores e pudesse ser um espaço/momento de construção participativa da consciência político-estética. Tanto o público quanto os atuantes passaram a ocupar a posição de observadores, como defende Gatti (2015, p.37). Ambas as posições se transformam reciprocamente, e o espetáculo adquire nova função, que é a organização do público-atuante. Essa estratégia Brecht nomeou de Umfunktionierung, termo que poderia ser traduzido por ―inverter o funcionamento‖, conferir uma nova função‖ ou simplesmente ―refuncionalizar‖ as instituições artísticas. O objetivo de Brecht com as peças de aprendizagem era interferir na organização social do trabalho (infraestrutura). Ela é concebida para uma ordem socialista do futuro, portanto carrega um realismo político e busca dissolver a organização fundamentada na diferença de classes, democratizando o teatro e o fazer artístico. E foi no rádio que Brecht encontrou espaço para realizar seus experimentos pedagógicos teatrais. É como afirma (Brecht, 2007): ―Ao encontro desse empenho do rádio em configurar artisticamente aquilo que se ensina, viriam então os esforços da arte moderna, os quais almejam emprestar um caráter educativo à arte‖. Além disso, Brecht (2007) complementa com relevantes apontamentos sobre o uso de novas tecnologias por um teatro que se pretende didático e dialético: Se a instituição teatral se dedicasse ao teatro épico, à representação pedagogicamente documentária, então o rádio poderia desenvolver uma forma absolutamente nova de propaganda para o teatro, isto é, poderia desenvolver informação real – uma informação imprescindível. Suas causas para adentrar esse meio de comunicação serão mais bem explicitadas no capítulo cinco, o qual propõe um breve relato sobre a História do rádio na Alemanha e a Teoria do rádio, do próprio Brecht. Como afirma Koudela
  • 49. 48 (2007, p.172), ―Em se tratando de um teatro que recorre diretamente a procedimentos didático-pedagógicos, desempenha papel importante em um processo de democratização da arte‖. Celso Frederico (2007) evidencia melhor a proposta e a estrutura de tais peças, usando como exemplo a peça-objeto desta pesquisa: O encontro da intenção política com o espírito vanguardista manifesta-se inicialmente nas chamadas peças didáticas. Essas peças não foram escritas para serem encenadas; consistiam basicamente em exercícios para os atores. O vôo sobre o oceano – peça didática radiofônica para rapazes e moças é, talvez, a mais interessante delas. [...] A peça apresenta uma utilização inédita do rádio: foi feita para o rádio e o rádio é "personagem" da peça, pois é ele que narra a epopéia do herói. (grifo do autor). Na peça O vôo sobre o oceano, em uma estrutura radiofônica, ele problematiza a questão do domínio da natureza. Para tanto, utiliza as forças da natureza como figuras que dialogam com o aviador. A tentativa desses fatores, como o nevoeiro, a nevasca e o sono é fazer que o homem – que nunca é representado por um indivíduo, mas pelo coletivo que produziu a máquina –, não consiga atingir o seu destino final. Entretanto, ele se mantém firme diante dessas forças pré- estabelecidas. No fim, segundo Mello (2014), a peça chega ao seu objetivo didático, que é mostrar como nada pode ser considerado natural, pois a ideologia da classe dominante só serve para a manutenção do seu próprio poder. Além disso, as novas tecnologias devem estar a serviço da revolução, não como meios de manutenção de um estado pré-determinado. O autor enfatiza, ao final, que ainda há muito o que ser alcançado. Mais detalhes serão mais bem aprofundados no capítulo seis, o qual tem análise e apontamentos sobre a peça. Retomando, portanto, o sentido dessa explanação sobre o Teatro Moderno e o Teatro épico, vale ressaltar que o objetivo deste trabalho é evidenciar a compreensão de Brecht de que o teatro é uma força produtiva e o desenvolvimento dessa força produtiva, necessariamente, levava-o a lidar com o desenvolvimento dos meios de comunicação, como o rádio e o cinema. As exposições já explanadas aqui sobre o ator, o Efeito de Distanciamento, a questão da forma e o conteúdo, entre outros conceitos, fazem
  • 50. 49 parte de um aspecto comunicativo, não só teatral. Por esse motivo, é que abordaremos, então, os pensamentos e as considerações de Walter Benjamin.
  • 51. 50 4 SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN Em meio a uma Europa imersa em uma profunda crise política e intelectual, acontece o encontro entre Walter Benjamin e Bertolt Brecht, figuras importantes e que fazem parte de um encontro relevante. Os desdobramentos dessa relação são de suma importância na produção crítica e literária realizada, principalmente, ao longo da década de 1930. Desenvolver-se-á neste capítulo que, segundo Benjamin, há uma defasagem histórica entre o que acontece no desenvolvimento do campo da indústria, da produção propriamente dita e o resultado disso na cultura. O cinema, o rádio, a fonografia, por exemplo, são resultados do desenvolvimento da indústria, trata-se de mudanças ocorridas nas condições de produção, que só depois de aproximadamente meio século começaram a refletir no campo da cultura. Walter Benedix Schönflies Benjamin, mais conhecido pelo primeiro e último nomes, é de origem alemã. Nasceu em meio a uma família judaica, em 1892 e viveu 48 anos. Em sua carreira profissional, foi ensaísta, crítico literário, tradutor, filósofo e sociólogo. Sempre associado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi bastante inspirado por autores marxistas, como Bertolt Brecht, e pelo místico judaico Gershom Scholem. O seu trabalho, combinando ideias aparentemente antagônicas do idealismo alemão, do materialismo dialético e do misticismo judaico, constitui um contributo original para a teoria estética. Benjamin desenvolveu seu trabalho baseado na concepção kantiana de crítica como uma forma de reflexão, tanto estética como política. E vale ressaltar que esse ato de crítica incluía todo o sistema cultural e também sua base econômica. Dentre suas criações intelectuais, Benjamin articulou a teoria da história, da tradução, violência, tendências da recepção da obra de arte, dentre outras questões. Entre as suas obras mais conhecidas, contam-se ―A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica‖ (1936), ―Teses Sobre o Conceito de História‖ (1940), ―Passagens‖, uma obra historiográfica, e a monumental e inacabada ―Paris, Capital do século XIX‖, enquanto ―A Tarefa do Tradutor‖ constitui referência incontornável dos estudos literários.
  • 52. 51 De 1934 a 1935, refugiou-se na Itália. Foi quando cresciam as tensões entre Benjamin e o Instituto para Pesquisas Sociais, associado ao que ficou conhecida como Escola de Frankfurt, da qual Benjamin foi mais um inspirador que um simples membro. A sua morte, em 1940, é envolta em um mistério, pois, em Portbou, temendo ser entregue à Gestapo, teria cometido o suicídio ou tido uma overdose de morfina. Neste capítulo, usar-se-á, principalmente, seus artigos intitulados ―Que é o teatro épico? - Um estudo sobre Brecht‖, ―O autor como produtor – Conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo em Paris, 27 de abril de 1934‖ e a ―Obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica‖, textos considerados importantes no que tange à comunicação social e, consequentemente, aos meios de comunicação, tal qual o rádio, bastante importante neste trabalho. Uma curiosidade que aparece no livro ―Benjamin e Brecht – História de uma Amizade‖, de Erdmut Wizisla, é o projeto de revista de ambos, planejada entre 1930 e 1931, cujo título seria ―Krise und Kritik‖, junto à editora Rowohlt. Além dos dois, também participaram do projeto Bernard von Brentano e Herbert Hering, e os colaboradores Ernst Bloch, Siegfried Kracauer, Alfred Kurella e Georg Lukács. A ideia da revista era um órgão [...] no qual a inteligência burguesa prestasse conta das exigências e dos conhecimentos que, nas circunstâncias atuais, permitiam unicamente a ela uma produção com caráter intervencionista, com consequências, em oposição às produções habituais arbitrárias e sem consequências.3 Quando o projeto estava prestes a sair, ocorrem as eleições para o Reichstag alemão. Os votos para os nazistas aumentaram muito, o que sinalizou ―algo maior que um mero pressentimento do domínio nacional-socialista‖ (WIZISLA, 2013, p.116). Nenhum número da revista foi publicado, segundo Wizisla (2013, p.115), mas o projeto merece atenção por ser o processo de política artística exemplar dos anos anteriores à ditadura nazista. Havia, nos testemunhos desse 3 W. Benjamin, “Memorandum” para a revista Krisis und Kritik. In: BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften. Editado por Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser com a colaboração de Theodor W. Adorno e Gershom Scholem. Frankfurt, Suhrkamp, 1972-1999.
  • 53. 52 plano não realizado, convicções estéticas e políticas de artistas e especialistas de esquerda da época. No que tange ao olhar crítico de Benjamin sobre Brecht e a comunicação, iniciamos com as considerações sobre o teatro épico. Segundo Gatti (2015, p.22), Benjamin fazia questão de ressaltar o quanto as modificações realizadas por Brecht na dramaturgia aristotélica se inseriam no aparelho teatral com um conjunto de fatores que incluía, entre outros, o rompimento com a unidade da ação por técnicas de montagem originárias do cinema e do rádio, a colaboração entre música e drama, bem como uma nova concepção da arte de atuação, que se opõe ao registro naturalista. Trocando em miúdos e adaptando-os à história do teatro, nos países que conheceram as várias fases de desenvolvimento do teatro moderno, o capitalismo tardio produziu uma espécie de ―estado de armistício‖ com suas formas intermediárias – excluído naturalmente o teatro épico, a forma mais avançada – por aquelas razões que já esboçamos, a principal sendo a inexistência de um movimento operário em condições de patrocinar iniciativas que dependessem do teatro como meio de produção. (COSTA, 1998, p.33). Considerando as afirmações de Iná Camargo Costa (1998, p.63), os ―homens de teatro‖ da dramaturgia alemã se incomodaram muito com a vocação dita épica, que transgredia o princípio dramático. Ela explica dizendo que os pobres estão na esfera do épico, por isso que ―trabalhadores, multidão, greve, guerra, revolução, tudo que o que não puder ser apresentado de maneira dialogada é épico‖ e, portanto, deve ser evitado nos dramas (ou no teatro, como diziam). Se os assuntos que interessavam eram considerados como pertencentes ao âmbito do épico e o teatro que faziam não tinha mais nada a ver com o drama, tratava-se de dar esse mesmo nome à forma nova. Foi assim que aos poucos ―teatro épico‖ passou a designar aquelas peças que haviam rompido primeiro com os assuntos e depois com as formas tradicionais do drama (COSTA, 1998, p.69). Entende-se, pelo que aqui já foi esmiuçado, que por meio da empatia gerada dramaticamente, o espectador se projeta nos acontecimentos, doando seus sentimentos e emoções à exploração pelo espetáculo, o que também pode ser transposto ao que ocorre com os meios de comunicação.
  • 54. 53 É um engano, ensina Brecht, supor que um teatro que apela ao espírito crítico de seu público é manipulador. Ao contrário, é o viciado nas emoções baratas estimuladas pelo drama e seus subprodutos da indústria cultural que oferece integralmente seu psiquismo à manipulação. (COSTA, 1998, p.73). O drama se restringia à esfera privada, então a condição essencial do épico é que os acontecimentos sejam de interesse público. Sendo assim, as transformações provocadas pelo teatro épico só poderiam ser devidamente consideradas, insistia Benjamin, se ―tomarmos como ponto de referência o palco, e não o drama. [...] Brecht liquida a ilusão de que o teatro se funda na literatura; isso não é verdade nem para o teatro comercial nem para o brechtiano‖ (BENJAMIN, 2012, pp.83-84). Ainda de acordo com Benjamin (apud Gatti, 2015, p.23), não é só a relação entre texto e encenação que sai favorecida, mas também a formulação do efeito pedagógico e não ilusionista da peça. O processo de interrupção da ação e citação de gestos faz com que atores e espectadores se ―assustem‖ diante do que veem e sejam levados a tomar uma posição perante as cenas e suas respectivas atuações. Benjamin (2012, p.83) explica em seu artigo ―Que é o teatro épico?‖ que a separação que havia entre o público e os atores é outra. E ainda afirma que o ―abismo‖ criado com o drama não faz parte do épico: ―O palco ainda ocupa uma posição elevada, mas não é mais uma elevação a partir de profundidades insondáveis: ele transformou-se em tribuna. Temos que ajustar-nos a essa tribuna‖. Segundo o próprio Benjamin (2012, pp.92-93), ―o ‗autocontrole‘ do palco supõe atores que possuam um conceito do público essencialmente distinto daquele que o domador tem das feras em suas gaiolas; atores cujos efeitos não sejam fins, e sim meios‖. O fato de que ele é modificável por seu ambiente e de que pode modificar esse ambiente provoca, no público, um sentimento de prazer. Tal sentimento não é despertado quando o homem é visto como ―algo de mecânico, completamente aplicável, incapaz de resistência, o que hoje acontece devido a certas condições sociais‖ (BENJAMIN, 2012, p.95). Trata-se, então, de um teatro político, que dá lugar às massas proletárias onde antes só existia espaço para a burguesia. O público deixa de ser
  • 55. 54 ―uma massa de cobaias hipnotizadas‖ para se tornar uma ―assembleia de pessoas interessadas‖ (BENJAMIN, 2012, p.84), cujas exigências precisam ser satisfeitas. É sabido que as relações sociais são condicionadas pelas relações de produção. Benjamin era convicto em afirmar que os textos do teatro épico não foram escritos com a intenção de abastecer o teatro burguês, mas com a intenção de transformá-lo. E quando a crítica materialista aborda uma obra, costuma-se questionar de que maneira ela se vinculava às relações sociais de produção da época. As respostas às perguntas que artistas e intelectuais procuram por seu papel e o da arte na sociedade capitalista só serão encontradas, segundo Costa (2012, p.152), na luta por um lugar na produção, o que equivale a dizer na luta pela libertação das forças produtivas. O papel de produzir revoluciona todo comportamento e as ideias. Em vez de perguntar: como se vincula uma obra com as relações de produção da época? É compatível com elas, é reacionária ou visa sua transformação, é revolucionária? – em vez dessa pergunta, ou pelo menos antes dela, gostaria de sugerir-vos outra. Antes, pois, de perguntar qual a posição de uma obra literária em relação às relações de produção da época, gostaria de perguntar: qual é a sua posição dentro dessas relações? Essa pergunta visa imediatamente à função exercida pela obra no interior das relações de produção literárias de uma época. Em outras palavras, ela visa de modo imediato à técnica literária das obras. (BENJAMIN, 2012, p.132, grifo do autor). Esse conceito de técnica representa o ponto inicial dialético para uma superação do contraste infecundo entre forma e conteúdo. O teatro épico propõe que se faça o que deveria ocorrer com os meios de comunicação, dos quais se utiliza o Jornalismo. Tanto os atores quanto a plateia têm de se posicionar perante a realidade que presenciam. É de suma importância que não seja alienado quem fornece a informação, nem mesmo quem a recebe. Os textos das peças épicas têm uma função principal, que não se configura em ilustrar a ação, e sim interrompê-la. Na prática, isso significa que tanto a ação de um parceiro será interrompida quanto a sua própria, o que caracteriza o épico também como teatro gestual: ―A mais importante realização do ator é ‗tornar os gestos citáveis‘; ele precisa espaçar os gestos, como o tipógrafo espaça as palavras‖ (BENJAMIN, 2012, p.93).
  • 56. 55 Benjamin (2012, p.88) afirma que ―[...] muito mais profunda que sua ruptura com a concepção do teatro como diversão noturna, é a brecha que ele cria no teatro como espetáculo social‖, logo, a participação deixa de ser passiva. Os gestos e ações no decorrer das peças podem mudar na hora mesmo em que estão acontecendo, isso depende dos atores e da plateia. Perceba a consideração de Benjamin (2012, p.93): A peça épica é uma construção que precisa ser considerada racionalmente, e na qual as coisas precisam ser reconhecidas, e, por isso, sua representação deve ir ao encontro dessa consideração. A tarefa maior de uma direção épica é exprimir a relação existente entre a ação representada e a ação que se dá no ato mesmo de representar. Se todo o programa pedagógico do marxismo é determinado pela dialética entre o ato de ensinar e o de aprender, algo de análogo transparece, no teatro épico, no confronto constante entre a ação teatral, mostrada, e o comportamento teatral, que mostra essa ação. Interessado na crítica ao sistema vigente, o capitalismo, Benjamin confirma que o personagem brechtiano não oferece um modelo de comportamento, seja ele positivo ou negativo, mas ―instrumentos de análise e de correção de uma postura social‖ (GATTI, 2015, p.72), o que se dá por meio da reflexão e racionalização e visa à transformação e ao entendimento sociais. Wizisla (2013, p.212) cita Benjamin, que assevera: ―Não se deve convencer o leitor/ deve-se instrui-lo/ o leitor não deve ser concebido como público, mas como classe/ há que se divertir o leitor/ não se pretende mudar sua consciência, mas seu comportamento‖. Além disso, a dialética visada pelo teatro épico não se limita a uma sequência cênica no tempo; ela já se manifesta nos elementos gestuais, que estão na base de todas as sequências temporais e que só podem ser chamados elementos no sentido figurado, pois não são mais simples que essa sequência. O que se descobre na condição representada no palco, com a rapidez do relâmpago, como impressão de gestos, ações e palavras humanas, é um comportamento dialético imanente. Como Benjamin afirmara em 1930, em ―Aus dem Brecht-Kommentar”, GS II-2, PP. 506-507, o principal do experimento de Brecht é a sua ―nova postura‖, ―Este o que tem um nome em Brecht: postura. Ela é nova, e o mais novo nela é que
  • 57. 56 ela pode ser aprendida‖. E Wizisla (2013, pp.215-216) completa: ―todos os conhecimentos aos quais chega o teatro épico possuem um efeito educativo, embora, ao mesmo tempo, o efeito educativo do teatro épico se transforme, imediatamente, em conhecimento‖. Tal progresso técnico é o ponto de partida para o progresso político. Ao avaliar a função revolucionária da arte, almeja-se superar oposições tradicionais como forma e conteúdo ou, nesse caso específico, entre inovação formal e tendência política correta. Essa tendência não ilusionista exige outra função social para a arte, que não poderia ser alcançada sem inovações técnicas na composição da obra de arte. Pois, segundo as considerações de Walter Benjamin em ―O Autor como Produtor‖, [...] esta nova postura do artista não se limita a fornecer produtos, mas procura, sobretudo, desenvolver novos meios de produção para si e para outros artistas. Seria o progresso técnico da obra de arte o responsável por oferecer condições para a refuncionalização das formas artísticas e, deste modo, dos meios de produção espirituais. (GATTI, 2015, pp.38-39). A montagem desfaz o caráter orgânico do espetáculo e a interrupção da ação dramática é o princípio organizador do teatro considerado épico, nesse ponto análogo às peças de aprendizagem. O princípio da interrupção adota um procedimento que se tornou familiar a nós com o desenvolvimento do rádio, do cinema, da imprensa e da fotografia, isto é, ―o material montado interrompe o contexto no qual é montado‖ (BENJAMIN, 2012, p.131). A interrupção das sequências faz que se combata a ilusão criada pelo público, exercendo uma função organizadora. ―Ela mobiliza os acontecimentos e com isso obriga o ouvinte a tomar uma posição quanto à ação, e o ator, a tomar uma posição quanto ao seu papel‖ (BENJAMIN, 2012, p.131). O teatro de Brecht, argumenta Benjamin, transforma a função do teatro, que passa do entretenimento ao conhecimento, com o qual se supera, também, a peça política. Esta transformação deflagra, por fim, a ―relação funcional entre cenário e público, texto e representação, diretor e ator‖ (BENJAMIN apud WIZISLA, 2013, p. 218). E aqui cabe prosseguir com a opinião de Benjamin (2012, p. 93): ―A tese de que o palco é uma instância moral justifica-se somente no caso de um teatro
  • 58. 57 que não se limita a transmitir conhecimentos, mas os produz‖, exatamente o que se propõe com as Lehrstücke. É o que constata, nesse quesito, Benjamin (apud Koudela, 2007, p.36): ―A peça didática sobressai como um caso específico, através da pobreza dos aparatos, simplificando e aproximando a relação do público com os atores e dos atores com o público. Cada espectador é ao mesmo tempo observador e atuante‖. De acordo com Wizisla (2013, p.205), no que concerne à obra brechtiana sob as interpretações de Benjamin, cabe ressaltar que este preocupava- se em esclarecer e explicar o modo como a linguagem era pertinente e adequada à expressão artística, bem como à representação da realidade. Nota-se, portanto, que havia um esforço por parte do dramaturgo em dar uma forma artística válida à consciência da época, que estava passando pelo pós-guerra e não poderia ser representada de forma banal. ―Embora não exponha o que caracteriza Brecht, pode-se deduzir que sua obra significava para Benjamin uma tentativa de sintetizar o alto nível e a boa técnica‖ (WIZISLA, 2013, p.208). Para que se atinja esse nível, de acordo com o próprio Benjamin (2012, p.137) em seu artigo ―O Autor como Produtor‖, ―Brecht criou o conceito de ―refuncionalização‖ para caracterizar a transformação de formas e instrumentos de produção por uma inteligência progressista‖ e, portanto, mostrou-se interessado na liberação dos meios de produção, em função da luta de classes. O dramaturgo confrontou o intelectual com a exigência fundamental: ―não abastecer o aparelho de produção, sem modificá-lo, na medida do possível, num sentido socialista‖. O que se propõe são inovações técnicas. Aliando a técnica aos meios de comunicação, temos uma consideração importante de Benjamin (2012, pp.133-134), colocando a imprensa como exemplo e suscitando problematizações, tais quais a efemeridade das matérias e a colaboração, hoje ainda mais evidente, dos próprios leitores: Ocorre, assim uma disjunção desordenada e uma perda de relação entre a ciência e as belas letras, entre a crítica e a produção, entre a cultura e a política. O jornal é o cenário dessa confusão literária. Seu conteúdo é a matéria, alheia a qualquer forma de organização que não seja a que lhe é imposta pela impaciência do leitor. [...] O fato de que nada prende tanto o leitor a seu jornal como essa impaciência, que exige uma alimentação diária, foi há muito utilizado pelas redações, que abrem continuamente novas seções, para satisfazer suas perguntas, opiniões e protestos. Com a assimilação
  • 59. 58 indiscriminada dos fatos cresce também a assimilação indiscriminada de leitores, que se veem instantaneamente elevados à categoria de colaboradores. Mas oculta-se aí um elemento dialético: o declínio da dimensão literária na imprensa burguesa revela-se a fórmula e sua renovação na imprensa soviética. Pois na medida em que essa dimensão ganha em extensão o que perde em profundidade, a distinção entre o autor e o público, que a imprensa burguesa preserva de modo convencional, começa a desaparecer na imprensa soviética. Nela, o leitor está sempre pronto a escrever, descrever ou mesmo prescrever. [...] A competência literária não se funda mais numa formação especializada, e sim numa formação politécnica, e com isso transforma-se em direito de todos. Em suma, é a literarização das condições de vida que resolve as antinomias, de outra forma insuperáveis, e é no cenário em que se dá a humilhação mais extrema da palavra – o jornal – que se prepara a sua salvação. Com isso, Benjamin intentou demonstrar a tese de que o autor como produtor precisa recorrer à imprensa, pois nela se percebe o processo de fusão, ultrapassando as distinções convencionais entre os gêneros, ensaístas, escritores, investigadores e divulgadores. Submete, porém, a distinção entre autor e leitor a uma revisão. A saber, o autor como produtor deve manter a imprensa como instância decisiva, entretanto é preciso lembrar que ela ainda pertence ao capital. A grande ampliação da imprensa coloca à disposição dos leitores uma quantidade cada vez maior de órgãos políticos, religiosos, científicos, profissionais e regionais. Assim, um número de leitores começa a escrever, a princípio, esporadicamente. Hoje em dia, vemos as pessoas se manifestando em toda parte, como nas redes sociais. Elas publicam episódios profissionais e pessoais, reclamações, reportagens, avisos, elaboram informação. Sobre isso, Benjamin (2012, p.199) ressalta: ―Com isso a diferença essencial entre autor e público está a ponto de desaparecer. Ela se transforma numa diferença funcional e contingente. A cada instante, o leitor está pronto a converter-se num escritor‖. Na atitude de escritor, cabe trair a sua classe de origem, o que consiste em uma conduta ―que o transforma de fornecedor do aparelho de produção intelectual em engenheiro que vê sua tarefa na adaptação desse aparelho aos fins da revolução proletária‖ (BENJAMIN, 2012, p.146). E complementa: O caráter modelar da produção é, portanto, decisivo: em primeiro lugar, ela deve poder orientar outros produtores em sua produção e, em segundo lugar, colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito. E esse aparelho é tanto melhor quanto mais conduz
  • 60. 59 consumidores à esfera da produção, ou seja, quanto maior for sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou espectadores. Já possuímos um modelo desse gênero, do qual só posso falar aqui rapidamente. É o teatro épico de Brecht. (BENJAMIN, 2012, pp. 141-142). Nesse trecho, Benjamin nos conduz à reflexão sobre as ressignificações dos lugares ocupados pelas classes sociais. É preciso possuir o aparelho, seja ele da comunicação ou não, ao invés de apenas achar que o possui e ser controlado por ele. Se não possuído, torna-se um instrumento contra os produtores, não um instrumento a serviço deles. E Costa (2001, p.143) constata: ―não existem mais ciência nem arte livres da influência da moderna indústria: ciência e arte são mercadorias como um todo ou não existem‖ (grifo da autora). Benjamin, em uma nota de 16 de agosto de 1931 em seu diário, sobre a dialética das teses ―a arte para o povo‖ versus ―a arte para os especialistas‖, analisa uma tendência da literatura segundo a qual ―a separação entre autor e público [...] começa a romper-se de um modo decente‖ (WIZISLA, 2013, p.221). Seguindo o raciocínio de Benjamin (2012, p.142), o teatro que tenta chamar a atenção, com inúmeros figurantes e efeitos refinados e catárticos, segue numa concorrência com o rádio, o cinema e a televisão, com fins a alienar e ―segurar‖ os espectadores, transformando-se em instrumento contra o produtor. O teatro épico, por sua vez, [...] em vez de competir com esses novos instrumentos de difusão, procura aplicá-los e aprender com eles, em suma, [...] busca confrontar-se com eles. O teatro épico transformou esse confronto em seu objeto. Ele é, comparado com o nível de desenvolvimento hoje alcançado pelo cinema e pelo rádio, o teatro adequado ao nosso tempo. Perpassando o mérito dos meios comunicacionais em detrimento ao pensamento crítico e político do teatro épico, temos a noção de aura implícita no texto ―A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica‖, de Walter Benjamin. Ele se interessou, por meio do pensamento filosófico, por discorrer sobre as forças produtivas e as relações de produção no que tange à cultura, afirmando que Marx escreveu na forma de prognóstico, prevendo o futuro do capitalismo. Benjamin tenta trazer as discussões de Marx para o campo do debate da cultura, por isso ele vai se colocar, necessariamente, na discussão sobre cinema
  • 61. 60 e rádio, por exemplo, meios de comunicação que podem ser usados pela cultura como aparato técnico. Seguindo esse conceito, as obras de arte têm um ―aqui e agora‖ que fica ausente em sua reprodução, ―o que se atrofia na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura‖ (BENJAMIN, 2012, p.182). O autor analisa as alterações provocadas pelas novas técnicas de produção artística na esfera da cultura e desenvolve, como elemento primordial, a tese de que a reprodutibilidade técnica provoca a superação da aura pela obra de arte. Os elementos principais da aura (autenticidade e unicidade) não foram superados, mas, ao contrário, como vemos atualmente, adaptaram-se às mudanças técnicas, o que ocorreu, com ênfase, em torno da industrialização, a qual marcou a produção cultural no século XX. Para entendermos melhor, é preciso lembrar a tese de Benjamin de que a forma de percepção do coletivo se transforma ao longo dos períodos históricos ao mesmo tempo que seu modo de existência. Tal percepção não se organiza apenas naturalmente, ela também é condicionada historicamente. Assim, intenta-se orientar ―a realidade em função das massas e as massas em função da realidade‖ (BENJAMIN, 2012, p.185). Mesmo o conteúdo ficando intacto, as reproduções desvalorizam o seu ―aqui e agora‖, sua autenticidade. Existem circunstâncias que explicam o declínio atual da aura: a tendência das massas em superar o caráter único dos objetos por conta de sua reprodutibilidade. É como Benjamin (2012, pp. 181-182, grifo do autor) explica: O aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela, por sua vez, se enraíza a concepção de uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo. A esfera da autenticidade, como um todo, escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas a técnica. Com o advento da fotografia, a arte foi levada à proximidade de uma crise. No momento em que o critério da autenticidade deixa de se aplicar à produção artística, toda a função social da arte se transforma. Em vez de fundar-se no ritual, ela passa a fundar-se na política. No cinema, por exemplo, a reprodutibilidade
  • 62. 61 técnica não é uma condição externa para sua difusão maciça, ela se torna obrigatória pelo alto custo de produção de um filme. Os conceitos de Benjamin são, como se vê, atuais e servem para a ―formulação de exigências revolucionárias na política artística‖ (BENJAMIN, 2012, p.180). A autenticidade de uma coisa é a ―quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição‖ (p.182), desde sua duração material até seu testemunho histórico. Quando a materialidade da obra se esquiva do homem por meio da reprodução, também o testemunho se perde. A multiplicação da reprodução substitui, como evidenciado, a existência única da obra, tornando-a uma existência massiva. O objeto reproduzido é atualizado na medida em que a técnica permite à recepção vir ao encontro do espectador. A arte contemporânea será tanto mais eficaz quanto mais se orientar em função da reprodutibilidade e, portanto, quanto menos colocar em seu centro a obra original. É óbvio, à luz dessas reflexões, por que a arte dramática é de todas a que enfrenta a crise mais manifesta. Pois nada contrasta mais radicalmente com a obra de arte sujeita ao processo de reprodução técnica, e por ele engendrada, a exemplo do cinema, que a obra teatral, caracterizada pela atuação sempre nova e originária do ator. (BENJAMIN, 2012, pp. 195-196, grifo do autor). Paralela à discussão sobre a obra de arte, estão as reflexões de Brecht sobre a teoria da mídia, as quais são muito atuais, ―sendo que as contradições para as quais apontam se tornam hoje cada vez mais acirradas‖ (KOUDELA, 2007, p.163). O sistema social vigente acentua crescentemente a transformação da arte em mercadoria e esse é um impasse que dificilmente será superado. Iná Camargo (2001, p.152) ainda vai além quando afirma que a ―teologia da arte‖, a doutrina da arte pura, do esteticismo, chamada assim por Benjamin, não dará as respostas sobre o papel da arte na sociedade capitalista. As respostas somente podem ser encontradas na luta por um lugar na produção, ―o que equivale a dizer na luta pela liberação das forças produtivas (porque artistas e intelectuais desempregados, como todas as demais categorias de trabalhadores, também configuram desperdício de forças produtivas)‖. Já de acordo com Koudela (2007, p.10), Brecht compreendia o trabalho artístico como produção, a qual proporciona significativas considerações político- estéticas, voltadas também à realização do teatro épico. A experiência com a plateia
  • 63. 62 presente no teatro da época, com a crítica teatral e principalmente com os aparatos, ou seja, a mídia, ―induziu Brecht a modificar a ênfase da sua teoria – de uma discussão de opiniões, ela passou a ser uma luta pelos meios de produção‖. A monopolização desses meios faz com que a obra de arte assuma o caráter de mercadoria, tendo seu valor determinado por sua utilidade e adequação. Ficam ameaçadas, assim, a liberdade do trabalho artístico e da própria criação. Segundo Koudela (2007, p.11), cabe ao produtor de arte, então, apropriar-se socialmente dos aparatos midiáticos. De acordo com Gatti (2015, p.44), Steinweg sustentava sua tese de que a organização da função no teatro épico superaria a divisão do trabalho entre quem assiste e quem atua. ―A ênfase na teoria da peça como um modelo de teatro [...] termina por distanciar o estudo de Steinweg das repercussões mais amplas pretendidas por Brecht, especialmente da refuncionalização de aparelhos como o rádio e o concerto‖. Em seu artigo de título ―A radiodifusão como meio de comunicação - Discurso sobre a função da radiodifusão‖, escrito em 19324 , Brecht discorre sobre o fato de sua arte não ter valor de mercado: Não poria em prática, se não tratasse dos propósitos de tratar das possibilidades de separar a ópera do drama e ambos do roteiro radiofônico, ou de resolver questões estéticas do mesmo teor, ainda que eu saiba que isso talvez seja o que vocês esperam de mim, posto que se propõem a vender arte mediante seu aparato. Mas, para estar à venda, a arte tem que ser hoje comprável. E eu preferiria não vender nada a vocês, mas apenas fazer-lhes a proposta de fazer da radiodifusão, em princípio, um aparato da comunicação da vida pública. Fazendo-se valer, ainda, das considerações sobre a democratização dos meios, instaurada pela arte de Brecht e pelas reflexões de Benjamin, podemos nos voltar à relação com o rádio. Wizisla (2013, p.221) esclarece: Com as conferências para o rádio, as peças radiofônicas, os modelos para escutar e as encenações experimentais, colocados na prática pelo veículo de comunicação em questão, Benjamin e Brecht procuravam aproveitar, de diferentes maneiras, o rádio como meio, não no sentido de ―abastecê-lo, mas de transformá-lo‖. 4 O artigo mencionado está, na íntegra, no texto intitulado “Teoria do rádio (1927-1932) – Bertolt Brecht/ Tradução de Regina Carvalho e Valci Zuculoto. Fonte: Site do RadioLivre. Disponível em: <http://www.radiolivre.org/node/3667 >. Acesso em: 17 dez. 2015.
  • 64. 63 Ainda de acordo com Wizisla, Brecht tinha como objetivo fazer do rádio – também do cinema e do teatro – ―uma coisa realmente democrática‖, convertendo-o ―em um aparelho de comunicação‖. Remetendo agora à Teoria do Rádio formulada por Brecht, sabe-se que sua intenção era fazer do rádio um instrumento de ação, não apenas de recepção e como uma via de mão única. Benjamin também via possibilidade de que o rádio cumprisse com ―as exigências de um público que está intimamente vinculado à técnica‖. A ideia básica, documentada por ambos, de anular a separação entre produção e recepção demonstra o profundo da discussão entre Benjamin e Brecht em relação ao tema da democratização da arte pelos meios de comunicação (WIZISLA, 2013, p. 221). A fim de dar continuidade à discussão sobre a comunicação e seus meios, o próximo capítulo traz uma pequena contextualização da história do rádio alemã, evidenciando os problemas da utilização imposta pelo Estado. Em seguida é apresentada a conceituação da Teoria do rádio, do próprio Brecht, que concretizará a ponte entre teatro e comunicação e elucidará melhor a análise sobre a peça-objeto desta pesquisa.
  • 65. 64 5 O ADVENTO DO RÁDIO NA ALEMANHA5 As informações e dados contidos neste capítulo servem de embasamento para contextualizar o rádio na Alemanha, chegando à época que perpassa a Teoria do rádio formulada pelo dramaturgo Bertolt Brecht. Os primórdios dessa forma de comunicação que, mais tarde, iria transformar-se no rádio, têm início no dia 24 de maio de 1844, quando Samuel F. B. Morse envia a primeira mensagem a distância, a frase ―Que Deus seja louvado‖, através do telégrafo. Vale a pena lembrar que o telégrafo, por meio de fios, juntamente com o Código Morse, é o primeiro sistema de comunicação de longa distância que o mundo conheceu. Em 1850, o alemão Daniel Ruhmkoff inventa um aparelho capaz de transformar baixa tensão de uma pilha em alta tensão: surge o primeiro emissor de ondas eletromagnéticas. Alguns anos depois, em 1853, o físico australiano Julius Wilheim Gintl prova ser possível enviar várias mensagens, simultaneamente, por uma única linha telegráfica. Entretanto, só em 1867 é que o alemão Siemens cria o dínamo. Daí para o primeiro serviço permanente de notícias por cabo são oito anos. Em sua origem, o rádio surgiu como um substituto do telégrafo, sendo, por isso, conhecido inicialmente como "sem-fio". Esse aparelho rudimentar era usado nos navios para transmissões telegráficas em código. Em 1916, houve uma revolta pela independência da Irlanda e os revoltosos, de forma pioneira, usam o "sem-fio" para transmitir mensagens. Essa foi a primeira utilização que se conhece do rádio moderno. Marshall McLuhan (1979, p.342), comentando o episódio, observou: Até então, o sem-fio fora utilizado pelos barcos como "telégrafo" mar- terra. Os rebeldes irlandeses utilizaram o sem-fio de um barco, não para uma mensagem em código, mas para uma emissão radiofônica, na esperança de que algum barco captasse e retransmitisse a sua estória à imprensa americana. E foi o que se deu. A radiofonia já existia há vários anos, sem que despertasse qualquer interesse comercial. 5 As informações históricas presentes neste capítulo foram retiradas, principalmente, do livro Rádio – o veículo, a história e a técnica, de Luiz A. Ferraretto.
  • 66. 65 Em 1915, o jornalismo começou a tomar conta das ondas do rádio, quando surgem na Alemanha as primeiras transmissões internacionais de programas diários de notícias. Os estudos sobre a história do rádio na Alemanha mostram, a propósito, que esse meio de comunicação teve a sua origem também ligada a uma rebelião – a revolução operária de 1918-1919. À semelhança da Revolução Russa, o movimento operário alemão organizou-se em soviets. O rádio faz sua estreia durante essa breve experiência revolucionária, servindo como meio para coordenar o movimento nas várias regiões do país e manter contato com o regime revolucionário da Rússia. O rádio surge, portanto, como um instrumento de mobilização política e, só depois de cinco anos, com a revolução derrotada, é que se estabeleceu a "radiodifusão pública da diversão", ou seja, passou a ter uma função comercial e a monopolizar o "comércio acústico", segundo a feliz expressão de Brecht. Os primeiros aparelhos eram chamados de "receptores detentores" e funcionavam com fone de ouvido. Depois surgiu o receptor com alto-falantes, modelo apresentado na Exposição de Radiodifusão de Berlim, em 1924. Para se ouvir rádio, era preciso pagar uma taxa. Em meio à crise econômica da República de Weimar, porém, ninguém se importou muito com isso. A era do rádio, que se iniciava naquele 29 de outubro de 1923, em Berlim, não empolgou multidões de imediato, mas depois se transformou num grande sucesso. Até o fim do ano, havia apenas 467 ouvintes registrados na Alemanha, ou seja, pagantes. Em abril do ano seguinte, eram 8.600, ultrapassando-se a casa do milhão no final de 1925. A partir de então ninguém segurou sua difusão. "A moda boba do rádio", como diziam alguns críticos, acabou tomando conta da nação e o que no início era mais uma curiosidade, transformou-se rapidamente em meio de comunicação de massas. Um marco decisivo acontece na Alemanha quando, em 1939, enquanto caminha para a II Grande Guerra, o governo decide que ouvir rádios estrangeiras constituía crime capital. O segundo passo ocorre em 1940, quando as rádios alemãs passam a transmitir a mesma programação de caráter ultranacionalista, já totalmente sob o domínio nazista.
  • 67. 66 5.1 TEORIA DO RÁDIO DE BRECHT As primeiras – e principais – reflexões de Brecht sobre o rádio estão sintetizadas num conjunto de breves artigos, escritos entre 1927 e 1932, no mesmo período das já mencionadas peças didáticas, sobre esse novo meio de comunicação. São cinco os artigos que compõem a Teoria do rádio6 : o mais importante deles é "O rádio como aparato de comunicação", com tradução de Tercio Redondo. Os demais textos são "O rádio: um descobrimento antediluviano?", "Sugestões aos diretores artísticos do rádio", "Aplicações" e "Comentário sobre O vôo sobre o oceano". O último texto, extraído do caderno I dos Versuche, foi traduzido para o português por Fernando Peixoto em Brecht (1992a, p.184). Como exemplo dos exercícios que se utilizam do rádio como aparato de comunicação, Brecht fez comentários, na semana musical de Baden-Baden, em 1929, sobre O vôo de Lindbergh e a Peça didática de Baden sobre o entendimento. A fim de iniciarmos as considerações do próprio autor sobre o rádio, vale lembrar que na época ainda não havia internet, o rádio e o cinema estavam em ascensão, os aparatos estavam ficando cada vez mais complexos. É o que complementa Iná Camargo (2012, p.142): ―Independentemente do gosto geral, as velhas formas (inclusive as impressas) são afetadas pelos novos meios e não sobreviverão imunes a eles. O avanço tecnológico sobre a produção literária é irreversível‖, o que vemos também na atualidade, em comunicação. Trata-se de uma teoria bastante atual, principalmente se trouxermos à tona a internet, a qual Brecht não tinha como conhecer na época, e que demanda um tipo de raciocínio enquanto método, não somente quanto ao conteúdo. A internet tem tantas possibilidades hoje, como o rádio tinha (e ainda tem), mas ficamos presos a poucas alternativas, por exemplo ao uso das redes sociais (e somente elas) em meio a uma gama de endereços eletrônicos a serem percorridos. Brecht é um incansável contestador das relações burguesas estabelecidas na Alemanha, por isso também, em seu artigo ―O rádio: uma descoberta antideluviana?‖, ele afirma: 6 Os artigos aqui mencionados estão, na íntegra, no texto intitulado “Teoria do rádio (1927-1932) – Bertolt Brecht/ Tradução de Regina Carvalho e Valci Zuculoto. Fonte: Site do RadioLivre. Disponível em: <http://www.radiolivre.org/node/3667 >. Acesso em: 17 dez. 2015.
  • 68. 67 Se eu acreditasse que a burguesia viveria ainda cem anos, estou convencido de que estaria, também, cem anos esbarrando a propósito das imensas possibilidades que encerra, por exemplo, o rádio. Aqueles que valorizam o rádio, fazem-no porque veem nele uma coisa para qual se pode inventar ―algo‖, teriam razão no momento em que se inventasse ―algo‖ para o qual se tivesse que inventar o rádio, se este já não existisse. Brecht torce, no mesmo artigo, para que esta burguesia à qual se refere invente outra coisa além do rádio, mas deve ser um invento que torne possível estabelecer, de uma vez por todas, ―o que se pode transmitir pelo rádio‖. E complementa: ―Um homem que tem algo para dizer e não encontra ouvintes está em má situação. Mas estão em pior situação ainda os ouvintes que não encontram quem tenha algo para lhes dizer.‖ Segundo Celso Frederico (2007), ―em ambas as intervenções encontram-se o apelo à participação, o incentivo para que o mundo do trabalho tome a palavra. Os conhecimentos teóricos do teatro épico, diz Brecht, podem e devem ser aplicados à radiodifusão‖. E continua: O teatro épico, com o seu caráter numérico, com a separação dos elementos, quer dizer, com a separação entre imagem e palavra, e entre as palavras e a música, e, particularmente, com a sua postura didática, teria a oferecer ao rádio uma infinidade de sugestões práticas. Contudo, o seu emprego meramente estético, assim como uma nova moda, de nada serviria, e de velhas modas já estamos fartos! (BRECHT, 2007). O novo teatro estabelecido por Brecht e o novo meio de comunicação – o rádio – podem caminhar juntos para realizar o imperativo de interatividade, deixando ao retrocesso o antigo conceito que via a cultura como uma forma que não precisa de qualquer esforço criativo, pois ―a formação cultural já estaria concluída e a cultura não careceria de nenhum esforço criativo continuado‖ (BRECHT, 2007). Em "Sugestões aos diretores artísticos do rádio", publicado originalmente em 1927, o dramaturgo exprime sua insatisfação com a programação culturalmente limitada, situando o rádio em uma disputa política: Na minha opinião, vocês deveriam tentar fazer do Rádio uma coisa realmente democrática. Neste sentido, obteriam logo uma série de resultados se, por exemplo, dispondo, como dispões, de maravilhosos aparelhos de difusão, deixassem estar simplesmente
  • 69. 68 produzindo, sem cessar, em vez de tornar produtivos os acontecimentos atuais mediante uma direção hábil e que economiza tempo. No mesmo artigo, na tentativa de reforçar que o rádio não funciona decentemente a serviço da sociedade, Brecht sugere: ―é requisito indispensável que prestem contas publicamente das fabulosas somas que o rádio arrecada e expliquem a aplicação que se dá a este dinheiro público, até o último centavo‖. O "esforço criador", ainda de acordo com Frederico (2007), tanto no teatro como na radiodifusão, não se contentava com o melhoramento desses fatores, de abastecê-los com bons produtos, mas visava à sua transformação radical. Vale aqui lembrar a famosa passagem de "Notas Sobre Mahagonny", escritas em 1930 por Brecht (1967, p.56): Ora, a engrenagem é determinada pela ordem social; então não se acolhe bem senão o que contribui para a manutenção da ordem estabelecida. Uma inovação que não ameace a função social da engrenagem (e esta função é a de ser um divertimento vesperal) pode por ela ser apreendida. Mas as que tornam iminente a mudança dessa função e procuram dar à engrenagem uma posição diferente na sociedade, por exemplo uma aproximação, em certa medida aos grandes estabelecimentos de ensino ou aos grandes organismos de difusão, esta mudança é renegada por ela. A sociedade absorve por meio da engrenagem apenas o que necessita para sua perpetuação. Brecht (1967, p.56), como marxista, observou muito antes de Adorno o primado da produção sobre o consumo dos bens simbólicos ao afirmar que "é a engrenagem que elabora o produto para consumo", pois cada vez mais as produções dos críticos, compositores e escritores transformam-se em matérias- primas. As radicais e muito criativas teses brechtianas sobre o rádio e o teatro exprimem o momento histórico vivido pelos intelectuais alemães, ainda marcado pelo entusiasmo provocado pela Revolução Russa de 1917 e pela certeza de que a revolução, abortada na Alemanha em 1919, em breve triunfaria. A agitação política do período foi acompanhada por uma intensa discussão sobre o esgotamento das formas tradicionais de se fazer arte e sobre a busca de novas formas de comunicação. Bem como os construtivistas russos, Brecht tinha entusiasmo com o progresso técnico. O socialismo era a própria promessa do progresso social, avanço das forças produtivas rebelando-se contra as relações de produção. O teatro, então,
  • 70. 69 é invadido pela técnica e o dramaturgo usa em seus textos, constantemente, termos como montagem, processo, máquina, instrumento, experimento, ciência, produção. Ainda de acordo com Frederico (2007), ―o ativismo cultural do período deve-se à formação de um novo público, produtor e consumidor de arte, que exige a renovação do fazer artístico.‖ Quando se fala da arte na República de Weimar, a atenção volta-se exclusivamente para as expressões da "alta cultura" e a tendência é ignorar o movimento cultural subterrâneo que se desenvolveu em torno do movimento operário. O grande meio de comunicação de massa do período era o cinema, o qual atraía milhões de pessoas fascinadas pela nova arte às salas de projeção que proliferaram em toda a Alemanha. Em 1932, Brecht, Eisler, Ottwalt e Dudow produziram o filme Kuhle Wampe, em que exploraram as possibilidades técnicas do novo meio. No mesmo período, Walter Benjamin (1987) escreveu sobre as possibilidades abertas pelo rádio. Aparece, então, em meio a uma revolução operária, que durou de 1918 a 1919, o rádio, o qual foi utilizado para manter as várias regiões do país interligadas, mantendo contato com o regime revolucionário da Rússia. O rádio surge para permitir a interação entre os homens, ao contrário do que veio a se tornar depois: um aparelho de emissão controlado pelos monopólios e a serviço da lógica mercantil. Após isso, a tentativa de criar um cinema alternativo ao oficial para conquistar a audiência popular fracassou com o advento do cinema falado, por volta de 1926/27, o que encareceu o custo da produção a tal ponto de torná-lo inviável para os partidos de esquerda e sindicatos. De acordo com Mello (2014), a imprensa era o principal aliado do movimento ligado aos operários. ―Marx e Engels, já na metade do século XIX apontaram para o importante papel da imprensa na Revolução. Para eles, o jornalismo deveria cumprir o papel de orientação e organização das lutas populares.‖ Segundo Loureiro (2005 apud Mello, 2014), a imprensa atuou de maneira significativa na Alemanha durante esse processo revolucionário. Por exemplo, em 1914, a socialdemocracia ―tinha 203 jornais com 1.5 milhão de assinantes, dezenas de associações esportivas e culturais, movimentos de juventude e a central sindical mais poderosa‖ (LOUREIRO, 2005, p.36 apud MELLO, 2014).
  • 71. 70 Naquele momento, o jornal passou a atender aos interesses de seus leitores abrindo novas seções, dando a estes a oportunidade de potencializar a comunicação. Logo, ao tornarem-se tecnologias disponíveis, a imprensa e o rádio surgem como produtos de desenvolvimento social, ligados à revolução devido a sua forte atuação política e pedagógica. Nesse momento, a classe operária passa a exercer uma participação mais ativa dentro das questões políticas, sociais e culturais (MELLO, 2014). Segundo Frederico, a princípio, as rádios ligadas ao movimento operário proliferam. Inicialmente, os trabalhadores fazem aparelhos de emissão em larga escala, objetivando divulgar informações políticas e concorrer com as emissoras oficiais que permaneciam distantes da vida da classe trabalhadora. Paralelamente, criaram-se as "comunidades de ouvintes", ou seja, eram instalados amplificadores nas ruas a fim de se ouvir e debater as notícias veiculadas. Esses grupos operários que construíam rádios reúnem-se em abril de 1924, na Arbeiter-Radio-Klub Deutschland. Segundo informes da polícia, a associação agrupou cerca de quatro mil sócios. Em 1926, de oitocentos a 1500 (DAHAL, 1981, p.29 apud FREDERICO, 2007). A existência do movimento das rádios operárias a cada dia vai conhecendo a presença sufocante da censura. Em meio a esse contexto, Brecht intervém com sua Teoria do rádio. Não demorou muito e os ativistas passaram a interceptar as emissoras oficiais para fazer discursos políticos. Com a derrocada do movimento revolucionário, colocou-se, na Alemanha, a questão do controle do rádio. A Telefunken e a Lorenz, duas gigantes da indústria de radiodifusão, além de fabricarem os aparelhos, queriam ter o monopólio da emissão. O Estado, porém, percebeu a importância estratégica do rádio e quis mantê-lo sob o seu exclusivo controle. Depois de muita discussão, chegou-se a um acordo: o Estado mantém o controle, mas fornece concessões para os grupos interessados. Embora afastado do poder, o movimento operário alemão, tendo anterior experiência em radiodifusão, solicitou uma concessão, entretanto ela não foi concedida pelo Estado, o qual possuía um instrumento político diretamente a serviço da ascensão do nazismo, mais adiante colocado em função da Indústria Cultural (FREDERICO, 2007).
  • 72. 71 Brecht, em seu artigo ―O rádio como aparato de comunicação" questiona não somente a utilização do rádio como aparato emissor e receptor, de forma cultural, mas também afirma ser ele um meio que deveria servir ao povo politicamente: Nosso Governo tem a necessidade da atividade radiofônica da mesma forma que nossa administração da Justiça. Quando Governo ou Justiça se opõem a essa atividade radiofônica, é porque têm medo e não pertencem a tempos anteriores à invenção do rádio, ainda não anteriores à invenção da pólvora. Desconheço, tanto quanto vocês, as obrigações, por exemplo, do Chanceler; é tarefa do rádio explicá-las, mas parte dessas obrigações é constituída pelo fato de a autoridade suprema informar à Nação, regularmente, através do rádio, sobre sua atividade e a legitimidade de sua atuação. A radiodifusão, portanto, deveria tornar possível o intercâmbio, o que ―lhe conferiria uma importância social muito distinta da sua atual postura puramente decorativa‖, na visão do dramaturgo. Finalmente – embora infelizmente –, grupos econômicos monopolizaram esse meio de comunicação, apossaram-se da transmissão e transformaram o público em mero receptor. Esse fato, de acordo com as afirmações de Frederico (2007), não implica em razões técnicas, pois uma simples modificação pode transformar qualquer aparelho de rádio num instrumento que, ao mesmo tempo, recebe e transmite mensagens. Brecht reivindica, então, a transformação desse aparelho de distribuição num verdadeiro instrumento de comunicação: Não cabe aqui investigar em razão de que interesses essas instituições são inconsequentes; mas, se um invento técnico, dotado de uma aptidão tão natural para as decisivas funções sociais, propõe-se um esforço tão desesperado para permanecer inconsequente, envolvido no entretenimento mais inofensivo, então surge de modo incontornável a questão sobre a possibilidade de se defrontarem as forças da desconexão por meio da organização dos desconectados. (BRECHT, 2007, grifo do autor). A argumentação do dramaturgo é bastante simples: a comunicação é um processo interativo e o rádio, substituto do telégrafo, foi feito para permitir a interação entre as pessoas. Entretanto, os grupos econômicos monopolizaram esse meio de comunicação, apossaram-se da transmissão e, dessa forma, transformaram todos em meros receptores.
  • 73. 72 Por isso, o rádio tornou-se um mero aparelho de emissão. ―A atrofia do rádio é, assim, mais um capítulo da história da contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção‖, afirma Frederico (2007). Assim, Brecht (2007) descreve sua proposição em relação à função do rádio: O rádio seria o mais admirável aparato de comunicação que se poderia conceber na vida pública, um enorme sistema de canais; quer dizer, seria, caso ele se propusesse não somente a emitir, mas também a receber; ou, não apenas deixar o ouvinte escutar, mas fazê-lo falar; e não isolá-lo, mas colocá-lo numa relação. O rádio deveria, portanto, sair da esfera do fornecimento e organizar o ouvinte como fornecedor. Por isso, são absolutamente positivos todos os esforços do rádio quanto a imprimir nos assuntos públicos um caráter realmente público. O nosso governo precisa, tanto quanto a nossa justiça, dos serviços do rádio. Se o governo ou a justiça opõem-se a tais serviços do rádio, agem assim por receio e mostram que se ajustam somente à época em que não havia rádio, para não dizer à época que antecedeu a invenção da pólvora. Brecht resolve debater em um momento em que coexistem dois lados no tocante ao rádio: o monopólio dos meios de comunicação e a existência de um outro tipo de público produtor e consumidor. Ele procura, então, utilizar de forma inédita os recursos propostos pelo rádio (FREDERICO, 2007). É o que complementa Mello (2014): Logo, compreendemos, em seus escritos, dois caminhos de utilização do rádio a serviço da sociedade: um de forma a desmascarar a relação de produção, rompendo com as formas artísticas tradicionais; outro visando sua utilização pedagógica, dando subsídios, fora de cena, ao público para que este conseguisse acompanhar essa ruptura, em cena, e refletir criticamente diante disso. Ainda segundo Mello (2014), para o dramaturgo, a presença de novas tecnologias só poderia se basear na necessidade dos indivíduos de se tornarem sujeitos conscientes da sua situação social. O rádio, portanto, apenas poderia ser explicado diante da sua possibilidade de dimensionar a comunicação e interação, a fim de tornar os homens ativos e críticos. Outro ponto levado em conta por Brecht é o fato de propor constante renovação, sempre pronto para romper com a tradição e instaurar novas formas capazes de manter o diálogo com as questões importantes ao seu público. Entretanto, assim como a literatura produzida na época, sem propósito e empenhada
  • 74. 73 em neutralizar os leitores, o rádio passa a seguir a mesma tendência, ou seja, sem um propósito evidente, ―tonando-se apenas um aparato de distribuição com a função de divertir o público‖ (MELLO, 2014). Para Brecht, seguindo a análise de Mello (2014), isso se deve ao fato de que as invenções tecnológicas caminham em direção oposta ao desenvolvimento crítico pela sociedade. Em Adorno (apud COSTA, 1998, p.53) observam-se as contradições entre a ―evolução das forças produtivas técnicas e os modos humanos de reagir, as capacidades para utilizar, controlar e aplicar com sentido essas técnicas‖. Em seu artigo ―Aplicações‖, o autor propõe quatro tópicos para análise, absolutamente autoexplicativos: 1. A questão de como se pode utilizar a arte para o rádio e a questão de como se pode utilizar o rádio para a arte – duas questões muito distintas – têm que se subordinar sempre a questão, de fato muito mais importante, de como se pode utilizar a arte e o rádio em geral. 2. Esta questão responder-se-á, se tivermos razão ou se nos a derem, da seguinte maneira: arte e rádio têm que ser colocados à disposição de finalidades pedagógicas. 3. A possibilidade de levar a cabo uma dessas formas pedagógicas diretas de utilização da arte não parece hoje indicada, porque o Estado não tem nenhum interesse em educar sua juventude para o coletivismo. 4. A arte deve começar ali onde não há imperfeição. Por mais que o ver fique eliminado, isso não quer dizer que não se veja nada, mas precisamente que se vê tão bem que se vê uma infinidade de coisas, tantas ―como se queira‖. Esses resultados teriam, naturalmente, que ficar na superfície acústica [...]. Fazendo relação com o objeto de estudo O vôo sobre o oceano, Brecht (1992b, p.184) observa que a peça não deve ―servir-se da radiodifusão atual, mas deve modificá-la. A concentração de meios mecânicos, assim como a especialização crescente na educação [...] requerem uma [...] rebelião por parte do ouvinte, sua ativação e reabilitação como produtor". E acrescenta: "Esta não é certamente a maneira mais importante de utilização do rádio, mas sem dúvida se insere em toda uma série de experiências que caminham nesse sentido". Em seu artigo ―O rádio como aparato de comunicação - Discurso sobre a função do rádio‖, Brecht afirma que o rádio tinha "a possibilidade de dizer tudo a todos, mas, pensando bem, não havia nada a ser dito". O rádio comercial não
  • 75. 74 nasceu porque era necessário: "não era o público que aguardava o rádio, senão o rádio que aguardava o público". E completa: No que diz respeito à técnica que se desenvolve em todos esses empreendimentos, ela se pauta pela tarefa principal de permitir que o público não apenas seja ensinado, mas que ele também ensine. Atribuir um caráter interessante a esses empreendimentos educativos, ou seja, tornar interessante o que interessa, constitui uma tarefa formal do rádio. Uma vez inventado e com a sua função alterada, ou seja, sem a participação bilateral, considera Frederico (2007): [...] o rádio saiu atrás do público. Onde está o público? Há um público para o jornal, outro para o esporte, outro para a música etc. O que fez o rádio? Foi atrás do público "alheio". Passou a transmitir notícias para atrair os leitores de jornal; esporte, para concorrer com os estádios esportivos; música, para laçar os frequentadores das salas de concerto; peças teatrais, para atingir os amantes do teatro etc. Infere-se, portanto, que o rádio apenas reproduziu os procedimentos próprios dos meios anteriores. Cada novo meio de comunicação parece condenado a se satisfazer com a apropriação da utilidade das invenções anteriores. ―Desde o início, o rádio imitou quase todas as instituições existentes que se relacionavam com a difusão do que era falado ou cantado‖, afirma Brecht (2007). E completa: ―No que diz respeito a esse objetivo de vida do rádio, ele não poderá, em minha opinião, consistir simplesmente no embelezamento da vida pública. Para isso, ele não apenas já se revelou pouco adequado, como também a nossa vida pública mostra, infelizmente, pouca aptidão para ser embelezada.‖ Levando em conta as palavras de Frederico (2007), essas novas formas de desvirtuamento dos meios de comunicação expressam ―as possibilidades atrofiadas dos novos meios de comunicação e seus pífios resultados chamam a atenção para o caráter arcaico das relações de propriedade‖. E a antiga queixa do direito de propriedade autoral do livro, solapado pelas fotocopiadoras, tornou-se rápida e atualmente superada pelos recursos da internet que, a cada novo dia, afloram a irracionalidade das relações de produção. Enfim, estando certo de suas convicções, Brecht (2007, grifo do autor) afirma:
  • 76. 75 Por meio de propostas que sempre avançam e nunca cessam, visando promover um melhor emprego do aparato em razão do interesse público, temos de abalar a base social desse aparato, e desacreditar o seu emprego em função do interesse de poucos. Agora, a fim de complementar e enfatizar a função defendida por Brecht pelo rádio, ele escreveu em seu artigo sobre o rádio: Não faço objeções à introdução de aparelhos receptores de rádio nos albergues dos desempregados e nas prisões (pensa-se evidentemente que, por seu intermédio, poder-se-á prolongar a baixo custo o tempo de vida dessas instituições), mas essa não pode ser a tarefa precípua do rádio. (BRECHT, 2007). A título de curiosidade, quando Brecht amargou o exílio, o rádio se fez presente: – Você, pequena caixa que trouxe comigo Cuidando para que suas válvulas não quebrassem Ao correr do barco ao trem, do trem ao abrigo Para ouvir o que meus inimigos falassem Junto ao meu leito, para minha dor atroz No fim da noite, de manhã bem cedo Lembrando as suas vitórias e o meu medo: Prometa jamais perder a voz! (BRECHT, 2000, p.272).
  • 77. 76 6 ANÁLISE E APONTAMENTOS SOBRE O VÔO SOBRE O OCEANO A peça O vôo sobre o oceano – peça didática radiofônica para rapazes e moças foi escrita pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht, com música composta por Kurt Weil e Paul Hindemith, colaboração de Elisabeth Hauptmann e tradução de Fernando Peixoto. Ela é baseada no voo de Charles Augustus Lindbergh, um pioneiro da aviação, que foi consagrado por ter feito o primeiro voo solitário transatlântico sem escalas em avião, entre Nova Iorque e Paris, em 1927, gastando 33 horas e meia na travessia. Estruturalmente, O vôo sobre o oceano é escrito na forma de poema, constituído pelo ―Prólogo‖ e 17 cenas ao todo. Além do mais, persegue o objetivo de utilizar o rádio como instrumento pedagógico. Os títulos podem ou não ser ditos antes da fala dos personagens, desde que sejam atendidas as alterações estabelecidas por Brecht, como o nome da peça, fato que será mais bem explicado adiante. Tal experimento com o rádio foi demonstrado com uma encenação no Festival de Música Baden-Baden, em 1929. É importante salientar que Lindbergh não foi o primeiro aviador a fazer um voo transatlântico, feito que pertence a John Alcock e Arthur Whitten Brown, cujo voo foi feito em 1919; em 1922 os portugueses Gago Coutinho e Artur Sacadura Cabral realizaram a primeira travessia aérea do Atlântico recorrendo apenas a navegação astronômica, no que foi também a primeira travessia aérea do Atlântico Sul; posteriormente foi realizado pelo brasileiro João Ribeiro de Barros, em 1927, cerca de um mês antes de Lindbergh, entretanto, tais voos foram feitos por mais de um tripulante; já Lindbergh foi o pioneiro no voo solitário. Esse fato foi ―amplamente veiculado pelo rádio como um feito heroico de um indivíduo incomum. Brecht retomou tanto o acontecimento quanto o meio técnico da difusão radiofônica, mas lhe deu outros contornos‖ (GATTI, 2015, p.49). Partindo dessa afirmação, constata-se que o voo não é um feito individual, mas uma conquista coletiva, que inclui os construtores do avião, unidos ao aviador com o objetivo de vencer limites humanos e da natureza a partir da utilização de recursos técnicos avançados. Aprofundando-se na história de vida real do aviador, sabe-se que Charles Lindbergh era um fascista que manteve estreitas relações com os nazistas e deixava os grupos antinazistas estadunidenses com muitas dúvidas sobre sua
  • 78. 77 conduta em relação à guerra, já que, na Segunda Guerra Mundial, foi a favor da neutralidade dos Estados Unidos, mas considerava certa a vitória da Alemanha. Inclusive, em 1936, esteve presente na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, em Berlim, ao lado de Adolf Hitler. Ressalta-se que, após o ataque a Pearl Harbor, em dezembro de 1941, e a consequente entrada dos Estados Unidos na guerra, o aviador ofereceu-se para lutar por seu país (EUA), entretanto seus serviços foram recusados, provavelmente por seu papel bastante ambíguo no país. Somente em 1944 foi admitido para o serviço. Em 1949, a rádio Stuttgart pediu a Brecht autorização para transmitir a peça. O autor esclareceu, por meio de uma carta, as implicações que deveriam ser obedecidas para que a transmissão fosse realizada. Sendo assim, o texto deveria sempre estar acompanhado da carta e também do novo ―Prólogo‖ da peça. Foi por saber do pensamento nazista que Lindbergh apreciava, que Brecht optou por alterar o nome da peça de A travessia do oceano pelo capitão Lindbergh – ou o O vôo de Lindbergh – por A primeira travessia aérea do oceano ou, como vemos no título deste trabalho, O vôo sobre o oceano. Além disso, na apresentação dos aviadores e partida do avião, haveria a substituição do nome do aviador por ―Meu nome não interessa‖. No decorrer da peça, em outro momento era citado ―Eu sou Charles Lindbergh‖, o que foi trocado por ―Eu sou Fulano de Tal‖. Um apontamento de Brecht, contido na carta enviada à rádio7 : É sabido que Lindbergh manteve estreitas relações com os nazistas; seu relatório entusiástico naquela ocasião sobre a invencibilidade da Força Aérea nazista provocou um efeito paralisante em inúmeros países. Como fascista, L. desempenhou um papel bastante ambíguo nos Estados Unidos. Nota-se, portanto, a intenção de passar uma lição aos leitores ou ouvintes a partir das modificações da peça, mesmo que a estrutura do poema fosse ligeiramente alterada. Segundo Gatti (2015, p.41), ―A façanha heroica do aviador é então desmistificada como parte de um esforço coletivo fundado no progresso técnico‖. 7 As afirmações aqui apresentadas sobre as mudanças, sob a autoria de Brecht, fazem parte do arquivo com a peça – na íntegra –, no formato PDF, salvo em CD-ROM e anexado a este trabalho.
  • 79. 78 Já o prólogo, que deveria ser obrigatoriamente citado antes do início da transmissão da peça, contém a seguinte explanação sobre a perspectiva do dramaturgo em relação ao aviador (1928/29): ―[...] Não o venceram, mas seu semelhante/ O venceu. Uma década/ De glória e de riqueza e o miserável/ Ensinou os carrascos de Hitler/ A pilotar bombardeiros mortíferos. Por isso,/ Seja apagado seu nome [...]‖. Entendida sua objeção em evidenciar o nome de Lindbergh e assim também ensinar, além de mostrar o feito de atravessar o oceano, Bertolt Brecht queria mostrar o homem se superando, ou seja, construindo máquinas potentes e modernas que o fizesse ultrapassar os limites – geográficos e tecnológicos – anteriormente alcançados. Dessa maneira, faz-se importante suscitar já o desfecho da peça (Brecht, 1928/29): ―Sem nos deixar esquecer:/ O que ainda não foi alcançado./ A isto é dedicado este relato‖. Na encenação de Baden-Baden, o axioma ―O Estado deve ser rico, o homem deve ser pobre, o Estado deve ter a obrigação de poder muito, ao homem deve ser permitido poder pouco‖ foi projetado em uma tela ao fundo. O que Brecht quis passar, segundo Koudela (2007, p.49), é que o Estado deve proporcionar as condições para a realização do exercício didático, ou seja, deve estar organizado em função do coletivo, garantindo que seja através do rádio, produzindo os ruídos, a música e as vozes correspondentes. Ao ouvinte deve caber somente a partitura que lhe permite assumir um papel. Crê-se que Brecht não desejava apenas que novas tecnologias fossem utilizadas de forma a sempre haver inovações, mas que fossem alcançados méritos pelos operários e trabalhadores, bem como pela sociedade em geral, que considerassem reprovável qualquer tipo de alienação cultural, social e, consequentemente, política. O desenvolvimento das forças produtivas (novas formas de produção) no campo teatral chega ao que chamamos de comunicação. Aqui, cabe recorrer à Teoria do Rádio de Brecht e o que ele defende sobre o papel do rádio. Para o dramaturgo, [...] o rádio (seria) o mais fantástico aparelho de comunicação da vida pública [...] se soubesse não apenas enviar mensagens como também recebê-las, fazendo com que o ouvinte não apenas escutasse como também falasse, e não só o isolasse como também o pusesse em ação [...] caso os senhores julguem isso utópico,
  • 80. 79 pediria que pensassem por que é utópico. (BRECHT, 1932 apud KOUDELA, 2007, p.50). No que tange a esse aspecto, Luciano Gatti (2015, pp.36-37) expõe em uma nota de rodapé: Em textos como a ―Teoria da Pedagogia‖, Brecht amplia o escopo da superação entre ator e espectador operada pela peça de aprendizagem. Do ponto de vista da educação para a organização política coletiva – o Estado –, tal superação aponta para outra relação entre teoria e prática, tornando-se um instrumento de crítica ideológica à separação burguesa entre agente e observador, fundamento da neutralidade axiológica pretendida pela ciência burguesa. Essa crítica é o ponto de partida para as diretrizes de superação da distinção entre o cientista e o político, de modo a mobilizar a ciência a favor da emancipação social [...]. Brecht escreveu, juntamente com Peter Suhrkamp, em ―Esclarecimentos para O vôo sobre o Oceano‖, para a edição do texto no livro Obras Completas que: 1. O Vôo sobre o Oceano, não como prazer, mas como meio de aprendizagem. O Vôo sobre o Oceano não tem valor, se a partir dele não for realizado um aprendizado. Não possui valor artístico que justifique uma encenação, que não tenha por objetivo a aprendizagem. Ele é um OBJETO DE APRENDIZAGEM e se divide em duas partes. A primeira (o canto dos elementos, os coros, os ruídos da água e dos motores etc.) tem a tarefa de possibilitar o exercício, isto é, introduzi- lo e interrompê-lo, o que é realizado da melhor forma por um aparelho. A outra parte PEDAGÓGICA (a do aviador) é o texto para o exercício: aquele que se exercita é o ouvinte de uma das partes do texto e o enunciador da outra parte. (BRECHT, 1930 apud KOUDELA, 2007, p.47, grifo do autor no texto original). Na peça radiofônica de aprendizagem, além de passar as dificuldades inerentes a um voo qualquer sobre as águas, nesse caso de Nova Iorque para Paris, são enfatizadas as intempéries pelas quais passam os aviadores, personagem colocado sempre no plural, mesmo que na prática houvesse apenas um tripulante. O coletivo proposto, como já mencionado, traz a ideia de ―aglomerar‖ desde os que criaram o avião, o aviador e até o próprio meio de transporte. Brecht aborda essa situação problematizando a questão do domínio da natureza. Para isso, utiliza as forças da natureza como figuras que dialogam com o aviador, como o
  • 81. 80 nevoeiro e a nevasca. Além do sono, personagem que aparece como fator biológico e psicológico disposto a atrapalhá-lo. Segundo Jameson (1999, p.225), essa peça traz em si a modernidade brechtiana, já que representa algo nunca visto anteriormente, [...] ela surpreende a vacuidade da própria Natureza, o reino deserto da altitude transoceânica, como o mundo anterior ao aparecimento da vida: é assim que a própria Névoa se dirige ao corpo estranho que a penetra: Sou a névoa... Há mil anos não se vê Alguém que tente um vôo no ar vazio: Quem você pode ser? E Fredric Jameson (p.226) complementa, traçando um paralelo da peça com a vida real do aviador: Mas não apenas os elementos externos vêm ao encontro de Lindbergh maravilhados e hostis; mesmo um elemento interno, a grande força natural do próprio Sono desafia-o como personagem, fazendo dele próprio não alguma subjetividade heroica, mas antes um elemento em si, um nome. Por isso é uma ironia que Brecht tenha sido obrigado a mudar este nome – cuja ancestralidade alemã certamente aumentava seu interesse e apelo europeus, assim como uma certa nação centro-européia imensamente ampliada e difundida pelo espaço extraordinário de Novo Mundo – quando o aviador redescobriu suas próprias origens pelo caminho errado no período de Hitler. Sobre a participação do rádio na peça, há um diálogo desse aparelho de comunicação – o qual assume os papéis de América, Nova Iorque, Europa, um navio, pescadores, forças da natureza – com o coletivo representado pelo aviador. E é por meio do papel do aviador que se tem o processo de aprendizagem. Segundo Koudela (2007, p.45), ao experimentar o papel de Lindbergh, ―rapazes e moças articulam uma forma de comportamento que articula a consciência da humanidade moderna e as capacidades adquiridas por meio da técnica‖. O aviador tenta se afirmar durante toda a obra e o faz em relação à opinião pública, às forças da natureza e aos seus limites físicos. A fim de nos aprofundarmos na participação do rádio, temos a seguinte explanação de Gatti (2015, pp. 49-50): O rádio, por sua vez, adquire outra função. Ele não serve à construção de um mito heroico para o entretenimento da massa de
  • 82. 81 ouvintes, mas à elucidação de um acontecimento, socialmente decifrado à luz da equação entre avanço tecnológico e organização coletiva. Por esse motivo, só é possível entender a peça caso se lembre que Brecht não se dirigia a quaisquer espectadores, mas àqueles com uma compreensão do acontecimento predeterminada pelo rádio. E ele complementa que é difícil avaliar o alcance da peça se não for levado em consideração o grau de consciência do público, já que ele conferia inscrição histórica à peça e balizaria a pretensão de refuncionalizar o rádio. Jameson (1999, p.224) também tem a acrescentar sobre a participação do aparelho de comunicação, fator determinante na peça, inclusive no que se extrai do título deste trabalho: [...] quero argumentar que o que permanece da tecnologia modernista/futurista aqui é a sua própria rigidez, que provém da peça radiofônica em que o próprio rádio como meio representa a máquina que as vozes desprovidas de corpo não podem expressar. A própria pureza delas enquanto não corporificadas é a da própria máquina, só aparentemente inumana: o rádio faz as vezes do avião; seus efeitos modernizados consistem na abstração da pura voz. Ainda não temos o tipo de análise do momento breve do rádio, que as pessoas tão apaixonadamente preteriram pelo cinema por um lado e pela televisão por outro: mas o modernismo de Brecht – e o próprio modernismo do seu momento histórico em geral – liga-se ao rádio e às exigências de reconhecimento da singularidade formal do rádio como meio, de suas próprias qualificações, uma forma em que a antítese entre palavras e música não mais se aplica, mas se ensaia e realiza uma nova simbiose destas duas dimensões anteriormente separadas. Ao rádio pode então ligar-se uma nostalgia produtiva que é uma forma historicista de compreensão de toda esta era. Tratando ainda da modernidade para Jameson (1999, p.226), sabe-se que esta significa produção, e um problema crucial é trazido às claras com a produção simbólica dos emblemas modernistas que apresentam a mídia propriamente dita como o ―suporte tecnológico do transporte e da comunicação: a ferrovia, o motor a combustão, o navio a vapor, até mesmo o próprio rádio, na forma como se integra nesta peça radiofônica da narrativa do vôo de Lindbergh‖. O rádio é colocado como personagem, como ator da peça. Essa característica é muito importante quando voltamos à dinâmica de atuação esperada por Brecht. Os atores podem sempre mudar de papel, experimentar estar em ―lugares‖ diferentes na peça, mas a participação do rádio na própria apresentação da peça pelo aparelho não é substituível durante o enredo.
  • 83. 82 Inscreve-se, nesse ato de representar o próprio meio de comunicação, a Teoria do rádio do autor. O que se prescreve na peça é que se faça exatamente o que não é feito nem incentivado pelo Estado: aumentar as possibilidades, usar o meio de comunicação de maneira plena, aumentando as suas possíveis utilizações enquanto força produtiva. O rádio representa a comunicação entre os países e continentes, ele está no papel da América, de Nova Iorque, da Europa e é, inclusive, usado pelos pescadores, que avistam algo no céu. Como um ator, o rádio tem todas aquelas tarefas colocadas no tópico do Teatro épico e da peça didática. Certamente, Brecht estava tentando resolver com o rádio todas as questões das forças produtivas, as quais interferem absolutamente nas relações sociais de produção estabelecidas. De acordo com Jameson, a transformação da matéria-prima natural é colocada como um ato da práxis como transcendência. A máquina está em conformidade com a produção, como se lê na peça (BRECHT, 1992b): Então eu luto contra a Natureza E contra mim mesmo. Sejam lá quais foram as coisas estúpidas que eu possa ter em mente Quando vôo eu sou Verdadeiramente ateu. Pois dez mil longos anos se passaram Desde que as águas escureceram sob o céu O próprio Deus entre a luz e o crepúsculo Emergindo irresistivelmente. Nesse sentido, ―voar é igual a um ateísmo prático‖, quando a humanidade se auto afirma diante de duas limitações, como é o caso dos fatores naturais e biológicos já mencionados (KOUDELA, 2007, p.47). Seguindo adiante, a oitava cena, intitulada ―Ideologia‖, que tem como sugestão ser anunciada pelo coro de aviadores, poderia, segundo Gatti (2015, pp. 62-63) ser lida como ―sustentação ideológica da peça, ou seja, como a expressão da confiança do dramaturgo na capacidade da técnica moderna em superar desafios naturais‖. O texto não se trata de um objeto de defesa, mas de sóbria ponderação. E completa: ―Ao transformar a peça em crítica de suas próprias ideologias, Brecht trabalha aqui contra o enrijecimento de suas próprias certezas‖.
  • 84. 83 Sendo assim, propõe-se que um ―novo tempo‖ tenha se iniciado, o que significa que, dominando a natureza, o homem pode ter para si próprio uma nova produtividade, indo de encontro ao ―primitivo‖. Como evidencia Jameson (1999, p.227), a situação originária e tradicional do rádio é recriada, em que a passividade e receptividade do auditório de rádio é invertida de forma radical, ou seja, o ato da audição é redefinido, transformando-se na práxis exploratória do próprio aviador na medida em que se arrisca a penetrar o ―novo‖ e lutar, apropriando-se dele. Podemos verificar, portanto, que Brecht tem uma preocupação estética, tanto quanto política, social e educacional. Ele procura, com o teatro, uma nova função para a comunicação. Não se trata somente de ―cultura‖, também é levada em consideração a passividade diante da cultura. Por meio dos ensinamentos, artigos e peças do dramaturgo, compreende-se que pode se chegar a uma transformação em benefício da massa, da sociedade, do trabalhador e dos jovens. Então, confere-se à arte, e isso é evidenciado na peça-objeto deste trabalho, a possibilidade de recriar os papéis, não só alternando os personagens nos ensaios, experimentos e apresentações, mas modificando a forma como é tratado o público. Ou seja, Bertolt Brecht intenta fazer a sociedade falar (ensinar), ativamente, em vez de apenas ouvir calada (ser ensinada) e continuar passiva. E sobre a dificuldade de refuncionalizar a mídia, mais especificamente o rádio, Ingrid Koudela (2007, p.12) expõe: A ―troca de função‖ do teatro foi impossível. Na tentativa de utilizar aparatos técnicos e sociais para os objetivos da peça didática, grupos de sala de aula, corais etc.; logo esbarraram em empecilhos semeados pela ordem social, capitalista, vigente. A mídia, como o rádio e o filme, teria que parar de servir aos interesses de poucos, se quisesse estabelecer a comunicação com a coletividade. A mídia teria que funcionar em favor do interesse da maioria [...]. Para o desfecho da peça, Brecht solicita, no caderno I dos Versuche (Ensaios), onde se lê ―Sem nos deixar esquecer o inatingível‖, que a palavra ―inatingível‖ seja trocada por ―aquilo que ainda não foi alcançado‖. E, nesse quesito, podemos inferir que diferenças de classe, exploração e ignorância são exemplos de questões que podem ser superadas e, portanto, devidamente sanadas (alcançadas).
  • 85. 84 Koudela esclarece, ainda no que tange à peça, que esta visa à ação social, tal como aparece formulado na passagem de ―Ideologia‖, no fim da obra (BRECHT, 1992b apud Koudela, 2007, p.46): No tempo em que a humanidade Começava a se conhecer Construímos veículos com madeira, ferro e vidro E atravessamos o oceano voando Com uma velocidade Três vezes maior que a do furacão Nossos motores eram mais fortes que nossos cavalos Há mil anos Tudo caía de cima para baixo Com exceção dos pássaros Nem mesmo nas mais antigas pedras Encontramos qualquer indício De que algum homem Tenha atravessado os ares voando Mas nós nos erguemos Por perto do fim do Terceiro Milênio de nossa era Mostrando que é possível Sem nos deixar esquecer Aquilo que ainda não foi alcançado A isto nosso relato é dedicado. De acordo com Mello (2014), no fim da peça Brecht expõe seu caráter didático, evidenciando que nada deve ser tido como natural, tal qual é a ideologia da classe dominante, visto que ela serve apenas para a manutenção do seu próprio poder. As novas tecnologias, como o rádio, devem estar a serviço da revolução, não como meios de manutenção de um estado pré-determinado. Pelo contrário, exigem uma reação do ouvinte e sua reintrodução como produtor. Com a citação do próprio Brecht, em seu artigo ―O Mundo Atual Pode ser Reproduzido Pelo Teatro?‖, escrito em 1955 (apud Brecht, 1967, p.283), elucida- se melhor o que o dramaturgo deseja passar, ou melhor, modificar por meio da arte teatral, alterando também a maneira de considerar a comunicação: A esta pequena exposição, que peço encarar como uma contribuição amistosa à vossa discussão, talvez baste que eu comunique minha opinião de que o mundo atual pode ser representado também no teatro, mas somente na medida em que compreendido como um mundo em transformação. A título de curiosidade, é interessante que se saiba que, após O Vôo sobre o Oceano, foi estreada A Peça Didática de Baden-Baden sobre o Acordo, em
  • 86. 85 1929, que tem como ponto de partida o ―Relato sobre Aquilo que Ainda não Foi Alcançado‖, ou seja, começa com o resumo da primeira peça didática O Vôo sobre o Oceano. Há, nA Peça Didática de Baden-Baden sobre o Acordo, a formulação da antítese: ―O pão não ficou mais barato‖, remetendo à técnica aperfeiçoada e ao domínio da natureza. Nota-se, portanto, que Brecht seria considerado muito ingênuo em relação ao progresso técnico caso se lesse O Vôo sobre o Oceano isoladamente (KOUDELA, 2007, p.51).
  • 87. 86 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS Tem-se, neste trabalho, a intenção de tratar um paralelo significativo entre a comunicação e a arte, mais especificamente o que se relaciona com o rádio e o teatro. Buscou-se, para tanto, a análise do objeto-peça O vôo sobre o oceano, de Bertolt Brecht. Para tecer os apontamentos, pudemos tratar minuciosamente o contexto em que Brecht apareceu, no século XX, a fim de revolucionar o teatro, modificando, em sua época e até a atualidade, o modo de fazer teatral, que deveria passar da forma dramática para a épica, perpassando a comunicação. Como se vê na atualidade, o teatro não se limita apenas a essa forma proposta por Brecht com o teatro épico, inserido no Teatro Moderno. Mas, ao contrário, utiliza-se de muitas tendências e maneiras de atuação. Assim mesmo, escolheu-se ressaltar o teatro político e pedagógico de Brecht a fim de difundir sua concepção sobre a arte em relação à realidade em que estamos inseridos. Como afirma Iná Camargo (2012, p.146): ―Há muito tempo o próprio processo de comunicação nada mais é que ligar tudo e todos na forma de mercadorias‖, discussão sempre presente nos trabalhos de Brecht. De acordo com o já aqui evidenciado, o dramaturgo procurava fazer da plateia um lugar de pessoas ativas e pensantes, que pudessem ser consideradas individualmente, como cidadãos capazes de gerar crítica e, consequentemente, também fazer arte. Para melhor explanar o teatro épico, foram expostos o Efeito de Distanciamento, o conceito de gestus e como funcionam as peças didáticas, já que a peça-objeto em questão se utiliza de todos esses recursos técnicos para ser devidamente experimentada pelo público. Além disso, O vôo sobre o oceano é uma obra feita para o rádio e tem o rádio como personagem ativo da peça, como ator. Principalmente por esse fator foi escolhida para ser aqui estudada e esmiuçada. Dessa forma, pudemos evidenciar a Teoria do rádio proposta por Brecht e o que ele intentava com a utilização desse meio. Há a constatação de que as forças produtivas estão em contínua evolução, desde a época de Brecht, o que interfere diretamente nas relações sociais de produção, como já dito. Mas, o mais significativo aqui, neste trabalho, é
  • 88. 87 evidenciar as tentativas do dramaturgo em alterar as concepções já enraizadas na sociedade em relação aos meios de comunicação. Envolvido absolutamente em seu trabalho, ele foi incansável na luta pelas possibilidades, principalmente a de aproximar a arte (o teatro) e a comunicação, usufruindo dos aparatos técnicos de forma bastante inteligente e intelectual, não apenas aceitando as imposições moldadas pelo capitalismo e, consequentemente, pelo Estado. As forças produtivas são também os meios de comunicação, mas estes não carecem de ser a mercadoria por si só, podem ser usufruto das massas, como Brecht buscou mostrar por meio das peças didáticas. Brecht inventou termos teóricos bastante relevantes em sua Teoria que, atualmente, podemos emprestar para discutirmos a internet, local em que as pessoas produzem sua própria comunicação. Atualmente, a comunicação é entendida como algo que tem que ser rebaixada, instantânea e efêmera. Brecht, por sua vez, apontava para outro tipo de entendimento e atuação por parte dos meios de comunicação, ou seja, evidenciava em suas obras, principalmente quando pensou as peças didáticas, que as forças produtivas estão aquém do que elas poderiam ser. A comunicação, hoje, poderia ser diferente do que é, ser mais bem elaborada e utilizada pela sociedade. Tangente a tais conceitos, estão as reflexões de Walter Benjamin, que tanto buscava inspiração em Brecht e considerava-o um grande pensador, além de amigo. Benjamin faz considerações bastante relevantes sobre as ideias do dramaturgo, apoiando sua forma de pensar e usar o rádio, bem como revolucionar as instâncias teatrais da época. Ambos os autores passavam por tempos conturbados na Alemanha, mas não deixavam de compartilhar seus pensamentos marxistas nem de trocar correspondências sobre novas ideias e críticas sobre seus respectivos trabalhos e criações, mesmo estando em exílio ou tendo se mudado de cidade/país. Podemos considerar, a partir de todas as teorias, estudos e citações expostos, que a obra dos dois é de grande relevância à atualidade, principalmente no que diz respeito à democratização dos meios de comunicação, nesse caso, com ênfase na utilização do rádio. Sabemos de antemão que a Teoria do rádio de Brecht queria fazer do aparelho um meio em que existisse uma conexão entre o ouvinte e o rádio tão
  • 89. 88 efetiva quanto a já existente do rádio para o ouvinte. Ele imaginava, então, o rádio com dupla mão de direção e ansiava pela interatividade. Logicamente, a interatividade pela qual ele lutava, intelectual e artisticamente, não se trata dessa que fazemos na atualidade, em que a participação do ouvinte é limitada a pequenas intervenções e possibilidades. Podemos participar, por exemplo, apenas por telefone, fax, carta ou alguma enquete em um site do programa. O que Brecht propunha – e para isso tinha o apoio de Benjamin – era fazer o próprio programa. Para ele, a massa trabalhadora poderia produzir muito bem o que gostaria de ouvir, às vezes, melhor que os já tradicionais produtores de conteúdo. O autor, impossibilitado pelo controle do governo em relação ao meio de comunicação, queria usar o rádio para ensinar e conscientizar a sociedade, chegando, inclusive, aos ―rapazes‖ e às ―moças‖. Há de se pensar no rádio como uma via de mão dupla, já que ele pode ter essa configuração, como tinha no passado, quando conhecido pelo nome de ―sem-fio‖. Precisa-se refletir sobre esse espaço tão limitado aos ouvintes, que estão na posição de espectadores passivos e inertes quanto à produção. De nada adianta novos e eficientes recursos, que aparecem a todo momento para nosso uso, se não for estabelecida, na visão de Brecht, uma comunicação eficiente. No sistema de exploração em que estamos, com uma radiodifusão tão voltada ao comércio, que majoritariamente sobrevive por meio das propagandas, parece utópico propor que as pessoas produzam programas. Mas, notamos que a discussão é válida, já que algumas insatisfações se tornaram ações. Tais repercussões, na época de Brecht, foram vistas pelas emissoras operárias, as quais queriam ter um lugar, pretendiam se pronunciar e produzir programas de interesse do coletivo. Já circunscrevendo à contemporaneidade, notamos a presença das emissoras piratas, que tanto reivindicam seu direito ao mercado radiofônico; as rádios populares; as rádios cornetas; as rádios comunitárias, sempre engajadas em satisfazer a demanda dos movimentos populares; bem como as emissoras virtuais, cada vez mais presentes ciberneticamente. O rádio, de maneira geral, ainda é encarado como meio de segunda categoria, isso porque a radiodifusão ainda é muito submetida à concessão, em que
  • 90. 89 prevalece o jogo político, a amizade e a troca de favores. Nesse processo, tornam- se secundários o interesse social e a competência. E, claro, as mudanças não podem se dar apenas no campo teórico, mas, para que adentrem a prática, o rádio precisa de investimentos, não somente na área financeira propriamente dita, mas também na reformulação do sistema de concessões. É com essa discussão que entramos no mérito das considerações de Benjamin. Ele faz apontamentos muito importantes sobre o teatro épico, afirmando seu caráter ―não-alienante‖, tal qual deveria ser a comunicação. Também pormenoriza o conceito de gestus e estranhamento, trazendo à tona o entendimento de que este circunscreve a realidade, mostra o ator realmente mostrando a cena, sem ilusões. Em relação às obras de arte em geral, conceitua a reprodutibilidade em confronto com a aura, muito em voga na discussão dos dias atuais, principalmente com a difusão rápida das informações proporcionada pela internet, entre outros meios. Além disso, lembra que a técnica, proporcionada pela industrialização, tecnologia e a modernidade, deixa qualquer reprodução muito mais rápida, ou seja, a profundidade se perde em seu sentido figurativo. Em contrapartida, a democratização dos meios de comunicação ainda soa problemática e passível de ser melhorada para e pela sociedade. Nota-se a multiplicação da informação e da notícia, a instantaneidade da comunicação, principalmente por meio dos tão novos aparelhos celulares. Com essa proliferação, temos a efemeridade das matérias e das reportagens cada vez mais evidente. Todo e qualquer leitor, agora, está apto a produzir notícia, a se manifestar, a divulgar e difundir uma ideia. Claro que não se pode negligenciar o apuramento esperado das redações e empresas de notícia, mas já não há muito espaço para novos profissionais, pois já quase não se faz questão do profissionalismo e do compromisso em meio a um ―mercado de notícias‖. A notícia, bem como o ensino, são mercadorias. E no mundo em que estamos inseridos, é preciso vender e comprar a todo tempo, a qualquer custo. Brecht e Benjamin se negavam absolutamente a simplesmente venderem seus trabalhos. Com seus artigos e obras, procuravam transformar o meio: tanto o que viviam quanto o de comunicação. Para esse fim foram incansáveis.
  • 91. 90 REFERÊNCIAS ADORNO, T.W. A Indústria Cultural: O Esclarecimento como Mistificação das Massas. In: Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosófico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. BENJAMIN, Walter. Que é o teatro épico: um estudo sobre Brecht. In: Magia e técnica, arte e política/ Walter Benjamin; tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin – 8ª Ed. revista - São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas v. 1). _____________. O autor como produtor. In: Magia e técnica, arte e política/ Walter Benjamin; tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin – 8ª Ed. revista - São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas v. 1). _____________. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e técnica, arte e política./ Walter Benjamin; tradução Sérgio Paulo Rouanet; prefácio Jeanne Marie Gagnebin – 8ª Ed. revista - São Paulo: Brasiliense, 2012. (Obras escolhidas v. 1). _____________. Deux formes de vulgarisation. In: Trois pièces radiophoniques. Paris: Chiristian Bourgois Éditeur, 1987. BORNHEIM, G.A. Brecht: A estética do Teatro. Rio de Janeiro: Graal, 1992. BRECHT, B. Brecht: Poemas 1913 – 1956. / Seleção e tradução Paulo César Souza/ São Paulo: Editora Brasiliense S. A, 1967. _________. Estudos sobre teatro - Bertolt Brecht. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978. _________. Teatro dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A., 1967. _________. O rádio como aparato de comunicação - Discurso sobre a função do rádio. In: Revista Estudos Avançados, São Paulo, v. 21, n. 60, p. 227-232, ago. 2007. ISSN 1806-9592. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/10250/11879>. Acesso em: 28 ago. 2015.
  • 92. 91 _________. O vôo sobre o oceano. In: BRECHT, Bertolt. Teatro completo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992b. v. 3. _________. Teatro Completo em 12 volumes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. _________. Ao pequeno aparelho de rádio. In: ___. Poemas. 1913-1956. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Editora 34, 2000. CARVALHO, S. Introdução ao Teatro Dialético. São Paulo: Expressão Popular, 2009. COSTA, Iná C. Nem uma lágrima: teatro épico em perspectiva dialética. 1ª Ed.— São Paulo: Expressão Popular: Nankin Editorial, 2012. 152p. __________. Sinta o Drama. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. DAHAL, P. Detrás de tu aparato de radio está el enemigo de clase (Movimiento de radios obreras en la República de Weimar). In: BASSETES, L. (Org.) De las ondas rojas a las radios libres. Barcelona: Editorial Gustavo Gili S.A., 1981. EWEN, Fredric. Bertolt Brecht: sua vida, sua arte, seu tempo. São Paulo: Globo, 1991. FERRARETTO, Luiz Artur. Rádio – o veículo, a história e a técnica. 2ª Ed. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto, 2001. FREDERICO, Celso. Brecht e a "Teoria do rádio‖. In: Revista Estudos Avançados, vol. 21 nº 60. São Paulo: Maio/Ago, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103- 40142007000200017>. Acesso em: 28 ago. 2014. GATTI, Luciano. A Peça de Aprendizagem: Heiner Müller e o Modelo Brechtiano. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, Fapesp, 2015. JAMESON, Fredric. O método Brecht. Tradução Maria Sílvia Betti; revisão técnica Iná Camargo Costa. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.
  • 93. 92 KOUDELA, Ingrid D. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991. ________. Um voo brechtiano: teoria e prática da peça didática. São Paulo: Editora Perspectiva, 1992. ________. Texto e jogo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996. LEHMANN, Hans-Thies. O teatro pós-dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007. LOUREIRO, Isabel Maria. A Revolução Alemã, 1918-1923. São Paulo: Editora UNESP, 2005. MACIEL, Luiz Carlos. Introdução. In: BRECHT, Bertolt. Teatro dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A., 1967. MARX, Karl. ―Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política. In: Karl Marx e Friedrich Engels [1977]. Karl Marx e Friedrich Engels – Textos 3, São Paulo: Edições Sociais: 300-303. Originalmente publicado em alemão, 1859. MELLO, Karyna Bühler de. O ciberespaço e o teatro dialético: o uso de novas tecnologias na formação de um espectador ativo. In. Diálogos e Perspectivas, 06 e 07 de agosto, 2014, Londrina (PR). Anais do VIII Colóquio de Estudos Literários. FERREIRA, Cláudia C.; SILVA, Jacicarla S.; BRANDINI, Laura T. (Orgs.). Londrina, 2014, ISSN: 2446-5488, pp. 249-266. McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo: Cultrix, 1979. MUSSE, Ricardo. O teatro contemporâneo, segundo Gerd Bornheim. Blog da Boitempo. Publicado em 31/01/2014. Disponível em: <http://blogdaboitempo.com.br/2014/01/31/o-teatro-contemporaneo-segundo-gerd- bornheim/>. Acesso em: 30 ago. 2015. OLIVEIRA, Urânia Auxiliadora Santos Maia de. O teatro épico e as peças didáticas de Bertolt Brecht: uma abordagem das mazelas sociais e a busca de uma significação política pelo teatro. In: Simpósio da International Brecht Society, vol. 1, 2013, Porto Alegre (RS). Anais do Simpósio da International Brecht Society. Disponível em: <http://migre.me/rm6Yx>. Acesso em: 28 ago. 2015.
  • 94. 93 PASTA JÚNIOR, José Antônio. Apresentação. In: SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880 – 1950). Título original: Theorie des modernen Dramas 1880-1950. Tradução: Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001; 192p. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. PEIXOTO, Fernando. Brecht: vida e obra. Rio de Janeiro: José Álvaro, 1968. POTY, Vanja. Conceito De ―Gestus‖ E Técnica De Construção. In: eRevista Performatus. 6ª Ed. Ano 1. n.6. set. 2013. Disponível em: <http://performatus.net/gestus> . Acesso em: 17 dez. 2015. ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Desa, 1965. ROSENHAFT, Eve. ―Brecht’s Germany: 1898-1933‖. In: Thomson, Peter e Sacks, Glendyr. The Cambridge Companion to Brecht. Cambridge University Press, 1994. SOUTELLO, Gabriela. A peça didática de Brecht sobre a sociedade - Ciclo de leituras de obras do autor estimula participação ativa de espectadores no TUSP. In: Revista Cult. Disponível em: <http://revistacult.uol.com.br/home/2014/04/a-peca- didatica-de-brecht-sobre-a-sociedade/>. Acesso em: 30 ago. 2015. SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880 – 1950). Título original: Theorie des modernen Dramas 1880-1950. Tradução: Luiz Sérgio Repa. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001. WILLIAMS, Raymond [1921-88]. Drama em cena. Título original: Drama in performance. Tradução: Rogério Bettoni. São Paulo: Cosac Naify, 2010. WIZISLA, Erdmunt. Benjamin e Brecht: História de uma Amizade/ Erdmut Wizisla; tradução Rogério Silva Assis. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013.
  • 95. 94 ANEXO Anexo A – CD-ROM Peça radiofônica O vôo sobre o oceano digitalizada (PDF)