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Copyright © Matt Haig, 2018
Publicado mediante acordo com Canongate Books Ltd, 14 High Street, Edinburgo EH1 1TE.
TÍTULO ORIGINAL
Notes on a Nervous Planet
PREPARAÇÃO
Ilana Goldfeld
REVISÃO
Carolina Rodrigues
Juliana Pitanga
ARTE DE CAPA
Peter Adlington
ADAPTAÇÃO DE CAPA
Antônio Rhoden
REVISÃO DE E-BOOK
Carolina Andrade
GERAÇÃO DE E-BOOK
Joana De Conti
E-ISBN
978-65-5560-021-6
Edição digital: 2020
1a
edição
Todos os direitos desta edição reservados à
Editora Intrínseca Ltda.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 3o
andar
22451-041 – Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
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Sumário
[Avançar para o início do texto]
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Dedicatória
Epígrafe
1. Uma cabeça estressada num mundo estressado
2. O quadro geral
3. Um sentimento não é o que você aparenta
4. Observações sobre o tempo
5. Sobrecarga de vida
6. Ansiedades da internet
7. Choque de notícias
8. Um breve ensaio sobre o sono
9. Prioridades
10. Medos telefônicos
11. O detetive do desespero
12. O corpo pensante
13. O m da realidade
14. Querer
15. Duas listas sobre o trabalho
16. Como moldar o futuro
17. A sua música
18. Basta ser como você é
Pessoas a quem quero agradecer
Sobre o autor
Conheça outro título do autor
Leia também
Para Andrea
“Totó, tenho o pressentimento de que não estamos mais
no Kansas.”
— Dorothy, em O mágico de Oz
1
UMA CABEÇA ESTRESSADA
NUM MUNDO ESTRESSADO
Uma conversa, cerca de um ano atrás
EU ESTAVA ESTRESSADO.
Andava em círculos, tentando vencer uma discussão pela internet. E
Andrea estava olhando para mim. Ou eu achava que Andrea estava olhando
para mim. Difícil dizer, já que eu olhava para o celular.
— Matt? Matt?
— Oi. Sim?
— O que está havendo? — perguntou ela com aquela voz de desespero que
se desenvolve com o casamento. Ou com o casamento comigo.
— Nada.
— Você não levanta os olhos do celular há cerca de uma hora. Está andando
para lá e para cá, esbarrando nos móveis.
Meu coração estava disparado e eu sentia um aperto no peito. Lutar ou
correr. Eu estava encurralado, ameaçado por alguém da internet que morava a
mais de doze mil quilômetros, uma pessoa que eu sequer conhecia, mas que
estava tentando estragar meu m de semana.
— Só vou resolver uma coisinha.
— Matt, saia daí.
— Eu só vou...
A questão do turbilhão mental é que muitas coisas que a curto prazo fazem
você se sentir bem, a longo prazo fazem com que se sinta pior. Você se distrai,
quando o que precisa mesmo é se conhecer .
— Matt!
Uma hora depois, Andrea me lançou um olhar do banco do carona. Eu não
estava no celular, mas segurava-o com força, por garantia, como uma freira
agarrando o rosário.
— Matt, você está bem?
— Sim. Por quê?
— Você parece perdido. Você está como cava quando...
Ela se conteve para não dizer “quando você tinha depressão”, mas eu sabia
aonde ela queria chegar. Além disso, eu conseguia sentir a ansiedade e a
depressão se aproximando. Não exatamente presentes, mas perto. Essa
lembrança era algo que eu praticamente podia tocar ali na atmosfera sufocante
do carro.
— Estou bem — menti. — Estou bem, estou bem...
Uma semana depois eu estava jogado no sofá, mergulhando em meu
décimo primeiro episódio de ansiedade.
Uma revisão da vida
EU ESTAVA COM medo. Mas não podia estar. Ansiedade é justamente isso:
medo.
Os episódios estavam cando cada vez mais próximos. Eu estava
preocupado por não saber onde isso iria parar. Parecia não haver limite para o
desespero.
Tentei desviar a atenção, mas minhas experiências anteriores com o álcool já
haviam ensinado que aquilo não tinha limites. Então z tudo que havia me
ajudado a sair do buraco das outras vezes. Coisas que eu me esquecia de fazer
no dia a dia. Cuidar da alimentação. Fazer ioga. Meditar. Deitar no chão com a
mão sobre o estômago e respirar fundo — inspira, expira, inspira, expira —,
observando o ritmo espasmódico dos pulmões.
Mas tudo era difícil. Até escolher o que vestir de manhã podia me fazer
chorar. Não importava o fato de que eu já havia sentido aquilo. Uma dor de
garganta não é menos incômoda porque você já teve dor de garganta antes.
Tentei ler, mas era difícil me concentrar.
Ouvi podcasts.
Assisti a programas novos na Net ix.
Entrei em redes sociais.
Tentei pôr o trabalho em dia respondendo todos os e-mails.
Acordei, agarrei o celular e rezei para encontrar qualquer coisa que me
levasse para fora de mim mesmo.
Mas — alerta de spoiler aqui — não deu certo.
Comecei a me sentir pior. E muitas das “distrações” estavam servindo
apenas para me levar para longe da distração. Como no verso de T. S. Eliot em
Quatro quartetos , eu estava “distraído da distração pela distração.”
Eu olhava para um e-mail não respondido e, aterrorizado, não era capaz de
respondê-lo. Então, no Twitter, minha distração digital preferida, percebi que
a ansiedade aumentava. Até simplesmente car rolando o meu feed era como
expor uma ferida.
Lia sites novos — outra distração — e minha mente não conseguia captá-
los. Ter consciência de todo o sofrimento que havia no mundo não ajudava a
pôr minha dor em perspectiva. Só me fazia sentir impotente. E patético,
também, por minhas a ições invisíveis serem tão paralisantes quando havia no
mundo tantas a ições visíveis. Meu desespero aumentava.
Então decidi fazer uma coisa.
Me desconectar.
Resolvi não acessar as redes sociais durante uns dias. Deixei uma resposta
automática no e-mail. Parei de assistir e de ler notícias. Não via televisão. Não
via videoclipes. Evitava até as revistas. (Durante minha primeira crise, anos
antes, as páginas coloridas das revistas costumavam obstruir minha mente em
uma sequência febril sempre que eu tentava dormir.)
Passei a deixar o celular no andar de baixo quando subia para dormir.
Tentei sair mais. Minha mesa de cabeceira estava um caos, entupida de cabos e
aparelhos e livros que na verdade eu não estava lendo. Decidi tirar tudo aquilo
dali.
Em casa, tentava car no escuro tanto quanto possível, como se estivesse
com enxaqueca. Desde os vinte e poucos anos, quando senti as primeiras
pulsões suicidas, eu sabia que, para melhorar, era preciso, de certa forma,
revisar a vida.
Era preciso um abandono .
Como diria o minimalista Fumio Sasaki, “existe felicidade em ter menos”.
Nos primeiros dias da minha experiência inicial de pânico, as únicas coisas que
abandonei foram os porres, o cigarro e o café forte. Agora, anos depois,
entendo que o problema era uma sobrecarga de aspecto muito mais geral.
Era uma sobrecarga de vida.
E, com certeza, de tecnologia. A única tecnologia real com a qual eu
interagi durante o atual processo de recuperação — além do carro e do fogão
— foram vídeos de ioga do YouTube, aos quais eu assistia com pouco brilho na
tela.
A ansiedade não desapareceu por milagre, é claro.
Porque, ao contrário do celular, ela não conta com um botão de “desligar”.
No entanto, parei de me sentir cada vez pior . Eu havia chegado a um
patamar. Depois de alguns dias, as coisas começaram a car mais calmas.
O velho caminho da recuperação chegou a tempo. A abstinência de
estímulos — não apenas álcool e cafeína, mas todas essas outras coisas — fazia
parte do processo.
Em suma, comecei a me sentir livre outra vez.
Como este livro surgiu
A MAIORIA DAS pessoas sabe que viver no mundo moderno pode ter
consequências físicas. Que, apesar do progresso, certos aspectos da vida
contemporânea são perigosos para nosso corpo. Acidentes de carro, fumaça,
poluição atmosférica, sedentarismo, pizza entregue em casa, radiação, aquela
quarta taça de vinho.
Mesmo car no laptop pode representar perigos físicos. Passar o dia inteiro
sentado adquirindo uma lesão por esforço repetitivo. Certa vez, um
oftalmologista me disse que minha infecção ocular e o bloqueio dos canais
lacrimais tinham sido causados por olhar demais para telas. Ao que parece,
piscamos menos quando trabalhamos no computador.
Se a saúde física e mental estão entrelaçadas, não poderíamos dizer o
mesmo sobre o mundo moderno e nossa condição mental? Particularidades da
vida que levamos no mundo moderno não poderiam ser responsáveis por
como nos sentimos inseridos nele?
Não apenas em termos das coisas , mas também de seus valores. Valores que
nos fazem querer mais do que temos. Que nos fazem cultuar o trabalho em
detrimento do lazer. Comparar o que temos de pior com o que outras pessoas
têm de melhor. Sentir que sempre está faltando algo.
E dia após dia, à medida que eu melhorava, a ideia de um livro foi surgindo
— sim, este livro aqui.
Eu já tinha falado sobre minha saúde mental em Razões para continuar vivo .
Mas a questão não era mais por que devo car vivo . Desta vez, era uma mais
ampla: como viver em um mundo louco sem enlouquecer?
Notícias de um planeta nervoso
ASSIM QUE COMECEI a pesquisar, achei manchetes que chamam a atenção na
era de chamar a atenção. É claro que as notícias são sempre pensadas para nos
estressar. Se fossem para nos acalmar, não seriam notícias, seria ioga. Ou um
lhotinho. Assim, é irônico que os meios de comunicação que falam da
ansiedade também estejam nos deixando mais ansiosos.
De qualquer forma, eis algumas dessas manchetes:
ESTRESSE E REDES SOCIAIS ALIMENTAM AS CRISES DE SAÚDE MENTAL NAS
MENINAS (The Guardian )
SOLIDÃO CRÔNICA É UMA EPIDEMIA DO MUNDO MODERNO (Forbes )
“O FACEBOOK PODE FAZER VOCÊ SE SENTIR INFELIZ ”, DIZ O PRÓPRIO FACEBOOK
(Sky News )
“CRESCIMENTO RÁPIDO ” DA AUTOMUTILAÇÃO ENTRE ADOLESCENTES (BBC)
ESTRESSE NO TRABALHO ATINGE 73% DOS PROFISSIONAIS (The Australian )
GRAVE AUMENTO DOS DISTÚRBIOS ALIMENTARES DEVIDO À SUPEREXPOSIÇÃO À
IMAGEM CORPORAL DAS CELEBRIDADES (The Guardian )
SUICÍDIO ENTRE UNIVERSITÁRIOS E A PRESSÃO PELA PERFEIÇÃO (The New York
Times )
ESTRESSE NO TRABALHO AUMENTA RAPIDAMENTE (Radio New Zealand )
ROBÔS VÃO TIRAR O EMPREGO DE NOSSOS FILHOS ? (The New York Times )
ESTRESSE : HOSTILIDADE AUMENTA NAS ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO NO
GOVERNO TRUMP . (The Washington Post )
EM HONG KONG , AS CRIANÇAS SÃO CRIADAS PARA A EXCELÊNCIA , NÃO PARA A
FELICIDADE (South China Morning Post )
ANSIEDADE EM ALTA : AUMENTA O NÚMERO DE PESSOAS EM BUSCA DE DROGAS
PARA LIDAR COM O ESTRESSE (El País )
EXÉRCITO DE TERAPEUTAS É ENVIADO ÀS ESCOLAS PARA TRATAR EPIDEMIA DE
ANSIEDADE (The Telegraph )
A INTERNET ESTÁ CAUSANDO TDAH EM NÓS ? (The Washington Post )
“NOSSA MENTE PODE SER SEQUESTRADA ”: PROFISSIONAIS DA ÁREA DE
TECNOLOGIA TEMEM UMA DISTOPIA DOS SMARTPHONES (The Guardian )
ADOLESCENTES ESTÃO FICANDO MAIS ANSIOSOS E DEPRIMIDOS (The Economist )
O INSTAGRAM É A PIOR REDE SOCIAL PARA A SAÚDE MENTAL DOS JOVENS (CNN)
POR QUE OS ÍNDICES DE SUICÍDIO ESTÃO AUMENTANDO EM TODO O PLANETA ?
(Alternet )
Como disse, é irônico que ler notícias sobre como o mundo está nos deixando
ansiosos e deprimidos nos deixe ainda mais ansiosos, e isso diz tanto quanto as
próprias manchetes.
O objetivo deste livro não é dizer que tudo é um desastre e que estamos
todos ferrados, porque para isso já temos o Twitter. O objetivo tampouco é
dizer que em geral o mundo moderno piorou as coisas. Sob alguns aspectos, as
coisas estão cando visivelmente melhores. Segundo dados do Banco Mundial,
o número de pessoas em todo o planeta que vive em condições graves de
precariedade econômica está diminuindo radicalmente, com mais de um
bilhão de nós saindo de condições de extrema pobreza nos últimos trinta anos.
E pense nas milhões de crianças no mundo todo que vêm sendo salvas pelas
vacinas. Como disse Nicholas Kristof num artigo do The New York Times de
2017, “se a pior coisa que pode acontecer a um pai é perder um lho, hoje essa
probabilidade é metade do que era em 1990”. Da mesma forma, para toda a
violência, a intolerância e a injustiça econômica que prevalecem entre a nossa
espécie, existem também — em escala global — motivos para sentir orgulho e
esperança.
O problema é que cada época apresenta um conjunto singular e complexo
de desa os. E enquanto muitas coisas melhoraram, muitas outras não. As
desigualdades permanecem, novos problemas surgiram. É comum que as
pessoas sintam medo ou se sintam desajustadas ou apresentem até impulsos
suicidas, mesmo que, materialmente, disponham de mais do que nunca.
E estou plenamente convencido de que o método bastante comum de listar
as vantagens da vida moderna — como saúde, educação, renda média — não
ajuda. É como apontar o dedo para uma pessoa deprimida e pedir que ela dê
graças a Deus porque ninguém morreu. Este livro tenta reconhecer que o que
sentimos é tão importante quanto o que possuímos. O bem-estar mental vale
tanto quanto o bem-estar físico — na verdade, ele faz parte do bem-estar
físico. E que, nesses termos, alguma coisa vai mal.
Se o mundo moderno nos faz sentir mal, de nada importa o que está dando
certo simplesmente porque se sentir mal é desgastante. E se sentir mal quando
nos dizem que não há motivo para isso desgasta ainda mais.
Com este livro, quero contextualizar essas manchetes sobre o estresse e
buscar meios de nos proteger em um mundo de pânico potencial. Porque,
independentemente do que zermos a nosso favor, nosso emocional ainda
estará vulnerável. Muitos transtornos mentais estão sofrendo um aumento
palpável, e — se acreditamos que nosso bem-estar mental é importante —
precisamos, com urgência, considerar o que pode estar por trás dessas
mudanças.
Os problemas mentais não são:
UMA ONDA.
Coisas modernas.
Um capricho.
Tendência de celebridades.
Resultado de uma consciência cada vez maior a respeito dos problemas de
saúde mental.
Fáceis de falar a respeito.
Os mesmos de sempre.
Do yin para o yang
PORTANTO, TEMOS AQUI um conto de duas realidades.
Muita gente, é verdade, tem motivos para se sentir grata no mundo
desenvolvido. O aumento da expectativa de vida, a queda da mortalidade
infantil, a disponibilidade de alimento e moradia, ausência de uma guerra
mundial. Já atendemos a muitas de nossas necessidades físicas básicas. Muita
gente vive em relativa segurança no dia a dia, com um teto sobre a cabeça e
comida na mesa. Mas, depois de resolver alguns problemas, ainda restam
outros? Nosso nível de progresso social trouxe novos problemas? É claro que
sim.
Às vezes, é como se tivéssemos solucionado o problema da escassez
substituindo-o pelo problema do excesso.
Para onde quer que se olhe, vemos pessoas buscando meios de mudar o
estilo de vida desfazendo-se de coisas. As dietas são o exemplo mais óbvio dessa
paixão pela restrição, mas pensemos também na tendência de nos dedicarmos
por meses a o ao veganismo e à sobriedade, nosso desejo cada vez maior por
um “detox digital”. O aumento do estado de atenção plena [mindfulness], da
meditação e de um estilo de vida minimalista são respostas visíveis a uma
cultura sobrecarregada. A resposta do yin ao frenesi do yang no século XXI.
Colapso
ASSIM QUE MINHA última crise de ansiedade passou, comecei a hesitar.
Talvez essa seja uma ideia boba.
Comecei a pensar se não seria uma coisa ruim car remoendo os problemas .
Mas então me lembrei que o problema é exatamente não falar sobre o
problema. É isso que faz com que as pessoas tenham um colapso no escritório
ou em sala de aula. É o que faz lotar as unidades de tratamento para
dependentes químicos e eleva as taxas de suicídio. No m das contas decidi
que, para mim, saber esse tipo de coisa é essencial. Quero descobrir razões para
ser positivo, modos de ser feliz, mas antes é preciso conhecer a realidade da
situação.
Por exemplo, preciso saber por que tenho medo de desacelerar , como se
estivesse no ônibus de Velocidade máxima em vias de explodir se rodasse a
menos de oitenta quilômetros por hora. Quero descobrir se a velocidade da
minha vida tem relação com a velocidade do mundo.
O motivo é simples, e parcialmente egoísta. Quando penso até onde minha
mente é capaz de chegar, confesso que co em pânico: eu sei por onde ela já
andou. E sei também que parte dos motivos pelos quais adoeci aos vinte e
poucos anos tinha a ver com meu estilo de vida na época. Bebia muito, dormia
mal, queria ser uma pessoa que não era, sofria as pressões da sociedade como
um todo. Não quero que isso se repita nunca mais, então preciso estar atento
não apenas ao ponto a que o estresse pode levar, como também a de onde ele
vem. Quero saber se o fato de às vezes me sentir à beira de um colapso tem
alguma relação com o fato de o mundo às vezes parecer à beira de um colapso.
Mas colapso é uma palavra pouco especí ca, o que talvez explique por que
os pro ssionais da área de saúde tenham passado a evitá-la. Sua etimologia, no
entanto, é clara: 1. Falha mecânica. 2. Defeito em um relacionamento ou
sistema.
E não é tão difícil enxergar os sinais de advertência de um colapso não
apenas dentro de nós, como no mundo também. Pode parecer dramático dizer
que o planeta está se encaminhando para tal. Mas hoje sabemos, sem sombra
de dúvida, que de todas as maneiras possíveis — tecnológica, ambiental,
politicamente — o mundo está mudando. E rápido. Precisamos, mais do que
nunca, saber como revisá-lo para que ele não nos faça entrar em colapso.
A vida é bela (mas)
A VIDA É bela.
Até mesmo a vida moderna. Talvez principalmente a vida moderna.
Estamos saturados por um bilhão de magias transitórias. Podemos pegar
um aparelho e fazer contato com alguém a um hemisfério de distância. Antes
de escolher onde passar um feriado, podemos ler resenhas de pessoas que, na
semana anterior, estiveram no hotel a que pretendemos ir. Podemos ver
imagens de satélite de qualquer rua em Tombuctu. Quando camos doentes,
podemos ir ao médico e tomar antibióticos que curam algo que em outros
tempos teria nos matado. Podemos ir ao supermercado e comprar pitaias do
Vietnã e vinho do Chile. Nunca foi tão fácil manifestar nossa indignação
quando um político diz ou faz algo do qual discordamos. Como nunca antes,
podemos acessar mais informações, mais lmes, mais livros, mais tudo .
Quando, na década de 1990, o slogan da Microsoft perguntava “aonde você
quer ir hoje?”, a questão era retórica. Na era digital, a resposta é “para todos os
lugares”. A ansiedade, citando o lósofo Søren Kierkegaard, talvez seja a
“vertigem da liberdade”, mas toda essa liberdade de escolha é verdadeiramente
um milagre.
Todavia, enquanto as escolhas são in nitas, nossa vida tem uma duração
exata. Não podemos viver outras além da nossa. Não podemos ver todos os
lmes nem ler todos os livros nem conhecer todos os lugares deste amado
planeta. Em vez de transformar isso numa restrição, precisamos editar a opção
que está diante de nós. Precisamos descobrir o que é bom individualmente e
deixar o resto de lado. Não precisamos de outro mundo. Todo o necessário está
aqui quando deixamos de achar que precisamos de tudo.
Tubarões invisíveis
UMA DAS FRUSTRAÇÕES que a ansiedade causa é a di culdade de encontrar
uma razão por trás dela. Pode não haver qualquer ameaça visível e você ainda
assim se sentir profundamente aterrorizado. É um suspense daqueles, só que
sem ação. Como Tubarão sem o tubarão.
Muitas vezes, no entanto, os tubarões estão lá. Metafóricos, invisíveis.
Mesmo que algumas vezes nossas preocupações pareçam sem fundamento, há
um fundamento.
“Você vai precisar de um barco maior”, diz Brody, em Tubarão . Talvez seja
justamente esse o nosso problema: não os tubarões metafóricos, mas os barcos
metafóricos. Talvez convivêssemos melhor com o mundo se soubéssemos onde
estão os tubarões e do que precisamos para navegar ilesos pelas as águas da
vida.
Colisão
ÀS VEZES SINTO que minha cabeça é como um navegador com janelas abertas
demais. Uma área de trabalho lotada de atalhos. Dentro de mim gira uma
rodinha colorida metafórica que me torna incapaz. Se eu ao menos encontrasse
um jeito de fechar algumas dessas janelas, se ao menos conseguisse arrastar um
pouco desses ícones para a lixeira, já estaria bem. Mas quais janelas escolher
quando todas parecem essenciais?
Como frear essa sobrecarga mental se o mundo em si está sobrecarregado?
Temos liberdade para pensar em qualquer coisa . Assim, faz sentido que às
vezes estejamos pensando em tudo. Mas às vezes é preciso ter coragem para
fechar janelas se quisermos nos religar. Desconectar para reconectar.
Coisas que estão mais rápidas do que antes
CORRESPONDÊNCIA .
Carros.
Velocistas olímpicos.
Notícias.
Velocidade de processamento.
Fotogra as.
Cenas de lmes.
Transações nanceiras.
Viagens.
Crescimento populacional mundial.
Desmatamento da Amazônia.
Navegação.
Progresso tecnológico.
Relacionamentos.
Acontecimentos políticos.
Pensamentos.
Catástrofe 24 horas por dia
PREOCUPAÇÃO É UMA palavra que soa como se pudéssemos car de olho nela.
No entanto, pensar no futuro — os próximos dez minutos, os próximos dez
anos — é o principal obstáculo com o qual preciso ser capaz de conviver para
apreciar o presente.
Sou um catastro sta. Eu não co simplesmente preocupado . Não. Minha
preocupação tem ambições reais, e é ilimitada. Minha ansiedade — mesmo
quando não é Ansiedade com A maiúsculo — é o su ciente para ir a qualquer
cenário. E sempre achei mais fácil imaginar o pior possível e deter-me sobre
ele.
E sou assim desde que me conheço por gente. Muitas vezes fui ao médico
convencido de uma morte iminente por causa de alguma doença que cismei
que tinha. Quando era criança, se minha mãe demorava para ir me buscar na
escola, bastava um minuto para eu me convencer de que ela provavelmente
tinha morrido num acidente de carro horrível. Isso nunca aconteceu, mas a
persistência dos não acontecimentos jamais eliminou a possibilidade do
acontecimento. Cada momento em que minha mãe não chegava era um
momento em que ela poderia nunca mais chegar.
A capacidade de imaginar catástrofes em detalhes, ver o metal destroçado e
os caquinhos azulados de vidro brilhando no asfalto ocupava minha mente
muito mais do que a ideia racional de que tal catástrofe era improvável. Se
Andrea não atende ao telefone não consigo evitar pensar no provável cenário
de que tenha caído da escada ou entrado em combustão espontânea. Eu me
preocupo por incomodar as pessoas sem necessidade. Por não admitir minha
condição privilegiada. Com as pessoas que estão presas por crimes que não
cometeram. Com os abusos dos direitos humanos. Eu me preocupo com
preconceito, política, poluição e o mundo que meus lhos e a geração deles
herdará. Eu me preocupo com todas as espécies em extinção por conta da ação
humana. Com minha pegada de carbono. Com todo o sofrimento do mundo
que não sou capaz de impedir. E também com o fato de que estar tão
autocentrado só faz aumentar as preocupações autocentradas.
Anos antes de fazer sexo de verdade pela primeira vez, eu achava fácil
imaginar que tinha Aids, tão convincentes eram os alertas do governo
britânico na TV na década de 1980. Se eu comia alguma coisa que tinha gosto
um pouco estranho, imediatamente imaginava que seria hospitalizado com
intoxicação alimentar, mesmo tendo tido intoxicação alimentar uma única vez
na vida.
Não consigo entrar em um aeroporto sem car descon ado — e sem deixar
de agir como tal.
Cada caroço, ferida ou verruga que aparece é um câncer em potencial. Cada
lapso de memória, um sinal de Alzheimer precoce. E assim por diante... E
tudo isso acontece quando estou relativamente bem. Porque quando estou mal
é que o catastro smo chega ao auge.
Na verdade, pensando nisso agora, vejo que se trata da principal
característica de minha ansiedade. Imaginar in nitamente que as coisas podem
car muito piores . Faz pouco tempo que descobri o quanto o mundo alimenta
isso. Nosso próprio emocional — estejamos realmente doentes ou apenas
estressados — é, até certo ponto, produto das condições sociais. E vice-versa.
Gostaria de entender o que, neste planeta nervoso, desencadeia isso .
Há uma diferença abissal entre sentir-se um pouco estressado e estar
propriamente doente, mas, como acontece com a fome e a desnutrição, os dois
estados relacionam-se em um ponto: o que é ruim para um (falta de comida)
também é ruim para o outro. Assim, quando estou bem — mas estressado —,
as coisas que me fazem sentir um pouquinho pior são quase sempre as mesmas
que me fazem sentir muito pior quando estou doente. O que aprendemos sobre
dor em períodos de doença aplica-se também aos tempos melhores. O
sofrimento é um excelente professor.
Algumas preocupações além das que
foram mencionadas no último capítulo
(porque sempre há mais preocupações)
— A S NOTÍCIAS .
— O metrô . Quando estou no metrô, imagino todas as coisas que podem dar
errado. O trem pode car preso no túnel. Pode haver um incêndio. Pode haver
um atentado terrorista. Posso ter um ataque cardíaco. Para dizer a verdade,
uma vez passei por uma experiência assustadora em um trem subterrâneo. Ao
sair do metrô de Paris, me deparei com uma nuvem de gás lacrimogêneo.
Estava acontecendo uma confusão entre trabalhadores e a polícia, que tinha
lançado o gás um tanto perto demais da saída do metrô. Na hora, no entanto,
eu não sabia do que se tratava. Cobri o rosto com o cachecol para poder
respirar e achei que estava no meio de um atentado terrorista. Não era o caso,
mas simplesmente ter achado que sim já me causou uma espécie de trauma.
Como disse Montaigne: “Aquele que tem medo de sofrer já está sofrendo
daquilo que teme.”
— Suicídio . Embora eu tivesse impulsos suicidas quando mais jovem e tenha
estado muito perto de me jogar de um precipício, recentemente minha
obsessão com o tema está mais para medo do que desejo.
— Outras preocupações com a saúde . Por exemplo: falência cardíaca repentina e
total decorrente de um ataque de pânico (circunstância absurdamente
improvável); depressão tão incapacitante que eu caria petri cado para sempre
como se tivesse encarado a Medusa; câncer; doenças coronarianas (tenho
colesterol alto por motivos hereditários); morrer muito jovem; morrer muito
velho; a mortalidade em geral.
— Aparência . É um mito antiquado dizer que os homens não se preocupam
com a aparência. Eu sempre estive atento a isso e costumava comprar
religiosamente a revista Men’s Health para fazer os exercícios, pensando em
car parecido com o modelo na capa. Já me preocupei com o cabelo —
volume, possível queda. Costumava me preocupar com verrugas no rosto.
Ficava olhando para o espelho por muito tempo, como se pudesse convencer
meu re exo a mudar de ideia. As rugas ainda me preocupam, mas estou
melhorando. É muito irônico que a cura para a preocupação com o
envelhecimento talvez seja o próprio envelhecimento.
— Culpa . Em vários momentos me senti culpado por não ser um lho,
marido, cidadão ou ser humano perfeito. Eu me sinto culpado quando
trabalho demais e negligencio a família — mas também culpado quando não
trabalho o bastante. A culpa, no entanto, nem sempre tem causa. Às vezes é
apenas um sentimento.
— Insatisfação . Tanto a ausência quanto aquilo que pode preenchê-la me
preocupam. Com frequência sinto um vazio metafórico que, em diversos
momentos da vida, tentei preencher com todo tipo de coisa: álcool, festas,
tuítes, medicamentos, drogas recreativas, exercício, comida, trabalho,
popularidade, viagens, gastar dinheiro, ganhar mais dinheiro, ser publicado.
Acho que está claro que nada disso deu muito certo. As coisas que eu jogava
no buraco só faziam aumentá-lo.
— Armas nucleares . Se os jornais falam sobre armas nucleares — o que hoje
em dia acontece com frequência cada vez maior —, imediatamente visualizo
os cogumelos de fumaça subindo das explosões lá fora. As palavras do ex-
general americano Omar Nelson Bradley têm hoje um eco arrepiante: “Nosso
mundo é um de gigantes nucleares e crianças cheias de ética. Sabemos mais
sobre matar do que viver.”
— Robôs . Brincadeira... mais ou menos. O futuro da robótica é uma fonte
legítima de preocupação. Boicoto todos os serviços de atendimento automático,
num ato insistente de rebeldia pró-humana. Por outro lado, pensar em robôs às
vezes me faz valorizar o intrigante mistério de estar vivo.
Cinco razões para estar feliz com o fato de
ser humano e não um robô senciente:
1. WILLIAM SHAKESPEARE NÃO era um robô. Emily Dickinson também não.
Nem Aristóteles. Nem Euclides. Nem Picasso. Nem Mary Shelley
(embora escrevesse sobre eles). Todas as pessoas que você amou e com as
quais se preocupou não eram robôs. Humanos são surpreendentes para
outros humanos. E somos humanos.
2. Somos um mistério. Não sabemos por que estamos aqui. Temos de forjar
nosso próprio signi cado. Um robô é projetado para executar tarefas ou
um grupo de tarefas. Estamos aqui há milhares de gerações e ainda
buscamos respostas. O mistério é sedutor.
3. Seus ancestrais não tão remotos escreveram poemas e agiram com
coragem nas guerras, se apaixonaram, dançaram e admiraram
melancolicamente o pôr do sol. Os ancestrais de um futuro robô senciente
serão um caixa eletrônico e um aspirador de pó com defeito.
4. Essa lista na verdade tem apenas quatro itens. Só para confundir os robôs.
Mesmo assim perguntei a alguns amigos da internet porque os seres
humanos são melhores que as máquinas e ouvi todo tipo de coisa “a
capacidade de rir de si mesmo”, “amor”, “pele macia e orgasmos”,
“capacidade de se encantar”, “empatia”. Talvez algum dia um robô possa
apresentar essas coisas, mas por enquanto todas são uma boa lembrança
de que somos especiais por sermos humanos.
Por que a ansiedade acaba e recomeça?
TODO CATASTROFISMO É irracional, mas carrega em si uma carga emocional. E
não são só as pessoas que sofrem de ansiedade que sabem disso.
Os anunciantes também sabem.
Vendedores de seguros sabem.
Os políticos sabem.
Editores de jornais sabem.
Agitadores políticos sabem.
Terroristas.
O que vende, na verdade, não é o sexo: é o medo.
E atualmente nem precisamos imaginar as piores catástrofes: podemos vê-
las. Literalmente. O celular com câmera transformou todos nós em jornalistas.
Quando alguma coisa horrível acontece — um ataque terrorista, um incêndio
orestal, um tsunami — sempre há alguém para lmar.
Temos mais alimento para nossos pesadelos. A informação não chega mais
até nós como antigamente, por meio dos jornais ou noticiários de TV
cuidadosamente elaborados. Ela vem dos sites, das redes sociais e por e-mail.
Mas até os noticiários mudaram. Os plantões de notícias são contínuos. E
quanto mais aterrorizantes as notícias, maior a audiência.
Nem todo canal de notícias quer exibir só notícias ruins (embora isso pareça
verdade no caso dos sensacionalistas); no entanto, mesmo os melhores estão em
busca de audiência e ao longo dos anos a mídia descobriu o que funciona e o
que não funciona, passando a competir cada vez mais pela atenção do público.
É por essa razão que assistir ao noticiário pode ser visto como uma metáfora
incessante do transtorno de ansiedade generalizada. As telas divididas, os
âncoras de noticiários, os banners de rolagem com informações incessantes são
uma representação visual de como a ansiedade atua. As falas con ituosas, o
barulho, o drama sensacionalista. Assistir ao noticiário pode nos deixar
estressados mesmo em um dia com poucos acontecimentos. Na verdade, já não
existem dias com poucos acontecimentos.
E quando alguma coisa realmente terrível acontece, o uxo interminável de
relatos de testemunhas oculares, as especulações e as lmagens gravadas com o
celular não ajudam em nada. É tudo sensacionalismo e não informativo. Se
sentir que esse jorro de informações está abalando sua tranquilidade,
DESLIGUE TUDO. Não deixe o terror tomar conta da sua mente. Não há
nada de bom em car paralisado e impotente diante de uma enxurrada
interminável de notícias.
Os noticiários inconscientemente emulam o modus operandi do medo —
concentram-se nas piores coisas, transformam tudo em catástrofe e dão
ouvidos ao uxo repetitivo e interminável de informações a respeito de um
tema preocupante. Assim, pode ser bem difícil dizer onde termina seu
transtorno de ansiedade e onde começam as notícias reais.
Precisamos nos lembrar que:
Não há vergonha nenhuma em não acompanhar as notícias .
Não há vergonha nenhuma em não acessar o Twitter.
Não há vergonha nenhuma em car of ine .
2
O QUADRO GERAL
“Poucas vezes percebemos que nossos
pensamentos e emoções mais íntimos não são, na
verdade, nossos. Isso porque pensamos em termos
de linguagem e imagens que não inventamos, mas
que nos foram dados pela sociedade.”
— Alan Watts, The Culture of Counter
Culture: Edited Transcripts
A vida passa muito rápido
É CLARO QUE, do ponto de vista cósmico, a totalidade da história humana é
breve. Não estamos aqui há muito tempo. O planeta existe há cerca de 4,6
bilhões de anos. O Homo sapiens — nossa maravilhosa e problemática espécie
— só existe há duzentos mil anos. E há apenas cinquenta mil ganhou
velocidade. Quando começamos a usar roupas feitas de peles de animais.
Quando começamos a sepultar sistematicamente os mortos. Quando nossos
métodos de caça se aperfeiçoaram.
A pintura rupestre mais antiga de que se tem registro provavelmente é
indonésia e tem cerca de quarenta mil anos. Em termos de tempo cósmico é o
equivalente a um piscar de olhos. A arte, no entanto, é mais antiga que a
agricultura, que começou basicamente ontem.
Cultivamos a terra há apenas dez mil anos. E começamos a escrever, até
onde sabemos, há apenas cinco mil.
A civilização, que começou na Mesopotâmia (mais ou menos onde cam a
Síria e o Iraque de hoje), tem menos de quatro mil anos. E uma vez que teve
início, as coisas começaram a acelerar. Chegava a hora de apertar o cinto de
segurança coletivo. Dinheiro. O primeiro alfabeto. O primeiro sistema de
notação musical. Pirâmides. Budismo, hinduísmo, cristianismo, islamismo,
siquismo. Filoso a socrática. A ideia de democracia. Vidro. Espadas. Navios
de guerra. Canais. Estradas. Pontes. Escolas. Papel higiênico. Relógios.
Bússolas. Bombas. Óculos. Minas. Armas. Armas melhores. Jornais.
Telescópios. O primeiro piano. Máquinas de costura. Mor na. Refrigeradores.
Cabos telegrá cos transatlânticos. Baterias recarregáveis. Telefones. Carros.
Aviões. Canetas esferográ cas. Jazz. Programas de perguntas e respostas.
Coca-Cola. Poliéster. Armas termonucleares. Foguetes para a Lua.
Computadores pessoais. Videogames. O maldito e-mail. Internet.
Nanotecnologia.
Uau.
Essa mudança — mesmo dentro dos quatro últimos milênios — não é uma
linha reta ascendente, mas uma espécie de curva acentuada que daria medo até
a um skatista pro ssional. A mudança pode ser uma constante, mas seu ritmo
não é.
Como continuar sendo humano num
mundo de mudanças?
AO ANALISAR OS gatilhos que desencadeiam os transtornos mentais, os
terapeutas muitas vezes identi cam uma mudança de vida profunda como
principal fator. Mudança quase sempre se relaciona a medo. Trocar de casa,
perder um emprego, casar, sofrer aumento ou redução de renda, morte na
família, problemas de saúde, chegar aos quarenta, seja o que for. Às vezes, não
faz muita diferença que a mudança seja aparentemente “boa” — ter um bebê,
ser promovido —; sua intensidade pode ser, por si só, um choque para o
sistema.
Mas e quando a mudança não é apenas pessoal? Quando trata-se de uma
que afete a todos?
O que acontece quando toda uma sociedade — ou toda a população
humana — passa por um período de mudanças profundas?
E aí?
Essas perguntas são cabíveis, é claro, dentro de uma suposição: a de que o
mundo está mudando. Mas como isso se dá?
Principalmente, e de modo mais mensurável, através da tecnologia.
Sim, existem mudanças sociais, políticas, econômicas e ambientais, mas a
tecnológica se relaciona a todas elas, está na base das transformações de um
modo geral e por isso vamos começar com ela.
É claro que, como espécie, os seres humanos sempre tiveram seu
desenvolvimento calcado na tecnologia. Ela está na base de tudo. Tecnologia,
em seu sentido mais amplo, representa um conjunto de ferramentas ou
métodos. Pode ser um idioma. Ou os gravetos usados para fazer fogo. Segundo
muitos antropólogos, o progresso tecnológico é o fator de condução mais
importante da humanidade.
Descobertas como fazer fogo, a roda, o arado ou a prensa de tipos móveis
não foram importantes apenas em virtude de sua aplicabilidade imediata, mas,
sobretudo, em termos de impacto global sobre o desenvolvimento da
sociedade.
No século XIX, o antropólogo americano Lewis H. Morgan anunciou que
os inventos tecnológicos podem levar a novas eras para a humanidade. Ele via
três fases da evolução social: selvageria, barbárie e civilização, cada uma
levando à seguinte por meio de saltos tecnológicos. Creio que hoje em dia isso
soe um tanto duvidoso, já que implica um progresso moral na transição de
“selvagem” a “civilizado”.
Outros especialistas têm abordagens diferentes.
Na década de 1960, Nikolai Kardashev, um astrofísico russo dedicado à
caça de alienígenas, achou que a melhor maneira de medir o progresso seria
em termos de informação . No começo, havia pouco além da informação
contida em nossos genes. Depois disso vieram coisas com a língua, a escrita, os
livros e, nalmente, a tecnologia da informação .
Hoje em dia, sociólogos e antropólogos em geral concordam que estamos
mergulhando fundo numa sociedade pós-industrial e que as mudanças estão
ocorrendo mais rápido do que nunca.
Mas mais rápido quanto ?
Segundo a lei de Moore — assim chamada em alusão a um de seus
criadores, um dos fundadores da Intel, Gordon Moore — a capacidade de
processamento dos computadores dobra em períodos de poucos anos. Essa
duplicação exponencial é a razão pela qual o pequeno celular que você traz no
bolso tem muito mais capacidade de armazenamento do que tinham os
computadores do tamanho de uma sala da década de 1960.
Mas esse crescimento acelerado não se limita aos chips de computador. Ele
ocorre em todo tipo de tecnologia, desde os bits de dados armazenados à
largura de banda da internet. Tudo isso indica que a tecnologia não apenas
progride, mas que seu progresso se torna mais rápido . Progresso gerando
progresso.
Atualmente, os computadores ajudam a construir novos computadores com
intervenção humana cada vez menor. O que signi ca que muita gente
começou a se preocupar com a “singularidade”, ou a esperar por ela. Eis aqui a
matéria dos sonhos febris e dos pesadelos. A singularidade é o ponto em que a
inteligência arti cial torna-se superior à inteligência cerebral humana. E então
— a depender de nosso equilíbrio interno entre otimismo e pessimismo —
vamos nos fundir com essa tecnologia e avançar, tornando-nos ciborgues
felizes e imortais; ou nossos robôs sencientes, nossos notebooks e torradeiras se
apossarão de nós, transformando-nos em bichinhos de estimação ou em
escravos ou em uma refeição completa.
Quem sabe?
Mas estamos indo numa dessas direções. Segundo Ray Kurzweil, cientista
da computação e futurista mundialmente reconhecido, a singularidade está
próxima. Para destacar esse ponto, ele escreveu um best-seller chamado, bem,
The Singularity is Near [A singularidade está próxima].
Ao alvorecer deste século, ele disse “não vamos vivenciar cem anos de
progresso durante o século XXI — vai ser mais como vinte mil anos de
progresso (no ritmo atual)”. E Kurzweil não é um excêntrico maluco,
embriagado de lmes de cção cientí ca. Suas previsões costumam se tornar
realidade. Em 1990, por exemplo, ele previu que em 1998 um computador
derrotaria um campeão de xadrez. As pessoas riram. Mas em 1997, o maior
enxadrista do mundo, Garry Kasparov, perdeu o jogo contra o computador
Deep Blue da IBM.
E pense só no que já aconteceu nas duas primeiras décadas deste século.
Pense em como a normalidade mudou.
A internet se apossou de nossa vida. Estamos cada vez mais amarrados a
celulares cada vez mais inteligentes. As máquinas são capazes de sequenciar
genomas humanos aos milhares.
O autoatendimento é a nova regra. O carro autônomo, já longe de ser uma
profecia, entrou para o mundo real a ponto de motoristas de táxi temerem
perder o emprego.
Pense só. No ano 2000, ninguém sabia o que era uma sel e . O Google já
existia, mas faltava muito para “googlar” se tornar um verbo. Não existia
YouTube, blogues, Wikipedia, WhatsApp, Snapchat, Skype, Spotify, Siri,
Facebook, bitcoins, gifs, Net ix, iPads, League of Legends, “ICYMI”, emoji
chorando de rir, quase ninguém tinha GPS, as pessoas viam fotos em álbuns e
nuvem era só uma coisa que trazia chuva. No momento mesmo em que
escrevo este parágrafo, percebo que ele será superado rapidamente. Em poucos
anos, minha lista vai apresentar uma porção de omissões constrangedoras —
diversas marcas na área tecnológica e diversas invenções que ainda não foram
inventadas. Pense em como a tecnologia torna-se vergonhosamente datada em
poucos anos. Pense no fax, nos primeiros telefones celulares, no CD, na
conexão discada, na Betamax e no VHS, nos primeiros leitores digitais, no
GeoCities e no mecanismo de busca AltaVista.
Portanto, seja o que for que você pense a respeito da perspectiva da
singularidade, não resta dúvida que: a) nossa vida está se tornando cada vez
mais tecnológica; e b) nossa tecnologia está mudando cada vez mais rápido.
E como a tecnologia esteve sempre na raiz mais profunda das
transformações sociais, esse ritmo vertiginoso da mudança tecnológica
desencadeia outras mudanças. Estamos nos encaminhando para muitas
singularidades alternativas. Muitos outros pontos sem volta. Talvez já
tenhamos ultrapassado alguns deles sem sequer notar.
Mudanças não totalmente boas pelas quais
o mundo está passando
O MUNDO PODE ter progredido rápido em alguns aspectos, mas a velocidade
das mudanças não nos deixou mais calmos. Algumas dessas mudanças,
principalmente as impulsionadas pela tecnologia, foram mais rápidas do que
outras. Por exemplo:
— Política . A polarização entre esquerda e direita, alimentada em parte pelo
eco e as zonas de combate nas redes sociais, onde o consenso e a verdade
parecem ser conceitos cada vez mais ultrapassados. Um mundo em que, nas
palavras da socióloga americana Sherry Turkle, “esperamos mais da tecnologia
do que uns dos outros”. Em que precisamos compartilhar quem somos para
sermos quem somos. Houve aspectos positivos nessa mudança. Várias causas
muito relevantes, entre elas a preocupação com a saúde mental, tiveram sua
bandeira erguida graças à natureza viral da internet. Mas é claro que nem tudo
foi tão bom. A propagação de fake news, os tuítes politicamente maliciosos e a
invasão em massa da privacidade on-line já moldou e direcionou nossa política
para caminhos estranhos e irreversíveis.
— Trabalho . Robôs e computadores estão tirando o emprego das pessoas. Os
empregadores estão se apropriando dos ns de semana dos funcionários. O
emprego está se tornando um processo desumanizador, como se os seres
humanos existissem para servir ao trabalho e não o trabalho para servir aos
seres humanos.
— Redes sociais . A mídia social rapidamente sequestrou a nossa vida. Quem
usa esses canais tem no Facebook, no Twitter e no Instagram uma revista de si
mesmo. Mas até que ponto isso é saudável? Estamos vendo violações
frequentes da ética, como a apropriação ilícita de milhões de per s psicológicos
pela Cambridge Analytica a partir do Facebook e seu uso para in uenciar
resultados eleitorais. Há também efeitos psicológicos gravemente
preocupantes. Estar sempre apresentando quem somos embrulhados para
presente, como batatas fritas ngindo ser crocantes. Estar sempre vendo as
outras pessoas em sua melhor forma, fazendo coisas divertidas que nós não
fazemos.
— Linguagem . O inglês está mudando mais rapidamente do que em qualquer
outro momento da história, segundo uma pesquisa feita pela University
College London. O aumento do uso de abreviaturas, iniciais, acrônimos,
emojis e gifs como auxiliares da comunicação mostra o quanto o progresso
tecnológico in uencia o idioma (lembre-se também que há muitos séculos a
imprensa escrita levou a uma padronização da ortogra a e da gramática).
Assim, não se trata apenas do que estamos dizendo, mas de como estamos
dizendo. Milhões de pessoas conversam mais por mensagem do que frente a
frente, uma mudança sem precedentes que ocorreu ao longo de uma única
geração. Não se trata de uma coisa ruim em si, mas é sem dúvida signi cativa.
– Ambiente . Algumas mudanças, no entanto, são claramente nocivas. Sem
sombra de dúvidas, horrivelmente nocivas. As mudanças ambientais em nosso
planeta são tão graves que alguns cientistas defendem a ideia de que nós — ou
a Terra — entramos numa fase essencialmente nova. Em 2016, no Congresso
Geológico Internacional realizado na Cidade do Cabo, África do Sul, cientistas
renomados concluíram que estamos saindo do período holoceno — marcado
por doze mil anos de estabilidade climática desde a última era do gelo — e
entrando no antropoceno, ou “nova era do homem”. O aumento em massa das
emissões de dióxido de carbono, a elevação do nível do mar e a poluição dos
oceanos, o aumento do uso de plástico (a produção mostrou-se vinte vezes
maior desde a década de 1960, segundo o Fórum Econômico Mundial), a
rápida extinção de espécies, o desmatamento, a industrialização da agricultura
e da pesca e o desenvolvimento urbano demonstram, segundo esse ponto de
vista, que chegamos a um novo intervalo da idade da Terra. Em suma, a vida
moderna está matando lentamente o planeta. Não surpreende que sociedades
tóxicas assim possam nos prejudicar também.
Futuro próximo
QUANDO O PROGRESSO é rápido, o presente pode parecer um futuro contínuo.
Quando assistimos a um vídeo viral com um robô do tamanho de um homem
balançando para a frente e para trás, é como se a realidade estivesse
transformada em cção cientí ca.
E somos estimulados a desejar esse estado de coisas. “Abraçar” o futuro e
“abandonar” o passado. A essência do consumismo consiste em nos fazer
desejar a próxima coisa em vez da que já temos . É a receita quase perfeita da
infelicidade.
Não somos estimulados a viver no presente, mas sim no futuro. Somos
enviados ao jardim de infância ou à pré -escola, o que por sua própria natureza
nos lembra o que nos espera. Escola escola . E uma vez na escola, a partir de
uma idade cada vez mais precoce, somos estimulados a trabalhar arduamente
para passar nas avaliações. Finalmente, essas avaliações se transformam em
exames de fato, os quais, como sabemos, determinarão coisas importantes no
futuro, como se vamos continuar estudando ou se devemos arrumar um
emprego lá pelos dezesseis, dezoito anos. Mesmo quando chegamos à
universidade, as coisas não param por aí. Mais avaliações, mais exames, mais
decisões iminentes. Mais onde você vai estar em alguns anos? Mais qual carreira
você gostaria de seguir? Mais pense bem sobre o futuro . Mais será que isso vai valer
a pena a longo prazo?
Durante toda a nossa educação nos ensinam uma espécie de consciência
reversa. Algo que eu poderia chamar de Estudos do Futuro, com os quais —
sob o disfarce da matemática, da literatura, da história, da informática etc. —
aprendemos a pensar como se estivéssemos em um tempo diferente daquele
em que realmente estamos. Tempo de passar por avaliações. Tempo de
trabalhar. Tempo de “quando eu crescer”.
Ver o aprendizado não como algo bom por si só, mas bom também em
virtude do que ele pode nos trazer, ajuda a reduzir o assombro da
humanidade. Somos animais maravilhosos que pensam, sentem, fazem arte,
têm sede de conhecimento, que entendem a si mesmos e o mundo por meio do
aprendizado, que é um m em si mesmo e vai muito além de oferecer meios de
preencher formulários de solicitação de emprego. Aprender é um meio de
gostar de viver no presente.
Começo agora a entender o quanto muitas de minhas aspirações estavam
erradas. Como eu estava fechado para o presente. Como muitas vezes desejei
mais do que aquilo que eu já possuía. E por isso sei que preciso encontrar um
jeito de car quieto, no presente, e, como dizia minha avó, ser feliz com o que
tenho .
Balizas
VOCÊ VAI SER feliz quando tirar boas notas.
Você vai ser feliz quando entrar na universidade. Você vai ser feliz quando
entrar para a universidade certa . Você vai ser feliz quando conseguir um
emprego. Você vai ser feliz quando tiver um aumento de salário. Você vai ser
feliz quando for promovido. Você vai ser feliz quando puder trabalhar por
conta própria. Você vai ser feliz quando car rico. Você vai ser feliz quando
tiver um bosque de oliveiras da Sardenha.
Você vai ser feliz quando alguém olhar para você daquele jeito. Você vai ser
feliz quando estiver namorando. Você vai ser feliz quando se casar. Você vai
ser feliz quando tiver lhos. Você vai ser feliz quando seus lhos forem
exatamente as crianças que você quer que sejam.
Você vai ser feliz quando sair de casa. Você vai ser feliz quando comprar
uma casa. Você vai ser feliz quando quitar a hipoteca. Você vai ser feliz
quando tiver um jardim maior. No campo. Com vizinhos legais que o
convidem para churrascos nos domingos ensolarados de verão, enquanto seus
lhos brincam juntos na brisa cálida. Você vai ser feliz quando cantar. Você vai
ser feliz quando cantar diante de uma multidão. Você vai ser feliz quando seu
disco de estreia ganhar um Grammy e car em primeiro lugar nas listas de 32
países, inclusive a Letônia.
Você vai ser feliz quando escrever. Você vai ser feliz quando for publicado.
Você vai ser feliz quando for publicado de novo. Você vai ser feliz quando
tiver escrito um best-seller . Você vai ser feliz quando seu best-seller estiver em
primeiro lugar na lista dos mais vendidos. Você vai ser feliz quando seu livro
virar lme. Você vai ser feliz quando ele for um lme de sucesso. Você vai ser
feliz quando for J. K. Rowling.
Você vai ser feliz quando gostarem de você. Você vai ser feliz quando mais
pessoas gostarem de você. Você vai ser feliz quando todo mundo gostar de você.
Você vai ser feliz quando sonharem com você.
Você vai ser feliz por parecer bem. Você vai ser feliz quando zer as pessoas
virarem a cabeça. Você vai ser feliz com uma pele mais macia. Você vai ser
feliz com uma barriga sequinha. Você vai ser feliz com uma barriga de
tanquinho com seis gomos. Você vai ser feliz com uma barriga de tanquinho
com oito gomos. Você vai ser feliz quando cada foto sua tiver dez mil curtidas
no Instagram.
Você vai ser feliz quando transcender as a ições terrenas. Você vai ser feliz
quando for o único no universo. Você vai ser feliz quando for o universo. Você
vai ser feliz quando for um deus. Você vai ser feliz quando for o deus que
manda em todos os deuses. Você vai ser feliz quando for Zeus. Nas nuvens do
Olimpo, comandando o céu.
Talvez. Talvez.
Talvez.
Talvez
TALVEZ A FELICIDADE não tenha a ver conosco enquanto pessoas. Talvez não
seja uma coisa que venha até nós. Talvez a felicidade seja ir, não estar. Talvez a
felicidade não seja o que merecemos por fazer jus a ela . Talvez a felicidade não
seja o que pudermos ter . Talvez a felicidade seja o que já temos . Talvez a
felicidade tenha a ver com o que pudermos dar . Talvez a felicidade não seja
uma borboleta que se pode caçar com uma rede. Talvez não exista um jeito
certo para ser feliz. Talvez existam apenas talvezes. Se, como disse Emily
Dickinson, “o para sempre é composto de agoras”, talvez os agoras sejam feitos
de talvezes. Talvez a grande questão da vida seja desistir das certezas e aceitar
a bela incerteza da vida.
3
UM SENTIMENTO NÃO É O
QUE VOCÊ APARENTA
“É esquisito demais isso de jovens olhando para
imagens distorcidas das coisas que eles deveriam
ser.”
— Daisy Ridley, explicando porque
saiu do Instagram
Beldades infelizes
EM NENHUM OUTRO momento da história da humanidade existiram tantos
produtos e serviços prontos para nos ajudar a atingir o objetivo de parecer mais
jovens e atraentes.
Cremes para o dia, cremes para a noite, cremes para o pescoço, cremes para
as mãos, esfoliantes, bronzeadores, máscaras, séruns anti-idade, cremes para a
celulite, máscaras faciais, corretores de olheiras, cremes de barbear, aparelhos
para aparar a barba, bases, batons, ceras depilatórias, óleos, corretores para
poros dilatados, delineadores, botox, manicure, pedicure, microdermoabrasão
(uma estranha mistura de esfoliação moderna e tortura medieval, ao que
parece), banhos de lama, banhos de algas e cirurgia plástica. Existem
aparadores de pelos faciais, aparadores de pelos do nariz e aparadores de pelos
pubianos. Você pode até clarear o ânus se lhe der na telha. (O nicho do
“clareamento íntimo” está em alta.)
Estamos na era dos blogues de beleza, dos vlogues de maquiagem e dos
instrutores de musculação on-line. Nunca antes houve tal quantidade de
conselhos para ter boa aparência. Somos bombardeados com livros de dietas,
frequentadores de academia, exercícios para o “abdômen dos sonhos” e
exercícios de “heróis de lmes de ação” e “ioga facial” disponíveis no YouTube.
Existem mais e mais aplicativos e ltros para aperfeiçoar o que os produtos de
beleza não conseguem. Se quisermos, podemos nos transformar em nossas
aspirações menos realistas e criar um abismo cada vez maior entre o que vemos
no espelho e uma aparência melhorada digitalmente. As mulheres — e cada
vez mais os homens — estão fazendo isso mais do que nunca para parecerem
mais bonitos.
No entanto, apesar de todos os métodos e truques, muita gente continua
insatisfeita. A maior pesquisa mundial sobre o tema, realizada pelo grupo GfK
e publicada pela revista Time em 2015, apontou que milhões de pessoas não
estavam contentes com a aparência. No Japão, por exemplo, 38% da população
estava gravemente insatisfeita com o que via no espelho. O interessante é que a
pesquisa deixou claro que o que as pessoas sentem a respeito da própria
apresentação surpreendentemente tem mais a ver com o país em que vivem do
que, por exemplo, com gênero. Na verdade, no mundo inteiro, a ansiedade
sobre a aparência está chegando a níveis altos tanto entre os homens quanto as
mulheres.
Se você for mexicano ou turco, provavelmente vai estar de bem com o que
vê no espelho, já que mais de 70% dessas populações diz estar “completamente
satisfeita” ou “razoavelmente satisfeita” com a aparência. Mas no Japão, na
Rússia e na Coreia do Sul descobriu-se que as pessoas estavam muito mais
descontentes.
Por que há tanta gente — com a exceção de mexicanos e turcos —
descontente com isso? Algumas das prováveis razões:
1. Como temos hoje condições de nos apresentar melhor, também elevamos
os padrões a respeito de como gostaríamos de ser.
2. Mais do que nunca, somos bombardeados por imagens de pessoas com
belezas convencionais. Não só pela TV, pelo cinema e pelos outdoors, mas
também nas redes sociais, onde todo mundo se apresenta o melhor
possível, muitas vezes usando ltros para se mostrar ao mundo.
3. Como as pessoas estão se tornando cada vez mais neuróticas de maneira
geral, aumenta a preocupação com a aparência. Segundo autores de outra
pesquisa (do Centro Nacional Americano de Informação Biotecnológica),
de 2017, as pessoas infelizes com a aparência apresentavam “maior grau
de neurose, relacionamentos mais tensos e receosos e passam mais tempo
vendo televisão”.
4. Nossa aparência se apresenta como um dos problemas que podem ser
resolvidos com dinheiro (cosméticos, revistas tness, alimentação correta,
frequentar a academia, seja lá o que for), mas isso não é verdade. Além
disso, ter uma aparência convencionalmente atraente não faz desaparecer
a preocupação com ela. Há muito mais pessoas de boa aparência no Japão
e na Rússia do que no México e na Turquia. E, é claro, muita gente de
ótima aparência — modelos, por exemplo — se preocupam muito mais
com isso do que as pessoas que não têm a passarela como pro ssão.
5. Ainda não somos imortais. Todos esses produtos cujo objetivo é nos fazer
parecer mais jovens, radiantes e mais distantes da morte não solucionam
o problema na base de tudo: eles não podem nos rejuvenescer
verdadeiramente. A Clarins e a Clinique produziram uma tonelada de
cremes anti-idade, e mesmo assim as pessoas vão envelhecer. Tudo que
vão conseguir — graças a campanhas de publicidade milionárias
determinadas a nos fazer ter vergonha de rugas e linhas de expressão — é
car um pouco mais preocupadas com o tema. A busca de uma aparência
jovial acentua o medo de envelhecer. Então, talvez, se aceitássemos o
envelhecimento, as nossas rugas e as dos outros, talvez os publicitários
tivessem menos medo de lidar com elas e ampliá-las.
A insegurança não tem a ver com o rosto
NA ESCOLA, EU costumava ser o mais alto da turma e era magro como um cabo
de vassoura. Comia muito e tomava cerveja para tentar ganhar massa. Hoje
percebo que talvez eu tivesse um pouco de dismor a corporal. Estava infeliz
por ser eu mesmo e comigo mesmo. Fazia séries de cinquenta abdominais,
lutando contra a dor, tentando car parecido com Jean-Claude Van Damme.
Insatisfeito era pouco para o que eu sentia em relação ao meu corpo: eu o
odiava . Eu sentia muita vergonha, tanta quanto se acredita que só as mulheres
são capazes de sentir. Hoje eu gostaria de voltar no tempo e dizer a mim
mesmo Pare com isso! Nada disso importa. Relaxa.
Na adolescência eu cheguei a detestar tanto uma verruga que apareceu em
meu rosto que peguei uma escova de dentes e tentei esfregar até removê-la. O
problema nunca foi a verruga. O problema é que eu estava vendo meu próprio
rosto através do prisma de insegurança. Hoje em dia eu gosto dessa verruga.
Não tenho ideia do motivo pelo qual ela me causava tanta frustração, por que
eu cava olhando para ela no espelho desejando que não existisse.
Como disse Hamlet a Rosencrantz, “não há nada de bom ou mau sem o
pensamento que o faz assim”. Ele falava da Dinamarca, mas isso também se
aplica a nossa aparência. As pessoas podem ser incentivadas a se sentir fora dos
padrões, mas não são obrigadas a isso desde que entendam que o sentimento é
separado da coisa com a qual se preocupam. Assim, enquanto existe uma
enorme conscientização sobre os riscos causados pela obesidade, outros tipos de
problemas em relação à aparência física parecem despertar menos
preocupação. Se estamos nos sentindo mal com o jeito que somos, às vezes o
que temos de fazer é tratar esse sentimento, não a aparência física.
A professora Pamela Keel, da Universidade Estadual da Flórida, que
dedicou sua carreira ao estudo dos transtornos alimentares e de imagem entre
homens e mulheres, concluiu que a mudança de aparência nunca vai
solucionar o descontentamento com ela. “O que vai fazer você de fato mais
feliz e saudável?”, ela se perguntava, no início de 2018, ao apresentar os
resultados de sua última pesquisa. “Perder cinco quilos ou perder atitudes
prejudiciais em relação à sua imagem corporal?” Quando somos menos
pressionados nesse sentido, os benefícios são mentais e físicos. “Quando se
sentem bem com o próprio corpo, as pessoas se tornam mais propensas a cuidar
dele em vez de tratá-lo como um inimigo ou, pior ainda, como um objeto.
Existe uma forte razão para repensar o tipo de resoluções de ano-novo que
tomamos.”
Isso pode explicar por que a obesidade está numa perigosa curva
ascendente. Se estivéssemos felizes com nosso corpo, seríamos mais amáveis
com ele.
Da mesma forma que a ansiedade relacionada ao dinheiro pode,
paradoxalmente, nos levar a gastar de modo compulsivo, a preocupação com o
corpo não garante que vamos ter um corpo melhor.
Esse excesso de cobrança em relação à aparência — coisas como
alimentação “natural”, o devido espaço entre as coxas e o corpo “pronto para o
verão” — tem sido tradicionalmente focado no gênero, com propagandas em
geral voltadas para o público feminino. E mesmo hoje, com um número cada
vez maior de homens sentindo-se pressionados a ter uma aparência que não é a
natural, a ter corpos de nidos, sentir vergonhas dos “defeitos” físicos, sair bem
nas sel es, preocupar-se com os cabelos brancos ou com a queda de cabelo — a
pressão sobre as mulheres nunca foi tão grande.
Em vez de tentar reduzir essa ansiedade nas mulheres, estamos elevando-a
nos homens. De certo modo, seguindo uma lógica distorcida de igualdade,
parece que estamos tentando deixar todo mundo igualmente ansioso em vez de
igualmente livre.
Minutos atrás, olhando o Twitter, vi que uma pessoa retuitou um artigo do
New York Post dizendo: “Bonecos sexuais com pênis biônico estarão disponíveis
antes de 2019.” O artigo traz uma imagem desses bonecos — sem pelos e com
o corpo de uma cor impossível, equipados com um cabelo que nunca vai cair e
pênis que nunca deixarão de car eretos. Inevitavelmente, robôs sexuais
femininos estão sendo preparados com cuidados ainda maiores. Querer parecer
uma modelo de capa de revista tratada com Photoshop é uma coisa, mas o
próximo passo será desejar ser tão perfeita e inexpressiva quanto um androide
ou um robô? Devíamos tentar alcançar o arco-íris, também.
“Na natureza”, escreveu Alice Walker, “nada é perfeito e tudo é perfeito.
As árvores podem ser retorcidas, curvas de uma maneira estranha, e ainda
assim belas.” Nosso corpo nunca será tão rme, simétrico e jovem quanto o dos
robôs sexuais biônicos; precisamos aprender a ser felizes apesar da versão social
não realista do corpo perfeito, e um pouco mais felizes por termos o corpo que
temos, como ele é. O descontentamento não melhora em nada a nossa
aparência, só nos faz sentir pior. Somos in nitamente melhores que o mais
perfeito robô sexual biônico. Somos humanos. Não devemos ter vergonha de
parecer humanos.
Uma mensagem da praia
OLÁ .
Eu sou a praia.
Sou criada pelas ondas e correntes.
Através da erosão de rochas.
Sempre perto do mar.
Estou aqui há milhões de anos.
Já estava aqui no alvorecer da própria vida.
E tenho de lhe dizer uma coisa:
Eu não me importo com seu corpo.
Sou uma praia.
Literalmente, não ligo a mínima.
Sou completamente indiferente ao seu índice de massa corporal.
Não me impressionam seus músculos abdominais visíveis a olho nu.
Sou indiferente.
Você pertence a uma de duzentas mil gerações de seres humanos.
Vi todas elas.
Verei também todas as que virão depois de você.
Não devem ser tantas. Sinto muito.
Ouço os murmúrios vindos do mar.
(O mar odeia vocês. Envenenadores , é assim que se refere quando fala de vocês.
Um pouco melodramático, eu sei, mas é assim que ele é. Dramático à beça.)
E preciso dizer mais uma coisa:
As outras pessoas na praia também não se importam com seu corpo.
Não mesmo.
Elas estão olhando o mar, ou obcecadas com a própria aparência.
E se elas por acaso estiverem pensando em você, que diferença faz?
Por que vocês humanos se importam tanto com a opinião de estranhos?
Por que não fazem como eu? Deixem isso passar por você.
Permitam-se ser o que são.
Apenas sejam.
Como deixar de se preocupar com o
envelhecimento
1. VÁRIAS PESQUISAS APONTAM que os mais velhos não estão tão
preocupados com o envelhecimento. A mais recente a qual tive acesso foi
feita pela empresa americana NORC em 2016. Foram entrevistadas mais
de 3 mil pessoas maduras e concluiu-se que elas são mais otimistas quanto
ao envelhecimento do que os adultos mais jovens: 46% das pessoas de
trinta e poucos anos disseram-se otimistas em relação ao envelhecimento,
contra 66% dos maiores de setenta. Ao que parece, a preocupação com a
idade é um indício de juventude. E a principal razão para ser otimista
quanto ao envelhecimento é que os próprios velhos já o são. A
adaptabilidade parece aumentar.
2. Ele vem. Não há muito o que se possa fazer quanto a isso. Podemos
escolher alimentos saudáveis, fazer exercícios e ter uma vida moderada,
mas ainda assim envelheceremos. Nossos oitenta anos se completarão na
mesma data. É claro que algumas medidas tornam mais provável
chegarmos aos oitenta, mas não podemos parar a roda do tempo. E essa
certeza é na verdade bastante reconfortante. Quando não há nada que se
pode fazer a respeito de alguma coisa, a preocupação começa a diminuir.
“Todo mundo morre”, escreveu Nora Ephron. “Não há nada que se possa
fazer quanto a isso. Comendo ou não seis amêndoas por dia.”
3. Os problemas que você associa ao envelhecimento podem não ser reais.
Você não é Nostradamus. Você não sabe como vai ser quando for velho.
Não sabe, por exemplo, se sua mente vai declinar ou estar ainda mais
viva, como a de Matisse, que executou algumas de suas melhores obras
depois dos oitenta.
4. O futuro não é real, é abstrato. O agora é tudo o que temos. Um agora
após o outro. O agora é onde devemos viver. Há bilhões de versões
diferentes de você mais velho, mas só uma versão de você no presente.
Concentre-se nela.
5. Você vai se arrepender do medo. No livro Antes de partir (Os 5 principais
arrependimentos que as pessoas têm antes de morrer ), Bronnie Ware — uma
enfermeira que trabalhava com pacientes terminais — narra sua
experiência de conversar com pessoas perto do m da vida. De longe, o
maior arrependimento de todas era o medo. Muitos dos pacientes de
Bronnie cavam profundamente angustiados por terem passado a vida
preocupados. Por terem vivido consumidos pelo medo, especialmente do
que os outros poderiam pensar. Uma preocupação que os impediu de
serem verdadeiros consigo mesmos.
6. Em vez de resistir, aceitar. Se livrar da ansiedade em relação ao
envelhecimento pode ser um modo de se livrar da ansiedade como um
todo. Aceitação em vez de negação . Não tente lutar contra isso, absorva,
sinta. Troque o botox por uma cirurgia mental sem bisturi. Reformule
sua ideia de beleza. Rebele-se contra a publicidade. Pre ra ser o velho
sábio. Aceite a complexa elegância da vela que derrete. Seja um mapa
com dez mil estradas. Seja o alaranjado do pôr do sol superando o cor-de-
rosa do alvorecer. Seja aquele que ousa ser verdadeiro.
4
OBSERVAÇÕES SOBRE O
TEMPO
Medo e tempo
“A ÚNICA COISA que devemos temer é o medo.” Essa frase, pronunciada por
Franklin D. Roosevelt em 1932 em seu discurso de posse como presidente dos
Estados Unidos, talvez seja a que mais reteve meu pensamento durante a vida.
Eu costumava me repreender durante meu primeiro surto de pânico. Sentir
medo é o bastante, eu pensava. Essas palavras estiveram em minha mente
também enquanto escrevia este livro. Da mesma forma que “o tempo cura” e
todos os bons clichês, a frase se tornou clichê por um bom motivo: ela é
verdadeira.
Quando penso sobre meus medos, percebo que a maior parte deles têm a
ver com o tempo. Tenho medo de envelhecer. Tenho medo de que nossos lhos
envelheçam. Tenho medo do futuro. Tenho medo de perder pessoas. Tenho
medo de atrasar meu trabalho. Mesmo enquanto escrevia este livro, tive medo
de não cumprir o prazo. O tempo que desperdicei me preocupa. O tempo que
passei doente. E, ao pesquisar, comecei a pensar se nosso conceito de tempo é,
em si mesmo, temporal. Nossa atitude em relação ao tempo mudou? Será que
ao nos livrarmos do medo criaremos uma nova relação com o passar dos
minutos, das horas e dos anos? Percebo que, para começar a ver o medo como
o modo com que minha mente — e talvez a sua — reage ao mundo moderno,
preciso analisar o tempo.
Parem os relógios
NEM SEMPRE TIVEMOS relógios. Durante a maior parte da história, a ideia de
“quinze para as cinco” ou “quatro e quarenta e cinco” não faria sentido.
Nunca encontramos uma pintura rupestre de alguém acordando estressado
por ter perdido a hora da reunião. Antigamente, havia apenas dois tempos. Dia
e noite. Luz e escuridão. Acordado e dormindo. Havia também outros tempos.
Tempo de comer, de caçar, de lutar, de descansar, de brincar e de beijar, mas
esses tempos não eram ditados arti cialmente pelo relógio, com seus números e
in nitas subdivisões.
Quando os primeiros métodos de controle do tempo passaram a ser usados,
em geral eles conservavam essa estrutura binária. A nal, os antigos egípcios só
podiam ver a sombra projetada por seus obeliscos e os romanos só examinavam
seus relógios de sol à luz do dia. Mesmo depois que surgiram na Europa os
primeiros relógios mecânicos, no começo do século XIV, destinados a lugares
como igrejas, eles eram bem rudimentares. Normalmente não tinham o
ponteiro dos minutos, por exemplo, e não podiam ser vistos da maior parte das
janelas dos dormitórios.
Os relógios de bolso apareceram no século XVI, e, como muitos sonhos de
consumo, a princípio foram símbolos exclusivos de status — novidades para a
nobreza. Um relógio de bolso elegante, em meados do século XVI, custava
aproximadamente quinze libras, o que era mais do que a renda anual de um
agricultor. Tudo isso por um aparelho que sequer tinha o ponteiro dos
minutos. Foi, no entanto, o relógio de bolso o que tornou as pessoas um pouco
mais apreensivas em relação ao tempo. Ou, pelo menos, mais apreensivas em
relação à veri cação do tempo.
Quando Samuel Pepys, conhecido por seu diário, presenteou-se com um
relógio de bolso — “um [relógio] muito bom” — em Londres em 1665, ele
logo viu — como muitos usuários da internet hoje — que ter acesso à
informação proporciona uma espécie de liberdade à custa de outra. Em 13 de
maio, ele escreveu:
Mas, Senhor! Ver o quanto minha antiga estupidez e infantilidade ainda estão à espreita fez com
que eu não pudesse evitar ter o relógio em mãos no sofá durante toda a tarde, e conferir cem vezes
que horas eram; e me vejo perguntando a mim mesmo como pude car tanto tempo sem ele; mas
também me lembre que, quando tinha um, considerei aquilo um problema e resolvi nunca mais
andar com relógio enquanto vivesse.
Com certeza, qualquer pessoa que já teve um celular ou uma conta no
Twitter pode relatar um comportamento compulsivo como esse. Checar, e
checar, e checar, e mais uma vez, só para ter certeza. Quando a possibilidade de
checar uma coisa se transforma em compulsão, muitas vezes sentimos
saudades do tempo em que não tínhamos condições de conferir nada.
O caso é que o relógio de bolso de Pepys nem era tão bom. Nem um pouco
bom. Era uma porcaria que custava o salário de um ano. Só que nenhum
relógio em 1665 era bom, pelo menos não para mostrar a hora. Só uma década
depois, com a invenção da mola em espiral, que controlava a velocidade da
roda de balanço, foi possível produzir relógios de bolso mais ou menos exatos.
A partir de então, é claro, nossos meios de medição do tempo tornaram-se
cada vez mais avançados. Agora estamos na era dos relógios atômicos, que são
incrivelmente, assustadoramente exatos. Em 2016, por exemplo, físicos alemães
construíram um relógio tão exato que não atrasaria nem adiantaria um
segundo durante quinze bilhões de anos. Os físicos alemães agora não têm
mais desculpas para se atrasar para nada.
Estamos tão preocupados com o tempo marcado em números que não nos
importamos com o tempo natural. Durante milhares de anos as pessoas podem
ter acordado às sete da manhã. A diferença em relação aos últimos séculos é
que agora acordamos porque são sete da manhã. Vamos para a escola, para a
faculdade ou para o trabalho a certa hora do dia, não porque nos pareça a hora
natural para isso, mas porque é a hora marcada. Delegamos nossos instintos
aos ponteiros de um relógio. Cada vez mais, somos escravos do tempo e não o
contrário. O tempo nos preocupa. Nós nos perguntamos onde ele foi parar.
Somos obcecados por ele.
Uma ligação telefônica
— MATTHEW? — É a minha mãe. A única pessoa que me chama de Matthew.
— Sim.
— Você ouviu o que eu estava dizendo?
— Hã. Sim. Algo sobre ir ao médico...
Para minha vergonha, eu não estava ouvindo. Estava olhando para um e-
mail que tinha começado a escrever. Então, mudei de estratégia. Disse a ela a
verdade:
— Desculpe, mãe. Estou com o notebook ligado. Bem ocupado no
momento. Acho que agora estou meio sem tempo...
Mamãe suspira, e ouço o suspiro instantaneamente, embora ela esteja a
trezentos quilômetros de distância.
— Sei como é.
Precisamos do tempo que já temos
A QUESTÃO É que deveríamos ter mais tempo do que nunca. Quero dizer,
pense nisso: a expectativa de vida mais que dobrou no último século. E não é só
isso. Mais do que nunca, temos instrumentos e tecnologias para poupar tempo.
Os e-mails são mais rápidos que as cartas. Os aquecedores são mais rápidos que
as fogueiras. As máquinas de lavar são mais rápidas que a lavagem manual em
rios ou tanques. Procedimentos que já foram trabalhosos, como esperar o
cabelo secar, viajar quinze quilômetros, ferver água ou buscar dados hoje em
dia levam praticamente tempo nenhum. Temos poupadores de tempo e esforço
como tratores, carros, máquinas de lavar, linhas de produção e fornos de
micro-ondas. Mesmo assim, durante grande parte da vida, estamos correndo.
Dizemos coisas como “Adoraria ler mais/aprender a tocar um
instrumento/frequentar uma academia/contribuir com uma obra de
caridade/preparar minhas próprias refeições, plantar morangos/rever meus
colegas de escola/treinar para uma maratona... se tivesse tempo” .
Muitas vezes nos vemos desejando que o dia tivesse mais horas, só que isso
não adiantaria nada. O problema, é claro, não é a falta de tempo. É que temos
uma sobrecarga de tudo o mais .
Lembre
SENTIR QUE VOCÊ não tem tempo não quer dizer que você não tenha tempo.
Sentir que você é feio não quer dizer que você seja feio.
Sentir-se ansioso não signi ca que você precise se sentir ansioso.
Sentir que você não fez o bastante não quer dizer que não tenha feito o
bastante.
Sentir que lhe faltam coisas não tornam você menos completo.
5
SOBRECARGA DE VIDA
Um excesso de tudo
NO MUNDO ATUAL, há um excesso de tudo.
Pense num só tipo de coisa.
Pense, por exemplo, naquilo que você tem nas mãos — um livro.
Existem muitos livros. Por algum motivo, você decidiu ler este livro, e co
sinceramente grato por isso. Mas, enquanto você está lendo este livro, pode ter
também a desconfortável percepção de que está deixando de ler outros livros.
E não é que eu queira estressá-lo muito, mas existe uma porção de outros livros.
O site Mental Floss, baseado em dados do Google, calculou que existam no
mundo, por baixo, 134.021.533 livros, isso em meados de 2016. Agora há mais
alguns milhões de livros. E, seja como for, 134.021.533 ainda é, tecnicamente,
um montão .
Nem sempre foi assim.
Nem sempre tivemos tantos livros, e para isso havia um motivo óbvio.
Antigamente, a impressão de livros tinha de ser feita à mão, sobre superfícies
de argila, papiro, cera ou couro.
Mesmo depois de inventada a prensa de tipos móveis, não havia muito o
que ler. Um clube de livros na Inglaterra no começo do século XVI teria de
batalhar muito por seus exemplares, já que havia cerca de apenas quarenta
livros publicados por ano, segundo dados da Biblioteca Britânica. Um leitor
ávido podia facilmente ler todos os livros publicados.
“E aí, o que você está lendo?”, perguntaria um membro ctício do clube de
livros ctício.
“Tudo o que sai, Cedric”, teria sido a resposta.
Mas a situação mudou muito. Ao chegar o ano 1600, eram publicados na
Inglaterra cerca de quatrocentos títulos — dez vezes o que se publicava no
século anterior.
A rma-se que o poeta Samuel Taylor Coleridge foi a última pessoa a ler
tudo, o que é uma impossibilidade técnica, dado que ele morreu em 1834,
quando já existiam milhões de livros publicados. No entanto, o interessante é
que as pessoas da época acreditavam que fosse possível ler tudo. Ninguém
acreditaria nisso hoje em dia.
Todo mundo sabe que mesmo batendo o recorde mundial de leitura rápida,
o número de livros que poderíamos ler seria apenas uma minúscula fração dos
livros existentes. Estamos afogados em livros, da mesma forma que em
programas de TV. Contudo, só podemos ler um livro — e ver um programa de
TV — de cada vez. Multiplicamos tudo, mas ainda somos seres individuais.
Existe só um de cada um de nós. E somos menores que a internet. Para
aproveitar a vida, devemos parar de pensar a respeito do que nunca seremos
capazes de ler, de dizer e fazer e começar a pensar em como aproveitar o que
está dentro de nossos limites. Viver numa escala humana. Concentrar-nos nas
poucas coisas que podemos fazer e não nos milhões de coisas que não podemos
fazer. Não almejar ter vidas paralelas. Encontrar um número menor. Ser
digno e único. Um número primo indivisível.
O mundo está tendo um ataque de pânico
O PÂNICO É uma espécie de sobrecarga.
Era assim que meus ataques de pânicos se manifestavam. Um excesso de
pensamentos e de medo. Uma mente sobrecarregada pode chegar a um ponto
de ruptura e ser inundada pelo pânico. Isso porque a sobrecarga pode fazer a
pessoa se sentir numa armadilha. Psicologicamente encaixotada. É por isso que
os ataques de pânico geralmente ocorrem em ambientes superestimulantes.
Supermercados, boates, teatros, trens lotados.
Mas o que acontece quando a sobrecarga se torna uma característica central
da vida moderna? Sobrecarga de consumo. Sobrecarga de trabalho. Sobrecarga
ambiental. Sobrecarga de notícias. Sobrecarga de informação.
O problema atual, portanto, não é que a vida seja necessariamente pior do
que antes. Em muitos aspectos, a vida tem o potencial de ser melhor, mais
saudável e mesmo mais feliz do que no passado. O problema é que a nossa vida
também está abarrotada. O desa o é descobrir quem sou nessa multidão de
“eus”.
Lugares onde tive ataques de pânico
SUPERMERCADOS .
Subterrâneo sem janelas de uma loja de departamentos.
Um show de música superlotado.
Uma boate.
Um avião.
No metrô de Londres.
Num bar de tapas em Sevilha.
No salão verde da BBC News.
Num trem de Londres para York (durou a maior parte da viagem).
Num cinema.
Num teatro.
Numa loja de conveniência.
Num palco, sentindo-me pouco à vontade com mil rostos me olhando.
Caminhando pelo Covent Garden.
Vendo TV.
Em casa, tarde da noite, depois de um dia cheio, com a luz alaranjada da rua
brilhando ameaçadora através da cortina.
Num banco.
Diante da tela do computador.
Um planeta nervoso
— IMAGINE QUE O mundo não está só enlouquecendo as pessoas — disse-me
recentemente um amigo, depois que eu lhe falei sobre o livro que estava
tentando escrever. — Imagine que o mundo em si é que está louco. Ou, quero
dizer, as partes do mundo que têm a ver conosco. Seres humanos. Ou seja, e se
ele estiver literalmente louco ? Acho que é isso o que está acontecendo. Acho
que a sociedade humana está entrando em colapso.
— Sim. Como um paciente que tem um colapso nervoso.
— É. Ou seja, é claro que o mundo não é uma pessoa. Mas está cada vez
mais interconectado, como, digamos, um sistema nervoso. Tornando-se um
pouco como isso. Estive lendo sobre um cara do século XIX que achava os os
do telégrafo parecidos a um sistema nervoso.
Numa pesquisa posterior, descobri que o cara chamava-se Charles Tilston
Bright — encarregado do primeiro cabo telegrá co transatlântico. Ele se
referia à rede telegrá ca global como “sistema mundial de nervos elétricos”.
Já não temos telégrafos dessa forma, já que eles não são tão bons para postar
vídeos de gato ninja e emojis. Mas o sistema nervoso do mundo não
desapareceu. Evoluiu em escala e complexidade a tal ponto que, desde junho
de 2017, mais da metade da população mundial está conectada à internet,
segundo dados da União Internacional de Telecomunicações, da ONU (que,
signi cativamente, já se chamou União Internacional do Telégrafo).
O número de usuários de internet cresce rapidamente de ano para ano. É
estranho pensar que, em 1995, praticamente ninguém estava na internet:
apenas dezesseis milhões de pessoas, ou 0,4% da população mundial. Uma
década depois, em 2005, esse número chegava a um bilhão, ou 15% da
população mundial. E, em 2017, o número saltou para 51%.
Nesse mesmo ano, o número de usuários ativos do Facebook — pessoas que
usam o Facebook pelo menos uma vez por mês — chegou a 2,07 bilhões. No
começo da década, em 2010, nem na internet havia tanta gente. Essas foram
mudanças muito rápidas. Ocorreram porque muitas partes do mundo se
“modernizaram” e transformaram rapidamente sua infraestrutura, abrindo
caminho para a internet de banda larga. O outro fator interveniente foi a
multiplicação dos celulares, que tornou o acesso à internet muito mais fácil do
que antes.
E não é só o número de pessoas que usam a internet o que está aumentando,
mas aumenta também o tempo que elas passam conectadas.
Os seres humanos estão mais do que nunca conectados por meio da
tecnologia, e essa mudança radical ocorreu em pouco mais de uma década. E,
quanto mais não seja, ela está levando a muita discussão on-line. Como
escreveu Tolstói em 1894, em O reino de Deus está em vós :
Quanto mais os homens estiverem a salvo das necessidades, mais aumentarão os telégrafos, os
telefones, os livros, os jornais, as revistas; mais crescerão os meios de propagação das mentiras e
hipocrisias contraditórias, e mais os homens serão desunidos, portanto infelizes, como acontece no
presente.
E as coisas acontecem rápido demais para que se possa dar conta de todas
elas. Com certeza muito mais rápido que na época de Tolstói. Todas essas
rupturas. Todas essas informações. Toda essa conexão tecnológica. O cérebro
do mundo é uma metáfora prosaica, mas adequada. Somos as células nervosas
do cérebro do mundo, transmitindo-nos a todas as outras células nervosas.
Enviando a sobrecarga de cá para lá. Neurônios sobrecarregados num planeta
nervoso. Pronto para explodir.
6
ANSIEDADES DA INTERNET
“A internet é a primeira coisa construída pela
humanidade que a humanidade não entende, a
maior experiência em anarquia que já tivemos.”
— Eric Schmidt, ex-CEO do Google
“Um punhado de pessoas, trabalhando num
punhado de empresas de tecnologia, vão dirigir,
com suas escolhas, o que um bilhão de pessoas
pensarão hoje [...] Não conheço problema mais
urgente que esse [...] Isso está mudando nossa
democracia e está mudando nossa capacidade de
conversar e nos relacionarmos como quisermos.”
— Tristan Harris, ex-funcionário do
Google
Coisas que adoro na internet
A ÇÕES COLETIVAS CONTRA a injustiça social.
Ver clipes antigos que eu já tinha esquecido.
Ver trailers de lmes sem ter de ir ao cinema.
A Wikipedia, o Spotify, as receitas da BBC Good Food.
O processo de organizar uma viagem.
O Goodreads.
Pessoas que sabem como você se sente quando está triste.
Conversar com leitores com os quais eu nunca conversaria de outra forma.
A gentileza, que acontece bastante.
Ver vídeos de animais fazendo coisas incríveis (um gorila dançando na piscina,
um polvo abrindo um pote).
Poder chegar a pessoas por e-mail ou mensagem de uma maneira impossível
na vida real.
Tuítes engraçados.
Manter contato com velhos amigos.
Poder trocar ideias com as pessoas.
Ótimos instrutores de ioga de Austin, Texas, cujas práticas posso acompanhar
mesmo não morando em Austin, Texas.
Vídeos igualmente bons de alongamento pós-corrida.
Pesquisar o lado ruim da internet pela internet.
Coisas que eu deveria fazer menos na
internet
P OSTAR COISAS SOBRE uma experiência importante quando poderia estar
tendo uma experiência importante real.
Escrever tuítes com opiniões que não vão convencer ninguém.
Clicar em artigos que na verdade não quero ler.
Postar no Twitter quando deveria estar tomando o café da manhã.
Ler minhas resenhas no site da Amazon.
Comparar minha vida à vida de outras pessoas.
Olhar e-mails e não respondê-los.
Responder e-mails quando deveria estar ouvindo minha mãe relatando sua
visita ao médico.
Experimentar a alegria boba de curtidas e favoritos.
Procurar meu próprio nome.
Cortar pelo meio vídeos de músicas de que gosto no YouTube porque vi outro
vídeo que me chamou a atenção.
Buscar sintomas no Google e fazer autodiagnóstico (o fato de ser
hipocondríaco não quer dizer que esteja realmente morrendo).
Buscar coisas no Google — qualquer coisa (“número de átomos no corpo
humano”, “benefícios da cúrcuma para a saúde”, “elenco de Amor sublime
amor ”, “como baixar fotos do iCloud”) — depois da meia-noite.
Checar o andamento do upload de um tuíte/foto/status (e continuar checando).
Querer desconectar e não desconectar.
O mundo está encolhendo
A SOBRECARGA DE vida é um sentimento radicado até certo ponto na percepção
de que o mundo se contraiu e se concentrou. O mundo humano realmente
encolheu e se tornou mais rápido também. Está se tornando mais conectado, e
à medida que ca mais conectado, nós também camos. A “mentalidade de
colmeia” — termo cunhado por James H. Schmitz, em 1950, no conto de
cção cientí ca “Second Night of Summer” [Segunda noite do verão], de 1950
— é agora uma realidade. Mais do que nunca, nossas vidas, nossa informação e
nossas emoções estão conectadas. A internet uni ca mesmo quando parece
dividir.
Esse processo de encolhimento do mundo não aconteceu da noite para o dia.
Há séculos os seres humanos vêm se comunicando para além do alcance de sua
voz. Usando todo tipo de coisa, desde sinais de fumaça a tambores e pombos.
Uma cadeia de sinais luminosos de Plymouth a Londres anunciou a chegada
da marinha espanhola.
No século XIX, o telégrafo elétrico ligava continentes.
O sistema nervoso global evoluiu para o telefone, rádio, televisão e, claro,
para a internet.
Essas conexões nos tornam, de muitas formas, cada vez mais próximos.
Podemos enviar um e-mail ou mensagem de texto, falar pelo Skype ou pelo
Facetime ou jogar jogos on-line em tempo real com pessoas a quinze mil
quilômetros de distância. A distância física se torna cada vez mais irrelevante.
As redes sociais permitem ações coletivas como nunca: manifestações,
revoluções e impacto sobre resultados eleitorais. A internet permitiu que nos
reuníssemos e zéssemos acontecer coisas. Para o bem e para o mal.
O problema é que se estamos ligados a um vasto sistema nervoso, nossa
felicidade ou infelicidade é mais coletiva do que nunca. As emoções de um
grupo tornam-se nossas.
Histeria de massa
HÁ MILHÕES DE exemplos históricos de pessoas cujas emoções foram
in uenciadas pela massa, desde o julgamento das bruxas de Salem até a
Beatlemania.
Um dos exemplos mais engraçados e assustadores é o caso do convento
francês onde, no século XV, uma freira começou a miar como um gato. Depois
de algum tempo, outras freiras começaram a miar também. E em poucos
meses, os moradores de povoados próximos ouviam, abismados, todas as
freiras miando ao longo de horas, num sonoro coro felino. Elas só pararam de
miar quando as autoridades ameaçaram açoitá-las.
Há outros exemplos esquisitos, como a epidemia de dança de Estrasburgo
em 1518, durante a qual, ao longo de um mês, quatrocentas pessoas dançavam
até cair — em alguns casos, até morrer — por motivos incompreensíveis.
Sequer havia música tocando.
Ou, como o dos habitantes de Hartlepool, Inglaterra, que, durante as
guerras napoleônicas, segundo reza a lenda, convenceram-se coletivamente de
que um macaco sobrevivente de um naufrágio era um espião francês e
enforcaram o pobre primata perplexo. As fake news existem já há algum
tempo.
E agora, claro, temos a tecnologia — a internet — que torna mais possíveis
e prováveis os comportamentos de grupo. Coisas diversas — músicas, tuítes,
vídeos de gatos — tornam-se virais em questão de um dia, ou de horas. A
palavra “viral” é perfeita para denominar o efeito de contágio causado pela
conjugação de natureza humana e tecnologia. E, é claro, não apenas vídeos,
produtos e tuítes se tornam contagiosos. Isso acontece com as emoções
também. Um mundo completamente conectado pode enlouquecer, todos ao
mesmo tempo.
Primeiros passos
A MESMA COISA outra vez.
— Matt, saia da internet.
Andrea tinha razão e estava apenas querendo cuidar de mim, mas eu não
queria ouvir.
— Está tudo bem.
— Não está tudo bem. Você está tendo uma briga com alguém. Você está
escrevendo um livro sobre como conviver com o estresse da internet e ainda
assim ca se estressando na internet.
— Não é nada disso. Estou tentando entender por que nossa mente é
afetada pela modernidade. Estou escrevendo sobre o mundo como um planeta
nervoso. De que forma nossa psicologia está conectada. Estou escrevendo sobre
todos os aspectos de um...
Ela mostrou as palmas das mãos.
— Está bem. Não quero ouvir uma TED talk.
Suspirei.
— Só estou respondendo a um e-mail.
— Não. Não está.
— Está bem. Estou no Twitter. Mas há uma coisa que eu gostaria de
esclarecer...
— Matt, isso é com você. Mas pensei que a ideia disso tudo fosse conseguir
que você não casse assim.
— Assim como?
— Tão envolvido numa coisa em que não devia se envolver. Só não quero
que que mal. E é assim que você ca mal. Só isso.
Ela saiu da sala. Olhei para o tuíte que estava a ponto de postar. Aquilo não
ia acrescentar nada à minha vida. Ou à vida de qualquer outra pessoa. Só ia me
levar a checar repetidamente meu celular, como Pepys fazia com seu relógio de
bolso. Apertei a tecla “deletar” e senti um estranho alívio enquanto via cada
letra desaparecer.
Ode às redes sociais
QUANDO A RAIVA captura a internet,
Procurando um anzol;
É hora de desconectar,
E ir embora ler um livro.
Espelhos
OS NEUROBIÓLOGOS IDENTIFICAM o “efeito espelho” como uma das rotas
neurais que é ativada, no cérebro dos primatas — inclusive o homem —,
durante a interação com os outros.
Numa época conectada, os espelhos se tornaram maiores.
Quando as pessoas cam assustadas depois de um acontecimento horrível, o
medo se espalha como um incêndio digital.
Quando as pessoas sentem raiva, a raiva germina.
Mesmo quando pessoas com opiniões contrárias às nossas mostram uma
emoção, sentimos uma coisa parecida. Por exemplo, se por alguma razão
alguém que esteja on-line car furioso com você, é pouco provável que você
acate a opinião dele, mas bastante provável que adote a mesma fúria. Isso se vê
todos os dias nas redes sociais: pessoas discutindo entre si, combatendo a
posição oposta à sua, mas re etindo o mesmo estado emocional do outro.
Já z isso muitas vezes, e é por isso que Andrea estava desapontada comigo.
Eu tinha me envolvido numa discussão com alguém que me chamou de
“menino mimado”, ou “esquerdinha”, ou que tuitou “O LIBERALISMO É
UM DISTÚRBIO MENTAL”. Estou cansado de saber que discutir pela
internet não é a maneira mais satisfatória de passar o pouco tempo que temos
na Terra, mas mesmo assim faço isso, às vezes meio sem controle. Reconheço
isso agora. E preciso parar com isso.
Seja como for, a questão é que mesmo sendo politicamente muito diferente
das pessoas com quem discuto, do ponto de vista psicológico nos damos corda
reciprocamente e alimentamos os mesmos sentimentos raivosos. Oposição
política, mas re exo emocional.
Certa vez, quando estava em estado de ansiedade, tuitei uma coisa idiota.
“A ansiedade é meu superpoder”, disse.
Não quis dizer que ansiedade seja uma coisa boa. Quis dizer que a
ansiedade era tão ridiculamente intensa que nós, que a temos em excesso,
passamos pela vida como um ansioso Clark Kent ou um atormentado Bruce
Wayne, conhecendo o segredo de quem somos. E que isso pode representar o
peso de uma incontrolável torrente de pensamentos e desespero, mas também,
ocasionalmente, nos convence de que tem um lado positivo.
Por exemplo, no meu caso, estou grato por ter me forçado a parar de fumar,
a estar sicamente saudável, que tenha me feito entender o que era bom para
mim, e quem se importava comigo e quem não se importava. Sou grato por ter
me levado a tentar ajudar outras pessoas que vivem isso e sou grato por ter me
levado — durante os bons momentos — a viver a vida mais intensamente.
Foi essencialmente isso o que escrevi em Razões para continuar vivo . Mas
naquele tuíte eu não tinha me expressado muito bem. E, de repente, estava
chamando a atenção no Twitter.
Decidi deletar meu tuíte, mas já tinham capturado a imagem e estavam
cerrando leiras para dirigir sua ira contra mim.
“SUPERPODER???? VSF!!!” “@matthaig1 É VENENOSO”
“Delete sua conta”, “Idiota de merda” e assim por diante.
E você continua ligado, assustado, observando essa trombada que você
mesmo causou, enquanto sua linha do tempo vai se enchendo com dezenas,
depois com centenas de pessoas bravas convencidas de que ganham um ponto
cada vez que tocam um nervo exposto. Aliás, “tocar um nervo exposto” é uma
expressão irrelevante para quem tem ansiedade. Todo nervo é um nervo
exposto.
A raiva se torna contagiosa e quase uma força física irradiando da tela. Meu
coração começou a bater duas vezes mais rápido. Tudo parecia estar chegando
ao m. O ar tornou-se espesso. Fiquei encurralado. Comecei a me sentir um
pouco como se a realidade estivesse derretendo. “Que merda, que merda, que
merda.” Me perdi num breve ataque de pânico. Senti uma insana combinação
de culpa, medo, raiva defensiva, e decidi nunca mais tuitar sobre meu modo de
sair da ansiedade.
É melhor guardar algumas coisas para nós mesmos.
Mas também — e mais importante — eu queria achar um jeito de impedir
que a opinião dos outros sobre mim se tornasse minha própria opinião sobre
mim. Queria criar uma espécie de imunidade emocional. As redes sociais,
quando você se envolve demais, podem fazer com que você se sinta dentro de
uma bolsa de valores na qual você — ou sua personalidade virtual — é a ação.
E quando as pessoas começam a chegar, você sente que seu preço está
disparando. Queria me ver livre daquilo. Eu queria car psicologicamente
desconectado. Para ser um mercado autorregulado, do ponto de vista
psicológico. Sentir-me à vontade com meus próprios erros, sabendo que todo
ser humano vale mais do que eles. Permitir a mim mesmo entender que
conheço meus mecanismos internos melhor que um estranho. Poder deixar
que outras pessoas achem que sou um idiota sem sentir que sou mesmo.
Preocupar-me com outras pessoas, mas não com suas incompreensões a meu
respeito dentro da fábrica de opiniões que é a internet.
Como manter o equilíbrio na internet:
uma lista de mandamentos utópicos que
raramente observo, porque são di cílimos
1. PRATIQUE A ABSTINÊNCIA . Principalmente a abstinência de redes sociais.
Resista a qualquer excesso inconveniente para o qual você se sinta atraído.
Fortaleça os músculos da privação.
2. Não digite sintomas no Google a menos que queira passar sete horas
convicto de que estará morto antes da hora do jantar.
3. Lembre-se de que ninguém se importa realmente com o seu aspecto. Eles
se importam com o aspecto deles. Você é a única pessoa no mundo
preocupada com sua cara.
4. Entenda que o que parece real pode não ser. Quando o romancista
William Gibson pensou pela primeira vez na ideia daquilo que ele
chamaria de “ciberespaço” no conto “Burning Chrome” [Queimando
lme], de 1982, ele de niu-o como “alucinação consensual”. Acho essa
de nição muito útil quando co preso demais à tecnologia. Quando isso
afeta minha vida não digital. Toda a internet está distante do mundo
físico. Os aspectos mais poderosos da internet são re exos do mundo
of ine, mas réplicas do mundo exterior não são o mundo exterior real. É
a internet real, mas não passa disso. Claro, você pode fazer amigos reais
na internet. Mas a realidade não digital é ainda um teste útil para essa
amizade. Assim que você sai da internet — durante um minuto, uma
hora, um dia, uma semana — é incrível como ela desaparece depressa de
sua mente.
5. Entenda que as pessoas são mais do que uma postagem em redes sociais.
Pense em quantos pensamentos con itantes você pode ter num só dia.
Pense em todas as posições contraditórias que já assumiu na vida. Revide
a opiniões na internet, mas nunca deixe que uma opinião apressada de na
um ser humano completo. “Cada um de nós”, disse o físico Carl Sagan,
“é, de uma perspectiva cósmica, precioso. Se um ser humano discorda de
você, deixe-o assim. Em cem bilhões de galáxias, você não encontrará
outro igual.”
6. Não siga pessoas que detesta. Foi isso que prometi a mim mesmo desde o
dia de Ano-Novo de 2018, e até agora deu certo. Seguir pessoas que odeia
não proporciona foco a sua justa indignação. Alimenta-a. De uma
maneira perversa, isso reforça também sua câmara de ressonância,
fazendo você achar que só as opiniões alheias são extremas. Não procure
coisas que o façam infeliz. Não se compare a outras pessoas. Não se de na
em relação a outros. De na-se pelo que você é . E navegue de acordo com
isso.
7. Não entre no jogo das avaliações. A internet adora avaliações, sejam as da
Amazon, do TripAdvisor e do Rotten Tomatoes, sejam as de fotos,
atualizações e tuítes. Curtidas, favoritos, retuítes. Ignore-os. Avaliação
não é sinônimo de valor. Nunca se julgue por meio delas. Para agradar a
todo mundo você teria de ser a mais insípida das pessoas. William
Shakespeare é provavelmente o maior escritor de todos os tempos. No
Goodreads, ele tem uma média medíocre de 3,7.
8. Não passe a vida preocupado com o que está perdendo. Não seja budista
quanto a isso — está bem, seja só um pouco budista. A vida não é car
satisfeito com o que você está fazendo, mas com o que você está sendo.
9. Nunca troque uma refeição ou horas de sono pela internet.
10. Permaneça humano. Resista aos algoritmos. Não passe a ser uma
caricatura de si mesmo. Desligue os pop-ups de publicidade. Saia de sua
câmara de ressonância. Não permita que o anonimato transforme você
numa pessoa com vergonha de estar desconectada. Seja um mistério, não
um número. Seja alguém que um computador jamais poderia desvendar.
Mantenha a empatia. Quebre padrões. Resista a tendências robotizantes.
Permaneça humano.
Nunca perder o controle
ENTRE OS PROBLEMAS que enfrentaremos no próximo século, já que
mergulhamos cada vez mais fundo na tecnologia, um dos mais interessantes
pode ser o seguinte: como permanecer humano num cenário digital? Como
manter o controle de nós mesmos e nunca perdê-lo?
Tenha cuidado com o que você nge ser
DÉCADAS ANTES DE que qualquer pessoa tivesse uma conta no Instagram,
Kurt Vonnegut disse que “somos o que ngimos ser, portanto tenha cuidado
com o que você nge ser”. Isso parece especialmente certo na era das redes
sociais. Anteriormente nos apresentávamos ao mundo — escolhendo usar a
camiseta de uma banda, ou as palavras a dizer, ou que partes do corpo depilar
—, mas nas redes sociais o ato de se apresentar vai mais longe. Estamos sempre
a um passo de distância de nosso eu on-line. Fomos transformados em
mercadorias ambulantes. Nossos per s são bonecos de Guerra nas estrelas de
nós mesmos.
O retrato de um cachimbo não é um cachimbo, como disse Magritte. Existe
uma lacuna permanente entre o signi cante e o signi cado. O per l de seu
melhor amigo na rede não é seu melhor amigo. Uma atualização de status
sobre um dia no parque não é um dia no parque. E o desejo de mostrar ao
mundo o quanto você é feliz não é felicidade.
Como ser feliz
1. NÃO SE compare a outras pessoas.
2. Não se compare a outras pessoas.
3. Não se compare a outras pessoas.
4. Não se compare a outras pessoas.
5. Não se compare a outras pessoas.
6. Não se compare a outras pessoas.
7. Não se compare a outras pessoas.
Mais um clique
SE UM CAMUNDONGO receber comida toda vez que apertar uma alavanca, ele
vai continuar apertando. Mas não com a mesma frequência que um
camundongo que obtém resultados alternados — às vezes comida, às vezes
nada.
Eu pensava que as redes sociais eram inofensivas. Eu pensava que estava
nelas porque gostava. Mas então cava nelas mesmo quando já não estava
gostando. Lembrei aquele sentimento. Era o que você sente num bar às três da
manhã quando seus amigos já foram para casa.
Algoritmos comem empatia
AGORA, GRAÇAS A algoritmos mais inteligentes, quando fazemos nossas
compras somos expostos a uma porção de outras coisas de que poderíamos
gostar. Coisas que pessoas como nós comprariam.
Se estivermos no Spotify ou no YouTube ouvindo música, nos apresentam
uma lista de músicas que é quase exatamente a mesma que já estamos ouvindo.
Se estivermos no site da Amazon, mostram-nos os livros que as pessoas que
compraram este livro também compraram. Se estamos nas redes sociais,
dizem-nos para seguir pessoas parecidas às pessoas que já seguimos. Mais
como nós.
Somos levados a car em nosso lugar e a fazer um jogo seguro, porque as
empresas de internet sabem que em geral as pessoas gostam de ouvir, ler,
assistir, comer e usar o tipo de coisa que já ouviram, leram, assistiram,
comeram e usaram. Mas, ao longo da história, nem sempre pudemos fazer isso.
Tínhamos de sair, tratar com pessoas que não eram como nós e aceitá-las. Com
coisas que não eram como as coisas de que gostávamos. E era horrível .
Mas agora pode ser pior .
Agora podemos chegar a odiar profundamente qualquer pessoa que não
pense como nós. Os políticos podem acabar nunca tentando chegar ao outro
lado. A diferença tornou-se algo a temer, a desprezar, não a celebrar. Pessoas
com opiniões semelhantes acabam se separando, incapazes de tolerar mínimas
diferenças, até carem presas em sua pequena câmara de ressonância, lendo
um milhão de versões do mesmo livro, ouvindo a mesma música e retuitando
as próprias opiniões até o m dos tempos.
Mas somos humanos. Podemos resistir a isso. Podemos resistir ao
con namento numa pequena tribo digital. Podemos aceitar a vida em toda a
sua amplitude. Estamos buscando meios de fazer isso o tempo todo. Sim,
podemos ser uma confusão. Mas nossa força está nessa confusão. Não fazemos
coisas simplesmente porque elas fazem sentido. E nisso a internet pode ser
nossa aliada, não nossa inimiga. A internet contém um mundo. A internet
pode ser o que nós queiramos que seja. A internet pode nos levar aonde
quisermos. Temos apenas de garantir que somos nós — não a tecnologia, os
designers e engenheiros capazes de manipular todos os nossos estados
emocionais — os que fazem as coisas.
O que as pessoas das redes sociais pensam
das redes sociais
EM MINHA SAGA determinada a isolar minha mente do planeta nervoso,
comecei a imaginar como me sentiria se abandonasse todas as redes sociais. E
então, para fazer uma ideia de como seria a vida sem as redes sociais, eu, hã,
recorri às redes sociais. Decidi fazer a alguns de meus seguidores no Twitter
uma pergunta simples e decisiva: “As redes sociais são boas ou ruins para sua
saúde mental?” A pergunta provocou uma comoção. Recebi mais de duas mil
respostas. Elas mostravam, é claro, um quadro complicado. No entanto,
considerando que são usuários constantes e ativos das redes sociais, o quadro é
mais para negativo. Ou seja, suponha que você pergunte a mesma coisa a
leitores, ciné los, cavaleiros ou montanhistas: seria pouco provável que tivesse
respostas tão diversas. Aliás, segue-se uma seleção signi cativa:
April Joy @AprilWaterson
É ao mesmo tempo um mecanismo de convivência e uma causa de ansiedade.
Quando co ansiosa, é legal rolar telas despreocupadamente e ler por distração.
Mas, ao mesmo tempo, a necessidade permanente de postar coisas que
infalivelmente serão julgadas pelas pessoas não é exatamente um pensamento
reconfortante.
Dean Smith @deansmith7
Ruins. Eu me surpreendo comparando minhas cenas íntimas (solidão,
ansiedade etc.) aos melhores momentos dos outros (popularidade, sucesso etc.).
Sei que esse não é um re exo verdadeiro da vida deles, mas mesmo assim me
abala.
Miss R! @Fabteachertips
Acho que quando estou para baixo, posso passar horas rolando as postagens
em minhas redes sociais sozinha na cama. Na verdade, não sei por que faço
isso, há muitas outras coisas úteis que eu podia estar fazendo. Isso não faz com
que me sinta melhor, com certeza.
Immi Wright @immi_wright
Saí do Facebook depois de chegar a níveis suicidas... e acho que comecei a me
sentir mais con ante em mim mesmo. Acho que o FB apresenta sempre o eu
ideal de cada pessoa. No Twitter estou seguindo apenas artistas de rock e
@dog_rates, assim quase não tenho com que me preocupar.
Kieran Sangha @kieran_sangha
É boa no sentido de poder se conectar com pessoas que entendem o que você
está sentindo. O lado ruim é que ela alimenta um vício, é como o abuso de
substâncias, e pode ter o poder de tomar conta de sua vida.
Hayley Murphy @hayleym_swvegan
Boa. Não existe ninguém, e quero dizer NINGUÉM que me entenda na “vida
real”. É literalmente uma tábua de salvação saber que não estou só. Qualquer
instrumento usado da forma errada pode ser perigoso, mas se usado da forma
certa pode ser incrível.
Bonnie Burton @bonniegrrl
As duas coisas. Boa porque posso fazer contato facilmente com pessoas que me
inspiram e que admiro. Ruim porque as redes sociais acabam sendo uma
plataforma de assédio porque não há consequências para comportamento
desprezíveis.
Shylah Ellis @MsEels
Quando era criança, sem as redes sociais, eu acreditava que era a única pessoa
que sofria de depressão. Sentia-me isolado o tempo todo e só tinha contato com
pessoas tóxicas. As redes sociais me permitiram interagir com pessoas incríveis
do mundo inteiro.
Kyle Murray @TheKyleMurray
Trabalho nas redes sociais, e mesmo achando que elas têm coisas positivas,
acho que as evitaria se pudesse manter contato com amigos distantes de outra
maneira. Elas foram transformadas em armas por pessoas detestáveis. Tenho
FB desde 2004 e principalmente por nostalgia continuo com ele.
James @james____s
Algo que ouvi: “O Facebook é onde todos mentem para os amigos. O Twitter é
onde dizem a verdade a estranhos.”
Abigail Rieley @abigailrieley
As duas coisas. Fiz amigos de verdade pela internet, e o apoio que você recebe
pode ser bem real, MAS se você estiver para baixo e sentindo-se diminuído
pode ser a janela para um mundo no qual cará trancado e isolado.
Kate Leaver @kateileaver
As duas coisas, mas é melhor do que a reputação que [as redes] têm. Pode levar
a crer que amizade autêntica pode ser mantida pelas redes sociais, o que é útil
quando você não pode sair de casa. Às vezes, só de dar uma olhada na vida dos
outros quando a gente está só/deprimida já pode ajudar.
Jayne Hardy @JayneHardy_
As duas coisas, preciso ter limites claros em torno delas, mas quando
administro e a rmo esses limites, as redes sociais são positivas para mim.
Gareth L Powell @garethlpowell
Para mim, escritor free-lance , o Twitter é como o bebedouro do meu escritório.
É para lá que vou para conversar com amigos e colegas. Sem ele, eu me sentiria
bem isolado.
Claire Allan @ClaireAllan
As duas coisas. Como escritora que trabalha sozinha, elas me dão a interação
social que preserva a sanidade. Mas acho que destacam o melhor e com maior
frequência o pior da humanidade, e assim aumentam minha ansiedade.
Yassmin Abdel-Magied @yassmin_a
São como qualquer outra coisa. Podem ser ótimas, mas precisam ser bem
administradas para que o bem supere o mal. Conheci alguns de meus melhores
amigos recentes através do Twitter.
Hollie Newton @HollieNuisance
Gosto das ideias, das notícias e das imagens coloridas. Gosto de ver como
andam meus amigos. Interagir. Mas se passar mais do que alguns minutos...
começo a me sentir cada vez mais insigni cante.
Cole Moreton @colemoreton
Não são boas. Elas me agitam, me atraem para discussões coléricas, co
enojado e saio. Depois o ciclo recomeça.
Rachel Hawkins @ourrachblogs
As duas coisas. O Instagram pode me provocar inveja. O Facebook me dá
raiva e o Twitter às vezes me estressa.
Kat Brown @katbrown
Ambas as coisas. Aproveito muito (trabalho, diversão, amigos, contatos), mas
sei que o foco da minha atenção desviou-se completamente. Com frequência,
minha atenção está on-line. O que vai acontecer? O que pode ter acontecido?
Notícias e dopamina = eca.
Nigel Jay Cooper @nijay
Há vezes em que me sinto como se estivesse numa sala cheia de gente gritando
e onde ninguém escuta, e tenho de sair... mas é também a maneira de conectar
as pessoas, tem o lado do apoio e do sentimento de comunidade. (1/2)
Para mim, a parte da equação mais importante é ter o celular “sempre ligado”.
Preciso criar tempo, deixando o telefone de lado e focando no mundo real que
me cerca, não no virtual. Para mim, administrar isso é o segredo para não ser
sobrecarregado pelas redes sociais. (2/2)
Como ser feliz (2)
NÃO COMPARE SEU eu real a um eu hipotético. Não se deixe afogar no mar do
“e se...”. Não confunda a cabeça imaginando outras versões de si mesmo, em
universos paralelos, onde você toma decisões diferentes. A era da internet
estimula a escolha e as comparações, mas não faça isso consigo mesmo. “A
comparação é o ladrão da alegria”, disse Theodore Roosevelt. Você é você. O
passado é o passado. A única maneira de ter uma vida melhor é daqui para a
frente. Concentrar-se em arrependimentos só faz transformar o presente em
algo que você vai desejar ter feito de outra maneira. Aceite sua realidade. Seja
humano e cometa erros. Seja humano a ponto de não temer o futuro. Seja
humano o bastante para ser, bem, o bastante . É muito mais fácil ser feliz
aceitando quem você é do que se sentindo péssimo consigo mesmo.
7
CHOQUE DE NOTÍCIAS
O efeito multiplicador
ESTE É UM planeta nervoso por bons motivos. O mundo pode ser assustador.
Polarização política, nacionalismo, ascensão de nazistas que se inspiram
mesmo em Hitler, elites plutocráticas, terrorismo, mudanças climáticas,
governos instáveis, racismo, misoginia, perda de privacidade, algoritmos cada
vez mais inteligentes colhendo nossos dados pessoais para ganhar nosso
dinheiro ou nossos votos, a inteligência arti cial e suas consequências, a
ameaça renovada de guerra nuclear, violações de direitos humanos, a
devastação do planeta. Mas não se trata apenas do que está acontecendo . A nal,
coisas terríveis sempre estavam acontecendo em algum lugar do mundo. A
diferença agora é que, graças às câmeras dos celulares, às notícias em tempo
real, às redes sociais e à conexão ininterrupta à internet, vivemos o que está
acontecendo em outro lugar de uma maneira mais direta, visceral e íntima do
que nunca. A experiência se multiplica e vaza de mil ângulos diversos.
Imagine que existissem redes sociais e câmeras de celulares durante a
Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Se as pessoas pudessem ver por seus
celulares, ao vivo e a cores, os resultados de cada bomba, a realidade de cada
campo de concentração ou os corpos ensanguentados e mutilados dos soldados,
a experiência psicológica coletiva teria espalhado o horror para muito além dos
indivíduos que o vivenciaram.
É bom ter em mente que a impressão que temos hoje — de que cada ano é
pior que o anterior — é, até certo ponto, apenas isso: uma impressão. Estamos
cada vez mais ligados nas farsas e horrores das notícias do mundo, o que
provoca algo deprimente. É um sentimento global de ruína. E a preocupação
real é que todos os medos que cresceram dentro de nós piorem ainda mais o
mundo.
Assistir ao vídeo de um ataque terrorista propicia imaginar um segundo
ataque, um que aconteça a qualquer momento, no lugar em que vivemos. De
nada adianta sabermos, em termos racionais, que temos muito mais
probabilidades de morrer de câncer, suicídio ou em um acidente de trânsito. O
terror sensacionalista que vimos nos noticiários é o que predomina em nossa
cabeça. E os políticos exploram isso, alimentam o medo e criam mais
divergências, o que leva a uma instabilidade maior e a mais oportunidades
para que os terroristas alcancem seu objetivo: semear o terror. E aí os políticos
e agitadores políticos fomentam ainda mais o medo.
É como um doente de um transtorno compulsivo, que continua a dar asas a
seus medos ao não sair de casa ou ao lavar as mãos duzentas vezes ao dia. Na
verdade, ele está fazendo mais mal a si mesmo que se protegendo. Mas dessa
vez o transtorno não é individual. É social. É global.
Choques ao sistema
A PALAVRA “CHOQUE” pulula no discurso dos comentaristas políticos na TV.
No século XXI, seja assistindo, lendo ou rolando por um feed de notícias,
parece haver uma torrente disso. De choque.
“Ah, merda, o que houve agora?” Essa é a reação geral.
De manhã você vê seu site de notícias preferido e se alarma.
O choque pode ser uma experiência desagradável para uma pessoa ou uma
sociedade, mas é valioso enquanto ferramenta política. Pergunte a qualquer
pessoa que tenha tido um baita ataque de pânico, e ela vai lhe contar que o
ataque faz com que você não pense em nada além do medo. Quando você está
em choque, ca confuso. Não pensa direito. Se torna passivo. Vai para onde
mandarem ir.
Naomi Klein cunhou o termo “doutrina do choque” para designar a tática
cínica de usar de modo sistemático “a desorientação pública que se segue a um
choque coletivo” para obter vantagem empresarial ou política. Companhias
petrolíferas explorando o choque causado por uma guerra para fazer incursões
em um novo país; ou um presidente americano explorando o terrorismo para
implantar medidas extremas contra a imigração.
“Não entramos em estado de choque quando acontece uma coisa grande e
ruim”, diz Klein. “Tem de ser algo grande e ruim que ainda não entendemos .”
E o problema é que agora temos cobertura de notícias 24 horas por dia. Os
acontecimentos estão surgindo sem parar, mas raramente são digeridos.
Estamos em um mundo de notícias, que, por sua própria natureza, revela
apenas a superfície do novo momento, enfeitado com manchetes e chavões que
poucas vezes nos fornecem uma compreensão mais calma e re etida do
panorama.
O choque provoca emoções negativas porém compreensíveis. Medo,
tristeza, impotência, raiva. A tentação de viver tuitando palavras de ódio às
injustiças do mundo é humana, mas não é o su ciente. A nal, isso pode servir
apenas para acrescentar mais lamentos à lamentação coletiva provocada pelo
choque que ajuda os que estão no poder, ou nos extremos políticos, que podem
querer nos distrair.
Quando alguém passa por um transtorno de pânico, a principal reação —
em meio ao terror — é sentir-se zangado e exausto. Mas, no processo de
recuperação, chega-se a um ponto no qual é preciso alcançar certo tipo de
compreensão e aceitação. Não por aquilo não ser muito ruim, mas justamente
por ser tão ruim .
Lembro-me de uma ocasião, durante uma crise depressiva, em que eu
olhava o céu iluminado pelas estrelas. A maravilha do universo.
Quando estava no fundo do poço, sempre tive de me forçar a ver a beleza, a
bondade e o amor, por mais difícil que fosse. Era algo difícil de fazer. Mas eu
tinha que tentar. A mudança não acontece se nos concentrarmos no lugar de
onde queremos escapar. Ela só ocorre quando focamos onde queremos
alcançar. Apoie os mocinhos, em vez de apenas atacar os vilões. Encontre a
esperança que já existe e a ajude a crescer.
Imagine
IMAGINE QUE SE por um dia chamássemos os seres humanos de seres humanos.
Nada de nacionalidade em primeiro lugar. Nem a religião que praticam. Nem
britânico. Nem americano. Nem francês. Nem alemão. Nem iraniano. Nem
chinês. Nem muçulmano. Nem sique . Nem cristão. Nem asiático. Nem negro.
Nem branco. Nem homem. Nem mulher. Nem CEO da Coca-Cola. Nem
membro de uma gangue. Nem mãe de três lhos. Nem historiador. Nem
economista. Nem jornalista da BBC. Nem usuário do Twitter. Nem
consumidor. Nem fã de Star Trek . Nem escritor. Nem com 17 anos. Ou com
39. Ou com 83. Nem conservador. Nem liberal. Que passássemos todos para
seres humanos. Da mesma forma como vemos todas as tartarugas como
tartarugas. Humano, humano, humano. Que nós nos obrigássemos a ver o que
ngimos saber. Que recordássemos que somos animais unidos como espécie
neste delicado pontinho azul do espaço, o único planeta conhecido que abriga
vida. Que nos banhássemos no milagre sentimental brega desse fato. Que nos
de níssemos pela sorte bizarra de não só estarmos vivos, mas também
conscientes disso. De que estamos aqui, agora, no planeta mais belo que
poderíamos conhecer. Um onde podemos respirar, viver, apaixonar-nos, comer
torradas com manteiga, cumprimentar cachorros, dançar ouvindo música, ler
Bonjour tristesse , ver dramalhões aos montes na TV, ver a luz do sol realçada
pelo contraste com a sombra escura na fachada de um edifício, sentir o vento e
a chuva em nossa pele macia, cuidar uns dos outros, perder-nos em devaneios e
sonhos e acabar-nos no doce mistério de nós mesmos. Um dia para sermos
essencialmente tão humanos quanto o próximo.
Seis maneiras de se manter atualizado sem
perder a cabeça
1. LEMBRE -SE DE QUE o modo pelo qual você reage às notícias não tem a ver
só com o conteúdo delas, mas com a maneira através da qual você as
recebe. A internet e os canais de notícias 24 horas relatam os fatos de um
modo desorientador. É fácil acreditar que as coisas estão cando cada vez
piores, quando elas nos fazem nos sentir pior. O meio não é apenas a
mensagem, é a intensidade emocional da mensagem.
2. Restrinja o número de vezes em que você vai atrás de notícias. Como
Debra Morse, minha amiga no Facebook, disse recentemente: “Lembre-
se de que em 1973 costumávamos receber notícias duas vezes por dia: de
manhã pelo jornal impresso e pelo noticiário vespertino da TV. E mesmo
assim nos livramos de Nixon.”
3. Convença-se de que o mundo não é tão violento quanto parece. Muitos
escritores que abordam esse tema — como o famoso psicólogo cognitivo
Steven Pinker — mostraram que, apesar de todos os seus horrores, a
sociedade é menos violenta do que já foi. “Ainda existe violência, sem
dúvidas”, a rma o historiador Yuval Noah Harari. “Vivo no Oriente
Médio, portanto sei disso perfeitamente. Mas, em termos comparativos,
há menos violência hoje que em qualquer outro momento da história.
Atualmente, morre mais gente por comer demais do que como vítima da
violência humana, o que é mesmo uma conclusão surpreendente.”
4. Fique perto dos animais. Os animais não humanos são terapêuticos por
inúmeros motivos. Um deles é que os animais não têm nada a ver com
notícias. Cachorros, gatos, peixes e antílopes não ligam para
absolutamente nada. As coisas importantes para nós — política, economia
e todas essas coisas variáveis — não têm importância para eles. E mesmo
assim a vida deles, como a nossa, continua. Como escreveu A. A. Milne
em O ursinho Puff : “Muita gente conversa com os animais. Mas poucas os
escutam. Esse é o problema.”
5. Não se preocupe com coisas que você não pode controlar. O noticiário
está cheio de coisas em relação às quais você não pode fazer nada. Faça o
que estiver ao seu alcance — ajude a conscientizar os outros sobre
questões que lhe preocupam, doe o que puder a qualquer causa que o
cative e aceite as coisas que você não pode fazer .
6. Lembre-se de que ouvir más notícias não quer dizer que boas coisas não
estejam ocorrendo. Elas acontecem em toda parte. Estão transcorrendo
neste instante. No mundo todo. Em hospitais, casamentos, escolas,
escritórios e maternidades, nos portões de desembarque dos aeroportos,
em quartos, em caixas de correio, na rua, no sorriso gentil de um
estranho. Um bilhão de maravilhas não vistas da vida cotidiana.
Em louvor à positividade
MEU VELHO EU, antes de car doente, era cético quanto à positividade, quanto
a músicas alegres, pores do sol cor-de-rosa e palavras otimistas de esperança.
Mas, quando eu quei doente — quando estava no pior da doença —, minha
vida passou a depender do abandono daquele meu lado pessimista. O cinismo
tornou-se um luxo para os não suicidas. Eu precisava encontrar a esperança. A
coisa com plumas . Minha vida dependia disso.
Pode parecer que forço um pouco a barra quando relaciono a cura
psicológica à cura social e política, mas se o pessoal é político, o psicológico
também o é. O clima político atual parece ser de divisão — uma que é, até
certo ponto, alimentada pela internet.
Precisamos redescobrir o que temos em comum enquanto seres humanos.
Como isso pode acontecer? Bem, uma invasão alienígena seria um meio, mas
não podemos car dependendo disso.
O problema da política é o problema das tribos. “Quando separa-se por
credo, nacionalidade ou tradição, gera-se violência”, ensina o lósofo Jiddu
Krishnamurti.
Uma coisa que a doença mental me ensinou foi que progresso é uma
questão de aceitação. Só é possível mudar uma situação após aceitá-la. É
preciso aprender a não se deixar chocar pelo choque. Não entrar em pânico
pelo pânico. Mudar o que está ao seu alcance e não car frustrado pelo que não
se pode mudar.
Não existe panaceia, tampouco utopia; existe apenas amor, bondade e a
tentativa de, em meio ao caos, melhorar o que for possível. E manter a mente
aberta, bem aberta, em um mundo que tantas vezes quer fechá-la.
8
UM BREVE ENSAIO SOBRE O
SONO
A guerra do sono
ATÉ 1879, QUANDO Thomas Edison criou a primeira lâmpada incandescente
viável, toda a iluminação era a gás e óleo. A lâmpada, promovida em peso pela
Edison & Swan United Electric Light Company, acendeu, literalmente, o
planeta. A lâmpada elétrica era prática — pequena, barata e segura —, emitia
a quantidade certa de luz e começou a fazer sucesso nas casas e empresas do
mundo inteiro.
Finalmente, os seres humanos tinham subjugado a noite. A escuridão —
fonte de tantos de nossos medos primitivos — agora podia ser anulada com o
acionar de um interruptor. E então, como podíamos manter nossas noites
iluminadas até mais tarde, as pessoas começaram a se deitar mais tarde. Isso
não preocupou Edison em absoluto. Com efeito, ele via isso como uma coisa
inequivocamente boa. Em 1914, Edison — na época considerado um ícone
mundial, mesmo estando vivo — declarou que “não há na verdade motivo
algum para os homens irem para a cama”. E foi além: achava que dormir fazia
mal e que o excesso de sono tornava as pessoas preguiçosas. Acreditava que a
lâmpada elétrica era uma espécie de remédio e que a luz arti cial poderia
curar pessoas “doentias e ine cientes”.
Ele estava errado, é claro. Sem sono não funcionamos direito.
Os seres humanos, assim como as aves e as tartarugas marinhas, têm
relógios biológicos. Temos o ciclo circadiano, ou seja, nosso corpo funciona de
maneiras diferentes em diferentes momentos do dia. O corpo evoluiu para
funcionar de modos diversos de noite e de dia. Daqui a 150 mil gerações talvez
os seres humanos se adaptem à luz arti cial, mas hoje nosso corpo e nossa
mente ainda são o corpo e a mente dos seres humanos que existiam antes que
Edison patenteasse a lâmpada elétrica. Em outras palavras, precisamos dormir.
Mesmo assim, não estamos dormindo o quanto deveríamos. A Organização
Mundial de Saúde — que reconheceu uma perda de sono epidêmica nos países
industrializados — recomenda que se durma de sete a nove horas por noite.
Mas nem todos fazem isso. Segundo uma pesquisa da American National
Sleep Foundation [Fundação Nacional Americana do Sono], americanos,
britânicos e japoneses em média dormem bem menos de sete horas por noite
enquanto em outros países — como Alemanha e Canadá — a média se
aproxima da marca das sete horas. Segundo outra pesquisa, esta da Gallup,
hoje se dorme em média uma hora a menos que em 1942.
No entanto, a luz arti cial não é o único fator responsável por isso.
Especialistas em sono indicam o modo de se trabalhar hoje em dia, bem como
o crescimento da sensação de solidão e da ansiedade, que contribuem para
nossa vontade de car de pé conversando ou nos distraindo em um mundo 24
horas por dia frenético.
Há muitos estímulos para permanecer acordado. Muitos e-mails para
responder. Muitos episódios de nossa série preferida para assistir. Muita
compra on-line para fazer. Leilões no eBay para acompanhar. Muitas notícias
para carmos em dia. Muitas redes sociais para atualizar, espetáculos para ir,
livros para ler, possíveis paqueras com quem conversar, ambições para
alcançar. Há muita gente — discípulos inadvertidos de Edison — querendo
nos manter acordados.
Todos nós sabemos que camos mais propensos à tristeza, às preocupações e
à irritação quando não dormimos. O sono é essencial para nosso bem-estar. Se
não dormimos bem, nosso estado físico e mental está vulnerável a sofrer graves
consequências. Enquanto alguns efeitos da privação de sono são discutíveis,
outros são fonte de amplo consenso dentro da comunidade médica. Por
exemplo, segundo pesquisas e fontes abundantes e convergentes, a privação de
sono acarreta:
— Debilidade do sistema imune
— Risco aumentado de doença coronariana
— Risco aumentado de AVC
— Risco aumentado de diabetes
— Risco aumentado de acidente de carro
— Maior incidência de câncer de mama, cólon e próstata
— Prejuízo da habilidade de se concentrar
— Interferência na memória
— Risco aumentado de mal de Alzheimer
— Maior probabilidade de ganho de peso
— Redução da libido
— Aumento no nível de cortisol, o hormônio do estresse
— Aumento da probabilidade de sofrer de depressão
Como o “cientista do sono” Matthew Walker, da Universidade da
Califórnia, declara no livro Por que nós dormimos : “Parece não haver um órgão
importante no corpo ou processo no cérebro que não sejam otimizados pelo
sono [...] O prejuízo físico e mental causado por uma noite de sono ruim é
muito maior do que os causados por uma equivalente falta de alimento ou de
exercício.”
Dormir é essencial e muito bom. Além disso, o sono é inimigo tradicional
do consumismo. Não podemos comprar quando estamos adormecidos. Não
podemos trabalhar, ganhar dinheiro ou postar no Instagram. Pouquíssimas
empresas, exceto pelos fabricantes de camas, edredons e cortinas blecaute, são
capazes de ganhar dinheiro com o sono. Ninguém encontrou ainda um jeito de
construir um shopping center no qual se entre através do sono, onde os
anunciantes possam comprar espaços de nossos sonhos e nós gastemos dinheiro
estando inconscientes.
Aos poucos, o sono está se tornando um pouco mais comercializável. Já
existem clínicas e institutos particulares do sono, onde se paga por conselhos
sobre como dormir melhor. Existem “sleep trackers” [monitores para o sono],
que monitoram os movimentos e foram criticados (por exemplo, em um artigo
do Guardian de 2018 sobre “clean sleeping” [expressão usada para se referir à
priorização do sono]) por serem pouco precisos e só servirem para aumentar a
ansiedade em relação ao sono.
Mas este ainda continua sendo, em grande medida, um espaço sagrado,
distante da distração. É por isso que quase ninguém consegue ir cedo para a
cama.
E agora, nessa etapa tardia do capitalismo, o sono passou a ser visto não só
como algo que atrasa o trabalho, mas como verdadeiro rival dos negócios.
O principal executivo da Net ix, Reed Hastings, acredita que o sono — e
não a HBO, a Amazon ou qualquer outra prestadora de serviços de streaming
— é o maior concorrente de sua empresa. “Sabe como é, pense nisso”, disse ele
em um encontro do setor em novembro de 2017, citado na revista Fast
Company . “Quando você vê um programa da Net ix e ca viciado nele, vai
car acordado até tarde [...] estamos concorrendo com o sono, no limite. E é
um bom naco de tempo.”
Portanto, essa é a posição em relação ao sono: algo do qual se deve
descon ar porque diz respeito a um período em que não estamos conectados,
consumindo, pagando. E essa é também nossa atitude em relação ao tempo:
algo que não se deve desperdiçar descansando, existindo, dormindo. Somos
governados pelo relógio. Pela lâmpada. Pelo brilho da tela do celular. Pela
sensação de insatisfação a que somos levados a ter. A de que nada é su ciente.
Nossa felicidade está sempre logo ali. Sempre a uma compra, a uma interação
ou a um clique de distância. Esperando, brilhando, como a luz no m do túnel
que nunca conseguimos alcançar.
O problema é que simplesmente não fomos feitos para passar a vida à luz
arti cial. Não fomos feitos para acordar ao toque do despertador e para
adormecer sob a intensa luz azul do celular. Vivemos em sociedades 24 horas,
mas não temos um corpo 24 horas.
Alguma coisa tem que mudar.
Como dormir em um planeta nervoso
EXISTE TODO TIPO de soluções pagas ou tecnológicas. Desde os aparelhos que
monitoram o sono a lâmpadas que não emitem luz azul, da hipnoterapia às
máscaras de dormir. Mas muitos desses produtos de consumo tentam
aumentar nossa ansiedade em relação ao sono.
Na verdade, os melhores métodos são simples. O conselho mais consistente
dos especialistas recomenda adotar uma rotina, evitar cafeína, nicotina e a
ingestão de álcool à noite (assino embaixo de tudo isso), fazer exercícios pela
manhã, evitar refeições pesadas à noite, relaxar antes de ir para a cama e pegar
luz natural durante o dia.
Fazer dez minutos de ioga leve (muito leve) e respirar devagar me
ajudaram durante crises de ansiedade, quando dormir era um problema.
Mas uma das soluções mais e cazes, ainda que um pouco entediante, é
surpreendentemente simples. Segundo o professor Daniel Forger, da
Universidade de Michigan, que lidera uma equipe de pesquisadores sobre os
hábitos de sono no mundo todo, estamos diante de uma “crise global de sono”,
já que a sociedade nos induz a car acordados até tarde. A solução, como ele
disse à BBC, é não car na cama até mais tarde que o necessário. É ir para a
cama um pouco mais cedo, uma vez que, quanto mais tarde se deita, menos se
dorme. Por outro lado, a hora que nos levantamos de manhã faz muito pouca
diferença. Mas o simples ato de ir para a cama um pouco mais cedo exige uma
mudança cultural. “Se observarmos países onde de fato se está dormindo
menos, vou me preocupar menos com despertadores e mais com o que as
pessoas fazem à noite — elas estão indo a grandes jantares às 22 horas ou os
outros esperam que elas voltem ao escritório?”
Outra solução é ser disciplinado quanto ao uso do laptop e do celular, e
tentar não os usar na cama, já que a luz azul afeta negativamente a produção
de melatonina, o hormônio do sono.
Aliás, acabo de perceber que já passa da meia-noite enquanto digito isto.
Melhor fechar o laptop. E vou tentar adormecer sem nem checar o celular.
9
PRIORIDADES
Visita a um abrigo para moradores de rua
MESMO QUANDO O mundo não está nos aterrorizando de maneira explícita, a
velocidade, o ritmo e a alienação da existência moderna podem representar
uma espécie de ataque mental difícil de identi car. Às vezes, a vida parece
demasiado complicada, demasiado desumanizante, e perdemos de vista o que é
importante.
Há poucos meses, estive em um abrigo para sem-teto. Ficava em Kingston
upon Thames, um próspero subúrbio londrino. Muita gente teria di culdade
de imaginar que moradores de rua são uma questão lá.
Eu tinha sido convidado para falar sobre livros e saúde mental. O intuito do
lugar — o premiado Joel Centre — é maior do que oferecer uma cama à noite.
Seu lema é: “Ajudar as pessoas a acreditar em si mesmas.” Um voluntário me
disse que a ideia defendida por eles é que “as pessoas que estão aqui precisam
de mais do que um lugar para dormir: falta-lhes pertencimento . Pretendemos
dar-lhes isso. O problema é a falta de um lar, não a falta de uma casa. E
quando você não tem um lar, o que lhe falta vai além de um quarto onde
dormir”. Ele contou também que trabalhar ali fez com que percebesse o que as
pessoas “realmente precisam na vida — sem todo o supér uo”.
Assim, as pessoas que estavam ali, além de ter acesso a uma cama e um
armário com chave e acesso a banheiro e máquina de lavar, sentavam-se à mesa
com outros hóspedes e faziam uma refeição completa todos os dias. Muitas
vezes os hóspedes ajudavam a preparar a refeição, além de participar
ativamente da limpeza do abrigo, dos cuidados com o jardim e de oferecer
ajuda à comunidade.
O abrigo é deles . Eles são parte do abrigo.
Depois de falar com eles sobre minha experiência com problemas de saúde
mental, comecei a conversar com o homem ao meu lado. Tinha mais ou menos
a minha idade. Parecia ter passado por muita coisa, mental e sicamente, mas
estava sorrindo. Ele me contou que acabou virando sem-teto porque, quando
seu relacionamento terminou, ele entrou em uma depressão cuja existência ele,
na época, se recusava a admitir e depois tornou-se dependente de álcool.
Declarou que o Joel Centre salvara sua vida. Indicou a direção da porta e disse
que “lá fora” a vida não fazia sentido. Ele se perdera nela.
Achava o mundo desumano. Ali, no entanto, as coisas eram simples. “Só
conversar com as pessoas, sentar-se à mesa com as pessoas, trabalhar para
coisas que podem ser vistas.”
Foi essa a impressão que tive do lugar. Era como um processo de destilação
das coisas das quais as pessoas precisam na vida. E deixava de fora, com rigor,
tudo aquilo que prejudicava os hóspedes — o lugar era muito rígido quanto a
bebida, drogas etc. Tinham pensado muito bem no que deixar entrar e no que
deixar de fora.
Embora a maior parte das pessoas esteja em uma situação melhor que os
hóspedes do Joel Centre, o lema deles é bom para ser adotado. E
aparentemente simples. Valorizar as coisas que o façam se sentir bem, cortar o
que o faz se sentir mal e deixar as pessoas conectadas de fato com o mundo a
seu redor.
Creio que esse seja o maior dos paradoxos ao se tratar do mundo moderno.
Estamos todos conectados uns aos outros, mas muitas vezes nos sentimos
desligados. O peso e a complexidade crescentes da vida moderna podem isolar
os indivíduos.
Acrescente-se a isso o fato de que nem sempre sabemos exatamente o que
nos faz sentir sozinhos ou isolados. Pode ser difícil descobrir quais são os
problemas. É como tentar sozinho abrir um iPhone para consertá-lo. Às vezes
parece que a sociedade funciona como a Apple, como se não quisesse que
pegássemos uma chave de fenda e olhássemos o interior do aparelho para ver
por conta própria qual é o problema. Mas isso é o que precisamos saber.
Porque muitas vezes identi car o problema, estar consciente dele, é a solução.
Multidões solitárias
O PARADOXO DA vida moderna é: nunca estivemos mais conectados e nunca
estivemos tão sozinhos. O carro substituiu o ônibus. O home of ce (ou o
desemprego) substituiu o chão da fábrica e, cada vez mais, o escritório. A TV
substituiu a sala de espetáculo. A Net ix está se tornando o novo cinema. As
redes sociais são o encontro com amigos no bar. O Twitter substituiu a hora do
cafezinho. E o individualismo substituiu o coletivismo e a comunidade. Temos
cada vez menos conversas cara a cara e mais interações com avatares.
Os seres humanos são criaturas sociais. Somos, como diz George Monbiot,
“as abelhas mamíferas”. Mas nossas colmeias mudaram de maneira radical.
Venho notando, ao longo dos anos, que o número de meus amigos virtuais
está aumentando enquanto o de amigos que vejo na vida real está diminuindo.
Decidi mudar isso. Estou me esforçando para sair e me encontrar com
amigos pelo menos uma vez por semana, e isso está fazendo com que eu me
sinta melhor.
Não tenho a nostalgia do vinil ou dos CDs, mas tenho saudade do contato
cara a cara. Não do contato pelo Facetime. Não do contato pelo Skype. Mas
conversar realmente com uma pessoa, faça chuva ou faça sol, sem nada entre
nós além do ar. Em casa, estou tentando deixar de lado o laptop e conversar
com meus lhos para eles não crescerem achando que são menos importantes
que um MacBook Pro. Estou tentando não deixar de ver amigos só porque não
quero me dar o trabalho.
E isso exige um esforço. É di cílimo. Há dias em que penso que seria mais
fácil convencer a Coreia do Norte a desistir de seu programa nuclear do que
me convencer a não entrar nas redes sociais dezessete vezes antes do café da
manhã.
A socialização on-line é fácil . É à prova de chuva e sol . Nunca exige um táxi
ou uma camisa bem-passada. E às vezes é uma maravilha. Com frequência, é
uma maravilha.
Mas lá bem no fundo, bem no fundo, nos subterrâneos da minha alma, eu
sei que o ambiente empresarial sem cheiros, com luz arti cial, digitalizado e
divisionista não pode satisfazer todas as minhas necessidades, assim como uma
refeição para viagem não substitui o puro prazer de comer em um bom
restaurante. E eu — uma pessoa cuja ansiedade já chegou à agorafobia — me
obrigo cada vez mais a passar mais tempo nessa coisa confusa e tempestuosa
que às vezes chamamos, romanticamente, de mundo real .
Como car sozinho
VOCÊ JÁ OUVIU alguém que tem lhos reclamando da constante necessidade de
distrair as crianças?
Você sabe como é. “Quando eu era menino, podia car sentado no banco de
trás do carro olhando as nuvens e a grama durante 17 horas e cava superfeliz.
Agora nossa pequena Misha não ca cinco segundos no carro sem assistir a
Alvin e os esquilos ou concentrada em joguinhos eletrônicos ou tirando sel es
com ltro de unicórnio...”
Esse tipo de coisa.
Bem, há uma verdade óbvia nisso. Quanto mais estímulo se recebe, mais
fácil ca se sentir entediado.
E esse é outro paradoxo.
Em teoria, nunca foi tão fácil carmos sozinhos. Sempre há alguém com
quem se possa conversar pela internet. Se estamos distantes de nossos
familiares ou amigos, podemos falar com eles e vê-los pelo Skype. Mas a
solidão é um sentimento como outro qualquer. Quando sofri de depressão,
tinha a sorte de contar com pessoas que me amavam ao meu redor. Mas nunca
me senti tão sozinho.
Acho que a escritora americana Edith Wharton foi a mais sábia das pessoas
no que se refere à solidão. Ela acreditava que o remédio não era estar sempre
acompanhado, mas encontrar um meio de car satisfeito com a própria
companhia. Não ser antissocial, mas não ter medo da própria presença
desacompanhada.
Ela achava que a cura para a infelicidade era “decorar tão bem nossa casa
interior a ponto de nos sentirmos bem, felizes por receber quem quiser chegar
e car, mas igualmente felizes quando estar sozinho for inevitável”.
10
MEDOS TELEFÔNICOS
Uma sessão de terapia no ano 2049
TERAPEUTA ROBÔ : ENTÃO , qual é o problema?
MEU FILHO : Bem, acho que tem a ver com meus pais.
TERAPEUTA ROBÔ : É mesmo?
MEU FILHO : Com meu pai, para ser mais especí co.
TERAPEUTA ROBÔ : O que havia de errado com ele?
MEU FILHO : Ele cava o tempo todo no celular. Eu me sentia como se ele se
importasse mais com o celular do que comigo.
TERAPEUTA ROBÔ : Tenho certeza de que não era bem assim. Muitas pessoas da
geração dele não sabiam das consequências do uso do celular. Não sabiam que
era tão viciante. Você precisa lembrar que isso era relativamente novo naquela
época. E todo mundo fazia a mesma coisa.
MEU FILHO : Bem, isso me deixou com questões mal resolvidas. Eu pensava:
por que ele não me acha tão interessante quanto o Twitter? Por que ele não
prefere olhar para mim em vez de para a tela do celular? Se pelo menos eu não
tivesse a impressão de que precisava distraí-lo para conseguir sua atenção... Isso
aconteceu antes da revolução de 2030, é claro.
TERAPEUTA ROBÔ : Sei... Onde seu pai está agora?
MEU FILHO : Ah, morreu em 2027. Foi atropelado por um carro sem motorista
enquanto procurava um GIF engraçado.
TERAPEUTA ROBÔ : Que tristeza! E o que você vem fazendo desde então?
MEU FILHO : Investi em um pai robô. Dei uma olhada em todas as opções de
hologramas, mas queria um pai que eu pudesse abraçar. E programei-o para
nunca checar suas noti cações. Ele sempre está presente quando quero.
TERAPEUTA ROBÔ : É ótimo ouvir isso.
Como ter um celular e continuar
funcionando como um ser humano
1. NÃO PENSE QUE precisa estar sempre disponível. Nos tempos nem tão
remotos das cartas e do telefone xo, entrar em contato com uma pessoa
demorava, nem sempre dava certo e exigia um esforço. Na era do
WhatsApp e do Messenger, é grátis, fácil e instantâneo. A contrapartida
dessa prontidão é a expectativa de que estejamos sempre disponíveis. Para
atender ao telefone. Para retornar as mensagens de texto. Para responder
e-mails. Para atualizar as redes sociais. Mas podemos escolher não sentir
essa obrigação. Às vezes, podemos apenas deixar os outros esperando .
Podemos deixar nossas redes sociais desatualizadas. E se a amizade for
verdadeira, eles vão compreender que precisamos dar um tempo. E se
não... por que se incomodar em responder?
2. Desative as noti cações. Isso é indispensável. É o que mantém (mais ou
menos) minha sanidade. Todas as noti cações, todas mesmo. Você não
precisa de nenhuma delas. Recupere o controle.
3. Algumas vezes por dia, que longe do celular. Tudo bem, não sou bom
nisso. Mas estou melhorando. Ninguém precisa do telefone o tempo
inteiro. Não precisamos dele ao lado da cama. Não precisamos dele
quando estamos comendo em casa. Não precisamos deles ao sair para
correr. Uma coisa que estou fazendo agora: saio para uma caminhada sem
o celular. Sei que pode parecer ridículo mencionar isso como um grande
progresso, mas no meu caso foi. É como fazer exercício. Exige esforço.
4. Não cheque a tela do celular a cada dois minutos para ver se há novas
mensagens de texto. Tente sentir esse impulso de checar sem sucumbir a
ele.
5. Não deixe que sua ansiedade dependa da carga de bateria que resta no
celular.
6. Não xingue o celular. Não implore ao celular. Não negocie com o celular.
Não jogue longe o celular. Ele é indiferente a seus sentimentos. Se ele
car sem sinal ou sem bateria, não é porque odeia você. É porque é um
objeto inanimado. Em suma, ele é um telefone.
7. Não deixe o celular ao lado da cama. Aliás, isso não é uma crítica. Muita
gente dorme perto do celular porque o usa como despertador. Muitas
vezes durmo com o celular na mesa de cabeceira. Meus pais dormem com
os deles na mesa de cabeceira. Todo mundo que conheço leva o celular
para perto da cama. Talvez um dia nossas camas sejam os nossos celulares.
Mas realmente durmo melhor sem o celular ao lado. Sabe como é, se ele
estiver em outro cômodo, ou só por estar em outra parte do quarto. Sei
que isso pode parecer impraticável. Mas é bom ter um objetivo que deseja
alcançar. Um sonho do qual correr atrás. Fantasiar sobre o dia em que
sejamos fortes o bastante para não precisar nunca ter o telefone ao lado da
cama. Como nos velhos tempos. Século XIX. Século XX. 2006.
8. Pratique o minimalismo quando se trata de aplicativos. Um excesso de
aplicativos e opções aumenta seu leque de possibilidades, mas também o
estresse por uso do telefone. Oferecem-nos uma quantidade quase in nita
de coisas para baixar em nossos celulares. Porém mais opções levam a
mais decisões e a mais estresse. Você nasceu sem qualquer aplicativo em
seu celular. Ei! Sabe o que mais? Você nasceu sem qualquer telefone. E
ainda assim a vida era bela.
9. Não tente fazer tudo ao mesmo tempo. Temos celulares com mil funções,
desde ler mapas até indicar como a nar um violão, e é tentador imaginar
que podemos fazer tantas coisas, todas ao mesmo tempo. Por exemplo,
quando eu estava escrevendo sobre este ponto, tive de fazer um esforço
consciente para parar de checar e-mails, mensagens de texto, redes sociais.
Foi preciso empenho. Segundo o neurocientista Daniel Levitin, não
fomos feitos para o volume de tarefas simultâneas que a era da internet
nos incentiva a desempenhar. “Embora achemos que estamos fazendo
muita coisa, na verdade as tarefas simultâneas nos tornam
comprovadamente menos e cientes”, diz ele em A mente organizada: como
pensar com clareza na era da sobrecarga de informação . O desempenho de
diferentes atividades ao mesmo tempo cria um circuito de vício em
dopamina ao recompensar o cérebro pela desatenção. Também pode
aumentar o estresse e baixar o QI. “Em vez de ganhar a grande
recompensa que deriva do esforço sustentado e concentrado, ganhamos
recompensas vazias por desempenhar mil tare nhas adocicadas”, conclui
Levitin.
10. Aceitar a incerteza. A tentação de olhar o celular deve-se à incerteza. É
isso o que torna esse hábito tão viciante. Você quer que alguém responda
a sua mensagem de texto, mas não sabe se a pessoa respondeu. Quer
veri car. Quer ver a possibilidade e o mistério dos três pontinhos
dançando esperançosos. Você quer saber a reação que sua foto ou
atualização de status tiveram. Mas por que precisamos saber disso neste
instante? Por que não podemos esperar até a hora de descansar/ o m da
reunião/ depois da caminhada/ após o programa de TV/ o término da
refeição/ o nal do devaneio? Precisamos mesmo checar o celular durante
reuniões ou em funerais? Talvez não zéssemos isso se
compreendêssemos que essa ação nunca é inteiramente satisfatória.
Porque a incerteza não tem m. Não existe a última olhada para o
telefone. Pense em todas as vezes que você consultou o celular ontem.
Será que precisava mesmo tantas vezes? Eu, com certeza, não precisava
ter feito isso. Sem sombra de dúvida, melhorei bastante nesse aspecto,
mas ainda tenho um longo caminho pela frente. Quantas vezes por dia
você pega o telefone? Ou olha para ele? É difícil manter a conta. A
resposta deve se aproximar das centenas. E me pergunto: se eu olhasse
para o celular, digamos, cinco vezes por dia, o mundo iria acabar?
Brilho
EU ERA OBCECADO por janelas iluminadas e postes quando era menino. No
banco traseiro do carro, eu olhava para a rua e via janelas com um brilho cor-
de-rosa atravessando cortinas vermelhas, como o peito do ET, e me perguntava
sobre como era a vida lá dentro. Existe algo no brilho da luz arti cial que me
fascina. Quando eu tinha 8 anos — em 1983 —, meus pais tinham um velho
guia turístico chamado Discover America que tinha uma fotogra a de página
dupla da Strip de Las Vegas tirada à noite.
— Quero ir lá — anunciei para minha mãe, para seu desagrado.
Ela nunca me levou.
— É tarde — comento com Andrea.
Lemos um pouco, depois apagamos a luz, sempre mais tarde do que
deveríamos. Todas as vezes, imagino a luz quadrada de nossa janela se
tornando preta para alguém que caminha na rua.
— Boa noite — diz Andrea.
— Boa noite.
Deve ser um pouco depois da meia-noite e o quarto estaria escuro se não
fosse pelo brilho de um celular.
— Matt, você vai dormir?
— Tentei. Minha cabeça está a mil.
— Você devia sair do celular.
— É que o zumbido no ouvido está me incomodando. O celular me distrai.
— É, mas ele não está me deixando dormir.
— Está bem, desculpe. Vou largar o aparelho.
— Você sabe o que vai acontecer se tiver muitas noites mal dormidas.
— Eu sei. Boa noite...
Fecho os olhos, mas minha cabeça ainda está a toda com milhares de
preocupações, deixando minha atenção ligada como os sinais luminosos de Las
Vegas, estragando meus sonhos e esperando desaparecer à luz do dia.
planetanervoso.pdf
Como sair da cama
1. ACORDE .
2. Pegue o celular.
3. Fique olhando para o celular por 72 minutos.
4. Suspire.
5. Saia da cama.
Como alternativa, de vez em quando, tente pular os passos 2 a 4.
Um problema em seu bolso
ENQUANTO ESCREVIA ESTE livro, no início de 2018, o jornal The Observer me
pediu para contribuir com um artigo em que vários escritores dirigiam
perguntas à romancista e ensaísta Zadie Smith. Aproveitei a oportunidade, até
porque tinha visto Zadie Smith em poucas reuniões literárias logo após ter sido
publicado, e quei paralisado e mudo de ansiedade, sem ousar me aproximar e
falar com ela.
Tinha lido a respeito do ceticismo dela em relação às redes sociais e como
ela dava importância a seu “direito de estar errada”, e então perguntei-lhe:
— Você se preocupa com o que as redes sociais estão fazendo à sociedade?
Ela não mediu as palavras e começou criticando os celulares.
— Não suporto celulares e não os quero em minha vida de jeito nenhum.
Eles me deixam ansiosa, deprimida, morta por dentro, fora dos eixos. Mas
apoio plenamente qualquer pessoa que ache que eles são ótimos e os considere
uma grande vantagem para sua existência.
Embora se de na como uma “luddista que se abstém”, Zadie Smith acha
que está na hora de pensar em como estamos usando essa tecnologia. “O que
esse aparelhinho em seu bolso está fazendo a seus relacionamentos mais
íntimos?”, pergunta. “A seu comportamento como cidadão que faz parte de
uma sociedade? Talvez nada! Talvez tudo esteja totalmente tranquilo. Mas e
se não estiver? [...] Precisamos deles em nosso travesseiro à noite? Nossos lhos
de 7 anos precisam de celulares? Desejamos transmitir nossa própria
dependência e obsessão? Tudo isso deve ser levado em conta. Não podemos
apenas deixar que as empresas de tecnologia decidam por nós.”
Uso meu celular bem mais do que Zadie Smith, mas, apesar disso — ou por
causa disso —, sinto muitas das mesmas ansiedades que ela. E há indícios de
que até mesmo os que trabalham para empresas de tecnologia estão
preocupados, o que quer dizer que nós devíamos estar ainda mais preocupados
que eles com para onde essas poderosíssimas empresas estão nos levando. Por
exemplo, sabe-se — pelo menos desde uma reportagem de 2011 do New York
Times — que muitos funcionários da Apple e da Yahoo! preferem mandar os
lhos a escolas que evitam tecnologia, como a Escola Waldorf da Península,
em Los Altos.
Há também muita gente do meio tecnológico que se manifestou para
denunciar coisas que ajudou a criar. O cara que inventou o botão “curtir” do
Facebook, Justin Rosenstein, disse que aquela tecnologia é tão viciante que o
telefone dele tem um dispositivo de controle parental para impedi-lo de baixar
aplicativos e restringir o uso de redes sociais. Além disso, vale lembrar que a
função “curtir” é a que ajuda quem trabalha com data mining [mineração de
dados] a entender quem somos. Nossas curtidas revelam tudo sobre nós, desde
a orientação sexual a nossas preferências políticas, e podem ser colhidas para
aumentar a in uência que outros têm sobre nós, como se viu no escândalo da
Cambridge Analytica de 2018, quando se descobriu que 50 milhões de usuários
do Facebook tiveram seus dados acessados de maneira indevida pela empresa
britânica que ajuda empresas e grupos políticos a “mudar o comportamento do
público”.
“É muito comum”, disse Rosenstein ao Guardian em 2017, como um dr.
Frankenstein de nossos dias, “que os seres humanos criem coisas com as
melhores das intenções e que elas tenham consequências negativas imprevistas
[...] Todas as pessoas são submetidas a diversionismo, o tempo todo.”
Dois dos fundadores do Twitter manifestaram pesar semelhante.
Ev Williams — que deixou o cargo de CEO em 2010 — disse ao New York
Times em 2017 que estava insatisfeito com o modo como o Twitter tinha
ajudado Donald Trump a se tornar presidente. “Foi uma coisa muito ruim, o
papel do Twitter naquilo.”
O também fundador do Twitter, Biz Stone, tem outros arrependimentos.
Em uma entrevista concedida à revista Inc., ele declarou que a grande falha
cometida pelo Twitter foi permitir que estranhos tagueassem pessoas em suas
postagens, criando um ambiente propício ao bullying . Outro funcionário,
segundo a agência de notícias Buzzfeed, chamou o Twitter de “prato cheio
para pessoas escrotas”.
E, no começo de 2018, Tim Cook — CEO da Apple — declarou a um
grupo de estudantes em Essex, Inglaterra, que em sua opinião crianças (como
seu sobrinho) não deveriam ter acesso a redes sociais, ou usar em excesso
qualquer tecnologia que seja, o que mostra que essas preocupações não são
apenas de “luddistas”.
Com efeito, um grupo de ex-funcionários de empresas de tecnologia foi
ainda mais longe e fundou o Center for Humane Technology [Centro de
Tecnologia Humana], voltado para “realinhar a tecnologia com os grandes
interesses da humanidade” e reverter a “crise digital de atenção”.
Agora, por m, existem muitos casos de gente da área tecnológica
reunindo-se para discutir essas questões. Em 2018, por exemplo, uma
conferência chamada “Truth About Tech” [A verdade sobre a tecnologia],
realizada em Washington, contou com a participação de Tristan Harris —
ex-“consultor de ética” e atual crítico da tecnologia — e de um dos primeiros
investidores no Facebook, Roger McNamee, além de políticos e membros de
grupos lobistas como o Common Sense Media [Mídia do Bom Senso], que
combate o vício dos jovens em tecnologia. Diversas preocupações foram
levantadas, como a maneira como o Gmail do Google “sequestra” a mente das
pessoas, ou como o Snapchat explora amizades entre adolescentes para
alimentar o vício em tecnologia usando funcionalidades como os streaks , com
os quais os usuários podem ver quantas interações com os amigos tiveram em
um dia. Segundo o jornal The Guardian , Harris comparou o mundo
tecnológico ao Velho Oeste quanto à possibilidade de “construir um cassino
onde você quiser”, e McNamee comparou-o às indústrias de tabaco e de
alimentos do passado, quando os cigarros eram anunciados como saudáveis e
os fabricantes de comida processada não mencionavam que seus produtos
continham muito sal. A diferença é que, no caso do vício em cigarro, este não
tem informação sobre nós. Os cigarros não colhem nossos dados. Eles não
podem nos conhecer melhor que nossa família. A internet, é claro, pode saber
tudo sobre nós. Pode saber quem são nossos amigos, pode saber de que tipo de
música gostamos, nossas preocupações com a saúde, nossa vida amorosa e
nossas preferências políticas — e as empresas de internet podem continuar
usando essas informações para tornar seus produtos ainda mais viciantes. E,
atualmente, advertem os entendidos em tecnologia, não há muita
regulamentação que os possa deter.
Uma quantidade cada vez maior de pesquisas reforça essas preocupações.
Há estudos que mostram que a tecnologia contribui para um estado de
“atenção parcial continuada” e como isso pode ser viciante. Uma pesquisa de
2017 feita pela Escola de Administração McCombs, da Universidade do Texas,
concluiu que a simples presença de um smartphone pode reduzir a
“capacidade cognitiva” de uma pessoa.
Enquanto escrevo este livro, “vício em celular” ou “vício em redes sociais”
ainda não tinham sido reconhecidos como distúrbios psicológicos, embora a
Organização Mundial de Saúde já classi que o vício em videogames como um
transtorno mental, o que mostra que existe um consenso cada vez maior sobre
os efeitos negativos da tecnologia sobre nossa saúde mental. Mas esse tipo de
percepção ainda tem um longo caminho pela frente e obviamente avança mais
devagar que a desconcertante velocidade das mudanças tecnológicas.
Mas a pressão aumenta. Em 2018, a CNN anunciou que a poderosa
Unilever ameaçou retirar sua publicidade do Facebook e do Google a menos
que eles combatessem problemas tóxicos — entre eles a preocupação com a
privacidade, com conteúdo ofensivo e com a falta de proteção para as crianças
—, o que está “erodindo a con ança social, fazendo mal aos usuários e
solapando democracias”. Há uma consciência cada vez maior de que o grande
poder das empresas de internet deve ser acompanhado, ao estilo do Homem-
Aranha, de um grande senso de responsabilidade. No entanto, cabe duvidar de
até que ponto elas assumirão essa responsabilidade sem pressão social e
nanceira de verdade, como as que estamos começando a ver. Assim como
acontece com as redes de lanchonetes de fast-food e com a indústria de tabaco e
a armamentista, as empresas que obtêm lucro de algum produto ou serviço
propriamente ditos são as que mais resistem a ver seus possíveis problemas.
Assim, quando as pessoas de dentro dessas empresas estão entre as que
fazem soar o alarme, é bom prestar-lhes atenção.
11
O DETETIVE DO DESESPERO
“Com estes fragmentos escorei minhas ruínas.”
— T. S. Eliot, Terra desolada
Consciência
QUANDO ADOECI PELA primeira vez, aos 24 anos — quando “desmoronei” —,
o mundo tornou-se mais nítido. Dolorosamente nítido. De repente, as sombras
ganharam peso, as nuvens caram mais cinzentas, a música mais alta. Passei a
car mais alerta a tudo o que me tinha sido indiferente. Distingui as coisas do
mundo moderno que faziam sentir-me pior. Coisas que talvez zessem
qualquer um se sentir pior. Senti a pressão extenuante da publicidade, a
loucura frenética das multidões e do trânsito, a natureza sufocante da
expectativa social.
O mal-estar tem muito a ensinar ao bem-estar.
Mas, quando co bem, esqueço essas coisas. O segredo está em se apegar a
esse saber. Transformar a recuperação em prevenção. Viver como vivo quando
estou doente, só que sem estar doente.
Esperança
ENTRE OS FATORES que afetam nossa saúde mental alguns são genéticos,
devidos às conexões cerebrais ou à química cerebral de uma pessoa. Mas não há
muito a se fazer quanto ao que está em nosso código genético. O mais
interessante são os aspectos transitórios, os gatilhos que mudam com o tempo e
de acordo com cada sociedade. Essas são as coisas sobre as quais podemos fazer
alguma coisa.
É claro que outras épocas tiveram suas próprias crises de saúde mental. Mas
o fato de que cada uma tenha lutado com seus problemas especí cos não deve
nos tornar complacentes para com nossa própria cultura.
E o melhor de tudo — aquilo que liberta — é que, se nossa ansiedade é até
certo ponto produto da cultura, ela pode ser mudada se mudarmos nossa reação a
essa cultura . Na verdade, nem precisamos mudar deliberadamente. Isso pode
acontecer pelo simples fato de estarmos conscientes do que se passa.
No que se refere a nossa mente, a consciência é muitas vezes a própria
solução.
O detetive do desespero
ACHO QUE O mundo sempre vai ser uma confusão. E que eu vou sempre ser
uma confusão. Talvez você seja uma confusão também. Mas — e isso para
mim é o que faz toda a diferença — acredito que seja possível ser uma
confusão feliz. Ou, pelo menos, uma confusão menos infeliz. Uma confusão
com que possamos lidar .
“Em todo caos existe um cosmos”, disse Carl Jung, “em toda desordem,
uma ordem secreta.”
Na verdade, está tudo bem com a confusão. Como você vai perceber agora,
estou tentando escrever sobre a confusão do mundo e a confusão das mentes
escrevendo um livro deliberadamente confuso. Ou pelo menos essa é minha
desculpa. Fragmentos que espero reunir formando uma espécie de todo.
Espero que tudo isso faça sentido . Ou, se não zer, espero que não faça sentido
de um modo que incentive você a pensar.
O problema não é que o mundo seja uma confusão, mas que esperamos que
ele não o seja. Incutiram-nos a ideia de que controlamos tudo. Que podemos ir
a qualquer parte e ser qualquer coisa. Que, graças ao livre-arbítrio em um
mundo de escolhas, somos capazes de escolher não apenas o que visitar na
internet, a que assistir pela TV ou qual receita seguir entre bilhões de receitas
que encontramos on-line, mas também o que sentir. Então, quando não
sentimos o que queremos ou o que esperamos sentir, as coisas tornam-se
confusas e desanimadoras. Por que não consigo ser feliz tendo tantas escolhas?
E por que co triste e preocupado quando não tenho motivo para car triste e
preocupado?
E a verdade é que, quando adoeci pela primeira vez, bem no comecinho, eu
nem sequer sabia o que havia de errado comigo, e menos ainda o que poderia
ter provocado aquilo. Eu não compreendia que inferno era aquele do qual
queria escapar, só queria escapar. Se sua perna está em chamas, você não sabe
qual é a temperatura do fogo. Você só sabe que dói.
Mais tarde, os médicos deram rótulos. “Transtorno de pânico”, “transtorno
de ansiedade generalizada” e “depressão”. Esses rótulos eram preocupantes,
mas também importantes porque me davam algo com que lidar. Eles zeram
com que eu deixasse de me sentir um alienígena. Eu era um ser humano com
doenças humanas, que outros seres humanos haviam tido — milhões e milhões
de outros seres humanos — e a maior parte deles superou a doença ou deu um
jeito de conviver com ela.
Mesmo depois de saber os nomes das doenças que tinha, eu achava que
todas elas vinham de dentro de mim. Apenas estavam ali , da mesma forma
que o Grand Canyon está ali — um componente de nitivo da minha geogra a
psíquica em relação ao qual eu nada podia fazer.
Nunca mais vou conseguir apreciar música. Ou comida. Ou livros. Ou uma
conversa. Ou o sol. Ou lmes. Ou férias. Ou qualquer outra coisa. Até o cerne
do meu ser havia apodrecido, como uma... como uma... como uma (nunca há
metáforas su cientes para a depressão) árvore doente. Uma árvore doente à
qual a namorada e os pais dizem sem parar: “Você vai car bem. Vamos dar
um jeito de você car bem.”
E, claro, havia todos aqueles remédios. Experimentei diazepam que um
médico me prescreveu. Experimentei os vários remédios dados por um
homeopata. Experimentei as recomendações de amigos e parentes.
Experimentei erva-de-são-joão e óleo de lavanda. Experimentei soníferos.
Liguei para números de apoio psicológico. E aí parei de tentar. Tive um
período horrível com o diazepam e outro pior ao deixar o diazepam.
Provavelmente eu deveria ter tentado tomar outra medicação, mas — julgue-
me se puder — não z isso. Eu não estava pensando de maneira racional. Para
complicar a situação, estava assustado — quero dizer, mais apavorado do que
jamais estive — de experimentar novos remédios ou procurar mais ajuda
quando nada tinha dado certo.
Quando mencionei isso em Razões para continuar vivo , algumas pessoas
acharam que eu estava me opondo publicamente ao uso de remédios, portanto
vou dizer aqui, da forma mais clara possível, que não sou contra os remédios.
Sim, indústria farmacêutica tem suas muitas questões, e a pesquisa cientí ca
ainda está em andamento (o que é característico da própria natureza da
pesquisa cientí ca), mas sei que a medicação já salvou muitas vidas. Sei de
gente que a rma não poder sobreviver sem eles. Acredito também que deve
haver alguma substância que provavelmente teria me ajudado, mas não a
encontrei. Não acredito que os remédios sejam uma solução de nitiva .
Acredito também que alguns remédios prescritos de forma equivocada podem
fazer certas pessoas se sentirem pior, mas isso vale para tudo. Você pode tomar
o remédio errado para a artrite ou para um problema de coração. E todo
mundo sabe que medicação não é a única resposta. Raramente é. Se você tiver
artrite, ioga, natação e luz do sol podem ajudar, assim como os remédios
também. Não se trata de ou isto ou aquilo. Cada um tem de encontrar o que
funciona para si. Além disso, no meu caso, estava traumatizado e não
conseguia sequer pensar direito.
Naquela época, tentar soluções que não davam certo só piorava as coisas.
Como eu já disse, devia haver de fato um tratamento que fosse o adequado
para mim — terapia ou medicação —, mas não tive a sorte de encontrá-lo.
Não tive coragem de procurá-lo. O sofrimento de continuar vivo era o máximo
que eu podia suportar. Não era capaz de me arriscar nem um pouquinho a
mais, essa era minha lógica. Cada dia era uma questão de vida ou morte. Não
porque o sofrimento não fosse o bastante para que eu continuasse indo ao
médico, mas porque era demais. Ao escrever isso, percebo o quanto parece
ridículo, mas era a minha realidade da época. Tudo o que tentara para
combater o turbilhão que havia em minha cabeça tinha falhado. E, para ser
franco, os médicos com os quais me deparei não foram lá muito
compreensivos. Acredito de verdade que as coisas mudaram muito depois da
virada do século.
En m, lá estava eu, naquele buraco, tentando desesperadamente encontrar
um caminho para escapar daquilo quando todas as vias de fuga pareciam estar
se fechando.
Nota para o eu
MANTENHA A CALMA. Vá em frente. Continue humano. Continue insistindo.
Continue desejando. Continue se aperfeiçoando. Continue olhando pela
janela. Mantenha o foco. Continue livre. Continue ignorando os trolls .
Continue ignorando pop-ups , de publicidade ou de pensamentos. Continue
disposto a rir de si mesmo. Continue curioso. Continue el à verdade.
Continue amando. Continue se permitindo o privilégio humano que é cometer
erros. Mantenha delimitado um espaço relativo a quem você seja e erga uma
cerca em volta dele. Continue lendo. Continue escrevendo. Mantenha o celular
à distância. Não perca a cabeça quando todos estão perdendo a deles. Continue
respirando. Continue inalando a vida.
Não se esqueça de até onde o estresse pode levar.
(Não se esqueça daquele dia no shopping.)
Medo e shopping
EU ESTAVA EM um shopping center, chorando.
Eu, aos 24 anos, cercado de um monte de gente, lojas, letreiros luminosos,
incapaz de lidar com a situação.
— Não — murmurei, perdendo o ritmo da respiração. — Não consigo
fazer isso.
— Matt?
Aquilo era um teste. Acompanhar Andrea, na época minha namorada, a
essa cidade perto da casa dos pais dela — Newcastle, no norte da Inglaterra —
e sair para fazer algumas compras. Eu não tinha ideia do que íamos comprar.
Estava focado apenas em sobreviver à experiência sem ter um ataque de
pânico.
Ser como qualquer pessoa normal.
— Desculpe, eu não consigo, eu...
Lá estava eu. Patético. Um rapaz. Em um mundo que me dizia — em toda
parte, desde os programas de TV à quadra de esportes da escola — que ser
homem é ser forte e durão e sofrer calado , um mundo que nos mostrava que ser
jovem era se divertir e ser livre na terra viva e brilhante da juventude. E ali
estava eu, no que deveria ser o ápice da minha vida, chorando por nada em um
shopping center . Bem, na verdade não era por nada. Era por causa do
sofrimento. Do terror. Um sofrimento e um terror que eu não conhecia até
cerca de um mês antes, quando estava a trabalho na Espanha e tive um ataque
de pânico que começou e não parava e se misturou com uma terrível,
indescritível sensação de terror e mal-estar e desespero que penetrava por
minha pele e meus ossos.
O desespero tinha sido tão grande que quase me tirou a vida. Não havia
escapatória. Por mais assustadora que fosse a morte, esse terror vivo parecia
pior. Todo mundo tem um limite — um ponto a partir do qual não aguenta
mais —, e, praticamente do nada, eu tinha chegado ao meu.
— Está tudo bem — dizia Andrea, segurando minha mão. Mais mãe ou
enfermeira do que namorada naquela hora.
— Não, não está. Desculpe. Desculpe.
— Você tomou o diazepam hoje de manhã?
— Tomei, mas não está fazendo efeito.
— Vai car tudo bem. É só pânico.
Só pânico .
A preocupação no olhar dela só piorava as coisas. Andrea já tinha passado
por tanta coisa por minha causa. Eu só precisava andar. Andar, conversar e
respirar como um ser humano normal. Não era preciso ser um gênio. Mas
naquele momento parecia muito a se pedir.
— Não consigo.
A expressão de Andrea se tornou mais severa. Ela cerrou a mandíbula e
comprimiu os lábios. Até ela tinha seus limites. Estava zangada comigo e por
mim .
— Você consegue.
— Não, Andi, não consigo mesmo, porra. Você não entende.
Estávamos atraindo a atenção das pessoas, que nos lançavam olhares
enviesados ao passarem carregadas de sacolas de compras.
— Respire. Respire devagar.
Tentei respirar fundo, mas o ar mal passava pela minha garganta.
— Eu... eu... eu... Estou sem ar.
Naquele dia, mais cedo, eu não estava me sentindo tão mal. Só um leve mas
inevitável desespero. No ônibus a caminho da cidade, o medo foi tomando
conta de mim, como se aos poucos eu estivesse me enrolando em um cobertor
desconfortável.
Agora meu corpo todo estava dominado pelo terror.
Eu estava paralisado ali, diante da Vision Express, cercado de vida, mas
sozinho. Comecei a engolir. Tentando me controlar. Engolir de maneira
compulsiva tinha sido um de meus sintomas mais brandos de TOC. Daquela
vez eu estava mesmo desejando ter aquele sintoma só para me distrair de algo
pior. Mas não adiantou.
Não havia esperança. Não havia escapatória. A vida era para as outras
pessoas.
Eu tinha segurado o mundo, e agora ele estava desmoronando. E a voz de
Andrea tornou-se mais distante, a última esperança, tentando alcançar a pessoa
que eu já não era mais.
Você só tem uma mente
QUANDO PENSO NA experiência que tive naquele dia no shopping — uma entre
as muitas experiências parecidas que às vezes irrompem em meu cérebro como
um ashback do Vietnã só que sem a violência —, tento dissecá-la. Vivo de
novo o passado como forma de aceitá-lo e aprender com ele. Não apenas
aprender a não ter ataques de pânico, mas aprender como minha mente e o
mundo se cruzam e o que têm em comum e também a ser menos estressado
em geral.
O primeiro problema foi o que aconteceu na minha primeira experiência
com ansiedade e depressão. Quando você tem uma crise de doença mental pela
primeira vez, imagina que a vida vai ser daquele jeito para sempre. Vai ter
depressão com ataques de pânico, e as coisas vão permanecer assim. E isso é
que era apavorante. A claustrofobia que há nisso. Parecia não haver saída.
O segundo problema foi que eu ainda não tinha ideia de como lidar com
ataques de pânico. Ia levar anos para aprender.
E o terceiro problema era que eu não sabia como os aspectos externos e
internos daquilo estavam ligados. Eu não sabia relacionar “o que você sente”
com “onde você está”. Não sabia que o mundo das lojas e das vendas e da
publicidade nem sempre faz bem à cabeça. Nos dois últimos anos realizaram-
se muitas pesquisas acerca da in uência do ambiente sobre nossa saúde. Uma
pesquisa de 2013 encomendada pela instituição bene cente focada na saúde
mental Mind e conduzida pela Universidade de Essex comparou a experiência
de caminhar em um shopping center com a de uma “caminhada ecológica”
pelo parque Belhus Woods em Essex. Embora uma caminhada faça
reconhecidamente bem à cabeça, em um espaço fechado ou ao ar livre, 44% das
pessoas que caminharam em um shopping center disseram sentir uma queda
da autoestima. Em contrapartida, quase todas (90%) as que deram um passeio
pela oresta sentiram um aumento na autoestima. Há um número cada vez
maior de pesquisas como essa, e voltarei ao assunto mais adiante. Mas naquela
época eu não sabia nada daquilo. Na verdade, a maior parte dessas pesquisas
ainda não tinham sido feitas.
Faz sentido considerar os shopping centers como lugares não muito
aprazíveis. São ambientes criados para oferecer muitos estímulos, projetados
não para acalmar ou confortar, mas apenas para nos fazer gastar dinheiro. E
como o consumismo é muitas vezes desencadeado pela ansiedade, a sensação
de calma e satisfação seria contrária aos principais interesses do shopping
center. Calma e satisfação — para os propósitos do shopping center — são
alcançados fazendo compras . Não são coisas que já estão presentes .
O quarto problema era a culpa. Eu me sentia culpado de ter sintomas que
eu na verdade não via como sintomas de uma doença. Via-os como sintomas de
minha singularidade.
Outra lição que ainda estou tentando entender — e escrever este livro está
me ajudando com isso — é que a distração não funcionou e não funciona. Só
para dar um exemplo, os shopping centers são ambientes criados para ser
recreativos, mas eles não me levam para fora de mim, só para dentro de mim.
A multidão em polvorosa não ajuda a me conectar com outras pessoas. Sinto-
me mais solitário entre um bando de gente do que se estivesse com uma só
pessoa ou sozinho mesmo.
Essa foi uma das táticas que usei muito: tentar me distrair de um tormento
com outro. Anos antes que existisse o Twitter e a atordoante compulsão com
checar as redes sociais, eu tinha uma necessidade desesperada de me distrair.
Mas não me fazia bem. Você passa a apresentar sintomas mais por causa da
luta contra eles do que por tê-los em si. A distração é uma tentativa de escape
que di cilmente funciona. Não se apaga um incêndio ignorando o incêndio. É
preciso reconhecer o fogo. Não se expulsa uma dor engolindo de maneira
compulsiva, tuitando ou bebendo. Chega o momento em que é preciso encará-
la. Se encarar. Em um mundo de um milhão de distrações, você continua
tendo uma só mente.
Manequins que causam dor
AGORA QUANDO PENSO naquele ataque de pânico especí co penso em como o
mundo me afetou. Já naquela época eu tinha uma ideia intuitiva — senão
plenamente consciente — de quais eram os gatilhos ao meu redor. Até
manequins de loja contribuíam.
Lá estava eu. Naquele espaço comercial fechado, agitado e arti cial. No
fundo do poço. Minha própria singularidade pessoal. Ter a consciência, do
ponto de vista racional, conforme olhava para Andrea, de que eu estava no
meio daquele bem conhecido processo de estragar nosso dia.
Fechei os olhos para fugir do estímulo do shopping center e vi apenas
monstros e demônios, um banco mental de criaturas e imagens piores do que
hidras e ciclopes — meu submundo pessoal que agora estava a apenas um
piscar de olhos ou a um pensamento de distância.
— Vamos, você consegue. Respire devagar.
Tentei fazer o que ela me dizia: respirar devagar, mas o ar não parecia ar.
Não parecia nada. Meu eu não parecia com nada.
Enxuguei as lágrimas.
Em frente à Vision Express havia uma loja de roupas. Não me lembro qual.
Mas o que lembro, gravado em minha memória com o peso do trauma, é que
havia na vitrine uns manequins com vestidos. Aqueles manequins com cabeça.
Cabeças cinzentas e carecas, com traços que evocavam olhos e nariz de uma
maneira abstrata, mas nenhuma boca. As poses dos manequins formavam
ângulos arti ciais aos seres humanos.
Eles pareciam muito malvados. Como se fossem seres que compreendiam e
percebiam sentimentos e que não só conheciam o meu, como faziam parte
dele. Eram, em parte, responsáveis por ele.
Com efeito, essa seria uma característica típica de minha ansiedade e de
minha depressão nos meses e anos seguintes. A ideia de que partes do mundo
continham uma malignidade externa e secreta capaz de suscitar um peso e
uma dor terríveis em mim. Isso podia partir de um rosto sorridente nas
páginas lustrosas de uma revista. Podia ser encontrado no demoníaco olhar
vermelho das luzes traseiras dos veículos. Ou no brilho azul forte demais de
uma tela de computador.
E sim, podia ser encontrado na sinistra semelhança com um ser humano de
um manequim em uma loja.
Certo dia, quando eu estava pronto para encarar meu sofrimento, esse
sentimento de sensibilidade extrema na verdade me ajudou. Ele me ajudou a
entender que se coisas externas podiam ter um impacto negativo, outras coisas
externas poderiam ter impacto positivo. Mas naquela época eu estava
preocupado em não enlouquecer.
Estava convencido de que não tinha sido feito para a realidade do mundo.
E, de certa forma, eu tinha razão. Não tinha sido feito para o mundo. Eu tinha
sido feito, como todo mundo, pelo mundo. Tinha sido feito por meus pais, pela
cultura, pela TV, pelos livros, pela política, pela escola e, quem sabe, até mesmo
por shopping centers.
Portanto, ou eu precisava de um novo eu ou de um novo planeta. E não
sabia como encontrar nem um nem outro. Foi por isso que senti tendências
suicidas.
— Tenho de sair daqui — falei naquela hora, esfregando os olhos como
uma criança perdida em um supermercado.
O “aqui” era um termo genérico o bastante para se referir desde “minha
cabeça” até “o planeta.” De uma forma mais imediata, o “aqui” era, óbvio, o
shopping center.
— Está bem, está bem — disse Andrea. Ela estava bem ao meu lado. Estava
também a milhares de quilômetros. Ela olhou ao redor em busca da saída mais
próxima. — Por aqui.
Saímos, fomos em direção à luz do dia. Voltamos para a casa dos pais de
Andrea, deitei-me na cama da infância de Andrea e falei aos pais dela que
estava com um pouco de dor de cabeça, porque era mais fácil eles entenderem
a dor de cabeça do que aquele ciclone invisível. De qualquer modo, senti-me
mal em diferentes graus durante muitos meses, mas nalmente comecei a me
recuperar. E, melhor ainda, a entender.
Um desejo
GOSTARIA MUITO DE poder explicar uma coisa para o meu eu mais jovem.
Gostaria de me dizer que não era só por minha causa . Gostaria de poder dizer
que havia coisas que eu podia fazer. Porque minha ansiedade, minha
depressão, não estavam simplesmente ali. A doença, como um machucado,
quase sempre tem um contexto.
Quando co em um estado mental frenético ou desesperado, cheio de
pensamentos indesejáveis que não consigo deter, isso quase sempre decorre de
uma sequência de coisas. Quando faço muita coisa, penso demais, assimilo
demais, como mal, durmo pouco, trabalho demais, co cansado da vida...
aquilo aparece.
Uma lesão por esforço repetitivo da mente.
Como viver no século XXI e não ter um
ataque de pânico
1. FIQUE DE OLHO em si mesmo. Seja seu amigo. Seja seu próprio pai ou
mãe. Seja gentil para consigo mesmo. Preste atenção no que está fazendo.
Precisa mesmo assistir ao último episódio de uma série quando já passou
da meia-noite? Precisa mesmo daquela terceira ou quarta taça de vinho?
Essas ações têm mesmo as melhores das intenções?
2. Esvazie a mente. O pânico é causado por sobrecarga. Em um mundo
sobrecarregado, precisamos ter um ltro. Precisamos simpli car as coisas.
Precisamos desligar às vezes. Precisamos parar de olhar o celular. Ter
momentos de não pensar em trabalho. Uma espécie de feng shui mental.
3. Ouça sons tranquilizantes. Coisas não tão estimulantes quanto música.
Ondas do mar, a própria respiração, uma brisa soprando pelas folhas, o
ronronar de um gato e, o melhor de tudo: chuva .
4. Deixe as coisas rolarem. Ao perceber que o pânico está aumentando, a
reação instintiva é car ainda mais em pânico. Ficar em pânico por causa
do pânico. Ter um metapânico. O segredo consiste em tentar sentir o
pânico sem entrar em pânico por isso . É quase, mas não totalmente,
impossível. Eu tinha um transtorno de pânico — uma doença que se
de ne não por ataques de pânico ocasionais, mas por ataques frequentes e
o medo infernal e constante do próximo ataque. Depois de centenas de
ataques de pânico, comecei a dizer a mim mesmo que queria tê-los. Claro
que eu não os queria. Mas tentava com empenho chamar o pânico —
como um teste, para ver como podia lidar com ele. Quanto mais eu o
chamava, menos ele queria car por perto.
5. Aceite os sentimentos. E aceite que eles são apenas isso: sentimentos.
6. Não tente controlar tudo na sua vida. “A vida deve ser tocada, não
estrangulada”, disse o escritor Ray Bradbury.
7. Tudo bem liberar o medo. O medo tenta dizer-lhe que ele é necessário e
que o protege. Tente aceitá-lo como um sentimento mais do que como
uma informação válida. Bradbury disse também que “deve-se aprender a
desapegar antes de aprender a pegar”.
8. Preste atenção ao lugar onde está. O ambiente ao seu redor não estaria
estimulando você em excesso? Seria possível ir para um lugar mais
calmo? Dá para olhar um pouco para a natureza? Olhe para cima. No
centro das cidades, o alto dos edifícios é menos intenso que as vitrines ao
rés do chão. O céu também ajuda.
9. Alongue-se e faça exercícios. O pânico é tanto físico quanto mental. Para
mim, correr e praticar ioga ajudam mais que qualquer outra coisa. Ioga,
em especial. Meu corpo ca rígido depois de horas curvado diante do
laptop, e a ioga lhe devolve elasticidade.
10. Respire. Respire fundo e com calma. Concentre-se nisso. A respiração
dita o ritmo em que você leva a vida. É o ritmo da sua música. É como
voltar ao cerne das coisas. O cerne de si mesmo. Enquanto o mundo quer
levá-lo em uma direção completamente diferente. Foi a primeira coisa
que você aprendeu a fazer. A coisa mais simples e essencial que você faz.
Ter consciência da respiração é se lembrar de que você está vivo.
12
O CORPO PENSANTE
Quatro humores
NA GRÉCIA ANTIGA, os médicos explicavam o corpo humano pelos “quatro
humores”. Qualquer problema de saúde era explicado pelo excesso ou pela
falta de algum dos quatro uidos corporais: bile negra, bile amarela, euma e
sangue.
Na época dos romanos, os quatro humores evoluíram para quatro
temperamentos. Se alguém sentisse raiva, ouviria que tinha excesso de bile
amarela, o humor do fogo. Por isso, quando se diz a alguém “ que frio”,
estamos repetindo um conselho de saúde da Roma Antiga.
Se alguém se sentia deprimido, ou melancólico, seu estado era atribuído a
um excesso de bile negra. Na verdade, a própria palavra “melancolia” chegou
até nós pelo latim a partir das palavras gregas melas e kholé , literalmente, “bile
negra”.
Esse sistema parece não ter um pingo de ciência. Mas, de certa forma, era
avançado, uma vez que não estabelecia divisão entre a saúde física e a mental.
Em boa parte, essa separação deve-se ao lósofo René Descartes. Ele
acreditava que mente e corpo eram duas coisas completamente à parte. Na
década de 1640, ele defendia que o corpo funciona como uma máquina que
não pensa, e que a mente, pelo contrário, é imaterial.
As pessoas gostaram da ideia. Ela fez sucesso. E até hoje ainda exerce
in uência sobre a sociedade.
Mas essa cisão não faz muito sentido.
A saúde mental está estreitamente ligada ao corpo inteiro. E o corpo inteiro
está estreitamente ligado à saúde mental. Traçar uma linha entre o corpo e a
mente seria como traçar uma linha separando dois oceanos.
Eles estão interligados.
Sabe-se que o exercício físico tem impacto positivo sobre todo tipo de
problema mental, da depressão ao TDAH. E as doenças físicas têm
consequências sobre a mente. Por causa de uma gripe, podemos sofrer
alucinações. Um diagnóstico de câncer pode nos deprimir. A asma pode
provocar pânico. Um ataque cardíaco pode causar traumas psicológicos. Se
você está com uma forte dor lombar — ou zumbido no ouvido, ou dores no
peito, ou dor de estômago ou está com a imunidade baixa —, diria que tem um
problema mental ou físico?
Acho que devemos parar de ver a saúde física e a mental em termos de esta
ou aquela e mais como esta e aquela. Não há diferença. Somos mentais. Somos
físicos. Não estamos divididos em duas partes independentes. Não somos uma
loja de departamentos existencial. Somos tudo ao mesmo tempo.
Vísceras
O CÉREBRO É físico. Além disso, os pensamentos não são apenas produtos
cerebrais. Como diz o cientista cognitivo Guy Claxton em Intelligence in the
Flesh [Inteligência na carne]: “O corpo, as vísceras, os sentidos, o sistema
imunológico e o sistema linfático interagem com o cérebro de modo tão
imediato e complexo que seria impossível traçar uma linha à altura do pescoço
e dizer: ‘Acima é inteligente e abaixo da linha é burro’. Não temos um corpo.
Somos um corpo.”
Depois vem a questão do “pequeno cérebro” — uma rede de 100 milhões de
neurônios (células nervosas) no estômago e no intestino. Tudo bem, isso nem se
aproxima dos 85 bilhões de neurônios do “cérebro principal”, mas é um
número que não pode ser menosprezado. Cem milhões de neurônios é o que
um gato tem na cabeça.
Quando sentimos um frio na barriga antes de uma entrevista de emprego
ou camos com fome antes de almoçar mais tarde que nosso horário habitual,
nosso “segundo cérebro” está conversando com o cérebro principal.
Em outras palavras, isso indica que a ideia de “saúde mental” separada de
nosso eu físico é tão ultrapassada quanto a peruca estranha de Descartes.
Mesmo assim, sofremos as consequências dessa divisão. O mundo do
trabalho está dividido em trabalhos intelectuais e trabalhos físicos. Funções
“quali cadas”, que demandam aquilo que em geral vemos como inteligência e
“educação de qualidade”, e funções “não quali cadas”, que costumam ser
identi cadas como trabalho manual. Colarinho branco e macacão.
Há inteligência no movimento. Há inteligência na dança. Há inteligência
na prática de um esporte. E, mesmo assim, temos o hábito de dividir as pessoas,
desde a infância, em atléticas ou acadêmicas — ou em “fortões” e “CDFs”. Isso
vai determinar a trajetória pro ssional, se a pessoa vai acabar em um trabalho
manual mal pago ou em um cargo mais bem remunerado analisando planilhas
de Excel. E dividimos a cultura em alta e baixa. Livros que nos fazem rir ou
nos deixam tensos são vistos como menos importantes que aqueles que fazem
“pensar”.
Quanto mais olhamos para a linha que traçamos entre mente e corpo,
menos sentido ela faz, mas todo o nosso sistema de saúde está baseado nessa
linha. E não é só ele. Nossas concepções de identidade e a nossa sociedade
também. Já é hora de mudar isso. É hora de reunir as duas partes. É hora de
aceitar todo o nosso eu humano.
Uma observação sobre o estigma
NÃO SOMOS ENCORAJADOS a falar sobre nossa saúde mental até carmos
mentalmente doentes, como se tivéssemos de ngir estar sempre 100%
saudáveis. O estresse não é levado muito a sério. Ou é levado tão a sério que as
pessoas têm vergonha de falar sobre os momentos nos quais sua saúde mental
está abalada. De um jeito ou de outro, isso leva a mais pessoas carem não só
estressadas, mas doentes.
E quando camos doentes, e precisamos desabafar, encontramos um novo
estigma.
Muitas vezes, vemos a doença mental como um subproduto da pessoa, o que
não ocorre com outras doenças. Como a doença mental é vista como
intrinsecamente diferente, falamos dela em outros termos, com expressões que
tem um quê de escândalo. Pense em todas as palavras usadas a respeito da
doença mental.
Jornais e revistas às vezes falam sobre celebridades que “confessaram”
sofrer de depressão, ansiedade, transtornos alimentares ou vícios, como se essas
coisas fossem crimes. E os crimes reais são quase sempre explicados como
produto de uma doença — assassinatos em massa e abuso sexual são inseridos
em um contexto de “problemas de saúde mental” ou “vício” com muito mais
frequência do que terrorismo e crimes sexuais. Na verdade, pessoas que têm
doenças mentais são muito mais propensas a serem vítimas de crimes.
Também não sabemos bem como falar sobre suicídio. E quando falamos,
em geral usamos o verbo “cometer”, que tem conotações de tabu e
criminalidade, uma herança dos tempos em que era considerado crime.
(Recentemente tentei adotar a expressão “morte por suicídio”, mas soava um
tanto forçada e falsa.) Muita gente tem di culdade para lidar com a noção de
alguém tirar a própria vida, como se fosse uma espécie de insulto a todos nós,
entendendo o suicídio como uma escolha, porque a pessoa preferiu desistir da
vida, essa coisa sagrada e preciosa, frágil como um ovo de passarinho. Mas sei
por experiência pessoal que o suicídio não é essa escolha tão oito ou oitenta.
Pode ser algo que inspire medo e terror, mas que a pessoa se sinta compelida
nessa direção devido a uma nova dor quando se trata de viver. Portanto, é
incômodo falar no assunto. Mas é uma conversa que precisamos ter, porque a
atmosfera de vergonha e silêncio impede que as pessoas recebam a ajuda
necessária e pode fazer com que se sintam muito mais sozinhas e isoladas.
Resumindo, pode ser fatal.
O suicídio é o maior assassino de homens e mulheres entre 20 e 34 anos. É
também o maior assassino de homens de menos de 50 anos, pelo menos no país
em que vivo, o Reino Unido. Outros lugares da Europa têm valores parecidos.
Nos Estados Unidos, onde as armas de fogo contribuem para essas tristes
estatísticas, o suicídio está em décimo lugar entre as principais causas de morte,
em todas as idades e gêneros, enquanto na Europa, no Canadá e na Austrália
os homens são três vezes mais propensos ao suicídio do que as mulheres. Na
imensa maioria das vezes, essas mortes podem ser evitadas. É por isso que
devemos ignorar o “seja macho” e buscar uma força que seja verdadeira. E, no
caso tanto de homens quanto de mulheres, ela refere-se a pedir a ajuda
necessária.
Nesse contexto, os termos usados estão repletos de indícios dessa sensação
de vergonha que se perpetua ao longo da história. Por exemplo, quando
falamos de alguém que “luta com seus demônios”, estamos evocando
superstições da Idade das Trevas sobre a loucura como obra do diabo.
E toda a repetição sobre ser corajoso: seria ótimo que um dia uma gura
pública pudesse falar de sua depressão sem que a imprensa usasse termos como
“incrível coragem” e “admitir”. É, eles têm boas intenções. Mas uma pessoa
não deveria precisar confessar que tem, por exemplo, ansiedade. Você devia
apenas ser capaz de contar isso para os outros. É uma doença. Como asma,
sarampo ou meningite. Não é um segredo constrangedor. A vergonha que as
pessoas sentem agrava os sintomas. É claro que muitas vezes as pessoas são
corajosas. Mas a coragem está em conviver com aquilo, não deveria estar em
falar sobre aquilo . Toda vez que alguém me elogia por ser corajoso co com a
impressão de que deveria ter mais medo.
Imagine que você está indo para uma caminhada tranquila no bosque e
uma pessoa se aproxima.
— Aonde você vai? — pergunta ela.
— Para o bosque.
— Uau — diz ela, dando um passo para trás.
— Por que você está falando “uau”?
E então ela ca com lágrimas nos olhos. Leva a mão a seu ombro e fala:
— Como você é corajoso!
— Eu? Corajoso?
— É, muito corajoso. Um exemplo, na verdade.
Você engole em seco, ca pálido e descarta para sempre a ideia de ir até o
bosque.
Além disso, ainda persiste a ideia tóxica de que as pessoas falam de
problemas de saúde mental para “chamar a atenção”.
Essa atenção que as pessoas buscam pode salvar vidas.
Mas como uma vez disse C. S. Lewis: “A tentativa frequente de dissimular
o sofrimento mental aumenta seu peso: é mais fácil dizer ‘Estou com dor de
dente’ do que dizer ‘Estou de coração partido’.”
Deveríamos nos esforçar para transformar o mundo em um lugar onde seja
mais fácil falar de nossos problemas. E não só com o intuito de tornar as
pessoas mais conscientes sobre essa questão. Como demonstraram as diversas
psicoterapias ao longo do último século, falar pode resultar em benefícios
medicinais. Pode de fato aplacar sintomas. Cura quem fala e quem ouve, por
expressar o sofrimento interno e por saber que outras pessoas também se
sentem assim.
Nunca deixe de falar.
Nunca deixe que outras pessoas o façam sentir que ter um problema mental
é indício de fraqueza ou um defeito.
Se você sofre de uma doença como a ansiedade, sabe que ela não é uma
fraqueza. Viver com ela, continuar seguindo em frente e fazer coisas com
ansiedade exige uma força do indivíduo que a maior parte das pessoas nunca
sequer sentirá. Precisamos deixar de confundir a doença com o paciente. É
fundamental que passemos a compreender melhor os diferentes tipos de
pressão que as pessoas sentem. Andar até uma loja pode ser uma demonstração
de força se você estiver carregando uma tonelada de um peso invisível.
Tabela de psicogramas
(PG = PSICOGRAMAS )
Imagine se tivéssemos um jeito de medir o peso psicológico que cada um sente.
Não seria uma boa maneira de ligar o mental ao físico? Não ajudaria as
pessoas a entender o aspecto real do estresse? Não nos ajudaria a conviver com
as fontes de estresse da vida moderna? Re ita comigo. Vamos chamar essa
unidade imaginária de peso de psicograma .
— Ah, não, não vou poder checar meus e-mails. Já cheguei ao meu limite
de psicogramas hoje.
Passear em um shopping center: 1.298pg
Receber uma ligação do banco: 182pg
Entrevista de emprego: 458pg
Assistir ao noticiário: 222pg
Uma caixa de entrada cheia de e-mails não respondidos: 321pg
Um tuíte seu que ninguém curtiu: 98pg
Culpa por não ter ido à academia: 50pg
Culpa por não telefonar para os pais ou irmãos: 295pg
Perceber o quanto você parece velho/gordo/cansado: 177pg
Medo de car de fora do que aconteceu em uma festa que você viu nas redes
sociais: 62pg
Perceber que você postou um tuíte com erro de ortogra a: 82pg
Pesquisar no Google um sintoma preocupante: 672pg
Ter de dar uma palestra: 1.328pg
Ver fotogra as de um corpo perfeito quando você sabe que o seu nunca será
igual àquele: 488pg
Reagir a uma provocação on-line: 632pg
Um encontro amoroso desagradável: 317pg
Pagar contas com cartão de crédito: 815pg
Perceber que é segunda-feira e você tem que trabalhar: 701pg
Perder o emprego porque um robô vai desempenhar suas funções: 2.156pg
As coisas que queria ter feito mas não fez: 1.293pg
Nota : O valor do peso psicológico utua bastante. O psicograma é uma
unidade de medida subjetiva.
13
O FIM DA REALIDADE
“[...] esse choque entre a imagem que a pessoa tem
de si mesma e o que ela é de fato é sempre muito
doloroso, e há duas coisas que ela pode fazer a
respeito: encarar o choque e tentar tornar-se o que
realmente é ou recuar e tentar continuar sendo o
que pensa que é, o que é uma fantasia, na qual
certamente perecerá.”
— James Baldwin, Nobody Knows My
Name
Sou o que sou o que sou
ÀS VEZES É preciso recuar para poder avançar. É preciso encarar a dor. A dor
mais profunda. E recentemente me senti pronto.
Preciso recuar.
Para antes do shopping center.
Para uma sala de alvura digna de um centro cirúrgico.
“Quem sou eu?”, perguntei, no centro médico espanhol durante a fase
inicial de minha primeira crise mental.
Claro que quando estou bem e calmo essa pergunta não é tão assustadora.
Quem sou eu? Não existe eu. Não existe você. Ou melhor, há um milhão de
eus. Um milhão de vocês. “Eu” é a palavra mais abrangente da língua.
Por trás de cada você há outro você, e outro você, e outro você, como
bonecas russas. Existe um você básico? Um eu básico? Ou nossa identidade
seria não como bonecas russas, mas como uma espiral sem m? Será que a
identidade é um universo cujo m é inalcançável, mas que pode levá-lo para
onde você começou?
Quando estou relativamente bem, gosto de losofar sem muito sentido
sobre essas coisas. Porque existe, suponho, um claro eu que é o sujeito das
perguntas. Mas quando eu estava doente, não se tratava apenas de
preocupações abstratas. Eram mistérios que tinham de ser resolvidos com
urgência, como se minha vida dependesse disso. Porque ela dependia . A
sensação de sentir como se fosse eu mesmo havia desaparecido — foi
substituída — e me sentia como se eu estivesse preso em um eu in nito ,
utuando em silêncio e em pânico, sem ter um lugar para pousar.
Realidade versus supermercados
ATAQUES DE PÂNICO acontecem com frequência em supermercados.
Conheço uma pessoa que teve um único ataque de pânico na vida. Foi em
um supermercado.
Quando, no começo dos anos 2000, eu costumava vasculhar fóruns da
internet em busca de dicas sobre como lidar com a ansiedade, o ataque-de-
pânico-no-supermercado aparecia com maior frequência que quase qualquer
outro. Agora estou vendo um tópico que começa assim: “POR QUE OS
ATAQUES DE PÂNICO SE MANIFESTAM QUANDO ESTAMOS
FAZENDO COMPRAS NO SUPERMERCADO?”
O pânico existe para nos ajudar. Como acontece com muitos outros animais,
o pânico decorre da tentativa de nossa mente e de nosso corpo de nos dizer
para fazer alguma coisa. Lutar ou fugir. Escapar do predador ou se opor a ele.
Mas um supermercado não é um urso, um lobo ou um guerreiro que mora em
uma caverna. Não se pode lutar contra um supermercado. É possível fugir
dele, sem dúvida, porém isso só vai aumentar suas possibilidades de um novo
ataque de pânico na próxima vez que for lá. Também pode não ser aquele
supermercado em especí co. Se você começar com o jogo de evitar um lugar,
pode ser que daqui a pouco todos os supermercados se transformem em
gatilhos para você. Depois todas as lojas. E aí tudo lá fora.
Quem nunca teve um período de convivência com a ansiedade e o pânico
não entende que a realidade de ser um eu é um sentimento de verdade, um que
é passível de ser perdido. As pessoas dão isso como certo. Você não acorda de
manhã pensando, enquanto passa manteiga no pão: “Ah, que bom, meu senso
de individualidade ainda está intacto, e o mundo ainda é real, posso continuar
com meu dia.” É algo que simplesmente está lá . Até não estar mais. Até você
chegar à prateleira dos cereais e sentir um terror ininteligível.
Quando se tenta explicar como é ter um ataque de pânico, é comum falar
dos sintomas óbvios: o turbilhão de pensamentos, batimento cardíaco
acelerado, pressão no peito, di culdade para respirar, náusea, sensação de
dormência no crânio ou nos braços e nas pernas. Mas há outro sintoma
complicado que eu costumava ter. Acabei compreendendo que ele está no
cerne do que desencadeia meus ataques de pânico. Tem um nome revelador:
desrealização .
Com o sentimento de desrealização, eu ainda sabia quem era. Mas não sentia
que eu era eu. É um sentimento de desintegração. Como uma escultura de
areia que se esfacela.
E há um paradoxo quanto a essa sensação: ela é percebida ao mesmo tempo
como uma extrema intensidade do eu e uma inexistência do eu. Um
sentimento de não ter volta, como se de repente você tivesse perdido algo do
qual não sabia que tinha que cuidar, e que a coisa que você tivesse de cuidar é
você.
Acho que o motivo pelo qual os supermercados desencadeiam essa sensação
é que eles já são desrealizados . Eles, como os shopping centers, são lugares
totalmente não naturais. Nessa era de compras on-line, eles podem parecer
ultrapassados, quase exóticos, mas ainda são muito mais modernos que nossa
biologia.
A luz não é a natural. O zumbido dos congeladores parece a ameaçadora
trilha sonora de um lme de terror com pretensões artísticas. A abundância de
opções é maior do que aquela com que fomos feitos para lidar. A multidão e as
prateleiras oferecem estímulos em excesso. E muitos dos produtos também não
são naturais. Não me re ro à maior parte deles conter aditivos químicos,
embora isso seja verdade. Quero dizer que eles foram adulterados. As latas de
sardinha, os sacos de salada, as caixas de arroz tufado, os nuggets de frango, a
carne processada, as pílulas de vitaminas, os vidros de alho descascado e
fatiado, os pacotes de batata frita crocante sabor chilli . Eles não são naturais. E
em ambientes não naturais, quando sua ansiedade está em alta, você também
se sente não natural. Pode se sentir distante de si mesmo como um pacote de
rolos de papel higiênico é um produto distante de uma árvore. No meu caso,
durante meus ataques de pânico em supermercados, os objetos nas prateleiras
assumiam uma aparência com um quê de sinistro. Pareciam estranhos. E, de
certa forma, eram e são estranhos. Foram tirados do meio a que pertenciam.
Eu me identi cava com essa sensação. E acho que essa era a raiz do problema.
Não me sentia como se pertencesse ali. Acho impossível encontrar meu lugar
em um ambiente tão super cial e sobrecarregado. A única coisa que
reconhecia em mim mesmo era o medo. E todos aqueles objetos multiplicados
no supermercado faziam com que eu me sentisse pior.
“Os objetos não deviam tocar porque não estão vivos”, escreveu Sartre em A
náusea , quando claramente passava por um mau momento. “Mas eles me
tocam, é intolerável. Tenho medo do contato com eles como se fossem feras
vivas.”
Os objetos de um supermercado também não são objetos normais. São de
marca . Enquanto os produtos vivem em um mundo físico, as marcas buscam
se xar no nosso espaço mental. Buscam entrar em nossa cabeça. Em muitos
casos, as empresas contratam especialistas em psicologia de marketing para
isso. Para nos induzir a comprar. Para brincar com nossa mente.
Homem das cavernas
IMAGINE QUE UM homem das cavernas tenha cado congelado por 50 mil anos.
Vamos chamá-lo de Su.
Imagine que, de repente, o bloco de gelo em que ele estava congelado
derrete na frente do supermercado perto da sua casa.
O homem das cavernas — Su — entra. A porta automática se fecha
milagrosamente atrás dele. Ele se assusta com as luzes, as cores, a multidão. Os
carrinhos de compras parecem estranhos animais metálicos, domesticados
pelos humanos que os empurram. As prateleiras reluzentes repletas de artigos
empacotados em sacos plásticos o confundem. Os caixas automáticos são
desconcertantes. As sacolas de compras parecem ter uma estranha pele branca.
— Item estranho na área de empacotamento... — diz a voz robótica. —
Item estranho na área de empacotamento... Item estranho na área de
empacotamento...
Su começa a entrar em pânico. Corre para uma janela, levanta os punhos e
começa a bater no vidro. Começa a gritar.
— Owagh! Agh! Ug-aggh!
Faz mais barulhos.
Chega o momento de reviravolta do m da cena.
(Rufar de tambores.)
Su é, na verdade, Nós .
(Suspiro irônico.)
Su é todos nós. Só que nós estamos um pouco mais acostumados a
supermercados.
Do ponto de vista biológico, não mudamos nada nesses 50 mil anos.
Mas a sociedade sim, ela mudou radicalmente. E espera-se que estejamos
satisfeitos com toda essa mudança. A nal, se não estivesse congelado, é
provável que Su tivesse sido morto aos 22 anos por uma manada de javalis
desembestados ou sacri cado em um ritual aos 16. Mas nós temos sorte. Não há
sorte maior que ser um ser humano vivo do século XXI quando comparado a
um morto do período neolítico.
Mas, por causa dessa sorte, devemos valorizar a vida que temos. E se
pudermos nos sentir não apenas sortudos , mas outras coisas — calmos, felizes,
saudáveis —, por que não? Por que não saber o que o mundo pode fazer por
nós? Porque esse conhecimento pode nos ajudar.
Ele me ajuda, agora, quando vou a um supermercado. A shopping centers.
A IKEA. Diante do computador. Em uma rua apinhada. Em um quarto de
hotel vazio. Em qualquer lugar. Ele me ajuda a saber que sou apenas um
homem das cavernas em um mundo que chegou antes do que nossa mente e
nosso corpo esperavam.
Um borrão
HÁ DOIS DIAS, tive uma recaída. Senti a estranha dor psicológica de uma
mudança para pior. Ao pegar minha lha na aula de dança, me senti como se
estivesse afundando na calçada. Comecei a engolir de maneira compulsiva e
percebi que a antiga agorafobia queria retornar.
Mas agora tenho um pouco mais de consciência do que antes. Conseguia
perceber que não estava dormindo bem. Estava trabalhando demais. Estava
preocupado demais com este livro. Estava preocupado demais com um milhão
de coisinhas bobas. Então, deixei de car obcecado com e-mails, larguei o
documento de Word, z um pouco de “ioga para dormir” seguindo as
instruções de um vídeo, comi uma refeição saudável e tentei desligar. Levei o
cachorro para uma longa caminhada à beira-mar.
E a cha caiu: não tem importância. Deixe de ser neurótico .
Nada daquilo com que eu me preocupava ia mudar alguma coisa. Eu ia
continuar podendo passear com o cachorro. Ia continuar podendo ver o mar. Ia
continuar podendo estar com as pessoas que amo.
E a ansiedade bateu em retirada, como um criminoso que é alvo de uma
investigação.
14
QUERER
“Quando nos encontramos querendo tudo, talvez
seja porque estamos correndo o sério risco de
querer nada.”
— Sylvia Plath
Querer certo
AO DIGITAR “COMO posso tornar-me” no Google, enquanto eu escrevia este
livro, as cinco primeiras sugestões automáticas foram:
— rico
— famoso
— um modelo
— um piloto
— um ator
Transcendência
ESTÃO NOS VENDENDO infelicidade, porque é onde o dinheiro está.
Grande parte daquilo que nos vendem é a ideia de que podemos ser melhores
do que somos se tentarmos nos transformar em outra coisa .
Pense nas revistas de moda.
Lucinda Chambers foi diretora de moda da Vogue britânica durante 25
anos. Pouco após deixar o cargo, ela deu um veredicto condenando o ramo que
acabava de abandonar. Declarou que, apesar do discurso de empoderamento,
poucas revistas de moda têm esse efeito sobre os leitores. “A maior parte delas
torna você totalmente refém da ansiedade, pois você não organiza o tipo certo
de jantar entre amigos, dispõe os lugares à mesa do jeito certo ou conhece
gente do tipo certo”, declarou ela em uma entrevista à Vestoj , publicação anual
analítica sobre moda, que viralizou. Além disso, a maneira como as revistas de
moda privilegiam roupas de preços impossivelmente altos (pelo menos para a
maioria dos leitores) só aumenta a infelicidade ao fazer as pessoas se sentirem
pobres.
“No campo da moda, estamos sempre tentando fazer as pessoas comprarem
alguma coisa de que não precisam”, disse Lucinda. “Não precisamos ter mais
bolsas, mais camisas, mais sapatos. Então convencemos, coagimos ou
incentivamos as pessoas a continuar comprando.”
Revistas de moda e sites e contas em redes sociais do setor vendem uma
espécie de transcendência. Uma escapatória. Um jeito de fugir. Mas isso é
quase sempre pouco saudável, porque para fazer com que as pessoas
transcendam a si mesmas é preciso primeiro fazê-las se sentir infelizes consigo
mesmas.
É verdade, as pessoas devem acabar comprando um livro de dieta para
conseguir o corpo da modelo da propaganda dele, ou um perfume para se
aproximar da celebridade cujo nome está no frasco, mas tudo isso tem um
preço que vai além do dinheiro. Podemos nos sentir melhores no momento da
compra, mas a longo prazo apenas alimentamos o anseio de ser outra pessoa:
alguém mais glamoroso, mais atraente, mais famoso. Nos incentivam a sair de
nós mesmos e querer viver outras vidas. E essas não são mais reais que o pote
de ouro no m do arco-íris.
Talvez o segredo de beleza que revista alguma quer nos contar seja que a
melhor maneira de estar satisfeito com nossa aparência é aceitá-la como ela é .
Estamos na era do Photoshop e da cirurgia plástica e em breve estaremos na
era dos robôs-designers. Talvez esse seja o momento exato de aceitar nossas
peculiaridades humanas em vez de tentar atingir a perfeição inexpressiva de
um androide.
Podemos pensar: ah, preciso ter tal aparência para as pessoas me acharem
atraente. Ou então podemos pensar: na verdade, não há maneira melhor de
ltrar quem não me fará bem do que ser e parecer quem eu sou.
Ficar insatisfeito com a aparência não tem nada a ver com a aparência.
Quando modelos sofrem de transtornos alimentares não é porque sejam feias
ou gordas. Claro que não.
Há vários indícios de que o número de casos de distúrbios alimentares no
mundo inteiro estão crescendo. Em 2017, a ONG Eating Disorder Hope
anunciou que os distúrbios alimentares, em termos globais, tinham a tendência
a aumentar em paralelo com a ocidentalização e a industrialização, e o
relatório analisou um panorama abrangente de pesquisas internacionais. Na
Ásia, por exemplo, o Japão, Hong Kong e Singapura apresentavam índices
muito mais elevados que as Filipinas, a Malásia e o Vietnã, embora estes
últimos também possuam índices que se agravam rapidamente à medida que
“progridem” e se “ocidentalizam”.
Outro caso signi cativo é o de Fiji. As pesquisas mostram que os distúrbios
alimentares começaram a aumentar em meados da década de 1990, logo depois
que a televisão chegou àquela ilha do Pací co Sul. O jornal The New York
Times noticiou em 1999 que os distúrbios alimentares eram praticamente
desconhecidos no arquipélago até que a TV passou a mostrar modelos magras
de séries de sucesso mundial, como Melrose Place e Barrados no baile . Antes
que séries e lmes americanos mostrassem às garotas de Fiji um novo modelo
de corpo ideal, a frase “você ganhou peso” era um elogio.
No Reino Unido, em 2018, as estatísticas do NHS Digital revelaram que as
internações hospitalares por conta de distúrbios alimentares quase dobraram
em menos de uma década, sendo o grupo de risco integrado por meninas e
mulheres na casa dos 20 anos. Caroline Price, da Beat (principal instituição de
caridade do Reino Unido voltada para transtornos alimentares), declarou ao
Guardian na época em que as estatísticas foram publicadas que, embora os
distúrbios alimentares sejam “complexos” e envolvam “muitos fatores”, a
cultura moderna é em grande parte responsável por eles.
“O número de casos de distúrbios alimentares está crescendo, até certo
ponto, devido aos problemas da sociedade atual”, disse ela. “Entre eles, as redes
sociais e a pressão por boas notas.”
Embora essas não sejam as únicas causas do problema, como reconhecem
especialistas como Caroline Price, elas se combinam com outras características
de certas personalidades que têm predisposição a sofrer de distúrbios
alimentares. Segundo o Centro Nacional de Distúrbios Alimentares [NCED,
sigla em inglês] do Reino Unido, os fatores predisponentes incluem os de
origem genética, ter pais com problemas relativos à alimentação, ter sido
vítima de bullying motivado por ter sofrido de obesidade, ter sofrido abuso ou
abandono infantil, ter algum trauma de infância, ter problemas nas relações
familiares, ser amigo de alguém com o distúrbio e, por último mas não menos
importante, a “cultura”. É especialmente problemática uma cultura em que
sempre há uma nova dieta para se experimentar e na qual, segundo o site do
NCED, “a pessoa vulnerável internaliza os ideais inatingíveis vistos na TV ou
em revistas e está sempre se comparando negativamente a essas imagens”.
O site diz também que “pessoas capazes de admirar uma bela modelo, mas
dizem ‘eu nunca poderia ser como ela, mas isso não me incomoda tanto’ são as
menos propensas a se tornarem vítimas de problemas com a alimentação”.
Talvez essa seja uma lição para todos nós: desvincular as imagens que vemos
dos seres que somos. Precisamos instituir uma espécie de sistema imune para a
mente, com o qual possamos absorver o mundo que nos cerca sem nos deixar
infectar por ele.
Como ser mais tolerante consigo mesmo
sobre si mesmo
1. PENSE NAS PESSOAS que você amou. Pense nos relacionamentos mais
íntimos que teve. Pense na alegria que sente quando vê essas pessoas.
Lembre-se de que essa alegria nada tem a ver com a aparência delas, a
não ser porque elas têm uma aparência própria e você gosta de vê-las.
Seja amigo de si mesmo. Alegre-se por reconhecer a pessoa que está por
trás de seu rosto.
2. Mude sua perspectiva ao ver fotos de si mesmo. Toda foto que você vê
hoje dizendo “como pareço velho!”, um dia será a foto que você verá
dizendo “como eu era jovem!”. Em vez de se sentir velho da perspectiva
de seu eu mais jovem, tente sentir-se jovem da perspectiva de seu eu mais
velho.
3. Ame as imperfeições. Cultive-as. Elas são o que o diferenciam dos
androides e dos robôs. “Se você busca a perfeição, nunca estará satisfeito”,
diz a mulher de Lvov, Natália, em Anna Karenina .
4. Não queira ser como alguém que já existe. Aproveite a sua diferença.
5. Não se importe quando alguém não gostar de você. Nem todo mundo vai
gostar. Melhor que não gostem de você sendo você do que gostem quando
tenta ser outra pessoa. A vida não é uma peça. Não ensaie ser você
mesmo. Apenas seja .
6. Nunca permita que a opinião negativa de outra pessoa sobre você se torne
sua própria opinião negativa sobre si.
7. Se está se sentindo insatisfeito consigo mesmo, que longe do Instagram.
8. Lembre-se de que ninguém mais está sempre preocupado com a
aparência de seu rosto.
9. Em algum momento do dia, faça alguma coisa que não seja uma
obrigação, trabalhar ou car na internet. Dance. Bata uma bolinha. Faça
burritos. Ouça música. Jogue Pac-Man. Faça carinho em um cachorro.
Aprenda a tocar um instrumento. Ligue para um amigo. Se espreguice.
Saia. Vá fazer uma caminhada. Sinta o vento no rosto. Ou se deite no
chão com os pés para cima encostados em uma parede e respire.
Uma observação sobre o querer
TUDO CERTO COM querer alguma coisa — fama, uma aparência jovem, 10 mil
curtidas, barriga chapada, donuts —, mas querer é também não ter. “Querer”
é isso. Portanto, precisamos ter cuidado com as coisas que queremos e cuidar
para que elas não abram buracos demais dentro da gente, senão a felicidade vai
escorrer de nós como a água de um balde furado. Querer é estar insatisfeito.
Quanto mais queremos, mais vamos escorrer de nós mesmos.
Se você já tivesse tudo, em que gastaria seu
dinheiro?
A FELICIDADE NÃO faz bem à economia.
Somos sempre levados a estar um pouco insatisfeitos.
Nosso corpo está gordo demais, ou magro demais, ou ácido demais.
Nossa pele devia ter aquela luminosidade de quem pegou sol ou aquele ar
certo de leveza. Para nossa tristeza, a indústria que produz iluminadores de
pele é multibilionária e cresce a cada ano.
Esse é um exemplo muito inquietante, mas a ideia central de não se sentir
bom o bastante é uma das mais exploradas por quase todas as empresas. Com
efeito, às vezes pode parecer que o objetivo nal do próprio marketing é nos
fazer sentir mal com nós mesmos.
Por exemplo, vejamos o que diz Robert Rosenthal, autor do livro
Optimarketing: Marketing Optimization to Electrify Your Business
[Optimarketing: otimização do marketing para intensi car seus negócios]. Em
2014, ele escreveu, na revista Fast Company, que para ser um marqueteiro de
sucesso é preciso pensar em termos dos benefícios do produto mais do que em
suas características . Parece inofensivo, não é?
Porém ele acrescenta que os benefícios muitas vezes têm um “componente
psicológico”. “Medo, incerteza e dúvida (FUD [sigla do inglês ‘Fear
Uncertainty and Doubt’]) são recursos usados com frequência com
legitimidade por empresários e empresas para fazer com que os consumidores
parem, pensem e mudem de comportamento. O FUD é tão poderoso que é
capaz de detonar a concorrência.”
Para os gurus do marketing, o sucesso de uma campanha é tudo. Os ns
justi cam os meios. Não vamos pensar nas consequências de tornar milhões de
seres humanos mais ansiosos do que precisariam ser.
Mas, mesmo quando uma campanha publicitária não tenta abertamente
provocar medo, ela pode nos ser prejudicial do ponto de vista psicológico. Se
nos vendem a ideia de sermos descolados pelo fato de usar um determinado
tipo de calça, sentimos uma pressão subconsciente para usá-las. E muitas vezes,
depois de gastar muito dinheiro para comprar algo que queríamos, temos um
sentimento angustiante. São raras as ocasiões nas quais o anseio pelo objeto é
compensado com uma satisfação por tê-lo. Então ansiamos por mais. E o ciclo
se repete. Somos levados a querer coisas que nos fazem querer mais.
Em suma, somos levados a criar uma dependência.
Nunca é o bastante
NADA NUNCA É o bastante.
Sempre fui dependente de alguma coisa. A coisa em si muda, mas o sentido
da dependência não.
Beber já foi essa coisa. Eu era capaz de beber e beber e beber.
Quando, sob os céus nublados de Croydon, eu trabalhava em uma quadra
comercial, como vendedor de espaços publicitários, eu só queria fugir. As três
canecas de cerveja que bebia todas as noites, seguidas de vodca com Coca-Cola,
aplacavam o começo da noite, mas tornavam mais difícil acordar na manhã
seguinte.
Poucos anos depois de entrar em crise, descobri de repente que era fácil
parar de beber. E de fumar. E tudo o mais. Parei com todos os estimulantes.
Inclusive café, chá e Coca-Cola. Estava em um estado constante de pânico e
teria feito qualquer coisa para desligar minha mente da minha mente, mas
àquela altura já sabia que o álcool não ia adiantar. E achei que drogas não
funcionariam. Estava convencido, na época, de que elas sem dúvida davam
certo para outras pessoas, mas eu era um dos azarados para os quais elas não
faziam efeito. Também estava convencido de que tivera tendências à
dependência. Foi mais difícil entender que ainda as tinha, mas que naquele
momento eu estava encontrando dependências “positivas”. Correr, por
exemplo, uma sugestão dada pelo meu pai. Ioga. Meditação. Trabalho. Sucesso.
Então, anos depois, quando estava relativamente melhor, comecei a beber
outra vez. Não era todos os dias, nem mesmo todas as semanas, mas quando
bebia, bebia de maneira irresponsável. A diferença é que dessa vez eu percebia
como o álcool afetava minha mente. Conseguia ver o ciclo que desencadeava.
Sentia-me um pouco mal — não chegava a ser transtorno de pânico, apenas
uma depressão leve —, bebia e me sentia melhor. E em seguida tinha ressaca e
culpa. E esse sentimento persistia e baixava minha autoestima, o que
aumentava a necessidade por uma distração. Que era beber. Oito canecas de
cerveja e um drinque com gim. Mas era perigoso. Era impossível ser um bom
marido, bom pai ou bom escritor com aquela ressaca, e a ironia era que o
sentimento de desajuste e autodepreciação favoreciam futuras ressacas.
Descobri que quanto mais intensa a compulsão, maior a culpa subsequente.
Mas é difícil. E tenho toda a solidariedade para com aqueles que buscam
afogar o desespero implacável em um mar de bebida. E, nesse processo, são
julgados por aqueles que nunca sentiram a dolorosa compulsão de fugir de si
mesmo.
Quando se fala da melhora do estigma em relação à saúde mental, as
pessoas devem ter razão no que se refere a melhoria das condições das pessoas
que têm depressão ou ataques de pânico. É provável que não estejam falando
de alcoolismo, automutilação, psicose, transtorno de personalidade limítrofe
(TPL), distúrbios alimentares, comportamentos compulsivos ou dependência
de drogas. Essas coisas são assuntos difíceis até mesmo para aqueles de mente
mais aberta. Esse é o problema da doença mental. É fácil não julgar alguém
que sofre de uma doença ; o que é bem mais difícil é não culpar os
comportamentos aos quais a doença pode levar. Isso acontece porque as pessoas
não conseguem ver os motivos por trás daquelas atitudes.
Lembro-me de ter ido a um show da gênia única e rara que era Amy
Winehouse e car com lágrimas nos olhos quando o público — em grande
parte bêbado também — ria e zombava quando ela pronunciava palavras
arrastadas entre uma música e outra e, embriagada, lutava desesperadamente
para se recompor. Aquilo me fez arder de raiva e vergonha. Eu tentava — de
modo ridículo e constrangedor — mandar mensagens telepáticas a ela. Está
tudo bem. Você vai car bem. Eles é que não entendem.
Agora mesmo, enquanto escrevo, vendo o sol pela janela, estou sonhando
com uma caipirinha. O drinque nacional do Brasil. Cachaça, limão, açúcar. O
céu em um copo. Lembro-me de ter bebido nas sombras das praças na
Espanha, e o desejo é, em parte, o de voltar aos meus 21 anos e não ter
preocupação alguma. Mas sei que seria uma má ideia. Tenho de lembrar a
mim mesmo por que quero isso e o que poderia acontecer. Tenho de me
lembrar que não seria apenas um copo. Tenho de lembrar que o desejo de um
drinque inocente já tinha acabado antes — depois de uma respeitável reunião
de trabalho numa tarde — com uma ligação telefônica feita na estação Victoria
às seis da manhã depois de perder minha carteira. Tenho de lembrar a espiral
subsequente de recaídas na depressão e na ansiedade — dessas em que você
acaba chorando ao olhar para a gaveta de meias e na qual a simples visão de
nuvens carregadas ou de uma capa de revista desencadeia um sentimento de
desespero in nito. Evocar todas essas lembranças e estar consciente das causas e
consequências torna bem mais fácil resistir. Uma noite com o céu em um copo
não vale um mês de inferno em uma gaiola.
A questão aqui não é o álcool especi camente. É sobre o modelo de
dependência — insatisfação com uma solução temporária que leva a uma
insatisfação maior — que é o modelo por excelência da cultura de consumo. É
também o que representa grande parte de nossa relação com a tecnologia. Os
perigos do uso excessivo desta estão cando mais evidentes do que nunca. Em
2018, o CEO da Apple Tim Cook começou a falar sobre isso: “Não defendo o
uso excessivo. Não sou o tipo de pessoa que diria que tivemos sucesso se você
está usando o produto o tempo todo. Não defendo isso em absoluto.”
O problema é que às vezes é mais fácil falar sobre o uso excessivo da
tecnologia do que fazer algo a respeito.
“Não se iluda”, diz o neurocientista Daniel Levitin no livro A mente
organizada: como pensar com clareza na era da sobrecarga de informação : “Ficar
checando sem parar e-mails, Facebook e Twitter constitui uma dependência
neural.” A cada vez que checamos as redes sociais “encontramos alguma
novidade e nos sentimos socialmente mais conectados (numa estranha espécie
impessoal de cibercontato) e produzimos mais um pouco do hormônio da
recompensa” que nos diz que “conquistamos algo”. Mas como acontece em
uma dependência, esse sentimento de recompensa não é con ável. Como diz
Levitin, “essa sensação de prazer é induzida pelo sistema límbico, a porção
rudimentar do cérebro responsável pela busca de novidade, não pelos centros
de pensamentos organizados e programados de nível mais elevado, situados no
córtex pré-frontal”.
Um paradoxo
EXISTE UM PARADOXO referente às sociedades de consumo de tecnologia de
ponta. Elas aparentam estimular o individualismo, mas não nos estimulam —
pelo contrário, nos proíbem — a pensar como indivíduos . Elas impedem que
larguemos seu caráter recreativo, que é o que as pessoas que sofrem de
dependências devem fazer se quiserem recuperar suas vidas. Também evitam
que nos perguntemos: o que estou fazendo? E por que continuo fazendo isso se
não me traz felicidade? É estranho, mas é mais fácil você ter uma compulsão
socialmente inaceitável, como o uso de heroína, a comportamentos socialmente
aceitáveis, como compulsão por dietas, por compras, pelo trabalho ou pelo
Twitter. Se a loucura for coletiva e a doença for cultural, é mais difícil de
diagnosticar e mais ainda de tratar.
Mesmo quando a maré da sociedade nos empurra para determinado curso,
deve ser possível — se esse curso nos faz e nos mantém infelizes — aprender a
nadar contra a corrente. Nadar em direção à nossa verdade, uma verdade que
as coisas recreativas que usamos podem estar escondendo. Nossa vida pode
depender disso.
Você é mais do que um consumidor
NÃO PERMITA QUE nada nem ninguém o faça sentir-se como se não fosse o
bastante. Não pense que tem de conquistar mais coisas para ser aceito pelos
outros. Seja feliz com seu próprio eu, sem upgrades . Pare de sonhar com
objetivos e resultados imaginários. Aceite o que a publicidade não quer que
aceite: você está bem assim. Não lhe falta nada.
15
DUAS LISTAS SOBRE O
TRABALHO
“Quantos jovens recém-formados assumiram
cargos exigentes em empresas de alto nível,
achando que iam trabalhar muito, ganhar
dinheiro e se aposentar aos 35 anos para então
dedicar-se a seus verdadeiros interesses? Mas, ao
chegar a essa idade, têm pesadas hipotecas, lhos
na escola, casas em bairros residenciais distantes
que exigem pelo menos dois carros por família e
uma ideia de que a vida só vale a pena com bons
vinhos e ns de semana dispendiosos no exterior.
O que se supõe que eles fazem então, voltam à
raiz do problema? Não. Multiplicam seus esforços
e continuam trabalhando como escravos.”
— Yuval Noah Harari, Sapiens: uma
breve história da humanidade (2011)
“Quero dizer com toda a seriedade que no mundo
moderno se faz um grande dano acreditando-se
na virtude do trabalho; o caminho da felicidade e
da prosperidade passa por uma redução
organizada do trabalho.”
— Bertrand Russell, O elogio ao ócio
(1932)
O trabalho é tóxico
1. NÓS NOS DISSOCIAMOS da maneira histórica de se trabalhar. É raro que
nós, enquanto indivíduos, acabemos consumindo o que produzimos.
Muitas vezes as pessoas não conseguem o emprego para o qual estão
quali cadas. Pouco a pouco, o trabalho humano está sendo assumido por
máquinas. Caixas de autoatendimento em supermercados. Robôs em
linhas de montagem. Centrais telefônicas e sistemas de telemarketing
automatizados.
2. Além disso, a economia mundial é injusta. É verdade, certo progresso foi
feito. O número de pessoas em estado de extrema pobreza vem caindo
ano a ano, segundo estatísticas do Banco Mundial. Mas outras
desigualdades estão aumentando. Segundo um relatório da Oxfam de
2017, os oito bilionários mais ricos do mundo detêm a mesma riqueza que
3,6 bilhões de pessoas que constituem a metade mais pobre do planeta. As
classes médias ocidentais estão diminuindo, segundo uma pesquisa do
Credit Suisse, enquanto os extremos entre ricos e pobres estão
aumentando. A meritocracia é um mito difícil de sustentar.
3. O bullying é muito frequente no ambiente de trabalho. A natureza
competitiva de muitas empresas alimenta uma rivalidade agressiva que,
com facilidade, pode descambar para a manipulação e o bullying .
Segundo uma pesquisa da Universidade de Phoenix, 75% dos
trabalhadores dos Estados Unidos já foram afetados pelo bullying , seja
como vítima ou como testemunha. Mas as vítimas não são sempre quem
seria de se imaginar. Segundo o Workplace Bullying Institute, elas podem
ser não os integrantes mais fracos de uma equipe, mas os que são mais
quali cados e e cientes do que as pessoas que fazem o bullying. Trata-se
dos funcionários experientes que são vistos como uma ameaça. E uma
pesquisa do Trade Union Congress (TUC) em colaboração com o
Everyday Sexism Project descobriu que 52% das mulheres disseram ter
sofrido assédio sexual no trabalho.
4. Em casos extremos, o estresse no local de trabalho pode ser fatal. Por
exemplo, entre 2008 e 2009 e de novo em 2014, a empresa francesa de
telecomunicações Orange relatou séries de suicídios entre os funcionários.
Depois da primeira, na qual 35 funcionários se mataram em questão de
meses, o chefe minimizou o ocorrido dizendo tratar-se de uma “moda”,
embora um relatório o cial citado pelo jornal The Guardian atribuísse a
culpa ao clima de “assédio gerencial” que tinha “debilitado
psicologicamente os funcionários e atacado sua saúde física e mental”.
5. A cultura da avaliação é tóxica. Paul Verhaeghe, professor de psicanálise
nascido na Bélgica, defende que a maneira como o trabalho é organizado
em nossas sociedades — com supervisores supervisionando supervisores,
todo mundo sendo vigiado, pontuado e avaliado sem parar — é tóxica.
Mesmo pessoas que não trabalham sofrem as mesmas rodadas
intermináveis de testes e monitoramento. Como nossos estudantes
também estão descobrindo, todo esse sistema nos deixa mais estressados
com o futuro do que satisfeitos com o presente.
6. A cultura do trabalho pode levar a uma baixa autoestima. Somos levados
a crer que o sucesso é resultado do trabalho árduo, e que isso depende de
cada um. Assim, não é de surpreender que, ao achar que estamos
fracassando — o que acontece continuamente em uma cultura que
defende a ambição e é alimentada por parâmetros cada vez mais
inalcançáveis para alguém ser feliz —, isso seja tomado como pessoal. E
pensamos que a culpa é nossa. Não somos incentivados a considerar a
situação de acordo com o contexto.
7. Gostamos de trabalhar. Traz sentido a nossa vida. Mas também pode ser
prejudicial à saúde física. Em 2015, o Finnish Institute of Occupational
Health publicou uma pesquisa — a maior do gênero já realizada — que
procurava traçar uma relação entre trabalho em excesso e álcool. Foram
reunidos dados sobre 333 mil trabalhadores de quatorze países, e
concluiu-se que, quanto mais horas se trabalha, mais álcool se consome.
8. É difícil se contrapor a nossa obsessão cultural pelo trabalho. Políticos e
líderes do setor empresarial sustentam a crença de que trabalhar sem
parar é uma virtude. Falam com lágrimas nos olhos e uma boa dose de
bajulação sobre “os respeitáveis cidadãos trabalhadores” e “as famílias que
dão duro”. Aceitamos a semana composta por cinco dias úteis como se
fosse uma lei da natureza. Somos levados a nos sentir culpados quando
não estamos na labuta. Repetimos o lema de Benjamin Franklin, “tempo
é dinheiro”, esquecendo que dinheiro é também uma questão de sorte.
Muita gente que trabalha longas jornadas tem muito menos dinheiro que
pessoas que nunca trabalharam na vida.
9. As pessoas trabalham cada vez mais horas, mas essas não são uma
garantia de maior produtividade. Em Gotemburgo, Suécia, implantou-se
em caráter experimental uma jornada de seis horas para enfermeiras, e
constatou-se que elas se sentiam mais felizes e tinham mais energia do
que quando trabalhavam oito horas. Faltavam menos por doenças,
tinham menos queixas de problemas físicos como dor nas costas ou no
pescoço e apresentaram aumento de produtividade durante seus turnos.
10. Com frequência, nossa cultura referente ao trabalho é desumanizante.
Precisamos avaliar se nossos empregos estão nos deixando doentes, ou
infelizes, e se há alguma coisa que se possa fazer a respeito. Quanto de
pressão temos que suportar só porque a maneira de trabalhar nos faz
sentir como se estivéssemos sempre atrasados? Como se a vida fosse uma
corrida na qual estamos cando para trás? E em nossa luta para nos
manter à altura, não ousamos parar e pensar o que seria melhor para nós.
Dez maneiras de trabalhar sem surtar
1. TENTE FAZER ALGO de que goste. Se gostar de seu trabalho, seu
desempenho será melhor. Se gostar de seu trabalho, ele não vai parecer
um trabalho. Tente pensar nele como um jogo produtivo.
2. Tente não assumir mais coisas para fazer . Tente ter menos coisas para fazer .
Seja minimalista no trabalho. Minimalismo é fazer mais com menos.
Grande parte da vida laboral parece voltada para fazer menos com mais.
Não car parado nem sempre é o mesmo que ser produtivo.
3. Estabeleça limites. Tenha momentos do dia e da semana sem trabalho,
sem e-mails, sem perrengues.
4. Não se estresse com prazos. Este livro já passou do prazo, mas mesmo
assim você está lendo-o.
5. Saiba que a caixa de entrada dos seus e-mails nunca vai estar vazia. Aceite
isso.
6. Tente trabalhar, sempre que possível, de maneira a tornar o mundo um
pouco melhor. O mundo nos molda. Tornar o mundo melhor nos torna
melhores.
7. Seja gentil consigo mesmo. Se os aspectos negativos de um trabalho
pesam mais que o dinheiro, não assuma esse compromisso. Se alguém está
usando seu poder para submeter você a bullying ou assédio, não aceite. Se
você detesta seu trabalho e pode se dar ao luxo de sair na hora do almoço,
saia na hora do almoço. E não volte nunca mais.
8. Não pense que seu trabalho é mais importante do que de fato é. Como
disse Bertrand Russell: “Um dos sintomas de colapso nervoso iminente é
acreditar que o próprio trabalho é terrivelmente importante.”
9. Não faça o trabalho que os outros esperam de você. Faça o que você quer
fazer. Você só tem uma vida. É sempre melhor vivê-la como si próprio.
10. Não seja perfeccionista. Os seres humanos são imperfeitos. O trabalho
humano é imperfeito. Seja menos robô e mais humano. Seja mais
imperfeito. A evolução ocorre por conta dos erros.
16
COMO MOLDAR O FUTURO
Progresso
SERIA INSANO, TANTO do ponto de vista reacionário quanto do conservador,
a rmar que o progresso tecnológico é algo ruim.
São pouquíssimas as pessoas dispostas a trocar a tecnologia de hoje para
viver cem anos atrás. Quem abriria mão de um mundo com carros e GPS e
smartphones e laptops e máquinas de lavar e Skype e redes sociais e
videogames e Spotify e raios X e corações arti ciais e caixas eletrônicos e
compras on-line? Eu, sem dúvida, não faria isso.
Para escrever este livro, tentei observar o custo psicológico do mundo
examinando a única psicologia que de fato conheço — a minha. Escrevi sobre
como nós, enquanto indivíduos , podemos tentar permanecer sãos em um
mundo enlouquecedor. O fato de ter uma doença mental, embora na prática
seja um pesadelo, ensinou-me sobre os diversos gatilhos e tormentos do mundo
moderno.
Contudo, o que considero como um desa o real é o que podemos fazer
enquanto sociedade . Não é possível voltar atrás no tempo. Não é possível se
tornar avesso à tecnologia de uma hora para outra, nem queremos isso. Então
como poderíamos — no senso coletivo — tornar o mundo melhor para todos
nós?
Uma das melhores pessoas para responder a essa pergunta seria Yuval Noah
Harari, professor de história da Universidade Hebraica de Jerusalém, cujos
livros revolucionários Sapiens: Uma breve história da humanidade e Homo Deus
abordam o que nos faz humanos e como a tecnologia não só reformula nosso
mundo como também rede ne a própria humanidade. Ele escreve sobre o
cenário assustador de um mundo futuro no qual os seres humanos são
dominados pelas máquinas criadas por eles mesmos e chega à conclusão
desoladora de que “o Homo sapiens como o conhecemos vai desaparecer em
mais ou menos um século”.
Depois de ler a obra de Harari, quei pensando por que os seres humanos
estariam tão dispostos a se encaminhar a um futuro que aos poucos vai torná-
los desnecessários. Isso me fez lembrar de outro livro que me marcou quando
era mais jovem, Cachorros de palha , do lósofo John Gray, que explora com
crueza a ideia de que o progresso humano como sociedade é um mito perigoso.
A nal, somos os únicos animais, até onde se sabe, obcecados pela ideia de
progresso. Pelo menos enquanto não descobrirmos a existência de tartarugas
historiadoras louvando tartarugas mais antigas pela criação de um mundo
mais esclarecido.
Numa entrevista ao Observer , perguntei a Harari se deveríamos resistir à
ideia de futuro como de um progresso tecnológico inevitável. Deveríamos criar
um outro tipo de futurismo?
“Não se pode frear o progresso tecnológico”, respondeu ele. “Mesmo que
um país deixe de pesquisar sobre inteligência arti cial, outros continuarão. A
verdadeira questão é o que fazer com a tecnologia. Pode-se usar a exata mesma
tecnologia para objetivos sociais e políticos muito diferentes.”
A internet, claro, seria a prova mais óbvia disso na atualidade. Mas ela é
também um exemplo — no caso daquilo que chamávamos de “rede mundial
de computadores” — de coisas que começaram como ideais utópicos e em
pouco tempo se tornaram distópicas.
“Se analisarmos o século XX”, prosseguiu Yuval, “veremos que, com a
mesma tecnologia envolvendo eletricidade e trens, é possível construir uma
ditadura comunista ou uma democracia liberal. Com a inteligência arti cial e
com a bioengenharia, o mesmo acontece. Portanto, acredito que não
deveríamos nos concentrar em como deter o progresso tecnológico, isso é
impossível. A questão deveria ser que uso fazer da nova tecnologia. E ainda
temos bastante poder para in uenciar para onde ela está indo.”
Então, como é o caso com tantas outras coisas, a solução para o problema
passa primeiro por ter consciência dele. Em outras palavras: a solução para
tornar tanto a nossa mente quanto nosso planeta mais saudáveis é
essencialmente a mesma. O que Harari diz sobre a aplicação da mesma
tecnologia para objetivos diversos é válido tanto na esfera do micro, de cada
indivíduo, quanto na do macro, da sociedade. Ter consciência de como a
utilização da tecnologia nos afeta é, de modo indireto, ter consciência de como
a ela afeta o planeta. Não é só o planeta que nos molda. Nós moldamos o
planeta com as escolhas que fazemos sobre de que maneira viver.
E às vezes, quando nós — e nossas sociedades — estamos agindo de um
jeito que não é saudável, precisamos tomar a decisão mais corajosa e mais
difícil de todas. Precisamos mudar .
Essa mudança pode assumir diferentes formas. Podemos usar a tecnologia
para ajudar nossa mente, ao baixar um aplicativo que limite o tempo gasto nas
redes sociais, ou instalando um interruptor com dimmer , ou optar por
caminhar mais, ou tendo mais consideração pelas pessoas na internet, ou ainda
escolhendo um carro menos poluente. Ser gentil consigo mesmo e ser gentil
com o planeta são, no fundo, a mesma coisa .
“Progredir”, escreveu C. S. Lewis, “é se aproximar de onde você quer estar.
E, se virou no lugar errado, seguir adiante não vai levá-lo mais para perto de
seu destino.”
Acho que essa é uma ótima maneira de encarar as coisas. Seja no âmbito
individual ou no social, o impulso de seguir adiante não é, por si só, bené co.
Às vezes levamos nossa vida na direção errada. Às vezes as sociedades levam a
si mesmas na direção errada. Se estamos nos sentindo infelizes, pode ser que
voltar para pegar o caminho certo signi que progredir. Mas nunca se deve
achar, como indivíduo ou como cultura, que uma única versão do futuro é
inevitável.
Cabe a nós moldar o futuro.
Espaço
NO QUE SE refere a moldar o nosso futuro, os espaços são fundamentais.
Precisamos nos certi car de que existem espaços para sermos livres. Para
sermos nós mesmos. Espaços literais, espaços psicológicos.
Cada vez mais, nossas cidades tornam-se lugares onde nos querem mais
como consumidores do que como pessoas. Isso faz com que seja de suma
importância valorizar os espaços ameaçados de extinção nos quais ainda é
permitido ser economicamente irrelevante. Florestas, parques, galerias e
museus públicos, bibliotecas.
As bibliotecas, por exemplo, são lugares maravilhosos que se encontram em
risco. Muita gente poderosa as deprecia por considerá-las irrelevantes na era da
internet. Na verdade, isso é um mal-entendido. Muitas bibliotecas estão
usando a internet de modo inovador, tornando livros e a própria internet mais
acessíveis para os cidadãos. Além disso, elas não são apenas lugares para livros.
São uns dos poucos espaços públicos restantes que não nos apreciam mais por
nossa carteira que por nós.
Mas outros espaços também se encontram ameaçados.
Espaços não físicos. Espaços de tempo. Espaços digitais. Algumas empresas
de comércio eletrônico pretendem violar cada vez mais nossa individualidade,
considerando-nos menos como seres humanos e mais como organismos
repletos de dados a explorar ou a serem vendidos.
Há espaços do dia e da semana que estão sendo continuamente gastos em
nome do trabalho ou de outras obrigações.
Até espaços da mente estão ameaçados. O para pensar livremente, ou pelo
menos com calma, está cada vez mais difícil de encontrar. O que pode explicar
o aumento não só dos distúrbios de ansiedade, mas também de hábitos para
combatê-los, como a prática da ioga e da meditação.
As pessoas anseiam não apenas pelo espaço físico, mas pelos espaços onde
sejam mentalmente livres. Um espaço afastado dos indesejados pensamentos
que nos distraem e pululam em nossa cabeça como pop-ups publicitários da
mente em um mundo já frenético. E esse espaço ainda está disponível. Só não
podemos depender dele. Somos forçados a procurá-lo de maneira consciente.
Talvez seja necessário reservar um tempo para ler, praticar ioga, tomar um
banho demorado, preparar nossa comida preferida ou dar uma caminhada.
Talvez seja necessário desligar o telefone. Talvez seja necessário fechar o
laptop. Talvez seja necessário nos desligar, encontrar uma versão “acústica” de
nós mesmos.
Ficção é liberdade
OS LIVROS PODEM ser uma maneira de recuperar algum espaço. Histórias.
Ficção.
Quando tinha 11 anos, sem amigos, com di culdades de adaptação na
escola, li The Outsiders , Rumble Fish e Tex , de S. E. Hinton, e de repente voltei
a ter amigos. Os livros dela eram meus amigos. Os personagens eram meus
amigos. E amigos de verdade, porque me ajudaram a lidar com aquela
situação. Da mesma forma que em outros tempos o ursinho Puff, Scout Finch,
o esquilo Pip e Cécile de Bonjour tristesse foram meus amigos. E suas histórias
serviam como esconderijo para mim. E um refúgio.
Num mundo que pode exigir demais, um no qual estamos perdendo o
espaço mental, os mundos ccionais desempenham um papel essencial. Podem
ser uma fuga da realidade, claro, mas não são uma fuga da verdade. Pelo
contrário. No mundo “real”, eu sofria de di culdades para me adaptar. Com os
códigos a seguir. As mentiras a contar. As risadas forçadas. A cção não me
parecia uma fuga da verdade, mas um mergulho nela. Mesmo sendo uma
verdade com monstros ou ursos falantes, ela sempre tem um quê de verdade.
Uma que pode manter sua sanidade, ou pelo menos manter você sendo você .
Para mim, a leitura nunca foi uma atividade antissocial. Sempre foi
profundamente social. A espécie mais profunda de socialização que existe.
Uma conexão profunda com a imaginação de outro ser humano. Um modo de
conexão livre de todos os ltros que a sociedade em geral impõe.
Normalmente, a leitura é vista como importante por seu valor social. Está
ligada à educação, à economia e assim por diante. Mas isso não compreende
todo o motivo por trás da leitura.
Ler não é importante porque ajuda a conseguir um emprego. É importante
porque nos dá espaço para existir além da realidade na qual estamos inseridos.
É assim que os seres humanos se unem. Que as mentes se conectam. Sonhos.
Empatia. Compreensão. Fuga.
A leitura é o amor em ação.
Não é preciso que sejam livros. Mas é preciso encontrar esse espaço.
A toda hora somos estimulados a desejar passar pelas experiências mais
extremas e empolgantes. Ceder a um impulso e partir para a ação. “Just Do It”,
faça e pronto, como a Nike sempre berrava para nós, como um sargento dando
ordens de autoajuda. Como se o sentido da vida fosse descoberto ao ganhar
uma medalha de ouro, escalar o monte Everest, ser a atração principal do
Festival de Glastonbury ou ter o maior orgasmo que você jamais terá ao saltar
de paraquedas sobre as cataratas do Niágara. E eu costumava achar a mesma
coisa. Queria me perder nas experiências mais intensas, como se a vida fosse
apenas um shot de tequila a ser tomado. Mas não é possível experienciar a
maior parte da vida dessa forma. Para ter a oportunidade de encontrar uma
felicidade duradoura, é preciso calma. Você tem de ser, assim como fazer.
Enchemos o cotidiano com atividades porque no Ocidente, em geral,
achamos que a felicidade e a satisfação são atingidas por aquisição,
“aproveitando ao máximo” o dia. Às vezes precisamos nos esforçar para
substituir a noção de vida como algo a ser aproveitado por alguma coisa que já
temos. Se zermos uma faxina na bagunça mental certamente vamos
aproveitar mais nossa existência.
O monge budista Thích Nhất Hạnh escreveu em A arte do poder que,
embora “muita gente pense que excitação é felicidade”, na verdade “quando
estamos excitados, não estamos em paz. A felicidade verdadeira se baseia na
paz”.
Na minha opinião, eu não iria querer uma vida de paz interior total e
neutra. De vez em quando gostaria de ter alguma experiência intensa e
estimulante. Isso é uma característica minha. Mas anseio por paz e aceitação
mais do que nunca.
Para estar bem consigo mesma, para se conhecer, a pessoa precisa de um
espaço interior onde seja capaz de se encontrar , longe de um mundo que com
frequência a leva a se perder.
Precisamos criar um espaço no tempo para nós mesmos, seja através dos
livros, da meditação ou apenas olhando a vista da janela. Um lugar onde não
estejamos ansiando, sentindo falta, trabalhando, nos preocupando ou pensando
demais. Onde nem sequer estejamos nutrindo esperanças para determinada
coisa. Um lugar onde cássemos neutros. Onde pudéssemos apenas respirar,
apenas ser, apenas nos banhar no simples contentamento animal de ser, e não
desejar nada além do que já temos: a vida.
Objetivo
SENTIR CADA MOMENTO, ignorar o amanhã, desprender-se de todas as
preocupações, arrependimentos e medos causados pelo conceito de tempo. Ser
capaz de andar por aí e pensar em nada além de andar. Ficar na cama sem
dormir e sem se preocupar com o sono. Simplesmente car ali, na doce
felicidade horizontal, sem ser afetado por preocupações passadas e futuras.
17
A SUA MÚSICA
Figueiras
ENQUANTO ESCREVIA ESTE livro, minha mãe teve de ser submetida a uma
grande cirurgia. Precisou ter o tórax aberto para remoção e substituição da
válvula aórtica. A operação foi bem-sucedida, e ela se recuperou, mas a semana
que passou na terapia intensiva foi uma espécie de montanha-russa, com
médicos e enfermeiros de olho na saturação de oxigênio no sangue, que baixou
a níveis preocupantes.
Andrea e eu fomos visitá-la e nos instalamos em um hotel próximo ao
hospital. Meu pai e eu zemos companhia à minha mãe, que volta e meia
acordava. Ajudei-a a se alimentar e trouxe sacolas cheias de smoothies , além de
comprar o jornal para meu pai. Minha preocupação com ela afastou tudo o
mais da minha mente. Eu me sentia culpadíssimo por não ter lhe dado mais
atenção quando ela me falou de suas primeiras consultas médicas.
Enquanto ela se recuperava, eu não me preocupava em responder nenhum
e-mail urgente. Não tinha qualquer tentação de checar redes sociais. Mesmo as
notícias parecem apenas um pano de fundo irrelevante quando você está em
uma unidade de tratamento intensivo, ouvindo através de uma cortina os
gemidos que vêm da cama ao lado, onde outro paciente está morrendo.
Às vezes, as unidades de tratamento intensivo são lugares desoladores, mas
essas enfermarias esterilizadas cheias de gente entre a vida e a morte podem
também ser lugares de esperança. Enfermeiros e médicos eram uma
inspiração.
Só acho uma lástima que sejam necessários momentos tão graves em nossa
vida, ou na das pessoas que amamos, para mudar nossa perspectiva. Como
seria bom podermos sempre encarar a realidade daquela forma! Podermos
sempre saber identi car nossas prioridades, mesmo em tempos de saúde e
bonança. Imagine se fôssemos capazes de sempre pensar em nossos familiares e
amigos da maneira com que pensamos neles quando estão em uma situação
crítica. Se pudéssemos sempre manter esse amor — amor que está sempre
presente — bem ao alcance. Imagine se conseguíssemos manter a bondade e a
leve gratidão em relação à vida em si.
Hoje em dia, nos momentos em que meu mundo ca entupido de lixo
estressante, tento me lembrar daquela enfermaria. Onde os pacientes eram
gratos só por olhar pela janela. Ver um pouco de sol e gueiras.
E onde a vida, em si mesma, era tudo.
Amor
SÓ O AMOR nos salvará.
Psicogramas negativos (coisas que fazem
você se sentir mais leve)
IMAGINE QUE EXISTAM coisas, como os psicogramas, que façam sua mente se
sentir mais leve. Poderíamos chamá-los de psicogramas negativos ou -pg.
Observar o sol surgindo de repente de trás de uma nuvem: 57-pg
Receber uma alta médica: 320-pg
Passar férias em algum lugar sem Wi-Fi (passado o pânico inicial): 638-pg
Passear com o cachorro: 125-pg
Uma sessão de ioga: 487-pg
Perder-se em um bom livro: 732-pg
Chegar a casa depois de uma horrível viagem de trem: 398-pg
Estar cercado de natureza: 1.291-pg
Dançar: 1.350-pg
Um parente próximo recuperando-se de uma operação: 3.982-pg
E assim por diante.
Sri Lanka
CONVIDARAM-ME A VISITAR a bela cidade forti cada de Galle, no litoral
sudoeste do Sri Lanka, para um festival de literatura em que eu daria uma
palestra sobre saúde mental. O evento era bem especial, já que o Sri Lanka
ainda é um lugar onde falar sobre doença mental pode ser tabu. E foi
emocionante ouvir histórias de ansiedade, depressão, TOC, tendências
suicidas, transtorno bipolar e esquizofrenia em um contexto no qual essas
coisas em geral não vêm à tona. Foi como sentir o estigma se evaporando em
tempo real.
Mas não é o evento o que mais me marcou naquela viagem, mas o dia
seguinte. Na praia de Hikkiduwa, ao lado de moradores da região e
mochileiros, alimentei tartarugas marinhas gigantes com algas direto na minha
mão. Andrea e nossos lhos também estavam lá. Foi o tipo de experiência que
nunca imaginei que ia ter quando era um agorafóbico de 20 e poucos anos
convencido de que não viveria até os 30, e tendo afastado todas as pessoas que
eu amava. Então, aos 40, lá estava eu no hemisfério sul com quem amava, em
uma praia paradisíaca, bem perto daqueles grandes répteis anciões. Eles
parecem tão calmos e sensatos em sua longevidade. Perguntei-me qual seria o
segredo deles. E desejei que de alguma forma um ser humano fosse capaz de
fazer perguntas a uma tartaruga.
Assim, quando a depressão bate, fecho os olhos e acesso o arquivo que
mantenho com lembranças de dias bons. Penso no sol, em sorrisos e tartarugas.
E tento lembrar que o impossível às vezes pode ser possível.
Uma visão anfíbia da vida
— OLÁ, TARTARUGA.
— Ah! Oi.
— Algum conselho sobre a vida?
— Por que você está me perguntando?
— Porque você é uma tartaruga.
— E daí?
— As tartarugas existem há milhões de anos. Há 157 milhões de anos. Mais
de 700 mil vezes o tempo do Homo sapiens no planeta. Vocês, como espécie,
devem saber de uma coisa ou outra.
— Você está confundindo duração da existência com extensão de
conhecimento.
— É que os humanos zeram a maior bagunça no mundo. Parece que as
tartarugas não cometeram o mesmo erro.
— Eu sei. Estamos perto da extinção por causa de vocês.
— Desculpe.
— Eu disse “vocês”, no plural. Mas, claro, você também.
— Sei disso. Sou um ser humano. Tenho parte da culpa.
— É. Você tem.
— É.
— Seja como for, se você quer mesmo saber, o conselho que tenho a dar é:
pare com isso.
— Parar com o quê ?
— Isso. Uma correria por nada. Os seres humanos parecem estar correndo
para fugir de onde estão. Por quê? Será um problema com o ar aí na terra? Ele
não está fazendo bem para vocês? Talvez vocês precisem passar mais tempo no
mar. Meu conselho seria: pare com isso. Não seja apenas o dono do seu tempo,
torne-se a prioridade dele . Andando depressa ou devagar, tenha consciência de
que sempre vai se levar consigo. Seja feliz chapinhando nas águas da
existência.
— Certo.
— Olhe para minha cabeça. Ela é minúscula. A relação entre minha massa
cerebral e a corporal é constrangedora. Mas, como você pode ver, isso não
importa. Se você levar a vida com o devido cuidado, pode achar o foco. Você
pode ser da forma que precisa ser. Pode ter uma visão anfíbia da vida. Você
pode estar em sintonia com o ritmo da Terra toda. Com a parte seca e a
molhada. Pode sintonizar com o vento e com a água. Pode sintonizar consigo
mesmo. É uma maravilha, como você vê, ser uma tartaruga.
— Aposto que é, mesmo. Obrigado, tartaruga.
— Agora... Será que pode me dar mais um pouco de alga?
Inverter o ciclo
A ANSIEDADE SE perpetua por conta própria. A pessoa que sofre de ansiedade,
enquanto doença, vive em um ciclo sem m de desespero. A única maneira de
sair dele é interromper a metapreocupação, parar de se preocupar com a
preocupação, o que é quase impossível. Às vezes o truque consiste em
encontrar um ciclo inverso. Para tanto, aceito que estou em um estado de não
aceitação. Fico à vontade com o fato de não me sentir à vontade. Aceito que as
coisas não dependem de mim.
É um clichê, mas é verdade: você não consegue chegar aonde deseja se não
aceitar antes onde está. O mundo tenta nos dizer para não nos aceitarmos. Faz
com que queiramos ser mais ricos, mais bonitos, mais magros, mais felizes. A
querer mais. Quando camos doentes, isso se torna duplamente verdadeiro, e é
logo quando mais precisamos nos aceitar, aceitar o momento de sofrimento
para depois conseguirmos nos livrar dele. Libertarmo-nos dele aos poucos,
devolvendo-o ao mundo de onde ele veio.
O céu continua sendo o céu
ACABEI DE OLHAR pela janela e me sentir mais calmo. A Lua está realmente
demais esta noite, atrás de um véu de nuvens arroxeadas. Esse céu está
sensacional. Nenhuma foto conseguiria captá-lo.
E isso me fez lembrar de uma coisa. Há cerca de uma década, quando tive
um episódio prolongado de depressão, o pior desde a crise dos 20 e poucos
anos, um das poucas fontes de conforto que eu tinha era olhar para o céu.
Morávamos em Yorkshire, e não havia lá muita poluição luminosa, daí o céu
parecer tão amplo e claro. Saía para pôr o lixo na rua, olhava o céu noturno e
sentia tanto eu quanto meu sofrimento cando menores. Ficava ali um pouco
mais, respirando o ar fresco, olhando para as estrelas, planetas e constelações.
Respirava fundo, como se o cosmos fosse algo possível de se inalar. Às vezes
levava a mão ao estômago e sentia os espasmos de minha respiração nervosa
começando a se acalmar.
Muitas vezes me perguntei, e ainda me pergunto, por que o céu, em especial
o céu noturno, tem esse efeito. Já achei que era uma questão de escala. Quando
se olha para o cosmos, é impossível não se sentir minúsculo. Você sente a
própria pequenez não só no espaço como no tempo. Isso acontece porque
torna-se claro que, quando você ta o espaço, está tando uma história antiga.
Está vendo as estrelas como elas foram , não como são . A luz viaja, não aparece
no mesmo instante. Ela viaja a 300 mil quilômetros por segundo. Parece
rápido, mas na verdade a luz da estrela mais próxima da Terra, depois do Sol,
leva mais de quatro anos para chegar aqui.
Mas algumas das estrelas visíveis a olho nu estão a mais de 15 mil anos-luz
de distância. Isso signi ca que a luz que seu olho vê agora começou a
atravessar o espaço no m da era glacial. Antes que os seres humanos
houvessem desenvolvido a agricultura. Ao contrário do que se supõe, a maior
parte das estrelas que vemos não estão extintas. Elas, diferente dos homens,
vivem durante muito tempo. Mas isso não diminui em nada, pelo contrário, a
majestade terapêutica do céu noturno. Dentro do cosmos, nosso papel, belo
porém brevíssimo, é na condição do mais raro dos objetos galácticos: um
organismo vivo, que respira e é consciente.
Ao olhar para o céu, todos os nossos problemas do século XXI podem ser
situados em seu contexto cósmico. O céu é maior que e-mails, prazos, hipotecas
e trolls da internet. É maior que nossa mente e suas doenças. É maior que
nomes, nações, datas e relógios. Todas as nossas preocupações parecem
transitórias se comparadas ao céu. Durante nossa vida, durante cada capítulo
da história humana, o céu sempre foi o céu.
E, claro, quando olhamos para ele, não vemos algo ao qual somos estranhos.
Estamos olhando, na verdade, para o lugar de onde viemos. Como o físico Carl
Sagan escreveu em sua obra-prima Cosmos : “O nitrogênio de nosso DNA, o
cálcio de nossos dentes, o ferro de nosso sangue, o carbono de nossas tortas de
maçã nasceram no interior de estrelas em colapso. Somos feitos da matéria das
estrelas.”
O céu, como o mar, pode servir-nos de âncora. Ele diz: ei, está bem, existe
algo maior que sua vida do qual você faz parte, e essa coisa é, literalmente,
cósmica. É a coisa mais magní ca que há. E você deve fazer como uma árvore,
ou um pássaro, e sentir-se parte da grande ordem natural agora e sempre. Você
é incrível. Você é nada e tudo. Você é um simples momento e toda a
eternidade. Você é o universo em movimento.
Está de parabéns.
Natureza
ESTÁ PROVADO QUE o céu nos acalma.
Uma pesquisa realizada em 2018 pelo King’s College de Londres concluiu
que olhar para o céu contribui para nossa saúde mental. E não é apenas o céu.
Ver árvores, ouvir o canto dos pássaros, estar ao ar livre e sentir-se em contato
com a natureza.
Os participantes da pesquisa foram instruídos a registrar seu estado mental
em diferentes lugares. O interessante é que o experimento era bastante
completo uma vez que levava em conta o risco de cada participante de
apresentar uma piora na saúde mental, por meio de testes prévios para avaliar
comportamentos impulsivos.
A pesquisa, com o apropriado título “Urban Mind: Using Smartphone
Technologies to Investigate the Impact of Nature on Mental Wellbeing in Real
Time” [A mente urbana: as tecnologias do smartphone aplicadas ao estudo do
impacto da natureza sobre a saúde mental em tempo real], concluiu que estar
em contato com a natureza é bom para todos mas, em especial, para as pessoas
mais predispostas a sofrer de problemas de saúde mental, como dependências,
TDAH, transtorno de personalidade antissocial e transtorno bipolar.
“Uma breve exposição à natureza tem impacto bené co mensurável na
saúde mental”, concluiu o dr. Andrea Mechelli, um dos responsáveis pela
pesquisa.
A ecoterapia ou “tratamento verde” está em alta. Muitos hotéis-fazenda e
jardins comunitários estão sendo usados como recurso para o tratamento de
estresse, ansiedade e depressão. Em boa medida, isso consiste em pôr em
prática um velho conselho: “Respire um pouco de ar puro.” Em 1859, no livro
Notes on Nursing , Florence Nightingale diz de seus pacientes que “depois de
um quarto fechado, o que mais lhes incomoda é um quarto escuro”, e
aconselha: “Não é apenas luz, mas a luz direta do Sol o que eles querem.”
Finalmente, temos a prova disso.
O problema é que mais da metade da população mundial passou a morar
em grandes cidades. Em 1950, mais de dois terços dela encontrava-se em
assentamentos rurais. Agora, no mundo inteiro, a maior parte habita áreas
urbanas. E como, mais do que nunca, as pessoas cam a maior parte do tempo
em áreas fechadas, é evidente que não estão em contato com bosques ou sob o
céu natural.
É hora de começarmos a entender que os azuis e verdes da natureza podem
nos ajudar. E ajudar a vida das crianças também. Mais ar puro, mais luz solar;
até mesmo, com sorte, conseguir vez ou outra caminhar pelos campos e
bosques. E talvez, munidos dessas provas, possamos contribuir para ajudar a
tornar os espaços urbanos comunitários mais verdes e agradáveis, de modo que
todos possam usufruir da natureza, não apenas uns poucos felizardos.
O mundo interior
ENTÃO, É VERDADE, a beleza da natureza pode curar. Mas em Ibiza, em 1999,
fui até o topo de um penhasco perto de onde estava morando, um dos cantos
mais tranquilos do leste da ilha e me dispus a saltar.
Eu literalmente não tinha mais como conviver — pelo menos não conseguia
conceber uma maneira de lidar — com a confusão e o sofrimento psicológico
que estava enfrentando e desejei que não tivesse ninguém que se importasse
comigo e assim apenas desaparecer com o menor impacto possível.
Às vezes penso naquele penhasco. Na grama sobre a qual quei de pé, no
mar brilhante que eu observava e no extenso litoral de pedra calcária. Na
época, nada daquilo me consolava. Temos provas de que a natureza nos é
bené ca, mas no momento da crise em nada ajuda. Do mundo inteiro, não
havia vista que pudesse me fazer sentir melhor naquele momento de dor
extrema e invisível. A vista daquele lugar não deve ter mudado muito nas duas
últimas décadas. Porém, agora sou capaz de car ali e notar sua beleza e me
sentir muito diferente daquele jovem aterrorizado que eu era.
O mundo nos afeta, mas não nos de ne por completo. Existe dentro de nós
um espaço independente daquilo que vemos e de onde estamos. Isso quer dizer
que é possível experimentar sofrimento em meio à beleza e à paz externas. Em
contrapartida, podemos nos sentir calmos em um mundo de medo. Podemos
cultivar a serenidade dentro de nós, alimentá-la e perpetuá-la, e isso nos
impulsiona adiante.
Existe um clichê sobre a leitura: há tantos livros quantos leitores. No fundo,
isso signi ca que cada leitor compreende um livro de sua própria maneira.
Cinco pessoas podem sentar-se para ler, digamos, A mão esquerda da escuridão ,
de Ursula K. Le Guin, e ter cinco reações muito diferentes entre si e não por
isso menos válidas. O que importa não é tanto o que se lê, mas como se lê. O
escritor pode começar uma história, mas precisa de um leitor para lhe dar vida,
e isso não acontece sempre da mesma forma. Uma história nunca é apenas as
É É
palavras que a compõem. É também a leitura delas. E isso varia. É aí que mora
a magia. Tudo o que o escritor pode fazer é oferecer um fósforo, de preferência
seco. O leitor precisa riscá-lo para a chama arder.
O mundo também é assim. Existem tantos mundos quanto habitantes. O
mundo existe em você. Sua experiência dele não é aquela coisa objetiva e
imutável chamada “O Mundo”. Não. Sua experiência do mundo é sua
interação com ele, sua interpretação dele. Até certo ponto, cada um de nós cria
seu próprio mundo. Lemos o mundo à nossa maneira. Mas também podemos,
até certo ponto, escolher o que ler. Temos de descobrir o que nos entristece,
amedronta, confunde, adoece, acalma ou alegra.
Temos de encontrar, em meio a todos os bilhões de mundos humanos,
aquele em que queremos viver. Aquele que, se não o imaginarmos, nunca nos
alcançará.
E, da mesma forma, temos de compreender que, embora in uencie nossos
sentimentos, o mundo não é nossos sentimentos. Podemos estar calmos em um
hospital ou sofrendo à beira de um penhasco na Espanha.
Podemos nos contradizer. Podemos contradizer o mundo. Às vezes
podemos até fazer o impossível. Podemos viver quando a morte parece
inevitável. E podemos ter esperanças depois de convencidos de que não há
mais esperança.
Você, desconectado
ÀS VEZES A vida parece um arranjo musical exagerado, com uma cacofonia de
cem instrumentos tocando ao mesmo tempo. Às vezes a música melhora se é
reduzida à voz e violão. Às vezes, quando há muita coisa acontecendo, é difícil
ouvir a música propriamente dita.
E, da mesma forma que a música com elementos supér uos, nós também
podemos nos sentir um tanto perdidos.
Nosso eu natural não mudou ao longo de dezenas de milhares de anos, e
devemos lembrar disso a cada novo aplicativo, smartphone, plataforma de rede
social ou arma nuclear que projetamos. Devemos lembrar a música de sermos
humanos. Pensar no ar quando nos sentimos como se estivéssemos debaixo
d’água. Encontrar alguma calma em uma época saturada de marketing,
notícias de último minuto e milhões de abalos diários provocados pela internet.
Não ter medo de ter medo. Sermos nós mesmos, magní cos, brilhantes,
verdadeiros, belos, frágeis, falhos, imperfeitos, animais, cada dia mais velhos,
presos ao tempo e ao espaço, mas libertados pela capacidade de parar, a
qualquer momento, e encontrar alguma coisa — uma música, um raio de sol,
uma conversa, um graf ti bonito — e sentir a maravilha absoluta que é estar
vivo.
18
BASTA SER COMO VOCÊ É
“Existe um único canto do universo que você com
certeza pode aperfeiçoar, e é seu próprio eu.”
— Aldous Huxley
Coisas que quase sempre existiram
PENHASCOS. SAMAMBAIAS. COMPANHEIRISMO. Céu. O homem na Lua. O
sentimentalismo do nascer do sol e do pôr do sol. Amor eterno. Desejo
atordoante. Projetos abandonados. Arrependimento. Céus noturnos sem
nuvens. Luas cheias. Beijos de manhã. Frutas frescas. Oceanos. Mares. Marés.
Rios. Lagos como espelhos. Rostos que emanam amizade. Comédia. Risada.
Histórias. Mitos. Canções. Fome. Prazer. Sexo. Morte. Fé. Fogo. A profunda
beleza silenciosa de observar o eu. A luz que se torna mais brilhante por causa
da escuridão em volta. Contato visual. Dançar. Jogar conversa fora. Silêncios
reveladores. Dormir. Sonhos. Pesadelos. Monstros feitos de sombras.
Tartarugas. Peixe-serra. O verde da grama molhada. O arroxeado das nuvens
ao entardecer. O barulho das ondas batendo contra rochas que aos poucos
erodem. O brilho escuro e liso da areia molhada. O alívio de um gole que mata
a sede. A terrível e fascinante consciência de estar vivo. O agora de que é feito
o sempre. A possibilidade de esperança. A expectativa do lar.
O que digo a mim mesmo quando as
coisas cam demais
1. ESTÁ TUDO BEM .
2. Mesmo que não esteja tudo bem, não tente controlar algo que não dá para
ser controlado.
3. Você se sente incompreendido. Todo mundo é incompreendido. Não se
preocupe se outras pessoas não o entendem. Trate de entender a si
mesmo. Nada mais vai importar depois disso.
4. Aceite-se. Se não conseguir car satisfeito consigo mesmo, pelo menos
aceite-se como é neste momento. Você não poderá mudar se não se
conhecer.
5. Não seja descolado. Nunca tente ser descolado. Nunca dê importância ao
que pensam as pessoas descoladas. Procure pessoas acolhedoras. Vida é
calor. Você vai estar descolado de tudo quando estiver morto.
6. Escolha um bom livro. Sente-se e leia-o. Haverá momentos na vida em
que você se sentirá perdido e confuso. O caminho de volta para si mesmo
passa pela leitura. Quero que você se lembre disso. Quanto mais ler, mais
saberá como encontrar recursos para superar os momentos difíceis.
7. Não tente se consertar. Não se deixe cegar pelas conotações de seu nome,
gênero, nacionalidade, sexualidade ou per l do Facebook. Seja mais do
que dados a ser colhidos. “Quando me despojo do que sou, torno-me o
que eu poderia ser”, disse o lósofo chinês Lao Zi.
8. Vá mais devagar. Ainda Lao Zi: “A natureza não se apressa, e mesmo
assim tudo se concretiza.”
9. Aproveite a internet. Não a use se não estiver se divertindo. (Nada parece
mais fácil sendo tão difícil.)
10. Lembre-se de que muita gente se sente como você. É possível até entrar
na internet e encontrar essas pessoas. Trata-se de um dos aspectos mais
terapêuticos da era das redes sociais. Você pode encontrar eco para seu
sofrimento. Pode encontrar alguém que vai entender.
11. Como disse Yoda, não se pode tentar ser. Tentar é o oposto de ser.
12. As coisas que fazem de você alguém singular são suas falhas.
Imperfeições. Aceite-as. Não tente eliminar sua natureza humana.
13. Não permita que a publicidade o convença de que a felicidade é uma
transação comercial. Como disse o caubói cherokee-americano Will
Rogers: “Muita gente gasta dinheiro que não tem para comprar coisas de
que não precisa e assim impressionar pessoas de quem não gosta.”
14. Nunca deixe de tomar o café da manhã.
15. Vá para a cama antes da meia-noite na maior parte dos dias.
16. Mesmo em períodos mais agitados — Natal, reuniões de família, épocas
de trabalho frenético, feriados —, busque momentos de paz. Busque
refúgio em um quarto de vez em quando. Ponha uma breve interrupção
em seu dia.
17. Compre menos.
18. Pratique ioga. É mais difícil car estressado se seu corpo e sua respiração
não o estão.
19. Em tempos turbulentos, mantenha uma rotina.
20. Não compare as piores partes de sua vida às melhores das de outras
pessoas.
21. Valorize mais as coisas de que mais sentiria falta se elas não existissem.
22. Não tente se decifrar. Não tente entender de uma vez por todas quem
você é. Como disse o lósofo Alan Watts: “Tentar se de nir é como tentar
morder os próprios dentes.”
23. Vá dar um passeio. Saia para uma corrida. Dance. Coma uma torrada
com manteiga.
24. Não tente sentir algo que não sente. Não tente ser algo que não pode ser.
Essa energia o esgotaria.
25. Conectar-se com o mundo não tem nada a ver com Wi-Fi.
26. O futuro não existe. Planejar-se para o futuro é apenas planejar-se para
outro presente em que você estará se planejando para o futuro.
27. Respire.
28. Ame agora. Ame agora mesmo. Se tem alguém ou alguma coisa para
amar, faça-o, neste instante. Ame sem ter medo. Como Dave Eggers
escreveu: “Isso não é jeito de viver, esperar para amar.” Distribua amor
com generosidade.
29. Não se sinta culpado. Hoje, a menos que você seja um sociopata, é quase
impossível não sentir culpa por alguma coisa. Somos tomados pelo
sentimento de culpa. Há a culpa que aprendemos a sentir na infância à
hora das refeições — a culpa de comer sabendo que no mundo há quem
passe fome. A culpa pelo privilégio. A culpa ecológica de dirigir um
carro, voar em um avião ou usar plásticos. A culpa de comprar coisas que
possam não ser éticas de algum modo que não conseguimos perceber. A
culpa por desejos inconfessáveis ou desleais. A culpa de não ser as coisas
que os outros gostariam que você fosse. A culpa de ocupar espaço. A
culpa de não ser capaz de fazer coisas que outros fazem. A culpa de estar
doente. A culpa de viver. É inútil, essa culpa. Não ajuda ninguém. Tente
praticar o bem agora, sem se afogar em uma coisa ruim que possa ter feito
algum dia.
30. Veja-se fora das forças do mercado. Não entre no jogo. Resista à culpa
por não fazer nada. Encontre o espaço não comercializável dentro de si
mesmo. O espaço verdadeiro. O espaço humano. O espaço que nunca
poderia ser medido em termos de números, dinheiro ou produtividade. O
espaço que a economia de mercado não consegue ver.
31. Olhe para o céu. (É maravilhoso. É sempre maravilhoso.)
32. Passe algum tempo com um animal não humano.
33. Fique entediado sem dó nem piedade. O tédio pode ser saudável. Quando
a vida car difícil, procure essas emoções sem graça.
34. Não de na quanto você vale de acordo com a avaliação dos outros sobre
você. Como Eleanor Roosevelt declarou: “Ninguém pode fazê-lo se sentir
inferior sem seu consentimento.”
35. O mundo pode ser triste. Mas lembre-se de um milhão de atos de
bondade praticados hoje que não foram alardeados. Um milhão de atos
de amor. A bondade humana discreta resiste.
36. Não se auto agele por ser desorganizado. Está tudo bem. O universo é
uma bagunça. As galáxias estão aí, por tudo que é lado. Você,
simplesmente, está em sintonia com o cosmos.
37. Se você não se sente mentalmente bem, trate-se como se tivesse um
problema físico. Asma, gripe, o que for. Faça o que for preciso para
melhorar. E não se envergonhe disso. Não que andando para lá e para cá
com uma perna quebrada.
38. Não há nada de errado com o choro. As pessoas choram. As mulheres
choram. E os homens choram. Eles têm canais e glândulas lacrimais como
qualquer ser humano. Um homem chorar não é diferente de uma mulher
chorar. É natural. Os papéis sociais são tóxicos quando não permitem
uma válvula de escape para o sofrimento. Ou para a emoção sentimental.
Chora, ser humano. Chora até não poder mais.
39. Permita-se fracassar. Permita-se duvidar. Permita-se sentir-se vulnerável.
Permita-se mudar de ideia. Permita-se ser imperfeito. Permita-se resistir
ao dinamismo. Permita-se não passar pela vida como uma echa que vai
apenas na direção do alvo pretendido.
40. Tente querer menos. Querer é um buraco. Querer é uma falta. Isso é
parte dessa de nição. Quando o poeta Byron escreve “Quero um herói”,
ele quer dizer que não tem um herói. O fato de querer coisas de que não
precisamos nos faz sentir uma falta que não sofríamos. Tudo de que você
precisa está aqui. Um ser humano é completo apenas sendo humano.
Somos nosso próprio destino.
A recompensa diminui
O PLANETA TERRA é singular. Na vasta arena cósmica do universo, é o único
lugar que conhecemos em que existe vida. É um lugar incrível. O mundo, por
conta própria, fornece tudo de que nós, humanos, precisamos para sobreviver.
Você também é incrível. Igualmente incrível. Você já era incrível no dia em
que nasceu. Você já era tudo desde o dia em que nasceu. Ninguém olha para
um recém-nascido e pensa, minha nossa, veja só quantas coisas que faltam . As
pessoas olham para um bebê e se sentem como se estivessem diante da
perfeição, intocada pela complexidade e pela bagagem da vida ainda por vir.
Nascemos completos. Deem-nos algo de comer e beber, abrigo, cantem uma
canção para nós, contem-nos uma história, deem-nos pessoas com quem
conversar, de quem amar e de quem nos apaixonar, e pronto. Uma vida .
Mas, em algum ponto do caminho, elevamos o patamar daquilo de que
precisamos — ou achamos que precisamos — para sermos felizes.
Somos estimulados a comprar coisas para sermos felizes porque as empresas
são estimuladas a ganhar mais dinheiro para terem sucesso. É algo viciante. E
não é viciante porque nos faz felizes. É justamente porque não nos faz felizes.
Compramos um produto e gostamos dele durante algum tempo — gostamos
da novidade que ele representa — , mas nos acostumamos a tê-lo e aí
precisamos de outra coisa. Precisamos da ideia de mudança, de variedade.
Uma coisa mais nova, uma coisa melhor, uma coisa mais perfeita. E aí o ciclo
se repete.
Com o tempo, nos habituamos a mais e mais coisas.
E isso se aplica a tudo.
O usuário do Instagram que gosta de receber um monte de curtidas para
sua sel e logo vai querer mais curtidas e cará decepcionado se o número
permanecer o mesmo. O estudante nota dez vai sentir que tirar um nove é
fracassar. O empresário que ca rico vai procurar ganhar mais dinheiro. A
pessoa que gosta de musculação e de ver seu corpo sarado vai querer treinar
cada vez mais pesado. O trabalhador que recebe a promoção que queria em
pouco tempo vai querer outra promoção. A cada conquista, ganho ou compra,
o nível sobe mais um pouco.
Já cheguei a pensar que encontraria a felicidade duradoura se meus artigos
fossem publicados. Depois, se um livro fosse publicado. Depois se outro livro
fosse publicado. Depois, se um de meus livros se tornasse um best-seller. E
depois um segundo livro. E depois se fosse o primeiro da lista dos mais
vendidos. Depois, se vendesse os direitos dele para uma adaptação
cinematográ ca. E assim por diante. E eu, como muita gente, cava feliz, por
algum tempo, ao alcançar cada um dos objetivos de carreira a que me
propunha, mas logo minha mente se acostumava à última conquista e traçava
uma nova meta. Assim, quanto mais eu conseguia, mais precisava.
Quanto maior o “sucesso”, mais fácil é o desapontamento por não conseguir
o que queria. A única diferença é que agora ninguém lamenta por você.
Seja lá o que for que se compre ou conquiste, os sentimentos que aquilo
inspira não duram. Um campeão sempre quer outra vitória. O milionário
sempre quer outro milhão. A atriz sedenta por popularidade sempre quer mais
fama. Assim como um alcoólatra quer mais um drinque e o viciado em apostas
quer participar de um novo jogo.
Mas a sensação de recompensa sempre vai diminuindo.
A criança que tem cem brinquedos vai brincar cada vez menos com o
último que ganhou.
Pense sobre isso. Se você pudesse bancar umas férias dez vezes mais cara
que as últimas, será que se sentiria dez vezes mais descansado? Duvido. Se
você pudesse passar dez vezes mais tempo no Twitter, caria dez vezes mais
informado? Claro que não. Se você passasse o dobro do tempo trabalhando
completaria o dobro de tarefas? As pesquisas indicam que não. Se você
pudesse comprar um carro dez vezes mais caro do que o seu, ele o levaria de A
para B dez vezes mais rápido? Não. Se comprasse mais cremes anti-idade, você
rejuvenesceria a cada compra? De novo, não.
Você está condicionado a querer mais. Muitas vezes, esse estímulo vem de
empresas que, por sua vez, são condicionadas coletivamente a querer mais.
Querer mais é o padrão.
Porém, da mesma forma como temos um só planeta — um com recursos
nitos —, existe um só você. E você também tem um recurso nito: o tempo.
E, vamos encarar a verdade, você não pode se multiplicar. Um planeta
sobrecarregado nos compele a levar vidas sobrecarregadas, mas, no nal das
contas, você não pode brincar com todos os brinquedos ao mesmo tempo. Não
pode usar todos os aplicativos do seu telefone. Não pode ir a todas as festas.
Não pode fazer o trabalho de vinte pessoas. Não pode estar em dia com todas
as notícias. Não pode usar seus onze casacos ao mesmo tempo. Não pode ver
todos os espetáculos imperdíveis. Não pode estar em dois lugares ao mesmo
tempo. Pode comprar mais, ter mais, trabalhar mais, ganhar mais, esforçar-se
mais, tuitar mais, assistir a mais espetáculos, querer mais, mas como cada coisa
nova perde seu valor, chegará um ponto em que você terá de se perguntar: para
que tudo isso?
Quanta felicidade extra estou conseguindo? Por que quero tantas coisas
além do que preciso?
Eu não seria mais feliz se desfrutasse daquilo que já tenho?
Ideias simples para um recomeço
— C ONSCIÊNCIA . TENHA consciência de quanto tempo está passando no
celular, de em que medida as notícias afetam sua saúde mental, de como suas
atitudes em relação ao trabalho estão mudando, de quanta pressão você sente e
quanto dela advém dos problemas da vida moderna, de estar conectado ao
sistema nervoso do mundo. A consciência torna-se uma solução. Assim como
ter consciência de que ao tocar uma chapa quente deve-se tirar a mão para não
se queimar, ter consciência dos tubarões invisíveis da vida moderna ajuda a
evitá-los.
— Sentir-se completo . Você não precisa sentir as de ciências que é levado a
sentir, que a sociedade quer que você sinta. Você nasceu como deveria ser e
permanece o mesmo. Nunca será outra pessoa, portanto nem tente. Você não
tem um substituto. Você é o único que existe para desempenhar o papel de ser
você. Então, não se compare, não se julgue segundo a opinião alheia.
— O mundo é real, mas seu mundo é subjetivo . Mudar sua perspectiva muda seu
planeta. Pode mudar sua vida. Uma das versões da teoria do multiverso a rma
que criamos um novo universo a cada decisão que tomamos. Você pode estar
em um universo melhor apenas ao evitar checar o celular por dez minutos.
— Menos é mais . Um planeta sobrecarregado leva a uma mente
sobrecarregada. Leva a dormir tarde e mal. Leva a preocupação às três da
manhã com e-mails não respondidos. Em casos extremos, leva a ataques de
pânico diante da prateleira de cereais no supermercado. Não se trata de “Mo
Money Mo Problems” [mais grana, mais problemas], como diria o rapper
Notorious B.I.G. É “mais tudo, mais problemas”. Simpli que a vida. Abra
mão daquilo de que não precisa.
— Você já sabe o que tem importância. É claro que o importante são as coisas de
que você realmente sentiria falta se não as tivesse mais. São as coisas às quais
você deve se dedicar sempre que possível. Pessoas, lugares, livros, comidas,
experiências, o que for. E, às vezes, para aproveitar bem essas coisas, você
precisa renunciar a outras. Você precisa se libertar delas.
O que importa
HÁ UMA SEMANA levei coisas que vinha acumulando a um bazar de caridade e
me livrei delas. E me senti melhor. Não apenas pela questão de doar, mas pela
sensação de limpeza. Minha casa agora está livre de uma porção de entulho.
Roupas que nunca uso, loções pós-barba ainda fechadas, duas cadeiras que
nunca eram usadas, DVDs antigos que não veria de novo e até mesmo —
pasme — alguns livros que nunca lerei.
— Você tem certeza de que quer se livrar de tudo isso? — perguntou
Andrea, olhando o cenário de sacos de lixo no corredor. Até ela, que ama se
livrar de coisas desnecessárias, cou surpresa.
— Tenho. Acho que sim.
O caso é que no processo de jogar coisas fora acabei valorizando mais o que
tenho. Por exemplo, quando estava separando alguns DVDs, achei um que
não só queria continuar tendo como queria revê-lo. A felicidade não se compra .
E, de fato, assisti a esse lme duas noites depois.
Minha intenção não é lhe causar a sensação de estar perdendo alguma coisa
— e não é nenhuma grande novidade —, mas, se você nunca viu A felicidade não
se compra , recomendo. Não é um lme água com açúcar. É sincero e
sentimental, sim, mas de uma maneira franca. É puro. Poderosíssimo. É sobre
a grande importância de levar uma vida pequena. Sobre por que somos
importantes. Sobre a diferença que uma vida pode fazer. Sobre porque
devemos permanecer vivos. Assistir a esse lme nunca é uma perda de tempo.
Ele ajuda a valorizar o tempo.
Trata-se de apenas um exemplo de como a eliminação de coisas medíocres
que ocupam seu tempo e sua casa ajuda a destacar o que há de bom. Da mesma
forma, limitar o acesso às notícias ajuda a priorizar o que é importante quando
você se atualiza. Trabalhar menos horas ajuda a torná-las mais produtivas. E
assim por diante. Simpli que. Edite sua vida.
É
Mas, para ser sincero, a limpeza é a parte mais fácil. É fácil reduzir à
metade o número de peças em seu guarda-roupa. É fácil usar um ltro melhor
na caixa de entrada do seu e-mail e desativar as noti cações no celular. É fácil
ser mais gentil com as pessoas na internet. É relativamente fácil ir para a cama
um pouco mais cedo. É relativamente fácil passar a ter consciência da respiração
e reservar meia hora para praticar ioga todos os dias. É relativamente fácil pôr o
celular para carregar à noite fora do seu quarto. (Está bem, essa é mais difícil,
mas estou conseguindo.)
A parte realmente difícil é mudar atitudes dentro de si mesmo. Como fazer
para editá-las?
São as atitudes que estão arraigadas em você pela sociedade. Atitudes a
respeito do que você precisa fazer e ser e como será avaliado por elas. Atitudes
referentes a como você deve trabalhar, ganhar, consumir, assistir e viver.
Atitudes sobre a separação entre sua saúde mental e a física. Atitudes sobre
todas as coisas que você é levado a temer pelos publicitários e políticos. Sobre
todos os desejos e carências que se supõe que você deva sentir para manter a
ordem econômica e social.
Pois é. Não é fácil. Mas o segredo parece estar na aceitação.
Aceitação de quem você é. Aceitação da realidade da sociedade, mas
também da sua própria realidade, sem se sentir incompleto. É esse sentimento
de carência que enche nossa casa e nossa cabeça de entulho. Tente manter seu
eu pleno. Um ser humano completo, total, que existe com o único propósito de
ser você mesmo.
“A questão é libertar o eu”, disse Virginia Woolf, enquanto lutava para
conseguir fazer isso. “Deixar que ele encontre suas dimensões, sem ser
impedido.”
Aliás, eu estaria mentindo se dissesse que já cheguei lá. Ainda estou longe.
Estou mais perto, mas ainda falta muito. Duvido que algum dia consiga chegar
lá em de nitivo, àquele estado abençoado de nirvana além do mundo nervoso
da tecnologia, do consumismo e da alienação. Com a mente clara como um
riacho em uma montanha. Não há ponto de chegada. Não se trata de ser
perfeito. Na verdade, punir-se por não ser perfeito é parte do problema.
Portanto, aceitar quem sou — uma versão melhorada, mas imperfeita — é
uma tarefa contínua, mas muito compensadora.
Conhecer o que não lhe é saudável torna muito mais fácil se proteger.
É
É o que acontece com o que você come e bebe. Saber que chocolate e Coca-
Cola não são saudáveis não quer dizer que nunca mais vou consumi-los. Mas
talvez isso me fará consumi-los menos, e quem sabe até apreciá-los mais do
que quando me entupia deles, agora que se tornaram especiais.
Assim, em vez de passar cinco horas diante da TV, agora tento assistir a um
só programa.
Em vez de passar a tarde inteira nas redes sociais, vou passar dez minutos,
sempre prestando atenção na hora no computador para saber quando entrei e
quando devo sair. Tento fazer boas ações e coisas legais sempre que posso.
Nada heroico, só o de costume: dedicar-me um pouco à lantropia, conversar
com alguém sem-teto, ajudar as pessoas com sua saúde mental, ceder o lugar
no trem. Pequenos atos de bondade. Não apenas para não ser egoísta, mas
porque praticar o bem cura. Você se sente melhor depois. É uma espécie de
faxina psicológica. Porque a bondade lava a alma. E talvez torne este planeta
nervoso um pouco menos nervoso.
É um esforço contínuo. Tento ser legal comigo mesmo. Não me sentir como
se me aceitar fosse trabalhoso, dispendioso ou sacri cante. Saber que não
preciso ser durão e invulnerável para ser homem. Que não preciso me
preocupar com o que os outros pensam de mim. E mesmo quando me sentir
fraco, até mesmo quando tiver pensamentos e medos indesejáveis, toda essa
tralha mental , tento car calmo. Tento nem tentar. Tento apenas aceitar quem
sou. Aceito o que sinto. E assim posso entender a situação e mudar o modo
como me relaciono com o mundo.
O mundo está dentro de você
VOCÊ PODE SER parte do planeta. Mas, da mesma forma, o planeta faz parte de
você. E você pode escolher como reagir a ele. Você pode mudar as partes dele
que entram em você. Sim, em certo sentido, é fácil perceber que o planeta está
apresentando sintomas semelhantes aos de uma pessoa com transtorno de
ansiedade, mas não existe uma versão única do mundo. Existem sete bilhões de
versões dele. A questão é encontrar aquela que funcione melhor para cada um
de nós.
E lembrar.
Tudo o que há de especial no ser humano — nossa capacidade de amar, de
fazer arte, de praticar a amizade, contar histórias e tudo o mais — não decorre
da vida moderna, mas do fato de sermos humanos . Assim, enquanto não
conseguirmos nos afastar do estresse frenético e transitório da vida moderna,
podemos dar ouvidos a nosso ser humano (ou a nossa alma, se você preferir) e
escutar a imobilidade silenciosa do ser. E compreender que não precisamos nos
distrair de nós mesmos.
Tudo de que precisamos está aqui. O que somos é o bastante. Não
precisamos de um barco maior para lidar com os tubarões invisíveis a nossa
volta. Nós somos o barco maior. O cérebro, como disse Emily Dickinson, é
maior que o céu. E quando percebemos como a vida moderna nos faz sentir, ao
reconhecer a realidade e manter a mente aberta a ponto de notar quando a
mudança é bené ca a nossa saúde, poderemos nos comprometer com esse belo
mundo sem a preocupação de que ele nos roube de nós mesmos.
Começo
OLHO PARA O relógio do computador.
Passei a fazer isso para controlar o tempo que passo diante da tela. O fato de
saber quanto tempo co no computador por si só já resulta em car menos
tempo. Suponho que esse seja o segredo: estar consciente.
Outra oportunidade de exercer a consciência. Estou consciente do cachorro
que está a meus pés.
E consciente da vista.
O sol brilha do lado de fora de minha janela. Posso ver o mar ao longe. No
horizonte dá para ver um parque eólico marinho, pequenas linhas de
esperança. Um cruzamento de cabos telegrá cos corta a cena como traços em
uma pintura abstrata. Telhados e chaminés apontadas para o céu que
raramente observamos.
Olho para o mar e isso me acalma. Estou tentando me manter em sintonia
com o que existe no mundo que nos faz sentir bem. É assim que podemos
viver no presente. É assim que cada momento se torna um recomeço. Estando
conscientes. Livrando-nos do que não necessitamos e encontrando o que nosso
eu realmente precisa. E é nessa consciência que conseguiremos encontrar um
meio de nos mantermos éis a nós mesmos e ainda assim continuarmos
apaixonados pelo mundo. Esse é o objetivo. É difícil. É di cílimo. Mas é,
também, melhor do que o desespero. E, uma vez que você tem certeza de que
não vai fracassar nessa tentativa, posto que aceitou suas confusões e falhas
como naturais, a coisa ca bem mais fácil.
Ainda hoje irei a um shopping center. Não gosto de shopping centers, mas já
não me causam ataques de pânico. O segredo da sobrevivência em shopping
centers, supermercados, a comentários negativos na internet e a tudo o mais é
não os ignorar ou fugir deles, ou enfrentá-los, mas deixar rolar. Aceitar que
não temos controle sobre eles, apenas sobre nós mesmos.
“Porque, a nal de contas”, escreveu o poeta Henry Wadsworth Longfellow,
“o melhor a se fazer quando está chovendo é deixar chover.” Isso. Deixe
chover. Deixe estar o planeta. Você não tem alternativa. Mas tenha também
consciência de seus sentimentos, bons e ruins. Saber o que dá certo para você e
aceitar o que não dá. Saber que chuva é chuva e não o m do mundo torna as
coisas mais fáceis.
Mas neste momento não está chovendo.
Por isso, assim que terminar esta página, vou salvar o documento, fechar o
laptop e sair.
Para tomar ar e pegar sol.
Para a vida.
Pessoas a quem quero agradecer
GOSTARIA DE AGRADECER a todas as pessoas que conheci na vida real ou pela
internet ao longo dos últimos anos que tiveram coragem de falar sobre sua
saúde mental. Quanto mais conversamos, mais incentivamos os demais a fazer
o mesmo.
Embora os livros tenham só um nome na capa — o que é ridículo —, eles
são normalmente um trabalho de equipe, e foi o caso com este, mais que com
qualquer outro. Primeiro, devo in nita e permanente gratidão a minha
grande, acolhedora, destemida e incansável agente Clare Conville, e a todos da
sua equipe na C+W e na Curtis Brown.
Devo agradecer a meu maravilhoso e paciente editor Francis Bickmore, da
Canongate, e a todas as outras pessoas sagazes que leram as primeiras versões
deste livro, inclusive meus brilhantes editores do outro lado do oceano —
Patrick Nolan, da Penguin Random House, nos Estados Unidos, e Kate
Cassaday, da HarperCollins, no Canadá. Este livro não seria este livro sem o
olhar perspicaz de Alison Rae, Megan Reid, Leila Cruickshank, Jo Dingley,
Lorraine McCann, Jenny Fry e do chefão da Canongate Jamie Byng. Agradeço
também a Pete Adlington por seu esplêndido trabalho na capa e a toda a
equipe da Canongate que deu duro trabalhando neste e em meus outros livros;
esse time é composto por Andrea Joyce, Caroline Clarke, Jess Neale, Neal
Price, Alice Shortland, Lucy Zhou e Vicki Watson.
Obrigado a todos os amigos de redes sociais que me permitiram citá-los
aqui.
E, é claro, obrigado a Andrea, por ter sido a primeira e mais sincera leitora
deste livro e por ser alguém que torna menos enervante a vida neste planeta
nervoso. E peço desculpas a Pearl e a Lucas, já que esta obra, ironicamente, me
fez passar mais tempo do que de costume na frente do computador.
E obrigado a você por ter escolhido este livro entre a in nidade de livros
existentes. Isso signi ca muito para mim.
planetanervoso.pdf
Sobre o autor
© Clive Doyle
MATT HAIG é o autor best-seller de Razões para continuar vivo e outros cinco
livros aclamados voltados para o público adulto, incluindo Como parar o tempo
, Os humanos e Os Radley . Na literatura infantil e infantojuvenil, ganhou o
Blue Peter Book Award, o Smarties Book Prize e foi indicado três vezes para o
Carnegie Medal. Sua obra já foi traduzida para mais de quarenta idiomas.
matthaig.com
@matthaig1
Conheça outro título do autor
Razões para continuar vivo
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Alain de Botton
Alucinadamente feliz
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O lado bom da vida
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  • 3. Copyright © Matt Haig, 2018 Publicado mediante acordo com Canongate Books Ltd, 14 High Street, Edinburgo EH1 1TE. TÍTULO ORIGINAL Notes on a Nervous Planet PREPARAÇÃO Ilana Goldfeld REVISÃO Carolina Rodrigues Juliana Pitanga ARTE DE CAPA Peter Adlington ADAPTAÇÃO DE CAPA Antônio Rhoden REVISÃO DE E-BOOK Carolina Andrade GERAÇÃO DE E-BOOK Joana De Conti E-ISBN 978-65-5560-021-6 Edição digital: 2020 1a edição Todos os direitos desta edição reservados à Editora Intrínseca Ltda. Rua Marquês de São Vicente, 99, 3o andar 22451-041 – Gávea Rio de Janeiro – RJ Tel./Fax: (21) 3206-7400 www.intrinseca.com.br
  • 5. Sumário [Avançar para o início do texto] Folha de rosto Créditos Mídias sociais Dedicatória Epígrafe 1. Uma cabeça estressada num mundo estressado 2. O quadro geral 3. Um sentimento não é o que você aparenta 4. Observações sobre o tempo 5. Sobrecarga de vida 6. Ansiedades da internet 7. Choque de notícias 8. Um breve ensaio sobre o sono 9. Prioridades 10. Medos telefônicos 11. O detetive do desespero 12. O corpo pensante 13. O m da realidade 14. Querer 15. Duas listas sobre o trabalho 16. Como moldar o futuro 17. A sua música 18. Basta ser como você é
  • 6. Pessoas a quem quero agradecer Sobre o autor Conheça outro título do autor Leia também
  • 8. “Totó, tenho o pressentimento de que não estamos mais no Kansas.” — Dorothy, em O mágico de Oz
  • 9. 1 UMA CABEÇA ESTRESSADA NUM MUNDO ESTRESSADO
  • 10. Uma conversa, cerca de um ano atrás EU ESTAVA ESTRESSADO. Andava em círculos, tentando vencer uma discussão pela internet. E Andrea estava olhando para mim. Ou eu achava que Andrea estava olhando para mim. Difícil dizer, já que eu olhava para o celular. — Matt? Matt? — Oi. Sim? — O que está havendo? — perguntou ela com aquela voz de desespero que se desenvolve com o casamento. Ou com o casamento comigo. — Nada. — Você não levanta os olhos do celular há cerca de uma hora. Está andando para lá e para cá, esbarrando nos móveis. Meu coração estava disparado e eu sentia um aperto no peito. Lutar ou correr. Eu estava encurralado, ameaçado por alguém da internet que morava a mais de doze mil quilômetros, uma pessoa que eu sequer conhecia, mas que estava tentando estragar meu m de semana. — Só vou resolver uma coisinha. — Matt, saia daí. — Eu só vou... A questão do turbilhão mental é que muitas coisas que a curto prazo fazem você se sentir bem, a longo prazo fazem com que se sinta pior. Você se distrai, quando o que precisa mesmo é se conhecer . — Matt! Uma hora depois, Andrea me lançou um olhar do banco do carona. Eu não estava no celular, mas segurava-o com força, por garantia, como uma freira agarrando o rosário. — Matt, você está bem? — Sim. Por quê? — Você parece perdido. Você está como cava quando...
  • 11. Ela se conteve para não dizer “quando você tinha depressão”, mas eu sabia aonde ela queria chegar. Além disso, eu conseguia sentir a ansiedade e a depressão se aproximando. Não exatamente presentes, mas perto. Essa lembrança era algo que eu praticamente podia tocar ali na atmosfera sufocante do carro. — Estou bem — menti. — Estou bem, estou bem... Uma semana depois eu estava jogado no sofá, mergulhando em meu décimo primeiro episódio de ansiedade.
  • 12. Uma revisão da vida EU ESTAVA COM medo. Mas não podia estar. Ansiedade é justamente isso: medo. Os episódios estavam cando cada vez mais próximos. Eu estava preocupado por não saber onde isso iria parar. Parecia não haver limite para o desespero. Tentei desviar a atenção, mas minhas experiências anteriores com o álcool já haviam ensinado que aquilo não tinha limites. Então z tudo que havia me ajudado a sair do buraco das outras vezes. Coisas que eu me esquecia de fazer no dia a dia. Cuidar da alimentação. Fazer ioga. Meditar. Deitar no chão com a mão sobre o estômago e respirar fundo — inspira, expira, inspira, expira —, observando o ritmo espasmódico dos pulmões. Mas tudo era difícil. Até escolher o que vestir de manhã podia me fazer chorar. Não importava o fato de que eu já havia sentido aquilo. Uma dor de garganta não é menos incômoda porque você já teve dor de garganta antes. Tentei ler, mas era difícil me concentrar. Ouvi podcasts. Assisti a programas novos na Net ix. Entrei em redes sociais. Tentei pôr o trabalho em dia respondendo todos os e-mails. Acordei, agarrei o celular e rezei para encontrar qualquer coisa que me levasse para fora de mim mesmo. Mas — alerta de spoiler aqui — não deu certo. Comecei a me sentir pior. E muitas das “distrações” estavam servindo apenas para me levar para longe da distração. Como no verso de T. S. Eliot em Quatro quartetos , eu estava “distraído da distração pela distração.” Eu olhava para um e-mail não respondido e, aterrorizado, não era capaz de respondê-lo. Então, no Twitter, minha distração digital preferida, percebi que
  • 13. a ansiedade aumentava. Até simplesmente car rolando o meu feed era como expor uma ferida. Lia sites novos — outra distração — e minha mente não conseguia captá- los. Ter consciência de todo o sofrimento que havia no mundo não ajudava a pôr minha dor em perspectiva. Só me fazia sentir impotente. E patético, também, por minhas a ições invisíveis serem tão paralisantes quando havia no mundo tantas a ições visíveis. Meu desespero aumentava. Então decidi fazer uma coisa. Me desconectar. Resolvi não acessar as redes sociais durante uns dias. Deixei uma resposta automática no e-mail. Parei de assistir e de ler notícias. Não via televisão. Não via videoclipes. Evitava até as revistas. (Durante minha primeira crise, anos antes, as páginas coloridas das revistas costumavam obstruir minha mente em uma sequência febril sempre que eu tentava dormir.) Passei a deixar o celular no andar de baixo quando subia para dormir. Tentei sair mais. Minha mesa de cabeceira estava um caos, entupida de cabos e aparelhos e livros que na verdade eu não estava lendo. Decidi tirar tudo aquilo dali. Em casa, tentava car no escuro tanto quanto possível, como se estivesse com enxaqueca. Desde os vinte e poucos anos, quando senti as primeiras pulsões suicidas, eu sabia que, para melhorar, era preciso, de certa forma, revisar a vida. Era preciso um abandono . Como diria o minimalista Fumio Sasaki, “existe felicidade em ter menos”. Nos primeiros dias da minha experiência inicial de pânico, as únicas coisas que abandonei foram os porres, o cigarro e o café forte. Agora, anos depois, entendo que o problema era uma sobrecarga de aspecto muito mais geral. Era uma sobrecarga de vida. E, com certeza, de tecnologia. A única tecnologia real com a qual eu interagi durante o atual processo de recuperação — além do carro e do fogão — foram vídeos de ioga do YouTube, aos quais eu assistia com pouco brilho na tela. A ansiedade não desapareceu por milagre, é claro. Porque, ao contrário do celular, ela não conta com um botão de “desligar”. No entanto, parei de me sentir cada vez pior . Eu havia chegado a um patamar. Depois de alguns dias, as coisas começaram a car mais calmas.
  • 14. O velho caminho da recuperação chegou a tempo. A abstinência de estímulos — não apenas álcool e cafeína, mas todas essas outras coisas — fazia parte do processo. Em suma, comecei a me sentir livre outra vez.
  • 15. Como este livro surgiu A MAIORIA DAS pessoas sabe que viver no mundo moderno pode ter consequências físicas. Que, apesar do progresso, certos aspectos da vida contemporânea são perigosos para nosso corpo. Acidentes de carro, fumaça, poluição atmosférica, sedentarismo, pizza entregue em casa, radiação, aquela quarta taça de vinho. Mesmo car no laptop pode representar perigos físicos. Passar o dia inteiro sentado adquirindo uma lesão por esforço repetitivo. Certa vez, um oftalmologista me disse que minha infecção ocular e o bloqueio dos canais lacrimais tinham sido causados por olhar demais para telas. Ao que parece, piscamos menos quando trabalhamos no computador. Se a saúde física e mental estão entrelaçadas, não poderíamos dizer o mesmo sobre o mundo moderno e nossa condição mental? Particularidades da vida que levamos no mundo moderno não poderiam ser responsáveis por como nos sentimos inseridos nele? Não apenas em termos das coisas , mas também de seus valores. Valores que nos fazem querer mais do que temos. Que nos fazem cultuar o trabalho em detrimento do lazer. Comparar o que temos de pior com o que outras pessoas têm de melhor. Sentir que sempre está faltando algo. E dia após dia, à medida que eu melhorava, a ideia de um livro foi surgindo — sim, este livro aqui. Eu já tinha falado sobre minha saúde mental em Razões para continuar vivo . Mas a questão não era mais por que devo car vivo . Desta vez, era uma mais ampla: como viver em um mundo louco sem enlouquecer?
  • 16. Notícias de um planeta nervoso ASSIM QUE COMECEI a pesquisar, achei manchetes que chamam a atenção na era de chamar a atenção. É claro que as notícias são sempre pensadas para nos estressar. Se fossem para nos acalmar, não seriam notícias, seria ioga. Ou um lhotinho. Assim, é irônico que os meios de comunicação que falam da ansiedade também estejam nos deixando mais ansiosos. De qualquer forma, eis algumas dessas manchetes: ESTRESSE E REDES SOCIAIS ALIMENTAM AS CRISES DE SAÚDE MENTAL NAS MENINAS (The Guardian ) SOLIDÃO CRÔNICA É UMA EPIDEMIA DO MUNDO MODERNO (Forbes ) “O FACEBOOK PODE FAZER VOCÊ SE SENTIR INFELIZ ”, DIZ O PRÓPRIO FACEBOOK (Sky News ) “CRESCIMENTO RÁPIDO ” DA AUTOMUTILAÇÃO ENTRE ADOLESCENTES (BBC) ESTRESSE NO TRABALHO ATINGE 73% DOS PROFISSIONAIS (The Australian ) GRAVE AUMENTO DOS DISTÚRBIOS ALIMENTARES DEVIDO À SUPEREXPOSIÇÃO À IMAGEM CORPORAL DAS CELEBRIDADES (The Guardian ) SUICÍDIO ENTRE UNIVERSITÁRIOS E A PRESSÃO PELA PERFEIÇÃO (The New York Times ) ESTRESSE NO TRABALHO AUMENTA RAPIDAMENTE (Radio New Zealand ) ROBÔS VÃO TIRAR O EMPREGO DE NOSSOS FILHOS ? (The New York Times )
  • 17. ESTRESSE : HOSTILIDADE AUMENTA NAS ESCOLAS DE ENSINO MÉDIO NO GOVERNO TRUMP . (The Washington Post ) EM HONG KONG , AS CRIANÇAS SÃO CRIADAS PARA A EXCELÊNCIA , NÃO PARA A FELICIDADE (South China Morning Post ) ANSIEDADE EM ALTA : AUMENTA O NÚMERO DE PESSOAS EM BUSCA DE DROGAS PARA LIDAR COM O ESTRESSE (El País ) EXÉRCITO DE TERAPEUTAS É ENVIADO ÀS ESCOLAS PARA TRATAR EPIDEMIA DE ANSIEDADE (The Telegraph ) A INTERNET ESTÁ CAUSANDO TDAH EM NÓS ? (The Washington Post ) “NOSSA MENTE PODE SER SEQUESTRADA ”: PROFISSIONAIS DA ÁREA DE TECNOLOGIA TEMEM UMA DISTOPIA DOS SMARTPHONES (The Guardian ) ADOLESCENTES ESTÃO FICANDO MAIS ANSIOSOS E DEPRIMIDOS (The Economist ) O INSTAGRAM É A PIOR REDE SOCIAL PARA A SAÚDE MENTAL DOS JOVENS (CNN) POR QUE OS ÍNDICES DE SUICÍDIO ESTÃO AUMENTANDO EM TODO O PLANETA ? (Alternet ) Como disse, é irônico que ler notícias sobre como o mundo está nos deixando ansiosos e deprimidos nos deixe ainda mais ansiosos, e isso diz tanto quanto as próprias manchetes. O objetivo deste livro não é dizer que tudo é um desastre e que estamos todos ferrados, porque para isso já temos o Twitter. O objetivo tampouco é dizer que em geral o mundo moderno piorou as coisas. Sob alguns aspectos, as coisas estão cando visivelmente melhores. Segundo dados do Banco Mundial, o número de pessoas em todo o planeta que vive em condições graves de precariedade econômica está diminuindo radicalmente, com mais de um bilhão de nós saindo de condições de extrema pobreza nos últimos trinta anos. E pense nas milhões de crianças no mundo todo que vêm sendo salvas pelas vacinas. Como disse Nicholas Kristof num artigo do The New York Times de
  • 18. 2017, “se a pior coisa que pode acontecer a um pai é perder um lho, hoje essa probabilidade é metade do que era em 1990”. Da mesma forma, para toda a violência, a intolerância e a injustiça econômica que prevalecem entre a nossa espécie, existem também — em escala global — motivos para sentir orgulho e esperança. O problema é que cada época apresenta um conjunto singular e complexo de desa os. E enquanto muitas coisas melhoraram, muitas outras não. As desigualdades permanecem, novos problemas surgiram. É comum que as pessoas sintam medo ou se sintam desajustadas ou apresentem até impulsos suicidas, mesmo que, materialmente, disponham de mais do que nunca. E estou plenamente convencido de que o método bastante comum de listar as vantagens da vida moderna — como saúde, educação, renda média — não ajuda. É como apontar o dedo para uma pessoa deprimida e pedir que ela dê graças a Deus porque ninguém morreu. Este livro tenta reconhecer que o que sentimos é tão importante quanto o que possuímos. O bem-estar mental vale tanto quanto o bem-estar físico — na verdade, ele faz parte do bem-estar físico. E que, nesses termos, alguma coisa vai mal. Se o mundo moderno nos faz sentir mal, de nada importa o que está dando certo simplesmente porque se sentir mal é desgastante. E se sentir mal quando nos dizem que não há motivo para isso desgasta ainda mais. Com este livro, quero contextualizar essas manchetes sobre o estresse e buscar meios de nos proteger em um mundo de pânico potencial. Porque, independentemente do que zermos a nosso favor, nosso emocional ainda estará vulnerável. Muitos transtornos mentais estão sofrendo um aumento palpável, e — se acreditamos que nosso bem-estar mental é importante — precisamos, com urgência, considerar o que pode estar por trás dessas mudanças.
  • 19. Os problemas mentais não são: UMA ONDA. Coisas modernas. Um capricho. Tendência de celebridades. Resultado de uma consciência cada vez maior a respeito dos problemas de saúde mental. Fáceis de falar a respeito. Os mesmos de sempre.
  • 20. Do yin para o yang PORTANTO, TEMOS AQUI um conto de duas realidades. Muita gente, é verdade, tem motivos para se sentir grata no mundo desenvolvido. O aumento da expectativa de vida, a queda da mortalidade infantil, a disponibilidade de alimento e moradia, ausência de uma guerra mundial. Já atendemos a muitas de nossas necessidades físicas básicas. Muita gente vive em relativa segurança no dia a dia, com um teto sobre a cabeça e comida na mesa. Mas, depois de resolver alguns problemas, ainda restam outros? Nosso nível de progresso social trouxe novos problemas? É claro que sim. Às vezes, é como se tivéssemos solucionado o problema da escassez substituindo-o pelo problema do excesso. Para onde quer que se olhe, vemos pessoas buscando meios de mudar o estilo de vida desfazendo-se de coisas. As dietas são o exemplo mais óbvio dessa paixão pela restrição, mas pensemos também na tendência de nos dedicarmos por meses a o ao veganismo e à sobriedade, nosso desejo cada vez maior por um “detox digital”. O aumento do estado de atenção plena [mindfulness], da meditação e de um estilo de vida minimalista são respostas visíveis a uma cultura sobrecarregada. A resposta do yin ao frenesi do yang no século XXI.
  • 21. Colapso ASSIM QUE MINHA última crise de ansiedade passou, comecei a hesitar. Talvez essa seja uma ideia boba. Comecei a pensar se não seria uma coisa ruim car remoendo os problemas . Mas então me lembrei que o problema é exatamente não falar sobre o problema. É isso que faz com que as pessoas tenham um colapso no escritório ou em sala de aula. É o que faz lotar as unidades de tratamento para dependentes químicos e eleva as taxas de suicídio. No m das contas decidi que, para mim, saber esse tipo de coisa é essencial. Quero descobrir razões para ser positivo, modos de ser feliz, mas antes é preciso conhecer a realidade da situação. Por exemplo, preciso saber por que tenho medo de desacelerar , como se estivesse no ônibus de Velocidade máxima em vias de explodir se rodasse a menos de oitenta quilômetros por hora. Quero descobrir se a velocidade da minha vida tem relação com a velocidade do mundo. O motivo é simples, e parcialmente egoísta. Quando penso até onde minha mente é capaz de chegar, confesso que co em pânico: eu sei por onde ela já andou. E sei também que parte dos motivos pelos quais adoeci aos vinte e poucos anos tinha a ver com meu estilo de vida na época. Bebia muito, dormia mal, queria ser uma pessoa que não era, sofria as pressões da sociedade como um todo. Não quero que isso se repita nunca mais, então preciso estar atento não apenas ao ponto a que o estresse pode levar, como também a de onde ele vem. Quero saber se o fato de às vezes me sentir à beira de um colapso tem alguma relação com o fato de o mundo às vezes parecer à beira de um colapso. Mas colapso é uma palavra pouco especí ca, o que talvez explique por que os pro ssionais da área de saúde tenham passado a evitá-la. Sua etimologia, no entanto, é clara: 1. Falha mecânica. 2. Defeito em um relacionamento ou sistema.
  • 22. E não é tão difícil enxergar os sinais de advertência de um colapso não apenas dentro de nós, como no mundo também. Pode parecer dramático dizer que o planeta está se encaminhando para tal. Mas hoje sabemos, sem sombra de dúvida, que de todas as maneiras possíveis — tecnológica, ambiental, politicamente — o mundo está mudando. E rápido. Precisamos, mais do que nunca, saber como revisá-lo para que ele não nos faça entrar em colapso.
  • 23. A vida é bela (mas) A VIDA É bela. Até mesmo a vida moderna. Talvez principalmente a vida moderna. Estamos saturados por um bilhão de magias transitórias. Podemos pegar um aparelho e fazer contato com alguém a um hemisfério de distância. Antes de escolher onde passar um feriado, podemos ler resenhas de pessoas que, na semana anterior, estiveram no hotel a que pretendemos ir. Podemos ver imagens de satélite de qualquer rua em Tombuctu. Quando camos doentes, podemos ir ao médico e tomar antibióticos que curam algo que em outros tempos teria nos matado. Podemos ir ao supermercado e comprar pitaias do Vietnã e vinho do Chile. Nunca foi tão fácil manifestar nossa indignação quando um político diz ou faz algo do qual discordamos. Como nunca antes, podemos acessar mais informações, mais lmes, mais livros, mais tudo . Quando, na década de 1990, o slogan da Microsoft perguntava “aonde você quer ir hoje?”, a questão era retórica. Na era digital, a resposta é “para todos os lugares”. A ansiedade, citando o lósofo Søren Kierkegaard, talvez seja a “vertigem da liberdade”, mas toda essa liberdade de escolha é verdadeiramente um milagre. Todavia, enquanto as escolhas são in nitas, nossa vida tem uma duração exata. Não podemos viver outras além da nossa. Não podemos ver todos os lmes nem ler todos os livros nem conhecer todos os lugares deste amado planeta. Em vez de transformar isso numa restrição, precisamos editar a opção que está diante de nós. Precisamos descobrir o que é bom individualmente e deixar o resto de lado. Não precisamos de outro mundo. Todo o necessário está aqui quando deixamos de achar que precisamos de tudo.
  • 24. Tubarões invisíveis UMA DAS FRUSTRAÇÕES que a ansiedade causa é a di culdade de encontrar uma razão por trás dela. Pode não haver qualquer ameaça visível e você ainda assim se sentir profundamente aterrorizado. É um suspense daqueles, só que sem ação. Como Tubarão sem o tubarão. Muitas vezes, no entanto, os tubarões estão lá. Metafóricos, invisíveis. Mesmo que algumas vezes nossas preocupações pareçam sem fundamento, há um fundamento. “Você vai precisar de um barco maior”, diz Brody, em Tubarão . Talvez seja justamente esse o nosso problema: não os tubarões metafóricos, mas os barcos metafóricos. Talvez convivêssemos melhor com o mundo se soubéssemos onde estão os tubarões e do que precisamos para navegar ilesos pelas as águas da vida.
  • 25. Colisão ÀS VEZES SINTO que minha cabeça é como um navegador com janelas abertas demais. Uma área de trabalho lotada de atalhos. Dentro de mim gira uma rodinha colorida metafórica que me torna incapaz. Se eu ao menos encontrasse um jeito de fechar algumas dessas janelas, se ao menos conseguisse arrastar um pouco desses ícones para a lixeira, já estaria bem. Mas quais janelas escolher quando todas parecem essenciais? Como frear essa sobrecarga mental se o mundo em si está sobrecarregado? Temos liberdade para pensar em qualquer coisa . Assim, faz sentido que às vezes estejamos pensando em tudo. Mas às vezes é preciso ter coragem para fechar janelas se quisermos nos religar. Desconectar para reconectar.
  • 26. Coisas que estão mais rápidas do que antes CORRESPONDÊNCIA . Carros. Velocistas olímpicos. Notícias. Velocidade de processamento. Fotogra as. Cenas de lmes. Transações nanceiras. Viagens. Crescimento populacional mundial. Desmatamento da Amazônia. Navegação. Progresso tecnológico. Relacionamentos. Acontecimentos políticos. Pensamentos.
  • 27. Catástrofe 24 horas por dia PREOCUPAÇÃO É UMA palavra que soa como se pudéssemos car de olho nela. No entanto, pensar no futuro — os próximos dez minutos, os próximos dez anos — é o principal obstáculo com o qual preciso ser capaz de conviver para apreciar o presente. Sou um catastro sta. Eu não co simplesmente preocupado . Não. Minha preocupação tem ambições reais, e é ilimitada. Minha ansiedade — mesmo quando não é Ansiedade com A maiúsculo — é o su ciente para ir a qualquer cenário. E sempre achei mais fácil imaginar o pior possível e deter-me sobre ele. E sou assim desde que me conheço por gente. Muitas vezes fui ao médico convencido de uma morte iminente por causa de alguma doença que cismei que tinha. Quando era criança, se minha mãe demorava para ir me buscar na escola, bastava um minuto para eu me convencer de que ela provavelmente tinha morrido num acidente de carro horrível. Isso nunca aconteceu, mas a persistência dos não acontecimentos jamais eliminou a possibilidade do acontecimento. Cada momento em que minha mãe não chegava era um momento em que ela poderia nunca mais chegar. A capacidade de imaginar catástrofes em detalhes, ver o metal destroçado e os caquinhos azulados de vidro brilhando no asfalto ocupava minha mente muito mais do que a ideia racional de que tal catástrofe era improvável. Se Andrea não atende ao telefone não consigo evitar pensar no provável cenário de que tenha caído da escada ou entrado em combustão espontânea. Eu me preocupo por incomodar as pessoas sem necessidade. Por não admitir minha condição privilegiada. Com as pessoas que estão presas por crimes que não cometeram. Com os abusos dos direitos humanos. Eu me preocupo com preconceito, política, poluição e o mundo que meus lhos e a geração deles herdará. Eu me preocupo com todas as espécies em extinção por conta da ação humana. Com minha pegada de carbono. Com todo o sofrimento do mundo
  • 28. que não sou capaz de impedir. E também com o fato de que estar tão autocentrado só faz aumentar as preocupações autocentradas. Anos antes de fazer sexo de verdade pela primeira vez, eu achava fácil imaginar que tinha Aids, tão convincentes eram os alertas do governo britânico na TV na década de 1980. Se eu comia alguma coisa que tinha gosto um pouco estranho, imediatamente imaginava que seria hospitalizado com intoxicação alimentar, mesmo tendo tido intoxicação alimentar uma única vez na vida. Não consigo entrar em um aeroporto sem car descon ado — e sem deixar de agir como tal. Cada caroço, ferida ou verruga que aparece é um câncer em potencial. Cada lapso de memória, um sinal de Alzheimer precoce. E assim por diante... E tudo isso acontece quando estou relativamente bem. Porque quando estou mal é que o catastro smo chega ao auge. Na verdade, pensando nisso agora, vejo que se trata da principal característica de minha ansiedade. Imaginar in nitamente que as coisas podem car muito piores . Faz pouco tempo que descobri o quanto o mundo alimenta isso. Nosso próprio emocional — estejamos realmente doentes ou apenas estressados — é, até certo ponto, produto das condições sociais. E vice-versa. Gostaria de entender o que, neste planeta nervoso, desencadeia isso . Há uma diferença abissal entre sentir-se um pouco estressado e estar propriamente doente, mas, como acontece com a fome e a desnutrição, os dois estados relacionam-se em um ponto: o que é ruim para um (falta de comida) também é ruim para o outro. Assim, quando estou bem — mas estressado —, as coisas que me fazem sentir um pouquinho pior são quase sempre as mesmas que me fazem sentir muito pior quando estou doente. O que aprendemos sobre dor em períodos de doença aplica-se também aos tempos melhores. O sofrimento é um excelente professor.
  • 29. Algumas preocupações além das que foram mencionadas no último capítulo (porque sempre há mais preocupações) — A S NOTÍCIAS . — O metrô . Quando estou no metrô, imagino todas as coisas que podem dar errado. O trem pode car preso no túnel. Pode haver um incêndio. Pode haver um atentado terrorista. Posso ter um ataque cardíaco. Para dizer a verdade, uma vez passei por uma experiência assustadora em um trem subterrâneo. Ao sair do metrô de Paris, me deparei com uma nuvem de gás lacrimogêneo. Estava acontecendo uma confusão entre trabalhadores e a polícia, que tinha lançado o gás um tanto perto demais da saída do metrô. Na hora, no entanto, eu não sabia do que se tratava. Cobri o rosto com o cachecol para poder respirar e achei que estava no meio de um atentado terrorista. Não era o caso, mas simplesmente ter achado que sim já me causou uma espécie de trauma. Como disse Montaigne: “Aquele que tem medo de sofrer já está sofrendo daquilo que teme.” — Suicídio . Embora eu tivesse impulsos suicidas quando mais jovem e tenha estado muito perto de me jogar de um precipício, recentemente minha obsessão com o tema está mais para medo do que desejo. — Outras preocupações com a saúde . Por exemplo: falência cardíaca repentina e total decorrente de um ataque de pânico (circunstância absurdamente improvável); depressão tão incapacitante que eu caria petri cado para sempre como se tivesse encarado a Medusa; câncer; doenças coronarianas (tenho colesterol alto por motivos hereditários); morrer muito jovem; morrer muito velho; a mortalidade em geral. — Aparência . É um mito antiquado dizer que os homens não se preocupam com a aparência. Eu sempre estive atento a isso e costumava comprar religiosamente a revista Men’s Health para fazer os exercícios, pensando em
  • 30. car parecido com o modelo na capa. Já me preocupei com o cabelo — volume, possível queda. Costumava me preocupar com verrugas no rosto. Ficava olhando para o espelho por muito tempo, como se pudesse convencer meu re exo a mudar de ideia. As rugas ainda me preocupam, mas estou melhorando. É muito irônico que a cura para a preocupação com o envelhecimento talvez seja o próprio envelhecimento. — Culpa . Em vários momentos me senti culpado por não ser um lho, marido, cidadão ou ser humano perfeito. Eu me sinto culpado quando trabalho demais e negligencio a família — mas também culpado quando não trabalho o bastante. A culpa, no entanto, nem sempre tem causa. Às vezes é apenas um sentimento. — Insatisfação . Tanto a ausência quanto aquilo que pode preenchê-la me preocupam. Com frequência sinto um vazio metafórico que, em diversos momentos da vida, tentei preencher com todo tipo de coisa: álcool, festas, tuítes, medicamentos, drogas recreativas, exercício, comida, trabalho, popularidade, viagens, gastar dinheiro, ganhar mais dinheiro, ser publicado. Acho que está claro que nada disso deu muito certo. As coisas que eu jogava no buraco só faziam aumentá-lo. — Armas nucleares . Se os jornais falam sobre armas nucleares — o que hoje em dia acontece com frequência cada vez maior —, imediatamente visualizo os cogumelos de fumaça subindo das explosões lá fora. As palavras do ex- general americano Omar Nelson Bradley têm hoje um eco arrepiante: “Nosso mundo é um de gigantes nucleares e crianças cheias de ética. Sabemos mais sobre matar do que viver.” — Robôs . Brincadeira... mais ou menos. O futuro da robótica é uma fonte legítima de preocupação. Boicoto todos os serviços de atendimento automático, num ato insistente de rebeldia pró-humana. Por outro lado, pensar em robôs às vezes me faz valorizar o intrigante mistério de estar vivo.
  • 31. Cinco razões para estar feliz com o fato de ser humano e não um robô senciente: 1. WILLIAM SHAKESPEARE NÃO era um robô. Emily Dickinson também não. Nem Aristóteles. Nem Euclides. Nem Picasso. Nem Mary Shelley (embora escrevesse sobre eles). Todas as pessoas que você amou e com as quais se preocupou não eram robôs. Humanos são surpreendentes para outros humanos. E somos humanos. 2. Somos um mistério. Não sabemos por que estamos aqui. Temos de forjar nosso próprio signi cado. Um robô é projetado para executar tarefas ou um grupo de tarefas. Estamos aqui há milhares de gerações e ainda buscamos respostas. O mistério é sedutor. 3. Seus ancestrais não tão remotos escreveram poemas e agiram com coragem nas guerras, se apaixonaram, dançaram e admiraram melancolicamente o pôr do sol. Os ancestrais de um futuro robô senciente serão um caixa eletrônico e um aspirador de pó com defeito. 4. Essa lista na verdade tem apenas quatro itens. Só para confundir os robôs. Mesmo assim perguntei a alguns amigos da internet porque os seres humanos são melhores que as máquinas e ouvi todo tipo de coisa “a capacidade de rir de si mesmo”, “amor”, “pele macia e orgasmos”, “capacidade de se encantar”, “empatia”. Talvez algum dia um robô possa apresentar essas coisas, mas por enquanto todas são uma boa lembrança de que somos especiais por sermos humanos.
  • 32. Por que a ansiedade acaba e recomeça? TODO CATASTROFISMO É irracional, mas carrega em si uma carga emocional. E não são só as pessoas que sofrem de ansiedade que sabem disso. Os anunciantes também sabem. Vendedores de seguros sabem. Os políticos sabem. Editores de jornais sabem. Agitadores políticos sabem. Terroristas. O que vende, na verdade, não é o sexo: é o medo. E atualmente nem precisamos imaginar as piores catástrofes: podemos vê- las. Literalmente. O celular com câmera transformou todos nós em jornalistas. Quando alguma coisa horrível acontece — um ataque terrorista, um incêndio orestal, um tsunami — sempre há alguém para lmar. Temos mais alimento para nossos pesadelos. A informação não chega mais até nós como antigamente, por meio dos jornais ou noticiários de TV cuidadosamente elaborados. Ela vem dos sites, das redes sociais e por e-mail. Mas até os noticiários mudaram. Os plantões de notícias são contínuos. E quanto mais aterrorizantes as notícias, maior a audiência. Nem todo canal de notícias quer exibir só notícias ruins (embora isso pareça verdade no caso dos sensacionalistas); no entanto, mesmo os melhores estão em busca de audiência e ao longo dos anos a mídia descobriu o que funciona e o que não funciona, passando a competir cada vez mais pela atenção do público. É por essa razão que assistir ao noticiário pode ser visto como uma metáfora incessante do transtorno de ansiedade generalizada. As telas divididas, os âncoras de noticiários, os banners de rolagem com informações incessantes são uma representação visual de como a ansiedade atua. As falas con ituosas, o barulho, o drama sensacionalista. Assistir ao noticiário pode nos deixar
  • 33. estressados mesmo em um dia com poucos acontecimentos. Na verdade, já não existem dias com poucos acontecimentos. E quando alguma coisa realmente terrível acontece, o uxo interminável de relatos de testemunhas oculares, as especulações e as lmagens gravadas com o celular não ajudam em nada. É tudo sensacionalismo e não informativo. Se sentir que esse jorro de informações está abalando sua tranquilidade, DESLIGUE TUDO. Não deixe o terror tomar conta da sua mente. Não há nada de bom em car paralisado e impotente diante de uma enxurrada interminável de notícias. Os noticiários inconscientemente emulam o modus operandi do medo — concentram-se nas piores coisas, transformam tudo em catástrofe e dão ouvidos ao uxo repetitivo e interminável de informações a respeito de um tema preocupante. Assim, pode ser bem difícil dizer onde termina seu transtorno de ansiedade e onde começam as notícias reais. Precisamos nos lembrar que: Não há vergonha nenhuma em não acompanhar as notícias . Não há vergonha nenhuma em não acessar o Twitter. Não há vergonha nenhuma em car of ine .
  • 34. 2 O QUADRO GERAL “Poucas vezes percebemos que nossos pensamentos e emoções mais íntimos não são, na verdade, nossos. Isso porque pensamos em termos de linguagem e imagens que não inventamos, mas que nos foram dados pela sociedade.” — Alan Watts, The Culture of Counter Culture: Edited Transcripts
  • 35. A vida passa muito rápido É CLARO QUE, do ponto de vista cósmico, a totalidade da história humana é breve. Não estamos aqui há muito tempo. O planeta existe há cerca de 4,6 bilhões de anos. O Homo sapiens — nossa maravilhosa e problemática espécie — só existe há duzentos mil anos. E há apenas cinquenta mil ganhou velocidade. Quando começamos a usar roupas feitas de peles de animais. Quando começamos a sepultar sistematicamente os mortos. Quando nossos métodos de caça se aperfeiçoaram. A pintura rupestre mais antiga de que se tem registro provavelmente é indonésia e tem cerca de quarenta mil anos. Em termos de tempo cósmico é o equivalente a um piscar de olhos. A arte, no entanto, é mais antiga que a agricultura, que começou basicamente ontem. Cultivamos a terra há apenas dez mil anos. E começamos a escrever, até onde sabemos, há apenas cinco mil. A civilização, que começou na Mesopotâmia (mais ou menos onde cam a Síria e o Iraque de hoje), tem menos de quatro mil anos. E uma vez que teve início, as coisas começaram a acelerar. Chegava a hora de apertar o cinto de segurança coletivo. Dinheiro. O primeiro alfabeto. O primeiro sistema de notação musical. Pirâmides. Budismo, hinduísmo, cristianismo, islamismo, siquismo. Filoso a socrática. A ideia de democracia. Vidro. Espadas. Navios de guerra. Canais. Estradas. Pontes. Escolas. Papel higiênico. Relógios. Bússolas. Bombas. Óculos. Minas. Armas. Armas melhores. Jornais. Telescópios. O primeiro piano. Máquinas de costura. Mor na. Refrigeradores. Cabos telegrá cos transatlânticos. Baterias recarregáveis. Telefones. Carros. Aviões. Canetas esferográ cas. Jazz. Programas de perguntas e respostas. Coca-Cola. Poliéster. Armas termonucleares. Foguetes para a Lua. Computadores pessoais. Videogames. O maldito e-mail. Internet. Nanotecnologia. Uau.
  • 36. Essa mudança — mesmo dentro dos quatro últimos milênios — não é uma linha reta ascendente, mas uma espécie de curva acentuada que daria medo até a um skatista pro ssional. A mudança pode ser uma constante, mas seu ritmo não é.
  • 37. Como continuar sendo humano num mundo de mudanças? AO ANALISAR OS gatilhos que desencadeiam os transtornos mentais, os terapeutas muitas vezes identi cam uma mudança de vida profunda como principal fator. Mudança quase sempre se relaciona a medo. Trocar de casa, perder um emprego, casar, sofrer aumento ou redução de renda, morte na família, problemas de saúde, chegar aos quarenta, seja o que for. Às vezes, não faz muita diferença que a mudança seja aparentemente “boa” — ter um bebê, ser promovido —; sua intensidade pode ser, por si só, um choque para o sistema. Mas e quando a mudança não é apenas pessoal? Quando trata-se de uma que afete a todos? O que acontece quando toda uma sociedade — ou toda a população humana — passa por um período de mudanças profundas? E aí? Essas perguntas são cabíveis, é claro, dentro de uma suposição: a de que o mundo está mudando. Mas como isso se dá? Principalmente, e de modo mais mensurável, através da tecnologia. Sim, existem mudanças sociais, políticas, econômicas e ambientais, mas a tecnológica se relaciona a todas elas, está na base das transformações de um modo geral e por isso vamos começar com ela. É claro que, como espécie, os seres humanos sempre tiveram seu desenvolvimento calcado na tecnologia. Ela está na base de tudo. Tecnologia, em seu sentido mais amplo, representa um conjunto de ferramentas ou métodos. Pode ser um idioma. Ou os gravetos usados para fazer fogo. Segundo muitos antropólogos, o progresso tecnológico é o fator de condução mais importante da humanidade.
  • 38. Descobertas como fazer fogo, a roda, o arado ou a prensa de tipos móveis não foram importantes apenas em virtude de sua aplicabilidade imediata, mas, sobretudo, em termos de impacto global sobre o desenvolvimento da sociedade. No século XIX, o antropólogo americano Lewis H. Morgan anunciou que os inventos tecnológicos podem levar a novas eras para a humanidade. Ele via três fases da evolução social: selvageria, barbárie e civilização, cada uma levando à seguinte por meio de saltos tecnológicos. Creio que hoje em dia isso soe um tanto duvidoso, já que implica um progresso moral na transição de “selvagem” a “civilizado”. Outros especialistas têm abordagens diferentes. Na década de 1960, Nikolai Kardashev, um astrofísico russo dedicado à caça de alienígenas, achou que a melhor maneira de medir o progresso seria em termos de informação . No começo, havia pouco além da informação contida em nossos genes. Depois disso vieram coisas com a língua, a escrita, os livros e, nalmente, a tecnologia da informação . Hoje em dia, sociólogos e antropólogos em geral concordam que estamos mergulhando fundo numa sociedade pós-industrial e que as mudanças estão ocorrendo mais rápido do que nunca. Mas mais rápido quanto ? Segundo a lei de Moore — assim chamada em alusão a um de seus criadores, um dos fundadores da Intel, Gordon Moore — a capacidade de processamento dos computadores dobra em períodos de poucos anos. Essa duplicação exponencial é a razão pela qual o pequeno celular que você traz no bolso tem muito mais capacidade de armazenamento do que tinham os computadores do tamanho de uma sala da década de 1960. Mas esse crescimento acelerado não se limita aos chips de computador. Ele ocorre em todo tipo de tecnologia, desde os bits de dados armazenados à largura de banda da internet. Tudo isso indica que a tecnologia não apenas progride, mas que seu progresso se torna mais rápido . Progresso gerando progresso. Atualmente, os computadores ajudam a construir novos computadores com intervenção humana cada vez menor. O que signi ca que muita gente começou a se preocupar com a “singularidade”, ou a esperar por ela. Eis aqui a matéria dos sonhos febris e dos pesadelos. A singularidade é o ponto em que a inteligência arti cial torna-se superior à inteligência cerebral humana. E então
  • 39. — a depender de nosso equilíbrio interno entre otimismo e pessimismo — vamos nos fundir com essa tecnologia e avançar, tornando-nos ciborgues felizes e imortais; ou nossos robôs sencientes, nossos notebooks e torradeiras se apossarão de nós, transformando-nos em bichinhos de estimação ou em escravos ou em uma refeição completa. Quem sabe? Mas estamos indo numa dessas direções. Segundo Ray Kurzweil, cientista da computação e futurista mundialmente reconhecido, a singularidade está próxima. Para destacar esse ponto, ele escreveu um best-seller chamado, bem, The Singularity is Near [A singularidade está próxima]. Ao alvorecer deste século, ele disse “não vamos vivenciar cem anos de progresso durante o século XXI — vai ser mais como vinte mil anos de progresso (no ritmo atual)”. E Kurzweil não é um excêntrico maluco, embriagado de lmes de cção cientí ca. Suas previsões costumam se tornar realidade. Em 1990, por exemplo, ele previu que em 1998 um computador derrotaria um campeão de xadrez. As pessoas riram. Mas em 1997, o maior enxadrista do mundo, Garry Kasparov, perdeu o jogo contra o computador Deep Blue da IBM. E pense só no que já aconteceu nas duas primeiras décadas deste século. Pense em como a normalidade mudou. A internet se apossou de nossa vida. Estamos cada vez mais amarrados a celulares cada vez mais inteligentes. As máquinas são capazes de sequenciar genomas humanos aos milhares. O autoatendimento é a nova regra. O carro autônomo, já longe de ser uma profecia, entrou para o mundo real a ponto de motoristas de táxi temerem perder o emprego. Pense só. No ano 2000, ninguém sabia o que era uma sel e . O Google já existia, mas faltava muito para “googlar” se tornar um verbo. Não existia YouTube, blogues, Wikipedia, WhatsApp, Snapchat, Skype, Spotify, Siri, Facebook, bitcoins, gifs, Net ix, iPads, League of Legends, “ICYMI”, emoji chorando de rir, quase ninguém tinha GPS, as pessoas viam fotos em álbuns e nuvem era só uma coisa que trazia chuva. No momento mesmo em que escrevo este parágrafo, percebo que ele será superado rapidamente. Em poucos anos, minha lista vai apresentar uma porção de omissões constrangedoras — diversas marcas na área tecnológica e diversas invenções que ainda não foram inventadas. Pense em como a tecnologia torna-se vergonhosamente datada em
  • 40. poucos anos. Pense no fax, nos primeiros telefones celulares, no CD, na conexão discada, na Betamax e no VHS, nos primeiros leitores digitais, no GeoCities e no mecanismo de busca AltaVista. Portanto, seja o que for que você pense a respeito da perspectiva da singularidade, não resta dúvida que: a) nossa vida está se tornando cada vez mais tecnológica; e b) nossa tecnologia está mudando cada vez mais rápido. E como a tecnologia esteve sempre na raiz mais profunda das transformações sociais, esse ritmo vertiginoso da mudança tecnológica desencadeia outras mudanças. Estamos nos encaminhando para muitas singularidades alternativas. Muitos outros pontos sem volta. Talvez já tenhamos ultrapassado alguns deles sem sequer notar.
  • 41. Mudanças não totalmente boas pelas quais o mundo está passando O MUNDO PODE ter progredido rápido em alguns aspectos, mas a velocidade das mudanças não nos deixou mais calmos. Algumas dessas mudanças, principalmente as impulsionadas pela tecnologia, foram mais rápidas do que outras. Por exemplo: — Política . A polarização entre esquerda e direita, alimentada em parte pelo eco e as zonas de combate nas redes sociais, onde o consenso e a verdade parecem ser conceitos cada vez mais ultrapassados. Um mundo em que, nas palavras da socióloga americana Sherry Turkle, “esperamos mais da tecnologia do que uns dos outros”. Em que precisamos compartilhar quem somos para sermos quem somos. Houve aspectos positivos nessa mudança. Várias causas muito relevantes, entre elas a preocupação com a saúde mental, tiveram sua bandeira erguida graças à natureza viral da internet. Mas é claro que nem tudo foi tão bom. A propagação de fake news, os tuítes politicamente maliciosos e a invasão em massa da privacidade on-line já moldou e direcionou nossa política para caminhos estranhos e irreversíveis. — Trabalho . Robôs e computadores estão tirando o emprego das pessoas. Os empregadores estão se apropriando dos ns de semana dos funcionários. O emprego está se tornando um processo desumanizador, como se os seres humanos existissem para servir ao trabalho e não o trabalho para servir aos seres humanos. — Redes sociais . A mídia social rapidamente sequestrou a nossa vida. Quem usa esses canais tem no Facebook, no Twitter e no Instagram uma revista de si mesmo. Mas até que ponto isso é saudável? Estamos vendo violações frequentes da ética, como a apropriação ilícita de milhões de per s psicológicos pela Cambridge Analytica a partir do Facebook e seu uso para in uenciar
  • 42. resultados eleitorais. Há também efeitos psicológicos gravemente preocupantes. Estar sempre apresentando quem somos embrulhados para presente, como batatas fritas ngindo ser crocantes. Estar sempre vendo as outras pessoas em sua melhor forma, fazendo coisas divertidas que nós não fazemos. — Linguagem . O inglês está mudando mais rapidamente do que em qualquer outro momento da história, segundo uma pesquisa feita pela University College London. O aumento do uso de abreviaturas, iniciais, acrônimos, emojis e gifs como auxiliares da comunicação mostra o quanto o progresso tecnológico in uencia o idioma (lembre-se também que há muitos séculos a imprensa escrita levou a uma padronização da ortogra a e da gramática). Assim, não se trata apenas do que estamos dizendo, mas de como estamos dizendo. Milhões de pessoas conversam mais por mensagem do que frente a frente, uma mudança sem precedentes que ocorreu ao longo de uma única geração. Não se trata de uma coisa ruim em si, mas é sem dúvida signi cativa. – Ambiente . Algumas mudanças, no entanto, são claramente nocivas. Sem sombra de dúvidas, horrivelmente nocivas. As mudanças ambientais em nosso planeta são tão graves que alguns cientistas defendem a ideia de que nós — ou a Terra — entramos numa fase essencialmente nova. Em 2016, no Congresso Geológico Internacional realizado na Cidade do Cabo, África do Sul, cientistas renomados concluíram que estamos saindo do período holoceno — marcado por doze mil anos de estabilidade climática desde a última era do gelo — e entrando no antropoceno, ou “nova era do homem”. O aumento em massa das emissões de dióxido de carbono, a elevação do nível do mar e a poluição dos oceanos, o aumento do uso de plástico (a produção mostrou-se vinte vezes maior desde a década de 1960, segundo o Fórum Econômico Mundial), a rápida extinção de espécies, o desmatamento, a industrialização da agricultura e da pesca e o desenvolvimento urbano demonstram, segundo esse ponto de vista, que chegamos a um novo intervalo da idade da Terra. Em suma, a vida moderna está matando lentamente o planeta. Não surpreende que sociedades tóxicas assim possam nos prejudicar também.
  • 43. Futuro próximo QUANDO O PROGRESSO é rápido, o presente pode parecer um futuro contínuo. Quando assistimos a um vídeo viral com um robô do tamanho de um homem balançando para a frente e para trás, é como se a realidade estivesse transformada em cção cientí ca. E somos estimulados a desejar esse estado de coisas. “Abraçar” o futuro e “abandonar” o passado. A essência do consumismo consiste em nos fazer desejar a próxima coisa em vez da que já temos . É a receita quase perfeita da infelicidade. Não somos estimulados a viver no presente, mas sim no futuro. Somos enviados ao jardim de infância ou à pré -escola, o que por sua própria natureza nos lembra o que nos espera. Escola escola . E uma vez na escola, a partir de uma idade cada vez mais precoce, somos estimulados a trabalhar arduamente para passar nas avaliações. Finalmente, essas avaliações se transformam em exames de fato, os quais, como sabemos, determinarão coisas importantes no futuro, como se vamos continuar estudando ou se devemos arrumar um emprego lá pelos dezesseis, dezoito anos. Mesmo quando chegamos à universidade, as coisas não param por aí. Mais avaliações, mais exames, mais decisões iminentes. Mais onde você vai estar em alguns anos? Mais qual carreira você gostaria de seguir? Mais pense bem sobre o futuro . Mais será que isso vai valer a pena a longo prazo? Durante toda a nossa educação nos ensinam uma espécie de consciência reversa. Algo que eu poderia chamar de Estudos do Futuro, com os quais — sob o disfarce da matemática, da literatura, da história, da informática etc. — aprendemos a pensar como se estivéssemos em um tempo diferente daquele em que realmente estamos. Tempo de passar por avaliações. Tempo de trabalhar. Tempo de “quando eu crescer”. Ver o aprendizado não como algo bom por si só, mas bom também em virtude do que ele pode nos trazer, ajuda a reduzir o assombro da
  • 44. humanidade. Somos animais maravilhosos que pensam, sentem, fazem arte, têm sede de conhecimento, que entendem a si mesmos e o mundo por meio do aprendizado, que é um m em si mesmo e vai muito além de oferecer meios de preencher formulários de solicitação de emprego. Aprender é um meio de gostar de viver no presente. Começo agora a entender o quanto muitas de minhas aspirações estavam erradas. Como eu estava fechado para o presente. Como muitas vezes desejei mais do que aquilo que eu já possuía. E por isso sei que preciso encontrar um jeito de car quieto, no presente, e, como dizia minha avó, ser feliz com o que tenho .
  • 45. Balizas VOCÊ VAI SER feliz quando tirar boas notas. Você vai ser feliz quando entrar na universidade. Você vai ser feliz quando entrar para a universidade certa . Você vai ser feliz quando conseguir um emprego. Você vai ser feliz quando tiver um aumento de salário. Você vai ser feliz quando for promovido. Você vai ser feliz quando puder trabalhar por conta própria. Você vai ser feliz quando car rico. Você vai ser feliz quando tiver um bosque de oliveiras da Sardenha. Você vai ser feliz quando alguém olhar para você daquele jeito. Você vai ser feliz quando estiver namorando. Você vai ser feliz quando se casar. Você vai ser feliz quando tiver lhos. Você vai ser feliz quando seus lhos forem exatamente as crianças que você quer que sejam. Você vai ser feliz quando sair de casa. Você vai ser feliz quando comprar uma casa. Você vai ser feliz quando quitar a hipoteca. Você vai ser feliz quando tiver um jardim maior. No campo. Com vizinhos legais que o convidem para churrascos nos domingos ensolarados de verão, enquanto seus lhos brincam juntos na brisa cálida. Você vai ser feliz quando cantar. Você vai ser feliz quando cantar diante de uma multidão. Você vai ser feliz quando seu disco de estreia ganhar um Grammy e car em primeiro lugar nas listas de 32 países, inclusive a Letônia. Você vai ser feliz quando escrever. Você vai ser feliz quando for publicado. Você vai ser feliz quando for publicado de novo. Você vai ser feliz quando tiver escrito um best-seller . Você vai ser feliz quando seu best-seller estiver em primeiro lugar na lista dos mais vendidos. Você vai ser feliz quando seu livro virar lme. Você vai ser feliz quando ele for um lme de sucesso. Você vai ser feliz quando for J. K. Rowling. Você vai ser feliz quando gostarem de você. Você vai ser feliz quando mais pessoas gostarem de você. Você vai ser feliz quando todo mundo gostar de você. Você vai ser feliz quando sonharem com você.
  • 46. Você vai ser feliz por parecer bem. Você vai ser feliz quando zer as pessoas virarem a cabeça. Você vai ser feliz com uma pele mais macia. Você vai ser feliz com uma barriga sequinha. Você vai ser feliz com uma barriga de tanquinho com seis gomos. Você vai ser feliz com uma barriga de tanquinho com oito gomos. Você vai ser feliz quando cada foto sua tiver dez mil curtidas no Instagram. Você vai ser feliz quando transcender as a ições terrenas. Você vai ser feliz quando for o único no universo. Você vai ser feliz quando for o universo. Você vai ser feliz quando for um deus. Você vai ser feliz quando for o deus que manda em todos os deuses. Você vai ser feliz quando for Zeus. Nas nuvens do Olimpo, comandando o céu. Talvez. Talvez. Talvez.
  • 47. Talvez TALVEZ A FELICIDADE não tenha a ver conosco enquanto pessoas. Talvez não seja uma coisa que venha até nós. Talvez a felicidade seja ir, não estar. Talvez a felicidade não seja o que merecemos por fazer jus a ela . Talvez a felicidade não seja o que pudermos ter . Talvez a felicidade seja o que já temos . Talvez a felicidade tenha a ver com o que pudermos dar . Talvez a felicidade não seja uma borboleta que se pode caçar com uma rede. Talvez não exista um jeito certo para ser feliz. Talvez existam apenas talvezes. Se, como disse Emily Dickinson, “o para sempre é composto de agoras”, talvez os agoras sejam feitos de talvezes. Talvez a grande questão da vida seja desistir das certezas e aceitar a bela incerteza da vida.
  • 48. 3 UM SENTIMENTO NÃO É O QUE VOCÊ APARENTA “É esquisito demais isso de jovens olhando para imagens distorcidas das coisas que eles deveriam ser.” — Daisy Ridley, explicando porque saiu do Instagram
  • 49. Beldades infelizes EM NENHUM OUTRO momento da história da humanidade existiram tantos produtos e serviços prontos para nos ajudar a atingir o objetivo de parecer mais jovens e atraentes. Cremes para o dia, cremes para a noite, cremes para o pescoço, cremes para as mãos, esfoliantes, bronzeadores, máscaras, séruns anti-idade, cremes para a celulite, máscaras faciais, corretores de olheiras, cremes de barbear, aparelhos para aparar a barba, bases, batons, ceras depilatórias, óleos, corretores para poros dilatados, delineadores, botox, manicure, pedicure, microdermoabrasão (uma estranha mistura de esfoliação moderna e tortura medieval, ao que parece), banhos de lama, banhos de algas e cirurgia plástica. Existem aparadores de pelos faciais, aparadores de pelos do nariz e aparadores de pelos pubianos. Você pode até clarear o ânus se lhe der na telha. (O nicho do “clareamento íntimo” está em alta.) Estamos na era dos blogues de beleza, dos vlogues de maquiagem e dos instrutores de musculação on-line. Nunca antes houve tal quantidade de conselhos para ter boa aparência. Somos bombardeados com livros de dietas, frequentadores de academia, exercícios para o “abdômen dos sonhos” e exercícios de “heróis de lmes de ação” e “ioga facial” disponíveis no YouTube. Existem mais e mais aplicativos e ltros para aperfeiçoar o que os produtos de beleza não conseguem. Se quisermos, podemos nos transformar em nossas aspirações menos realistas e criar um abismo cada vez maior entre o que vemos no espelho e uma aparência melhorada digitalmente. As mulheres — e cada vez mais os homens — estão fazendo isso mais do que nunca para parecerem mais bonitos. No entanto, apesar de todos os métodos e truques, muita gente continua insatisfeita. A maior pesquisa mundial sobre o tema, realizada pelo grupo GfK e publicada pela revista Time em 2015, apontou que milhões de pessoas não estavam contentes com a aparência. No Japão, por exemplo, 38% da população
  • 50. estava gravemente insatisfeita com o que via no espelho. O interessante é que a pesquisa deixou claro que o que as pessoas sentem a respeito da própria apresentação surpreendentemente tem mais a ver com o país em que vivem do que, por exemplo, com gênero. Na verdade, no mundo inteiro, a ansiedade sobre a aparência está chegando a níveis altos tanto entre os homens quanto as mulheres. Se você for mexicano ou turco, provavelmente vai estar de bem com o que vê no espelho, já que mais de 70% dessas populações diz estar “completamente satisfeita” ou “razoavelmente satisfeita” com a aparência. Mas no Japão, na Rússia e na Coreia do Sul descobriu-se que as pessoas estavam muito mais descontentes. Por que há tanta gente — com a exceção de mexicanos e turcos — descontente com isso? Algumas das prováveis razões: 1. Como temos hoje condições de nos apresentar melhor, também elevamos os padrões a respeito de como gostaríamos de ser. 2. Mais do que nunca, somos bombardeados por imagens de pessoas com belezas convencionais. Não só pela TV, pelo cinema e pelos outdoors, mas também nas redes sociais, onde todo mundo se apresenta o melhor possível, muitas vezes usando ltros para se mostrar ao mundo. 3. Como as pessoas estão se tornando cada vez mais neuróticas de maneira geral, aumenta a preocupação com a aparência. Segundo autores de outra pesquisa (do Centro Nacional Americano de Informação Biotecnológica), de 2017, as pessoas infelizes com a aparência apresentavam “maior grau de neurose, relacionamentos mais tensos e receosos e passam mais tempo vendo televisão”. 4. Nossa aparência se apresenta como um dos problemas que podem ser resolvidos com dinheiro (cosméticos, revistas tness, alimentação correta, frequentar a academia, seja lá o que for), mas isso não é verdade. Além disso, ter uma aparência convencionalmente atraente não faz desaparecer a preocupação com ela. Há muito mais pessoas de boa aparência no Japão e na Rússia do que no México e na Turquia. E, é claro, muita gente de ótima aparência — modelos, por exemplo — se preocupam muito mais com isso do que as pessoas que não têm a passarela como pro ssão. 5. Ainda não somos imortais. Todos esses produtos cujo objetivo é nos fazer parecer mais jovens, radiantes e mais distantes da morte não solucionam
  • 51. o problema na base de tudo: eles não podem nos rejuvenescer verdadeiramente. A Clarins e a Clinique produziram uma tonelada de cremes anti-idade, e mesmo assim as pessoas vão envelhecer. Tudo que vão conseguir — graças a campanhas de publicidade milionárias determinadas a nos fazer ter vergonha de rugas e linhas de expressão — é car um pouco mais preocupadas com o tema. A busca de uma aparência jovial acentua o medo de envelhecer. Então, talvez, se aceitássemos o envelhecimento, as nossas rugas e as dos outros, talvez os publicitários tivessem menos medo de lidar com elas e ampliá-las.
  • 52. A insegurança não tem a ver com o rosto NA ESCOLA, EU costumava ser o mais alto da turma e era magro como um cabo de vassoura. Comia muito e tomava cerveja para tentar ganhar massa. Hoje percebo que talvez eu tivesse um pouco de dismor a corporal. Estava infeliz por ser eu mesmo e comigo mesmo. Fazia séries de cinquenta abdominais, lutando contra a dor, tentando car parecido com Jean-Claude Van Damme. Insatisfeito era pouco para o que eu sentia em relação ao meu corpo: eu o odiava . Eu sentia muita vergonha, tanta quanto se acredita que só as mulheres são capazes de sentir. Hoje eu gostaria de voltar no tempo e dizer a mim mesmo Pare com isso! Nada disso importa. Relaxa. Na adolescência eu cheguei a detestar tanto uma verruga que apareceu em meu rosto que peguei uma escova de dentes e tentei esfregar até removê-la. O problema nunca foi a verruga. O problema é que eu estava vendo meu próprio rosto através do prisma de insegurança. Hoje em dia eu gosto dessa verruga. Não tenho ideia do motivo pelo qual ela me causava tanta frustração, por que eu cava olhando para ela no espelho desejando que não existisse. Como disse Hamlet a Rosencrantz, “não há nada de bom ou mau sem o pensamento que o faz assim”. Ele falava da Dinamarca, mas isso também se aplica a nossa aparência. As pessoas podem ser incentivadas a se sentir fora dos padrões, mas não são obrigadas a isso desde que entendam que o sentimento é separado da coisa com a qual se preocupam. Assim, enquanto existe uma enorme conscientização sobre os riscos causados pela obesidade, outros tipos de problemas em relação à aparência física parecem despertar menos preocupação. Se estamos nos sentindo mal com o jeito que somos, às vezes o que temos de fazer é tratar esse sentimento, não a aparência física. A professora Pamela Keel, da Universidade Estadual da Flórida, que dedicou sua carreira ao estudo dos transtornos alimentares e de imagem entre homens e mulheres, concluiu que a mudança de aparência nunca vai solucionar o descontentamento com ela. “O que vai fazer você de fato mais
  • 53. feliz e saudável?”, ela se perguntava, no início de 2018, ao apresentar os resultados de sua última pesquisa. “Perder cinco quilos ou perder atitudes prejudiciais em relação à sua imagem corporal?” Quando somos menos pressionados nesse sentido, os benefícios são mentais e físicos. “Quando se sentem bem com o próprio corpo, as pessoas se tornam mais propensas a cuidar dele em vez de tratá-lo como um inimigo ou, pior ainda, como um objeto. Existe uma forte razão para repensar o tipo de resoluções de ano-novo que tomamos.” Isso pode explicar por que a obesidade está numa perigosa curva ascendente. Se estivéssemos felizes com nosso corpo, seríamos mais amáveis com ele. Da mesma forma que a ansiedade relacionada ao dinheiro pode, paradoxalmente, nos levar a gastar de modo compulsivo, a preocupação com o corpo não garante que vamos ter um corpo melhor. Esse excesso de cobrança em relação à aparência — coisas como alimentação “natural”, o devido espaço entre as coxas e o corpo “pronto para o verão” — tem sido tradicionalmente focado no gênero, com propagandas em geral voltadas para o público feminino. E mesmo hoje, com um número cada vez maior de homens sentindo-se pressionados a ter uma aparência que não é a natural, a ter corpos de nidos, sentir vergonhas dos “defeitos” físicos, sair bem nas sel es, preocupar-se com os cabelos brancos ou com a queda de cabelo — a pressão sobre as mulheres nunca foi tão grande. Em vez de tentar reduzir essa ansiedade nas mulheres, estamos elevando-a nos homens. De certo modo, seguindo uma lógica distorcida de igualdade, parece que estamos tentando deixar todo mundo igualmente ansioso em vez de igualmente livre. Minutos atrás, olhando o Twitter, vi que uma pessoa retuitou um artigo do New York Post dizendo: “Bonecos sexuais com pênis biônico estarão disponíveis antes de 2019.” O artigo traz uma imagem desses bonecos — sem pelos e com o corpo de uma cor impossível, equipados com um cabelo que nunca vai cair e pênis que nunca deixarão de car eretos. Inevitavelmente, robôs sexuais femininos estão sendo preparados com cuidados ainda maiores. Querer parecer uma modelo de capa de revista tratada com Photoshop é uma coisa, mas o próximo passo será desejar ser tão perfeita e inexpressiva quanto um androide ou um robô? Devíamos tentar alcançar o arco-íris, também.
  • 54. “Na natureza”, escreveu Alice Walker, “nada é perfeito e tudo é perfeito. As árvores podem ser retorcidas, curvas de uma maneira estranha, e ainda assim belas.” Nosso corpo nunca será tão rme, simétrico e jovem quanto o dos robôs sexuais biônicos; precisamos aprender a ser felizes apesar da versão social não realista do corpo perfeito, e um pouco mais felizes por termos o corpo que temos, como ele é. O descontentamento não melhora em nada a nossa aparência, só nos faz sentir pior. Somos in nitamente melhores que o mais perfeito robô sexual biônico. Somos humanos. Não devemos ter vergonha de parecer humanos.
  • 55. Uma mensagem da praia OLÁ . Eu sou a praia. Sou criada pelas ondas e correntes. Através da erosão de rochas. Sempre perto do mar. Estou aqui há milhões de anos. Já estava aqui no alvorecer da própria vida. E tenho de lhe dizer uma coisa: Eu não me importo com seu corpo. Sou uma praia. Literalmente, não ligo a mínima. Sou completamente indiferente ao seu índice de massa corporal. Não me impressionam seus músculos abdominais visíveis a olho nu. Sou indiferente. Você pertence a uma de duzentas mil gerações de seres humanos. Vi todas elas. Verei também todas as que virão depois de você. Não devem ser tantas. Sinto muito. Ouço os murmúrios vindos do mar. (O mar odeia vocês. Envenenadores , é assim que se refere quando fala de vocês. Um pouco melodramático, eu sei, mas é assim que ele é. Dramático à beça.) E preciso dizer mais uma coisa: As outras pessoas na praia também não se importam com seu corpo. Não mesmo. Elas estão olhando o mar, ou obcecadas com a própria aparência. E se elas por acaso estiverem pensando em você, que diferença faz?
  • 56. Por que vocês humanos se importam tanto com a opinião de estranhos? Por que não fazem como eu? Deixem isso passar por você. Permitam-se ser o que são. Apenas sejam.
  • 57. Como deixar de se preocupar com o envelhecimento 1. VÁRIAS PESQUISAS APONTAM que os mais velhos não estão tão preocupados com o envelhecimento. A mais recente a qual tive acesso foi feita pela empresa americana NORC em 2016. Foram entrevistadas mais de 3 mil pessoas maduras e concluiu-se que elas são mais otimistas quanto ao envelhecimento do que os adultos mais jovens: 46% das pessoas de trinta e poucos anos disseram-se otimistas em relação ao envelhecimento, contra 66% dos maiores de setenta. Ao que parece, a preocupação com a idade é um indício de juventude. E a principal razão para ser otimista quanto ao envelhecimento é que os próprios velhos já o são. A adaptabilidade parece aumentar. 2. Ele vem. Não há muito o que se possa fazer quanto a isso. Podemos escolher alimentos saudáveis, fazer exercícios e ter uma vida moderada, mas ainda assim envelheceremos. Nossos oitenta anos se completarão na mesma data. É claro que algumas medidas tornam mais provável chegarmos aos oitenta, mas não podemos parar a roda do tempo. E essa certeza é na verdade bastante reconfortante. Quando não há nada que se pode fazer a respeito de alguma coisa, a preocupação começa a diminuir. “Todo mundo morre”, escreveu Nora Ephron. “Não há nada que se possa fazer quanto a isso. Comendo ou não seis amêndoas por dia.” 3. Os problemas que você associa ao envelhecimento podem não ser reais. Você não é Nostradamus. Você não sabe como vai ser quando for velho. Não sabe, por exemplo, se sua mente vai declinar ou estar ainda mais viva, como a de Matisse, que executou algumas de suas melhores obras depois dos oitenta. 4. O futuro não é real, é abstrato. O agora é tudo o que temos. Um agora após o outro. O agora é onde devemos viver. Há bilhões de versões
  • 58. diferentes de você mais velho, mas só uma versão de você no presente. Concentre-se nela. 5. Você vai se arrepender do medo. No livro Antes de partir (Os 5 principais arrependimentos que as pessoas têm antes de morrer ), Bronnie Ware — uma enfermeira que trabalhava com pacientes terminais — narra sua experiência de conversar com pessoas perto do m da vida. De longe, o maior arrependimento de todas era o medo. Muitos dos pacientes de Bronnie cavam profundamente angustiados por terem passado a vida preocupados. Por terem vivido consumidos pelo medo, especialmente do que os outros poderiam pensar. Uma preocupação que os impediu de serem verdadeiros consigo mesmos. 6. Em vez de resistir, aceitar. Se livrar da ansiedade em relação ao envelhecimento pode ser um modo de se livrar da ansiedade como um todo. Aceitação em vez de negação . Não tente lutar contra isso, absorva, sinta. Troque o botox por uma cirurgia mental sem bisturi. Reformule sua ideia de beleza. Rebele-se contra a publicidade. Pre ra ser o velho sábio. Aceite a complexa elegância da vela que derrete. Seja um mapa com dez mil estradas. Seja o alaranjado do pôr do sol superando o cor-de- rosa do alvorecer. Seja aquele que ousa ser verdadeiro.
  • 60. Medo e tempo “A ÚNICA COISA que devemos temer é o medo.” Essa frase, pronunciada por Franklin D. Roosevelt em 1932 em seu discurso de posse como presidente dos Estados Unidos, talvez seja a que mais reteve meu pensamento durante a vida. Eu costumava me repreender durante meu primeiro surto de pânico. Sentir medo é o bastante, eu pensava. Essas palavras estiveram em minha mente também enquanto escrevia este livro. Da mesma forma que “o tempo cura” e todos os bons clichês, a frase se tornou clichê por um bom motivo: ela é verdadeira. Quando penso sobre meus medos, percebo que a maior parte deles têm a ver com o tempo. Tenho medo de envelhecer. Tenho medo de que nossos lhos envelheçam. Tenho medo do futuro. Tenho medo de perder pessoas. Tenho medo de atrasar meu trabalho. Mesmo enquanto escrevia este livro, tive medo de não cumprir o prazo. O tempo que desperdicei me preocupa. O tempo que passei doente. E, ao pesquisar, comecei a pensar se nosso conceito de tempo é, em si mesmo, temporal. Nossa atitude em relação ao tempo mudou? Será que ao nos livrarmos do medo criaremos uma nova relação com o passar dos minutos, das horas e dos anos? Percebo que, para começar a ver o medo como o modo com que minha mente — e talvez a sua — reage ao mundo moderno, preciso analisar o tempo.
  • 61. Parem os relógios NEM SEMPRE TIVEMOS relógios. Durante a maior parte da história, a ideia de “quinze para as cinco” ou “quatro e quarenta e cinco” não faria sentido. Nunca encontramos uma pintura rupestre de alguém acordando estressado por ter perdido a hora da reunião. Antigamente, havia apenas dois tempos. Dia e noite. Luz e escuridão. Acordado e dormindo. Havia também outros tempos. Tempo de comer, de caçar, de lutar, de descansar, de brincar e de beijar, mas esses tempos não eram ditados arti cialmente pelo relógio, com seus números e in nitas subdivisões. Quando os primeiros métodos de controle do tempo passaram a ser usados, em geral eles conservavam essa estrutura binária. A nal, os antigos egípcios só podiam ver a sombra projetada por seus obeliscos e os romanos só examinavam seus relógios de sol à luz do dia. Mesmo depois que surgiram na Europa os primeiros relógios mecânicos, no começo do século XIV, destinados a lugares como igrejas, eles eram bem rudimentares. Normalmente não tinham o ponteiro dos minutos, por exemplo, e não podiam ser vistos da maior parte das janelas dos dormitórios. Os relógios de bolso apareceram no século XVI, e, como muitos sonhos de consumo, a princípio foram símbolos exclusivos de status — novidades para a nobreza. Um relógio de bolso elegante, em meados do século XVI, custava aproximadamente quinze libras, o que era mais do que a renda anual de um agricultor. Tudo isso por um aparelho que sequer tinha o ponteiro dos minutos. Foi, no entanto, o relógio de bolso o que tornou as pessoas um pouco mais apreensivas em relação ao tempo. Ou, pelo menos, mais apreensivas em relação à veri cação do tempo. Quando Samuel Pepys, conhecido por seu diário, presenteou-se com um relógio de bolso — “um [relógio] muito bom” — em Londres em 1665, ele logo viu — como muitos usuários da internet hoje — que ter acesso à
  • 62. informação proporciona uma espécie de liberdade à custa de outra. Em 13 de maio, ele escreveu: Mas, Senhor! Ver o quanto minha antiga estupidez e infantilidade ainda estão à espreita fez com que eu não pudesse evitar ter o relógio em mãos no sofá durante toda a tarde, e conferir cem vezes que horas eram; e me vejo perguntando a mim mesmo como pude car tanto tempo sem ele; mas também me lembre que, quando tinha um, considerei aquilo um problema e resolvi nunca mais andar com relógio enquanto vivesse. Com certeza, qualquer pessoa que já teve um celular ou uma conta no Twitter pode relatar um comportamento compulsivo como esse. Checar, e checar, e checar, e mais uma vez, só para ter certeza. Quando a possibilidade de checar uma coisa se transforma em compulsão, muitas vezes sentimos saudades do tempo em que não tínhamos condições de conferir nada. O caso é que o relógio de bolso de Pepys nem era tão bom. Nem um pouco bom. Era uma porcaria que custava o salário de um ano. Só que nenhum relógio em 1665 era bom, pelo menos não para mostrar a hora. Só uma década depois, com a invenção da mola em espiral, que controlava a velocidade da roda de balanço, foi possível produzir relógios de bolso mais ou menos exatos. A partir de então, é claro, nossos meios de medição do tempo tornaram-se cada vez mais avançados. Agora estamos na era dos relógios atômicos, que são incrivelmente, assustadoramente exatos. Em 2016, por exemplo, físicos alemães construíram um relógio tão exato que não atrasaria nem adiantaria um segundo durante quinze bilhões de anos. Os físicos alemães agora não têm mais desculpas para se atrasar para nada. Estamos tão preocupados com o tempo marcado em números que não nos importamos com o tempo natural. Durante milhares de anos as pessoas podem ter acordado às sete da manhã. A diferença em relação aos últimos séculos é que agora acordamos porque são sete da manhã. Vamos para a escola, para a faculdade ou para o trabalho a certa hora do dia, não porque nos pareça a hora natural para isso, mas porque é a hora marcada. Delegamos nossos instintos aos ponteiros de um relógio. Cada vez mais, somos escravos do tempo e não o contrário. O tempo nos preocupa. Nós nos perguntamos onde ele foi parar. Somos obcecados por ele.
  • 63. Uma ligação telefônica — MATTHEW? — É a minha mãe. A única pessoa que me chama de Matthew. — Sim. — Você ouviu o que eu estava dizendo? — Hã. Sim. Algo sobre ir ao médico... Para minha vergonha, eu não estava ouvindo. Estava olhando para um e- mail que tinha começado a escrever. Então, mudei de estratégia. Disse a ela a verdade: — Desculpe, mãe. Estou com o notebook ligado. Bem ocupado no momento. Acho que agora estou meio sem tempo... Mamãe suspira, e ouço o suspiro instantaneamente, embora ela esteja a trezentos quilômetros de distância. — Sei como é.
  • 64. Precisamos do tempo que já temos A QUESTÃO É que deveríamos ter mais tempo do que nunca. Quero dizer, pense nisso: a expectativa de vida mais que dobrou no último século. E não é só isso. Mais do que nunca, temos instrumentos e tecnologias para poupar tempo. Os e-mails são mais rápidos que as cartas. Os aquecedores são mais rápidos que as fogueiras. As máquinas de lavar são mais rápidas que a lavagem manual em rios ou tanques. Procedimentos que já foram trabalhosos, como esperar o cabelo secar, viajar quinze quilômetros, ferver água ou buscar dados hoje em dia levam praticamente tempo nenhum. Temos poupadores de tempo e esforço como tratores, carros, máquinas de lavar, linhas de produção e fornos de micro-ondas. Mesmo assim, durante grande parte da vida, estamos correndo. Dizemos coisas como “Adoraria ler mais/aprender a tocar um instrumento/frequentar uma academia/contribuir com uma obra de caridade/preparar minhas próprias refeições, plantar morangos/rever meus colegas de escola/treinar para uma maratona... se tivesse tempo” . Muitas vezes nos vemos desejando que o dia tivesse mais horas, só que isso não adiantaria nada. O problema, é claro, não é a falta de tempo. É que temos uma sobrecarga de tudo o mais .
  • 65. Lembre SENTIR QUE VOCÊ não tem tempo não quer dizer que você não tenha tempo. Sentir que você é feio não quer dizer que você seja feio. Sentir-se ansioso não signi ca que você precise se sentir ansioso. Sentir que você não fez o bastante não quer dizer que não tenha feito o bastante. Sentir que lhe faltam coisas não tornam você menos completo.
  • 67. Um excesso de tudo NO MUNDO ATUAL, há um excesso de tudo. Pense num só tipo de coisa. Pense, por exemplo, naquilo que você tem nas mãos — um livro. Existem muitos livros. Por algum motivo, você decidiu ler este livro, e co sinceramente grato por isso. Mas, enquanto você está lendo este livro, pode ter também a desconfortável percepção de que está deixando de ler outros livros. E não é que eu queira estressá-lo muito, mas existe uma porção de outros livros. O site Mental Floss, baseado em dados do Google, calculou que existam no mundo, por baixo, 134.021.533 livros, isso em meados de 2016. Agora há mais alguns milhões de livros. E, seja como for, 134.021.533 ainda é, tecnicamente, um montão . Nem sempre foi assim. Nem sempre tivemos tantos livros, e para isso havia um motivo óbvio. Antigamente, a impressão de livros tinha de ser feita à mão, sobre superfícies de argila, papiro, cera ou couro. Mesmo depois de inventada a prensa de tipos móveis, não havia muito o que ler. Um clube de livros na Inglaterra no começo do século XVI teria de batalhar muito por seus exemplares, já que havia cerca de apenas quarenta livros publicados por ano, segundo dados da Biblioteca Britânica. Um leitor ávido podia facilmente ler todos os livros publicados. “E aí, o que você está lendo?”, perguntaria um membro ctício do clube de livros ctício. “Tudo o que sai, Cedric”, teria sido a resposta. Mas a situação mudou muito. Ao chegar o ano 1600, eram publicados na Inglaterra cerca de quatrocentos títulos — dez vezes o que se publicava no século anterior. A rma-se que o poeta Samuel Taylor Coleridge foi a última pessoa a ler tudo, o que é uma impossibilidade técnica, dado que ele morreu em 1834,
  • 68. quando já existiam milhões de livros publicados. No entanto, o interessante é que as pessoas da época acreditavam que fosse possível ler tudo. Ninguém acreditaria nisso hoje em dia. Todo mundo sabe que mesmo batendo o recorde mundial de leitura rápida, o número de livros que poderíamos ler seria apenas uma minúscula fração dos livros existentes. Estamos afogados em livros, da mesma forma que em programas de TV. Contudo, só podemos ler um livro — e ver um programa de TV — de cada vez. Multiplicamos tudo, mas ainda somos seres individuais. Existe só um de cada um de nós. E somos menores que a internet. Para aproveitar a vida, devemos parar de pensar a respeito do que nunca seremos capazes de ler, de dizer e fazer e começar a pensar em como aproveitar o que está dentro de nossos limites. Viver numa escala humana. Concentrar-nos nas poucas coisas que podemos fazer e não nos milhões de coisas que não podemos fazer. Não almejar ter vidas paralelas. Encontrar um número menor. Ser digno e único. Um número primo indivisível.
  • 69. O mundo está tendo um ataque de pânico O PÂNICO É uma espécie de sobrecarga. Era assim que meus ataques de pânicos se manifestavam. Um excesso de pensamentos e de medo. Uma mente sobrecarregada pode chegar a um ponto de ruptura e ser inundada pelo pânico. Isso porque a sobrecarga pode fazer a pessoa se sentir numa armadilha. Psicologicamente encaixotada. É por isso que os ataques de pânico geralmente ocorrem em ambientes superestimulantes. Supermercados, boates, teatros, trens lotados. Mas o que acontece quando a sobrecarga se torna uma característica central da vida moderna? Sobrecarga de consumo. Sobrecarga de trabalho. Sobrecarga ambiental. Sobrecarga de notícias. Sobrecarga de informação. O problema atual, portanto, não é que a vida seja necessariamente pior do que antes. Em muitos aspectos, a vida tem o potencial de ser melhor, mais saudável e mesmo mais feliz do que no passado. O problema é que a nossa vida também está abarrotada. O desa o é descobrir quem sou nessa multidão de “eus”.
  • 70. Lugares onde tive ataques de pânico SUPERMERCADOS . Subterrâneo sem janelas de uma loja de departamentos. Um show de música superlotado. Uma boate. Um avião. No metrô de Londres. Num bar de tapas em Sevilha. No salão verde da BBC News. Num trem de Londres para York (durou a maior parte da viagem). Num cinema. Num teatro. Numa loja de conveniência. Num palco, sentindo-me pouco à vontade com mil rostos me olhando. Caminhando pelo Covent Garden. Vendo TV. Em casa, tarde da noite, depois de um dia cheio, com a luz alaranjada da rua brilhando ameaçadora através da cortina. Num banco. Diante da tela do computador.
  • 71. Um planeta nervoso — IMAGINE QUE O mundo não está só enlouquecendo as pessoas — disse-me recentemente um amigo, depois que eu lhe falei sobre o livro que estava tentando escrever. — Imagine que o mundo em si é que está louco. Ou, quero dizer, as partes do mundo que têm a ver conosco. Seres humanos. Ou seja, e se ele estiver literalmente louco ? Acho que é isso o que está acontecendo. Acho que a sociedade humana está entrando em colapso. — Sim. Como um paciente que tem um colapso nervoso. — É. Ou seja, é claro que o mundo não é uma pessoa. Mas está cada vez mais interconectado, como, digamos, um sistema nervoso. Tornando-se um pouco como isso. Estive lendo sobre um cara do século XIX que achava os os do telégrafo parecidos a um sistema nervoso. Numa pesquisa posterior, descobri que o cara chamava-se Charles Tilston Bright — encarregado do primeiro cabo telegrá co transatlântico. Ele se referia à rede telegrá ca global como “sistema mundial de nervos elétricos”. Já não temos telégrafos dessa forma, já que eles não são tão bons para postar vídeos de gato ninja e emojis. Mas o sistema nervoso do mundo não desapareceu. Evoluiu em escala e complexidade a tal ponto que, desde junho de 2017, mais da metade da população mundial está conectada à internet, segundo dados da União Internacional de Telecomunicações, da ONU (que, signi cativamente, já se chamou União Internacional do Telégrafo). O número de usuários de internet cresce rapidamente de ano para ano. É estranho pensar que, em 1995, praticamente ninguém estava na internet: apenas dezesseis milhões de pessoas, ou 0,4% da população mundial. Uma década depois, em 2005, esse número chegava a um bilhão, ou 15% da população mundial. E, em 2017, o número saltou para 51%. Nesse mesmo ano, o número de usuários ativos do Facebook — pessoas que usam o Facebook pelo menos uma vez por mês — chegou a 2,07 bilhões. No começo da década, em 2010, nem na internet havia tanta gente. Essas foram
  • 72. mudanças muito rápidas. Ocorreram porque muitas partes do mundo se “modernizaram” e transformaram rapidamente sua infraestrutura, abrindo caminho para a internet de banda larga. O outro fator interveniente foi a multiplicação dos celulares, que tornou o acesso à internet muito mais fácil do que antes. E não é só o número de pessoas que usam a internet o que está aumentando, mas aumenta também o tempo que elas passam conectadas. Os seres humanos estão mais do que nunca conectados por meio da tecnologia, e essa mudança radical ocorreu em pouco mais de uma década. E, quanto mais não seja, ela está levando a muita discussão on-line. Como escreveu Tolstói em 1894, em O reino de Deus está em vós : Quanto mais os homens estiverem a salvo das necessidades, mais aumentarão os telégrafos, os telefones, os livros, os jornais, as revistas; mais crescerão os meios de propagação das mentiras e hipocrisias contraditórias, e mais os homens serão desunidos, portanto infelizes, como acontece no presente. E as coisas acontecem rápido demais para que se possa dar conta de todas elas. Com certeza muito mais rápido que na época de Tolstói. Todas essas rupturas. Todas essas informações. Toda essa conexão tecnológica. O cérebro do mundo é uma metáfora prosaica, mas adequada. Somos as células nervosas do cérebro do mundo, transmitindo-nos a todas as outras células nervosas. Enviando a sobrecarga de cá para lá. Neurônios sobrecarregados num planeta nervoso. Pronto para explodir.
  • 73. 6 ANSIEDADES DA INTERNET “A internet é a primeira coisa construída pela humanidade que a humanidade não entende, a maior experiência em anarquia que já tivemos.” — Eric Schmidt, ex-CEO do Google “Um punhado de pessoas, trabalhando num punhado de empresas de tecnologia, vão dirigir, com suas escolhas, o que um bilhão de pessoas pensarão hoje [...] Não conheço problema mais urgente que esse [...] Isso está mudando nossa democracia e está mudando nossa capacidade de conversar e nos relacionarmos como quisermos.” — Tristan Harris, ex-funcionário do Google
  • 74. Coisas que adoro na internet A ÇÕES COLETIVAS CONTRA a injustiça social. Ver clipes antigos que eu já tinha esquecido. Ver trailers de lmes sem ter de ir ao cinema. A Wikipedia, o Spotify, as receitas da BBC Good Food. O processo de organizar uma viagem. O Goodreads. Pessoas que sabem como você se sente quando está triste. Conversar com leitores com os quais eu nunca conversaria de outra forma. A gentileza, que acontece bastante. Ver vídeos de animais fazendo coisas incríveis (um gorila dançando na piscina, um polvo abrindo um pote). Poder chegar a pessoas por e-mail ou mensagem de uma maneira impossível na vida real. Tuítes engraçados. Manter contato com velhos amigos. Poder trocar ideias com as pessoas. Ótimos instrutores de ioga de Austin, Texas, cujas práticas posso acompanhar mesmo não morando em Austin, Texas. Vídeos igualmente bons de alongamento pós-corrida. Pesquisar o lado ruim da internet pela internet.
  • 75. Coisas que eu deveria fazer menos na internet P OSTAR COISAS SOBRE uma experiência importante quando poderia estar tendo uma experiência importante real. Escrever tuítes com opiniões que não vão convencer ninguém. Clicar em artigos que na verdade não quero ler. Postar no Twitter quando deveria estar tomando o café da manhã. Ler minhas resenhas no site da Amazon. Comparar minha vida à vida de outras pessoas. Olhar e-mails e não respondê-los. Responder e-mails quando deveria estar ouvindo minha mãe relatando sua visita ao médico. Experimentar a alegria boba de curtidas e favoritos. Procurar meu próprio nome. Cortar pelo meio vídeos de músicas de que gosto no YouTube porque vi outro vídeo que me chamou a atenção. Buscar sintomas no Google e fazer autodiagnóstico (o fato de ser hipocondríaco não quer dizer que esteja realmente morrendo). Buscar coisas no Google — qualquer coisa (“número de átomos no corpo humano”, “benefícios da cúrcuma para a saúde”, “elenco de Amor sublime amor ”, “como baixar fotos do iCloud”) — depois da meia-noite. Checar o andamento do upload de um tuíte/foto/status (e continuar checando). Querer desconectar e não desconectar.
  • 76. O mundo está encolhendo A SOBRECARGA DE vida é um sentimento radicado até certo ponto na percepção de que o mundo se contraiu e se concentrou. O mundo humano realmente encolheu e se tornou mais rápido também. Está se tornando mais conectado, e à medida que ca mais conectado, nós também camos. A “mentalidade de colmeia” — termo cunhado por James H. Schmitz, em 1950, no conto de cção cientí ca “Second Night of Summer” [Segunda noite do verão], de 1950 — é agora uma realidade. Mais do que nunca, nossas vidas, nossa informação e nossas emoções estão conectadas. A internet uni ca mesmo quando parece dividir. Esse processo de encolhimento do mundo não aconteceu da noite para o dia. Há séculos os seres humanos vêm se comunicando para além do alcance de sua voz. Usando todo tipo de coisa, desde sinais de fumaça a tambores e pombos. Uma cadeia de sinais luminosos de Plymouth a Londres anunciou a chegada da marinha espanhola. No século XIX, o telégrafo elétrico ligava continentes. O sistema nervoso global evoluiu para o telefone, rádio, televisão e, claro, para a internet. Essas conexões nos tornam, de muitas formas, cada vez mais próximos. Podemos enviar um e-mail ou mensagem de texto, falar pelo Skype ou pelo Facetime ou jogar jogos on-line em tempo real com pessoas a quinze mil quilômetros de distância. A distância física se torna cada vez mais irrelevante. As redes sociais permitem ações coletivas como nunca: manifestações, revoluções e impacto sobre resultados eleitorais. A internet permitiu que nos reuníssemos e zéssemos acontecer coisas. Para o bem e para o mal. O problema é que se estamos ligados a um vasto sistema nervoso, nossa felicidade ou infelicidade é mais coletiva do que nunca. As emoções de um grupo tornam-se nossas.
  • 77. Histeria de massa HÁ MILHÕES DE exemplos históricos de pessoas cujas emoções foram in uenciadas pela massa, desde o julgamento das bruxas de Salem até a Beatlemania. Um dos exemplos mais engraçados e assustadores é o caso do convento francês onde, no século XV, uma freira começou a miar como um gato. Depois de algum tempo, outras freiras começaram a miar também. E em poucos meses, os moradores de povoados próximos ouviam, abismados, todas as freiras miando ao longo de horas, num sonoro coro felino. Elas só pararam de miar quando as autoridades ameaçaram açoitá-las. Há outros exemplos esquisitos, como a epidemia de dança de Estrasburgo em 1518, durante a qual, ao longo de um mês, quatrocentas pessoas dançavam até cair — em alguns casos, até morrer — por motivos incompreensíveis. Sequer havia música tocando. Ou, como o dos habitantes de Hartlepool, Inglaterra, que, durante as guerras napoleônicas, segundo reza a lenda, convenceram-se coletivamente de que um macaco sobrevivente de um naufrágio era um espião francês e enforcaram o pobre primata perplexo. As fake news existem já há algum tempo. E agora, claro, temos a tecnologia — a internet — que torna mais possíveis e prováveis os comportamentos de grupo. Coisas diversas — músicas, tuítes, vídeos de gatos — tornam-se virais em questão de um dia, ou de horas. A palavra “viral” é perfeita para denominar o efeito de contágio causado pela conjugação de natureza humana e tecnologia. E, é claro, não apenas vídeos, produtos e tuítes se tornam contagiosos. Isso acontece com as emoções também. Um mundo completamente conectado pode enlouquecer, todos ao mesmo tempo.
  • 78. Primeiros passos A MESMA COISA outra vez. — Matt, saia da internet. Andrea tinha razão e estava apenas querendo cuidar de mim, mas eu não queria ouvir. — Está tudo bem. — Não está tudo bem. Você está tendo uma briga com alguém. Você está escrevendo um livro sobre como conviver com o estresse da internet e ainda assim ca se estressando na internet. — Não é nada disso. Estou tentando entender por que nossa mente é afetada pela modernidade. Estou escrevendo sobre o mundo como um planeta nervoso. De que forma nossa psicologia está conectada. Estou escrevendo sobre todos os aspectos de um... Ela mostrou as palmas das mãos. — Está bem. Não quero ouvir uma TED talk. Suspirei. — Só estou respondendo a um e-mail. — Não. Não está. — Está bem. Estou no Twitter. Mas há uma coisa que eu gostaria de esclarecer... — Matt, isso é com você. Mas pensei que a ideia disso tudo fosse conseguir que você não casse assim. — Assim como? — Tão envolvido numa coisa em que não devia se envolver. Só não quero que que mal. E é assim que você ca mal. Só isso. Ela saiu da sala. Olhei para o tuíte que estava a ponto de postar. Aquilo não ia acrescentar nada à minha vida. Ou à vida de qualquer outra pessoa. Só ia me levar a checar repetidamente meu celular, como Pepys fazia com seu relógio de
  • 79. bolso. Apertei a tecla “deletar” e senti um estranho alívio enquanto via cada letra desaparecer.
  • 80. Ode às redes sociais QUANDO A RAIVA captura a internet, Procurando um anzol; É hora de desconectar, E ir embora ler um livro.
  • 81. Espelhos OS NEUROBIÓLOGOS IDENTIFICAM o “efeito espelho” como uma das rotas neurais que é ativada, no cérebro dos primatas — inclusive o homem —, durante a interação com os outros. Numa época conectada, os espelhos se tornaram maiores. Quando as pessoas cam assustadas depois de um acontecimento horrível, o medo se espalha como um incêndio digital. Quando as pessoas sentem raiva, a raiva germina. Mesmo quando pessoas com opiniões contrárias às nossas mostram uma emoção, sentimos uma coisa parecida. Por exemplo, se por alguma razão alguém que esteja on-line car furioso com você, é pouco provável que você acate a opinião dele, mas bastante provável que adote a mesma fúria. Isso se vê todos os dias nas redes sociais: pessoas discutindo entre si, combatendo a posição oposta à sua, mas re etindo o mesmo estado emocional do outro. Já z isso muitas vezes, e é por isso que Andrea estava desapontada comigo. Eu tinha me envolvido numa discussão com alguém que me chamou de “menino mimado”, ou “esquerdinha”, ou que tuitou “O LIBERALISMO É UM DISTÚRBIO MENTAL”. Estou cansado de saber que discutir pela internet não é a maneira mais satisfatória de passar o pouco tempo que temos na Terra, mas mesmo assim faço isso, às vezes meio sem controle. Reconheço isso agora. E preciso parar com isso. Seja como for, a questão é que mesmo sendo politicamente muito diferente das pessoas com quem discuto, do ponto de vista psicológico nos damos corda reciprocamente e alimentamos os mesmos sentimentos raivosos. Oposição política, mas re exo emocional. Certa vez, quando estava em estado de ansiedade, tuitei uma coisa idiota. “A ansiedade é meu superpoder”, disse. Não quis dizer que ansiedade seja uma coisa boa. Quis dizer que a ansiedade era tão ridiculamente intensa que nós, que a temos em excesso,
  • 82. passamos pela vida como um ansioso Clark Kent ou um atormentado Bruce Wayne, conhecendo o segredo de quem somos. E que isso pode representar o peso de uma incontrolável torrente de pensamentos e desespero, mas também, ocasionalmente, nos convence de que tem um lado positivo. Por exemplo, no meu caso, estou grato por ter me forçado a parar de fumar, a estar sicamente saudável, que tenha me feito entender o que era bom para mim, e quem se importava comigo e quem não se importava. Sou grato por ter me levado a tentar ajudar outras pessoas que vivem isso e sou grato por ter me levado — durante os bons momentos — a viver a vida mais intensamente. Foi essencialmente isso o que escrevi em Razões para continuar vivo . Mas naquele tuíte eu não tinha me expressado muito bem. E, de repente, estava chamando a atenção no Twitter. Decidi deletar meu tuíte, mas já tinham capturado a imagem e estavam cerrando leiras para dirigir sua ira contra mim. “SUPERPODER???? VSF!!!” “@matthaig1 É VENENOSO” “Delete sua conta”, “Idiota de merda” e assim por diante. E você continua ligado, assustado, observando essa trombada que você mesmo causou, enquanto sua linha do tempo vai se enchendo com dezenas, depois com centenas de pessoas bravas convencidas de que ganham um ponto cada vez que tocam um nervo exposto. Aliás, “tocar um nervo exposto” é uma expressão irrelevante para quem tem ansiedade. Todo nervo é um nervo exposto. A raiva se torna contagiosa e quase uma força física irradiando da tela. Meu coração começou a bater duas vezes mais rápido. Tudo parecia estar chegando ao m. O ar tornou-se espesso. Fiquei encurralado. Comecei a me sentir um pouco como se a realidade estivesse derretendo. “Que merda, que merda, que merda.” Me perdi num breve ataque de pânico. Senti uma insana combinação de culpa, medo, raiva defensiva, e decidi nunca mais tuitar sobre meu modo de sair da ansiedade. É melhor guardar algumas coisas para nós mesmos. Mas também — e mais importante — eu queria achar um jeito de impedir que a opinião dos outros sobre mim se tornasse minha própria opinião sobre mim. Queria criar uma espécie de imunidade emocional. As redes sociais, quando você se envolve demais, podem fazer com que você se sinta dentro de uma bolsa de valores na qual você — ou sua personalidade virtual — é a ação. E quando as pessoas começam a chegar, você sente que seu preço está
  • 83. disparando. Queria me ver livre daquilo. Eu queria car psicologicamente desconectado. Para ser um mercado autorregulado, do ponto de vista psicológico. Sentir-me à vontade com meus próprios erros, sabendo que todo ser humano vale mais do que eles. Permitir a mim mesmo entender que conheço meus mecanismos internos melhor que um estranho. Poder deixar que outras pessoas achem que sou um idiota sem sentir que sou mesmo. Preocupar-me com outras pessoas, mas não com suas incompreensões a meu respeito dentro da fábrica de opiniões que é a internet.
  • 84. Como manter o equilíbrio na internet: uma lista de mandamentos utópicos que raramente observo, porque são di cílimos 1. PRATIQUE A ABSTINÊNCIA . Principalmente a abstinência de redes sociais. Resista a qualquer excesso inconveniente para o qual você se sinta atraído. Fortaleça os músculos da privação. 2. Não digite sintomas no Google a menos que queira passar sete horas convicto de que estará morto antes da hora do jantar. 3. Lembre-se de que ninguém se importa realmente com o seu aspecto. Eles se importam com o aspecto deles. Você é a única pessoa no mundo preocupada com sua cara. 4. Entenda que o que parece real pode não ser. Quando o romancista William Gibson pensou pela primeira vez na ideia daquilo que ele chamaria de “ciberespaço” no conto “Burning Chrome” [Queimando lme], de 1982, ele de niu-o como “alucinação consensual”. Acho essa de nição muito útil quando co preso demais à tecnologia. Quando isso afeta minha vida não digital. Toda a internet está distante do mundo físico. Os aspectos mais poderosos da internet são re exos do mundo of ine, mas réplicas do mundo exterior não são o mundo exterior real. É a internet real, mas não passa disso. Claro, você pode fazer amigos reais na internet. Mas a realidade não digital é ainda um teste útil para essa amizade. Assim que você sai da internet — durante um minuto, uma hora, um dia, uma semana — é incrível como ela desaparece depressa de sua mente. 5. Entenda que as pessoas são mais do que uma postagem em redes sociais. Pense em quantos pensamentos con itantes você pode ter num só dia. Pense em todas as posições contraditórias que já assumiu na vida. Revide a opiniões na internet, mas nunca deixe que uma opinião apressada de na
  • 85. um ser humano completo. “Cada um de nós”, disse o físico Carl Sagan, “é, de uma perspectiva cósmica, precioso. Se um ser humano discorda de você, deixe-o assim. Em cem bilhões de galáxias, você não encontrará outro igual.” 6. Não siga pessoas que detesta. Foi isso que prometi a mim mesmo desde o dia de Ano-Novo de 2018, e até agora deu certo. Seguir pessoas que odeia não proporciona foco a sua justa indignação. Alimenta-a. De uma maneira perversa, isso reforça também sua câmara de ressonância, fazendo você achar que só as opiniões alheias são extremas. Não procure coisas que o façam infeliz. Não se compare a outras pessoas. Não se de na em relação a outros. De na-se pelo que você é . E navegue de acordo com isso. 7. Não entre no jogo das avaliações. A internet adora avaliações, sejam as da Amazon, do TripAdvisor e do Rotten Tomatoes, sejam as de fotos, atualizações e tuítes. Curtidas, favoritos, retuítes. Ignore-os. Avaliação não é sinônimo de valor. Nunca se julgue por meio delas. Para agradar a todo mundo você teria de ser a mais insípida das pessoas. William Shakespeare é provavelmente o maior escritor de todos os tempos. No Goodreads, ele tem uma média medíocre de 3,7. 8. Não passe a vida preocupado com o que está perdendo. Não seja budista quanto a isso — está bem, seja só um pouco budista. A vida não é car satisfeito com o que você está fazendo, mas com o que você está sendo. 9. Nunca troque uma refeição ou horas de sono pela internet. 10. Permaneça humano. Resista aos algoritmos. Não passe a ser uma caricatura de si mesmo. Desligue os pop-ups de publicidade. Saia de sua câmara de ressonância. Não permita que o anonimato transforme você numa pessoa com vergonha de estar desconectada. Seja um mistério, não um número. Seja alguém que um computador jamais poderia desvendar. Mantenha a empatia. Quebre padrões. Resista a tendências robotizantes. Permaneça humano.
  • 86. Nunca perder o controle ENTRE OS PROBLEMAS que enfrentaremos no próximo século, já que mergulhamos cada vez mais fundo na tecnologia, um dos mais interessantes pode ser o seguinte: como permanecer humano num cenário digital? Como manter o controle de nós mesmos e nunca perdê-lo?
  • 87. Tenha cuidado com o que você nge ser DÉCADAS ANTES DE que qualquer pessoa tivesse uma conta no Instagram, Kurt Vonnegut disse que “somos o que ngimos ser, portanto tenha cuidado com o que você nge ser”. Isso parece especialmente certo na era das redes sociais. Anteriormente nos apresentávamos ao mundo — escolhendo usar a camiseta de uma banda, ou as palavras a dizer, ou que partes do corpo depilar —, mas nas redes sociais o ato de se apresentar vai mais longe. Estamos sempre a um passo de distância de nosso eu on-line. Fomos transformados em mercadorias ambulantes. Nossos per s são bonecos de Guerra nas estrelas de nós mesmos. O retrato de um cachimbo não é um cachimbo, como disse Magritte. Existe uma lacuna permanente entre o signi cante e o signi cado. O per l de seu melhor amigo na rede não é seu melhor amigo. Uma atualização de status sobre um dia no parque não é um dia no parque. E o desejo de mostrar ao mundo o quanto você é feliz não é felicidade.
  • 88. Como ser feliz 1. NÃO SE compare a outras pessoas. 2. Não se compare a outras pessoas. 3. Não se compare a outras pessoas. 4. Não se compare a outras pessoas. 5. Não se compare a outras pessoas. 6. Não se compare a outras pessoas. 7. Não se compare a outras pessoas.
  • 89. Mais um clique SE UM CAMUNDONGO receber comida toda vez que apertar uma alavanca, ele vai continuar apertando. Mas não com a mesma frequência que um camundongo que obtém resultados alternados — às vezes comida, às vezes nada. Eu pensava que as redes sociais eram inofensivas. Eu pensava que estava nelas porque gostava. Mas então cava nelas mesmo quando já não estava gostando. Lembrei aquele sentimento. Era o que você sente num bar às três da manhã quando seus amigos já foram para casa.
  • 90. Algoritmos comem empatia AGORA, GRAÇAS A algoritmos mais inteligentes, quando fazemos nossas compras somos expostos a uma porção de outras coisas de que poderíamos gostar. Coisas que pessoas como nós comprariam. Se estivermos no Spotify ou no YouTube ouvindo música, nos apresentam uma lista de músicas que é quase exatamente a mesma que já estamos ouvindo. Se estivermos no site da Amazon, mostram-nos os livros que as pessoas que compraram este livro também compraram. Se estamos nas redes sociais, dizem-nos para seguir pessoas parecidas às pessoas que já seguimos. Mais como nós. Somos levados a car em nosso lugar e a fazer um jogo seguro, porque as empresas de internet sabem que em geral as pessoas gostam de ouvir, ler, assistir, comer e usar o tipo de coisa que já ouviram, leram, assistiram, comeram e usaram. Mas, ao longo da história, nem sempre pudemos fazer isso. Tínhamos de sair, tratar com pessoas que não eram como nós e aceitá-las. Com coisas que não eram como as coisas de que gostávamos. E era horrível . Mas agora pode ser pior . Agora podemos chegar a odiar profundamente qualquer pessoa que não pense como nós. Os políticos podem acabar nunca tentando chegar ao outro lado. A diferença tornou-se algo a temer, a desprezar, não a celebrar. Pessoas com opiniões semelhantes acabam se separando, incapazes de tolerar mínimas diferenças, até carem presas em sua pequena câmara de ressonância, lendo um milhão de versões do mesmo livro, ouvindo a mesma música e retuitando as próprias opiniões até o m dos tempos. Mas somos humanos. Podemos resistir a isso. Podemos resistir ao con namento numa pequena tribo digital. Podemos aceitar a vida em toda a sua amplitude. Estamos buscando meios de fazer isso o tempo todo. Sim, podemos ser uma confusão. Mas nossa força está nessa confusão. Não fazemos coisas simplesmente porque elas fazem sentido. E nisso a internet pode ser
  • 91. nossa aliada, não nossa inimiga. A internet contém um mundo. A internet pode ser o que nós queiramos que seja. A internet pode nos levar aonde quisermos. Temos apenas de garantir que somos nós — não a tecnologia, os designers e engenheiros capazes de manipular todos os nossos estados emocionais — os que fazem as coisas.
  • 92. O que as pessoas das redes sociais pensam das redes sociais EM MINHA SAGA determinada a isolar minha mente do planeta nervoso, comecei a imaginar como me sentiria se abandonasse todas as redes sociais. E então, para fazer uma ideia de como seria a vida sem as redes sociais, eu, hã, recorri às redes sociais. Decidi fazer a alguns de meus seguidores no Twitter uma pergunta simples e decisiva: “As redes sociais são boas ou ruins para sua saúde mental?” A pergunta provocou uma comoção. Recebi mais de duas mil respostas. Elas mostravam, é claro, um quadro complicado. No entanto, considerando que são usuários constantes e ativos das redes sociais, o quadro é mais para negativo. Ou seja, suponha que você pergunte a mesma coisa a leitores, ciné los, cavaleiros ou montanhistas: seria pouco provável que tivesse respostas tão diversas. Aliás, segue-se uma seleção signi cativa: April Joy @AprilWaterson É ao mesmo tempo um mecanismo de convivência e uma causa de ansiedade. Quando co ansiosa, é legal rolar telas despreocupadamente e ler por distração. Mas, ao mesmo tempo, a necessidade permanente de postar coisas que infalivelmente serão julgadas pelas pessoas não é exatamente um pensamento reconfortante. Dean Smith @deansmith7 Ruins. Eu me surpreendo comparando minhas cenas íntimas (solidão, ansiedade etc.) aos melhores momentos dos outros (popularidade, sucesso etc.). Sei que esse não é um re exo verdadeiro da vida deles, mas mesmo assim me abala. Miss R! @Fabteachertips
  • 93. Acho que quando estou para baixo, posso passar horas rolando as postagens em minhas redes sociais sozinha na cama. Na verdade, não sei por que faço isso, há muitas outras coisas úteis que eu podia estar fazendo. Isso não faz com que me sinta melhor, com certeza. Immi Wright @immi_wright Saí do Facebook depois de chegar a níveis suicidas... e acho que comecei a me sentir mais con ante em mim mesmo. Acho que o FB apresenta sempre o eu ideal de cada pessoa. No Twitter estou seguindo apenas artistas de rock e @dog_rates, assim quase não tenho com que me preocupar. Kieran Sangha @kieran_sangha É boa no sentido de poder se conectar com pessoas que entendem o que você está sentindo. O lado ruim é que ela alimenta um vício, é como o abuso de substâncias, e pode ter o poder de tomar conta de sua vida. Hayley Murphy @hayleym_swvegan Boa. Não existe ninguém, e quero dizer NINGUÉM que me entenda na “vida real”. É literalmente uma tábua de salvação saber que não estou só. Qualquer instrumento usado da forma errada pode ser perigoso, mas se usado da forma certa pode ser incrível. Bonnie Burton @bonniegrrl As duas coisas. Boa porque posso fazer contato facilmente com pessoas que me inspiram e que admiro. Ruim porque as redes sociais acabam sendo uma plataforma de assédio porque não há consequências para comportamento desprezíveis. Shylah Ellis @MsEels Quando era criança, sem as redes sociais, eu acreditava que era a única pessoa que sofria de depressão. Sentia-me isolado o tempo todo e só tinha contato com pessoas tóxicas. As redes sociais me permitiram interagir com pessoas incríveis do mundo inteiro. Kyle Murray @TheKyleMurray
  • 94. Trabalho nas redes sociais, e mesmo achando que elas têm coisas positivas, acho que as evitaria se pudesse manter contato com amigos distantes de outra maneira. Elas foram transformadas em armas por pessoas detestáveis. Tenho FB desde 2004 e principalmente por nostalgia continuo com ele. James @james____s Algo que ouvi: “O Facebook é onde todos mentem para os amigos. O Twitter é onde dizem a verdade a estranhos.” Abigail Rieley @abigailrieley As duas coisas. Fiz amigos de verdade pela internet, e o apoio que você recebe pode ser bem real, MAS se você estiver para baixo e sentindo-se diminuído pode ser a janela para um mundo no qual cará trancado e isolado. Kate Leaver @kateileaver As duas coisas, mas é melhor do que a reputação que [as redes] têm. Pode levar a crer que amizade autêntica pode ser mantida pelas redes sociais, o que é útil quando você não pode sair de casa. Às vezes, só de dar uma olhada na vida dos outros quando a gente está só/deprimida já pode ajudar. Jayne Hardy @JayneHardy_ As duas coisas, preciso ter limites claros em torno delas, mas quando administro e a rmo esses limites, as redes sociais são positivas para mim. Gareth L Powell @garethlpowell Para mim, escritor free-lance , o Twitter é como o bebedouro do meu escritório. É para lá que vou para conversar com amigos e colegas. Sem ele, eu me sentiria bem isolado. Claire Allan @ClaireAllan As duas coisas. Como escritora que trabalha sozinha, elas me dão a interação social que preserva a sanidade. Mas acho que destacam o melhor e com maior frequência o pior da humanidade, e assim aumentam minha ansiedade. Yassmin Abdel-Magied @yassmin_a
  • 95. São como qualquer outra coisa. Podem ser ótimas, mas precisam ser bem administradas para que o bem supere o mal. Conheci alguns de meus melhores amigos recentes através do Twitter. Hollie Newton @HollieNuisance Gosto das ideias, das notícias e das imagens coloridas. Gosto de ver como andam meus amigos. Interagir. Mas se passar mais do que alguns minutos... começo a me sentir cada vez mais insigni cante. Cole Moreton @colemoreton Não são boas. Elas me agitam, me atraem para discussões coléricas, co enojado e saio. Depois o ciclo recomeça. Rachel Hawkins @ourrachblogs As duas coisas. O Instagram pode me provocar inveja. O Facebook me dá raiva e o Twitter às vezes me estressa. Kat Brown @katbrown Ambas as coisas. Aproveito muito (trabalho, diversão, amigos, contatos), mas sei que o foco da minha atenção desviou-se completamente. Com frequência, minha atenção está on-line. O que vai acontecer? O que pode ter acontecido? Notícias e dopamina = eca. Nigel Jay Cooper @nijay Há vezes em que me sinto como se estivesse numa sala cheia de gente gritando e onde ninguém escuta, e tenho de sair... mas é também a maneira de conectar as pessoas, tem o lado do apoio e do sentimento de comunidade. (1/2) Para mim, a parte da equação mais importante é ter o celular “sempre ligado”. Preciso criar tempo, deixando o telefone de lado e focando no mundo real que me cerca, não no virtual. Para mim, administrar isso é o segredo para não ser sobrecarregado pelas redes sociais. (2/2)
  • 96. Como ser feliz (2) NÃO COMPARE SEU eu real a um eu hipotético. Não se deixe afogar no mar do “e se...”. Não confunda a cabeça imaginando outras versões de si mesmo, em universos paralelos, onde você toma decisões diferentes. A era da internet estimula a escolha e as comparações, mas não faça isso consigo mesmo. “A comparação é o ladrão da alegria”, disse Theodore Roosevelt. Você é você. O passado é o passado. A única maneira de ter uma vida melhor é daqui para a frente. Concentrar-se em arrependimentos só faz transformar o presente em algo que você vai desejar ter feito de outra maneira. Aceite sua realidade. Seja humano e cometa erros. Seja humano a ponto de não temer o futuro. Seja humano o bastante para ser, bem, o bastante . É muito mais fácil ser feliz aceitando quem você é do que se sentindo péssimo consigo mesmo.
  • 98. O efeito multiplicador ESTE É UM planeta nervoso por bons motivos. O mundo pode ser assustador. Polarização política, nacionalismo, ascensão de nazistas que se inspiram mesmo em Hitler, elites plutocráticas, terrorismo, mudanças climáticas, governos instáveis, racismo, misoginia, perda de privacidade, algoritmos cada vez mais inteligentes colhendo nossos dados pessoais para ganhar nosso dinheiro ou nossos votos, a inteligência arti cial e suas consequências, a ameaça renovada de guerra nuclear, violações de direitos humanos, a devastação do planeta. Mas não se trata apenas do que está acontecendo . A nal, coisas terríveis sempre estavam acontecendo em algum lugar do mundo. A diferença agora é que, graças às câmeras dos celulares, às notícias em tempo real, às redes sociais e à conexão ininterrupta à internet, vivemos o que está acontecendo em outro lugar de uma maneira mais direta, visceral e íntima do que nunca. A experiência se multiplica e vaza de mil ângulos diversos. Imagine que existissem redes sociais e câmeras de celulares durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo. Se as pessoas pudessem ver por seus celulares, ao vivo e a cores, os resultados de cada bomba, a realidade de cada campo de concentração ou os corpos ensanguentados e mutilados dos soldados, a experiência psicológica coletiva teria espalhado o horror para muito além dos indivíduos que o vivenciaram. É bom ter em mente que a impressão que temos hoje — de que cada ano é pior que o anterior — é, até certo ponto, apenas isso: uma impressão. Estamos cada vez mais ligados nas farsas e horrores das notícias do mundo, o que provoca algo deprimente. É um sentimento global de ruína. E a preocupação real é que todos os medos que cresceram dentro de nós piorem ainda mais o mundo. Assistir ao vídeo de um ataque terrorista propicia imaginar um segundo ataque, um que aconteça a qualquer momento, no lugar em que vivemos. De nada adianta sabermos, em termos racionais, que temos muito mais
  • 99. probabilidades de morrer de câncer, suicídio ou em um acidente de trânsito. O terror sensacionalista que vimos nos noticiários é o que predomina em nossa cabeça. E os políticos exploram isso, alimentam o medo e criam mais divergências, o que leva a uma instabilidade maior e a mais oportunidades para que os terroristas alcancem seu objetivo: semear o terror. E aí os políticos e agitadores políticos fomentam ainda mais o medo. É como um doente de um transtorno compulsivo, que continua a dar asas a seus medos ao não sair de casa ou ao lavar as mãos duzentas vezes ao dia. Na verdade, ele está fazendo mais mal a si mesmo que se protegendo. Mas dessa vez o transtorno não é individual. É social. É global.
  • 100. Choques ao sistema A PALAVRA “CHOQUE” pulula no discurso dos comentaristas políticos na TV. No século XXI, seja assistindo, lendo ou rolando por um feed de notícias, parece haver uma torrente disso. De choque. “Ah, merda, o que houve agora?” Essa é a reação geral. De manhã você vê seu site de notícias preferido e se alarma. O choque pode ser uma experiência desagradável para uma pessoa ou uma sociedade, mas é valioso enquanto ferramenta política. Pergunte a qualquer pessoa que tenha tido um baita ataque de pânico, e ela vai lhe contar que o ataque faz com que você não pense em nada além do medo. Quando você está em choque, ca confuso. Não pensa direito. Se torna passivo. Vai para onde mandarem ir. Naomi Klein cunhou o termo “doutrina do choque” para designar a tática cínica de usar de modo sistemático “a desorientação pública que se segue a um choque coletivo” para obter vantagem empresarial ou política. Companhias petrolíferas explorando o choque causado por uma guerra para fazer incursões em um novo país; ou um presidente americano explorando o terrorismo para implantar medidas extremas contra a imigração. “Não entramos em estado de choque quando acontece uma coisa grande e ruim”, diz Klein. “Tem de ser algo grande e ruim que ainda não entendemos .” E o problema é que agora temos cobertura de notícias 24 horas por dia. Os acontecimentos estão surgindo sem parar, mas raramente são digeridos. Estamos em um mundo de notícias, que, por sua própria natureza, revela apenas a superfície do novo momento, enfeitado com manchetes e chavões que poucas vezes nos fornecem uma compreensão mais calma e re etida do panorama. O choque provoca emoções negativas porém compreensíveis. Medo, tristeza, impotência, raiva. A tentação de viver tuitando palavras de ódio às injustiças do mundo é humana, mas não é o su ciente. A nal, isso pode servir
  • 101. apenas para acrescentar mais lamentos à lamentação coletiva provocada pelo choque que ajuda os que estão no poder, ou nos extremos políticos, que podem querer nos distrair. Quando alguém passa por um transtorno de pânico, a principal reação — em meio ao terror — é sentir-se zangado e exausto. Mas, no processo de recuperação, chega-se a um ponto no qual é preciso alcançar certo tipo de compreensão e aceitação. Não por aquilo não ser muito ruim, mas justamente por ser tão ruim . Lembro-me de uma ocasião, durante uma crise depressiva, em que eu olhava o céu iluminado pelas estrelas. A maravilha do universo. Quando estava no fundo do poço, sempre tive de me forçar a ver a beleza, a bondade e o amor, por mais difícil que fosse. Era algo difícil de fazer. Mas eu tinha que tentar. A mudança não acontece se nos concentrarmos no lugar de onde queremos escapar. Ela só ocorre quando focamos onde queremos alcançar. Apoie os mocinhos, em vez de apenas atacar os vilões. Encontre a esperança que já existe e a ajude a crescer.
  • 102. Imagine IMAGINE QUE SE por um dia chamássemos os seres humanos de seres humanos. Nada de nacionalidade em primeiro lugar. Nem a religião que praticam. Nem britânico. Nem americano. Nem francês. Nem alemão. Nem iraniano. Nem chinês. Nem muçulmano. Nem sique . Nem cristão. Nem asiático. Nem negro. Nem branco. Nem homem. Nem mulher. Nem CEO da Coca-Cola. Nem membro de uma gangue. Nem mãe de três lhos. Nem historiador. Nem economista. Nem jornalista da BBC. Nem usuário do Twitter. Nem consumidor. Nem fã de Star Trek . Nem escritor. Nem com 17 anos. Ou com 39. Ou com 83. Nem conservador. Nem liberal. Que passássemos todos para seres humanos. Da mesma forma como vemos todas as tartarugas como tartarugas. Humano, humano, humano. Que nós nos obrigássemos a ver o que ngimos saber. Que recordássemos que somos animais unidos como espécie neste delicado pontinho azul do espaço, o único planeta conhecido que abriga vida. Que nos banhássemos no milagre sentimental brega desse fato. Que nos de níssemos pela sorte bizarra de não só estarmos vivos, mas também conscientes disso. De que estamos aqui, agora, no planeta mais belo que poderíamos conhecer. Um onde podemos respirar, viver, apaixonar-nos, comer torradas com manteiga, cumprimentar cachorros, dançar ouvindo música, ler Bonjour tristesse , ver dramalhões aos montes na TV, ver a luz do sol realçada pelo contraste com a sombra escura na fachada de um edifício, sentir o vento e a chuva em nossa pele macia, cuidar uns dos outros, perder-nos em devaneios e sonhos e acabar-nos no doce mistério de nós mesmos. Um dia para sermos essencialmente tão humanos quanto o próximo.
  • 103. Seis maneiras de se manter atualizado sem perder a cabeça 1. LEMBRE -SE DE QUE o modo pelo qual você reage às notícias não tem a ver só com o conteúdo delas, mas com a maneira através da qual você as recebe. A internet e os canais de notícias 24 horas relatam os fatos de um modo desorientador. É fácil acreditar que as coisas estão cando cada vez piores, quando elas nos fazem nos sentir pior. O meio não é apenas a mensagem, é a intensidade emocional da mensagem. 2. Restrinja o número de vezes em que você vai atrás de notícias. Como Debra Morse, minha amiga no Facebook, disse recentemente: “Lembre- se de que em 1973 costumávamos receber notícias duas vezes por dia: de manhã pelo jornal impresso e pelo noticiário vespertino da TV. E mesmo assim nos livramos de Nixon.” 3. Convença-se de que o mundo não é tão violento quanto parece. Muitos escritores que abordam esse tema — como o famoso psicólogo cognitivo Steven Pinker — mostraram que, apesar de todos os seus horrores, a sociedade é menos violenta do que já foi. “Ainda existe violência, sem dúvidas”, a rma o historiador Yuval Noah Harari. “Vivo no Oriente Médio, portanto sei disso perfeitamente. Mas, em termos comparativos, há menos violência hoje que em qualquer outro momento da história. Atualmente, morre mais gente por comer demais do que como vítima da violência humana, o que é mesmo uma conclusão surpreendente.” 4. Fique perto dos animais. Os animais não humanos são terapêuticos por inúmeros motivos. Um deles é que os animais não têm nada a ver com notícias. Cachorros, gatos, peixes e antílopes não ligam para absolutamente nada. As coisas importantes para nós — política, economia e todas essas coisas variáveis — não têm importância para eles. E mesmo assim a vida deles, como a nossa, continua. Como escreveu A. A. Milne
  • 104. em O ursinho Puff : “Muita gente conversa com os animais. Mas poucas os escutam. Esse é o problema.” 5. Não se preocupe com coisas que você não pode controlar. O noticiário está cheio de coisas em relação às quais você não pode fazer nada. Faça o que estiver ao seu alcance — ajude a conscientizar os outros sobre questões que lhe preocupam, doe o que puder a qualquer causa que o cative e aceite as coisas que você não pode fazer . 6. Lembre-se de que ouvir más notícias não quer dizer que boas coisas não estejam ocorrendo. Elas acontecem em toda parte. Estão transcorrendo neste instante. No mundo todo. Em hospitais, casamentos, escolas, escritórios e maternidades, nos portões de desembarque dos aeroportos, em quartos, em caixas de correio, na rua, no sorriso gentil de um estranho. Um bilhão de maravilhas não vistas da vida cotidiana.
  • 105. Em louvor à positividade MEU VELHO EU, antes de car doente, era cético quanto à positividade, quanto a músicas alegres, pores do sol cor-de-rosa e palavras otimistas de esperança. Mas, quando eu quei doente — quando estava no pior da doença —, minha vida passou a depender do abandono daquele meu lado pessimista. O cinismo tornou-se um luxo para os não suicidas. Eu precisava encontrar a esperança. A coisa com plumas . Minha vida dependia disso. Pode parecer que forço um pouco a barra quando relaciono a cura psicológica à cura social e política, mas se o pessoal é político, o psicológico também o é. O clima político atual parece ser de divisão — uma que é, até certo ponto, alimentada pela internet. Precisamos redescobrir o que temos em comum enquanto seres humanos. Como isso pode acontecer? Bem, uma invasão alienígena seria um meio, mas não podemos car dependendo disso. O problema da política é o problema das tribos. “Quando separa-se por credo, nacionalidade ou tradição, gera-se violência”, ensina o lósofo Jiddu Krishnamurti. Uma coisa que a doença mental me ensinou foi que progresso é uma questão de aceitação. Só é possível mudar uma situação após aceitá-la. É preciso aprender a não se deixar chocar pelo choque. Não entrar em pânico pelo pânico. Mudar o que está ao seu alcance e não car frustrado pelo que não se pode mudar. Não existe panaceia, tampouco utopia; existe apenas amor, bondade e a tentativa de, em meio ao caos, melhorar o que for possível. E manter a mente aberta, bem aberta, em um mundo que tantas vezes quer fechá-la.
  • 106. 8 UM BREVE ENSAIO SOBRE O SONO
  • 107. A guerra do sono ATÉ 1879, QUANDO Thomas Edison criou a primeira lâmpada incandescente viável, toda a iluminação era a gás e óleo. A lâmpada, promovida em peso pela Edison & Swan United Electric Light Company, acendeu, literalmente, o planeta. A lâmpada elétrica era prática — pequena, barata e segura —, emitia a quantidade certa de luz e começou a fazer sucesso nas casas e empresas do mundo inteiro. Finalmente, os seres humanos tinham subjugado a noite. A escuridão — fonte de tantos de nossos medos primitivos — agora podia ser anulada com o acionar de um interruptor. E então, como podíamos manter nossas noites iluminadas até mais tarde, as pessoas começaram a se deitar mais tarde. Isso não preocupou Edison em absoluto. Com efeito, ele via isso como uma coisa inequivocamente boa. Em 1914, Edison — na época considerado um ícone mundial, mesmo estando vivo — declarou que “não há na verdade motivo algum para os homens irem para a cama”. E foi além: achava que dormir fazia mal e que o excesso de sono tornava as pessoas preguiçosas. Acreditava que a lâmpada elétrica era uma espécie de remédio e que a luz arti cial poderia curar pessoas “doentias e ine cientes”. Ele estava errado, é claro. Sem sono não funcionamos direito. Os seres humanos, assim como as aves e as tartarugas marinhas, têm relógios biológicos. Temos o ciclo circadiano, ou seja, nosso corpo funciona de maneiras diferentes em diferentes momentos do dia. O corpo evoluiu para funcionar de modos diversos de noite e de dia. Daqui a 150 mil gerações talvez os seres humanos se adaptem à luz arti cial, mas hoje nosso corpo e nossa mente ainda são o corpo e a mente dos seres humanos que existiam antes que Edison patenteasse a lâmpada elétrica. Em outras palavras, precisamos dormir. Mesmo assim, não estamos dormindo o quanto deveríamos. A Organização Mundial de Saúde — que reconheceu uma perda de sono epidêmica nos países industrializados — recomenda que se durma de sete a nove horas por noite.
  • 108. Mas nem todos fazem isso. Segundo uma pesquisa da American National Sleep Foundation [Fundação Nacional Americana do Sono], americanos, britânicos e japoneses em média dormem bem menos de sete horas por noite enquanto em outros países — como Alemanha e Canadá — a média se aproxima da marca das sete horas. Segundo outra pesquisa, esta da Gallup, hoje se dorme em média uma hora a menos que em 1942. No entanto, a luz arti cial não é o único fator responsável por isso. Especialistas em sono indicam o modo de se trabalhar hoje em dia, bem como o crescimento da sensação de solidão e da ansiedade, que contribuem para nossa vontade de car de pé conversando ou nos distraindo em um mundo 24 horas por dia frenético. Há muitos estímulos para permanecer acordado. Muitos e-mails para responder. Muitos episódios de nossa série preferida para assistir. Muita compra on-line para fazer. Leilões no eBay para acompanhar. Muitas notícias para carmos em dia. Muitas redes sociais para atualizar, espetáculos para ir, livros para ler, possíveis paqueras com quem conversar, ambições para alcançar. Há muita gente — discípulos inadvertidos de Edison — querendo nos manter acordados. Todos nós sabemos que camos mais propensos à tristeza, às preocupações e à irritação quando não dormimos. O sono é essencial para nosso bem-estar. Se não dormimos bem, nosso estado físico e mental está vulnerável a sofrer graves consequências. Enquanto alguns efeitos da privação de sono são discutíveis, outros são fonte de amplo consenso dentro da comunidade médica. Por exemplo, segundo pesquisas e fontes abundantes e convergentes, a privação de sono acarreta: — Debilidade do sistema imune — Risco aumentado de doença coronariana — Risco aumentado de AVC — Risco aumentado de diabetes — Risco aumentado de acidente de carro — Maior incidência de câncer de mama, cólon e próstata — Prejuízo da habilidade de se concentrar — Interferência na memória — Risco aumentado de mal de Alzheimer — Maior probabilidade de ganho de peso
  • 109. — Redução da libido — Aumento no nível de cortisol, o hormônio do estresse — Aumento da probabilidade de sofrer de depressão Como o “cientista do sono” Matthew Walker, da Universidade da Califórnia, declara no livro Por que nós dormimos : “Parece não haver um órgão importante no corpo ou processo no cérebro que não sejam otimizados pelo sono [...] O prejuízo físico e mental causado por uma noite de sono ruim é muito maior do que os causados por uma equivalente falta de alimento ou de exercício.” Dormir é essencial e muito bom. Além disso, o sono é inimigo tradicional do consumismo. Não podemos comprar quando estamos adormecidos. Não podemos trabalhar, ganhar dinheiro ou postar no Instagram. Pouquíssimas empresas, exceto pelos fabricantes de camas, edredons e cortinas blecaute, são capazes de ganhar dinheiro com o sono. Ninguém encontrou ainda um jeito de construir um shopping center no qual se entre através do sono, onde os anunciantes possam comprar espaços de nossos sonhos e nós gastemos dinheiro estando inconscientes. Aos poucos, o sono está se tornando um pouco mais comercializável. Já existem clínicas e institutos particulares do sono, onde se paga por conselhos sobre como dormir melhor. Existem “sleep trackers” [monitores para o sono], que monitoram os movimentos e foram criticados (por exemplo, em um artigo do Guardian de 2018 sobre “clean sleeping” [expressão usada para se referir à priorização do sono]) por serem pouco precisos e só servirem para aumentar a ansiedade em relação ao sono. Mas este ainda continua sendo, em grande medida, um espaço sagrado, distante da distração. É por isso que quase ninguém consegue ir cedo para a cama. E agora, nessa etapa tardia do capitalismo, o sono passou a ser visto não só como algo que atrasa o trabalho, mas como verdadeiro rival dos negócios. O principal executivo da Net ix, Reed Hastings, acredita que o sono — e não a HBO, a Amazon ou qualquer outra prestadora de serviços de streaming — é o maior concorrente de sua empresa. “Sabe como é, pense nisso”, disse ele em um encontro do setor em novembro de 2017, citado na revista Fast Company . “Quando você vê um programa da Net ix e ca viciado nele, vai
  • 110. car acordado até tarde [...] estamos concorrendo com o sono, no limite. E é um bom naco de tempo.” Portanto, essa é a posição em relação ao sono: algo do qual se deve descon ar porque diz respeito a um período em que não estamos conectados, consumindo, pagando. E essa é também nossa atitude em relação ao tempo: algo que não se deve desperdiçar descansando, existindo, dormindo. Somos governados pelo relógio. Pela lâmpada. Pelo brilho da tela do celular. Pela sensação de insatisfação a que somos levados a ter. A de que nada é su ciente. Nossa felicidade está sempre logo ali. Sempre a uma compra, a uma interação ou a um clique de distância. Esperando, brilhando, como a luz no m do túnel que nunca conseguimos alcançar. O problema é que simplesmente não fomos feitos para passar a vida à luz arti cial. Não fomos feitos para acordar ao toque do despertador e para adormecer sob a intensa luz azul do celular. Vivemos em sociedades 24 horas, mas não temos um corpo 24 horas. Alguma coisa tem que mudar.
  • 111. Como dormir em um planeta nervoso EXISTE TODO TIPO de soluções pagas ou tecnológicas. Desde os aparelhos que monitoram o sono a lâmpadas que não emitem luz azul, da hipnoterapia às máscaras de dormir. Mas muitos desses produtos de consumo tentam aumentar nossa ansiedade em relação ao sono. Na verdade, os melhores métodos são simples. O conselho mais consistente dos especialistas recomenda adotar uma rotina, evitar cafeína, nicotina e a ingestão de álcool à noite (assino embaixo de tudo isso), fazer exercícios pela manhã, evitar refeições pesadas à noite, relaxar antes de ir para a cama e pegar luz natural durante o dia. Fazer dez minutos de ioga leve (muito leve) e respirar devagar me ajudaram durante crises de ansiedade, quando dormir era um problema. Mas uma das soluções mais e cazes, ainda que um pouco entediante, é surpreendentemente simples. Segundo o professor Daniel Forger, da Universidade de Michigan, que lidera uma equipe de pesquisadores sobre os hábitos de sono no mundo todo, estamos diante de uma “crise global de sono”, já que a sociedade nos induz a car acordados até tarde. A solução, como ele disse à BBC, é não car na cama até mais tarde que o necessário. É ir para a cama um pouco mais cedo, uma vez que, quanto mais tarde se deita, menos se dorme. Por outro lado, a hora que nos levantamos de manhã faz muito pouca diferença. Mas o simples ato de ir para a cama um pouco mais cedo exige uma mudança cultural. “Se observarmos países onde de fato se está dormindo menos, vou me preocupar menos com despertadores e mais com o que as pessoas fazem à noite — elas estão indo a grandes jantares às 22 horas ou os outros esperam que elas voltem ao escritório?” Outra solução é ser disciplinado quanto ao uso do laptop e do celular, e tentar não os usar na cama, já que a luz azul afeta negativamente a produção de melatonina, o hormônio do sono.
  • 112. Aliás, acabo de perceber que já passa da meia-noite enquanto digito isto. Melhor fechar o laptop. E vou tentar adormecer sem nem checar o celular.
  • 114. Visita a um abrigo para moradores de rua MESMO QUANDO O mundo não está nos aterrorizando de maneira explícita, a velocidade, o ritmo e a alienação da existência moderna podem representar uma espécie de ataque mental difícil de identi car. Às vezes, a vida parece demasiado complicada, demasiado desumanizante, e perdemos de vista o que é importante. Há poucos meses, estive em um abrigo para sem-teto. Ficava em Kingston upon Thames, um próspero subúrbio londrino. Muita gente teria di culdade de imaginar que moradores de rua são uma questão lá. Eu tinha sido convidado para falar sobre livros e saúde mental. O intuito do lugar — o premiado Joel Centre — é maior do que oferecer uma cama à noite. Seu lema é: “Ajudar as pessoas a acreditar em si mesmas.” Um voluntário me disse que a ideia defendida por eles é que “as pessoas que estão aqui precisam de mais do que um lugar para dormir: falta-lhes pertencimento . Pretendemos dar-lhes isso. O problema é a falta de um lar, não a falta de uma casa. E quando você não tem um lar, o que lhe falta vai além de um quarto onde dormir”. Ele contou também que trabalhar ali fez com que percebesse o que as pessoas “realmente precisam na vida — sem todo o supér uo”. Assim, as pessoas que estavam ali, além de ter acesso a uma cama e um armário com chave e acesso a banheiro e máquina de lavar, sentavam-se à mesa com outros hóspedes e faziam uma refeição completa todos os dias. Muitas vezes os hóspedes ajudavam a preparar a refeição, além de participar ativamente da limpeza do abrigo, dos cuidados com o jardim e de oferecer ajuda à comunidade. O abrigo é deles . Eles são parte do abrigo. Depois de falar com eles sobre minha experiência com problemas de saúde mental, comecei a conversar com o homem ao meu lado. Tinha mais ou menos a minha idade. Parecia ter passado por muita coisa, mental e sicamente, mas estava sorrindo. Ele me contou que acabou virando sem-teto porque, quando
  • 115. seu relacionamento terminou, ele entrou em uma depressão cuja existência ele, na época, se recusava a admitir e depois tornou-se dependente de álcool. Declarou que o Joel Centre salvara sua vida. Indicou a direção da porta e disse que “lá fora” a vida não fazia sentido. Ele se perdera nela. Achava o mundo desumano. Ali, no entanto, as coisas eram simples. “Só conversar com as pessoas, sentar-se à mesa com as pessoas, trabalhar para coisas que podem ser vistas.” Foi essa a impressão que tive do lugar. Era como um processo de destilação das coisas das quais as pessoas precisam na vida. E deixava de fora, com rigor, tudo aquilo que prejudicava os hóspedes — o lugar era muito rígido quanto a bebida, drogas etc. Tinham pensado muito bem no que deixar entrar e no que deixar de fora. Embora a maior parte das pessoas esteja em uma situação melhor que os hóspedes do Joel Centre, o lema deles é bom para ser adotado. E aparentemente simples. Valorizar as coisas que o façam se sentir bem, cortar o que o faz se sentir mal e deixar as pessoas conectadas de fato com o mundo a seu redor. Creio que esse seja o maior dos paradoxos ao se tratar do mundo moderno. Estamos todos conectados uns aos outros, mas muitas vezes nos sentimos desligados. O peso e a complexidade crescentes da vida moderna podem isolar os indivíduos. Acrescente-se a isso o fato de que nem sempre sabemos exatamente o que nos faz sentir sozinhos ou isolados. Pode ser difícil descobrir quais são os problemas. É como tentar sozinho abrir um iPhone para consertá-lo. Às vezes parece que a sociedade funciona como a Apple, como se não quisesse que pegássemos uma chave de fenda e olhássemos o interior do aparelho para ver por conta própria qual é o problema. Mas isso é o que precisamos saber. Porque muitas vezes identi car o problema, estar consciente dele, é a solução.
  • 116. Multidões solitárias O PARADOXO DA vida moderna é: nunca estivemos mais conectados e nunca estivemos tão sozinhos. O carro substituiu o ônibus. O home of ce (ou o desemprego) substituiu o chão da fábrica e, cada vez mais, o escritório. A TV substituiu a sala de espetáculo. A Net ix está se tornando o novo cinema. As redes sociais são o encontro com amigos no bar. O Twitter substituiu a hora do cafezinho. E o individualismo substituiu o coletivismo e a comunidade. Temos cada vez menos conversas cara a cara e mais interações com avatares. Os seres humanos são criaturas sociais. Somos, como diz George Monbiot, “as abelhas mamíferas”. Mas nossas colmeias mudaram de maneira radical. Venho notando, ao longo dos anos, que o número de meus amigos virtuais está aumentando enquanto o de amigos que vejo na vida real está diminuindo. Decidi mudar isso. Estou me esforçando para sair e me encontrar com amigos pelo menos uma vez por semana, e isso está fazendo com que eu me sinta melhor. Não tenho a nostalgia do vinil ou dos CDs, mas tenho saudade do contato cara a cara. Não do contato pelo Facetime. Não do contato pelo Skype. Mas conversar realmente com uma pessoa, faça chuva ou faça sol, sem nada entre nós além do ar. Em casa, estou tentando deixar de lado o laptop e conversar com meus lhos para eles não crescerem achando que são menos importantes que um MacBook Pro. Estou tentando não deixar de ver amigos só porque não quero me dar o trabalho. E isso exige um esforço. É di cílimo. Há dias em que penso que seria mais fácil convencer a Coreia do Norte a desistir de seu programa nuclear do que me convencer a não entrar nas redes sociais dezessete vezes antes do café da manhã. A socialização on-line é fácil . É à prova de chuva e sol . Nunca exige um táxi ou uma camisa bem-passada. E às vezes é uma maravilha. Com frequência, é uma maravilha.
  • 117. Mas lá bem no fundo, bem no fundo, nos subterrâneos da minha alma, eu sei que o ambiente empresarial sem cheiros, com luz arti cial, digitalizado e divisionista não pode satisfazer todas as minhas necessidades, assim como uma refeição para viagem não substitui o puro prazer de comer em um bom restaurante. E eu — uma pessoa cuja ansiedade já chegou à agorafobia — me obrigo cada vez mais a passar mais tempo nessa coisa confusa e tempestuosa que às vezes chamamos, romanticamente, de mundo real .
  • 118. Como car sozinho VOCÊ JÁ OUVIU alguém que tem lhos reclamando da constante necessidade de distrair as crianças? Você sabe como é. “Quando eu era menino, podia car sentado no banco de trás do carro olhando as nuvens e a grama durante 17 horas e cava superfeliz. Agora nossa pequena Misha não ca cinco segundos no carro sem assistir a Alvin e os esquilos ou concentrada em joguinhos eletrônicos ou tirando sel es com ltro de unicórnio...” Esse tipo de coisa. Bem, há uma verdade óbvia nisso. Quanto mais estímulo se recebe, mais fácil ca se sentir entediado. E esse é outro paradoxo. Em teoria, nunca foi tão fácil carmos sozinhos. Sempre há alguém com quem se possa conversar pela internet. Se estamos distantes de nossos familiares ou amigos, podemos falar com eles e vê-los pelo Skype. Mas a solidão é um sentimento como outro qualquer. Quando sofri de depressão, tinha a sorte de contar com pessoas que me amavam ao meu redor. Mas nunca me senti tão sozinho. Acho que a escritora americana Edith Wharton foi a mais sábia das pessoas no que se refere à solidão. Ela acreditava que o remédio não era estar sempre acompanhado, mas encontrar um meio de car satisfeito com a própria companhia. Não ser antissocial, mas não ter medo da própria presença desacompanhada. Ela achava que a cura para a infelicidade era “decorar tão bem nossa casa interior a ponto de nos sentirmos bem, felizes por receber quem quiser chegar e car, mas igualmente felizes quando estar sozinho for inevitável”.
  • 120. Uma sessão de terapia no ano 2049 TERAPEUTA ROBÔ : ENTÃO , qual é o problema? MEU FILHO : Bem, acho que tem a ver com meus pais. TERAPEUTA ROBÔ : É mesmo? MEU FILHO : Com meu pai, para ser mais especí co. TERAPEUTA ROBÔ : O que havia de errado com ele? MEU FILHO : Ele cava o tempo todo no celular. Eu me sentia como se ele se importasse mais com o celular do que comigo. TERAPEUTA ROBÔ : Tenho certeza de que não era bem assim. Muitas pessoas da geração dele não sabiam das consequências do uso do celular. Não sabiam que era tão viciante. Você precisa lembrar que isso era relativamente novo naquela época. E todo mundo fazia a mesma coisa. MEU FILHO : Bem, isso me deixou com questões mal resolvidas. Eu pensava: por que ele não me acha tão interessante quanto o Twitter? Por que ele não prefere olhar para mim em vez de para a tela do celular? Se pelo menos eu não tivesse a impressão de que precisava distraí-lo para conseguir sua atenção... Isso aconteceu antes da revolução de 2030, é claro. TERAPEUTA ROBÔ : Sei... Onde seu pai está agora? MEU FILHO : Ah, morreu em 2027. Foi atropelado por um carro sem motorista enquanto procurava um GIF engraçado. TERAPEUTA ROBÔ : Que tristeza! E o que você vem fazendo desde então? MEU FILHO : Investi em um pai robô. Dei uma olhada em todas as opções de hologramas, mas queria um pai que eu pudesse abraçar. E programei-o para nunca checar suas noti cações. Ele sempre está presente quando quero. TERAPEUTA ROBÔ : É ótimo ouvir isso.
  • 121. Como ter um celular e continuar funcionando como um ser humano 1. NÃO PENSE QUE precisa estar sempre disponível. Nos tempos nem tão remotos das cartas e do telefone xo, entrar em contato com uma pessoa demorava, nem sempre dava certo e exigia um esforço. Na era do WhatsApp e do Messenger, é grátis, fácil e instantâneo. A contrapartida dessa prontidão é a expectativa de que estejamos sempre disponíveis. Para atender ao telefone. Para retornar as mensagens de texto. Para responder e-mails. Para atualizar as redes sociais. Mas podemos escolher não sentir essa obrigação. Às vezes, podemos apenas deixar os outros esperando . Podemos deixar nossas redes sociais desatualizadas. E se a amizade for verdadeira, eles vão compreender que precisamos dar um tempo. E se não... por que se incomodar em responder? 2. Desative as noti cações. Isso é indispensável. É o que mantém (mais ou menos) minha sanidade. Todas as noti cações, todas mesmo. Você não precisa de nenhuma delas. Recupere o controle. 3. Algumas vezes por dia, que longe do celular. Tudo bem, não sou bom nisso. Mas estou melhorando. Ninguém precisa do telefone o tempo inteiro. Não precisamos dele ao lado da cama. Não precisamos dele quando estamos comendo em casa. Não precisamos deles ao sair para correr. Uma coisa que estou fazendo agora: saio para uma caminhada sem o celular. Sei que pode parecer ridículo mencionar isso como um grande progresso, mas no meu caso foi. É como fazer exercício. Exige esforço. 4. Não cheque a tela do celular a cada dois minutos para ver se há novas mensagens de texto. Tente sentir esse impulso de checar sem sucumbir a ele. 5. Não deixe que sua ansiedade dependa da carga de bateria que resta no celular.
  • 122. 6. Não xingue o celular. Não implore ao celular. Não negocie com o celular. Não jogue longe o celular. Ele é indiferente a seus sentimentos. Se ele car sem sinal ou sem bateria, não é porque odeia você. É porque é um objeto inanimado. Em suma, ele é um telefone. 7. Não deixe o celular ao lado da cama. Aliás, isso não é uma crítica. Muita gente dorme perto do celular porque o usa como despertador. Muitas vezes durmo com o celular na mesa de cabeceira. Meus pais dormem com os deles na mesa de cabeceira. Todo mundo que conheço leva o celular para perto da cama. Talvez um dia nossas camas sejam os nossos celulares. Mas realmente durmo melhor sem o celular ao lado. Sabe como é, se ele estiver em outro cômodo, ou só por estar em outra parte do quarto. Sei que isso pode parecer impraticável. Mas é bom ter um objetivo que deseja alcançar. Um sonho do qual correr atrás. Fantasiar sobre o dia em que sejamos fortes o bastante para não precisar nunca ter o telefone ao lado da cama. Como nos velhos tempos. Século XIX. Século XX. 2006. 8. Pratique o minimalismo quando se trata de aplicativos. Um excesso de aplicativos e opções aumenta seu leque de possibilidades, mas também o estresse por uso do telefone. Oferecem-nos uma quantidade quase in nita de coisas para baixar em nossos celulares. Porém mais opções levam a mais decisões e a mais estresse. Você nasceu sem qualquer aplicativo em seu celular. Ei! Sabe o que mais? Você nasceu sem qualquer telefone. E ainda assim a vida era bela. 9. Não tente fazer tudo ao mesmo tempo. Temos celulares com mil funções, desde ler mapas até indicar como a nar um violão, e é tentador imaginar que podemos fazer tantas coisas, todas ao mesmo tempo. Por exemplo, quando eu estava escrevendo sobre este ponto, tive de fazer um esforço consciente para parar de checar e-mails, mensagens de texto, redes sociais. Foi preciso empenho. Segundo o neurocientista Daniel Levitin, não fomos feitos para o volume de tarefas simultâneas que a era da internet nos incentiva a desempenhar. “Embora achemos que estamos fazendo muita coisa, na verdade as tarefas simultâneas nos tornam comprovadamente menos e cientes”, diz ele em A mente organizada: como pensar com clareza na era da sobrecarga de informação . O desempenho de diferentes atividades ao mesmo tempo cria um circuito de vício em dopamina ao recompensar o cérebro pela desatenção. Também pode aumentar o estresse e baixar o QI. “Em vez de ganhar a grande
  • 123. recompensa que deriva do esforço sustentado e concentrado, ganhamos recompensas vazias por desempenhar mil tare nhas adocicadas”, conclui Levitin. 10. Aceitar a incerteza. A tentação de olhar o celular deve-se à incerteza. É isso o que torna esse hábito tão viciante. Você quer que alguém responda a sua mensagem de texto, mas não sabe se a pessoa respondeu. Quer veri car. Quer ver a possibilidade e o mistério dos três pontinhos dançando esperançosos. Você quer saber a reação que sua foto ou atualização de status tiveram. Mas por que precisamos saber disso neste instante? Por que não podemos esperar até a hora de descansar/ o m da reunião/ depois da caminhada/ após o programa de TV/ o término da refeição/ o nal do devaneio? Precisamos mesmo checar o celular durante reuniões ou em funerais? Talvez não zéssemos isso se compreendêssemos que essa ação nunca é inteiramente satisfatória. Porque a incerteza não tem m. Não existe a última olhada para o telefone. Pense em todas as vezes que você consultou o celular ontem. Será que precisava mesmo tantas vezes? Eu, com certeza, não precisava ter feito isso. Sem sombra de dúvida, melhorei bastante nesse aspecto, mas ainda tenho um longo caminho pela frente. Quantas vezes por dia você pega o telefone? Ou olha para ele? É difícil manter a conta. A resposta deve se aproximar das centenas. E me pergunto: se eu olhasse para o celular, digamos, cinco vezes por dia, o mundo iria acabar?
  • 124. Brilho EU ERA OBCECADO por janelas iluminadas e postes quando era menino. No banco traseiro do carro, eu olhava para a rua e via janelas com um brilho cor- de-rosa atravessando cortinas vermelhas, como o peito do ET, e me perguntava sobre como era a vida lá dentro. Existe algo no brilho da luz arti cial que me fascina. Quando eu tinha 8 anos — em 1983 —, meus pais tinham um velho guia turístico chamado Discover America que tinha uma fotogra a de página dupla da Strip de Las Vegas tirada à noite. — Quero ir lá — anunciei para minha mãe, para seu desagrado. Ela nunca me levou. — É tarde — comento com Andrea. Lemos um pouco, depois apagamos a luz, sempre mais tarde do que deveríamos. Todas as vezes, imagino a luz quadrada de nossa janela se tornando preta para alguém que caminha na rua. — Boa noite — diz Andrea. — Boa noite. Deve ser um pouco depois da meia-noite e o quarto estaria escuro se não fosse pelo brilho de um celular. — Matt, você vai dormir? — Tentei. Minha cabeça está a mil. — Você devia sair do celular. — É que o zumbido no ouvido está me incomodando. O celular me distrai. — É, mas ele não está me deixando dormir. — Está bem, desculpe. Vou largar o aparelho. — Você sabe o que vai acontecer se tiver muitas noites mal dormidas. — Eu sei. Boa noite... Fecho os olhos, mas minha cabeça ainda está a toda com milhares de preocupações, deixando minha atenção ligada como os sinais luminosos de Las Vegas, estragando meus sonhos e esperando desaparecer à luz do dia.
  • 126. Como sair da cama 1. ACORDE . 2. Pegue o celular. 3. Fique olhando para o celular por 72 minutos. 4. Suspire. 5. Saia da cama. Como alternativa, de vez em quando, tente pular os passos 2 a 4.
  • 127. Um problema em seu bolso ENQUANTO ESCREVIA ESTE livro, no início de 2018, o jornal The Observer me pediu para contribuir com um artigo em que vários escritores dirigiam perguntas à romancista e ensaísta Zadie Smith. Aproveitei a oportunidade, até porque tinha visto Zadie Smith em poucas reuniões literárias logo após ter sido publicado, e quei paralisado e mudo de ansiedade, sem ousar me aproximar e falar com ela. Tinha lido a respeito do ceticismo dela em relação às redes sociais e como ela dava importância a seu “direito de estar errada”, e então perguntei-lhe: — Você se preocupa com o que as redes sociais estão fazendo à sociedade? Ela não mediu as palavras e começou criticando os celulares. — Não suporto celulares e não os quero em minha vida de jeito nenhum. Eles me deixam ansiosa, deprimida, morta por dentro, fora dos eixos. Mas apoio plenamente qualquer pessoa que ache que eles são ótimos e os considere uma grande vantagem para sua existência. Embora se de na como uma “luddista que se abstém”, Zadie Smith acha que está na hora de pensar em como estamos usando essa tecnologia. “O que esse aparelhinho em seu bolso está fazendo a seus relacionamentos mais íntimos?”, pergunta. “A seu comportamento como cidadão que faz parte de uma sociedade? Talvez nada! Talvez tudo esteja totalmente tranquilo. Mas e se não estiver? [...] Precisamos deles em nosso travesseiro à noite? Nossos lhos de 7 anos precisam de celulares? Desejamos transmitir nossa própria dependência e obsessão? Tudo isso deve ser levado em conta. Não podemos apenas deixar que as empresas de tecnologia decidam por nós.” Uso meu celular bem mais do que Zadie Smith, mas, apesar disso — ou por causa disso —, sinto muitas das mesmas ansiedades que ela. E há indícios de que até mesmo os que trabalham para empresas de tecnologia estão preocupados, o que quer dizer que nós devíamos estar ainda mais preocupados que eles com para onde essas poderosíssimas empresas estão nos levando. Por
  • 128. exemplo, sabe-se — pelo menos desde uma reportagem de 2011 do New York Times — que muitos funcionários da Apple e da Yahoo! preferem mandar os lhos a escolas que evitam tecnologia, como a Escola Waldorf da Península, em Los Altos. Há também muita gente do meio tecnológico que se manifestou para denunciar coisas que ajudou a criar. O cara que inventou o botão “curtir” do Facebook, Justin Rosenstein, disse que aquela tecnologia é tão viciante que o telefone dele tem um dispositivo de controle parental para impedi-lo de baixar aplicativos e restringir o uso de redes sociais. Além disso, vale lembrar que a função “curtir” é a que ajuda quem trabalha com data mining [mineração de dados] a entender quem somos. Nossas curtidas revelam tudo sobre nós, desde a orientação sexual a nossas preferências políticas, e podem ser colhidas para aumentar a in uência que outros têm sobre nós, como se viu no escândalo da Cambridge Analytica de 2018, quando se descobriu que 50 milhões de usuários do Facebook tiveram seus dados acessados de maneira indevida pela empresa britânica que ajuda empresas e grupos políticos a “mudar o comportamento do público”. “É muito comum”, disse Rosenstein ao Guardian em 2017, como um dr. Frankenstein de nossos dias, “que os seres humanos criem coisas com as melhores das intenções e que elas tenham consequências negativas imprevistas [...] Todas as pessoas são submetidas a diversionismo, o tempo todo.” Dois dos fundadores do Twitter manifestaram pesar semelhante. Ev Williams — que deixou o cargo de CEO em 2010 — disse ao New York Times em 2017 que estava insatisfeito com o modo como o Twitter tinha ajudado Donald Trump a se tornar presidente. “Foi uma coisa muito ruim, o papel do Twitter naquilo.” O também fundador do Twitter, Biz Stone, tem outros arrependimentos. Em uma entrevista concedida à revista Inc., ele declarou que a grande falha cometida pelo Twitter foi permitir que estranhos tagueassem pessoas em suas postagens, criando um ambiente propício ao bullying . Outro funcionário, segundo a agência de notícias Buzzfeed, chamou o Twitter de “prato cheio para pessoas escrotas”. E, no começo de 2018, Tim Cook — CEO da Apple — declarou a um grupo de estudantes em Essex, Inglaterra, que em sua opinião crianças (como seu sobrinho) não deveriam ter acesso a redes sociais, ou usar em excesso
  • 129. qualquer tecnologia que seja, o que mostra que essas preocupações não são apenas de “luddistas”. Com efeito, um grupo de ex-funcionários de empresas de tecnologia foi ainda mais longe e fundou o Center for Humane Technology [Centro de Tecnologia Humana], voltado para “realinhar a tecnologia com os grandes interesses da humanidade” e reverter a “crise digital de atenção”. Agora, por m, existem muitos casos de gente da área tecnológica reunindo-se para discutir essas questões. Em 2018, por exemplo, uma conferência chamada “Truth About Tech” [A verdade sobre a tecnologia], realizada em Washington, contou com a participação de Tristan Harris — ex-“consultor de ética” e atual crítico da tecnologia — e de um dos primeiros investidores no Facebook, Roger McNamee, além de políticos e membros de grupos lobistas como o Common Sense Media [Mídia do Bom Senso], que combate o vício dos jovens em tecnologia. Diversas preocupações foram levantadas, como a maneira como o Gmail do Google “sequestra” a mente das pessoas, ou como o Snapchat explora amizades entre adolescentes para alimentar o vício em tecnologia usando funcionalidades como os streaks , com os quais os usuários podem ver quantas interações com os amigos tiveram em um dia. Segundo o jornal The Guardian , Harris comparou o mundo tecnológico ao Velho Oeste quanto à possibilidade de “construir um cassino onde você quiser”, e McNamee comparou-o às indústrias de tabaco e de alimentos do passado, quando os cigarros eram anunciados como saudáveis e os fabricantes de comida processada não mencionavam que seus produtos continham muito sal. A diferença é que, no caso do vício em cigarro, este não tem informação sobre nós. Os cigarros não colhem nossos dados. Eles não podem nos conhecer melhor que nossa família. A internet, é claro, pode saber tudo sobre nós. Pode saber quem são nossos amigos, pode saber de que tipo de música gostamos, nossas preocupações com a saúde, nossa vida amorosa e nossas preferências políticas — e as empresas de internet podem continuar usando essas informações para tornar seus produtos ainda mais viciantes. E, atualmente, advertem os entendidos em tecnologia, não há muita regulamentação que os possa deter. Uma quantidade cada vez maior de pesquisas reforça essas preocupações. Há estudos que mostram que a tecnologia contribui para um estado de “atenção parcial continuada” e como isso pode ser viciante. Uma pesquisa de 2017 feita pela Escola de Administração McCombs, da Universidade do Texas,
  • 130. concluiu que a simples presença de um smartphone pode reduzir a “capacidade cognitiva” de uma pessoa. Enquanto escrevo este livro, “vício em celular” ou “vício em redes sociais” ainda não tinham sido reconhecidos como distúrbios psicológicos, embora a Organização Mundial de Saúde já classi que o vício em videogames como um transtorno mental, o que mostra que existe um consenso cada vez maior sobre os efeitos negativos da tecnologia sobre nossa saúde mental. Mas esse tipo de percepção ainda tem um longo caminho pela frente e obviamente avança mais devagar que a desconcertante velocidade das mudanças tecnológicas. Mas a pressão aumenta. Em 2018, a CNN anunciou que a poderosa Unilever ameaçou retirar sua publicidade do Facebook e do Google a menos que eles combatessem problemas tóxicos — entre eles a preocupação com a privacidade, com conteúdo ofensivo e com a falta de proteção para as crianças —, o que está “erodindo a con ança social, fazendo mal aos usuários e solapando democracias”. Há uma consciência cada vez maior de que o grande poder das empresas de internet deve ser acompanhado, ao estilo do Homem- Aranha, de um grande senso de responsabilidade. No entanto, cabe duvidar de até que ponto elas assumirão essa responsabilidade sem pressão social e nanceira de verdade, como as que estamos começando a ver. Assim como acontece com as redes de lanchonetes de fast-food e com a indústria de tabaco e a armamentista, as empresas que obtêm lucro de algum produto ou serviço propriamente ditos são as que mais resistem a ver seus possíveis problemas. Assim, quando as pessoas de dentro dessas empresas estão entre as que fazem soar o alarme, é bom prestar-lhes atenção.
  • 131. 11 O DETETIVE DO DESESPERO “Com estes fragmentos escorei minhas ruínas.” — T. S. Eliot, Terra desolada
  • 132. Consciência QUANDO ADOECI PELA primeira vez, aos 24 anos — quando “desmoronei” —, o mundo tornou-se mais nítido. Dolorosamente nítido. De repente, as sombras ganharam peso, as nuvens caram mais cinzentas, a música mais alta. Passei a car mais alerta a tudo o que me tinha sido indiferente. Distingui as coisas do mundo moderno que faziam sentir-me pior. Coisas que talvez zessem qualquer um se sentir pior. Senti a pressão extenuante da publicidade, a loucura frenética das multidões e do trânsito, a natureza sufocante da expectativa social. O mal-estar tem muito a ensinar ao bem-estar. Mas, quando co bem, esqueço essas coisas. O segredo está em se apegar a esse saber. Transformar a recuperação em prevenção. Viver como vivo quando estou doente, só que sem estar doente.
  • 133. Esperança ENTRE OS FATORES que afetam nossa saúde mental alguns são genéticos, devidos às conexões cerebrais ou à química cerebral de uma pessoa. Mas não há muito a se fazer quanto ao que está em nosso código genético. O mais interessante são os aspectos transitórios, os gatilhos que mudam com o tempo e de acordo com cada sociedade. Essas são as coisas sobre as quais podemos fazer alguma coisa. É claro que outras épocas tiveram suas próprias crises de saúde mental. Mas o fato de que cada uma tenha lutado com seus problemas especí cos não deve nos tornar complacentes para com nossa própria cultura. E o melhor de tudo — aquilo que liberta — é que, se nossa ansiedade é até certo ponto produto da cultura, ela pode ser mudada se mudarmos nossa reação a essa cultura . Na verdade, nem precisamos mudar deliberadamente. Isso pode acontecer pelo simples fato de estarmos conscientes do que se passa. No que se refere a nossa mente, a consciência é muitas vezes a própria solução.
  • 134. O detetive do desespero ACHO QUE O mundo sempre vai ser uma confusão. E que eu vou sempre ser uma confusão. Talvez você seja uma confusão também. Mas — e isso para mim é o que faz toda a diferença — acredito que seja possível ser uma confusão feliz. Ou, pelo menos, uma confusão menos infeliz. Uma confusão com que possamos lidar . “Em todo caos existe um cosmos”, disse Carl Jung, “em toda desordem, uma ordem secreta.” Na verdade, está tudo bem com a confusão. Como você vai perceber agora, estou tentando escrever sobre a confusão do mundo e a confusão das mentes escrevendo um livro deliberadamente confuso. Ou pelo menos essa é minha desculpa. Fragmentos que espero reunir formando uma espécie de todo. Espero que tudo isso faça sentido . Ou, se não zer, espero que não faça sentido de um modo que incentive você a pensar. O problema não é que o mundo seja uma confusão, mas que esperamos que ele não o seja. Incutiram-nos a ideia de que controlamos tudo. Que podemos ir a qualquer parte e ser qualquer coisa. Que, graças ao livre-arbítrio em um mundo de escolhas, somos capazes de escolher não apenas o que visitar na internet, a que assistir pela TV ou qual receita seguir entre bilhões de receitas que encontramos on-line, mas também o que sentir. Então, quando não sentimos o que queremos ou o que esperamos sentir, as coisas tornam-se confusas e desanimadoras. Por que não consigo ser feliz tendo tantas escolhas? E por que co triste e preocupado quando não tenho motivo para car triste e preocupado? E a verdade é que, quando adoeci pela primeira vez, bem no comecinho, eu nem sequer sabia o que havia de errado comigo, e menos ainda o que poderia ter provocado aquilo. Eu não compreendia que inferno era aquele do qual queria escapar, só queria escapar. Se sua perna está em chamas, você não sabe qual é a temperatura do fogo. Você só sabe que dói.
  • 135. Mais tarde, os médicos deram rótulos. “Transtorno de pânico”, “transtorno de ansiedade generalizada” e “depressão”. Esses rótulos eram preocupantes, mas também importantes porque me davam algo com que lidar. Eles zeram com que eu deixasse de me sentir um alienígena. Eu era um ser humano com doenças humanas, que outros seres humanos haviam tido — milhões e milhões de outros seres humanos — e a maior parte deles superou a doença ou deu um jeito de conviver com ela. Mesmo depois de saber os nomes das doenças que tinha, eu achava que todas elas vinham de dentro de mim. Apenas estavam ali , da mesma forma que o Grand Canyon está ali — um componente de nitivo da minha geogra a psíquica em relação ao qual eu nada podia fazer. Nunca mais vou conseguir apreciar música. Ou comida. Ou livros. Ou uma conversa. Ou o sol. Ou lmes. Ou férias. Ou qualquer outra coisa. Até o cerne do meu ser havia apodrecido, como uma... como uma... como uma (nunca há metáforas su cientes para a depressão) árvore doente. Uma árvore doente à qual a namorada e os pais dizem sem parar: “Você vai car bem. Vamos dar um jeito de você car bem.” E, claro, havia todos aqueles remédios. Experimentei diazepam que um médico me prescreveu. Experimentei os vários remédios dados por um homeopata. Experimentei as recomendações de amigos e parentes. Experimentei erva-de-são-joão e óleo de lavanda. Experimentei soníferos. Liguei para números de apoio psicológico. E aí parei de tentar. Tive um período horrível com o diazepam e outro pior ao deixar o diazepam. Provavelmente eu deveria ter tentado tomar outra medicação, mas — julgue- me se puder — não z isso. Eu não estava pensando de maneira racional. Para complicar a situação, estava assustado — quero dizer, mais apavorado do que jamais estive — de experimentar novos remédios ou procurar mais ajuda quando nada tinha dado certo. Quando mencionei isso em Razões para continuar vivo , algumas pessoas acharam que eu estava me opondo publicamente ao uso de remédios, portanto vou dizer aqui, da forma mais clara possível, que não sou contra os remédios. Sim, indústria farmacêutica tem suas muitas questões, e a pesquisa cientí ca ainda está em andamento (o que é característico da própria natureza da pesquisa cientí ca), mas sei que a medicação já salvou muitas vidas. Sei de gente que a rma não poder sobreviver sem eles. Acredito também que deve haver alguma substância que provavelmente teria me ajudado, mas não a
  • 136. encontrei. Não acredito que os remédios sejam uma solução de nitiva . Acredito também que alguns remédios prescritos de forma equivocada podem fazer certas pessoas se sentirem pior, mas isso vale para tudo. Você pode tomar o remédio errado para a artrite ou para um problema de coração. E todo mundo sabe que medicação não é a única resposta. Raramente é. Se você tiver artrite, ioga, natação e luz do sol podem ajudar, assim como os remédios também. Não se trata de ou isto ou aquilo. Cada um tem de encontrar o que funciona para si. Além disso, no meu caso, estava traumatizado e não conseguia sequer pensar direito. Naquela época, tentar soluções que não davam certo só piorava as coisas. Como eu já disse, devia haver de fato um tratamento que fosse o adequado para mim — terapia ou medicação —, mas não tive a sorte de encontrá-lo. Não tive coragem de procurá-lo. O sofrimento de continuar vivo era o máximo que eu podia suportar. Não era capaz de me arriscar nem um pouquinho a mais, essa era minha lógica. Cada dia era uma questão de vida ou morte. Não porque o sofrimento não fosse o bastante para que eu continuasse indo ao médico, mas porque era demais. Ao escrever isso, percebo o quanto parece ridículo, mas era a minha realidade da época. Tudo o que tentara para combater o turbilhão que havia em minha cabeça tinha falhado. E, para ser franco, os médicos com os quais me deparei não foram lá muito compreensivos. Acredito de verdade que as coisas mudaram muito depois da virada do século. En m, lá estava eu, naquele buraco, tentando desesperadamente encontrar um caminho para escapar daquilo quando todas as vias de fuga pareciam estar se fechando.
  • 137. Nota para o eu MANTENHA A CALMA. Vá em frente. Continue humano. Continue insistindo. Continue desejando. Continue se aperfeiçoando. Continue olhando pela janela. Mantenha o foco. Continue livre. Continue ignorando os trolls . Continue ignorando pop-ups , de publicidade ou de pensamentos. Continue disposto a rir de si mesmo. Continue curioso. Continue el à verdade. Continue amando. Continue se permitindo o privilégio humano que é cometer erros. Mantenha delimitado um espaço relativo a quem você seja e erga uma cerca em volta dele. Continue lendo. Continue escrevendo. Mantenha o celular à distância. Não perca a cabeça quando todos estão perdendo a deles. Continue respirando. Continue inalando a vida. Não se esqueça de até onde o estresse pode levar. (Não se esqueça daquele dia no shopping.)
  • 138. Medo e shopping EU ESTAVA EM um shopping center, chorando. Eu, aos 24 anos, cercado de um monte de gente, lojas, letreiros luminosos, incapaz de lidar com a situação. — Não — murmurei, perdendo o ritmo da respiração. — Não consigo fazer isso. — Matt? Aquilo era um teste. Acompanhar Andrea, na época minha namorada, a essa cidade perto da casa dos pais dela — Newcastle, no norte da Inglaterra — e sair para fazer algumas compras. Eu não tinha ideia do que íamos comprar. Estava focado apenas em sobreviver à experiência sem ter um ataque de pânico. Ser como qualquer pessoa normal. — Desculpe, eu não consigo, eu... Lá estava eu. Patético. Um rapaz. Em um mundo que me dizia — em toda parte, desde os programas de TV à quadra de esportes da escola — que ser homem é ser forte e durão e sofrer calado , um mundo que nos mostrava que ser jovem era se divertir e ser livre na terra viva e brilhante da juventude. E ali estava eu, no que deveria ser o ápice da minha vida, chorando por nada em um shopping center . Bem, na verdade não era por nada. Era por causa do sofrimento. Do terror. Um sofrimento e um terror que eu não conhecia até cerca de um mês antes, quando estava a trabalho na Espanha e tive um ataque de pânico que começou e não parava e se misturou com uma terrível, indescritível sensação de terror e mal-estar e desespero que penetrava por minha pele e meus ossos. O desespero tinha sido tão grande que quase me tirou a vida. Não havia escapatória. Por mais assustadora que fosse a morte, esse terror vivo parecia pior. Todo mundo tem um limite — um ponto a partir do qual não aguenta mais —, e, praticamente do nada, eu tinha chegado ao meu.
  • 139. — Está tudo bem — dizia Andrea, segurando minha mão. Mais mãe ou enfermeira do que namorada naquela hora. — Não, não está. Desculpe. Desculpe. — Você tomou o diazepam hoje de manhã? — Tomei, mas não está fazendo efeito. — Vai car tudo bem. É só pânico. Só pânico . A preocupação no olhar dela só piorava as coisas. Andrea já tinha passado por tanta coisa por minha causa. Eu só precisava andar. Andar, conversar e respirar como um ser humano normal. Não era preciso ser um gênio. Mas naquele momento parecia muito a se pedir. — Não consigo. A expressão de Andrea se tornou mais severa. Ela cerrou a mandíbula e comprimiu os lábios. Até ela tinha seus limites. Estava zangada comigo e por mim . — Você consegue. — Não, Andi, não consigo mesmo, porra. Você não entende. Estávamos atraindo a atenção das pessoas, que nos lançavam olhares enviesados ao passarem carregadas de sacolas de compras. — Respire. Respire devagar. Tentei respirar fundo, mas o ar mal passava pela minha garganta. — Eu... eu... eu... Estou sem ar. Naquele dia, mais cedo, eu não estava me sentindo tão mal. Só um leve mas inevitável desespero. No ônibus a caminho da cidade, o medo foi tomando conta de mim, como se aos poucos eu estivesse me enrolando em um cobertor desconfortável. Agora meu corpo todo estava dominado pelo terror. Eu estava paralisado ali, diante da Vision Express, cercado de vida, mas sozinho. Comecei a engolir. Tentando me controlar. Engolir de maneira compulsiva tinha sido um de meus sintomas mais brandos de TOC. Daquela vez eu estava mesmo desejando ter aquele sintoma só para me distrair de algo pior. Mas não adiantou. Não havia esperança. Não havia escapatória. A vida era para as outras pessoas. Eu tinha segurado o mundo, e agora ele estava desmoronando. E a voz de Andrea tornou-se mais distante, a última esperança, tentando alcançar a pessoa
  • 140. que eu já não era mais.
  • 141. Você só tem uma mente QUANDO PENSO NA experiência que tive naquele dia no shopping — uma entre as muitas experiências parecidas que às vezes irrompem em meu cérebro como um ashback do Vietnã só que sem a violência —, tento dissecá-la. Vivo de novo o passado como forma de aceitá-lo e aprender com ele. Não apenas aprender a não ter ataques de pânico, mas aprender como minha mente e o mundo se cruzam e o que têm em comum e também a ser menos estressado em geral. O primeiro problema foi o que aconteceu na minha primeira experiência com ansiedade e depressão. Quando você tem uma crise de doença mental pela primeira vez, imagina que a vida vai ser daquele jeito para sempre. Vai ter depressão com ataques de pânico, e as coisas vão permanecer assim. E isso é que era apavorante. A claustrofobia que há nisso. Parecia não haver saída. O segundo problema foi que eu ainda não tinha ideia de como lidar com ataques de pânico. Ia levar anos para aprender. E o terceiro problema era que eu não sabia como os aspectos externos e internos daquilo estavam ligados. Eu não sabia relacionar “o que você sente” com “onde você está”. Não sabia que o mundo das lojas e das vendas e da publicidade nem sempre faz bem à cabeça. Nos dois últimos anos realizaram- se muitas pesquisas acerca da in uência do ambiente sobre nossa saúde. Uma pesquisa de 2013 encomendada pela instituição bene cente focada na saúde mental Mind e conduzida pela Universidade de Essex comparou a experiência de caminhar em um shopping center com a de uma “caminhada ecológica” pelo parque Belhus Woods em Essex. Embora uma caminhada faça reconhecidamente bem à cabeça, em um espaço fechado ou ao ar livre, 44% das pessoas que caminharam em um shopping center disseram sentir uma queda da autoestima. Em contrapartida, quase todas (90%) as que deram um passeio pela oresta sentiram um aumento na autoestima. Há um número cada vez maior de pesquisas como essa, e voltarei ao assunto mais adiante. Mas naquela
  • 142. época eu não sabia nada daquilo. Na verdade, a maior parte dessas pesquisas ainda não tinham sido feitas. Faz sentido considerar os shopping centers como lugares não muito aprazíveis. São ambientes criados para oferecer muitos estímulos, projetados não para acalmar ou confortar, mas apenas para nos fazer gastar dinheiro. E como o consumismo é muitas vezes desencadeado pela ansiedade, a sensação de calma e satisfação seria contrária aos principais interesses do shopping center. Calma e satisfação — para os propósitos do shopping center — são alcançados fazendo compras . Não são coisas que já estão presentes . O quarto problema era a culpa. Eu me sentia culpado de ter sintomas que eu na verdade não via como sintomas de uma doença. Via-os como sintomas de minha singularidade. Outra lição que ainda estou tentando entender — e escrever este livro está me ajudando com isso — é que a distração não funcionou e não funciona. Só para dar um exemplo, os shopping centers são ambientes criados para ser recreativos, mas eles não me levam para fora de mim, só para dentro de mim. A multidão em polvorosa não ajuda a me conectar com outras pessoas. Sinto- me mais solitário entre um bando de gente do que se estivesse com uma só pessoa ou sozinho mesmo. Essa foi uma das táticas que usei muito: tentar me distrair de um tormento com outro. Anos antes que existisse o Twitter e a atordoante compulsão com checar as redes sociais, eu tinha uma necessidade desesperada de me distrair. Mas não me fazia bem. Você passa a apresentar sintomas mais por causa da luta contra eles do que por tê-los em si. A distração é uma tentativa de escape que di cilmente funciona. Não se apaga um incêndio ignorando o incêndio. É preciso reconhecer o fogo. Não se expulsa uma dor engolindo de maneira compulsiva, tuitando ou bebendo. Chega o momento em que é preciso encará- la. Se encarar. Em um mundo de um milhão de distrações, você continua tendo uma só mente.
  • 143. Manequins que causam dor AGORA QUANDO PENSO naquele ataque de pânico especí co penso em como o mundo me afetou. Já naquela época eu tinha uma ideia intuitiva — senão plenamente consciente — de quais eram os gatilhos ao meu redor. Até manequins de loja contribuíam. Lá estava eu. Naquele espaço comercial fechado, agitado e arti cial. No fundo do poço. Minha própria singularidade pessoal. Ter a consciência, do ponto de vista racional, conforme olhava para Andrea, de que eu estava no meio daquele bem conhecido processo de estragar nosso dia. Fechei os olhos para fugir do estímulo do shopping center e vi apenas monstros e demônios, um banco mental de criaturas e imagens piores do que hidras e ciclopes — meu submundo pessoal que agora estava a apenas um piscar de olhos ou a um pensamento de distância. — Vamos, você consegue. Respire devagar. Tentei fazer o que ela me dizia: respirar devagar, mas o ar não parecia ar. Não parecia nada. Meu eu não parecia com nada. Enxuguei as lágrimas. Em frente à Vision Express havia uma loja de roupas. Não me lembro qual. Mas o que lembro, gravado em minha memória com o peso do trauma, é que havia na vitrine uns manequins com vestidos. Aqueles manequins com cabeça. Cabeças cinzentas e carecas, com traços que evocavam olhos e nariz de uma maneira abstrata, mas nenhuma boca. As poses dos manequins formavam ângulos arti ciais aos seres humanos. Eles pareciam muito malvados. Como se fossem seres que compreendiam e percebiam sentimentos e que não só conheciam o meu, como faziam parte dele. Eram, em parte, responsáveis por ele. Com efeito, essa seria uma característica típica de minha ansiedade e de minha depressão nos meses e anos seguintes. A ideia de que partes do mundo continham uma malignidade externa e secreta capaz de suscitar um peso e
  • 144. uma dor terríveis em mim. Isso podia partir de um rosto sorridente nas páginas lustrosas de uma revista. Podia ser encontrado no demoníaco olhar vermelho das luzes traseiras dos veículos. Ou no brilho azul forte demais de uma tela de computador. E sim, podia ser encontrado na sinistra semelhança com um ser humano de um manequim em uma loja. Certo dia, quando eu estava pronto para encarar meu sofrimento, esse sentimento de sensibilidade extrema na verdade me ajudou. Ele me ajudou a entender que se coisas externas podiam ter um impacto negativo, outras coisas externas poderiam ter impacto positivo. Mas naquela época eu estava preocupado em não enlouquecer. Estava convencido de que não tinha sido feito para a realidade do mundo. E, de certa forma, eu tinha razão. Não tinha sido feito para o mundo. Eu tinha sido feito, como todo mundo, pelo mundo. Tinha sido feito por meus pais, pela cultura, pela TV, pelos livros, pela política, pela escola e, quem sabe, até mesmo por shopping centers. Portanto, ou eu precisava de um novo eu ou de um novo planeta. E não sabia como encontrar nem um nem outro. Foi por isso que senti tendências suicidas. — Tenho de sair daqui — falei naquela hora, esfregando os olhos como uma criança perdida em um supermercado. O “aqui” era um termo genérico o bastante para se referir desde “minha cabeça” até “o planeta.” De uma forma mais imediata, o “aqui” era, óbvio, o shopping center. — Está bem, está bem — disse Andrea. Ela estava bem ao meu lado. Estava também a milhares de quilômetros. Ela olhou ao redor em busca da saída mais próxima. — Por aqui. Saímos, fomos em direção à luz do dia. Voltamos para a casa dos pais de Andrea, deitei-me na cama da infância de Andrea e falei aos pais dela que estava com um pouco de dor de cabeça, porque era mais fácil eles entenderem a dor de cabeça do que aquele ciclone invisível. De qualquer modo, senti-me mal em diferentes graus durante muitos meses, mas nalmente comecei a me recuperar. E, melhor ainda, a entender.
  • 145. Um desejo GOSTARIA MUITO DE poder explicar uma coisa para o meu eu mais jovem. Gostaria de me dizer que não era só por minha causa . Gostaria de poder dizer que havia coisas que eu podia fazer. Porque minha ansiedade, minha depressão, não estavam simplesmente ali. A doença, como um machucado, quase sempre tem um contexto. Quando co em um estado mental frenético ou desesperado, cheio de pensamentos indesejáveis que não consigo deter, isso quase sempre decorre de uma sequência de coisas. Quando faço muita coisa, penso demais, assimilo demais, como mal, durmo pouco, trabalho demais, co cansado da vida... aquilo aparece. Uma lesão por esforço repetitivo da mente.
  • 146. Como viver no século XXI e não ter um ataque de pânico 1. FIQUE DE OLHO em si mesmo. Seja seu amigo. Seja seu próprio pai ou mãe. Seja gentil para consigo mesmo. Preste atenção no que está fazendo. Precisa mesmo assistir ao último episódio de uma série quando já passou da meia-noite? Precisa mesmo daquela terceira ou quarta taça de vinho? Essas ações têm mesmo as melhores das intenções? 2. Esvazie a mente. O pânico é causado por sobrecarga. Em um mundo sobrecarregado, precisamos ter um ltro. Precisamos simpli car as coisas. Precisamos desligar às vezes. Precisamos parar de olhar o celular. Ter momentos de não pensar em trabalho. Uma espécie de feng shui mental. 3. Ouça sons tranquilizantes. Coisas não tão estimulantes quanto música. Ondas do mar, a própria respiração, uma brisa soprando pelas folhas, o ronronar de um gato e, o melhor de tudo: chuva . 4. Deixe as coisas rolarem. Ao perceber que o pânico está aumentando, a reação instintiva é car ainda mais em pânico. Ficar em pânico por causa do pânico. Ter um metapânico. O segredo consiste em tentar sentir o pânico sem entrar em pânico por isso . É quase, mas não totalmente, impossível. Eu tinha um transtorno de pânico — uma doença que se de ne não por ataques de pânico ocasionais, mas por ataques frequentes e o medo infernal e constante do próximo ataque. Depois de centenas de ataques de pânico, comecei a dizer a mim mesmo que queria tê-los. Claro que eu não os queria. Mas tentava com empenho chamar o pânico — como um teste, para ver como podia lidar com ele. Quanto mais eu o chamava, menos ele queria car por perto. 5. Aceite os sentimentos. E aceite que eles são apenas isso: sentimentos. 6. Não tente controlar tudo na sua vida. “A vida deve ser tocada, não estrangulada”, disse o escritor Ray Bradbury.
  • 147. 7. Tudo bem liberar o medo. O medo tenta dizer-lhe que ele é necessário e que o protege. Tente aceitá-lo como um sentimento mais do que como uma informação válida. Bradbury disse também que “deve-se aprender a desapegar antes de aprender a pegar”. 8. Preste atenção ao lugar onde está. O ambiente ao seu redor não estaria estimulando você em excesso? Seria possível ir para um lugar mais calmo? Dá para olhar um pouco para a natureza? Olhe para cima. No centro das cidades, o alto dos edifícios é menos intenso que as vitrines ao rés do chão. O céu também ajuda. 9. Alongue-se e faça exercícios. O pânico é tanto físico quanto mental. Para mim, correr e praticar ioga ajudam mais que qualquer outra coisa. Ioga, em especial. Meu corpo ca rígido depois de horas curvado diante do laptop, e a ioga lhe devolve elasticidade. 10. Respire. Respire fundo e com calma. Concentre-se nisso. A respiração dita o ritmo em que você leva a vida. É o ritmo da sua música. É como voltar ao cerne das coisas. O cerne de si mesmo. Enquanto o mundo quer levá-lo em uma direção completamente diferente. Foi a primeira coisa que você aprendeu a fazer. A coisa mais simples e essencial que você faz. Ter consciência da respiração é se lembrar de que você está vivo.
  • 149. Quatro humores NA GRÉCIA ANTIGA, os médicos explicavam o corpo humano pelos “quatro humores”. Qualquer problema de saúde era explicado pelo excesso ou pela falta de algum dos quatro uidos corporais: bile negra, bile amarela, euma e sangue. Na época dos romanos, os quatro humores evoluíram para quatro temperamentos. Se alguém sentisse raiva, ouviria que tinha excesso de bile amarela, o humor do fogo. Por isso, quando se diz a alguém “ que frio”, estamos repetindo um conselho de saúde da Roma Antiga. Se alguém se sentia deprimido, ou melancólico, seu estado era atribuído a um excesso de bile negra. Na verdade, a própria palavra “melancolia” chegou até nós pelo latim a partir das palavras gregas melas e kholé , literalmente, “bile negra”. Esse sistema parece não ter um pingo de ciência. Mas, de certa forma, era avançado, uma vez que não estabelecia divisão entre a saúde física e a mental. Em boa parte, essa separação deve-se ao lósofo René Descartes. Ele acreditava que mente e corpo eram duas coisas completamente à parte. Na década de 1640, ele defendia que o corpo funciona como uma máquina que não pensa, e que a mente, pelo contrário, é imaterial. As pessoas gostaram da ideia. Ela fez sucesso. E até hoje ainda exerce in uência sobre a sociedade. Mas essa cisão não faz muito sentido. A saúde mental está estreitamente ligada ao corpo inteiro. E o corpo inteiro está estreitamente ligado à saúde mental. Traçar uma linha entre o corpo e a mente seria como traçar uma linha separando dois oceanos. Eles estão interligados. Sabe-se que o exercício físico tem impacto positivo sobre todo tipo de problema mental, da depressão ao TDAH. E as doenças físicas têm consequências sobre a mente. Por causa de uma gripe, podemos sofrer
  • 150. alucinações. Um diagnóstico de câncer pode nos deprimir. A asma pode provocar pânico. Um ataque cardíaco pode causar traumas psicológicos. Se você está com uma forte dor lombar — ou zumbido no ouvido, ou dores no peito, ou dor de estômago ou está com a imunidade baixa —, diria que tem um problema mental ou físico? Acho que devemos parar de ver a saúde física e a mental em termos de esta ou aquela e mais como esta e aquela. Não há diferença. Somos mentais. Somos físicos. Não estamos divididos em duas partes independentes. Não somos uma loja de departamentos existencial. Somos tudo ao mesmo tempo.
  • 151. Vísceras O CÉREBRO É físico. Além disso, os pensamentos não são apenas produtos cerebrais. Como diz o cientista cognitivo Guy Claxton em Intelligence in the Flesh [Inteligência na carne]: “O corpo, as vísceras, os sentidos, o sistema imunológico e o sistema linfático interagem com o cérebro de modo tão imediato e complexo que seria impossível traçar uma linha à altura do pescoço e dizer: ‘Acima é inteligente e abaixo da linha é burro’. Não temos um corpo. Somos um corpo.” Depois vem a questão do “pequeno cérebro” — uma rede de 100 milhões de neurônios (células nervosas) no estômago e no intestino. Tudo bem, isso nem se aproxima dos 85 bilhões de neurônios do “cérebro principal”, mas é um número que não pode ser menosprezado. Cem milhões de neurônios é o que um gato tem na cabeça. Quando sentimos um frio na barriga antes de uma entrevista de emprego ou camos com fome antes de almoçar mais tarde que nosso horário habitual, nosso “segundo cérebro” está conversando com o cérebro principal. Em outras palavras, isso indica que a ideia de “saúde mental” separada de nosso eu físico é tão ultrapassada quanto a peruca estranha de Descartes. Mesmo assim, sofremos as consequências dessa divisão. O mundo do trabalho está dividido em trabalhos intelectuais e trabalhos físicos. Funções “quali cadas”, que demandam aquilo que em geral vemos como inteligência e “educação de qualidade”, e funções “não quali cadas”, que costumam ser identi cadas como trabalho manual. Colarinho branco e macacão. Há inteligência no movimento. Há inteligência na dança. Há inteligência na prática de um esporte. E, mesmo assim, temos o hábito de dividir as pessoas, desde a infância, em atléticas ou acadêmicas — ou em “fortões” e “CDFs”. Isso vai determinar a trajetória pro ssional, se a pessoa vai acabar em um trabalho manual mal pago ou em um cargo mais bem remunerado analisando planilhas de Excel. E dividimos a cultura em alta e baixa. Livros que nos fazem rir ou
  • 152. nos deixam tensos são vistos como menos importantes que aqueles que fazem “pensar”. Quanto mais olhamos para a linha que traçamos entre mente e corpo, menos sentido ela faz, mas todo o nosso sistema de saúde está baseado nessa linha. E não é só ele. Nossas concepções de identidade e a nossa sociedade também. Já é hora de mudar isso. É hora de reunir as duas partes. É hora de aceitar todo o nosso eu humano.
  • 153. Uma observação sobre o estigma NÃO SOMOS ENCORAJADOS a falar sobre nossa saúde mental até carmos mentalmente doentes, como se tivéssemos de ngir estar sempre 100% saudáveis. O estresse não é levado muito a sério. Ou é levado tão a sério que as pessoas têm vergonha de falar sobre os momentos nos quais sua saúde mental está abalada. De um jeito ou de outro, isso leva a mais pessoas carem não só estressadas, mas doentes. E quando camos doentes, e precisamos desabafar, encontramos um novo estigma. Muitas vezes, vemos a doença mental como um subproduto da pessoa, o que não ocorre com outras doenças. Como a doença mental é vista como intrinsecamente diferente, falamos dela em outros termos, com expressões que tem um quê de escândalo. Pense em todas as palavras usadas a respeito da doença mental. Jornais e revistas às vezes falam sobre celebridades que “confessaram” sofrer de depressão, ansiedade, transtornos alimentares ou vícios, como se essas coisas fossem crimes. E os crimes reais são quase sempre explicados como produto de uma doença — assassinatos em massa e abuso sexual são inseridos em um contexto de “problemas de saúde mental” ou “vício” com muito mais frequência do que terrorismo e crimes sexuais. Na verdade, pessoas que têm doenças mentais são muito mais propensas a serem vítimas de crimes. Também não sabemos bem como falar sobre suicídio. E quando falamos, em geral usamos o verbo “cometer”, que tem conotações de tabu e criminalidade, uma herança dos tempos em que era considerado crime. (Recentemente tentei adotar a expressão “morte por suicídio”, mas soava um tanto forçada e falsa.) Muita gente tem di culdade para lidar com a noção de alguém tirar a própria vida, como se fosse uma espécie de insulto a todos nós, entendendo o suicídio como uma escolha, porque a pessoa preferiu desistir da vida, essa coisa sagrada e preciosa, frágil como um ovo de passarinho. Mas sei
  • 154. por experiência pessoal que o suicídio não é essa escolha tão oito ou oitenta. Pode ser algo que inspire medo e terror, mas que a pessoa se sinta compelida nessa direção devido a uma nova dor quando se trata de viver. Portanto, é incômodo falar no assunto. Mas é uma conversa que precisamos ter, porque a atmosfera de vergonha e silêncio impede que as pessoas recebam a ajuda necessária e pode fazer com que se sintam muito mais sozinhas e isoladas. Resumindo, pode ser fatal. O suicídio é o maior assassino de homens e mulheres entre 20 e 34 anos. É também o maior assassino de homens de menos de 50 anos, pelo menos no país em que vivo, o Reino Unido. Outros lugares da Europa têm valores parecidos. Nos Estados Unidos, onde as armas de fogo contribuem para essas tristes estatísticas, o suicídio está em décimo lugar entre as principais causas de morte, em todas as idades e gêneros, enquanto na Europa, no Canadá e na Austrália os homens são três vezes mais propensos ao suicídio do que as mulheres. Na imensa maioria das vezes, essas mortes podem ser evitadas. É por isso que devemos ignorar o “seja macho” e buscar uma força que seja verdadeira. E, no caso tanto de homens quanto de mulheres, ela refere-se a pedir a ajuda necessária. Nesse contexto, os termos usados estão repletos de indícios dessa sensação de vergonha que se perpetua ao longo da história. Por exemplo, quando falamos de alguém que “luta com seus demônios”, estamos evocando superstições da Idade das Trevas sobre a loucura como obra do diabo. E toda a repetição sobre ser corajoso: seria ótimo que um dia uma gura pública pudesse falar de sua depressão sem que a imprensa usasse termos como “incrível coragem” e “admitir”. É, eles têm boas intenções. Mas uma pessoa não deveria precisar confessar que tem, por exemplo, ansiedade. Você devia apenas ser capaz de contar isso para os outros. É uma doença. Como asma, sarampo ou meningite. Não é um segredo constrangedor. A vergonha que as pessoas sentem agrava os sintomas. É claro que muitas vezes as pessoas são corajosas. Mas a coragem está em conviver com aquilo, não deveria estar em falar sobre aquilo . Toda vez que alguém me elogia por ser corajoso co com a impressão de que deveria ter mais medo. Imagine que você está indo para uma caminhada tranquila no bosque e uma pessoa se aproxima. — Aonde você vai? — pergunta ela. — Para o bosque.
  • 155. — Uau — diz ela, dando um passo para trás. — Por que você está falando “uau”? E então ela ca com lágrimas nos olhos. Leva a mão a seu ombro e fala: — Como você é corajoso! — Eu? Corajoso? — É, muito corajoso. Um exemplo, na verdade. Você engole em seco, ca pálido e descarta para sempre a ideia de ir até o bosque. Além disso, ainda persiste a ideia tóxica de que as pessoas falam de problemas de saúde mental para “chamar a atenção”. Essa atenção que as pessoas buscam pode salvar vidas. Mas como uma vez disse C. S. Lewis: “A tentativa frequente de dissimular o sofrimento mental aumenta seu peso: é mais fácil dizer ‘Estou com dor de dente’ do que dizer ‘Estou de coração partido’.” Deveríamos nos esforçar para transformar o mundo em um lugar onde seja mais fácil falar de nossos problemas. E não só com o intuito de tornar as pessoas mais conscientes sobre essa questão. Como demonstraram as diversas psicoterapias ao longo do último século, falar pode resultar em benefícios medicinais. Pode de fato aplacar sintomas. Cura quem fala e quem ouve, por expressar o sofrimento interno e por saber que outras pessoas também se sentem assim. Nunca deixe de falar. Nunca deixe que outras pessoas o façam sentir que ter um problema mental é indício de fraqueza ou um defeito. Se você sofre de uma doença como a ansiedade, sabe que ela não é uma fraqueza. Viver com ela, continuar seguindo em frente e fazer coisas com ansiedade exige uma força do indivíduo que a maior parte das pessoas nunca sequer sentirá. Precisamos deixar de confundir a doença com o paciente. É fundamental que passemos a compreender melhor os diferentes tipos de pressão que as pessoas sentem. Andar até uma loja pode ser uma demonstração de força se você estiver carregando uma tonelada de um peso invisível.
  • 156. Tabela de psicogramas (PG = PSICOGRAMAS ) Imagine se tivéssemos um jeito de medir o peso psicológico que cada um sente. Não seria uma boa maneira de ligar o mental ao físico? Não ajudaria as pessoas a entender o aspecto real do estresse? Não nos ajudaria a conviver com as fontes de estresse da vida moderna? Re ita comigo. Vamos chamar essa unidade imaginária de peso de psicograma . — Ah, não, não vou poder checar meus e-mails. Já cheguei ao meu limite de psicogramas hoje. Passear em um shopping center: 1.298pg Receber uma ligação do banco: 182pg Entrevista de emprego: 458pg Assistir ao noticiário: 222pg Uma caixa de entrada cheia de e-mails não respondidos: 321pg Um tuíte seu que ninguém curtiu: 98pg Culpa por não ter ido à academia: 50pg Culpa por não telefonar para os pais ou irmãos: 295pg Perceber o quanto você parece velho/gordo/cansado: 177pg Medo de car de fora do que aconteceu em uma festa que você viu nas redes sociais: 62pg Perceber que você postou um tuíte com erro de ortogra a: 82pg Pesquisar no Google um sintoma preocupante: 672pg Ter de dar uma palestra: 1.328pg Ver fotogra as de um corpo perfeito quando você sabe que o seu nunca será igual àquele: 488pg Reagir a uma provocação on-line: 632pg Um encontro amoroso desagradável: 317pg
  • 157. Pagar contas com cartão de crédito: 815pg Perceber que é segunda-feira e você tem que trabalhar: 701pg Perder o emprego porque um robô vai desempenhar suas funções: 2.156pg As coisas que queria ter feito mas não fez: 1.293pg Nota : O valor do peso psicológico utua bastante. O psicograma é uma unidade de medida subjetiva.
  • 158. 13 O FIM DA REALIDADE “[...] esse choque entre a imagem que a pessoa tem de si mesma e o que ela é de fato é sempre muito doloroso, e há duas coisas que ela pode fazer a respeito: encarar o choque e tentar tornar-se o que realmente é ou recuar e tentar continuar sendo o que pensa que é, o que é uma fantasia, na qual certamente perecerá.” — James Baldwin, Nobody Knows My Name
  • 159. Sou o que sou o que sou ÀS VEZES É preciso recuar para poder avançar. É preciso encarar a dor. A dor mais profunda. E recentemente me senti pronto. Preciso recuar. Para antes do shopping center. Para uma sala de alvura digna de um centro cirúrgico. “Quem sou eu?”, perguntei, no centro médico espanhol durante a fase inicial de minha primeira crise mental. Claro que quando estou bem e calmo essa pergunta não é tão assustadora. Quem sou eu? Não existe eu. Não existe você. Ou melhor, há um milhão de eus. Um milhão de vocês. “Eu” é a palavra mais abrangente da língua. Por trás de cada você há outro você, e outro você, e outro você, como bonecas russas. Existe um você básico? Um eu básico? Ou nossa identidade seria não como bonecas russas, mas como uma espiral sem m? Será que a identidade é um universo cujo m é inalcançável, mas que pode levá-lo para onde você começou? Quando estou relativamente bem, gosto de losofar sem muito sentido sobre essas coisas. Porque existe, suponho, um claro eu que é o sujeito das perguntas. Mas quando eu estava doente, não se tratava apenas de preocupações abstratas. Eram mistérios que tinham de ser resolvidos com urgência, como se minha vida dependesse disso. Porque ela dependia . A sensação de sentir como se fosse eu mesmo havia desaparecido — foi substituída — e me sentia como se eu estivesse preso em um eu in nito , utuando em silêncio e em pânico, sem ter um lugar para pousar.
  • 160. Realidade versus supermercados ATAQUES DE PÂNICO acontecem com frequência em supermercados. Conheço uma pessoa que teve um único ataque de pânico na vida. Foi em um supermercado. Quando, no começo dos anos 2000, eu costumava vasculhar fóruns da internet em busca de dicas sobre como lidar com a ansiedade, o ataque-de- pânico-no-supermercado aparecia com maior frequência que quase qualquer outro. Agora estou vendo um tópico que começa assim: “POR QUE OS ATAQUES DE PÂNICO SE MANIFESTAM QUANDO ESTAMOS FAZENDO COMPRAS NO SUPERMERCADO?” O pânico existe para nos ajudar. Como acontece com muitos outros animais, o pânico decorre da tentativa de nossa mente e de nosso corpo de nos dizer para fazer alguma coisa. Lutar ou fugir. Escapar do predador ou se opor a ele. Mas um supermercado não é um urso, um lobo ou um guerreiro que mora em uma caverna. Não se pode lutar contra um supermercado. É possível fugir dele, sem dúvida, porém isso só vai aumentar suas possibilidades de um novo ataque de pânico na próxima vez que for lá. Também pode não ser aquele supermercado em especí co. Se você começar com o jogo de evitar um lugar, pode ser que daqui a pouco todos os supermercados se transformem em gatilhos para você. Depois todas as lojas. E aí tudo lá fora. Quem nunca teve um período de convivência com a ansiedade e o pânico não entende que a realidade de ser um eu é um sentimento de verdade, um que é passível de ser perdido. As pessoas dão isso como certo. Você não acorda de manhã pensando, enquanto passa manteiga no pão: “Ah, que bom, meu senso de individualidade ainda está intacto, e o mundo ainda é real, posso continuar com meu dia.” É algo que simplesmente está lá . Até não estar mais. Até você chegar à prateleira dos cereais e sentir um terror ininteligível. Quando se tenta explicar como é ter um ataque de pânico, é comum falar dos sintomas óbvios: o turbilhão de pensamentos, batimento cardíaco
  • 161. acelerado, pressão no peito, di culdade para respirar, náusea, sensação de dormência no crânio ou nos braços e nas pernas. Mas há outro sintoma complicado que eu costumava ter. Acabei compreendendo que ele está no cerne do que desencadeia meus ataques de pânico. Tem um nome revelador: desrealização . Com o sentimento de desrealização, eu ainda sabia quem era. Mas não sentia que eu era eu. É um sentimento de desintegração. Como uma escultura de areia que se esfacela. E há um paradoxo quanto a essa sensação: ela é percebida ao mesmo tempo como uma extrema intensidade do eu e uma inexistência do eu. Um sentimento de não ter volta, como se de repente você tivesse perdido algo do qual não sabia que tinha que cuidar, e que a coisa que você tivesse de cuidar é você. Acho que o motivo pelo qual os supermercados desencadeiam essa sensação é que eles já são desrealizados . Eles, como os shopping centers, são lugares totalmente não naturais. Nessa era de compras on-line, eles podem parecer ultrapassados, quase exóticos, mas ainda são muito mais modernos que nossa biologia. A luz não é a natural. O zumbido dos congeladores parece a ameaçadora trilha sonora de um lme de terror com pretensões artísticas. A abundância de opções é maior do que aquela com que fomos feitos para lidar. A multidão e as prateleiras oferecem estímulos em excesso. E muitos dos produtos também não são naturais. Não me re ro à maior parte deles conter aditivos químicos, embora isso seja verdade. Quero dizer que eles foram adulterados. As latas de sardinha, os sacos de salada, as caixas de arroz tufado, os nuggets de frango, a carne processada, as pílulas de vitaminas, os vidros de alho descascado e fatiado, os pacotes de batata frita crocante sabor chilli . Eles não são naturais. E em ambientes não naturais, quando sua ansiedade está em alta, você também se sente não natural. Pode se sentir distante de si mesmo como um pacote de rolos de papel higiênico é um produto distante de uma árvore. No meu caso, durante meus ataques de pânico em supermercados, os objetos nas prateleiras assumiam uma aparência com um quê de sinistro. Pareciam estranhos. E, de certa forma, eram e são estranhos. Foram tirados do meio a que pertenciam. Eu me identi cava com essa sensação. E acho que essa era a raiz do problema. Não me sentia como se pertencesse ali. Acho impossível encontrar meu lugar em um ambiente tão super cial e sobrecarregado. A única coisa que
  • 162. reconhecia em mim mesmo era o medo. E todos aqueles objetos multiplicados no supermercado faziam com que eu me sentisse pior. “Os objetos não deviam tocar porque não estão vivos”, escreveu Sartre em A náusea , quando claramente passava por um mau momento. “Mas eles me tocam, é intolerável. Tenho medo do contato com eles como se fossem feras vivas.” Os objetos de um supermercado também não são objetos normais. São de marca . Enquanto os produtos vivem em um mundo físico, as marcas buscam se xar no nosso espaço mental. Buscam entrar em nossa cabeça. Em muitos casos, as empresas contratam especialistas em psicologia de marketing para isso. Para nos induzir a comprar. Para brincar com nossa mente.
  • 163. Homem das cavernas IMAGINE QUE UM homem das cavernas tenha cado congelado por 50 mil anos. Vamos chamá-lo de Su. Imagine que, de repente, o bloco de gelo em que ele estava congelado derrete na frente do supermercado perto da sua casa. O homem das cavernas — Su — entra. A porta automática se fecha milagrosamente atrás dele. Ele se assusta com as luzes, as cores, a multidão. Os carrinhos de compras parecem estranhos animais metálicos, domesticados pelos humanos que os empurram. As prateleiras reluzentes repletas de artigos empacotados em sacos plásticos o confundem. Os caixas automáticos são desconcertantes. As sacolas de compras parecem ter uma estranha pele branca. — Item estranho na área de empacotamento... — diz a voz robótica. — Item estranho na área de empacotamento... Item estranho na área de empacotamento... Su começa a entrar em pânico. Corre para uma janela, levanta os punhos e começa a bater no vidro. Começa a gritar. — Owagh! Agh! Ug-aggh! Faz mais barulhos. Chega o momento de reviravolta do m da cena. (Rufar de tambores.) Su é, na verdade, Nós . (Suspiro irônico.) Su é todos nós. Só que nós estamos um pouco mais acostumados a supermercados. Do ponto de vista biológico, não mudamos nada nesses 50 mil anos. Mas a sociedade sim, ela mudou radicalmente. E espera-se que estejamos satisfeitos com toda essa mudança. A nal, se não estivesse congelado, é provável que Su tivesse sido morto aos 22 anos por uma manada de javalis desembestados ou sacri cado em um ritual aos 16. Mas nós temos sorte. Não há
  • 164. sorte maior que ser um ser humano vivo do século XXI quando comparado a um morto do período neolítico. Mas, por causa dessa sorte, devemos valorizar a vida que temos. E se pudermos nos sentir não apenas sortudos , mas outras coisas — calmos, felizes, saudáveis —, por que não? Por que não saber o que o mundo pode fazer por nós? Porque esse conhecimento pode nos ajudar. Ele me ajuda, agora, quando vou a um supermercado. A shopping centers. A IKEA. Diante do computador. Em uma rua apinhada. Em um quarto de hotel vazio. Em qualquer lugar. Ele me ajuda a saber que sou apenas um homem das cavernas em um mundo que chegou antes do que nossa mente e nosso corpo esperavam.
  • 165. Um borrão HÁ DOIS DIAS, tive uma recaída. Senti a estranha dor psicológica de uma mudança para pior. Ao pegar minha lha na aula de dança, me senti como se estivesse afundando na calçada. Comecei a engolir de maneira compulsiva e percebi que a antiga agorafobia queria retornar. Mas agora tenho um pouco mais de consciência do que antes. Conseguia perceber que não estava dormindo bem. Estava trabalhando demais. Estava preocupado demais com este livro. Estava preocupado demais com um milhão de coisinhas bobas. Então, deixei de car obcecado com e-mails, larguei o documento de Word, z um pouco de “ioga para dormir” seguindo as instruções de um vídeo, comi uma refeição saudável e tentei desligar. Levei o cachorro para uma longa caminhada à beira-mar. E a cha caiu: não tem importância. Deixe de ser neurótico . Nada daquilo com que eu me preocupava ia mudar alguma coisa. Eu ia continuar podendo passear com o cachorro. Ia continuar podendo ver o mar. Ia continuar podendo estar com as pessoas que amo. E a ansiedade bateu em retirada, como um criminoso que é alvo de uma investigação.
  • 166. 14 QUERER “Quando nos encontramos querendo tudo, talvez seja porque estamos correndo o sério risco de querer nada.” — Sylvia Plath
  • 167. Querer certo AO DIGITAR “COMO posso tornar-me” no Google, enquanto eu escrevia este livro, as cinco primeiras sugestões automáticas foram: — rico — famoso — um modelo — um piloto — um ator
  • 168. Transcendência ESTÃO NOS VENDENDO infelicidade, porque é onde o dinheiro está. Grande parte daquilo que nos vendem é a ideia de que podemos ser melhores do que somos se tentarmos nos transformar em outra coisa . Pense nas revistas de moda. Lucinda Chambers foi diretora de moda da Vogue britânica durante 25 anos. Pouco após deixar o cargo, ela deu um veredicto condenando o ramo que acabava de abandonar. Declarou que, apesar do discurso de empoderamento, poucas revistas de moda têm esse efeito sobre os leitores. “A maior parte delas torna você totalmente refém da ansiedade, pois você não organiza o tipo certo de jantar entre amigos, dispõe os lugares à mesa do jeito certo ou conhece gente do tipo certo”, declarou ela em uma entrevista à Vestoj , publicação anual analítica sobre moda, que viralizou. Além disso, a maneira como as revistas de moda privilegiam roupas de preços impossivelmente altos (pelo menos para a maioria dos leitores) só aumenta a infelicidade ao fazer as pessoas se sentirem pobres. “No campo da moda, estamos sempre tentando fazer as pessoas comprarem alguma coisa de que não precisam”, disse Lucinda. “Não precisamos ter mais bolsas, mais camisas, mais sapatos. Então convencemos, coagimos ou incentivamos as pessoas a continuar comprando.” Revistas de moda e sites e contas em redes sociais do setor vendem uma espécie de transcendência. Uma escapatória. Um jeito de fugir. Mas isso é quase sempre pouco saudável, porque para fazer com que as pessoas transcendam a si mesmas é preciso primeiro fazê-las se sentir infelizes consigo mesmas. É verdade, as pessoas devem acabar comprando um livro de dieta para conseguir o corpo da modelo da propaganda dele, ou um perfume para se aproximar da celebridade cujo nome está no frasco, mas tudo isso tem um preço que vai além do dinheiro. Podemos nos sentir melhores no momento da
  • 169. compra, mas a longo prazo apenas alimentamos o anseio de ser outra pessoa: alguém mais glamoroso, mais atraente, mais famoso. Nos incentivam a sair de nós mesmos e querer viver outras vidas. E essas não são mais reais que o pote de ouro no m do arco-íris. Talvez o segredo de beleza que revista alguma quer nos contar seja que a melhor maneira de estar satisfeito com nossa aparência é aceitá-la como ela é . Estamos na era do Photoshop e da cirurgia plástica e em breve estaremos na era dos robôs-designers. Talvez esse seja o momento exato de aceitar nossas peculiaridades humanas em vez de tentar atingir a perfeição inexpressiva de um androide. Podemos pensar: ah, preciso ter tal aparência para as pessoas me acharem atraente. Ou então podemos pensar: na verdade, não há maneira melhor de ltrar quem não me fará bem do que ser e parecer quem eu sou. Ficar insatisfeito com a aparência não tem nada a ver com a aparência. Quando modelos sofrem de transtornos alimentares não é porque sejam feias ou gordas. Claro que não. Há vários indícios de que o número de casos de distúrbios alimentares no mundo inteiro estão crescendo. Em 2017, a ONG Eating Disorder Hope anunciou que os distúrbios alimentares, em termos globais, tinham a tendência a aumentar em paralelo com a ocidentalização e a industrialização, e o relatório analisou um panorama abrangente de pesquisas internacionais. Na Ásia, por exemplo, o Japão, Hong Kong e Singapura apresentavam índices muito mais elevados que as Filipinas, a Malásia e o Vietnã, embora estes últimos também possuam índices que se agravam rapidamente à medida que “progridem” e se “ocidentalizam”. Outro caso signi cativo é o de Fiji. As pesquisas mostram que os distúrbios alimentares começaram a aumentar em meados da década de 1990, logo depois que a televisão chegou àquela ilha do Pací co Sul. O jornal The New York Times noticiou em 1999 que os distúrbios alimentares eram praticamente desconhecidos no arquipélago até que a TV passou a mostrar modelos magras de séries de sucesso mundial, como Melrose Place e Barrados no baile . Antes que séries e lmes americanos mostrassem às garotas de Fiji um novo modelo de corpo ideal, a frase “você ganhou peso” era um elogio. No Reino Unido, em 2018, as estatísticas do NHS Digital revelaram que as internações hospitalares por conta de distúrbios alimentares quase dobraram em menos de uma década, sendo o grupo de risco integrado por meninas e
  • 170. mulheres na casa dos 20 anos. Caroline Price, da Beat (principal instituição de caridade do Reino Unido voltada para transtornos alimentares), declarou ao Guardian na época em que as estatísticas foram publicadas que, embora os distúrbios alimentares sejam “complexos” e envolvam “muitos fatores”, a cultura moderna é em grande parte responsável por eles. “O número de casos de distúrbios alimentares está crescendo, até certo ponto, devido aos problemas da sociedade atual”, disse ela. “Entre eles, as redes sociais e a pressão por boas notas.” Embora essas não sejam as únicas causas do problema, como reconhecem especialistas como Caroline Price, elas se combinam com outras características de certas personalidades que têm predisposição a sofrer de distúrbios alimentares. Segundo o Centro Nacional de Distúrbios Alimentares [NCED, sigla em inglês] do Reino Unido, os fatores predisponentes incluem os de origem genética, ter pais com problemas relativos à alimentação, ter sido vítima de bullying motivado por ter sofrido de obesidade, ter sofrido abuso ou abandono infantil, ter algum trauma de infância, ter problemas nas relações familiares, ser amigo de alguém com o distúrbio e, por último mas não menos importante, a “cultura”. É especialmente problemática uma cultura em que sempre há uma nova dieta para se experimentar e na qual, segundo o site do NCED, “a pessoa vulnerável internaliza os ideais inatingíveis vistos na TV ou em revistas e está sempre se comparando negativamente a essas imagens”. O site diz também que “pessoas capazes de admirar uma bela modelo, mas dizem ‘eu nunca poderia ser como ela, mas isso não me incomoda tanto’ são as menos propensas a se tornarem vítimas de problemas com a alimentação”. Talvez essa seja uma lição para todos nós: desvincular as imagens que vemos dos seres que somos. Precisamos instituir uma espécie de sistema imune para a mente, com o qual possamos absorver o mundo que nos cerca sem nos deixar infectar por ele.
  • 171. Como ser mais tolerante consigo mesmo sobre si mesmo 1. PENSE NAS PESSOAS que você amou. Pense nos relacionamentos mais íntimos que teve. Pense na alegria que sente quando vê essas pessoas. Lembre-se de que essa alegria nada tem a ver com a aparência delas, a não ser porque elas têm uma aparência própria e você gosta de vê-las. Seja amigo de si mesmo. Alegre-se por reconhecer a pessoa que está por trás de seu rosto. 2. Mude sua perspectiva ao ver fotos de si mesmo. Toda foto que você vê hoje dizendo “como pareço velho!”, um dia será a foto que você verá dizendo “como eu era jovem!”. Em vez de se sentir velho da perspectiva de seu eu mais jovem, tente sentir-se jovem da perspectiva de seu eu mais velho. 3. Ame as imperfeições. Cultive-as. Elas são o que o diferenciam dos androides e dos robôs. “Se você busca a perfeição, nunca estará satisfeito”, diz a mulher de Lvov, Natália, em Anna Karenina . 4. Não queira ser como alguém que já existe. Aproveite a sua diferença. 5. Não se importe quando alguém não gostar de você. Nem todo mundo vai gostar. Melhor que não gostem de você sendo você do que gostem quando tenta ser outra pessoa. A vida não é uma peça. Não ensaie ser você mesmo. Apenas seja . 6. Nunca permita que a opinião negativa de outra pessoa sobre você se torne sua própria opinião negativa sobre si. 7. Se está se sentindo insatisfeito consigo mesmo, que longe do Instagram. 8. Lembre-se de que ninguém mais está sempre preocupado com a aparência de seu rosto. 9. Em algum momento do dia, faça alguma coisa que não seja uma obrigação, trabalhar ou car na internet. Dance. Bata uma bolinha. Faça
  • 172. burritos. Ouça música. Jogue Pac-Man. Faça carinho em um cachorro. Aprenda a tocar um instrumento. Ligue para um amigo. Se espreguice. Saia. Vá fazer uma caminhada. Sinta o vento no rosto. Ou se deite no chão com os pés para cima encostados em uma parede e respire.
  • 173. Uma observação sobre o querer TUDO CERTO COM querer alguma coisa — fama, uma aparência jovem, 10 mil curtidas, barriga chapada, donuts —, mas querer é também não ter. “Querer” é isso. Portanto, precisamos ter cuidado com as coisas que queremos e cuidar para que elas não abram buracos demais dentro da gente, senão a felicidade vai escorrer de nós como a água de um balde furado. Querer é estar insatisfeito. Quanto mais queremos, mais vamos escorrer de nós mesmos.
  • 174. Se você já tivesse tudo, em que gastaria seu dinheiro? A FELICIDADE NÃO faz bem à economia. Somos sempre levados a estar um pouco insatisfeitos. Nosso corpo está gordo demais, ou magro demais, ou ácido demais. Nossa pele devia ter aquela luminosidade de quem pegou sol ou aquele ar certo de leveza. Para nossa tristeza, a indústria que produz iluminadores de pele é multibilionária e cresce a cada ano. Esse é um exemplo muito inquietante, mas a ideia central de não se sentir bom o bastante é uma das mais exploradas por quase todas as empresas. Com efeito, às vezes pode parecer que o objetivo nal do próprio marketing é nos fazer sentir mal com nós mesmos. Por exemplo, vejamos o que diz Robert Rosenthal, autor do livro Optimarketing: Marketing Optimization to Electrify Your Business [Optimarketing: otimização do marketing para intensi car seus negócios]. Em 2014, ele escreveu, na revista Fast Company, que para ser um marqueteiro de sucesso é preciso pensar em termos dos benefícios do produto mais do que em suas características . Parece inofensivo, não é? Porém ele acrescenta que os benefícios muitas vezes têm um “componente psicológico”. “Medo, incerteza e dúvida (FUD [sigla do inglês ‘Fear Uncertainty and Doubt’]) são recursos usados com frequência com legitimidade por empresários e empresas para fazer com que os consumidores parem, pensem e mudem de comportamento. O FUD é tão poderoso que é capaz de detonar a concorrência.” Para os gurus do marketing, o sucesso de uma campanha é tudo. Os ns justi cam os meios. Não vamos pensar nas consequências de tornar milhões de seres humanos mais ansiosos do que precisariam ser.
  • 175. Mas, mesmo quando uma campanha publicitária não tenta abertamente provocar medo, ela pode nos ser prejudicial do ponto de vista psicológico. Se nos vendem a ideia de sermos descolados pelo fato de usar um determinado tipo de calça, sentimos uma pressão subconsciente para usá-las. E muitas vezes, depois de gastar muito dinheiro para comprar algo que queríamos, temos um sentimento angustiante. São raras as ocasiões nas quais o anseio pelo objeto é compensado com uma satisfação por tê-lo. Então ansiamos por mais. E o ciclo se repete. Somos levados a querer coisas que nos fazem querer mais. Em suma, somos levados a criar uma dependência.
  • 176. Nunca é o bastante NADA NUNCA É o bastante. Sempre fui dependente de alguma coisa. A coisa em si muda, mas o sentido da dependência não. Beber já foi essa coisa. Eu era capaz de beber e beber e beber. Quando, sob os céus nublados de Croydon, eu trabalhava em uma quadra comercial, como vendedor de espaços publicitários, eu só queria fugir. As três canecas de cerveja que bebia todas as noites, seguidas de vodca com Coca-Cola, aplacavam o começo da noite, mas tornavam mais difícil acordar na manhã seguinte. Poucos anos depois de entrar em crise, descobri de repente que era fácil parar de beber. E de fumar. E tudo o mais. Parei com todos os estimulantes. Inclusive café, chá e Coca-Cola. Estava em um estado constante de pânico e teria feito qualquer coisa para desligar minha mente da minha mente, mas àquela altura já sabia que o álcool não ia adiantar. E achei que drogas não funcionariam. Estava convencido, na época, de que elas sem dúvida davam certo para outras pessoas, mas eu era um dos azarados para os quais elas não faziam efeito. Também estava convencido de que tivera tendências à dependência. Foi mais difícil entender que ainda as tinha, mas que naquele momento eu estava encontrando dependências “positivas”. Correr, por exemplo, uma sugestão dada pelo meu pai. Ioga. Meditação. Trabalho. Sucesso. Então, anos depois, quando estava relativamente melhor, comecei a beber outra vez. Não era todos os dias, nem mesmo todas as semanas, mas quando bebia, bebia de maneira irresponsável. A diferença é que dessa vez eu percebia como o álcool afetava minha mente. Conseguia ver o ciclo que desencadeava. Sentia-me um pouco mal — não chegava a ser transtorno de pânico, apenas uma depressão leve —, bebia e me sentia melhor. E em seguida tinha ressaca e culpa. E esse sentimento persistia e baixava minha autoestima, o que aumentava a necessidade por uma distração. Que era beber. Oito canecas de
  • 177. cerveja e um drinque com gim. Mas era perigoso. Era impossível ser um bom marido, bom pai ou bom escritor com aquela ressaca, e a ironia era que o sentimento de desajuste e autodepreciação favoreciam futuras ressacas. Descobri que quanto mais intensa a compulsão, maior a culpa subsequente. Mas é difícil. E tenho toda a solidariedade para com aqueles que buscam afogar o desespero implacável em um mar de bebida. E, nesse processo, são julgados por aqueles que nunca sentiram a dolorosa compulsão de fugir de si mesmo. Quando se fala da melhora do estigma em relação à saúde mental, as pessoas devem ter razão no que se refere a melhoria das condições das pessoas que têm depressão ou ataques de pânico. É provável que não estejam falando de alcoolismo, automutilação, psicose, transtorno de personalidade limítrofe (TPL), distúrbios alimentares, comportamentos compulsivos ou dependência de drogas. Essas coisas são assuntos difíceis até mesmo para aqueles de mente mais aberta. Esse é o problema da doença mental. É fácil não julgar alguém que sofre de uma doença ; o que é bem mais difícil é não culpar os comportamentos aos quais a doença pode levar. Isso acontece porque as pessoas não conseguem ver os motivos por trás daquelas atitudes. Lembro-me de ter ido a um show da gênia única e rara que era Amy Winehouse e car com lágrimas nos olhos quando o público — em grande parte bêbado também — ria e zombava quando ela pronunciava palavras arrastadas entre uma música e outra e, embriagada, lutava desesperadamente para se recompor. Aquilo me fez arder de raiva e vergonha. Eu tentava — de modo ridículo e constrangedor — mandar mensagens telepáticas a ela. Está tudo bem. Você vai car bem. Eles é que não entendem. Agora mesmo, enquanto escrevo, vendo o sol pela janela, estou sonhando com uma caipirinha. O drinque nacional do Brasil. Cachaça, limão, açúcar. O céu em um copo. Lembro-me de ter bebido nas sombras das praças na Espanha, e o desejo é, em parte, o de voltar aos meus 21 anos e não ter preocupação alguma. Mas sei que seria uma má ideia. Tenho de lembrar a mim mesmo por que quero isso e o que poderia acontecer. Tenho de me lembrar que não seria apenas um copo. Tenho de lembrar que o desejo de um drinque inocente já tinha acabado antes — depois de uma respeitável reunião de trabalho numa tarde — com uma ligação telefônica feita na estação Victoria às seis da manhã depois de perder minha carteira. Tenho de lembrar a espiral subsequente de recaídas na depressão e na ansiedade — dessas em que você
  • 178. acaba chorando ao olhar para a gaveta de meias e na qual a simples visão de nuvens carregadas ou de uma capa de revista desencadeia um sentimento de desespero in nito. Evocar todas essas lembranças e estar consciente das causas e consequências torna bem mais fácil resistir. Uma noite com o céu em um copo não vale um mês de inferno em uma gaiola. A questão aqui não é o álcool especi camente. É sobre o modelo de dependência — insatisfação com uma solução temporária que leva a uma insatisfação maior — que é o modelo por excelência da cultura de consumo. É também o que representa grande parte de nossa relação com a tecnologia. Os perigos do uso excessivo desta estão cando mais evidentes do que nunca. Em 2018, o CEO da Apple Tim Cook começou a falar sobre isso: “Não defendo o uso excessivo. Não sou o tipo de pessoa que diria que tivemos sucesso se você está usando o produto o tempo todo. Não defendo isso em absoluto.” O problema é que às vezes é mais fácil falar sobre o uso excessivo da tecnologia do que fazer algo a respeito. “Não se iluda”, diz o neurocientista Daniel Levitin no livro A mente organizada: como pensar com clareza na era da sobrecarga de informação : “Ficar checando sem parar e-mails, Facebook e Twitter constitui uma dependência neural.” A cada vez que checamos as redes sociais “encontramos alguma novidade e nos sentimos socialmente mais conectados (numa estranha espécie impessoal de cibercontato) e produzimos mais um pouco do hormônio da recompensa” que nos diz que “conquistamos algo”. Mas como acontece em uma dependência, esse sentimento de recompensa não é con ável. Como diz Levitin, “essa sensação de prazer é induzida pelo sistema límbico, a porção rudimentar do cérebro responsável pela busca de novidade, não pelos centros de pensamentos organizados e programados de nível mais elevado, situados no córtex pré-frontal”.
  • 179. Um paradoxo EXISTE UM PARADOXO referente às sociedades de consumo de tecnologia de ponta. Elas aparentam estimular o individualismo, mas não nos estimulam — pelo contrário, nos proíbem — a pensar como indivíduos . Elas impedem que larguemos seu caráter recreativo, que é o que as pessoas que sofrem de dependências devem fazer se quiserem recuperar suas vidas. Também evitam que nos perguntemos: o que estou fazendo? E por que continuo fazendo isso se não me traz felicidade? É estranho, mas é mais fácil você ter uma compulsão socialmente inaceitável, como o uso de heroína, a comportamentos socialmente aceitáveis, como compulsão por dietas, por compras, pelo trabalho ou pelo Twitter. Se a loucura for coletiva e a doença for cultural, é mais difícil de diagnosticar e mais ainda de tratar. Mesmo quando a maré da sociedade nos empurra para determinado curso, deve ser possível — se esse curso nos faz e nos mantém infelizes — aprender a nadar contra a corrente. Nadar em direção à nossa verdade, uma verdade que as coisas recreativas que usamos podem estar escondendo. Nossa vida pode depender disso.
  • 180. Você é mais do que um consumidor NÃO PERMITA QUE nada nem ninguém o faça sentir-se como se não fosse o bastante. Não pense que tem de conquistar mais coisas para ser aceito pelos outros. Seja feliz com seu próprio eu, sem upgrades . Pare de sonhar com objetivos e resultados imaginários. Aceite o que a publicidade não quer que aceite: você está bem assim. Não lhe falta nada.
  • 181. 15 DUAS LISTAS SOBRE O TRABALHO “Quantos jovens recém-formados assumiram cargos exigentes em empresas de alto nível, achando que iam trabalhar muito, ganhar dinheiro e se aposentar aos 35 anos para então dedicar-se a seus verdadeiros interesses? Mas, ao chegar a essa idade, têm pesadas hipotecas, lhos na escola, casas em bairros residenciais distantes que exigem pelo menos dois carros por família e uma ideia de que a vida só vale a pena com bons vinhos e ns de semana dispendiosos no exterior. O que se supõe que eles fazem então, voltam à raiz do problema? Não. Multiplicam seus esforços e continuam trabalhando como escravos.” — Yuval Noah Harari, Sapiens: uma breve história da humanidade (2011)
  • 182. “Quero dizer com toda a seriedade que no mundo moderno se faz um grande dano acreditando-se na virtude do trabalho; o caminho da felicidade e da prosperidade passa por uma redução organizada do trabalho.” — Bertrand Russell, O elogio ao ócio (1932)
  • 183. O trabalho é tóxico 1. NÓS NOS DISSOCIAMOS da maneira histórica de se trabalhar. É raro que nós, enquanto indivíduos, acabemos consumindo o que produzimos. Muitas vezes as pessoas não conseguem o emprego para o qual estão quali cadas. Pouco a pouco, o trabalho humano está sendo assumido por máquinas. Caixas de autoatendimento em supermercados. Robôs em linhas de montagem. Centrais telefônicas e sistemas de telemarketing automatizados. 2. Além disso, a economia mundial é injusta. É verdade, certo progresso foi feito. O número de pessoas em estado de extrema pobreza vem caindo ano a ano, segundo estatísticas do Banco Mundial. Mas outras desigualdades estão aumentando. Segundo um relatório da Oxfam de 2017, os oito bilionários mais ricos do mundo detêm a mesma riqueza que 3,6 bilhões de pessoas que constituem a metade mais pobre do planeta. As classes médias ocidentais estão diminuindo, segundo uma pesquisa do Credit Suisse, enquanto os extremos entre ricos e pobres estão aumentando. A meritocracia é um mito difícil de sustentar. 3. O bullying é muito frequente no ambiente de trabalho. A natureza competitiva de muitas empresas alimenta uma rivalidade agressiva que, com facilidade, pode descambar para a manipulação e o bullying . Segundo uma pesquisa da Universidade de Phoenix, 75% dos trabalhadores dos Estados Unidos já foram afetados pelo bullying , seja como vítima ou como testemunha. Mas as vítimas não são sempre quem seria de se imaginar. Segundo o Workplace Bullying Institute, elas podem ser não os integrantes mais fracos de uma equipe, mas os que são mais quali cados e e cientes do que as pessoas que fazem o bullying. Trata-se dos funcionários experientes que são vistos como uma ameaça. E uma pesquisa do Trade Union Congress (TUC) em colaboração com o
  • 184. Everyday Sexism Project descobriu que 52% das mulheres disseram ter sofrido assédio sexual no trabalho. 4. Em casos extremos, o estresse no local de trabalho pode ser fatal. Por exemplo, entre 2008 e 2009 e de novo em 2014, a empresa francesa de telecomunicações Orange relatou séries de suicídios entre os funcionários. Depois da primeira, na qual 35 funcionários se mataram em questão de meses, o chefe minimizou o ocorrido dizendo tratar-se de uma “moda”, embora um relatório o cial citado pelo jornal The Guardian atribuísse a culpa ao clima de “assédio gerencial” que tinha “debilitado psicologicamente os funcionários e atacado sua saúde física e mental”. 5. A cultura da avaliação é tóxica. Paul Verhaeghe, professor de psicanálise nascido na Bélgica, defende que a maneira como o trabalho é organizado em nossas sociedades — com supervisores supervisionando supervisores, todo mundo sendo vigiado, pontuado e avaliado sem parar — é tóxica. Mesmo pessoas que não trabalham sofrem as mesmas rodadas intermináveis de testes e monitoramento. Como nossos estudantes também estão descobrindo, todo esse sistema nos deixa mais estressados com o futuro do que satisfeitos com o presente. 6. A cultura do trabalho pode levar a uma baixa autoestima. Somos levados a crer que o sucesso é resultado do trabalho árduo, e que isso depende de cada um. Assim, não é de surpreender que, ao achar que estamos fracassando — o que acontece continuamente em uma cultura que defende a ambição e é alimentada por parâmetros cada vez mais inalcançáveis para alguém ser feliz —, isso seja tomado como pessoal. E pensamos que a culpa é nossa. Não somos incentivados a considerar a situação de acordo com o contexto. 7. Gostamos de trabalhar. Traz sentido a nossa vida. Mas também pode ser prejudicial à saúde física. Em 2015, o Finnish Institute of Occupational Health publicou uma pesquisa — a maior do gênero já realizada — que procurava traçar uma relação entre trabalho em excesso e álcool. Foram reunidos dados sobre 333 mil trabalhadores de quatorze países, e concluiu-se que, quanto mais horas se trabalha, mais álcool se consome. 8. É difícil se contrapor a nossa obsessão cultural pelo trabalho. Políticos e líderes do setor empresarial sustentam a crença de que trabalhar sem parar é uma virtude. Falam com lágrimas nos olhos e uma boa dose de bajulação sobre “os respeitáveis cidadãos trabalhadores” e “as famílias que
  • 185. dão duro”. Aceitamos a semana composta por cinco dias úteis como se fosse uma lei da natureza. Somos levados a nos sentir culpados quando não estamos na labuta. Repetimos o lema de Benjamin Franklin, “tempo é dinheiro”, esquecendo que dinheiro é também uma questão de sorte. Muita gente que trabalha longas jornadas tem muito menos dinheiro que pessoas que nunca trabalharam na vida. 9. As pessoas trabalham cada vez mais horas, mas essas não são uma garantia de maior produtividade. Em Gotemburgo, Suécia, implantou-se em caráter experimental uma jornada de seis horas para enfermeiras, e constatou-se que elas se sentiam mais felizes e tinham mais energia do que quando trabalhavam oito horas. Faltavam menos por doenças, tinham menos queixas de problemas físicos como dor nas costas ou no pescoço e apresentaram aumento de produtividade durante seus turnos. 10. Com frequência, nossa cultura referente ao trabalho é desumanizante. Precisamos avaliar se nossos empregos estão nos deixando doentes, ou infelizes, e se há alguma coisa que se possa fazer a respeito. Quanto de pressão temos que suportar só porque a maneira de trabalhar nos faz sentir como se estivéssemos sempre atrasados? Como se a vida fosse uma corrida na qual estamos cando para trás? E em nossa luta para nos manter à altura, não ousamos parar e pensar o que seria melhor para nós.
  • 186. Dez maneiras de trabalhar sem surtar 1. TENTE FAZER ALGO de que goste. Se gostar de seu trabalho, seu desempenho será melhor. Se gostar de seu trabalho, ele não vai parecer um trabalho. Tente pensar nele como um jogo produtivo. 2. Tente não assumir mais coisas para fazer . Tente ter menos coisas para fazer . Seja minimalista no trabalho. Minimalismo é fazer mais com menos. Grande parte da vida laboral parece voltada para fazer menos com mais. Não car parado nem sempre é o mesmo que ser produtivo. 3. Estabeleça limites. Tenha momentos do dia e da semana sem trabalho, sem e-mails, sem perrengues. 4. Não se estresse com prazos. Este livro já passou do prazo, mas mesmo assim você está lendo-o. 5. Saiba que a caixa de entrada dos seus e-mails nunca vai estar vazia. Aceite isso. 6. Tente trabalhar, sempre que possível, de maneira a tornar o mundo um pouco melhor. O mundo nos molda. Tornar o mundo melhor nos torna melhores. 7. Seja gentil consigo mesmo. Se os aspectos negativos de um trabalho pesam mais que o dinheiro, não assuma esse compromisso. Se alguém está usando seu poder para submeter você a bullying ou assédio, não aceite. Se você detesta seu trabalho e pode se dar ao luxo de sair na hora do almoço, saia na hora do almoço. E não volte nunca mais. 8. Não pense que seu trabalho é mais importante do que de fato é. Como disse Bertrand Russell: “Um dos sintomas de colapso nervoso iminente é acreditar que o próprio trabalho é terrivelmente importante.” 9. Não faça o trabalho que os outros esperam de você. Faça o que você quer fazer. Você só tem uma vida. É sempre melhor vivê-la como si próprio. 10. Não seja perfeccionista. Os seres humanos são imperfeitos. O trabalho humano é imperfeito. Seja menos robô e mais humano. Seja mais
  • 187. imperfeito. A evolução ocorre por conta dos erros.
  • 188. 16 COMO MOLDAR O FUTURO
  • 189. Progresso SERIA INSANO, TANTO do ponto de vista reacionário quanto do conservador, a rmar que o progresso tecnológico é algo ruim. São pouquíssimas as pessoas dispostas a trocar a tecnologia de hoje para viver cem anos atrás. Quem abriria mão de um mundo com carros e GPS e smartphones e laptops e máquinas de lavar e Skype e redes sociais e videogames e Spotify e raios X e corações arti ciais e caixas eletrônicos e compras on-line? Eu, sem dúvida, não faria isso. Para escrever este livro, tentei observar o custo psicológico do mundo examinando a única psicologia que de fato conheço — a minha. Escrevi sobre como nós, enquanto indivíduos , podemos tentar permanecer sãos em um mundo enlouquecedor. O fato de ter uma doença mental, embora na prática seja um pesadelo, ensinou-me sobre os diversos gatilhos e tormentos do mundo moderno. Contudo, o que considero como um desa o real é o que podemos fazer enquanto sociedade . Não é possível voltar atrás no tempo. Não é possível se tornar avesso à tecnologia de uma hora para outra, nem queremos isso. Então como poderíamos — no senso coletivo — tornar o mundo melhor para todos nós? Uma das melhores pessoas para responder a essa pergunta seria Yuval Noah Harari, professor de história da Universidade Hebraica de Jerusalém, cujos livros revolucionários Sapiens: Uma breve história da humanidade e Homo Deus abordam o que nos faz humanos e como a tecnologia não só reformula nosso mundo como também rede ne a própria humanidade. Ele escreve sobre o cenário assustador de um mundo futuro no qual os seres humanos são dominados pelas máquinas criadas por eles mesmos e chega à conclusão desoladora de que “o Homo sapiens como o conhecemos vai desaparecer em mais ou menos um século”.
  • 190. Depois de ler a obra de Harari, quei pensando por que os seres humanos estariam tão dispostos a se encaminhar a um futuro que aos poucos vai torná- los desnecessários. Isso me fez lembrar de outro livro que me marcou quando era mais jovem, Cachorros de palha , do lósofo John Gray, que explora com crueza a ideia de que o progresso humano como sociedade é um mito perigoso. A nal, somos os únicos animais, até onde se sabe, obcecados pela ideia de progresso. Pelo menos enquanto não descobrirmos a existência de tartarugas historiadoras louvando tartarugas mais antigas pela criação de um mundo mais esclarecido. Numa entrevista ao Observer , perguntei a Harari se deveríamos resistir à ideia de futuro como de um progresso tecnológico inevitável. Deveríamos criar um outro tipo de futurismo? “Não se pode frear o progresso tecnológico”, respondeu ele. “Mesmo que um país deixe de pesquisar sobre inteligência arti cial, outros continuarão. A verdadeira questão é o que fazer com a tecnologia. Pode-se usar a exata mesma tecnologia para objetivos sociais e políticos muito diferentes.” A internet, claro, seria a prova mais óbvia disso na atualidade. Mas ela é também um exemplo — no caso daquilo que chamávamos de “rede mundial de computadores” — de coisas que começaram como ideais utópicos e em pouco tempo se tornaram distópicas. “Se analisarmos o século XX”, prosseguiu Yuval, “veremos que, com a mesma tecnologia envolvendo eletricidade e trens, é possível construir uma ditadura comunista ou uma democracia liberal. Com a inteligência arti cial e com a bioengenharia, o mesmo acontece. Portanto, acredito que não deveríamos nos concentrar em como deter o progresso tecnológico, isso é impossível. A questão deveria ser que uso fazer da nova tecnologia. E ainda temos bastante poder para in uenciar para onde ela está indo.” Então, como é o caso com tantas outras coisas, a solução para o problema passa primeiro por ter consciência dele. Em outras palavras: a solução para tornar tanto a nossa mente quanto nosso planeta mais saudáveis é essencialmente a mesma. O que Harari diz sobre a aplicação da mesma tecnologia para objetivos diversos é válido tanto na esfera do micro, de cada indivíduo, quanto na do macro, da sociedade. Ter consciência de como a utilização da tecnologia nos afeta é, de modo indireto, ter consciência de como a ela afeta o planeta. Não é só o planeta que nos molda. Nós moldamos o planeta com as escolhas que fazemos sobre de que maneira viver.
  • 191. E às vezes, quando nós — e nossas sociedades — estamos agindo de um jeito que não é saudável, precisamos tomar a decisão mais corajosa e mais difícil de todas. Precisamos mudar . Essa mudança pode assumir diferentes formas. Podemos usar a tecnologia para ajudar nossa mente, ao baixar um aplicativo que limite o tempo gasto nas redes sociais, ou instalando um interruptor com dimmer , ou optar por caminhar mais, ou tendo mais consideração pelas pessoas na internet, ou ainda escolhendo um carro menos poluente. Ser gentil consigo mesmo e ser gentil com o planeta são, no fundo, a mesma coisa . “Progredir”, escreveu C. S. Lewis, “é se aproximar de onde você quer estar. E, se virou no lugar errado, seguir adiante não vai levá-lo mais para perto de seu destino.” Acho que essa é uma ótima maneira de encarar as coisas. Seja no âmbito individual ou no social, o impulso de seguir adiante não é, por si só, bené co. Às vezes levamos nossa vida na direção errada. Às vezes as sociedades levam a si mesmas na direção errada. Se estamos nos sentindo infelizes, pode ser que voltar para pegar o caminho certo signi que progredir. Mas nunca se deve achar, como indivíduo ou como cultura, que uma única versão do futuro é inevitável. Cabe a nós moldar o futuro.
  • 192. Espaço NO QUE SE refere a moldar o nosso futuro, os espaços são fundamentais. Precisamos nos certi car de que existem espaços para sermos livres. Para sermos nós mesmos. Espaços literais, espaços psicológicos. Cada vez mais, nossas cidades tornam-se lugares onde nos querem mais como consumidores do que como pessoas. Isso faz com que seja de suma importância valorizar os espaços ameaçados de extinção nos quais ainda é permitido ser economicamente irrelevante. Florestas, parques, galerias e museus públicos, bibliotecas. As bibliotecas, por exemplo, são lugares maravilhosos que se encontram em risco. Muita gente poderosa as deprecia por considerá-las irrelevantes na era da internet. Na verdade, isso é um mal-entendido. Muitas bibliotecas estão usando a internet de modo inovador, tornando livros e a própria internet mais acessíveis para os cidadãos. Além disso, elas não são apenas lugares para livros. São uns dos poucos espaços públicos restantes que não nos apreciam mais por nossa carteira que por nós. Mas outros espaços também se encontram ameaçados. Espaços não físicos. Espaços de tempo. Espaços digitais. Algumas empresas de comércio eletrônico pretendem violar cada vez mais nossa individualidade, considerando-nos menos como seres humanos e mais como organismos repletos de dados a explorar ou a serem vendidos. Há espaços do dia e da semana que estão sendo continuamente gastos em nome do trabalho ou de outras obrigações. Até espaços da mente estão ameaçados. O para pensar livremente, ou pelo menos com calma, está cada vez mais difícil de encontrar. O que pode explicar o aumento não só dos distúrbios de ansiedade, mas também de hábitos para combatê-los, como a prática da ioga e da meditação. As pessoas anseiam não apenas pelo espaço físico, mas pelos espaços onde sejam mentalmente livres. Um espaço afastado dos indesejados pensamentos
  • 193. que nos distraem e pululam em nossa cabeça como pop-ups publicitários da mente em um mundo já frenético. E esse espaço ainda está disponível. Só não podemos depender dele. Somos forçados a procurá-lo de maneira consciente. Talvez seja necessário reservar um tempo para ler, praticar ioga, tomar um banho demorado, preparar nossa comida preferida ou dar uma caminhada. Talvez seja necessário desligar o telefone. Talvez seja necessário fechar o laptop. Talvez seja necessário nos desligar, encontrar uma versão “acústica” de nós mesmos.
  • 194. Ficção é liberdade OS LIVROS PODEM ser uma maneira de recuperar algum espaço. Histórias. Ficção. Quando tinha 11 anos, sem amigos, com di culdades de adaptação na escola, li The Outsiders , Rumble Fish e Tex , de S. E. Hinton, e de repente voltei a ter amigos. Os livros dela eram meus amigos. Os personagens eram meus amigos. E amigos de verdade, porque me ajudaram a lidar com aquela situação. Da mesma forma que em outros tempos o ursinho Puff, Scout Finch, o esquilo Pip e Cécile de Bonjour tristesse foram meus amigos. E suas histórias serviam como esconderijo para mim. E um refúgio. Num mundo que pode exigir demais, um no qual estamos perdendo o espaço mental, os mundos ccionais desempenham um papel essencial. Podem ser uma fuga da realidade, claro, mas não são uma fuga da verdade. Pelo contrário. No mundo “real”, eu sofria de di culdades para me adaptar. Com os códigos a seguir. As mentiras a contar. As risadas forçadas. A cção não me parecia uma fuga da verdade, mas um mergulho nela. Mesmo sendo uma verdade com monstros ou ursos falantes, ela sempre tem um quê de verdade. Uma que pode manter sua sanidade, ou pelo menos manter você sendo você . Para mim, a leitura nunca foi uma atividade antissocial. Sempre foi profundamente social. A espécie mais profunda de socialização que existe. Uma conexão profunda com a imaginação de outro ser humano. Um modo de conexão livre de todos os ltros que a sociedade em geral impõe. Normalmente, a leitura é vista como importante por seu valor social. Está ligada à educação, à economia e assim por diante. Mas isso não compreende todo o motivo por trás da leitura. Ler não é importante porque ajuda a conseguir um emprego. É importante porque nos dá espaço para existir além da realidade na qual estamos inseridos. É assim que os seres humanos se unem. Que as mentes se conectam. Sonhos. Empatia. Compreensão. Fuga.
  • 195. A leitura é o amor em ação. Não é preciso que sejam livros. Mas é preciso encontrar esse espaço. A toda hora somos estimulados a desejar passar pelas experiências mais extremas e empolgantes. Ceder a um impulso e partir para a ação. “Just Do It”, faça e pronto, como a Nike sempre berrava para nós, como um sargento dando ordens de autoajuda. Como se o sentido da vida fosse descoberto ao ganhar uma medalha de ouro, escalar o monte Everest, ser a atração principal do Festival de Glastonbury ou ter o maior orgasmo que você jamais terá ao saltar de paraquedas sobre as cataratas do Niágara. E eu costumava achar a mesma coisa. Queria me perder nas experiências mais intensas, como se a vida fosse apenas um shot de tequila a ser tomado. Mas não é possível experienciar a maior parte da vida dessa forma. Para ter a oportunidade de encontrar uma felicidade duradoura, é preciso calma. Você tem de ser, assim como fazer. Enchemos o cotidiano com atividades porque no Ocidente, em geral, achamos que a felicidade e a satisfação são atingidas por aquisição, “aproveitando ao máximo” o dia. Às vezes precisamos nos esforçar para substituir a noção de vida como algo a ser aproveitado por alguma coisa que já temos. Se zermos uma faxina na bagunça mental certamente vamos aproveitar mais nossa existência. O monge budista Thích Nhất Hạnh escreveu em A arte do poder que, embora “muita gente pense que excitação é felicidade”, na verdade “quando estamos excitados, não estamos em paz. A felicidade verdadeira se baseia na paz”. Na minha opinião, eu não iria querer uma vida de paz interior total e neutra. De vez em quando gostaria de ter alguma experiência intensa e estimulante. Isso é uma característica minha. Mas anseio por paz e aceitação mais do que nunca. Para estar bem consigo mesma, para se conhecer, a pessoa precisa de um espaço interior onde seja capaz de se encontrar , longe de um mundo que com frequência a leva a se perder. Precisamos criar um espaço no tempo para nós mesmos, seja através dos livros, da meditação ou apenas olhando a vista da janela. Um lugar onde não estejamos ansiando, sentindo falta, trabalhando, nos preocupando ou pensando demais. Onde nem sequer estejamos nutrindo esperanças para determinada coisa. Um lugar onde cássemos neutros. Onde pudéssemos apenas respirar,
  • 196. apenas ser, apenas nos banhar no simples contentamento animal de ser, e não desejar nada além do que já temos: a vida.
  • 197. Objetivo SENTIR CADA MOMENTO, ignorar o amanhã, desprender-se de todas as preocupações, arrependimentos e medos causados pelo conceito de tempo. Ser capaz de andar por aí e pensar em nada além de andar. Ficar na cama sem dormir e sem se preocupar com o sono. Simplesmente car ali, na doce felicidade horizontal, sem ser afetado por preocupações passadas e futuras.
  • 199. Figueiras ENQUANTO ESCREVIA ESTE livro, minha mãe teve de ser submetida a uma grande cirurgia. Precisou ter o tórax aberto para remoção e substituição da válvula aórtica. A operação foi bem-sucedida, e ela se recuperou, mas a semana que passou na terapia intensiva foi uma espécie de montanha-russa, com médicos e enfermeiros de olho na saturação de oxigênio no sangue, que baixou a níveis preocupantes. Andrea e eu fomos visitá-la e nos instalamos em um hotel próximo ao hospital. Meu pai e eu zemos companhia à minha mãe, que volta e meia acordava. Ajudei-a a se alimentar e trouxe sacolas cheias de smoothies , além de comprar o jornal para meu pai. Minha preocupação com ela afastou tudo o mais da minha mente. Eu me sentia culpadíssimo por não ter lhe dado mais atenção quando ela me falou de suas primeiras consultas médicas. Enquanto ela se recuperava, eu não me preocupava em responder nenhum e-mail urgente. Não tinha qualquer tentação de checar redes sociais. Mesmo as notícias parecem apenas um pano de fundo irrelevante quando você está em uma unidade de tratamento intensivo, ouvindo através de uma cortina os gemidos que vêm da cama ao lado, onde outro paciente está morrendo. Às vezes, as unidades de tratamento intensivo são lugares desoladores, mas essas enfermarias esterilizadas cheias de gente entre a vida e a morte podem também ser lugares de esperança. Enfermeiros e médicos eram uma inspiração. Só acho uma lástima que sejam necessários momentos tão graves em nossa vida, ou na das pessoas que amamos, para mudar nossa perspectiva. Como seria bom podermos sempre encarar a realidade daquela forma! Podermos sempre saber identi car nossas prioridades, mesmo em tempos de saúde e bonança. Imagine se fôssemos capazes de sempre pensar em nossos familiares e amigos da maneira com que pensamos neles quando estão em uma situação crítica. Se pudéssemos sempre manter esse amor — amor que está sempre
  • 200. presente — bem ao alcance. Imagine se conseguíssemos manter a bondade e a leve gratidão em relação à vida em si. Hoje em dia, nos momentos em que meu mundo ca entupido de lixo estressante, tento me lembrar daquela enfermaria. Onde os pacientes eram gratos só por olhar pela janela. Ver um pouco de sol e gueiras. E onde a vida, em si mesma, era tudo.
  • 201. Amor SÓ O AMOR nos salvará.
  • 202. Psicogramas negativos (coisas que fazem você se sentir mais leve) IMAGINE QUE EXISTAM coisas, como os psicogramas, que façam sua mente se sentir mais leve. Poderíamos chamá-los de psicogramas negativos ou -pg. Observar o sol surgindo de repente de trás de uma nuvem: 57-pg Receber uma alta médica: 320-pg Passar férias em algum lugar sem Wi-Fi (passado o pânico inicial): 638-pg Passear com o cachorro: 125-pg Uma sessão de ioga: 487-pg Perder-se em um bom livro: 732-pg Chegar a casa depois de uma horrível viagem de trem: 398-pg Estar cercado de natureza: 1.291-pg Dançar: 1.350-pg Um parente próximo recuperando-se de uma operação: 3.982-pg E assim por diante.
  • 203. Sri Lanka CONVIDARAM-ME A VISITAR a bela cidade forti cada de Galle, no litoral sudoeste do Sri Lanka, para um festival de literatura em que eu daria uma palestra sobre saúde mental. O evento era bem especial, já que o Sri Lanka ainda é um lugar onde falar sobre doença mental pode ser tabu. E foi emocionante ouvir histórias de ansiedade, depressão, TOC, tendências suicidas, transtorno bipolar e esquizofrenia em um contexto no qual essas coisas em geral não vêm à tona. Foi como sentir o estigma se evaporando em tempo real. Mas não é o evento o que mais me marcou naquela viagem, mas o dia seguinte. Na praia de Hikkiduwa, ao lado de moradores da região e mochileiros, alimentei tartarugas marinhas gigantes com algas direto na minha mão. Andrea e nossos lhos também estavam lá. Foi o tipo de experiência que nunca imaginei que ia ter quando era um agorafóbico de 20 e poucos anos convencido de que não viveria até os 30, e tendo afastado todas as pessoas que eu amava. Então, aos 40, lá estava eu no hemisfério sul com quem amava, em uma praia paradisíaca, bem perto daqueles grandes répteis anciões. Eles parecem tão calmos e sensatos em sua longevidade. Perguntei-me qual seria o segredo deles. E desejei que de alguma forma um ser humano fosse capaz de fazer perguntas a uma tartaruga. Assim, quando a depressão bate, fecho os olhos e acesso o arquivo que mantenho com lembranças de dias bons. Penso no sol, em sorrisos e tartarugas. E tento lembrar que o impossível às vezes pode ser possível.
  • 204. Uma visão anfíbia da vida — OLÁ, TARTARUGA. — Ah! Oi. — Algum conselho sobre a vida? — Por que você está me perguntando? — Porque você é uma tartaruga. — E daí? — As tartarugas existem há milhões de anos. Há 157 milhões de anos. Mais de 700 mil vezes o tempo do Homo sapiens no planeta. Vocês, como espécie, devem saber de uma coisa ou outra. — Você está confundindo duração da existência com extensão de conhecimento. — É que os humanos zeram a maior bagunça no mundo. Parece que as tartarugas não cometeram o mesmo erro. — Eu sei. Estamos perto da extinção por causa de vocês. — Desculpe. — Eu disse “vocês”, no plural. Mas, claro, você também. — Sei disso. Sou um ser humano. Tenho parte da culpa. — É. Você tem. — É. — Seja como for, se você quer mesmo saber, o conselho que tenho a dar é: pare com isso. — Parar com o quê ? — Isso. Uma correria por nada. Os seres humanos parecem estar correndo para fugir de onde estão. Por quê? Será um problema com o ar aí na terra? Ele não está fazendo bem para vocês? Talvez vocês precisem passar mais tempo no mar. Meu conselho seria: pare com isso. Não seja apenas o dono do seu tempo, torne-se a prioridade dele . Andando depressa ou devagar, tenha consciência de
  • 205. que sempre vai se levar consigo. Seja feliz chapinhando nas águas da existência. — Certo. — Olhe para minha cabeça. Ela é minúscula. A relação entre minha massa cerebral e a corporal é constrangedora. Mas, como você pode ver, isso não importa. Se você levar a vida com o devido cuidado, pode achar o foco. Você pode ser da forma que precisa ser. Pode ter uma visão anfíbia da vida. Você pode estar em sintonia com o ritmo da Terra toda. Com a parte seca e a molhada. Pode sintonizar com o vento e com a água. Pode sintonizar consigo mesmo. É uma maravilha, como você vê, ser uma tartaruga. — Aposto que é, mesmo. Obrigado, tartaruga. — Agora... Será que pode me dar mais um pouco de alga?
  • 206. Inverter o ciclo A ANSIEDADE SE perpetua por conta própria. A pessoa que sofre de ansiedade, enquanto doença, vive em um ciclo sem m de desespero. A única maneira de sair dele é interromper a metapreocupação, parar de se preocupar com a preocupação, o que é quase impossível. Às vezes o truque consiste em encontrar um ciclo inverso. Para tanto, aceito que estou em um estado de não aceitação. Fico à vontade com o fato de não me sentir à vontade. Aceito que as coisas não dependem de mim. É um clichê, mas é verdade: você não consegue chegar aonde deseja se não aceitar antes onde está. O mundo tenta nos dizer para não nos aceitarmos. Faz com que queiramos ser mais ricos, mais bonitos, mais magros, mais felizes. A querer mais. Quando camos doentes, isso se torna duplamente verdadeiro, e é logo quando mais precisamos nos aceitar, aceitar o momento de sofrimento para depois conseguirmos nos livrar dele. Libertarmo-nos dele aos poucos, devolvendo-o ao mundo de onde ele veio.
  • 207. O céu continua sendo o céu ACABEI DE OLHAR pela janela e me sentir mais calmo. A Lua está realmente demais esta noite, atrás de um véu de nuvens arroxeadas. Esse céu está sensacional. Nenhuma foto conseguiria captá-lo. E isso me fez lembrar de uma coisa. Há cerca de uma década, quando tive um episódio prolongado de depressão, o pior desde a crise dos 20 e poucos anos, um das poucas fontes de conforto que eu tinha era olhar para o céu. Morávamos em Yorkshire, e não havia lá muita poluição luminosa, daí o céu parecer tão amplo e claro. Saía para pôr o lixo na rua, olhava o céu noturno e sentia tanto eu quanto meu sofrimento cando menores. Ficava ali um pouco mais, respirando o ar fresco, olhando para as estrelas, planetas e constelações. Respirava fundo, como se o cosmos fosse algo possível de se inalar. Às vezes levava a mão ao estômago e sentia os espasmos de minha respiração nervosa começando a se acalmar. Muitas vezes me perguntei, e ainda me pergunto, por que o céu, em especial o céu noturno, tem esse efeito. Já achei que era uma questão de escala. Quando se olha para o cosmos, é impossível não se sentir minúsculo. Você sente a própria pequenez não só no espaço como no tempo. Isso acontece porque torna-se claro que, quando você ta o espaço, está tando uma história antiga. Está vendo as estrelas como elas foram , não como são . A luz viaja, não aparece no mesmo instante. Ela viaja a 300 mil quilômetros por segundo. Parece rápido, mas na verdade a luz da estrela mais próxima da Terra, depois do Sol, leva mais de quatro anos para chegar aqui. Mas algumas das estrelas visíveis a olho nu estão a mais de 15 mil anos-luz de distância. Isso signi ca que a luz que seu olho vê agora começou a atravessar o espaço no m da era glacial. Antes que os seres humanos houvessem desenvolvido a agricultura. Ao contrário do que se supõe, a maior parte das estrelas que vemos não estão extintas. Elas, diferente dos homens, vivem durante muito tempo. Mas isso não diminui em nada, pelo contrário, a
  • 208. majestade terapêutica do céu noturno. Dentro do cosmos, nosso papel, belo porém brevíssimo, é na condição do mais raro dos objetos galácticos: um organismo vivo, que respira e é consciente. Ao olhar para o céu, todos os nossos problemas do século XXI podem ser situados em seu contexto cósmico. O céu é maior que e-mails, prazos, hipotecas e trolls da internet. É maior que nossa mente e suas doenças. É maior que nomes, nações, datas e relógios. Todas as nossas preocupações parecem transitórias se comparadas ao céu. Durante nossa vida, durante cada capítulo da história humana, o céu sempre foi o céu. E, claro, quando olhamos para ele, não vemos algo ao qual somos estranhos. Estamos olhando, na verdade, para o lugar de onde viemos. Como o físico Carl Sagan escreveu em sua obra-prima Cosmos : “O nitrogênio de nosso DNA, o cálcio de nossos dentes, o ferro de nosso sangue, o carbono de nossas tortas de maçã nasceram no interior de estrelas em colapso. Somos feitos da matéria das estrelas.” O céu, como o mar, pode servir-nos de âncora. Ele diz: ei, está bem, existe algo maior que sua vida do qual você faz parte, e essa coisa é, literalmente, cósmica. É a coisa mais magní ca que há. E você deve fazer como uma árvore, ou um pássaro, e sentir-se parte da grande ordem natural agora e sempre. Você é incrível. Você é nada e tudo. Você é um simples momento e toda a eternidade. Você é o universo em movimento. Está de parabéns.
  • 209. Natureza ESTÁ PROVADO QUE o céu nos acalma. Uma pesquisa realizada em 2018 pelo King’s College de Londres concluiu que olhar para o céu contribui para nossa saúde mental. E não é apenas o céu. Ver árvores, ouvir o canto dos pássaros, estar ao ar livre e sentir-se em contato com a natureza. Os participantes da pesquisa foram instruídos a registrar seu estado mental em diferentes lugares. O interessante é que o experimento era bastante completo uma vez que levava em conta o risco de cada participante de apresentar uma piora na saúde mental, por meio de testes prévios para avaliar comportamentos impulsivos. A pesquisa, com o apropriado título “Urban Mind: Using Smartphone Technologies to Investigate the Impact of Nature on Mental Wellbeing in Real Time” [A mente urbana: as tecnologias do smartphone aplicadas ao estudo do impacto da natureza sobre a saúde mental em tempo real], concluiu que estar em contato com a natureza é bom para todos mas, em especial, para as pessoas mais predispostas a sofrer de problemas de saúde mental, como dependências, TDAH, transtorno de personalidade antissocial e transtorno bipolar. “Uma breve exposição à natureza tem impacto bené co mensurável na saúde mental”, concluiu o dr. Andrea Mechelli, um dos responsáveis pela pesquisa. A ecoterapia ou “tratamento verde” está em alta. Muitos hotéis-fazenda e jardins comunitários estão sendo usados como recurso para o tratamento de estresse, ansiedade e depressão. Em boa medida, isso consiste em pôr em prática um velho conselho: “Respire um pouco de ar puro.” Em 1859, no livro Notes on Nursing , Florence Nightingale diz de seus pacientes que “depois de um quarto fechado, o que mais lhes incomoda é um quarto escuro”, e aconselha: “Não é apenas luz, mas a luz direta do Sol o que eles querem.” Finalmente, temos a prova disso.
  • 210. O problema é que mais da metade da população mundial passou a morar em grandes cidades. Em 1950, mais de dois terços dela encontrava-se em assentamentos rurais. Agora, no mundo inteiro, a maior parte habita áreas urbanas. E como, mais do que nunca, as pessoas cam a maior parte do tempo em áreas fechadas, é evidente que não estão em contato com bosques ou sob o céu natural. É hora de começarmos a entender que os azuis e verdes da natureza podem nos ajudar. E ajudar a vida das crianças também. Mais ar puro, mais luz solar; até mesmo, com sorte, conseguir vez ou outra caminhar pelos campos e bosques. E talvez, munidos dessas provas, possamos contribuir para ajudar a tornar os espaços urbanos comunitários mais verdes e agradáveis, de modo que todos possam usufruir da natureza, não apenas uns poucos felizardos.
  • 211. O mundo interior ENTÃO, É VERDADE, a beleza da natureza pode curar. Mas em Ibiza, em 1999, fui até o topo de um penhasco perto de onde estava morando, um dos cantos mais tranquilos do leste da ilha e me dispus a saltar. Eu literalmente não tinha mais como conviver — pelo menos não conseguia conceber uma maneira de lidar — com a confusão e o sofrimento psicológico que estava enfrentando e desejei que não tivesse ninguém que se importasse comigo e assim apenas desaparecer com o menor impacto possível. Às vezes penso naquele penhasco. Na grama sobre a qual quei de pé, no mar brilhante que eu observava e no extenso litoral de pedra calcária. Na época, nada daquilo me consolava. Temos provas de que a natureza nos é bené ca, mas no momento da crise em nada ajuda. Do mundo inteiro, não havia vista que pudesse me fazer sentir melhor naquele momento de dor extrema e invisível. A vista daquele lugar não deve ter mudado muito nas duas últimas décadas. Porém, agora sou capaz de car ali e notar sua beleza e me sentir muito diferente daquele jovem aterrorizado que eu era. O mundo nos afeta, mas não nos de ne por completo. Existe dentro de nós um espaço independente daquilo que vemos e de onde estamos. Isso quer dizer que é possível experimentar sofrimento em meio à beleza e à paz externas. Em contrapartida, podemos nos sentir calmos em um mundo de medo. Podemos cultivar a serenidade dentro de nós, alimentá-la e perpetuá-la, e isso nos impulsiona adiante. Existe um clichê sobre a leitura: há tantos livros quantos leitores. No fundo, isso signi ca que cada leitor compreende um livro de sua própria maneira. Cinco pessoas podem sentar-se para ler, digamos, A mão esquerda da escuridão , de Ursula K. Le Guin, e ter cinco reações muito diferentes entre si e não por isso menos válidas. O que importa não é tanto o que se lê, mas como se lê. O escritor pode começar uma história, mas precisa de um leitor para lhe dar vida, e isso não acontece sempre da mesma forma. Uma história nunca é apenas as É É
  • 212. palavras que a compõem. É também a leitura delas. E isso varia. É aí que mora a magia. Tudo o que o escritor pode fazer é oferecer um fósforo, de preferência seco. O leitor precisa riscá-lo para a chama arder. O mundo também é assim. Existem tantos mundos quanto habitantes. O mundo existe em você. Sua experiência dele não é aquela coisa objetiva e imutável chamada “O Mundo”. Não. Sua experiência do mundo é sua interação com ele, sua interpretação dele. Até certo ponto, cada um de nós cria seu próprio mundo. Lemos o mundo à nossa maneira. Mas também podemos, até certo ponto, escolher o que ler. Temos de descobrir o que nos entristece, amedronta, confunde, adoece, acalma ou alegra. Temos de encontrar, em meio a todos os bilhões de mundos humanos, aquele em que queremos viver. Aquele que, se não o imaginarmos, nunca nos alcançará. E, da mesma forma, temos de compreender que, embora in uencie nossos sentimentos, o mundo não é nossos sentimentos. Podemos estar calmos em um hospital ou sofrendo à beira de um penhasco na Espanha. Podemos nos contradizer. Podemos contradizer o mundo. Às vezes podemos até fazer o impossível. Podemos viver quando a morte parece inevitável. E podemos ter esperanças depois de convencidos de que não há mais esperança.
  • 213. Você, desconectado ÀS VEZES A vida parece um arranjo musical exagerado, com uma cacofonia de cem instrumentos tocando ao mesmo tempo. Às vezes a música melhora se é reduzida à voz e violão. Às vezes, quando há muita coisa acontecendo, é difícil ouvir a música propriamente dita. E, da mesma forma que a música com elementos supér uos, nós também podemos nos sentir um tanto perdidos. Nosso eu natural não mudou ao longo de dezenas de milhares de anos, e devemos lembrar disso a cada novo aplicativo, smartphone, plataforma de rede social ou arma nuclear que projetamos. Devemos lembrar a música de sermos humanos. Pensar no ar quando nos sentimos como se estivéssemos debaixo d’água. Encontrar alguma calma em uma época saturada de marketing, notícias de último minuto e milhões de abalos diários provocados pela internet. Não ter medo de ter medo. Sermos nós mesmos, magní cos, brilhantes, verdadeiros, belos, frágeis, falhos, imperfeitos, animais, cada dia mais velhos, presos ao tempo e ao espaço, mas libertados pela capacidade de parar, a qualquer momento, e encontrar alguma coisa — uma música, um raio de sol, uma conversa, um graf ti bonito — e sentir a maravilha absoluta que é estar vivo.
  • 214. 18 BASTA SER COMO VOCÊ É “Existe um único canto do universo que você com certeza pode aperfeiçoar, e é seu próprio eu.” — Aldous Huxley
  • 215. Coisas que quase sempre existiram PENHASCOS. SAMAMBAIAS. COMPANHEIRISMO. Céu. O homem na Lua. O sentimentalismo do nascer do sol e do pôr do sol. Amor eterno. Desejo atordoante. Projetos abandonados. Arrependimento. Céus noturnos sem nuvens. Luas cheias. Beijos de manhã. Frutas frescas. Oceanos. Mares. Marés. Rios. Lagos como espelhos. Rostos que emanam amizade. Comédia. Risada. Histórias. Mitos. Canções. Fome. Prazer. Sexo. Morte. Fé. Fogo. A profunda beleza silenciosa de observar o eu. A luz que se torna mais brilhante por causa da escuridão em volta. Contato visual. Dançar. Jogar conversa fora. Silêncios reveladores. Dormir. Sonhos. Pesadelos. Monstros feitos de sombras. Tartarugas. Peixe-serra. O verde da grama molhada. O arroxeado das nuvens ao entardecer. O barulho das ondas batendo contra rochas que aos poucos erodem. O brilho escuro e liso da areia molhada. O alívio de um gole que mata a sede. A terrível e fascinante consciência de estar vivo. O agora de que é feito o sempre. A possibilidade de esperança. A expectativa do lar.
  • 216. O que digo a mim mesmo quando as coisas cam demais 1. ESTÁ TUDO BEM . 2. Mesmo que não esteja tudo bem, não tente controlar algo que não dá para ser controlado. 3. Você se sente incompreendido. Todo mundo é incompreendido. Não se preocupe se outras pessoas não o entendem. Trate de entender a si mesmo. Nada mais vai importar depois disso. 4. Aceite-se. Se não conseguir car satisfeito consigo mesmo, pelo menos aceite-se como é neste momento. Você não poderá mudar se não se conhecer. 5. Não seja descolado. Nunca tente ser descolado. Nunca dê importância ao que pensam as pessoas descoladas. Procure pessoas acolhedoras. Vida é calor. Você vai estar descolado de tudo quando estiver morto. 6. Escolha um bom livro. Sente-se e leia-o. Haverá momentos na vida em que você se sentirá perdido e confuso. O caminho de volta para si mesmo passa pela leitura. Quero que você se lembre disso. Quanto mais ler, mais saberá como encontrar recursos para superar os momentos difíceis. 7. Não tente se consertar. Não se deixe cegar pelas conotações de seu nome, gênero, nacionalidade, sexualidade ou per l do Facebook. Seja mais do que dados a ser colhidos. “Quando me despojo do que sou, torno-me o que eu poderia ser”, disse o lósofo chinês Lao Zi. 8. Vá mais devagar. Ainda Lao Zi: “A natureza não se apressa, e mesmo assim tudo se concretiza.” 9. Aproveite a internet. Não a use se não estiver se divertindo. (Nada parece mais fácil sendo tão difícil.) 10. Lembre-se de que muita gente se sente como você. É possível até entrar na internet e encontrar essas pessoas. Trata-se de um dos aspectos mais
  • 217. terapêuticos da era das redes sociais. Você pode encontrar eco para seu sofrimento. Pode encontrar alguém que vai entender. 11. Como disse Yoda, não se pode tentar ser. Tentar é o oposto de ser. 12. As coisas que fazem de você alguém singular são suas falhas. Imperfeições. Aceite-as. Não tente eliminar sua natureza humana. 13. Não permita que a publicidade o convença de que a felicidade é uma transação comercial. Como disse o caubói cherokee-americano Will Rogers: “Muita gente gasta dinheiro que não tem para comprar coisas de que não precisa e assim impressionar pessoas de quem não gosta.” 14. Nunca deixe de tomar o café da manhã. 15. Vá para a cama antes da meia-noite na maior parte dos dias. 16. Mesmo em períodos mais agitados — Natal, reuniões de família, épocas de trabalho frenético, feriados —, busque momentos de paz. Busque refúgio em um quarto de vez em quando. Ponha uma breve interrupção em seu dia. 17. Compre menos. 18. Pratique ioga. É mais difícil car estressado se seu corpo e sua respiração não o estão. 19. Em tempos turbulentos, mantenha uma rotina. 20. Não compare as piores partes de sua vida às melhores das de outras pessoas. 21. Valorize mais as coisas de que mais sentiria falta se elas não existissem. 22. Não tente se decifrar. Não tente entender de uma vez por todas quem você é. Como disse o lósofo Alan Watts: “Tentar se de nir é como tentar morder os próprios dentes.” 23. Vá dar um passeio. Saia para uma corrida. Dance. Coma uma torrada com manteiga. 24. Não tente sentir algo que não sente. Não tente ser algo que não pode ser. Essa energia o esgotaria. 25. Conectar-se com o mundo não tem nada a ver com Wi-Fi. 26. O futuro não existe. Planejar-se para o futuro é apenas planejar-se para outro presente em que você estará se planejando para o futuro. 27. Respire. 28. Ame agora. Ame agora mesmo. Se tem alguém ou alguma coisa para amar, faça-o, neste instante. Ame sem ter medo. Como Dave Eggers
  • 218. escreveu: “Isso não é jeito de viver, esperar para amar.” Distribua amor com generosidade. 29. Não se sinta culpado. Hoje, a menos que você seja um sociopata, é quase impossível não sentir culpa por alguma coisa. Somos tomados pelo sentimento de culpa. Há a culpa que aprendemos a sentir na infância à hora das refeições — a culpa de comer sabendo que no mundo há quem passe fome. A culpa pelo privilégio. A culpa ecológica de dirigir um carro, voar em um avião ou usar plásticos. A culpa de comprar coisas que possam não ser éticas de algum modo que não conseguimos perceber. A culpa por desejos inconfessáveis ou desleais. A culpa de não ser as coisas que os outros gostariam que você fosse. A culpa de ocupar espaço. A culpa de não ser capaz de fazer coisas que outros fazem. A culpa de estar doente. A culpa de viver. É inútil, essa culpa. Não ajuda ninguém. Tente praticar o bem agora, sem se afogar em uma coisa ruim que possa ter feito algum dia. 30. Veja-se fora das forças do mercado. Não entre no jogo. Resista à culpa por não fazer nada. Encontre o espaço não comercializável dentro de si mesmo. O espaço verdadeiro. O espaço humano. O espaço que nunca poderia ser medido em termos de números, dinheiro ou produtividade. O espaço que a economia de mercado não consegue ver. 31. Olhe para o céu. (É maravilhoso. É sempre maravilhoso.) 32. Passe algum tempo com um animal não humano. 33. Fique entediado sem dó nem piedade. O tédio pode ser saudável. Quando a vida car difícil, procure essas emoções sem graça. 34. Não de na quanto você vale de acordo com a avaliação dos outros sobre você. Como Eleanor Roosevelt declarou: “Ninguém pode fazê-lo se sentir inferior sem seu consentimento.” 35. O mundo pode ser triste. Mas lembre-se de um milhão de atos de bondade praticados hoje que não foram alardeados. Um milhão de atos de amor. A bondade humana discreta resiste. 36. Não se auto agele por ser desorganizado. Está tudo bem. O universo é uma bagunça. As galáxias estão aí, por tudo que é lado. Você, simplesmente, está em sintonia com o cosmos. 37. Se você não se sente mentalmente bem, trate-se como se tivesse um problema físico. Asma, gripe, o que for. Faça o que for preciso para
  • 219. melhorar. E não se envergonhe disso. Não que andando para lá e para cá com uma perna quebrada. 38. Não há nada de errado com o choro. As pessoas choram. As mulheres choram. E os homens choram. Eles têm canais e glândulas lacrimais como qualquer ser humano. Um homem chorar não é diferente de uma mulher chorar. É natural. Os papéis sociais são tóxicos quando não permitem uma válvula de escape para o sofrimento. Ou para a emoção sentimental. Chora, ser humano. Chora até não poder mais. 39. Permita-se fracassar. Permita-se duvidar. Permita-se sentir-se vulnerável. Permita-se mudar de ideia. Permita-se ser imperfeito. Permita-se resistir ao dinamismo. Permita-se não passar pela vida como uma echa que vai apenas na direção do alvo pretendido. 40. Tente querer menos. Querer é um buraco. Querer é uma falta. Isso é parte dessa de nição. Quando o poeta Byron escreve “Quero um herói”, ele quer dizer que não tem um herói. O fato de querer coisas de que não precisamos nos faz sentir uma falta que não sofríamos. Tudo de que você precisa está aqui. Um ser humano é completo apenas sendo humano. Somos nosso próprio destino.
  • 220. A recompensa diminui O PLANETA TERRA é singular. Na vasta arena cósmica do universo, é o único lugar que conhecemos em que existe vida. É um lugar incrível. O mundo, por conta própria, fornece tudo de que nós, humanos, precisamos para sobreviver. Você também é incrível. Igualmente incrível. Você já era incrível no dia em que nasceu. Você já era tudo desde o dia em que nasceu. Ninguém olha para um recém-nascido e pensa, minha nossa, veja só quantas coisas que faltam . As pessoas olham para um bebê e se sentem como se estivessem diante da perfeição, intocada pela complexidade e pela bagagem da vida ainda por vir. Nascemos completos. Deem-nos algo de comer e beber, abrigo, cantem uma canção para nós, contem-nos uma história, deem-nos pessoas com quem conversar, de quem amar e de quem nos apaixonar, e pronto. Uma vida . Mas, em algum ponto do caminho, elevamos o patamar daquilo de que precisamos — ou achamos que precisamos — para sermos felizes. Somos estimulados a comprar coisas para sermos felizes porque as empresas são estimuladas a ganhar mais dinheiro para terem sucesso. É algo viciante. E não é viciante porque nos faz felizes. É justamente porque não nos faz felizes. Compramos um produto e gostamos dele durante algum tempo — gostamos da novidade que ele representa — , mas nos acostumamos a tê-lo e aí precisamos de outra coisa. Precisamos da ideia de mudança, de variedade. Uma coisa mais nova, uma coisa melhor, uma coisa mais perfeita. E aí o ciclo se repete. Com o tempo, nos habituamos a mais e mais coisas. E isso se aplica a tudo. O usuário do Instagram que gosta de receber um monte de curtidas para sua sel e logo vai querer mais curtidas e cará decepcionado se o número permanecer o mesmo. O estudante nota dez vai sentir que tirar um nove é fracassar. O empresário que ca rico vai procurar ganhar mais dinheiro. A pessoa que gosta de musculação e de ver seu corpo sarado vai querer treinar
  • 221. cada vez mais pesado. O trabalhador que recebe a promoção que queria em pouco tempo vai querer outra promoção. A cada conquista, ganho ou compra, o nível sobe mais um pouco. Já cheguei a pensar que encontraria a felicidade duradoura se meus artigos fossem publicados. Depois, se um livro fosse publicado. Depois se outro livro fosse publicado. Depois, se um de meus livros se tornasse um best-seller. E depois um segundo livro. E depois se fosse o primeiro da lista dos mais vendidos. Depois, se vendesse os direitos dele para uma adaptação cinematográ ca. E assim por diante. E eu, como muita gente, cava feliz, por algum tempo, ao alcançar cada um dos objetivos de carreira a que me propunha, mas logo minha mente se acostumava à última conquista e traçava uma nova meta. Assim, quanto mais eu conseguia, mais precisava. Quanto maior o “sucesso”, mais fácil é o desapontamento por não conseguir o que queria. A única diferença é que agora ninguém lamenta por você. Seja lá o que for que se compre ou conquiste, os sentimentos que aquilo inspira não duram. Um campeão sempre quer outra vitória. O milionário sempre quer outro milhão. A atriz sedenta por popularidade sempre quer mais fama. Assim como um alcoólatra quer mais um drinque e o viciado em apostas quer participar de um novo jogo. Mas a sensação de recompensa sempre vai diminuindo. A criança que tem cem brinquedos vai brincar cada vez menos com o último que ganhou. Pense sobre isso. Se você pudesse bancar umas férias dez vezes mais cara que as últimas, será que se sentiria dez vezes mais descansado? Duvido. Se você pudesse passar dez vezes mais tempo no Twitter, caria dez vezes mais informado? Claro que não. Se você passasse o dobro do tempo trabalhando completaria o dobro de tarefas? As pesquisas indicam que não. Se você pudesse comprar um carro dez vezes mais caro do que o seu, ele o levaria de A para B dez vezes mais rápido? Não. Se comprasse mais cremes anti-idade, você rejuvenesceria a cada compra? De novo, não. Você está condicionado a querer mais. Muitas vezes, esse estímulo vem de empresas que, por sua vez, são condicionadas coletivamente a querer mais. Querer mais é o padrão. Porém, da mesma forma como temos um só planeta — um com recursos nitos —, existe um só você. E você também tem um recurso nito: o tempo. E, vamos encarar a verdade, você não pode se multiplicar. Um planeta
  • 222. sobrecarregado nos compele a levar vidas sobrecarregadas, mas, no nal das contas, você não pode brincar com todos os brinquedos ao mesmo tempo. Não pode usar todos os aplicativos do seu telefone. Não pode ir a todas as festas. Não pode fazer o trabalho de vinte pessoas. Não pode estar em dia com todas as notícias. Não pode usar seus onze casacos ao mesmo tempo. Não pode ver todos os espetáculos imperdíveis. Não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Pode comprar mais, ter mais, trabalhar mais, ganhar mais, esforçar-se mais, tuitar mais, assistir a mais espetáculos, querer mais, mas como cada coisa nova perde seu valor, chegará um ponto em que você terá de se perguntar: para que tudo isso? Quanta felicidade extra estou conseguindo? Por que quero tantas coisas além do que preciso? Eu não seria mais feliz se desfrutasse daquilo que já tenho?
  • 223. Ideias simples para um recomeço — C ONSCIÊNCIA . TENHA consciência de quanto tempo está passando no celular, de em que medida as notícias afetam sua saúde mental, de como suas atitudes em relação ao trabalho estão mudando, de quanta pressão você sente e quanto dela advém dos problemas da vida moderna, de estar conectado ao sistema nervoso do mundo. A consciência torna-se uma solução. Assim como ter consciência de que ao tocar uma chapa quente deve-se tirar a mão para não se queimar, ter consciência dos tubarões invisíveis da vida moderna ajuda a evitá-los. — Sentir-se completo . Você não precisa sentir as de ciências que é levado a sentir, que a sociedade quer que você sinta. Você nasceu como deveria ser e permanece o mesmo. Nunca será outra pessoa, portanto nem tente. Você não tem um substituto. Você é o único que existe para desempenhar o papel de ser você. Então, não se compare, não se julgue segundo a opinião alheia. — O mundo é real, mas seu mundo é subjetivo . Mudar sua perspectiva muda seu planeta. Pode mudar sua vida. Uma das versões da teoria do multiverso a rma que criamos um novo universo a cada decisão que tomamos. Você pode estar em um universo melhor apenas ao evitar checar o celular por dez minutos. — Menos é mais . Um planeta sobrecarregado leva a uma mente sobrecarregada. Leva a dormir tarde e mal. Leva a preocupação às três da manhã com e-mails não respondidos. Em casos extremos, leva a ataques de pânico diante da prateleira de cereais no supermercado. Não se trata de “Mo Money Mo Problems” [mais grana, mais problemas], como diria o rapper Notorious B.I.G. É “mais tudo, mais problemas”. Simpli que a vida. Abra mão daquilo de que não precisa. — Você já sabe o que tem importância. É claro que o importante são as coisas de que você realmente sentiria falta se não as tivesse mais. São as coisas às quais você deve se dedicar sempre que possível. Pessoas, lugares, livros, comidas,
  • 224. experiências, o que for. E, às vezes, para aproveitar bem essas coisas, você precisa renunciar a outras. Você precisa se libertar delas.
  • 225. O que importa HÁ UMA SEMANA levei coisas que vinha acumulando a um bazar de caridade e me livrei delas. E me senti melhor. Não apenas pela questão de doar, mas pela sensação de limpeza. Minha casa agora está livre de uma porção de entulho. Roupas que nunca uso, loções pós-barba ainda fechadas, duas cadeiras que nunca eram usadas, DVDs antigos que não veria de novo e até mesmo — pasme — alguns livros que nunca lerei. — Você tem certeza de que quer se livrar de tudo isso? — perguntou Andrea, olhando o cenário de sacos de lixo no corredor. Até ela, que ama se livrar de coisas desnecessárias, cou surpresa. — Tenho. Acho que sim. O caso é que no processo de jogar coisas fora acabei valorizando mais o que tenho. Por exemplo, quando estava separando alguns DVDs, achei um que não só queria continuar tendo como queria revê-lo. A felicidade não se compra . E, de fato, assisti a esse lme duas noites depois. Minha intenção não é lhe causar a sensação de estar perdendo alguma coisa — e não é nenhuma grande novidade —, mas, se você nunca viu A felicidade não se compra , recomendo. Não é um lme água com açúcar. É sincero e sentimental, sim, mas de uma maneira franca. É puro. Poderosíssimo. É sobre a grande importância de levar uma vida pequena. Sobre por que somos importantes. Sobre a diferença que uma vida pode fazer. Sobre porque devemos permanecer vivos. Assistir a esse lme nunca é uma perda de tempo. Ele ajuda a valorizar o tempo. Trata-se de apenas um exemplo de como a eliminação de coisas medíocres que ocupam seu tempo e sua casa ajuda a destacar o que há de bom. Da mesma forma, limitar o acesso às notícias ajuda a priorizar o que é importante quando você se atualiza. Trabalhar menos horas ajuda a torná-las mais produtivas. E assim por diante. Simpli que. Edite sua vida. É
  • 226. Mas, para ser sincero, a limpeza é a parte mais fácil. É fácil reduzir à metade o número de peças em seu guarda-roupa. É fácil usar um ltro melhor na caixa de entrada do seu e-mail e desativar as noti cações no celular. É fácil ser mais gentil com as pessoas na internet. É relativamente fácil ir para a cama um pouco mais cedo. É relativamente fácil passar a ter consciência da respiração e reservar meia hora para praticar ioga todos os dias. É relativamente fácil pôr o celular para carregar à noite fora do seu quarto. (Está bem, essa é mais difícil, mas estou conseguindo.) A parte realmente difícil é mudar atitudes dentro de si mesmo. Como fazer para editá-las? São as atitudes que estão arraigadas em você pela sociedade. Atitudes a respeito do que você precisa fazer e ser e como será avaliado por elas. Atitudes referentes a como você deve trabalhar, ganhar, consumir, assistir e viver. Atitudes sobre a separação entre sua saúde mental e a física. Atitudes sobre todas as coisas que você é levado a temer pelos publicitários e políticos. Sobre todos os desejos e carências que se supõe que você deva sentir para manter a ordem econômica e social. Pois é. Não é fácil. Mas o segredo parece estar na aceitação. Aceitação de quem você é. Aceitação da realidade da sociedade, mas também da sua própria realidade, sem se sentir incompleto. É esse sentimento de carência que enche nossa casa e nossa cabeça de entulho. Tente manter seu eu pleno. Um ser humano completo, total, que existe com o único propósito de ser você mesmo. “A questão é libertar o eu”, disse Virginia Woolf, enquanto lutava para conseguir fazer isso. “Deixar que ele encontre suas dimensões, sem ser impedido.” Aliás, eu estaria mentindo se dissesse que já cheguei lá. Ainda estou longe. Estou mais perto, mas ainda falta muito. Duvido que algum dia consiga chegar lá em de nitivo, àquele estado abençoado de nirvana além do mundo nervoso da tecnologia, do consumismo e da alienação. Com a mente clara como um riacho em uma montanha. Não há ponto de chegada. Não se trata de ser perfeito. Na verdade, punir-se por não ser perfeito é parte do problema. Portanto, aceitar quem sou — uma versão melhorada, mas imperfeita — é uma tarefa contínua, mas muito compensadora. Conhecer o que não lhe é saudável torna muito mais fácil se proteger. É
  • 227. É o que acontece com o que você come e bebe. Saber que chocolate e Coca- Cola não são saudáveis não quer dizer que nunca mais vou consumi-los. Mas talvez isso me fará consumi-los menos, e quem sabe até apreciá-los mais do que quando me entupia deles, agora que se tornaram especiais. Assim, em vez de passar cinco horas diante da TV, agora tento assistir a um só programa. Em vez de passar a tarde inteira nas redes sociais, vou passar dez minutos, sempre prestando atenção na hora no computador para saber quando entrei e quando devo sair. Tento fazer boas ações e coisas legais sempre que posso. Nada heroico, só o de costume: dedicar-me um pouco à lantropia, conversar com alguém sem-teto, ajudar as pessoas com sua saúde mental, ceder o lugar no trem. Pequenos atos de bondade. Não apenas para não ser egoísta, mas porque praticar o bem cura. Você se sente melhor depois. É uma espécie de faxina psicológica. Porque a bondade lava a alma. E talvez torne este planeta nervoso um pouco menos nervoso. É um esforço contínuo. Tento ser legal comigo mesmo. Não me sentir como se me aceitar fosse trabalhoso, dispendioso ou sacri cante. Saber que não preciso ser durão e invulnerável para ser homem. Que não preciso me preocupar com o que os outros pensam de mim. E mesmo quando me sentir fraco, até mesmo quando tiver pensamentos e medos indesejáveis, toda essa tralha mental , tento car calmo. Tento nem tentar. Tento apenas aceitar quem sou. Aceito o que sinto. E assim posso entender a situação e mudar o modo como me relaciono com o mundo.
  • 228. O mundo está dentro de você VOCÊ PODE SER parte do planeta. Mas, da mesma forma, o planeta faz parte de você. E você pode escolher como reagir a ele. Você pode mudar as partes dele que entram em você. Sim, em certo sentido, é fácil perceber que o planeta está apresentando sintomas semelhantes aos de uma pessoa com transtorno de ansiedade, mas não existe uma versão única do mundo. Existem sete bilhões de versões dele. A questão é encontrar aquela que funcione melhor para cada um de nós. E lembrar. Tudo o que há de especial no ser humano — nossa capacidade de amar, de fazer arte, de praticar a amizade, contar histórias e tudo o mais — não decorre da vida moderna, mas do fato de sermos humanos . Assim, enquanto não conseguirmos nos afastar do estresse frenético e transitório da vida moderna, podemos dar ouvidos a nosso ser humano (ou a nossa alma, se você preferir) e escutar a imobilidade silenciosa do ser. E compreender que não precisamos nos distrair de nós mesmos. Tudo de que precisamos está aqui. O que somos é o bastante. Não precisamos de um barco maior para lidar com os tubarões invisíveis a nossa volta. Nós somos o barco maior. O cérebro, como disse Emily Dickinson, é maior que o céu. E quando percebemos como a vida moderna nos faz sentir, ao reconhecer a realidade e manter a mente aberta a ponto de notar quando a mudança é bené ca a nossa saúde, poderemos nos comprometer com esse belo mundo sem a preocupação de que ele nos roube de nós mesmos.
  • 229. Começo OLHO PARA O relógio do computador. Passei a fazer isso para controlar o tempo que passo diante da tela. O fato de saber quanto tempo co no computador por si só já resulta em car menos tempo. Suponho que esse seja o segredo: estar consciente. Outra oportunidade de exercer a consciência. Estou consciente do cachorro que está a meus pés. E consciente da vista. O sol brilha do lado de fora de minha janela. Posso ver o mar ao longe. No horizonte dá para ver um parque eólico marinho, pequenas linhas de esperança. Um cruzamento de cabos telegrá cos corta a cena como traços em uma pintura abstrata. Telhados e chaminés apontadas para o céu que raramente observamos. Olho para o mar e isso me acalma. Estou tentando me manter em sintonia com o que existe no mundo que nos faz sentir bem. É assim que podemos viver no presente. É assim que cada momento se torna um recomeço. Estando conscientes. Livrando-nos do que não necessitamos e encontrando o que nosso eu realmente precisa. E é nessa consciência que conseguiremos encontrar um meio de nos mantermos éis a nós mesmos e ainda assim continuarmos apaixonados pelo mundo. Esse é o objetivo. É difícil. É di cílimo. Mas é, também, melhor do que o desespero. E, uma vez que você tem certeza de que não vai fracassar nessa tentativa, posto que aceitou suas confusões e falhas como naturais, a coisa ca bem mais fácil. Ainda hoje irei a um shopping center. Não gosto de shopping centers, mas já não me causam ataques de pânico. O segredo da sobrevivência em shopping centers, supermercados, a comentários negativos na internet e a tudo o mais é não os ignorar ou fugir deles, ou enfrentá-los, mas deixar rolar. Aceitar que não temos controle sobre eles, apenas sobre nós mesmos.
  • 230. “Porque, a nal de contas”, escreveu o poeta Henry Wadsworth Longfellow, “o melhor a se fazer quando está chovendo é deixar chover.” Isso. Deixe chover. Deixe estar o planeta. Você não tem alternativa. Mas tenha também consciência de seus sentimentos, bons e ruins. Saber o que dá certo para você e aceitar o que não dá. Saber que chuva é chuva e não o m do mundo torna as coisas mais fáceis. Mas neste momento não está chovendo. Por isso, assim que terminar esta página, vou salvar o documento, fechar o laptop e sair. Para tomar ar e pegar sol. Para a vida.
  • 231. Pessoas a quem quero agradecer GOSTARIA DE AGRADECER a todas as pessoas que conheci na vida real ou pela internet ao longo dos últimos anos que tiveram coragem de falar sobre sua saúde mental. Quanto mais conversamos, mais incentivamos os demais a fazer o mesmo. Embora os livros tenham só um nome na capa — o que é ridículo —, eles são normalmente um trabalho de equipe, e foi o caso com este, mais que com qualquer outro. Primeiro, devo in nita e permanente gratidão a minha grande, acolhedora, destemida e incansável agente Clare Conville, e a todos da sua equipe na C+W e na Curtis Brown. Devo agradecer a meu maravilhoso e paciente editor Francis Bickmore, da Canongate, e a todas as outras pessoas sagazes que leram as primeiras versões deste livro, inclusive meus brilhantes editores do outro lado do oceano — Patrick Nolan, da Penguin Random House, nos Estados Unidos, e Kate Cassaday, da HarperCollins, no Canadá. Este livro não seria este livro sem o olhar perspicaz de Alison Rae, Megan Reid, Leila Cruickshank, Jo Dingley, Lorraine McCann, Jenny Fry e do chefão da Canongate Jamie Byng. Agradeço também a Pete Adlington por seu esplêndido trabalho na capa e a toda a equipe da Canongate que deu duro trabalhando neste e em meus outros livros; esse time é composto por Andrea Joyce, Caroline Clarke, Jess Neale, Neal Price, Alice Shortland, Lucy Zhou e Vicki Watson. Obrigado a todos os amigos de redes sociais que me permitiram citá-los aqui. E, é claro, obrigado a Andrea, por ter sido a primeira e mais sincera leitora deste livro e por ser alguém que torna menos enervante a vida neste planeta nervoso. E peço desculpas a Pearl e a Lucas, já que esta obra, ironicamente, me fez passar mais tempo do que de costume na frente do computador. E obrigado a você por ter escolhido este livro entre a in nidade de livros existentes. Isso signi ca muito para mim.
  • 233. Sobre o autor © Clive Doyle MATT HAIG é o autor best-seller de Razões para continuar vivo e outros cinco livros aclamados voltados para o público adulto, incluindo Como parar o tempo , Os humanos e Os Radley . Na literatura infantil e infantojuvenil, ganhou o Blue Peter Book Award, o Smarties Book Prize e foi indicado três vezes para o Carnegie Medal. Sua obra já foi traduzida para mais de quarenta idiomas. matthaig.com @matthaig1
  • 234. Conheça outro título do autor Razões para continuar vivo
  • 235. Leia também A arte de viajar Alain de Botton
  • 236. Alucinadamente feliz Jenny Lawson O lado bom da vida Matthew Quick