O documento contém vários poemas e textos curtos que exploram temas como saudade, passagem do tempo, amor e natureza. Os poemas usam imagens e descrições evocativas para transmitir sentimentos e reflexões sobre a vida.
3. Textos moleques que fugiram da gaveta só para se exibirem.
Humberto Bley Menezes
Para minha esposa Elizete, meus filhos
Valéria, Fábio, e Felipe. Também para meus netos Isadora e
Luis Gustavo com amor. Com carinho para
Luiz Augusto e Melissa, pelo apoio.
“Em verdade, em verdade vos digo que, se o
grão de trigo que cai na terra não morrer, fica
infecundo; mas, se morrer, produz muito fruto.”
São João, CapXII, Vers. 24 e 25.
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6. AO MENOS UM ACENO
Fim de tarde.
Passeando pela alameda da nostalgia
Deparei-me com o rio da minha infância.
Um rio e uma ponte.
Um pequeno barco.
Um menino, uma canoa.
Nas mãos um comprido bambu,
Movimentando a paisagem.
Quanta semelhança com o guri
Que fui aos dez anos.
O mesmo boné de feltro quadriculado,
Calça curta presa por uma só alça de suspensórios,
A camisa, suja das brincadeiras
Presa por um só botão.
Os óculos “fundo de garrafa”
Escorregado no meio do nariz.
De algum lugar conhecia aquele petiz.
Olhamo-nos longamente...
Imagem de fotografia antiga.
A tarde encolheu devagar,
Afastou-se o barquinho
E o menino de pés enlameados também.
Nem sequer um aceno...
O passado não se despede.
Dei as costas aos últimos raios de sol,
Ergui os óculos,
Ajeitei o boné quadriculado,
Engoli a bílis amarga da saudade,
E segui.
Nômade, errático, andejo.
Cativo das minhas fotos desbotadas.
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7. A CHAVE
Tempo e silêncio,
Eis a chave do enigma.
Saudade é uma serpente
Que corrompe a serenidade
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8. ARDIL
Não me pergunte quando, pois certamente errarei no palpite,
mas, de alguma forma o equilíbrio se fará naturalmente.
Parece que ações opostas teimam em se harmonizar no fim
das contas.
Toda a criação humana embora pareça revolucionária não
passa de ferramenta da natureza para encontrar seu
equilíbrio.
Ao homem cabe o papel de se descobrir, enquanto ser
racional, como qualquer marionete impulsionada pelo vírus do
novo e do desconhecido. Desvendar fórmulas, que
escondidas esperam o amadurecimento da inteligência para
surgir como invenção, descoberta, ou criação humana.
O ser humano como parte da natureza coabita o mesmo
ambiente das coisas passadas e futuras, tudo o que houve,
há, e haverá na história do universo.
A explosão inicial na medida em que se preservava absorvia
composições possíveis.
A ordem universal e todas as coisas fecharam a fôrma do
plano possível.
Enfim tudo se delineou, se entrelaçou de tal modo, que tudo
está resolvido.
Cabe ao tempo, através de seus agentes, o ser humano e
todas as coisas e seres existentes, caminhar, evoluindo passo
a passo, montando as peças do enigma para enfim conhecer
a verdade. E aí sim descobrir a felicidade ou a desilusão de se
descobrir apenas mais um ente da trama, sem forma, sem
moral, sem ética ou estética que encobre a existência. Ela
mesma apenas um detalhe no buraco negro do holocausto.
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9. ECOS DE VERÃO.
Pingo...
Pingo...
Pingado, do céu e do telhado.
Pingo...
Pingo...
Molhado, da goteira e dos meus olhos.
Restinho de água escorrendo pela face e assoalho.
Um gato lambe a última das gotinhas.
Meus lábios ensaiam um sorriso.
Sufoca-me a última gota represada no coração.
O gato me olha sedento.
Deito-me na rede, coberto pelo céu.
Vejo canários da terra beliscando o gramado,
E vespas montando casulos no beiral.
Conto as telhas no telhado aparente.
Percebo o vento, conversando gentil,
Com as folhas e galhos dos sombreiros.
O peito não resiste,
A represa se rompe
Encharcando o presente,
Remoendo o passado,
Devassando o futuro.
E escurece.
Tempestade não pede licença.
Cai furiosa para confundir pingos e pranto.
Chuva de verão,
Que assusta o felino,
Espanta os passarinhos,
Agita os marimbondos,
E se arvora arrogante,
Para findar com o encanto.
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10. ATEU. GRAÇAS A DEUS.
Não sei. A falta de argumento e a obrigação que me imponho
de escrever alguma coisa se transforma em desafio. Nada de
idéia, nem de assunto. Como é difícil esta merda de ter que
escrever. No meu caso, pretensioso e preguiçoso que sou
realmente torna-se difícil passar um texto sem motivação,
assunto ou vontade. Mas muitas vezes foi assim que comecei
minhas obras primas Estou achando que este é mais um
exemplo. Sim, tenho muitas obras primas. Pena que o mundo
não as conhece. Ninguém as conhece. Vou dormir muitas
noites, certo de que passei a quem por desgraça leu em meus
textos algo do que se passa no seu coração, e se reconfortou.
Durmo feliz, achando que de alguma forma, dentro da minha
mediocridade estaria passando a alguém mais medíocre
ainda, algo de positivo que ensejasse ações de fortalecimento
do caráter e do bem que existe em todo o ser humano; quem
sabe um nó na garganta, abafando a emoção, válvula de
escape para suportar o cotidiano. O ser humano não lê. Não
lê porque não sabe ler. Porque ler é tempo e tempo é
sobrevivência. E a sobrevivência é mais importante que a
literatura. Sei que com as minhas obras cada vez mais
primeiras, na medida em que vou perdendo os escrúpulos e
escrevendo sobre o que realmente penso, ou melhor, quanto
mais penso mais me desprezo porque nada do que penso ou
sinto resiste a alguns momentos de reflexão. Sendo assim, a
obra prima da noite anterior se torna lixo na manhã seguinte.
O maior problema é que o que realmente penso e sinto de um
momento para o outro muda de direção como o vento como
a insegurança do mais seguro dos mortais. A vida é rio
correndo para o mar, o medo de exame de sangue, da AIDS,
a bolsa de valores, é a polícia, a justiça dos homens. Pena
que em termos de justiça, como não acredito na dos homens
e como não creio na do céu, encontro-me perdido nas minhas
certezas. E na condição de ateu, já decidi: seja o que Deus
quiser.
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11. ANITA
O ar cinzento e fino, a tarde lívida e seca, nenhum aceno na
distância, a vida parada, o mundo ausente, assim. Perdido o
prumo. Neste momento de não sei que, não sei onde, luzes
passam com rapidez, olhos acima inquisidores, tilintar de
ferramentas extraindo a bala, regenerando a vida recuperando
um destino que renderá certamente muita tristeza, muita
euforia, contradições, traições, devoção, felicidade, desgraça,
tragédias e paixões debochadas. Tudo enfim que a vida de
uma pessoa nascida para usufruir todos os elementos,
inclusive da morte, a maior testemunha da existência da vida
que muitos valorizam de tal forma que não percebem que
desejada ardentemente, muitas vezes torna-se prólogo da
felicidade.
- Anita. Está livre deste hospital. Pode agora sair para onde
quiser, até mesmo para este lugar misterioso que diz existir no
mundo, o qual eu duvido que resista a você. Sossega menina.
De qualquer forma, embora minha vontade tenha se perdido
nos teus beijos arrebatadores e nos teus deboches e risadas
do meu jeito de fazer amor, não te esquecerei, vagabundinha.
Espero que alguém possa te fazer mais feliz que este tal de
Armando.
- Doutor, eu espero nunca mais encontrá-lo, mas para seu
consolo, devo dizer que você é muito gostoso. Tuas últimas
noites de plantão me tiraram da sensação de estar só, tão só
que não resistia mais aos apelos da morte, desta vez sem
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12. sentido. Deixa estar sairei por aí a procura novamente de um
amor tão pungente que as asas imóveis do tempo possam
transformá-lo em vida plena e feliz até na velhice, ou na
morte, cuja substância lentamente me arrebata e consome.
Tchau, doutorzinho.
Anita saiu, percorreu ruas e avenidas, Nas costas uma
mochila quase vazia carregava Conchita,sua bonequinha
espanhola, dançarina de castanholas mudas que girava para
um lado e outro ao som de uma musiquinha chata que às
vezes irritava Armando. No pensamento a estória de Cintia
que um jornal vagabundo o vento grudou em sua barriga e por
acaso indicou seu destino A tragédia da mulher assassinada
pelo amante traçou o rumo da moça que sem Armando tomou
a direção da cidadezinha. Sem o alento tênue e vago, com a
confiança dos que nada mais tem a perder, nem a ganhar, e
passam a vida como agentes do contraditório usufruindo os
fatos que provocam, buscando a satisfação incontrolável não
medindo parâmetros, desprezando o convencional
cinicamente usando da mediocridade
O fato é que ela chegou para tornar-se uma nova Cintia ou
mesmo redimir Anita, não se sabe. Mas, seu primeiro ato ao
plantar gerânios foi ornamentar o ambiente para Conchita
dançar livremente A música da caixinha ecoou pela cidade. E
no coração das pessoas estancou-se o vácuo e aquele
casarão que seria desabitado para sempre, tocou a melodia
da vida, gargalhou debochado, gemeu e desmaiou
escandaloso como presente de Anita, dona de herança
incalculável, que ao deixar o convento aos dezoito anos
decidiu ao ultrapassar as muralhas, viver a substância da vida
desprendida de moral e costumes. Ser livre, expor a carne e a
alma ao imponderável destino.
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14. TICO, QUASE PELÉ
Tico era um menino esperto. Morava perto da minha casa
quando criança em uma vila de casas juntinhas e iguais.
Antigamente se destinavam a empregados de uma fábrica de
macarrão. Menino bom de bola, esperto e sempre sorridente
passava seus dias entre a escola pública pela manhã e as
peladas durante as tardes. Também ajudava sua mãe fazendo
alguma coisa dos trabalhos domésticos. Mas a maior parte do
tempo passava no campinho no qual se reunia a criançada da
rua para memoráveis peladas diárias. Tico se sobressaía
entre os guris, pois possuía um refinado tratamento com a
bola de futebol. Tratava-a com carinho e delicadeza, mesmo
porque a bola de couro, um tanto surrada de tantos embates,
era sua. De tal maneira que as pelejas só começavam quando
ele chegava. Vinha só com a bola nos dias de treinos e com
um saco de farinha cheio de camisas e meias do time que
Dona Maria, sua mãe, tratava de lavar e passar depois de
todas as partidas que Real Futebol Clube se apresentava nos
desafios dos times das ruas vizinhas ou mesmo de algum
outro bairro.Até do centro da cidade já haviam recebido
convites para torneios de fim de semana . Muitos valiam até
taças aos vencedores. Tico tinha uma verdadeira paixão por
futebol. Mais do que ele apenas seu Chico seu pai adorava
tanto o modo de jogar de seu filho que o tratava como um
verdadeiro herói. Sim, Tico era o herói de seu Chico embora
este tivesse mais nove filhos sendo destes seis mulheres. Tico
adorava seu pai e ouvia encantado as estórias das partidas
que este havia disputado como soldado do exército no tempo
do “tiro de guerra”. Até convite para treinar no Primavera,
clube da primeira divisão, havia recebido. Infelizmente, a
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15. necessidade de sustentar sua mãe viúva e muitos irmãos
menores não lhe permitiu seguir carreira. Acabou se tornando
motorista de caminhão e viajava pelo país entregando
mercadorias e contando aos outros colegas o quanto era bom
de bola seu querido Tico. Terminado o treino Tico colocava
sua bola embaixo do braço e antes de ir para casa passava no
açougue da esquina para pegar um pedaço de pelanca de
carne com bastante gordura, ficava sentado no degrau da
porta da cozinha em casa esfregando sebo na bola. Dizia que
era para não ressecar o couro. Feito isto tomava seu banho
jantava aquela gostosa sopa de feijão com ovo inteiro e couve
mais um pãozinho que sua mãe preparava e ia deitar, sem
antes fazer os deveres da escola. Sonhava. Tico sonhava com
as oportunidades perdidas na última partida. ”– Eu devia ter
entrado mais, a bola era para bater de esquerda, meu pai
sempre me diz para travar de direita e bater de esquerda. Foi
pra isso que ele me treinou desde pequeno para chutar com
os dois pés. E naquela hora eu tinha que penetrar mais na
área, tinha espaço, meu pai não gostou, espaço é para ser
ocupado e explorado. É que nem posseiro, se tiver
desocupado ocupe e tire proveito, dizia. Se clarear chute.
Felizmente consegui aquele drible, bati de bico mesmo, mas
valeu. Ganhamos. Preciso me ligar, um chapéu no zagueiro ia
ser bonito. Ainda vou tentar.”
Finalmente chegaram as férias escolares. Toda a garotada
em alvoroço. O campeonato organizado pelo seu Chico com o
patrocínio do Dono da Transportadora em que trabalhava
estava preste a começar. Já tinha tabela organizada e doze
times iam participar. Viria time até do outro lado da cidade,
gente rica, filhinhos de papai. Valia faixa, medalha para o
artilheiro, melhor goleiro e até uma taça enorme que seria
disputada todos os anos. Assim como é na copa do mundo.
O Real Futebol Clube ia muito bem no campeonato. Tico já
era considerado o melhor do campeonato. Seu Chico
orgulhoso não cansava de pagar cervejas para os amigos a
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concordavam, Tico teria de treinar em algum clube grande,
realmente seu talento era um dom.’ Eu que preparei o
moleque desde pequeno. Ensinei a chutar com os dois pés, a
cabecear, a se colocar na área e tudo o mais. Esse moleque é
demais se vangloriava o orgulhoso pai. ’
O domingo chegou e com ele a partida final: Real contra o
Social Clube. Era um time da zona mais rica da cidade. Clube
de pessoas de dinheiro. Seu Chico andava preocupado com a
arbitragem e exigiu que se convocasse um árbitro lá de Rio
Negro, uma cidade próxima, pois tinha fama de honesto nos
jogos que apitava. Não cobrou nada veio só pela cerveja e a
linguiçada no fim do jogo.
Infelizmente Seu Chico a pedido de seu patrão precisou
fazer uma viajem inesperada, para uma entrega urgente. Ao
chegar a casa chamou Tico e explicou que não se
preocupasse, pois iria viajar, mas retornaria a tempo de
assistir a partida, nem que para isto viajasse a noite toda.
Olha meu filho trouxe um presente para você. Tico quase não
acreditou ao ver uma chuteira novinha reluzente, de marca,
como nunca tinha visto na vida.
Pelo que você fez até agora no campeonato está a merecer.
Esta chuteira vai fazer muitos gols. Tico quase desmaiou de
felicidade, chorou muito e soluçando abraçou fortemente seu
pai. Afinal ele sempre dividia um par de chuteiras com seu
irmão mais velho. E quando jogavam juntos usava um pé e
Zezinho o outro. No outro pé ele colocava o tênis da
escola..Agora ele tinha um par só para ele.e novinha. Se o Zé
precisa-se ele emprestaria de vez em quando, coitado.
Seu Chico nunca faltou a nenhum jogo do qual Tico
participasse. Para o menino os gritos de seu pai e a certeza
de que tinha sempre o incentivo dele a beira do campo o
fortalecia e enchia de confiança. Tomara que ele chegue a
tempo desta vez. Quando ele fazia uma boa jogada procurava
na platéia o boné azul e branco que seu Chico não tirava da
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17. cabeça e via o sorriso aberto e as mãos enormes aplaudindo.
Também apoiava quando ele errava um passe ou chutava
para fora. Boa, Tico, na próxima nós acertamos, dizia. Ele
jogava junto.
Tico estava ansioso, o jogo final já estava por começar e nada
do Boné do seu Chico aparecer. Acho que ele quer fazer
surpresa, pensou.
O jogo corria nervoso. Segundo tempo empate em um a um.
Tico havia dado o passe para o gol do Real. O juiz prejudicava
abertamente os meninos do Real. Parece que se interessou
mais com o vinho e um churrasco no clube social. Tico corria.
Driblava, centrava e nada de gol. Segundo tempo, e Seu
Chico não aparecia. Tico volta e meia o procurava na
assistência. Nem precisava, pois seus gritos ele os ouviria
com certeza se lá ele estivesse.
Em vez disso viu suas seis irmãs a beira do campo acenando
desesperadamente. Na primeira oportunidade que o jogo lhe
permitiu se achegou a elas. Percebeu que choravam.
-Tico o caminhão tombou, papai morreu “”.
O goleiro gritou; Tico é tua ta sozinho. Tico matou a bola no
peito, viu espaço para correr e explorar, entrou na área o
zagueiro grandão vinha sobre ele, conseguiu aplicar um
chapéu, pegou do outro lado, e de esquerda emendou um
chute que estufou a rede. O gol do seu Chico.Todos
comemoravam. Tico saiu de campo tirou as chuteiras colocou
o seu velho e surrados chinelos de dedo , entregou chuteira
novinha para o Zé e saiu pela avenida cheia de carros e
indiferença. Mergulhou no cotidiano da cidade e por alguns
anos ninguém soube dele.
Certo dia, na fila de entrada, para um espetáculo de teatro,
escutei uma voz conhecida. – ‘Baleiro, Balas’. Reconheci
aquele rapaz esguio com um tabuleiro pendurado ao pescoço.
---Bala doutor, amendoim? Puxei imediatamente do bolso do
meu, sobretudo o boné azul e branco que prometi a sua mãe
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18. entregar a ele se um dia o encontrasse. Coloquei-o na cabeça
e quando de mim ele se aproximou eu disse apenas:
amendoim, do salgado. Ele me olhou fixamente por alguns
segundos entre surpreso e emocionado. Eu lhe passei o boné
e balbuciei – Espaço vazio é para se avançar e ocupar, Tico.
Ele tirou o tabuleiro do pescoço colocou-o sobre o colo de um
mendigo sentado no meio-fio e partiu. Sumiu na escuridão.
Estou contando esta estória porque ontem depois de alguns
anos participei de uma festa de formatura de Medicina e
durante a solenidade muito me chamou atenção à figura
imponente do reitor da universidade. Depois de todos os
discursos e entrega de diplomas, por ocasião dos festejos
finais, comuns em todas as formaturas, quando todos os
formandos se confraternizam, percebi o Magnífico Reitor
despojar-se da indumentária formal, e emocionado colocar na
cabeça um boné azul e branco. Para mim o parágrafo final
desta narrativa. Tico realmente fora um goleador.
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19. PASSEIO DOS LOBOS
Noite, escura madrugada. Vento soprando forte.
Calor sufocante.
A esquina me direcionou ao cemitério.
Lobo de olhos amarelos novamente guiando minhas atitudes.
Duas almas passaram ao meu lado indiferentes, riam,
gargalhavam..
Sete cachorros e uma cadela no cio ziguezagueavam na
dança pela reprodução.
Um vulto saiu por detrás de uma árvore. Os olhos
profundamente amarelos dos lobos.
Estáticos em todos os desertos do planeta
aguardavam o desenrolar deste meu delírio.
Um cheiro forte de urina contaminou meu terror.
Um gato preto pulou do muro.
Um bêbado se levantou de repente e
vomitou no meu sapato.
Lagartixas fugiram gargalhando.
As minhocas eram serpentes. Perto da lua ausente, o olhar
estático da fera.
A noite escura, o muro branco, escancara uma abertura
cúmplice, permitindo minha passagem.
A escada rolante me levou ao campo santo.
Chapéus e lenços brancos acenavam
Dois lobos uivavam
Vovó levantou do túmulo e me abraçou.
Seus ossos caíram aos meus pés.
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20. Seus filhos, os do além, urgiram em juntá-los.
Um rastro de fogo me seguiu.
Todas as velas anteriores acenderam.
Véus e dançarinas circundavam os túmulos.
Aves negras riscavam o vento.
Virgens gritavam desesperadas.
Flores murchas se revigoraram.
Um copo de leite me tirou para dançar
Ossos irromperam das covas
Lápides de mármore e granito flutuaram
Como tapetes voadores.
Um anjo de cobre derreteu-se em agonia
E aos gritos desesperados.
Lobos expuseram as presas em todos os desertos.
Corri como nunca.
Derrubei almas penadas.
Fui xingado, amaldiçoado.
Onde se viu, ser tão mal educado?
Exausto sentei na amurada de um túmulo.
Flores ainda fedendo,
Algumas pisadas,
Por alguém descuidado no enterro recente.
Ofegante, desesperado, conformado,
Procuro guarida no nome do descarnado.
Local de morto inconformado.
O buraco teimosamente aberto,
A lápide reluzente,
A frase definitiva:
Não sei se cheguei ou parti.
Os lobos, então, descontraídos, voltam as costas para minha
agonia e saem altivos e solitários, como eu, pela escuridão
adentro, deixando os fantasmas que teimam em não me
abandonar.
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21. ZAZAGUGA
Para Isadora e Luis Gustavo.
Por humilde que seja meu pensamento, e nem sei por que
penso assim, acho que nada mais perfeito do que me diminuir
ao ponto de penetrar na grama do jardim, abaixo desta
simples planta inglesa, absorver meu ego, minha vida, meus
amores e dissabores. Acho que neste ambiente diminutivo me
seja possível libertar das injunções do ambiente Supondo,
meus ais libertos da filosofia reinante, dos críticos, da
realidade, entre minhocas, e todo o resto que se joga no
chão... Convivo. Não por prazer, mas por necessidade de me
esconder do dia a dia, para conseguir voar nestas palavras
cheias de sentimento e verdade.
Era uma vez:...
Acho que não está pronta a estória.
Na verdade foi uma vez na minha condição de ser minúsculo,
um privilegiado. Ser possível observar no vai e vem de
determinadas pessoas os verdadeiros objetivos de um
coração condicionado ao “meio ambiente”. Pobre tatu bola’,
cada vez mais enrolado no seu desalento, medo das minhas
palavras otimistas, apavorado pelos gritos de realidade que
enterrei na grama do jardim. Baú de bons sentimentos, que
descobri um pouco abaixo das boas intenções, enterrado por
aí. Talvez dentro de uma maleta de couro de jacaré, forradas
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22. com manchetes de jornais.
Tudo isto pode ser apenas um sonho, mas entre migalhas,
terra, microorganismos, neste meu sonho louco surgiram os
pés incautos do meu Guga e as mãos sôfregas da minha
Záza. Era um sonho. Meu menino sorria, gargalhava pisando
formigas. Minha menina delicadamente rebuscava entre as
folhas do jardim minha imagem contente, esparramada como
um mar de essências perfumadas. Tudo para tentar absorver
a felicidade de duas crianças. Uma, o menino, em busca da
cumplicidade, outra, a menina, na certeza da delicadeza. Os
dois, parceiros da minha colheita de perfumes que
sobreviverão certamente ao húmus transgênicos, ou não, da
saudade.
Tatu bola,
Formiguinha,
Zangão do maracujá.
Se esta rua.
Se esta rua
Fosse minha....
Eu mandava, eu a mandava brilhar...
Se esta festa, este sonho me pertence.
Gostaria,
Gostaria,
Nesta vida, nesta vida
Realizar
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23. INSPIRAÇÃO
Instante...
Súbito raio,
Tolos pensamentos.
Faísca atrevida,
Resgatada do enigma.
Sonhos libertos,
Por instantes livres e plenos.
Delírios e transpiração
Liberdade ancestral
Explosão de imortalidade.
Candura, riso e choro, agonia.
Momento que antecede
A criação.
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24. A ARANHA.
Tecendo
Subindo
Descendo
Indiferente,
A aranha assusta-se.
Olha-me com olhar curioso.
Sorrio apático.
Ela boceja.
Prossegue na sua labuta,
Retorna a alinhavar.
E eu continuo
Preso ao emaranhado,
Cativo da minha preguiça,
Carente do teu colo.
Sou mosca presa na teia
Da tua ausência.
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25. ANGÚSTIA
Como se fosse vento.
Como se fosse brisa.
Como se fosse o tempo.
Como se fosse hoje.
Como se fosse agora.
Como se fosse sempre.
Como se fosse eterno.
Como se fosse ontem.
Como se fosse tênue.
Como se fosse pluma.
Como se fosse raio.
Como se fosse espuma.
Como se fosse água.
Como se fosse fogo.
Como se fosse nada.
Como se fosse tudo.
Como se fosse vida.
Como se fosse fim.
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26. CONCLUSÃO
Da vida desejei interjeição.
Busquei decifrar a interrogação.
Vivi somente a afirmação!
E em reticências...
·Cheguei a este ponto final.
26
27. DÚVIDA ATROZ
Quem sou, onde estou?
Na casa da árvore,
Ou nas pétalas
Das flores do jardim?
Na poeira do vento furioso,
Ou no calor da brisa suave?
Sou apenas granito,
Suspenso no abismo,
Que o tempo certamente
Fará derrubar.
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28. ESCALADA
Ao escalar seu corpo
Fixei-me no negativo
E assim na horizontal,
Seus cabelos como corda
Presa ao grampo dos meus dedos,
Balancei o corpo
Com ritmo e prazer.
Saboreei seu gozo.
Atingi o cume.
Pratiquei rappel radical
Até acima das nuvens.
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29. LÁGRIMAS.
Cristais de sal
Grudados no rosto.
Desperto de um sonho
Que você freqüentou.
29
30. SAUDADE.
Hoje é vento.
Amanhã, lembranças...
Viver hoje com volúpia.
Garantir recordações,
Plantar na vida,
O direito futuro
À saudade.
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31. TEMPO
Perdi,
Ganhei,
Vendi,
Comprei.
Menosprezei,
Deixei passar.
Tentei resgatar o passado.
O futuro esgotou-se no presente,
Bebi com gelo e limão.
Diante do imponderável,
Entre todos os elementos,
No decurso da vida,
Faltou-me mais que o tempo,
Faltou-me ar.
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32. CAMINHOS
Nos teus lábios, só beijo,
Nas tuas mãos, ninhos.
Nos teus olhos, desejos.
No teu destino,
Caminhos...
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33. VENTANIA
Dou um passo,
O solo recua dois.
O vento revolve os cabelos,
O talento passa voando.
Um jornal vagabundo
Gruda na minha barriga,
Dou a luz a uma canção.
Folhas secas em redemoinho,
Angustiam o coração,
Questionam minhas certezas
Provocam a discussão.
Sou apenas poeta,
Das coisas e das emoções,
Não vejo inspiração,
No vento em turbilhão.
Vendaval é vida,
De párias e vagabundos.
Por mim, finjo ignorar a ventania.
Jogo meus versos no espaço,
Observo-os planarem por um instante,
Abrigo-me no colo da amada,
Pois tenho medo do vento.
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34. LINHA DA VIDA
A cidade assiste tristemente os vagabundos nos
biongos abraçados, se defendendo do frio, enganando a fome,
imunes ao cheiro azedo de suor impregnado nos farrapos,
unidos pelo instinto de preservação, compartilhando o calor
que os preservam. Ao lado, amontoados, papeis velhos
exaustivamente colhidos de casa em casa, de lixo em lixo, de
pedido em pedido, de raiva e repugnância.
A cidade assiste tristemente o diálogo dos homens
importantes, defendendo ponto de vista, discutindo soluções,
negociando cargos, fazendo promessas, baseando-se em
sistemas, análises,pós-graduações, simpósios, e nas leis dos
homens importantes.
A cidade assiste tristemente os meninos nas ruas
correndo da repressão, correndo da fome, correndo para o
vício, correndo para a prostituição, dirigindo-se
irremediavelmente para as garras protetoras das instituições
dos homens importantes.
A cidade assiste tristemente os indivíduos sem nome
que pisam apressados por cima de tudo, uns atropelando
outros, apesar dos meninos de rua que correm famintos pelas
avenidas da cumplicidade.
A cidade assiste tristemente o destino de seus filhos,
levanta os olhos, e finge não ver no horizonte, por detrás dos
obstáculos de concreto, o limiar da luta de seu povo.
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35. NAVEGANDO.
Um passo ao futuro,
Dois passos para a saudade.
Dança dos meus sentimentos
Na palma da tua mão.
Sentimentos que o vento espalha
Entre vasos vazios e estátuas frias.
Barquinho de vela inflada,
Navegando sem direção...
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36. VIRTUDE...
As razões se sucedem.
Tudo é justificável.
Na minha cabeça nada de errado,
Apenas o incontrolável.
Sem pecados,
Sem máculas,
Sem remorso.
Para tudo encontro remissão,
Isto foi por isto,
Aquilo foi por aquilo.
Não sou culpado.
Porque haveria de agir assim
Se não fosse a única saída esta forma,
Porque trilharia este caminho?
Está errado?
Sim, é antiético, incorreto, desleal, é traição.
Quem julga?
Onde se esconde o deus da virtude?
Existe ser humano
Capaz de condenar outro?
Matei um amor por letargia,
Matei um sonho por interesse material,
Sucumbi à corrupção por comodidade.
Traí por prazer e luxuria,
Roubei lágrimas e esperanças,
Menti muito como legitima defesa,
Apaguei muitos sorrisos inocentes.
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37. Não sou culpado.
Apenas meu travesseiro me incomoda
Sacerdote que é do meu confessionário.
Planejo destroçá-lo
Jogar pluma por pluma em lugares distantes
Para que assim espalhadas
Não me acusem mais,
Esvoaçantes e indiferentes,
De ter vivido.
37
38. CHUVA SUAVE
Chuva suave,
Caminhos encharcados e sonolentos
Réstias de sol, por entre nuvens,
Dourando cabelos molhados.
Esbarrando em postes e guarda-chuva.
Cruzamos olhares.
A ti coube um sorriso
A mim o deslumbramento.
Como é bonito o amor que se descobre
Numa tarde de chuva.
Depois um chocolate quente
Um até logo
Um muito prazer
Uma carona,
Uma despedida.
Um beijo consentido.
Ter que ir querendo ficar.
Até amanhã
Gostei de você.
Adeus.
Como é bonito o amor que se descobre,
Numa tarde de chuva...
38
39. NA DA ORDEM.
Possi
Velho
Caso
Ismo.
Reto e som
Breve silêncio
O NA DA ORDEM.
Quieto descanso.
Em mim
Visão hipermetrópica.
Pedras e cheiros
Rolando otimismo
Mesmo
Escalando degraus
Chegando
1º
E tudo o
+
39
40. AROMAS
Quando meus olhos viram os teus,
Teus olhos foram os meus,
Meu olhar foi nosso olhar.
Quando teus olhos viram os meus,
Meus olhos foram os teus,
Teu olhar foi nosso olhar....
Quando um raio traçou destinos,
Quando a ponte balançou,
Quando o céu escureceu,
O alvo ficou mais branco
E o tempo esmaeceu...
Quando de repente o vinho entornou.
A vida em bolhas seguiu
Em forma de realidade.
Meus olhos viram os teus
Teus olhos viram os meus
O alvo se derreteu
Na forma de uma ilusão
Os teus e os meus olhos
Cansados de tanto amor
Fecharam extenuados
E assim ficaram.
Sem rancor...
40
41. ÁGUAS PASSADAS, SAUDADE.
Saudade.
Para começar prometo não repetir que esta palavra só
existe em português. Por esse motivo vou substituí-la por, não
sei, talvez, nostalgia? Não quero ouvir tangos, também não
ouvirei Cazuza ou Zeca. Quem sabe para embalar meu
teclado possa sentir o Noturno No 20 de Chopin ou a Ária em
G de Bach.. Parecem mais apropriadas para música de fundo,
não do texto, mas da inspiração para discorrer sobre a volúpia
que insiste em movimentar meus dedos pelas teclas,
marcando na tela palavras que não sei de onde vem, nem sei
para que servem, a não ser para aliviar o desejo de
materializar momentos vividos e sentidos que corroem minha
quietude.
Seria os folguedos de criança a razão desta nostalgia?
Seriam os mimos os beijos e abraços dos primeiros anos? As
descobertas, o sentimento de imortalidade quando se pensava
que tudo era possível, da primeira paixão, do primeiro
desengano? Ou seria o passeio solitário pelas areias
desertas desta época do ano em que o mesmo balneário da
minha infância permanece vazio e frio, visto ser inverno, e de
repente estar no mesmo lugar em que muitas vezes freqüentei
por anos seguidos.
Desde a infância percebo que as ondas comovidas
guardavam com cuidado cada passagem do meu passado
nas finas camadas de areia, escondendo até agora o sentido
da minha vida. Hoje decifrando meu coração, lavando
sutilmente da areia camadas finas que vão revelando ano a
ano minha existência as ondas devolvem à minha lembrança
passagens esquecidas na brutalidade da vida. “Viva o Guga”
41
42. (meu neto) “Viva a Záza” (minha neta) .” O Guga é muito
Esperto”. “A Záza é minha princesa querida”. Muitos corações
vão aparecendo com a palavra Zéte. Uma onda maior limpa a
areia surgindo um belo castelo e o nome da razão de tudo,
escrito nas janelinhas: Zéte na torre maior, Valéria, Fabio e
Felipe,nas muralhas que protegiam meus sonhos, meu existir.
O vento... O vento sopra sem cessar no fim de tarde quase
noite: o castelo desaparece e o passado mais remoto vai
surgindo. De quem seria esta letrinha infantil? ““ Papai meu
herói, eu te amo”, “ Mamãe eu te adoro”. Mais vento, mais
areia retirada, mais recordações, mais constatações.
Aparecem algumas pegadas. As marcas das muletas do meu
pai, os passos curtinhos de minha mãe e por incrível que
pareça pezinhos marcados levemente na areia; os meus e de
meus três mais jovens irmãos. Modestamente mais crianças
felizes amparadas a caminhar ao encontro de seus destinos.
Seria isto nostalgia?
Não, isto é saudade.
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43. IRONIA ECOLÓGICA
Amazônia,
O fogo comendo o futuro
Criança nascendo nas barrancas.
Esperando um barco branco
Gritando mais forte que sagüis.
Sangue que jorra na estrada
Mais do que o leite da seringueira.
Mais do a malária.
Meninos barrigudos e famintos.
Mulheres tentando abortar o grito
Sonhando com um boto cor de rosa .
Um pouquinho de ilusão...
Piranhas escondidas nos igarapés.
Esperando,esperando,
Como jagunço na tocaia.
O Brasil e seus meninos...
Vontade de rodar no encontro das águas.
Alcançar o mar,
Mergulhar nas taças de champagne,
Brindar com a fumaça das chaminés,
Comemorar o progresso,
Na Barra ou na Paulista.
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44. CURITIBA MEU AMOR
Não sou daqui: estou aqui.
Nas alamedas de pedras, embaixo dos candelabros,
No Museu Sacro da "Igreja da Ordem"
No “Relógio das Flores”,
Que permanece deitado
Na praça do "Cavalo de Ferro".
E o vômito de polenta, pierogui, chucrute e cachaça,
Escorre nas calçadas,
na água fétida e musgosa do chafariz,
no qual banham-se os meninos.
Não sou da periferia,
Dos bairros afastados e pobres.
Sou classe média e boêmio
Mas, freqüento as lajes,
As rodas de fumo, de samba e linguiçadas
Não sou da elite,
Mas freqüento os apartamentos e mansões,
As rodadas de coca, chanpagne e mignon,
Onde se desfrutam das meninas da periferia,
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45. E dos meninos de academia.
Com direito a passeios de iate no litoral.
Torci o tornozelo na "Rua das Flores",
Ali na "Boca Maldita",
Bem juntinho da "Praça Ozório".
Sou cidadão urbano.
Fui assaltado na “Esquina das Marechais”.
Pratico caminhadas no “Parque Bariguí”.
Respiro o ar mal cheiroso do lago.
-O “Jacaré” anda sumido-, talvez de vergonha.
Sentado em um dos bancos da “Boca Maldita”
Sinto o odor dos bueiros,
O cheiro gostoso do Café Damasco,
Ouço o tóc-tóc das sandálias das “Mocinhas da Cidade”.
Saboreio as barriguinhas de fora.
Ninguém é de ferro.
É um privilégio viver
Na “Cidade Ecológica”,
Que já foi "Cidade Universitária”
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46. PRIMEIRO AMOR
Olhos tristes
Lágrimas brilhando
São como nascentes
De um rio se formando
E se avolumando
Umedecendo o rosto.
Soluços suaves
Cachoeira de dúvidas
Mar de sentimentos
Toda a tristeza
Toda a melancolia
De chorar sozinha
As incertezas
Do primeiro amor.
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47. LUZ E SOMBRA.
( Rocio – Bailarina)
Apenas entrou,
E a luz lhe agasalhou o corpo.
E seus movimentos,
Provocaram os ventos,
E o compasso do tema,
Remexeu seus cabelos.
Sexo e dança...
Ventre e luz...
Moinhos, desejos e lança...
A provocar paixão,
Sexo, sonho e dança
Volta e revolta
Pois tudo é perdão.
Arte de puros amantes,
No instante da entrega total.
No palco da vida trabalho.
Na vida do palco prazer.
É pra você este tema,
O qual você mesma escreveu,
Palavras bailando tão soltas,
No universo só teu.
E meu...
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48. SONHEI COM VOCÊ.
Braços soltos preguiçosos
Sensação de mais dormir, e mais sonhar, e mais querer
As costas remexendo motivos, preguiça.
Pernas rebeldes espalhando-se pelos lençóis
Braços indomáveis em movimentos cínicos
Mãos percorrendo caminhos recentes
Quadris impertinentes
Seios intumescidos, queimando desejos.
Coxas ardentes,
Dentes rangendo sedentos,
Língua encontrando o céu da boca.
Pêlos grudados aos panos
Pensamento debochado
Travesseiros em cumplicidade
Uma declaração de amor em surdina
Dedos sedentos pesquisando profundezas.
Sonhos...
Motivos secretos.
Raio de sol descobrindo pecados.
Rasgo meu sonho
Entendo meu humano coração
E saio confiante,
Para a vida...
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49. A PORTA DA PALAVRA
Palavra,
Onde encontrar tua janela,
A brecha, o vão, a abertura?
Nos degraus da palavra torre?
Nos perigos do abismo?
No c de céu, no i de inferno,
No a de amor, ou no o de ódio?
Será no t da ternura, ou no s da saudade?
Em todas as formas não encontro entradas,
Labirinto ardiloso e cruel.
No entanto existem fendas,
Ou seriam transposições?
Que fissura descobriu o poeta,
Que a domina e constrói,
Que vira e revira, mistura e cria outra?
Como consegue penetrar nos teus segredos.
E através de ti, dentro de ti,
Encontrar os “poemas que esperam para serem escritos?”
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50. CAIÇARA.
Sou caiçara,
Ganho a vida no mar.
No mar eu embalo,
No balanço das ondas,
Os sonhos de um dia voar.
Sou caiçara,
Ganho a vida no mar.
No mar eu embalo meu sonho
No segredo de meu pensamento,
De largar a espuma e a areia
Para um dia voar.
Sou caiçara,
Pescador de todos os peixes,
Senhor de todos os ventos,
De todas as formas e cheiros.
De ondas, ressacas e maresias
Queria voar mais alto,
Que o sonho que me embala,
Para ver lá de cima,
Se a vida que ganho no mar,
Está desenhada na areia.
Em forma de poesia.
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51. CHORINHO
Atordoado de Pixinguinha
Desci ladeira descalço
Chutei as pedras e as latas....
Sangue no dedão do pé.
Caminhos que não percorri
Mas deixei o solo marcado.
Esquinas malditas
Que teimam em não se revelar.
Música de não sei que dimensão
Tocando meu coração
Com a agonia dos criadores
Porque estou nesta estrada?
Com as feridas abertas
A alma em desespero
Procurando as harmonias
Desta música demoníaca
Que transborda de sentimento
Este farrapo de Lamento,
Mendigo de toda a beleza.
Carinhoso, como Naquele Tempo
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52. DESTINATÁRIO NÃO ENCONTRADO.
Maldita folha em branco que queres de mim?
Sou apenas um batuqueiro de teclas, nada a acrescentar,
tudo dito, tudo escrito.
Verso e reverso, todas as questões resolvidas.
No entanto, nas entrelinhas, parece sobrar espaço. Inútil.
Minha vida, minha experiência, nada acrescentará.
Vida sem fato relevante, nada espetacular.
Pode-se viver como mata borrão do tempo, apagando
excessos?
Como colagem do contemporâneo?
A imaginação, esta sim, é ladina.
Não permite abandonar o sonho, de desvendar os segredos
do ser humano.
Neste sentido, um universo a descobrir.
Porque me olhaste, porque te olhei e elegi rainha?
Tudo para mim, meu ponto final?
Não sei e, não tentarei explicar, apenas aceito.
Aceito como equação matemática que estabelece a conjunção
de átomos conseqüentes.
Sou; és, e nada pode mudar este sentido.
Somos nós, únicos, para todo o sempre.
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53. DISCRETA SEMELHANÇA.
Dia destes, em um fim de tarde.
Dei por mim num barranco de rio.
Ao longe um pequeno barco,
Um menino empurrando a canoa.
Nas mãos um comprido bambu.
Quanta semelhança com o guri
Que fui aos dez anos de idade.
O mesmo boné de feltro quadriculado
A calça curta, presa
Por uma só alça de suspensórios,
A camisa suja de estripulias
Abotoada em um só botão.
Os óculos “fundos de garrafa”
Escorregado no meio do nariz.
De algum lugar eu conhecia aquele petiz.
Eu o observava, ele ficou me olhando,
Imagem de uma fotografia antiga.
A noite foi chegando devagar.
Afastou-se o barquinho
E o menino também.
Não lhe fiz sequer um aceno.
O passado não se despede.
Dei-lhe as costas
Ergui os óculos
Ajeitei o boné quadriculado
E segui
Nômade, errático, andejo.
Cativo das minhas fotos desbotadas
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54. VENTOS DO NORTE
Existe sangue no chão.
Vermelho em fundo azul.
Estrelas rodeando o espaço,
Cometas sem rumo, perdidos.
Ao fundo Mickey Mouse sorrindo.
Para uma tribo africana
E os dentes, aqueles dentes,
Iluminavam Wall Street.
Mandrake morreu de engodo
Fantasma esqueceu os pigmeus
Sinatra escapou de Alcatraz.
Liz deitou na ilusão.
Oswald fechou o enredo.
Existe sangue no chão
Estrelas no fundo azul,
Listas vermelhas no branco
E a vida seguindo serena
Ao ritmo da injeção letal,
Com testemunhas.
Assim estou redimido
Das mortes em Bagdá.
O verso se esparrama abusado
Pelos tapetes da Casa Branca,
Jerry o leva para a toca.
Tom como sempre atrasado
Bate a cara no piano
Que neste exato momento
Bush toca My Way.
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55. VISITA AO REI.
Se ele realmente sentisse medo não estaria ali. Só o fato de
entrar demonstra o quanto corajoso se sentia agora. No
entanto, já fora um maricas, como o chamavam os piás da
rua, e do Grupo Escolar onde cursara o primário. Sentia um
medo terrível de qualquer pássaro ou ave; asas se debatendo,
sem direção, apavoravam seus sonhos. Sabia, sentia que algo
o espreitava de algum lugar naquele aposento. Olhos negros,
sobrancelhas muito grossas, uma boca enorme de sorriso
debochado, na cabeça uma cartola azul, vermelha e branca
seguiam seus movimentos cuidadosos. Não se importava.
Pensando bem, havia crescido e se tornado adulto com esta
mesma sensação de ser observado constantemente. Porque
então este sentimento desconfortante, porque o arrepio na
espinha? E a sua coragem? O ambiente não era escuro nem
sombrio, ao contrário, pessoas transitavam, mulheres
elegantes circulavam e homens de óculos escuros se faziam
importantes a seu redor.
O pescoço apertado pela gravata de cores extravagantes. No
horizonte um mastro gigante mostrava farrapos verde e
amarelo. Seria o "pendão da esperança?” Os olhos, de
soslaio, observavam sua vontade de vomitar.
A luz lá fora era intensa, olhos ardendo, e ele com a missão
de trilhar este espaço de sol refletido no mármore do caminho;
ou seria uma rampa?
De repente os monstros de sempre invadem sua alma. Á
direita o parlatório, e uma figura quixotesca prometendo a
felicidade. Seus ouvidos queimam, querem vazar palavras da
memória. -' “Minha gente. Não me abandonem, não me
deixem só." Não. Impossível conviver com o mesmo destino.
Não depois de tudo que se fez pelo fim do pesadelo.
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56. O piso é fofo e verde, o sonho é negro e febril.
Neste momento a memória se mostrou cruel. Não seria
preciso coragem para enfrentar estes mortos vivos. O medo
era justificável. Nada, no entanto deveria tê-lo conduzido a
esta cerimônia fúnebre. Seus representados e camaradas que
o perdoassem, mas um solene gesto involuntário e
incontrolável seria o epílogo deste dia de terror.
- Parabéns, o senhor é o exemplo de brasileiro que todos nós
admiramos. Obrigado por acreditar na pujança desse país. Em
nome deste governo passo-lhe às mãos esta menção
honrosa,.Obrigado pela visita. Eram mãos reticentes, frias
como as palavras.
Pensou. Pouco resta logo tudo estará consumado. Os
fantasmas sorrateiros vencerão. Engolirão sua dignidade e
tudo estará terminado.
Ânsia. Tentativa de controlar o pavor, mas a bílis e o almoço
de rodízio de carnes com maionese não esperou pela
digestão. Tudo derramado no fofo chão verde, no calçado de
couro alemão, terno de corte inglês, gravata italiana
manchados agora pela consciência de um brasileiro. O
anfitrião reclamou:- “Assim não pode, assim não dá." Se
retirou e todos o seguiram.
Corria o ano da graça de um mil novecentos e noventa e
nove. Pelo menos cem de promessas de terra, moradia,
saúde, educação, segurança, igualdade de oportunidades,
dignidade e soberania para os brasileiros.
Em tempo: Atrás de uma bandeira enorme, listrada de
vermelho e branca, os olhos negros, as sobrancelhas muito
grossas, a boca enorme de sorriso debochado cobriu o rosto
com a cartola vermelha, azul, e branca gargalhando
grotescamente.
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57. SUA PRÓPRIA ESTÓRIA.
SUA PRÓPRIA ESTÓRIA
EU, ATEU E AGNÓSTICO DO FORTUITO
CRENTE DA DECRENÇA E FILHO DO ASTIGMATIMO
ENFEITAM DE PAISAGEM AOS QUE ACHAM QUE TEM O
PODER DE ENXERGAR.
UM DEDO À FRENTE DOS OLHOS, MAS NÃO VEEM NEM
UM MILIMETRO DENTRO DE SI MESMOS, LUGAR ONDE
SE ESCONDE A VERDADE E HABITA A CONDIÇÃO
HUMANA. NEM O INFERNO NEM O CÉU, APENAS A
INUTILIDADE.
As semelhanças, nos fatos, nos pensamentos, nas atitudes
são de tal modo pertinente à natureza humana que
extrapolam o universo individual e se inserem em todos os
universos, visto que o corpo humano de per si é um mundo
em separado. Um elo da corrente. Esta corrente infinita na
qual todos estamos unidos com o nosso sentido de auto-
preservação. O começo desta linha ninguém mais sabe onde
se encontra, nem mesmo o fim se sabe onde esta.
A esta corrente grossa e pesada chamaremos vida. Se formos
analisar suas subdivisões este ensaio seria comparado à
existência humana, pois de começo desconhecido e
57
58. seqüência no infinito. No entanto apesar de estarmos de mãos
dadas e cúmplices do mesmo destino vivemos como se o livre
arbítrio realmente existisse. Na verdade o livre arbítrio é
apenas o poder de não ter poder nenhum. A vida coletiva é a
ilusão da liberdade individual. Sucumbimos sempre aos
desígnios do acaso. Este sim, com suas manifestações
espontâneas e próprias, direciona as nossas atitudes. A
ciência, a religião, enfim toda a manifestação humana, embora
muitas vezes pretensiosamente independente, não passa de
um atestado de submissão à natureza, ao fortuito, ao
inesperado. Os desígnios da natureza, esta sim
pretensamente previsível e, no entanto tão surpreendente e
indomável.
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59. PORQUE HOJE É SÁBADO.
Não desejava este final.
Lágrimas misturadas ao sangue.
Um líquido viscoso, grosso e negro,
Esparramado pelo chão.
Os gatos arriscam lamber seu pescoço
O odor é adocicado.
Minhas mãos úmidas de sangue
Mancham as paredes.
A faca caiu em ponta,
Segue na vertical,
Espetada no chão de tábuas.
A televisão noticia o fato.
Estampado no vídeo o meu retrato.
Ser desprezível,
Com números abaixo.
Assassino cruel!
Espelho quebrado.
Pedaços de vidro sobre o sofá.
Tapete manchado.
A água do macarrão secou no fogão,
O vinho congelou no freezer.
Ela chegou menstruada e chorosa.
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60. Meu colchão estampado de vermelho,
Lençóis, travesseiros, minha solidão,
Tudo dançando neste sábado infernal.
Copos espalhados.
Garrafas tombadas no sofá
Corpos estendidos no chão.
Inertes e bêbados.
Os gatos lambendo coturnos policiais.
Ela ao piano cantando:
‘Pra não dizer que não falei das flores’.
O maldito poodle latindo sem parar.
As notas da partitura flutuando pela minha garganta,
Sol, Fá. Ré, Dó sustenido.
Herança de Geraldo Vandré.
Desmaio para continuar
Refém do meu pesadelo
Atravesso seu corpo
Estupro a silhueta,
Arrebentando as cordas do violão,
Desenhada no chão.
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61. CAMINHOS DOS SEIXOS
No jardim da minha casa, que na verdade nunca teve um, e
na minha lembrança, persiste a alegria que possivelmente
povoa os canteiros da vida de quem o teve. Que graça tem as
flores sem nome? Que significado terá se seus aromas não
nos induzirem á nossas verdades pessoais. As flores são
representações de nossas vivências. Os cheiros são os
caminhos da memória. Nada representam sem a história de
nosso viver. Um bouquet de rosas jogado na calçada,
encharcado de cotidiano, é apenas uma intenção descartada.
Que destino teria se num vaso de cristal qualquer adornasse a
amargura de uma vida sem amor? Um dia vazio como os dias
das pessoas que labutam, que se acreditam produtivas,
enquanto rosas balançam ao vento e samambaias caem
curiosas das samambaiaçus. Nas encostas das montanhas,
mosquitinhos e manacás adornam passeios burgueses de
domingos dorminhocos, cansados dos segredos, enfim
libertos das quatro paredes.
E assim caminham minhas lembranças, meu jardim, meus
sonhos, bem-te-vis sugando vida e minha vida sendo rolada
como os seixos no rio. Lá embaixo, água fria e cristalina me
convida a olhar o céu refletido na sua pureza, meditar,
continuar ou morrer extenuado de tamanha beleza inútil.
61
62. MAIS UM VERÃO.
Chega-se toda dengosa,
Como bichinho enjeitado
Deita-se toda chorosa,
Encolhe-se toda ao meu lado.
Olha-me com olhos gulosos,
Parece pedindo perdão.
E eu te aceito jeitosa,
Dentro do meu coração.
Chega-se do vento leste,
Quente com o sol de verão
A rede balança lenta,
Na batida do meu coração.
Assim, passo as tardes,
Dolentes, no meu rincão.
Assim eu espanto a saudade,
De que, eu não sei,
Não sei, não sei não...
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63. SOL INTROMETIDO
Fora de hora acendeu a luz.
Paixão se esvaiu na claridade do dia
Sedução se perdeu na nova manhã
Quem rompeu o breu deste momento?
Um raio de sol intrometido,
Um feixe de luz,
Uma azia indomável.
Uma vontade
De não ter participado?
Arrepios que não posso negar.
Amores de ocasião.
Raios de desejos inconfessáveis
Razão seduzida
Gozo e apenas gozo.
Delicias que se escondem
Nas bolsas
Dos caçadores da virtude,
Monopólios da virgindade alheia.
Esta revista me reserva
Páginas vermelhas
Que eu necessite esconder?
Mocinha, menina, guria
Suas reentrâncias serão percebidas?
Se não, condenado serei.
Se sim redimido me sentirei.
Valeu a pena.
Para isto se presta a imaginação.
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64. ASSIM QUE ACONTECE
Acontece,
E quando acontece,
Não se esquece.
Não se esquece de um olhar de relance,
Fulminante e distraído
Quando se está farto.
Não era o momento,
Mas se deu de passagem.
A canção diria, acontece...
Juro, meu olhar foi curioso,
Seu olhar foi indecente
Assanhou o meu coração.
Assim de passagem,
Como acontece.
Acontece um atropelamento,
Um assalto,
Um prêmio na loteria.
Acontece
De se encontrar pessoas,
Acontece ser multado,
Acontece ser culpado,
Acontece que te cobicei
Quando te vi de passagem.
Acontece que tudo acontece.
E como tudo acontece
Ainda procuro entender
Porque tudo acontece.
E tudo que acontece
Acontece de repente.
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65. Arrisco, pois, navegar
Como marujo estreante.
Grumete sob ondas raivosas
Tentando intimidar,
Rasgando velas que inflei
Para vencer oceanos
E suplantar tempestades.
Acontece.
Barco que não sai do cais.
Âncora colada ao destino
Aprisionado ao trapiche.
Mares que não velejei.
Porque tudo acontece
Distraído, de relance.
É assim de passagem
Sem eira nem beira,
Que tudo acontece.
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66. NATURAL NATUREZA
A força do homem
Encontra aqui,
Nas águas revoltas
Das Cataratas
No abraço fraterno de todos nós.
A afirmação da natureza
Desaguando história em sua fóz
E a voz dos que amam
Os bichos, o verde, os ventos
Ecoa forte nas matas, nas águas,
Nos animais.
Fronteira que une e iguala
Três países e povos irmãos
Unidos em um mesmo destino.
Pescadores de esperança
Que acalmam as águas no
Alvorecer da Livre América.
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67. STING E RAONI
E por falar em ecologia
Nesta manhã
as flores não deram leite.
A chuva da noite
Não cobriu de acrílico a relva.
A chuva da noite
Não cobriu de acrílico a relva.
Os sonhos dos homens,
Persistem tão pobres
Pantanal de andarilhos
Vendendo a seiva dos troncos
Bebendo o sangue dos índios.
E por falar em ecologia
Foi manchete no Time
Seringueiro, garimpeiro
Peixe Boi, Jacaré...
Nosso chão é pulmão
Nosso chão, servidão
Do mundo.
Nosso chão é pulmão
Nosso chão, servidão
Do mundo.
Nosso chão é pulmão
Nosso chão, servidão
Do mundo.
Nosso chão é pulmão
Nosso chão, servidão
Do mundo.
67
68. A DAMA DA TARDE
De onde vem este amor
Revelando mundos
Revirando tudo
Como se fosse um tufão?
Varrendo, cuspindo entulhos,
Num erguer e demolir muros,
Nas esquecidas e despovoadas,
Ruas do meu coração?
De onde vem este amor,
Às vezes festa, às vezes fúria,
Num abrir e fechar de portas,
Louca procura de respostas,
Mistura de murmúrios
Fonte de delicias e torturas?
Onde anda agora este amor?
No mundo do faz de conta,
Brincando de subterfúgios,
Fazendo-se de surdo,
Deixando-me assim,
Um pobre menino
A flutuar em sonhos absurdos?
Onde anda este amor?
A que horas chegará,
Com preciosos sorrisos
Que recolho agradecido,
Para traçar o rumo dos meus dias?
Onde anda este amor?
68
69. “XÃO BATIDO”
O ideal é ser sóbrio com algumas recaídas de vez em quando.
O baile corre solto
Samba, forró e vanerão.
Casais em êxtase.
O som com volume descomedido.
A cerveja quente.
O chão de tábuas irregulares.
Os pés variando botas, sandálias e chinelas
Cigarro.
Mais um traçado.
E o estilo exuberante dos casais,
Rodam e giram.
Uns compenetrados,
Outros às gargalhadas.
Uma Coca Cola que explode.
Mais um Cuba querido?
Outro cigarro.
Na mesa de plástico encharcada
Azeitonas e salaminho.
Os palitos espetados.
Mais uma bem gelada.
A banda silencia!
Dançarinos se recolhem às mesas.
Mais um cigarro.
Um conhaque pra rebater.
A cadeira de plástico se quebra.
Olhos varrem o ambiente,
Som de gaita e violão.
A banda ataca um tango.
Levanto-me, ajeito as partes,
E corto o salão.
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70. A dama do outro lado se me oferece.
Levanta os seios.
Beijo sua mão,
Enlaço sua cintura,
E dançamos, bailamos
O tango no melhor estilo.
Calamos os presentes.
Inebriados ignoramos os aplausos.
Esta merece outro conhaque.
Mais um cigarro.
O lenço encharcado
Passa pela testa vaidosa.
Outra cerveja quente.
Urinar fora do vaso,
Jogar papel no chão.
Uma delícia
Romper com as regras,
Ser alguém por hoje
Que não serei amanhã.
Noite que segue
Num banco de automóvel,
Com a dançarina.
Ou seria a garçonete?
Mais um conhaque amor?
Outro cigarro.
O vento fresco da madrugada
Anunciando a ressaca moral.
Uma latinha gelada.
Adoro estas recaídas de vez em quando.
Onde estão os meus cigarros?
Daria tempo para a saideira?
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71. MORANGOS CHANTILLY E HORTELÃ
Silenciosamente saiu de manhã
sem um beijo, sem adeus.
Sei, eu dormia.
Ainda dormia, pois o dia, já era pleno
De todo o cotidiano.
Não tenho vontade de levantar.
Os lençóis e este torpor me impedem.
Um punhal de sol atravessa as cortinas,
Crava no meu peito dança sobre meus seios.
Sinto o calorzinho nos mamilos
Agora empinados.
Suas mãos de ontem correndo minha virilha
Os dedos catatônicos buscando as dobras
As coxas se movimentam
Ajeitando, despistadas, melhor acesso.
E me sinto úmida, transbordando.
Minha língua roça o céu da boca
Mordo a pontinha do lençol.
Uma explosão acontece no meu peito,
Um delírio, um gosto de hortelã,
Um cheirinho de morango.
Chantilly escorrendo pelas coxas
Uma sirene cortando meu sonho.
Um homem que partiu de manhã
Sem me beijar...
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72. UM BEIJO ARDENTE
Um beijo ardente. Uma imagem de Guadalupe, a noite quente
sufocante e um som cadenciado animando a praça. Vozes
incessantes. Clima de feira e festa. O povo rindo desbragado.
Passeio entre corpos morenos suados e cabeludos. Luzes e
gritos. Som, muito som. Compasso latino. Ao fundo o som da
orquestra . Cheiro de mulher .Aromas fortes bailando mais
que as saias coloridas. Frescor de flores e tabaco. E risadas.
Muitas risadas. E atabaques batendo e saltando entre as
pessoas. Frutas, muitas frutas aparentemente abandonadas
em tabuleiros insolentes e despudoradamente floridas. Entre
as pedras do calçamento, quase invisíveis filetes de urina
escorregam sinuosos pelas frestas. Misturam-se flores,
tabaco, suor, risadas, pernas morenas, colos abundantes,
bocas vermelhas e dentes muito brancos emoldurando línguas
safadas. Quem foi? Como um roubado beijo neste ambiente
de êxtase provoca tamanha vertigem.? Corro através da
melodia e da algazarra. Onde está? Quem será? Não sei se
o rum, se a música, se as saias rodando coloridas, se as
mulheres de pés descalços, se o líquido nas calçadas, se a
multidão, se a minha falta de fôlego, se o calor, se a noite, se
os boleros mambos e salsas, se as risadas, se as barrigas e
quadris bailando, se o beijo, se aquelas coxas morenas, se o
sorriso provocante, se Guadalupe comparsa e redentora, me
propiciaram este delírio. Sei apenas que passei por entre o
casario nas ruelas de Havana antiga. Tão antiga que
escondem paredes encardidas do sangue dos escravos, das
pobres vítimas de Batista, dos revolucionários, dos que
acreditaram e dos que ainda tem esperança. Tudo ao ritmo
antigo de Ibrahim Ferrer e seus músicos. Como no tempo e ao
som de Buena Vista Social Club. Arriba.
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73. CRUZES NA BEIRA DA ESTRADA
Estórias de cada cruz.
Lamento de um passante.
Não questiono nada na forma, nem no conteúdo, nem na
crença, nem no futuro, nem no passado; sou do presente e do
material. De repente assombrou meu sonho este depoimento
sem sentido.
“Iscutaqui meu fio, num apense que tudo se passô assim tão
faci não.Nu cumeço era por demais difici, as arma sufria
mermo. Nois se acheguemo aqui sem nada. Tinha acabado
tudo de cumê nos caminho desta tria que abrimo no machado
e facão, no suó, padecendo que nem dá gosto de lembrá. Era
bicho de tudo o jeito, dos pequeno dos maió. Bugre nois não
viu mas sabemo que espiavam nois, dava pra escuitá. Ocê
nasceu no mato meu fio, nas beira de um riaçhão. Tua mãe
gritô três dia. Sofrimento de matá. Máto mermo. Não parava
de
sangrá. Tá cismado? Vai lá, há de ter uma cruzinha bem
debaxo de um pinhero, lugá bom pra se rezá. Adispois vorta
pra casa. Este aqui é o se lugá.”
As carretas furiosas e os andarilhos penitentes se apossam
das estórias enterradas em cada cruz do caminho. E
espalham pelos caminhos do Brasil.
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74. TRIVIAL CASEIRO
Se você é recém casada, nunca cozinhou na vida, certamente
gostaria de saber como fazer um almocinho simples para o
maridinho, não? Deve estar pensando em surpreender seu
homem e provar para sua querida mãezinha que você pode.
Melhor seria ter ouvido os conselhos maternos e tentado
aprender. Mas não, em vez disto escolheu passar o tempo no
computador, no chópim e nas baladas. Foi numa desta que
sem querer querendo engravidou. Ainda bem que o moço é
boa gente. Assumiu e casou .Tudo bem. Agora é fazer a tua
parte. O moço trabalha é esforçado e por enquanto vai
cumprindo com a obrigação de manter sozinho a casa
enquanto você espera o rebento. Para sua sorte ele te adora
te enche de carinho de noite e de dia e ainda mora longe da
família. Sem problemas com sogra, certo? Bom, então porque
não arriscar? Surpreender com um almoçinho caseiro para
começar. Não é tão complicado assim Com um pouco de boa
vontade tudo sairá bem. Ele vai lembrar-se da casa da mamãe
e de quanto era feliz e não sabia. Vamos lá:
Primeiro passo: Vá até a cozinha e se apresente à aqueles
objetos que lá se encontram.O fogão é aquele que ostenta em
cima quatro bolachas pretas abaixo de uma grade e cinco
botões na frente. Possui um depósito escuro chamado forno.
Não se preocupe desta vez não irá usá-lo (o forno), fica para
outra quando atingires o estágio intermediário. Verifique se
tem na sua cozinha tudo o que vai precisar: além do fogão, a
geladeira e aquele parecido com televisão; o micro ondas,
este mesmo que você esquenta aquela sopinha de envelope.
Na verdade esqueça o micro. Tire do armário aquele faqueiro
que você ganhou da sua querida, mui amada e distante
madrinha. Abra a caixa de panelas, selecione a frigideira
maior do conjunto chinês, aquele envolto em papel celofane, e
duas panelas desta caixa enorme, presente daquela tia que
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75. mora em Londres. Cuidado para não abrir a caixa do relógio
cuco, não vai ser útil nesta empreitada. O titio telefonou para
saber se vocês haviam gostado. Adoramos você disse
obrigado vou usar bastante este jogo de panelas. Bom filha,
mas não estou falando de mestre cuca mas do relógio cuco. O
tio ficou magoado. A gente se atrapalha mesmo, paciência.
Então trate de levantar cedo e depois que o benzinho sair
para trabalhar vá às compras
.Segundo passo: No mercado compre arroz, feijão, óleo,
cebola, pimenta do reino, alho, manteiga, ovos e sal. Não
fique nervosa se não achar o tal do sal agosto. As receitas
geralmente citam estas palavras, mas o sal a gosto quer dizer
que você pode colocar a quantidade que mais agrada seu
paladar, não é uma marca de sal. Compre também batatas,
um maço de agriões, cheiro verde e um bom azeite de oliva.
Algum atendente no mercado pode te apresentar ao agrião e
ao tal cheiro verde. Trata-se daquele maçinho de cebolinha
verde e salsinha. Não se assuste, não é complicado. As folhas
compridas e redondinhas parecendo um canudinho de festa é
a cebolinha, o outro matinho é a salsinha.
Muito bem, mas falta o principal: a carne. Esta é a parte mais
difícil. Sua mãe sempre comentava que carne se compra em
açougue e no açougueiro de confiança. Aí então poste-se a
frente do balcão e sorria para o açougueiro. É um belo
começo para ser bem servida. Observe se ele te olha com
respeito ou já enfiou aquele olhar guloso no seu decote. Finja
olhar as peças de carne na vitrine. Não precisa pensar em
pedir CPF, Título de Eleitor, Comprovante de endereço ou
Folha Corrida na Polícia, o moço provavelmente é de
confiança. Afinal toda a fila está disposta a ser atendida por
ele. Olhando bem ele é até simpático. Peça então quatro bifes
de alcatra, não muito grossos.
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76. -Se estiver bom, te elejo meu açougueiro de confiança!
Não precisava dizer nada, mas já que disse poderia disfarçar
este rostinho vermelho de constrangimento. Ignore os sorrisos
maldosos das mulheres da fila. Saia de fininho, direto ao caixa
e correndo para casa. Ufa!
Continua... Saí para almoçar.
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77. PASSEATA
A multidão seguia agitada, olhos voltados para as esquinas,
rostos a procura da repressão esperada.
Ela caminhava ao meu lado, gritava, cantava. Vestia calça
justa e um blusão folgado preso à cintura por um cinto
vermelho. Seu corpo agitava-se continuamente, os braços
erguidos, rosto ligeiramente pálido, mas expressão que refletia
coragem e segurança. Os olhos azuis pareciam ver tudo pela
primeira vez, tal era o brilho de felicidade que transmitiam. Ela
tudo via, observava, devorava, menos a mim que lhe
implorava um olhar, um sorriso.
Agora estamos de mãos dadas, todos fazem um cordão.
Arrisco uma carícia, ela sorri sem me olhar, e seguimos.
De repente, os soldados. Corri para um muro, subi. Lá de
cima olhei para a rua e a vi correndo ora para a direita, ora
para a esquerda, até que parou. Ficou como a esperar o fim,
entregar-se. Gritei: - Marina, aqui. Apesar da distância e do
barulho me viu, correu. Quando o gás já era intenso, pulamos.
Estávamos em um terreno baldio que fazia fundos de uma
casa. A impressão era de estar desocupada, pois o quintal
descuidado, as janelas fechadas denotavam abandono. O
mato era alto e a construção era destes palacetes que se
encontra às vezes no centro das grandes cidades.
Ficamos afundados no mato. Eu escutava sua respiração
ofegante junto ao meu rosto. Um soldado subiu no muro, disse
qualquer coisa para outros lá fora, ouviu a resposta e voltou
para a rua. Uma bomba de gás explodiu perto de nós. Xinguei
e corremos.
Ela me apontou um barraco de madeira, oculto junto ao muro.
Nos arrastamos até lá. A porta cedeu sem esforço, entramos.
O paiol estava vazio, com exceção de alguns sacos de milho
77
78. já mofados. Sentamos no chão. Lá fora se ouvia gritos,
palavrões, correria.
- Obrigada.
- Não foi nada. Perdeu-se de alguém?
-Não, estava sozinha.
-Como se chama?
-Marina. Como você soube?
-Não sei, engraçado adivinhar.
-Alguém?
-Não.
Uma ratazana atravessou o barraco. Assustei-me, ela gritou.
-Vamos sair daqui.
Saímos. Na janela do casarão um velho barbudo apareceu e
nos chamou, Corremos para a casa e entramos.
Dentro, a riqueza dos móveis, os lustres, obras de arte,
tapetes, nos impressionaram. Percorremos a casa cômodo
por cômodo sem encontrar ninguém. Salas enormes
ricamente decoradas, intensamente iluminadas
completamente desertas. Ela permanecia junto a mim,
assustada. Passei o braço em torno de sua cintura e subimos
as escadas de mármore. Em cima muitos quartos, com
decoração antiga. No maior deles uma cama muito macia e
grande, grossos tapetes e uma lareira acesa.
Ela jogou-se na cama e ficou a pular, rindo como criança. Saí,
andei por toda a casa sem encontrar ninguém. Na sala de
refeições um enorme relógio de carrilhão enchia o ambiente
de ruídos compassados. Eram onze horas da noite
Voltei ao quarto e a encontrei envolta em montanhas de
cobertores. Seu corpo parecia menor na imensidão da cama.
-Ninguém em casa. Os soldados interditaram o quarteirão,
houve tiros e os homens estão por toda parte. O jeito é ficar
aqui.
Ela me olhava sorrindo. Já apagara a luz e nos iluminava
apenas a chama vermelha da lareira. A cama era luz e
sombra, calor e desejo. Seus cabelos espalhavam-se pelos
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79. travesseiros. Virou-se de costas mostrando os ombros nus e o
contorno de seu corpo perfeito delineados nos lençóis.
O tempo é breve quando se é feliz.
Quando acordei não a encontrei na cama. Vesti-me e desci.
Um aroma de café vinha do andar de baixo. Na sala de
refeições a mesa estava posta com pães, geléias, frios e
sucos. O café na chapa quente do fogão à lenha era
irresistível. Enquanto bebia escutei o carrilhão bater cinco
horas. Lá fora ainda estava escuro e uma chuvinha miúda
acompanhava um vento gelado. Ouvi uma porta bater. Corri
até a janela e já longe pude ver os cabelos compridos e louros
de Marina. Ela corria na escuridão. Ainda por alguns
segundos fiquei observando seu vulto liberto. Mas as garras
da repressão caíram sobre ela. Agora caminhava triste e
escoltada.
Lembrei-me do sorriso moleque quando lhe acariciei a mão,
seu grito de medo do rato inofensivo, seu braços assustados
me apertando quando entramos na casa, seus olhos
provocadores, seu corpo entre lençóis iluminados pela
claridade trêmula da lareira, minha noite de amor, minha
descoberta da felicidade.
Cobri a cabeça, saí andando pela rua deserta, na chuva
miúda, no vento frio rasgando a madrugada violada agora
pelos primeiros raios de sol de um novo dia.
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80. O CÃO E O PORÃO
O cão raspava o chão de tábuas
Todos os dias no mesmo horário.
Ansioso, se cansava, desistia da tarefa
Correndo para o quintal.
Um pau de lenha às vezes o acertava
Sempre nas patas de trás.
- Sai cachorro maldito,
Ainda me furas o assoalho
Sei ser esta a tua intenção.
Que tanto queres lá embaixo?
Não há nada no porão.
Além de chorar escandaloso
Mancava a cada dia mais.
Mas sempre repetia a tarefa
Com afinco e determinação.A tal ponto chegou seu intento
Que um buraco no assoalho se fez
E uma luz muito brilhante surgiu
Logo na primeira frestinha.
Se espremeu, se espremeu,
Tão fininho se fez
Que pela fresta estreitinha,
Com muito treino e vontade
O cão desapareceu.
Caiu na luz do porão
Das pernas não mais precisava
Embalado no clarão forte
Surfou para a liberdade.
Alguns ainda perguntam
Para que tanto trabalho?
Se para conquistar a liberdade
Bastava pular o muro.
O cão, não sei se interessa,
A todos poderia informar
80
81. Que a liberdade tão fácil
É caso de corrupção.
Mas aquela alcançada com o esforço
Com o sonho e a determinação
É que redime
O cidadão, ou um cão.
Muitos preferem pular os muros,
Outros cavar seus sonhos,
Se encolher perante o destino,
Passar mancando pela vida
Sem se jogar na luz,
Que pode ser a inteligência
Ou a determinação.
E para esclarecer o caso
Deixo esta mensagem.
Às vezes muito difícil,
Tão difícil e improvável
A porta se abre para a felicidade
Numa frestinha de luz
Para não terminar sem desfecho:
O cão vai bem obrigado,
Navegando sorridente,
Na luz da felicidade.
Que conquistou dia a dia
Raspando a vida,
Buscando a luz,
Levando paulada
E escolhendo entre
Pular o muro
Ou viver seus sonhos.
81
82. GAIOLA VAZIA.
Na parede externa de minha casa está pendurada uma gaiola
vazia. A portinhola permanece aberta e posso vê-la daqui de
minha cadeira enquanto escrevo. Na verdade à meses que ela
permanece vazia. Está toda enfeitada com fitas coloridas e os
arames estão cortados e virados para cima. Cortei-os para
abrir novas entradas e saídas. Na verdade quando ela me foi
trazida com a recomendação de que seria por poucos dias já
portava as fitinhas, idéia de seu verdadeiro dono, que assim
como trouxe, prometendo vir buscá-la tão logo voltasse de
uma viagem. Esqueci de dizer que dentro havia um
passarinho. Um canário amarelo de penas arrepiadas que
cantava lindamente. Prometi cuidar, mas perdi o sono. No
meio da primeira madrugada levantei para abrir a portinhola. A
escolha seria dele. Olhou-me de lado com fazem os
passarinhos e continuou no poleiro encolhido. Fui dormir mais
leve.
Pela manhã a gaiola estava vazia. Mesmo assim coloquei
comida e água fresca como me fora recomendado. No meio
do dia escuto o trinar do bichinho. Estava dentro da gaiola se
refrescando com a água fresquinha. Assim nos dias que se
seguiram eu servia sua refeição, ele aparecia durante o dia
cantava para mim e ia embora. Às vezes pousava na minha
janela.
Certo dia trouxe companhia; uma fêmea muito da espevitada
que logo no primeiro dia foi se adonando da gaiola.
Refrescaram-se e foram embora. Voltaram muitos dias
seguidos e eu com o compromisso de alimentá-los. Foi ai que
cortei alguns arames para lhes dar mais espaço e liberdade.
Quem sabe gostariam de trazer convidados? Sumiram
novamente. Assim como o dono da gaiola, que voltou de
viagem não tocou mais no assunto e eu naturalmente não fiz
questão, eles também desapareceram. Há semanas que troco
82
83. a água e coloco ração e eles não aparecem. Substituí umas
fitas que estavam desbotadas e fiz uma cobertura com
papelão pois o sol anda quente, estes dias. Acho que não
virão mais, assim é a vida...
Em tempo: Acabo de rever os meus amigos. Trouxeram uma
novidade: um jovem canarinho amarelo talvez no seu primeiro
vôo. Não foram até a gaiola, pousaram na minha janela,
cantaram e piaram por alguns instantes, acho até que sorriram
para mim. Logo foram embora, parece que para não mais
voltar. Deixaram-me feliz, apesar deste aperto no peito.
83
84. O GRAFITEIRO
Novamente aqui, sentado esperando para desincumbir-me da
tarefa de contar mais uma estória. Mais alguns minutos de
angústia e curiosidade pelo que terei a dizer. Como será?
Sobre o que será? Enfim esperemos, nem mesmo eu tenho
idéia.
Guerreiros também cansam e amam. Cansam mais do que
amam. Principalmente os que lutam pela própria liberdade.
Engraçado como leva tempo para que se perceba que aquela
angústia que nos atormenta desde a infância não passa da
certeza subconsciente de que somos escravos, presos a
correntes e grilhões. Sem nos darmos conta desta realidade
seguimos usufruindo o que nos é permitido, como concessão
ao longo de nosso crescimento. Aí explode a adolescência.
Esse sim, tempo do exercício da liberdade. Logo somos
rotulados de adolescentes, algo assim como debiloides, que
inconseqüentemente se desenquadram. Aqui desta cela que
chamam de quarto com o olho grudado nas grades que me
protegem pela piedade daqueles que me amam, penso o
quanto eu sou inofensivo à integridade das pessoas. Odeio
violência. Jamais morderia a orelha de ninguém. Queria
apenas minhas calçadas de madrugada, as brigas das
prostitutas e travestis disputando ponto. Os primeiros raios de
sol, aquele ventinho levemente frio, a luz se mostrando
arrogante, trazendo consigo a primeira buzina, depois as
sirenes, o burburinho dos robôs depois os meninos futuros
escravos “Tio me deixa cuidar...”. E assim seguiria a vida de
liberdade e felicidade que muitos adoram. Meu colégio estaria
sempre no mesmo lugar embora muitas vezes eu esquecesse
84
85. em frequentá-lo. Meu quarto sempre limpinho e organizado
com todos os CDs no devido lugar, meu pijama embaixo do
travesseiro e um dinheirinho para o cinema ou mesmo um
pico. Quem se importava? Todos, vovó o vovô, meu pai, aliás,
meu pai tem bom gosto: que gata maravilhosa ele levou lá em
casa quando mamãe viajou. (Pensou que eu havia ido
acampar). Mamãe sempre preocupada comigo marca
encontros saborosos na praça de alimentação do shopim da
moda. Peço sempre um Mac qualquer e Coca Cola. Deixo
para o fim de tarde a pedra e o conhaque. Sou um
adolescente como meus amigos. Ta certo, eles não escrevem
o que sentem. Não tem diário. Eu tenho esta mania de expor
tudo o que penso ou sinto nas paredes lisas e virgens da
minha e das outras casas. É um impulso irresistível. Escrevi
na parede da sala de audiências quando iria ser ouvido pelo
juiz no caso da separação de meus pais “Este juiz é bicha, o
conheço da noite, é travesti, perguntem ao escrivão que é seu
amante, adora ser chamado de Deise.” É verdade, mas
parece que ali não era a casa da justiça e da verdade. E mais:
Viva Che! Marijuana é liberdade! No muro do escritório onde
minha mãe trabalhava escrevi: “Mamãe chorou quando o
dentista terminou seu tratamento interminável e deu seu
horário para minha irmã de 21 anos. A maninha agora anda
de aparelho nos dentes e um carro conversível bem legal.”
Papai é meu herói, ficou rico como diretor de licitações no
governo. ¨¨
Dá-me tudo. Apenas parece que está com alguns cabelos
brancos. Faz tempo que não o vejo mas ele paga muito caro
pela minha internação, acha que saio desta para assumir o
escritório de turismo, acha que lavar dinheiro dos outros é
bom negócio. Deve ser, ele sempre tem razão.
Minha cela, digo, meu quarto recebe a visita do guarda
penitenciário, digo, enfermeiro, que me deseja bom dia. Tomo
o café da manhã, ou seria desjejum? Junto me enviaram dois
livros. Papai e mamãe estão preocupados com o meu
85
86. intelecto. Um trata de auto-ajuda destes picaretas que não
sabem viver sem o dinheiro dos idiotas que compram, seus
livros de obviedades e exploração da fraqueza e ignorância
humana injetando ânimo para a insignificância da vida das
pessoas e dinheiro para suas próprias contas bancárias, e
outro do Paulo Marmota, este de fardão na contra capa, é um
assalto com estupro à mão armada. Rasguei folha por folha e
com uma bisnaga de cola colei uma a uma em seqüência de
modo a se tornar um rolo que coloquei ao lado do sanitário
para usar sempre que preciso. Os papéis higiênicos, aliás
dois rolos que possuo, uso para escrever poemas. Este texto
é um deles. Pena que são muito finos se rasgam e muitas
palavras se perdem, se misturam, embaralham o sentido das
frases as tornando sem sentido. No fundo gosto disto pois me
deixa mais intelectualizado, segundo o bibliotecário da minha
casa de descanso. Ele não entende nada e quanto mais não
entende, mais ele gosta. Na audiência de avaliação está
sempre a me elogiar, a dar pareceres favoráveis a minha
recuperação mas, sempre vota contra a minha alta. È um fã
obcecado dos meus textos. Teme me perder. Outro dia se
encostou chorando à minha porta desesperado e chorando
pediu conselho de como se livrar da esposa que o chifrava
despudoradamente e no entanto o sugava sexualmente todos
os dias a ponto de não se sentir com força para trabalhar no
outro dia.. Recomendei que ele convidasse o amante para a
mesma noite. E assim juntos deixasse que o outro usufruísse
enquanto ele dormiria. Achou uma boa idéia. Mas o que fazer
com os outros dois que ela havia confessado desfrutar? Disse
que convidasse a todos para a mesma e todas as noites.
Resgatasse seus filhos e fosse morar na cela, digo, quarto ao
lado do meu, pois com certeza sua mulher logo estaria
saturada de tantos homens fogosos e imploraria para ele
voltar para casa e dormir de verdade ao seu lado. Certamente
ela rapidamente sentiria falta dos filhos chorando de febre,
tosse, e birra de madrugada, de trocar fraldas e fazer
86
87. sopinhas e mamadeiras. Ele concordou. Infelizmente, de tão
contente foi contar o caso para o diretor do presídio, isto é, da
casa de repouso. Agora, está na cela realmente, repousando
como eu, só que na ala dos adolescentes, digo,dos
perturbados.
Acho que era o que tinha para o momento . O papel higiênico
está acabando. Dois novos rolos somente na semana que
vem.
Guerreiros também cansam e amam Cansam mais do que
amam. Especialmente aqueles que lutam pela sua própria
liberdade.
Adolescência é uma linha invisível.
Todo o cuidado é pouco.
Os monstros da Tv estão velhos e cansados.
Nada surpreende as crianças.
Tudo é velho
Todo o cuidado é pouco
Os riscos luminosos no céu não são de artifício
Adolescência é uma tênue linha na razão de um menino ou
menina.
Acabou.
PLIM. PLIM.
87
88. INDULTO DE NATAL DE 1969 *
Querido diário.
Quantas vezes sonho em voltar para casa. Ver novamente
meus amigos, parentes, minha cidade, o céu do meu país.
Gostaria de andar livremente pelas ruas. Naquela rua clara e
calma do meu bairro, na qual os meninos hoje rolam em seus
skates, no meu tempo eram carrinhos de rolamentos, feitos
por eles mesmos. As corridas emocionantes que sempre
terminavam em joelhos esfolados, as peladas de fim de tarde,
as broncas dos passantes, sujeitos à boladas ocasionais. São
lembranças de pouco tempo atrás, sete ou oito anos apenas,
mas para mim tão distantes, assim como a distância que me
separa de minha terra.
Foi no primeiro dia de abril. Nuvens negras envolveram minha
rua e parece que estão lá até hoje. Numa noite, a pontapés,
invadiram minha casa e sombras verdes levaram meu pai.
Alguns anos eu e mamãe procuramos por ele.
- Não está aqui. Aqui não deu entrada.
- Foi transferido.
- Nada consta em nossos arquivos.
- Uma moça linda como você não terá dificuldade em
conseguir informações, desde que queira de verdade...
Certo dia papai apareceu numa lista de pessoas trocadas por
um embaixador. Algum tempo depois viemos, eu e mamãe, ao
encontro dele aqui.
Poucos meses e a mesma nuvem verde desceu aqui. Eu em
“atitude suspeita”, pois conversava com amigos na porta de
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89. uma fábrica, filha de exilado, não deveria ter amigos
operários, nem portar jornais de minha terra que denunciavam
atrocidades. Eu apenas sentia falta da minha rua, dos meus
amigos, do céu do meu país. Voz de prisão. Confusão.
Ameacei correr, me lembrei que neste assunto de segurança
nacional os homens são violentos e eu não suporto dor.
Tenho muito medo. Uma bala de carabina me queimou a
garganta. O promotor acusou; pichação de muros; distribuição
de panfletos esquerdistas; trotes telefônicos com finalidade de
conturbar os órgãos de segurança; vigilância de bancos com
objetivos escusos, subversão.
Condenada, rolei de prisão em prisão. Na "menina linda
"como eu, meus interrogadores deixaram suas marcas. Minha
virgindade pertence a um grupo de animais e cassetetes de
borracha. Não há maneira de descrever o que os defensores
da lei praticam em nome de Deus, Família e Propriedade.
Campos de extermínio não ficaram restritos à segunda
guerra.
Hoje foi assinado o indulto de Natal. Muitos ladrões e
assassinos estarão nas ruas novamente. Fico pensando que
talvez possa estar entre eles, voltar para a minha rua
participar das peladas com os meninos. Não, atualmente não
é possível, creio que nunca mais me livrarei deste colete que
me aperta a coluna e desta tosse que mancha de sangue meu
lenço.
O carcereiro me disse que não estou na lista dos presidiários
que serão indultados este ano.
* Carolina morreu de tuberculose e infecção generalizada no
dia em que completaria vinte e três anos. No exato momento
em que o Brasil conquistava a copa do mundo de futebol e o
povo todo cantava “Pra frente Brasil”.
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90. POR DETRÁS DA ILUSÃO.
No quintal do vizinho havia muitas árvores frutíferas, as
melhores peras e ameixas, da vermelha e da amarela, maçã,
verde e vermelha azedinhas quando tenras e doces, como
mel, quando maduras. No quintal do vizinho vivia um velho
barbudo e capenga, apoiado no seu cajado, resguardava as
frutas e o território. O quintal do vizinho tornou-se o objetivo
da minha vida. Vivia no quintal do vizinho uma menina. Um
pedacinho de sonho. Solitária. Sozinha percorria as alamedas,
como uma margarida altaneira recém desabrochada para a
vida. Andava desafiando o vento, encarando o sol, surda aos
meus apelos juvenis. Indiferente colhia cravos e mosquitinhos.
Agachada esquecia-se de cobrir as pernas e levantava o
vestido em forma de concha para carregar as frutas colhidas.
Calcinha branca avental quadriculado, cabelos loiros longos e
um sorriso debochado.
Construí um castelo de sonhos e lixo reciclado pregado ao
pinheiro, escondido pelos meus medos e pés de mamona
para observar minha paixão. Ela passeava fingindo
indiferença. Eu me arranhava todo, agarrado aos galhos mais
altos fingindo camuflagem. Ela fingia não me ver, eu fingia não
saber.
Certo dia o galho quebrou. Caí como jaca mole, de costas
90
91. sobre um pé de milho. O mundo escureceu, faltou fôlego,
desmaiei por instantes. Quando abri os olhos pensei estar no
céu. A menina das bochechas rosadas, avental quadriculado,
calcinha branca, me tinha ao colo, ares de preocupada e
mãos afagando docemente meu rosto. Bendito acidente.
Neste momento se deu o encontro da razão com o destino
que nortearia toda a minha vida. Fusão de beleza e timidez,
atitude e deslumbramento.
Hoje no meu quartinho da casa de repouso encontrei uma
fotografia antiga, da minha casa antiga, do pinheiro antigo e
dos pés de milho no quintal. De pernas cruzadas, encostado
ao tronco a criança que fui. Nota-se claramente o olhar
curioso em direção ao terreno vizinho. Certamente buscava a
menina do avental quadriculado. Embora as mãos tremam
sem cessar posso visualizar o passado e assim a memória me
enseja recordar tudo que passou desde aquele dia em que me
vi acarinhado pelas mãos que para todo o resto da minha vida
segurou a minha nos bons, maravilhosos e nos maus e
tenebrosos anos que se seguiram. Os momentos de
esquecimento são tenebrosos embora suaves, pois deles não
tenho consciência. Quando recobro o conhecimento me sinto
frustrado por não ter compartilhado este tempo da minha vida.
Nestes fragmentos de tempo que acho estar em sintonia com
a realidade procuro desenvolver a minha estória rapidamente,
antes que tudo se perca na penumbra desta minha doença.
Obs: Aos amigos do pai informo que ele faleceu segunda
feira. Publico da maneira que deixou este relato. Um abraço
agradecido a todos os seus leitores. Até sempre.
91
92. PISE NO CUSPE SE FOR HOMEM
-Pise no cuspe se for homem,
Se pisar tá xingando.
-Te quebro a cara
Seu fio da puta.
-È tua mãe.
-Não ponha minha mãe no meio
Que eu ponho no meio da tua.
-Quatro olhos desgraçado.
-Vem, vem se for homem.
-Filhinho de papai, bichona.
Cuide, se tua irmã sair sozinha eu faturo ela.
-Não tem cacete p’ra isto. Você é brocha.
-Te cuida piá.
-Depois da aula de catecismo, pego ela.
-Vou falar p’ro meu pai, vai te matar.
-Ela já me mostrou a calcinha.
E os peitinhos também.
Disse que me gosta.
-Se você não parar vou falar pr’a tua mãe
-Não faça isso.
-Então pare.
Vamos jogar bola?
-Vou de goleiro.
-Ta bom.
-Não se esqueça de beijar a maninha por mim.
-Filho da puta.
-Cunhadinho.
-Um dia te arrebento
-Quer sobrinhos órfãos?
92
93. -Cachorro.
-Me empresta seu tênis p’rá amanhã?
-Só desta vez, lazarento.
-Deixa disso, ta na hora da janta, já vou.
Passa lá em casa depois.
-Eu vou.
-Tua irmã ta em casa?
-Não me importo.
-Ela não é meu tipo, guri.
Tava só te enchendo o saco.
-Ta bom.
- Mas deixa eu te conta,
Sonhei com tua mãe.
Ela tava peladinha;
Rebolando p´ra mim.
-Seu filho da puta.
Pise no cuspe se for homem.
93
94. SONHO DE VALSA
- Aceita dançar?
- Como? Desculpe sou casada. Não sei...
- Não sou ciumento. Permite?
- Desculpe. Estou acompanhando minha filha.
- Você está sozinha. Estou vendo. Tão linda.
- Obrigada. Não sei. Acho que não.
- Esta rosa é para você, por favor, aceite.
- Por favor, senhor, eu aceito, mas meu marido ...
- É um bolero...
- Não, é uma valsa.
- É. Na verdade entendo muito pouco de música. Gosto.
Mas, a vida me levou por outros caminhos. Quer saber? Na
verdade eu nunca dancei, nunca frequentei um baile, nunca
tive em meus braços uma mulher.
- Por favor.Não exagere.Olhe..Me deixe pensar. Daqui a
pouco eu resolvo. Obrigada.
- Pensou?
- Está bem, uma só.
- Acho que estou louco. Nunca em minha vida tive
tamanho arrojo. Eu te agradeço por aceitar, mas me desculpe,
não sei dançar. Você é minha música, meu ritmo, minha
esperança de não decepcioná-la.
- Acho que você dança bem.
- Obrigado Simone.
- Como sabe meu nome?
- Não sei, mas acho que este nome frequentou a minha
vida. Realmente também não sei. Acertei? Como pode?
Escute, Simone é o nome que embalou todos os meus
sonhos. Não sei porque, mas sempre soube que a minha
felicidade estava ligada a este nome.
- Estás brincando comigo.. Por favor, estamos muito
94
95. juntos. As pessoas...
- São dois pra cá, dois prá lá. Você é maravilhosa...
- Obrigada... Minha filha está olhando... Não exagere.
- Não resisto.
- Por favor... Encoste os lábios ao meu pescoço. ...
Fale mais. Não... Pare..
- Pense que meus lábios podem percorrer além de
seu pescoço, minha língua está ansiosa para percorrer seu
colo, e, mais além, circundar seu umbigo, descer em seu
sexo e coxas,
lamber seus pés , tirar seu fôlego e desmaiar de paixão.
- A música...
- Desculpe. Mas estou neste momento vivendo algo
que nunca havia sentido.
- Eu compreendo. Está bem. Você está me tirando do
sério. Sou casada.
- Desculpe. Acho que realmente passei do limite. Na
verdade fiquei louco, ou, achei o amor da minha vida.
- Você me tirou do sério. Não brinque comigo. Eu...
paixão. Fale mais, seja sincero.
- Embora você não acredite, estou sendo eu mesmo
como nunca fui, jamais me senti assim. Será que é paixão?
Estou sentindo suas coxas mais disponíveis, aos passos mais
desejados, solte-se. Nada mais acontece neste salão, a não
ser a música. Nós dois, e a volúpia que embala o ritmo de
nossos corpos.
- Tenha piedade, nem ao menos sei seu nome, Ta
bem, estou completamente seduzida. Farei tudo que você
quiser, mas, por favor, seja discreto, todos nos olham. Minha
filha está nos observando, contenha-se
- Ela está sorrindo...
- É verdade. Está com certeza se divertindo a minha
custa. Será que ela me compreenderá? Na verdade não quero
mais pensar nisso, aperte-me, beije meu pescoço, me leve
daqui. Ai, meu Deus. Adoro-te. De onde você apareceu? Meu
95
96. amor. Querido...
- Vamos para a minha casa?
- Vamos Alcides.
- Que surpresa! Como descobriu?
- Acho que nasci para amar alguém com este
nome. Acertei?
- Na mosca. O inconsciente se manifestou nos fatos
e na vontade, somos as metades que se juntaram pela força
do amor.
- A música acabou. Por favor, tire a mão do meu
decote, podem reparar.
- Sabe, minha vida começou aqui. Vamos embora.
Venha comigo.
- A menina, minha filha. Está bem, me entrego ao
destino, vamos.
- Se somos ou estamos loucos nos entreguemos a
loucura. Ela que nos aguarde. Salve a loucura. Viva o prazer.
- Também estou feliz.
- Meu amor.
- Minha paixão.
- É aqui, querido?
- É meu amor, aqui termina esta noite e começa o
resto de nossas vidas. Onde estão as chaves?
- Você deixou com nossa filha. Ela ficou com o
carro; a chave, no chaveiro.
- Puta que pariu. Deste jeito não há tezão que
aguente Assim não dá.
- Calma querido. Achamos outro jeito. Vamos para
um motel?
- Motel? Você quer ir para um motel? Ta maluca
mulher? Vou levar a mãe da minha filha pra um motel em
plena sexta feira. Ficar na fila com adolescentes gozando
nossa cara? Vê se te enxerga, cansei dessa tal de fantasia
sexual. Vá a merda, pois eu vou dormir na garage.
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97. O MENINO GENTIL
Uns governam o mundo, outros são o mundo." B S
Principalmente aos quatro anos de idade.
-OI tudo bem?
-Como é seu nome?
-Eu vou bem, obrigado.
-Muiiiiito obrigado.
-Oi vovó querida, sua gostosona.
-Oi vovô querido do meu coração.
-Trouxe presente? Obrigado meu deus.
-Com licença, posso passar? Obrigado.
-Tem uma sobremesinha aí?
Sorvete, leite condensado.
-Vovó faz bolinho de arroz pra mim?
-Faz um camarãozinho a milanesa, vovô?
-Vou esperar aquela deliciosa mamãe chegar.
-Oi moço, tudo bem?
-Eu vou bem, obrigado.
-Onde você mora?
-Moro na minha casa.
-Trouxe presente para mim?
-Bom dia vovô ...
-Está bravo vovô?
Deixa eu dar um beijinho.
-Vovó faz brigadeiro?
-É muito bom, delicia...
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98. -Vovô, vou dormir aqui,
-Você vai roncar muito?
-Não estou muito bom,
-Tem um sorvetinho aí?
-Alô vovô, seu cara de pau,
-Ta bom, queridinho do meu coração.
“ Deuses, se são justos em sua injustiça, nos conservem os
sonhos ainda quando sejam impossíveis, e nos dêem bons
sonhos, ainda que sejam baixos." B S
98
99. ISADORA
Recordo de ti
Como lembro um corredor
De um túnel imenso
Túnel que nos separava.
Não na distância
Nem no amor.
Vejo-te correndo
Em minha direção
Com anseio de proteção.
Com perninhas curtas e trôpegas
Ensaiando as primeiras vontades
Experimentando as primeiras escolhas.
.
É verdade não lhe restava outra opção.
Acolhia-te nos braços e na memória
Como uma benção
Amoleceu meu coração
E me fez compreender além de mim
E tudo em você.
Querida, por minha vontade
Andarás pelas pedras que andei
Pelas alegrias e tristezas as quais padeci
Para delas tirar proveito
Para que possa compreender o mundo
Como o templo da sabedoria, não se aprende na escola
Que só os dotados do conhecimento universal
99
100. E daquele dom especial
Que ninguém sabe de onde vem.
Eximem-se das vaidades materiais.
Destas que no fim das contas,
Na solidão em que um dia todos se defrontam,
Possas pensar que o amor,
A boa vontade, a falta de rancor, te absolve.
Assim terás a vida que nenhuma religião pregou,
Que santo nenhum viveu
Pois serás na verdade
A representação da divindade,
A vida.
Com todos os seus trejeitos e vontades
A expressão maior do ato de existir sem preconceitos
Na paz por ter vivido plenamente.
Combatendo como menina, mulher, mãe, avó.
Isadora.
100
101. ESTRELA DO MAR
Eu era pequeno,
Meu avô dizia:
-“Te cuida piá”,
Não saia p’ra longe.
Tem bugre no mato,
São botocudos,
Comem criança,
Podem te pegá.
Hoje vovô já morreu,
Bugre virou índio,
Outros mendigos,
Botocudo vende cocar.
Expulsos p’ra tão longe
Que podem ter caído no mar.
Onde estão os donos da terra?
Onde estão os guerreiros?
Cadê os brasileiros?
- Talvez, filhinho,
Tenham virado conchinhas,
Que o mar espalha na areia,
Para as crianças brincarem.
O grande cacique,
É aquela pedra maior
Que parece de seu povo cuidar.
E a filha dele, quem sabe?
Aquela estrela do mar.
101
102. MEU PÉ DE PÊRA.
Curitiba, julho de l955. Inverno. Frio de antigamente...
Meu pai chega em casa com uma caixa enorme.
- Meu filho é para você passar as férias.
Abri com volúpia. Livros. Eu mal saído das primeiras letras
recebo livros de presente. E logo uma coleção inteira de
Monteiro Lobato. Antes desta somente “Tesouros da
Juventude” adornava meu quarto.
- É obra de um grande comunista!
Lembrei: “Comunista come criancinhas”.Meu avô, integralista
camuflado, sempre dizia isso para irritar meu pai.
Muitos volumes. Na parte ’Os 12 Trabalhos de Hércules’
separei’ O Touro de Creta’ e parti para o quintal, rumo ao meu
galho preferido na velha pereira, refúgio de todos os medos e
de todos os sonhos do menino de oito anos que um dia fui. Foi
ali, em cima da árvore, que tomei conhecimento da Mitologia
Grega através das aventuras de Pedrinho, Narizinho, Emilia e
Visconde de Sabugosa. Aprendi saboreando o sol e a solidão
que a união, a amizade, a solidariedade, a inteligência, além
da força física é que concretizavam as vitórias de Hércules
perante os desafios de Euristeu e Juno, no Olimpo impondo-
lhe impossíveis trabalhos. Quase sem parar devorei: O
Minotauro, A Chave do Tamanho, O Saci, Reinações de
Narizinho, e todos os outros. Naqueles livros assimilei muito
do que de melhor contém minha personalidade, pois, os
defeitos são de minha própria arquitetura.
De alma lavada, sentindo-me tão herói quanto Hércules me
recolhia ao fim da tarde para continuar vivendo as aventuras à
noite embaixo aos cobertores.
102
103. Sei que naquele inverno, naquela árvore, nos Doze Trabalhos
de Hercules, enfim, nas obras de José Bento Monteiro Lobato
aprendi a sonhar com um mundo mais justo, descobri a
poesia, o sentido da vida, os valores do ser humano, a magia
dos livros. Descobri também, entre uma página e outra, com a
brisa fria lambendo meu rosto, o valor da liberdade. E também
que comunista não comia criancinhas.
103
104. E O PÃO, MOLEQUE
Uma pedra entrou entre meu dedo mindinho e o outro que não
sei o nome. Sentei no chão de terra, cavouquei entre os
dedos. Aproveitei para coçar as frieiras. O sol batia forte,
tardes intermináveis de antigamente, luz abundante
escorrendo suor pela testa que com as fraldas da camisa
enxuguei, desalinhando os suspensórios caídos de um lado. A
barriga roncando de fome. Na frente o caminho de terra. No
fim do caminho, o rio. Esqueci da padaria. Entre a fome e o
rio, minha aventura, menino saltando cercas, roubando frutas,
correndo de boi bravo e cachorro vira-lata, pé de pêra no
caminho, mascar e chupar caldinho de pêra verde. Sabores. O
azedo da ameixa vermelha, da amarela, todas com ferrugem
no pé, um gosto de vida vibrando lembranças que se
carregam para sempre e não se encontram nunca mais nas
frutas importadas dos mercados. No entanto formigas sobem
pelas pernas. Criança não se importa. Formiga é
companheira. Melhor é cavoucar os dentes com capim com
caldinho adocicado. Carregar na palma da mão os bichinhos,
louva-deus, tatu bola, frutos de mamona, munição de
estilingue, tormento dos passarinhos. Continuar correndo
pelos campos de capim limão arranhando as pernas
magricelas, Lambari rebelde e saltitante embrulhado na
camisa. Exato momento em que a felicidade imperceptível
explode em toda a sua plenitude. Catar e sapecar pinhão,
fazer esconderijo para a munição, lavar a cara na poça
d’água, voltar pra casa sem o pão que deveria comprar com
lambaris enrolados na camisa e barriga cheia de pinhão
macetado a beira do fogo, sem sal, mas saboroso de
meninice..
104
105. A BENGALA DO VOVÔ
Toc Toc Toc.
Lá vem o vovô fazendo barulho com sua bengala e seu han...
han... han...
Parece que seu caminhar é sem direção, mas não é. Eu sei, o
conheço, ele mora no meu coração desde quando eu era bem
pequeno. Seus braços eram abrigos, prontos a consolar e a
perdoar as minhas peraltices.
Vovô parece cansado e o pigarro faz barulho que ele não
percebe, pois, se percebesse evitaria. Vovô é muito bom. A
vovó vive brigando, chama sua atenção. Ele balança a
cabeça, dá de ombros, sorri e pisca para mim com cara de
moleque. Este meu vovô é demais. Está sempre pronto para
fazer alguma coisa em casa, apesar de não ter uma perna,
conseqüência de um tumor que o atacou quando tinha
quarenta e três anos. Sobe em escadas, troca lâmpadas,
conserta tudo que se quebra. Ele usa uma perna mecânica às
vezes. Em casa, agora que pouco sai à rua, usa suas muletas
que são mais práticas e não cansam tanto quanto a perna. É
muito pesada. Coitado do vovô. Tem um olhar severo, mas eu
sei que é só o jeito dele. Na verdade tem um coração bem
generoso. Gosta muito de contar estórias de quando era
criança, criança pequena, como dizia. E lá vinha ele “quando
eu era criança pequena lá na minha terra”, e tome “causos”.
Desconfio que muitas das estórias ele fosse inventando na
hora, de acordo com o que se passava no momento, ao redor,
ou na ocasião.
Gostava de falar de um “Cavaleiro da Esperança” que cruzou
o país no comando de 1.200 homens defendendo o direito do
povo às reformas políticas e sociais, combatendo as
oligarquias. Coluna Prestes como ficou conhecida na história
percorreu a pé 25.000 km pelo interior do Brasil. Meu avô
tinha dez a doze anos de idade e ficava maravilhado com as
105
106. façanhas do Cavaleiro da Esperança. Contava as proezas, as
batalhas que sempre venciam contra as forças do exército,
polícias estaduais, fazendeiros e jagunços. Dizia que naquele
tempo nem poderia imaginar que já moço fosse conhecer e
conviver com O Velho, como era chamado Luis Carlos
Prestes, o mesmo Cavaleiro da Esperança da sua infância. Na
verdade eu não compreendia muito bem quando ele
enveredava por esse tipo de estória. Pois na época não
entendia direito de política e essas coisas, mas me
maravilhava a forma empolgada, comovente e apaixonada
que ele falava. Cada batalha se desenrolava na minha frente
como se real fosse. Vovô era demais. Deveria ter sido artista
de teatro. Esta militância política lhe custou algum atrapalho
na vida: perseguição, clandestinidade e prisão. Por dois anos
freqüentou os porões da ditadura Vargas. Era um moço que
estudou em colégio militar e na ocasião freqüentava e Escola
Naval. Mas, sobre esta parte contarei em outra ocasião. Em
nenhum momento ele se queixou ou se arrependeu de algo,
muito ao contrário, era só o assunto aparecer e ele se
inflamava novamente em defesa de suas idéias
revolucionárias em defesa dos desfavorecidos, contra a
injustiça e os poderosos.
Vovô estava um pouco doente nestes dias. Sentia dores na
barriga e já não comia como sempre. Na hora do almoço já
não mais reclamava do atraso. Ele gostava de horários pré-
estabelecidos. Deixava-se ficar na rede com as muletas ao
seu lado, no chão, e o olhar fixado no vento. Era verão e a
brisa da tarde trazia sensações reconfortantes. Sensações
que remetem à tendência de tornar relativo o bem estar.
Percorrer caminhos efêmeros e misturar-se ao âmago do
existir. Perceber talvez, no que se resume a nossa
permanência, no reconhecimento da vida. È quando a
calmaria se torna irmã gêmea do turbilhão e a bondade
passeia de mãos dadas com o mal. Antagônicas, mas fruto do
106
107. mesmo átomo. Comprimir-se em êxtase, reter o suco do
pensamento mais profundo, e quase alcançar a paz.
Acho que foi assim, o braço pendia solto no balançar da rede.
O vento beijava suave os poucos cabelos brancos, o par de
muletas pousadas no chão não desconfiava que se
transformasse em imagem de ontem em minha memória.
Guardo as bengalas que às vezes uso para andar no meu
quintal. Não preciso, mas parece que o fato de fazer uso delas
me remete a um tempo de máxima segurança quando tudo
poderia ser alcançado, pois eu sei que aqueles olhos austeros
vigiavam minha trajetória e quando ao final de qualquer peleja
na vida, ganhando ou perdendo, eu buscava seu apoio,
receberia um afago, cumplicidade que sabia irrestrita.
Qualquer dia conto algumas outras passagens e proezas do
vovô. Por hora basta isso para apresentá-lo. Lembrá-lo faz
parte do exercício de cultivar o meu próprio eu, de me reciclar,
beber da fonte do bem, fundir em pepitas de ouro todos os
momentos de amor que pude desfrutar ao seu lado.
Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir.
O que confesso não tem importância, pois nada tem importância.
Faço paisagens com o que sinto.
“Fernando Pessoa”
107
108. BUIÚ E BIGUÁ *
Buiú é um guri que anda pelas ruas da cidade ajudando seu
pai e sua mãe a catar papel, latas de alumínio e tudo que
pode ser vendido e reaproveitado. Gosta muito de correr pela
calçada com seu amigo Biguá. Este é um cachorrinho muito
esperto que um dia resolveu abandonar sua casa, que era
muito grande e bonita, para acompanhar Buiú pelas ruas da
cidade.
Biguá é um cachorro muito esperto, gosta de correr por entre
os carros, árvores, postes e pessoas que encontra pelo
caminho.
Um dia, enquanto brincava de esconder ossos de galinha que
havia encontrado ao lado de um carrinho de pipoca, descobriu
uma minhoca que muito brava lhe disse:
- Pare com isso cachorrinho. Eu gosto de sossego e você está
me perturbando. O sol está quente e eu preciso me acomodar
neste cantinho úmido. De noite preciso cavar os buraquinhos
na terra para torna-la mais fértil.
Bigua ficou assustado. Latiu duas vezes, rodopiou e ficou
olhando desconfiado para aquele bichinho comprido e mal
humorado.
Buiú correu para ver o que estava acontecendo.
-Biguá, o que aconteceu? Venha, temos muito que andar. Não
pense que posso ficar te esperando. Papai tem pressa, o sol
já vai dormir e muito papel ainda está pelo caminho.
Biguá ficou pensando, "como pode um bichinho tão comprido
e birrento morar embaixo da terra e ainda trabalhar o tempo
todo fazendo túneis para por ovos e criar seus filhos? Será
108
109. que eu faço alguma coisa importante? Preciso pensar em algo
para me tornar útil e assim todos reconhecerem o meu esforço
e inteligência."
Depois de muito andar chegaram em casa.Enquanto papai
descarregava os papeis, os jornais velhos e o resto todo, Buiú
foi para seu cantinho fazer os deveres da escola. Mamãe foi
esquentar a comida para todos. Era apenas um caldo com
verduras e arroz. Buiú pegou seu prato e foi se acomodar na
soleira da porta. Papai entrou e em silêncio comeu um pedaço
de pão com a sopa. Biguá estirado ao lado do fogão de lenha.
Observava enquanto esperava sua vez de comer. Percebeu
então, que mamãe raspou duas colheradas da sopa que
restou na panela e escondendo o rosto chorava em silêncio. A
noite escura e a economia de querosene fizeram com que
todos fossem dormir mais cedo. Biguá lambeu algumas
migalhas de pão caídas no chão e se encolheu no seu
cantinho.
No outro dia bem cedinho Biguá ja corria no terreiro enquanto
Buiú se aprontava para a escola. Papai saiu com o carrinho
vazio, carregando em cima Buiú e Biguá até a escola. O
menino ia estudar e o cachorrinho ficava no portão esperando
por ele. Buiú sempre dava um jeito de lhe trazer um pouco da
merenda. O tempo demorava a passar e Biguá ficava ansioso
para voltar a correr pelas ruas atrás do carrinho que eles iam
encontrar sempre que terminavam as aulas. Buiú saiu mais
cedo. O sol estava lindo e a cidade muito movimentada.Buiú
estava feliz e Biguá pulava alegremente.
Era sexta feira, o final de semana os deixava cheios de
alegria, pois teriam muito tempo para brincar e imaginar
aventuras. Também era dia do papai vender a coleta de
papeis e latas de toda a semana e quem sabe com o dinheiro
no bolso não se tornasse mais amigo e brincalhão como era
antes, quando trabalhava na fábrica.
Buiú encontrou seu pai na praça sentado no banco que ficava
em frente da sorveteria. Achou estranho:
109
110. -Papai o que aconteceu? Está com dor na memória
novamente? Deixe, eu empurro o carrinho. Venha papai,
mamãe faz remédio de ervas, o senhor vai melhorar.
Buiú empurrava o carrinho com muita dificuldade e esforço.
Biguá pressentindo problemas baixou as orelhas e seguiu
cabisbaixo seu amiguinho. O menino olhava para traz
esperando pelo seu pai. Pensava: "justo hoje que mamãe não
acompanha o serviço, papai teve que passar mal. Sempre que
ele entrava naquele bar saía com dor na memória, segundo
dizia.
- Meu filho, o homem de bem e fracassado, que perde a
dignidade sofre de dor na memória. Tudo que o torna infeliz é
a memória. É nela que a gente guarda tudo que a vida nos
deu e tudo que a vida nos tirou. Depois de algum tempo,
quando o sonho de mãos dadas com esperança parte numa
viagem sem promessa de voltar, sobra o ressentimento e a
gente sente pena de nós mesmos.
-Vamos para casa papai, Seu Chico ajuda. Vamos vender a
produção da semana. Mamãe vai à vendinha, ela compra
lingüiça e macarrão. A gente faz um bom almoço domingo,
depois da missa. A memória vai ficar boa, nós vamos brincar
de futebol no campinho. Seus amigos vão estar lá, vamos
paizinho, por favor.
Seu Antonio estava realmente alterado. De repente aquele
homem que dava duro e embora catando papeis nunca
perdera e esperança de voltar e exercer sua profissão de
ferramenteiro na indústria de automóvel, sentia-se
desesperançado. Dois anos de busca e espera pelo emprego
que perdera o qual sabia exercer com competência. A família
que sonhara, a mulher que amava, o filho querido e inteligente
que tiveram se tornavam uma carga pesada para sua
dignidade humilhada. Ta certo, ele também não teve uma
infância fácil. Mas pôde sonhar. Sua realidade na infância foi o
céu sempre sem nuvens, o vento constante, a plantação de
macaxeira, os pés descalços, a fumaça da lata com carvão ou
110
111. gravetos que esquentava a farinha com caldo de feijão e
carne salgada. Aos domingos no lombo do jumento tudo que a
família conseguia produzir para vender na feira da cidade.
Quando lá chegava, Tonho corria para frente do cinema e se
permitia sonhar com os heróis dos filmes americanos em que
todos os justos sempre venciam. Algumas vezes, burlando a
vigilância dos porteiros, conseguiam assistir Zorro defendendo
os pobres e injustiçados dos mal feitores, geralmente
apoiados por políticos, fazendeiros e banqueiros.
Buiú levou seu pai para casa. Mamãe com um ar de cansaço
e resignação colocou-o na cama. Biguá ressabiado pegou um
pé de chinelo e se aconchegou embaixo da rede. Buiú sentou
aos pés da cama e com segurança comentou com mamãe:
-Mamãe, os papéis, as latas e tudo o mais precisam ser
vendidos. Vamos pegar o dinheiro e levar papai ao postinho.
O Dr Felipe disse que podia ir à qualquer hora. E foram.
Papai tomou injeção na veia. Chorou bastante. Depois deu
risada, pegou Buiú pela mão e já refeito ia dizendo:
- Meu filho amanhã depois do almoço vamos bater uma
bolinha. Vou fazer um gol para você, pode esperar.
Buiú ficou contente, esqueceu rapidamente o acontecido.
No domingo, depois da missa, almoçaram lingüiça frita com
macarrão, beberam refrigerante de limão e deram risada com
os pulos de Biguá que com o chinelo na boca estava feliz com
a felicidade de todos.
Buiú sentou na beirada de um barranco. Biguá encostou-se no
menino, esticou um olhar de sono e dormiu ao sol. A tarde
estava quente e papai corria pelo campo de terra perseguindo
o gol prometido. De repente o juiz marcou um pênalti. Os
jogadores discutem. Buiú se levanta gritando:
-Pai, você vai bater. Bate papai.
Realmente seu pai foi incumbido de chutar. Buiú sente o
coração descompassado. Papai chuta, Buiú fecha os olhos.
Biguá que acordara com tanta gritaria cobre os olhos com as
duas patinhas da frente. Buiú retirou lentamente as mãos do
111
112. rosto e viu seu pai caído. Os outros jogadores tentavam
reanimá-lo, alguns gritavam desesperados por socorro, outros
sentados escondiam o rosto e soluçavam. Papai havia
morrido. Buiú correu para o seu lado. Biguá ficou cavando o
chão sem parar como se tivesse procurando na terra a
explicação para tudo aquilo. Mamãe chegou correndo e
gritando. Ajoelhou-se, e muito tempo ficou olhando o rosto de
seu marido. Seus pensamentos retrocederam e um filme de
toda a sua vida com aquele homem passou pele sua cabeça.
Escurecia, mamãe levantou, pegou Buiú pela mão, andou até
sua casa, esquentou o que restou do almoço serviu seu filho,
sentou-se na cama e disse:
-Seu pai marcou aquele gol Buiú. Toda a vida dele foi um gol
de placa, não se esqueça disso.
Quando amanheceu Buiú pegou o carrinho e saiu para catar
papel como seu pai fazia todas as manhãs. Olhou para trás e
viu mamãe abanando com um sorriso de orgulho e esperança
nos lábios e a certeza de que seu filho seria um homem de
verdade, talvez um doutor.
Biguá sumira. A noite toda passou escondido por entre um
monte de pneus velhos. Não sabia se comportar perante tanta
tristeza. Durante a noite as estrelas o ouviram chorar baixinho
bem daquele jeito que os cachorros choram quando não
querem que percebam. O vento mais frio invadiu seu abrigo e
Biguá pensou em voltar para a sua casa rica. Mas, quando
pela manhã viu ao longe Buiú e seu carrinho indo para o
trabalho esqueceu tudo e correu para junto de seu amigo.
Enquanto corria pensava: “será que a amizade a lealdade e o
amor é que vão me tornar importante e útil como aquela
minhoca que encontrei aquele dia? "
O Sol brilhava contente, o menino e seu cachorro foram
desaparecendo no meio do trânsito e das pessoas mas uma
luz azul muito brilhante marcava o caminho que eles
percorriam.
112
113. UM RAIO CAIU SOBRE A MESA
Tudo parecia muito tranqüilo naquela manhã. Dona Porca
estava no jardim da sua casa dando adeus a Senhor Porco
que saía para trabalhar na fábrica do senhor Camelo. Lá se
fabricavam potes de barro que serviam para encher de água e
carregar por muito tempo geladinha, nos caminhos do deserto.
Dona Porca estava ainda enxugando as mãos no seu avental
quando chegou o senhor Coelho. Seu Coelho era o carteiro
daquela floresta. Acontece que naquele dia ele tinha uma
carta para dona Porca. Ela então, muito curiosa e contente
disse:
-Quem será que escreveu para mim?
Seu Coelho falou:
-Acho que é um convite para a festa de dona Tartaruga.
dona Porca falou:
- Como você sabe disso?
Ao que seu Coelho explicou:
-Dona Tartaruga está fazendo aniversário, e ela resolveu fazer
uma festa para todos os bichos que moram nesta floresta.
Sabe quantos anos ela está fazendo? Cento e cinqüenta
aninhos.
-Tudo isto? – admirou-se dona Porca.
Enquanto dona Porca entrava na sua casa para pegar os
óculos e ler a carta Seu Coelho já estava longe distribuindo a
correspondência daquele dia. Todos os bichos receberam o
convite para a festa de dona Tartaruga.
Finalmente chegou o dia da festa.
O alvoroço era geral em toda a floresta. Todos os bichos se
prepararam desde cedo para o acontecimento. Todos
passaram os últimos dias providenciando roupas novas,
113
114. sapatos e o presente para dona Tartaruga.
A festa seria numa parte da floresta que por ser muito bonita,
com um gramado muito verdinho e fofinho, com árvores
grandes cujos galhos faziam sombra na mesa de doces e
salgados e do bolo enorme com cento e cinqüenta velinhas.
Também ficava bem pertinho do rio e isso era importante, pois
dona Tartaruga havia convidado todos os peixinhos para
participar de sua festa.
Bem cedinho começaram a chegar os convidados. O Coelho,
sempre apressadinho, foi o primeiro a chegar. Ele levou de
presente um boné muito bonito. Depois chegou seu Elefante,
balançando a tromba todo contente por ter sido convidado,
pois os outros bichos não gostavam de convidá-lo porque ele
era muito trapalhão, esbarrava nas coisas e derrubava tudo.
Veio também a Girafa muito elegante com uma enorme
gravata borboleta no seu pescoço comprido. Chegou o Urso
que foi logo se encostando à mesa de doces. Dona Cobra
muito tímida chegou se arrastando toda cerimoniosa pois
sabia que os convidados tinham com relação a ela muito
preconceito. Na verdade sentiam medo. Mas logo, como de
costume ela se entrosava com muitos dos bichos, porque
apesar de tudo era muito comunicativa quando conseguia
fazer amizades. Nem todos os bichos são maus, apenas
sofrem preconceitos. Igual aos humanos. Dona Cobra
balançando a cauda fazia um barulhinho muito engraçado. Os
convidados todos olhavam curiosos. Então, ela aproveitou
para falar:
-Um momento meus amigos, gostaria de dizer umas
palavrinhas a respeito desta festa. A nossa amiga dona
Tartaruga ao nos convidar para esta reunião além de mostrar
que é muito educada e boa amiga provou que é muito querida
por todos os habitantes da floresta. E como ela conseguiu
isso? Simplesmente porque sempre tratou a todos os bichos
com educação e respeito. Muitas vezes eu a vi aconselhando
114
115. outros bichos a não destruir uma árvore inteira só para comer
um pouco de frutos gostosos que estavam mais alto.(O seu
Urso ficou encabulado, pois sempre que descobria uma
colméia cheia de mel num lugar mais alto da árvore, ao subir,
quebrava muitos galhos e derrubava muitos ninhos de
passarinhos e muitas frutas.). O senhor Leão sempre muito
preguiçoso ficou balançando a cabeça como se não
concordasse. Na verdade ele estava é chamando a atenção
do senhor Urso. A girafa soltou uma gargalhada só de
imaginar a bronca que todos iriam dar no senhor Urso se
soubessem que estava dona Cobra a falar dele. Mas, como
toda cobra tem a capacidade de se referir a algo que não
parece ser aquilo de que realmente deseja atingir, não citou
ninguém. As cobras são sempre muito dissimuladas. E ela
continuou: por isso eu queria pedir para todos cantarem
parabéns para dona Tartaruga e desejar muito mais anos de
vida e que ela consiga finalmente arranjar um casamento e
seja muito feliz.
Todos cantaram e aplaudiram com entusiasmo. Os peixinhos
pulavam contentes no rio. Seu Bagre que era um peixe muito
mal humorado também se dignou a espirrar água para todos
os lados de tão feliz que estava.
De repente ouviu-se um grito:
-Amiguinhos e amiguinhas, prestem atenção, eu com meu
super poder de observação devo avisar a todos que uma
tempestade está para chegar e é das mais brabas que já se
viu.
Era a dona Coruja que do alto de uma árvore bem alta
avistava o céu e com sua sabedoria proverbial advertia a
todos que o céu escurecia rapidamente, e de tão negro até o
sol se assustou e bem ligeirinho tratou de se esconder lá na
terra das estrelas. As nuvens brancas e alegres se
espalharam pelo céu que escurecia. Ligeirinhas se enfiaram
num pacote de algodão. O dia ficou noite. Uma noite sem
estrelas, sem lua, só escuridão.
115
116. Os bichos todos assustados, sem poder voltar para as suas
casas, ficaram todos juntinhos esperando pelo o que iria
acontecer. O Bagre e os peixinhos rapidinhos foram para o
fundo do rio. O Senhor Leão tentou mostrar que era muito
valente, mas quando um raio enorme caiu bem pertinho da
bicharada ele se assustou e correu para junto dos outros
bichos. Dona Tartaruga coitada tremia sem parar. A escuridão
era completa. De repente um raio poderoso caiu sobre a
mesa. Iluminou, mas não apagou como todos os raios. Por
milagre ele ficou encravado na mesa e era tão brilhante que
os nossos bichinhos não conseguiam olhar. De repente, como
se fosse a felicidade, do meio do raio começou a aparecer
uma fada tão bonita e bondosa que todos os bichos
começaram a gritar de surpresa. Eles estavam felizes
novamente. A fada foi lentamente se mostrando, o sol voltou a
brilhar com força, o céu ficou azul e a fada vendo todos os
bichos encolhidos, todos juntinhos de medo, falou:
- Meus amiguinhos, sou a Fada da Felicidade e vim aqui para
que todos soubessem que eu ainda existo. Os bichos e as
pessoas têm esquecido muito de mim e fazem coisas que
parecem gostar mais da Bruxa do Egoísmo, da Bruxa da Falta
de Piedade, e da Bruxa Malvadeza. Tudo que precisa existir
entre as pessoas e os bichos é viver em paz, com respeito e
amizade.
A Bruxa da Soberba vive me dizendo que todos gostam de
pensar só em si e não ajudam os mais pobres e humildes. È
por isso que vim aqui falar com vocês nesta festa tão bonita
da dona Tartaruga para que vocês se lembrem sempre de
respeitar, ajudar e trabalhar, nas suas profissões, para que um
dia todas as pessoas e bichos tenham a mesma oportunidade
que vocês tem de estarem felizes nesta festa. Por isso eu vim
aqui.
Com a presença da Fada da Felicidade o senhor Leão se
animou e decretou:
- Vamos todos dançar!
116
117. - Isso mesmo.- disse a fada.
E todos os bichos procuraram os seus pares, enquanto a
orquestra de grilos e cigarras, tocava alegremente. Os
peixinhos saltavam eufóricos. O senhor Bagre ainda meio
desconfiado encostou-se na margem do rio e deu uma
piscadela para dona Tartaruga que toda encabulada sorriu e
suspirou.
Muitos e muitos anos depois os filhos de dona Tartaruga
contavam esta estória para as pessoas e para os bichos, em
todas as escolas e teatros, pois todos se tornaram amigos e
se respeitavam. As árvores esticavam seus galhos para
melhor ouvir. As formigas disputavam lugar sempre tomado
por coelhinhos com uniformes de carteiros. O vento entrava e
saia refrescando o ambiente. O sol e a chuva não brigavam
mais. A natureza em festa, amiga e solidária, cumpria o seu
papel de unir tudo que existe como sendo o sentido
verdadeiro da vida. Dona Coruja do alto de sua sabedoria
ensinava:
-Tudo que existe sobre a terra e sob o céu precisa estar em
harmonia para que exista a felicidade e se usufrua o
verdadeiro sentido da vida.
Mas, em algum lugar ainda deve existir um Bagre mal
humorado, coçando a barriga, descansando à beira do rio e
reclamando de tanta felicidade. Ao lado dele peixinhos
coloridos saltitantes fazem sorrir a mamãe Natureza que do
alto da sua grandeza observa contente nascer mais um dia
117
118. CASQUINHA DE SORVETE
Sentado na soleira da porta, degrau baixinho, colocava meus
joelhos à altura de meu queixo. Neles apoiava a cabeça sob
as mãos cruzadas. O sol batia de frente o que fazia suar na
testa e embaçar as lentes dos óculos. À frente a visão da
preguiça. Pessoas em passos lentos se dirigiam aos seus
afazeres. Um ou outro mais animado tirava o chapéu para o
cumprimento aos conhecidos. O sol quente derretia o bom
humor. Mulheres usavam sombrinhas e leques para abanar.
Todos tratavam de se proteger nas sombras da marquise.
Moleque passava correndo, caniço na mão em direção ao rio
para mais uma tarde de estripulias. O caminhão GM ano 47
estacionou em frente para carregar materiais na loja de
ferragens. Os cachorros que dormiam na entrada da loja
foram enxotados aos pontapés. Correram um pouco, mas logo
voltaram e se aninharam às minhas costas, protegidos do sol.
Um passante descartou descuidadamente uma casquinha de
sorvete à minha frente. A casquinha rolou e se alojou no meio
fio. Fiquei observando e analisando a possibilidade de usufruir
aquela guloseima. O sol estava forte, o suor escorria pela
minha testa. Os cachorros ergueram o pescoço, mas
desistiram quando os contive com um sussurro. Os dois me
olharam com olhos de coitadinhos e voltaram a dormir. O
Bastião estava pronto para ajudar no carregamento da carga.
Era um rapaz despossuído de inteligência, como dizia o
vigário, abobado, como dizia o povo. Estava sempre pronto a
ajudar. O motorista tirou da carroceria um rolo de cordas e
deixou sobre a calçada. O Bastião, solícito e faceiro trazia um
vaso sanitário nas costas, tropeçou nas cordas e esparramou-
118
119. se na calçada. O vaso virou cacos. O proprietário gritava
impropérios com as mãos à cabeça. Bastião com um corte na
testa tentava juntar os cacos. Os cachorros diante do tumulto
resolveram dar o fora. Foram para o pátio da igreja, usufruir a
sombra dos abacateiros. Os homens expulsaram o Bastião.
Ele colocou as mãos no bolso, como sempre fazia, dava uma
ou duas voltas como pião e saía assobiando como se nada
houvesse acontecido. Atravessou a rua e sentou-se ao meio
fio, à minha frente, comentando que vinha de uma empreitada
de importância. Havia carregado muitos sacos de erva mate
nas barcaças lá pros lados de Porto Amazonas. A testa
sangrava levemente misturando suor e sangue. Pegou um
punhado de terra juntado ao meio fio e esfregou na testa. O
sangue estancou de imediato.
A casquinha permanecia ali escorrendo um restinho de
sorvete o que fez que algumas formigas enfileiradas se
aprontassem para tomar posse. Bastião olhou a casquinha.
Percebi a intenção. Sem perder tempo me apossei da
guloseima. Raspei com os dedos as formigas, separei a parte
mais molhada para o meu companheiro de calçada e comi
com gosto o restante. Entrei em casa, bati a porta e fui tomar
água fresquinha da moringa de barro.
Muito quente as tardes da minha infância.
119
120. ONTEM ACABOU O MUNDO.
O mundo acabou ontem. Não saiu nos jornais pois, não
existem mais jornais. Mas, posso garantir que ontem foi o dia
final.
Quando dei por mim hoje – ou acordei hoje -, não encontrei
mais nenhuma das imagens, às quais sempre me serviram de
referencia para me sentir vivo constatando que a vida
continua. No entanto estou vivo, acho, pois tenho consciência
do meu corpo e do que me rodeia. Afirmo que o mundo
acabou porque não existe mais nada do que seria o cotidiano
da minha vida. Meu quarto, minha casa, minha rua, minha
cidade, tudo isso não existe mais. Também não existem
destroços, sinais de grandes tragédias tais como furacões,
vendavais, grandes ondas, terremotos, nada. Tudo se
apresenta limpo e sossegado de tal forma que parece que
sempre foi assim. Sinto sob meus pés o contacto sólido do
chão, mas, não é terra, não é areia, não é campo nem é
úmido muito menos seco. A cor é cinza como fuligem de um
incêndio, mas não exala cheiros. O céu é também cinza
esfumaçado, e se completa com o chão de tal forma que não
existe horizonte. É como se fosse uma parede que se afasta à
medida que me aproximo. Procuro por outras pessoas,
animais, plantas, objetos e nada me é visível. Onde está a
minha vida, meus amigos minha família minha rua, minha
cidade? Sigo andando, curioso pelo incompreensível da
situação. No entanto me sinto extremamente confortável
despojado de qualquer sentimento de perda ou frustração.
Tento apenas compreender, percebo que embora tenha
consciência do meu corpo, não o vejo. Não vejo minhas mãos,
minhas pernas, enfim, nada. Meu corpo se confunde com a
paisagem, neutro de imagem, mas íntegro no sentir. Penso
que seria bom se encontrasse algo em que pudesse me ver
um lago, um tipo qualquer de espelho, mas nada existe.
Continuo andando, pois me parece ser o que me resta. O que
120
121. teria acontecido? Talvez um grande meteoro tenha caído na
Terra e a tudo destruiu. Continuo andando. Não tenho noção
de tempo, pois sem referencia nenhuma o tempo não existe.
Simplesmente caminho. De repente percebo um pequeno
movimento no chão, parece ser o ar deslocado rapidamente
como se uma faísca cortasse o amorfo do ambiente.
Concentro-me para ouvir algum ruído: nada. De diferente
apenas um minúsculo furo no solo. Talvez deste furinho
houvesse saído algo que me deu a impressão de que se
movia. Na falta de melhor opção resolvi me aproximar e por ali
ficar porque era ali que me pareceu existir o único sinal de
vida que me uniria ao que sempre existiu, à normalidade de
ontem. Ali fiquei por indefinido tempo. Senti que ficaria ali
eternamente visto este buraco ser a única imagem diferente
de todo o resto. De repente observo dois minúsculos pontos
negros que se movem no corpo de uma espécie de siri da
areia. Corpo e pernas quase brancos cujos olhos me
observam e rapidamente voltam para as profundezas. Enfim
compreendi que havia vida afinal. Resolvi então encostar meu
ouvido rente ao chão e percebi que de dentro do solo se
ouviam os ruídos de toda a vida normal que existia antes.
Sirenes, buzinas carros motocicletas gente gritando, crianças
chorando, ruídos de tiros e de bombas. Certamente o mundo
continuava normal lá embaixo. O siri apareceu mais uma vez
como a me convidar para percorrer aquele túnel que levaria à
antiga realidade. Eu poderia me tornar tão pequeno quanto
aquele buraco. Novamente encostei o ouvido na abertura e
ouvi novamente todos os ruídos da vida que os homens
construíram para si. Levantei, andei em volta daquele elo que
ainda me unia à vida anterior, voltei a sentar e com estrema
felicidade empurrei com os pés um pouco da matéria que era
o solo fechando o buraco. Decidi ficar para entender o que
realmente aconteceu e também para usufruir eternamente
desta enorme paz e sensação de felicidade.
121
122. INÚTIL ARCO-IRIS
Baseado no conto Um azul para Marte de José Saramago.
Agora depois de dez anos em Marte, ou de uma noite apenas,
visto que o tempo neste momento já não importa, o enigma é
a idéia do conhecimento das cores. Em Marte só existem o
branco e o negro (com todas as suas variações). Um arco-íris
traria realmente felicidade? O azul do mar e do céu é também
branco e negro (com todas as suas variações), nas noites
terrenas dos lugares despovoados. É provável que o som
destas paragens terrenas soe diferente. Aviões de guerra
costumam riscar os céus com destino a novos bombardeios,
baleias revoltam as águas na luta inútil para livrarem-se dos
caçadores. Muitos humanos gritam de dor outros agonizam de
fome. Tudo em tons de cinza, visto ser noite. Mas de fato um
arco-íris levaria os marcianos a trocarem seus segredos e
conhecimentos? Não pela cor sòmente mas pela possibilidade
de consolidar a beleza da natureza aqui na Terra colocando,
calcados na sua sabedoria, o essencial no necessário? È tão
difícil para nós terráqueos achar o ponto de equilíbrio que nos
permita viver em harmonia. Uma escola seria construída onde
houvesse apenas duas crianças? Hospitais com todos os
recursos existiriam numa aldeia isolada? Se o ser humano
como um todo pudesse usufruir igualmente de todas as
necessidades o mistério da inteligência superior estaria
desvendado. Todos se olhariam diretamente, sem submissão
ou desconfiança. Seríamos como os marcianos, mas com o
brilho e as cores do arco-iris. Depois partiriam , os
extraterrenos, saturados de luz, solidariedade.e humildade.
Desconfio que assim, possivelmente, todos se importassem
quando os visitantes resolvessem partir, e agradecidos os
levaríamos à porta do universo.
122
123. ANTES DA LUA CHEIA.
Assim nasci.
Abri meus olhos como se fosse gente.
Assim, chorei numa redoma de cuidados.
Não chorei como devia,
Pois, muito haveria de chorar.
Apenas assumi meu posto na vida.
Situações burguesas
Que embaçam meus olhos.
Suguei do peito e da Nestlé.
Perninhas reticentes escalando conceitos.
Braços ansiosos tentando alcançar o vento.
Temporal, chuva de granizo
Anos dourados,
Nos degraus da evolução pessoal.
O vento frio do sul,
Vento quente do leste.
Cabeça menina sonhando justiça.
Chão quente demais
Para miúdos pés descalços.
Melhor às margens do rio.
Lama gelada, mutucas comparsas
Nas folias e na lama.
Brisa dos fins de tarde,
Gelada como a realidade,
Entupindo a alma de melancolia,
Decifrando a desconhecida saudade.
Um sonho metamórfico,
uma evolução constante,
Uma massa infinita embolando o futuro.
Presságio de maus caminhos.
De tudo errado.
Por muito que acerte,
123
124. Ser Quixote na vida,
Sem chance de ser moinho.
Guaraná, gelatina, bolinho da graxa,
Velinhas conforme o tempo.
Catapulta me arremessando
Para mais perto do destino.
Menino filho da angústia,
Fingidor no circo da vida
Perdido em meio à função,
Embalando com destreza
A ilusão do picadeiro,
Montado no que mandava o coração.
Se necessário decifrar motivos,
Talvez haja uma resposta
No útero angustiado,
No sêmen inconformado,
A eles juntado o medo.
Fui içado do futuro; um ser inacabado.
Guri, piá, garoto, moleque,
Contador de pedras,
Catador de elogios,
Colecionador de desfeitas,
Amigo fiel dos sonhos.
Desejos agarrados nas asas da noite,
Riscando a escuridão
No cangote dos morcegos.
Na janela cotovelos plantados,
Observatório discreto.
Refletindo nos paralelepípedos,
Riscados pelas ferraduras,
A luz dos desejos mais secretos.
Violação dos limites do improvável.
Bondes, lotações, burburinho,
Pão doce, refrigerante.
Saias plissadas e meias três quartos.
124
125. Fêmeas cruzando as primeiras pernas,
Fuxicos e risadas escondidas,
Espinhas no rosto corado,
Figurinhas no jogo de bafo.
Desejos batendo na porta.
O menino empinando raia,
Empinando o sexo,
Empinando o ego, misturando o sonho,
Domando a alma.
Pirralho em meio ao vulgo,
Percorrendo a estrada do destino.
Anos passando, terra batida
Pelos passantes do tempo,
Barro amassado pelo destino.
Sangue, suor e poeira,
Cobrindo as pegadas de gente,
Bichos, estórias.
Contos e poemas que a chuva lava e leva
Capítulo a capítulo,
Pelos sulcos da terra,
Ziguezagueando no destino
Das artérias esclerosadas.
Percorrendo o destino antes da lua cheia.
Antes do ponto final.
125
126. NO FUNDO DO ESPELHO.
Debrucei-me no espelho. O susto é natural quando nos
defrontamos com nossa imagem. Interessante, achava que
tinha outro semblante. Aquele de anos atrás no qual
depositava minhas esperanças e ilusões de que a aparência
me daria algum ganho na convivência dos meus cúmplices de
contemporaneidade. Mas não era preciso tanta diferença!
Meus olhos eram azuis! Ou não? Meu cabelo era loiro e liso,
minhas bochechas seriam rosadas, meus dentes; ah meus
dentes, estes eram um teclado de piano, sem as teclas pretas
certamente. Mas o que vejo agora serve certamente de
inspiração para os desenhistas infantis, os quais inundam as
televisões com estes monstros que as crianças adoram. Ao
menos a idade e o desleixo pode tornar-me simpático a elas,
assim como os monstros. Meus cabelos se tornaram de cor
indefinida, rebeldes, ora brancos ora esverdeados. Os dentes,
os que restaram, estão amarelos e sanguinolentos. A pele
tomada de sulcos e manchas despenca da testa ao queixo
deformando a boca, o nariz, as bochechas, formando papadas
que se seguram na gordura do pescoço. Os olhos se
distinguem, guardam nos cantos um resquício de lágrimas que
teimam em se perpetuar desde a muito, quase que durante
toda a vida. A emoção de ver e viver a vida é que os manteve
úmidos. Talvez o fato de olhar somente ao redor me tenha
induzido ao hábito de não olhar para mim mesmo, para o
espelho.
Em segundo plano, além da minha imagem, reflete-se não sei
de onde, talvez da minha memória um grande jardim com
crianças correndo e se agarrando, felizes, às gargalhadas.
126
127. Abaixo no espelho, como se fosse em um peitoril mãos se
agarram tentando se erguer para vislumbrar o lado de cá. Eu
como num ato reflexo solto os dedos ansiosos pendurados ao
parapeito para que estes seres não consigam se apresentar
novamente em minha vida. Não me interessa revê-los.
Certamente serão minhas recordações, as boas e as más,
que mais uma vez tentam assombrar a minha existência. Não
me interessa mais o passado. Vive-lo já foi o bastante. A cada
mão que derrubo uma das crianças some da paisagem. Assim
sofregamente me desfaço de todas as mãos angustiadas que
tentam voltar e quando por fim consigo vencê-las, ao mesmo
tempo, todas as crianças desaparecem do segundo plano.
O espelho se transforma em um vidro comum, sem imagem
que não seja a minha própria, como qualquer espelho, como
qualquer imagem que se reflete nestes painéis que adornam
as vitrines da cidade. Minha imagem, embora desgastada pelo
tempo e pelo que fiz dela continua por aqui, percorrendo o
cotidiano. Algumas vezes percebo nas ruas, nas vidraças
espelhadas crianças saltitando a minha volta, alegres e
brincalhonas me acompanhando na caminhada.
127
128. NO TEMPO DE FOGÃO A LENHA
- Mãe, o menino pequeno ta machucado. Acuda.
_ Que aconteceu guria?
- O neném ta machucado. Acuda.
- Bem feito, piá desgraçado, sempre aprontando. Cadê os
outros meninos?
-Veja ele ta gritando.
-Vem cá menino, deixe vê isso. Cala a boca. Cadê seu pai,
peste?
- Mãe acuda.
- Deixa disso. Fique quieta é fita dele.
. Agarrou o menino pelo braço machucado, esticou, aplicou
uma massagem com extrato de arnica, enrolou os panos de
fraldas velhas dos meninos e mandou dormir.
- Vai dormir infeliz, tenho que terminar a janta. Cama, e não
me abra a boca. Se teu pai descobrir te dá uma surra de cinta.
Vai, suma daqui.
O outro chegou da pelada.
- Mãe to com fome.
-Cala a boca seu cretino. Onde está o pão que eu te pedi?
- Seu Honório pediu pra pagar a conta do mês primeiro. Não
vai dar mais não. Ta atrasado.
- Cretino. E teu pai que não aparece. Coisa ruim.
- Cadê suas botinas?
- Pisei na bosta, deixei no tanque.
-Desgraçado. Vá lavar. Depois deixe no forninho pra secar. Ô
vida!
-Oi filha. Como foi de aula?
128
129. - To com fome.
- Já vai sair a janta. Espere seu pai chegá.
- Vou trazer mais lenha.
- Traga a moringa lá de baixo no porão. Tire as formigas,
pegue um pano limpo lá fora, deixei pra corar.
-Mãe.
-Que que é menina.
- Preciso trocar os panos. Ta escorrendo nas pernas.
-Deixe pra depois. Os meninos estão por aí. Vou esquentar
água pra você se lavá.
Os outros meninos desgarrados pelos cantos da casa ou
espalhados pelas traquinagens aos poucos surgiam de suas
atividades fora. Os pequenos, do terreiro. Os maiorzinhos das
estripulias na rua. As moças mais velhas de seus afazeres
dentro de casa e no quintal. Os mais velhos de seus
empregos. Treze filhos, mais o marido. Este sempre atrasado.
- Onde estava? Seu irresponsável. Cadê o pão das crianças?
E a mistura? Seu desgraçado. Só pensa em política seu
imprestável. Vai comê? Tem coragem? Falta mistura nesta
sopa. Quem vai arear as panelas pra mim? Que vou dizer
amanhã no armazém? Ô vida.
Criançada empoleirada no banco de tábuas, a mesa coberta
com oleado vermelho puído nos cantos. Pratos de sopa de
feijão com repolho, servidos da panela passando de mão em
mão.
- Já falei que primeiro o pai. Depois os pequenos. Podem
comer tudo. Não quero que sobre. Junior guardei um ovo
cozido. Nem me olhem. Ele ta estudando no ginásio, vai ser
doutô, se Deus quiser e teu pai não estragá. Depois de comê
vão lavá os pés e dormir. A água está quente no tacho. Sem
conversa.
- Mãe...
129
130. - Quê menina?
- Estive pensando...
- Não me venha com conversa...
- Mãe, cadê o pai?
- Não sei e nem quero saber, deve de ta pitando lá fora, na
fresca.
- Mãe..
- Menina me deixa. Areie estes talheres. Este fogão ta tão
encardido. Preciso de mais areia de arear. Amanhã mando um
menino no rio. Teu pai anda tão desleixado, preguiçoso, vive
sonhando. A lenha ta pouca. O leite não veio hoje, o pão
também. Os meninos precisam levá merenda pra escola. Vou
faze pão, broa de centeio. Dá tempo de crescer. Asso de
manhã bem cedo.
- Mãe...
- Que menina?
- Nada mãe... nada.
- Vai trocar os panos agora ta tudo dormindo. Pegue a bacia
velha. Ta encostada na porta da dispensa. Tem água morna
na chapa do fogão.
- Ta bom...
- Sabe filha, tou moída. Sei o que você está pensando. Torço
pra se melhor pra você. O futuro ninguém sabe. Por ora é
enfrentar a vida deste jeito mesmo. Tou morta de cansada.
Mas se os meninos acordarem sem café e roupa limpa, o que
vão dizer os vizinhos e os parentes? Pelo menos tão tudo na
escola. Procuro dar conta de todo os trabalhos. Não fraquejo.
A vida é assim. Não fique com idéias. As coisas são assim
mesmo. Sonhar faz sofrer. O que seria sem esta trabalheira
toda? Quem ia cuida desta criançada? E eu ia faze o que?
-Tem de ser. Eu entendo a senhora. Bença mãe.
-Vou amassar o pão e me deitá, descansá. To pensando que
seu pai ainda vai querer hoje. Ô vida!
130
131. O CÉU AGORA. O PARAISO JÁ
Sou testemunha que estiveste lá.
Era seu o sangue escorrido indecente.
Entre o sangue e o suor
Da testa de um sofredor
Qual deles absolve seu povo?
O sangue que as igrejas exploram?
Ou o suor que nos restou como legado?
Destino de um povo que não o conhece .
Sou eu seu povo!
Eu estive lá, junto ao monte.
Enquanto estavas ungido de santidade
Subindo ao céu piedoso,
Fiquei sentado na pedra,
Abismado de revolta e descrença
Saturado de sua promessa inútil.
Ao lado da cruz, a mãe.
Como todas as enganadas mães,
Solidárias à outras mães,
Com crianças famintas, doentes.
Esposas de maridos sem mulheres
E vice-versa.
Estive como um crente sincero,
Batizado naquele rio,
Esperando a ressurreição!
O abandono da causa
Que você não cumpriu em vida,
Transformou-se em herança
Para a existência das pedras que rolam,
Dos pobres de todas as raças, dos humilhados.
E a pedra em que presenciei;
131
132. Na qual estive sentado
Ao lado de desvalidos,
Leprosos e perseguidos,
Continua ali.
Como tudo que nada mudou.
Saímos depois do fato
Esperando a ressurreição.
Contemplamos na realidade
A remissão dos imperadores.
Senhor de todas as utopias,
Liberte este povo humilde
Desta crença venérea
Da qual és a salvação.
Crença que o poder aproveita
Para usurpar direitos,
Empurrando pela goela da fome
Uma cruz deteriorada,
Por séculos de promessas,
De falsidade e bajulação.
Liberte seu povo,
Do estigma
De sempre esperar...
O céu agora.
E o paraíso já.
132
133. UM NATAL COM MAICO JETSOM.
Dia 18/12
Vou ser bailarino. Igual ao Maico Jetsom. Por enquanto
aceito ser papai Noel porque é uma chance de ganhar uns
trocados já que a barriga ronca há dois dias. A moça foi legal,
me deu essa chance, mesmo eu não tendo experiência deste
serviço. Acho que ela me escolheu por causa de minha barba
comprida. Ser Papai Noel é fácil, mas tive que pintar a barba e
vestir a fantasia. Ela foi legal, me deu comida, tomei um bom
banho e posso dormir no almoxarifado. Tirei a sorte grande
neste fim de ano. Já estava desacorçoado.
Dia 20/12
Vim para capital atrás de ser bailarino. Assim como o
Maico Jetsom, mas não deu jeito ainda. Fui ao teatro, na
escola de dança. Um senhor tinha indicado na viagem. Ele
disse: quer ser bailarino tem de ir ao teatro, lá tem escola de
dança. Ele tava com cara de quem estava debochando de
mim, mas fui assim mesmo. Disseram-me que tem que fazer
teste. Só no começo do ano. Por azar me roubaram minha
sacola com a malha de dançarino e as sapatilhas, meu
dinheiro, meus papeis. A malha e as sapatilhas ganhei lá na
minha cidade. Todos lá sabem que eu tenho este sonho. Uns
rapazes me deram de presente. Naquela noite eles me
pagaram uns conhaques no bar da praça. Fiquei tão alegre
que passei da conta.Vesti lá mesmo e dancei para o pessoal
133
134. quase igual ao Maico Jetsom. Muitos aplausos e uma dor de
cabeça miserável. Não sou acostumado a beber.
Dia 21/12
Contei essa estória para a moça e ela chorou. Não sei
porque. Daí me deu este emprego. Ta bom, já é alguma coisa.
Pelo menos não passo fome e tenho onde dormir. Agora é
isso. Ficar o dia todo na frente da loja tocando sino e fazendo
HO, HO, HO, para as crianças que passam. Distribuo balinhas
também. As crianças gostam e eu também gosto muito de
criança, principalmente dos meninos são muito puros, gostam
de brincar e não choram a toa, levo alguns lá pra trás para
ensinar uns passos, os maiores. A moça me disse que vou
passar o natal na casa dela com a família. Ela é legal mesmo.
Tem pena de mim. Quando eu for dançarino famoso não vou
esquecer-me dela. Gente boa. Diferente do meu pessoal lá de
casa. Não acreditavam em mim queriam só me internar
naquele lugar horrível. Só tinha gente doida. Meu pai tinha
vergonha de mim desde que eu era menino porque eu sempre
gostei de dançar, vestir as roupas das meninas para
interpretar a dança e me maquiar como no teatro. Me batia. A
vida era só trabalhar desde pequeno no corte da cana e
serviço de roça. Não é coisa para criança não. Fugi, vim
embora atrás do meu sonho. Mamãe morreu de desgosto,
exaustão e pancada.
Dia 22/12
Acho que ta ficando difícil agora depois do acontecido: fui
passear depois do serviço pela cidade. Alguns rapazes mal
encarados de cabeça raspada, tatuagens no peito e braços
fortes, estavam a me seguir por tudo. Aonde eu ia eles iam
também. Estava com medo, resolvi ir embora para a loja.
Pegaram-me na praça. Bateram-me, me chutaram, quebraram
134
135. meus dentes, meu braço, rasgaram minhas roupas, furaram
minha barriga. Sorte que uns soldados botaram eles para
correr senão eu estaria morto. Agora deitado nesta cama de
hospital, todo arrebentado to achando que ser bailarino não
vai dar mais não.
Dia23/12
O doutor me disse que além das feridas e ossos
quebrados, estou muito doente, de doença ruim. È uma sigla
me explicou. Acho que a moça ficou sabendo, pois não veio
mais aqui. Ta certo, é época de natal e ela têm muito
trabalho. Passar o natal na casa dela não vou mais, acho.
Noite de Natal
Hoje é véspera do dia que Jesus nasceu. Meu colega aqui
do lado morreu esta manhã. Maico Jetsom dança no meu
travesseiro. Lá fora as luzes acendem e apagam. Acho que
estou chorando. Não sei porque. Devo ficar feliz. È Natal.
135
136. CRÔNICA DE UM CÍNICO.
A chave do meu destino perdeu-se na trajetória percorrida,
nos caminhos, nos tropeços, nas botas que esmagaram minha
inocência. Tão crédulo de tudo e de todos desde que me
lembro, tão puro e desprovido de maldade como toda criança -
se é que deixei de sê-lo -, que carreguei por muitos anos esta
ignorância de tudo que se refere à discriminação, preconceito,
inveja, despeito. Mesmo nos anos de chumbo nos quais
amarguei a descoberta da vida como ela é, tentei de todas as
formas preservar a inspiração do meu eu solidário, solitário e
compreensivo. Tanto por isso paguei. Tanto por isto sofri.
Tanto por isto me deixei humilhar, Tanto por isto chorei.
Pediram-me para orar, orei. Pediram-me para obedecer,
obedeci. Pediram-me para crescer, cresci. Aí então ficou
difícil. Como conviver neste mundo adulto com o coração
infantil que carregava? A resposta foi surgindo devagar com
meus primeiros deslizes, todos justificáveis perante minha
consciência. Não magoar o outro era mais importante que me
deixar corromper. A busca pelo ter foi se tornando um
objetivo. Possuindo pode-se repartir. Amar é mais fácil com o
vil metal. Ou seria a inspiração para ser amado? De repente
amar passou a ser menos importante do que ser amado,
elogiado, compreendido e aplaudido. Ser reconhecido era
136
137. uma forma de prestar o bem. O reconhecimento o exemplo de
sucesso também se tornaram caridade. Mais dinheiro, mais
sucesso. Enfim tinha realizado na prática meus valores
primeiros. Tudo e todos em minha volta me pareciam alegres
e felizes. Eu os protegia com o poder, todos me amavam. Por
outro lado já não sentia o peito em fogo a derramar
compaixão.Não me comovia mais com crianças pedintes.
Inconvenientes as pessoas que vivem de precisar.Também
teria o direito de cometer minhas extravagâncias. Porque da
crítica? Afinal fui desprovido de maldade durante toda a vida.
Nasci para compreender e lutar pela igualdade de
oportunidades de todas as pessoas. Fiz o que foi possível.
Agora preciso pensar em mim. Acho que finalmente estou me
tornando adulto.
137
138. ABSTINÊNCIA
a tarde embora triste e sonolenta
esbanjando mel e escorrendo luz já minguando de alegria e
festejo momento em que algo escorria pela boca da janela
como se fosse inveja ou mesmo um pouco de resolução
decidir seria ultrapassar conceitos alegrar marijuanas à parte
os conceitos conservadores de orgasmo cívico roubar
palavras como se roubam escarros esverdeados das florestas
tropicais neste ambiente de harmonia de sobeja veracidade e
compreensão dos limites onde transcorre a estória que ora se
refere este relato sem mais valer sem mais contar sem mais
sentido para quem como todos só enxergam o que é visível e
esquecem que ódio e amor são invisíveis assim como a
serpente e o seu veneno ou seu abraço saído pelas encostas
da vida rente aos muros pois assim caminha à humanidade
muito musgo e limbo grudado ao corpo se esfregando uns aos
outro saboreando saliva de uns e outros e vice versa seja nos
discursos dos que acham ter a dizer ou nos bifês carregados
de urina dos passantes das hortas do escarro dos doentes
trabalhadores e do sêmen dos amantes atrás das moitas por
entre covas de tomate ou feijão sem visão de céu tanto de
noite como de dia embora muita chuva tenha estragado as
estradas e o barro das fezes e da falta de vontade deixem
ridículos a chegada e mais ainda a partida
queria dar um ponto final mas se torna impossível em vista do
138
139. muito a dizer do muito a sentir principalmente agora que o
coração se sente magoado de tanta indiferença ou mesmo da
constatação de que nada sou fui ou serei nesta vida o que
pensando bem não importa muito pois que este estado de
coisas que muito complica a harmonia interior é submetido a
todas as pessoas estas sim me parecem tão alheias ao que
acontece que na verdade é melhor não tentar entender pois
os bois e vacas a caminho do matadouro sorrindo explicam
esta atitude alienada como a formiga que caminha proletária
na sua labuta e é pisada ao acaso pelo saltinho da dondoca
que saída do dentista sentindo molhada sua calcinha avança
com volúpia ao chópim para desfilar seu cartão de crédito
pelos balcões das lojas de marca e pagar em seis vezes a
camisola da noite em que pensando no dentista cirurgião
plástico no galanteio interessante do transito ou no artista da
tv vai cumprir performance de amante de marido que da
mesma forma com saco cheio tenta o orgasmo obrigatório e
cumprir seu papel muito rapidamente para poder dormir e daí
sim ser feliz sonhos do menino apenas um guri como tantos
piás que teimam em não crescer. Pêra verde no quintal
mamona para fazer guerra coelhinho branco distraído
cachorrinhos de prole nova casinha nos galhos da pereira pés
de milho com espigas madurando mais ao fundo pé de amora
do ladinho da macieira do pé de mimosa jabuticabeira
grandiosa pra sombrear tempo de verão e ameixas da
vermelha e da amarela graviola butiá pêssegos pesteado, pra
fazer doce maçã azedinha pessoas que não conhecem uma
vaca, nunca beberam o leite da hora e nunca ouviram um galo
cantar altaneiro e vigilante de suas fêmeas no terreiro quem
nunca desviou bosta no pasto limpou os dentes com capim
fugiu de bode ciumento e rasgou os fundilhos no arame
farpado meninos...noite de chuva brava sacis e curupiras
gargalhando na madrugada mula sem cabeça chispando no
terreiro e lobisomem chupando e sangue das novilhas
amanhecer sereno luminoso e musical canto de tantos
139
140. passarinhos as rachas de bracatinga gritando no fogão a
lenha café recém moído e pão dourando no forno de tijolo no
meio do terreiro exalando vida por toda a vizinhança e por
toda a minha saudade... não sei porque o tempo passa
levando a felicidade para o poço da recordação... assim os
pensamentos desordenados e desconexos seguem seus
caminhos embalados pelos eflúvios da fumaça demoníaca e
libertadora embora o carro siga grudado ao asfalto e a reta
transforme as marcas na pista apenas em pontos de
afirmação de uma viagem que pode ser sem volta mesmo
porque o que não tem partida não tem retorno embora as
montanhas à frente sinalizem o fim um penduricalho em cruz
no espelho retrovisor o locutor gospel berrando acusando
cobrando confissão jesus cristo jesus cristo confesso eu estive
lá ... seguir é tentar romper a materialidade da circunstancia e
continuar no sonho embolar-se na irresponsabilidade na falta
de compromisso e vomitar novamente no painel e gargalhar
no êxtase das luzes que cortam as laterais e rasgam os olhos
a alma o estômago e arrepiam cabelos gosmentos de vento
do vômito e loção nas coxas da mulher ao lado tão alienada
que dorme com a mão esquecida agarrada ao sexo como se
fosse ao futuro e que este momento a fará sorrir e sonhar da
recordação das loucuras vividas no tempo que todas as
atitudes eram possíveis e se vivia irresponsavelmente em
busca de um ponto pacífico enquanto os feixes de luz como
espadas ferem os olhos e a realidade retorna à viagem e a
escuridão se desfaz apenas nas luzes do painel o túnel negro
vai sendo penetrado rapidamente nenhum sinal no fim
apenas na expectativa de se chegar e eis que como se fosse
milagre como se fosse destino como se fosse desejo surge a
luz esta sim sem escrúpulos na sua magnitude com pose
ditatorial e soberba extrapolando o limite da decência expondo
tudo como um vulcão detalhando as verdades as mazelas e a
tal felicidade sim depois de tanto pó agressões e descalabros
enfim saído de um porre químico se descobre que apesar de
140
141. tudo a merda continua como sempre mal cheirosa e nojenta
mas que sempre nos viramos para dar uma olhadinha quem
sabe para conferir se não estamos nela identificados pela
assinatura ou pela fotografia e olha-se no espelho os cabelos
em desalinho os olhos embaçados a barba escorrendo com o
creme dental pelos cantos da boca a pele esverdeada e atrás
os fantasmas de mais um pesadelo e a conscientização de
que mais um dia começa uma linda manhã de inverno
sonolenta escorrendo mel esbanjando luz embora uma
paciente aranha prossiga tecendo a teia do restante da nossa
vida.
141
142. O HOMEM QUE CHUPAVA LARANJAS
Havia um acordo. Sei que poderia ser indiciado se não
cumprisse. No entanto, em face do tempo transcorrido, fui aos
poucos deixando passar certos itens daquela combinação. O
tempo passa, nada acontece e nós mesmos vamos aos
poucos esquecendo aquilo que na verdade desejávamos
esquecer. Fui chamado. Deixei de ir à igreja como tinha
prometido. Seria isto?
O indiciamento me transtorna. Procuro o motivo. Nada se
apresenta como passível de processo. No entanto ele existe.
A correspondência me intima a comparecer ao tribunal. Assim
faço. Desesperado, procuro pelos acusadores. Vara tal, nada
consta, vara e qual, aqui não está. É criminal? Civil? Não sei.
Deve estar no distribuidor. Este processo está arquivado.
Alívio.
Dias depois, pela manhã antes de terminar de fazer a barba, à
porta batem dois oficiais de justiça. O senhor é o senhor? Sim.
Aqui está. Novamente um papel que treme nas mãos.
Comparecer onde? Perante o juiz. Onde? Na justiça. Estarei
lá.
Vou mais cedo. Até os elevadores estão vazios. Terceira vara.
Com licença. Recebi este papel, é aqui?
Estamos em recesso momentâneo. Hora do café. Senhores
de cabelos brancos, bem vestidos, um pouco obesos se
refaziam em uma mesa de pães e sucos. Espero. Eles me
ignoram e falam sobre promoções e aposentadorias. Um
deles, por sinal o mais velho, me observa todo o tempo. Uma
vontade imensa de urinar me angustia. Depois de algum
tempo se abraçam e deixam o recinto. Passam por mim como
se lá não estivesse. Fico desesperado, ninguém me dá
142
143. atenção. Todos se esquivam e desaparecem nos longos
corredores. Só, na sala vazia, o desespero toma conta, choro.
O juiz idoso aparece e solicita explicações. Como conseguiu
chegar até aqui? Esta sala é privativa. Justamente na hora do
lanche? Isto não será nada bom para o seu processo. De que
se trata? Vamos se explique. Não sei. Este papel... Ora, meu
rapaz, deixa disso. Este é um caso demorado, estamos nas
preliminares. Esqueça. Vamos ouvi-lo um dia, sossegue. A
urina correu quente pelas pernas. Aliviado corri pelos
corredores, pavimentos e escadas, em direção a rua. Corria e
chorava. Nada de grave, deve ser algum engano. O vento
secou as calças e cheguei finalmente em meu quartinho. A
pensão humilde esconde na sua simplicidade o aconchego do
lar. No fundo do corredor o banheiro. Muita água para me
livrar do odor de urina e lavar a alma aliviada. O juiz ancião
me tranqüilizou. Quem sabe é um engano? Preciso tomar um
café reforçado, faz tempo que não me alimento direito. Comer
e partir para o trabalho.
As crianças no colégio na certa me farão esquecer-se deste
pesadelo. Primeira aula às dez e meia. Ta bom, há tempo.
Vou ficar mais um pouco nesta água morna, deliciosa. Como
pude esquecer-me de comparecer ao processo? Agora é esta
perseguição. Compromisso com o bispo. Será este o motivo?
Comungar todo domingo. Não custaria nada.
Batidas na porta. Que droga, um dia ainda terei um banheiro
só para mim. Pronto. O senhor é o senhor? Sim. Assine aqui.
Não deixe de comparecer. Uma cólica atroz se apossou de
mim, diarréia, vômitos e uma vontade imensa de morrer. Outro
banho. E aquele novo papel brilhando no criado mudo.
Desta vez será diferente. Vestirei meu melhor terno e meu
sapato de couro alemão. Vou lá como um lorde, igual àqueles
servidores da justiça que gostam de café, sucos e bolinhos.
Terão que dar explicações.
Gente nova na pensão. A senhoria me informa tratar-se de
um figurão. Um senhor idoso da alta corte de justiça. Disse
143
144. tratar-se de um caso de investigação. Caso de segurança
nacional. Será que falei demais em minhas aulas? As
crianças podem ter denunciado qualquer coisa, certamente
um mal entendido. Estou certo que cumpro fielmente a cartilha
do Estado.
No refeitório o velhinho sussurrava com a senhoria, sentado à
mesa do café. Silenciou quando entrei. Senhor juiz, vai ficar
conosco? O velho simplesmente mexeu a cabeça
afirmativamente e sem me olhar disse baixinho: não sou juiz.
E mais não disse.
Entrei no tribunal decidido a resolver minha questão. Recesso
forense. Não havia expediente. Juízes novamente
descansando. No entanto andando pelos corredores vazios
cheguei à parte de traz do prédio. Grande movimento no
pequeno pátio em frente da velha construção que abrigava o
juiz de plantão. Muitos homens desalinhados com pastas
pretas nas mãos conversavam em voz alta num cenário que
mais parecia uma arena de touros. Quando surgi na porta
muitos deles se dirigiram a mim. Advogado? Precisa de
advogado? Sem custo. Só cobro se vencer a causa. Senhor,
não pode entrar aí no velho fórum sem defesa. Será
massacrado. Não preciso de advogado. Nem sei do que estou
sendo acusado. Pior ainda, assine aqui esta procuração.
Agarravam-me às dezenas.
Quando finalmente consegui deles me desvencilhar, não sem
muito esforço, fechei a porta do velho fórum com tanta força
que todos que lá estavam se voltaram para me receber. Sem
jeito caminhei por entre pessoas mal vestidas e visivelmente
desprovidas de recurso que certamente procuravam no
plantão alivio para os seus problemas na justiça. Protocolou?
Naquela sala. Eu nem sabia que tinha que protocolar quanto
mais o que protocolar, mas fui sendo levado para uma sala ao
lado do salão principal. Sentado atrás de uma escrivaninha
antiga e mal conservada cercado por uma montanha de
processos estava o velho servidor, agora meu companheiro
144
145. de moradia. O senhor? O papel, onde esta o papel? Aqui. Um
carimbo enorme encharcado de tinta praticamente inutilizou o
documento. Volte na data indicada. Difícil decifrar a data nos
borrões que carreguei com cuidado por entre as pessoas que
se apertavam na sala, pois quando entrei dezenas de pessoas
me seguiram tornando a sala superlotada, ruidosa e mal
cheirosa com aquele odor de fumaça que caracteriza pessoas
que se aquecem em fogo de lenha. O velho me repreendeu:
isto não é nada positivo para o seu processo. Deveria fechar a
porta. Desculpe Excelência. Não sou excelência.
O velhinho se apossou da minha tranqüilidade. Quando
chegava a noite, depois de um dia exaustivo de trabalho, o
encontrava sentado à porta da pensão fumando charuto. Ao
lado da cadeira uma lagoa de saliva. Durante o dia um saco
de laranjas, as quais, com um canivete longo e afiado,
descascava, alimentando ao hábito de sorver, cuspir, e
arremessar bagaços à distância. Sorvia duas chupadas e
arremessava os meios bagaços na distância de um tambor à
beira da calçada. Parecia em êxtase submetido ao hábito.
Dúzias de laranjas lhe eram entregues todas as manhãs.
Muitos dos passantes, aqueles que acordavam cedo, olhavam
com reprovação à ostensiva apropriação da calçada e a
obstrução da entrada da nossa hospedaria.
O processo seguiria seu curso. Eu seguiria meu cotidiano
angustiado. A quem recorrer? Como viver assim
atormentado? Seria eterno esse meu destino. A quem me
explicar? O que explicar? A semana começa no domingo.
Minhas esperanças se renovam.
Um bagaço de laranja chupada estatelou-se no meu sapato
de couro alemão logo na chegada da missa dominical. Será
possível? Está exorbitando. Senhoria não percebe o abuso?
Resignado sigo em direção ao meu reduto. A porta do quarto
aberta. Coisas ao chão, meu quadro de Marx descaído e
profanado, o de Cristo intocável, no mesmo lugar. Mamãe
145
146. sorria como sempre na cabeceira. O outro porta-retrato ao
lado sem fotografia, a espera da imagem, que persigo, meu
pai.
De baixo do travesseiro meu camisolão sai assustado
enrolado no gato, meu companheiro, assustado com toda a
desarmonia de que foi vítima. Que querem os invasores?
Será que a maionese, o frango assado e o macarrão
confortarão meu espírito? O vinho no almoço certamente
amortecerá meu espírito Racionalizar acontecimentos. Melhor
deixar para a madrugada que certamente será terrível.
O domingo passou, apesar de tudo. Arrumar o quarto não me
foi extenuante. O almoço transcorreu em paz. O vinho desce
fácil e em profusão. A sesta acabou na manhã seguinte. Olhe
a hora. Está doente? Não vai trabalhar? Bom dia!
Deus ajuda quem cedo madruga. O café te espera. Obrigado
senhora. Desculpe, Obrigado. Café quente, torradas com
manteiga, queijo de leite de cabra, suco de tamarindos. Certa
paz, sensação de conforto e segurança. Esquecer tudo.
Certamente um sonho mal.
Não se esqueça do tribunal. Compareça rapaz. O processo
exige. Até lá.
O velhinho passou por mim como se fora ave de mau agouro.
Na porta da cozinha a senhoria esfregava as mãos no avental.
Procurei seu olhar como cúmplice e refúgio, ela apenas
baixou a cabeça resignada e eu refuguei a salada de frutas.
Deveria seguir os caminhos da segunda-feira, sem esquecer-
se de antes deixar alimento e água na soleira da porta para o
bichano. Guardião de nada, refém do seu silêncio e da sua
preguiça. Louco felino que bagunçou todo meu quarto atrás de
um rato e me fez desconfiar de invasão.
Quando cheguei encontrei o bichano imóvel. Ao lado água e
sardinhas em conserva, suculentas e sem desfrute.
Sabotagem certamente. Assassinato. O bichano foi
estrangulado. Muita culpa. Se as forças que me perseguem
assassinam, que será de mim, um pobre professor
146
147. processado, diante de tanto poder. A senhoria argumenta que
se o deixei amarrado, possivelmente morreu enforcado.
Concordo, acho que sim. Afinal, era um estorvo. Assim como
todos os bichos. Estes seres servem apenas ao ego dos
humanos. Não existe animal feliz convivendo com gente. Os
gatos têm tendência ao suicídio. Penso nele como penso no
processo. Amanha será o dia. Hoje, no jantar o velhinho
sentou à mesa contígua à minha. Nada comeu, alem das três
laranjas que descascou com parcimônia e olhares
investigativos. Quando estava já um pouco tonto pelo vinho o
velhinho se aproximou. Boa noite meu filho. Eu estava neste
momento sorvendo a terceira taça de vinho e desejando
aquelas ancas da senhoria que passeavam pelo salão.
Amanhã terás a solução de seu caso. Senhor, meus nervos
não suportam mais. O vinho se encarregou de desprezar o
hálito de laranjas, A senhoria passeava pelo salão nas tarefas
do jantar. O bichano continuava na porta. Morto. Entrar no
quarto presumia passar por cima. Quedei-me no corredor.
Passo por cima? Providencio a remoção?
Resolvo tomar sorvete na praça. A moça me aguardava.
Desculpem, não havia apresentado a moça. Linda moça,
prendada e gostosa moça, filha do proprietário do colégio no
qual trabalho. Família de tradição. Milhares de cabeça de
gado no pasto e uma educação à francesa. Passear na
pracinha.
Papai faz gosto. Bom moço. Inteligente, respeitador.
Estudioso. De muito caráter. Ela finge indiferença. De
repente, por acaso as mãos se entrelaçam com mais
intensidade e tomam rumos fortuitos durante a caminhada.
Descuidadamente encostam-se a partes mais intimas, ora de
um ora de outro. Ela sorri de lado. Eu saboreio o disfarce.
Neste momento percebo que o compromisso está
concretizado. Apenas uma voltinha na praça com minha futura
esposa. Assim parece. O papai, pelos olhos da empregada
pode garantir a decência deste pretendente vigiando o
147
148. passeio, sentada no banco de madeira. Não fosse o
processo, tudo estaria perfeito.
O velhinho e seu estoque de laranja também estiveram
presentes ao passeio. Foi testemunha quando sem vergonha
encostei e busquei nas coxas da moça despertar desejos.
Acho que ele percebeu seu rubor com sorriso atravessado.
Apesar da ansiedade pelo resultado do processo o dia findou.
A senhoria desligou os ventiladores. As janelas se cerraram,
uma ou outra cadeira foi arrastada e aos poucos, o silencio se
fez presente. O gato morto permanecia na porta. O velhinho
sumiu da minha cabeça. Eu sem meus pijamas, só de cuecas
esperava deitado. Dois anos de pensão ainda não conseguira
estabelecer um julgamento concreto do comportamento da
minha senhoria. A primeira vez foi um susto. No meio da noite
a porta de meu quarto se abre e percebo seu vulto, iluminado
apenas por uma réstia de lua, desfazer-se da camisola e
nuazinha embrenhar-se sob meus cobertores. Refestelar-se,
quente e sôfrega. Ao fim, levanta-se, ajeita os cabelos
compridos e soltos. Rapidamente, vai até a porta, espia e sai
nua, com a camisola nas mãos. Saltitando desaparece no
corredor. No dia seguinte como se nada houvesse acontecido
sem sequer dizer bom dia, segue na rotina de servir o café
dos hóspedes. Cabelos presos, vestida como de costume com
roupas muito discretas e fechadas. Só eu sei o que escondem
estas roupas. Depois da primeira vez, estes presentes
aconteciam em dias aleatórios. Dois, três, até quatro dias
seguidos. Às vezes passava muito tempo sem uma visita
noturna. Quinze vinte dias. Quando menos esperava lá estava
ela, minha amazona a cavalgar iluminada apenas por um fio
de lua que rompia as frestas da cortina. Hoje estou na
expectativa de que virá. Aliás, estou mesmo precisando. O
passeio com a moça foi excitante. Está ficando tarde e nada
da porta abrir. Dez dias sem recebê-la. Assim a noite passa e
pela manhã estarei acabado com a falta de sono. Não virá.
Preciso me fixar no processo. Amanhã é o dia. Serei
148
149. condenado? Apreciarão o meu caso? Dúvidas, sono, medo,
desejo, tudo misturado. A moça, o velho, a empregada do pai
da moça, casamento, o gato morto na porta do quarto, o
processo, o sono chegando.
A porta se abre e a luz do corredor anuncia a chegada de uma
despudorada senhoria.
Amanhã me importo com o processo.
Muito cedo já estava a postos no refeitório para o café da
manhã. Pela primeira vez a senhoria não servia os hóspedes.
Depois de uma espetacular noite de amor se deixou ficar em
minha cama. Deixei-a dormindo. Linda espalhada por entre os
lençóis. Saí sem barulhos. Peguei o gato pelo rabo e lancei-o
pela janela. Enfim desceu boiando pelo córrego que passa
atrás da casa. A mocinha que serve as mesas me olhava com
um olhar de cumplicidade e malícia.
Certamente sabia onde estava a patroa. Virei uma xícara de
café e sai. Enfim iria definir minha situação. O processo
estaria pronto para um veredicto.
Caminhando na rua quase deserta e fria uma paz inexplicável
se apossou de mim. Não mais sentia medo. Tudo estava
consumado. Restava aceitar fosse o que fosse.
Ao contrário do que seria de se esperar o tribunal estava
vazio. Algumas pessoas se incumbiam de passar vassouras
pelos corredores. Na parte mais antiga o pátio a céu aberto
recebia um vento intenso, gelado. Passei apressado pelo
pequeno jardim mal cuidado. Abrindo a porta adentrei ao
prédio e dali à sala do tribunal. Sentados atrás de enorme
mesa, em plano elevado, os juizes já estavam a postos. Tão
logo sentei o presidente adentrou ao recinto. Comecemos. O
senhor se identifique. Sou eu mesmo. Aquele que durante os
últimos meses se viu envolvido neste processo. Espero estar
apto para receber a sentença neste ato. O senhor deve
permanecer calado. O dia é frio além de ser feriado o que se
justifica pelo sigilo do processo. O término do prazo nos obriga
149
150. a aqui comparecer. Senhor relator, relate. Pelas observações
e investigações ele está apto, disse o velhinho das laranjas. O
dossiê completo já é de conhecimento dos senhores. Quem
aprova permaneça como se encontra. Aprovado. A partir
deste momento com a aposentadoria do atual Observador o
senhor está nomeado para o cargo vitalício de Observador
Geral. Deverá permanecer no mesmo nível de colocação
social e informar tudo o que possa parecer consenso na
sociedade que possa implicar em discordância com o sistema.
Suas despesas estarão cobertas integralmente e
vitaliciamente desde que sejam compatíveis com o nível social
ao qual irás viver e observar. O resto está no manual. Este
tribunal, a pedido do Estado se desincumbe da missão de
indicar o novo Observador Geral. Vamos considerar que
esteja de acordo e que o juramento esteja implícito na próxima
resposta. Aceita o cargo?
A cabeça girava como um carrossel. Cavalinhos brancos
rodeavam, subiam e desciam sem montaria. O velhinho
rodava sentado à plataforma do equipamento descascando e
chupando laranjas. Sorria com a certeza da aposentadoria.
Iria a partir de agora chupar suas laranjas à beira de um lago
nas montanhas. Em cinqüenta anos de tribunal, enfim, tinha
executado um único trabalho. A indicação de seu substituto.
Ao seu lado, montado em um dos cavalinhos o pai da moça, o
dono do colégio, meu possível futuro sogro, rodava
gargalhando com um maço de notas de dinheiro nas mãos. A
moça passeava por entre os brinquedos com sua inseparável
dama de companhia. A senhoria observava a tudo da tenda
de tiro ao alvo. A chuva caiu forte e nenhum deles se
incomodou. Permaneceram como estavam indiferentes à
tormenta. Os juizes corriam da tormenta protegendo a cabeça
com a beca. Carregavam as notas de dinheiro Um palhaço
encharcado passou devagar pelo pátio puxando por uma
cordinha um cachorro de pano. Pula Violeta. O gato passou
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151. em disparada, rosnando esganiçado, arrastando a cordinha
pelo pescoço. Olhava-me furioso.
Ouvi minha própria voz:
Aceito.
Encerrada a sessão. Bom feriado para todos.
Mal acredito que se passaram três anos dos acontecimentos
narrados. O tempo nos envolve de tal maneira que ao dar-nos
conta do presente levamos um susto pelo espaço de tempo
que transcorreu aparentemente tão veloz. Na verdade, no
meu caso, este tempo foi preenchido com muitos
acontecimentos. Ao sair da hospedaria já na qualidade de
Observador Geral fui morar na capital.
Deixei para trás todos os meus pertences, inclusive os dois
porta retratos; um com o retrato de minha mãe e outro agora
com o retrato do velhinho, o das laranjas. Como era de se
esperar, de certa forma como imposição do sistema, que me
observou, julgou e escolheu, casei-me com a moça. Moro em
uma casa confortável, bairro de classe média, uma vez que é
nesta faixa social que devo atuar como Observador. O
envelope com o salário chega regularmente todos os meses
com uma importância muito além do que minhas modestas
pretensões necessitam. Nestes últimos meses resido sozinho,
pois o destino me propiciou o dissabor de perder a moça e
meu primeiro filho. Problemas no parto. A depressão durou
alguns doloridos meses, mas ao resolver rever minha cidade e
o ambiente no qual vivi o pesadelo do processo, de certa
forma abri espaço para uma tentativa de recomeço.
Na pensão encontrei gente desconhecida. A senhoria se
quedou em desespero logo após minha partida. Vendeu a
hospedaria e saiu da cidade na carona de um caixeiro
viajante. Correm estórias de que mais tarde montou uma casa
de tolerância às margens de uma rodovia. Este meu regresso
de certa forma perdeu o sentido, pois me embalava o sonho
de retomar às esperas informais das noites de outrora.
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152. Sobre o velhinho, soube que se transferiu para a montanha.
Mudou para uma cabana confortável às margens de um lago.
Saiu para pescar e desapareceu nas águas. Não mais foi
encontrado. Apenas algumas laranjas chegaram às margens
trazidas pelo vai e vem das águas.
Neste momento me encontro sentado no banco da pracinha,
aquele mesmo que muitas vezes sentei para namorar a moça.
Uma chuvinha fina umedece as pedras das calçadas. A noite
se aproxima e na torre da igreja o carrilhão entoa a hora da
Ave Maria. Vejo a dama de companhia adentrar a igreja com a
cabeça coberta por um véu negro. Lembro dos passeios com
a moça, minha angústia pelo processo, nas crianças da
escola, meus alunos aos quais abandonei, das noites de
sobressaltos, do meu louco gato morto. Choro o passado e o
presente.
Recomponho-me, ajeito o lenço no bolso do paletó, pego na
sacola ao lado uma das muitas laranjas, empunho meu
canivete afiado e começo a descascar.
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