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DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
UNIVERSIDADE DO MINHO
Rosa Cabecinhas
Racismo e Etnicidade em Portugal
Uma análise psicossociológica da
homogeneização das minorias
Dissertação para obtenção do grau de Doutor em Ciências da Comunicação
Sob a orientação de:
Professora Lígia Amâncio
Professor Aníbal Alves
Professor Fabio Lorenzi-Cioldi
BRAGA
2002
Tese Rc Final
Para Arlete Pais, minha professora da Telescola,
Por me ter oferecido o meu primeiro livro.
Tese Rc Final
AGRADECIMENTOS
Este não foi um percurso solitário. Ao longo da caminhada que me conduziu a
esta dissertação pude contar com a ajuda de numerosas pessoas e de algumas
instituições. Na impossibilidade de mencionar todas elas, expresso aqui o meu
agradecimento àquelas que mais marcaram este percurso.
A realização deste trabalho foi possível graças a duas ajudas institucionais
decisivas. O Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho concedeu-me três
anos de equiparação a bolseira e permitiu-me usufruir de um espaço próprio para a
realização das minhas experiências. Ao longo deste percurso pude contar com o apoio
inestimável do Departamento de Ciências da Comunicação.
A Fundação Calouste Gulbenkian concedeu-me uma bolsa de estudos que
permitiu a minha estadia na Universidade de Genebra durante um período de dois anos,
e apoiou, por diversas vezes, a minha participação em congressos internacionais. Para
além deste apoio mais próximo, não posso deixar de mencionar um apoio mais distante,
mas de grande relevância para mim: a Biblioteca Itinerante de Fundação Calouste
Gulbenkian, que visitava a minha aldeia uma vez por mês, encheu de sonhos a minha
adolescência e despertou o meu interesse pela ciência.
A Lígia Amâncio acompanha o meu trabalho há uma década. Tendo sido minha
professora e minha orientadora da dissertação de mestrado, aceitou ser de novo minha
orientadora no projecto de doutoramento. As minhas palavras nunca poderão expressar
o quanto lhe devo: a clareza de raciocínio que tantas vezes me faltou foi colmatada pela
sua viva inteligência e sabedoria. O seu constante entusiasmo e o seu encorajamento
ajudaram-me a resistir nos momentos mais difíceis. A sua competência científica,
disponibilidade e capacidade de diálogo foram de um valor inestimável para a
concretização deste projecto.
Devo a Aníbal Alves, meu orientador interno, o respeito pelo meu tema de
investigação, o acompanhamento do meu trabalho, o constante encorajamento na
concretização deste projecto e a criação das condições que o tornaram possível.
Obrigada também pela amizade demonstrada e a capacidade de olhar em frente.
Ao Fabio Lorenzi-Cioldi, meu co-orientador, agradeço os comentários críticos e
as sugestões que muito me ajudaram a melhorar este trabalho. Não posso também deixar
de referir o apoio, encorajamento e as sugestões que recebi da parte de outros
professores e colegas da Universidade de Genebra: Willem Doise, Gabriel Mugny,
Anne-Claude Dafflon, Christian Staerkle, Thalia Magioglou e Agatta Dragulescu.
Agradeço aos 1871 estudantes que participaram voluntariamente nesta
investigação e também aos colegas que disponibilizaram parte das suas aulas para a
realização dos diversos estudos: Alberto Sá, Alexandra Lázaro, Alice Matos, Ana Paula
Marques, Emília Fernandes, João Paulo André, Joel Felizes, Luís Cunha, Luísa
Magalhães, Manuel Afonso, Manuel Caldeira Cabral, Manuela Palmeirim, Paulo Nossa,
Paulo Xavier, Sandra Marinho, Silvana Mota Ribeiro e Teresa Mora.
Um agradecimento muito especial vai para os colegas que me ajudaram na recolha
de dados em outros locais do país: Jaime Ramos e Osvaldo Régua em Bragança; Ana
Paula Simões e Carolina Leite no Porto; Albino Lopes, Joana Pereira Leite e Isabel
Correia em Lisboa; Carlos Brígida em Évora; Guilhermina Carvalheira e Manuela Neto
em Faro.
Agradeço à Associação de Estudantes Angolanos em Portugal, e muito em
particular a Eugénio Silva, Amélia Mutango, Carlos Gando, Ruben Silva e Viegas
Bernardo a sua colaboração no ‘recrutamento’ dos estudantes angolanos que
participaram nos diversos estudos. Agradeço a Adriano Bondo a sua colaboração na
recolha das fotografias utilizadas num dos estudos experimentais.
Em termos técnicos e informáticos agradeço o aconselhamento e apoio da parte de
José Carlos Palmeirim e José Manuel Machado. A Ana Margarida Dias fez uma revisão
paciente da minha lista de referências bibliográficas, a Virgínia Santos verificou todas
as citações e o Alberto Sá formatou este volumoso texto.
Ao longo destes anos pude receber ensinamentos e trocar ideias com alguns
professores e colegas que se disponibilizaram para discutir comigo os seus dados e os
meus: Jorge Vala, Isabel Correia, Rodrigo Brito, Diniz Lopes, Marcus Lima, Abílio
Oliveira, Joana Miranda, Manuela Ivone Cunha, Manuel Carlos Silva, Luís Cunha e
Silvana Mota Ribeiro.
Aos meus pais e à minha irmã agradeço terem permanecido sempre do meu lado,
apesar das minhas tão prolongadas ausências. Ao Pedro e à Teresa agradeço terem-me
recebido tantas vezes em Lisboa, sempre com a maior disponibilidade e carinho. Ao
longo deste trajecto pude contar com a colaboração, o apoio e o constante
encorajamento dos meus queridos amigos Anabela, Christel, Guida, Luís, Manuela,
Paulo e Rui. Muito obrigada a todos.
Racismo e Etnicidade em Portugal
8
ÍNDICE GERAL
RESUMO...............................................................................................................23
ABSTRACT..........................................................................................................24
INTRODUÇÃO GERAL ............................................................................................. 25
PARTE I: PROBLEMÁTICA E ENQUADRAMENTO TEÓRICO..................... 35
CAPÍTULO 1 - RACISMO, RACIALIZAÇÃO E ETNICIZAÇÃO DAS MINORIAS ...........37
1.1 Introdução ........................................................................................................38
1.2 Racismo e etnocentrismo: a actualidade de uma velha questão ......................40
1.3 Contexto histórico-político, Ciência e Racismo ..............................................51
1.3.1 O racismo na ciência e no senso comum ............................................... 51
1.3.2 As normas da igualdade e os novos racismos........................................ 58
1.4 O contexto português.......................................................................................73
1.4.1 Colonianismo, idendidade nacional e representações do ‘negro’.......... 73
1.4.2 Descolonização, Imigração e os Novos Racismos ................................ 99
1.5. Desminar um terreno repleto de ambiguidades............................................115
CAPÍTULO 2 - RELAÇÕES INTERGRUPAIS, IDENTIDADE SOCIAL E
DIFERENCIAÇÃO SIMBÓLICA................................................................125
2.1 Introdução ......................................................................................................126
2.2 Relações intergrupais, identidade social e discriminação social...................128
2.3 Categorização social, Identidade social e identidade pessoal........................138
2.3.1. Identidade social e comparação social................................................ 143
2.3.2. Identidade social e auto-categorização ............................................... 157
2.4 Representações sociais, identidade social, e dominação simbólica...............166
2.4.1. Identidade social e diferenciação categorial....................................... 167
2.4.2 Identidade dominante e identidade dominada ..................................... 170
2.4.3. Identidade social e representação de ‘pessoa’ .................................... 180
CAPÍTULO 3 - PROCESSOS COGNITIVOS, ESTEREÓTIPOS SOCIAIS E
PERCEPÇÃO DA VARIABILIDADE GRUPAL ............................................187
3.1 Introdução ......................................................................................................188
3.2 Processos cognitivos e realidade social.........................................................192
Racismo e Etnicidade em Portugal
9
3.3 Processos cognitivos, cultura e estereótipos sociais ......................................201
3.4 Processos cognitivos, identidade social e percepção da variabilidade
grupal..........................................................................................................217
3.5 Questões metodológicas no estudo da variabilidade grupal percebida .........244
PARTE II: INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA ............................................................ 249
CAPÍTULO 4 - ESTUDOS EXPLORATÓRIOS: CATEGORIZAÇÃO E
DIFERENCIAÇÃO ENTRE GRUPOS ÉTNICOS...........................................250
4.1 Introdução ......................................................................................................251
4.2 Estudo 1 - Crenças sobre grupo étnico e raça .................................................253
4.2.1 Objectivos ............................................................................................ 253
4.2.2 Método................................................................................................. 255
4.2.2.1 Participantes.................................................................................. 255
4.2.2.2 Procedimento de recolha de dados ............................................... 255
4.2.2.3 Procedimento de análise de dados ................................................ 256
4.2.3 Resultados............................................................................................ 257
4.2.3.1 Grupo étnico versus raça .............................................................. 257
4.2.3.2 Grupos etnicizados e grupos racializados em Portugal................ 260
4.2.3.3 Auto-categorização dos participantes ........................................... 262
4.2.4 Discussão ............................................................................................. 264
4.3 Estudo 2 - Percepção do estatuto social dos diferentes grupos étnicos em
Portugal........................................................................................266
4.3.1 Objectivos ............................................................................................ 266
4.3.2 Método................................................................................................. 268
4.3.2.1 Participantes e desenho ................................................................. 268
4.3.2.2 Procedimento de recolha de dados ............................................... 269
4.3.2.3 Procedimento de análise de dados ................................................ 270
4.3.3 Resultados............................................................................................ 272
4.3.3.1 Estatuto social percebido .............................................................. 272
4.3.3.2 Estatuto numérico percebido ........................................................ 279
4.3.4 Discussão ............................................................................................. 283
4.4 Estudo 3 - Estereótipos sociais e assimetria simbólica...................................287
4.4.1 Introdução ............................................................................................ 287
Racismo e Etnicidade em Portugal
10
4.4.2 Estudo 3a - Conteúdos dos estereótipos .............................................. 290
4.4.2.1 Método.......................................................................................... 291
4.4.2.1.1 Participantes............................................................................291
4.4.2.1.2 Procedimento de recolha de dados .........................................291
4.4.2.1.3 Procedimento de análise de dados ..........................................292
4.4.2.2 Resultados..................................................................................... 294
4.4.3 Estudo 3b - Avaliação dos conteúdos.................................................. 304
4.4.3.1 Método.......................................................................................... 306
4.4.3.1.1 Participantes e desenho ...........................................................306
4.4.3.1.2 Procedimento de recolha de dados .........................................306
4.4.3.1.3 Instrumentos de medida..........................................................307
4.4.3.1.4 Procedimento de análise de dados ..........................................307
4.4.3.2. Resultados.................................................................................... 309
4.4.4 Estudo 3c - Significados dos conteúdos............................................... 318
4.4.4.1 Método.......................................................................................... 319
4.4.4.1.1 Participantes e desenho ...........................................................319
4.4.4.1.2 Procedimento de recolha de dados .........................................319
4.4.4.1.3 Instrumentos de medida..........................................................320
4.4.4.1.4 Procedimento de análise de dados ..........................................320
4.4.4.2 Resultados..................................................................................... 322
4.4.5 Síntese dos resultados do Estudo 3b e do Estudo 3c........................... 329
4.4.6 Discussão dos estudos sobre estereótipos............................................ 337
CAPÍTULO 5 - ESTUDOS EXPERIMENTAIS: DISCRIMINAÇÃO NO
TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO...........................................................343
5.1 Introdução .......................................................................................................344
5.2 Estudo 4 – Homogeneização de uma minoria nacional ..................................346
5.2.1 Introdução ............................................................................................ 346
5.2.2 Método................................................................................................. 353
5.2.2.1 Participantes e desenho experimental........................................... 353
5.2.2.2. Materiais-estímulo ....................................................................... 355
5.2.2.2.1 Teste dos materiais-estímulo (Estudo piloto).........................355
5.2.2.2.2 Versão definitiva do material-estímulo ..................................357
5.2.2.3 Procedimento de recolha de dados ............................................... 361
5.2.2.4 Instrumentos de medida................................................................ 364
Racismo e Etnicidade em Portugal
11
5.2.2.4.1 Medidas de controlo dos materiais e do contexto da
investigação ............................................................................365
5.2.2.4.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada.............366
5.2.2.4.3 Medidas indirectas – Tarefa de recordação livre....................367
5.2.2.4.4 Medidas directas – Tarefas de questionário............................368
5.2.2.5 Procedimento de análise de dados ................................................ 375
5.2.2.5.1 Controlo dos materiais-estímulo e do contexto da
experiência..............................................................................375
5.2.2.5.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada.............375
5.2.2.5.3 Medidas indirectas – Tarefa de recordação livre....................376
5.2.2.5.4 Medidas directas – Tarefas de questionário............................377
5.2.3 Resultados............................................................................................ 383
5.2.3.1 Controlo dos materiais-estímulo e do contexto da investigação .. 383
5.2.3.1.1 Estatuto social percebido ........................................................383
5.2.3.1.2 Estatuto numérico percebido ..................................................383
5.2.3.1.3 Estereotipicalidade e valência dos traços ...............................384
5.2.3.2 Tarefa de recordação indiciada..................................................... 384
5.2.3.2.1 Exactidão da recordação .........................................................385
5.2.3.2.2 Efeito de categorização...........................................................386
5.2.3.2.3 Efeitos de homogeneidade......................................................387
5.2.3.3 Tarefa de recordação livre ............................................................ 388
5.2.3.3.1 Quantidade de informação recordada .....................................389
5.2.3.3.2 Efeitos de homogeneidade......................................................390
5.2.3.4 Tarefas do questionário................................................................. 392
5.2.3.4.1 Efeitos de homogeneidade......................................................392
5.2.3.4.2 Efeitos de Favoritismo............................................................398
5.2.3.4.3 Relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de
favoritismo..............................................................................400
5.2.3.4.4 Auto-descrição........................................................................408
5.2.3.4.5 Nível de identificação grupal..................................................414
5.2.3.4.6 Nível de contacto ....................................................................419
5.2.4 Discussão ............................................................................................. 426
5.3 Estudo 5 - Homogeneização de uma minoria étnica .......................................437
5.3.1 Introdução ............................................................................................ 437
Racismo e Etnicidade em Portugal
12
5.3.2 Método................................................................................................. 441
5.3.2.1 Participantes e desenho experimental........................................... 441
5.3.2.2 Materiais-estímulo ........................................................................ 443
5.3.2.3 Procedimento de recolha de dados ............................................... 445
5.3.2.4 Instrumentos de medida................................................................ 447
5.3.2.4.1 Medidas de controlo dos materiais e do contexto da
investigação ............................................................................448
5.3.2.4.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada.............449
5.3.2.4.3 Medidas directas – Tarefas de questionário............................450
5.3.2.5 Procedimento de análise dos dados .............................................. 455
5.3.2.5.1 Controlo dos materiais-estímulo e do contexto da
investigação ............................................................................455
5.3.2.5.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada.............455
5.3.2.5.3 Medidas directas – Tarefas de questionário............................456
5.3.3 Resultados............................................................................................ 461
5.3.3.1 Controlo dos materiais-estímulo e contexto da investigação ....... 461
5.3.3.1.1 Estatuto social percebido ........................................................461
5.3.3.1.2 Estatuto numérico percebido ..................................................461
5.3.3.1.3 Teste dos materiais-estímulo ..................................................462
5.3.3.2 Tarefa de recordação indiciada..................................................... 463
5.3.3.2.1 Exactidão da recordação .........................................................463
5.3.3.2.2 Efeito de categorização...........................................................464
5.3.3.2.3 Efeitos de homogeneidade......................................................466
5.3.3.2.4 Efeitos de homogeneidade e efeitos de favoritismo ...............467
5.3.3.3 Tarefas do questionário................................................................. 470
5.3.3.3.1 Efeitos de homogeneidade......................................................470
5.3.3.3.2 Efeitos de favoritismo .............................................................473
5.3.3.3.3 Auto-descrição........................................................................475
5.3.3.3.4 Pertença, orgulho e identificação grupais...............................482
5.3.3.3.5 Nível de contacto ....................................................................491
5.3.3.3.6 Racismo subtil ........................................................................495
5.3.3.3.7 Tolerância à diferença.............................................................499
5.3.4 Discussão ............................................................................................. 503
Racismo e Etnicidade em Portugal
13
CAPÍTULO 6 - ESTUDO CORRELACIONAL: RACISMO E VARIABILIDADE
GRUPAL PERCEBIDA..............................................................................515
6.1 Estudo 6 ......................................................................................................516
6.1.1 Introdução ............................................................................................ 516
6.1.2 Método................................................................................................. 519
6.1.2.1 Participantes e desenho ................................................................. 519
6.1.2.2 Procedimento ................................................................................ 520
6.1.2.3 Instrumentos de medida................................................................ 521
6.1.2.4 Procedimento de análise dos dados .............................................. 524
6.1.3 Resultados............................................................................................ 528
6.1.3.1 Percepções do exogrupo ............................................................... 528
6.1.3.2 Contacto com o exogrupo............................................................. 545
6.1.3.3 Pertença, orgulho e identificação grupais..................................... 550
6.1.3.4 Tolerância à diferença................................................................... 553
6.1.3.5 Preditores da variabilidade percebida do exogrupo...................... 555
6.1.4 Discussão ............................................................................................. 560
CONCLUSÕES ........................................................................................................... 569
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 591
ANEXOS...................................................................................................................... 701
Índice de anexos ..................................................................................................703
Índice de tabelas dos anexos................................................................................705
Racismo e Etnicidade em Portugal
14
ÍNDICE DE TABELAS
Tabelas do Estudo 1
Tabela 1 - Distribuição dos participantes por condição................................................ 255
Tabela 2 - Frequências relativas dos conteúdos associados a grupo étnico e raça ...... 258
Tabela 3 - Frequências relativas das categorias de conteúdos associadas a grupo
étnico e raça ................................................................................................259
Tabela 4 - Frequências relativas dos sinónimos de grupo étnico e raça ...................... 260
Tabela 5 - Frequências relativas dos grupos étnicos e raças referidos pelos
participantes................................................................................................ 261
Tabela 6 - Frequências relativas das categorias de grupos étnicos e raças referidos
pelos participantes ...................................................................................... 262
Tabela 7 - Frequências relativas das auto-categorizações dos participantes ................ 263
Tabela 8 - Frequências relativas dos grupos étnicos e raças referidos nas auto-
categorizações dos participantes................................................................. 263
Tabelas do Estudo 2
Tabela 9 - Distribuição dos participantes em função do local de recolha de dados ..... 269
Tabela 10 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo em função da categorização
nacional ou racial........................................................................................ 272
Tabela 11 – Estatuto numérico percebido dos grupos-alvo em função da
categorização nacional ou racial................................................................. 280
Tabelas do Estudo 3a
Tabela 12 - Grupo e sexo dos participantes.................................................................. 291
Tabela 13 - Indicadores relativos aos seis dicionários.................................................. 294
Tabela 14 - Atributos exclusivos do grupo dos angolanos ........................................... 296
Tabela 15 - Atributos exclusivos do grupo dos portugueses ........................................ 298
Tabela 16 - Atributos comuns ao grupo dos angolanos e ao grupo dos portugueses ... 300
Tabelas do Estudo 3b
Tabela 17 - Grupo e sexo dos participantes.................................................................. 306
Tabela 18 - Traços considerados positivos em função do grupo dos participantes ...... 310
Tabela 19 - Traços considerados negativos em função do grupo dos participantes..... 312
Racismo e Etnicidade em Portugal
15
Tabela 20 - Traços considerados estereotípicos dos angolanos em função do
grupo dos participantes ............................................................................... 314
Tabela 21 - Traços considerados estereotípicos dos portugueses em função do
grupo dos participantes ............................................................................... 316
Tabelas do Estudo 3c
Tabela 22 - Grupo e sexo dos participantes.................................................................. 319
Tabela 23 - Traços considerados qualidades em função do grupo dos participantes... 323
Tabela 24 - Traços considerados defeitos em função do grupo dos participantes........ 325
Tabela 25 - Traços considerados estereotípicos dos angolanos em função do
grupo dos participantes (avaliação interdependente).................................. 326
Tabela 26 - Traços considerados estereotípicos dos portugueses em função do
grupo dos participantes (avaliação interdependente).................................. 328
Tabela 27 - Traços considerados positivos em função da opinião pessoal (Estudo
3b) e do referente de adulto (Estudo 3c)..................................................... 330
Tabela 28 - Traços considerados negativos em função da opinião pessoal (Estudo
3b) e do referente de adulto (Estudo 3c)..................................................... 332
Tabela 29 - Traços considerados estereotípicos dos angolanos numa escala
independente (Estudo 3b) e numa escala interdependente (Estudo 3c)...... 333
Tabela 30 - Traços considerados estereotípicos dos portugueses numa escala
independente (Estudo 3b) e numa escala interdependente (Estudo 3c)...... 335
Tabelas do Estudo 4
Tabela 31 - Distribuição dos participantes angolanos e portugueses por condição
experimental ............................................................................................... 354
Tabela 32 - Materiais-estímulo (Versão A) .................................................................. 359
Tabela 33 - Materiais-estímulo (Versão B) .................................................................. 360
Tabela 34 - Síntese dos instrumentos de medida.......................................................... 365
Tabela 35 - Medidas derivadas do questionário e respectivas abreviaturas ................. 374
Tabela 36 - Médias e desvios-padrão das respostas correctas em função do grupo
do participante e do grupo-alvo .................................................................. 385
Tabela 37 - Médias e desvios-padrão dos erros intragrupais e intergrupais em
função do grupo do participante e do grupo-alvo ....................................... 386
Racismo e Etnicidade em Portugal
16
Tabela 38 - Médias e desvios-padrão dos erros endogrupais e exogrupais em
função do grupo do participante e do grupo-alvo ....................................... 388
Tabela 39 - Médias e desvios-padrão do número total de atributos correctamente
recordados em função do grupo do participante e do grupo-alvo .............. 390
Tabela 40 - Médias dos ARC-scores em função do grupo do participante, do
grupo-alvo, e do tipo de organização da informação.................................. 392
Tabela 41 - Médias e desvios-padrão das medidas PERSC e MEDSC em função
do grupo do participante e do grupo-alvo ................................................... 393
Tabela 42 - Médias e desvios-padrão da medida AMPLI em função do grupo do
participante e do grupo-alvo ....................................................................... 395
Tabela 43 - Médias e desvios-padrão da medida VARIA em função do grupo do
participante e do grupo-alvo ....................................................................... 396
Tabela 44 - Médias e desvios-padrão das medidas DISPD e DISVAR em função
do grupo do participante e do grupo-alvo ................................................... 397
Tabela 45 - Médias e desvios-padrão das medidas de favoritismo endogrupal em
função do grupo do participante e do grupo-alvo ....................................... 399
Tabela 46 - Médias e desvios-padrão das medidas de variabilidade grupal
percebida controlando a valência dos traços. ............................................. 403
Tabela 47 - Médias e desvios-padrão das medidas de favoritismo endogrupal
controlando a estereotipicalidade dos traços. ............................................. 406
Tabela 48 - Médias e desvios-padrão da medida AUTSC............................................ 409
Tabela 49 - Médias e desvios-padrão da medida AUTPN ........................................... 410
Tabela 50 - Médias e desvios-padrão da medida AUTDA........................................... 410
Tabela 51 - Médias das medidas de distância da auto-descrição face à tendência
central do endogrupo em função da estereotipicalidade e da valência
dos traços .................................................................................................... 411
Tabela 52 - Correlações entre as medidas de auto-descrição e as medidas de
variabilidade grupal percebida.................................................................... 413
Tabela 53 - Médias e desvios-padrão dos níveis de identificação em função do
grupo do participante .................................................................................. 415
Tabela 54 - Médias e desvios-padrão dos níveis de identificação dos participantes
angolanos em função do tempo de permanência em Portugal.................... 416
Tabela 55 – Médias e desvios-padrão do favoritismo endogrupal em função do
nível de identificação exogrupal................................................................. 419
Racismo e Etnicidade em Portugal
17
Tabela 56 - Médias e desvios-padrão do nível de familiaridade entre os grupos......... 420
Tabela 57 - Médias e desvios-padrão do número de amigos do endogrupo e do
exogrupo ..................................................................................................... 421
Tabela 58 - Médias e desvios-padrão respeitantes aos níveis de familiaridade dos
participantes angolanos em função do tempo de permanência em
Portugal....................................................................................................... 422
Tabela 59 – Médias e desvios-padrão do favoritismo endogrupal em função dos
níveis de familiaridade endogrupal e exogrupal......................................... 425
Tabelas do Estudo 5
Tabela 60 - Distribuição dos participantes angolanos e portugueses por condição
experimental ............................................................................................... 442
Tabela 61 - Material-estímulo (Versões A e B)............................................................ 444
Tabela 62 - Síntese dos instrumentos de medida.......................................................... 448
Tabela 63 - Medidas derivadas do questionário e respectivas abreviaturas ................. 454
Tabela 64 - Médias e desvios-padrão das respostas correctas em função do grupo
do participante e do grupo-alvo .................................................................. 464
Tabela 65 - Médias e desvios-padrão dos erros intragrupais e intergrupais em
função do grupo do participante e do grupo-alvo ....................................... 465
Tabela 66 - Médias e desvios-padrão dos erros endogrupais e exogrupais em
função do grupo do participante e do grupo-alvo ....................................... 466
Tabela 67 - Médias e desvios-padrão dos erros endogrupais e exogrupais em
função da valência dos traços e do grupo do participante .......................... 469
Tabela 68 - Médias e desvios-padrão das medidas PERSC e MEDSC em função
do grupo do participante e do grupo-alvo ................................................... 470
Tabela 69 - Médias e desvios-padrão das medidas de AMPLI, VARIA em função
do grupo do participante e do grupo-alvo ................................................... 472
Tabela 70 - Médias e desvios-padrão da medidas SEMEL em função do grupo do
participante e do grupo-alvo ....................................................................... 473
Tabela 71 - Médias e desvios-padrão das medidas de favoritismo endogrupal ........... 474
Tabela 72 - Médias e desvios-padrão da medida AUTSC em função do grupo do
participante ................................................................................................. 476
Tabela 73 - Médias e desvios-padrão da medida AUTPN em função do grupo do
participante ................................................................................................. 478
Racismo e Etnicidade em Portugal
18
Tabela 74 - Médias e desvios-padrão das medidas de auto-descrição em função do
grupo do participante .................................................................................. 478
Tabela 75 - Médias e desvios-padrão das medidas de distância da auto-descrição
face à tendência central do endogrupo em função da
estereotipicalidade e da valência dos traços ............................................... 479
Tabela 76 - Correlações entre as medidas de variabilidade grupal percebida e as
medidas de auto-descrição.......................................................................... 481
Tabela 77 - Médias e desvios-padrão das medidas respeitantes à importância da
pertença grupal............................................................................................ 484
Tabela 78 - Médias e desvios-padrão das medidas respeitantes ao orgulho da
pertença grupal............................................................................................ 486
Tabela 79 - Médias e desvios-padrão das medidas respeitantes à identificação
nacional, supranacional e racial.................................................................. 487
Tabela 80 - Médias e desvios-padrão das questões sobre ao nível de contacto ........... 492
Tabela 81 - Médias e desvios-padrão do favoritismo endogrupal em função dos
níveis de familiaridade endogrupal............................................................. 495
Tabela 82 - Estrutura factorial do racismo subtil ......................................................... 496
Tabela 83 - Médias e desvios-padrão das questões sobre negação da expressão de
emoções positivas ....................................................................................... 497
Tabela 84 - Médias e desvios-padrão das questões sobre a acentuação das
diferenças culturais ..................................................................................... 498
Tabela 85 - Correlações entre as medidas de variabilidade grupal percebida e as
outras medidas ............................................................................................ 499
Tabela 86 - Médias e desvios-padrão das questões sobre as amizades intergrupais .... 500
Tabela 87 - Médias e desvios-padrão da questão sobre a incomodidade face a
opiniões diferentes ...................................................................................... 501
Tabela 88 - Correlações entre as medidas de variabilidade grupal percebida e as
medidas de tolerância à diferença............................................................... 502
Tabelas do Estudo 6
Tabela 89 - Distribuição dos participantes em função do grupo-alvo e do local de
recolha de dados ......................................................................................... 520
Tabela 90 - Síntese dos instrumentos de medida.......................................................... 521
Racismo e Etnicidade em Portugal
19
Tabela 91 - Percepção da variabilidade do exogrupo em função da respectiva
designação................................................................................................... 529
Tabela 92 - Percepção da semelhança com o exogrupo em função da respectiva
designação................................................................................................... 531
Tabela 93 - Médias da sub-escala negação de emoções positivas em função do
grupo-alvo ................................................................................................... 533
Tabela 94- Médias da sub-escala de acentuação das diferenças culturais em
função do grupo-alvo .................................................................................. 535
Tabela 95 - Médias da sub-escala de defesa dos valores tradicionais em função do
grupo-alvo ................................................................................................... 536
Tabela 96 - Médias da sub-escala de ameaça e rejeição em função do grupo-alvo .... 538
Tabela 97 - Médias da sub-escala rejeição de intimidade em função do grupo-alvo... 539
Tabela 98 - Médias do racismo subtil e racismo flagrante em função do grupo-
alvo ............................................................................................................. 541
Tabela 99 - Médias do racismo subtil e do racismo flagrante em função do tipo de
categorização do grupo-alvo ....................................................................... 543
Tabela 100 - Correlações entre o racismo subtil e o racismo flagrante e as
restantes variáveis....................................................................................... 544
Tabela 101 - Médias relativas ao nível de familiaridade em função do grupo-alvo..... 546
Tabela 102 - Médias relativas ao número de pessoas conhecidas pelo nome em
função do grupo-alvo .................................................................................. 547
Tabela 103 - Médias relativas ao número de amigos íntimos em função do grupo-
alvo ............................................................................................................. 549
Tabela 104 - Médias relativas à importância da pertença nacional e racial em
função do sexo do participante ................................................................... 550
Tabela 105 - Médias relativas ao orgulho nacional e racial em função do sexo do
participante ................................................................................................. 551
Tabela 106 - Médias relativas à identificação nacional e racial em função do sexo
do participante ............................................................................................ 552
Tabela 107 - Médias das amizades intergrupais em função do sexo dos
participantes................................................................................................ 553
Tabela 108 - Nível de incomodidade com opiniões diferentes em função do sexo
dos participantes ......................................................................................... 554
Racismo e Etnicidade em Portugal
20
Tabela 109 - Correlações entre a percepção da variabilidade do exogrupo e as
restantes variáveis....................................................................................... 556
Tabela 110 - Preditores da variabilidade percebida do exogrupo (total da amostra) ... 557
Tabela 111 - Preditores da variabilidade percebida do exogrupo (excluindo grupo-
alvo ‘negros’).............................................................................................. 558
Tabela 112 - Preditores da variabilidade percebida do exogrupo (grupo-alvo
‘angolanos’). ............................................................................................... 559
Tabela 113 - Preditores da variabilidade percebida do exogrupo (síntese) .................. 559
Racismo e Etnicidade em Portugal
21
ÍNDICE DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização nacional) em
função do local de recolha de dados ............................................................274
Gráfico 2 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização racial) em
função do local de recolha de dados ........................................................... 274
Gráfico 3 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização nacional) em
função do sexo dos participantes ................................................................ 275
Gráfico 4 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização racial) em
função do sexo dos participantes ................................................................ 276
Gráfico 5 – Estatuto numérico percebido dos grupos-alvo (categorização
nacional) em função do sexo do participante ............................................. 281
Gráfico 6 – Estatuto numérico percebido dos grupos-alvo (categorização racial)
em função do sexo do participante ............................................................. 282
Gráfico 7 - Percepção da semelhança com o exogrupo em função do local de
recolha de dados ......................................................................................... 531
Gráfico 8 - Percepção da semelhança com o exogrupo em função do sexo dos
participantes................................................................................................ 532
Gráfico 9 - Negação de emoções positivas em função do grupo-alvo e do local de
recolha de dados ......................................................................................... 534
Gráfico 10 - Negação de emoções positivas em função do grupo-alvo e do sexo
dos participantes ......................................................................................... 534
Gráfico 11 - Defesa dos valores tradicionais em função do grupo-alvo e do sexo
dos participantes ......................................................................................... 537
Gráfico 12 - Ameaça e rejeição em função do grupo-alvo e do local de recolha de
dados........................................................................................................... 538
Gráfico 13 - Rejeição de intimidade em função do grupo-alvo e do local de
recolha de dados ......................................................................................... 540
Gráfico 14 - Racismo subtil e racismo flagrante em função do sexo dos
participantes................................................................................................ 542
Gráfico 15 - Racismo subtil e racismo flagrante em função do local de recolha de
dados........................................................................................................... 542
Racismo e Etnicidade em Portugal
22
Gráfico 16 - Número de pessoas conhecidas pelo nome em função do grupo-alvo
e do local de recolha de dados .................................................................... 548
Gráfico 17 - Número de pessoas conhecidas pelo nome em função do grupo-alvo
e do sexo dos participantes ......................................................................... 548
Racismo e Etnicidade em Portugal
23
RESUMO
Nesta investigação empírica analisámos os processos cognitivos subjacentes à
discriminação social. No plano teórico, foi enfatizada a insuficiência dos modelos
puramente cognitivos na explicação dos enviesamentos que ocorrem na percepção de
grupos sociais e salientada a necessidade de ter em consideração o contexto histórico e
social. Demos particular relevância ao papel do estatuto social relativo dos grupos e às
suas consequências nas estratégias identitárias adoptadas pelos membros desses grupos.
No plano metodológico, confrontámos diversos tipos de técnicas de recolha e de
tratamento de dados. Foi precisamente o confronto das perspectivas dos diferentes
grupos e a comparação dos resultados obtidos através das diversas metodologias que
nos permitiu questionar a ‘universalidade’ de determinados enviesamentos cognitivos.
Nos estudos exploratórios averiguámos quais os grupos raciais ou étnicos mais
relevantes na sociedade portuguesa e de que forma estes são percepcionados, o que nos
permitiu seleccionar um grupo minoritário de origem africana para os estudos seguintes:
os angolanos. Os estudos sobre estereótipos demonstraram que a diferenciação entre os
portugueses e os angolanos se opera essencialmente ao nível das dimensões subjacentes
aos conteúdos associados a cada grupo e do seu significado tendo como referente a
imagem ‘universal’ de pessoa adulta.
Os estudos experimentais indicaram que os membros de ambos os grupos
estruturam a informação a partir da pertença racial ou étnica das pessoas-estímulo.
Globalmente, as pessoas-estímulo do grupo dominado foram mais homogeneizadas do
que as pessoas-estímulo do grupo dominante, independentemente do grupo de pertença
dos observadores. O estudo correlacional demonstrou que os portugueses não têm uma
percepção diferenciada dos vários grupos nacionais africanos. O nível de discriminação
foi mais alto relativamente a cada um dos grupos nacionais africanos do que
relativamente aos ‘negros’ em geral e foi mais baixo nas medidas ‘directas’ do que nas
medidas ‘indirectas’.
Globalmente, os resultados dos diversos estudos demonstram que o racismo
sofreu uma metamorfose nas suas formas de expressão. O racismo actual manifesta-se
essencialmente pela negação do reconhecimento da singularidade do outro, ou seja, pelo
tratamento dos membros das minorias não como ‘indivíduos’ mas simplesmente como
‘representantes’ de uma categoria homogénea. Este processo manifesta-se num
tratamento mais automático da informação relativamente a estes grupos, isto é, mais
baseado nos estereótipos sociais. Os membros das minorias tornam-se ‘invisíveis’
enquanto pessoas, mas extremamente ‘visíveis’ enquanto grupo.
Racismo e Etnicidade em Portugal
24
ABSTRACT
The present research focuses on cognitive processes underlying social
discrimination. At the theoretical level, the thesis emphasizes the insufficiency of purely
cognitive models for explaining the biases involved in the perception of social groups
and highlights the need to account for historical and social contexts. The role of the
groups’ relative social status and their impact on the identity strategies chosen by the
groups’ members were the object of special attention. At the methodological level,
various types of techniques for data gathering and data analysis were confronted. The
comparison of, on the one hand, the perspectives of different groups and, on the other
hand, the results achieved by different methodologies raised questions about the
‘universal’ nature of certain cognitive biases.
In exploratory studies we have identified the most relevant racial or ethnic groups
in the Portuguese society and the ways in which such groups are perceived. This led to
the selection of a minority group of African origin – the Angolans – for the subsequent
studies. Our studies on stereotypes showed that differentiation between Portuguese and
Angolans operates essentially at the level of underlying dimensions of the contents
associated to each group and their meaning, having as a referent the ‘universal’ image
of the adult person.
Experimental studies suggested that the members of both groups structured
information on the basis of the racial or ethnic membership of the target-persons. In
general, the target-persons of the dominated group were more homogenized that the
target-persons of the dominant group, apart from the observers’ own group. A
correlational study demonstrated that the Portuguese do not have a differential
perception of the various national African groups. The level of discrimination was
higher regarding each of the national African groups than regarding ‘blacks’ in general.
Such level was lower in ‘direct’ measures than in ‘indirect’ measures.
Taken globally, the results of the various studies demonstrate that racism
underwent a metamorphosis in its forms of expression. Present-day racism essentially
involves refusing to recognize the singularity of the ‘Other’. In other words, racism is
expressed in the treatment of members of minorities as ‘representatives’ of a
homogeneous category rather than as ‘individuals’. This is reflected on a more
automatic processing of information relative to those groups, i.e., more stereotype-
based. Members of minorities become ‘invisible’ as persons, but extremely ‘visible’ as
a group.
INTRODUÇÃO
GERAL
Racismo e Etnicidade em Portugal
26
Este trabalho insere-se num percurso académico e científico que se iniciou com a
dissertação de mestrado, intitulada Assimetrias na percepção dos outros: para uma
abordagem psicossociológica do processamento da informação sobre grupos sociais.
Numa linha de continuidade com a referida dissertação, analisamos o processamento de
informação sobre grupos sociais. No trabalho anterior analisámos uma problemática
específica - a percepção da variabilidade grupal. Na presente dissertação essa mesma
problemática é enquadrada no âmbito mais geral dos fenómenos de discriminação
social, racialização e etnicização. Neste sentido, analisamos o processo de
homogeneização das minorias não só através do processamento da informação, mas
também ao nível das crenças, das atitudes e dos estereótipos.
A escolha deste tema deve-se, por um lado, à sua pertinência no âmbito dos
debates teóricos actuais em psicologia social e, por outro, à relevância social desta
problemática. Este trabalho insere-se no quadro das mudanças recentes que têm
ocorrido na sociedade portuguesa. Tradicionalmente considerado um país de
emigração, Portugal tornou-se recentemente também um país de imigração (Machado,
1999), o que contribuiu para uma maior heterogeneidade da população portuguesa. A
questão da imigração tem vindo a ganhar grande visibilidade pública, ocupando um
lugar de destaque na agenda dos meios de comunicação social. Nos anos noventa
assistiu-se a um despertar das elites políticas portuguesas para a problemática do
racismo e da etnicidade (e.g., Bacelar de Vasconcelos, 1998; Leitão, 1998) e também a
uma explosão de estudos sobre estas questões no seio das ciências sociais (e.g.,
Albuquerque, 2002; Contador, 1998; Khan, 1998; Machado, 2000; Miranda, 2001;
Vala, 1999). Assim, este trabalho insere-se claramente num ciclo histórico que
conduziu, em Portugal, à grande relevância da problemática da discriminação social na
opinião pública, no meio político e no meio científico.
Diversos autores consideram o racismo uma das questões mais delicadas e
controversas da agenda contemporânea (Fernandes, 1998; Jorge, 1998; Machado, 2000;
Pina-Cabral, 1998; Silva, 2000). A compreensão dos fenómenos de discriminação
social em larga escala, e dos processos identitários e comunicativos que lhe estão
subjacentes, exige uma abordagem interdisciplinar (Alves, 1999; Chow, Wilkinson e
Introdução geral
27
Zinn, 1996; Donald e Rattansi, 1992/1997; Essed, 1991; Fenton, 1999; Martins, 1996,
2002; Sampson, 1999). Neste trabalho, sem negligenciar os contributos de outras
disciplinas como a Antropologia, a História e a Sociologia, pretendemos evidenciar o
contributo da Psicologia Social para a compreensão destes fenómenos. Damos especial
relevo aos processos cognitivos subjacentes à discriminação social (Allport, 1954/1979;
Brown, 1995; Tajfel, 1982) e analisamos de que forma esses processos cognitivos são
influenciados pelas ideologias dominantes (Deschamps, 1982a; Doise, 1976/1984;
Lorenzi-Cioldi, 1988), ideologias essas que definem o lugar e o papel que os membros
de diferentes grupos ocupam na sociedade e a margem de liberdade desses grupos na
negociação das identidades (Amâncio, 1994; Bourdieu, 1979; De Rudder, Poiret e
Vourc’h, 2000; Guillaumin, 1972; Worchel, Morales, Paéz e Deschamps, 1998).
No plano teórico, o nosso trabalho parte das contribuições de duas grandes áreas
da psicologia social: a ‘cognição social’ e as ‘relações intergrupais’. A primeira das
perspectivas centra-se, sobretudo, no processo de categorização social e nos seus efeitos
na selecção, tratamento e recuperação da informação social, enquanto que a segunda,
não subestimando o papel da categorização social enquanto processo organizador da
realidade, tem em conta o contexto e a natureza das relações intergrupais. Como refere
Brewer (1994), estas duas grandes correntes na psicologia social têm-se desenvolvido
separadamente como ‘duas solidões’, com pouco em comum tanto a nível teórico como
a nível empírico. Nos últimos anos, alguns autores têm salientado a ‘urgência’ da
conciliação entre as duas correntes (e.g., Brewer, 1994; Bourhis e Leyens, 1994) com
vista a uma análise integrada das percepções e das relações intergrupais.
A conciliação destas duas perspectivas apresenta o interessante desafio da
articulação de níveis de análise (Doise, 1982, 1984) no estudo dos fenómenos de
discriminação social em larga escala. Doise distingue quatro níveis de análise nos
trabalhos dos psicólogos sociais. No nível intra-individual estão incluídos os modelos
que descrevem o modo como os indivíduos organizam a sua percepção, avaliação e
comportamento em relação ao meio social em que se inserem. A interacção entre o
indivíduo e ambiente social é negligenciada nestes modelos - são os mecanismos que,
ao nível do indivíduo, lhe permitem organizar as suas experiências que constituem o
seu objecto de análise. No nível inter-individual ou situacional encontram-se os
modelos que descrevem o modo como os indivíduos interagem numa dada situação,
não tomando em consideração as diferentes posições que estes possam ocupar fora
Racismo e Etnicidade em Portugal
28
dessa situação, isto é, as posições dos indivíduos são consideradas como intermutáveis.
O nível posicional integra os modelos que recorrem explicitamente às diferentes
posições ou estatutos sociais que os indivíduos ocupam previamente a qualquer
interacção para explicar as diferentes modalidades de interacção. Finalmente, o nível
ideológico integra os modelos que descrevem o modo como as representações e os
comportamentos dos indivíduos, numa dada situação, são modelados pelos sistemas de
valores, crenças e ideologias veiculados pela sociedade.
No que respeita ao estudo do processamento da informação sobre os grupos
sociais, a pesquisa desenvolvida no âmbito da perspectiva socio-cognitiva (e.g., Judd e
Park, 1988; Linville, Salovey e Fischer, 1986) tem-se focalizado preferencialmente nos
níveis de análise intra-individual (os processos cognitivos) e situacional (a consideração
das posições relativas observador/observado em termos de endogrupo/exogrupo, mas
em que as pertenças grupais são consideradas como intermutáveis). Em contrapartida, a
perspectiva psicossociológica (e.g., Deschamps, 1982a; Doise, 1976/1984; Lorenzi-
Cioldi, 1988) toma em consideração a influência do estatuto relativo dos grupos em
presença, ou seja, faz intervir o nível ideológico na ancoragem da definição das
posições relativas dos grupos em sistemas simbólicos.
Um dos principais objectivos da investigação empírica que efectuámos foi,
precisamente, uma articulação entre níveis de análise no estudo das relações
intergrupais, na tentativa de alcançar uma compreensão mais completa desta
problemática, uma vez que centrámos o nosso estudo no processamento da informação
relativa a membros de grupos cujas posições relativas não são intermutáveis e
relativamente aos quais existem ideologias largamente difundidas.
A pesquisa empírica foi efectuada junto de uma população jovem. No conjunto dos
estudos participaram 1871 estudantes do ensino superior público de várias regiões do país,
tendo a recolha de dados decorrido de Outubro de 1997 a Fevereiro de 2001. O objectivo
que atravessa os vários estudos efectuados é o aprofundar o conhecimento dos processos
cognitivos subjacentes à discriminação social, baseada na cor da pele, sem aspirar à
generalização dos resultados à população portuguesa em geral.
Nesta investigação participaram estudantes portugueses e estudantes angolanos
residentes em Portugal, o que nos permitiu averiguar a perspectiva dos membros de
grupos que ocupam posições assimétricas na estrutura da sociedade portuguesa: o grupo
maioritário e um grupo minoritário. Este aspecto difere da maior parte da pesquisa em
psicologia social, que tem sido conduzida sem ter em consideração as posições relativas
Introdução geral
29
dos grupos, para além de ter sistematicamente privilegiado a perspectiva do grupo
dominante, isto é, do agente da discriminação, ignorando a perspectiva do alvo da
discriminação, como tem sido recentemente salientado por alguns autores (Celious e
Oyserman, 2001; Fiske e Leyens, 1997; Sidanius e Pratto, 1999; Swim e Stangor, 1998).
A maior parte da investigação sobre esta temática tem sido efectuada utilizando
medidas ‘directas’, isto é, medidas com grande validade facial em que os participantes
facilmente se podem aperceber dos objectivos da pesquisa e controlar as suas respostas
no sentido do que é ‘socialmente correcto’. Pareceu-nos, no entanto, que no estudo da
discriminação racial ou étnica, em que as questões de ordem normativa têm um peso
significativo se tornava particularmente relevante a utilização de medidas ‘indirectas’
ou ‘não-obstrusivas’, de modo a ter acesso aos processos mais automáticos de
processamento de informação sobre os grupos. Tentamos assim contribuir para um
conhecimento mais aprofundado desta problemática através da análise conjugada dos
dois tipos de medidas que, na maior parte dos casos, são estudadas separadamente.
Este trabalho é constituído por duas partes. Na primeira procede-se à
contextualização da problemática desta investigação e ao enquadramento teórico e
metodológico. Na segunda parte apresentamos os objectivos, as hipóteses, o método, os
resultados e a respectiva discussão dos diversos estudos empíricos realizados. Cada
uma das partes é constituída por três capítulos que passamos a apresentar.
No capítulo 1 – Racismo, racialização e etnicização das minorias – é feito o
enquadramento da problemática da presente investigação. Na primeira das quatro
secções que compõem este capítulo são lançadas diversas questões sobre a forma como
se opera a diferenciação entre nós e os outros e sobre as consequências desta
diferenciação. É também nesta secção que se procede a uma primeira delimitação de
diversos conceitos relativos a diferentes formas de discriminação social: etnocentrismo,
racismo, nacionalismo e xenofobia. Na segunda secção discute-se a problemática do
racismo, racialização e etnicização das minorias no contexto histórico, sócio-político e
científico internacional. Para esta breve contextualização considera-se a evolução da
noção de ‘raça’ em dois momentos históricos distintos: um primeiro período que vai
desde a génese do ‘racismo científico’ no século XVIII até meados dos século XX; e
um segundo período que se inicia após a II Guerra Mundial e que marca uma viragem
no posicionamento político e científico face à ‘raça’ e ao ‘racismo’. Na terceira secção
Racismo e Etnicidade em Portugal
30
essa mesma problemática é contextualizada no Portugal pré e pós-25 de Abril de 1974.
No que respeita ao primeiro período analisa-se a relação entre o colonialismo, a
identidade nacional e a ideologia racialista. No que se refere ao segundo período
procede-se a uma breve caracterização da evolução do fenómeno imigratório desde a
descolonização até ao final do século XX e faz-se uma revisão das questões raciais e
étnicas no meio social, político e científico na década de noventa. Na última secção são
discutidas as ambiguidades conceptuais que têm caracterizado esta temática e são
propostas algumas definições.
No capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação
simbólica – efectuamos uma revisão de literatura sobre uma área de estudos no seio da
psicologia social que é designada por ‘relações intergrupais’, apresentando os modelos
teóricos e as investigações empíricas que consideramos mais relevantes para a
fundamentação teórica do nosso trabalho. Neste capítulo, cuja análise é centrada nos
processos de diferenciação intra e intergrupais e na forma como estes processos são
afectados pela posição relativa dos grupos, são discutidos alguns dos conceitos
fundamentais do presente trabalho, tais como: categorização social, identidade social,
comparação social e estatuto social. Este segundo capítulo é constituído por três
secções. Na primeira, fazemos referência a algumas das abordagens clássicas sobre
relações intergrupais e discriminação social no âmbito da psicologia social. Na segunda
secção apresentamos os modelos da escola de Bristol, dando especial destaque à teoria
da identidade social de Henri Tajfel, uma vez que esta serviu de base a todos os estudos
posteriores nesta área, para além de ser aquela que pela primeira vez articulou os
conceitos fundamentais sobre os quais se alicerça o nosso estudo. Efectuamos ainda
uma apresentação da teoria da auto-categorização de John Turner e discutimos algumas
das limitações dos modelos referidos. Na última secção apresentamos os modelos
desenvolvidos no âmbito da escola de Genebra e seus desenvolvimentos recentes,
salientando o esforço de integração de várias contribuições anteriores e articulação de
níveis de análise empreendido pelos autores, nomeadamente, Willem Doise, Jean-
Claude Deschamps, Fabio Lorenzi-Cioldi e Lígia Amâncio, o que permitiu ultrapassar
algumas das limitações apontadas aos modelos anteriores. Foi no âmbito deste quadro
teórico que se procedeu à fundamentação das hipóteses gerais desta investigação.
Introdução geral
31
No capítulo 3 - Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da
variabilidade grupal - debruçamo-nos sobre a área da ‘cognição social’, isto é, sobre a
forma como as pessoas processam a informação social, mais precisamente a informação
sobre grupos sociais, dando especial relevo aos estudos que mais contribuíram para a
fundamentação teórica e metodológica da nossa investigação. Este capítulo é
constituído por quatro secções. Na primeira apresentamos de forma concisa esta área de
estudo e referimos alguns dos debates teóricos sobre a percepção de pessoas e de
grupos, o que nos conduzirá a uma curta explicitação das semelhanças e das diferenças
entre a perspectiva da cognição social e a das representações sociais. A segunda secção
é dedicada ao estudo dos estereótipos sociais, desde a obra pioneira de Walter
Lippmann até aos dias de hoje. Ao longo da apresentação faremos referência ao
conteúdo dos estereótipos, à conotação avaliativa desse conteúdo, e ao seu significado
tendo como referência um quadro de valores ‘universal’. Na terceira secção
apresentamos a pesquisa sobre os efeitos da categorização e sobre a percepção da
variabilidade grupal e fazemos referência aos modelos cognitivos da representação
categorial. Finalmente, discutimos a insuficiência dos modelos cognitivos e salientamos
o carácter assimétrico dos enviesamentos observados na percepção dos grupos em
função do seu estatuto relativo, apresentando brevemente alguns dos primeiros estudos
que questionaram o carácter simétrico e universal do efeito de homogeneidade do
exogrupo. Na última secção são apresentadas as metodologias que têm sido utilizadas
no estudo dos estereótipos e da percepção da variabilidade grupal e é discutida a
necessidade da utilização de diferentes tipos de medidas.
No capítulo 4 – Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre
grupos étnicos – são apresentados e discutidos os resultados referentes a cinco estudos
exploratórios. O primeiro estudo teve como objectivos específicos: investigar a noção de
‘grupo étnico’ dos jovens portugueses e em que medida esta difere ou não da noção de
‘raça’; averiguar quais os ‘grupos étnicos’ mais significativos para os jovens portugueses
e; verificar em que medida os jovens portugueses se consideram eles próprios membros de
um ‘grupo étnico’. Os grupos mais mencionados pelos participantes neste estudo foram
seleccionados para o estudo seguinte.
O segundo estudo exploratório teve como objectivo averiguar o estatuto social
percebido e o estatuto numérico percebido de catorze ‘grupos étnicos’ na sociedade
portuguesa. Desses catorze grupos, onze foram categorizados em função da origem
Racismo e Etnicidade em Portugal
32
nacional ou geográfica (angolanos, brasileiros, cabo-verdianos, ciganos, guineenses,
indianos, macaenses, moçambicanos, portugueses, são-tomenses, e timorenses) e três
foram categorizados em função da cor da pele (brancos, negros e mestiços). Este estudo
foi realizado em diferentes zonas do país (Braga, Bragança, Porto, Lisboa, Évora e
Faro), a fim de identificar regularidades nos resultados. Outro dos objectivos deste
estudo era seleccionar um grupo minoritário na sociedade portuguesa que também se
distinguisse por características físicas. Os resultados permitiram verificar que, há
excepção dos ciganos que são colocados numa posição inferior, os grupos oriundos das
ex-colónias africanas constituem os grupos de menor estatuto social percebido na
sociedade portuguesa. Destes cinco grupos seleccionámos os angolanos visto que,
sendo o segundo grupo africano em termos numéricos em Portugal, são um grupo de
imigração mais recente e um dos menos estudados.
Uma vez seleccionados os dois grupos-alvo para os estudos experimentais – os
portugueses (grupo maioritário) e os angolanos (grupo minoritário) – foram realizados
três estudos exploratórios, com participantes de ambos os grupos, com o objectivo de
analisar os estereótipos que os estudantes portugueses e os estudantes angolanos a
residir em Portugal têm do seu próprio grupo (auto-estereótipo) e do grupo dos outros
(hetero-estereótipo). Em primeiro lugar analisámos os estereótipos dos ‘angolanos’ e
dos ‘portugueses’, salientando as dimensões comuns e as dimensões diferenciadoras e o
nível de diversidade dos conteúdos associados a cada grupo (Estudo 3a). Em segundo
lugar averiguámos a avaliação dos conteúdos descritivos associados a cada grupo a
partir da simples opinião pessoal de cada participante (Estudo 3b). E, finalmente,
analisámos o significado simbólico desses conteúdos, tendo como referente a
representação ‘universal’ de pessoa adulta (Estudo 3c).
Com base nos resultados destes estudos foram seleccionados os traços -
classificados em função do seu carácter estereotípico e em função da sua valência
avaliativa – que foram utilizados para construir os materiais-estímulo dos dois estudos
experimentais.
No capítulo 5 – Estudos experimentais: discriminação no tratamento da
informação – são apresentados e discutidos os resultados de dois estudos
experimentais, ambos realizados com estudantes portugueses e angolanos a residir em
Portugal. O principal objectivo destes estudos experimentais foi a análise do papel que
o estatuto relativo dos grupos tem na percepção da homogeneidade grupal. No Estudo 4
Introdução geral
33
as pessoas-estímulo eram categorizadas segundo a nacionalidade (angolanos vs.
portugueses) enquanto que no Estudo 5 as pessoas-estímulo eram categorizadas em
função da cor da pele (brancos vs. negros) ou estavam disponíveis ambas as
categorizações (nacional e racial). Nestas experiências analisámos os efeitos de
categorização, os efeitos de homogeneidade, os efeitos de favoritismo pelo grupo de
pertença, a relação entre estes fenómenos e em que medida eles são mediados pelo
auto-conceito, pelos níveis de identificação com o grupo de pertença e o grupo dos
outros e pelo nível de contacto entre os grupos. Prosseguimos ainda com objectivos de
ordem metodológica, relativos à comparação de diferentes tipos de medidas, umas mais
explícitas ou ‘directas’ e outras mais implícitas ou ‘indirectas’. No Estudo 5 analisámos
ainda a relação entre as atitudes ou orientações racistas e os processos perceptivos.
No capítulo 6 - Estudo correlacional: Racismo e variabilidade grupal percebida -
apresentamos um estudo realizado com o objectivo de comparar as percepções que os
portugueses têm dos vários grupos nacionais de origem africana - angolanos, cabo-
verdianos, guineenses, moçambicanos, são-tomenses – e em relação aos imigrantes
‘negros’ no geral. A utilização destes seis grupos-alvo permitiu-nos, por um lado, a
comparação das respostas dos participantes em função dos diferentes grupos nacionais
africanos e, por outro, a comparação das respostas dos participantes em função do tipo
de categorização: nacional ou racial. O segundo objectivo deste estudo foi averiguar
quais as variáveis preditoras da variabilidade grupal percebida. Nesse sentido
construímos um questionário com várias medidas, a maior parte já presentes no estudo
anterior: o racismo subtil e o racismo flagrante, a tolerância à diferença, o contacto
entre os grupos e a identificação com o endogrupo. As seis versões deste questionário
(cada uma correspondendo a um grupo-alvo) foram aplicadas a estudantes portugueses
nas mesmas seis cidades onde foi realizado o Estudo 2.
Por último, apresentamos as conclusões gerais desta investigação e fazemos
referência a algumas das linhas de pesquisa que o nosso trabalho permitirá explorar no
futuro.
Tese Rc Final
PARTE I:
PROBLEMÁTICA E
ENQUADRAMENTO
TEÓRICO
Tese Rc Final
CAPÍTULO 1 -
RACISMO, RACIALIZAÇÃO E ETNICIZAÇÃO
DAS MINORIAS
Racismo e Etnicidade em Portugal
38
1.1 Introdução
Este capítulo tem por objectivo contextualizar o nosso objecto de estudo. Assim
iremos referir brevemente o velho debate sobre a influência da natureza e da cultura na
diferenciação entre grupos, para além de abordar as especificidades históricas e
sociológicas da sociedade portuguesa que contribuem para a actualidade da questão do
racismo. Embora esta questão não seja centrada na psicologia social, os contributos
desta disciplina para o referido debate e para a problematização do racismo não
deixarão de ser assinalados. Os contributos específicos da disciplina para o
enquadramento teórico e metodológico do trabalho de investigação aqui apresentado
serão aprofundados nos capítulos seguintes.
Neste capítulo vamos abordar um primeiro conjunto de questões: Como se
estabelece a diferenciação entre grupos humanos? Quais as características que estão na
base dessa diferenciação? Quais são as consequências dessa diferenciação? Quem
define as fronteiras entre os grupos? Com que objectivos? Quão definitivas são essas
fronteiras? Quão permeáveis são as essas fronteiras?
Nos capítulos subsequentes vamos aprofundar estas questões e analisar
detalhadamente as assimetrias envolvidas nestes processos: Os processos de
diferenciação são recíprocos? Existe consenso entre os grupos quanto às respectivas
definições? Quais são as implicações das fronteiras para uns e para outros? Essas
fronteiras são igualmente permeáveis para uns e para outros?
Assim, este primeiro capítulo da Parte I está subdividido em quatro secções. Na
primeira secção são lançadas diversas questões sobre a forma como se opera a
diferenciação entre nós e os outros e sobre as consequências desta diferenciação para
uns e para outros, sendo efectuada uma primeira delimitação de diversos conceitos
relativos a diferentes formas de discriminação social: etnocentrismo, racismo,
nacionalismo, e xenofobia.
A segunda secção é dedicada à problemática do racismo, racialização e
etnicização das minorias no contexto histórico, sócio-político e científico internacional.
Nesta breve contextualização teremos em conta a evolução da noção de ‘raça’ em dois
momentos históricos distintos: um primeiro período que vai desde a génese do ‘racismo
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
39
científico’ no século XVIII até meados dos século XX; e um segundo período que se
inicia após a II Guerra Mundial, que marca uma viragem no posicionamento político e
científico face à ‘raça’ e ao ‘racismo’.
Na secção seguinte procede-se à contextualização dessa mesma problemática em
Portugal. Ao efectuarmos esta separação não partimos do pressuposto de que o racismo
se manifesta em Portugal de forma distinta dos outros países europeus. De facto, os
recentes estudos sobre racismo efectuados em Portugal demonstram resultados
idênticos, tanto em natureza como em grau, aos obtidos noutros países da União
Europeia. Tal separação deve-se à necessidade de analisar o contexto português no que
ele tem de específico, já que a nossa recolha de dados empíricos foi efectuada em
Portugal.
Numa análise que não se pretende exaustiva mas apenas ilustrativa, traçamos um
breve resumo da ‘ideologia racista’ que se desenvolveu em Portugal, sobretudo a partir
do início do século XIX até ao 25 de Abril de 1974, com especial destaque ao período
do Estado Novo por ser considerado por diversos autores o período mais marcante da
ideologia racista em Portugal (Alexandre, 1999; Castelo, 1998; Rosas, 1994). Seguimos
a evolução das concepções em torno deste tema no meio político e científico
portugueses, socorrendo-nos neste percurso de trabalhos efectuados por historiadores,
sociólogos e antropólogos. Pontualmente, fazemos referência a outras fontes,
nomeadamente a literatura africana.
Na última secção, procedemos à discussão das ambiguidades conceptuais que têm
caracterizado esta temática e propomos algumas definições. Terminamos o capítulo com
a delimitação do objecto de estudo da nossa pesquisa empírica, bem como uma primeira
enunciação dos seus objectivos gerais.
Racismo e Etnicidade em Portugal
40
1.2 Racismo e etnocentrismo: a actualidade de uma velha questão
“Men are similar to one another by nature. They diverge gradually as a result
of different customs.”
Confúcio (551-479 a.c.)
“De acordo com as leis da natureza, há homens feitos para a liberdade e
outros para a escravidão, aos quais por justiça e por interesse, é conveniente a
sujeição.”
Aristóteles (384-322 a.c.)
A problemática da diferença é uma constante na história da humanidade. Em
todas as sociedades humanas se estabelece a diferenciação entre nós e os outros,
diferenciação essa inerente à própria definição de uns e outros. No entanto, a forma
como se opera essa diferenciação e as suas consequências variam de sociedade em
sociedade, e têm conhecido consideráveis mutações em diferentes momentos históricos.
Confúcio explica as desigualdades humanas a partir da cultura, Aristóteles situa-
as no âmbito da natureza. A discussão sobre a influência relativa da cultura e da
natureza no ser humano constituiu uma das mais acesas problemáticas científicas do
século XX: paleontólogos, biólogos, neurologistas, psicólogos, antropólogos,
sociólogos, historiadores, filósofos, políticos, discutiram amplamente esta questão.
A partir do século XVIII até meados do século XX as desigualdades humanas
foram essencialmente explicadas a partir da natureza, sendo essa natureza considerada
imutável e facilmente identificável a partir de características fenotípicas (cor da pele,
forma dos lábios, dos olhos ou do nariz, etc.).
O genocídio de milhões de judeus e ciganos durante a II Guerra Mundial levou
cientistas e políticos a problematizar a noção de ‘raça’ e a cultura ganhou terreno. Os
grupos humanos que até aí eram categorizados racialmente passaram a designar-se por
‘grupos étnicos’ para enfatizar as características culturais e não as hereditárias. Mas,
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
41
como veremos, a um processo de racialização seguiu-se um processo de etnicização: a
cultura passou também ela a ser percebida como algo estático e absoluto.
A distinção entre nós e os outros implica o reconhecimento de uma diferença e
essa diferença nunca é neutra: pode provocar repulsa, receio, inquietação ou atracção
(Memmi, 1993; Taguieff, 1997; Wieviorka, 1992/1995). A diferenciação baseia-se em
características reais ou imaginárias, e as características atribuídas a determinado grupo
são geralmente generalizadas a todos os seus membros e consideradas imutáveis. No
entanto, essas mesmas características são constantemente reinventadas e reinterpretadas
em função do momento histórico e das normas sociais (Memmi, 1993; Machado, 2000;
Taguieff, 1997).
Através de um processo de ‘alquimia moral’ a sociedade “transforma facilmente a
virtude em vício e o vício em virtude, conforme as necessidades de ocasião” (Merton,
1949/1968, p.522). Cada sociedade cria os seus ‘bodes expiatórios’ (Dollard, Doob,
Miller, Mower, e Sears, 1939), agarrando-se ao que for preciso para justificar a sua
exclusão social. No ensaio Réflexions sur la question juive, Sartre discute esta
problemática salientando que “si le Juif n’existait pas, l’antisémite l’inventerait”
(1954/2001, p.14).
Trata-se de um processo de diferenciação simbólica que se traduz na
‘desumanização’ do outro, já que os membros desse grupo não são percebidos enquanto
pessoas, com a sua individualidade e a sua “singularidade subjectiva”, mas enquanto
representantes indiferenciados do grupo (Amâncio, 1994; Lorenzi-Cioldi, 1988; Tajfel,
1981/1983). Neste sentido os outros tornam-se um outro indiferenciado, um verdadeiro
alter. A exclusão simbólica dos outros retira-lhes o estatuto de sujeito e impõe-lhes um
destino comum (Amâncio, 1998; Guillaumin, 1972; Lewin, 1948/1997).
Como a diferenciação nós/outros não é neutra, a ela está associada o conceito de
discriminação. Em psicologia social, o conceito de discriminação é geralmente utilizado
apenas para referir comportamentos ou orientações comportamentais. Neste trabalho,
faremos uma utilização menos restritiva do conceito, englobando aspectos
comportamentais, mas também cognitivos e emocionais. O termo discriminação é
utilizado para referir percepções, avaliações ou comportamentos que resultam numa
desvantagem para o grupo-alvo, isto é, que prejudicam o outro. Neste sentido, quando
usamos o termo discriminação estamos a referir-nos à discriminação negativa.
Racismo e Etnicidade em Portugal
42
No entanto, o termo discriminação pode assumir também uma conotação positiva,
quando é utilizado para designar acções que resultam numa vantagem para o grupo-
alvo: discriminação positiva ou acção afirmativa. Por exemplo, nos Estados Unidos da
América (EUA) desde 1964 tem vigorado uma política que estimula as instituições
sociais e as organizações empregadoras a recrutar membros de grupos minoritários que
tenham sofrido discriminação no passado, isto é, trata-se de uma medida política
destinada a contrabalançar as desigualdades produzidas socialmente (Kerstein, 1996).
Apesar das políticas de discriminação positiva terem como objectivo proporcionar
igualdade de oportunidades, alguns autores consideram que estas são causadoras de
desigualdades ainda mais profundas na sociedade, uma vez que assentam num
tratamento desigual que, em última instância, é prejudicial para as próprias minorias
(Sowell, 1990; citado por Miranda, 2001).
Associado ao conceito de discriminação surgem outros, em função do grupo-alvo
e do tipo de discriminação: etnocentrismo, racismo, nacionalismo, xenofobia, entre
outros. Neste trabalho vamos focalizar-nos no racismo e etnocentrismo, e deixaremos
por desenvolver as questões relacionadas com o nacionalismo e xenofobia, embora
estejam intimamente relacionadas. Não podemos, no entanto, deixar de referir
brevemente estes conceitos.
No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, o nacionalismo é definido
como a “preferência por tudo o que é relativo à nação, por tudo o que é nacional. [...]
Doutrina baseada no sentimento de exaltação das características consideradas essenciais
da nação e que subordina a política interna do país ao desenvolvimento do poderio
nacional” (Academia de Ciências de Lisboa, 2001, p.2561). A questão do nacionalismo
e da identidade nacional está intimamente ligada com a questão racial, trata-se de uma
questão extremamente complexa que não iremos aprofundar no âmbito deste trabalho.
Na perspectiva de Billig (1996), a identidade nacional está intrinsecamente alicerçada
na existência e partilha de um território, território esse que é delimitado por fronteiras.
Billig (1996, p.183) realça a precisão com que as fronteiras são material e
simbolicamente demarcadas, enfatizando os limites da sua extensão.
No dicionário acima referido da Academia de Ciências de Lisboa (2001, p.3792)
define-se xenofobia como a “aversão ou hostilidade manifestada a pessoas ou coisas
estrangeiras”. Essa aversão ou antipatia pode ser traduzível em percepções ou
comportamentos e tem sempre um denominador comum, manifesta-se em relação a
indivíduos de uma nacionalidade diferente da do próprio, isto é, estrangeiros. Mas,
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
43
como veremos, nem sempre é a nacionalidade que determina o facto do outro ser
percebido como ‘estrangeiro’, por isso alguns autores preferem termos mais abrangentes
como a heterofobia, que se refere à hostilidade manifestada em relação a indivíduos que
são percebidos como diferentes. De notar, no entanto, que nalgumas das formas de
racismo contemporâneo o desprezo pelos ‘inferiores’ dá lugar à obsessão do contacto
com eles através do culto exacerbado do ‘exótico’, isto é, os novos discursos do racismo
são menos heterófobos e mais heterófilos (Taguieff, 1987, 1997).
A palavra racismo surge na língua francesa entre as duas Grandes Guerras,
adquirindo maior significado depois do Holocausto. O conceito apresenta uma
diversidade de conotações, sendo definido, num sentido restrito, como uma doutrina,
dogma, ideologia ou conjunto de crenças, ou num sentido mais lato, envolvendo
também o preconceito e os comportamentos discriminatórios. Apesar do carácter
relativamente recente da palavra racismo, o facto é que este constitui um fenómeno
antigo e de carácter largamento difundido, muito anterior à sua conceptualização
(Taguieff, 1997).
Alguns autores argumentam que no mundo clássico e medieval não havia
‘consciência racial’, uma vez que a cor da pele não determinava categorizações
socialmente relevantes, isto é, as diferenças sociais não eram ‘biologizadas’ (Hannaford,
1996; citado por Cunha, 2000, p.202). Para outros, o Tratado de Política de Aristóteles
representa uma das primeiras teorizações racistas, uma vez que o autor procurou
legitimar uma ordem social baseada na escravatura referindo-se à natural inferioridade
dos escravos (e.g., Taguieff, 1997).
De facto, Aristóteles não faz qualquer referência à cor da pele no seu ensaio sobre
a escravidão. Mas segundo alguns autores, terá sido precisamente porque os escravos
não eram fisicamente distintos dos cidadãos que levou o autor a ensinar aos gregos uma
maneira de os ver, isto é, de os diferenciar (Lippmann, 1922/1961, p.97). O seu
comportamento submisso seria assim a prova irrefutável da sua escravidão natural.
Embora o comportamento de obediência fosse o aspecto central da definição do
escravo, Aristóteles não deixou de tecer algumas considerações sobre o corpo, que estão
espelhadas em teorizações racialistas muito posteriores:
Racismo e Etnicidade em Portugal
44
“Não é somente necessário, é também vantajoso que haja comando duma parte e
obediência da outra; e todos os seres, desde o primeiro instante do seu nascimento,
estão marcados pela natureza, uns para mandar, outros para obedecer [...]. O homem
que, por natureza, não pertence a si próprio mas a outro, é, por natureza escravo: é
um objecto de posse e um instrumento para agir separadamente e sob as ordens do
seu patrão [...] Todos aqueles que nada têm de melhor para nos oferecer do que o
uso dos seus corpos e dos seus membros estão condenados pela própria natureza à
escravidão. Para eles é melhor servir do que ficar abandonados a si próprios. Numa
palavra, é naturalmente escravo aquele que não tem alma nem meios para se decidir
[...]. A natureza imprimiu a liberdade e a escravidão nos próprios hábitos corporais.
?Uns com? corpos robustos talhados para transportar fardos [...] e, pelo contrário,
outros mais bem feitos mas mais delicados incapazes de tais tarefas, próprios
somente para a actividade política [...]” (Aristóteles, s/d, p. 12-14).
Isto remete-nos para outra questão: o racismo existe apenas quando são invocadas
características físicas visíveis (cor da pele, formato do nariz, lábios, olhos) ou pode ser
considerado como racista uma discriminação que invoca aspectos culturais? Este é
actualmente um dos mais acesos debates, ao qual voltaremos mais adiante.
Outra das questões em debate é a universalidade do racismo. Diversos
investigadores consideram que os fenómenos racistas são omnipresentes na história da
humanidade e que o ódio racial faria parte constituinte da natureza humana (e.g., Kovel,
1970). Na opinião de Taguieff (1997) esta perspectiva não distingue o racismo do
etnocentrismo e da xenofobia. Para esses investigadores o etnocentrismo, enquanto
fenómeno universal, estaria na origem do racismo, que assumiria manifestações
específicas em determinados momentos históricos. Mas será o etnocentrismo um
fenómeno universal?
O conceito de etnocentrismo foi introduzido pelo sociólogo William Graham
Sumner em 1906 no livro Folkways: A Study of the Sociological Importance of Usages,
Manners, Customs, Mores, and Morals. Apoiado numa vasta documentação etnográfica
das mais diversas proveniências (Papua Nova Guiné, China, Japão, França, Alemanha,
EUA, Brasil, etc.), Sumner define etnocentrismo da seguinte forma:
“a view of things in which one's group is the center of everything, and all others are
scaled and rated with reference to it. Folkways correspond to it to cover both the
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
45
inner and the outer relation. Each group nourishes its own pride and vanity, boasts
itself superior, exalts its own divinities, and look with contempt on outsiders. Each
group thinks its own folkways the only right ones, and if it observes that other
groups have other folkways, these excite its scorn” (1906/1940, p.13).
Sumner argumenta que o etnocentrismo é visível nas tradições populares dos mais
diversos povos e com os mais diversos níveis de desenvolvimento. Na opinião do autor,
essas tradições populares são destinadas a justificar, por um lado, as relações no interior
do grupo (relações intragrupais) e, por outro, as relações com os outros grupos (relações
intergrupais). Cada grupo cultiva o seu orgulho e vaidade próprias, exibe ritualmente a
sua superioridade, exalta os seus próprios deuses e considera com desconfiança os
‘estrangeiros’. Cada grupo pensa que os seus próprios costumes e normas são as
melhores, e vê-se como o único detentor da ‘verdade’ (Sumner, 1906/1940, p.29), o que
faz olhar os outros com desdém e sentir-se superiores.
A interdependência das relações intra e intergrupais está reflectida numa célebre
frase do autor, infelizmente tão visível em conflitos actuais:
“The exigencies of war with outsiders are what make peace inside. [...] Thus war
and peace have reacted on each other and developed each other, one within the
group, the other in the intergroup relation. [...] Loyalty to the group, sacrifice for it,
hatred and contempt for outsiders, brotherhood within, warlikeness without – all
grow together, common products of the same situation” (Sumner, 1906/1940, p.12).
Na acepção de Sumner (1906/1940, p.12) o etnocentrismo é fenómeno universal
(observável em todos os povos humanos) e global (englobando componentes cognitivas,
afectivas, avaliativas ou normativas, e comportamentais) e assenta na distinção
elementar entre o grupo de pertença (we-group ou in-group) e os outros grupos (others-
group ou out-group)1
.
1
Os termos ingroup e outgroup usados na literatura anglo-saxónica foram inicialmente traduzidos por
Lígia Amâncio na versão portuguesa do livro de Henry Tajfel (1981/1983) como ‘grupo de pertença’ e
‘grupo dos outros’. Posteriormente, na década de noventa, adoptaram-se as designações ‘endogrupo’ e
‘exogrupo’, de origem francesa, sendo essas as designações utilizadas no livro de referência Psicologia
Social da Fundação Calouste Gulbenkian, organizado por Jorge Vala e Maria Benedicta Monteiro,
razão pela qual adoptamos tal tradução. Em consonância, utilizaremos o prefixo endo para nos
referirmos a aspectos relativos ao grupo de pertença (favoritismo endogrupal, identificação
endogrupal, etc.) e o prefixo exo para nos referirmos a aspectos relativos ao grupo dos outros.
Racismo e Etnicidade em Portugal
46
O etnocentrismo conduzia cada povo a exagerar, a intensificar os traços
particulares dos seus costumes, que os distinguem dos outros povos. Esta centração
sobre a diferença do endogrupo corresponderia ao mesmo tempo a uma
sobrevalorização das suas qualidades exclusivas. Assim, a auto-referência face ao
endogrupo implicaria necessariamente a desconfiança e a intolerância face aos outros
grupos. Cada grupo se definiria a si mesmo como o único representante da humanidade,
excluindo os outros, a elegeria o ‘nós’ como o ‘verdadeiro Homem’, por oposição ao
‘Outro’ que seria em certo grau ‘desumanizado’ (1906/1940, p.14); ideia que foi
posteriormente desenvolvida por Lévi-Strauss, Tajfel, entre outros.
Na acepção do autor, o etnocentrismo preenche uma função socialmente positiva:
favorece os comportamentos altruístas no interior do grupo. No entanto, trata-se de um
altruísmo limitado, já que os laços de simpatia e de solidariedade não passam as
fronteiras do endogrupo2
. O conflito intergrupal é visto como uma resposta racional
face a objectivos incompatíveis (aspecto que foi mais tarde desenvolvido no âmbito da
perspectiva dos conflitos intergrupais realistas, Cf: Sherif e Sherif, 1953; Levine e
Campbell, 1972).
Diversos autores da psicologia social têm efectuado críticas à metodologia
utilizada por Sumner e têm salientado as inconsistências de alguns dos seus
pressupostos fundamentais, nomeadamente a universalidade do etnocentrismo e a
correlação positiva entre a diferenciação intergrupal e a indiferenciação intragrupal,
aspecto que retomaremos detalhadamente no segundo capítulo (e.g., LeVine e
Campbell, 1972; Brewer, 1979).
Num vasto estudo sobre o etnocentrismo Brewer (1979) demonstra que o
favoritismo pelo grupo de pertença não se manifesta em todas as dimensões, mas apenas
naquelas que são relevantes para o grupo em causa, aspecto que desenvolveremos mais
adiante. Ao referir as diversas inconsistências observadas nos estudos sobre o
etnocentrismo, a autora conclui:
2
Algumas teses no âmbito da sociobiologia vieram a extremar esta conceptualização, considerando que o
etnocentrismo seria uma mera extensão do ‘espírito de família’. Nesta acepção, o etnocentrismo seria
uma preferência pelos ‘parentes genéticos’, no sentido de assegurar o ‘sucesso reprodutivo’ e de
preservar os genes do indivíduo, isto é, seria uma atitude retida por selecção natural (e.g., Dawkins,
1975; Wilson, 1978).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
47
“Perhaps the essence of ethnocentrism is this tendency to expect that the out-group
will share the in-group’s definition of the conflict or distinction between them and
willing to make comparisons in terms that favor the in-group” (1979, p.84).
A expectativa de que o exogrupo ‘partilhe a mesma definição’ da realidade,
definição essa que favorece o endogrupo nas dimensões que são mais valorizadas por
este, constitui o âmago da questão. Embora não tenha desenvolvido esta ideia, Sumner
implicitamente reconheceu os limites do etnocentrismo enquanto fenómeno universal:
“Every emigrant is forced to change his mores. He looses the sustaining help of use
and wont. He has to acquire a new outfit of it” (1906/1940, p.108).
Na acepção do autor, quando um homem passa de uma classe social para outra,
quando imigra, quando há relações de conquista entre povos ou escravatura, verifica-se
uma mudança nos costumes e normas. Um dos grupos estabelece os padrões (grupo
dominante) e os outros submetem-se a esses padrões (grupos ou classes inferiores), isto
é, sempre que dois grupos estabelecem contacto há uma selecção dos costumes e
normas que é destrutiva para alguns deles, o que está bem patente na afirmação
seguinte:
“One of the groups takes precedence and sets the standards. The inferior group or
classes imitate the ways of the dominant group, and eradicate from their children the
traditions of their own ancestors. [...] Thus, whenever two groups are brought into
contact and contagion, there is, by syncretism, a selection of the folkways which are
destructive to some of them” (Sumner, 1906/1940, p.116).
Modificar as suas normas e representações significa aderir às normas e
representações do outro grupo, isto é, interiorizar um sistema de valores não
endocêntrico mas exocêntrico, porque definido pelo exogrupo.
Entramos então no domínio da dominação simbólica: determinados grupos
(dominantes) desenvolveram ideologias que lhes permitiram legitimar o tratamento
‘desumano’ dos outros grupos (dominados). Como veremos, o ‘Homem Branco’ nos
últimos séculos tem efectuado uma acção sistemática para levar outros grupos a
partilhar a sua ‘definição de realidade’, na qual ele representa a ‘universalidade’,
enquanto os outros são remetidos para a ‘especificidade’ de determinado papel
Racismo e Etnicidade em Portugal
48
(Amâncio, 1998; Chombart de Lauwe, 1983-1984; Deschamps, 1982a; Lorenzi-Cioldi,
1988).
Ora, como tem sido demonstrado por inúmeros estudos na área da psicologia
social, esse sistema pode implicar uma visão negativa do seu próprio endogrupo com
efeitos nefastos para a auto-estima da pessoa (Lewin, 1948/1997; Phinney, 1990). As
consequências sobre a auto-estima dependem da percepção da legitimidade da
discriminação. Os membros dos grupos dominados podem interiorizar a sua
inferioridade, tomando como legítima a posição dos grupos dominantes (Jost e Banaji,
1994). Em apoio desta perspectiva, podemos mencionar os estudos realizados nos EUA
que demonstraram que as crianças negras, no sul segregacionista, manifestavam
preferência pelas crianças brancas, rejeitando as negras (Clark e Clark, 1947).
Frequentemente, os próprios alvos do racismo interiorizam a hierarquia que lhes é
transmitida. Ervin Goffman (1959/1989) refere que as pessoas estigmatizadas tentam
reduzir o peso do seu próprio estigma acusando outros de possuírem o mesmo estigma
mas com mais intensidade, num sistema que denominou de ‘estratificação auto-
destrutiva’ (e.g., Pina-Cabral e Lourenço, 1993).
No entanto, quando os membros dos grupos dominados tomam consciência da
arbitrariedade e ilegitimidade da discriminação, reivindicam uma identidade positiva e
não sentem a sua auto-estima ameaçada pela pertença ao grupo (e.g., Khan, 1998),
assunto que desenvolveremos no segundo capítulo. Mas, não deixa de ser paradoxal que
mesmo quando envolvidos em lutas colectivas contra a discriminação (Négritude, Black
Power, etc.), recorrem a auto-designações racializadas que coincidem, frequentemente,
com as usadas nos discursos racistas (Machado, 2000, p.20), dando assim uma
continuidade perversa ao que querem eliminar.
Se o racismo partilha alguns aspectos com o etnocentrismo – a diferenciação face
ao outro, diferenciação essa que é acompanhada por uma inferiorização do outro -,
possui aspectos distintos tanto no grau com que a ‘desumanização’ do outro é operada
cognitivamente como na forma como é mantida e reforçada socialmente.
Na literatura sociológica é relativamente consensual que o racismo envolve três
dimensões distintas: ideologia, preconceito e comportamento discriminatório (Machado,
2000, p.10). Nos próximos capítulos iremos abordar detalhadamente os aspectos
cognitivos do preconceito e as dinâmicas da discriminação entre grupos humanos
marcados por fortes assimetrias de estatuto. Neste capítulo iremos focalizar-nos na
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
49
ideologia racista, enquanto sistema de crenças forjado na ciência com objectivos
políticos claros: legitimar um sistema social com fortes desigualdades sociais que
estabelecia claramente o lugar e o papel que os diferentes grupos humanos deveriam
ocupar na sociedade, grupos esses definidos e reconhecidos a partir de características
físicas que eram supostas traduzir as suas capacidades intelectuais e as suas aptidões.
Ao longo da história, o racismo tem variado muito nos seus alvos (ciganos,
judeus, negros, amarelos, ...), nos seus interesses (exploração de mão-de-obra,
preservação da pureza da raça, preservação da identidade nacional...), nas crenças que o
legitimam (irredutível inferioridade intelectual ou moral, perigosidade,
incompatibilidade de culturas,...) e nos modos de actuação (exterminação, perseguição,
expulsão, segregação, ou exclusão simbólica). É por isso extremamente difícil delimitar
o conceito, sem cair em demasiadas restrições e sem o alargar demasiado (Machado,
2000; Taguieff, 1997).
Miles (1989/1995) critica a “inflação conceptual” que tem caracterizado as
investigações sobre racismo. Na mesma linha de ideias, Taguieff (1997, p.9) critica o
que ele designa como “définition ultralarge du racisme” porque torna difícil estabelecer
as fronteiras com outros conceitos como a xenofobia e o tribalismo. No entanto, como
refere Machado (2000) se restringirmos demasiado a definição de racismo, arriscamo-
nos a não estar atentos nem às metamorfoses ideológicas nem à diversidade dos novos
contextos sociopolíticos.
Se é verdade que o racismo reactiva certas características do etnocentrismo não se
poderá reduzir a estas. Como refere Taguieff (1997), algumas das características do
racismo têm uma data e um local de nascimento: um sistema de dominação simbólica
cuja emergência se deu na Europa e que é paralela ao estabelecimento do colonialismo
europeu. Assim, estamos no plano do racismo, enquanto ideologia fabricada num
determinado local – Europa – numa determinada época – na modernidade recente (fim
do século XVIII até meados do século XX) – com um determinado objectivo – legitimar
o colonialismo, a escravatura e o tráfico de escravos, invocando a sua animalidade
(Taguieff, 1997; Wieviorka, 1998)
A grande maioria dos historiadores considera que o racismo é moderno, situando
seu nascimento nas proximidades do século XVIII, na altura em que começou a ser
Racismo e Etnicidade em Portugal
50
elaborado o projecto de uma ciência moderna e em que se iniciou uma reflexão
científica sobre a espécie humana que levou ao grande desenvolvimento da antropologia
física (Wieviorka, 1992/1995, p.9). O ‘racismo científico’ teve o seu auge no século
XIX, e embora no início do século XX já se ouvissem vozes críticas no seio das novas
ciências sociais emergentes (por exemplo, Sumner, 1906/1940; Lippmann, 1922/1961),
só na segunda metade do século XX, depois do genocídio de milhões de judeus e
ciganos em nome da ‘pureza racial’, este sistema de crenças viria a ser rigorosamente
desmontado e considerado ‘pseudo-científico’ (UNESCO, 1960/1973).
Mas como veremos, o fim do ‘racismo científico’ não significou o fim do racismo
na sociedade. Este transformou-se, vestiu novas roupagens e diversificou-se, o que
levou alguns autores a falar de ‘racismos’ e não de ‘racismo’ para salientar a
multiplicidade de manifestações. Nos últimos anos tem-se também discutido a questão
da unicidade do racismo. Perante a diversidade de doutrinas e de práticas racistas, assim
como a sua interferência com uma multiplicidade de fenómenos sociais e históricos,
alguns autores preferem falar de racismos e não de racismo (e.g., Pettigrew e Meertens,
1995; Vala, 1999).
Apesar da ideologia racista ter sido desenvolvida de forma sistemática na
sociedade ocidental, não podemos afirmar que seja um problema exclusivo do mundo
ocidental, já que mesmo depois do fim do colonialismo, esta tem continuado a ser
difundida através dos media, contribuindo dessa forma para a globalização do racismo
(e.g., van Dijk, 1991; Hecht, 1998). Como refere Taguieff:
“Invention occidental, le racisme comme ideólogie et ensemble de pratiques
sociopolitiques s’est ensuite universalisé. Ses schémas constitutifs on été diffusés
partout dans le monde par l’impéralisme colonial, le système esclavagiste et le
nacionalisme, et, plus recentement, à travers la banalisation des utopies eugénistes et
ethnicistes – ‘purifier’ la race, défendre ou réaliser la ‘purité’ d’une origine ethnique
ou culturelle” (1997, p. 9).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
51
1.3 Contexto histórico-político, Ciência e Racismo
1.3.1 O racismo na ciência e no senso comum
“O carácter singular do Africano é difícil de entender, porque temos que
renunciar àquilo que está implícito em todos nós, o conceito de
Universalidade.”
George W. F. Hegel, 1822
A noção de ‘raça’ tem, em relação a outras maneiras de classificar grupos
humanos, a especificidade de estabelecer uma ligação directa entre características
físicas visíveis (fenótipo) e características profundas (genótipo), explicativas das
diferentes aptidões e capacidades dos indivíduos. As classificações raciais invocam “a
natureza como registo fixo, dado e inelutável”, daí decorrendo o seu peso e dureza
(Cunha, 2000, p.123). Como veremos nesta secção, as classificações raciais serviram de
alicerce à discriminação intencional e sistemática de determinados grupos humanos,
durante pelo menos dois séculos.
As várias teorias da raciologia clássica tinham em comum uma perspectiva sobre
as ‘raças’ hierarquizadora e desigualitária. Como já referimos, a popularidade que no
século XIX tais teorias alcançaram nos Estados Unidos e na Europa não foi alheia à
justificação que proporcionavam à escravatura (Taguieff, 1997; Wieviorka, 1992/1995).
Existem numerosas revisões de literatura sobre a noção de ‘raça’ e sobre
‘racismo’. Sem qualquer pretensão de exaustividade apresentamos apenas os elementos
que consideramos mais pertinentes para a linha de argumentação que iremos
desenvolver e para a posterior discussão dos nossos dados empíricos.
A noção de ‘raça’ apoiou-se na antropologia física clássica, que utilizava critérios
morfológicos como a cor da pele, a forma craniana, a textura do cabelo, entre outros. As
classificações que deles resultavam eram contraditórias e muito variáveis, de acordo
com o critério escolhido ou com a importância atribuída a cada um deles, mas essa
variabilidade de resultados e ausência de rigor foi muitas vezes escamoteada. Embora as
classificações raciais fossem quase tantas quantos os antropólogos físicos (Langaney,
Racismo e Etnicidade em Portugal
52
1988; citado por Cunha, 2000) e o número de ‘raças’ que identificavam variasse
bastante (para revisões ver Amorim, Almeida, Mota, Souta, Cunha, e Marques, 1997;
Bracinha-Vieira, 1995), a divisão mais frequentemente invocada identificava três
‘raças’ principais: brancos (caucasóide), amarelos (mongolóide), e negros (negróide).
A ‘ciência da classificação’ foi iniciada por Lineu no século XVIII. Com base
numa multiplicidade de critérios principalmente de natureza fenotípica o autor dividiu
os seres humanos em quatro categorias – Americanos, Africanos, Asiáticos e Europeus
(‘belos’, ‘cabelo louro, castanho leve’, ‘amáveis’, ‘perspicazes’, ‘inventivos’, ‘cobertos
com vestes’, ‘governados por leis’, foram alguns dos atributos usados para caracterizar
estes últimos) (Lineu; citado por Bracinha-Vieira, 1995).
Numa sucinta revisão de literatura, a antropóloga Manuela Cunha refere as
diversas correntes da raciologia clássica. Os poligenistas consideravam que cada ‘raça’
principal tinha sido criada como uma espécie verdadeiramente separada e que cada uma
teria traços físicos e mentais específicos: os brancos seriam dotados de maiores
capacidades intelectuais e os negros teriam uma “especial vocação manual”.
Para os polifiléticos cada ‘raça’ descendia de diferentes primatas: os ‘brancos’ do
chimpanzé, os ‘amarelos’ do orangotango, e os ‘negros’ do gorila. Como Manuela
Cunha salienta, sendo o chimpanzé considerado o mais elaborado dos macacos, fica
claro qual o sentido da hierarquia.
Em contrapartida, os monogenistas e os monofiléticos convergiam na defesa de
uma origem única para as diferentes ‘raças’, que representariam, no entanto, diferentes
etapas da evolução humana. Os monogenistas defendiam a teoria da recapitulação (‘a
ontogenia recapitula a filogenia’) segundo a qual o desenvolvimento embrionário
reproduzia as etapas de evolução das espécies (peixe, réptil, macaco). Assim, os negros
seriam menos evoluídos porque permanecem num estado que os brancos só passam na
infância.
Como salienta Manuela Cunha:
“Em todo o caso, quer reportasse as ‘raças’ a diferentes origens ou a lugares
particulares na evolução humana, a raciologia clássica sempre as ordenou em
superiores e inferiores – ocupando invariavelmente os brancos o topo dessa
hierarquia. Esta perspectiva hierarquizadora fundamenta-se na pressuposta
existência de uma equação ‘natural’ entre aparência física e aptidões” (2000, p.193-
194).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
53
O paleontólogo Stephen J. Gould (1981/1990) no seu livro O Polegar do Panda:
Reflexões sobre a História Natural demonstra habilmente o carácter falacioso das
‘provas’ da antropologia física e dá-nos a conhecer os discursos de alguns dos famosos
cientistas que participaram nesta construção social da realidade.
Louis Agassiz, reputado poligenista, na sua maior declaração sobre a raça
(publicada em 1850) apresenta os argumentos da doutrina do ‘separados e desiguais’:
"O indomável, corajoso, orgulhoso, Índio, em que plano tão diferente ele se encontra
ao lado do submisso, obsequioso, imitativo Negro ou ao lado do manhoso, astuto e
cobarde Mongol! Não constituem estes factos indicações de que as diferentes raças
não se alinham em um nível único na natureza?" (citado por Gould, 1981/1990,
p.193).
Agassiz termina a sua declaração advogando uma política social específica - a
educação deve ser ajustada à capacidade inata:
“treinem os Negros no trabalho manual e os Brancos no trabalho mental: Qual seria
a melhor educação para as diferentes raças em consequência da sua diferença
primitiva [...] nós não acalentamos a mais pequena dúvida de que os negócios
humanos referentes às raças de cor seriam muito mais judiciosamente conduzidos se
na nossa relação com eles fossemos guiados por uma consciência total das
diferenças reais existentes entre eles e nós e de um desejo de nutrir essas disposições
que são eminentemente marcadas neles, de preferência a tratá-los em termos de
igualdade” (citado por Gould, 1981/1990, p.193; itálico nosso).
Como refere Gould, já que estas disposições eminentemente marcadas são a
submissão, a obsequiosidade e a imitação, não é difícil imaginar aquilo que Agassiz
tinha em mente. Mas há neste discurso outro pormenor importante para a nossa
argumentação: essas disposições são eminentemente marcadas neles, não em nós.
Assim, a natureza marca os homens de forma desigual: marca uns (eles) e não outros
(nós), assunto que desenvolveremos mais adiante.
Noutra ocasião Agassiz (1863) argumentou que as raças deviam ser mantidas
separadas, a fim de a superioridade branca não se diluir. Esta separação teria de ocorrer
naturalmente, já que os mulatos, como elo fraco, deveriam desaparecer. Os negros
Racismo e Etnicidade em Portugal
54
deveriam deixar os climas frios do hemisfério norte, tão inadequados para eles e mover-
se para sul (referido por Gould, 1981/1990, p.194). Este receio da miscigenação não
será alheio ao facto de ela tornar menos nítidas as fronteiras entre os grupos e,
eventualmente, ameaçar a “consciência total das diferenças reais existentes entre eles e
nós” (Agassiz, 1950; citado por Gould, 1981/1990, p.193). Na opinião de diversos
autores o pensamento racialista foi dominado pela inquietação pela decadência e
degenerescência acarretada pela mistura de ‘raças’ (Taguieff, 1997; Wieviorka,
1992/1995).
No século XIX Paul Broca desenvolveu métodos de mensuração do volume da
caixa craniana que passaram a ser amplamente utilizados. Com base nestas diferenças,
supostamente objectivas, os antropólogos físicos alegavam que os brancos eram mais
inteligentes, porque tinham cérebros maiores. Mas neste, como noutros tipos de
medição, não eram os negros as únicas vítimas:
“Na generalidade, o cérebro é maior nos homens que nas mulheres, nos homens
eminentes do que nos de talento medíocre, nas raças superiores do que nas
inferiores. Como noutras coisas, existe uma relação notável entre o desenvolvimento
da inteligência e o volume do cérebro (Broca, 1861; citado por Gould, 1981/1990,
p.168).
Enquanto os antropólogos mediam crânios, médicos e psicólogos desenvolveram
outros métodos supostamente mais rigorosos e que viriam a constituir uma das formas
‘inequívocas’ de demonstrar a alegada superioridade dos brancos: os testes de aptidões
físicas e intelectuais, especialmente os testes relativos ao Quoficiente de Inteligência
(Q.I.). Este é um dos domínios onde o carácter ‘eurocêntrico’ e ‘androcêntrico’ da
ciência moderna é mais visível (Cf: Amâncio, 1994, 1998; Gould, 1981/1990; Sousa
Santos, 1987/2001, 1991)3
.
Gould (1981) faz referência a estas distorções, descreve os preconceitos que
marcaram a história dos testes de Q.I. e as manipulações a que estes se prestaram no
3
Ainda hoje, apesar do grande investimento estatístico no rigor psicométrico dos testes psicológicos, não
é possível conceber testes de ‘inteligência’ totalmente ‘culture free’ (Cattell, 1944), pois todos eles
partem de uma certa definição do que é a inteligência, definição essa que, seguindo uma longa tradição
(Cf. Platão, s.d./2001), tem privilegiado as componentes cognitivas (racionais) em detrimento das
relacionais (emocionais). Ver o famoso debate entre Lippmann e Terman (Block e Dworkin, 1976) e
também as críticas ferozes de Lippmann à ‘race psychology’ (1922/1961, p.79-93). Para um discussão
actual do conceito ver Poeschl (1992), Damásio (1994), Howe (1997) e Mackintosh (1998).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
55
início do século com o fim de recusar, em nome da ciência, a entrada a imigrantes
considerados indesejáveis.
Quaisquer que fossem os critérios utilizados (volume craniano, tempos de
reacção, testes de inteligência), os ‘brancos’ eram sempre posicionados no topo da
escala e os ‘negros’ em baixo, ocupando os ‘amarelos’ a posição intermédia, mas muito
mais próximos dos últimos do que dos primeiros (para revisões alargadas ver Montagu,
1997; Richards, 1997).
Mas se a ‘grande clivagem’ se verificava entre os ‘brancos’ e os ‘outros’
(africanos, asiáticos, indígenas americanos), que eram frequentemente homogeneizados
na categoria de ‘selvagens’, no seio da raça branca reconhecia-se a heterogeneidade.
Assim, alguns autores identificaram a existência de algumas nacionalidades de elite, a
que não era alheia a própria nacionalidade do cientista.
Por exemplo, Goddard (referido por Gould, 1981/1990), um dos arquitectos
principais da interpretação hereditária rígida dos testes de QI, sugeriu uma classificação
das capacidades mentais de modo a abarcar uma ‘classificação natural das raças e
nacionalidades humanas’. Nesta classificação os White Anglo-Saxonic Protestants
(WASP) americanos situavam-se no topo, correspondendo ao desenvolvimento
completo, e os emigrantes europeus do Sul e Leste no escalão mais baixo, no limiar
entre a normalidade e a debilidade mental. Goddard, depois de instituir os testes de QI
para os emigrantes à sua chegada aos EUA, proclamou mais de 80% débeis mentais e
apressou-lhes o regresso à Europa4
.
Na mesma linha de ideias, Down publicou as Observations on a classification of
idiots (1866), observações essas realizadas num hospital psiquiátrico, nas quais
descrevia ‘idiotas’ caucasianos que lhe lembravam africanos, malaios, índios
americanos e orientais. Como refere Gould (1981/1990, pp.182-187), destas imaginárias
comparações entre os ‘débeis mentais causasianos’ e as ‘capacidades normais nos
adultos de raças inferiores’ só os ‘idiotas que se agrupam à volta do tipo mongolóide’
sobreviveram na literatura como designação técnica (‘idiota mongolóide’ para designar
a Trissomia XXI ou Síndrome de Down).
4
Hoje em dia, na Inglaterra discute-se a eventualidade de instaurar um sistema de selecção dos imigrantes
a partir de testes de ‘cultura geral’, segundo relato recente na Euronews.
Racismo e Etnicidade em Portugal
56
Meio século após Charles Darwin ter publicado o seu livro sobre a origem das
espécies (1859), alguns biólogos e antropólogos continuavam a não admitir uma origem
comum para o Homo Sapiens (Banton, 1996, p.295). O termo ‘raça’ foi sendo utilizado
no sentido ‘espécie’, para designar grupos humanos distintos na sua constituição física e
nas suas capacidades mentais e, de certa forma esta ideia subsistiu até hoje, passando a
constituir o núcleo duro das doutrinas designadas de ‘racismo científico’.
Como refere Miranda (2001), é difícil precisar o momento em que se passou de
um cenário em que a preocupação científica era dominante para um cenário em que o
racismo assumiu um carácter doutrinário. A obra de Gobineau, Essay on the Inequality
of the Human Races, integra nitidamente o segundo cenário e terá exercido uma
influência fundamental no desenvolvimento posterior da ideologia nazi. A utilização do
termo ‘ariano’, palavra do sânscrito que significa nobre, tornou-se mais frequente a
partir do momento em que foi utilizada por Gobineau e Muller nos anos 1850 e 1860
para identificar um grupo de indivíduos que produziu uma civilização particular e mais
avançada (Miles, 1989/1995).
Outra das referências marcantes da doutrina racista foi Galton, que se preocupou
com a influência da genética no desenvolvimento da inteligência humana e fundou um
laboratório de eugenia em Londres. O eugenismo constituiu simultaneamente um
movimento social e uma ciência aplicada, fundados em teorias da hereditariedade e nas
leis da reprodução da espécie humana que prescreve os meios para melhorar a espécie.
Em Hereditary Genius (1869, citado por Freeman, 1962/1980), Galton argumentou em
defesa da eliminação progressiva dos ‘indesejáveis’ da sociedade, proibindo-lhes o
casamento ou impondo a sua esterilização (eugenia negativa) e, simultaneamente, tentou
proteger, aperfeiçoar, e multiplicar os indivíduos ‘mais aptos’ de melhor saúde física e
moral (eugenia positiva). Na introdução da sua obra Inquiries into Human Faculty,
Galton afirma:
"O meu objectivo geral foi registar várias faculdades hereditárias dos diferentes
homens e as grandes diferenças nas várias famílias e raças para determinar em que
medida a história pode ter demonstrado a viabilidade de substituir a reserva humana
ineficiente por melhores linhagens, e reflectir se não seria dever nosso fazê-lo na
medida do razoável, agindo assim no sentido de alcançar mais depressa o termo de
evolução menos penosamente do que deixando os acontecimentos entregues ao seu
curso normal" (1883, citado por Freeman, 1962/1980, p. 9).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
57
No final do século XIX, as doutrinas raciais estavam extremamente divulgadas na
Europa e nos EUA. Como mostra a teoria das representações sociais (Moscovici,
1972/1977), o determinismo biológico não só marcou profundamente a ciência
moderna, como se propagou ao senso comum, tornando-se um verdadeiro fenómeno
social. Isto é, o discurso ‘científico’ dos séculos XVIII e XIX estimulou e legitimou o
discurso racialista do senso comum.
Depois do Holocausto poucos cientistas continuaram a defender uma hierarquia
de ‘raças’ e as investigações desenvolvidas no domínio da genética vieram questionar
muitas das ‘verdades’ anteriores. Mas, se a ciência contemporânea se esforça por
desmascarar o ‘mito da raça’ (Montagu, 1997), o senso comum, bom aluno, reproduz
hoje alguns dos elementos fundamentais dessas teorizações racialistas5
.
5
Actualmente, as teorias sobre as hierarquias raciais, embora minoritárias, ressurgem, esporadicamente,
no campo científico. Há menos de uma década, Herrnstein e Murray publicaram o The Bell Curve:
Intelligence and Class Structure in American Life (1994), que rapidamente se tornou um best seller, no
qual os autores advogavam uma política de discriminação baseada nas classificações obtidas por
diferentes categorias sociais e raciais nos testes de QI, que consideram a maior realização científica da
psicologia. Rushton vai ainda mais longe numa aberta agenda racial no seu livro Race, Evolution, and
Behavior (1995), no qual afirma ser possível identificar clara e distintamente grupos raciais com
diferentes histórias de evolução, que conduziram a diferentes capacidades.
Racismo e Etnicidade em Portugal
58
1.3.2 As normas da igualdade e os novos racismos
“Mais l’homme n’existe pas: il y a des juifs, des protestants, des catholiques;
il y a des Français, des Anglais, des Allemands; il y a des blancs, des noirs,
des jaunes.”
Jean Paul Sartre, 1954
Após a guerra de 1939-1945 as políticas e doutrinas ‘coloniais’ e ‘racialistas’ são
postas em causa. A tal não será alheio a participação significativa de soldados de origem
asiática e africana nas tropas aliadas. Como refere Magalhães (1996, p.7; citado por
Correia, 1999, p.114), participaram cerca de quinhentos mil africanos e dois mil
indianos nas tropas aliadas.
As lutas pela independência ganham uma dinâmica incontornável nos territórios
asiáticos e africanos sob o domínio europeu, o que conduz à independência de
numerosos territórios: a independência da União Indiana em 1947 marca o ‘princípio do
fim’ do colonialismo europeu nos seus moldes tradicionais. Na África Negra as
primeiras independências ocorrem em 1956 (Gana) e até final dos anos 60 todas as
potências coloniais tinham perdido o seu império, à excepção de Portugal, assunto que
desenvolveremos na próxima secção6
.
A 10 de Dezembro de 1948 a Organização das Nações Unidas (ONU) proclama a
Declaração Universal dos Direitos do Homem na qual se lê o seguinte:
“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.
Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito
de fraternidade” (§1º); “Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as
liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma,
nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou
outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra
situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político,
jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse
país ou território independente, sob tutela, autónomo ou sujeito a alguma limitação
de soberania” (§2º).
6
Para uma análise do colonialismo e das lutas pela independência, ver Fanon (1967) e Benot
(1969/1981). Para uma ilustração dos discursos reivindicativos africanos, ver Senghor (1977/1997) e
Biondi (1993).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
59
Embora esta Declaração tenha sido ratificada por 159 países, a realidade tem
ficado sempre aquém das palavras. Dez anos depois desta declaração, instala-se
oficialmente o regime de Apartheid na África do Sul (1958-1991) e os negros
americanos só em 1964 vêem aprovado o Act of Civic Rights, depois de intensas lutas e
manifestações. De notar que no segundo artigo a ‘raça’ aparece em primeiro lugar e sem
‘aspas’. De facto, o uso de ‘aspas’ para referir a ‘raça’ só se começou a vulgarizar nas
ciências sociais nos anos oitenta, para salientar que se trata de uma noção do senso
comum.
Assiste-se assim no pós-guerra a mudança do posicionamento científico e político
relativamente ao conceito de ‘raça’. Se até aí, como ilustrámos na secção anterior,
iminentes cientistas das mais variadas ciências ‘naturais’, sociais e humanas tinham
ocupado as suas energias a demonstrar cientificamente a ‘raça’, a partir daí todas estas
áreas científicas começaram a desnaturalizar a noção de ‘raça’, isto é, a demonstrar o
carácter falacioso dos estudos do ‘racismo científico’. No livro de referência Le
Racisme Devant la Science (UNESCO, 1960/1973) procede-se a uma desmontagem
detalhada do carácter falacioso das ‘provas’ da superioridade branca nos vários
domínios científicos.
As mais recentes investigação ligadas à descodificação e à sequenciação do
Genoma Humano7
vieram dar razão aos vários relatórios elaborados no âmbito da
UNESCO, pois não foi possível identificar nenhum gene ou conjunto de genes ligados
às supostas ‘raças’ humanas, pelo que a ‘raça’ enquanto conceito aplicado para
classificar os seres humanos está, à luz do conhecimento científico presente,
definitivamente abandonado.
7
Com a análise do genoma humano a noção de raça foi completamente desacreditada: “De um ponto de
vista genético, todos os seres humanos são africanos - que ou vivem em África ou estão no exílio”. A
nossa origem africana é verificada pelo facto da diversidade genética ser maior em África do que em
qualquer outro ponto do mundo, o que leva a pensar em vagas de migração humana a partir daquele
continente. [...] A noção de raça leva ainda outro golpe: podem verificar-se mais diferenças genéticas
entre um louro nórdico e o seu também louro vizinho do que entre eles e um africano. Na opinião de
Svante Paäbo, do Instituto Max Planck de Antropologia da Evolução, a sequência do genoma humano
não trará grandes riscos de aumentar a discriminação, e refere de forma optimista: “Terá o efeito
contrário, porque os preconceitos, a opressão e o racismo alimentam-se de ignorância” (Clara Barata,
in Público, 10 de Outubro de 2001).
Racismo e Etnicidade em Portugal
60
A questão racial foi tema de discórdias internacionais e assumiu tal importância
que, após o termo da II Grande Guerra, a UNESCO promoveu amplas investigações
interdisciplinares sobre a questão racial, cujos resultados foram debatidos por quatro
equipas diferentes e que deram origem a quatro Declarações (1950, 1951, 1964, e
1967).
Na sua primeira Declaração, a UNESCO8
(1950) proclama que todos os seres
humanos pertencem à mesma espécie, o Homo Sapiens e estabeleceu as bases da
igualdade de facto entre todas as ‘raças’:
“Les donnés scientifiques dont on dispose à l’heure actuelle ne corroborent pas la
théorie selon laquelle les différences génétiques héréditaires constitueraient un
facteur d’importance primordiale parmi les causes des différences qui se manifestent
entre les cultures et les oeuvres de la civilization des divers peuples ou groupes
ethniques. Elles nous apprennent à l’inverse que ces différences s’expliquent avant
tout par l’histoire culturelle de chaque groupe” (UNESCO, 1960/1973, p.366).
A segunda Declaração (1951) chama a atenção para o uso abusivo da palavra
‘raça’ e para os mitos que a esta palavra estão associados, pelo que recomenda o uso de
outra palavra para designar os grupos humanos:
“Le mot ‘race’ étant marqué, pour avoir servi à designer des différences nationales,
linguistiques ou religieuses et pour avoir été utilisé dans un sens délibérément abusif
par des partisants des doutrines racistes, nous sommes efforcés de trouver un
nouveau mot [...], mais nous n’y avons pas reússi” (UNESCO, 1960/1973, p.368).
A quarta Declaração (1967) vai mais longe nesta ideia e refere que “les doctrines
racistes sont dénuées de toute base scientifique”, sendo a noção de ‘raça’ convencional
ou arbitrária (UNESCO, 1960/1973, p.379). Nesse sentido recomenda o abandono da
palavra no meio científico e o uso de designações menos discriminatórias. Recomenda
igualmente que se proteja a diversidade cultural:
8
Declaração redigida por diversos cientistas de diferentes pontos do globo: Beaglehole (Nova Zelândia),
Comas (México), Costa Pinto (Brasil), Frazier (Estados Unidos), Ginsberg (Reino Unido), Kabir
(Índia), Lévi-Strauss (França) e Montagu (Estados Unidos).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
61
“Les groupes ethniques qui sont victimes de la discrimination sous une forme ou une
autre sont parfois acceptés et tolérés par les groupes dominants à condition de
renoncer totalment à leur identité culturelle. Il convient de souligner la nécessité
d’encourager ces groupes ethniques à préserver leurs valeurs culturelles. Ils seront
ainsi mieux en mesure de contribuer à enrichir la culture totale de l’humanité”
(UNESCO, 1960/1973, p.384).
Desde então, o termo ‘grupo étnico’ tem sido empregue para referir situações de
grupos sociais minoritários, que são percebidos e classificados em função da sua
diferenciação cultural face aos padrões estabelecidos pela cultura dominante. Todavia, o
pensamento do senso comum terá acompanhado esta deslocação da ‘raça’ para as
‘práticas culturais’ dos ‘grupos étnicos’, sendo estas percebidas como rígidas e
imutáveis, e até mesmo geneticamente herdadas (Chapman, McDonald e Tonkin, 1989;
Rex, 1986; referidos por Lima, 2002). A cultura não é entendida como algo fluido e
dinâmico, mas como algo análogo à ‘raça’ e os laços culturais passam a ser vistos como
‘laços de sangue’ (Gilroy, 1993; referido por Lima, 2002).
Como salienta Guillaumin (1992/1995), apenas os grupos minoritários, isto é,
destituídos de poder ou estatuto, são objecto deste processo de naturalização. Assim, o
deslocamento da percepção das diferenças entre os grupos humanos do pólo das
características físicas ou raciais para o pólo das características comportamentais e
culturais permanece um processo de naturalização da diferença, isto é, a um processo de
racialização seguiu-se um processo de etnicização (Vala, Lopes, Brito, 1999a), processo
esse que se verifica em relação aos grupos minoritários mas não em relação aos
dominantes.
O termo ‘racialização’ começou a ser utilizado a partir da década de setenta
(Fanton, 1967; Banton, 1977) para fazer referência a um processo político e ideológico
pelo qual determinadas populações são identificadas mediante referência directa ou
indirecta às suas características fenotípicas, isto é, este termo refere-se à utilização da
ideia de ‘raça’ enquanto estruturador da percepção de determinada população (Miles,
1989/1995).
Racismo e Etnicidade em Portugal
62
Miles define racialização como:
“a process of delineation of group boundaries and of allocation of persons within
those boundaries by primary referense to (supposedly) inherent and/or biological
(usually phenotical) characteristics. It is therefore an ideological process” (1982,
p.157).
Assim, apesar de estar cientificamente desacreditado, o conceito de ‘raça’ que
existe na mente dos indivíduos, não pode ser ignorado pelos cientistas sociais, isto é, a
raça deixa de ser ‘biológica’ para se tornar ‘social’.
O facto da hierarquização racial ter sido banida do discurso público não exclui
comportamentos e percepções racistas. Atentas às novas normas sociais, as pessoas têm
o cuidado de velar os seus discursos discriminatórios,
“fazendo preceder a sua enunciação com a invariável asserção ‘eu não sou racista,
mas...’ - ?o que? mostra bem que se está ciente do grau de consensualidade
discursiva que a sua condenação conquistou na arena pública” (Cunha, 2000, p.194).
Como o argumento da desigualdade e da hierarquização racial é actualmente
contra-normativo, enfatizam-se as diferenças culturais. Assim, já não se detestam os
árabes pela sua cor morena, mas por serem ‘fanáticos religiosos’ ou por ‘tratarem mal as
mulheres’ ou porque o Islão é uma ‘cultura rétrogada’. Estes têm sido alguns dos
argumentos apresentados por certos líderes de extrema direita, tal como o holandês Pym
Fortuyn, recentemente assassinado, mas que conseguiu, depois de morto, a maior
votação de extrema direita na Holanda. O líder populista Pim Fortuyn reclamava não ser
como os outros líderes de extrema direita racistas: “De uma vez por todas, quero que
fique claro que não tenho nada a ver com os senhores Le Pen, Haider e Dewinter”. No
entanto, defendia a supressão na constituição holandesa do artigo que proíbe as
discriminações. O argumento de que “a Holanda está cheia” resume a sua política anti-
imigração, salientando também os malefícios dos “excessos do clima de tolerância”.
Seria por isso fundamental acabar com a “falsa tolerância”, pelo que recomendava a
restrição drástica do número de imigrantes e refugiados, e uma política mais repressiva
em relação à integração de estrangeiros (por exemplo, aplicar multas a quem não faz o
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
63
curso obrigatório de língua holandesa). Fortuyn é, no entanto, peremptório em negar
quaisquer alegações de racismo:
“Vejam bem que o número dois da minha lista, João Varela, é de origem cabo-
verdiana!” [...] “é preciso ser mais duro com estrangeiros que não se querem
integrar” (o referido cabo-verdiano seria um bom exemplo da integração: “prefere
falar holandês em vez de português” (afirmações de Fortuyn citado por Simon Kuin,
Expresso, 27 de Abril de 2002).
Se, como já referimos, hoje em dia poucos ousam defender uma hierarquia racial,
em contrapartida a ideia de ‘raça’, no sentido de uma população natural definida por
caracteres hereditários comuns, persiste e continua a servir de suporte a ideologias
racistas. E também aqui reencontramos as armadilhas do relativismo cultural extremo
que, levado às suas últimas consequências lógicas, nega a própria possibilidade de
‘tradução intercultural’ Cf: Lévi-Srauss, 1983; Tagieff, 1997).
A este propósito Manuela Cunha (2000, p.194) fornece-nos uma interessante
análise de um discurso de Bruno Mégret, ex-número dois do partido de extrema direita
francês, que num colóquio sobre ecologia questionava o seguinte: “Porquê batermo-nos
pela preservação das espécies animais quando ao mesmo tempo aceitamos o princípio
do desaparecimento das raças humanas pela mestiçagem generalizada?”. Como refere a
autora:
“A apropriação de dois actualíssimos temas – a consciência ecológica e a apologia
da diferença – em torno dos quais se gerou um largo consenso público funciona aqui
como caução legitimadora de uma ideologia segregacionista. Por outro lado,
encontramos de novo a assimilação das ‘raças’ a espécies que marcou várias teorias
raciais [...]. O efeito retórico que Mégret obtém através da equivalência ‘raças’ –
espécies acentua subliminarmente a ideia de descontinuidade entre tipos humanos
que seriam as ‘raças’. É esse, afinal, o cerne das doutrinas rácicas: es tipular a
existência de uma descontinuidade natural no interior do género humano” (Cunha,
2000, p.195).
Segundo Manuela Cunha (2000, p.295), “falha-se porém o alvo quando se procura
demonizar este ideário segregacionista apostrofando-o de hitleriano, ou nazi”, já que os
autores de tais discursos descartam essa acusação com uma desconcertante facilidade.
Com efeito, os novos racismos são bem mais sofisticados e subtis, já não defendem a
Racismo e Etnicidade em Portugal
64
hierarquização racial de outrora, mas sim a distanciação. Isto é, não há ‘raças’
superiores ou inferiores, mas cada uma devia permanecer no seu ‘canto’, lógica que
presidia ao regime do apartheid.
Assim, invoca-se a defesa da especificidade cultural dos grupos racializados, por
um lado, e, por outro lado, clama-se o direito à identidade própria, que essas culturas
‘outras’ são supostas ameaçar. Desemboca-se, assim, na questão da imigração, um dos
factores que supostamente produziriam o indesejado efeito de contaminação. Desta
forma, o elogio “da diferença pode caucionar e camuflar uma vontade de exclusão”
(Cunha, 2000, p.196).
Verena Stolcke (1995; referida por Cunha, 2000, p.196) analisa o modo como na
Europa os novos discursos de exclusão “absolutizam a diferença e sustentam a
insuperável incapacidade de comunicação entre diferentes culturas”, porque a supõem
radicada na própria natureza humana. Na opinião de diversos autores (Cunha, 2000;
Taguieff, 1997), o ‘fundamentalismo cultural’ não substituiu totalmente o discurso do
‘fundamentalismo racial’, pelo contrário, o primeiro compactou-se com o segundo,
constituindo uma das suas metamorfoses. Neste sentido, as ‘raças’ não desapareceram
do discurso diferencialista, deixaram apenas de ser ordenadas hierarquicamente (Cunha,
2000, p.196) e aparentemente perderam a sua visibilidade biológica.
Como refere Jean Pouillon:
“?à? la limite, le relativisme rejoint l´ethnocentrisme en enfermant chacun dans sa
propre culture, la différence se réduisant à ceci que dans un cas, on admet la pluralité
des prisons tandis que dans l´autre on ne sait même pas qu´il y en a une » (1975;
citado por Cunha, 2000, p.196).
E isto porque a ideia de ‘raça’ continua a estruturar a percepção que se tem dos
outros e a operar o discurso de exclusão, ainda que mais ou menos camuflada pela
referência à identidade cultural, remetendo-a constantemente para o terreno da natureza.
Deste modo, apesar da palavra ‘raça’ ter sido banida do discurso científico e político é
legítimo continuar a falar de ‘racismo’ (Cunha, 2000; Segall, 1999; Taguieff, 1997).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
65
Depois de ‘desnaturalizada’ a ‘raça’, os cientistas sociais, constatando que esta
não tinha desaparecido do conhecimento do ‘senso comum’, preocuparam-se em estudar
a forma como este ‘naturaliza’ as categorias sociais. Não deixa de ser irónico que
muitos cientistas venham agora acusar o senso comum de ignorância, ingenuidade ou
irracionalidade quando este recorta a realidade através das categorias humanas que a
própria ciência tinha forjado e lhes associa os conteúdos que a elas tinham sido tão
convenientemente associados.
Por exemplo, Taguieff (1992/1995) salientou que apesar dos geneticistas terem
provado a inexistência de ‘raças’, a noção de ‘raça’ continuou a ser aceite pelo senso
comum, dado que a clássica tipologia branco/amarelo/negro é facilmente apreendida e o
senso comum confia na evidência imediata dos seus sentidos, e apoia-se em caracteres
visíveis (fenótipo) ignorando os invisíveis (genótipo).
Como salienta Manuela Cunha (2000, p.199) os mesmos cientistas que fazem as
imputações de ingenuidade ao senso comum, consideram que os caracteres visíveis (cor
da pele, textura do cabelo) se prestam quase ‘automaticamente’, isto é, ‘naturalmente’, à
racialização. Constata-se assim que o ‘binómio natureza-cultura’, continua a estar
presente nas ciências sociais, mas agora organizado de forma diferente, como
exemplifica Manuela Cunha:
“as ‘raças’ são criações sociais e não entidades biológicas, mas os traços fenotípicos
fornecem uma base natural em que a cultura investe, constituem uma matéria neutra
da qual ela se apropria; os traços físicos são dados fixos e evidentes que a cultura é
chamada a interpretar e a transformar em símbolos. E é assim, por via desta
incontornável base natural, que somos quase conduzidos ao ponto inicial, quer dizer,
à especial dificuldade que enfrentariam as tentativas de combate às classificações
raciais” (2000, p. 200).
Como argumenta a autora, a altura, a cor dos olhos, a cor do cabelo, e até os
lóbulos das orelhas entre outros, são também traços fenotípicos, igualmente naturais,
expostos e evidentes e, no entanto, não são evocados quando se fala nas classificações
raciais. A aparência física, enquanto matéria-prima para as classificações raciais, não é
terreno neutro, já que a própria saliência de certas características físicas é resultado de
definições sociais e não de enviesamentos ‘naturais’ da percepção humana. O recurso a
Racismo e Etnicidade em Portugal
66
certos traços físicos em detrimento de outros não constitui um fenómeno natural, mas
decorre de processos ideológicos que devem ser historicamente situados.
Considerar a aparência física como um suporte meramente “biológico e a-
histórico” é esquecer que foram ideologias ocidentais num determinado período
histórico que definiram certas características físicas como mais importantes do que
outras para marcar diferenças, e contribuíram assim, para a sua visibilidade. Como
escreve Wade “The realm of nature is not a neutral given, but is itself in a relationship
of mutual constitution with the cultural categories that take it as a resource” (1993,
p.27).
No seio da Psicologia Social, Gordon Allport no livro The Nature of Prejudice,
(1954/1975) foi o primeiro autor a desmontar claramente o conceito de ‘raça’ e a ilustrar
o processo de racialização: inclusão dos indivíduos em categorias ‘raciais’, às quais
corresponde um determinado ‘rótulo’, e às quais são atribuídos significados.
Allport (1954/1979, p.171) define uma categoria como: “an accessible cluster of
associated ideas which as a whole has the property of guiding daily adjustments”. A
categorização dos grupos sociais minoritários seria acompanhada por uma
essencialização: “One thinks of heredity as inexorable, as conferring an essence upon a
group from which there is no escape” (p.170). Allport, evidencia as consequências da
essencialização dos grupos humanos:
“Some labels [...] are exceedingly salient and powerful. They tend to prevent
alternative classification, or even cross-classification. Ethnic labels are often of this
type, particularly if they refer to some highly visible feature, e.g., Negro, Oriental.
?...? These symbols act like shrieking sirens, deafening us to all finer discriminations
that we might otherwise perceive” (Allport, 1954/1979, p.179).
Como o autor salienta,
“some categories are more flexible (differentieted) than others. ?...? Not all
categories have a granitic character. Some are flexible and discriminated. ?...? the
more they know about a group the less likely are to form monopolistic categories”
(1954/1979, p. 172)
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
67
Assim, segundo Allport, quanto maior o nível de contacto com os membros de
determinada categoria, maior a flexibilidade desta categoria, mas fica claro pelos
exemplos que nos fornece que as categorias mais rígidas (monopolistic) são as relativas
aos grupos étnicos, enquanto as mais diferenciadas são relativas aos americanos: “most
Americans know that any fixed hypotheses about ‘Americans’ are likely to be a poor
guide of conduct” (p.172).
Como o autor salienta: “while most of us have learned to be critical and open-
minded in certain regions of experience we obey the law of least effort in others”
(Allport, 1954/1979, p.173). Uma das consequências da ‘lei do menor esforço’ é o
desenvolvimento de uma crença sobre a essência desses grupos: “There is an inherent
‘Jewishness’ in every Jew”, “The soul of the Oriental”, “Negro blood”, ?...? “the
passionate Latin” - all represent a belief in essence” (p.174).
Infelizmente esta perspectiva sobre o processo de racialização foi ignorada pelos
psicólogos sociais durante décadas e só recentemente veio a ser retomada e
desenvolvida em detalhe por diversos autores, entre os quais Rothbart e Taylor (1992),
que no entanto, se esqueceram de alguns aspectos com enorme importância da
argumentação de Allport.
Rothbart e Taylor (1992) consideram que o senso comum distingue entre
categorias naturais (peixes, pássaros, etc.) e categorias artificiais (cadeiras, bicicletas,
etc.). Os autores argumentam que as pessoas tenderiam a ver as primeiras como “menos
arbitrárias” (p.11) do que as segundas, que acreditariam que as categorias ‘naturais’
possuem uma essência profunda que torna uma categoria diferente de outra. O senso
comum atribuiria um maior potencial indutivo às primeiras do que às segundas, uma vez
que a sua experiência no dia a dia lhe mostraria que comete menos erros quando faz
inferências sobre objectos ‘naturais’ do que em relação a objectos artificiais. Esta
diferença conduziria o senso comum a supor que os primeiros são dotados de essências
que justificariam a forma como são categorizados, e que essas essências se
manifestariam, geralmente, em diferenças perceptíveis.
Assim, o processo de essencialização operar-se-ia através da inferência de uma
estrutura profunda (genótipo) a partir de diferenças de superfície (fenótipos). Uma vez
essencializadas, as categorias ‘naturais’ não só disporiam de um elevado potencial
indutivo, como seriam vistas como inalteráveis e exclusivas.
Segundo Rothbart e Taylor as categorias ‘naturais’ funcionam como um modelo
para pensar as categorias sociais, nomeadamente as categorias raciais, na medida em
Racismo e Etnicidade em Portugal
68
que ambas são pensadas como produtos da natureza e não como resultado de uma
construção humana. A essencialização das categorias sociais reflecte-se na percepção de
inalterabilidade das categorias: da mesma forma que não seria possível transformar um
peixe numa ave, também não seria mudar de ‘sexo’, ‘raça’, ‘casta’ (1992, p.20).
Uma outra propriedade das categorias essencializadas é a exclusividade. Os seres
classificados em categorias naturais apenas podem fazer parte de uma categoria, aquela
que reflecte a sua essência. Seria esta propriedade, a exclusividade, que estaria
subjacente ao efeito de acentuação, que consiste em exagerar as semelhanças entre os
membros da mesma categoria social e em acentuar as diferenças entre membros de
diferentes categorias (Tajfel e Wilkes, 1963), como veremos adiante.
Finalmente, as categorias sociais essencializadas revestir-se-iam de um elevado
potencial indutivo. Em resumo, determinadas categorias sociais seriam regidas por um
princípio de essencialismo psicológico (Leyens e Corneille, 1994).
Como referem Vala e colaboradores (1999a), na proposta de Rothbart e Taylor a
analogia entre as categorias naturais e sociais levou os autores a esquecer alguns
aspectos essenciais, nomeadamente o valor das categorias para os próprios observadores
(Tajfel, 1957, 1972) e as assimetrias envolvidas neste processo (Lorenzi-Cioldi, 1988),
aspecto que desenvolveremos no próximo capítulo.
Em primeiro lugar, os autores parecem conferir às diferenças físicas um estatuto
de evidência perceptiva que estas, de facto, nem sempre possuem, uma vez que a sua
saliência já é o resultado de teorias e convenções sociais, como já atrás referimos. De
facto, alguns estudos têm demonstrado que os indivíduos mais preconceituosos são os
que se revelam mais ‘aptos’ a identificar sinais físicos como indicadores de diferenças
‘raciais’, ainda que cometendo muitos erros por sobre-exclusão do endogrupo (e.g.,
Leyens, Yzerbyt e Bellour, 1993; Pettigrew, Allport e Barnet, 1958; Tajfel, 1972),
assunto que retomaremos no próximo capítulo. É precisamente porque as diferenças
físicas nem sempre são pertinentes para as classificações raciais que, ao longo da
história, grupos discriminados foram obrigados a usar sinais distintivos, como sucedeu
com os judeus durante o período do nazismo, apenas para citar um exemplo9
.
9
A este propósito será elucidativo ver o vídeo relativo ao exercício de anti-discriminação realizado pela
professora Jane Elliott com os seus alunos do ensino básico (efectuado pela primeira vez em 1968
depois do assassinato de Martin Luther King Jr. e desde aí repetido em inúmeras escolas e
organizações diversas, tanto com crianças como com adultos) e que ilustra de forma clara o poder da
‘marca’ como estigma nos grupos de menor estatuto (neste caso operacionalizados através da divisão
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
69
Na década de setenta, à medida que os afro-americans conquistavam um maior
protagonismo social na sequência do fim da segregação (Act of Civil Rights, 1968), e
afirmavam orgulhosamente a sua pertença ‘racial’ (Black Power), foi crescendo nos
white-americans um sentimento de ‘ameaça’ em relação a esta minoria, que de repente
ocupava lugares até aí exclusivos da maioria.
Estas alterações políticas e sociais relativas aos afro-americanos, conduziram a
uma mudança na perspectivação desta categoria, o que veio requerer a introdução de
novos conceitos explicativos do fenómeno. Na década de oitenta surgiram uma série de
novos conceitos, permitindo estabelecer uma distinção entre expressões tradicionais e as
novas formas de racismo emergentes nas sociedades formalmente anti-racistas.
Sociólogos e psicólogos contribuíram para uma ‘explosão’ de novos conceitos relativos
aos racismos contemporâneos. Esta renovação conceptual ocorreu inicialmente nos
EUA e na Grã-Bretanha e, em seguida, alargou-se a outros países europeus.
Diversos autores verificaram que a percepção de que os afro-americanos ameaçam
os valores vistos como tradicionais da sociedade americana se traduzia em novas formas
de racismo: racismo moderno (McConahay, 1983); ou racismo simbólico (Sears, 1988).
Por exemplo, Jones (1972) refere um racismo cultural nos EUA: na opinião dos
indivíduos preconceituosos, as minorias discriminadas sê-lo-iam por razões que lhe são
intrínsecas - por partilharem uma cultura que não lhes permite uma boa adaptação às
exigências do sistema económico capitalista, o individualismo meritocrático, a
orientação para o poder e o êxito em detrimento dos valores afiliativos. Assim, existiria
uma forma ideal de Homem (WASP), e formas menores de humanidade que se
manifestariam na incapacidade de adaptação às sociedades capitalistas liberais. Isto é,
quando já não se pode afirmar publicamente que os negros possuem capacidades
intelectuais e aptidões inferiores aos brancos, atribui-se-lhes a responsabilidade da
discriminação de que são vítimas por não aderirem aos valores necessários para serem
bem sucedidos nas sociedades ocidentais e por não efectuarem um esforço de
adaptação.
em dois grupos em função da cor dos olhos, castanhos ou azuis, aos quais estava supostamente
associado um maior ou menor nível de inteligência, sendo o grupo ‘menos inteligente’ marcado por um
lenço azul ao pescoço para facilitar o ‘reconhecimento’ dos membros deste grupo à distância (site:
http://www.horizonmag.com/4/jane-elliott.asp).
Racismo e Etnicidade em Portugal
70
Para Pettigrew e Meertens podemos considerar duas expressões contrastantes do
preconceito nas sociedades contemporâneas: o preconceito flagrante (blatant prejudice)
e o preconceito subtil (subtle prejudice), que os autores caracterizam da seguinte forma:
“Blatant prejudice is hot, close and direct. Subtle prejudice is cool, distant, and indirect”
(1995, p.58). A explicação proposta pelos autores é de natureza socionormativa,
situando-se no quadro dos processos de influência social10
.
Na opinião dos autores, as sociedades ocidentais, a partir da II Guerra Mundial,
desenvolveram progressivamente uma norma social contra as formas tradicionais de
expressão do racismo. A relação dos indivíduos com esta norma social pode assumir
três formas: rejeição, aceitação ou internalização. Na perspectiva de Kelman, a
aceitação de uma norma corresponde à sua adopção instrumental, de modo a garantir
recompensas ou evitar punições, enquanto a internalização de uma nova norma ocorre
quando existe congruência entre ela e o sistema de valores de um indivíduo (1961;
referido por Vala, Brito e Lopes, 1999b). Isto é, num caso estamos perante um acordo
público (submissão) e noutro perante um acordo privado (conversão), usando a
terminologia de Moscovici (1976/1979).
Na perspectiva de Pettigrew e Meertens (1995), os indivíduos que rejeitam a
norma anti-racista não se inibem de exprimir publicamente o racismo tradicional, sendo
as suas respostas claramente anti-normativas (racismo flagrante). Os indivíduos que
aceitam a norma não exprimem o racismo na sua forma tradicional, mas manifestam
expressões mais subtis de racismo que não violam a norma anti-racista, uma vez que
esta incide apenas sobre as expressões tradicionais do racismo (racismo subtil). Por sua
vez, os que internalizaram a norma, rejeitam ambas as formas de racismo, uma vez que
a norma anti-racista se enquadra no quadro de valores igualitários mais gerais
(igualitarismo).
Resumindo: o racismo flagrante é claramente antinormativo; o racismo subtil
corresponde à aceitação da norma, acompanhada de expressões de racismo não
censuradas por esta); e igualitarismo corresponde à internalização da norma, com base
em valores igualitários.
10
Uma vez que estes processos não são centrais nesta discussão não nos debruçaremos detalhadamente
sobre eles remetendo para uma revisão da literatura dos processos de influência social: Garcia-
Marques (1993/2000).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
71
Segundo os autores, o conceito de racismo subtil permite sintetizar num só
conceito expressões de racismo ligadas a configurações de valores individualistas
(racismo simbólico) e expressões que não põem em causa um auto-conceito igualitário
dos indivíduos (racismo aversivo).
Os autores realizaram um estudo no âmbito do Eurobarómetro de 1988,
envolvendo amostras aleatórias e representativas de quatro países europeus,
questionadas sobre diferentes grupos-alvo minoritários: na Inglaterra os grupos-alvo
foram os ‘antilhanos’ e os ‘asiáticos’; em França os ‘norte-africanos’ e os ‘asiáticos’; na
Holanda os ‘surinameses’ e os ‘turcos’; e na Alemanha os ‘turcos’ (Pettigrew e
Meertens, 1995)11
.
Os autores identificaram (tanto na amostra global como em cada uma das
subamostras), dois factores correlacionados: o preconceito flagrante e o preconceito
subtil. O preconceito flagrante integra duas dimensões: a rejeição do grupo-alvo e a
percepção de que este constitui uma ameaça; e a rejeição de intimidade com membros
do grupo-alvo. O preconceito subtil integra três dimensões: a percepção de que o grupo-
alvo não se ajusta aos valores tradicionais da sociedade (nomeadamente aos valores de
trabalho e sucesso); a acentuação das diferenças culturais entre o grupo-alvo e o
endogrupo; e a negação de emoções positivas relativamente aos membros do grupo-
alvo. Para compreender a expressão do preconceito flagrante e do preconceito subtil no
conjunto das amostras, os autores usaram uma série diversificada de variáveis
independentes12
.
O racismo flagrante encontra-se associado à diferenciação no plano biológico
(racialização) enquanto que o segundo se associa à diferenciação no plano cultural
(etnicização). O facto de ambos os factores se encontrarem fortemente correlacionados
“mostra que se está perante duas dimensões diferentes de um mesmo fenómeno” (Vala,
Brito e Lopes, 1999b, p.37).
Nas várias amostras europeias verifica-se uma maior adesão ao racismo subtil do
que ao racismo flagrante, o que apoia a hipótese de partida dos autores, segundo a qual
11
Posteriormente estas foram aplicadas noutros país es europeus que entretanto se tornaram também eles
países de imigração: na Itália o grupo-alvo foram os ‘marroquinos’ (Arcuri e Boca, 1999); e em
Portugal os ‘imigrantes negros’ (Vala, 1999; Vala, Brito e Lopes, 1999a), assunto que
desenvolveremos na próxima secção.
12
Para uma descrição detalhada destas dimensões do racismo e uma discussão sobre as variáveis
predictoras ver Meertens e Pettigrew (1999), Pettigrew e Meertens (1995), e Pettigrew (1999); a sua
relação com pesquisas precedentes é apresentada pelos autores do modelo nos capítulos com que
contribuem para este livro.
Racismo e Etnicidade em Portugal
72
o racismo flagrante é percebido como anti-normativo, mas não o racismo subtil.
Contudo, não devemos “esquecer que os dados foram recolhidos através de
questionário, quer dizer, em condições que não facilitam a expressão do racismo
tradicional anti-normativo, e em que os respondentes têm controlo sobre as suas
respostas” (Vala, Brito e Lopes, 1999b, p.38).
Relativamente a outras conceptualizações sobre os ‘novos racismos’, a proposta
de Pettigrew e Meertens (1995) tem a vantagem de colocar claramente a análise do
racismo no âmbito dos processos intergrupais, e de salientar a importância das questões
de ordem normativa nas novas expressões do racismo (Vala, 1999).
De salientar que os diversos estudos realizados pelos diversos autores
mencionados relativamente a esta temática apenas apresentam a perspectiva dos
membros dos grupos maioritários ou dominantes, deixando na sombra as percepções
que os membros dos grupos vítimas de racismo têm destes processos. Este
‘esquecimento’ a que são votados os membros das minorias por parte dos investigadores
constitui só por si uma discriminação digna de registo e limita o avanço do
conhecimento científico nesta área.
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
73
1.4 O contexto português
1.4.1 Colonianismo, idendidade nacional e representações do ‘negro’
“Devemos organizar cada vez mais eficazmente e melhor a protecção das
raças inferiores cujo chamamento à nossa civilização cristã é uma das
concepções mais arrojadas e das mais altas obras da colonização portuguesa.”
António Oliveira Salazar, 1935
“Aos olhos desses alguns, as músicas, a dança, as línguas, a filosofia, as
religiões africanas são ‘coisas’ e coisas sem importância. O próprio homem
africano é submetido a esse processo. Na sua mente, nós somos coisas
desprezíveis, destituídas do valor humano que têm todos os homens sobre a
terra. Logicamente, deste processo de ‘coisificação’ passa-se com a maior
facilidade para a violência e a imoralidade.”
Agostinho Neto, 1959
Portugal foi durante muito tempo perspectivado como um país ‘homogéneo’ em
termos linguísticos, culturais e religiosos (por exemplo: Dias, 1950/1990, p.139; 1961,
p.121), mas também como possuindo um “temperamento paradoxal ?que? explica os
períodos de grande apogeu e de grande decadência da história portuguesa” (Dias,
1950/1990, p.146). Por seu turno, Eduardo Lourenço refere ser difícil encontrar "um
país tão centrado, tão concentrado, tão bem definido em si mesmo como Portugal"
(1990, p.10), mas constata também o “gozo da diferença” (1990, p.10).
Numa investigação sobre a identidade nacional Joana Miranda refere que, desde o
período dos Descobrimentos, Portugal revestiu-se de uma ‘identidade mítica’, uma
identidade imaginária já expressa por Luís de Camões em Os Lusíadas. Segundo a
autora, somos um povo com um elevado grau de ‘segurança ontológica’, isto é, sabemos
quem somos e para onde vamos, e salienta “o contraste entre o sentimento de segurança
ontológica e a realidade da nossa fragilidade objectiva, se nos pensarmos em termos de
pura força económica, política, tecnológica ou científica” (Miranda, 2001, pp.13-14).
Não nos vamos aqui debruçar sobre as questões da identidade nacional a não ser
aquelas que se prendem especificamente com a nossa relação com um Outro específico:
o Negro. Não deixa de ser curioso que tendo o território português sido
Racismo e Etnicidade em Portugal
74
permanentemente um palco de fluxos migratórios, por onde passaram e ficaram povos
das mais diversas origens, se continue a perspectivar Portugal como um país
homogéneo.
A presença de diferentes ‘povos’ no actual território português é anterior à era
cristã. Aqui residiram e se cruzaram Iberos, Lusitanos, Fenícios, Romanos, Celtas,
Visigodos e Mouros. A partir do século VI registou-se a presença de Judeus, os quais
constituíram comunidades dispersas pelo país, revestindo-se de particular importância
as judiarias de Lisboa e do Porto. Os Ciganos iniciaram a sua deslocação para Portugal
no século XV e a sua presença foi-se tornando cada vez mais significativa com o tempo
(Rocha-Trindade, 1995, p.197).
A presença de Negros em Portugal a partir do século XV foi uma consequência da
política de expansão inaugurada pelos primeiros reis da dinastia de Avis. José Tinhorão
no livro Os Negros em Portugal: Uma presença silenciosa (1988/1997) faz uma análise
da presença e a participação dos negros na vida portuguesa, desde os primórdios da
nacionalidade até século XX. Recorrendo a materiais tão diversos como a legislação
produzida, a literatura histórica, a literatura de cordel, o teatro, as festas e romarias
populares, a música e a dança. Para além de averiguar a participação dos negros na vida
portuguesa, especialmente no seu papel de trabalhadores no artesanato, no serviço
doméstico, no campo, e nos “serviços mais sujos e pesados” (Tinhorão, 1988/1997,
p.107). A sua análise remete-nos para os papéis que os negros eram chamados a
desempenhar e também para as representações do negro na cultura popular, embora essa
apresentação não seja realizada de forma sistemática.
Segundo o autor, a partir do século XIV são frequentes nos registos históricos as
referências ao negro, sendo a palavra usada tanto para designar ‘mouros’ como
‘africanos’. A palavra era também usada como apelido identificador da cor da pele:
David Negro, Pêro Palha, Luís Mulato, Rita Malhada (Tinhorão, 1988/1997).
Uma dúvida que muitas vezes tem ocorrido a historiadores e estudiosos da
antropologia e dos costumes em Portugal, diante da documentada presença de negros
africanos durante mais de três séculos no país, é a de saber até que ponto essa minoria
étnica se relacionou com os naturais, em termos de cruzamento. Na opinião de
Tinhorão, a maioria dos autores portugueses, visivelmente influenciados pelos
preconceitos racistas, tomou como problema os possíveis vestígios de ‘nódoas
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
75
pigmentares’ (expressão de Pedro d´Azevedo, 1903, citado por Tinhorão, 1988/1997,
p.406) para concluir quase sempre como Mendes Correia que "a proporção de
negróides, mulatos ou negros na nossa gente metropolitana é escassíssima”, que os
"Portugueses não têm afinidades hemáticas com os negros africanos" e "têm-se
acumulado os comportamentos comprovativos de que são reduzidíssimos os vestígios
das influências negríticas ou simplesmente negróides na população portuguesa actual"
(1938, citado por Tinhorão, 1988/1997, p.405-406).
Esta opinião de Mendes Correia é partilhada por diversos médicos que se
preocuparam com a ‘pureza bioquímica do povo português’. Por exemplo, Aires de
Azevedo (1940, p.32) refere que a “influência das raças coloniais (nomeadamente
Hindu e Negra) na pureza bioquímica do povo português, é praticamente nula”. E Pires
de Lima (1940, p.167) fornece uma indicação mais detalhada:
“Não há dúvida que o nosso fundo étnico provém dos Lusitanos, dos Romanos e dos
Germânicos; mas onde quer se topam indícios de influências estranhas. As ideias
fatalistas do nosso povo derivam da alma dos Árabes, que deixaram aqui tantas
mouras encantadas; onde quer se notam sobrevivências judaicas no espírito
mercantil e usurário de tantos Portugueses; e o abominável fado, que muitos
consideram indevidamente como a mais típica das canções nacionais, provém
certamente da triste música dos escravos negros, que herdamos das Descobertas.
Com grande exagêro, tem sido Portugal acusado, sobretudo por alemães, de albergar
um povo inferior, de carácter acentuadamente negróide”.
Na opinião de Tinhorão, este conjunto de opiniões mostra que os autores
portugueses, em geral, preferem não aprofundar o tema, talvez para não cair em
contradições gritantes, como a de Mendes Correia na conferência onde, após sugerir que
"se tenha exagerado a prolificidade dos escravos em Portugal", cita longamente a
conclusão de Oliveira Martins, que o contradiz:
"Os escravos, repugnante legado da descoberta da África e do domínio ultramarino,
punham na sociedade uma mancha torpe; e na fisionomia das massas, borrões de cor
negra, pelas ruas e praças da capital. Tinham-se e tratavam-se como gado. Criavam-
se rebanhos de mulheres para crias, porque um pretinho novo, desmamado apenas,
já valia 30 a 40 escudos. As negras soíam ser fecundas e inçavam as casas de
negrinhos e mulatinhos, como diabos, chocarreiros, ladinos, quem não gostaria
deles?" (citado por Tinhorão, 1988/1997, p.406).
Racismo e Etnicidade em Portugal
76
Conclui Tinhorão que, diante de tais exemplos, o mais razoável a fazer seria
reunir e apreciar sem pré-julgamentos as informações disponíveis sobre como se
processou, desde o início dos contactos com a África Negra, na segunda metade do
século XV, o relacionamento entre a sociedade branca e os escravos que daquele
continente chegavam cada vez em maior número. O autor refere que a indiferença
científica e o preconceito oficial teriam conduzindo “ao esquecimento da dívida
inegável da nação e da gente portuguesa à força de trabalho e ao sangue dos negros
africanos” (1988/1997, p.422).
Segundo o historiador Valentim Alexandre (1999, p.133) o moderno Império de
Portugal em África constrói-se no século XIX, a partir da independência do Brasil
(declarada em 1822 e reconhecida em 1825), após a qual o poder imperial português
fica reduzido a uma expressão menor, sendo neste contexto, muito desfavorável, que
nascem os primeiros projectos de formação de um novo Império, centrado no
Continente Africano.
Segundo o autor, coube a Sá da Bandeira formular e dar expressão política ao
mais consistente desses projectos - o único que, rompendo com as práticas correntes,
toma por base a abolição imediata do tráfico de escravos e, a prazo, a da própria
escravatura. Para justificar as medidas abolicionistas, Sá da Bandeira valia-se das
disposições da Carta Constitucional, que consagrava a “inviolabilidade dos direitos civis
e políticos dos cidadãos portugueses” e que concedia a cidadania portuguesa a quem
tivesse nascido “em Portugal ou seus domínios”. Partindo destes princípios Sá da
Bandeira concluía: “é positivo que os habitantes portugueses das províncias da Africa,
da Ásia e da Oceânia, sem diferença de raça, de cor ou de religião, têm direitos iguais
àqueles de que gozam os portugueses da Europa” (citado por Alexandre, 1999, p.134).
No entanto, apesar de traduzido em vários diplomas legais, o abolicionismo de Sá
da Bandeira encontrou múltiplas resistências. Alexandre (1999) refere que a proibição
do tráfico negreiro em 1836 em pouco contribuiu para a sua efectiva extinção face à
posição dos negreiros, que dominavam a vida económica e política das possessões
africanas, para além de que a perspectiva abolicionista era também muito minoritária na
própria metrópole, sendo geralmente atacada como uma simples utopia, que poderia pôr
em causa a soberania nacional nos territórios do Continente Negro. Para a ideologia
dominante “a raça negra estava irremediavelmente ferida por uma inferioridade inata:
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
77
tratar-se-ia de uma "população selvagem", "essencialmente indolente", inclinada por
natureza à embriaguez e ao roubo, que não conhecia nenhum dever social nem
experimentava "sentimento do amor à família" ou o do amor do próximo", concepção
essa que legitimava o tráfico de escravos e a escravatura:
“o debate ideológico tem, como pano de fundo, uma realidade fortemente marcada
pela persistência do tráfico negreiro e de formas de produção baseadas na coerção
(trabalho escravo ou trabalho forçado) contrariamente aos mitos correntes,
alimentados ainda hoje por certa historiografia, da prioridade portuguesa na abolição
do comércio negreiro e da escravatura” (Alexandre, 1999, p.135).
Segundo Alexandre o predomínio desta ideologia só iria esbater-se na década de
1870, época em que Andrade Corvo retoma e aprofunda muitos dos temas enunciados
por Sá da Bandeira. A manifestação mais clara dessa renovação está na lei de 29 de
Abril e 1875 que extingue o trabalho servil nas colónias. No âmbito da política colonial
defende-se “a integração dos povos das possessões no conjunto nacional, de preferência
por aliança com os ‘chefes indígenas’ e preservando as instituições tradicionais
africanas, nas quais via um embrião da vida democrática” (1999, p.136).
Para Andrade Corvo a grande maioria das populações africanas seria susceptível
de progredir e civilizar-se, recuperando do seu atraso histórico. Caberia à Europa abrir-
lhe o caminho, mostrando aos “povos selvagens” as formas de “domínio do homem
sobre as forças da natureza pela ciência”, ao mesmo tempo que se lhes inculcaria uma
superioridade moral da civilização cristã “fundada na igualdade de todos os homens, na
paridade de todas as raças e no progresso em comum de toda a humanidade”
(1883/1887; citado por Alexandre, 1999, p.136).
Mas a política de Andrade Corvo teria sucumbido rapidamente, não resistindo à
emergência de uma forte corrente de nacionalismo populista nos finais da década de
1870. Nas colónias, as formas coercivas de trabalho e o próprio tráfico de escravos
impuseram-se de novo, contra o disposto no regulamento de 21 de Novembro de 1878,
de imediato infringido por regulamentos locais, com a complacência do governo de
Lisboa (Alexandre, 1999, p.136).
No campo ideológico, o ‘racismo científico’ recorre aos tópicos recém-
desenvolvidos pelo darwinismo social e pela antropologia física, que ilustrámos no
ponto 1.3.1. Oliveira Martins (1880/1953, pp.262-265) fornece-nos um exemplo:
Racismo e Etnicidade em Portugal
78
"Sempre o preto produziu em todos esta impressão: é uma criança adulta. A
precocidade, a mobilidade, a agudeza próprias das crianças não lhe faltam; mas
essas qualidades infantis não se transformam em faculdades intelectuais superiores.
Resta educá-los, dizem, desenvolver e germinar as sementes. [...] Não haverá,
porém, motivos para supor que esse facto do limite da capacidade intelectual das
raças negras, provado em tantos e tão diversos momentos e lugares, tenha uma causa
íntima e constitucional? Há decerto, e abundam os documentos que nos mostram no
negro um tipo antropológico inferior, não raro próximo do antropóide, e bem pouco
digno do nome de homem. A transição de um para o outro manifesta-se, como se
sabe, em diversos caracteres: o aumento de capacidade da cavidade cerebral, a
diminuição inversamente relativa do crânio e da face, a abertura do ângulo facial que
daí deriva, e a situação do orifício occipital. Em todos estes sinais os negros se
encontram colocados entre o homem e o antropóide.[...] A ideia de uma educação
dos negros é portanto, absurda não só perante a História, como também perante a
capacidade mental dessas raças inferiores. [...] Que será daqui por muitos séculos
das raças negras? Obedecendo a leis inerentes à existência do homem sobre a Terra,
terão desaparecido, em vez de se terem civilizado” (citado por Alexandre, 1999,
pp.136-137).
Segundo Alexandre, a doutrina expressa neste texto é uma ilustração de uma
“teoria geral da história, muito elaborada e muito coerente, que Oliveira Martins expõe
noutras obras”. Na sua base, estava a ideia de uma desigualdade congénita das diversas
“ ‘raças naturais’, biologicamente distintas e irredutíveis. De entre elas, a superioridade
caberia à ariana, destinada a criar a civilização europeia e a dominar o mundo,
submetendo ou exterminando os povos inferiores”. As consequências desta teoria, no
domínio da política colonial, eram óbvias. Segundo Oliveira Martins, seria absurda a
aplicação da Carta Constitucional à "pretaria" de Angola, sendo a utilização do trabalho
forçado do negro a única forma de criar "colónias fazenda" proveitosas à economia
nacional (Alexandre, 1999, p.137)
Alexandre salienta que estas ideias tiveram larga aceitação nos meios imperiais
portugueses. António Enes (Governador de Moçambique), desenvolveu o tema do
trabalho obrigatório, justificando o exercício de uma "compulsão" sobre "entes quase
impensantes e impulsivos para os arrancar à ociosidade", considerando que o Estado
não devia "ter escrúpulo de obrigar e, sendo assim, de forçar a trabalharem, isto é, a
melhorarem-se pelo trabalho, a adquirirem pelo trabalho meios de existência mais feliz,
a civilizarem-se trabalhando, esses rudes negros da Africa, esses ignaros párias da Ásia,
esses meios selvagens da Oceânia” (Enes, 1899; citado por Alexandre, 1999, p.138),
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
79
tendo participado num regulamento de 9 de Novembro de 1899 que, revogando o de
1878, consagrará de novo o trabalho obrigatório.
A mesma perspectiva contribuía para justificar a apropriação de terras em África,
uma vez que aos negros faltava a noção de propriedade, para defender a aplicação aos
"indígenas" de um direito penal específico, fortemente repressivo, que seria o único
eficaz perante povos selvagens, e ainda para preconizar a limitação da educação dos
africanos aos mais simples rudimentos “sendo tudo mais inútil e mesmo prejudicial”
(Alexandre, 1999, p.138).
É dentro desta perspectiva que Eduardo Ferreira da Costa (1901), no primeiro
Congresso Colonial, apresenta uma comunicação na qual faz a apologia de um
“despotismo atenuado” para governo das colónias: negação do princípio da liberdade de
imprensa e do direito de sufrágio; e a instauração de um "regime militar", nos territórios
ainda não inteiramente "pacificados", com a concentração de todos os poderes nas mãos
dos governadores e a utilização de processos militares sumários na administração. Em
qualquer caso, a lei aplicável a ‘europeus’ e a "indígenas" não poderia ser igual, pois:
"as razões antropológicas, as razões sociais, mostrando a disparidade de caracteres
étnicos, de usos e de instintos, e a inferioridade manifesta do selvagem,
evidencia[vam] a necessidade de aplicar diferentes sistemas de governo a raças tão
diversas e de manter nas mãos dos mais civilizados, como dos mais dignos, a tutela
dos mais selvagens e primitivos, como de uma classe desgraçada ou incompleta da
sociedade humana" (Costa, 1901; citado por Alexandre, 1999, p.139).
Segundo Alexandre, esta seria a doutrina dominante nos começos do século XX,
em plena época da ocupação militar dos territórios coloniais. No entanto, algumas vozes
davam um maior crédito às possibilidades de "civilização" e de assimilação da raça
negra - embora sempre num futuro longínquo, após uma longa evolução. Paiva
Couceiro (Governador de Angola, 1907-1909), apontava como objectivo final da
colonização de Angola a sua transformação numa "grande província portuguesa", dando
"cunho nacional à totalidade do seu povo", a constituir por "portugueses do Velho
Continente", pelas "raças nativas" e por uma "percentagem devidamente doseada de
estrangeiros adventícios". Para o "integramento final de todas as populações dentro da
paz, da ordem e do progresso da hegemonia portuguesa” que, na sua perspectiva, levaria
centenas de anos a realizar (1948; citado por Alexandre, 1999, p.139).
Racismo e Etnicidade em Portugal
80
Esta ideia de integração nacional será continuada por Norton de Matos
(Governador de Angola, 1912-1915, 1921-1923). Os seus planos tinham como elemento
essencial fomentar a emigração metropolitana para Africa, única forma de transformar o
ultramar no "prolongamento da nacionalidade, brilhante receptáculo da nossa língua,
campo vastíssimo à expansão da nova civilização [...] abençoada pelos povos primitivos
que a História nos entregou para os elevarmos até nós" (Norton de Matos, 1926; citado
por Alexandre, 1999, pp.139-140). Uma vez estabelecidas a hegemonia e a civilização
nacional, processo que duraria séculos, seria então possível a fusão das raças em
presença, sob a égide dos valores portugueses. No entanto, durante as gerações mais
próximas, a conservação do domínio de Portugal exigiria uma rigorosa separação racial,
de modo a evitar a diluição dos elementos de civilização (Norton de Matos, 1926; citado
por Alexandre, 1999, p.140).
A necessidade de consolidar o espaço colonial e de o desenvolver
economicamente teria estado na origem da promoção de um inquérito etnográfico em
1912 ou, no mesmo ano, a criação do Museu Etnográfico de Angola e Congo (cf.
Pereira, 1986, p.201). Nessa linha, a acção de Norton de Matos em Angola,
nomeadamente na sua primeira governação (1912-15), parece ter contribuído para
estimular o interesse pelo conhecimento dos nativos das colónias. Criará assim o
Serviço dos Negócios Indígenas, «cuja principal função consistia na codificação dos
"usos e costumes indígenas"» (cf. Pereira, 1986, p.202). No entanto, a crise gerada pela
I Guerra Mundial acabaria todavia por suscitar um notório refluxo no entusiasmo pelos
projectos coloniais (Cunha, L., 2001, pp.112-113).
A emergência do Estado Novo marcará uma inversão nesta política colonial com
o retorno à "arrumação" simplificadora das sociedades em duas esferas distintas –
"civilizadas" vs. "primitivas", exigindo a conceptualização de mecanismos capazes de
atenuar as diferenças pela absorção gradual da "civilização" por parte daqueles que
eram supostos não a possuirem. Esta política dará lugar à elaboração de diversos
projectos assimilacionistas que Moutinho (1980, p.49) designará por “acção
etnocidária”, na medida em que fazia tábua rasa das culturas dos povos colonizados
(Cunha, L., 2001).
Na opinião de Alexandre, estaríamos perante uma concepção “fortemente
etnocentrica, muito marcada pelo nacionalismo exacerbado que, desde o último quartel
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
81
de Oitocentos, tomara a quase totalidade das elites políticas portuguesas” (Alexandre,
1999, p.140). Um dos aspectos fundamentais subjacentes a esta ideologia era a ideia de
uma "finalidade" ou de uma "missão” a cumprir por Portugal no ultramar, como
portador dos valores universais da civilização face aos "povos primitivos" (Alexandre,
1999; Cunha, L., 2001). Este espírito de ‘missão’ foi uma das ideias fortes do Estado
Novo e viria a ser expresso formalmente no Acto Colonial de 1930.
No início do Estado Novo, à entrada da década de trinta, o império está à beira da
falência, sendo a sua importância "muito maior no plano político e ideológico do que no
campo económico" (Rosas, 1994, p.131). Pode mesmo dizer-se que, embora no plano
político e jurídico se expresse a intenção de promover o desenvolvimento económico,
parece ser mais ao nível simbólico que o império assume a sua verdadeira importância
(Cunha, 1994).
Um breve olhar pela legislação produzida na primeira fase do Estado Novo, ajuda-
nos a perceber tanto o esforço de desenvolvimento, quanto o apelo ao império como
factor de mobilização nacional. Braga da Cruz afirma não ser "possível entender
cabalmente o nacionalismo autoritário do salazarismo sem uma referência à sua
dimensão colonial, não só porque o colonialismo do Estado Novo foi um colonialismo
nacionalizador, mas também porque o próprio nacionalismo foi intrinsecamente
determinado pela situação colonial" (Braga da Cruz; citado por Silva, 1989, p.141).
Em 1926 são publicadas as Bases Orgânicas da Administração Colonial, onde se
vinca a necessidade de remodelar a administração colonial. Pela primeira vez se fala de
"império colonial" (cf. Silva, 1992, p.358), o que evidentemente nos remete para a
importância estratégica que tal ideia começa então a assumir, e em 23 de Outubro é
aprovado o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas pelo Decreto nº12533
(Rosas, 2000, p.320).
Aprovado pelo decreto n.º 28570 de 8 de Julho de 1930 e tornado constitucional
em 1933, o Acto Colonial exemplifica de forma clara o desejo de reafirmação do país
através da revalorização das colónias: "É da essência orgânica da Nação Portuguesa
desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de
civilizar as populações indígenas que nelas se compreendam" (Art. 2; Silva, 1989,
p.118).
Racismo e Etnicidade em Portugal
82
Armindo Monteiro (Ministro das Colónias; 1931-1935), considerado o principal
propagandista da ideia imperial na primeira fase do Estado Novo, retoma e dá força aos
temas da vocação colonial do país, e da especial capacidade do povo português para
lidar com as populações "indígenas" do ultramar, muito generalizados em Portugal
desde a época da partilha de Africa (Cunha, L., 2001, p.95).
O antropólogo Luís Cunha (2001) analisou detalhadamente a documentação
produzida no âmbito de dois eventos concretos marcantes durante este período: a
Exposição Colonial do Porto (1934) e a Exposição do Mundo Português em Lisboa
(1940). Referindo-se ao primeiro destes eventos, o autor salienta, por um lado, o
discurso de exaltação do império e, por outro, a sua tónica pedagógica. Através da
exposição procurou-se “cativar interesses e vocações, mas sobretudo demonstrar a
verdadeira dimensão e vocação do país”. A exposição da “vastidão geográfica” da
nação permitiria negar a sua “pequenez europeia”, evidenciando “o valor da alma
missionária e civilizadora portuguesa”. Neste sentido, face à ameaça de outras potências
coloniais europeias que cobiçavam o solo português, pretendia-se evidenciar “os
direitos históricos e morais de possuir um império” e legitimar as expectativas de um
“novo ciclo político” com vista à consolidação destes direitos (Cunha, L., 2001, p.95).
Armindo Monteiro (Ministro das Colónias) na sessão inaugural da exposição
procurou precisamente vincar o carácter imperial da nação portuguesa: apesar das suas
limitações económicas, Portugal consegue realizar uma obra válida porque possui uma
verdadeira ‘vocação’ colonial, exercitada por séculos de contacto com povos
longínquos. Esta "Predestinação histórica" ou "pesada tarefa" abraçada por Portugal fez
com "que se acrescentem territórios ao mundo e novos povos recebam as luzes da
civilização" (Salazar, 1935, p.237; citado por Cunha, L., 2001, p.97).
Por exemplo, Octávio Sérgio ao relatar a sua visita à exposição (1934, p.42), onde
o seu olhar deambulou brevemente pela "pretalhada", refere que o que realmente o
impressionou foi um monumento erguido ao "Esforço da Raça" que descreve da
seguinte forma:
“Uma figura máscula, bem musculada, ergue os braços ao ritmo do abrir das asas,
sôbre a meia calote do globo; a ouro escritas estas palavras: Europa, África, Ásia,
América, Oceania. Por baixo, a legenda camoneana: - ‘Se mais mundo houvera lá
chegara’” (1934, p. 47; citado por Cunha, L., 2001, p. 99).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
83
Sintetizando o material analisado, Luís Cunha refere:
“Seres que conservam do ‘primitivismo’ a nota exótica, os nativos que a Exposição
Colonial mostra apresentam-se docilizados, convenientemente submetidos aos
desejos de uma ‘autoridade superior’, sem que, todavia, se tenham tornado já seres
plenamente civilizados, pois importa fazer notar que ‘dum selvícola, que só conhece
o ritmo sensual do seu batuque e a simplicidade primeva da sua esteira, não se faz,
de golpe, um cidadão’” (1934, p. 185; citado por Cunha, L., 2001, p. 100).
Na opinião do autor, as imagens e os discursos sobre os ‘indígenas’ devem ser
entendidos “como prova de dois factos convergentes: a sua pacificação, que os tornou
súbditos do estado português; e a necessidade de os fazer ainda evoluir no sentido da
aquisição de uma cidadania plena” (Cunha, L., 2001, p.100).
No número especial que a revista Civilização dedica à exposição, os ‘indígenas’
são desprovidos da palavra, mas constituem o essencial da ilustração da revista, onde se
evidencia a “sensualidade de corpos seminus” ou o “exotismo das roupas e adornos”.
Assim, “é pela imagem que o discurso do colonizado se constrói, num processo onde o
olhar de quem domina estabelece as regras decisivas do processo de comunicação”
(Cunha, L., 2001, p.101). Neste sentido o autor afirma que fica elucidado de forma clara
que “possuindo uma imagem, o indígena não parece possuir ainda uma alma e essa
ausência remete-o inevitavelmente ao silêncio” (Cunha, L., 2001, p.101).
Na análise que faz das diversas conferências a bordo do Cruzeiro de Férias que
levou jovens portugueses a visitar as Colónias, Luís Cunha refere que os conferencistas
nunca atribuíam relevo à diversidade dos ‘nativos’, sendo estes “sempre designados
genericamente por pretos, do mesmo modo que o universo de práticas culturais se reduz
quase sempre ao sedutor batuque”. Por exemplo, Jorge Brutas Cardoso (1935) enfatiza
"a ingenuidade e criancice dos pretos, que apreciam ainda as bugigangas berrantes”
(1935, p.303, citado por Cunha, L., 2001, p.111). Mais tarde, Marcelo Caetano, Director
Cultural do referido cruzeiro, salientou a importância deste evento na formação moral e
patriótica de potenciais novos administradores, cuja acção mais valiosa seria o “domínio
das almas” (1936, p.379; citado por Cunha, L., 2001, p.110).
Os Trabalhos do 1º Congresso Nacional de Antropologia Colonial (1934)
oferecem-nos uma clara demonstração do saber antropológico da época sobre os
Racismo e Etnicidade em Portugal
84
‘indígenas’. A título meramente ilustrativo iremos referir algumas das comunicações
apresentadas na secção de Psicologia.
A comunicação de Mendes Correia, sobre o ‘valor psico-social comparado das
raças coloniais’ apresenta os resultados de um inquérito no qual se procurava
estabelecer um ‘índice de eficiência racial’ (1934, p.386) baseado numa adaptação do
método de Poteus e Babcock13
. O inquérito foi efectuado junto de 27 portugueses
(missionários, oficiais do exército, médicos, funcionários e outras profissões), que
deveriam expressar a sua opinião sobre várias qualidades (a aptidão para o trabalho, a
impulsividade, moralidade, sugestibilidade, auto-controle, capacidade de decisão,
previdência, tenacidade, inteligência global e educabilidade) das seguintes ‘raças puras’:
negros da Guiné, negros de S. Tomé e Príncipe, negros de Angola e Congo,
Mucancalas, negros de Moçambique, Indianos, Chineses de Macau e Timor, e
Timorenses (1934, p.388).
Tendo presente que o reduzido número de respostas recebidas não permitia
conclusões definitivas, os resultados do inquérito não deixavam, no entanto, de fornecer
algumas indicações úteis. Por exemplo, os bantos manifestavam aptidão para o trabalho
mas eram pouco previdentes, no que eram acompanhados pelos negros da Guiné e pelos
timorenses. Quanto à educabilidade e a inteligência global imperava o desacordo entre
os informantes, tendo alguns deles considerado os portugueses metropolitanos em
desvantagem face aos chinas e aos negros da Guiné! Talvez por isso, Mendes Correia
reconheceu a “heterogeneidade complexa das populações das nossas colónias” e
salientou a necessidade da “utilização de processos científicos mais directos e seguros
do que o de Porteus e Babcock para o conhecimento do valor psico-social das
populações, como certos métodos antropológicos e psicotécnicos” (1934, p.393).
13
Poteus e Babcock (1925) efectuaram um inquérito a 25 pessoas (administradores de fazendas,
industriais, médicos e educadores – sobre alguns caracteres psico-sociais dos trabalhadores agrícolas e
industriais) sobre as qualidades (group planning capacity, resistance to suggestion, self determination,
inhibition of impulse – prudence, resolution – determination, self control, stability of interest,
conciliatory attitude, dependability) de vários ‘grupos raciais’ do Hawai (japoneses, chineses,
portugueses, hawaianos, filipinos e porto-riquenses). Sobre os resultados do referido inquérito, Mendes
Correia refere: “de passagem, registemos que os portugueses ficaram dum modo geral abaixo dos
japoneses e chineses. A verdade é que os ditos autores e os juizes – de certo norte-americanos como
aqueles – não mostram muita simpatia por nós...” (p.385). Não deixa de ser curioso que o
reconhecimento do etnocentrismo dos americanos não o tenha levado a reflectir sobre o etnocentrismo
espelhado nas suas próprias concepções.
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
85
Foram precisamente os resultados obtidos através de métodos psicotécnicos ‘mais
rigorosos’ que foram apresentados por Leite Costa na comunicação seguinte, sobre a
‘avaliação mental dos indígenas de Angola’. A autora aproveitou a presença dos
indígenas na exposição colonial para através dos testes de Burt14
(adaptados dos testes
de Binet-Simon) comparar o nível mental destes com os das crianças metropolitanas,
tendo concluído o seguinte: “os indígenas de Angola ?têm? um nível mental
correspondente ao das crianças europeias entre os 6 e 13 anos (1934, p.493).
Lima Vidal (Arcebispo de Ossirinco), na sua comunicação sobre os “autóctones e
imigrados na África do Sul", ao falar de forma substancialmente abrangente dos povos
nómadas da África central, diz-nos estarmos "em presença de uma raça indolente, de um
tipo ínfimo de humanidade, por nenhuma esperança, por nenhuma ambição despertada
para as lutas da vida e para os progressos que delas provêem" (1934, p.316).
A caracterização dos negros como "crianças grandes" é uma das ideias mais
recorrentes, ilustrada na seguinte afirmação de Santos Júnior:
“Não posso deixar de dizer que a alma indígena moçambicana é, no conjunto,
infantil. Inegavelmente, nos testes de inteligência e em muitas atitudes, surgem
marcadas características infantis. Mas temos de reconhecer que há muito de
complexo, de evoluído e de misterioso naquela alma.” (1950, p.28; citado por
Cunha, L., 2001, p.125).
Mas o ‘paternalismo’ com que os nativos são encarados é apenas uma das faces
do relacionamento colonial. O seu contraponto é o ‘temor da selvajaria’ que marca o
indígena. João de Figueiredo (Governador da Província do Niassa), a partir das
14
Não podemos deixar de dar um exemplo dos referidos testes:
“Teste também valioso para se formar um diagnóstico mental é o da construção de uma frase com três
palavras dadas. Este teste, que as crianças entre 10, 11 e 12 anos satisfazem de uma maneira mais ou
menos completa, construindo com as três palavras dadas uma frase com duas ideias distintas ou duas
frases distintas, ou numa só frase distinta, não foi compreendido por nenhum dos indígenas. Nenhum
foi capaz de compreender aquilo de que se tratava, nem mesmo os mais pretensiosos. As palavras
dadas foram – porto, dinheiro, rio – com os quais uma criança da metrópole de 8 anos [...] formulou –
no Porto passa um rio que trás muito dinheiro”. Leite Costa salienta que apenas um angolano foi
capaz de escrever, “mas três frases distintas, o que não satisfazia” o critério do teste: “1) Porto é uma
cidade, segunda capital de Portugal e onde se encontram os barcos; 2) Dinheiro é moeda destinada a
trocos com objectos; 3) Rio contém água para consumo do homem” (Leite Costa, 1934, p. 399,
sublinhados nossos).
Racismo e Etnicidade em Portugal
86
informações fornecidas pelas Missões Católicas, salientou a "dimensão perigosa", difícil
de controlar ou disciplinar. O ‘feiticeiro’ encarnaria o lado selvagem dos povos
colonizados: "horroroso ser humano”, “repugnante indivíduo mata gente para comer
carne humana" (Figueiredo, 1939, p.25; citado por Cunha, L., 2001, p.124). Outra
dimensão considerada igualmente incontrolada e perigosa é a da ‘sexualidade’ (Cunha,
L., 2001, p.125).
Torna-se por isso necessário orientar os indígenas nos rumos difíceis da
civilização, contrariando a sua dimensão marcadamente perigosa. O caminho que o
‘selvagem’ deve trilhar significa um afastamento face a um primitivismo que ora é
grosseiro e violento, ora irracional e incompreensível, mas representa também a perda
da ingenuidade infantil frequentemente atribuída aos indígenas, e que os conferencistas
do congresso colonial procuram demonstrar cientificamente (Cunha, L., 2001, p.125).
Numa breve análise das teses apresentadas neste congresso podemos constatar que
estas espelham aquilo que cientistas anglo-saxónicos procuravam demonstrar
‘cientificamente’ desde o século XIX em relação a outras minorias raciais e étnicas, e
que, como já referimos, incluíam os Europeus do Sul, e especificamente os portugueses
(e.g., Porteus e Babcock, 1925). De salientar, no entanto, o seu carácter ‘anacrónico’ já
que grande parte das comunicações apresentadas se debruçava na ‘antropologia física’
(estudo do crânio, dos nervos, dos músculos, da estatura, do índice torácico, do índice
cefálico, do índice esquelético, do ângulo de inserção da orelha, etc.) e na ‘biologia
étnica’ (os grupos sanguíneos dos indígenas, os problemas causados pela mestiçagem,
etc.) numa altura em que noutros países europeus e nos EUA a antropologia física já era
seriamente contestada (Cunha, L., 2001). Esta tentativa de conhecimento das
características físicas, psicológicas e sociais dos diferentes tipos de ‘indígenas’ visava
sobretudo um melhor aproveitamento da mão-de-obra disponível no vasto império, e
não um reconhecimento da heterogeneidade dos diferentes povos.
Sintetizando alguns dos aspectos fundamentais do relacionamento da metrópole
com os povos dos territórios colonizados, Luís Cunha (2001, p.105) destaca: “a negação
do princípio da autonomia ?...?; a ambição de ‘elevar o indígena para níveis altos de
civilização, de o converter, de o ensinar, de o proteger’ ?...?”. Referindo-se ao primado
da ‘unidade do império’, o autor salienta ainda o “itinerário de acção política
especificamente orientado para as colónias, através do qual se procura consolidar essa
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
87
unidade, pela conversão do indígena “aos valores imanentes à alma humana” (Cunha,
L., 2001, p.105). Ao impor “uma língua, uma fé e uma história ‘superiores’, Portugal
fazia-os participar da sua própria identidade” rejeitando a "política de segregação,
adoptada por outros países coloniais" (Vieira Machado, 1936, p.103; citado por Cunha,
L., 2001, p.106).
Na opinião de Luís Cunha (1994), a análise do processo colonial no plano político
e científico é insuficiente para compreender todo o fenómeno “já que em grande parte
deixa na sombra a natureza das relações sociais que o sustentam” (p.3). Para descortinar
essas relações sociais, isto é, perceber “quais os ‘actores’ e quais os ‘papéis’ que a cada
um cabe desempenhar para o bom sucesso do empreendimento colonial” (p.4), o autor
empreende uma análise sobre ‘A imagem do Negro na Banda Desenhada do Estado
Novo”.
Na sua análise de revistas infantis (especialmente, o Papagaio e o Mosquito) o
autor tem em conta duas dimensões: a representação pictórica (a imagem das
personagens); e a acção desenrolada (o comportamento atribuído e/ou realizado pelas
personagens). O objectivo foi analisar as continuidades e as transformações das
representações do negro que acompanharam os acontecimentos históricos, cujo ponto de
viragem é a II Guerra Mundial. O autor destaca uma caracterização que tende a
dicotomizar-se em duas imagens do negro, as quais simbolizam uma aparente evolução
devida à acção civilizadora do Homem Branco: a transformação do negro selvagem num
negro civilizado, isto é, assimilado. Mas, como o autor refere, o negro mesmo quando
civilizado:
“surge quase sempre em posição de subalternidade face ao branco (são
frequentemente os criados) ou, pelo menos, integrados numa disciplina que o
colonizador define [...] caracterizando-se antes de mais por uma fidelidade estrita ao
seu ‘patrão” (Cunha, 1994, pp.27-28).
Ao nível pictórico os elementos mais salientes da dicotomia selvagem -
assimilado15
são: o grau de nudez das personagens, oscilando entre “a quase nudez e o
uso de roupas claramente ‘modernas’” (p.27); e o contexto situacional que as envolve, a
15
O autor refere ainda uma terceira categoria, transversal à dicotomia selvagem/civilizado, a
representação caricatural ou grotesca em que o negro surge como veículo de ‘comicidade’ (Cunha,
1994, p.27).
Racismo e Etnicidade em Portugal
88
“selva ameaçadora” ou o “contexto urbano, e mesmo quando este não existe o ambiente
natural surge docilizado, como por exemplo quando o africano nos surge protegido
pelas missões” (p.28). Mas é sobretudo ao nível dos comportamentos que se opera a
diferenciação.
A construção da especificidade identitária do negro acentua-se através do uso de
designações em termos genéricos (preto, selvagem, etc.). Quando são atribuídos nomes
às personagens negras é também notório o reforço dessa especificidade, que é efectuado
ora acentuando a marca distintiva da cor (Juca Alcatrão, Neca Choça, Zé Escarumba, Zé
Preto, Zé Pretinho, Farrusco, etc.16
) ora invocando, ironicamente, o seu contrário através
do uso da antonímia (surgindo Bola de Neve, Arminho, etc.) (p.30). Algumas
expressões remetem ainda para a esfera da animalidade (‘guerreiros selvagens, maus
como escorpiões’, ‘como um berro selvagem, o filho das matas esticou-se todo’, etc.)
sendo estas acompanhadas de “imagens onde negros e macacos praticamente se não
distinguem” (Cunha, 1994, p.30).
A propósito da participação do negro na natureza indómita, Luís Cunha salienta
uma interessante ambiguidade:
“se por um lado o negro surge enquadrado harmoniosamente com a natureza que o
envolve [...] por outro é frequente apontar-se a sua inépcia para enfrentar as ameaças
próprias da selva. Basta notar como a acção dos brancos causa espanto e admiração
[...], sendo mesmo solicitada quando a ameaça se torna incomportável pelos
indígenas [...]. O negro [...] aparece sempre, mesmo quando no seu próprio contexto,
numa posição de inferioridade face ao branco, que munido de instrumentos e saberes
que a "civilização" lhe forneceu, se mostra capaz de dominar com eficácia a
natureza inóspita que o negro teme apesar de nela se inserir” (1994, p. 30-31).
Ou ainda:
“Impondo-se e dominando um meio natural que não é o seu, o branco define as
regras de acesso ao que se apresenta como o saber justo e verdadeiro, aquele através
do qual os comportamentos sociais se devem orientar. A educação mostra-se o
instrumento eficaz e necessário, senão para o negro perder a sua noção de
inferioridade, pelo menos para aceder ao limiar da civilização. Transformados pela
16
Esclarece-se que ‘Escarumba’ significa ‘pessoa de raça negra’ e ‘Choça’ é sinónimo de ‘carvão’
(Cunha, 1994).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
89
educação surgem então os ‘pretos de alma branca’ [...], criaturas que, moldadas
pelas missões, eram capazes de cometer acções inesperadas atendendo à sua raça –
por exemplo expressando bondade espontânea e desinteressada” (Cunha, 1994,
p.31).
Porém, não é tanto ao nível técnico que a educação expressa a sua máxima
importância, mas na transformação espiritual: “É pela sujeição da ‘alma’ ao rigor de
uma disciplina ‘civilizadora’, que o negro se liberta, quer dizer, que a ‘alma’ se lhe
"branqueia" (p.31). A educação apresenta-se portanto como o meio indispensável para
aspirar a um novo nível de ‘civilização’. O autor refere que a imagem positiva do negro
surge frequentemente associada a uma boa prestação escolar (por exemplo: "Os quatro
pretinhos espertos são muito aplicados na escola, sempre sossegados e atentos às lições
do professor”), isto é, “a expressão de uma positividade está como que dependente da
participação do africano nos critérios de ‘civilização’ que o colonizador define” (Cunha,
1994, p.31-32).
Sintetizando, ao ‘selvagem’ corresponde uma imagem negativa do negro
caracterizada essencialmente pela agressividade associada à acção guerreira, pela
perigosidade associada às práticas de feitiçaria, e pela voracidade associada ao
canibalismo, e ainda pela inabilidade e ignorância. Em contrapartida, ao negro
‘assimilado’ são associados “um conjunto de traços positivos que, em grau de
importância decrescente, podemos agrupar da seguinte forma: prestabilidade,
submissão, heroicidade, esperteza/inteligência e habilidade (p.34). De salientar que a
inteligência/esperteza só se expressa de forma clara, ainda que restrita, pela participação
no universo do Homem Branco (Cunha, 1994, p.33-34). Assim, a construção de uma
imagem positiva do negro é um mero reflexo da interiorização de um modo de ser que é
definido num universo simbólico comum, mas de recursos polarizados para os
diferentes actores.
Considerando as revistas infantis abordadas, Luís Cunha refere que até ao início
dos anos quarenta predomina a imagem de:
“um negro embrutecido, enredado em práticas perigosa e quase a-humanas, como a
agressividade gratuita ou o canibalismo. Quando não é a agressividade a imperar os
negros tendem a aparecer como uma espécie de ‘crianças grandes’, facilmente
Racismo e Etnicidade em Portugal
90
controladas pela inteligência do branco civilizado [...], mas ainda nessa situação fica
a ideia de uma inferioridade intransponível, mas que parece residir mais numa
espécie de ‘natureza racial’, que o acesso à educação apenas belisca sem jamais
remover” (Cunha, 1994, p.80).
Antes da II Guerra Mundial predomina a imagem do negro selvagem, enquanto
que depois desta é a do negro assimilado que predomina, acompanhando assim a
mudança que se efectuou a nível internacional na perspectivação das diferenças
‘raciais’, a que fizemos referência no ponto 1.3.1 (de referir que algumas das revistas
correspondiam a traduções de edições estrangeiras). No pós-guerra predomina uma
imagem positiva do negro, imagem esta que resulta da aceitação dos valores da
‘civilização’ expressa na submissão e lealdade face ao branco. Aparentemente a
distância entre o branco e o negro deixa de ser intransponível, desde que o segundo se
submeta ao universo do primeiro. Assim, em ambos os momentos históricos o negro
surge como ser ‘dominado’ (Cunha, 1994, p.80).
De notar que a dicotomia entre os negros ‘selvagens’ e os ‘assimilados’ tem o seu
paralelismo com uma alteração do estatuto do indígena, introduzida legalmente pelo
Decreto de Lei n.º 39 666 de 20 de Maio de 1954 que distinguia entre os indígenas e os
assimilados:
“Pode perder a condição de indígena e adquirir a cidadania o indivíduo ?de raça
negra?que comprovar satisfazer as cinco condições: 1) Ter mais de 18 anos; 2) Falar
correctamente a língua portuguesa; 3) Exercer uma profissão, uma arte ou um ofício
que lhe dê um rendimento necessário à sua subsistência e de seus familiares ou das
pessoas que estão a ser cargo; 4) Ter bom comportamento e ter adquirido a instrução
e os hábitos pressupostos para a aplicação integral do direito público e privado dos
cidadãos portugueses; 5) Não ter sido considerado refractário no serviço militar ou
desertor” (Art.º 56; citado por Barradas, 1991, p.74).
Como salienta Luís Cunha (1994, p.19) “o cumprimento das exigências feitas a
quem quisesse adquirir o estatuto de assimilado e dessa forma a cidadania, obrigaria o
‘candidato’ a participar do universo cultural do colonizador, dir-se-ia mesmo que a
integrar-se nele”. Segundo o autor, se se considerar a figura do ‘assimilado’ como um
elemento de aferição do sucesso da missão ‘civilizador’ do colonialismo português, fica
clara a sua ineficácia, visto que a percentagem de ‘assimilados’ era bastante reduzida.
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
91
Por exemplo, em Angola, segundo os censos de 1940 e 1950 a percentagem de
negros ‘assimilados’ era apenas de 0,7% (24 221 em 1940 e 30 089 em 1950). Esta
percentagem era bastante superior para os mestiços: 82,9% (23 244) em 1940 e 88,8%
(26 335) em 195017
(Bender, 1976/1980, p.216-218). Assim, a aquisição do estatuto era
em grande medida uma questão racial, já que a percentagem de ‘assimilados’ entre os
mestiços era muito mais elevada do que entre os negros. A distinção entre ‘indígenas’ e
‘assimilados’ e a sua estreita ligação com a questão racial poderá estar na origem do
desenvolvimento “em Angola de uma hierarquização da cor da pele (‘preto
retinto/negro’, ‘preto fulo/mulato/cabrito’, etc.) com grande impacto na estruturação
social da sociedade” e cuja influência ainda é visível nos dias de hoje (Delgado, 1997,
p.19; Pepetela, 1985).
Por um lado, no pós-guerra verifica-se um estreitamento dos laços entre a
economia de Portugal e a das colónias africanas e ganha expressão significativa a
emigração da população da metrópole para os territórios de África. Para tal terá
contribuído o desenvolvimento económico e do melhoramento das condições sanitárias
nas colónias e a “insistente propaganda da ideia imperial levada a cabo pelos aparelhos
ideológicos do Estado Novo” (Alexandre, 1999, p.141)
Por outro lado, a progressiva autonomia e independência de países anteriormente
colonizados por potencias europeias tornava o sistema colonial português cada vez mais
anacrónico e adensavam-se as ameaças externas sobre ele. Face a este novo contexto, o
Estado Novo procede a uma inflexão da sua política: em 1951 foram abolidas as
designações de ‘império colonial’ e de ‘colónias’, até então utilizadas nos textos
oficiais, sendo substituídas pelas de ‘ultramar’ e ‘províncias ultramarinas’. Estas
‘províncias’ formariam com a metrópole um “Portugal uno do Minho a Timor”
(Correia, 1999, p.139). No entanto, manteve-se no ultramar o “estatuto dos indígenas"
que retirava à grande maioria dos africanos o direito de cidadania. Este só seria abolido
em 1961, aquando de um conjunto de reformas efectuadas por Adriano Moreira, entre
as quais se destaca a abolição do trabalho obrigatório (Alexandre, 1999, p.143).
17
A população total de Angola segundo os censos de 1940 era constituída por 3 665 829 negros, 28 035
mestiços e 44 083 brancos e nos censos de 1950 por 4 036 689 negros, 29 648 mestiços, e 78 826
brancos (Bender, 1981, p.216).
Racismo e Etnicidade em Portugal
92
Segundo Alexandre (1999), esta mudança jurídica e institucional corresponde à
adopção do luso-tropicalismo como doutrina oficial pelo regime, teoria formulada pelo
sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1933, 1940).
Analisando a formação da sociedade brasileira, Freyre (1933) realçava os efeitos
benéficos do processo de miscigenação biológica e cultural que ocorrera na Brasil,
valorizando o papel dos portugueses nesse processo, dada a sua ‘singular predisposição’
para lidar com os ‘povos dos trópicos’ e a sua aceitação dos valores culturais das
populações que colonizou. Estas qualidades seriam explicadas pelo próprio fundo étnico
do povo português, já de si uma mistura de gentes de diversas origens. Este passado
histórico explicaria também o “carácter ‘cristocêntrico’ – e não etnocêntrico - da
colonização portuguesa, transmissora de valores universais e não especificamente
nacionais” (Alexandre, 1999, p.142). O resultado final da presença de Portugal nos
trópicos seria a criação de uma verdadeira ‘civilização luso-tropical’ fundada na fusão
de elementos dos vários povos.
Apesar de ser conhecida em Portugal já nos anos 30, a teoria do luso-tropicalismo
foi, na altura, recebida com reservas pelo regime devido, por um lado, à sua apologia da
mestiçagem e, por outro, porque a noção de ‘fusão’ dos contributos culturais das
diversas raças não se coadunava com “o quadro conceptual, ao tempo dominante em
Portugal, que se fundava na oposição 'entre povos ‘civilizados’ e povos ‘primitivos’ ou
‘selvagens’ (Alexandre, 1999, p.142).
Num contexto político e social europeu onde o princípio da ‘assimilação’ fora
substituído por uma cada vez maior autonomia e mesmo independência, era
fundamental encontrar justificação para a conservação de um distinto relacionamento de
uma metrópole com os espaços africanos que tutelava. O luso-tropicalismo apresentar-
se-á então como o instrumento adequado à afirmação da especificidade que o
colonialismo português necessitava. De recordar que ainda nos anos quarenta o discurso
dos responsáveis políticos era marcado pelo desejo de contrariar a miscigenação. Por
exemplo, Marcelo Caetano afirmava em 1945:
"Num só ponto devemos ser rigorosos quanto à separação racial: no respeitante aos
cruzamentos familiares ou ocasionais entre pretos e brancos, fonte de perturbações
graves na vida social de europeus e indígenas e origem do grave problema de
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
93
mestiçamento, grave, digo, senão sob o aspecto biológico, tão controvertido [...], ao
menos sob o aspecto sociológico" (1945; citado por Barradas, 1991, p.73).
A partir dos anos 50 assiste-se a uma notória transformação na ênfase com que a
relação do colonizado-colonizador é pensada e enfatiza-se a ‘multiracialidade’:
"A maneira de ser portuguesa, os princípios morais que presidiram aos
descobrimentos e à colonização fizeram que em todo o território nacional seja
desconhecida qualquer forma de discriminação e se hajam constituído sociedades
pluriraciais, impregnadas do espírito de convivência amigável, e só por isso
pacíficas" (Salazar, 1961, p.18; citado por Cunha, 1994, p.21).
A demonstração da especificidade portuguesa constituía um dos pilares
fundamentais para sustentar a conservação de um modelo de colonização cada vez mais
desajustado das práticas seguidas por outros países europeus. Mal acabou a II Guerra
Mundial o governo português procurou apagar da legislação os indícios mais evidentes
de discriminação racial (Alexandre, 1999). Porém, a representação do negro mudou
mais à superfície que em profundidade, tendo permanecido o paternalismo, que devia
continuar a ser exercido sobre os povos das províncias ultramarinas (Cunha, 1994,
p.22).
A eclosão das guerras coloniais nos territórios africanos (Angola, 1961; Guiné-
Bissau, 1963; Moçambique, 1964; ver Correia, 1999), terá conduzido à acentuação do
recurso ao mito do lusotropicalismo pelo regime e à introdução de reformas importantes
que, no entanto, não tiveram grande expressão no terreno (Alexandre, 1999, p.143).
Vamos agora referir brevemente alguns depoimentos de Mário Pinto de Andrade e
Agostinho Neto, antes do eclodir das guerras, sobre a forma como estes dirigentes
nacionalistas das ex-colónias portuguesas percepcionaram o colonialismo português.
Nos escassos documentos por nós consultados é evidente uma crítica ao “terreno
movediço da luso-tropicalogia” (Pinto de Andrade, 1958/2000, p.43) e uma constante
referência aos malefícios do processo de assimilação a que foram sujeitos os povos
africanos (Cf: Pinto de Andrade, 1958/2000, 1961/2000; Neto, 1959/2000). Por
exemplo, Pinto de Andrade refere:
Racismo e Etnicidade em Portugal
94
“No caso português a assimilação traduziu-se sempre praticamente por uma
deses truturação dos quadros negro-africanos e a criação de uma elite,
quantitativamente reduzida. Ela apresenta-se como a receita mágica que conduziria o
indígena depois das trevas da ignorância até à luz do saber. Uma forma de passagem
do não-ser ao ser cultural, para empregar a linguagem hegeliana” (1961/2000, p.58).
Mais adiante, salientando a perda de ‘autenticidade’ dos povos africanos, refere:
“O peso do assimilacionismo sofrido por todos pesava sobre os ombros. Com efeito,
não somente nos dávamos conta de todo o artifício da nossa formação intelectual
mas igualmente da dificuldade para nos encontrarmos a repensar pelos nossos
próprios meios os valores negro-africanos. Era preciso rasgar o véu que nos
obnubilava, para permanecermos nós mesmos” (1961/2000, p. 63).
Na mesma linha de ideias Agostinho Neto (1959/2000) critica o facto de as
línguas tradicionais não serem faladas nas escolas nem nos meios de comunicação
social (jornais, rádio, etc.), apenas encontrando “guarida em sorridentes e paternais
caçadores do exótico”, fazendo com que a cultura angolana não se possa desenvolver
(p. 49). E acrescenta:
“é mais triste que espantoso que uma grande parte de nós, os chamados
"assimilados", não sabe falar ou entender qualquer das nossas línguas! E isto é tanto
mais dramático quanto é certo que pais há que proíbem os filhos de falar a língua
dos seus avós. É claro, quem conhece o ambiente social em que estes fenómenos se
produzem e vê dia a dia o desenvolvimento impiedoso do processo de ‘coisificação’
não se admirará de tanta falta de coragem. Este desconhecimento das línguas que
impede a aproximação do intelectual junto do povo cava um fosso bem profundo
entre os grupos chamados ‘assimilados’ e ‘indígenas’” (1959/2000, p. 51).
Agostinho Neto salienta que “a assimilação é um processo complicado e sempre
doloroso” (1959/2000, p.52) visto que:
“o ‘assimilado’ é um indivíduo que se encontra entre dois mundos. Desenraizado,
sem laços que o unam ao seu povo, sem a sua língua, sem os meios de realizar a sua
vida conforme a sente, não se encontra também no mundo europeu, cujos costumes
adoptou, cuja língua fala, cujos hábitos pratica, sem que todas essas características
culturais sejam de facto sentidas, sem que façam parte do seu eu” (p.52).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
95
Na opinião de Alexandre (1999) o mito do luso-tropicalismo não se dissipou com
a ‘queda do Império’, em 1975, continuando a circular de forma difusa. Segundo o autor
esta persistência deve-se, por um lado, “ao peso avassalador dos aparelhos ideológicos
do Estado Novo na formação das mentalidades, com consequências a longo prazo” e,
por outro, ao paralelismo entre o luso-tropicalismo e “algumas das ideias de fundo do
nacionalismo português (a capacidade colonizadora, a faculdade de relacionamento
harmonioso com os povos de outras raças, a missão civilizadora do país)” (pp.143-144).
A partir dos materiais analisados e das sínteses fornecidas pelos autores que
citamos torna-se claro que os traços outorgados ao ‘negro’ remetem para um ser com
forte ligação à natureza: são ‘crianças grandes’, incapazes de dominar os seus impulsos
e de tomar conta de si próprios e, embora possam manifestar certa ‘esperteza’, são
privados de inteligência. A imagem do negro oscila entre a atracção do exótico (o
batuque, as danças, os corpos sensuais) e a repulsa (são agressivos, perigosos,
feiticeiros, têm uma sexualidade descontrolada). Quando ‘assimilados’, isto é,
dominados e disciplinados, manifestam alguns traços positivos, mas estes só se
expressam pela sua submissão ao sistema de valores do Homem Branco, a sua
dependência e obediência. Os papéis que lhes são destinados são ligados à execução e
não à concepção de algo, uma vez que podem imitar mas são incapazes de criar, são
papéis subordinados. Os Negros são considerados essencialmente como força de
trabalho, mas também podem ser fonte de divertimento e entretimento para o Homem
Branco.
Sintetizando, estamos perante seres limitados a um modo de ser específico, que
mesmo depois de ‘civilizados’, permanecem fora da ‘história universal’ (Amâncio,
1998; Chombart de Lauwe, 1983-1984; Guillaumin, 1972). De salientar ainda que
segundo a ideologia vigente durante o Estado Novo “estaríamos perante raças
inferiores, por essência e não por acidente histórico sendo parte delas votadas à
extinção, por ‘insusceptíveis de aperfeiçoamento’” (Alexandre, 1999; itálico nosso).
Bem diferente é a representação dos portugueses expressa pelos autores que
durante este período se dedicaram a descrever a identidade nacional (e.g., Dias,
1950/1990; Leão, 1960/1992). Numa recente investigação sobre a identidade nacional,
Miranda refere:
Racismo e Etnicidade em Portugal
96
“quando se lêem descrições e análises sobre Portugal, encontra-se um conjunto de
teorias míticas e messiânicas, insistentes e carregadas de emotividade, relativas ao
destino universal do povo português, ao seu ‘insondável mistério’, à sua irredutível
originalidade. [...] Se nos parece relativamente fácil afirmar que o Portugal de hoje,
apresenta uma elevada identidade nacional, não nos podemos esquecer que tal
identidade, tal como existe hoje, resulta de um processo histórico que atravessou,
fases diversas, até atingir a expressão que actualmente lhe conhecemos” (2001, pp.
18-19).
Jorge Dias (1950/1990) define a personalidade base do povo português da
seguinte forma:
"o português é um misto de sonhador e de homem de acção, ou melhor, é um
sonhador activo, a que não falta certo fundo prático e realista [...]. O português é,
sobretudo, profundamente humano, sensível, amoroso e bondoso, sem ser fraco. Não
gosta de fazer sofrer e evita conflitos, mas, ferido no seu orgulho, pode ser violento
e cruel. É [...] fortemente individualista, mas possui um grande fundo de
solidariedade humana. O português não tem muito humor, mas um forte espírito
crítico e trocista e uma ironia pungente” (Dias, 1950/1990: 145-146).
Assim para Jorge Dias a singularidade do português define-se essencialmente
pela versatilidade de carácter que, como salienta Mário Moutinho, tem como
preocupação “não deixar nada de fora” (1980, p.90). Especial importância é dada à
especial capacidade de adaptação dos portugueses, que explica o carácter sui generis da
colonização portuguesa:
“Há no Português uma enorme capacidade de adaptação a todas as coisas, ideias e
seres, sem que isso implique perda de carácter. É [...] curioso que o Português se
adapta a outro ambiente cultural tão bem que parece ter sido assimilado [...]. A
capacidade de adaptação, a simpatia humana e o temperamento amoroso são a chave
da colonização portuguesa. O português assimilou adaptando-se. Nunca sentiu
repugnância por outras raças e foi sempre relativamente tolerante com as culturas e
religiões alheias” (Dias, 1950/1990, p.156).
Como salienta Luís Cunha (2001, p.53), para Jorge Dias esta “maleabilidade não
significa negar ou sequer diminuir as singularidades”. Na mesma linha de ideias Cunha
Leão refere-se à "nação portuguesa, tão permeável ao universo como universalizante"
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
97
(Leão, 1960/1992, p.149). Para este autor a valorização do que é alheio à nação traduz
uma ‘plasticidade única’, que permite a adaptação sem que o indivíduo se dissolva
(1960/1992, p.187). Assim, o gosto pelo que é estranho e exótico nada tem de
ameaçador para a identidade nacional, traduzindo-se, pelo contrário, em realizações
históricas. Para este autor o povo português teria propensão para deixar a sua marca no
mundo: “O nosso povo só rende na justa medida do seu valor, se possuído do espírito de
missão. Quando pode ultrapassar-se em algo de nobre e universal” (Leão, 1960/1992,
p.138).
Para Jorge Dias “a mentalidade complexa” dos portugueses “resulta da
combinação de factores diferentes e, às vezes, opostos” (Dias, 1950/1990: 146). Para o
autor “este temperamento paradoxal explica os períodos de grande apogeu e de grande
decadência da história portuguesa” (Dias, 1950/1990: 146). De notar ainda que esta
síntese de contrários dá origem “a um quadro excessivamente heterogéneo” (Dias,
1961, p.121; sublinhado nosso) que, como salienta Luís Cunha corresponde a “uma
forma de abrir todos os caminhos, nada deixando de fora” (2001, p.54).
No seu livro sobre a identidade nacional durante o Estado Novo, Luís Cunha
(2001) salienta que estas constituem algumas das ideias mais recorrentes: a especial
capacidade de adaptação dos portugueses e a complexidade da sua maneira de ser. Se o
objectivo dos autores analisados é apresentar “Portugal como entidade singular e
inconfundível” (Cunha, L., 2001, p.58), constata-se também o “gozo da diferença”
(Lourenço, 1990, p.10). Luís Cunha refere a este propósito que “a ideia de uma
originalidade portuguesa parece, paradoxalmente, ligar-se a algo de universal e
transcultural” (2001, p.70).
No nosso entendimento isto nada tem de paradoxal, pois a originalidade dos
portugueses não se opõe a universalidade, mas sim à especificidade dos outros. Este é,
na nossa opinião, o elemento fundamental do sistema simbólico que estamos a analisar,
e que fica mais claro quando confrontamos a representação dos portugueses com a
representação dos negros durante este período.
Enquanto aos portugueses são abertos todos os caminhos e diluídas todas as
fronteiras, aos outros (os negros) é destinado um papel específico num lugar com
fronteiras bem delimitadas (Cf: Lewin, 1948/1997; Amâncio, 1998; Deschamps, 1982a;
Racismo e Etnicidade em Portugal
98
Lorenzi-Cioldi, 1988). Assim a complexidade dos portugueses opõe-se à simplicidade
dos ‘negros’, e a heterogeneidade dos primeiros à homogeneidade dos segundos,
assunto que desenvolveremos aprofundadamente nesta investigação.
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
99
1.4.2 Descolonização, Imigração e os Novos Racismos
A revolução de 25 de Abril de 1974 provocou mudanças profundas na política
interna e externa portuguesa. O fim da guerra colonial e a descolonização tornou-se um
dos imperativos, sendo frequentes as manifestações de ruas gritando o slogan “nem
mais um só soldado para as colónias” (Vieira, 1999, p.171). As negociações para o
reconhecimento da autonomia dos diversos territórios começaram de imediato, tendo
sido reconhecida a independência das diversas ex-colónias africanas entre 1974 e 1975:
Guiné-Bissau (10 de Setembro de 1974; tinha sido proclamada unilateralmente em
1973, mas não reconhecida por Portugal), Moçambique (25 de Junho de 1975), Cabo
Verde (5 de Setembro de 1975), São Tomé e Príncipe (12 Setembro de 1975), e
Angola (11 de Novembro de 1975). (ver Correia, 1999 para uma revisão detalhada).
A soberania indiana sobre Goa, Damão e Diu, integrados na União Indiana a 17
de Dezembro de 1961, foi reconhecida em 15 de Outubro de 1974. O enclave de Macau
continuou sob administração portuguesa até 20 de Dezembro de 1999, altura em que foi
devolvido à China. Quanto a Timor-Leste, a 28 de Novembro a Fretilin proclama
unilateralmente a independência, mas a 7 de Dezembro a Indonésia anexa o território,
que passa a ser considerado a sua 27ª Província. Esta anexação nunca será reconhecida
por Portugal (que corta relações diplomáticas com a Indosénia) nem pela ONU. Em
consonância com os resultados de um referendo promovido pela ONU, Timor-Leste
viria a tornar-se um Estado Independente a 20 de Maio de 2002.
Na opinião de Miranda (2001, p. 15) “a perda das ex-colónias não feriu a imagem
nacional” e Lourenço (1990, p.22) refere que estamos perante uma “estranha
permanência no seio da mudança” porque o império permanece no nosso imaginário.
A Revolução de 25 de Abril de 1974, a descolonização e a consolidação da
democracia, vieram provocar um aumento significativo da população residente em
Portugal, não só devido ao regresso de um número bastante significativo de portugueses
residentes nas ex-colónias e na Europa, mas sobretudo pelo aumento dos fluxos
imigratórios. Sem deixar de ser um país de emigração18
, nas últimas duas décadas
18
A emigração portuguesa foi uma constante ao longo do século XX, tendo atingido a sua expressão
máxima nos anos sessenta – cerca de 1,3 milhões de portugueses, isto é, 15% da população (que
passou de 8,85 milhões para 8, 62 milhões) (Viera, 1999). Embora com menor expressão, a emigração
continua a ser um fenómeno importante na nossa sociedade (Gonçalves, 1996; Leandro, 1995; Leite,
Racismo e Etnicidade em Portugal
100
Portugal tornou-se também num país de imigração (Machado, 1994, p.112), como
demonstram os dados retrospectivos fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística
(INE): em 1975 havia 31 983 estrangeiros com residência legalizada em Portugal; em 1990
esse número ascendia a 107 767; e uma década depois este número havia duplicado,
situando-se nos 208 198.
Ao contrário do que se verifica relativamente à emigração, a imigração constituía,
até há bem pouco tempo, um fenómeno de reduzida visibilidade. Não só não se revelava
uma temática privilegiada de estudo, como também não constituía objecto de
representações enraizadas no conjunto da população portuguesa (Esteves, 1991, citado
por Miranda, 2001).
Na segunda metade da década de setenta, assistiu-se a um aumento substancial no
crescimento da população residente em Portugal em resultado do processo de
descolonização. Um primeiro fluxo foi constituído pelo regresso de mais de meio
milhão de portugueses residentes nas ex-colónias (especialmente em Angola e em
Moçambique) e que passaram a ser designados por ‘retomados’19
. Um segundo fluxo
(especialmente, entre 1976 e 1980) foi constituído por população africana dos Países
Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Finalmente, verificou-se uma
intensificação dos fluxos migratórios com origem na Europa e na América, devido ao
regresso de emigrantes portugueses e pela vinda de naturais desses países (Rocha-
Trindade, 1995; Vieira, 1999).
Segundo os dados do censo de 1981 residiam em Portugal 9 833 014 habitantes.
De notar que, entre 1960 e 1981, o número de imigrantes aumentou 313%: o seu peso
total na população residente passou de 0.33 % em 1960 para 1.24 % em 1981 (Esteves,
1991, p.21). Os estrangeiros provenientes das ex-colónias de África, aproximadamente
45000, representavam 42% do número total de estrangeiros residentes no país (Saint-
Maurice e Pires, 1989).
Ultrapassado o período da descolonização, desenvolveram-se novos padrões de
imigrações dos PALOP para Portugal. Por um lado, verificou-se uma intensificação dos
1998) e diversos historiadores contemporâneos consideram a emigração fenómeno ‘estrutural’ na
sociedade portuguesa (Serrão, 1974; Godinho, 1978; citados por Neto, 1997, p.91).
19
Como refere Machado (1994, p.113-115) não é possível saber de entre os ‘retornados’ quantos deles
seriam de origem africana. De facto, muitos dos africanos ‘retornados’ não podem ser considerados
imigrantes, visto que formalmente têm a nacionalidade portuguesa. Machado propõe a designação de
‘luso-africanos’ que engloba tanto os africanos de nacionalidade portuguesa que optaram por se fixar
em Portugal na sequência da descolonização, como os novos luso-africanos que, sendo filhos dos
primeiros, “nasceram e/ou cresceram em Portugal e aos quais se chama, erroneamente, ‘imigrantes de
segunda geração’ ” (1994, p.112).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
101
fluxos migratórios laborais já existentes, sobretudo de Cabo-Verde20
, e a constituição de
fluxos envolvendo os outros países, em especial da Guiné-Bissau e de São Tomé e
Príncipe. Por outro lado, verificaram-se fluxos migratórios de menor amplitude,
envolvendo refugiados políticos, especialmente de Angola e Moçambique. Finalmente,
a institucionalização de acordos de cooperação entre Portugal e os PALOP ao nível do
ensino secundário e superior permitiu que estudantes oriundos destes países efectuassem
a sua formação académica em Portugal (Miranda, 2001).
Mas foi sobretudo depois da adesão de Portugal à Comunidade Económica
Europeia (CEE; actualmente designada União Europeia) em 12 de Julho de 1986 que a
imigração passou a assumir uma importância crescente, e, acentuando-se ainda mais
desde a concretização dos Acordos de Schengen, permitindo a livre circulação de
pessoas na União Europeia (UE). O fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS) em 1989, e as subsequentes alterações profundas na geopolítica europeia,
levaram a um aumento exponencial de imigrantes oriundos dos países do Leste Europeu
em todos os países da União Europeia, o que também atingiu Portugal, especialmente a
partir da segunda metade dos anos noventa21
.
Segundo o INE a população residente em Portugal é actualmente de 10 318 084
habitantes. De 1991 a 2001 a população portuguesa registou um aumento de 4,6%, sendo
este devido, em grande parte, à imigração22
. Segundo dados provisórios do Serviço de
Estrangeiros e Fronteiras (SEF), em 2001 o número de estrangeiros ascendia a 219 792,
isto é, 2.13% da população residente em Portugal. Apesar destes números serem inferiores
em termos percentuais aos registados noutros países europeus23
, não deixam de ser
significativos, tendo a questão da imigração ganho enorme visibilidade na comunicação
social ao longo da última década.
Aproximadamente metade dos estrangeiros residentes em Portugal são imigrantes
provenientes de África - 104 012 pessoas -, 65 314 são oriundos de países europeus,
20
A população de origem cabo-verdiana já assumia grande expressão desde a década de sessenta, sendo a
sua fixação estimulada pelo governo português, para colmatar a carência de mão-de-obra provocada
pela emigração maciça para a Europa.
21
Serra (2000, p.128; citado por Miranda, 2001) apresenta uma estimativa de 100 000 cidadãos
clandestinos oriundos da Europa de Leste. Sem dúvida, pelo carácter muito recente deste fenómeno,
existe ainda pouca investigação científica sobre ele.
22
Dados preliminares dos Censos 2001 consultados no site oficial do INE em 28/12/2001.
23
Em Portugal, os estrangeiros activos legais representam menos de 2,5% do total da força de trabalho
enquanto que na União Europeia este valor é em média de aproximadamente 4% (Baganha, Ferrão e
Malheiros, 1999, p.147).
Racismo e Etnicidade em Portugal
102
40 369 da América, 9 279 da Ásia, 539 da Oceânia, e 273 são apátridas24
. Entre os
imigrantes de origem africana destacam-se os oriundos dos PALOP: 48 873
cabo-verdianos, 21 700 angolanos, 16 796 guineenses, 5 895 são-tomense e 4 747
moçambicanos. Entre os imigrantes de origem americana, 23 400 são brasileiros,
constituindo o segundo grupo de imigrantes mais importante em termos numéricos25
. Estes
números referem-se apenas aos estrangeiros com residência legalizada em Portugal,
estimando-se que, na realidade, o número de residentes estrangeiros seja bastante mais
elevado.
Verifica-se uma enorme assimetria na proporção de estrangeiros residentes em
Portugal entre as grandes e as pequenas cidades, as áreas urbanas e as rurais. Em 1996,
65% dos estrangeiros residentes em Portugal concentravam-se na Região de Lisboa e Vale
do Tejo. A segunda região com maior número de estrangeiros era o Algarve com 12,4%,
seguida da Área Metropolitana do Porto com 6% (Machado, 1999, pp.50-51)26
.
Os imigrantes oriundos das ex-colónias portuguesas são maioritariamente jovens,
com poucas ou nenhumas habilitações literárias (Esteves, 1991, p.43; citado por
Miranda, 2001) e desempenham tarefas não qualificadas (Rocha-Trindade, 1995,
p.201). Os homens trabalham predominantemente por conta de outrem, na construção e
obras públicas e nos serviços, dedicando-se as mulheres basicamente aos serviços
domésticos e ao comércio. Trata-se de imigrantes que, em geral, não possuem
habilitações profissionais adequadas às sociedades de tipo urbano e industrial e que
apresentam dificuldades linguísticas que dificultam a sua integração profissional e
social e que, em resultado desses factores, são impelidos para situações profissionais de
carácter precário e mal remuneradas. Os de origem indiana (parte significativa do
contingente de retornados de Moçambique) representam uma excepção, estando ligados,
sobretudo, ao pequeno comércio (Rocha-Trindade, 1995, p.201).
Em Portugal não há estatísticas oficiais baseadas na cor da pele, uma vez que os
censos populacionais não implicam qualquer registo relativo a grupos ‘raciais’ ou
‘étnicos’, ao contrário do que acontece noutros países (EUA, Reino Unido, etc.). No
entanto, alguns autores avançam com estimativas sobre algumas minorias étnicas.
24
Refira-se que alguns estrangeiros com situação regularizada em Portugal usufruem do estatuto de
asilado e de refugiado. O número de pedidos de asilo tem vindo a aumentar nos últimos anos e também
tem vindo a diversificar-se a origem desses pedidos. No entanto, verifica-se a predominância dos
Angolanos, Romenos e Zairenses (Rocha-Trindade, 1995, p.202).
25
Dados provisórios fornecidos pelo Serviços de Estrangeiros e Fronteiras em 31 de Novembro de 2001.
26
Para uma descrição da localização espacial dos imigrantes em território nacional e a sua caracterização
sociológica ver, por exemplo, Baganha, Ferrão e Malheiros (1999) e Machado (1997, 1999).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
103
Os ciganos constituem a minoria étnica mais antiga e mais significativa em
Portugal27
. As estimativas sobre o número de ciganos actualmente em Portugal variam
enormemente em função da fonte: 20 000 (Nunes, 1981); 20 000 a 30 000 (Liégeois,
1989); 50 000 (Bacelar de Vasconcelos, 1998); 30 000 a 92 000 (Mendes, 1998).
De referir ainda a presença de duas ‘hiperminorias’ (Vala, Brito, Lopes, 1999a, p.11)
que adquiriram alguma visibilidade sobretudo nos meios urbanos: os indianos, grupo
constituído por cidadãos oriundos dos territórios do Estado Indiano, nos anos sessenta, e de
Moçambique, nos anos setenta; e os timorenses, cujo primeiro contingente, de 1500
pessoas, chegou a Portugal em 1976 depois da ocupação de Timor-Leste pela Indonésia,
não tendo esse número sofrido alterações significativas (Rocha-Trindade, 1995, p.199).
Na opinião de Machado (1993; referido por Miranda, 2001) não existem em
Portugal grandes contrastes entre a população portuguesa e as comunidades imigrantes.
Não existe nenhuma comunidade que difira da população portuguesa simultaneamente
no nível sócio-económico, na situação residencial, na identidade linguística, na filiação
religiosa e no estilo de vida. A reduzida diferenciação deriva do facto de muitos dos
portugueses terem condições económicas e sociais tão desfavorecidas como as dos
imigrantes:
“[...] embora a percentagem de pobres entre os membros das comunidades
imigrantes seja muito elevada - mais elevada, em média, do que para o conjunto da
população portuguesa -, já a percentagem de membros dessas comunidades entre os
que em Portugal vivem numa situação de pobreza é bastante pequena” (Machado
(1993, p.409; citado por Miranda, 2001).
Machado (2000) salienta que as ‘desigualdades de classe’ e as ‘desigualdades
raciais’, constituem duas dimensões de análise autónomas, uma vez que se podem
combinar entre si de diversas formas:
“A dupla desvantagem, racial e de classe, é uma delas. Os migrantes africanos
inseridos nos segmentos precários do mercado de trabalho em Portugal, por
exemplo, terão uma condição ainda mais desfavorecida do que os portugueses com
27
As primeiras referências a ciganos datam do início do século XVI (Correia, Brito e Vala, 2001). Para
uma descrição da localização espacial dos ciganos em Portugal e a sua caracterização sociológica, ver,
por exemplo, Coelho (1982) e Mendes (1995, 1999).
Racismo e Etnicidade em Portugal
104
idêntica colocação laboral, na medida em que sejam vítimas de discriminação racial,
o que acontece com alguma frequência, em termos de salários, horários ou noutras
condições de exercício da actividade profissional. Não se pode é presumir que o
facto de os migrantes africanos terem essa localização profissional é, em si mesmo,
sinónimo de discriminação racial ou de racismo institucional no mercado de
trabalho. A ser assim, ficaria por explicar porque é que tantos portugueses partilham
essa situação, porque é que outros migrantes africanos ocupam posições
profissionais de classe média, para não falar dos casos em que a sobre-exploração é
imposta, não por portugueses, mas por outros migrantes africanos, mais antigos e
com posições de poder no mercado informal do trabalho” (Machado, 2000, p.31).
Apesar do significativo crescimento da imigração em Portugal, até meados da
década de noventa eram escassíssimos os estudos sobre a problemática da imigração e
do racismo no nosso país. Na opinião de diversos autores, o mito do luso-tropicalismo, a
que fizemos referência no ponto anterior, terá contribuído para que a sociedade
portuguesa acordasse tão tarde para este problema (e.g., Bacelar de Vasconcelos, 1998;
Vala, 1999).
No início da década de noventa, Machado afirmava premonitoriamente:
“Se até hoje a problemática das minorias étnicas não tem tido grande relevância na
sociedade portuguesa, a situação poderá conhecer uma inversão num futuro
próximo. Sensivelmente nos últimos dois anos, têm-se tornado nítidos alguns sinais
de que a politização das questões da imigração e da etnicidade já se iniciou” (1992,
p.134).
O crescimento de actividade e de influência do movimento associativo, “tanto ao
nível da publicitação dos problemas dos imigrantes como através da interpelação directa
do Estado” e o tema da legalização dos imigrantes clandestinos começava então a
ganhar alguma visibilidade, constituindo o “grau zero da politização da etnicidade”
(Machado, 1992, p.134).
A partir da segunda metade da década de noventa a problemática da imigração, do
racismo e etnicidade tem vindo a ocupar um lugar cada vez mais central na opinião
pública portuguesa. Paralelamente, a problemática do racismo constituiu-se como
objecto social de reflexão, tendo-se assistido a um incremento de estudos nas diversas
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
105
ciências sociais e humanas sobre esta problemática, tanto relativamente aos diversos
grupos de origem africana como relativamente aos ciganos, que vivendo entre nós há
tantos séculos, continuam a ser considerados ‘estrangeiros’.
Na segunda metade dos anos noventa o discurso ‘anti-racista’ passou a assumir na
sociedade portuguesa uma posição central no debate público e político, tendo
frequentemente lugar de destaque na agenda dos diversos meios de comunicação social,
como refere Miranda (2001).
O discurso político oficial é um discurso anti-discriminação e incentivo à
integração das minorias na sociedade portuguesa, com particular atenção para os
imigrantes lusófonos. Em 17 de Julho de 1996 foi criada a Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa (CPLP), com o objectivo de estreitar os laços de cooperação entre os
sete países de língua oficial portuguesa (Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique, São Tomé e Príncipe, Brasil, e Portugal), aos quais se juntou Timor-Leste
após a independência em 2002.
Os crescentes fluxos de imigração na Europa e o aumento da visibilidade da
discriminação racial e étnica levou à criação do Observatório Europeu do Racismo e da
Xenofobia (EUMC)28
, do qual Portugal se tornou membro. Como membro do EUMC,
Portugal tem participado nas diversas acções definidas por este organismo. As políticas
adoptadas em Portugal relativamente à imigração e ao combate à discriminação estão
em consonância com as preconizadas pela União Europeia, embora haja nesta matéria
consideráveis variações entre os quinze países da união.
O Decreto-Lei 3-A/96 de 26 de Janeiro 1996 instituiu o Alto Comissário para a
Imigração e Minorias Étnicas (ACIME; cargo assumido por José Leitão até ao início de
2002) cujas funções são as seguintes: (artigo 2º):
a) Contribuir para a melhoria das condições de vida dos imigrantes em Portugal,
de forma a proporcionar a sua integração na sociedade, no respeito pela sua identidade e
cultura de origem; b) Contribuir para que todos os cidadãos legalmente residentes em
Portugal gozem de dignidade e oportunidades idênticas, de forma a eliminar as
28
O principal objectivo do EUMC “consiste em proporcionar à comunidade e aos seus Estados –
Membros dados objectivos, fiáveis e comparáveis, a nível europeu, sobre os fenómenos do racismo,
xenofobia e anti-semitismo, estudar o grau e o desenvolvimento destes fenómenos, analisar as suas
causas, consequências e efeitos, e examinar os exemplos de boas práticas na sua abordagem” (EUMC,
1999).
Racismo e Etnicidade em Portugal
106
discriminações e a combater o racismo e a xenofobia; c) Acompanhar a acção dos
diversos serviços da Administração Pública competentes em matéria de entrada, saída e
permanência de cidadãos estrangeiros em Portugal, com respeito pelas respectivas
competências e pelas dos membros do Governo especificamente encarregados destas
matérias; d) Colaborar na definição e assegurar o acompanhamento e dinamização de
políticas activas de combate à exclusão, estimulando uma acção horizontal
interdepartamental junto dos serviços da Administração Pública e dos departamentos
governamentais com intervenção no sector; e) Propor medidas, designadamente de
índole normativa, de apoio aos imigrantes e às minorias étnicas”29
.
O dia 21 de Março 1996 foi proclamado o Dia Internacional do Racismo, tendo
sido celebrado também em Portugal. Nesse mesmo ano foi criado o programa "Todos
diferentes, todos iguais" no âmbito da Secretaria de Estado da Juventude (SEJ), tendo
por objectivo sensibilizar os jovens para os valores da paz e da tolerância (Miranda,
2001).
O ano 1997 foi consagrado Ano Europeu Contra o Racismo30
, o que intensificou a
visibilidade desta questão nos media e na sociedade em geral, já que foram realizados
inúmeros seminários, cursos, e debates ao longo do ano, com a participação de
representantes das mais variadas organizações e dos cidadãos em geral, como refere
José Leitão (1998).
Foram criados outros organismos oficiais de luta anti-discriminação, entre as
quais se destaca a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial em
2000 (ver site oficial do ACIME para uma revisão da evolução recente sobre a
29
Posteriormente, diversos Decretos-lei vieram alargar estas competências (ver site oficial do ACIME:
www.acime.gov.pt).
30
Objectivos do Ano Europeu Contra o Racismo: a) Realçar a ameaça que o racismo, a xenofobia e o
anti-semitismo constituem para o respeito dos direitos fundamentais e para a coesão económica e
social da Comunidade; b) Incentivar a reflexão e o debate sobre as medidas necessárias para combater
o racismo, a xenofobia e o anti-semitismo na Europa; c) Promover o intercâmbio de experiências
relativas a boas práticas e estratégias eficazes organizadas no plano local, nacional e europeu para
combater o racismo, a xenofobia e o anti-semitismo; d) Divulgar as informações relativas a essas boas
práticas e estratégias eficazes entre aqueles que militam contra o racismo, a xenofobia e o anti-
semitismo, para tornar mais eficaz a sua acção neste domínio; e) Divulgar os benefícios das políticas
de integração desenvolvidas a nível nacional, em especial nos domínios do emprego, educação,
formação e habitação; f) Tirar partido, sempre que possível, da experiência das pessoas real ou
potencialmente afectadas pelo racismo, a xenofobia, o anti-semitismo ou a intolerância, e promover a
sua participação na vida da sociedade (Jornal Oficial das Comunidades Europeias, 15.08.1996, p.3).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
107
legislação nacional referente aos imigrantes e minorias étnicas residentes em território
nacional) e foram realizados vários seminários e conferências com a participação
conjunta de cientistas sociais, políticos, representantes de diversas Organizações Não
Governamentais (ONG).
Na opinião de José Leitão (1998a, pp.58-59), a Constituição da República
Portuguesa, ao consagrar o princípio da igualdade (art.º 13º) e o princípio da
equiparação de direitos entre nacionais e estrangeiros (art.º 15.º na versão resultante da
revisão de 1997), lançou as bases de uma sociedade mais solidária. O princípio da
igualdade determina que:
"ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer
direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua,
território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação
económica ou condição social" (art.º13).
O princípio da equiparação determina que os estrangeiros que se encontrem em
Portugal gozem de todos os direitos dos cidadãos portugueses31
.
José Leitão (ACIME, 1996-2002) salienta a importância dos processos de
regularização extraordinária dos estrangeiros no sentido de diminuir a vulnerabilidade
dos imigrantes a situações de ‘super-exploração’, embora reconheça ser necessário
muito fazer para a erradicação da pobreza e integração dos imigrantes na sociedade
portuguesa, vítimas de graves situações de exclusão social (1998a, p.59).
O ‘associativismo étnico’32
conheceu entretanto um grande crescimento e
vitalidade, o que se tem traduzido na profissionalização de muitas associações assim
como na sua integração em parcerias a nível local, nacional e internacional
(Albuquerque, 2002; Albuquerque, Ferreira e Viegas, 2000; Kastoryano, 2000; Vieira,
31
Com três excepções: ver www.acime.gov.pt.
32
Referimo -nos a ‘associatismo étnico’ sem distinguir entre as associações constituídas por cidadãos
portugueses, cidadãos imigrantes ou membros de minorias étnicas, uma vez que o regime legal que
enquadrava o associativismo até 1999 não efectuava essa distinção. Esta situação alterou-se com a
aprovação do decreto lei n.º 115/99 de 3 de Agosto relativo ao Regime Jurídico das Associações de
Imigrantes. São associações que podem ainda abranger populações de origens muito diferenciadas,
mas partilhando o mesmo objectivo de promover a integração das minorias e lutar contra a
discriminação (Albuquerque et al., 2000; Albuquerque, 2002).
Racismo e Etnicidade em Portugal
108
2001; Yañez, 2000). Numa recente revisão sobre o ‘associativismo étnico’,
Albuquerque salienta:
“De um ‘grau zero de politização da etnicidade’ (Machado, 1992) no princípio dos
anos 90, passa-se para uma forte intervenção política no sentido de reclamar direitos
de cidadania. Esta mobilização centrava-se na exigência da regularização de
documentos, dado o elevado número de imigrantes em situação ilegal devido à
dificuldade de obter autorização de residência. No entanto, o movimento associativo
não esqueceu a bandeira da integração social, designadamente a integração escolar
das gerações descendentes de imigrantes” (Albuquerque, 2002, p. 4).
Como refere Albuquerque (2002), o crescendo da mobilização associativa teve o
seu auge na manifestação colectiva de protesto pelo assassinato de Alcino Monteiro,
cidadão português de origem cabo-verdiana, no Bairro Alto a 10 de Junho de 1995, que
conduziu à união de diversas associações em torno de uma causa comum.
A criação da ACIME em 1996 “constitui um ponto marcante para a evolução do
movimento associativo, pois as associações passam a ter um mediador oficial nas suas
relações com o Estado”. Um factor muito importante foi o reconhecimento destas
associações por parte do Estado. Segundo a autora, “estima-se que em 1990 existiam 10
associações de origem africana enquanto que em 1996 esse número ascendia às 77, ao
qual se podia acrescentar 10 associações de estudantes africanos” (Albuquerque, 2002,
p.4).
Segundo Albuquerque, o associativismo étnico começou por funcionar como
espaço privilegiado de afirmação identitária, contribuindo para a manutenção, difusão e
afirmação da suposta identidade cultural de determinada minoria no contexto português,
promovendo actividades que apelavam a especificidades culturais e que tentavam
instituir práticas e símbolos socialmente unificadores (por exemplo, o desporto, a
música, a dança ou gastronomia). O associativismo desempenha também funções
culturais, de recreação e convívio, assim como de solidariedade ou acção social,
facilitando a entreajuda no processo inicial de fixação e de adaptação dos seus membros
ao novo contexto social e cultural (em termos monetários, burocráticos ou de inserção
habitacional, educacional ou profissional do recém-chegado). Actualmente, o
associativismo desempenha cada vez mais funções político-legais, funcionando como
instrumento de representação e de intervenção das minorias junto do poder político-
administrativo, no sentido de influenciar ou determinar as orientações da acção política
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
109
em função dos interesses da minoria que representa: garantia dos direitos de cidadania
adquiridos, e sua eventual extensão, e a aplicação dos princípios de igualdade de
oportunidades e de justiça social.
Estas acções visam a melhoria das condições de vida dos membros das minorias e
a sua plena integração (Cf: Berry, 1997; Khan, 1998) na sociedade de acolhimento
(Albuquerque et al., 2000; Capucha, 1990; Machado, 1992, 1994).
Paralelamente ao aumento do protagonismo do ‘associativismo étnico’ em
Portugal, registou-se também na segunda metade dos anos noventa o despertar do
interesse pela questão da discriminação racial e da etnicidade nas mais diversas áreas
científicas: Antropologia, Filosofia, Geografia, História, Literatura, Psicologia,
Relações Internacionais, Semiótica, Sociologia. De facto nos últimos anos têm
aumentado o número de trabalhos académicos sobre esta temática e têm sido realizados
diversos colóquios, seminários, conferências em diversas instituições de ensino e
investigação.
De salientar a investigação sobre o ‘associativismo étnico’ (e.g., Albuquerque,
2002; Albuquerque et al., 2000), sobre a situação económica e social dos imigrantes e
minorias étnicas, os números da imigração e a caracterização dos fluxos migratórios
(e.g., Areia, 1998; Baganha, Ferrão, Malheiros, 1998, 1999; Baganha e Góis, 1999;
Baganha, Marques e Fonseca, 2000; Esteves, 1991; Machado, 1992, 1994, 1997, 1999;
Malheiros, 1996; Paes, 1992, 1993; Pires e Saint-Maurice, 1989; Rocha-Trindade, 1995;
Seabra, 1994; Toscano, 1990), sobre algumas das medidas que têm sido tomadas no
sentido de aumentar a sua integração na sociedade portuguesa e diminuir a
discriminação social (e.g., Bacelar de Vasconcelos; Leitão, 1998), e especificamente
sobre a integração dos estudantes oriundos dos PALOP no sistema de ensino português
(e.g., Pacheco, 1996; Samutelela Pires, 1996, 2000).
Especialmente relevantes para a nossa problemática são os trabalhos que têm sido
realizados sobre as estratégias identitárias e as representações dos jovens africanos ou
de origem africana em Portugal, assim como os trabalhos que se debruçam sobre a
identidade nacional, os valores da sociedade portuguesa, e, muito particularmente, sobre
as representações e atitudes dos portugueses face às diversas minorias raciais ou étnicas
em Portugal.
Algumas investigações têm-se debruçado sobre as questões identitárias nas
crianças e nos jovens com origens africanas em geral (‘imigrantes dos PALOP’,
Racismo e Etnicidade em Portugal
110
‘negros’, ‘luso-africanos’, ‘imigrantes de segunda geração’), (e.g., Cantador, 1998,
2001; Delgado, 1997; Khan, 1998), enquanto outras se têm focalizado em grupos
específicos: cabo-verdianos (e.g., Saint-Maurice, 1993, 1997); os guineenses (e.g.,
Machado, 1993, 1998); os indianos (e.g., Alves e Ávila, 1994; Bastos, 1990), os goeses
(e.g., Magalhães, 1994); os timorenses (Viegas, 1998).
Outras investigações têm analisado o racismo em Portugal em relação a diversas
minorias, e em particular, a forma como os portugueses percepcionam ‘os PALOP’
(e.g., Miranda, 1994), ‘os imigrantes negros’ (e.g., Brito, 1998; Vala, 1999; Vala, Brito
e Lopes, 1999a), ‘os cabo-verdianos’ (Miranda, 1994; 2001), ‘os ciganos’ (e.g., Correia
et al., 2001).
Relevantes ainda para a nossa problemática são as análises sobre a identidade
nacional (e.g., Cunha, L., 2001; Mattoso, 1998; Miranda, 2001; Neto, 1996; Rosado,
1999; Viegas e Costa, 1998), sobre os valores na sociedade portuguesa, muito
particularmente, valores dos jovens e as culturas juvenis (Cabral e Pais, 1998; Contador,
2001; Ferreira, 1998; França, 1993; Pais, 1998).
Também relevantes para o nosso trabalho são as análises de conteúdo dos media,
nomeadamente notícias da imprensa e da televisão sobre minorias raciais ou étnicas,
que infelizmente são bastante escassas (e.g., Cunha, Policarpo, Monteiro, e Figueiras,
2002; Leitão, 1991).
José Leitão, numa análise das notícias da imprensa sobre os imigrantes no início
dos anos noventa concluiu que “não existe na sociedade portuguesa um sentimento de
rejeição em geral dos estrangeiros ou desta ou daquela comunidade imigrante” (1991,
p.14). Em contrapartida, nos finais da década de noventa afirmava que os “crescentes
fluxos migratórios têm sido acompanhados pelo aumento do racismo e da exclusão
social, fenómenos que hoje parecem estar de novo na ribalta assumindo, no entanto, um
novo tipo de protagonismo” (1998a, p.55).
O racismo em Portugal é um fenómeno ainda pouco estudado e urge desenvolver
estudos aprofundados sobre esta problemática cuja complexidade exige um olhar atento
e interdisciplinar. Os comportamentos racistas mais visíveis em termos mediáticos e
com maior impacto na opinião pública portuguesa têm envolvido cidadãos também eles
portugueses (por exemplo, o tristemente célebre caso do Alcino Monteiro a que já
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
111
fizemos referência) mas que são percepcionados como sendo ‘estrangeiros’: os ciganos
e os negros33
.
Não podemos deixar de mencionar os confrontos em 1996, 1997 e 1998 em
Oleiros entre a população ‘residente’ e os membros da minoria cigana. O agravamento
do conflito levou à constituição de milícias populares contra os ciganos, que a
população justificava como forma de combater o tráfico de drogas e a insegurança. De
facto, nas sociedades formalmente anti-racistas, “a discriminação veste-se sempre com
outras roupagens, como o medo de assaltos ou a defesa das populações contra a droga”
(Femandes, 1995, p.3).
A gravidade dos confrontos levou a que pela primeira vez em Portugal se
constituísse uma Comissão Interministerial, sob a coordenação do ACIME, para a
elaboração de um estudo sobre a situação social dos ciganos. Bacelar de Vasconcelos,
que teve um papel fundamental na mediação destes conflitos, tem alertado diversas
ocasiões para o problema da exclusão social dos ciganos:
“A situação de marginalização social dos cerca de 50 mil ciganos portugueses [...]
revela-se nas carências em termos de assistência médica, na falta de escolaridade,
nas taxas elevadas de analfabetismo, no grande absentismo e insucesso escolar,
traduzindo-se inevitavelmente em dificuldades no relacionamento com o exterior, no
exercício da cidadania por falta de competências socio-profissionais e dificuldades
de inserção no mercado de trabalho” (1998, p.37).
O autor salienta que “o combate à marginalidade e exclusão social vividas por esta
comunidade requer uma actuação concertada, nomeadamente nas áreas de educação,
emprego, formação profissional, habitação e segurança social” (Bacelar de Vasconcelos,
1998, p.37).
No domínio da psicologia social, merece especial destaque o estudo pioneiro de
Jorge Vala e colaboradores (Vala, 1999; Vala, Brito e Lopes, 1999a) que permitiu aferir
e evidenciar as novas formas de racismo em Portugal.
Estes autores realizaram uma investigação empírica sobre os racismos na
sociedade portuguesa, recorrendo a uma amostra aleatória e representativa de 600
33
Nos últimos dois anos têm aumentado consideravelmente as notícias referentes a casos de exploração
de indivíduos oriundos da Europa de Leste. No entanto, não faremos referência a estes ‘novos
imigrantes’ pois quando iniciámos a nossa investigação empírica (1997) essa minoria ainda não era
socialmente relevante (Cf: Estudo 1).
Racismo e Etnicidade em Portugal
112
indivíduos, com idades entre os 18 e os 64 anos, residentes em Lisboa residentes na
região da Grande Lisboa, cujos dados foram recolhidos em 1996. Como Jorge Vala
salienta:
“A questão não é a de saber se os portugueses são ou não racistas, porque ninguém
é o que quer que seja, e muito menos um povo, uma nação ou um qualquer outro
grupo [...]; o problema consiste em identificar, numa perspectiva processual, os
factores que podem facilitar a ocorrência de comportamentos racistas. Estudar o
racismo numa perspectiva psicossociológica não significa descrever o indivíduo
racista, o seu perfil ou as suas características, mas determinar quais os factores de
ordem cognitiva e motivacional, intergrupal e normativa cuja articulação contextual
torna provável a organização de crenças e de atitudes racistas e a manifestação de
comportamentos racistas” (1999, p.3).
As questões contextuais e normativas assumem enorme importância e exigem um
esforço redobrado. Para Vala “estudar o racismo hoje, em sociedades formalmente anti-
racistas, implica saber descortinar as manifestações mais civilizadas deste fenómeno,
aquelas que não questionam a auto-imagem anti-racista” (1999, p.3). Colocando-se
numa perspectiva claramente comparativa, o autor refere que o problema base é o
seguinte:
“saber se as expressões dos racismos, abertas ou veladas, em Portugal,
correspondem a configurações de crenças, atitudes e predisposições
comportamentais discriminatórias semelhantes àquelas que têm sido identificadas
noutros países europeus; e se os factores que subjazem a essas configurações de
crenças e predisposições apresentam ou não semelhanças com aqueles que foram
identificados nesses países” (1999, p.3).
Nesse sentido as escalas de racismo subtil e flagrante foram integradas num
questionário mais vasto desenvolvido pelos autores, e que foi aplicado a ‘portugueses’
(brancos), por entrevistadores também eles ‘portugueses’ (brancos), tendo como grupo-
alvo os ‘negros’ (‘os negros’, ‘os negros residentes no nosso país’, ou ‘os imigrantes
negros’, conforme as questões). Assim, “os inquiridos eram colocados perante a
dicotomização entre a categoria endogrupal ‘os portugueses’ e a categoria exogrupal ‘os
negros residentes no nosso país’” (Vala, Brito e Lopes, 1999b, p.39). Como os próprios
autores salientam “estas categorias (‘portugueses’ e ‘negros’) não se situam no mesmo
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
113
plano lógico, nem são mutuamente exclusivas” (1999b, p.39). Assim, quando “opomos
‘portugueses’ a ‘negros’, estamos a referir-nos à forma de categorização utilizada no
questionário, adequada ao senso comum, mas inadequada do ponto de vista sociológico
e legal” (1999a, p.13). De facto, “os ‘negros’ em Portugal representam uma
multiplicidade de situações jurídicas, de origens geográficas e nacionais, de pertenças
comunitárias, etc., sendo ainda uns cidadãos portugueses, e outros cidadãos
estrangeiros” (1999b, p.40). Esta opção é justificada pelos autores pela sua “pertinência
fenomenológica” (1999b, p.40):
“este trabalho parte do pressuposto segundo o qual as representações que deles têm
os portugueses ‘brancos’ os dilui dentro da mesma categoria lata de pessoas cuja
ascendência africana é identificável, remetendo para a categorização ‘negro’. A
categorização do exogrupo com base na cor será, então, aquela que mais
automaticamente se toma saliente nos processos de comparação e discriminação”
(1999b, p. 40).
Assim, os autores propõem-se analisar “as atitudes dos portugueses ‘brancos’ face
a uma categoria minoritária, vista como distinta da maioria da população, tendo
maioritariamente um estatuto social baixo, e que se tornou socialmente visível: os
‘negros’ em Portugal” (1999a, p.11).
Os resultados obtidos em Portugal em relação ao grupo-alvo ‘negros’ foram
semelhantes aos encontrados noutros países europeus em relação a diferentes grupos-
alvo, como já dissemos atrás. Assim, os portugueses parecem ter interiorizado a norma
anti-racista vigente na sociedade, o que os impede de exprimir publicamente formas de
discriminação flagrantes, que contrariem claramente essa norma. No entanto, as suas
respostas revelam formas de discriminação mais subtis que, não contrariando
claramente a norma anti-racista, não deixam de ser formas de discriminação (Vala,
1999; Vala, Brito e Lopes, 1999b).
Assim, como afirma Vala, é possível “descortinar fortes continuidades do
fenómeno do racismo entre contextos sociais muito diversificados” (1999, p.7) bem
ilustradas nos diversos capítulos que compõem o livro organizado pelo autor, Novos
Racismos: Perspectivas Comparativas (Arcuri e Boca, 1999; Pettigrew, 1999; Vala,
Brito, Lopes, 1999b). Os autores concluem:
Racismo e Etnicidade em Portugal
114
“o que o conjunto de resultados apresentados monstra é que as crenças racistas se
organizam em Portugal de forma semelhante à de outros países europeus; que os
factores que estão na sua génese não são, significativamente, diferentes daqueles que
subjazem ao racismo subtil ou flagrante noutros países; e que, em Portugal, tal como
nos restantes países europeus, a norma anti-racista incide sobre o racismo flagrante,
mas não sobre o racismo subtil” (Vala, Brito, Lopes, 1999b, p.55).
No entanto, se em relação aos ‘negros’ os estudos realizados apontam para o
predomínio do racismo subtil face ao flagrante, em relação a outras categorias persiste o
racismo flagrante, como salientam Correia, Brito e Vala (2001) numa investigação
sobre as atitudes dos portugueses face aos ciganos (Cf: Bacelar de Vasconcelos, 1998).
Parece assim que a norma anti-discriminação deixa de fora algumas categorias sociais,
em relação às quais não tem havido campanhas de sensibilização da população tão
sistemáticas como em relação aos ‘negros’.
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
115
1.5. Desminar um terreno repleto de ambiguidades
“La lutte contre le racisme commence avec le travail sur la langage.”
Tahar Ben Jelloun, 1998
Ao longo deste capítulo já fizemos referência a algumas ambiguidades
conceptuais que têm caracterizado esta área de estudos, nomeadamente, à difícil
delimitação das fronteiras entre os conceitos de racismo, xenofobia e nacionalismo.
Também o uso das noções de raça, nação, grupo étnico, classe, e minoria varia muito
consoante os textos e revela ambiguidades nos discursos científico e do senso comum.
Como referimos no ponto 1.3, a noção de ‘raça’ quando aplicada aos seres
humanos não tem fundamento científico (UNESCO, 1960/1973). No entanto esta
palavra continua a ser utilizada no quotidiano, misturando-se com outras.
Por vezes a palavra ‘raça’ é utilizada como sinónimo de nação: ‘raça francesa’,
‘raça alemã’. Apesar desta acepção, comum no século XIX e início do século XX, se ter
tornado obsoleta (van den Berghe, 1996, p.297) continua a ser usada no quotidiano.
No ponto anterior vimos como a identidade nacional durante o Estado Novo se
construiu muito à base da ideia de ‘raça’. Ora, a herança dessa conceptualização é ainda
visível nos dias de hoje. João Nuno Coelho (2001), no livro Portugal: A equipa de todos
nós – Nacionalismo, Futebol e Media, fornece-nos um exemplo desta acepção. Segundo
o autor, o nacionalismo baseado na ideia de ‘raça’ é particularmente visível nos
discursos da imprensa desportiva, “tradicionalmente dominados por retóricas de
diferença e de caracterização física e mental”, sendo os estilos de jogo identificados “a
partir das ‘essências’ e ‘naturezas’ dos povos (...) baseadas em mitos históricos”
(Coelho, 2001, p.144).
A partir da análise dos discursos em A Bola, o mais vendido periódico desportivo
português, entre 1945 e 2000, o autor ilustra como “ainda hoje a noção de raça está
profundamente ligada à concepção da nacionalidade e da identidade nacional, ao
privilegiar-se os ‘laços de sangue’ e os traços físicos como definidores de pertenças
identitárias” (Coelho, 2001, p.143).
Racismo e Etnicidade em Portugal
116
Um exemplo interessante para a temática que iremos aprofundar neste trabalho é-
nos dado por um excerto de um relato aquando do jogo Portugal-Correia do Norte no
Mundial de 1966:
“(...) os coreanos têm, neste aspecto da resistência, o truque fácil de, ao intervalo,
trocarem todos os homens, acabando por jogar com vinte e dois, sem o árbitro dar
por isso. É que eles são todos iguais, chamem-se Sub, Sun, Lim, Zin, Kim, Won ou
Seung (...). São todos amarelinhos, pequeninos e senhores de nomes esquisitos (...)”
(Vítor Santos, 23 de Julho de 1966; citado por Coelho, 2001, p.144).
Ainda relativamente às ambiguidades entre a raça e nacionalidade é importante
referirmos que os estudos sobre a percepção dos indivíduos de origem africana em
Portugal nos anos oitenta referiam a assimilação de todos os africanos à categoria de
cabo-verdianos que, como já referimos, constituem o grupo de origem africana mais
antiga e mais numerosa em Portugal. Na opinião de Manuela Cunha (2001, p.286) a
saliência desta categoria era devida “às representações hegemónicas que à época
isolavam a comunidade cabo-verdiana em Portugal como ‘problema’ e lhe colavam a
propensão para a violência, a delinquência e o desvio”. À medida que as outras
comunidades de origem africana foram aumentando o seu número e visibilidade, deixou
de se utilizar uma categoria nacional específica (cabo-verdianos) para se usar categorias
raciais genéricas: pretos, negros, africanos (Cf: Cunha, M., 2001; Machado, 1999).
Por exemplo, Manuela Cunha (2001) num trabalho longitudinal realizado numa
prisão feminina (cujos dados foram recolhidos em 1987/1988 e uma década depois)
refere que a saliência quotidiana das categorias raciais ou étnicas é praticamente nula,
ao invés do que sucedia há uma década, quando eram constantemente activadas.
“Tratava-se então de denegrir colectivamente um conjunto de reclusas,
manobrando-se neste processo essencialmente dois termos: ciganas e cabo-
verdianas. A categoria cabo-verdianas era alvo de uma definição particularmente
elástica por parte das detidas não africanas, para quem pareciam ser irrelevantes para
o efeito os factos da nacionalidade, origem ou naturalidade. A cor da pele era
critério suficiente para uma tal delimitação, sendo por conseguinte remetidas para a
‘cabo-verdianidade' a maioria das reclusas provenientes de outros países africanos”
(2001, p.286).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
117
Na opinião da autora, é possível destrinçar nestas construções discursivas alguns
pontos de contacto com os processos de criminalização analisados na Grã-Bretanha por
Michael Keith (1993; referido por Cunha, M., 2001, p.287) enquanto discursos
racializadores. Segundo Keith o termo black não se limitaria a designar uma parcela
concreta da população, mas seria, em parte, um termo flutuante criado pelo discurso da
criminalização. Estas designações seriam extremamente mutáveis e contextuais e
coexistiriam com as que decorrem de outros campos discursivos, interagindo com eles.
A este propósito Manuela Cunha refere:
“assim como no passado os/as cabo-verdianos/as emergiam, fora e dentro da cadeia,
como sujeito discursivo destacado e distinto, assim, eles/elas imergiriam depois,
dissolvendo-se. Fora, hoje, são outras as ‘classes perigosas’ ?...? e não se ouve mais
falar em ‘criminalidade cabo-verdiana’. Dentro, hoje, os referentes étnico-‘raciais’
são manejados no modo desqualificante pelas esparsas detidas da pequena burguesia
branca e cujo crime não tem a ver com o tráfico de droga. São estas que,
convocando representações emergentes no exterior, procedem a uma categorização
que amalgama pretos (entre os quais, os cabo-verdianos), ciganos, droga,
degradação e bairro-ghetto” (2001, p.287-288).
Esta situação é bem diferente da verificada nos EUA onde a associação entre raça
e crime é muito forte. Peffley e Hurwitz (2002) num estudo recente realizado nos EUA
demonstraram que a mera referência a assuntos relacionados com o crime “bring an
image of African American to the mind of the ?White? individuals” (p.69). Os autores
demonstraram a conexão entre raça e crime nas mentes de muitos americanos brancos.
A crença de que os negros são ‘violentos’ e ‘preguiçosos’ constitui uma importante
fonte de suporte para políticas punitivas como a Pena de Morte e a Prisão Perpétua. Os
resultados desta investigação sugerem que “when many whites think of punitive crime
policies to deal with violent offenders, they are thinking of black offenders” (Peffley e
Hurwitz, 2002, p.59).
Por outro lado, Ortner (1998) debruça-se sobre a organização semântica e
ideológica das categorias culturais através das quais é pensada a diferença no discurso
‘americano’, tanto leigo e académico. Segundo a autora, existiria uma tendência para
traduzir a condição de classe na raça e etnia, categorias discursivas dominantes e com
enorme saliência nos EUA. A autora conclui:
Racismo e Etnicidade em Portugal
118
[T]here is no class in America that is not always already racialized and ethnicized,
or to turn the point around, racial and ethnic categories are already class categories. (…)
If to be Jewish is to be, in deepest essence, middle class (whether one is ‘in reality’ or
not), then to be (...) African-American is to be seen/felt to be, in deepest essence – and
whether one is in reality or not – lower class. African-Americaness carries a more or
less automatic lower class identity in the eyes of others; this much we know. But it also
apparently carries a lower-class identity in terms of self-image” (1998, p.10-13; citada
por Cunha, M., 2001, p.289-290).
Diversos autores têm salientado que o desfavorecimento social de membros de
minorias étnicas ou raciais não é necessariamente consequência de racismo, pois quanto
mais baixa a posição na hierarquia social maior a vulnerabilidade à discriminação (Cf:
Machado, 2000; Pina-Cabral, 1998).
As complexas ligações entre classe, raça, e etnia também têm sido salientadas em
diversos estudos. Estas têm variado significativamente ao longo do tempo e variam
consideravelmente de país para país (Cf: Machado, 2000; Miles, 1989/1995). Por
exemplo, Vale de Almeida refere o actual processo de ‘branqueamento’ dos portugueses
nas ilhas Trindade: no início do século XX os portugueses, emigrantes pobres, eram
incluídos na categoria racial ‘vermelhos’, juntamente com os emigrantes indianos; hoje,
associados a uma influente Europa, são incluídos na categoria ‘brancos’ (1997, p.24).
Na mesma linha de ideias, Pina-Cabral (1998) refere que em Macau, tal como
frequentemente ocorria noutros contextos da colonização portuguesa, a cor da pele
tornava-se menos marcante como barreira discriminatória consoante as pessoas iam
subindo na escala socio-económica34
. Por seu turno, John Camaroff (1996; referido por
Cunha, M., 2001, p.331) dizia que se o inquietava a política da diferença, não o
inquietava menos a “política da indiferença” (itálico no original) referindo-se
concretamente, no primeiro caso, a modos de representação implicados na etnicidade e
no nacionalismo e, no segundo, aos que deixam na sombra a pobreza e as materialidades
do poder (Cunha, M., 2001, p.331).
Esta questão remete-nos para outra: o perigo de transpor categorias analíticas de
um contexto para o outro, sem ter esse contexto em consideração. A “transposição
34
Para uma discussão sobre a necessidade de ter a ‘classe’ e a ‘raça’/‘grupo étnico’ como categorias
analíticas distintas ver Oommen (1994), Machado (2000) e Vale de Almeida (2000).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
119
mecânica de categorias e perspectivas de análise entre espaços e tempos muito
diferentes” (Machado, 2000, p.30) pode acarretar perigos, quando conceitos e teorias
produzidas nos EUA, “o maior exportador de conceitos analíticos”, são transpostos
acriticamente para a análise das questões raciais na Europa ou América Latina. Para
Miles, por exemplo, essa importação teórica tem interesse muito reduzido:
“a concept of racism that was formulated by reference to a single historical example
(the United States) and then uncritically applied to one other (Britain) has a degree
of specificity that seriously limits its analytical scope” (Miles, 1989/1995, p.60).
A questão da articulação entre as desigualdades de classe e as desigualdades
raciais, a que fizemos referência, é uma delas (Cf: Machado, 2000).
Outra das ambiguidades frequentemente presente na literatura refere-se ao termo
minoria (e.g., Moscovici, 1976; Galissot, 1991). Este termo tanto pode designar
simplesmente uma minoria quantitativa (isto é, em estatuto numérico) como uma
minoria qualitativa (isto é, em termos de estatuto social ou poder). No caso concreto dos
imigrantes estamos perante grupos duplamente minoritários (em termos quantitativos e
qualitativos) os que os coloca numa situação de acentuada fragilidade.
Mas outros grupos, não sendo minorias quantitativas, constituem minorias
qualitativas: o caso dos ‘negros’ durante o regime de apartheid na África do Sul
constituem um exemplo flagrante deste tipo de minoria. De igual modo podemos
observar minorias quantitativas que são maiorias qualitativas: as elites políticas, por
exemplo.
Na maior parte das vezes o termo minoria é utilizado para designar um grupo
destituído de poder e de recursos. Como salientam Burguière e Grew “more than merely
quantitative, minority is a loaded term; and its meaning is always culture-bound” (2001,
p.2). Numa obra que reúne diversos estudos sobre a construção social das ‘minorias’ em
diferentes países e em diferentes momentos históricos, os autores salientam:
“To be considered a minority, a group must be both an integral element in the larger
society and sufficiently outside its sociopolitical core to lack that Access to status
and power considered normal (even when in practice only dominant elites exercise
that access). The significance of minority status thus differs from society to society,
Racismo e Etnicidade em Portugal
120
according to which characteristics come to be treated as critically distinctive
(attributes of race, ethnicity, region, religion, or class are among the most common)
and according to the disadvantages or advantages that accompanied that status.
Constraints on a minority’s access to power may be a matter of social custom,
economic condition, regional difference, or formal, legal restriction; but that
differential access, more than its number relative to the population at large, marks a
minority” (Burguière e Grew, 2001, p.3-4).
Na opinião dos autores a ambiguidade do termo minoria reside na sua conotação:
“In its ambivalent contemporary usage, the concept of a minority designates a
weakness and affirms a strength. ?…? Negative in the sense that it identifies a group
in terms of its vulnerability to a majority that threatens to oppress or reject it, the
concept is positive in its recognition of a group’s cultural or moral value, which
must be affirmed or recognized or protected” (Burguière e Grew, 2001, p.3-4).
Se a análise empreendida pelo autores nos parece estimulante por salientar a
construção social das ‘minorias’ em diferentes sociedades e por demonstrar que essa
construção se baseia em critérios convencionais e arbitrários, não deixa de ser
surpreendente que a necessidade da minoria ‘ser protegida’ aparece como um aspecto
‘positivo’, já que esta necessidade de protecção corresponde precisamente à negação da
sua autonomia.
Outra questão polémica, a que já fizemos referência no ponto 1.2, prende-se com
o conceito de racismo, e se este pode ser assimilado ao conceito de etnocentrismo.
Claude Lévi-Strauss, por exemplo, opõe-se firmemente a essa possibilidade, dizendo
que não se pode confundir o racismo com o etnocentrismo:
“O racismo é uma doutrina que pretende ver nas características intelectuais e morais
atribuídas a um conjunto de indivíduos ?...? o efeito necessário de um património
genético comum. Não se pode alinhar sob a mesma rubrica ?...? a atitude de
indivíduos ou de grupos cuja fidelidade a determinados valores os torna parcial ou
totalmente insensíveis a outros valores. ?...? Esta incomunicabilidade relativa não
autoriza, claro, a oprimir ou destruir os valores que se rejeita ou os seus
representantes, mas, mantida nestes limites, ela nada tem de revoltante” (1983/1986,
p.15).
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
121
Confrontado com esta questão, Pina-Cabral refere que, uma vez que nas novas
formas de preconceito se manifestam essencialmente pela diferenciação cultural, em vez
de racismo, seria preferível adoptar “expressões mais abrangentes do género de
‘etnocentrismo’ ou ‘discriminação e preconceito étnico’” (1998, p.24). Segundo o autor,
o conceito de racismo:
“põe uma ênfase excessiva na diferenciação fenotípica como principio
classificatório dominante - ora isto é indubitavelmente verdade em contextos
radicados na tradição anglo-americana, mas não é em tantos outros contextos a nível
mundial, onde o preconceito e a discriminação também grassam, como os
lusófonos” (Pina-Cabral, 1998, p.24).
Numa artigo dedicado a esta questão, Machado (2000, p.14) refere ainda uma
terceira posição, distinta de qualquer das anteriores, é a daqueles que falam de
‘etnicismo’ para designar essas novas formas de preconceito, não deixando, no entanto,
de o incluir num conceito mais alargado de ‘racismo’ (e.g., Essed, 1991; van Dijk,
1991).
Taguieff (1997, p.44) critica a ‘banalização’ da palavra, mas alerta para os efeitos
indesejáveis de uma definição restrita do racismo – reduzir o racismo a um fenómeno
ideológico próprio da modernidade recente, isto é, reduzi-lo à doutrina ‘científica’ da
desigualdade entre raças humanas é insuficiente para compreender o racismo, sobretudo
nas suas formulações actuais, mais ‘veladas’.
Relativamente a esta questão Machado refere o seguinte:
“Sem negar que há uma faixa de sobreposição entre os dois fenómenos, e não
entrando aqui na discussão aprofundada do problema, pode, de qualquer modo,
dizer-se que a fusão do etnocentrismo e do racismo, ou a substituição do segundo
pelo primeiro, é precipitada. Se isso permite dar conta daquilo que os dois têm em
comum, perde-se de vista o que eles têm de diferente, e que justificou a evolução
autónoma dos dois conceitos” (2000, p.14).
Vamos deixar clara qual a nossa posição neste debate: consideramos como racista
uma discriminação negativa (ao nível dos comportamentos, cognições ou emoções)
Racismo e Etnicidade em Portugal
122
quando esta se baseia numa diferença essencial entre o grupo de pertença e o(s) outro(s)
grupo(s). Uma diferença essencial significa que é percepcionada como absoluta, fixa e
imutável, isto é, define fronteiras nítidas e intransponíveis entre os grupos. Esta
diferenciação pode basear-se em critérios biológicos ou culturais, mas é sempre
remetida para a uma essência. Mas como vimos, o carácter vinculativo dessa essência
difere em função da posição relativa dos grupos: marca um dos grupos (grupo
dominado), mas liberta o outro (grupo dominante), isto é, as fronteiras que delimitam os
grupos são impermeáveis para uns e fluídas para outros.
Por último, debrucemo-nos brevemente sobre o conceito de etnicidade. Segundo
Fenton:
“The concept of ethnicity refers to the way in which social and cultural difference,
language and ancestry combine as a dimension of social action and social
organization, and form a socially reproduced system of classification. ?...? In its
concrete form ethnicity refers to the social mobilization of ethnic ties and the social
significance of ancestry, language and culture. We may speak of ethnic groups –
identifiable groups whose ‘actual’ or ‘claimed’ shared ethnic attributes mark them
off within a social system” (1999, p.62).
De referir que esta ‘mobilização étnica’ ou ‘acção afirmativa’ que, em certas
circunstâncias, pode levar à exacerbação e absolutização das ‘diferenças’ entre os
grupos, não pode ser considerada como uma forma de racismo (Fenton, 1999; Burguière
e Grew, 2001). Se concordamos com Miles quando este afirma que o racismo não pode
ser conceptualizado como uma “prerrogativa dos brancos” contra os negros (1989/1995,
p.55), não podemos deixar de salientar que a luta identitária por parte dos grupos
dominados não pode ser confundida com racismo, mesmo quando advoga um certo grau
de ‘separação’ face à sociedade dominante.
No seu tão famoso quanto polémico Orphée noir, Sartre referiu-se à luta dos
‘negros’ contra o colonialismo como devendo passar por um período de separação ou
negatividade face aos ‘brancos’: “ce racisme antiraciste est le seul chemin qui puisse
mener à l’abolition des différences de races” (1948/2002, p.XIV; itálico nosso). E
acrescenta: “il faut d’abord qu’ils apprennent à formuler en commun ces revendications,
donc qu’ils se pensent comme noirs » (p.XIV) ou ainda « le noir qui revendique sa
négritude dans un mouvement révolutionnaire ?…? espère découvrir l’Essence noire
Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias
123
dans le puits de son cœur » (p.XV ; itálico nosso). Mas reivindicar uma ‘essência negra’
não implicará abdicar da sua individualidade, isto é, do estatuto de ‘pessoa’ ?
Tese Rc Final
CAPÍTULO 2 -
RELAÇÕES INTERGRUPAIS, IDENTIDADE
SOCIAL E DIFERENCIAÇÃO SIMBÓLICA
Racismo e Etnicidade em Portugal
126
2.1 Introdução
No capítulo anterior focalizámo-nos numa forma específica de discriminação
social - o racismo - tendo recorrido aos contributos de diferentes disciplinas para a
compreensão deste complexo fenómeno. Neste capítulo debruçamo-nos sobre uma área
de estudos no seio da psicologia social que é designada por ‘relações intergrupais’.
Trata-se de uma das áreas mais vastas e mais relevantes no seio da referida disciplina,
envolvendo uma grande diversidade de modelos teóricos e linhas de investigação
empírica, e com estreitas ligações a outras áreas da psicologia social, nomeadamente
com a área da cognição social, que aprofundaremos no próximo capítulo.
Não vamos efectuar uma análise exaustiva e detalhada desta vasta área de estudos,
mas apenas apresentar os modelos teóricos e investigações empíricas que consideramos
mais relevantes para a fundamentação teórica do nosso trabalho. Nesse sentido, damos
especial relevância aos modelos que têm em consideração as relações entre grupos
ocupando posições assimétricas na estrutura social.
Assim, neste capítulo discutimos alguns dos conceitos fundamentais no nosso
trabalho: categorização social, identidade social, comparação social, e estatuto social. A
nossa análise é centrada nos processos de diferenciação intra e intergrupais e na forma
como estes processos são efectados pela posição relativa dos grupos.
No âmbito das teorias sobre as relações intergrupais é atribuído um lugar central à
análise dos processos de discriminação social, quer ao nível dos juízos e das avaliações,
quer ao nível dos comportamentos (Amâncio, 1993/2000). Apesar de no seio da
psicologia social, sobretudo a partir dos anos trinta do século passado, se terem
desenvolvido esforços para compreender os fenómenos de discriminação social, até à
década de setenta a produção do conhecimento sofrera rupturas e recuos sucessivos não
se tendo verificado um verdadeiro esforço cumulativo (Doise, 1985, 1999). De facto, só
a partir da década de setenta é que no seio da psicologia social europeia se procurou
desenvolver modelos sobre o comportamento intergrupal que integrassem o
conhecimento resultante de abordagens anteriores. Nestas últimas décadas,
desenvolveram-se esforços de articulação de diferentes níveis de análise, desde o nível
interindividual até ao situacional e ideológico. Consequentemente, os modelos têm-se
complexificado no sentido de dotar a disciplina de um quadro teórico de análise dos
fenómenos de discriminação em larga escala (Amâncio, 1994).
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
127
Este capítulo é constituído por três secções. Na primeira, fazemos referência a
algumas das abordagens clássicas sobre relações intergrupais e discriminação social no
âmbito da psicologia social, nomeadamente as desenvolvidas por Kurt Lewin, Gordon
Allport, e Muzafer Sherif. Na segunda, apresentamos o modelo da identidade social
desenvolvido no âmbito da escola de Bristol, modelo central no quadro actual das
teorias sobre as relações intergrupais. Começamos por efectuar uma breve referência
aos estudos que precederam este modelo. Seguidamente, apresentamos com algum
detalhe a teoria da identidade social de Henri Tajfel, uma vez que esta serviu de base a
todos os estudos posteriores nesta área, para além de ser aquela que, pela primeira vez
articula os conceitos fundamentais sobre os quais se alicerça o nosso estudo.
Efectuamos ainda uma apresentação da teoria da auto-categorização de John Turner e
discutimos algumas das limitações destes modelos.
Na última secção, apresentamos os modelos desenvolvidos no âmbito da escola de
Genebra e seus desenvolvimentos recentes. Começamos por apresentar o modelo da
diferenciação categorial de Willem Doise e o modelo da covariação de Jean-Claude
Deschamps. Especial relevância é dada aos trabalhos de Fabio Lorenzi-Cioldi sobre
identidade dominante e dominada e aos de Lígia Amâncio sobre a identidade social e a
representação de ‘pessoa’. Como veremos, os estudos da escola de Genebra permitiram
ultrapassar algumas das limitações apontadas à escola de Bristol, o que se prende com o
esforço de integração de várias contribuições anteriores e articulação de níveis de
análise empreendido pelos autores.
Racismo e Etnicidade em Portugal
128
2.2 Relações intergrupais, identidade social e discriminação social
“For a stranger to the country, the city, the race, and so on, what is stressed is
again nothing individual, but alien origin, a quality which he has, or could
have, in common with many others strangers. For this reason strangers are
not really perceived as individuals, but as strangers of a certain type.”
Georg Simmel, 1908
No seio da psicologia social, a obra póstuma de Kurt Lewin (1948/1997),
Resolving Social Conflicts, que reúne diversos artigos publicados durante a sua vida,
apresenta uma das primeiras reflexões teóricas sobre a questão da discriminação social,
a partir da observação e análise dos acontecimentos e movimentos sociais nos anos
trinta, na Europa e nos EUA, nomeadamente, o anti-semitismo, a luta dos negros e das
mulheres pelo direito de voto. Orientado por um projecto de action-research, que
caracterizou grande parte da sua pesquisa, Lewin procurou identificar práticas de
socialização e as dinâmicas intra e intergrupais que permitissem aos membros de grupos
‘desprivilegiados’ fazer face à discriminação social de que eram alvo.
Como refere Amâncio (1994, p.137), embora Lewin não tenha desenvolvido
propriamente um modelo teórico sobre as relações intergrupais, formulou conceitos
fundamentais para a análise das relações intergrupais e enunciou alguns dos
pressupostos que viriam a ser adoptados por teorizações posteriores mais sistemáticas
(Apfelbaum, 1979; Tajfel e Turner, 1979). De facto, reconheceu-se imediatamente a
grande importância dos trabalhos que Lewin desenvolveu sobre liderança e dinâmica de
grupos restritos, tendo-se esquecido, por largos anos, o contributo deste autor na análise
das dinâmicas intergrupais. Esta separação entre o estudo das relações intragrupais, por
um lado, e das relações intergrupais, por outro, contribuiu sem dúvida para a dificuldade
em se alcançar um modelo integrativo destas relações.
Concretamente em relação ao anti-semitismo, Lewin salienta a sua origem social,
situando-o em forças externas ao grupo discriminado e independentes do
comportamento ou das características dos seus membros. A discriminação abrange
todos os membros do grupo, independentemente das suas características individuais e
que a centralidade da pertença a esse grupo é também independente do comportamento
dos seus membros. Os membros dos grupos dominados, na acepção de Lewin, estão
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
129
sujeitos a um ‘destino comum’ (1948/1997, p.165) que lhes é imposto pelo exterior.
Lewin analisa ainda as implicações de pensamentos negativos relativamente ao grupo
de pertença e que dão origem a estratégias individuais de adaptação ao grupo
dominante, passando pela recusa ou negação da pertença ao grupo minoritário. Estas
estratégias, como o autor salienta, podem ter efeitos positivos na auto-estima dos
indivíduos, mas não são geradoras de mudança social, visto que esta só pode ser
alcançada através de estratégias colectivas.
Lewin salienta a necessidade de distinguir:
“two kinds of forces acting on the individual: those resulting from the individual’s
own wishes and hopes, and those socially ‘induced’ or applied to the individual from
without by some other agent” (1948/1997, p.113).
Referindo-se à situação vivida pelos judeus durante o nazismo, Lewin argumenta:
“Even if some individual had some secret wish to cross the boundaries of his group,
the character of this boundary as a strong and practical impassable barrier destroyed
all such hopes at once” (1948/1997, p.113).
Lewin interroga-se sobre o que é que torna os judeus um grupo e o que é que torna
um indivíduo um membro do grupo dos judeus? A sua resposta é clara:
“it is not similarity or dissimilarity of individuals that constitutes a group, but
interdependence of fate. [...] It is easy enough to see that the common fate of all
Jews makes them a group in reality” (1948/1997, p.120).
O autor salienta a importância da identificação com o grupo de pertença para fazer
face à discriminação e evitar as consequências negativas ao nível da auto-estima dos
indivíduos:
“The only way to avoid Jewish self-hatred in its various forms is a change of the
negative balance between the forces toward any away from the Jewish group into a
positive balance, the creation of loyalty to the Jewish group instead of negative
chauvinism. We are unable to safeguard our fellow Jews or our growing children
today against those handicaps which are the result of their being Jewish. However,
we can try to build up a Jewish education both on the children´s level and on the
Racismo e Etnicidade em Portugal
130
adult level to counteract the feeling of inferiority and the feeling of fear which are
the most important sources of the negative balance” (1948/1997, p.140, itálico no
original).
Lewin alerta para o facto do ‘bom’ comportamento dos judeus, baseado na
assimilação dos valores do grupo dominante, em nada afectar a condição colectiva
deste, representando a aceitação de uma forma de pensamento para a qual os indivíduos
não haviam participado, sem conduzir portanto ao desaparecimento do anti-semitismo
(Amâncio, 1993/2000). As soluções situar-se-iam assim, ao nível da ‘acção colectiva’
dos grupos minoritários e não nas acções individuais:
“Among the members of minorities or other social groups which are not in fortunate
positions, there are single individuals or larger sections of the group which see their
main hope in crossing the line that separates their group from others. They may hope
to cross the line individually or to destroy it entirely. One speaks in this connection
of a tendency for ‘assimilation’. It is worth-while to ask how this tendency of the
individual is related to the situation of his group and his position within the group”
(1948/1997, p.109).
A perspectiva de análise das relações intergrupais desenvolvida por Lewin tem em
conta as determinantes reais e simbólicas dessas relações, podendo ser considerada um
esboço dos modelos das relações de dominação que só viriam a ser desenvolvidos
algumas décadas depois (Apfelbaum, 1979; Amâncio, 1994; Doise, 1976/1984;
Lorenzi-Cioldi, 1998).
Como salienta Apfelbaum (1979), as interacções sociais analisadas por Lewin
constituem relações de dominação, baseadas numa assimetria de poder simbólico, que
se traduz numa assimetria na capacidade de intervenção dos grupos. Segundo esta
perspectiva, o grupo dominado seria uma entidade subjectivamente construída, que
reúne os seus membros sob um destino comum, no quadro de uma definição categorial
que retira aos seus membros a distintividade individual. Esta assimetria entre os grupos
no domínio dos recursos simbólicos repercute-se numa assimetria na capacidade de
decisão e de acção. A mudança social depende do desenvolvimento de uma consciência
colectiva da natureza da relação de dominação por parte dos membros do grupo
dominado. No entanto, Apfelbaum salienta a dificuldade da mudança social, uma vez
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
131
que as relações de dominação tendem a tornar ‘irreversível’ a assimetria entre os
grupos:
“(a) all the rights and privileges are concentrated on one side - the market is
cornered by the dominant group; (b) this dominant group is the only group to set the
limits, and define the nature, of these rights and privileges; and (c) the other group
has no share of, or perhaps more accurately, has been dispossessed of, these rights
and privileges. In thinking of women, Blacks, various minority national groups, or
any other group that has been subordinated, the term ‘invisibles’ has previously been
used” (Apfelbaum, 1979, p.196).
Nesta perspectiva, os grupos dominados são:
“collectivities which have been denied at the outset a socially recognized role in the
history of a given society (....) Invisibles have, thus, no legal, autonomous existence
and as a direct consequence no contractual power [...]. The dominant group does not
recognized, or chooses to ignore, the very existence of the invisible and when
expressed, their claims to be recognized as partners who participated fully in the
decisions regarding the fundamental options for society (Apfelbaum e Lubek, 1976,
p.84; citados por Apfelbaum, 1979, p.196).
O processo do poder, actuando através dos mecanismos referidos acima, cria uma
disparidade entre os dois grupos envolvidos numa relação de dominação que “denies
any sort of contractual power to one of them, and may even deny this group’s right to
exist as an autonomous and legitimate coactor in the relation” (Apfelbaum, 1979,
p.196).
O poder determina as dinâmicas internas específicas de cada grupo assim como a
natureza das relações entre ambos. O primeiro passo no estabelecimento de uma
dinâmica de dominação consiste em marcar os membros do grupo dominado, atribuir-
lhes um rótulo:
“To be ‘a Negro’ establishes ‘who he is’ by relating him to all other individuals,
known or unknown, who have the same defining features. In time, he must realize
the general nature of his racial category because others label and identify him in
these terms, making his racial group membership the nexus of his emerging self
identity” (Proshansky e Newton, 1973, p.181; Apfelbaum, 1979, p.196).
Racismo e Etnicidade em Portugal
132
Uma vez que os grupos dominantes e dominados estão reciprocamente ligados na
relação de poder,
“the process of marking and identifying members of the to-be-subordinated group
also defines membership in the dominant group: it may not be necessary for the
latter group to actively, explicitly, and precisely define itself. [...] By marking
members of the to-be-subordinated group, and excluding them at the same time from
membership in the dominant group, the latter group comes to act as the
representative of a set of norms to be imposed on all others, as if they were
universal” (Apfelbaum, 1979, p.197).
Numa perspectiva diferente da precedente, Allport (1954/1979) na sua análise do
preconceito de discriminação também faz referência a fenómenos intergrupais
envolvendo relações de dominação. Como referimos no capítulo anterior, Allport atribui
enorme peso ao processo de categorização na explicação da discriminação social,
nomeadamente ao poder dos ‘rótulos’ na estigmação dos grupos socialmente
desfavorecidos, uma vez que estes evocam ‘automaticamente’ determinados conteúdos
associados a esses grupos, conteúdos esses que são mais vinculativos para esses grupos.
Embora reconhecendo a causalidade múltipla do fenómeno do preconceito, na sua
análise dos estereótipos, o autor discute os seus aspectos ‘objectivos’, ligados a um
‘real’ conhecimento dos grupos, e os seus aspectos ‘falsos’ devidos à falta de
informação e de contacto com os grupos, e à generalização abusiva de determinadas
características a todos os membros desse grupo. Nesse sentido o autor propos o aumento
da informação sobre os diferentes grupos étnicos através da difusão de imagens mais
tolerantes das minorias étnicas nos meios de comunicação social, e também um
aumento do contacto directo entre os diferentes grupos, nomeadamente entre as crianças
em idade escola:
“Without intercultural information obtained at school a child cannot acquire this
perspective, for most children come from homes an neighborhoods where they have
no opportunity to learn about out-groups in an objective way. And so we conclude
that the teaching of correct information does not automatically change prejudice; but
it may in the long run help” (Allport, 1954/1979, p.486; itálico nosso).
Estas alterações nas práticas de socialização na escola, nos empregos e nos mass
media visavam desenvolver cidadãos capazes de formular juízos não enviesados sobre
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
133
as minorias étnicas, consonantes com os valores igualitários da sociedade americana.
No entanto, Allport reconhece os limites das acções propostas na irradicação dos
estereótipos:
“Sterotypes (…) are primarily rationalizers. They adapt to the prevailing temper of
prejudice or the needs of the situation. While it does no harm (and may do some
good) to combat them in school and colleges, and to reduce them in mass media of
comunication, it must not be thought that this attack alone will eradicate the roots of
prejudice” (Allport, 1954/1979, p.204).
Allport salientou que o contacto entre grupos e o desenvolvimento de interesses
supraordenados comuns aos membros de ambos os grupos, só será plenamente efectivo
na redução do preconceito se for entre invidíduos do mesmo estatuto social:
“Prejudice (unless deeply rooted in the character stucture of the individual) may be
reduced by equal status contact between majority and minority groups in the persuit
of common goals. The effect is greatly enhanced if this contact is sanctioned by
institutional supports (i.e., by law, custom or local atmosphere), and provided it is of
a sort that leads to the perception of common interests and common humanity
between members of the two groups” (Allport, 1954/1979, p.281; itálico nosso).
Assim, o autor teve em consideração aspectos ligados às estruturas de poder, mas
não os desenvolveu suficientemente, centrando-se principalmente em variáveis intra-
individuais ou situacionais emdetrimento das estruturais.
Como salienta Amâncio (1993/2000), a análise da discriminação social, no âmbito
da psicologia social até aos anos setenta, ficou limitada a extrapolações do nível
psicológico para as relações intergrupais: o etnocentrismo resultaria de uma rigidez na
visão da realidade social que se explicaria pela falta de informação ou contacto com os
grupos-alvo (Allport, 1954/1979) ou pela personalidade autoritária (Adorno et al.,
1950), não havendo a integração de variáveis estruturais presentes nos estudos no
âmbito da antropologia e da sociologia.
Esta conceptualização da discriminação social apresenta alguns problemas: o
pressuposto de que os preconceitos são específicos de certos tipos de pessoas e
irradicáveis, não permite compreender a sua incidência e resistência nas interacções
Racismo e Etnicidade em Portugal
134
sociais. Também não permite compreender a persistência da discriminação de minorias
emigrantes nas sociedades ocidentais, onde ela coexiste com normas anti-discriminação,
como salientámos no capítulo anterior.
Já Lewin (1948/1997) salientava a necessidade de uma ‘integrated approach’
(p.144) para a análise das relações intergrupais tendo em conta o contexto, pelo que os
psicológos deveriam ter em conta os trabalhos da sociologia e antropologia cultural. No
entanto, o contributo deste autor neste domínio foi neglegenciado durante muito tempo.
De modo que, numa revisão sobre o etnocentrismo a que já fizemos referência no
capítulo anterior, LeVine e Campbell (1972) salientam novamente as limitações que
resultam da falta de integração entre as ciências sociais, considerando essencial ‘an
integrated social science’ (p.223) para o desenvolvimento dos estudos sobre a
discriminação intergrupal. De facto, até ao início da década de setenta a sociologia e a
antropologia ocupavam-se das variáveis estruturais e societais, enquanto que “a
psicologia social apresentava modelos mais psicológicos do que verdadeiramente
psicossociológicos” (Amâncio, 1994, p.140).
Esta necessidade de articulação da psicologia social com outras ciências sociais e
humanas está bem presente no modelo sobre as relações intergrupais desenvolvido por
Sherif e seus colaboradores (Sherif, Harvey, White, Hood e Sherif, 1961/1988; Sherif,
1967; Sherif e Sherif, 1979), durante os anos 60, demarcando-se nitidamente do quadro
explicativo dominante na época.
Este modelo visava uma integração entre o ‘psicológico’ e o ‘sociológico’, a fim
de ultrapassar a tendência para extrapolar do nível de análise individual ou
interindividual para o nível de análise intergrupal:
“research on intergroup relations entails more than study of the intergroup behavior
of individuals - which is the proper level of analysis for social psychology. It also
entails problems of institutionalized power relations and complex organizational
systems, both formal and informal, which require analysis at their own level by
political scientists, sociologists, anthropologists and others” (Sherif e Sherif, 1979,
p. 8).
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
135
Os autores demarcam-se das abordagens que analisam o comportamento
intergrupal a partir da personalidade dos indíviduos (e.g., Adorno et al., 1950),
salientando que:
“We cannot legitimately extrapolate from the individual’s motivational urges and
frustrations to his experiences and behavior in group situations as if interaction
processes and reciprocities within a group were a play of shadows. It is equally
erroneous to extrapolate from the properties of relations within a group to explain
relations between groups, as though the area of interaction between groups consisted
of a vacuum” (Sherif e Sherif, 1979, pp.8-9).
Por isso mesmo, na opinião de Doise,
“é indiscutível a importância histórica e teórica das pesquisas sobre a interacção
entre grupos efectuadas por Sherif e seus colaboradores (1961). Com efeito, Sherif
não somente foi o primeiro a empreender pesquisas experimentais neste domínio,
mas também elaborou um quadro teórico sobre a competição e a cooperação entre os
grupos” (1976/1984, p.89).
Os trabalhos de Sherif representam um esforço pioneiro de articulação entre
explicações psicológicas e sociológicas, tendo este autor insistido várias vezes sobre a
insuficiência dos modelos ‘individualistas’ para explicar as regularidades que se
manifestam nas relações entre grupos. No entanto, as pesquisas de Sherif, situam-se
principalmente no nível de análise situacional, visto que dizem respeito à interacção
entre indivíduos repartidos em grupos diferentes mas não ocupando necessariamente
uma posição diferente no sistema social (Doise, 1982b).
Esta limitação está bem patente na definição de grupo proposta pelo autor, onde
não há qualquer referência aos critérios externos, já tidos em consideração por Lewin:
“A group is a delineated social unit with properties which can be measured and
which have consequences for the behavior of its members. These include, at least (1)
structure or organization - that is, a dimension as measured by effective initiative of
members, and (2) a set of norms regulating behavior of the members in pursuing
goals, in relationships with one another and with out-groups and their members -
that is, evaluative dimensions which can be assessed in terms of what is upheld in
the group and what is treated as deviate” (Sherif e Sherif, 1979, p.8).
Racismo e Etnicidade em Portugal
136
Uma das mais famosas pesquisas de Sherif sobre esta temática, é conhecida por
‘Robbers Cave’ (nome do local onde decorreu a experiência). Esta experiência,
realizada com rapazes num acampamento de Verão, foi constituída por várias fases. Na
primeira fase, Sherif estudou as interacções naturais em dois grupos de rapazes, que
ignoravam a existência um do outro. Esta fase permitiu observar a formação de normas
e a emergência de uma hierarquia dentro dos grupos. Na segunda fase, os dois grupos
foram postos em contacto e empenhados em tarefas competitivas (e.g., caça ao tesouro,
jogos de basebol) o que desencadeou o surgimento de estereótipos e hostilidade entre os
grupos. Numa terceira fase, com o objectivo de reduzir o conflito entre os grupos, foram
realizadas tarefas não competitivas em conjunto (e.g., lançar fogo-de-artifício), mas a
hostilidade entre os grupos não diminuiu. Finalmente, Sherif foi capaz de reduzir o
conflito, introduzindo uma série de problemas que requeriam a participação conjunta de
todos os elementos de ambos os grupos (e.g., falta de água no acampamento), isto é,
objectivos supra-ordenados.
O modelo de Sherif, construído a partir da criação experimental de situações de
competição e cooperação entre dois grupos, estipula que os comportamento hostis entre
grupos, assim como as representações que favorecem o endogrupo face ao exogrupo,
resultam da situação de conflito e não da estrutura interna do grupo ou das
características dos seus membros. Os padrões de comportamento intergrupal observados
são resultantes da identificação dos membros com o seu grupo, o que coloca a questão
da identidade no cerne das relações intergrupais (Amâncio, 1993/2000).
Campbell (1965; citado por Tajfel e Turner, 1979) denominou este modelo como
Realistic Conflit Theory (RCT) porque o ponto de partida para a explicação do
comportamento intergrupal foi o que Sherif denominou as ‘relações funcionais entre
grupos sociais’. Na opinião de Tajfel e Turner (1979), a sua hipótese central, segundo a
qual é um conflito real de interesses entre os grupos que causa o conflito intergrupal,
obteve enorme suporte empírico, mas é ‘deceptively simple’ (p. 33).
O facto de Sherif ter analisado uma modalidade específica de relações intergrupais
- o conflito de interesses - serve de fundamento para algumas críticas a este modelo
(Tajfel e Turner, 1979), mas, como veremos no ponto 2.3.1, a mesma crítica se poderá
fazer a estes autores, “por terem feito depender a sua análise da identidade de um outro
padrão específico de relações intergrupos” (Amâncio, 1993/2000, p.290).
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
137
Sherif verificou que a competição intergrupal aumenta a coesão e a cooperação
intragrupal - isto é, os conflitos reais de interesses entre grupos não só criam relações
intergrupais antagónicas, como aumentam a identificação e a ligação positiva com o
grupo de pertença. No entanto, na opinião de Tajfel e Turner (1979) a identificação dos
membros com o seu grupo foi negligenciada pelo modelo de Sherif, sendo considerada
quase ‘as an epiphenomenon of intergroup conflict’ (p.34). De facto, a identificação
com o grupo é associada a certos padrões de relações intergrupais, mas este modelo não
se foca nem nos processos subjacentes ao desenvolvimento e manutenção da identidade
grupal nem nos seus possíveis efeitos autónomos quer ao intragrupal quer ao nível
intergrupal. Na opinião de Tajfel e Turner (1979), a relativa negligência deste processo
no modelo de Sherif é responsável por certas inconsistências entre este modelo e os
dados empíricos. Neste sentido, estes autores propõem uma orientação teórica que “is
intended not to replace RCT, but to supplement it in some respects that seem to us
essential for a adequate social psychology of intergroup conflict”(p.34).
Como veremos no ponto seguinte, o modelo da identidade social da escola de
Bristol foi o primeiro a colocar a identidade no âmago das relações intergrupais,
atribuindo-lhe uma posição explicativa da diferenciação e da discriminação sociais.
Racismo e Etnicidade em Portugal
138
2.3 Categorização social, Identidade social e identidade pessoal
“During the war, under the influence of powerful feeling, the difference
between ‘Teutons’ on the one hand, and ‘Anglo-Saxons’ and French on the
other, was popularly believed to be an eternal difference. They had always
been opposing races. (…) The general rule is: if you like a people today you
came down the branches to the trunk; if you dislike them you insist that the
separate branches are separate trunks. In one case you fix your attention on
the period before they were distinguishable; in the other on the period after
which they became distinct. And the view which fits the mood is taken as the
‘truth’.”
Walter Lippmann, 1922
“Si la relativité se révèle juste, les Allemands diront que je suis allemand, les
Suisses que je suis citoyen suisse, et les Français que je suis un grand homme
de science. Si la relativité se révèle fausse, les Français diront que je suis
suisse, les Suisses que je suis allemand, et les Allemands que je suis juif.”
Albert Einstein, 1929
A teoria da identidade social (Tajfel, 1978a; Tajfel, 1981/1983; Tajfel e Turner,
1979) consiste numa perspectiva das relações intergrupais cujo objectivo inicial era não
só ultrapassar as extrapolações do nível individual e interindividual para o nível
intergrupal (e.g., a teoria da personalidade autoritária de Adorno et al., 1950; a teoria da
frustração-agressão de Berkowitz, 1962) como questionar a relevância do conflito
objectivo enquanto determinante da discriminação entre grupos sociais (e.g., Sherif et
al., 1961). Como Tajfel e Turner (1979) referiam, a complexa integração entre o
comportamento individual ou interpessoal com os processos sociais e contextuais nos
conflitos intergrupais não tinha recebido atenção dos psicólogos sociais.
Embora o modelo da identidade social da escola de Bristol - modelo central no
quadro actual das teorias sobre as relações intergrupais - seja frequentemente associado
a Henri Tajfel e John Turner, as contribuições destes autores foram significativamente
diferentes, tanto ao nível empírico como teórico (Amâncio, 1993/2000). Por isso,
optámos por fazer uma distinção entre as formulações iniciais da teoria da identidade
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
139
social e a formulação de Turner - a teoria da autocategorização. Por uma questão de
simplicidade de apresentação, referimo-nos à primeira como SIT (Social Identity
Theory) e à segunda como SCT (Self-Categorization Theory).
Os primeiros estudos da escola de Bristol resultam, sobretudo, do percurso
científico de Tajfel, em particular dos estudos que efectuara nos anos 60 sobre a
sobreestima perceptiva, estudos esses que foram fortemente influenciados pela sua
colaboração com Bruner, nos anos 50. Desta colaboração “resultara uma crítica á visão
mecanicista da percepção, que pressupunha que as pessoas apreendiam a realidade de
forma ‘objectiva’ e que as excepções a esta forma de apreensão da realidade constituíam
‘erros’ (Amâncio, 1993/2000, p.392).
Jerome Bruner é comummente apontado como o pai da Nova Vaga no estudo da
percepção, que se traduziu numa ruptura com as perspectivas precedentes,
caracterizadas por uma visão mecanicista da percepção, que pressupunha que as pessoas
apreendiam a realidade de forma ‘objectiva’ e que as excepções a esta forma de
apreensão da realidade constituíam ‘erros’ (Amâncio, 1993/2000).
Na acepção de Bruner (1957), a categorização constitui um dos processos básicos
através dos quais se manifesta a actividade estruturante do participante na percepção.
Quando um organismo é estimulado por um objecto exterior, reage a ele associando-o a
uma categoria de estímulos (aspecto indutivo da categorização), ao mesmo tempo que
lhe atribui as características da categoria no qual o inclui (aspecto dedutivo da
categorização).
O acto da categorização não implicaria, contudo, um sistema rígido de categorias
em que cada indivíduo só pode ser atribuído a uma categoria de determinado nível de
abstracção. Pelo contrário, a categoria utilizada será a mais acessível, sendo a
acessibilidade determinada pela aprendizagem e pelo estado motivacional do indivíduo
no momento. Quanto mais acessível é uma categoria menor o input necessário para
evocar a categorização e maior o espectro de características do input que tende a ser
percebido como congruente com a categoria, enquanto que as características que não se
ajustam à categorização tendem a ser mascaradas (Bruner, 1957). Segundo este autor, a
categorização permitiria a simplificação, organização e a previsão de um mundo de
outro modo excessivamente complexo.
Racismo e Etnicidade em Portugal
140
De acordo com Tajfel, a categorização dos objectos, incluindo os grupos sociais, é
baseada nas semelhanças intracategoriais e nas diferenças intercategoriais. Um dos
fenómenos associado com a categorização é o efeito de acentuação. Este consiste numa
acentuação, por parte do observador, das semelhanças entre objectos ou pessoas
pertencendo à mesma categoria - efeito de assimilação - e das diferenças entre objectos
ou pessoas pertencendo a diferentes categorias - efeito de contraste. Estes dois efeitos
ocorreriam simultânea e simetricamente sendo inerentes ao processo de categorização.
O efeito de acentuação foi originalmente estudado na percepção de objectos
físicos (Tajfel e Wilkes, 1963), tendo sido posteriormente generalizado para os grupos
sociais (Tajfel, Sheikh e Gardner, 1964). Segundo Tajfel, o efeito de acentuação
verifica-se sempre que à dimensão em causa esteja associada uma dimensão valorativa.
A categorização é conceptualizada como um processo cognitivo universal que se aplica
tanto a estímulos físicos como a estímulos sociais, e que não depende nem da
personalidade nem do grau de informação dos indivíduos, mas constitui antes um
processo cognitivo necessário para a selecção e organização da informação.
Assim, na acepção de Tajfel, existiria uma homologia entre a apreensão dos
estímulos físicos e sociais. No entanto, a experiência de Tajfel, Sheikh e Gardner (1964)
parecia apontar para uma certa assimetria na percepção dos grupos sociais, aspecto que
não foi explorado pelos autores. Nesta experiência os participantes, todos canadianos,
deveriam emitir julgamentos sobre dois grupos-estímulo constituídos por dois
indivíduos da mesma nacionalidade - o grupo dos canadianos e o grupo dos indianos.
Os resultados mostraram que os participantes sobrestimavam a semelhança das duas
pessoas-estímulo indianos nos traços mais típicos do estereótipo dos indianos, mas não
sobrestimavam a semelhança dos pessoas-estímulo canadianos nos traços mais típicos
do seu estereótipo.
Esta assimetria no efeito de acentuação a nível das categorias sociais foi também
evidenciada numa experiência de Doise, Deschamps e Meyer (1978). Nesta experiência,
os participantes, crianças do sexo masculino e do sexo feminino, observavam as
fotografias de seis pessoas-estímulo, três rapazes e três raparigas, sendo a sua tarefa
descrevê-los a partir de uma lista de adjectivos. Verificou-se que os rapazes
apresentaram uma tendência significativamente maior para acentuar as diferenças
intercategoriais do que as raparigas e, além disso, acentuaram mais fortemente as
semelhanças intracategoriais dos pessoas-estímulo do sexo feminino do que do sexo
masculino.
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
141
Os resultados destas experiências evidenciam uma assimetria nos efeitos da
categorização, em função do grupo-estímulo (Amâncio, 1993/2000). Note-se que em
ambos os casos o efeito de assimilação foi mais acentuado para o grupo-alvo de menor
estatuto relativo (os indianos na primeira experiência e as raparigas na segunda).
Beauvois e Deschamps (1990) consideram que existe uma diferença fundamental
entre a apreensão de estímulos físicos e sociais que é necessário sublinhar:
«[...] contrairement à ce qui se passe dans la catégorisation de stimuli physiques,
dans le cas de la catégorisation sociale les sujets sont eux-mêmes à l'intérieur d'un
réseau de catégories. La catégorisation entraîne non seulement une exagération des
différences entre les catégories et une minimisation des différences intra-catégories,
mais ces différences sont évaluatives. Lorsque des individus sont répartis en deux
catégories, le comportement des sujets au regard des membres de l'autre catégorie
devient systématiquement discriminatoire: les sujets ont tendance à favoriser leur
groupe et à défavoriser l'autre groupe; plus qu'une différenciation, c'est bien à un
traitement différentiel entre et dans les groupes auquel on assiste. Dans le cas de la
catégorisation sociale, l'effet de contraste (accentuation des différences perçues entre
les objets classés dans des catégories distinctes) débouche donc sur un phénomène
de discrimination alors que l'effet d'assimilation (accentuation des ressemblances
perçues entre les objets classés dans une même catégorie) conduit à la stéréotypie»
(pp.16-17).
Mas vamos centrar-nos, por enquanto, nas consequências destes estudos na
conceptualização da discriminação social. Estes estudos levaram Tajfel (1969) a propor
uma nova abordagem da diferenciação entre grupos sociais, segundo a qual a
categorização constituía um poderoso processo organizador e simplificador da realidade
social, sendo mais forte quando estão associadas dimensões avaliativas às categorias
sociais, seja ao nível dos critérios classificatórios, seja ao nível dos conteúdos
descritivos. Como refere Amâncio:
“a preservação do sistema de categorização e das conotações valorativas que lhe
estão associadas, e que são transmitidas pela cultura e pelos valores dos grupos de
pertença, é conseguida através do tratamento dos critérios classificatórios, como
homem-mulher, branco-negro, inglês-francês, enquanto dimensões descontínuas,
através da selecção nas interacções sociais das características que confirmam o
efeito preditivo da categoria e que validam um conhecimento 'subjectivo' da
Racismo e Etnicidade em Portugal
142
realidade facilitador da integração dos indivíduos ; e, finalmente através da
instrumentalidade dos conteúdos categoriais, sob a forma de estereótipos, nas
interacções sociais, visto que a identificação da categoria de pertença dos indivíduos
é facilitada pela visibilidade do critério que a define, sobretudo quando esses
critérios são físicos, como o sexo ou a cor da pele” (1993/2000, pp.392-393).
Assim, nesta perspectiva, os estereótipos sociais constituem formas específicas de
organização subjectiva da realidade social, reguladas por mecanismos sociocognitivos,
o que permite compreender a sua incidência e resistência nas interacções sociais.
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
143
2.3.1. Identidade social e comparação social
Tajfel e colaboradores (Tajfel, Billig, Bundy e Flament, 1971) realizaram uma
experiência com o objectivo de determinar as condições mínimas do aparecimento do
favoritismo endogrupal, cujos resultados constituíram o estímulo inicial para a
formulação do modelo da identidade social. Na primeira parte da experiência, os
participantes, adolescentes do sexo masculino, realizaram uma tarefa de julgamentos
estéticos. Em seguida, os participantes foram repartidos em dois grupos, o grupo ‘Klee’
e o grupo ‘Kandinsky’, supostamente em função dos resultados da tarefa precedente. Na
segunda parte da experiência, pediu-se aos participantes para, com a ajuda de várias
matrizes de resposta, decidirem as remunerações que membros anónimos do grupo
próprio e/ou do outro grupo deveriam receber pela sua participação na experiência.
Estes grupos foram denominados ‘grupos mínimos’ porque ‘these groups are purely
cognitive’ (Tajfel e Turner, 1979, p.39).
Segundo Amâncio (1993/2000) o procedimento utilizado no paradigma dos
‘grupos mínimos’ caracteriza-se fundamentalmente pela :
“criação de uma situação socialmente 'vazia' [...] os sujeitos pertenciam todos ao
mesmo sexo e à mesma faixa etária, não havia interacção entre eles em nenhuma das
fases da experiência e a categorização era introduzida através de um critério
inteiramente abstracto e sem qualquer significado, visto que não havia conteúdos
associados ao 'grupo Klee' ou ao 'grupo Kandinsky'” (pp.293-294).
Os resultados desta e doutras experiências similares demonstram que a mera
categorização em grupos diferentes conduz a estratégias discriminatórias face ao
exogrupo. A estratégia ‘máximo para o grupo’ (Maximum Ingroup Profit - MIP) é
preterida face à estratégia de ‘máxima diferença’ (Maximum Difference - MD). Assim,
os participantes parecem competir com o exogrupo, em vez de seguirem uma estratégia
de simples ganho económico para o endogrupo - optando pela estratégia MD, os
participantes sacrificam os ganhos objectivos do endogrupo, para ganhar em termos
relativos: distintividade positiva do endogrupo. Os participantes mostram, ainda,
decisões mais próximas do ‘máximo comum’ (Maximum Joint Payoff - MJP) quando as
Racismo e Etnicidade em Portugal
144
decisões dizem respeito a dois membros anónimos do endogrupo do que quando são
dois membros do exogrupo.
Billig e Tajfel (1973; citados por Tajfel e Turner, 1979) encontraram estes
resultados mesmo quando a designação para os grupos era efectuada de forma
explicitamente aleatória (eliminando assim a semelhança percebida dentro do grupo de
pertença como explicação alternativa para os resultados), isto é, mesmo categorizações
sociais arbitrárias são suficientes para desencadear a discriminação intergrupal.
Na acepção de Tajfel e Turner (1979), estes resultados demonstram que a
discriminação intergrupal não é exclusivamente baseada em interesses grupais
incompatíveis: a condição para a competição intergrupal parece ser tão mínima que
pode ser considerada como um processo inerente à situação intergrupal em si mesma.
Tajfel e Turner (1979) referem que todo o vasto trabalho desenvolvido pela
equipa de Bristol sobre relações intergrupais, aponta para que o favoritismo endogrupal
constitua uma ‘remarkable omnipresent feature of intergroup relations’ (p.38). As
pesquisas com o paradigma do ‘grupos mínimos’ demonstram que:
“the mere perception of belonging to two distinct groups - that is, social
categorization per se - is sufficient to trigger intergroup discrimination favoring the
ingroup. In other words, the mere awareness of the presence of an outgroup is
sufficient to provoke intergroup competitive or discriminatory responses on the part
of the ingroup” (p.38).
Para explicar estes resultados, Tajfel (1972) estabelece uma ligação entre três
conceitos fundamentais: categorização social, identidade social e comparação social.
Uma vez que a identidade social está associada ao conhecimento da pertença, evocado
pela categorização, o significado emocional e avaliativo que resulta dessa pertença
exprimir-se-ia no favoritismo pelo grupo de pertença em detrimento do outro. Neste
sentido, os grupos sociais contribuem para a construção da identidade social dos seus
membros.
Um aspecto importante na teoria de Tajfel é a noção de grupo. O autor critica as
definições de grupo habitualmente encontradas na literatura, que têm um ‘núcleo
comum’: o grupo é definido pela interacção ou interdependência dos seus membros. O
grupo é definido a partir do ‘interior’ - preocupação com certos processos intragrupais
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
145
fazendo como se as relações do grupo com outros grupos não tivessem qualquer
influência sobre a sua estruturação interna, ou mesmo sobre a sua existência enquanto
tal. Na opinião de Tajfel, estes elementos não são suficientes para definir um grupo:
‘les caractéristiques de son propre groupe (son statut, sa richesse ou sa pauvreté, sa
couleur de peau, sa capacité à atteindre ses buts) n'acquièrent de signification qu'en
liaison avec les différences perçues avec les autres groupes ou les différences
évaluatives. [...] La définition d'un groupe (national, racial ou tout autre) n'a de sens
que par rapport aux autres groupes. Un groupe devient un groupe en ce sens qu'il est
perçu comme ayant des caractéristiques communes ou un devenir commun, que si
d'autres groupes sont présents dans l'environnement’ (1972, p.295).
Como o autor salienta, os grupos não existem num vazio social:
“um grupo não é uma ilha da mesma maneira que um grupo também não é uma ilha;
a única maneira de atribuir valores positivos ao seu próprio grupo [...]é comparando
com outros grupos” (Tajfel, 1982a, p.24).
Para Tajfel, um grupo pode ser definido com base em critérios externos ou
internos. Os primeiros não derivam da auto-identificação dos membros do grupo, sendo
tecidos por indivíduos ou grupos de indivíduos exteriores ao grupo, podendo o consenso
exterior acerca de um determinado grupo originar critérios de pertença nesse mesmo
grupo (Tajfel, 1978b, p.31). Esta questão, como referimos, foi também abordada por
Lewin na sua análise do anti-semitismo. Os critérios internos, por seu lado, derivam da
auto-identificação dos membros do grupo, isto é, do facto de os indivíduos se sentirem
membros desse grupo.
A origem desta conceptualização de Tajfel reporta-se à teoria da comparação
social de Festinger (1954). Esta teoria postula nos indivíduos uma necessidade de auto-
avaliação que, em certas condições, só se pode realizar através de comparações com
outros indivíduos, considerados semelhantes ou ligeiramente superiores na(s)
característica(s) a comparar. Na acepção de Festinger, a comparação é essencialmente
interindividual, enquanto que a teoria de Tajfel assenta em comparações intergrupais.
Na opinião de Tajfel e Turner (1979), a necessidade de avaliação positiva de um
Racismo e Etnicidade em Portugal
146
indivíduo poderá satisfazer-se através de pertenças a grupos sociais avaliados
positivamente pelo indivíduo.
As consequências psicológicas da pertença a um grupo estão directamente ligadas
à inserção desse grupo numa determinada estrutura de relações intergrupais. Na acepção
de Tajfel,
"l´identité social d´un individu est lié à la connaissance de son appartenance à
certains groupes sociaux et à la signification émotionnelle et évaluative qui résulte
de cette appartenance" (1972, p.292).
Tendo em conta esta definição de identidade social, Tajfel e Turner (1979) partem
dos seguintes pressupostos: os indivíduos esforçam-se por manter ou aumentar a sua
auto-estima, isto é, lutam por um auto-conceito positivo; os grupos sociais estão
associados a conotações de valor positivo ou negativo, isto é, a identidade social pode
ser positiva ou negativa de acordo com as avaliações (que tendem a ser consensuais) dos
grupos que contribuem para a identidade social de um indivíduo; a avaliação do seu
próprio grupo é determinada tendo como referência outros grupos específicos em
termos de certas dimensões ou características.
Destes pressupostos foram derivados os seguintes princípios teóricos: os
indivíduos esforçam-se por alcançar ou manter uma identidade social positiva; a
identidade social positiva é baseada, em larga medida, em comparações favoráveis entre
o grupo de pertença e outro(s) grupo(s) relevante(s); quando a identidade social é
insatisfatória, os indivíduos esforçam-se ou por deixar o seu grupo e juntar-se a um
grupo avaliado mais positivamente ou por tornar o seu grupo mais positivamente
diferenciado (Tajfel e Turner, 1979).
Neste sentido, a hipótese básica de que parte a SIT é que as pressões para avaliar o
seu próprio grupo positivamente através de uma comparação endogrupo/exogrupo
conduzem os grupos sociais a uma tentativa de se diferenciarem uns dos outros (Tajfel,
1978a; Turner, 1975; Tajfel e Turner, 1979). Há pelo menos três classes de variáveis
que influenciam as diferenciações intergrupais numa situação intergrupal concreta: os
indivíduos deverão ter interiorizado a sua pertença ao grupo como um aspecto do seu
auto-conceito, isto é, deverão sentir-se subjectivamente identificados com o grupo de
pertença; a situação social deverá permitir comparações intergrupais através da selecção
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
147
e avaliação de certas dimensões ou atributos relevantes; os outros grupos deverão ser
percebidos como grupos de comparação relevantes (a semelhança, a proximidade, a
saliência situacional são exemplos de variáveis que determinam a comparabilidade dos
outros grupos). Neste sentido, o objectivo da diferenciação intergrupal é alcançar ou
manter a superioridade em algumas dimensões relevantes, isto é, consiste numa resposta
essencialmente competitiva (Tajfel e Turner, 1979).
A procura de uma explicação para os resultados obtidos nas experiências
utilizando o paradigma dos ‘grupos mínimos’ levou Turner (1975) a introduzir uma
alteração no procedimento, que consistiu em dar a possibilidade aos participantes de
atribuirem pontos a si próprios e a outros. Turner demonstrou que o favoritismo
endogrupal e a discriminação intergrupal aparecem em situações de categorização,
independentemente de os pontos das matrizes terem ou não valor monetário. Mas se a
situação experimental o permitir, ou porque não existe categorização ou porque os
participantes começam por fazer escolhas entre eles próprios e outros, então o
favoritismo endogrupal é substituído pelo auto-favoritismo, e a discriminação
intergrupal é substituída pela discriminação interindividual. Estes resultados evidenciam
o efeito da competição social por uma identidade pessoal positiva que explicaria os
resultados obtidos nas experiências dos ‘grupos mínimos’.
Nesta sequência, Turner (1975) distinguiu entre competição ‘social’ ou
‘instrumental’ e competição ‘realista’. A competição ‘social’ seria motivada pela auto-
avaliação e aconteceria através da comparação social, enquanto que a competição
‘realista’ seria baseada no auto-interesse. Para a competição ‘realista’ seria necessária a
existência de objectivos grupais incompatíveis, enquanto que para a competição ‘social’
as comparações intergrupais mútuas seriam condição necessária e, frequentemente,
suficiente. Assim, na acepção de Turner (1975, 1978),
“os processos intergrupais de categorização e comparação sociais passam a ser
regulados por uma motivação e o próprio grupo de pertença torna-se uma entidade
temporária e arbitrária, que serve de mero substituto funcional à satisfação da
necessidade de um self positivamente distintivo” (Amâncio, 1993/2000, p.397).
Tajfel (1978b) considera que o comportamento social pode ser conceptualizado
em termos de um continuum ‘interpessoal versus intergrupal’. O primeiro dos extremos,
Racismo e Etnicidade em Portugal
148
o interpessoal, corresponde a uma interacção entre dois ou mais indivíduos que é
completamente determinada pelas suas características individuais ou pelas suas relações
pessoais, não sendo afectada pelas respectivas pertenças sociais. No entanto, Tajfel
salienta que se trata de um “extremo teórico, abstracto, não real” (1982a, p.16) no
sentido em que nenhum exemplo de comportamento intrapessoal pode puramente
observado na ‘vida real’:
“It is impossible to imagine a social encounter between two people which will not
be affected, at least to some minimal degree, by their mutual assignments of one
another to a variety of social categories about which some general expectations
concerning their characteristics and behaviour exist in the minds of the interactants”
(Tajfel, 1978b, p.41).
O outro extremo, o intergrupal, corresponde a uma interacção entre dois ou mais
indivíduos (ou grupos de indivíduos) que é completamente determinada pelas
respectivas pertenças grupais, não sendo afectada pelas características dos indivíduos ou
pelas suas relações pessoais. Tajfel considera que a probabilidade de este extremo ser
encontrado na sua forma pura em situações reais é baixa, mas existe:
“se pensarmos em certas coisas que se passaram durante a Segunda Guerra
Mundial, e mesmo depois, vê-se bem que há situações em que o extremo intergrupo
é determinante, onde todo o comportamento é determinado não por características
individuais ou por relações individuais, mas pela estrutura dessa relação intergrupo.
Isto não é uma abstracção, pois verifica-se em muitas circunstâncias (Tajfel, 1982a,
p.16).
Relativamente a este continuum, Tajfel preocupou-se com as condições que
determinam a adopção de formas de comportamento social mais próximas de um
extremo ou de outro. Uma dessas condições, como já referimos, é o conflito intergrupal.
Assume-se, geralmente, que quanto mais intenso é um conflito intergrupal, maior será a
probabilidade de que os membros de grupos opostos se comportem em função das suas
pertenças grupais, mais do que em termos das suas características individuais ou
relações interpessoais. Contudo, Tajfel considera que um conflito institucionalizado ou
explícito de interesses entre grupos, não é suficiente, tanto teórica como empiricamente,
para explicar muitas situações em que o comportamento social dos indivíduos
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
149
pertencentes a grupos distintos se aproxima do extremo ‘intergrupal’ do continuum. Os
resultados das experiências utilizando o paradigma dos ‘grupos mínimos’ demonstram
que:
“the institutionalization, explicitness, and objectivity of an intergroup conflit are not
necessary conditions for behavior in terms of the 'group' extreme, although they will
often prove to be sufficient conditions” (Tajfel e Turner, 1979, p.34).
Associado ao continuum ‘interpessoal-intergrupal’ está outro continuum cujos
extremos são a ‘mobilidade social’ e a ‘mudança social’. Estes extremos referem-se a
sistemas de crenças acerca da natureza e das estruturas das relações entre os grupos
sociais numa dada sociedade.
O sistema de crenças de ‘mobilidade social’ é baseado no pressuposto de que a
sociedade na qual os indivíduos estão inseridos é flexível e permeável, e portanto,
alguém que não esteja satisfeito com as condições que advêm da sua pertença a
determinado grupo social pode mudar-se individualmente para outro grupo, que se
ajuste melhor aos seus objectivos. Tajfel adoptou a definição de mobilidade social de
Goldhamer: “social mobility is the movement of individuals, families and groups from
one social position to another” (1968, p.429; citado por Tajfel, 1978b, p.46). No
entanto, na teorização de Tajfel, o termo foi restringido à mobilidade social individual,
isto é, aos movimentos de indivíduos e de famílias de uma posição social para outra
(excluindo, os ‘grupos’ da definição de Goldhamer).
A crença na ‘mudança social’ é baseada no pressuposto de que a natureza e
estrutura das relações entre os grupos sociais na sociedade é caracterizada por uma
marcada estratificação, que torna impossível ou muito difícil para o indivíduo, como
indivíduo, sair de um grupo insatisfatório ou desfavorecidos (Tajfel e Turner, 1979).
Tajfel adoptou a definição de mudança social proposta por Toch: “A social movement
represents an effort by a large number of people to solve collectively a problem that
they feel they have in common” (1965, citado por Tajfel, 1978b, p.46). Encontramos
aqui os elementos já enunciados por Lewin, nomeadamente a necessidade dos membros
de grupos sociais desprivilegiados desenvolverem uma consciência do seu destino
comum.
Racismo e Etnicidade em Portugal
150
Na acepção de Tajfel, as crenças na ‘mobilidade social’ não constituem ameaças
para o grupo dominante, enfraquecem a solidariedade dentro do grupo dominado e
mantêm o statu quo. Em contraste, as crenças na ‘mudança social’ implicam a
solidariedade no seio do grupo dominado e constituem uma ameaça para o grupo
dominante, pois visam a alteração de um statu quo que privilegia estes últimos (Abrams
e Hogg, 1990).
Ao continuum interpessoal-intergrupal são associados dois outros contínuos,
relacionados com a variabilidade ou uniformidade nas representações ou nos
comportamentos dos membros do grupo de pertença em relação com os membros do
outro grupo (Tajfel e Turner, 1979).
O primeiro continuum diz respeito à ‘variabilidade versus uniformidade’ do
comportamento em relação ao grupo dos outros: quanto mais próximos os membros de
um grupo estiverem do extremo ‘intergrupal’ e do extremo ‘mudança social’, maior será
a ‘uniformidade’ do seu comportamento em relação aos membros de um outro grupo
relevante; quanto maior a aproximação com os extremos opostos de ambos os
contínuos, maior será a ‘variabilidade’ do comportamento em relação aos membros do
outro grupo.
O segundo continuum está intimamente relacionado com o anterior: quanto mais
próximos os membros de um grupo estiverem dos extremos ‘mudança social’ e
‘intergrupal’, maior será a tendência para tratar os membros do grupo dos outros como
elementos ‘indiferenciados’ de uma categoria social unificada, isto é, os indivíduos
serão definidos quase exclusivamente em função das suas pertenças grupais, em
detrimento das suas características individuais. Este extremo exprime a percepção
estereotipada dos membros dos grupos sociais definidos por critérios de categorização.
Esta concepção baseia-se numa hipótese central do modelo clássico da categorização,
segundo a qual os elementos de uma mesma categoria serão percebidos de forma
semelhante - efeito de assimilação.
Tajfel considera que a investigação em psicologia social se tem situado,
sobretudo, “próximo de um dos extremos dessas quatro polaridades, ou seja, do pólo
mobilidade social, do pólo comportamento interindividual e do pólo variabilidade de um
ou do outro género” (1982a, p.18) devendo-se ultrapassar esta situação.
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
151
Tajfel também se debruçou sobre a influência do estatuto dos grupos na
determinação do comportamento dos seus membros. Por ‘estatuto social’ Tajfel entende
uma hierarquia de prestígio percebida - o estatuto é o resultado de uma comparação,
isto é, reflecte a posição relativa do grupo na(s) dimensão(ões) de comparação. Tajfel
considera que o baixo estatuto não provoca directamente a competição intergrupal, os
seus efeitos no comportamento intergrupal são mediados pelo processo de identidade
social: quanto mais baixo o estatuto subjectivo do grupo em relação com grupos de
comparação relevantes, menor é a sua contribuição para uma identidade social positiva.
Tajfel e Turner (1979) apontam várias reacções possíveis face a uma identidade
social negativa ou ameaçada:
a) ‘mobilidade individual’: os indivíduos podem tentar deixar o grupo para entrar
num de estatuto mais elevado. Uma das características desta estratégia é que o estatuto
do seu grupo anterior não muda, ou seja, é uma estratégia individualista com o
objectivo, pelo menos a curto prazo, de alcançar uma solução individual e não uma
solução grupal. Assim, esta estratégia implica uma desidentificação com o grupo.
b) ‘criatividade social’: os membros do grupo dominado podem procurar uma
distintividade positiva para o grupo de pertença redefinindo ou alterando os elementos
da situação de comparação. Esta é uma estratégia grupal, que pode focar-se nos
seguintes aspectos: criar novas dimensões de comparação entre o grupo de pertença e o
grupo dos outros; mudar os valores das dimensões, de modo que comparações
previamente negativas passem a ser percebidas como positivas, isto é, as dimensões
salientes mantêm-se, mas inverte-se o sistema de valorização; mudar de grupo de
comparação, evitando usar um grupo com elevado estatuto como referência para a
comparação. Um exemplo clássico de ‘criatividade social’ foi o movimento ‘Black is
Beautifull’: a dimensão saliente continua a mesma, mas o sistema de valorização foi
invertido.
c) ‘competição social’: os membros do grupo podem procurar uma distintividade
positiva através de competição directa com o grupo dos outros, tentando inverter as
posições relativas nas dimensões salientes. Esta estratégia implica, portanto, uma
mudança na posição social objectiva do grupo.
Tanto a mobilidade individual como certas formas de criatividade social podem
reduzir o conflito intergrupal tendo, no entanto, diferentes implicações. A primeira
enfraquece a solidariedade no grupo dominado e não fornece um antídoto para a
Racismo e Etnicidade em Portugal
152
identidade social negativa a nível grupal, enquanto a segunda pode restaurar ou criar a
auto-estima positiva.
Tajfel considera ainda duas outras variáveis que podem contribuir para a
compreensão das estratégias a adoptar pelos indivíduos: a percepção da legitimidade e
da estabilidade da situação. Quanto mais uma situação é percebida como
simultaneamente ilegítima e instável, maior a probabilidade que os membros de um
grupo dominado se empenhem em estratégias colectivas de mudança social (Tajfel,
1981/1983). Assim, as comparações sociais entre grupos, baseiam-se na percepção da
legitimidade das relações entre eles. O conceito de identidade social, [...] está ligado à
necessidade duma imagem positiva e diferente do grupo próprio; é por esta razão que a
percepção da ilegitimidade duma relação transcende os limites da semelhança
intergrupo no plano das comparações sociais relevantes, e procura as causas da
ilegitimidade onde quer que julgue que elas se encontrem (Tajfel, 1981/1983, p.301-
302).
A propósito de percepção de legitimidade, Tajfel cita Durkheim, a respeito do que
este disse sobre a manutenção da ordem social:
“O que é preciso, para reinar a ordem social, é que a grande massa dos homens
esteja satisfeita com o que tem. Mas para que eles estejam satisfeitos não é preciso
que tenham mais ou menos, mas sim que estejam convencidos que não têm direito a
mais” (Durkheim, citado por Tajfel, 1981/1983, p.301).
Quando as relações de estatuto são percebidas como imutáveis, como uma parte
de uma ordem estática, a identidade social está ‘segura’. A identidade social torna-se
‘insegura’ ou ‘ameaçada’ quando a ordem estabelecida começa a ser questionada.
Assim, os grupos com elevado estatuto também podem experimentar uma identidade
social insegura, por isso toda a ameaça à distintividade positiva do grupo tenderá a ser
evitada. Na opinião de Tajfel, tanto os grupos de elevado estatuto como os de baixo
estatuto reagem a uma identidade social insegura procurando aumentar a distintividade
positiva do seu grupo.
Como foi referido, quando a situação é percebida como ilegítima e instável, a
probabilidade dos membros do grupos de baixo estatuto rejeitarem a sua inferioridade e
se empenharem em estratégias de mudança social é maior.
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
153
Quanto aos membros do grupo dominante, várias soluções são possíveis quando a
legitimidade do seu estatuto é posta em causa: reforçar, tanto quanto possível, as
barreiras existentes e sistemas ‘legais’ de discriminação; e/ou a criação e manutenção de
uma ideologia que justifique o statu quo, como, por exemplo, ‘o fardo do homem
branco’ (White man´s burden) (Tajfel, 1978b, p.90), como foi ilustrado no capítulo 1, a
propósito do colonialismo.
O significado avaliativo e emocional da pertença grupal (Tajfel, 1972) pode
adquirir maior peso no caso dos grupos dominados do que no caso dos dominantes, uma
vez que estes são constantemente confrontados com a sua pertença grupal e limitados
por ela. Uma vez desenvolvida a consciência de ‘destino comum’, os membros de
grupos dominados podem exagerar a inequidade que os distancia do grupo dominante,
de forma a salientar a ilegitimidade da situção (van Knippenberg e van Oers, 1984,
citados por Amâncio, 1988, p.310). Podem também manifestar maior favoritismo pelo
seu grupo de pertença do que os membros de grupos dominantes, que conscientes da
situação de desigualdade, evitam discriminar abertamente os membros das minorias
(Branthwarte e Jones, 1975; citados por Tajfel, 1978c, p.91). Assim, numa
“situation of dissymmetry in which the conflict of values in the superior group
and/or the relative lack of importance for it of a part icular comparison of identities
lead to the prediction that intergroup discrimination will be stronger in the inferior
than in the inferior group” (Tajfel, 1978c, pp.90-91).
Actualmente, o modelo de Tajfel continua a ter desenvolvimentos contínuos,
nomeadamente no que respeita às estratégias dos membros de grupos desfavorecidos
para fazer face à discriminação (Brown, 2000; Schmitt e Branscombe, 2002). Por
exemplo, Branscombe e Ellemers (1998) analisam as estratégias de mobilidade ou
mudança social em função do nível de identificação com o endogrupo. As autoras
distinguem dois tipos de estratégias: “individualistic versus group-based” (p.243). A
adopção destas estratégias por parte dos membros de grupos desfavorecidos depende
essencialmente “on their ultimate goal - either to salvage personal or group-based self-
esteem” (p.246).
Segundo as autoras, as estratégias individualistas salvaguardam a identidade e
auto-estima pessoais, mas implicam o distanciamento face ao endogrupo. Em
Racismo e Etnicidade em Portugal
154
contrapartida, as estratégias grupais aumentam o nível de identificação com o
endogrupo e contribuem para um reforço da posição do grupo na estrutura social, mas
podem implicar maiores dificuldades no relacionamento com os grupos dominantes.
Assim, conforme a discriminação seja percepcionada como uma ameaça à identidade
pessoal ou social, diferentes consequências cognitivas, emocionais ou comportamentais
podem ser esperadas (Branscombe e Ellemers, 1998).
Mais recentemente, Barreto e Ellemers (2002), debruçaram-se sobre os efeitos do
preconceito ‘subtil’ sobre o bem-estar dos indivíduos, tendo chegado à conclusão que
este pode ter efeitos nefastos, uma vez que dificulta o reconhecimento da discriminação
e a consciência de destino comum, levando os indivíduos a desinvestir das estratégias de
‘coping’ e a efectuar atribuições internas quando confrontados com os seus fracassos
pessoais. Nesse sentido, as autoras salientam que as ‘novas’ formas de preconceito
podem ter efeitos mais nefastos sobre a auto-estima dos indivíduos do que as formas
‘clássicas’, não só porque são mais difíceis de reconhecer e de contrariar.
Resumindo, o modelo da identidade social de Bristol parte da integração de três
processos: categorização social, identidade social e comparação social, num quadro
coerente que contribui para a explicação de várias formas de comportamento
intergrupal, conflito social e mudança social. Na opinião de Tajfel e Turner (1979), este
modelo tem em consideração as realidades sociais, bem como os seus reflexos no
comportamento social através da mediação de um sistema de crenças socialmente
partilhado. No entanto, a sua dependência face ao paradigma dos ‘grupos mínimos’
conduziu à relativa negligência dos aspectos de natureza ideológica, o que está patente
na universalização a todos os grupos sociais da procura da distintividade positiva
(Amâncio, 1993/2000).
As críticas a este modelo de identidade social surgiram, desde o seu início, na
própria escola de Bristol. Billig (1976; citado por Amâncio, 1993/2000) foi o primeiro a
pôr em dúvida a generalização a todos os grupos sociais de uma necessidade de
identidade social positiva. Na opinião deste autor, esta necessidade não podia existir
independentemente da estrutura e ideologia sociais. Neste sentido, Billig salientou a
necessidade de compreender as próprias condições sociais de emergência de uma
identidade social positiva.
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
155
De facto, várias investigações empíricas apontam para que a necessidade de
distintividade positiva não é algo universal, mas está estritamente ligada a uma
ideologia que valoriza a individualidade. Wetherell (1982) comparou os resultados
obtidos em réplicas da experiência dos ‘grupos mínimos’ com adolescentes europeus e
da Polinésia, tendo verificado que estes últimos escolhiam preferencialmente a
estratégia da recompensa máxima comum (MJP), o que aponta para as raízes culturais
de uma identidade que se manifesta por uma distintividade positiva.
Breakwell (1978) considera que os processos que estão associados à identidade
social não são explicativos por si só, mas sim algo a explicar. A modalidade de
identidade social salientada pela escola de Bristol revela-se insuficiente para o estudo de
determinadas relações intergrupais, particularmente aquelas que envolvem grupos com
estatutos desiguais na estrutura social. Por exemplo, as relações que envolvem as
categorias masculina e feminina não são inteligíveis no âmbito da SIT, ‘uma vez que a
distintividade positiva de si e do grupo correspondem mais a um padrão perceptivo e
comportamental do sexo masculino do que do sexo feminino’ (Amâncio, 1993/2000,
p.399).
O facto das experiências da equipa de Bristol terem sido quase todas realizadas
com participantes do sexo masculino e colocados em grupos com estatutos simétricos na
situação experimental está na origem de algumas das limitações deste modelo. De facto,
a única experiência efectuada por esta equipa com participantes de ambos os sexos
mostrou também que as raparigas preferiam a estratégia da equidade relativamente à
diferenciação (Turner, Brown e Tajfel, 1979), mas, como salienta Amâncio,
(1993/2000) este resultado não foi objecto de qualquer reflexão particular pelos autores
da experiência
Doise (1987, 1988) critica o modelo de Tajfel e Turner (1979) por este não ter
tido em consideração as determinantes sociais da identidade social. Tal negligência
deve-se à dependência deste modelo teórico face a um paradigma experimental
socialmente ‘vazio’ e do qual se extrapolou para as condições sociais reais.
Na opinião de Amâncio (1993/2000) verifica-se, assim, uma contradição na
produção teórica de Tajfel, que procurava, com os seus estudos sobre a diferenciação
perceptiva entre os grupos, ultrapassar as extrapolações do âmbito psicológico para o
das relações intergrupais e pusera em causa a tendência da psicologia social para
efectuar experiências num ‘vácuo social’, negligenciando os aspectos socialmente
relevantes da realidade social. Como já foi referido, nos seus estudos sobre a
Racismo e Etnicidade em Portugal
156
categorização social Tajfel salientara que tanto os critérios classificatórios como os
conteúdos da categorias possuem significados avaliativos, sendo este aspecto retomado
na integração da comparação social no seu modelo. No entanto, na âmbito da SIT, são
muito raros os estudos que têm em consideração as dimensões relevantes de
comparação entre os grupos e/ou a relevância dos grupos de comparação. Por
consequência, a identidade social, tal como foi operacionalizada na SIT, é vazia de
significados sociais (Rabbie e Horwitz, 1988).
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
157
2.3.2. Identidade social e auto-categorização
Como já foi referido, embora Tajfel e Turner tenham associado as suas ideias num
mesmo modelo de identidade social (1979), as reflexões dos dois autores apresentam
algumas diferenças, que se tornam bem patentes nos pressupostos da teoria da
auto-categorização (e.g, Turner et al., 1987). Se o modelo da identidade social é
criticável por um certo ‘reducionismo psicológico’ que se deveu às extrapolações
efectuadas a partir dos ‘grupos mínimos’ para os grupos reais, algumas das concepções
de Tajfel sofrerão ainda uma radicalização psicológica na reinterpretação de Turner
(Amâncio, 1993/2000).
Turner considera que a SCT, embora derivando directamente da SIT, constitui
uma teoria substancialmente diferente, em termos dos problemas em que se focaliza e
das hipóteses que propõe. Um dos aspectos em que a SIT e a SCT diferem é na
interpretação do contínuo intergrupal vs interpessoal. Enquanto que para Tajfel o polo
interpessoal era considerado meramente teórico, para Turner o self determina todo o
processo, mesmo no polo intergrupal:
“[...] the interpersonal-intergroup continuum was conceptualized as varying from
'acting in terms of self' to 'acting in terms of group' (Tajfel, 1978, Turner, 1978) - as
if the latter were not an expression of the former. The self-categorization theory
makes social identity the cognitive basis of group behaviour, the mechanism that
makes it possible [...], and by asserting that self-categorizations function at different
levels of abstraction makes both group and individual behaviour ‘acting in terms of
self’” (Turner et al., 1987, p.viii-ix; itálico nosso).
Nesta afirmação de Turner está bem patente a soberania do psicológico face ao
social, isto é, a ‘radicalização psicológica’ (Amâncio, 1993/2000, p.298) que caracteriza
a SCT. Turner acrescenta ainda que, relativamente à SIT, a SCT representa ‘a shift in
focus from the problem of social conflict to the problem of the relationship of the
individual to the group’ (Turner, 1988, p.113). Assim, a SCT parece privilegiar aspectos
microssociais, em detrimento da análise de fenómenos macrossociais que constituíram
uma das preocupações de Tajfel (Amâncio, 1993/2000).
Racismo e Etnicidade em Portugal
158
Turner (1987) define o auto-conceito ‘as the set of cognitive representation of self
available to a person’ (p.44). O auto-conceito compreende diferentes componentes, isto
é, cada pessoa possui múltiplos conceitos de si próprio. O funcionamento do auto-
conceito é dependente da situação: auto-conceitos particulares tendem a ser activados e
a tornar-se salientes em situações específicas. Qualquer auto-conceito particular tende a
tornar-se saliente em função de uma interacção entre as características da pessoa e da
situação (Bruner, 1957; Oakes, 1987).
As representações cognitivas do self tomam a forma, entre outras, de auto-
categorizações. Estas fazem parte de um sistema hierárquico de classificação, de acordo
com o seu nível de abstracção. O nível de abstracção da auto-categorização refere-se ao
grau de inclusividade, no sentido de Rosch (1978), das categorias nesse nível: quanto
mais inclusiva a auto-categorização, mais elevado o nível de abstracção. Turner (1987)
considera que há, pelo menos, três níveis de abstracção nas auto-categorizações que são
importantes para o auto-conceito:
“(a) the superordinate level of the self as human being, self-categorizations based
on one's identity as a human being, the common features shared with other members
of the human species in contrast to others forms of life, (b) the intermediate level of
ingroup-outgroup categorizations based on social similarities and differences
between human beings that define one as a member of certain social groups and not
others, and (c) the subordinate level of personal self-categorizations based on
differentiations between one-self as a unique individual and other ingroup members
that define one as a specific individual person. These levels can be said to define
one's 'human', 'social' and 'personal' identity respectively, based on inter-species,
intergroup (i.e., intra-species) and interpersonal (i.e., intragroup) comparisons
between oneself and others” (p.45).
As auto-categorizações a um determinado nível tendem a formar-se e a tornar-se
salientes através de comparações entre estímulos seguindo o princípio de ‘meta-
contraste’:
“within any given frame of reference (in any situation comprising some definite
pool of psychologically significant stimuli), any collection of stimuli is more likely
to be categorized as an entity (i.e., grouped as identical) to the degree that the
differences between those stimuli on relevant dimensions of comparison (intra-class
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
159
differences) are perceived as less than the differences between that collection and
other stimuli (inter-class differences)” (Turner, 1987, p.46-47).
Na opinião de Turner (1987), estes pressupostos sumarizam as ideias básicas
sobre a formação de categorias de Bruner (1957), Campbell (1958), Tajfel (1969, 1972),
Rosch (1978) e Tversky e Gati (1978), uma vez que todos estes autores salientam o
papel determinante das semelhanças intra-categoriais e das diferenças inter-categoriais.
Contudo, Turner considera que a SCT vai mais além, tornando claro que as semelhanças
e as diferenças não são independentes e aditivas, mas são aspectos do mesmo meta-
contraste. Este aspecto parece-nos problemático, uma vez que não está comprovada
empiricamente a co-ocorrência destes dois fenómenos (e.g., Tajfel, Sheikh e Gardner,
1964), havendo inclusivé autores que afirmam a sua independência, atribuindo-lhes
origens diferentes (e.g., Krueger, 1992).
De acordo com Turner (1987), verifica-se um ‘antagonismo funcional’ (p.49)
entre a saliência de um nível de categorização e a saliência dos outros níveis. A
saliência das diferenças intergrupais, no nível intermédio da categorização, pressupõe
reduzir ou inibir a percepção das diferenças intragrupais. Nesta sequência,
“there tends to be an inverse relationship between the salience of the personal and
social levels of self-categorization. Social self-perception tends to vary along a
continuum from the perception of self as unique person (maximum intra -personal
identity and maximum difference perceived between self and endogrupo members)
to the perception of the self as an endogrupo category (maximum similarity to
endogrupo members and difference from exogrupo members)” (Turner, 1987, p.49;
itálico no original).
A saliência do nível intermédio de auto-categorização é definida como a condição
‘under which some specific group membership becomes cognitively prepotent in self-
perception to act as the immediate influence on perception and behavior’ (Turner, 1987,
p.54). Por consequência,
“(…) factors which enhance the salience of ingroup-outgroup categorizations tend
to increase the perceived identity (similarity, equivalence, interchangeability)
between self and ingroup members (and difference from exogrupo members) and so
depersonalize individual self-perception on the stereotypical dimensions which
Racismo e Etnicidade em Portugal
160
define the relevant ingroup membership. Depersonalization refers to the process of
'self-stereotyping' whereby people come to perceive themselves more as the
interchangeable exemplars of a social category than as unique personalities defined
by their individual differences from others” (Turner, 1987, p.50; itálico no original).
Turner (1987) salienta que o termo despersonalização não tem uma conotação
negativa:
“Depersonalization [...] is not a loss of individual identity, nor a loss or submergence
of the self in the group (as in the concept of de-individuation), and nor any kind of
regression to a more primitive or unconscious form of identity” (p.51).
No entanto, esta afirmação parece-nos infundada, já que, por um lado, não é
apresentada evidência empírica que a sustente, e por outro, a despersonalização
corresponde a uma perda do estatuto de ‘sujeito’, que constitui um pilar fundamental do
projecto da modernidade: a concepção do indivíduo como livre, autónomo e
internamente determinado (e.g., Doise, 1999, Lorenzi-Cioldi e Dafflon, 1998).
Resumindo, segundo a SCT a saliência da pertença grupal é um fenónemo
dinâmico, sendo definido como um processo psicológico que implica a
despersonalização da auto-percepção. O comportamento intergrupal expressa uma
mudança, no nível de abstracção da auto-categorização, do nível pessoal para o nível
social, a que corresponde “a shift towards the perception of self as an interchangeable
exemplar of some social category and away from the perception of self as a unique
person defined by individual differences from others” (Turner, 1987, p.50).
A saliência das auto-categorizações é um aspecto com elevada pertinência no
âmbito da SCT. A questão de saliência refere-se às condições sob as quais a pertença a
uma categoria específica se torna cognitivamente predominante na auto-percepção
agindo como a influência imediata na percepção e no comportamento. Oakes (1987)
apresenta um modelo relativo à saliência das categorias, conhecido por modelo
‘accessibility x fit’ (p.126), baseado principalmente nos trabalhos sobre a percepção de
Bruner (1957).
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
161
Segundo este modelo, a saliência de uma categoria, numa situação específica, é
determinada pela interacção entre a sua ‘acessibilidade’ para o observador e o
‘ajustamento’ entre as características do estímulo e as especificações da categoria. A
''acessibilidade’ refere-se à facilidade com que uma categorização particular pode ser
cognitivamente activada. Categorizações que são mais prontamente acessíveis têm
maior probabilidade de se tornarem salientes, e assim de serem usadas, do que
categorias cujo acesso cognitivo é mais difícil. Quanto mais acessível é uma categoria,
menos input é necessário para evocar a categorização relevante, e uma maior amplitude
de características dos estímulos tende a ser percebida como congruente com a categoria,
enquanto que as características que não se ajustam à categorização tendem a ser
mascaradas. A acessibilidade é determinada sobretudo por dois factores: a
aprendizagem passada e a motivação presente.
O ‘ajustamento’ refere-se à correlação entre a distribuição dos estímulos, em
termos de uma ou mais características, e a classificação fornecida pela categorização.
Oakes (1987) define e mede o ‘ajustamento’ como o grau em que as semelhanças e as
diferenças percebidas entre as pessoas e as suas acções se correlacionam com uma
determinada classificação (baseada em Tajfel, 1969).
Resumindo, o sistema cognitivo, na procura de maximizar o significado de um
contexto específico, activa a categorização que maximiza a interacção entre a
‘acessibilidade’ da categoria e o ‘ajustamento’ entre o estímulo e as especificações de
categoria. Isto é, a categorização saliente é a que melhor explica as semelhanças a as
diferenças entre os estímulos. Hogg e McGarty (1990) referem que este processo pode
ser comparado, ilustrativamente, a uma análise multivariada de variância (MANOVA)
com um grande número tanto de dimensões categoriais como de variáveis contínuas. A
categoria saliente será aquela que explica o máximo de variância.
Esta conceptualização é inspirada em modelos cognitivos, tais como o sistema
hierárquico de inclusividade de Rosch (1978) da incompatibilidade entre a atenção
dirigida a características globais (categorias) e locais (membros). Na acepção de Rosch
(1978), o nível de inclusividade mais eficiente, adoptado pelos indivíduos em ordem a
maximizar o conhecimento acerca dos outros, é o nível intermédio de classificação (i.e.,
o nível da categorização endogrupo/exogrupo). O nível interpessoal é informativamente
mais rico, mas é menos eficiente para uma série de propósitos. Em contrapartida, de
acordo com a SCT, o nível de abstracção saliente numa interacção social não é fixo,
mas varia conforme o quadro de referência: o nível de abstracção saliente é o
Racismo e Etnicidade em Portugal
162
imediatamente subordinado ao nível no qual o estímulo sob comparação pode ser
tratado como idêntico (Turner, 1987).
Na opinião de Turner, a SCT consiste numa teoria geral do processo grupal,
constituindo uma base para a derivação de ‘sub-teorias intermédias’ (1987, p.43) de
alguns dos principais fenómenos grupais tais como a atracção, a cooperação e a
influência social. Essas sub-teorias consistem em análises mais detalhadas de
consequências particulares da formação do grupo, e podem ser aplicadas a problemas
mais específicos neste campo. Na acepção do autor, é importante não só produzir uma
teoria geral unificada do grupo, mas também testá-la em variados contextos.
Turner et al. (1987) apresentam em detalhe algumas pesquisas testando hipóteses
específicas derivadas da SCT nas áreas de formação de grupo (Hogg, 1987), saliência
das categorizações sociais (Oakes, 1987), influência social e polarização de grupo
(Wetherell, 1987) e psicologia das multidões (Reicher, 1987).
O julgamento social e estereotipia constituem uma das áreas em que a SCT tem
sido ‘vigorosamente aplicada’ (Hogg e McGarty, 1990, p.21). A SCT assume-se como
uma alternativa à conceptualização da estereotipia no âmbito do modelo ‘cognitive
miser’ (Fiske e Taylor, 1991, p.13). De acordo com as teorias socio-cognitivas a
saliência das categorias sociais seria determinada pela sua relativa novidade, frequência
estatística, ou proeminência perceptual. Assim, por exemplo, a categorização social
‘mulher’ tem maior probabilidade de ser aplicada quando a mulher está em minoria
numérica numa dada situação (efeito ‘solo’) visto que a categoria se torna
perceptualmente distintiva sob estas condições (e.g., Taylor, 1981). Oakes (1987; Oakes
e Turner, 1990) tem sublinhado algumas limitações importantes desta análise da
saliência categorial e adoptou, como já referimos, a ideia de que a aplicação de uma
determinada categoria numa dada situação depende muito mais do significado social e
da relevância da pertença categorial do que da mera proeminência perceptual:
“Fundamental to this self-categorization approach is the idea that social categories
are applied in a way which is social-psychologically adaptive for the perceiver rather
than on the basis of error, information overload or the perceptual prominence of
particular stimuli” (Hogg e McGarty, 1990, p.22).
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
163
Hogg e McGarty (1990) consideram que: ‘One of the attractions of self-
categorization theory [...] is that it represents a means by which the social context can be
incorporated in social psychological analyses’ (p.23). E acrescentam: ‘We are interested
in two sides of a dialectic: the effect of the social upon the individual and the individual
on the social’ (p.24). No entanto, a integração do contexto social, nomeadamente os
factores de ordem ideológica, não é visível na maior parte da pesquisa empírica e da
produção teórica no âmbito da SCT.
O desenvolvimento do modelo da identidade social de Bristol por parte de Turner
e de autores sob a sua inflência (e.g., Turner et al., 1987; Hogg e Abrams, 1988;
Abrams e Hogg, 1990) vai no sentido da “articulação entre explicações situacionais,
como a da dinâmica contextual da relação intergrupos, e explicações psicológicas, como
a identificação com o grupo” (Amâncio, 1993/2000, verificarcitaçãop.215). Se estes
desenvolvimentos constituem lacunas da teoria da identidade social que era necessário
colmatar, a verdade é que as explicações de nível ideológico continuam ausentes, apesar
de serem necessárias para analisar dinâmicas inter e intragrupos, como salientam Hinkle
e Brown (1990; citados por Amâncio, 1993/2000, p.215).
A SCT tem sido alvo de algumas críticas, oriundas, nomeadamente dos autores da
escola de Genebra (e.g., Doise, 1988; Doise e Lorenzi-Cioldi, 1989). Algumas dessas
críticas são comuns às que já referimos em relação à SIT (ver ponto 2.3.1), outras são
especificamente dirigidas à SCT, o que se prende sobretudo com a ‘radicalização
psicológica’ de que já falámos.
Tajfel (1978b) situava o seu modelo da identidade social no âmbito das relações
intergrupais, uma vez que ele se referia às situações que se encontravam no pólo
intergrupal do continuum interpessoal-intergrupal do comportamento social, ou seja, as
situações em que a pertença grupal se torna perceptiva e avaliativamente saliente para
os indivíduos. Em contrapartida, grande parte dos trabalhos desenvolvidos no âmbito da
SCT não se focalizam propriamente nas relações intergrupais, mas sim na identificação
do indivíduo com o(s) grupo(s) de pertença, como salienta Amâncio
“o continuum interpessoal-intergrupo transforma -se numa oposição entre o self e o
grupo (Turner, 1982), à qual corresponde uma oposição entre uma identidade
Racismo e Etnicidade em Portugal
164
pessoal, construída por traços físicos, de personalidade, intelectuais e
idiossincráticos, e uma identidade social, que é composta pelo conjunto das
autodefinições em termos de categoria de pertença (Amâncio, 1993/2000, p.398).
Os conteúdos da identidade social não são considerados e o grupo surge como um
simples meio de satisfação da necessidade de uma identidade individual positiva
(Turner, 1975).
Por outro lado, na acepção de Tajfel, é a relação entre uma pertença grupal
socialmente saliente e as crenças que os membros do grupo têm sobre as características
do sistema social em que estão inseridos, e da legitimidade ou ilegitimidade da posição
social do seu grupo, que determina o tipo de estratégias, individuais (mobilidade social)
ou colectivas (mudança social), que os membros do grupo desenvolverão para mudar a
sua situação. Tajfel (1978a, 1981/1983, 1982a) afirma, ainda, a necessidade e relevância
da contribuição da psicologia social para a análise de fenómenos macrossociais, como
as situações de discriminação nacional, étnica e linguística, assim como os movimentos
sociais. Em contraste, a SCT focaliza-se sobretudo nos determinantes sociocognitivos
da saliência da pertença grupal e na identificação do indivíduo com o grupo, em
detrimento da análise de aspectos macrossociais.
Na opinião de Amâncio (1993/2000), a SCT constitui
“uma teoria universal do eu, no quadro da qual a própria categorização já não
organiza a realidade em termos de distintividade entre grupos, mas sim em termos
de uma distintividade entre o eu e os outros, incluindo os grupos” (p.298).
Como referimos, a SCT é inspirada em modelos cognitivos (e.g., Rosch, 1978;
Navon, 1977) e tais modelos situam-se no nível de análise intraindividual (Lorenzi-
Cioldi e Doise, 1990). A teoria da auto-categorização deverá ser articulada com outros
modelos explicativos para poder dar conta das variações observadas nas percepções
intergrupais, nomeadamente para permitir compreender ‘when the postulated processes
at the group level and at the individual level are antagonistic or, on the contrary, when
they reinforce each other’ (Lorenzi-Cioldi e Doise, 1990, p.87).
Doise e Lorenzi-Cioldi (1989; Lorenzi-Cioldi e Doise, 1990) argumentam em
favor de uma perspectiva pluralista onde diferentes padrões de diferenciação intra e
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
165
intergrupais sejam considerados. Na opinião destes autores, as diferenciações self-outro
podem ser perceptualmente compatíveis com a identidade grupal, mesmo quando a
categorização endogrupo/exogrupo é tornada saliente. Estes autores consideram que a
concepção de Turner et al. (1987), em que níveis de identidade pessoal e social são
considerados como antagónicos, não sendo possível a sua activação simultânea, sofre de
excessiva simplicidade e não permite explicar as assimetrias observadas na percepção
dos grupos.
De facto, estudos desenvolvidos pela equipa de Genebra vieram demonstrar que a
relação entre as diferenciações intra e intergrupais não é linear - complexos padrões de
diferenciação podem acontecer dependendo da natureza das relações intergrupais, como
veremos no ponto seguinte.
Racismo e Etnicidade em Portugal
166
2.4 Representações sociais, identidade social, e dominação simbólica
“The class of the poor (…) possesses a great homogeneity insofar as its
meaning and location in the social body is concerned; but it lacks is
completely insofar as the individual qualification of its elements is
concerned. It is the common end of the most diverse destinies, an ocean into
which lives derived from the most diverse social strata flow together. (…)
What is most terrible in poverty is the fact that there are human beings who,
in their social position, are just poor and nothing but poor.”
Georg Simmel, 1907
“Yet the distinguishing characteristic of the nobility is that other element –
personality, freedom, the internally grounded – became of grater value and of
greater significance here than in other structures. (…) Nobility's special
synthesis is one between the extremes in which the individual is either
swallowed up by his group or comes to regard it with oppositional self-
centeredness. (…) The nobility has smelted individuals into the common
grouping to a degree not otherwise attained. But the superpersonal structure
thus created has its goal and meaning, here more than anywhere else, in the
existence of individuals, in their might and significance, in the freedom and
self sufficiency of their lives”.
Georg Simmel, 1908
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
167
2.4.1. Identidade social e diferenciação categorial
O modelo da diferenciação categorial (e.g., Doise, 1976/1984) visa a integração e
articulação entre alguns modelos anteriores (e.g., Sherif et al., 1961; Tajfel, 1969). Este
esforço de articulação está extremamente patente no livro de William Doise, A
articulação psicossociológica e as relações entre grupos (1976/1984), dado que o autor
convoca não só experiências realizadas por si e seus colaboradores para apoiar o modelo
da diferenciação categorial mas também experiências realizadas por outros
investigadores no âmbito de outros modelos. O modelo da diferenciação categorial
atribui um papel preponderante à categorização, considerando-a como um processo
psicológico de estruturação do meio, mas integra a análise deste processo no quadro das
relações intergrupais, tendo em consideração variáveis de ordem situacional e estrutural
(Doise, 1976/1984; Deschamps, 1984). Na opinião de Doise, os conteúdos das
categorias não podem ser desligados dos seus critérios classificatórios.
Numa experiência de Doise (1969; citado por Doise, 1976/1984) os participantes,
franceses e alemães, foram colocados em grupos, divididos em três condições
experimentais: numa condição, os grupos distinguiam-se pela nacionalidade (o grupo
dos franceses e o grupo dos alemães); noutra condição, os grupos eram ambos formados
por participantes da mesma nacionalidade; e na outra condição, as nacionalidades
estavam misturadas (grupos mistos). A situação experimental exigia escolhas
cooperativas intra e intergrupais, tendo os resultados demonstrado que as escolhas
cooperativas intragrupais eram significativamente mais elevadas do que as escolhas
intergrupais, nas situações em que um grupo de participantes da mesma nacionalidade
interagia com um grupo de participantes de outra nacionalidade. Esta experiência
demonstra que a discriminação intergrupal resulta de uma associação entre critérios
classificatórios e conteúdos significantes. Neste caso, o tratamento diferenciado dos
membros do grupo de pertença não dependia de uma mera categorização classificatória,
mas verificava-se sobretudo quando esta estava associada a uma dimensão que adquiria
significado subjectivo para os participantes - a nacionalidade.
Doise (1976/1984) demonstrou que as representações assumem um lugar central
nas relações intergrupais, desempenhando três tipos de funções: selecção, justificação e
antecipação.
A função selectiva traduz-se numa centralidade dos conteúdos relevantes,
relativamente aos conteúdos irrelevantes, ao nível das representações mútuas nas
Racismo e Etnicidade em Portugal
168
relações intergrupais. Avigdor (1953, citado por Doise, 1976/1984) realizou uma
experiência em que os participantes (adolescentes do sexo feminino) faziam parte de
dois grupos que tinham de competir por recursos comuns para levar a cabo o seu
objectivo (a montagem de uma peça de teatro). Os resultados evidenciaram a função
selectiva no conteúdo dos estereótipos mútuos: a diferenciação entre os grupos
verificou-se nas características que eram relevantes para a situação (tais como
batoteiras, egoístas) mas não naquelas que eram irrelevantes.
A função justificativa revela-se nos conteúdos das representações que veiculam
uma imagem do outro grupo que justifica um comportamento hostil em relação a ele
e/ou a sua posição desfavorável no contexto da interacção entre os grupos. Na opinião
de Doise (1976/1984), os estudos dos estereótipos apoiam esta interpretação. A
semelhança, que existe em vários países, entre os estereótipos referentes a grupos
diferentes mas com uma mesma posição socio-económica desfavorecida, sugere que
estes estereótipos têm, em toda a parte, a função de preservar a distância económica e
cultural dos grupos dominantes face aos dominados.
A função antecipatória manifesta-se na influência que as representações exercem
no próprio desenvolvimento da relação entre os grupos, como demonstra a experiência
de Doise e Weinberger (1972-1973; citados por Doise, 1976/1984). Nesta experiência,
participantes do sexo masculino são levados a antecipar situações de competição, de
cooperação ou de co-presença com duas parceiras do sexo feminino, comparsas dos
experimentadores. Verificou-se que os participantes projectavam uma imagem das suas
parceiras globalmente mais desfavorável e mais feminina quando antecipavam uma
situação de competição do que quando antecipavam os outros tipos de interacção.
Assim, as representações não se limitam a seguir o desenvolvimento das relações
intergrupais, adaptando-se a ele, mas também intervêm “na determinação deste
desenvolvimento, antecipando-o activamente” (Doise, 1976/1984, p.105).
Como refere o autor, a selecção, a justificação e a antecipação não são,
evidentemente, três funções independentes das representações intergrupais, mas
derivam de uma mesma dinâmica. O modelo da diferenciação categorial estabelece,
assim, uma ligação entre a realidade objectiva e simbólica na análise das relações
intergrupais. Doise (1976/1984) refere que:
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
169
“o processo de diferenciação categorial constitui um processo psicossociológico [...]
[que] esclarece o modo como, em variadas situações, uma realidade social
constituída por grupos se constrói e afecta os comportamentos dos indivíduos que,
por seu turno, interagem e corroboram esta realidade” (p.138).
Várias experiências realizadas por Doise e colaboradores (e.g., Doise e Sinclair,
1973; citados por Doise 1976/1984) têm demonstrado que o processo de diferenciação
categorial não se manifesta de forma simétrica, sendo modelado pelo contexto das
relações intergrupais.
Também os estudos sobre o etnocentrismo realizados por LeVine e Campbell
(1972) e Brewer (1979), aos quais fizemos referência no capítulo 1, demonstraram que
o processo de diferenciação categorial não é nem universal na sua extensão, nem
simétrico na sua expressão, uma vez que a diferenciação se estabelecia sobretudo ao
nível das dimensões consideradas mais relevantes para o grupo (Brewer, 1979). Estes
estudos também demonstram que, no caso de categorizações cruzadas, a sobreposição
de duas categorias pode anular o efeito diferenciador de uma delas. Tal não se verifica,
no entanto, relativamente a categorias muito significantes para os indivíduos e, por isso,
estruturantes das suas representação (por exemplo, nacionalidade). Assim, os processos
de diferenciação perceptiva e avaliativa são mediados pelas pertenças dos indivíduos a
categorias sociais ‘reais’, mas o seu peso depende do contexto específico em que essas
categorizações são activadas.
A manifestação assimétrica do favoritismo endogrupal e da discriminação
intergrupal, quer ao nível das representações quer ao nível dos comportamentos,
“mostra bem os limites de uma causalidade psicológica universal daqueles processos
como defendia Turner (1975) no quadro do modelo de Bristol” (Amâncio, 1993/2000,
p.302).
Racismo e Etnicidade em Portugal
170
2.4.2 Identidade dominante e identidade dominada
Na acepção de Deschamps (1982a), o estudo da identidade deve ter em
consideração que os indivíduos se definem e são definidos em relação a um universo
simbólico comum que diferencia os grupos através das suas posições relativas, o que se
traduz em diferentes modalidades de identidade social. “Esta abordagem da identidade
social situa-se numa perspectiva psicossociológica, na medida em que articula as
condições objectivas da relação intergrupos com uma dimensão cognitiva que faz da
identidade social um constructo subjectivo” (Amâncio, 1993/2000, p.390).
Contrariamente à hipótese de exclusão mútua das diferenciações intra e
intergrupais, subjacente ao continuum interpessoal-intergrupal, diversos estudos (e.g.,
Deschamps, 1982b; Lorenzi-Cioldi, 1988) têm demonstrado que a um maior índice de
diferenciação intragrupal pode estar ligado com um maior índice de diferenciação
intergrupal: hipótese da co-variação.
Deschamps (1982b) considera que a perspectiva da escola de Bristol se caracteriza
por uma visão ‘homeostática’ dos processos de diferenciação:
"(…) cette théorisation nous conduit à un modèle homéostatique ou de l´équilibre
dans lequel, si l´individu, par son identification à un groupe, accède à une identité
positive, il n´a plus tendance à établir une différence d´avec autrui et si l´individu a
la possibilité de se différencier d´autrui et par là même d´accéder à une évaluation
positive de lui-même, il n´établit plus de discrimination entre les différents groupes
de son entourage" (p.251-252).
Em contrapartida, Deschamps (1982b) procura situar os comportamentos de
diferenciação e discriminação intergrupais num universo de referências sociais e
normativas. Na acepção deste autor, o comportamento intergrupal seria o resultado de
diferentes modalidades de identificação com o grupo, como a individuação e a fusão.
Deschamps e Lorenzi-Cioldi (1981; citados por Deschamps, 1982b)
operacionalizaram estas modalidades de identificação com o grupo numa experiência
em que foi utilizado um procedimento semelhante ao dos ‘grupos mínimos’. Numa das
condições os participantes, adolescentes de ambos os sexos, foram informados de que
iriam receber individualmente os pontos que lhes fossem atribuídos pelos outros
(condição de individuação), enquanto na outra os participantes eram informados de que
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
171
iriam receber a média dos pontos atribuídos ao seu grupo (condição de fusão). Os
resultados evidenciaram maiores índices de diferenciação intra e intergrupal na
condição de individuação do que na de fusão, confirmando a hipótese de co-variação
nos comportamentos de diferenciação interindividual e intergrupal.
Numa experiência de Wagnen e Schönbach (1984; citados por Doise, 1988)
verificou-se que quando se pedia a participantes alemães de mais baixo estatuto para se
descreverem a si próprios e aos alemães em geral, antes de descreverem os
trabalhadores imigrantes, produzia-se uma imagem mais negativa destes últimos do que
quando os próprios eram descritos depois do exogrupo. Contudo, o mesmo não
acontecia com os participantes de mais alto estatuto, para os quais a ordem de se
descreverem a si próprios, antes ou depois dos trabalhadores imigrantes, não teve efeito.
Estes resultados apontam para uma certa assimetria nos padrões de diferenciação, sendo
os membros dos grupos dominados mais influenciados pelo contexto do que os
membros do grupo dominante.
Os estudos sobre o ‘efeito ovelha negra’ (Marques, 1990; Marques, Robalo e
Rocha, 1992; Marques e Paéz, 1994) também apontam para uma co-variação nos
comportamentos de diferenciação. Basicamente, o ‘efeito ovelha negra’ é considerado
uma consequência dos membros do grupo tentarem alcançar superioridade para o seu
grupo comparando-o com outro(s) grupo(s) relevante(s). Marques considera que uma
forma de alcançar essa superioridade consiste em desvalorizar os membros marginais ou
desviantes do grupo de pertença, isto é, que não revelem as características positivas dos
membros mais prototípicos do grupo - apenas estes membros seriam considerados
relevantes para o estabelecimento de uma identidade positiva nas comparações com
outros grupos. O resultado deste processo é uma polarização nos juízos sobre os
membros do grupo de pertença relativamente aos juízos sobre os membros dos outros
grupos.
Numa das suas experiências, Marques (1986; citado por Marques, 1990), pedia a
estudantes belgas para descreverem ‘estudantes belgas simpáticos’, ‘estudantes belgas
antipáticos’, ‘estudantes norte-africanos simpáticos’ e ‘estudantes norte-africanos
antipáticos’. Tal como se esperava, os estudantes belgas simpáticos foram descritos de
forma mais positiva do que os estudantes norte-africanos simpáticos, enquanto que os
estudantes belgas antipáticos foram descritos de forma mais negativa que os estudantes
Racismo e Etnicidade em Portugal
172
norte-africanos antipáticos. Experiências posteriores demonstraram que este efeito só
ocorre para dimensões relevantes para a definição do grupo de pertença ou para a
relação intergrupal.
Os estudos de Codol (1975; 1984) sobre o efeito Primus Inter Pares (PIP), apesar
de apenas analisarem os efeitos de diferenciação em situações de comparação
interindividual, demonstraram que os participantes resolvem a tensão entre a norma do
conformismo (contextual) e a norma da originalidade (social), afirmando a sua
distintividade através da própria semelhança. Segundo Codol, os indivíduos estão
sujeitos à pressão dos conteúdos avaliativos e normativos inscritos nos contextos ou nas
pertenças categoriais, isto é, a um conflito permanente entre a diferença e a semelhança;
pois tanto a igualdade excessiva como a diferença excessiva terão consequências
nefastas na identidade dos indivíduos. A identidade social estaria ligada ao:
«conflit entre l’affirmation et la nécessité individuelle et l’affirmation et la nécessité
collective ; entre la recherche d’une identité personnelle et la recherche d’une
identité collective ; entre ce qui constitue tout à la fois la différence individuelle et la
similitude à autrui ; entre la visibilité sociale et la conformité, en bref, entre
l’individu et le groupe» (Codol, 1979, p.424, citado por Deschamps e Devos, 1999,
p.149-150).
O comportamento do indivíduo no seio do grupo e em relação aos grupos
relevantes, num dado contexto, não é universalmente orientado por uma motivação, mas
sim pela referência a valores e normas colectivas que a categorização torna
significativas ou as normas contextuais que possibilitam a procura da singularidade,
quer através da diferença, quer através da semelhança (Codol, 1984). Assim, Codol
chama a atenção para o facto da diferenciação interpessoal ser dependente das normas
contextuais e colectivas:
“Differentiation and non-differentiation cannot [...] be considered solely as two
poles between which the conduct of individuals ceaselessly oscillates. In many
social situations, difference and similarity are sought simultaneously. This is ?...?the
‘superior conformity of the self’ (or the ‘PIP effect’) (Codol, 1984, p.328).
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
173
Este efeito seria tanto mais acentuado quanto maior a identificação do indivíduo
com o grupo, isto é, quanto mais este aderisse às suas normas.
Perante os resultados destes diversos estudos, Deschamps (1982a) afirma que a
dicotomia entre identidade pessoal diferenciada e identidade social homogeneizante se
torna inaceitável. O comportamento do indivíduo, no seio do grupo e em relação ao
grupo comparativamente relevante, é orientado por normas e valores colectivos que dão
significado à categorização intergrupal. Uma dessas referências colectivas são as
ideologias relativas à estratificação dos grupos sociais numa escala de poder, que
Deschamps (1982a, p.88) designa por um ‘universo simbólico comum de valores’, que
serve de referência à posição relativa dos grupos sociais.
De acordo com Deschamps (1984), as dinâmicas sociais a nível interindividual e a
nível intergrupal são ao mesmo tempo homólogas e interrelacionadas. As tensões entre
a cooperação e a competição, a nível intergrupal, são semelhantes às tensões entre a
fusão e a individuação, a nível interpessoal. Fortalecer experimentalmente um pólo a um
nível aumentará a saliência do pólo homólogo no outro nível. Assim, na acepção de
Deschamps, os pólos do continuum interpessoal-intergrupal não são antagónicos (Tajfel
e Turner, 1979), mas podem co-variar.
Deschamps (1982a) chamou a atenção para a ideia de que a distintividade
interpessoal depende das posições dos indivíduos num dado sistema de relações
intergrupais. Os membros dos grupos dominantes consideram-se a si próprios
individualmente como um ponto de referência em relação aos quais as outras pessoas
são definidas, concebem-se a si próprios como indivíduos únicos e a pertença grupal
não contribui muito para a definição de si próprios. Por outro lado, os membros dos
grupos dominados definem-se a si próprios, e são também definidos pelos outros, em
termos das categorizações sociais que lhe são impostas. A procura de diferenciação
seria, portanto, privilégio dos membros dos grupos dominantes e seria aumentada
quando essa pertença grupal fosse tornada saliente.
Neste sentido, a hipótese da co-variação aplica-se mais especificamente aos
membros dos grupos que estão numa posição dominante em relação a outros grupos,
mas é necessário ter em conta que os membros dos grupos dominados também podem
ocupar posições dominantes em situações específicas (Doise, 1988).
Racismo e Etnicidade em Portugal
174
Vamos debruçar-nos um pouco mais sobre esta conceptualização. Como já
referimos, a escola de Bristol considera que as definições ‘ortodoxas’ de grupo são
insuficientes quando aplicadas às relações intergrupais, tendo sido proposta uma noção
de grupo que salienta o facto de este não ter existência senão pela relação com outros
grupos (Tajfel, 1972, p.295). No entanto, Deschamps (1982a) considera que esta
definição de grupo é ainda insuficiente. É necessário que a definição de grupo tenha em
consideração as relações de interdependência e de interdeterminação que existem entre
os grupos:
“The relations between groups are not only those of co-existence or juxtaposition
[...]. Groups exist within a system of mutual dependence; they acquire a reality
which is defined in and through their interdependence. They are not preexisting
closed spheres each of which would be able to engender its own specific system of
meanings. It cannot therefore be said that each group has its own interpretations and
values; groups exist as something which is concrete and 'objective' only in the
context of some values which are common to the society as a whole. Therefore, it is
not the difference between systems of values which determines the existence of
specific groups but - on the contrary - a common system of values and its
homogeneity. The existence of concrete and 'objective' differences between
individuals is not sufficient for the emergence of a group or the formation of several
groups. These differences will remain unnoticed if they do not acquire their
significance in relation to shared values. In other words, they can become 'legible'
only if they relate to a shared and common symbolic universe of values which
makes it possible for different groups to exist” (p.87-88).
Neste sentido, Deschamps (1982a) considera que é necessário não reduzir as
relações entre grupos a uma interacção entre elementos intermutáveis e equivalentes.
Com efeito, as relações de interdependência entre grupos, quer a nível concreto quer a
nível simbólico, são frequentemente assimétricas: os grupos das ‘crianças’, das
‘mulheres’, dos ‘negros’, dos ‘operários’, não são grupos equivalentes ou intermutáveis
com os dos ‘adultos’, ‘homens’, ‘brancos’, ‘classe média’, visto que a idade, o sexo, e a
‘raça’, a posição social destinam-lhes posições específicas nas relações sociais (p.88).
As relações de poder vão actualizar-se nas relações de interdependência entre os
grupos. Os grupos dominantes vão procurar preservar a sua posição de dominação. Por
outro lado, no caso dos grupos dominados, a valorização global do seu próprio grupo
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
175
será difícil. A imagem desfavorecida enviada pela sociedade (ou pelo menos por parte
do modelo dominante) opõe-se à tendência de etnocentrismo (Lorenzi-Cioldi, 1988).
A ordem social, criada e mantida pelos grupos dominantes a que se referia
Apfelbaum (1979), implica que a pertença aos grupos não seja igualmente saliente para
todos. A saliência da pertença grupal varia conforme os indivíduos dependendo da sua
distância do ponto de referência em relação ao qual qualquer indivíduo é suposto ser
capaz de se definir a si próprio. Neste sentido, Deschamps (1982a) refere:
“one can distinguish between two kinds of individuals. On the one hand, there are
those who conceive of themselves as unique, or at least as not belonging to any
particular category; on the other, there are those who are particles of an entity and
are not considered in terms of their personal characteristics. Once designated as a
woman, a child, or a black, they are defined by these terms” (p.89).
Nesta sequência, podemos falar em duas modalidades de identidade social:
“social identity can vary fundamentally as a function of the material and symbolic
capital which is owned by the individual. [...] the social identity of those who
dominate will be defined in terms of 'subjects' and of those who are dominated in
terms of 'objects'. The former do not think of themselves as being determined by
their group membership or their social affiliation. They see themselves above all as
individualized human beings who are singular, 'subjects', voluntary actors, free and
autonomous. Their group is first and foremost a collection of persons. This is not the
case for the dominated who are defined as undifferentiated elements in a collection
of impersonal particles, and are thought of as 'objects' rather than 'subjects'” (p.90)35
.
Na perspectiva de Deschamps (1979), a consideração destas duas modalidades de
identidade social impõe alguns limites à generalização do efeito PIP, uma vez que as
comparações interindividuais analisadas por Codol, eram efectuadas entre ‘iguais’.
Dado que a norma da singularidade se aplica mais aos membros dos grupos dominantes
do que aos dos dominados, estes últimos terão uma maior probabilidade de se
encontrarem em contextos que envolvam um conflito normativo (Amâncio, 1994,
1995).
35
Recordar a este propósito o processo de ‘coisificação’ a que se referia Agostinho Neto (1959, p.49) e a
forma como esse processo destruía o valor inerente a cada ser humano, como fizemos referência no
ponto 1.3.1.
Racismo e Etnicidade em Portugal
176
Neste tipo de relações intergrupos, o grupo comparativamente relevante também
não é arbitrário, visto que, e através da interdependência, a relação de dominação se
torna insignificante (Deschamps, 1982a).
O modelo proposto por Deschamps não toma como ponto de partida a distinção
entre a identidade pessoal e a identidade social, mas sim a distinção entre a ‘de facto
identity’ e a ‘imaginary identity’ (1982a, p.90). A primeira é a definição do self
atribuída aos indivíduos através das suas relações sociais. No caso de serem membros
de grupos dominantes, essas definições são feitas em termos de pessoas ou sujeitos; para
os membros de grupos dominados, elas são parte de um objecto colectivo. Como
resultado, a identidade de facto é, para os dominantes, homóloga com a identidade
imaginária. Em contraste, as identidades de facto e imaginária não têm congruência no
caso dos dominados.
Uma técnica frequentemente usada em psicologia social para estudar a identidade
social é o Twenty Statements Test (TST - técnica criada por Kuhn e McPartland, 1954;
referidos por Deschamps, 1982a), que consiste em o participante responder 20 vezes à
questão ‘Quem sou eu?’. Os resultados obtidos em diversos estudos demonstram que as
referências a categorias sociais, nomeadamente papéis, estatutos ou pertenças grupais
(e.g., negro, judeu, mulher) ultrapassam as referências a traços de personalidade,
aptidões ou escolhas pessoais (e.g., dinâmico, inteligente, alegre), sobretudo nos
indivíduos pertencentes a grupos minoritários ou desfavorecidos (Deschamps, Lorenzi-
Cioldi e Meyer, 1982; Lorenzi-Cioldi e Meyer, 1984). Estes resultados apontam para o
facto da pertença a um grupo minoritário ou dominado produzir nos indivíduos uma
maior consciência da categoria social que determina o seu estatuto minoritário
(Deschamps, 1982a; Lorenzi-Cioldi e Dafflon, 1999). Para esta ‘consciência de
categoria de pertença’ contribuem os processos de estigmatização referidos por outros
clássicos da psicologia social (Lewin, 1948/1997; Allport, 1954/1979).
Num estudo respeitante às atitudes de estudantes, Doise, Meyer e Perret-Clermont
(1976; citados por Deschamps, 1982a) utilizaram o TST, entre outras medidas. Os
participantes, adolescentes suíços de ambos os sexos, eram alunos de escolas técnicas
ou de liceus. Cada participante respondeu sete vezes à questão ‘Quem sou eu?’. Os
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
177
resultados mostraram que os alunos das escolas técnicas (grupo de menor estatuto)
referiram uma proporção maior de respostas ‘consensuais’ (53% referiram mais de duas
de tais respostas num total possível de sete respostas) do que os alunos dos liceus (só
33% referiram mais de duas respostas ‘consensuais’). Na opinião de Deschamps
(1982a), estes dados confirmam que os ‘dominados’ se definem a si próprios mais em
termos da sua posição social e da sua pertença grupal - isto é, como membros de uma
entidade colectiva - do que os ‘dominantes’, que se concebem a si próprios menos em
termos das suas pertenças grupais e mais em termos das suas características pessoais.
Esta experiência demonstrou ainda que os alunos do liceu, particularmente
aqueles dos cursos ‘prestigiados’, vêem-se a si próprios como ‘senhores do seu destino’
(p.92) e relativamente autónomos, isto é, têm uma visão de si próprios que acentua a
causalidade interna. Em contraste, os alunos das escolas técnicas mostram uma maior
tendência para se percepcionarem a si próprios como dependentes de contingências
exteriores. Ou seja, os dominantes definem-se a si próprios mais como sujeitos e
percebem as suas acções como voluntárias, enquanto que os dominados se vêm a si
próprios como objectos de forças exteriores.
Lorenzi-Cioldi (1988) realizou uma série de experiências nas quais
operacionalizou, de várias formas, uma relação de dominação intergrupal, o que lhe
permitiu analisar os padrões de diferenciação interindividual e intergrupal que lhe estão
associados, definir o perfil das identidades dominante e dominada e demonstrar a sua
homologia com os padrões de comportamento masculino e feminino (Amâncio,
1993/2000).
Numa das experiências, após uma tarefa de julgamentos estéticos (escolha entre
dois compositores: Riley e Kabelac), os participantes (adolescentes de ambos os sexos)
são divididos em dois grupos. Num dos casos, a pertença colectiva dos participantes é
supostamente devida às preferências estéticas individuais - os grupos tomam o nome do
compositor escolhido (grupos ‘colecção’). No segundo caso, o experimentador afirma
que a pertença de cada participante ao grupo ‘vermelho’ ou ‘azul’ é fruto de uma
decisão arbitrária. Estes nomes são simples denominações, que não se referem às
escolhas feitas pelos participantes, nem à sua especificidade individual (grupos
‘agregado’). Assim, metade dos participantes são categorizados de acordo com um
critério ‘interno’, que são as suas próprias preferências, e metade de acordo com um
critério ‘externo’, que é a decisão arbitrária do experimentador.
Racismo e Etnicidade em Portugal
178
Seguidamente, os participantes efectuam uma tarefa de distribuição de pontos
utilizando as matrizes de Tajfel. As matrizes permitem a distribuição de pontos entre o
próprio e um membro anónimo do endogrupo, e entre o próprio e um membro anónimo
do exogrupo. De acordo com as instruções nos cadernos das matrizes, metade dos
participantes do grupo ‘colecção’ e metade dos participantes do grupo ‘agregado’ irão
receber exactamente os pontos que lhe forem atribuídos pelos outros - condição
‘individualismo’ -, enquanto a outra metade dos participantes irão receber a média dos
pontos atribuídos ao seu grupo - condição ‘fusão’. Esta variável - ‘individualismo vs.
fusão’ - introduz de outra forma a pertença a um grupo colecção ou agregado.
O autor esperava uma homologia entre, respectivamente, grupos sexuais (rapazes
e raparigas) e os grupos experimentais (colecção e agregado; individualismo e fusão),
isto é, os rapazes (grupo dominante) deveriam ajustar-se melhor aos resultados do
paradigma clássico dos ‘grupos mínimos’ quando pertencendo a um grupo ‘colecção’
ou na condição ‘individualismo’. Os resultados foram interpretados em termos de
discriminação intergrupal global, tendo o autor analisado, particularmente, a estratégia
de máxima diferença.
O favoritismo endogrupal não diferiu globalmente entre as condições grupo
‘agregado’ e grupo ‘colecção’. Contudo, diferiu entre rapazes e raparigas. As médias
globais mostram que as raparigas são mais justas que os rapazes (Cf: Turner, Brown e
Tajfel, 1979). Embora os rapazes e as raparigas não difiram na condição ‘agregado’,
eles diferem bastante na condição ‘colecção’: os rapazes apresentam maiores índices de
discriminação intergrupal do que as raparigas. Para os rapazes, o favoritismo
endogrupal tende a diminuir na condição agregado, e para as raparigas tende a aumentar
nesta última condição.
Paralelamente, o ‘individualismo’, mas não a ‘fusão’, dá origem a diferenças entre
homens e mulheres, sendo maior o favoritismo endogrupal nos homens. Assim, a
variável ‘individualismo vs. fusão’ produz efeitos bastante similares aos da variável
‘colecção vs. agregado’. Considerando, em particular, a estratégia da máxima diferença,
verifica-se uma interacção altamente significativa entre o sexo e cada uma das variáveis
experimentais: ‘colecção vs. agregado’; e ‘individualismo vs. Fusão’. Globalmente, os
resultados mostram que a diferenciação interindividual e intergrupal está associada à
pertença a um grupo ‘dominante’ e não à pertença a um grupo ‘dominado’.
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
179
Os resultados desta e doutras experiências efectuadas por Lorenzi-Cioldi (1988),
demonstram que as raparigas são mais flexíveis, ou seja, mais influenciadas pelas
manipulações experimentais do que os rapazes, o que se prende com o seu estatuto
‘dominado’. Na opinião deste autor, estes resultados não se coadunam com a
formulação clássica do modelo da identidade social, que estipula uma oposição entre o
pessoal e o colectivo.
Racismo e Etnicidade em Portugal
180
2.4.3. Identidade social e representação de ‘pessoa’
No âmbito dos estudos da escola de Genebra desenvolveu-se uma perspectiva que
conceptualiza a identidade enquanto representação social. Na acepção de Lorenzi-Cioldi
e Doise: “the self and the group must both be conceived of as social representations”
(1990, p.87).
Doise e Lorenzi-Cioldi (1987; citados por Doise, 1988) realizaram um estudo em
que compararam as auto-descrições, descrições dos amigos e os estereótipos grupais de
alunos do ensino secundário de acordo com a sua origem, suíços ou estrangeiros.
Verificou-se que os adolescentes manifestaram claramente o favoritismo endogrupal
quando descrevendo ‘os suíços em geral’ e ‘os estrangeiros em geral’. Mas, quando se
descreviam a si próprios, os alunos suíços e os imigrantes de segunda geração não
diferiram significativamente. Palmonari, Carugati, Ricci, Bitti e Sarchielli (1984;
citados por Doise, 1988) encontraram também uma grande homogeneidade nas auto-
descrições de diferentes grupos de adolescentes. Estudos desenvolvimentistas (Hart e
Damon, 1986; citados por Doise, 1988) têm demonstrado tendências etárias sistemáticas
no tipo de características usadas para descrever o self por crianças e adolescentes. Face
a estes dados, Doise (1988) argumenta:
“Self-images are socially produced. It is now commonsense to add that Western
culture has its own representation of individual personality (see for instance,
Dumont, 1983; Geertz, 1879). This representation obviously reflects social,
economical and juridical relationships and it intervenes constantly in shaping these
relations as well as in our scientific investigations” (p.106-107).
Na acepção de Doise (1988), ‘'self' concept has to be studied as a social
representation as it is an important organizing principle of symbolic relationships
between social agents” (p.107). Segundo o autor, os progressos neste campo de
investigação exigem a articulação de diferentes perspectivas e uma visão mais complexa
do funcionamento dos indivíduos nos diversos contextos sociais.
Para o desenvolvimento desta perspectiva contribuíram sobretudo os estudos
sobre a relação intersexos, visto que esta constitui, sem dúvida, um tipo de relação
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
181
intergrupal onde o peso do universo simbólico é bem visível (Amâncio, 1994; Doise,
1999).
Como refere Amâncio (1993/2000), ‘as diferentes posições e funções sociais dos
dois sexos não são meramente situacionais, mas sim históricas’ (p.305), de modo que
um contexto experimental, ou outro, que torne a categorização intersexos saliente evoca
nos homens e mulheres conteúdos categoriais sobre os quais se estabeleceram noções de
si e de comportamentos apropriados. O consenso que envolve os estereótipos sexuais
em diferentes culturas e sociedades, evidenciado ao longo de vários anos de
investigação em psicologia social (e.g., Amâncio, 1994), permite considerá-los não só
um suporte simbólico das posições sociais objectivas destes grupos mas também da
construção da representação de si dos indivíduos de ambos os sexos (e.g., Amâncio,
1992, 1993a, 1994).
Na opinião da autora, o enorme peso histórico da ideologia sexista e a sua grande
influência ao nível dos sistemas de saber e de poder na criação da realidade social, tem
fortes implicações na formação do self e na marcação das trajectórias individuais das
mulheres, constituindo, na forma mais estrutural de todas, a forma de exclusão social
(Amâncio, 1998, p.88). A este propósito Amâncio salienta:
“as próprias características estereotipadas dos membros dos grupos são
interdependentes, porque todas elas provêm de um mesmo universo finito de crenças
sobre o que é uma ‘pessoa’. É, por outro lado, a dimensão histórica da relação de
dominação que faz com que os indivíduos internalizem estas representações no seu
autoconceito e as reproduzam nos seus comportamentos em diferentes situações [...]
A proximidade entre o modelo "universal" de pessoa e o modo de ser socialmente
construído dos membros dos grupos dominantes permite-lhes aceder a um self, que
só aparentemente é descategorizado e universal [...] enquanto que o self dos
membros dos grupos dominados emerge aparentemente marcado pela categoria
social de pertença” (1994, p.173) .
Se se analisar o significado dos conteúdos associados ao masculino e ao feminino
no quadro do universo simbólico comum da noção de ‘pessoa’, verifica-se que este
diferencia os sexos através de uma representação de pessoa singular, autónoma e
Racismo e Etnicidade em Portugal
182
independente dos contextos, no caso do masculino - ‘modelo de pessoa universal’
(Amâncio, 1993/2000, 1993b) -, e de uma representação de pessoa definida por uma
função social e delimitada pelas fronteiras do contexto em que essa função é exercida,
no caso do feminino - ‘modelo de pessoa situacional’ (Amâncio, 1993/2000, 1993b).
Amâncio (1992, 1994) demonstrou que esta assimetria nas definições de pessoa
masculina e feminina se traduz numa assimetria no significado normativo assumido
pelos estereótipos sexuais para os actores homens e mulheres. Nesta experiência os
participantes, estudantes-trabalhadores de ambos os sexos, receberam a descrição de um
episódio referente a uma decisão em contexto organizacional. Foram elaboradas oito
versões diferentes de um mesmo episódio, onde só variavam as informações relevantes
para as condições experimentais, que eram definidas por quatro níveis da categoria actor
- homem ou mulher; baixo ou alto estatuto hierárquico na organização -, e por dois
níveis da variável tipo de decisão - formal (‘masculina’) ou interpessoal (‘feminina’).
Os participantes recebiam uma lista, com traços conotados com os estereótipos sexuais
masculino ou feminino e com traços sem conotação sexual (elaborada com base num
estudo anterior), a partir da qual deveriam estabelecer os seus juízos sobre os actores e
sobre as suas decisões. Os resultados demonstram que os conteúdos do estereótipo
feminino servem para caracterizar os actores do sexo feminino, assim como
caracterizam os comportamentos femininos (neste caso, a decisão interpessoal),
enquanto os traços do estereótipo masculino não caracterizam os actores do sexo
masculino, nem nenhum tipo de comportamento em particular, mas servem para
caracterizar os actores do sexo feminino quando o seu comportamento não corresponde
às orientações normativas definidas pelo estereótipo feminino (neste caso, quando o
actor-estímulo mulher toma uma decisão formal). Assim,
“é pela ausência de uma função ou contexto específico na definição do masculino
que o comportamento dos membros deste grupo revela uma aparente independência
de imposições normativas e se apresenta individualmente diferenciado, imprimindo
ele próprio um significado aos contextos, mas também inserido numa ideologia
colectiva que os indivíduos, homens ou mulheres, não 'criaram', antes reproduzem
ou 'recriam' nos processos sociocognitivos que orientam a sua percepção da
realidade” (Amâncio, 1993/2000, pp.305-306).
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
183
O efeito desta ideologia é também visível na procura da causalidade dos
comportamentos. Deaux e Emswiller (1974; citados por Deschamps, 1982a), num
estudo sobre o sucesso e o insucesso, mostraram que o sucesso era atribuído aos homens
pela sua competência e às mulheres devido à sorte. Pediu-se aos participantes,
estudantes de ambos os sexos, para avaliar a performance de uma pessoa-estímulo,
homem ou mulher, nas mesmas tarefas, uma das quais era ‘masculina’ e outra
‘feminina’ (os autores certificaram-se previamente que estas tarefas eram
consensualmente percebidas como ‘masculina’ e ‘feminina’). A performance das
pessoas-estímulo, homem ou mulher, era percebida pelos participantes como sendo de
nível similar. Verificou-se, tal como previsto, que a performance da pessoa-estímulo
homem era atribuída a causalidade interna (competência) quando a tarefa era masculina,
e que, na mesma tarefa, uma performance idêntica de pessoa estímulo-mulher era
atribuída à causalidade externa (sorte), não havendo diferenças significativas entre as
atribuições dos participantes de ambos os sexos. Em contraste, o padrão inverso não
aparece para a tarefa ‘feminina’ na qual a pessoa-estímulo homem é percebida como tão
competente como a pessoa-estímulo mulher, não havendo novamente diferenças entre
as atribuições de ambos os sexos. Assim, estes dados demonstram que a posição dos
grupos no sistema social desempenha um papel nas atribuições de causalidade, e assim,
na percepção dos seres humanos como participantes ou como objectos (Deschamps,
1982a).
Esta e outras experiências demonstraram que a procura de causalidade dos
comportamentos é orientada por uma norma de internalidade para os membros do grupo
dominante, enquanto que relativamente aos membros do grupo dominado a procura de
causalidade visa provar o seu conformismo a normas sociais e contextuais (Amâncio,
1992).
Os efeitos desta ideologia manifestam-se, ainda, na construção da imagem de si
próprios, aparentemente ‘liberta’ dos estereótipos para o grupo dominante e muito
dependente destes para o grupo dominado, como mostrou uma experiência de Amâncio
(1988, 1989). Nesta experiência pedia-se aos participantes, estudantes-trabalhadores de
ambos os sexos, para participarem num exercício de comunicação. As instruções
contidas no texto, que apresentava aos participantes a tarefa a desempenhar,
manipulavam a variável ‘dimensão de comparação’, salientando ora características
masculinas para o bom desempenho da tarefa - condição dimensão de comparação
Racismo e Etnicidade em Portugal
184
masculina -, ora características femininas - condição dimensão de comparação feminina
-, ou não salientando quaisquer características - condição sem dimensão. Depois de
explicado o exercício aos participantes era-lhes pedido para efectuarem uma estimativa
do que iria ser o seu desempenho através da atribuição dos pontos das matrizes a si
próprios e a um outro do mesmo sexo, e a si próprios e a um outro do sexo oposto, que
eram designados por números seguidos da categorização ‘grupo dos homens’ ou ‘grupo
das mulheres’ (procedimento inspirado no paradigma ‘grupos mínimos’).
Introduziu-se ainda uma outra variável independente que consistiu em manipular
o tipo de interacção. Num dos casos, os participantes respondiam isoladamente -
condição individual - e, no outro, respondiam na presença de outra pessoa do mesmo
sexo e duas pessoas do sexo oposto - condição face-a-face (que visava salientar a
categorização sexual).
Os resultados desta experiência evidenciaram complexos padrões de diferenciação
intra e intergrupal. A co-ocorrência da diferenciação interindividual e intergrupal
verificou-se nos resultados dos homens, independentemente das dimensões salientes.
No caso das mulheres a diferenciação intergrupal verificou-se sobretudo na dimensão
masculina, enquanto a diferenciação interindividual se verificou sobretudo na ausência
de dimensões de comparação categorialmente relevantes. Isto demonstra que:
“para o grupo dominado, a diferenciação está sujeita à dupla pressão da referência
da representação dominante de pessoa e da representação do seu modo de ser
específico, fusional e indiferenciado” (Amâncio, 1993/2000, p.306).
Como a autora salienta:
“[...] the members of a dominat group can ‘manage’ social stereotypes, in a way that
is always relevant to the maintenance of a positive individual distinctiveness.
Members of a dominated group, on the other hand, once they have integrated the
social devaluation of their categorial characteristics in their social identity, are more
likely to strive for intergroup and interindividual differentiation either on the
outgroup’s dimensions or on ‘asocial’ or ‘imaginative’ dimensions” (Amâncio,
1989b, p.8).
Na opinião de Amâncio (1993/2000), a evidência empírica da assimetria
simbólica nos modelos de ser masculino e feminino, socialmente consensuais, permite
Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica
185
concluir que existem, pelo menos, três níveis de expressão da posição social dominante
de um grupo, no plano simbólico:
“Ao nível da ideologia, a identidade deste grupo corresponde a um modelo de
pessoa universal, que constitui um referente tanto para os membros do seu grupo
como para os membros do grupo dominado. Por outro lado, este mesmo modelo de
pessoa participa para uma representação de si dos membros do grupo dominante, em
que a individualidade não é incompatível com uma pertença categorial e se exprime
com uma aparente 'naturalidade', ao contrário do que acontece na representação de si
dos membros do grupo dominado, cuja irregularidade de comportamento revela as
contradições a que estão sujeitos. O grupo dominante é, além disso, aquele que pode
manipular os conteúdos simbólicos, conferindo-lhes um significado universal
quando eles servem para salientar a sua distintividade, ou um significado categorial
quando servem para salientar as diferenças entre os grupos, ao contrário do grupo
dominado, para quem os conteúdos simbólicos assumem uma função claramente
normativa, que evidencia a externalidade da sua condição social” (p.306).
Ou seja, a identidade dos grupos dominados apresenta-se sob a forma de modos de
estar nos contextos particulares, enquanto que a identidade dos grupos dominantes
corresponde a um modo de ser, aparentemente independente dos contextos (Amâncio,
1993b, p.219).
Como vimos no capítulo anterior, no caso da ideologia racista, a diferenciação
entre o grupo dominante e o grupo dominado caracteriza-se fundamentalmente pela
associação de significados universais e socialmente referentes ao primeiro, e
significados particulares e específicos ao segundo (Guillaumin, 1972, Amâncio, 1998).
Chombart de Lauwe (1983-1984) chamou a atenção para a analogia nas dimensões das
representações de diferentes grupos sociais ocupando posições assimétricas na estrutura
social: os grupos dominados (as mulheres, os ‘selvagens’ e as crianças) partilham as
dimensões da dependência, da irresponsabilidade e da irracionalidade, enquanto que os
grupos dominantes (os homens, os ‘brancos’, os adultos) são dotados de inteligência, de
autonomia e de responsabilidade. Existe assim um paralelismo entre a ideologia sexista
e a racista, já que ambas estão profundamente ancoradas na história das relações entre
os grupos. Neste sentido, o modelo desenvolvido para a análise do conteúdo dos
estereótipos sexuais poderá ser aplicado à análise dos estereótipos raciais e à percepção
da variabilidade grupal, como veremos no próximo capítulo.
Tese Rc Final
CAPÍTULO 3 -
PROCESSOS COGNITIVOS, ESTEREÓTIPOS
SOCIAIS E PERCEPÇÃO DA VARIABILIDADE
GRUPAL
Racismo e Etnicidade em Portugal
188
3.1 Introdução
No capítulo anterior apresentámos diversos modelos teóricos sobre as relações
intergrupais, tendo salientado a necessidade de articulação de níveis de análise para uma
compreensão dos fenómenos de discriminação social. Neste capítulo vamos debruçar-
nos sobre a área da ‘cognição social’, isto é, sobre os modelos que se centram na forma
como as pessoas processam a informação social, mais precisamente a informação sobre
grupos sociais. Mais uma vez, tratando-se de uma área de estudos vastíssima, optámos
por nos focalizar nos aspectos que consideramos mais relevantes para a fundamentação
teórica e metodológica da nossa investigação.
Os primeiros estudos sobre discriminação social no âmbito da psicologia social,
eram baseados no modelo clássico das atitudes. Neste sentido, analisaram a sua
componente cognitiva (estereótipos), a componente avaliativa ou afectiva (preconceito),
considerando que estas duas componentes seriam indicadoras da predisposição para os
comportamentos hostis em relação ás minorias. Rapidamente se constatou que não
existia uma relação linear entre estas três componentes, o que levou a profundas
reformulações nos modelos das atitudes, aspecto que não vamos desenvolver no âmbito
deste trabalho.
Neste capítulo focalizamo-nos nos aspectos cognitivos, mais precisamente na
forma como as pessoas processam a informação sobre os grupos sociais, nos
estereótipos e na percepção da variabilidade grupal.
Os estereótipos são geralmente definidos como estruturas cognitivas que contêm
os nossos conhecimentos e expectativas acerca de grupos humanos e dos seus membros,
estruturas essas que determinam os nossos julgamentos e avaliações acerca desses
grupos (Hamilton e Trolier, 1986). No entanto, na sua análise das funções cognitivas e
sociais dos estereótipos, Tajfel (1969, 1972, 1978ab) salientou a necessidade de
substituir o conceito de estereótipo pelo de estereótipo social, entendido como uma
definição colectiva de um dado grupo social, amplamente partilhada dentro e fora desse
grupo, isto é, difundinda num dado contexto cultural. Como foi referido no capítulo
anterior, a ampla difusão de estereótipos sociais sobre determinados grupos sociais
repercute-se na construção do auto-conceito dos membros desses grupos e na difusão de
uma noção de posição relativa face a outros grupos relevantes. Nesta perspectiva, os
estereótipos sociais são representações subjectivas e socialmente partilhadas, sobre as
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
189
características e os comportamentos de determinados grupos humanos, estratificados
segundo critérios socialmente valorizados, e traduzindo uma determinada ordem nas
relações intergrupais (Tajfel, 1981/1983, 1982b).
Neste sentido, existe uma coincidência conceptual entre estereótipos sociais e
representações sociais, ao nível dos conteúdos socialmente partilhados sobre grupos
sociais. No entanto, o conceito de representação social é mais amplo do que o de
estereótipo social, uma vez que o primeiro abrange todo o tipo de representações
independentemente do seu objecto, desde que estas sejam partilhadas no seio de
determinado grupo social, enquanto que o segundo, se restringe às representações sobre
grupos humanos. As primeiras pesquisas empíricas sobre estereótipos focalizaram-se no
seu conteúdo, sendo estes conceptualizados em termos de traços prototípicos de um
dado grupo social (e.g., Katz e Braly, 1933; Gilbert, 1951). Nesta perspectiva, o estudo
dos estereótipos centrava-se essencialmente na tendência central percebida do grupo
em vários traços. Posteriormente, com o desenvolvimento da psicologia cognitiva, os
investigadores começaram a debruçar-se sobre os processos em detrimento dos
conteúdos (e.g., Hamilton, 1979; Snyder, 1981). A pesquisa sobre os processos de
formação, manutenção e mudança dos estereótipos e as suas implicações nas interacções
sociais, tornou notória a necessidade de ter em conta não só a tendência central
percebida de um grupo, mas também a variabilidade grupal percebida, isto é, o grau
em que os indivíduos julgam o grupo como relativamente heterogéneo ou homogéneo.
Os primeiros estudos sobre a percepção da variabilidade grupal realizados no
quadro da cognição social demonstraram a existência de um enviesamento que veio a
ser designado efeito de homogeneidade do exogrupo. Este efeito tem sido
conceptualizado como a tendência para perceber o grupo dos outros como mais
homogéneo do que o grupo de pertença, o que é representado pela expressão "they all
look alike but we don´t" (Quattrone e Jones, 1980, p. 142). A maior parte da pesquisa
sobre a variabilidade grupal percebida, conduzida no quadro de referência da cognição
social (e.g., Linville, Salovey e Fischer, 1986; Linville, Fischer e Salovey, 1989;
Linville e Fischer, 1993; Judd e Park, 1988; Park e Judd, 1990; Kraus, Ryan, Judd,
Hastie e Park, 1993; Ostrom, Carpenter, Sedikides e Li, 1993; Kashima e Kashima,
1993), tem demonstrado repetidamente este efeito. Estes estudos tem-se focalizado
preferencialmente nos níveis de análise (Doise, 1982, 1984) intra-individual (os
processos cognitivos) e situacional (a consideração das posições relativas
Racismo e Etnicidade em Portugal
190
observador/observado em termos de endogrupo/exogrupo, mas em que as pertenças
grupais são consideradas como intermutáveis).
Contudo, no início dos anos noventa alguns autores (e.g., Lorenzi-Cioldi e Doise,
1990) enfatizaram a pertinência dos níveis de análise posicional e ideológico para uma
melhor compreensão dos complexos padrões de homogeneidade e diferenciação
observados. Os estudos em que o contexto e a natureza das relações intergrupais foram
tidos em conta (e.g., Dafflon, 1997; Lorenzi-Cioldi, 1993; Lorenzi-Cioldi, Deaux e
Dafflon, 1998; Lorenzi-Cioldi, Eagly e Stewart, 1995) questionaram a simetria e
universalidade do efeito de homogeneidade do endogrupo, demonstrando que este é
observável nos membros dos grupos dominantes mas não nos membros dos grupos
dominados. Nestes últimos, observou-se uma tendência contrária: o efeito de
homogeneidade do endogrupo. Assim, a consideração do nível de análise ideológico
veio lançar um novo olhar sobre os processos cognitivos considerados básicos, levando
a uma especificação das condições em que são observáveis determinados
enviesamentos.
Uma vez que a maior parte da pesquisa sobre a percepção de grupos,
nomeadamente sobre a variabilidade grupal tem sido realizada no quadro da cognição
social, dedicamos a primeira secção deste capítulo a uma apresentação concisa desta
área de estudo. Nesta apresentação faremos uma breve referência a alguns dos debates
teóricos sobre a percepção de pessoas e grupos, o que nos conduzirá a uma curta
explicitação das semelhanças e das diferenças entre a perspectiva da cognição social e a
das representações sociais.
A segunda secção é dedicada ao estudo dos estereótipos sociais. Dedicamos
especial atenção à obra pioneira de Walter Lippmann, à sua conceptualização dos
estereótipos e às questões de pesquisa que levantou. Segue-se uma breve apresentação,
por ordem cronológica, de alguns dos estudos empíricos que marcaram esta área de
estudos. Ao longo da apresentação faremos referência ao conteúdo dos estereótipos, à
conotação avaliativa desse conteúdo, e ao seu significado tendo como referência um
quadro de valores ‘universal’. Teremos também em conta o nível de consenso dos
estereótipos, a sua uniformidade ou variabilidade.
Na terceira secção apresentamos alguns estudos sobre os efeitos da categorização
e sobre a percepção da variabilidade grupal. Começamos por referir alguns estudos
sobre os efeitos de acentuação e de contraste associados à categorização simples e à
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
191
categorização cruzada, e de que forma estes efeitos são influenciados pelo contexto.
Seguidamente apresentamos alguns dos estudos sobre o efeito de homogeneidade do
exogrupo efectuados no quadro da cognição social e fazemos referência aos modelos
cognitivos explicativos deste fenómeno. Finalmente, discutimos a insuficiência dos
modelos cognitivos e salientamos o carácter assimétrico dos enviesamentos observados
na percepção dos grupos em função do seu estatuto relativo, apresentando brevemente
alguns dos primeiros estudos que questionaram o carácter simétrico e universal do efeito
de homogeneidade do exogrupo.
Na última secção, procedemos uma apresentação das metodologias que têm sido
utilizadas no estudo da percepção da variabilidade grupal e discutimos a necessidade da
utilização de diferentes tipos de medidas no sentido de esclarecer algumas das
inconsistências que têm sido observadas nesta área de estudos.
Racismo e Etnicidade em Portugal
192
3.2 Processos cognitivos e realidade social
“For the real environment is altogether too big, too complex, and too fleeting
for direct acquaintance. We are not equipped to deal with so much subtlety,
so much variety, so many permutations and combinations. And although we
have to act in that environment, we have to reconstruct it on a simpler model
before we can manage with it. To traverse the world men must have maps of
the world”.
Walter Lippmann, 1922
Em 1922, o jornalista e analista político Walter Lippmann publica Public
Opinion, uma obra sobre como as pessoas constroem as suas representações da
realidade social e de que forma essas representações são afectadas tanto por factores
internos como externos ao indivíduo. Essas representações funcionam como ‘mapas’
guiando o indivíduo e ajudando-o a lidar com informação complexa, mas também são
‘defesas’ que permitem ao indivíduo proteger os seus valores, os seus interesses, as suas
ideologias, em suma, a sua posição numa rede de relações sociais. As representações
não são o espelho da realidade, mas sim versões hipersimplificadas desta realidade. As
representações nunca são neutras, pois dependem mais do observador do que do
objecto, já que este define primeiro e vê depois. Lippman debruça-se sobre a forma
como a cultura nos fornece os elementos para ‘recortar’ a realidade em elementos
significativos, conferindo-lhe nitidez, distintividade, consistência e estabilidade de
significado. O autor reflecte sobre as limitações humanas no processamento da
informação, e sobre a forma como os preconceitos introduzem enviesamentos na
selecção, interpretação, memorização, recuperação e uso da informação. Neste sentido,
podemos considerar que esta obra de Lippmann constitui um primeiro esboço de uma
área de estudos, hoje dominante no seio da psicologia social americana: a cognição
social.
Embora a expressão ‘cognição social’ tenha sida introduzida na psicologia social
por Bruner e Tagiuri (1954) num artigo sobre a percepção de pessoas, esta expressão
não captou na altura a atenção dos investigadores, que a consideraram demasiado vaga e
imprecisa (Leyens, Yzertyt e Schadron, 1994, p.15). Esta designação só viria a tornar-se
corrente nos anos oitenta, quando a perspectiva da cognição social se tornou dominante
no seio da disciplina (Santos, 1993/2000; Jesuíno, 1993/2000).
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
193
No seio da psicologia social, a década de sessenta foi marcada pela crítica ao
modelo S-O-R - que concebe o estímulo (S) e a resposta (R) como tendo uma existência
exterior ao organismo (O) - e pela emergência do modelo O-S-O-R (Markus e Zajonc,
1985, p.138). Dois marcos assinalam a emergência deste modelo: a obra de Jones e
Davis sobre atribuição causal (1965), que é geralmente apontada como a percursora do
paradigma da cognição social; e a obra de Moscovici (1961) sobre as representações
sociais, que assinala o início do paradigma da sociedade pensante.
Este novo modelo vem salientar a construção activa do ambiente por parte do
indivíduo e atribuir uma posição de primazia às representações (esquemas, teorias
implícitas, representações sociais) - estas são factores constituintes do estímulo e
modeladores da resposta, dominando todo o processo. Como salienta Moscovici, no
modelo O-S-O-R “the subject (...) is expected to define the S and the R by his
constructive activity” (Moscovici, 1988, p.226). Na concepção do autor "[il n'y a] pas
de coupure entre l'univers extérieur et l'univers intérieur de l'individu (ou du groupe)"
(Moscovici, 1969, p.9).
Moscovici propõe a expressão sociedade pensante para situar o estudo das
representações sociais:
"When we study social representations, what we are studying are human beings
asking questions and looking for answers, human beings who think, not just handle
information or act in a certain way” (Moscovici, 1981, p.182).
Na opinião do autor, o paradigma da sociedade pensante questiona as teorias que
consideram que
"our brains are little black boxes enclosed in a gigantic black box, which merely
takes in information, words and thoughts and processes them into movements,
attributions and judgments, all on the strength of external conditioning" (Moscovici,
1981, p.183).
Racismo e Etnicidade em Portugal
194
Questiona, simultaneamente, as teorias para as quais,
"groups and individuals are always and completely under the way of a dominant
ideology which is produced and imposed by a social class, the State, the Church or
school, and that their thoughts and words reflect this ideology. In other words, on
their own, they do not do any thinking and they create nothing new: they reproduce
and are reproduced" (p.183) .
Em contrapartida, o paradigma da sociedade pensante assume que
"individuals and groups are anything but passive receptors, and that they think
autonomously, constantly producing and commu nicating representations. For them,
facts, the sciences and ideologies are nothing more than 'food for thought' " (p.183).
No início dos anos oitenta Moscovici referia-se à "era of representation" (1984,
p.12) para veicular, por um lado, a importância das representações sociais nas
sociedades de hoje, e por outro, a importância do conceito de representação social no
quadro das novas orientações da psicologia social. No mesmo ano, Ostrom (1984),
considerado um dos pais fundadores da cognição social (Leyens, Yzerbyt e Schadrom,
1994, p.74), publicava um ensaio intitulado ‘The Sovereignty of Social Cognition’.
Leyens, Yzerbyt e Schadrom (1994, p.74) referem que “in the late 1970s, the
social cognition wave flooded over social psychology”. Embora partilhando algumas
características com a perspectiva das representações sociais, a perspectiva da cognição
social assumiu-se com a ambição de abranger todo o domínio da psicologia social
(Devine, Hamilton e Ostrom, 1944; Hogg e Abrams, 1988). Como referem Leyens,
Yzerbyt e Schadrom “‘the social cognitivist’ dream was to revolutionize the field by
bringing in important metatheoretical and methodological chances” (1994, p.74).
Com o ‘movimento da cognição social’ a psicologia social sofreu uma grande
transformação nos seus objectos de interesse e nos seus métodos de pesquisa (Bar-Tal e
Kruglanski, 1988, p.1). Na opinião de Hamilton, a perspectiva da cognição social
caracteriza-se pela consideração de “all factors influencing the acquisition,
representation, and retrieval of person information, as well as the relationship of these
processes to judgement made by the perceiver” (1981, p.136). Por seu turno, Fiske e
Taylor definem a cognição social como “the study of how people make sense of other
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
195
people and themselves. It focuses on how ordinary people think about people and how
they think they think about people” (1991, p.1).
Esta perspectiva foi fortemente influenciada pelas teorias e métodos da psicologia
cognitiva (Bar-Tal e Krusglanski, 1988; Markus e Zajonc, 1985). Como resultado desta
influência, a cognição social é marcada pela ‘information-processing metaphor’ (Bar-
Tal e Kruglanski, 1988, p.2), introduzindo na psicologia social novos conceitos (tais
como codificação, armazenamento e recuperação da informação social) e novas
metodologias de pesquisa, mais ‘rigorosas’ e ‘sofisticadas’, com o objectivo de
discriminar entre tais “fine cognitive microprocesses” (p.2).
A cognição social procura analisar o processamento da informação social, isto é,
debruça-se sobre os processos de aquisição, armazenamento e recuperação da
informação. Sinteticamente,
“a ‘codificação’ diz respeito aos processos através dos quais a informação é
interpretada e organizada, o ‘armazenamento’ refere -se aos processos de retenção da
informação já codificada e a ‘recuperação’ diz respeito aos processos que permitem
a um participante encontrar a informação que um dia armazenou” (Caetano,
1993/2000, p.103).
Embora, de certa forma, a psicologia social tenha sido cognitiva a partir dos anos
quarenta (Beauvois e Deschamps, 1990; Fiske e Taylor, 1991), a perspectiva da
cognição social redefiniu as principais questões em psicologia social (Bar-Tal e
Kruglanski, 1988) e inspirou uma intensa actividade de pesquisa nas últimas décadas
(e.g., Fiske e Taylor, 1991; Forgas, 1981a; Leyens e Codol, 1988; Markus e Zajonc,
1985; Showers e Cantor, 1985; Sherman, Judd e Park, 1989; Wyer e Srull, 1984; Bless,
Fiedler, Strack, 2002; Forgas, 2000; Leyens, Yzerbyt e Schadron, 1994; Higgins, 2000).
Na opinião de Beauvois e Deschamps (1990), o paradigma da cognição social não
é mais do que uma das formas recentes, repousando numa nova linguagem, de abordar
um problema já antigo na psicologia social: “la construction, par les individus, de ce qu'
ils tiennent pour leur réalité sociale” (p.4). Entendida neste sentido geral, “la cognition
sociale est le processus par lequel un individu construit et entretient une connaissance
de cette réalité et, ce faisant, la produit ou la reproduit socialement” (p.4).
Racismo e Etnicidade em Portugal
196
A apreensão teórica deste processo de construção da realidade tem suscitado,
desde longa data, algumas questões e alimentado alguns debates. Um primeiro debate
opõe as teorias para as quais o conhecimento é determinado pelos conjuntos, às teorias
para as quais o conhecimento é determinado pelos elementos ou componentes. Para as
primeiras, largamente inspiradas pela tradição da Gestalt, o conhecimento vai do todo
para as partes (e.g., Asch, 1946), para as segundas, vai das partes para o todo (e.g.,
Anderson, 1974).
Um segundo debate opõe as teorias que atribuem um maior peso à informação
‘bruta’ (os dados) no processo de conhecimento (e.g., Anderson, 1974) às teorias que
atribuem um maior peso às concepções a priori do indivíduo quando confrontado com
essa informação (e.g., Bruner e Tagiuri, 1954/1979; Leyens, 1983/1985). Isto é, para as
primeiras, o processamento da informação é ‘guiado pelas teorias’ (theory-driven ou
top-down), para as segundas, o processamento é ‘guiado pelos dados’ (data-driven ou
bottom-up) (Caetano, 1993/2000, p.106).
Um terceiro debate refere-se à natureza distintiva da cognição social. Enquanto
alguns psicólogos sociais não vêem diferenças substanciais entre cognição e cognição
social (e.g., Simon, 1976), outros diferenciam claramente entre as duas (e.g., Beauvois e
Deschamps, 1990; Forgas, 1981b; Zajonc, 1980; Schwartz, 2000). Por exemplo, Simon
(1976) considera que os processos pelos quais o ‘cérebro humano’ manipula os objectos
sociais não são diferentes daqueles pelos quais manipula os outros objectos. No entanto,
a partir dos anos oitenta, diversos autores recusaram esta perspectiva, argumentando que
a cognição social é muito mais representativa dos processos cognitivos do que os casos
particulares analisados pelos psicólogos da ‘cold cognition’, despidos de todo o peso
afectivo e dos pré-saberes sociais, e desprendidos de qualquer investimento pessoal e
interacção com o objecto (e.g., Zajonc, 1980; Marques e Paéz, 2000). Como referem
Bar-Tal e Kruglanski, o facto dos seres humanos serem, simultaneamente, ‘objects of
cognition and cognizing subjects’ (1988, p.2) torna a cognição social qualitativamente
distinta da percepção dos objectos não sociais.
Como já referimos, a partir da década de oitenta, a perspectiva cognitiva tornou-se
claramente dominante entre os psicólogos sociais, pelo que a ‘psicologia social’ tornou-
se quase um sinónimo de ‘psicologia social cognitiva’ (Markus e Zajonc, 1985, p.137).
No entanto, esta perspectiva não está isenta de críticas. Por exemplo, Bar-Tal e
Kruglanski (1988) consideram que a perspectiva cognitiva se tornou tão radical quanto
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
197
o behaviorismo, citanto a esse propósito a afrimação de Neisser: “every psychological
phenomenon is a cognitive phenomenon’ (1967, p.4; citado por Bar-Tal e Kruglanski,
1988).
O foco quase exclusivo nos processos intraindividuais e a pesada influência das
teorias e métodos da psicologia cognitiva estão na origem da maior parte das críticas à
perspectiva da cognição social. Alguns autores objectam a dominância da abordagem do
processamento da informação (e.g., McGuire, 1983; citado por Bar-Tal e Kruglanski,
1988), outros salientam as limitações que advêm da negligência da motivação e do
afecto (e.g., Zajonc, 1980), assim como do contexto social (e.g., Amâncio, 1994;
Forgas, 1981b; Lorenzi-Cioldi, 1998).
Embora na década de noventa se tenha operado uma profunda mudança nesta
área, com a revalorização das emoções, da motivação e do contexto (Fiske, 2000;
Schwarz, 2000), a forma como este último tem sido operacionalizado, na maior parte
das vezes, não tem tido em conta variáveis de ordem estrutural (Lorenzi-Cioldi, 1998).
Na opinião de Fiske e Taylor podem-se identificar, no âmbito da psicologia social,
quatro visões gerais do indivíduo enquanto processador da informação social:
‘consistency seeker’, ‘naive scientist’, ‘cognitive miser’ e ‘motived tactician’ (1991,
p.10). O primeiro modelo emergiu dos trabalhos sobre mudança de atitudes após a II
Guerra Mundial. As teorias do equilíbrio ou da consistência conceptualizam o indivíduo
enquanto ‘buscador de consistência’ motivado pelas discrepâncias percebidas nas suas
cognições (e.g., Heider, 1958; Festinger, 1957). Nestas teorias o ênfase é colocado nas
discrepâncias percebidas, o que remete a actividade cognitiva para um papel central. O
segundo modelo conceptualiza o indivíduo enquanto ‘cientista ingénuo’. As teorias da
atribuição debruçam-se sobre a forma como o indivíduo explica o seu próprio
comportamento e o dos outros. As primeiras formulações destas teorias (e.g., Kelley,
1967) avançaram com a hipótese de que o indivíduo, assemelhando-se a um cientista,
tendo tempo suficiente, consideraria todos os dados relevantes e chegaria à conclusão
mais lógica. Os erros no tratamento da informação resultariam, principalmente, da
interferência de motivações não racionais, ou de uma simples falha na informação
disponível.
O terceiro modelo conceptualiza o indivíduo enquanto ‘avarento cognitivo’. O
ponto fulcral deste modelo é que os indivíduos são conceptualizados enquanto
processadores de informação de capacidade limitada, podendo lidar, num dado
Racismo e Etnicidade em Portugal
198
momento, unicamente com uma pequena quantidade de informação. Assim, os
indivíduos adoptam estratégias para simplificar problemas complexos. Estas estratégias
podem não produzir respostas normativamente correctas, mas aumentam a eficiência:
“the capacity-limited thinker searches for rapid adequate solutions, rather than slow
accurate solutions” (Fiske e Taylor, 1991, p.13). Consequentemente, os erros e
enviesamentos no tratamento da informação são considerados como fruto de
características inerentes ao próprio sistema cognitivo e não devidos à interferência de
motivações. Neste modelo, tal como no anterior, a cognição desempenha um papel
central, sendo negligenciado o papel da motivação, das emoções e do contexto
envolvente.
No entanto, a ampla pesquisa desenvolvida no âmbito do terceiro modelo tornou
clara a importância da motivação, da emoção e do contexto. Tendo desenvolvido
sofisticados modelos sobre os processos cognitivos, os investigadores começaram a
considerar de novo as importantes influências da motivação na cognição (e.g., Showers
e Cantor, 1985). Assim, no início dos anos noventa emerge um novo modelo, no qual o
indivíduo é conceptualizado enquanto ‘tactico-motivado’:
''a fully engaged thinker who has multiple cognitive strategies available and chooses
among them based on goals, motives, and needs: sometimes the motived tactician
chooses wisely, in the interests of adaptability and accuracy, and sometimes the
motived tactician chooses defensively, in the interests of speed or self-esteem’
(Fiske e Taylor, 1991, p.13).
Como Fiske (1992, p.877) refere:
“After a hiatus, during which social cognition research neglected its proper
attunement to social behavior, researchers again are emphasizing that thinking is for
doing, that social understanding operates in the service of social interaction”.
Este modelo tornou-se dominante nos anos noventa. Em vez de um indivíduo
‘limitado’ a cometer ‘erros’ no processamento da informação, na percepção das pessoas
e no julgamento dos outros, surge um indivíduo ‘estratégico’ capaz de controlar os seus
julgamentos (Leyens, Yzerbyt e Schandrom, 1994). Estes julgamentos já não são
‘enviesados’ mas sim ‘verdades subjectivas’ com funções políticas claras (Oakes,
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
199
Haslam e Turner, 1994). O indivíduo, já não é ‘ingénuo’ mas ‘táctico’, adequando os
seus julgamentos às normas sociais vigentes (Snyder, 1995).
A consideração do carácter ‘estratégico’ dos julgamentos emitidos pelos
indivíduos veio introduzir a necessidade de considerar simultaneamente os processos
automáticos e os processos controlados no processamento da informação social. Os
processos automáticos ocorrem sem intervenção consistente ou intencional requerendo
pouco esforço cognitivo por parte do indivíduo, enquanto que os processos controlados
requerem a intervenção consciente e intencional, e um esforço específico da parte do
indivíduo (Caetano, 1993/2000). Assim, os julgamentos e avaliações dos indivíduos
seriam extremamente flexíveis e adaptativos, variando em função da natureza do
julgamento a realizar, do tipo de informação a tratar e da motivação para tratar essa
informação (Oakes, Haslam, Turner, 1994; McGarty, Yzerbyt e Spears, 2002).
Para distinguir entre as percepções e avaliações que decorrem de processos
automáticos das que decorrem de processos controlados, tornou-se clara a necessidade
de desenvolver diferentes tipos de medidas: medidas explícitas, em que o indivíduo
facilmente se apercebe dos objectivos da pesquisa e pode controlar as suas respostas em
função da desejabilidade social e medidas implícitas, não-reactivas às normas sociais,
que permitiram ter acesso aos processos automáticos da percepção (e.g., Devine, 1989;
Dovidio e Gaertner, 1991; Higgins, 1996).
Schwartz (2000), num artigo sobre os desafios actuais da investigação sobre
julgamento social, atitudes e processamento da informação, salienta:
“That human are information processors is a truism that can hardly be called into
question. Moreover, the adoption of the information processing paradigm has
stimulated tremendous progress in social judgment research. But more than a quarter
century after its option, at a time when the information-processing perspective has
become the dominant theoretical framework of our field, it behooves us well to
consider the risk of blind spots. If the reviewed research is any indication, our
understanding of human judgment, and the explanatory power of an information-
processing perspective, will only benefit from a closer consideration of the interplay
of affect, motivation, and cognition, an exploration of the poorly understood
interplay of explicit and implicit processes, and a serious acknowledgement of the
pragmatic and socially, as well as culturally, contextualized nature of human
cognition” (Schwartz, 2000, p. 168).
Racismo e Etnicidade em Portugal
200
Nos anos noventa, a tomada de consciência das insuficiências de uma abordagem
meramente cognitiva e contextual levou os investigadores da cognição social a terem
em consideração variáveis de ordem ideológica (Fiske, 2000). Há pelo menos duas
décadas que diversos investigadores recomendam uma articulação entre o paradigma da
cognição social e as representações sociais, considerando que esta articulação poderá ser
benéfica para ambas (e.g., Codol, 1984; Jahoda, 1988; Vala, 1986). Por exemplo, Vala
(1986) ilustra como ao accionar o conceito de representações sociais se consegue um
olhar novo sobre os problemas formulados e analisados no quadro da cognição social.
Por outro lado, Jahoda (1988) salienta a vantagem da pesquisa em representações
sociais adoptar metodologias mais rigorosas desenvolvidas no quadro da cognição
social.
No entanto, esta articulação, a nível teórico ou metodológico, não deve ser
confundida com uma submissão da teoria das representações sociais aos modelos da
cognição social, aspecto sobre o qual Moscovici tem as maiores reservas:
"Any reduction to cognitive patterns and constructs, by eliminating the extraordinary
richness of collective thought, its rootedness in a well-defined setting, and by
flattening all social relations into interactions between two individuals, converts an
important problem into a mere academic exercise" (1981, p.208).
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
201
3.3 Processos cognitivos, cultura e estereótipos sociais
“For most part we do not first see, and then define, we define first and then
see. In the great blooming, buzzing confusion of the outer world we pick out
what our culture has already defined for us, and we tend to perceive that
which we have picked out in the form stereotyped for us by our culture.”
Walter Lippmann, 1922
Lippmann (1992/1961) é considerado o fundador da conceptualização
contemporânea dos estereótipos e do estudo das suas funções psicossociais (e.g.,
Amâncio, 1989a; Ashmore e DelBoca, 1981; Marques e Paéz, 2000; Oakes, Haslam e
Turner, 1994; Wetherell, 1996). O termo ‘estereótipo’ já existia desde 1798, mas o seu
uso corrente estava reservado à tipografia, onde o termo designa uma chapa de metal
utilizada para produzir cópias repetidas do mesmo texto (Stroebe e Insko, 1989). O
termo também já era usado de forma esporádica nas ciências sociais para designar algo
‘fixo’ e ‘rígido’ (e.g., Sumner, 1906/1940; Simmel, 1908/1984), o que se prende com a
origem etimológica da palavra: stereo que em grego significa ‘sólido’, ‘firme’.
Por analogia, Lippman salientou a ‘rigidez’ das imagens mentais, especialmente
aquelas que dizem respeito a grupos sociais com os quais temos pouco ou nenhum
contacto directo. A visão dos estereótipos como algo rígido caracterizou muitos dos
estudos posteriores sobre os estereótipos (e.g., Kerr, 1943; Mace, 1943; Zawadzki,
1942), no entanto, na sua análise Lippmann (1922/1961) não descurou a possibilidade
de mudança dos estereótipos e salientou o carácter criativo da mente humana.
Lippmann conceptualizou os estereótipos como resultantes de um processo
‘normal’ e ‘inevitável’, inerente à forma como processamos a informação, mas a maior
parte dos estudos empíricos realizados sobre estereótipos até aos anos cinquenta
caracterizaram os estereótipos como uma forma inferior de pensamento e situaram-os
no domínio do ‘patológico’: estes seriam projecções de fantasias indesejáveis,
deslocamentos de tendências agressivas para os membros de outros grupos, ou
subprodutos de certas síndromes de personalidade associadas ao autoritarismo e
intolerância (Adorno, Frenkel-Brunswick, Levison e Sanford, 1950; Rockeach, 1948).
Assim, as ideias inovadoras de Lippmann foram negligenciadas pela grande
maioria das investigações que foram efectuadas nas três décadas seguintes sobre
Racismo e Etnicidade em Portugal
202
estereótipos, só sendo recuperadas e amplamente desenvolvidas a partir dos trabalhos de
Bruner, Allport e Tajfel, que já referimos no capítulo anterior.
Lippmann (1922/1961) define os estereótipos como imagens mentais que se
interpõem, sob a forma de enviesamento, entre o indivíduo e a realidade. Segundo o
autor, os estereótipos formavam-se a partir do sistema de valores do indivíduo, tendo
como função a organização e estruturação da realidade, de outra forma demasiado
complexa para ser assimilada.
Interrogando-se sobre os factores que contribuiram para o que “the pictures inside
so often misleads men in their dealing with the world outside” (p.30), Lippman aponta
limitações externas - “the artificial censorships, the limitation of social contact” (p.30) -
e limitações internas:
“this trickle of messages from the outside is affected by the stored up images, the
preconception, and the prejudices which interpret, fill them out, and in their turn
powerfully direct the play of our attention, and our vision itself” (Lippmann,
1922/1961, p.16).
Lippmann salienta o papel do indivíduo na construção dos estereótipos que são
sempre ‘selectivos’ e ‘parciais’ (1922/1961, p.80). Na sua análise encontramos os
elementos sobre as funções psicosociais dos estereótipos, que viriam a ser
desenvolvidas e estudadas sistematicamente algumas décadas depois por Allport
(1954/1979), que liga explicitamente os estereótipos ao processo de categorização, e por
Talfel (1969) que pela primeira vez explicita as suas funções cognitivas e sociais,
integrando-as num modelo explicativo das relações intergrupais.
Relativamente às funções cognitivas Lippmann (1922/1961) salienta “the
economy of effort” (p.95), a necessidade de “definiteness and distinction and (…)
consistency or stability of meaning” (p.80; itálico no original). Relativamente às funções
sociais, Lippmann enfatisa o papel dos estereótipos na ‘defesa’ dos interesses do
indivíduo:
“The systems of stereotypes may be the core of our personal tradition, the defenses
of our position in society. (…) In that world people and things have their well-
known places, and do certain expected things. We feel at home there. We fit in. We
are members” (Lippmann, 1922/1961, p.96).
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
203
Um dos motivos que explicariam o carácter ‘fixo’ dos estereótipos seria
precisamente a necessidade do indivíduo proteger a sua definição da realidade:
“any disturbance of the stereotypes seems like an attack upon the foundations of the
universe. It is an attack upon the foundations of our universe, and, where big things
are at stake, we do not readily admit that there is any distinction between our
universe and the universe” (Lippmann, 1922/1961, p.96).
Neste sentido:
“A pattern of stereotypes is not neutral. (…) It is the guarantee of our self-respect; it
is the projection upon the world of our own sense of our own value, our own
position and our own rights. The stereotypes are, therefore, highly charged with the
feelings that are attached to them. They are the fortress of our tradition, and behind
its defense we can continue to feel ourselves safe in the position we occupy”
(Lippmann, 1922/1961, p.96).
É precisamente pelo seu papel na manutenção do sistema de valores do indivíduo
e do statu quo, que os estereótipos dificilmente são abalados por informação
incongruente com os mesmos.
“There is nothing so obdurate to education or to criticism as the stereotype. It stamps
itself upon the evidence in the very act of securing the evidence. (…) If what we are
looking at corresponds successfully with what we anticipated, the stereotypes is
reinforced for the future” (pp.98-99). (...) For when a system of stereotypes is well
fixed, our attention is called to those facts which support it, and diverted from those
which contradict” (Lippmann, 1922/1961, p.119).
Neste sentido, Lippmann faz referência ao que posteriormente se veio da designar
por ‘profecias auto-confirmatorias’ (Merton, 1949/1968), amplamente demonstradas
pelos estudos posteriores na cognição social (e.g., Hamilton, 1979).
Quando um membro de determinado grupo age de forma contraditória ao
estereótipo, Lippmann considera que, na maior parte das vezes, este membro passa a ser
visto como uma excepção, mantendo o estereótipo intacto. Este só é abalado se o
Racismo e Etnicidade em Portugal
204
indivíduo ainda tiver alguma flexibilidade de espírito ou se a informação incongruente
for demasiado impressionante para ser ignorada;
“If the experience contradicts the stereotype, one of two things happens. If the man
is no longer plastic, or if some powerful interests makes it highly inconvenient to
rearrange his stereotypes, he pooh-poohs the contradiction as an exception that
proves the rule, discredits the witness, finds a flaw somewhere, and manages to
forget it. But if he is still curious and open-minded, the novelty is taken into the
picture, and allowed to modify it. Sometimes, if the incident is striking enough, and
if he has felt a general discomfort with his established scheme, he may be shaken to
such an extent as to distrust all accepted ways of looking at life” (Lippmann,
1922/1961, p.100).
Estes aspectos viriam a ser posteriormente estudados por Allport (1954/1979) e
amplamente demonstrados por estudos em cognição social. O autor salienta o carácter
rígido dos estereótipos e o facto de estes constituírem imagens demasiado
‘generalizadas’ e ‘exageradas’ que descuram a variabilidade dos membros dos outros
grupos e negam a sua individualidade (Lippmann, 1922/1961, p.116).
Este aspecto foi amplamente demonstrado pelos estudos iniciados por Tajfel e
colaboradores, sobre a sobrestima perceptiva e sobre o efeito de homogeneidade do
exogrupo a que dedicaremos a secção seguinte.
Lippmann debruçou-se ainda sobre o poder dos rótulos e os seus efeitos nefastos
na percepção das pessoas: “They are too empty, too abstract, too inhuman” (1922/1961,
p.160).
Na perspectiva do autor, só uma longa educação crítica permitirá aos indivíduos
tomarem consciência do carácter diferido e subjectivo da sua apreensão da realidade
social (p.126). Embora salientando o papel da educação - ‘the supreme remedy’ (p.408)
- Lippman considera os estereótipos inevitáveis:
“Yet a people without prejudice, a people with altogether neutral vision, is so
unthinkable in any civilization of which it is useful to think, that no scheme of
education could be based upon that ideal. Prejudice can be detected, discounted, and
refined, but so long as finite men must compress into a short schooling preparation
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
205
for dealing with a vast civilization, they must carry pictures of it around with them,
and have prejudice(1922/1961, p.120).
Esta concepção sobre a inevitabilidade dos estereótipos, porque inerentes ao
funcionamento cognitivo normal, só começou a ser sistematicamente analisada pelas
investigações da Nova Vaga sobre os estereótipos iniciada por Bruner e colaboradores
(e.g., Bruner, 1957), tendo sido amplamente demonstrada pelos estudos da cognição
social (e.g., Garcia-Marques, 1999; Zogmaister, Castelli, Arcuri, Smith, 2002;
Kawakami e Dovidio, 2002; Dovidio, Kawakami, Gaertner, van Vergert, 2002;
Wittenbrink, 2002).
Outros dos aspectos salientados por Lippmann foi o facto do senso comum, na
maior parte dos casos, não procurar infirmar as suas hipóteses, mas sim confirmá-las:
“in the codes that come unexamined from the past or bubble up from the caverns of
the mind, the conception is not taken as an hypothesis demanding proof or
contradiction, but as a fiction accepted without questions” (1922/1961, p.122-123).
A delimitação das condições em que os indivíduos enveredam pela confirmação
automática das hipóteses ou em que encetam processos de infirmação das mesmas
constitui um aspecto central na pesquisa actual sobre os estereótipos (e.g., Snyder, 1981;
Garcia-Marques e Sherman, 2002; Ferreira e Garcia-Marques, 2002; Walter, 2002;
Cobos, López, e Caño, 2002; Freytag e Fiedler, 2002; Schulz-Hardt, 2002; Dumont,
Yzertyt e Snyder, 2002).
Lippmann considera que as pessoas ‘ignorantes’ têm maior tendência a efectuar
estas generalizações acriticamente do que as ‘cultas’, mas recorda que todos possuímos
estereótipos, uma vez que “inevitably our opinion cover a bigger space, a longer reach
of time, a greater number of things, than we can directly observe” (1922/1961, p.79).
Nenhum ser humano é “omnipresent and omniscient” (1922/1961, p.161), ao seja, de
certa forma todos somos como os prisioneiros da caverna de que nos fala Platão, no
Sétimo Livro da A República.
Racismo e Etnicidade em Portugal
206
O estudo empírico dos estereótipos começou pouco depois da publicação da obra
de Lippmann. Ainda na década de vinte, fortemente influenciados pela definição dos
estereótipos como ‘pictures inside our heards’, Rice (1926-1927; referido por Oakes,
Haslam e Turner, 1994) realizou um estudo em que apresentou aos participantes uma
série de fotografias de pessoas pertencentes a diferentes grupos sociais. Os participantes
efectuaram facilmente correspondências entre as fotografias e os ‘social types’ e
procederam a atribuições de traços de personalidade baseando-se neste processo de
correspondência. Esta técnica não teve contudo grande sucesso na altura, só vindo a ser
recuperada muito mais tarde (Leyens, Yzerbyt e Schadron, 1994). Durante as primeiras
décadas do estudo dos estereótipos a técnica mais utilizada foi a lista de adjectivos de
Katz e Braly (1993). Mas antes de nos referirmos aos estudos destes autores, parece-nos
necessário abrir um breve parêntese sobre alguns estudos clássicos sobre discriminação
social realizados no âmbito do modelo das atitudes.
Na sua primeira definição (Thomas e Znaniecki, 1918; citados por Amâncio,
1993/2000), o conceito de atitude permitia estabelecer uma ligação entre o psicólogo e o
cultural, constituindo, por isso mesmo, um objecto de análise específico da Psicologia
Social. Definições posteriores do conceito negligenciaram a vertente cultural ao
considerar a atitude um estado de prontidão mental, e esta psicologização do conceito
dominou durante largos anos no seio da disciplina (Jaspars e Frasers, 1984, citados por
Amâncio, 1984).
No início do estudo das atitudes, estava implícita a consonância entre atitudes e
comportamentos, daí a grande ênfase dada pelos psicólogos sociais à construção de
escalas de atitudes. Numa época caracterizada por um grande fluxo migratório de
grupos de origem asiática e europeia para os EUA, Bogardus (1928) estudou as ‘atitudes
raciais’ dos americanos a partir de uma Escala de Distância Social. Os participantes
deveriam indicar as suas atitudes face a diversos grupos raciais, étnicos e religiosos
(por exemplo: franceses, indianos, judeus, chineses, ingleses, negros, etc.), numa escala
de sete pontos, ordenados da menor distância à maior distância social: ‘casaria com um
membro deste grupo’; ‘aceitaria como amigo íntimo’; ‘aceitaria como vizinho do lado’;
‘aceitaria como colega de escritório’; ‘aceitaria como conhecido’; ‘apenas como turista
no país’; ‘excluí-los-ia do país’ (Lima, 1993/2000, p.198). O estudo revelou que os
participantes, americanos ‘brancos’, rejeitavam sobretudo os grupos de origem asiática e
africana, preferindo os imigrantes de origem europeia, principalmente os anglo-
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
207
saxónicos e os nórdicos. Esta hierarquização dos grupos está em perfeita consonância
com os estudos do ‘racismo científico’ realizados no século XIX e início do século XX,
que referimos no primeiro capítulo, testemunhando o carácter normativo do racismo
neste período nos EUA e na Europa.
No início da década de quarenta Hartley (1946/1969) realizou um estudo sobre o
preconceito em relação a 49 grupos-alvo utilizando a escala de Bogardus. Para além dos
grupos-alvo presentes no estudo precedente, Hatley averiguou o preconceito em relação
a grupos políticos (nazis, socialistas, comunistas, etc.) e a três grupos fictícios:
Danarean, Pirenean e Wallonian (p.5). Os resultados mais baixos (indicando maior
distância social) são obtidos pelos grupos políticos ‘extremistas’ - nazis, fascistas e
comunistas -, logo seguidos dos grupos étnicos minoritários – judeus, negros, turcos,
árabes, chineses, hindus, mexicanos, imigrantes da Europa de Leste (romenos, russos,
lituânios, etc.), e imigrantes da Europa Mediterrânica (gregos, italianos e portugueses).
Mais uma vez os imigrantes anglo-saxónicos e nórdicos (irlandeses, ingleses, alemães,
dinamarqueses, etc.) obtiveram resultados indicadores de menor distância social, e o
endogrupo foi o único a ocupar o topo da escala. O aspecto mais curioso deste estudo, é
que os três grupos fictícios obtiveram resultados idênticos aos dos grupos étnicos
‘indesejáveis’, indicadores de grande distância social, isto é, a simples evocação de um
grupo desconhecido, logo minoritário e eventualmente perigoso, levou os participantes a
rejeitar esses grupos. Estes resultados, indicam claramente que o preconceito não está
directamente ligado ao nível de conhecimento dos grupos-alvo em causa, e são
indicadores do carácter normativo da discriminação social nesta época, já que os
participantes não hesitaram em discriminar com base num simples rótulo evocativo de
minoria étnica.
Como referimos, no início do estudo das atitudes, estava implícita a consonância
entre atitudes e comportamentos, pressupondo-se que as atitudes eram boas preditoras
do comportamento. A questão do poder preditivo das atitudes avaliadas por
questionários foi claramente colocada por LaPiere (1934), num estudo clássico sobre
preconceito racial. LaPiere, um psicólogo social americano branco, viajou pelos EUA
acompanhado por um casal de chineses, bem parecidos e bem vestidos, muito
sorridentes e com um ‘unaccented English’ (p.232). O autor foi anotando as reacções
dos funcionários dos diversos estabelecimentos hoteleiros. Nesta viagem foram
recebidos em 66 hotéis e em 184 restaurantes e cafés, tendo apenas sofrido uma recusa
Racismo e Etnicidade em Portugal
208
num hotel. Algum tempo depois foi enviada uma carta a cada um destes
estabelecimentos, perguntando se aceitariam chineses como clientes. Das respostas
recebidas, 92% eram negativas, tendo os restantes afirmado que dependeria das
circunstâncias. Estes resultados mostraram que é possível haver uma manifestação de
tolerância ao nível comportamental e simultaneamente uma expressão de intolerância ao
nível atitudinal, pelo que foram interpretados como reflectindo uma inconsistência entre
atitudes e comportamentos (Lima, 1993/2000). Para além da importância deste aspecto,
interessa-nos salientar outro: este estudo demonstra claramente o carácter normativo da
discriminação racial nos EUA nos anos 30. Nesta altura, havia um forte preconceito
contra os chineses sendo comum os restaurantes e lojas terem uma placa à porta com a
seguinte inscrição: “É proibida a entrada a cães e chineses”. Segundo LaPierre este
preconceito influencia as respostas que os hotéis e dos restaurantes efectuaram por
escrito, assemelhando-se aos questionários de atitudes, mas não o comportamento dos
funcionários face a pessoas concretas:
“In the end I was forced to conclude that those factors which most influenced the
behaviour of others towards the Chinese had nothing at all to do with race. Quality
and condition of clothing, appearance of baggage (by which, it seems, hotel clerks
are prone to base their quick evaluation), cleanliness and neatness were far more
significant for person to person reacting in the situations I was studying than skin
pigmentation, straight black hair, slanting eyes, and flat noses. And yet an air of self-
confidence might entirely offset the ‘unfavorable’ impression (1934, p.232).
Nesse sentido, LaPierre (1934) é extremamente crítico face aos questionários
usados na mensuração das atitudes, e recomenda o uso de métodos mais qualitativos do
que quantitativos:
“Nothing could be used as a more accurate index of color prejudice than the
admission or non-admission of colored people to hotels. For the proprietor must
reflect the group attitude in his policy regardless of his own feelings in the matter.
Since he determines what the group attitude is towards Negroes through the
expression of that attitude in overt behaviour and over a long period of actual
experience, the results will be exceptionally free from those disturbing factors which
inevitably affect the effort to study attitudes by direct questioning (p.231). (…) The
questionnaire is cheap, easy, and mechanical. The study of human behaviour is time
consuming, intellectually fatiguing, and depends for its success upon the ability of
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
209
the investigator. The former method gives quantitative results, the latter mainly
qualitative. Quantitative measurements are quantitatively accurate; qualitative
evaluations are always subject to the errors of human judgment. Yet it would seem
far more worth while to make a shrewd guess regarding that which is essential than
to accurately measure that which is likely to prove quite irrelevant” (p.237).
Esta discrepância entre atitudes e comportamentos está bem ilustrada
empiricamente por réplicas do estudo de LaPierre. Por exemplo, Kutner, Wilkins e
Yarrow (1952) realizaram uma réplica deste estudo em relação aos negros, tendo obtido
resultados idênticos.
Mas apesar destas críticas iniciais ao método de questionário, esse foi sem dúvida
o método mais popular no estudo dos estereótipos, pelo menos até à ‘revolução
cognitiva’. O método mais utilizado foi o da ‘lista de adjectivos’, desenvolvido por Katz
e Braly (1933; 1935). Os autores tinham como objectivo obter uma medida psicológica
dos preconceitos raciais. Para esse efeito, Katz e Braly (1933) construíram uma lista de
84 traços de personalidade, seleccionados a partir da imprensa e da literatura da época
e/ou fornecidos por uma amostra de 100 estudantes universitários nas descrições de dez
grupos: alemães, americanos, chineses, ingleses, irlandeses, italianos, japoneses, judeus,
negros, e turcos. Katz e Braly (1933) pediram a uma outra amostra de 100 estudantes
universitários para seleccionarem os cinco traços mais típicos de cada um dos dez
grupos-alvo referidos. Os autores analisaram o conteúdo dos estereótipos e o seu
consenso, através do menor número de traços atribuídos a um grupo-alvo pela maior
percentagem de participantes. Não surpreendentemente para a época, os ‘americanos’
(referindo-se obviamente aos americanos brancos) foram considerados empreendedores,
inteligentes, materialistas, ambiciosos e progressistas, enquanto os ‘negros’ foram
considerados supersticiosos, preguiçosos, despreocupados, ignorantes e musicais.
Assim, ao endogrupo (americanos) foram atribuídas características positivas que
contribuíam para o chamado ‘sonho americano’, enquanto que aos negros foram
atribuídas características negativas que contrariavam os valores dominantes da
sociedade americana, justificando assim a sua exclusão social (Amâncio, 1989a).
Mas outro aspecto importante ressalta dos resultados: o estereótipo sobre os
‘negros’ é muito mais uniforme do que o estereótipo dos ‘americanos’, isto é,
relativamente a este grupo existe menor consenso entre os participantes. Este padrão de
resultados indica claramente que o consenso não está ligado ao maior nível de contacto
Racismo e Etnicidade em Portugal
210
com o grupo-alvo em causa, já que os estudantes em questão, tinham pouco ou nenhum
contacto directo com os grupos sobre os quais havia maior consenso.
Em consonância com a perspectiva de Lippmann (1922/1961), Katz e Braly
(1933; 1935) consideram os estereótipos como um fenómeno sociocultural. Para os
autores os estereótipos são crenças que são transmitidas pelos agentes de socialização (a
família, a escola, os meios de comunicação social, etc.), o que explicaria o consenso do
estereótipo relativamente aos diversos grupos sociais, a sua independência do
conhecimento ‘real’ dos membros desses grupos e a sua dependência do contexto
histórico e cultural (Amâncio, 1989a).
Uma réplica do estudo de Katz e Braly realizada no início dos anos cinquenta, na
mesma universidade (Gilbert, 1951) indicava um declínio na consistência dos
estereótipos de certas minorias, nomeadamente relativamente aos negros e aos judeus.
Este ‘fading effect’ foi atribuído à difusão de imagens mais tolerantes desses grupos nos
mass media, a uma maior popularidade das ciências sociais entre os estudantes, e ainda
facto da composição sociológica dos estudantes de Princeton ser menos elitista do que a
da década de 30. Segundo Gilbert (1951), os estudantes tornaram-se mais ‘sofisticados’
e ‘objectivos’ tendo relutância em efectuar generalizações infundadas acerca de outros
grupos, o que conduziu o autor ao optimismo:
“If it is true, as this study suggests, that present-day students tend to base their social
attitudes on experience and social science rather than fiction, we have perhaps a ray
of hope that the future of our country will be more rational in the realm of social
relationships than it has been in the past” (pp.253-254).
Replicações realizadas por outros autores noutras locais na década de 1950
pareciam confirmar o declínio dos estereótipos, mostrando que estes são eram ‘rigídos’
mas sim ‘flexíveis’, isto é, sensíveis às mudanças sociais ocorridas depois da II Guerra
Mundial (e.g., Buchanan e Cantrill, 1953; Prothro e Melikan, 1955; citados por Oakes,
Haslam e Turner, 1994). Mas, como refere Amâncio (1989a), uma segunda réplica do
mesmo estudo na Universidade de Princeton realizada nos anos sessenta (Karlins,
Coffman e Walters, 1969) veio desiludir os cientistas sociais, porque de novo os
resultados se distanciavam dos obtidos por Gilbert (1951). Embora o conteúdo de
alguns estereótipos tivesse sofrido alterações e se apresentasse globalmente mais
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
211
positivo, aos americanos e aos grupos de origem europeia continuavam a ser associados
atributos com grande desejabilidade social, consonantes com os valores da sociedade
americana, e aos grupos minoritários de origem africana e asiática continuavam a ser
associados atributos socialmente indesejáveis, isto é, distantes dos ideais de realização e
progresso. Verificou-se igualmente um aumento na consistência nos estereótipos em
relação a algumas minorias étnicas, contrariando a tendência observada nos anos
cinquenta. Em contrapartida, o estereótipo dos ‘americanos’ é o que apresenta menor
consistência, confirmando os resultados dos anos trinta:
“The low frequencies of remaining adjectives make the present characterization of
Americans one of the sharpest images in the study. Katz and Braly’s observations in
1993 that ‘the description is not greatly at variance with the stereotypes held by non-
Americans (p.206)’ is also applicable to the 1967 results” (Karlins, Coffman e
Walters, 1969, p.6).
Relativamente ao estereótipo dos ‘negros’ os autores fazem a seguinte
observação:
“The most dramatic and consistent trend over then 25-years period has been the
more favorable characterization of the Negro. (...) The ‘new view’ of the Negro
focuses on the term ‘musical’ (47%) and includes ‘pleasure loving’ (26%),
‘ostentatious’ (25%), and ‘happy-go-lucky’ (27%). This image would appear to be
more innocuous modern counterpart of the minstrel figure, probably reflecting the
success of Negroes in the popular entertainment world supported by teen-age and
collegiate audiences. Certainly, the Civil Rights movement of the past decade has
strongly influenced the present generation of college students” (p.8).
Mas, se como já referirmos, analisarmos o conteúdo do estereótipo dos ‘negros’ à
luz dos valores da sociedade americana, constatamos que esta ‘nova visão’ dos negros
corresponde mais a uma mudança facial do que profunda, já que a este grupo são
negadas as características instrumentais necessárias para participaram no
desenvolvimento e progresso da sociedade, sendo-lhes atribuídas características
expressivas e exóticas, que embora apresentando uma conotação positiva nas camadas
juvenis, continua a retirar-lhes o estatuto de pessoa adulta, responsável e com
capacidade de realização (Amâncio, 1989a).
Racismo e Etnicidade em Portugal
212
Mais uma vez verificou-se que o grau de consenso dos estereótipos relativamente
a determinado grupo não está directamente ligado ao grau de preconceito exibido em
relação a esse grupo. Nas suas conclusões os autores salientam:
“First, every stereotype in these studies is comprised of both positive and negative
terms. (...) Second, positive values consistently outweigh negative values. (...)
Finally, there is the obvious fact that some characterizations are unduly harsh while
others are too good to be true” (Karlins, Coffman e Walters, 1969, p.11; itálico
nosso).
Comparando os seus resultados com os de Gilbert (1951), os autores salientam:
“(...) the apparent ‘fading’ of social stereotypes in 1951 is not upheld as a genuine
overall trend. Where traditional assignments have declined in frequency they have,
in the long run, been replaced by others, resulting in restored stereotypes uniformity.
(...) A feature of this data which is still impressive is the extent to which ‘new’
stereotypes resemble previous ones. Paradoxically enough, the changes which have
occured stand out because so much has remained the same. Uniformity and
favorableness scores correlate significantly across the three generations of students.
The collections of traits selected to characterize specific groups are very much alike
from one generation to the next, though the relative popularities of those traits have
been thoroughly rearranged. A great deal of change consists of a shift of emphasis in
the already existing picture” (Karlins, Coffman e Walters, 1969, p.14; itálico nosso).
Como os autores referem, o conteúdo dos ‘novos estereótipos’ é mais consistente
com as ‘atitudes mais liberais’ (p.14) da sociedade americana, como demonstrado em
diversos estudos nos anos sessenta. A esse propósito os autores citam Triandis e
Vassiliou (1967, p.238): “it is no longer appropriate to be prejudice toward other
groups”. Mas isso não significa que o preconceito tenha desaparecido.
Os autores salientaram a necessidade de distinguir entre estereótipo pessoal,
fenómeno psicológico, e estereótipo social, fenómeno cultural:
“(…) we may refer to a single individual’s assignments as his personal stereotype
and the consensual assignment of a given population of judges as a social stereotype
(...) The absence of a traditional pattern of stereotyping may not indicate a decline of
stereotyping may not indicate a decline of stereotyping itself, but perhaps the
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
213
formation of a revised social consensus” (Karlins, Coffman e Walters, 1969, p.3;
itálico no original).
Como salienta Roger Brown (1986; citado por Amâncio, 1989a), face aos
resultados deste estudo, a tentação da intervenção social, baseada na função
moralizadora da investigação em ciências sociais perdia parte da sua solidez entre os
psicólogos sociais. Ironizando sobre a ilusão de que os estereótipos seriam erradicados
se se ensinasse as pessoas a pensar de forma ‘objectiva’, Brown conclui que o único
resultado dessa intervenção social foi o de ter ensinado aos americanos da classe média
que não devem exprimir os seus estereótipos e preconceitos em público, mas uma
anedota racista num círculo de amigos até cai bem (Amâncio, 1989a).
Os resultados de um estudo realizado por Sigall e Page (1971) são bem
elucidativos destas pressões normativas que deram origem aos ‘novos racismos’, a que
fizemos referência no primeiro capítulo. Os autores complementaram o uso da
tradicional lista de adjectivos de Katz e Braly com uma manipulação experimental.
Numa das condições os participantes respondiam simplesmente (condição controlo) e na
outra (bogus pipeline) eram informados que o experimentador detinha uma medida
fisiológica infalível capaz de medir a atitude, uma espécie de ‘detector de mentiras’. Os
autores compararam estereótipos dos participantes (americanos brancos) relativamente
aos americanos e aos negros, nas duas condições de resposta. Verificou-se que na
condição bogus pipeline o estereótipo relativo aos ‘americanos’ era mais favorável e o
relativo aos ‘negros’ mais desfavorável do que na condição controlo, isto é, o
favoritismo endogrupal aumentou quando os participantes julgavam que a sua
verdadeira atitude estava a ser medida através de um instrumento infalível. Sigall e Page
consideram este resultado “as relatively distortion-free, as more honest and ‘truer’ than
rating-condition responses” (p.254; citados por Oakes, Haslam e Turner, 1994), o que
sugere que, em geral, os estudos com base na lista de adjectivos, sobretudo os realizados
a partir do momento em que se tornou contra-normativo discriminar, subestimam os
estereótipos negativos e o preconceito.
Numa revisão sobre as mudanças ocorridas na expressão dos estereótipos
relativamente aos ‘negros’, Dovidio e Gaertner (1991) afirmam:
Racismo e Etnicidade em Portugal
214
“(…) adjective checklist studies, in which respondents are asked to select traits that
are the most typical of particular racial or ethnic categories, indicate that negative
stereotypes are consistently fading” (p.202).
No entanto, os autores salientam que a evolução observada no conteúdo e
consistência dos estereótipos pode decorrer de uma maior sensibilidade às normas
sociais anti-discriminação do que a uma verdadeira mudança nos estereótipos (Crosby,
Bromly e Saxe, 1980; Dovidio e Gaertner, 1996, 1991; Sigall e Page, 1971).
No entanto, esta interpretação de carácter normativo é recusada por autores da
perspectiva da cognição social, que interpretam estes resultados estabelecendo uma
clara distinção entre crenças pessoais e estereótipos culturais (e.g., Devine, 1989;
Devine e Elliot, 1995; Garcia-Marques, 1999).
Numa ‘revisitação da triologia de Princeton’, Devine e Elliot (1995) introduziram
algumas alterações no procedimento com vista a colmatar algumas falhas metodológicas
dos estudos precedentes. Partido da lista de adjectivos original de Katz e Braly (1933)
efectuaram as seguintes alterações: introduziram novos adjectivos com o objectivo de
actualizar a referida lista (esses adjectivos foram previamente recolhidos através de uma
técnica aberta: “athletic, criminal, hostile, low intelligence, poor, rhythmic, sexually
perverse, uneducated, and violent” (p.1142); os participantes respondiam duas vezes à
referida lista, uma vez tendo em conta as suas ‘crenças pessoais’ e outra partindo dos
‘estereótipos culturais’, efectuadas em ordem contrabalançada; e, finalmente, os
participantes responderam a uma “nonreactive measure of anti-Black attitudes” (p.1142)
que consistia na Escala de Racismo Moderno (Modern Racism Scale, MRS) de
McConahay (1986).
Comparando as respostas dos participantes nas condições de ‘stereotype
assessment’ e ‘personal belief assessment’, os autores salientam:
“In contrast to the commonly espoused fading stereotype proposition, data suggest
that there exist a consistent and negative contemporary stereotype of Blacks
(p.1139). (…) the stereotype has remained stable through the years (in consistency
and valence, not necessarily in specific content), whereas personal beliefs have
undergone a revision” (p.1141).
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
215
Na perspectiva dos autores, enquanto o estereótipo cultural dos ‘negros’ é
consistente e muito negativo, as crenças pessoais são muito mais positivas,
especialmente as crenças pessoais dos participantes que demonstram uma atitude
favorável aos negros na escala de racismo moderno (MRS). Segundo os autores, a
comparação dos resultados obtidos pelos participantes muito e pouco preconceituosos
na MRS apoia o modelo dissociativo de Devine (1989) segundo o qual “high- and low-
prejudiced individuals both possess the same stereotype of Blacks but that the
stereotype is only endorsed by the former group of individuals” (Devine e Elliot, 1995,
p.1145). No entanto, em determinadas circunstâncias (por exemplo, nas situações de
sobrecarga de informação – cognitive loading) pode haver uma ‘contaminação mental’
pelos estereótipos, levando os indivíduos não preconceituosos a ser influenciados por
estes, uma vez que estes, tendo sido aprendidos ao longo do processo de socialização,
estão armazenados na memória, interferindo nos processos cognitivos dos indivíduos, a
não ser que estes estejam permanentemente vigilantes a uma possível ‘contaminação
mental’ e procurem evitá-la activamente, o que exige grande esforço cognitivo e
motiviação.
Devine e Elliot (1989) apontam os factores cognitivos e socioculturais que
contribuem para a persistência dos estereótipos, apesar da mudança das normas sociais:
“First, it is important to recognized that individual-level changes in one’s beliefs
(i.e., renouncing prejudice and stereotypes) does not lead to immediate elimination
of stereotypes from memory (…). Moreover, during the process of prejudice
reduction, stereotype-based responses are highly accessible and serve as rivals to
belief-based responses (…). Thus change at the individual level is not all-or-none;
overcoming stereotyped-based responding requires a great deal of personal
motivation and effort (…). An additional challenge to such efforts is suggested by
recent evidence that efforts to suppress stereotypes may even heighten their
accessibility (…). One of the main impediments to the fading of racial stereotypes is
that they remain deeply embedded in the cultural fabric of our nation (…). Despite a
shift in social norms regarding overt expressions of prejudice and discrimination,
stereotypic images of Black persist in the dominant media (e.g., television,
newspapers), and Blacks continue to be underrepresented in traditional positions of
power (e.g., education and industry) (…). As a result, stereotypes are perpetuated
within the cultural in subtle, yet highly effectual, ways” (Devine e Elliot, 1995, p.
1149).
Racismo e Etnicidade em Portugal
216
No nosso entendimento, esta interpretação, baseada na clara separação entre
‘crenças pessoais’ e ‘estereótipos culturais’ e pressupondo que quando os indivíduos
‘não preconceituosos’, em situações de grande carga cognitiva (Devine, 1989),
associam mentalmente características negativas aos negros porque sofrem uma
‘contaminação mental’ pelos ‘esteótipos culturais’ é inaceitável, pois não se coaduna
com a conceptualização dos estereótipos sociais enquanto representações sociais, que
referimos no início deste capítulo. Se os estereótipos culturais existem, mas não estão na
cabeça de ninguém, ou de quase ninguém, onde se encontram então? E se não estão na
cabeça das pessoas ‘não preconceituosas’ porque é que estas têm que ter energia mental
disponível e motivação para não se deixar influenciar por eles? Na nossa perspectiva, os
resultados de diversos estudos indicando crenças pessoais mais positivas do que os
estereótipos sociais (e.g., Devine e Elliot, 1995; Garcia-Marques, 1999; Vala, Brito e
Lopes, 1999a), e dos estudos que indicam que as pessoas geralmente se consideram
menos racistas do que a média das pessoas do seu endogrupo (e.g., Miranda, 2001),
podem ser interpretados como uma manifestação do efeito PIP (Codol, 1975).
Conhecendo as normas sociais de não discriminação, os indivíduos apresentam-se de
forma mais consonante com essas normas do que os restantes membros da sociedade em
que se encontram, o que consiste numa forma de obter distintividade através da adesão a
normas socialmente valorizadas.
Como já referimos, o desenvolvimento da psicologia cognitiva (Bruner, 1957)
conduziu a uma mudança significativa no estudo sobre os estereótipos, tanto no que
respeita à perspectiva teórica como à metodologia. Enquanto que as primeiras pesquisas
se focalizaram no conteúdo dos estereótipos (Katz e Braly, 1933; Gilbert, 1951), a
abordagem cognitivista vai centrar-se nos processos (e.g., Hamilton, 1979; Snyder,
1981). Esta focalização nos processos levou ao desenvolvimento de metodologias mais
‘sofisticadas’ e ‘rigorosas’: medição de tempos de reacção a determinadas palavras-
estímulo; medição das reacções automáticas; medidas de recuperação de informação;
medidas de associação em condições de carga cognitiva; etc. (Marques e Paéz, 2000).
Os estudos sobre a tendência central percebida dos estereótipos foram diminuindo a
partir dos anos oitenta, dando lugar a estudos sobre a variabilidade grupal percebida
(Ostrom e Sedikides, 1992), aspecto que abordaremos na próxima secção.
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
217
3.4 Processos cognitivos, identidade social e percepção da variabilidade
grupal
“All strangers of another race proverbially look alike to the visiting stranger.”
Walter Lippmann, 1922
Numa revisão de literatura sobre o estudo da percepção da variabilidade grupal,
Sedikides e Ostrom (1993) referem que este tem seguido três direcções. Os primeiros
estudos orientaram-se sobretudo para a demonstração empírica dos efeitos da
categorização na percepção dos grupos sociais, nomeadamente o efeito de acentuação e
o efeito de homogeneidade do exogrupo. Seguidamente, a maior parte dos
investigadores empenhou-se no desenvolvimento dos modelos cognitivos capazes de
explicar o efeito de homogeneidade do exogrupo, o que constitui actualmente o maior
foco da pesquisa nesta área. No início dos anos noventa, estudos inspirados na teoria da
identidade social começaram a enfatizar a importância do contexto social e do papel
mediador da identidade social na percepção da variabilidade grupal, tendo demonstrado
que o efeito de homogeneidade do exogrupo não é simétrico nem universal. Revisões de
literatura mais recentes sobre a percepção da variabilidade grupal (e.g., Devos, Comby e
Deschamps, 1996; Guinote, 1999; Lorenzi-Cioldi, 1998; Voci, 2000) têm evidenciado o
papel moderador do estatuto dos grupos na explicação das assimetrias observadas.
Como referimos no ponto 2.3.1, de acordo com Tajfel, a categorização dos
objectos (incluindo os grupos sociais) é baseada nas semelhanças intracategoriais e nas
diferenças intercategoriais. Um dos fenómenos associado à categorização é o efeito de
acentuação: a sobrestima, por parte do observador, das semelhanças entre objectos ou
pessoas pertencendo à mesma categoria - efeito de assimilação - e das diferenças entre
objectos ou pessoas pertencendo a diferentes categorias - efeito de contraste.
O efeito de acentuação está ligado à simplificação que a categorização opera na
percepção dos objectos e das pessoas. Como referem Beauvois e Deschamps (1990):
“la catégorisation, de par sa fonction de systématisation de l'environnement, nous
donne à voir un monde plus structuré, mieux organisé, donc plus explicable et
contrôlable, mais aussi simplifié" (p.14).
Racismo e Etnicidade em Portugal
218
A magnitude do efeito de acentuação tem sido encarada como um índice do grau
com que a informação é organizada em torno das categorias sociais. Na literatura sobre
julgamento social e sobre percepção de pessoas e grupos, o critério de categorização
está frequentemente associado a uma dimensão de valor - o que conduz a um efeito de
acentuação mais forte, comparativamente a uma dimensão neutra.
Taylor, Fiske, Etcoff e Ruderman (1978) desenvolveram um paradigma
experimental para apreender estes fenómenos. Os participantes escutam uma gravação
com uma pequena discussão entre seis pessoas-estímulo e, simultaneamente, observam
diapositivos com as fotografias de cada pessoa-estímulo à medida que estes intervêm.
As pessoas-estímulo são membros de dois grupos (negros e brancos). Depois de
escutarem a gravação, os participantes (brancos - Exp.1) recebem uma lista com todas
as frases efectuadas na discussão (desordenadas) e as fotografias de todas as
pessoas-estímulo. A tarefa dos participantes consiste em emparelhar as frases com as
fotografias apropriadas.
A ideia subjacente a este paradigma é a seguinte: se a ‘raça’ é usada como base
para codificar e armazenar a informação no sentido categorial, então os participantes
deverão ser capazes de recordar se foi um homem branco ou um homem negro a fazer
uma determinada afirmação, mas não necessariamente qual o homem branco ou homem
negro que fez uma determinada afirmação (Hewstone, Hantzi e Johnston, 1991).
A dificuldade relativa da tarefa permite o cálculo, para cada participante, de dois
tipos de erros: uma frase pode ser atribuída a um outro membro do mesmo grupo (erro
intracategorial), ou a um membro do outro grupo (erro intercategorial). Estas medidas
empíricas dos erros são consideradas como a expressão de processos psicológicos
ligados à actividade de categorização. Os erros intracategoriais denotam um tratamento
da informação indiferenciado do outro dentro do grupo, ou seja, uma hipersensibilidade
à categoria de pertença. Os erros intercategoriais denotam o aspecto oposto, isto é, a
insensibilidade do indivíduo à pertença categorial do outro (Lorenzi-Cioldi, 1993).
Assim, o exagero perceptivo das semelhanças intracategoriais e das diferenças
intercategoriais entre os estímulos traduz-se, no paradigma de Taylor et al. (1978), por
uma quantidade elevada de erros intracategoriais relativamente à quantidade de erros
intercategoriais. O processo de categorização, conduz os participantes a distinguirem
correctamente os indivíduos dos dois grupos e a tratar de maneira homogénea os
indivíduos que são semelhantes do ponto de vista categorial. De acordo com as suas
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
219
previsões, Taylor et al. (1978) encontraram um maior número de erros intracategoriais
do que de erros intercategoriais, o que evidencia o efeito de acentuação.
Estudos subsequentes replicaram o efeito de acentuação na memória para pessoas
usando vários critérios de categorização: ‘raça’ (e.g., Cabecinhas, 1994; Frable e Bem,
1985; Hewstone, Hantzi e Johnston, 1991); sexo (e.g. Arcuri, 1982; Cabecinhas, 1994;
Frable e Bem, 1985; Lorenzi-Cioldi, 1993; Lorenzi-Cioldi et al., 1995; Van
Knippenberg et al., 1992); atracção física (Miller, 1988); orientação sexual (Walker e
Antaki, 1986); e estatuto académico (Arcuri, 1982; Van Knippenberg et al., 1992).
Os estudos utilizando o paradigma de Taylor et al. (1978) apoiam a ideia de que a
informação não é armazenada simplesmente indivíduo-por-indivíduo, mas que a
pertença grupal dos indivíduos determina como a informação é organizada (e.g.,
Brewer, 1988, 1998; Fiske e Neuberg, 1990). Este enviesamento ao nível da memória,
assim como outras manifestações do efeito de acentuação, tem efeitos prejudiciais nas
relações intergrupais. De acordo com Stephan (1985), os efeitos de assimilação e de
contraste conduzem a uma variedade de enviesamentos no processamento da
informação acerca dos grupos sociais: formação dos estereótipos e atitudes negativas
entre grupos; formação de expectativas negativas acerca do exogrupo; obstrução a
tentativas de mudar os estereótipos; e evitamento do contacto intergrupal. Por todas
estas razões, têm sido desenvolvidos estudos com o objectivo de explorar como pode ser
atenuado o efeito de acentuação.
Taylor et al. (1978, Exp.1) estudaram os efeitos da ‘categorização simples’, isto é,
os estímulos foram seleccionados de forma a induzir uma divisão particular em grupos
(brancos vs. negros), possibilitando aos participantes o uso desse critério com virtual
exclusão de alternativas potenciais de categorização. Arcuri (1982), utilizando o
paradigma experimental de Taylor et al., verificou que o efeito de acentuação é mais
forte numa condição de categorização sobreposta (‘sexo’ e ‘estatuto académico’ como
critérios: grupo de discussão entre 4 homens estudantes e 4 mulheres professoras),
intermédia numa condição de categorização simples (sexo como critério: 4 homens e 4
mulheres), e mais fraca numa condição de categorização cruzada (sexo e estatuto
académico com critério: 2 mulheres e 2 homens estudantes, e 2 mulheres e 2 homens
professores). Os resultados de Arcuri apontam para uma influência do contexto sobre a
intensidade do efeito de acentuação, sendo consistentes com uma interpretação em
termos da teoria da auto-categorização (Turner et al., 1987).
Racismo e Etnicidade em Portugal
220
O contexto é um termo ‘vago’, referindo-se, geralmente, a todos os factores que
não são directamente relevantes para o processo sob investigação, mas que podem
influenciá-lo (Markus e Zajonc, 1985, p.172). O contexto de uma experiência pode ser
manipulado de diversas formas: as instruções dadas aos sujeitos, a natureza das tarefas
precedentes, etc. Mas o contexto social mais vasto também tem impacto, como é
ilustrado, por exemplo, pelas replicações da experiência dos ‘grupos mínimos’
efectuadas em sociedades não ocidentais (e.g., Wetherel, 1982).
Embora nas experiências de Taylor et al. (1978) o efeito de acentuação não tenha
sido afectado por factores contextuais, a pesquisa subsequente tem demonstrado com
sucesso que a força do efeito de acentuação varia em função de manipulações do
contexto. Na experiência de Arcuri (1982) a discussão entre as pessoas-estímulo era
relativa a um assunto académico. Na condição de categorização cruzada, há duas
formas de calcular os erros intra e intercategorias: de acordo com o critério ‘sexo’
(homem/mulher) ou de acordo com o critério ‘académico’ (professor/estudante). Neste
estudo, a diferença entre os erros intra e intercategoriais foi maior para a categorização
‘académica’ do que para a categorização ‘sexual’. Na opinião de van Knippenberg et al.
(1992), este resultado deve-se ao facto da discussão ser relativa a um assunto
académico: face a este tema a categorização professor/estudante poderia fornecer um
quadro de referência mais adequado do que a categorização homem/mulher. Esta
interpretação assenta no pressuposto de que a probabilidade de uso de uma
categorização social particular é função da relevância da categorização para a situação
concreta, neste caso, o tópico de discussão.
Hewstone, Hantzi e Johnston (1991, Exp.1) utilizaram o paradigma experimental
desenvolvido por Taylor et al. (1978), com participantes brancos e negros, com o
objectivo de investigar se a saliência da categoria ‘raça’ seria sensível a factores
contextuais, tais como a relevância do tópico de discussão para o critério de
categorização: relevante (‘relações raciais’) ou irrelevante (‘educação’) para a
categorização racial.
Na opinião destes autores, existem duas explicações possíveis para o facto do
tópico de discussão relevante poder aumentar o efeito de acentuação. A primeira é uma
hipótese cognitiva: quando o tópico diz respeito à ‘raça’, esta torna-se uma categoria
particularmente acessível, tornando-se mais provável que os participantes categorizem
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
221
em termos dessa categoria e, consequentemente, aumentem o número de confusões
entre pessoas-estímulo que são semelhantes em termos dessa categorização. A segunda
é uma hipótese motivacional: o tópico pode aumentar a ‘utilidade subjectiva’ da
categorização. Assim, quando a discussão é sobre as ‘relações raciais’, a categoria racial
das pessoas-estímulo pode ajudar o observador a compreender o significado das suas
intervenções na discussão.
Contrariamente às expectativas dos autores, não houve maior número de erros
intrarraciais na condição ‘tópico relevante’ do que na condição ‘tópico irrelevante’, isto
é, os resultados evidenciaram que o efeito de acentuação (maior número de erros
intrarraciais do que erros interraciais) não foi significativamente afectado pela
manipulação do tópico de discussão. Os autores explicaram estes resultados
considerando que a categorização racial é tão forte, que não é afectada por este tipo de
manipulação.
Park e Rothbart (1982) consideram que há certas categorias que são altamente
acessíveis e difíceis de suprimir, em particular a ‘raça’ e o sexo. Assumindo que essas
categorias são extremamente salientes e poderosas, e que são automaticamente
codificadas na ausência de quaisquer instruções específicas (Fiske e Neuberg, 1990),
então talvez sejam insensíveis ao tipo de variação contextual estudada. Alguns estudos,
comparando directamente a saliência das categorizações sexual e racial, apontam para o
facto de, embora ambas sejam extremamente poderosas, a categorização sexual ser de
natureza mais forte do que a racial (e.g., Fiske, Haslam e Fiske, 1991; Stangor, Lynch,
Duan e Glass, 1992).
Hewstone et al. (1991, Exp.2) investigaram também o efeito da ‘interacção
antecipada’ na quantidade relativa de erros intra e intercategoriais. Os autores partiram
da hipótese de que os efeitos da categorização seriam mais reduzidos na condição de
‘interacção antecipada’ (quando os participantes esperavam interagir com as pessoas-
estímulo) do que na condição controlo. Esta hipótese foi infirmada: na condição
‘interacção antecipada’ foram encontrados menos erros do que na condição controlo,
mas a diferença entre os erros intra e intercategoriais foi igual em ambas as condições, o
que mais uma vez aponta no sentido da grande saliência da categorização racial: os
participantes têm tendência em tratar a informação em termos raciais mesmo quando
instruídos no sentido de anteciparem uma interacção em termos pessoais.
Racismo e Etnicidade em Portugal
222
Diversos estudos têm sugerido alguns factores que podem influenciar o uso de
uma dada categoria em detrimento de outra, mas esses factores não estão organizados
num quadro de referência coerente. Partindo do trabalho de Oakes (1987; ver ponto
2.3.2), van Knippenberg et al. (1992) estudaram os factores que afectam o uso de uma
determinada categorização numa dada situação. De acordo com os autores, estes
factores podem ser organizados em três categorias amplas:
a) factores ‘pessoais’, tais como uma forte identificação com um dos grupos
envolvidos, ou uma frequência elevada de utilização da categorização social específica.
Estes factores podem levar a que uma categorização particular possa ser activada em
todos os tipos de situações - ‘acessibilidade crónica’ (chronic acessibility) - e, como
resultado disso, essa categorização apresenta maior probabilidade de ser usada ao longo
de diferentes situações do que categorizações alternativas. A ‘acessibilidade crónica’ de
uma categorização pode ser também inerente à cultura de um grupo ou sociedade. Por
exemplo: sexo, idade, cor da pele são mais facilmente acessíveis do que estatuto
académico (Messick e Mackie, 1989).
b) factores de ‘contexto’, tais como as instruções dadas ao participante, a natureza
das tarefas directamente precedentes, a relevância do tópico de discussão para uma dada
categorização ou os objectivos do indivíduo na situação particular. Pressupõe-se que os
factores do contexto aumentam a ‘acessibilidade situacional’ (situational accessibility)
de uma categorização específica, incrementando o uso dessa categorização nessa
situação particular.
c) factores do ‘estímulo’: ‘ajustamento estrutural’, ‘ajustamento normativo’,
proximidade/distância, relação numérica entre os diferentes tipos de estímulos
(maioria/minoria). Pressupõe-se que estes factores aumentam a saliência de uma
categorização particular, num dado momento. Quanto mais perceptivamente saliente for
uma dada categorização, maior a probabilidade de ser usada comparando com
categorizações alternativas.
Globalmente, os resultados das experiências empreendidas pelos autores sugerem
que determinadas categorizações (sexo, ‘raça’, idade) estão ‘automaticamente’
disponível como ‘default option’, tendendo a guiar o processamento da informação, a
não ser que haja uma alternativa obviamente mais desejável na situação concreta (van
Knippenberg et al., 1992). Estudos utilizando outro tipo de medidas implícitas têm
demonstrado que os indivíduos detectam o sexo, ‘raça’ e idade prováveis das pessoas-
alvo em milésimos de segundo (Banaji e Hardin, 1996; Zárate e Smith, 1990). A
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
223
investigação tem demonstrado que os grupos socialmente marcados - minorias étnicas,
linguísticas, etc. - são categorizados muito mais rapidamente do que os grupos não
marcados, isto é, aqueles que se ajustam ao ‘cultural default’, que no caso das
sociedades ocidentais é ser homem, branco, adulto, heterossexual, classe média (Fiske,
2000, p.307). Assim, o facto de algumas categorizações serem consideradas como
‘default option’ (sexo, ‘raça, idade) não significa que não se verifiquem assimetrias
significativas no uso destas categorizações. Assim, as mulheres são mais facilmente
categorizadas sexualmente do que os homens e os negros são mais facilmente
categorizados racialmente do que os brancos (Zárate e Sandoval, 1995). Os estudos
realizados sobre a saliência relativa de diversas categorizações cruzadas mostram que
um homem negro é mais frequentemente categorizado como ‘negro’ enquanto que uma
mulher branca é mais frequentemente categorizada como ‘mulher’ (Zárate, Bonilha e
Luevano, 1995; Zárate e Smith, 1990).
Numerosas pesquisas realizadas sobre os efeitos decorrentes da categorização
social demonstraram também a existência de um enviesamento denominado efeito de
homogeneidade do exogrupo, isto é, a tendência para perceber o exogrupo como mais
homogéneo do que o endogrupo (e.g., Linville, Salovey e Fischer, 1986; Park e
Rothbart, 1982; Quattrone e Jones, 1980).
Quattrone e Jones (1980) estudaram o efeito de homogeneidade do exogrupo com
estudantes das Universidades de Princeton e de Rutgers. Os participantes vêm um
pequeno vídeo que apresenta um estudante fazendo uma escolha (e.g., esperar
acompanhado vs. sozinho numa experiência de bio-feedback). O estudante é
apresentado ora como da Universidade de Princeton ora como da Universidade de
Rutgers. A tarefa dos participantes consiste em estimar a percentagem de estudantes da
mesma universidade que fariam a mesma opção. De acordo com as previsões dos
autores, os participantes inferiram uma maior percentagem de escolha grupal a partir da
escolha individual quando a pessoa-estímulo era um membro do exogrupo do que
quando era um membro do endogrupo. Contudo, a evidência do efeito de
homogeneidade do exogrupo só foi encontrada num tipo de escolha e manifestou-se de
forma assimétrica: só quando o grupo da universidade de Princeton estava sendo
julgado.
Racismo e Etnicidade em Portugal
224
Linville e Jones (1980) mediram indirectamente o efeito de homogeneidade do
exogrupo. Numa das suas experiências (Exp.3), a tarefa dos participantes (brancos)
consistia em atribuir conjuntos de traços de personalidade a duas populações de
estudantes (brancos/negros). De acordo com as previsões, os participantes escolheram
traços de maneira a atribuir maior complexidade dimensional ao grupo dos brancos
(endogrupo) do que ao grupo dos negros (exogrupo). Esta experiência está incompleta,
pois seria necessário verificar se o mesmo tipo de resultados se obteria com
participantes negros.
O efeito de homogeneidade do exogrupo traduz-se no paradigma de Taylor et al.
(1978) por um maior número de erros intracategorias em relação aos membros do
exogrupo (erros exogrupais) do que em relação aos membros do endogrupo (erros
endogrupais), isto é, os participantes são capazes de fazer discriminações mais finas
dentro do seu endogrupo. Taylor e colaboradores (1978) não encontraram apoio para
essa hipótese (menos confusões entre os membros do endogrupo do que entre os do
exogrupo). É necessário contudo ter em consideração que os autores testaram esta
hipótese (Exp.1) unicamente com participantes brancos, sendo provável que os
resultados dos negros e brancos difiram:
''members of a black minority living in a white-domined society might have greater
motivation to learn to distinguish among power-holding whites, than vice versa''
(Hewstone, Hantzi e Johnston, 1991, p.520).
Park e Rothbart (1982) consideram que a percepção da homogeneidade do
exogrupo deriva, pelo menos em parte, da confiança do observador nos estereótipos.
Assim, um índice apropriado para medir o efeito de homogeneidade do exogrupo
poderia ser uma medida da força do estereótipo. Numa das experiências realizadas pelos
autores (Exp.1), a tarefa dos sujeitos, de ambos os sexos, consistia em estimar a
proporção de homens e de mulheres que apresentavam determinados traços de
personalidade. Estes traços variavam em duas dimensões: a estereotipicalidade
(estereotípico vs. contra-estereotípico); e a desejabilidade social (favorável, neutro e
desfavorável). De acordo com as hipóteses formuladas pelos autores, os membros do
exogrupo foram vistos como possuindo um maior número de traços estereotípicos do
que os membros do endogrupo, enquanto que os membros do endogrupo foram vistos
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
225
como possuindo maior número de traços contra-estereotípicos do que os membros do
exogrupo. Os resultados desta experiência indicaram que os participantes tinham uma
imagem mais complexa do endogrupo do que do exogrupo – efeito de homogeneidade
do exogrupo – e demonstraram que este efeitos não foi influenciado pela desejabilidade
dos traços (manifestou-se tanto nos traços favoráveis como nos desfavoráveis),
sugerindo que este fenómeno pode ser independente do favoritismo endogrupal.
Como vimos nos capítulos anteriores, o favoritismo endogrupal, tem recebido
enorme suporte empírico, tanto em grupos ‘naturais’ como com grupos ‘mínimos’ (e.g.,
Brewer, 1979; Tajfel et al., 1971). Diversos autores têm estudado a relação entre o
favoritismo endogrupal e o efeito de homogeneidade do exogrupo, mas os resultados
têm-se mostrado inconsistentes. Como referimos, os resultados obtidos por Park e
Rothbart (1982) apontam para uma independência do efeito de homogeneidade do
exogrupo face ao favoritismo endogrupal. Na mesma linha de ideias, Krueger (1992)
considera o favoritismo endogrupal e o efeito de homogeneidade do exogrupo como
fenómenos independentes, sendo a sua frequente co-ocorrência na percepção social um
importante antecedente do conflito social.
Na opinião de Simon (1992a), existe evidência empírica para considerar o
favoritismo endogrupal como uma consequência do efeito de homogeneidade do
exogrupo. Mas, o favoritismo endogrupal também pode ser positivamente relacionado
com o efeito de homogeneidade do endogrupo (e.g., Brown e Simon, 1989; Simon e
Pettigrew, 1990). Globalmente, o favoritismo endogrupal parece justificado por causa
deste ser percebido como relativamente homogéneo em atributos avaliados
positivamente, enquanto que, simultaneamente, o exogrupo é percebido como
relativamente homogéneo em atributos avaliados negativamente. Simon (1992a) refere
que:
“depending on the relative strength of the two homogeneity effects, ingroup
favouritism may be mainly a function of the absolute enhancement of the ingroup,
mainly a function of the absolute devaluation of the outgroup, or a combined
function of both” (p.26).
Neste sentido, Simon (1992a) considera que a pesquisa sobre a homogeneidade
percebida pode ajudar a identificar o locus do favoritismo endogrupal. No entanto, a
Racismo e Etnicidade em Portugal
226
pesquisa desenvolvida no sentido de esclarecer a relação entre estes dois fenómenos tem
produzido resultados ambíguos ou inconsistentes (e.g., Brewer, 1993; Judd et al., 1995).
Algumas pesquisas sugerem que a valência dos traços é um determinante
normativo-motivacional da homogeneidade percebida (Haslam et al., 1995). Contudo,
outros estudos indicam que a percepção de homogeneidade é equivalente em traços
favoráveis e desfavoráveis, sugerindo que o efeito de homogeneidade do exogrupo é
independente do favoritismo endogrupal (Jones et al., 1981; Park e Rothbart, 1982; Park
e Judd, 1990). Ou seja, enquanto uns estudos apontam para uma interdependência entre
estes dois fenómenos (e.g., Haslam et al., 1995; Simon, 1992a), outros apontam para
uma independência (e.g., Jones et al., 1981; Krueger, 1992; Park e Rothbart, 1982; Park
e Judd, 1990), e outros não permitem quaisquer conclusões sobre a relação entre estes
fenómenos (Judd et al., 1995).
Por outro lado, a pesquisa sobre o efeito de homogeneidade do exogrupo partiu da
constatação de que a pertença grupal tem um forte impacto na percepção da
variabilidade grupal. Mas o endogrupo e exogrupo podem diferir de numerosas
maneiras - uma das diferenças que tem recebido alguma atenção por parte dos
investigadores no âmbito da cognição social é o contraste entre os grupos ‘naturais’ e os
‘grupos mínimos’. A maior partes das investigações sobre o efeito de homogeneidade
do exogrupo foram efectuadas com grupos ‘naturais’ (e.g., Haslam, Oakes e Turner,
1995; Linville e Jones, 1980; Linville, Fischer e Salovey, 1989; Park e Judd, 1990;
Park, Ryan e Judd, 1990; Park e Rothbart, 1982; Quattrone e Jones, 1980). Sobretudo a
partir do início da década de noventa diversos estudos começaram a examinar o efeito
da homogeneidade do exogrupo em ‘grupos mínimos’ (e.g., Doosje, Ellemers e Spears,
1995; Ellemers, Spears e Doosje, 1997; Judd e Park, 1988; Mackie, Sherman e Worth,
1993; Simon e Mummendey, 1990).
Na opinião de Ostrom e Sedikides (1992), o paradigma dos ‘grupos mínimos’
oferece oportunidades para refinar e testar teorias básicas da percepção de grupos. Na
sua revisão de literatura sobre o efeito de homogeneidade do exogrupo, Ostrom e
Sedikides (1992) apresentam forte suporte para o efeito de homogeneidade do exogrupo
(utilizando diferentes tipos de medidas) em grupos naturais, mas uma fraca evidência
para a emergência deste efeito em experiências com ‘grupos mínimos’. Em
contrapartida, Mullen e Hu (1989), numa meta-análise da literatura, referem fraca, mas
significativa, evidência para o efeito de homogeneidade do exogrupo em ‘grupos
mínimos’. Numa revisão de literatura mais recente, Voci (2000) demonstra que o efeito
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
227
de homogeneidade do exogrupo é observável em grupos mínimos quando estes têm
todos o mesmo tamanho, mas quando os grupos têm tamanhos relativos diferentes
observam-se significativas assimetrias na percepção da variabilidade grupal.
As pesquisas com ‘grupos mínimos’ apresentam algumas limitações: criando
experimentalmente pertenças categoriais mínimas, omite-se, na maior parte dos casos, a
introduzição na situação de um factor essencial - a posição respectiva dos grupos na
sociedade e as representações que os indivíduos podem ter das categorias sociais em
interacção (Doise e Lorenzi-Cioldi, 1990).
As explicações sobre o efeito de homogeneidade do exogrupo têm mudado
consideravelmente à medida que se esclarecem as condições de ocorrência deste
fenómeno. A primeira explicação do efeito de homogeneidade do exogrupo foi baseada
na familiaridade diferencial (e.g., Taylor et al., 1978): maior familiaridade com o
endogrupo conduziria a um maior conhecimento deste, o que por seu turno, levaria a
maior variabilidade percebida deste grupo face ao exogrupo. Relativamente a esta
hipótese, Park e Rothbart (1982) referem:
“It is not surprising that several generations of Princeton students judge Turks in a
rather stereotypic manner (Gilbert, 1951; Karlins, Coffman e Walters, 1969; Katz e
Braly, 1933). It would be more impressive if out-group homogeneity could be
demonstrated between groups with close contact, and it is difficult to find two
groups that have more continual contact than men and women” (p.1055).
Neste sentido, a demonstração do efeito de homogeneidade do exogrupo entre
homens e mulheres (e.g., Park e Rothbart, 1982; Lorenzi-Cioldi, 1993) constituiu um
severo teste a esta hipótese. Diversos estudos apontam para o facto de não existir uma
relação linear entre a percepção da variabilidade e a frequência dos contactos e/ou o
número de membros conhecidos nos grupos considerados (e.g., Judd e Park, 1988; Park
e Rothbart, 1982; Quattrone, 1986; Quattrone e Jones, 1980). Outro severo teste à
hipótese da familiaridade advêm da observação do efeito de homogeneidade do
exogrupo em experiências com ‘grupos mínimos’, onde os participantes possuem pouca
ou nenhuma informação sobre os membros do endogrupo e do exogrupo (Brown, 2000),
assim como das variações observadas neste fenómeno em função das dinâmicas de
Racismo e Etnicidade em Portugal
228
formação de grupos ‘reais’ ao longo do tempo (Brown e Wootton-Millward, 1993;
Oakes, Haslam, Morrison e Grace, 1992; Ryan e Bogardt, 1997).
Quattrone (1986) sugere que, quando se encontram elementos de um exogrupo,
se atende primeiramente às semelhanças entre eles, não se atribuindo atenção às
diferenças individuais. Na opinião de Quattrone (1986), um factor que pode explicar o
efeito de homogeneidade do exogrupo apesar dos numerosos contactos (e.g., sexo
oposto) é que os contactos intergrupais tendem a ocorrer numa gama restrita de
situações – ‘enviesamento situacional da amostra’ (situational sample bias) - e que estas
situações implicam papéis mais ou menos rígidos aos indivíduos. Mas, mesmo que os
membros do exogrupo sejam observados numa variedade de papéis e de contextos
situacionais, o indivíduo pode continuar a perceber o exogrupo como mais homogéneo.
Um factor adicional que pode explicar este efeito é que a amostra de elementos do
exogrupo pode estar enviesada – ‘enviesamento taxonómico da amostra’ (taxonomic
sample bias) - isto é, pode ser constituída apenas por um determinado subtipo de
indivíduos.
Contudo, o enviesamento pode não estar na amostra mas na informação que dela é
retirada (e.g., o participante pode prestar mais atenção à ‘raça’ do que à profissão de um
membro do exogrupo, embora considere a profissão para avaliar um membro do seu
próprio grupo). Neste sentido, Park e Rothbart (1982) propõem uma explicação
alternativa para o efeito de homogeneidade do exogrupo:
“the categories used to encode out-group behavior are superordinate, general and
undifferentiated, whereas the categories used to encode in-group behavior include
more subordinate, differentiated categories as well” (p.1064).
Para testar esta hipótese, Park e Rothbart (1982, Exp.4) realizaram uma
experiência em que os participantes, estudantes do sexo masculino e feminino,
receberam informação idêntica (um pequeno episódio) acerca de um indivíduo
(homem/mulher). Os resultados demonstraram que os participantes recordam melhor os
atributos subordinados (e.g., profissão) de um membro do endogrupo do que de um
membro do exogrupo. Já que a exposição à informação acerca do endogrupo e do
exogrupo foi equivalente, a informação diferencial, por si só, não constitui explicação
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
229
suficiente para o efeito de homogeneidade do exogrupo. Na opinião dos autores, a
aprendizagem diferencial para as características dos membros do endogrupo e do
exogrupo pode constituir uma fonte poderosa de erro na formação de impressões sobre
os membros do exogrupo (e.g., Hamilton e Gifford, 1975; Howard e Rothbart, 1980).
Rothbart (1981) considera que, dentro de certos limites, as estruturas existentes
tornam-se auto-perpetuadoras, isto é, a falha em codificar ou apreender os atributos
subordinados dos membros do exogrupo perpetua a visão do exogrupo como
relativamente homogéneo e indiferenciado.
Uma outra explicação para o efeito de homogeneidade do exogrupo, referida por
Quattrone (1986), é a insensibilidade dos indivíduos aos dados infirmatórios: o facto
dos indivíduos ignorarem os dados infirmatórios preserva a percepção da
homogeneidade do exogrupo. Com efeito, a pesquisa sobre estereótipos tem
demonstrado que estes são bastante resistentes à mudança, mesmo em presença de
evidência desconfirmatória (e.g., Hamilton, 1979; Snyder, 1981). Um caso
frequentemente observado, consiste em considerar o actor cujo comportamento
desacredita as nossas crenças como uma excepção à regra (Hewstone e Brown, 1988;
Quattrone, 1986).
Numerosos estudos demonstram como os estereótipos podem ser mantidos através
da natureza auto-realizadora da sua influência na interacção social, tanto da parte dos
observadores como dos alvos dos estereótipos (e.g., Darley e Fazio, 1980; Hamilton,
1979, 1981; Snyder, 1981; Snyder e Swann, 1978; Steel, 1997; Word, Zanna e Cooper,
1977). Os estereótipos influenciam, de várias formas, o processamento da informação
acerca de um membro de um grupo social: focar a atenção num aspecto particular do
comportamento do indivíduo, tornando esse aspecto mais saliente; interpretar certos
comportamentos ambíguos como consonantes com o estereótipo; recuperar
selectivamente a informação armazenada na memória; procurar informação adicional
confirmatória e não infirmatória (e.g., Johnston e Macrae, 1994; Yzerbyt e Leyens,
1991).
Para além da influência no processamento da informação per se, os estereótipos
podem levar o observador a ir além da informação disponível. Como protótipos, os
estereótipos bem desenvolvidos “may result in the perceiver ‘seeing’ certain things
Racismo e Etnicidade em Portugal
230
which were not a part of the stimulus configuration, ‘filling in the gaps’ in terms of the
schema-based expectancies” (Hamilton, 1979, p.68).
Diversos estudos demonstram que os participantes ‘vêem’ o que é congruente com
o estereótipo e ‘não vêem’ o que é incongruente. No entanto, a informação incongruente
com o estereótipo nem sempre é ignorada: em certas condições, a informação
fortemente incongruente com as expectativas pode aumentar a sua saliência e assim o
seu impacto, resultando numa mudança da estrutura cognitiva. Assim, a percepção da
homogeneidade do exogrupo parece ser um dos factores que contribui para a formação
dos estereótipos, e estes, por sua vez, parecem contribuir para a manutenção da
percepção da homogeneidade do exogrupo, através da sua influência ao nível da
selecção e do tratamento da informação (e.g., Brewer e Brown, 1998).
As pesquisas empíricas sobre a variabilidade grupal percebida conduziram à
elaboração e refinamento de diferentes modelos cognitivos explicativos do efeito de
homogeneidade do exogrupo. Os modelos cognitivos da variabilidade grupal percebida
que mais têm sido testados empiricamente são os de Linville, Salovey e Fischer (1986)
e de Judd e Park (1988).
De acordo com Linville, Salovey e Fischer (1986; Linville, Fischer e Salovey,
1989; Linville e Fischer, 1993) as pessoas armazenam informação acerca de
‘exemplares’ da categoria, isto é, membros individualizados do grupo ou diferentes
subtipos do grupo, não sendo armazenadas na memória quaisquer abstracções acerca da
variabilidade grupal. De notar que, segundo Linville e colaboradores, os subtipos são
registados a título de exemplares concretos, isto é, não têm estatuto particular nos
julgamentos de variabilidade. No momento de efectuar um julgamento, o indivíduo
estima o grau de variabilidade - calcula os índices de tendência central e de dispersão -
somente na base da recuperação de informação acerca dos exemplares (exemplar level
information). Como a interacção com os membros do endogrupo é, usualmente, mais
frequente e numa maior variedade de contextos, pode ser recuperada informação mais
diferenciada acerca dos exemplares do endogrupo do que acerca dos exemplares do
exogrupo. Deste modo, o exogrupo é percebido como mais homogéneo do que o
endogrupo.
Assim, o modelo de Linville explica o efeito de homogeneidade do exogrupo
essencialmente a partir da familiaridade diferencial com os exemplares. De acordo com
este modelo, como conhecemos tantos homens como mulheres, uma repartição dos
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
231
grupos baseada puramente no sexo não deveria dar origem ao efeito de homogeneidade
do exogrupo (Linville et al., 1989). No entanto, Park e Judd (1990) mostram que a
ausência de diferenças na homogeneidade percebida entre grupos sexuais, defendida por
Linville e colaboradores, depende do índice de variabilidade que é escolhido. Se é
verdade que a medida relativa à probabilidade de diferenciação (Pd) não apresentou
diferença significativa (Linville et al., 1989), tal não se verificou em outras medidas de
dispersão percebida (por exemplo, a amplitude) nem nas medidas de conformidade com
o estereótipo. Além disso, o efeito de homogeneidade do exogrupo entre grupos sexuais
tem sido evidenciado em pesquisas realizadas por diversos investigadores (e.g.,
Lorenzi-Cioldi, 1993; Lorenzi-Cioldi et al., 1995; Mackie et al., 1993; Park e Rothbart,
1982).
Judd e Park (1988; Park e Judd, 1990) argumentam que, em adição à informação
acerca dos ‘exemplares’, é também armazenada na memória informação ‘abstracta’
acerca do grupo como um todo (group level information). Na opinião dos autores, as
abstracções acerca da variabilidade grupal, com inclusão da sua tendência central e da
sua dispersão, são também armazenadas na memória. Assim, os julgamentos de
variabilidade seriam baseados na recuperação das abstracções acerca da variabilidade
grupal. A informação recuperada acerca de exemplares também pode influenciar estes
julgamentos, mas esta teria menor probabilidade de ser usada para os julgamentos da
variabilidade do exogrupo do que para os julgamentos de variabilidade do endogrupo.
Consequentemente, a relativa heterogeneidade do endogrupo seria maior e o exogrupo
seria avaliado como mais homogéneo do que o endogrupo. O modelo de Judd e Park
atribui muito menor peso à familiaridade do que o de Linville e colaboradores, baseado
unicamente na recuperação de exemplares. Em contrapartida, atribui maior peso às
expectativas, às ideias pré-estabelecidas sobre a homogeneidade do grupo, que podem
filtrar a codificação e recuperação dos exemplares e as suas interpretações.
Park, Judd e Ryan (1991) sugerem vários factores que afectam o processo de
codificação ou de recuperação da informação, sendo responsáveis pelo uso diferencial
de informações sobre ‘exemplares’ para os julgamentos do endogrupo e do exogrupo.
Primeiro, existe uma maior motivação para a exactidão nos julgamentos do endogrupo
do que nos julgamentos do exogrupo. Segundo, diferentes níveis de experiência ou de
familiaridade com o endogrupo podem significar mais exemplares disponíveis, e mais
variados, do endogrupo do que do exogrupo. Terceiro, o uso diferencial do self,
Racismo e Etnicidade em Portugal
232
elemento saliente e único, como um exemplar do endogrupo pode influenciar os
julgamentos sobre o endogrupo mas não os julgamentos sobre o exogrupo. Assim, os
indivíduos confiariam nas crenças pré-existentes acerca da homogeneidade grupal
quando julgando a variabilidade do exogrupo, mas alterariam essas crenças na base da
recuperação de exemplares quando julgando a variabilidade do endogrupo.
Ostrom, Carpenter, Sedikides e Li (1993) postulam que a informação armazenada
sobre o endogrupo e o exogrupo é estruturada de forma diferente. Mais especificamente,
a informação relativa ao endogrupo é estruturada sob a forma de ‘categorias pessoais’
(person categories) enquanto que a informação sobre o exogrupo é estruturada sob a
forma de ‘atributos categoriais’ relacionados com o estereótipo grupal. Segundo estes
autores, os julgamentos da variabilidade grupal envolvem, por vezes, a procura desta
informação armazenada. A procura de tais estruturas cognitivas produziria informação
individualizada para o endogrupo e informação baseada nas semelhanças categoriais
para o exogrupo. Assim, o endogrupo seria percebido como relativamente heterogéneo,
enquanto o exogrupo seria percebido como relativamente homogéneo.
Por seu turno, Kashima e Kashima (1993) consideram que a percepção da
variabilidade grupal é uma função aditiva do conjunto das semelhanças e das diferenças
entre os membros do grupo. Este modelo - Dual Predictor Model - é adaptado do
modelo de Tversky (1977; citado por Kashima e Kashima, 1993) sobre os julgamentos
de semelhança. De acordo com Tversky, a semelhança entre dois exemplares é
duplamente determinada pelo número de características que esses dois exemplares
partilham e pelo número de características distintas de cada exemplar. Quando aumenta
o número de características partilhadas, aumenta a semelhança e quando aumenta o
número de características distintas, a semelhança diminui. Kashima e Kashima sugerem
que os julgamentos de variabilidade grupal são essencialmente julgamentos sobre a
semelhança entre os membros do grupo. Quando é pedido um julgamento de
variabilidade, são recuperados os exemplares do grupo disponíveis na memória e são
comparadas as suas semelhanças e diferenças. Com base no número global de
semelhanças e de diferenças nos exemplares recuperados é formada uma estimativa
global da variabilidade grupal. De acordo com este modelo, o efeito de homogeneidade
do exogrupo resulta da utilização diferencial das informações de semelhança e de
diferença nos julgamentos do endogrupo e do exogrupo.
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
233
De acordo com Kraus, Ryan, Judd, Hastie e Park (1993), as pessoas criam
espontaneamente distribuições mentais de frequências que resumem o número de
membros do grupo que apresentam determinados atributos em diferentes níveis de
várias dimensões. Quando é requerido um julgamento de variabilidade, os participantes
recuperam estas distribuições e baseiam os seus julgamentos de variabilidade no
número de níveis (subtipos) usados para discriminar entre os membros do grupo nos
vários atributos. De acordo com este modelo, o efeito de homogeneidade do exogrupo
ocorre porque os membros do endogrupo são espontaneamente classificados ao longo
de um maior número de subtipos qualquer que seja a dimensão em causa. Na opinião
dos autores, isto ocorre porque as pessoas estão mais interessadas em detalhes
diferenciados e individualizados sobre os membros do endogrupo do que sobre os
membros do exogrupo.
Estes diferentes modelos cognitivos diferem no grau em que assumem que os
julgamentos de variabilidade são efectuados em directo (on-line) ou em diferido
(memory-based), aspectos que não cabe explorar no âmbito deste trabalho. Mackie et al.
(1993) efectuaram duas experiências na tentativa de testar o poder explicativo destes
diferentes modelos, no entanto, não chegaram a resultados conclusivos. Globalmente, os
modelos cognitivos da percepção da variabilidade grupal apresentam uma preocupação
quase exclusiva com os ‘microprocessos’ intraindividuais de natureza estreitamente
cognitiva, embora tenham em consideração alguns aspectos de ordem motivacional.
Uma das críticas que têm sido apontadas a estes modelos é a negligência do contexto
intergrupal em que os julgamentos de variabilidade ocorrem. Ao focalizar-se na forma
como os participantes lidam com a ‘informação objectiva’ que lhes é fornecida sobre
determinado grupo, a perspectiva da cognição social esquece que o significado dessa
informação é determinado pelo contexto envolvente. Como referem Oakes e Turner:
“For social-psychological purposes it does not seem appropriate to define
'information' in the abstract. Information is what the perceiver needs to know at a
given moment in order to represent reality such as he can achieve his goals.
Categorization works to maximize information in this sense (e.g. Rosch, 1978, p.28)
by selectively drawing out aspects of structure, of similarity and difference in
stimulus information, which are relevant to the perceiver's current requirements
within the stimulus context as a whole” (1990, p.121).
Racismo e Etnicidade em Portugal
234
No início da década de noventa, diversas linhas de pesquisa inspiradas na teoria
da identidade social (Tajfel e Turner, 1979) ou nos seus desenvolvimentos mais
recentes, vieram demonstrar a necessidade de estudar a percepção da variabilidade
grupal tendo em conta o contexto social (e.g., Brewer, 1993; Oakes, Haslam e Turner,
1994; Simon, 1992a). A investigação desenvolvida neste âmbito conduziu à
identificação de diversos factores que contribuem para uma atenuação do efeito de
homogeneidade do exogrupo e até a sua eventual substituição pelo efeito de
homogeneidade do endogrupo.
Na década de oitenta a maior parte dos autores da cognição social, era da opinião
de que o efeito de homogeneidade do exogrupo se manifestava de forma simétrica para
ambos os grupos em presença:
“(a) the perception of variability within a group is influenced by one's status as an
in-group or out-group member, and (b) the effect should be symmetrical for both
parties of the in-group - out-group dichotomy” (Park e Rothbart, 1982, p.1052).
No entanto, os estudos explorando o impacto da identidade social na percepção
dos grupos sociais apontaram para uma manifestação assimétrica deste fenómeno
conforme o estatuto dos grupos em presença (e.g., Lorenzi-Cioldi, 1993; Simon, 1992a).
No início dos anos noventa, numa revisão de literatura sobre a importância do contexto
na percepção da variabilidade grupal, Simon (1992a) conclui que:
“the outgroup homogeneity effect (...) is by no means a universal law - rather, both
outgroup and ingroup homogeneity effects are found - and that models of category
representation which ignore the influence of intergroup context are insufficient”
(p.1).
Na opinião do autor considera, os modelos cognitivos da percepção da
variabilidade grupal não permitem explicar o aparecimento do efeito da homogeneidade
do endogrupo, salientando a necessidade de atribuírem maior peso a variáveis
motivacionais e contextuais. Simon (1992a) examina três factores moderadores da
variabilidade grupal percebida ligados ao contexto intergrupal: a relação numérica entre
endogrupo e o exogrupo; a relevância das dimensões ou atributos em questão para a
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
235
definição da identidade social dos membros do endogrupo e dos membros do exogrupo;
e os estereótipos grupais socialmente predominantes. Seguidamente, iremos apresentar
algumas experiências em que estes factores do contexto foram tidos em consideração, e
cujos resultados apontam para uma manifestação assimétrica do efeito de
homogeneidade do exogrupo.
A tipicabilidade dos traços ou dimensões julgados, isto é, a sua importância para
a identidade social dos membros do grupo, parece ser um factor moderador do efeito de
homogeneidade do exogrupo. Simon (1990, citado por Simon, 1992a), recorrendo a
experiências com ‘grupos mínimos’, verificou que o exogrupo era percebido como mais
homogéneo nos traços típicos deste, o mesmo acontecendo com o endogrupo. A questão
da tipicabilidade das escalas de avaliação utilizadas tem consequências teóricas
importantes. Se as diferenças na dispersão percebida derivam da confiança do indivíduo
nos estereótipos, então estes efeitos deveriam ser observados apenas nos traços
estereotípicos. Se, por outro lado, as diferenças derivam de uma crença global, não
específica, de que os membros do exogrupo são todos parecidos uns com os outros,
então o efeito de homogeneidade do exogrupo deveria ser obtido tanto em traços
estereotípicos como em traços irrelevantes para o estereótipo (Simon, 1992a).
Quando a identidade social está saliente, tanto o efeito de homogeneidade do
exogrupo como o efeito de homogeneidade do endogrupo são prováveis de ocorrer,
dependendo dos atributos específicos em questão (Simon, 1990, 1992b). Isto é,
independentemente da posição maioritária ou minoritária dos grupos, é muito provável
ocorrer o efeito de homogeneidade do endogrupo nos atributos relevantes para a
identidade social respectiva, enquanto que o efeito de homogeneidade do exogrupo é
esperado nos atributos tipicamente associados com o exogrupo.
Simon (1992a) argumenta que o exogrupo tem, geralmente, maior probabilidade
de se tornar uma entidade social saliente do que o endogrupo. Isto implica que os
atributos típicos do exogrupo apresentem maior probabilidade de serem activados
espontaneamente do que os traços típicos do endogrupo. Assim, os julgamentos de
variabilidade podem ser feitos espontaneamente em referência aos traços típicos do
exogrupo. Por exemplo, quando a variabilidade é julgada sem referência explícita a
traços específicos (e.g., Park e Rothbart, 1982, Exp.3), os julgamentos da variabilidade
geral podem ser largamente determinados pelos pressupostos acerca da variabilidade do
endogrupo e do exogrupo em atributos típicos do exogrupo. No conjunto, então, a
Racismo e Etnicidade em Portugal
236
homogeneidade percebida do exogrupo deveria exceder a homogeneidade percebida do
endogrupo. Por outro lado, quando a identidade social está ameaçada, o endogrupo
tornar-se-ia uma entidade social mais saliente, e nesta sequência, os membros do grupo
fariam espontaneamente julgamentos de variabilidade tendo como referência os traços
típicos do endogrupo, o que se traduziria no efeito de homogeneidade do endogrupo.
O tamanho relativo dos grupos parece ser outro factor moderador do efeito da
homogeneidade do outgroup. Mullen e Hu (1989) verificaram que este efeito é mais
forte quando o endogrupo está em maioria numérica face ao exogrupo. Este efeito foi
obtido em várias experiências com ‘grupos mínimos’: os membros das minorias
consideraram o endogrupo como mais previsível e menos variável do que o exogrupo,
enquanto que para os membros das maiorias se verificou o efeito inverso (e.g., Simon e
Brown, 1987; Simon e Mummendey, 1990; Simon e Pettigrew, 1990). Outras pesquisas
também demonstraram o efeito de homogeneidade do endogrupo para membros de
minorias com grupos ‘naturais’ (e.g., Brown e Smith, 1989; Mullen e Hu, 1989).
De acordo com Simon, a percepção da variabilidade grupal está relacionada não
somente com a posição explícita de maioria ou minoria dos grupos, mas também com os
pressupostos implícitos dos membros do grupo acerca da sua posição maioritária ou
minoritária. Numa experiência com ‘grupos mínimos’, Simon e Mummendey (1990)
criaram duas condições experimentais: condição ‘paridade’ (50% ingroup / 50%
outgroup) e condição ‘não informação’ (os participantes não recebiam informação
acerca do tamanho dos grupos). Seguindo apesquisa sobre o falso consenso (Rose,
Greene e House, 1977; citados por Simon e Mummendey, 1990), os autores esperavam
que os participantes da condição ‘não informação’ sobrestimassem o tamanho relativo
do endogrupo. Assim, na ausência de informação explícita acerca do tamanho relativo
do grupo, os membros do grupo vêm-se a si próprios como membros de uma maioria.
Na condição ‘paridade’, o efeito de homogeneidade do exogrupo foi mais fraco, tal
como era esperado pelos autores.
Na opinião de Simon (1992a), os indivíduos utilizam o conhecimento do tamanho
do grupo como uma heurística para estimar a variabilidade grupal, sendo os grupos
maiores considerados mais heterogéneos do que os grupos menores. Assim, quando o
endogrupo está em minoria numérica, é provável verificar-se o efeito da homogeneidade
do endogrupo. As situações intergrupais na vida real são frequentemente caracterizadas
por uma assimetria em termos de tamanho dos grupos envolvidos. Simon (1992a) refere
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
237
que nas culturas ocidentais (com um ênfase ideológico na regra da maioria) a
inferioridade numérica é provavelmente associada ao erro, ao desvio ou à fraqueza
(Festinger, 1954; Gerard, 1985; Sachdev e Bourhis, 1984; Sherif, 1966; citados por
Simon, 1992a). Assim, este autor considera que, ser membro de uma minoria pode
constituir uma ameaça à auto-estima, e por isso os membros de uma minoria estariam
motivados para contrariar esta ameaça, acentuando a sua identidade social positiva.
Percepcionar maior homogeneidade no endogrupo do que no exogrupo seria um meio
para alcançar esse fim. À maior homogeneidade do grupo seria associado um valor mais
alto de ‘groupness’, que constitui uma medida de suporte social e solidariedade que o
grupo oferece aos seus membros (Allen, 1985; citado por Simon, 1992a). Neste sentido,
a relativa homogeneidade do endogrupo prometeria superioridade deste grupo em
termos de suporte e solidariedade intragrupal. Resumindo:
“minority members were expected to perceive more ingroup than outgroup
homogeneity, while non-minority members, being less motived to accentuate their
positive social identity, were expected to show the usual outgroup homogeneity
effect” (Simon, 1992a, p.5).
A posição do grupo como maioria ou minoria tem sido aqui definida em termos
numéricos. No entanto, como referimos no primeiro capítulo, as maiorias ou minorias
numéricas têm de ser distinguidas das maiorias e minorias sociais, que habitualmente
são definidas em termos do estatuto social do grupo (dominante versus dominado)
(Deschamps, 1982a; Lorenzi-Cioldi, 1988; Tajfel, 1981/1983). Embora nos contextos
intergrupais da vida real, a assimetria numérica maioria/minoria coincida,
frequentemente, com as assimetrias de poder ou de estatuto, de tal forma que a
maioria/minoria numérica seja também uma maioria/minoria social (Farley, 1982;
citado por Simon, 1992a), existem numerosas excepções a esta regra, sendo a mais
óbvia de todas a categoria ‘mulheres’. Por consequência, os resultados obtidos com as
maiorias ou minorias numéricas não devem ser acriticamente generalizados para as
maiorias ou minorias sociais.
Simon, Glässner-Bayerl e Stratenwerth (1991), num estudo com grupos naturais,
examinaram as percepções da variabilidade grupal em membros de uma minoria
estigmatizada (homens homossexuais) e membros da correspondente maioria dominante
Racismo e Etnicidade em Portugal
238
(homens heterossexuais). Os autores esperavam que os membros da minoria
estigmatizada participassem nas crenças socialmente prevalentes, isto é, nas crenças da
maioria heterossexual. Essas crenças, incluindo crenças sobre a variabilidade dos
homossexuais e dos heterossexuais, seriam, muito provavelmente, partilhadas para além
das fronteiras do grupo. A tarefa dos participantes (homens homossexuais e
heterossexuais) consistia em julgar a distribuição de frequências de vários atributos,
tanto para o endogrupo como para o exogrupo: conotados positiva ou negativamente e
tipicamente associados aos homossexuais ou aos heterossexuais.
Foram utilizadas três medidas de variabilidade grupal percebida: a amplitude da
distribuição; o desvio-padrão; e a probabilidade de diferenciação. Verificou-se que, para
os participantes heterossexuais, o efeito de homogeneidade do exogrupo foi a regra, mas
com uma excepção: foi atribuída maior variabilidade ao exogrupo nos atributos
conotados positivamente e típicos dos heterossexuais. Contrariamente, para os
participantes homossexuais, o efeito de homogeneidade do endogrupo foi a regra, mas
novamente com uma excepção: foi atribuída maior variabilidade ao endogrupo nos
atributos positivos típicos dos heterossexuais. Na opinião dos autores, a explicação mais
parcimoniosa para este padrão de resultados é que existe uma forte crença na sociedade
(alemã) que os homossexuais são mais semelhantes uns aos outros do que os
heterossexuais, em quase todos os atributos relevantes. Por consequência, os
participantes homossexuais e heterossexuais, como membros da mesma sociedade,
partilhariam essa crença. No entanto, este padrão de resultados não foi observado na
homogeneidade geral. Quando os julgamentos não se referiam a atributos específicos,
mas a semelhanças ou diferenças em geral, tanto homossexuais como heterossexuais
atribuíram significativamente maior homogeneidade ao exogrupo do que ao endogrupo.
Na opinião de Simon, o acordo entre ambos os grupos de participantes em relação
à variabilidade percebida dos dois grupos-alvo sugere que os efeitos de homogeneidade
observados não são efeitos ‘puros’ da categorização social:
“ingroup-outgroup categorizations do not operate in a social vacuum and, more
specifically, that socially shared stereotypes are important co-determinants of the
homogeneity one ascribes to one's own as well as to other groups” (1992a, pp.22-
23).
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
239
Simon (1992a) considera a percepção da homogeneidade grupal como uma
componente central do processo de estereotipia. Na acepção deste autor, o efeito de
homogeneidade do exogrupo pode ser visto como um indicador da estereotipia do
exogrupo e, paralelamente, o efeito de homogeneidade do endogrupo pode ser
interpretado como um indicador da estereotipia do endogrupo ou da auto-estereotipia.
Na opinião de Simon e colaboradores (1991), as percepções da homogeneidade grupal,
tal como os estereótipos sociais, são socialmente partilhadas. No global, os membros da
maioria dominante vêem a minoria em termos mais estereotipados, isto é, como mais
homogénea, do que a maioria dominante. Os membros da minoria estigmatizada, pelo
menos ao nível dos atributos específicos, partilham a visão da maioria. Assim, a
percepção da variabilidade grupal não depende somente da perspectiva do observador
(se o grupo em questão é o endogrupo ou o exogrupo) mas também dos estereótipos e
das crenças específicas (acerca dos grupos em questão) predominantes no contexto
social ou intergrupal.
De acordo com Simon, os modelos da representação cognitiva que ignoram a
influência do contexto intergrupal no processamento da informação social são
demasiado estáticos para dar conta da plasticidade observada na percepção da
variabilidade grupal. Neste sentido, Simon (1992a, 1993) propõe um modelo -
Egocentric Social Categorization (ESC-model) - que se baseia na premissa de que, pelo
menos nas culturas ocidentais, com a sua orientação individualista, a diferenciação
cognitiva do mundo social, por parte do observador, é egocêntrica, isto é, a distinção
básica que o indivíduo faz no mundo social é a distinção entre as categorias ‘eu’ (me) e
‘não-eu’ (not-me). Este egocentrismo facilita a construção cognitiva da categoria
exogrupo relativamente à categoria endogrupo:
“Outgroups are construed simply by futher subcategorization of the category NOT-
ME, while the cognitive construal of ingroups requires a shift in the dominant social
categorization from ME vs. NOT-ME to WE vs. THEY. This shift, however,
presupposes social identification processes. Thus, unless these processes are
triggered, an asymmetry in the cognitive construal of outgroups and ingroups is to
be expected. Outgroups are more likely to be construed as homogeneous social
categories or groups (group level representation) than ingroups, which are instead
construed more in termes of heterogeneous aggregates of individual exemples
(exemplar-level representation). Perceived relative outgroup homogeneity is then the
likely cognitive outcome” (1992a, p.24).
Racismo e Etnicidade em Portugal
240
Como referimos, Simon critica os modelos cognitivos por não terem em
consideração o papel mediador do contexto intergrupal. No entanto, o ESC-model,
claramente inspirado na teoria da auto-categorização (ver ponto 2.3.2), parece-nos
igualmente limitativo. Ao estipular a orientação egocêntrica como uma característica
universal (pelo menos nas sociedades ocidentais), este modelo aplica-se sobretudo aos
membros dos grupos dominantes. Colocando as estratégias de diferenciação do
indivíduo enquanto indivíduo como o motor explicativo de todo o processo, este modelo
parece esquecer as determinantes sociais que, como o próprio autor salienta, têm um
papel determinante no processamento da informação sobre os grupos sociais.
Lorenzi-Cioldi, debruçando-se igualmente sobre a influência do contexto na
percepção da variabilidade grupal, aborda esta questão segundo uma perspectiva
diferente. Tendo como referência teórica o modelo da dominação (ver ponto 2.3.2),
Lorenzi-Cioldi (1988) considera que o estatuto dos grupos em presença constitui um
factor modelador da percepção da variabilidade grupal. Os grupos distinguem-se dentro
da estrutura social em função, nomeadamente das suas propensões para invocar a
indiferenciação e a intermutabilidade dos seus membros - os grupos ‘dominados’ - ou,
no caso oposto, a unicidade e diferenciação dos seus membros - os grupos ‘dominantes’.
Neste sentido, pode esperar-se que os grupos ‘dominantes’ manifestem o efeito de
homogeneidade do exogrupo de forma mais intensa do que os grupos ‘dominados’.
Nestes últimos, este enviesamento deverá atenuar-se até, eventualmente, à aparição de
um efeito de homogeneidade do endogrupo (Lorenzi-Cioldi, 1993).
Para desenvolver esta ideia, o autor realizou uma experiência baseado no
paradigma de Taylor et al. (1978). O efeito de homogeneidade do exogrupo traduz-se
neste paradigma por um maior número de erros intracategorias em relação aos membros
do exogrupo (erros exogrupais) do que em relação aos membros do endogrupo (erros
endogrupais), isto é, os participantes são capazes de fazer discriminações mais finas
dentro do seu endogrupo.
Para que o paradigma de Taylor et al. (1978) constituísse um instrumento útil para
o exame da hipótese relativa à assimetria das categorias sociais ao nível do efeito de
homogeneidade do exogrupo, Lorenzi-Cioldi (1993) introduziu algumas alterações
neste dispositivo experimental. Como o autor refere, nos estudos realizados por outros
autores, os temas de discussão escutados pelos participantes foram muito variados, mas,
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
241
na maior parte dos casos, estes temas não estavam ligados ao critério de categorização
social em questão.
Neste sentido, Lorenzi-Cioldi (1993) substituiu o paradigma ‘Quem disse o quê?’
pelo paradigma ‘Quem estava onde?’. A principal característica do paradigma ‘Quem
estava onde?’ consiste precisamente em tomar em consideração os conteúdos que estão
em relação com o critério da categorização dos grupos em presença. Assim, Lorenzi-
Cioldi para testar a hipótese da assimetria entre homens (grupo ‘dominante’) e mulheres
(grupo ‘dominado’) manipulou os contextos: contextos ‘privados’ (domésticos); e
contextos ‘públicos’ (ligados ao local de trabalho). A escolha deste tipo de manipulação
deveu-se ao facto de a dicotomia privado versus público estar bastante presente na
literatura sobre estereótipos sexuais.
Na opinião de Lorenzi-Cioldi, a manipulação dos contextos pertinentes permite
ancorar as percepções na realidade social e desta forma activar de forma mais eficaz a
categorização endogrupo/exogrupo. Os resultados deste estudo forneceram algum apoio
à hipótese da assimetria: o efeito de homogeneidade do exogrupo manifestou-se de
forma mais intensa nos homens do que nas mulheres, isto é, os homens efectuaram um
maior número de erros endogrupais (erros intracategoriais em relação ao exogrupo) do
que as mulheres, embora esta diferença seja apenas ligeiramente significativa. Os
resultados evidenciaram também que as mulheres são mais sensíveis à manipulação do
contexto: homogeneizaram o exogrupo (grupo masculino) de forma mais intensa nos
contextos privados (‘situação incongruente’) do que nos contextos públicos (‘situação
congruente’).
Estes resultados apontam no sentido de o estatuto social dos grupos constituir um
factor modelador da percepção da homogeneidade grupal: os membros do grupo
dominante manifestam o efeito de homogeneidade do exogrupo de forma mais intensa
do que os membros do grupo dominado. Nestes últimos, o efeito de homogeneidade do
exogrupo atenua-se, podendo, em determinadas circunstâncias verificar-se o efeito
inverso, isto é, o efeito de homogeneidade do endogrupo. De acordo com estes
resultados e parafraseando a célebre afirmação de Quatrone e Jones (1980), o autor
afirma: “They all look alike, but so do we... sometimes” (Lorenzi-Cioldi, 1993, p.111).
Cabecinhas (1994) realizou a primeira investigação experimental sobre esta
problemática em Portugal. Utilizando uma adaptação do paradigma experimental de
Taylor et al. (1978), foram considerados dois critérios de categorização – a cor da pele
Racismo e Etnicidade em Portugal
242
(branco/negro: Estudo 1) e o sexo (homem/mulher: Estudo 2) – e foi manipulado o
contexto através do tema de conversação – relevante (relações inter-étnicas no Estudo 1
e namoro no Estudo 2) ou irrelevante (vida académica em ambos os estudos).
Verificou-se um forte efeito de categorização, isto é, os participantes usaram a cor da
pele (Estudo 1) ou o sexo (Estudo 2) como estratégia para codificar, memorizar e
recuperar a informação sobre as pessoas-estímulo apresentadas. Este efeito foi
influenciado pelo contexto no caso da categorização racial, mas não no caso da
categorização sexual, o que demonstra que embora ambas categorizações sejam
extremamente poderosas e cronicamente acessíveis a sexual é mais forte do que a racial.
Os resultados de ambos os estudos evidenciaram uma manifestação assimétrica do
efeito de homogeneidade do exogrupo: globalmente, os membros dos grupos
‘dominados’ (negros num estudo e mulheres no outro) foram mais homogeneizados do
que os membros dos grupos ‘dominantes’ (brancos num estudo e homens no outro),
independentemente do grupo de pertença do observador.
Estudos posteriores realizados por Lorenzi-Cioldi e colaboradores vieram
confirmar esta assimetria nos efeitos de homogeneidade em função do estatuto relativo
dos grupos, tanto com grupos ‘naturais’ (e.g., Dafflon, 1997; Lorenzi-Cioldi, Eagly e
Stewart, 1995; Lorenzi-Cioldi, Deaux e Dafflon, 1998) como com grupos ‘mínimos’,
cujo processo de criação implicou uma adaptação no paradigma experimental original
(Tajfel et al., 1971) de modo a que os grupos artificialmente criados tivessem estatutos
assimétricos (e.g., Lorenzi-Cioldi, 1998, estudos 6,7, 8 e 9).
Estudos realizados por outros autores, e recorrendo a diferentes tipos de grupos,
vieram confirmar que os grupos com menor estatuto social são mais homogeneizados do
que os grupos com maior estatuto (e.g., Boldry e Kashy, 1999; Sedikides, 1997;
Stewart, Vassar, Sanchez e David, 2000). Este padrão de resultados não é explicável no
âmbito dos modelos cognitivos (e.g., Linville et al., 1989; Park e Judd, 1990) nem no
âmbito dos modelos nos quais as assimetrias na percepção de homogeneidade são
explicadas por factores meramente contextuais ligados ao princípio do meta-contraste
(e.g., Oakes et al., 1994). A compreensão dos complexos padrões de homogeneização e
heterogeneização exige a consideração de variáveis de ordem ideológica ou estrutural,
que determinam que as posições em que os indivíduos se encontram num dado
momento não são intermutáveis.
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
243
Esta discussão sobre as assimetrias verificadas nos efeitos de homogeneidade em
função do estatuto relativo dos grupos prende-se com a questão dos níveis de análise na
investigação em psicologia social. Ao distinguir quatro níveis de análise nos trabalhos
dos psicólogos sociais (ver introdução geral), Doise pretendia salientar a necessidade de
articulação entre esses diferentes níveis para o alcance de explicações mais completas
sobre os fenómenos. Na opinião deste autor, é precisamente o trabalho de articulação
que constitui o objecto próprio da psicologia social experimental. Sem este trabalho, as
explicações propostas permanecerão necessariamente incompletas (Doise, 1982b,
1999). O autor considera o estudo das relações intergrupais como uma área em que a
articulação entre vários níveis de análise é indispensável:
“Nem o psicológico nem o sociológico bastam para estudar as relações intergrupos,
(...) um estudo psicossociológico (...) completa estas duas abordagens” (Doise,
1976/1984, p.87).
Racismo e Etnicidade em Portugal
244
3.5 Questões metodológicas no estudo da variabilidade grupal percebida
“?...? la méthodologie n’est pas l’arbitre mais un protagoniste de premier plan
dans la recherche et le progrès des sciences sociales”.
Fabio Lorenzi-Cioldi, 1997
Nos primeiros estudos sobre a percepção da variabilidade dos grupos sociais
foram utilizados diferentes tipos de medidas, sendo a maior parte de natureza descritiva:
a intensidade das inferências a partir de um membro da categoria para a categoria como
um todo (e.g., Quattrone e Jones, 1980); o número de dimensões usadas para descrever
o grupo (e.g., Linville e Jones, 1980); o grau de confiança no estereótipo (e.g., Park e
Rothbart, 1982); a estimação de distribuições (e.g., Linville et al., 1989); a listagem de
subtipos do grupo (e.g., Park, Judd e Ryan, 1991).
A preocupação com os mediadores cognitivos do efeito de homogeneidade do
exogrupo conduziu ao desenvolvimento de novas medidas da variabilidade grupal
percebida: o tempo de reacção (e.g., Mackie, Sherman e Worth, 1993); a organização da
informação em tarefas de recordação livre (e.g., Carpenter, 1993; Ostrom, Carpenter,
Sedikides e Li, 1993); os erros na recuperação da informação em tarefas de recordação
indiciada (e.g., Lorenzi-Cioldi, 1993); a memória diferencial para atributos supra e
subordinados (e.g., Park e Rothbart, 1982).
As técnicas usadas para medir a variabilidade grupal percebida têm sido
classificadas de diversas formas (Devos et al., 1996; Linville et al., 1986; Ostrom e
Sedikides, 1992; Park e Judd, 1990; Quattrone, 1986; Voci, 2000).
Numa das primeiras revisões de literatura sobre a percepção da variabilidade
grupal, Quattrone (1986) distingue três aspectos da percepção da variabilidade: a
‘variabilidade dimensional’ refere-se às crenças acerca da distribuição dos membros de
um grupo ao longo de várias dimensões psicológicas; a ‘variabilidade taxonómica’
relaciona-se com a forma como essas dimensões psicológicas ou atributos covariam
(quanto maior a correlação entre os atributos característicos de um dado grupo, menor
número de subtipos são reconhecidos dentro do grupo; inversamente, quanto menor a
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
245
correlação entre os atributos maior número de subtipos podem ser distinguidos dentro
do grupo); a ‘variabilidade geral’ é frequentemente medida interrogando os
participantes acerca do grau médio de variabilidade percebida.
Por seu turno, Park e Judd (1990; Park, Judd e Ryan, 1991) distinguem três
famílias de medidas da variabilidade percebida: a conformidade com o estereótipo ou
estereotipicalidade; a dispersão percebida; e a variabilidade global.
A conformidade com o estereótipo relaciona-se com a percepção do grau em que
os membros do grupo se ajustam aos estereótipos grupais (e.g., Bartsch e Judd, 1993;
Park e Judd, 1990; Park, Judd e Ryan, 1991; Park e Rothbart, 1982; Quattrone e Jones,
1980). Por exemplo, pode ser obtido pedindo aos participantes para estimar a
percentagem de membros do grupo que apresentam determinados traços estereotípicos e
traços contra-estereotípicos: quanto maior for a diferença entre os traços estereotípicos e
traços contra-estereotípicos grupal maior a conformidade com o estereótipo. Este tem
sido considerado como um dos índices mais robustos de estereotipicalidade (Park e
Judd, 1990).
Ostrom e Sedikides (1992) consideram que há uma dificuldade séria com a
utilização dos índices de estereotipicalidade como medidas da variabilidade percebida
devido à interferência do favoritismo endogrupal: os participantes têm tendência a
atribuir características mais desejáveis ao endogrupo e características mais indesejáveis
ao exogrupo. Consequentemente, as classificações nos índices de conformidade com o
estereótipo deverão ser baseadas em igual número de atributos positivos e negativos
para cada um dos grupos (Park e Rothbart, 1982; Ostrom e Sedikides, 1992) o que nem
sempre tem sido respeitado pelos investigadores. Por exemplo, Bartsch e Judd (1993)
avaliaram a conformidade com os estereótipos sexuais a partir de quatro atributos
característicos de cada um dos grupos. No entanto, 3 dos 4 atributos estereotípicos
femininos tinham uma valência negativa enquanto apenas 2 dos 4 atributos
estereotípicos masculinos tinham valência negativa.
As medidas de dispersão percebida apresentam aos participantes o mesmo tipo de
escalas de respostas que são usadas na determinação da conformidade com o
estereótipo, mas em vez de se ter em consideração a média das pontuações, têm em
conta a sua dispersão (e.g., Jones et al., 1981; Judd et al., 1991; Judd e Park, 1988;
Linville et al., 1989; Park e Judd, 1990; Simon e Brown, 1987; Simon e Pittegrew,
1990; Wilder, 1984). Por exemplo, o índice amplitude é obtido pedindo aos
Racismo e Etnicidade em Portugal
246
participantes para indicar os membros mais extremos de um dado grupo em
determinado traço. A diferença entre as duas pontuações fornece o índice de amplitude
percebida. Este tem sido considerado um dos mais robustos índices de dispersão (Park e
Judd, 1990).
Nas medidas de variabilidade global solicita-se directamente aos participantes
para estimarem a variabilidade de determinado grupo. Por exemplo, recorrendo a
escalas cujos extremos são designados com frases do tipo: ‘eles são todos diferentes’ vs.
‘eles são todos semelhantes’ (e.g., Park e Judd, 1990; Park e Rothbart, 1982; Quattrone
e Jones, 1980).
Na nossa opinião estas classificações de medidas deixa de fora aquelas que são
potencialmente mais promissoras para a compreensão dos processos envolvidos na
percepção da variabilidade grupal, isto é, as medidas ‘indirectas’. Podemos considerar
as medidas de estereotipicalidade, dispersão e variabilidade global como medidas
‘directas’ ou ‘explícitas’, uma vez que os participantes podem facilmente aperceber-se
dos objectivos da investigação e ‘controlar’ as suas respostas. Em contrapartida, as
medidas ligadas à organização e à recuperação de informação em tarefas de recordação
ou ao tempo de resposta são designadas de medidas ‘indirectas’ ou ‘implícitas’ (pois
incidem sobre aspectos ‘automáticos’ que dificilmente podem ser conscientemente
controlados pelos participantes).
Com efeito, numa revisão de literatura anterior (Cabecinhas, Lorenzi-Cioldi e
Dafflon, 2002) sobre as diversas medidas da variabilidade percebida conduziu-nos a
algumas constatações. Primeiro, a grande maioria dos estudos sobre esta temática utiliza
apenas um tipo de medida (e.g., Judd, Ryan e Park, 1991; Park e Judd, 1990; Park, Ryan
e Judd, 1992, medidas de estereotipicalidade e de dispersão; Linville, Fischer, e
Salovey, 1989, medidas de dispersão; Carpenter, 1993, estudos 1 e 2; Ostrom,
Carpenter, Sedikides e Li, 1993, estudos 1, 2 e 3; Sedikides, 1997, estudos 1 e 2,
medidas de recordação livre e Lorenzi-Cioldi, 1993; 1998, estudos 5, 6 e 7; Lorenzi-
Cioldi, Deaux e Dafflon, 1998; Lorenzi-Cioldi, Eagly e Stewart, 1995, medidas de
recordação indiciada).
Segundo, os estudos em que são usadas várias medidas revelam inconsistências
nos padrões de homogeneização observados. Por exemplo, Park e Judd (1990) usaram
várias medidas directas conjuntamente: o efeito de homogeneidade do exogrupo não foi
Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal
247
observado em todas as medidas empregues e, além disso, as correlações entre as cinco
medidas directas utilizadas foram bastante baixas.
Terceiro, raramente são utilizadas medidas directas e indirectas (Carpenter, 1993,
estudos 1 e 2; Judd e Park, 1988; Ostrom, Carpenter, Sedikides, e Li, 1993, estudos 1, 2
e 3). Destes seis estudos, apenas dois obtiveram resultados concordantes entre as
medidas directas e indirectas (Carpenter, 1993, estudo 1; Ostrom et al., 1993, estudo 1).
Nos outros três estudos levados a cabo por Carpenter (1993, estudo 2) e Ostrom e
colaboradores (1993, estudo 2 e 3), o efeito de homogeniedade do exogrupo foi
evidenciado nas medidas indirectas mas não nas medidas directas (no entanto, a
inconsistência de resultados obtidos com as medidas directas e indirectas foi apenas
mencionada numa nota de roda-pé sem qualquer comentário). Judd e Park (1988)
também obtiveram resultados opostos com diferentes medidas directas (medidas de
dispersão) e medidas indirectas (medidas de recordação). Na condição de cooperação
intergrupal foi obtido um efeito de homogeneidade do exogrupo com medidas
indirectas, mas não com medidas directas, enquanto que na condição de competição se
verificou um efeito de homogeneidade do exogrupo nas medidas directas, mas não nas
medidas indirectas.
Quarto, alguns estudos sobre a percepção de variabilidade de grupos com estatuto
social assimétrico em que foram utilizadas medidas ‘indirectas’ ou ‘não-obstrusivas’
(por exemplo, o tipo de organização da informação na recordação livre e o tipo de erros
de associação da informação na recordação indiciada; Lorenzi-Cioldi, 1998) revelaram
padrões de resultados promissores. Com as medidas indirectas os participantes não estão
conscientes de que a sua tarefa diz respeito ao grau em que estes categorizam e
homogeneízam as pessoas em grupos. Isto constitui uma importante vantagem face às
medidas ‘clássicas’ ou ‘directas’ na medida em que os procedimentos que invocam
grupos de estatuto desigual tornam a tarefa dos participantes particularmente reactiva
(e.g., Wittenbrink, Judd, e Park, 1997).
Resumindo, a grande maioria dos estudos sobre a percepção da variabilidade
grupal usam apenas um tipo de medida e na maior parte dos casos os resultados
confirmam as suas previsões. Contudo, quando várias medidas são usadas, a
convergência dos resultados das diferentes medidas não é sistemática. Além disso, os
casos que apresentam maior inconsistência nos padrões de homogeneização advêm de
estudos que usam conjuntamente as medidas directas e indirectas.
Racismo e Etnicidade em Portugal
248
Uma vez que a magnitude dos efeitos de homogeneidade depende das
metodologias e do tipo específico de medidas usadas (e.g., Linville, Fischer, e Salovey,
1989; Park e Judd, 1990) é aconselhável o uso de diferentes tipos de medidas para uma
melhor compreensão dos processos envolvidos (Devos, Compy e Deschamps, 1996;
Marques e Paéz, 2000; Ostrom e Sedikides, 1992). As metodologias indirectas,
especificamente a recordação da informação sobre membros do endogrupo e do
exogrupo (Lorenzi-Cioldi, 1998; Sedikides, 1997) ou a construção de complexos índices
derivados da percepção interpessoal dentro e entre os grupos (Boldry e Kashy, 1999),
são particularmente adequadas para avaliar os efeitos de homogeneidade com grupos de
estatuto desigual. Mas só uma comparação dos resultados obtidos através de diferentes
tipos de medidas nos pode fornecer pistas para uma melhor compreensão dos processos
envolvidos. Este é um dos objectivos a que a nossa investigação pretende responder no
plano do debate metodológico.
PARTE II:
INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA
CAPÍTULO 4 -
ESTUDOS EXPLORATÓRIOS:
CATEGORIZAÇÃO E DIFERENCIAÇÃO
ENTRE GRUPOS ÉTNICOS
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
251
4.1 Introdução
Nesta investigação empírica prosseguimos objectivos de ordem teórica e de ordem
metodológica. No plano teórico, pretendemos aprofundar o conhecimento dos processos
cognitivos subjacentes à discriminação social, baseada na cor da pele, através de uma
articulação de níveis de análise. No plano metodológico, pretendemos comparar a
eficácia de diferentes tipos de medidas para a compreensão dos processos de tratamento
de informação discriminatórios.
Como referimos na introdução geral, a pesquisa empírica realizada será
apresentada em três capítulos: um dedicado aos estudos exploratórios; outro dedicado
aos estudos experimentais; e outro ao estudo correlacional. A explicitação dos
objectivos específicos de cada estudo e das respectivas hipóteses será efectuada estudo a
estudo, assim como a descrição das metodologias utilizadas.
Neste capítulo são apresentados e discutidos os resultados referentes a cinco
estudos exploratórios. Nos dois primeiros estudos averiguámos quais os grupos raciais
ou étnicos mais relevantes na sociedade portuguesa e de que forma estes são
percepcionados, o que nos permitiu seleccionar um grupo minoritário de origem
africana para os estudos subsequentes: os ‘angolanos’.
Uma vez tomada a decisão sobre os grupos-alvo a considerar nesta investigação –
os angolanos (grupo minoritário) e os portugueses (grupo maiortitário) – foram
efectuados três estudos sobre os auto- e os hetero-estereótipos de angolanos e de
portugueses. Estes três estudos sobre estereótipos, para além dos respectivos objectivos
específicos, foram realizados com o objectivo geral de seleccionar os materiais-estímulo
para os estudos experimentais subsequentes.
A metodologia adoptada na recolha e no tratamento dos dados difere em alguns
aspectos fundamentais da que caracteriza a tradição anglo-saxónica nos estudos sobre
estereótipos relativos a grupos étnicos. Por um lado, uma vez que se trata de analisar
tanto as percepções do grupo maioritário como as percepções de um grupo minoritário,
os dados foram recolhidos junto de participantes angolanos e de participantes
portugueses. Por outro lado, pretendíamos identificar as dimensões caracterizadoras e
diferenciadoras dos estereótipos através da interpretação dos conteúdos fornecidos pelos
próprios participantes. Finalmente, a inexistência de estudos anteriores sobre os
Racismo e Etnicidade em Portugal
252
estereótipos mútuos destes dois grupos não permitia o recurso a uma lista de adjectivos
previamente definida, sob pena de vir a induzir os conteúdos que se procuravam. Por
exemplo, Miranda (1994) estudou os estereótipos dos estudantes do ensino secundário
(todos portugueses) sobre os ‘portugueses’ e os ‘PALOPs’ em geral (recorrendo à lista
de adjectivos seleccionados a partir de um estudo preliminar no qual apenas
participaram estudantes portugueses). Vala e colaboradores (Vala, Brito e Lopes,
1999a), num estudo contemporâneo do nosso, analisaram os estereótipos sobre os
‘imigrantes negros’ e os ‘portugueses’ de uma amostra significativa da população
residente na Grande Lisboa (todos portugueses brancos) recorrendo a uma reduzida lista
de oito adjectivos (agressivo, alegre, bonito, desonesto, egoísta, impulsivo, inteligente e
trabalhador), que foram escolhidos sem preocupações de “representatividade como
traços estereotípicos de portugueses e de negros, mas sim com a sua representatividade
para descrever pessoas de forma positiva ou negativa” (p.76)36
.
Outro aspecto a salientar é o facto de termos escolhido dois grupos com o mesmo
grau de generalidade – angolanos e portugueses – o que nos permite comparar o grau de
homogeneidade dos conteúdos associados a cada um dos grupos. Tal aspecto tem sido
frequentemente negligenciado na investigação sobre estereótipos sociais. Como
referimos no capítulo 1, no estudo pioneiro sobre racismo em Portugal, Vala e
colaboradores (Vala, Brito e Lopes, 1999b) oposeram duas categorias - ‘portugueses’ e
‘negros’, categorias essas que “não se situam no mesmo plano lógico, nem são
mutuamente exclusivas” (p.39). Se esta opção nos parece perfeitamente justificada –
uma vez que os autores partem do pressuposto segundo o qual os portugueses ‘brancos’
homogeneízam dentro da categoria ‘negro’ as pessoas cuja ascendência africana é
identificável através da cor da pele - ela acarreta questões delicadas do ponto de vista
metodológico, sobretudo quando os autores pretendem analisar as percepções de
variabilidade grupal, pondo ao mesmo nível duas categorias com diferentes graus de
generalidade. Foi precisamente este problema de ordem metodológica que quisemos
contornar debruçamo-nos sobre um grupo africano específico, os ‘angolanos’, e não
sobre os ‘africanos’ ou os ‘negros’ em geral.
36
Posteriormente, os autores efectuaram um novo estudo com uma amostra representativa dos ‘jovens
negros’ residentes na Grande Lisboa em que foram utilizados os mesmos atributos (Vala, no prelo).
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
253
4.2 Estudo 1 - Crenças sobre grupo étnico e raça
4.2.1 Objectivos
O primeiro estudo exploratório teve os seguintes objectivos específicos: investigar
a noção de ‘grupo étnico’ dos jovens portugueses e em que medida esta difere ou não da
noção de ‘raça’; averiguar quais são os ‘grupos étnicos’ mais significativos para os
jovens portugueses; e verificar em que medida os jovens portugueses se consideram eles
próprios membros de um grupo étnico.
Tal como referimos no Capítulo 1, o racismo pode ser analisado no âmbito do
processo mais geral de construção da identidade social, que se define a partir da
clivagem entre as representações sobre o endogrupo e as representações sobre o(s)
exogrupo(s) relevante(s). Sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial o conceito de
‘raça’ baseada em diferenças genotípicas foi progressivamente sendo substituído pelo
conceito de ‘grupo étnico’ assente em diferenças culturais e comportamentais.
Segundo Vala e colaboradores (Vala, 1999; Vala, Brito, e Lopes, 1999a), a
difusão de conhecimentos científicos e o apoio institucional à não racialização dos
grupos humanos tem vindo a traduzir-se na construção de novas representações sociais
(Moscovici, 1961) sobre as diferenças entre povos, caracterizadas por uma maior
rejeição do discurso racista tradicional, que opera a diferenciação a partir de
características “naturais”, e pela adopção de um discurso que opera novas
diferenciações a partir dos conceitos de cultura e etnia. Na investigação empírica
conduzida por estes autores são confrontadas duas formas de categorização de grupos
humanos – a categorização racial e a categorização cultural – e analisadas as suas
consequências. De um modo muito sintético, a categorização racial seria baseada nas
diferenças profundas (genotípicas) que estariam na origem das diferenças de superfície
(fenotípicas), ambas percebidas como naturais e inalteráveis, e consequentemente com
elevado potencial indutivo. Por sua vez, a categorização cultural seria baseada nas
diferenças culturais e comportamentais, vistas como adquiridas e menos estáveis, mas
na maior parte dos casos sofrendo igualmente um processo de essencialização
(Corneille e Leyens, 1994; Rothbart e Taylor, 1992) que as tornaria aos olhos do senso
Racismo e Etnicidade em Portugal
254
comum inalteráveis e, igualmente, com grande potencial indutivo (Vala, Lopes e Brito,
1999).
Tendo em conta que este estudo foi realizado em Outubro de 1997 - Ano Europeu
Contra o Racismo - em que o apoio político-institucional à não racialização dos grupos
humanos foi particularmente divulgado nos meios de comunicação social, esperávamos
encontrar reacções de surpresa ou mesmo de contestação da parte dos estudantes face às
nossas questões sobre as raças em Portugal.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
255
4.2.2 Método
4.2.2.1 Participantes
Participaram neste estudo 56 estudantes universitários de ambos os sexos (31
raparigas e 25 rapazes), com idades compreendidas entre os 18 e os 23 anos (a idade
média é de 19 anos e não difere significativamente entre rapazes e raparigas, ?2
=8.82,
p<0.267), todos de nacionalidade e naturalidade portuguesa37
.
A Tabela 1 apresenta a distribuição dos participantes de sexo masculino e
feminino que é relativamente equilibrada para ambas as condições. Este estudo foi
realizado em Outubro de 1997.
Tabela 1 - Distribuição dos participantes por condição
Sexo dos participantes
Condição
Masculino Feminino Total
1 = ‘grupo étnico’ 13 15 28
2 = ‘raça’ 12 16 28
Total 25 31 56
4.2.2.2 Procedimento de recolha de dados
Este estudo foi realizado em duas turmas do primeiro ano do ensino superior, cada
uma delas correspondendo a uma condição de recolha de dados: na condição 1 todas as
questões eram relativas a ‘grupos étnicos’ enquanto que na condição 2 as mesmas
questões eram referentes a ‘raças’.
Este estudo foi efectuado em sala de aula e a sua duração foi de aproximadamente
uma hora (incluindo o debriefing). A investigadora apelou à participação dos estudantes
num estudo sobre os ‘grupos étnicos’ (condição 1) ou sobre as ‘raças’ (condição 2) em
Portugal. Os estudantes que não quisessem participar no estudo deveriam abandonar a
sala de aula.
A investigadora começava por distribuir uma folha de papel em branco (tamanho
A4) a cada um dos participantes. Depois de se assegurar que todos os participantes
estavam em condições para começar, a investigadora fornecia as seguintes instruções:
“Vou ditar-vos três questões, uma de cada vez. Só depois de todos terem respondido à
37
Foram eliminados deste estudo cinco participantes por terem nacionalidade e/ou naturalidade africana.
Racismo e Etnicidade em Portugal
256
primeira questão é que colocarei a segunda questão, e assim sucessivamente. Peço-vos
que não façam qualquer comentário com os colegas, pois poderão influenciar as suas
respostas. O importante é a vossa opinião sincera. As vossas respostas são anónimas e
confidenciais”.
As questões eram as seguintes: 1) “O que é um grupo étnico/raça?”; 2) “Quais os
grupos étnicos/raças existentes em Portugal?”; 3) “Pertence a algum dos grupos
étnicos/ raças por si referidos na questão anterior?”. Quando todos os participantes
terminavam de responder à última questão, a investigadora pedia-lhes para colocarem
no verso da folha o sexo, a idade, a nacionalidade e a naturalidade. Depois de recolhidas
as folhas de resposta, a investigadora esclarecia os objectivos do estudo e respondia às
eventuais questões dos participantes.
4.2.2.3 Procedimento de análise de dados
Grupo étnico versus raça. As respostas dos participantes à primeira questão foram
analisadas a partir dos grandes eixos organizadores da ideia de ‘raça’ e ‘grupo étnico’
encontrados em estudos anteriores (Allport, 1954/1979; Rothbart e Taylor, 1992).
Efectuámos uma análise de conteúdo das respostas dos participantes em algumas
categorias básicas e averiguámos a sua preponderância relativa em função da condição
experimental: ‘grupo étnico’ vs. ‘raça’. Foram também contabilizados os sinónimos
fornecidos pelos participantes nas suas definições destes dois conceitos.
Grupos etnicizados e grupos racializados em Portugal. Relativamente à segunda
questão procedeu-se à listagem dos grupos étnicos / raças mencionados pelos
participantes e à contabilização das respectivas frequências. Efectuou-se posteriormente
um agrupamento em função dos critérios subjacentes às designações fornecidas pelos
participantes.
Auto-categorização. Quanto à terceira questão contabilizámos as auto-
categorizações dos participantes e efectuámos um teste de Qui-quadrado para averiguar
se estas variavam significativamente em função da condição experimental.
As respostas dos participantes na íntegra a cada uma das três questões encontram-
se no Anexo 1, sendo apresentadas em função da condição grupo étnico/raça.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
257
4.2.3 Resultados
4.2.3.1 Grupo étnico versus raça
A Tabela 2 apresenta os itens mais referidos pelos participantes nas suas
definições de grupo étnico e de raça, utilizando as próprias palavras fornecidas pelos
participantes. Para cada condição são apresentadas as designações referidas pelos
participantes por ordem decrescente de frequência. Foram retidas as designações com
frequência igual ou superior a dois (7.1%).
Relativamente ao grupo étnico os três conteúdos mais frequentes dizem respeito à
“cultura” (46.4%), aos “costumes” (25.0%) e à “religião” (21.4%). Outras
características ligadas à socialização e à cultura são mencionadas frequentemente: os
“valores” (17.9%), as “crenças” (10.7%), os “hábitos” (10.7%), as “características
sociais” (7.1%), a “identidade” (7.1%), e os “rituais” (7.1%). As “características físicas”
no geral aparecem em quarto lugar (17.9%) e a “cor da pele” em décimo primeiro
(7.1%).
Ainda em lugar de destaque aparecem conteúdos ligados às relações de conflito
ou submissão face à cultura dominante: “diferentes da maioria” (17.9%) e “diferentes
dos outros grupos” (7.1%). Também expressivo é o facto de o grupo étnico ser visto
como migrante, isto é, deslocado do seu local, região, ou país de origem: “vivem num
país que não é seu” (17.9%), “oriundos dum local ou região diferente” (7.1%),
“oriundos dum meio diferente” (7.1%).
Quanto à raça, o conteúdo mais frequentemente referido foi a “cor da pele”
(42.9%), seguido da “cultura” (25.0%) e das “características físicas” em geral (21.4%).
As “características genéticas” e a “constituição física” surgem em décimo lugar (7.1%),
sendo apresentadas exclusivamente para definir a ‘raça’.
Diversos aspectos ligados à socialização e à cultura são mencionados
frequentemente: os “hábitos” (17.9%), os “costumes” (14.3%), as “crenças” (10.7%), as
“tradições” (10.7%), a “história” (10.7%), as “ideologias” (7.1%), a “maneira de agir”
(7.1%), e a “maneira de pensar” (7.1%), e as “vivências” (7.1%). Curiosamente estes
conteúdos surgem predominantemente associados à raça.
Racismo e Etnicidade em Portugal
258
Tabela 2 - Frequências relativas dos conteúdos associados a grupo étnico e raça
Grupo étnico (N=28) % Raça (N=28) %
Cultura 46.4 Cor (da pele, olhos, cabelo) 42.9
Costumes 25.0 Cultura 25.0
Religião 21.4 Características físicas 21.4
Características físicas 17.9 Hábitos 17.9
Valores 17.9 Costumes 14.3
Vivem num país que não é seu 17.9 Crenças 10.7
Diferentes da maioria 17.9 História 10.7
Crenças 10.7 Religião 10.7
Hábitos 10.7 Tradições 10.7
Características sociais 7.1 Características genéticas 7.1
Cor (da pele, olhos, cabelo) 7.1 Características iguais 7.1
Diferentes dos outros grupos 7.1 Constituição física (altura, etc.) 7.1
Identidade 7.1 Ideologias 7.1
Oriundos dum local/região 7.1 Maneira de agir 7.1
Oriundos dum meio diferente 7.1 Maneira de pensar 7.1
Rituais 7.1 Oriundos dum local/região 7.1
Unidos na defesa dos seus
valores
7.1 Vivências 7.1
A comparação das frequências relativas dos itens mais associados ao grupo étnico
e à raça torna clara a equivalência destas noções para os participantes. Constata-se uma
forte associação entre as características biológicas e as características culturais, sendo
que a preponderância relativa destas características varia em função da condição.
De modo a facilitar a comparação dos conteúdos associados ao grupo étnico e à
raça, efectuámos um agrupamento das respostas dos participantes em quatro categorias
básicas: características biológicas, nas quais incluímos as características fenotípicas (cor
da pele, tipo de cabelo, forma do nariz, etc.) e as características genotípicas (ligadas à
hereditariedade); características culturais (valores, religião, hábitos, etc.); características
geográficas (referências ao deslocamento de local, região, país, etc.); e por último,
características ligadas à relação com os outros grupos (“alvo de discriminação”,
“diferentes da maioria”, etc.).
Procurámos nas repostas dos participantes referências à estabilidade versus
plasticidade das características associadas a ‘grupo étnico’ e a ‘raça’, mas não
encontrámos nenhuma referência explícita a esta problemática. A análise do conteúdo
das respostas dos participantes aponta para uma essencialização das categorias sociais,
que são vistas como mutuamente exclusivas e inalteráveis (Rothbart e Taylor, 1992).
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
259
A informação detalhada sobre os itens que foram incluídos em cada categoria de
análise e as respectivas frequências absolutas e relativas em função da condição é
apresentada em anexo (ver Tabela 1 do Anexo 2).
Tabela 3 - Frequências relativas das categorias de conteúdos associadas a grupo étnico e raça
Grupo étnico (N=28) % Raça (N=28) %
Características culturais 89.3 Características biológicas 71.4
Relação com os outros grupos 42.6 Características culturais 64.3
Características geográficas 32.1 Características geográficas 7.1
Características biológicas 28.6 Relação com os outros grupos 3.6
Como podemos verificar na Tabela 3, idênticos conteúdos são referidos para
definir ‘grupo étnico’ e ‘raça’, embora no que respeita ao grupo étnico predominem as
características culturais (89.3 % dos participantes) relativamente às características
biológicas (28.6 %), enquanto que à raça estão associadas sobretudo características
“naturais” ligadas à hereditariedade (71.4 %) logo seguidas das características culturais
(64.3 %).
As relações de conflito ou submissão face à cultura dominante (42.6 %) e o facto
de o ‘grupo étnico’ ser visto como migrante (deslocado do seu local, região, país de
origem) (32.1 %) são outros dos aspectos associados preferencialmente ao ‘grupo
étnico’.
A equivalência entre ‘grupo étnico’ e ‘raça’ é demonstrada em numerosas
respostas dos participantes (exemplos: participante 1 “grupo étnico é um conjunto de
pessoas que se agrupam por serem da mesma raça, logo têm a mesma cultura e
religião”; participante 15 “um grupo étnico caracteriza-se por um aglomerado de
pessoas que apresentam características semelhantes, quer ao nível do país de origem,
quer ao nível das crenças religiosas, raça, ideais”).
Ao definir os conceitos de grupo étnico / raça os participantes forneceram, em
alguns casos, ‘sinónimos’. A Tabela 4 apresenta esses sinónimos e as respectivas
frequências relativas (percentagens) em função da condição. Para cada condição são
apresentadas as designações referidas pelos participantes por ordem decrescente de
frequência.
Racismo e Etnicidade em Portugal
260
Tabela 4 - Frequências relativas dos sinónimos de grupo étnico e raça
Grupo étnico (N=28) % Raça (N=28) %
Raça 42.6 Povo 10.7
Comunidade 17.9 Etnia 7.1
Minoria 14.3 Minoria 3.6
Total 75.0 Total 17.9
Em primeiro lugar, é curioso constatar que a ‘raça’ é apresentada como sinónimo
de ‘grupo étnico’ (42.6 %), mas a “etnia” raramente é apresentada como sinónimo de
‘raça’ (3.6 %).
Um dos aspectos que distingue a concepção de ‘grupo étnico’ da concepção de
‘raça’ é o facto do primeiro ser conceptualizado como uma “minoria” (14.2 %)
enquanto que o segundo é conceptualizado preferencialmente como um “povo”
(10.7 %). O termo “comunidade” é utilizado como sinónimo de ‘grupo étnico’ (17.9%),
mas não como sinónimo de raça.
Assim, a noção de ‘grupo étnico’ remete para grupos humanos de estatuto
minoritário enquanto que a ‘raça’ se aplica à mistura de características biológicas e
culturais. A análise de conteúdo das respostas dos participantes parece indicar uma
distinção de significados: enquanto que o termo ‘grupo étnico’ serviria para diferenciar
uma minoria emersa numa maioria, o termo ‘raça’ corresponderia a uma naturalização
da distintividade dos grupos sociais.
4.2.3.2 Grupos etnicizados e grupos racializados em Portugal
A segunda questão colocada aos participantes consistia na simples listagem dos
‘grupos étnicos’/ ‘raças’ existentes em Portugal. A Tabela 5 apresenta os vários grupos
referidos em ambas as condições e as respectivas frequências relativas de ocorrência.
Para cada condição são apresentadas as designações referidas pelos participantes por
ordem decrescente de frequência. Foram retidas as designações com frequência igual ou
superior a dois. A informação detalhada sobre todos os grupos mencionados pelos
participantes encontra-se em anexo (ver Tabela 2 do Anexo 2).
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
261
Tabela 5 - Frequências relativas dos grupos étnicos e raças referidos pelos participantes
Grupo étnico (N=28) % Raça (N=28) %
Ciganos 92.9 Ciganos 64.3
Africanos 46.4 Brancos 53.6
Cabo-verdianos 35.7 Negros 46.4
Angolanos 28.6 Africanos 25.0
Indianos 25.0 Amarelos 14.3
Muçulmanos 25.0 Chineses 10.7
Judeus 21.4 Indianos 10.7
Moçambicanos 21.4 Latinos 10.7
Brancos 17.6 Albinos 7.1
Macaenses 17.6 Índios 7.1
Timorenses 17.6 PALOP 7.1
Negros 14.3 Pretos 7.1
Árabes 10.7 Vermelhos 7.1
Chineses 10.7
Europeus 10.7
Brasileiros 7.1
Marroquinos 7.1
Portugueses 7.1
Como podemos verificar, no total (ver Tabela 2 no Anexo 2) os “ciganos” foram o
grupo mais referido, tanto na condição grupo étnico como na condição raça
(respectivamente 92.9 % e 64.3 %, totalizando 78.6 %). Para além de este ser o grupo
mais frequentemente referido, é também aquele que é referido em primeiro lugar pela
maioria dos participantes (respectivamente 75% e 28.6%, totalizando 51.8%), o que
remete para a elevada saliência deste grupo na sociedade portuguesa.
Seguiu-se o grupo dos ‘negros’ (respectivamente 14.3 % e 46.4 %, totalizando
37.5 %) e em terceiro lugar ex aequo o grupo dos ‘africanos’ (respectivamente 46.4 % e
25 %, totalizando 35.7 %) e o grupo dos ‘brancos’ (respectivamente 17.6 % e 53.6 %,
totalizando 35.7 %). Globalmente, as referências aos ‘brancos’, aos ‘portugueses’ e aos
vários grupos nacionais europeus assim como aos ‘europeus’, em geral, são menos
frequentes do que as referências aos ‘negros’, aos vários nacionais africanos e aos
‘africanos’ em geral, especialmente na condição grupo étnico, o que se prende com o
facto de o processo de etnicização se aplicar essencialmente a minorias que são
percebidas como ocupando um lugar desfavorecido na sociedade.
Em termos globais (ver Tabela 2 do Anexo 2), as denominações mais frequentes
são ligadas à ‘nacionalidade’: “cabo-verdianos” (17.9 %), “indianos” (17.9 %),
“angolanos” (14.3 %), “chineses” (10.7 %), “moçambicanos” (10.7 %), “macaenses”
Racismo e Etnicidade em Portugal
262
(8.9 %), “timorenses” (8.9 %), “portugueses” (5.4 %), “marroquinos” (3.6 %),
“alemães” (1.8 %), “brasileiros” (1.8 %), “espanhóis” (1.8 %), “japoneses” (1.8 %).
Seguem-se as designações baseadas na ‘cor da pele’: “negros” (37.5 %), “brancos”
(35.7 %), “amarelos” (7.1 %), “pretos” (5.4 %), e “vermelhos” (3.6 %). Com menor
expressão surgem as denominações ligadas à ‘religião’: “muçulmanos” (14.3%),
“judeus” (10.7 %), “hindus” (1.8 %), e “islâmicos” (1.8 %).
Os grupos referidos pelos participantes são basicamente os mesmos em ambas as
condições, variando apenas o seu posicionamento relativo. Como podemos constatar na
Tabela 6, na condição grupo étnico predominam as designações baseadas na origem
nacional ou geográfica (100% dos participantes), seguindo-se as designações baseadas
na religião (46.4%) e por último na cor da pele (21.4%). Em contrapartida na condição
raça predominam as designações baseadas na cor da pele (85.7%), seguindo-se as
designações baseadas na origem nacional ou geográfica (75%), e por último as baseadas
na religião (3.6%).
Tabela 6 - Frequências relativas das categorias de grupos étnicos e raças referidos pelos
participantes
Grupo étnico (N=28) % Raça (N=28) %
Origem nacional
ou geográfica
100 Cor da pele 85.7
Religião 46.4
Origem nacional
ou geográfica
75.7
Cor da pele 21.4 Religião 3.6
4.2.3.3 Auto-categorização dos participantes
Finalmente, os participantes eram questionados sobre a sua pertença aos ‘grupos
étnicos’ ou ‘raças’ anteriormente referidos. Nesta questão verifica-se uma diferença
significativa no modo de resposta em função da condição ‘grupo étnico’ ou ‘raça’
(?2
= 19.636, p< 0.001) . Como se pode constatar na Tabela 7, na condição ‘grupo
étnico’ a resposta predominante foi o “não” (67.9 %) enquanto que na condição ‘raça’ a
resposta dominante foi “sim” (85.7%). Apenas dois participantes (3.6 %), um em cada
condição, não responderam a esta questão.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
263
Verifica-se aqui uma assimetria nos processos de etnicização e racialização: a
etnicidade é conceptualizada como algo específico das minorias enquanto que a noção
de raça é aplicada também às maiorias.
Tabela 7 - Frequências relativas das auto-categorizações dos participantes
Grupo étnico (N=28) % Raça (N=28) %
Não 67.9 Sim 85.7
Sim 28.6 Não 10.7
Não resposta 3.6 Não resposta 3.6
?2
= 19.636, p < 0.001
Na Tabela 8 podemos observar o tipo de auto-categorizações efectuadas pelos
participantes em função da condição de resposta. Na condição ‘grupo étnico’ apenas
28.6 % dos participantes referiram pertencer a um grupo étnico: “brancos” (17.9 %);
“portugueses” (7.1 %); e “ocidentais” (3.6 %). Em contrapartida na condição ‘raça’ a
resposta dominante foi “sim” (85.7%): “brancos” (64.3 %); “europeus” (7.1 %);
“portugueses” (7.1 %); “ibéricos” (3.6 %); “lusitanos” (3.6 %).
Tabela 8 - Frequências relativas dos grupos étnicos e raças referidos nas auto-categorizações dos
participantes
Grupo étnico (N=28) % Raça (N=28) %
Brancos 17.9 Brancos 64.3
Portugueses 7.1 Europeus 7.1
Ocidentais 3.6 Portugueses 7.1
Total 28.6 Ibéricos 3.6
Lusitanos 3.6
Total 85.7
Racismo e Etnicidade em Portugal
264
4.2.4 Discussão
Tendo em conta que este estudo foi realizado em 1997 - Ano Europeu Contra o
Racismo - esperávamos encontrar reacções fortes por parte dos estudantes a este estudo,
sobretudo na condição ‘raça’. Tal não aconteceu. Os estudantes não questionaram os
conceitos ‘raça’ ou ‘grupo étnico’, encarando de forma muito natural que alguém (que
não era seu docente) lhes perguntasse o que era uma raça e quais as raças existentes em
Portugal. No debriefing do estudo constatámos que a maior parte dos estudantes nunca
tinha problematizado estes conceitos, considerando ‘raça’ e ‘grupo étnico’ como
conceitos objectivos e explicativos das assimetrias sociais.
Os resultados deste estudo estão em consonância com os resultados de outros
estudos contemporâneos realizados sobre esta problemática, embora recorrendo a outro
tipo de questões (Vala, Lopes e Brito, 1999). Essencialmente, verifica-se que os
estudantes não distinguem ‘grupo étnico’ de ‘raça’. As características culturais
amplamente referidas como definidoras dos ‘grupos étnicos’ são consideradas
inseparáveis das características físicas ligadas à hereditariedade. Os ‘grupos étnicos’ são
vistos como possuindo características intrínsecas, muito marcadas, que os distinguem da
maioria ou da cultura dominante, imutáveis e, como tal, justificativas do seu estatuto e
das assimetrias de poder.
Em ambas as condições (grupo étnico e raça), as repostas dos participantes
apontam para uma essencialização das categorias sociais que são vistas como
mutuamente exclusivas e inalteráveis (Rothbart e Taylor, 1992). Apesar do conteúdo
das respostas dos participantes remeter claramente para a naturalização das ‘raças’ e dos
‘grupos étnicos’, verifica-se uma certa assimetria de significado destes dois termos: o
‘grupo étnico’ é visto como uma minoria emersa numa maioria, ou seja, como algo
‘transitório’ que resulta das trajectórias de migração dos grupos enquanto que o termo
‘raça’ remete mais claramente para a imutabilidade de uma pertença social.
Da análise de conteúdo das respostas dos participantes ressalta a centralidade da
cor da pele na categorização dos grupos sociais. Verifica-se a predominância de traços
físicos nas definições de raça, mas estes estão também significativamente presentes nas
definições de grupo étnico. Esta centralidade da cor da pele na categorização dos grupos
sociais é especialmente evidente nas designações de grupos fornecidas pelos
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
265
participantes. Embora predominem designações baseadas na nacionalidade, o que
poderá dever-se ao seu carácter normativo, estas são sistematicamente associadas a
designações baseadas na cor da pele.
Tal como esperávamos as auto-categorizações dos participantes foram
significativamente mais frequentes na condição raça do que na condição grupo étnico, o
que mais uma vez demonstra que a raça constitui um elemento central da categorização
social para os participantes. Estes resultados vão ao encontro dos encontrados por outros
autores, recorrendo a outro tipo de metodologias, segundo os quais a categorização
racial é extremamente saliente, altamente acessível e difícil de suprimir (e.g., Devine,
1989; Fiske e Neuberg, 1990; Messick e Mackie, 1989; Park e Rothbart, 1982).
Tendo em conta que a maior parte dos grupos referidos pelos participantes são
grupos baseados na nacionalidade (destacando-se, entre eles, as ex-colónias
portuguesas) ou na cor da pele (sobretudo a dicotomia “branco” versus “negro”),
optámos por realizar um segundo estudo exploratório tendo por objectivo averiguar o
estatuto social percebido e o estatuto numérico percebido dos diferentes grupos na
sociedade portuguesa.
Racismo e Etnicidade em Portugal
266
4.3 Estudo 2 - Percepção do estatuto social dos diferentes grupos étnicos em
Portugal
4.3.1 Objectivos
No estudo anterior verificámos que os participantes mencionaram essencialmente
grupos baseados na cor da pele (sobretudo a dicotomia branco versus negro) e baseados
na nacionalidade (destacando-se os PALOP), tendo sido efectuadas poucas referências a
minorias religiosas (judeus, muçulmanos, etc.). A única excepção a estes resultados diz
respeito aos ciganos, que foram o grupo mais referido.
Tendo em conta estes resultados foram seleccionados para este novo estudo
catorze grupos-alvo, onze categorizados em função da origem nacional ou geográfica -
angolanos, brasileiros, cabo-verdianos, ciganos, guineenses, indianos, macaenses,
moçambicanos, portugueses, são-tomenses, e timorenses – e três categorizados em
função da cor da pele - brancos, negros e mestiços.
Assim, o segundo estudo exploratório teve como objectivo averiguar o estatuto
social percebido e o estatuto numérico percebido de vários grupos étnicos em Portugal.
Este estudo foi realizado em diferentes zonas do país, a fim de procurar resultados
consensuais. Foram escolhidas seis cidades - Braga, Bragança, Porto, Lisboa, Évora e
Faro - com o objectivo de ter uma amostra equilibrada em termos de Norte / Sul,
Litoral / Interior. Um segundo objectivo deste estudo tinha a ver com a escolha do
grupo-alvo que pudesse ser utilizado nos estudos subsequentes.
Relativamente ao estatuto social percebido esperávamos encontrar um paralelismo
entre a hierarquização dos grupos-alvo em função da nacionalidade ou origem
geográfica e a hierarquização em função da cor da pele. Relativamente às
categorizações baseadas na origem nacional ou geográfica esperávamos que os
portugueses ocupassem a posição superior e os ciganos a posição inferior, visto que este
grupo foi o mais referido no Estudo 1, o que nos dá uma indicação de que este é o grupo
étnico mais saliente na sociedade portuguesa. Quanto aos restantes grupos esperávamos
observar uma hierarquização em função inversa da proporção em que foram
mencionados no Estudo 1, isto é, menor estatuto para os grupos de origem africana,
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
267
seguidos por ordem crescente dos grupos de origem asiática, e finalmente dos
brasileiros.
Quanto às categorizações baseadas na cor da pele esperávamos verificar uma
hierarquização, em que os brancos ocupariam a posição superior e os negros uma
posição inferior. Esperávamos ainda que aos mestiços fosse atribuída uma posição mais
próxima dos negros do que dos brancos.
Não esperávamos encontrar diferenças significativas ligadas ao local de recolha
de dados nem ao sexo dos participantes.
Racismo e Etnicidade em Portugal
268
4.3.2 Método
4.3.2.1 Participantes e desenho
Participaram neste estudo 304 estudantes do ensino superior, 81 do sexo
masculino e 223 do sexo feminino, com idades compreendidas entre os 18 e os 25 anos,
todos de nacionalidade e naturalidade portuguesa38
. A idade média das raparigas é de 20
anos e a dos rapazes é de 21 anos, sendo esta diferença marginalmente significativa,
?2
=23.710, p<0.056.
As respostas dos participantes foram recolhidas colectivamente em
estabelecimentos de ensino superior público nas seis cidades seleccionadas: Braga
(Universidade do Minho); Porto (Universidade do Porto); Lisboa (Instituto Superior de
Ciências do Trabalho e da Empresa); Bragança (Instituto Politécnico de Bragança);
Évora (Universidade de Évora); e Faro (Universidade do Algarve). Sempre que
possível, os dados foram recolhidos junto de estudantes do primeiro ou segundo ano de
cursos ligados às ciências sociais (Gestão de Empresas, Economia, Sociologia, História,
Comunicação Social, etc.).
O desenho adoptado permite dois procedimentos na análise de dados. No primeiro
temos: 14 grupos-alvo (angolanos, brasileiros, cabo-verdianos, ciganos, guineenses,
indianos, macaenses, moçambicanos, portugueses, são-tomenses, timorenses, brancos,
negros e mestiços) x 6 locais de recolha de dados (Braga, Porto, Lisboa, Bragança,
Évora, e Faro) x 2 sexos (masculino vs. feminino). Todas as variáveis são inter-
participantes, à excepção da primeira que é intra-participantes.
Alternativamente podemos considerar a seguinte modalidade de análise: 2 tipos de
categorização do grupo-alvo (categorização nacional vs. categorização racial) x 6 locais
de recolha de dados (Braga, Porto, Lisboa, Bragança, Évora, e Faro) x 2 sexos
(masculino vs. feminino). Todas as variáveis são inter-participantes, à excepção da
primeira que é intra-participantes.
A Tabela 9 apresenta a distribuição dos participantes de sexo masculino e
feminino pelos diferentes locais de recolha de dados. Este estudo foi realizado entre
Outubro e Dezembro de 1997.
38
Foram eliminados deste estudo 37 participantes por não terem nacionalidade e/ou naturalidade
portuguesa.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
269
Tabela 9 - Distribuição dos participantes em função do local de recolha de dados
Sexo dos participantes
Local
Masculino Feminino Total
Braga 15 39 54
Porto 4 38 42
Lisboa 12 45 57
Bragança 26 15 41
Évora 10 53 63
Faro 14 33 47
Total 81 223 304
4.3.2.2 Procedimento de recolha de dados
Este estudo foi efectuado em sala de aula e a sua duração foi de aproximadamente
45 minutos. Na apresentação do questionário apelava-se à participação dos estudantes
num estudo acerca de vários grupos sociais residentes em Portugal. Dizia-se aos
participantes que a tarefa consistia em dar a sua opinião sobre vários grupos sociais,
relativamente a várias dimensões. Apelava-se à sinceridade dos participantes e garantia-
se o anonimato das suas respostas. Os estudantes que não quisessem participar no
estudo eram convidados a abandonar a sala de aula.
Quando todos os estudantes já tinham recebido o questionário, as instruções
constantes na folha de rosto do questionário eram lidas e era dado um exemplo no
quadro da escala de resposta usada no questionário. Depois de nos certificarmos que
todos os estudantes não tinham dúvidas quanto à escala de resposta, pedia-se-lhes para
responderem ao questionário página a página sem voltar atrás.
O questionário era composto por folhas A5, sendo cada página relativa a um
grupo diferente, na seguinte ordem: angolanos, brasileiros, cabo-verdianos, ciganos,
guineenses, indianos, macaenses, moçambicanos, portugueses, são-tomenses,
timorenses, brancos, negros e mestiços (ver Anexo 3). A tarefa dos participantes
consistia em estimar, relativamente a cada um destes grupos, o seu estatuto social
(através de 6 escalas relativas ao nível educacional, nível cultural, nível económico,
estatuto social, prestígio e poder) e o seu estatuto numérico (percentagem de pessoas
desse grupo na população residente em Portugal). Para estimar o estatuto social
percebido dos vários grupos, eram apresentadas aos participantes seis rectas de 100
milímetros de comprimento, cujos extremos correspondiam a baixo versus alto estatuto.
Racismo e Etnicidade em Portugal
270
As instruções eram as seguintes para cada um dos grupos: “Pense um pouco nos
?angolanos?39
residentes em Portugal. Gostaríamos que posicionasse o grupo dos
?angolanos? nas linhas que se seguem. Para isso deverá marcar com uma cruz, em cada
uma das linhas, a posição que lhe parece adequada para caracterizar o grupo”. Seguia-se
a pergunta: “Qual é a percentagem de ?angolanos? na população residente em Portugal?
_____ %”.
Na última página do questionário eram colocadas as questões sócio-demográficas:
sexo, idade, nacionalidade e naturalidade. Finalmente, os questionários eram recolhidos
e os objectivos do estudo eram esclarecidos. A investigadora agradecia a participação
dos estudantes e respondia às suas eventuais questões.
4.3.2.3 Procedimento de análise de dados
Para cada grupo-alvo foram consideradas duas medidas: o estatuto social
percebido e o estatuto numérico percebido.
Estatuto social percebido. Esta medida era obtida através da média dos valores
obtidos nas seis escalas relativas a cada grupo (nível educacional, nível cultural, nível
económico, estatuto social, prestígio e poder). Com efeito, a tarefa dos participantes
consistia em estimar o estatuto social de cada grupo-alvo através de seis rectas de 100
milímetros de comprimento, cujos extremos correspondiam às seguintes designações:
baixo nível educacional – alto nível educacional; baixo nível cultural – alto nível
cultural; baixo nível económico – alto nível económico; baixo estatuto social – alto
estatuto social; pouco prestigioso – muito prestigioso; pouco poder – muito poder. Em
cada uma das linhas os participantes deveriam fazer uma cruz na posição que lhes
parecesse mais adequada para caracterizar o grupo nessa dimensão. Com uma régua
foram medidos os milímetros a que cada cruz se distanciava do ponto zero. Assim, os
valores correspondentes a cada escala poderiam variar entre 1 a 99. A média dos valores
obtidos nas seis escalas relativas a cada grupo (nível educacional, nível cultural, nível
económico, estatuto social, prestígio e poder) foi considerada como um indicador do
estatuto social percebido desse grupo.
39
A título de exemplo referimos os angolanos uma vez que se tratava do primeiro grupo-alvo do
questionário.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
271
Estatuto numérico percebido. Para cada grupo-alvo, os participantes deveriam
efectuar uma estimativa da percentagem de pessoas desse grupo na população residente
em Portugal.
Relativamente ao tratamento estatístico dos dados, começámos por realizar uma
análise de variância (ANOVA) para cada grupo-alvo tendo o estatuto social percebido
como variável dependente e o sexo do participante e o local de recolha de dados como
variáveis independentes.
Seguidamente realizámos uma série de análises multivariadas de variância
(MANOVA) para comparar o estatuto social percebido de diversos grupos-alvo em
função da pertinência dessa comparação para as nossas hipóteses. Nas diversas análises
efectuadas tivemos o sexo do participante e o local de recolha de dados como variáveis
inter-participantes (between-subjects) e o estatuto social percedido dos grupos-alvo
como medidas repetidas (within-subjects).
Quanto ao estatuto numérico percebido realizámos para cada grupo-alvo uma
análise de variância (ANOVA) tendo o sexo do participante e o local de recolha de
dados como variáveis independentes.
Racismo e Etnicidade em Portugal
272
4.3.3 Resultados
4.3.3.1 Estatuto social percebido
A Tabela 10 apresenta as médias do estatuto social percebido (média global das
seis escalas) para cada um dos grupos-alvo categorizados em função da sua origem
nacional ou geográfica (categorização nacional)40
ou em função da cor da pele
(categorização racial). Os grupos são apresentados por ordem decrescente de estatuto
social percebido. A informação detalhada sobre as médias e os desvios-padrão em
função do local de recolha de dados e em função do sexo dos participantes é
apresentada no Anexo 4.
Tabela 10 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo em função da categorização nacional ou
racial
Categorização
nacional
Média
Categorização
racial
Média
Portugueses 55.39 Brancos 57.30
Brasileiros 47.54 Mestiços 35.32
Macaenses 44.58 Negros 29.86
Indianos 34.33
Timorenses 26.97
Angolanos 26.00
Moçambicanos 25.55
São-tomenses 25.22
Cabo-verdianos 23.71
Guineenses 22.25
Ciganos 20.31
Começamos por averiguar se existiam diferenças significativas no estatuto social
percebido de cada grupo-alvo em função do sexo do participante e do local de recolha
de dados. Nesse sentido, efectuámos, para cada grupo-alvo, uma análise de variância
tendo o sexo do participante e o local de recolha de dados como variáveis independentes
e o estatuto social percebido do grupo-alvo como variável dependente.
40
Por uma questão de simplificação incluímos na ‘categorização nacional’ dois grupos definidos pela sua
origem geográfica – os macaences e os timorenses (que na altura em que foi realizado este estudo
ainda não constituíam um grupo nacional) – e os ciganos. Como já referimos, os ciganos constituem o
grupo étnico mais saliente na sociedade portuguesa: embora portugueses, são representados como
‘estrangeiros’ como se pode constatar no Estudo 1 (Cf: Coelho, 1982; Correia, Brito e Vala, 2001;
Mendes, 1999).
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
273
De um modo geral, não se registaram efeitos significativos do local da recolha de
dados relativamente ao estatuto social percebido dos grupos-alvo baseados na
nacionalidade ou origem geográfica (Gráfico 1). Das onze análises de variância
realizadas (uma para cada grupo-alvo) apenas se observaram efeitos significativos do
local da recolha de dados em três casos: os ciganos, os indianos, e os moçambicanos.
O estatuto social percebido dos ciganos é superior nos grandes centros urbanos,
Lisboa (M = 23.80) e Porto (M = 21.98), do que nas cidades de menor dimensão, Faro
(M = 15.91) e Bragança (M = 18.28), Braga (M = 20.23) e Évora (M = 20.72),
?F (1,292) = 4.937, p< 0.001?. Quanto aos indianos, o seu estatuto social percebido é
significativamente mais baixo em Bragança (M=28.45) do que nas outras cinco cidades,
?F (1,292) = 2.296, p < 0.045?. O estatuto social percebido dos moçambicanos é
significativamente mais baixo em Faro (M=21.88) do que nas outras cinco cidades,
?F (1,292) = 2.484, p < 0.032?.
Numa tentativa de perceber os efeitos devidos ao local consultámos as estatísticas
do SEF41
para ver se existiria alguma relação entre o estatuto social percebido dos
grupos estrangeiros (indianos e moçambicanos) e a sua concentração relativa no local de
recolha de dados, mas não encontrámos elementos que sugerissem alguma ligação, pelo
que julgamos que os resultados ligados ao local de recolha de dados não são explicáveis
pelo contexto.
41
Correspondência particular.
Racismo e Etnicidade em Portugal
274
Gráfico 1 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização nacional) em função do local
de recolha de dados
Efeitos do Local sobre o estatuto percebido do grupo-alvo (categorização nacional):
Ciganos: F(5,292)=4.937, p<0.001
Indianos: F(5,292)=2.296, p<0.045
Moçambicanos: F(5,292)=4.937, p<0.001
Gráfico 2 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização racial) em função do local de
recolha de dados
Efeitos do Local sobre o estatuto percebido do grupo-alvo (categorização racial):
Negros: F(5,292)=3.028, p<0.011
Mestiços: F(5,292)=2.740, p<0.019
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
100
Portugueses Brancos Negros Mestiços Palop
Braga Porto Lisboa Bragança Évora Faro
0
10
20
30
40
50
60
70
Portugueses
Brasileiros
Macaenses
Indianos
Tim
orenses
Angolanos
Cabo-verdianos
Guineenses
Ciganos
Braga Porto Lisboa Bragança Évora Faro
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
275
No que respeita aos grupos baseados na cor da pele (Gráfico 2), o estatuto social
percebido dos brancos não difere em função do local de recolha de dados. Em
contrapartida, verificam-se efeitos significativos do local tanto para os negros
?F (5,292) = 3.028, p < 0.011? como para os mestiços ?F (5,292) = 2.740, p < 0.019?. O
estatuto social atribuído a ambos os grupos-alvo é significativamente mais baixo em
Faro do que nas restantes cidades. Comparando estes resultados com os obtidos
relativamente aos cinco grupos nacionais oriundos dos PALOP constatamos que o
estatuto social percebido destes grupos é ligeiramente mais baixo em Faro do que nas
restantes cidades, mas curiosamente esta diferença só é estatisticamente significativa
para os moçambicanos, como referimos anteriormente.
A variável sexo dos participantes não produziu efeitos significativos no estatuto
social percebido dos dez grupos-alvo minoritários categorizados com base na sua
origem nacional ou geográfica (Gráfico 3). Em contrapartida, verificou-se um efeito
significativo do sexo dos participantes em relação ao grupo maioritário: as mulheres
(M = 54.25) atribuíram significativamente menor estatuto aos portugueses do que os
homens (M = 58.52), ?F (5,292) = 4.771, p < 0.030?.
Gráfico 3 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização nacional) em função do sexo
dos participantes
0
10
20
30
40
50
60
70
PortuguesesBrasileiros
M
acaensesIndianos
Tim
orensesAngolanos
Cabo-verdianos
GuineensesCiganos
Masculino
Feminino
Efeitos do Sexo sobre o estatuto percebido de cada grupo-alvo (categorização nacional):
Portugueses: F(1,292)=4.771, p<0.030
Racismo e Etnicidade em Portugal
276
O mesmo padrão de resultados foi encontrado em relação aos três grupos-alvo
baseados na cor da pele (Gráfico 4). O estatuto social percebido dos grupos minoritários
– negros e mestiços - não difere em função do sexo dos participantes. Em contrapartida,
o estatuto social atribuído aos brancos difere significativamente em função do sexo do
participante: os homens (M = 61.20) atribuíram um estatuto mais elevado aos brancos
do que as mulheres (M = 55.87), ?F (1,291) = 6.386, p < 0.012?.
Resumindo, na maior parte das catorze análises de variância efectuadas (uma para
cada grupo-alvo) não se encontraram efeitos significativos do local de recolha de dados
nem do sexo do participante, nem da interacção entre estas duas variáveis.
Os efeitos do local da recolha de dados em relação a alguns grupos não são
consistentes nem na categorização nacional nem na categorização racial. Poderão,
eventualmente, estar ligados à menor visibilidade de certos grupos em algumas cidades,
mas este estudo não permite verificar essa hipótese.
Quanto ao sexo dos participantes o seu efeito só foi significativo relativamente ao
grupo maioritário, fosse este designado pela nacionalidade (portugueses) ou pela cor da
pele (brancos): os homens atribuíram significativamente maior estatuto social ao grupo
maioritário do que as mulheres.
Gráfico 4 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização racial) em função do sexo dos
participantes
0
10
20
30
40
50
60
70
Portugueses
Brancos
Negros
Palop
Masculino
Feminino
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
277
Efeitos do Sexo sobre o estatuto percebido do grupo-alvo (categorização racial):
Brancos: F(1,292)=6.386, p<0.012
Efeitos do Grupo-alvo:
Brancos vs. Portugueses: F(1,291)=2.40, p<0.123
Brancos vs. Negros: F(1,291)=391.59, p<0.0001
Brancos vs. Mestiços: F(1,290)=35.86, p<0.0001
Negros vs. Mestiços: F(1,290)=35.86, p<0.001
Negros vs. PALOP: F(1,292)=41.40, p<0.001
Seguidamente efectuámos uma série de análises multivariadas de variância para
comparar o estatuto social percebido de diversos grupos-alvo em função da pertinência
da respectiva comparação. Nas diversas análises efectuadas, tivemos o sexo do
participante e o local de recolha de dados como variáveis inter-participantes e o grupo-
alvo como variável intra-participante.
4.2.3.1.1 Hierarquização em função da nacionalidade ou origem geográfica
Como podemos verificar no Gráfico 3, os ciganos constituem o grupo de menor
estatuto social percebido (M = 20.31). Seguidamente, surgem os vários grupos africanos
de língua oficial portuguesa: guineenses (M = 22.25); cabo-verdianos (M = 23.71); são-
tomenses (M = 25.22); moçambicanos (M = 25.55); e angolanos (M = 26.00). Por
ordem crescente de estatuto social percebido, seguem-se os três grupos de origem
asiática: os timorenses (M = 26.97); os indianos (M = 34.33); e os macaenses
(M = 44.58). Finalmente, os brasileiros (M = 47.54) são o grupo estrangeiro de estatuto
social percebido mais elevado, sendo os portugueses (M = 55.39) o grupo de estatuto
mais elevado. Esta hierarquização dos grupos não difere em função do local de recolha
de dados nem em função do sexo dos participantes.
Com o objectivo de averiguar se as diferenças no estatuto social percebido das
diferentes nacionalidades africanas (angolanos, cabo-verdianos, guineenses,
moçambicanos e são-tomenses) eram estatisticamente significativas efectuámos uma
nova análise de variância mista tendo estes cinco grupos-alvo como medida variável
intra-participantes. O efeito do grupo-alvo foi significativo, revelando que o estatuto
social percebido dos cinco grupos africanos, embora próximo, é significativamente
diferente ?F (1,289) = 8.62, p < 0.001? sendo o estatuto percebido dos cabo-verdianos e
dos guineenses significativamente inferior ao dos angolanos, moçambicanos e
Racismo e Etnicidade em Portugal
278
são-tomenses. A interacção entre o grupo-alvo e o sexo dos participantes não foi
significativa, nem a interacção entre o grupo-alvo e o local de recolha de dados. A tripla
interacção entre o grupo-alvo, o local e o sexo do participante também não foi
significativa.
4.2.3.1.2 Hierarquização em função da cor da pele
Relativamente às categorizações baseadas na cor da pele (Gráfico 4), verifica-se
uma hierarquização, em que aos brancos é atribuído um estatuto social mais elevado
(M = 57.30) do que aos negros (M = 29.86), ?F (1,291) = 391.59, p < 0.0001?. Verifica-
se uma interacção significativa entre o grupo-alvo e o sexo dos participantes
?F (1,291) = 4.74, p < 0.030?. As análises de contrastes revelaram que o efeito principal
do grupo-alvo é significativo tanto para os homens ?F (1,291) = 235.02, p< 0.0001?
como para as mulheres ?F (1,291) = 379.61, p< 0.0001?. Relativamente ao local, a
interacção com o grupo-alvo não foi significativa, nem a tripla interacção entre o grupo-
alvo, o local e o sexo do participante.
O estatuto social atribuído aos brancos também é significativamente mais elevado
(M = 57.30) do que o atribuído aos mestiços (M = 35.32), ?F (1,289) = 270.17,
p < 0.0001?. Verifica-se uma interacção significativa entre o grupo-alvo e o sexo dos
participantes, ?F (1,289) = 5.05, p< 0.025?. As análises de contrastes revelaram que o
efeito principal do grupo-alvo é significativo tanto para os homens ?F (1,189) = 176.00,
p < 0.0001? como para as mulheres ?F (1,289) = 248.48, p < 0.0001?. Relativamente ao
local, a interacção com o grupo-alvo não foi significativa nem a tripla interacção entre o
grupo-alvo, o local e o sexo do participante.
O estatuto social atribuído aos mestiços (M = 35.32) é significativamente mais
elevado (M = 57.30) do que o atribuído aos negros (M = 29.86), ?F (1,290) = 35.86,
p < 0.0001?. A interacção entre o grupo-alvo e o sexo dos participantes não é
significativa, nem a interacção entre o grupo-alvo e o local de recolha de dados. A tripla
interacção entre o grupo-alvo, o local e o sexo do participante também não é
significativa.
4.2.3.1.3 Hierarquização nacional e hierarquização racial
O estatuto social atribuído aos brancos (M = 57.30) não é significativamente
diferente do atribuído aos portugueses (M = 55.39), ?F (1,291) = 2.40, p< 0.123?. A
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
279
interacção entre o grupo-alvo e o sexo dos participantes não é significativa, nem a
interacção entre o grupo-alvo e o local de recolha de dados. A tripla interacção entre o
grupo-alvo, o local e o sexo do participante também não é significativa.
O estatuto social atribuído aos negros (M = 29.86) é significativamente superior
ao estatuto atribuído à média dos PALOP no seu conjunto (M = 24.53),
?F (1,292) = 41.40, p < 0.0001?. A interacção entre o grupo-alvo e o sexo dos
participantes não é significativa. A interacção entre o grupo-alvo e o local de recolha de
dados é significativa ?F (1,292) = 2.34, p < 0.042?. As análises de contrastes revelaram
que a diferença entre o estatuto atribuído aos negros em geral e o atribuído à média das
cinco nacionalidades africanas consideradas foi significativa em Braga ?M = 35.57 para
os negros e = 25.65 para os PALOP; F (1,292) = 42.34, p < 0.0001?, no Porto
?M = 30.70 para os negros e = 22.32 para os PALOP; F (1,292) = 23.53, p < 0.0001?, e
em Lisboa ?M = 30.88 para os negros e = 25.10 para os PALOP; F(1,292) = 15.17,
p < 0.0001?. Em contrapartida, em Bragança ?F (1,292) = 2.99, p < 0.085?, em Évora
?F (1,292) = 2.63, p < 0.106?, e em Faro ?F (1,292) = 3.05, p < 0.082?essa diferença não
atinge o limiar da significância estatística. A tripla interacção entre o grupo-alvo, o local
e o sexo do participante também não é significativa.
Resumindo, o estatuto social atribuído aos negros é superior ao estatuto social
atribuído à média dos cinco grupos africanos (PALOP). Esta diferença é significativa
tanto para os participantes do sexo masculino como para os participantes do sexo
feminino. Em relação ao local de recolha de dados, esta diferença é significativa nas três
maiores cidades (Lisboa, Porto e Braga), mas não nas cidades de menor dimensão
(Bragança, Évora e Faro).
4.3.3.2 Estatuto numérico percebido
A Tabela 11 apresenta as médias do estatuto numérico percebido (percentagem de
cada um dos grupos-alvo na população residente em Portugal). Os grupos são
apresentados por ordem decrescente de estatuto numérico percebido. Como se pode
constatar a soma das percentagens médias dos vários grupos ultrapassa em muito os
cem por cento. Tal deve-se ao facto dos participantes efectuarem as suas estimativas
separadamente para cada grupo-alvo, sem qualquer preocupação em obter um total de
100. A informação detalhada sobre as médias e os desvios-padrão em função do local de
recolha de dados e em função do sexo dos participantes é apresentada no Anexo 4.
Racismo e Etnicidade em Portugal
280
Tabela 11 – Estatuto numérico percebido dos grupos-alvo em função da categorização nacional ou
racial
Categorização
nacional
%
Categorização
racial
%
Portugueses 77.30 Brancos 75.32
Ciganos 14.08 Negros 18.84
Angolanos 13.90 Mestiços 10.16
Moçambicanos 9.58
Brasileiros 9.38
Cabo-verdianos 9.13
Guineenses 6.28
Timorenses 5.44
Indianos 4.71
Macaenses 4.65
São-tomenses 4.33
Como podemos constatar, os participantes sobrestimaram a percentagem dos
vários grupos minoritários residentes em Portugal e, paralelamente, subestimaram a
percentagem dos portugueses (77.30 %). Esta subestima da percentagem de portugueses
foi significativamente superior nas mulheres (M = 75.87) do que nos homens
(M = 81.23), ?F (1,281) = 5.148, p < 0.024?. O estatuto numérico percebido dos
portugueses não variou em função do local de recolha de dados. A interacção entre o
local e o sexo do participante também não foi significativa.
Os ciganos constituem o grupo minoritário ao qual é atribuído um maior estatuto
numérico (M = 14.08 %). Seguem-se, por ordem decrescente de estatuto numérico
percebido: os angolanos (M = 13.90 %), os moçambicanos (M = 9.58 %), os brasileiros
(M = 9.38 %), os cabo-verdianos (M = 9.38 %), os guineenses (M = 6.28 %); os
timorenses (M = 5.44 %), os indianos (M = 4.71 %), os macaenses (M = 4.65 %), e os
são-tomenses (M = 4.33 %).
Quanto às designações baseadas na cor da pele, aos brancos foi atribuído o
estatuto maioritário (75.32 %), seguido dos negros (18.84 %) e dos mestiços (10.16 %).
Não se verificaram diferenças significativas ligadas ao sexo do participante ou ao local
de recolha de dados.
Tal como procedemos para os dados referentes ao estatuto social, relativamente ao
estatuto numérico (percentagem na população residente em Portugal) averiguámos para
cada grupo-alvo se existiam diferenças no estatuto numérico percebido em função do
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
281
sexo do participante e do local de recolha de dados. Nesse sentido, efectuámos catorze
análises de variância tendo o estatuto social percebido do grupo-alvo como variável
dependente e sexo do participante e o local de recolha de dados como variáveis
independentes.
Para todos os grupos baseados na nacionalidade ou origem geográfica (Gráfico 5)
o efeito do sexo do participante foi significativo, sendo que as mulheres sobrestimaram
a percentagem destes grupos comparativamente aos homens. Quanto aos grupos
baseados na cor da pele (Gráfico 6) apenas se registou um efeito significativo do sexo
no caso dos mestiços: as mulheres estimaram um número significativamente superior de
mestiços (M = 11.33) do que os homens (M = 6.73).
O efeito do local de recolha de dados não foi significativo para nenhum dos
catorze grupos-alvo nem a interacção entre o local e o sexo do participante.
Gráfico 5 – Estatuto numérico percebido dos grupos-alvo (categorização nacional) em função do
sexo do participante
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
PortuguesesCiganos
Angolanos
Brasileiros
Cabo-verdianos
Guineenses
Tim
orensesIndianos
M
acaenses
Masculino
Feminino
Efeitos do Sexo sobre o estatuto numérico percebido de cada grupo-alvo:
Angolanos: F(1,286)=7.268, p<0.007 Macaenses: F(1,284)=12.316, p<0.0001
Brasileiros: F(1,285)=3.112, p<0.079 Moçambicanos: F(1,282)=7.983, p<0.005
Caboverdianos: F(1,283)=7.236, p<0.006 Portugueses: F(1,281)=5.148, p<0.024
Guineenses: F(1,282)=6.913, p<0.009 São-tomenses: F(1,280)=7.026, p<0.008
Indianos: F(1,285)=4.703, p<0.031 Timorenses: F(1,284)=10.563, p<0.001
Racismo e Etnicidade em Portugal
282
Gráfico 6 – Estatuto numérico percebido dos grupos-alvo (categorização racial) em função do sexo
do participante
0
10
20
30
40
50
60
70
80
90
Brancos Negros Mestiços
Masculino
Feminino
Efeitos do sexo dos participantes sobre o estatuto numérico percebido de cada grupo-alvo:
Mestiços: F(1,276)=8.276, p<0.005
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
283
4.3.4 Discussão
Neste estudo analisou-se o estatuto social percebido e o estatuto numérico
percebido de catorze grupos presentes na sociedade portuguesa (angolanos, brasileiros,
cabo-verdianos, ciganos, guineenses, indianos, macaenses, moçambicanos, portugueses,
são-tomenses, timorenses, brancos, negros e mestiços).
Relativamente às categorizações baseadas na origem nacional ou geográfica
verifica-se uma hierarquização dos grupos-alvo consonante com as nossas hipóteses. Os
participantes atribuem um maior estatuto social ao endogrupo (os portugueses) do que
aos restantes grupos-alvo. Os brasileiros são o grupo estrangeiro de maior estatuto
social percebido. Seguem-se, por ordem decrescente, os três grupos de origem asiática
(macaenses, indianos, e timorenses), os cinco grupos oriundos dos países africanos de
língua oficial portuguesa (angolanos, moçambicanos, são-tomenses, cabo-verdianos e
guineenses). Os ciganos são o grupo de menor estatuto social percebido, o que vai de
encontro aos resultados do Estudo 1, onde verificámos que este era um grupo
fortemente etnicizado e racializado na sociedade portuguesa. Estes resultados
confirmam a grande saliência deste grupo na sociedade portuguesa que tem sido
evidenciado em outros estudos recentemente efectuados (Correia, Brito e Vala, 2001;
Mendes, 1998).
Relativamente às categorizações baseadas na cor da pele, tal como esperávamos,
verifica-se uma hierarquização, em que os brancos ocupam a posição superior, e os
negros uma posição inferior, sendo atribuída aos mestiços uma posição muito mais
próxima dos negros do que dos brancos.
Embora não tivéssemos partido de qualquer hipótese referente ao tipo de
categorização (nacional versus racial), verificámos uma assimetria nos resultados. O
estatuto social atribuído aos brancos não é significativamente diferente do atribuído aos
portugueses. Em contrapartida, o estatuto social atribuído aos negros é
significativamente superior ao estatuto atribuído aos cinco grupos africanos
considerados (angolanos, cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos e são-tomenses).
Tal poderá dever-se ao facto de os participantes estarem mais preocupados em não
discriminar em função da cor da pele do que em relação à nacionalidade. Nos últimos
anos as campanhas anti-racismo têm salientado a ilegitimidade da discriminação racial e
é natural que mesmo sendo uma questão de natureza descritiva, os participantes tenham
procurado ir ao encontro da norma anti-racista em vigor na sociedade actual. A norma
Racismo e Etnicidade em Portugal
284
de corresponder ao ‘politicamente correcto’ que é mais facilmente activada pela
designação racial do que pela designação nacional. É curioso que esta diferença seja
significativa sobretudo nos grandes centros urbanos, onde a presença de imigrantes é
superior.
O estatuto social percebido dos diversos grupos minoritários não difere
significativamente em função do sexo dos participantes. Já em relação ao grupo
dominante, os homens atribuíram significativamente maior estatuto social do que as
mulheres, quer a designação assente na nacionalidade (portugueses) quer na cor da pele
(brancos).
De um modo geral, o estatuto social percebido dos diversos grupos não diferiu
significativamente em função do local de recolha de dados, isto é, verifica-se um
consenso na forma como os diferentes grupos são representados em diferentes regiões
do país, com maior ou menor concentração de residentes estrangeiros.
No entanto, verificaram-se algumas excepções. Os participantes dos grandes
centros urbanos (Lisboa e Porto) atribuíram maior estatuto social aos ciganos do que os
participantes das cidades de menor dimensão (por ordem crescente: Faro, Bragança,
Braga e Évora). No que respeita aos grupos oriundos dos PALOP (angolanos, cabo-
verdianos, guineenses, moçambicanos e são-tomenses), apenas no caso dos
moçambicanos se verificou um efeito significativo do local, sendo o seu estatuto social
percebido significativamente inferior em Faro do que nas outras cinco cidades.
Relativamente aos três grupos de origem asiática (indianos, macaenses e timorenses),
verifica-se que o estatuto social percebido é significativamente inferior em Bragança do
que nas restantes cinco cidades. Finalmente, nos grupos designados pela cor da pele,
verificaram-se efeitos significativos do local de recolha de dados tanto para o grupo dos
negros como no dos mestiços: o estatuto social dos negros e dos mestiços é inferior em
Faro que nas restantes cidades. Assim, o estatuto social percebido dos grupos não
parece estar directamente relacionado com a sua maior ou menor concentração nas
diferentes zonas do país.
Relativamente ao estatuto numérico percebido, o aspecto mais curioso foi a
significativa sobrestima da percentagem dos diversos grupos minoritários a residir em
Portugal, paralelamente à subestima da percentagem do grupo maioritário. A sobrestima
da percentagem dos diversos grupos minoritários verificou-se de forma mais
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
285
significativa nas mulheres do que nos homens, e em todas as regiões do país. Tal como
aconteceu relativamente ao estatuto social percebido, o facto da concentração destes
grupos ser maior ou menor na localidade em questão não parece ter tido qualquer
impacto nos resultados.
Os resultados deste estudo exploratório ajudaram-nos a tomar decisões pertinentes
para o prosseguimento da investigação. De facto, verificámos que, na sociedade
portuguesa, os grupos de menor estatuto social percebido são os ciganos e os grupos
oriundos dos PALOP. A escolha dos ciganos como grupo-alvo foi, no entanto, excluída
por dois motivos. Por um lado, os métodos escolhidos para analisar os estereótipos
sociais e para medir a variabilidade grupal percebida não se adequam a participantes
com baixo nível de escolaridade. De facto, quase todas as pesquisas sobre esta
problemática têm sido realizadas com estudantes universitários e utilizando métodos
que requerem grande familiarização com a linguagem escrita, com a matemática ou
mesmo o domínio do computador. Por outro lado, o estatuto social atribuído aos
ciganos diferiu significativamente em função do local de recolha de dados, sendo
superior nos grandes centros urbanos (Lisboa e Porto) do que nas restantes cidades.
Assim optámos por seleccionar um grupo africano, uma vez que a percentagem de
estudantes africanos ou de origem africana nos estabelecimentos de ensino secundário e
de ensino superior é maior. Uma vez que na investigação da percepção da variabilidade
grupal não seria conveniente comparar os dados relativos a dois grupos-alvo de graus de
generalidade diferente, não poderíamos opor os ‘africanos em geral’ aos ‘portugueses’.
Por isso optámos por trabalhar com um grupo africano específico: os angolanos como
grupo minoritário e os portugueses como grupo maioritário. Neste caso, estamos face a
dois grupos com o mesmo nível de generalidade.
O grupo dos angolanos foi seleccionado por ser um dos mais significativos grupos
de imigrantes em Portugal em termos numéricos - é o segundo grupo africano em
número a seguir aos cabo-verdianos - e por ser um dos grupos menos estudado. De
facto, na data em que iniciámos esta investigação empírica, não tínhamos conhecimento
de nenhum estudo especifico sobre os angolanos, existindo já diversos estudos sobre os
cabo-verdianos (e.g., França, 1992; Saint-Maurice, 1997) e também sobre os guineenses
(e.g., Machado, 1991). Por outro lado, o facto do estatuto social percebido dos
angolanos não diferir significativamente em função do local de recolha de dados,
Racismo e Etnicidade em Portugal
286
permitia-nos uma maior flexibilidade no local de recolha de dados dos estudos
seguintes.
Nos dois primeiros estudos exploratórios constatámos os efeitos da categorização
social na percepção do posicionamento relativo de diversos grupos sociais na sociedade
portuguesa. Uma vez seleccionados os dois grupos-alvo – portugueses (grupo
maioritário) e angolanos (grupo minoritário) – é necessário analisar os contéudos que
são associados a estes grupos e qual o significado simbólico destes conteúdos, tendo
como referência um universo de valores comum (e.g., Amâncio, 1989a; Deschamps,
1982a). É neste quadro que se inscrevem os três estudos seguintes sobre estereótipos
sociais.
Racismo e Etnicidade em Portugal
287
4.4 Estudo 3 - Estereótipos sociais e assimetria simbólica
4.4.1 Introdução
Um dos objectivos do estudo anterior era seleccionar um grupo minoritário na
sociedade portuguesa que também se distinguisse por características físicas. Os
resultados permitiram verificar que, exceptuando o singular lugar de destaque que é
atribuído aos ciganos, os grupos nacionais africanos (PALOP) constituem os grupos de
menor estatuto social percebido na sociedade portuguesa. Destes cinco grupos
seleccionámos os angolanos por razões já explicitadas na discussão do estudo anterior:
segundo grupo africano em termos numéricos em Portugal, grupo de imigração mais
recente e menos estudado do que os cabo-verdianos (primeiro grupo em termos
numéricos e com várias gerações em Portugal; Saint-Maurice, 1997).
Uma vez seleccionados os dois grupos-alvo para os estudos experimentais – os
portugueses (grupo maioritário) e os angolanos (grupo minoritário) – foram realizados
estudos exploratórios, com participantes de ambos os grupos (angolanos e portugueses),
com o objectivo de analisar os conteúdos que são associados a estes grupos e qual o
significado simbólico destes conteúdos (Amâncio, 1989a; Deschamps, 1982a).
Os três estudos apresentados neste capítulo têm por objectivo analisar os
estereótipos dos estudantes portugueses e dos estudantes angolanos a residir em
Portugal sobre o seu próprio grupo (auto-estereótipo) e sobre o exogrupo (hetero-
estereótipo).
Em primeiro lugar pretendemos analisar os estereótipos dos ‘angolanos’ e dos
‘portugueses’, salientando quais as dimensões comuns e quais as dimensões que os
diferenciam e ainda qual o nível de diversidade dos conteúdos associados a cada grupo
(Estudo 3a). Em segundo lugar, pretendemos averiguar qual a avaliação dos conteúdos
descritivos associados a cada grupo, a partir da simples opinião pessoal de cada
participante (Estudo 3b). E, finalmente, pretendemos analisar a distância destes
conteúdos em relação ao referente universal de pessoa adulta (Estudo 3c).
Tendo em vista estes objectivos, foram efectuados três estudos para proceder à
caracterização dos estereótipos dos angolanos e portugueses. No Estudo 3a os
participantes forneceram livremente os conteúdos descritivos de ambos os grupos. Com
base nas características mais mencionadas para descrever os dois grupos-alvo, foi
Racismo e Etnicidade em Portugal
288
elaborada uma lista de adjectivos que foi posteriormente apresentada aos participantes
do Estudo 3b e do Estudo 3c. No Estudo 3b foi pedido aos participantes para
classificarem, de forma independente (recorrendo a duas escalas separadas), em que
medida cada um dos traços da referida lista era típico dos angolanos e dos portugueses,
e também para avaliarem cada traço tendo em conta a sua opinião pessoal. No Estudo 3c
foi pedido aos participantes para classificarem, de forma interdependente (recorrendo a
uma só escala), em que medida cada um dos traços da referida lista era típico dos
angolanos ou dos portugueses, e também para avaliarem cada característica tendo em
conta o estereótipo de pessoa adulta na sociedade portuguesa, seguindo o procedimento
adoptado por Amâncio (1993, 1994).
Os dados destes três estudos foram analisados em função das pertenças grupais
dos participantes a fim de identificar especificidades na percepção social associadas a
estas pertenças, para além da procura de dimensões consensuais entre elas42
.
A nossa hipótese é de que numa época em que o racismo é claramente anti-
normativo os conteúdos associados a ambos os grupos sejam predominantemente
positivos. Assim, esperamos que a maior diferenciação entre os grupos não se opere ao
nível da valência avaliativa dos conteúdos associados a cada grupo, mas ao nível das
dimensões subjacentes a esses conteúdos. Esperamos que os conteúdos associados aos
angolanos sejam predominantemente ligados à expressividade, ao exotismo, e à
juventude, enquanto que os conteúdos associados aos portugueses sejam
fundamentalmente ligados à instrumentalidade e à imagem de adulto.
Esperamos ainda que o estereótipo dos portugueses se aproxime mais do modelo
‘universal’ de pessoa adulta enquanto que o estereótipo dos angolanos se aproximará do
modelo de pessoa jovem. Mas, numa época em que existe uma clara valorização social
dos atributos ‘exóticos’ e ‘juvenis’43
, e sendo os participantes nestes estudos jovens, é
provável que o estereótipo dos angolanos seja avaliado mais positivamente do que o
estereótipo dos portugueses, especialmente quando essa avaliação é feita tendo em conta
a opinião pessoal. No entanto, quando a avaliação dos traços é efectuada tendo em conta
o estereótipo de adulto na nossa sociedade, confrontando assim a opinião pessoal dos
42
Seria interessante analisar nestes três estudos os efeitos da variável sexo dos participantes (masculino
vs. feminino) assim como os efeitos de interacção entre o sexo e o grupo étnico dos participantes
(angolanos vs. portugueses). No entanto, uma vez que se trata de estudos exploratórios nos quais se
pretende essencialmente identificar as especificidades e procurar os consensos entre angolanos e
portugueses, não vamos explorar os efeitos do sexo nestes três estudos.
43
Ver a este propósito um interessante dossier sobre a juventude – “The Young” - em The Economist,
2000, nº8202, pp.84-90.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
289
participantes com um modelo de referência universal, esperamos que o estereótipo dos
portugueses seja avaliado mais positivamente.
Por último, esperamos um menor grau de consenso relativamente ao estereótipo
dos portugueses do que relativamente ao estereótipo dos angolanos, isto é, esperamos
verificar uma maior heterogeneidade na representação do grupo dos ‘portugueses’ do
que na representação do grupo dos ‘angolanos’.
Racismo e Etnicidade em Portugal
290
4.4.2 Estudo 3a - Conteúdos dos estereótipos
O Estudo 3a foi efectuado com o objectivo de averiguar quais os conteúdos
descritivos associados aos angolanos e aos portugueses, tanto por membros do
endogrupo como por membros do exogrupo.
A técnica utilizada para a recolha de dados foi a associação livre de palavras. Esta
técnica tem sido amplamente utilizada nos estudos sobre representações sociais por
“permitir apreender campos semânticos que se pressupõe possuírem propriedades
estruturais e significantes” (Amâncio, 1989a, p.226).
A inexistência de estudos psicossociológicos sobre as representações recíprocas
dos angolanos e dos portugueses na altura em que iniciámos a nossa investigação
empírica, e o facto de o desenvolvimento da nossa investigação exigir o conhecimento
fundamentado das principais dimensões caracterizadoras e diferenciadoras destes dois
grupos, justificam a necessidade deste estudo. De notar que o uso da lista original de
Katz e Braly (1993) nos pareceu, neste caso, desadequado, pois diz respeito a um
contexto geográfico, político-institucional e temporal completamente distinto do que se
vive, hoje em dia, em Portugal. Os estudos clássicos conduzidos por estes autores foram
efectuados numa época em que o racismo era normativo nos EUA e não anti-normativo
como actualmente. Aquele estudo evidencia uma grande preponderância de adjectivos
extremamente negativos para caracterizar os grupos étnicos minoritários, especialmente
os que mais se distanciavam dos valores da sociedade americana (vejam-se os
resultados de Katz e Braly (1933) sobre os estereótipos dos grupos minoritários e a
discussão de Amâncio (1989a, pp. 45-46) sobre a relação daqueles resultados com os
valores dominantes, na altura, na sociedade americana.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
291
4.4.2.1 Método
4.4.2.1.1 Participantes
Participaram neste estudo 31 estudantes angolanos (10 rapazes e 21 raparigas) e
31 estudantes portugueses (12 rapazes e 19 raparigas), com idades compreendidas entre
os 18 e os 25 anos44
. Este estudo foi realizado em Fevereiro de 1998.
A idade média dos participantes é de 21 anos e não difere significativamente entre
rapazes e raparigas, ?2
=15.311, p<0.429. Já relativamente ao grupo dos participantes,
verifica-se uma diferença significativa entre a idade média dos angolanos (23 anos) e a
dos portugueses (19 anos), ?2
=45.43, p<0.001.
Tabela 12 - Grupo e sexo dos participantes
Sexo dos Grupo dos participantes
participantes Angolanos Portugueses Total
Masculino 10 12 22
Feminino 21 19 40
Total 31 31 62
4.4.2.1.2 Procedimento de recolha de dados
Os estudantes foram convidados a participar num estudo sobre percepção social.
A investigadora distribuía a cada participante uma folha em branco (tamanho A4) e
fornecia as seguintes instruções: “Qualquer grupo pode ser descrito em termos das suas
características típicas. Gostaríamos que nos desse a sua opinião sobre quais são as
características típicas dos ?angolanos?45
. De preferência, exprima a sua opinião em
termos de adjectivos, de modo a completar a frase seguinte: “Os ?angolanos? são …”.
Quando os participantes terminavam a descrição do primeiro grupo-alvo, a
investigadora pedia-lhes para voltarem a folha de costas e efectuarem a descrição do
segundo grupo-alvo. A ordem das palavras-estímulo foi contrabalançada:
aproximadamente metade dos participantes começou pela palavra-estímulo ‘angolanos’
e a outra metade começou pela palavra-estímulo ‘portugueses’. Finalmente, eram
44
Foram excluídos do tratamento de dados 8 participantes portugueses, 5 por terem dupla nacionalidade
e/ou naturalidade africana, e 3 por não terem indicado características dos angolanos (argumentando a
falta de contacto com esse grupo).
45
A título de exemplo, colocámos as instruções relativamente ao primeiro grupo-alvo da Ordem 1.
Racismo e Etnicidade em Portugal
292
solicitados dados pessoais: sexo, idade, nacionalidade e naturalidade. Terminada esta
tarefa (aproximadamente 30 minutos), a investigadora agradecia a colaboração dos
participantes e explicava sumariamente os objectivos do estudo.
4.4.2.1.3 Procedimento de análise de dados
Organização dos dicionários. As palavras referidas pelos participantes foram
submetidas a alguns agrupamentos na base estrita da raiz etimológica e todos os verbos
e substantivos foram integrados numa forma adjectiva do masculino plural, seguindo o
procedimento adoptado por Amâncio (1989, p. 228). Com este procedimento obtivemos
um total de 320 palavras diferentes. Seguidamente, para cada grupo de participantes,
procedemos à listagem das palavras associadas a cada grupo-alvo, acompanhadas das
respectivas frequências de ocorrência, o que deu origem a quatro dicionários:
Aang – Descrição dos angolanos efectuada por participantes angolanos
Pang – Descrição dos angolanos efectuada por participantes portugueses
Apor – Descrição dos portugueses efectuada por participantes angolanos
Ppor – Descrição dos portugueses efectuada por participantes portugueses
Procedemos igualmente à listagem das palavras associadas a cada grupo-alvo,
acompanhadas das respectivas frequências de ocorrência, independentemente do grupo
étnico dos participantes, o que deu origem a dois dicionários:
Tang – Descrição dos angolanos efectuada pela totalidade dos participantes
Tpor – Descrição dos portugueses efectuada pela totalidade dos participantes
A fim de evitar as palavras cuja ocorrência pudesse ser devida a idiossincrasias
dos participantes, foram eliminadas, dentro de cada dicionário, todas as palavras cuja
frequência de ocorrência fosse inferior a dois. Com o total das associações retidas em
todos os dicionários construímos uma tabela de frequências (ver Tabela 1 do Anexo 5)
de 6 colunas x 130 palavras, onde as células são preenchidas com as frequências de
ocorrência de cada palavra em cada dicionário.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
293
Homogeneidade dos dicionários. Para averiguar o grau de homogeneidade dos
dicionários foi calculado um índice de homogeneidade46
para cada um dos seis
dicionários. Este índice varia entre zero e 1, sendo que o zero corresponde ao máximo
de homogeneidade.
Análise de conteúdo dos dicionários. Num primeiro momento, verificámos quais
as palavras comuns aos vários dicionários e quais as palavras específicas de cada um.
Num segundo momento, o vocabulário retido nos diversos dicionários foi analisado
tendo em conta os grandes eixos estruturadores encontrados noutros estudos sobre
estereótipos em que estão envolvidas assimetrias de estatuto: expressividade vs.
instrumentalidade; dominância vs. submissão; sociabilidade positiva vs. sociabilidade
negativa (e.g., Amâncio, 1989a; Delgado, 1997).
46
Índice de homogeneidade = (Associações / Ocorrências); Associações = total de palavras diferentes; e
Ocorrências = total de palavras, incluindo frequências.
Racismo e Etnicidade em Portugal
294
4.4.2.2 Resultados
Homogeneidade dos dicionários
Na Tabela 13 apresentamos os indicadores relativos ao vocabulário obtido
originalmente (colunas da esquerda) e os que dizem respeito ao vocabulário retido após
a selecção (colunas da direita).
Tabela 13 - Indicadores relativos aos seis dicionários
Associações Ocorrências
Índice de
HomogeneidadeDicionário
Obtido Retido Obtido Retido Obtido Retido
Aang 201 161 86 37 0.43 0.23
Pang 188 149 123 42 0.65 0.28
Apor 209 171 87 42 0.42 0.25
Ppor 189 140 120 42 0.63 0.30
Tang 389 347 182 73 0.47 0.21
Tpor 385 337 182 83 0.47 0.24
Nota:
Associações = total de palavras diferentes
Ocorrências = total de palavras, incluindo frequências
Índice de homogeneidade = (Associações / Ocorrências)
Varia entre 0 e 1, sendo 0 o máximo de homogeneidade
Da comparação entre os índices de homogeneidade relativos ao vocabulário
obtido e retido, verifica-se que o critério de selecção utilizado contribuiu globalmente
para uma maior homogeneidade interna dos dicionários. Relativamente ao vocabulário
retido, os dois dicionários mais heterogéneos dizem respeito às descrições fornecidas
pelos participantes portugueses (Ppor e Pang) e os dois dicionários mais homogéneos
correspondem às descrições fornecidas pelos participantes angolanos (Aang e Apor).
Verifica-se também uma diferenciação em função do grupo-alvo: os dicionários
respeitantes às descrições do grupo-alvo angolanos (Aang e Pang) são mais
homogéneos do que os dicionários referentes às descrições do grupo-alvo portugueses
(Apor e Ppor). Assim, verificam-se dois efeitos, um relativo ao grupo dos participantes
e o outro relativo ao grupo-alvo que combinados se traduzem numa maior
heterogeneidade do grupo dos portugueses, especialmente quando este é descrito por
membros do endogrupo (Ppor) e por uma maior homogeneidade do grupo angolanos,
especialmente quando descrito pelos membros do próprio grupo (Aang).
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
295
Conteúdo dos dicionários
Na análise de conteúdo dos dicionários averiguámos quais os traços considerados
específicos de cada um dos grupo-alvos (dimensões diferenciadoras) e quais os traços
comuns a ambos os grupos (dimensões comuns).
A Tabela 14 apresenta os traços atribuídos exclusivamente ao grupo dos
angolanos. Como podemos constatar, dos 47 traços (Tang) apenas 7 são referidos por
participantes angolanos (Aang) e por participantes portugueses (Pang): alegres (N=20),
pele escura (N=10), pobres (N=9), incultos (N=7), música mexida (N=5), espírito de
família (N=4), lutadores (N=4) e nacionalistas (N=4).
Tal como esperávamos os traços associados ao grupo dos angolanos são
predominantemente ligados à expressividade (alegres, bem dispostos, bem humorados,
calorosos, emotivos, espontâneos, festivos, etc.), e ao exotismo (bons cantores, dançam
bem, música mexida, música rap, ritmo, rituais, roupas coloridas, roupas tradicionais,
etc.). As referências à instrumentalidade negativa são também frequentes (burros,
desorganizados, despreocupados, ignorantes, incultos) assim como os traços de
submissão (passivos, acomodados).
De destacar, ainda, as referências ao conflito e à luta (batalhadores, conflituosos,
corajosos, lutadores) e à solidariedade grupal (camaradagem, companheiros, unidos).
Estas referências relativas ao conflito e à luta social, por um lado, e à solidariedade e
coesão dentro do grupo, por outro, remetem claramente para um grupo dominado que,
sentindo-se em posição desfavorável e ameaçado pelo exterior, reforça a solidariedade e
coesão internas.
A posição desfavorável deste grupo é também patente em algumas referências
directas à precariedade da sua situação económica e social (discriminados, pobres,
sofredores). Por último, as referências à cor da pele como marca exterior da pertença
grupal são referidas maioritariamente pelos portugueses (pele escura, negros).
Racismo e Etnicidade em Portugal
296
Tabela 14 - Atributos exclusivos do grupo dos angolanos
Traços exlusivos dos angolanos Aang Pang Tang
Acomodados 2 3
Alegres* 14 6 20
Artistas 2
Batalhadores 2 2
Bem dispostos 3 4
Bem humorados 2
Bons cantores 4 5
Burros 2 2
Calorosos 2 2
Camaradagem 3 3
Companheiros 2 3
Conflituosos 2
Corajosos 2 3
Cultos 3 3
Dançam bem 8 9
Desorganizados 2
Despreocupados 2 2
Discriminados 2
Emotivos 2 2
Esbanjadores 2 2
Espírito de família* 2 2 4
Espontâneos 2 2
Festivos 2 2
Generosos 2 3
Ignorantes 2
Incultos* 2 5 7
Invejosos 2 2
Leais 3 3
Lutadores* 2 2 4
Mulherengos 2
Música mexida* 3 2 5
Música rap 3 3
Nacionalistas* 2 2 4
Negros 3 4
Passivos 2 2
Pele escura* 3 7 10
Persistentes 2 3
Pobres 9 9
Prepotentes 3 3
Pretensiosos 2 2
Ritmo 4 4
Rituais 2 2
Roupas coloridas 2 3
Roupas tradicionais 2
Sinceros 2 2
Sofredores 2 3
Unidos 3 3
Nota: Os atributos assinalados com um asterisco* são consensuais entre participantes angolanos e
portugueses.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
297
A Tabela 15 apresenta os traços atribuídos exclusivamente ao grupo dos
portugueses. Como podemos constatar, dos 57 traços (Tpor) apenas 3 são referidos por
participantes angolanos (Apor) e por participantes portugueses (Ppor): conservadores
(N=14), desportivos (N=12) e pessimistas (N=4). Estes resultados remetem-nos
claramente para um menor consenso na representação do grupo dos portugueses (três
traços) do que no grupo dos angolanos (sete traços) e, simultaneamente, para uma maior
heterogeneidade na representação do grupo dos portugueses (57 traços) do que na
representação do grupo dos angolanos (47 traços). Tal heterogeneidade está patente na
diversidade dos traços considerados exclusivos dos portugueses, sendo referida
explicitamente por três participantes (heterogéneos). Outros traços, não fazendo
referência explícita à heterogeneidade, remetem para uma certa idiossincrasia e
originalidade dos portugueses (criativos, críticos, imaginativos).
Tal como esperávamos os conteúdos associados ao grupo dos portugueses
remetem para a instrumentalidade positiva (determinados, dinâmicos, empreendedores,
estudiosos, inteligentes, pragmáticos) e para a dominância e a discriminação
(autoritários, exploradores, preconceituosos, xenófobos).
Contrariamente às nossas expectativas, são bastante frequentes as referências à
sociabilidade negativa, sobretudo da parte dos participantes angolanos (antipáticos,
arrogantes, cínicos, desunidos, egoístas, fechados, frios, hipócritas, individualistas,
interesseiros, introvertidos, mesquinhos, reservados, tímidos, tristes). De destacar,
ainda, as referências ao conservadorismo (antiquados, conservadores) e ao
materialismo (avarentos, consumistas, gananciosos, materialistas, poupadores). As
referências a uma certa nostalgia do passado também não são de descurar (nostálgicos,
saudosistas, sebastianistas).
Por último, as referências à cor da pele são mais frequentes para caracterizar os
angolanos (pele escura, negros; N=14) do que para caracterizar os portugueses (pele
clara, brancos; N=7). Este resultado ilustra a forte associação entre nacionalidade e cor
da pele, que não são vistas pelos participantes como dimensões independentes:
angolano, logo negro.
Racismo e Etnicidade em Portugal
298
Tabela 15 - Atributos exclusivos do grupo dos portugueses
Atributos exclusivos dos portugueses Apor Ppor Tpor
Antipáticos 3 3
Antiquados 2 2
Arrogantes 3 3
Autónomos 2 2
Autoritários 2 2
Avarentos 3 3
Aventureiros 2 2
Boémios 2 2
Bom vinho 3 3
Brancos 2
Cínicos 6 6
Complexados 3 3
Conservadores* 5 9 14
Consumistas 2 2
Criativos 2 2
Críticos 2 2
Desportivos* 9 3 12
Desunidos 4 4
Determinados 2
Dinâmicos 2 2
Egoístas 4 5
Empreendedores 3 3
Estudiosos 2 2
Exploradores 2 2
Fado 2 2
Fechados 3 3
Frios 3 3
Futebol 3 4
Gananciosos 2 2
Heterogéneos 2 3
Hipócritas 4 4
Imaginativos 3 3
Individualistas 2 2
Inteligentes 2 2
Interesseiros 3 3
Introvertidos 7 8
Materialistas 2 3
Mesquinhos 2 2
Nostálgicos 2 2
Originais 3 3
Ostentosos 2
Pacatos 2 2
Pele clara 4 5
Pessimistas* 2 2 4
Poupadores 2
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
299
(cont.) Apor Ppor Tpor
Pragmáticos 2 2
Preconceituosos 2 2
Receptivos 2 2
Religiosos 3 3
Reservados 6 7
Românticos 2
Saudosistas 3 4
Sebastianistas 2 2
Sensíveis 2
Tímidos 2 2
Tristes 2 2
Xenófobos 2
Nota: Os atributos assinalados com um asterisco* são consensuais entre participantes angolanos e
portugueses
A Tabela 16 apresenta os traços comuns ao grupo dos angolanos e ao grupo dos
portugueses. Dos 26 traços constantes nesta tabela, quatro são comuns a todos os
dicionários, isto é, foram atribuídos ao grupo dos angolanos e ao grupo dos portugueses,
tanto por participantes angolanos como por participantes portugueses (acolhedores,
simpáticos, sociáveis e trabalhadores).
Embora estes traços sejam atribuídos a ambos os grupos, a sua frequência varia
em função do grupo-alvo. No que diz respeito à dimensão de instrumentalidade, aos
portugueses são associados preferencialmente traços de instrumentalidade positiva (o
traço trabalhadores surge 20 vezes associado ao grupo dos portugueses e apenas 5
vezes associado ao grupo dos angolanos) enquanto que aos angolanos são associados
preferencialmente traços de instrumentalidade negativa (o traço preguiçosos surge 8
vezes associado ao grupo dos angolanos e apenas 2 vezes associado ao grupo dos
portugueses).
Quanto à dimensão de expressividade, os traços de expressividade positiva
(abertos, amigáveis, comunicativos, divertidos, extrovertidos, simpáticos, sociáveis,
solidários) são mais frequentemente associados aos angolanos (à excepção dos traços
que remetem para o acolhimento: acolhedores e hospitaleiros) enquanto que os traços
de expressividade negativa (desconfiados, falsos, racistas) são mais frequentemente
associados aos portugueses.
Racismo e Etnicidade em Portugal
300
Tabela 16 - Atributos comuns ao grupo dos angolanos e ao grupo dos portugueses
Atributos comuns Tang Tpor
Abertos 4 2
Acolhedores* 10 14
Ambiciosos 5 9
Amigáveis 7 4
Boa comida 2 6
Capacidade adaptação 4 2
Comunicativos 3 2
Conformados 2 2
Desconfiados 2 4
Divertidos 8 5
Extrovertidos 15 2
Falsos 2 3
Hospitaleiros 4 11
Humildes 8 2
Orgulhosos 6 2
Patrióticos 6 5
Preguiçosos 8 2
Prestáveis 2 2
Racistas 2 20
Simpáticos* 24 13
Simples 8 2
Sociáveis* 11 4
Solidários 11 9
Trabalhadores* 5 20
Tradicionalistas 5 6
Vaidosos 13 7
Nota : Os atributos assinalados com um asterisco* são comuns aos seis dicionários.
Neste estudo procedemos à organização de seis dicionários descritivos do grupo
dos ‘angolanos’ e do grupo dos ‘portugueses’ com base no vocabulário fornecido
livremente pelos participantes. A comparação do vocabulário retido nos dicionários
elaborados neste estudo permitiu-nos verificar um efeito ligado ao grupo do
participante: os dois dicionários mais heterogéneos dizem respeito às descrições
fornecidas pelos participantes portugueses e os dois dicionários mais homogéneos
correspondem às descrições fornecidas pelos participantes angolanos. Verifica-se
também uma diferenciação em função do grupo-alvo: os dicionários respeitantes às
descrições do grupo-alvo ‘os angolanos’ são mais homogéneos do que os dicionários
referentes às descrições do grupo-alvo ‘os portugueses’. Estes dois efeitos combinados
traduzem-se numa maior heterogeneidade do grupo dominante, especialmente quando
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
301
este é descrito por membros do endogrupo (portugueses) e numa maior homogeneidade
do grupo dominado, especialmente quando descrito pelos membros do próprio grupo
(angolanos).
Na análise de conteúdo dos dicionários averiguámos quais dimensões comuns a
ambos os grupos e quais as dimensões diferenciadoras, assim como o nível de
diversidade do conteúdo associado a cada um dos grupos.
A comparação do número de traços usados para descrever exclusivamente cada
um dos grupos-alvo remete claramente para um menor consenso na representação do
grupo dos portugueses do que no grupo dos angolanos, isto é, para uma maior
heterogeneidade na representação do grupo dos portugueses do que na representação do
grupo dos angolanos. Tal heterogeneidade está patente não só na diversidade dos traços
considerados exclusivos dos portugueses, como é referida explicitamente por alguns
participantes, que descrevem o grupo dos portugueses fazendo referência a traços que
remetem para uma certa idiossincrasia e originalidade dos portugueses. Assim, mais
uma vez, verificamos uma assimetria apontando para uma maior variabilidade do grupo
dos portugueses.
Tal como esperávamos, os traços associados exclusivamente ao grupo dos
angolanos são predominantemente ligados à expressividade e ao exotismo. As
referências à instrumentalidade negativa são também frequentes assim como os traços
de submissão.
De destacar, ainda, as referências ao conflito e à luta social, por um lado, e à
solidariedade e coesão dentro do grupo, por outro. Estas referências remetem
claramente para um grupo dominado que, sentindo-se em posição desfavorável e
ameaçado pelo exterior, reforça a solidariedade e coesão internas.
A posição desfavorável deste grupo é também patente em algumas referências
directas à precariedade da sua situação económica e social. Por último, as referências à
cor da pele como marca exterior da pertença grupal, referidas maioritariamente pelos
portugueses, remetem para a diferença que é vista como estigma.
Os conteúdos associados exclusivamente ao grupo dos portugueses remetem para
a instrumentalidade positiva, para a dominância e a discriminação social. As referências
a traços de sociabilidade negativa são também bastante frequentes, sobretudo da parte
Racismo e Etnicidade em Portugal
302
dos participantes angolanos. De destacar, ainda, os traços ligados ao conservadorismo e
ao materialismo, assim como os traços ligados a uma certa nostalgia do passado.
Verificámos também alguns traços atribuídos a ambos os grupos, no entanto, a sua
frequência varia consideravelmente em função do grupo-alvo. No que diz respeito à
dimensão de instrumentalidade, aos portugueses são associados preferencialmente
traços de instrumentalidade positiva enquanto que aos angolanos são associados
preferencialmente traços de instrumentalidade negativa. Quanto à dimensão de
sociabilidade, os traços de sociabilidade positiva são mais frequentemente associados
aos angolanos enquanto que os traços de sociabilidade negativa são mais
frequentemente associados aos portugueses.
Comparando as dimensões de conteúdo atribuídas exclusivamente a cada um dos
grupos, constatamos que ao grupo dos angolanos são associados traços referentes à
sociabilidade positiva e ao exotismo, enquanto que ao grupo dos portugueses são
associados traços referentes à sociabilidade negativa, ao conservadorismo e ao
materialismo.
Aos angolanos são associados os traços remetendo para um grupo ocupando uma
posição desfavorecida social e economicamente – submissão, vítima de discriminação -,
enquanto que aos portugueses são associados os traços remetendo para um grupo
ocupando uma posição privilegiada – dominância, actor de discriminação.
Paralelamente, aos angolanos são atribuídos traços remetendo para a solidariedade e
coesão grupais (típicos dos membros dos grupos dominados cuja identidade é ameaçada
pelo exterior) enquanto que aos portugueses são atribuídos traços remetendo para a
autonomia e independência (típicos dos membros dos grupos dominantes, cuja
singularidade e idiossincrasia não estão ameaçadas pela sua pertença grupal).
As referências à cor da pele como marca exterior da pertença grupal são mais
frequentes para caracterizar os angolanos do que para caracterizar os portugueses. Este
resultado ilustra a forte associação entre nacionalidade e cor da pele, que não são
consideradas pelos participantes como dimensões independentes. Remete igualmente
para a maior centralidade da cor da pele nos membros do grupo dominado do que nos
membros do grupo dominante, visto que nos primeiros funciona como estigma que os
demarca da sociedade em geral.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
303
Resumindo, tal como esperávamos, a maior diferenciação entre os grupos opera-
se ao nível das dimensões subjacentes aos conteúdos que lhe estão associados:
sociabilidade positiva, expressividade, exotismo e instrumentalidade negativa para os
angolanos; sociabilidade negativa, conservadorismo, dominância e instrumentalidade
positiva para os portugueses. Outro aspecto que ressalta dos nossos dados, é a maior
diversidade de conteúdos associados aos portugueses, o que aponta para uma
representação mais heterogénea deste grupo, isto é, menos estereotipada.
Uma vez analisadas as dimensões de conteúdo subjacentes às representações de
cada um dos grupos, resta-nos empreender uma análise mais sistemática para verificar
até que ponto estes traços, fornecidos livremente pelos participantes, são percebidos
como estereotípicos ou como contra-estereotípicos de cada um dos grupos-alvo. Outro
aspecto essencial é averiguar qual valência avaliativa destes traços a partir da opinião
pessoal dos participantes.
Racismo e Etnicidade em Portugal
304
4.4.3 Estudo 3b - Avaliação dos conteúdos
No estudo anterior procedemos à análise das dimensões de conteúdo subjacentes
às representações do ‘grupo dos angolanos’ e do ‘grupo dos portugueses’, e
averiguámos o nível de diversidade dos conteúdos associados a cada um dos grupos.
Neste estudo, com base numa lista de adjectivos fornecida aos participantes,
vamos empreender uma análise mais sistemática da estereotipicalidade de cada um dos
traços (até que ponto cada traço é percebido como estereotípico ou como contra-
estereotípico de cada um dos grupos-alvo) e da sua valência avaliativa a partir da
opinião pessoal dos participantes (até que ponto cada traço é percebido como positivo,
neutro ou negativo).
A partir do vocabulário obtido no estudo anterior foi constituída uma lista de
adjectivos cuja selecção foi orientada sobretudo por critérios qualitativos. Procurou-se
uma representação equilibrada dos traços referidos por participantes angolanos e por
participantes portugueses, considerando sempre que possível os traços obtidos em mais
de um dicionário. Foram eliminados todos os traços relativos a características físicas
(por exemplo: “pele escura”, “pele clara”) e às relações entre os sexos (por exemplo:
“mulherengos”), visto serem ou irrelevantes para os estudos seguintes ou indutores de
efeitos não controlados.
A lista de traços utilizada neste estudo foi elaborada com os traços mais
frequentemente referidos no estudo anterior. Foram ainda acrescentados seis novos
traços47
geralmente presentes nas listas de adjectivos utilizadas nos estudos sobre
estereótipos relativos a grupos étnicos para permitir comparações dos nossos dados com
os estudos anteriores devido à sua relevância em diversos estudos sobre estereótipos de
grupos minoritários africanos ou afro-americanos (e.g., Delgado, 1997; Gilbert, 1951;
Katz e Braly, 1933). Foram efectuadas algumas adaptações do vocabulário de modo a
aproximá-lo mais dos traços habitualmente considerados48
.
47
Foram acrescentados os seguintes traços: “agressivos”, “amantes do prazer”, “honestos”, “impulsivos”,
“sensuais” e “supersticiosos”.
48
As adapatações de vocabulário foram as seguintes: “bons cantores”, “música rap” e “música mexida”
foram substituídos por “musicais”; “apreciadores de boa comida” por “gulosos”; “ritmo” por “cheios
de ritmo”; “camaradagem” por “espírito de camaradagem”; “espírito de família” por “forte ligação à
família”.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
305
Neste estudo, os 80 traços que resultaram desta selecção foram submetidos a três
classificações independentes tendo em conta a opinião pessoal dos participantes: a
estereotipicalidade em relação aos angolanos; a estereotipicalidade em relação aos
portugueses; e a valência avaliativa.
Racismo e Etnicidade em Portugal
306
4.4.3.1 Método
4.4.3.1.1 Participantes e desenho
Participaram neste estudo 50 estudantes angolanos (27 rapazes e 23 raparigas) e
64 estudantes portugueses (28 rapazes e 36 raparigas)49
. A idade média difere
significativamente em função do sexo dos participantes, sendo os rapazes mais velhos
do que as raparigas (respectivamente 23 anos e 21 anos, ?2
=26.956, p<0.029) e também
em função do grupo étnico dos participantes, sendo os angolanos mais velhos do que os
portugueses (respectivamente 24 anos e 19 anos, ?2
=61.053, p<0.001).
Este estudo foi realizado de Fevereiro a Março de 1998. A Tabela 17 representa a
distribuição dos participantes de angolanos e portugueses.
Tabela 17 - Grupo e sexo dos participantes
Sexo dos Grupo dos participantes
participantes Angolanos Portugueses Total
Masculino 27 28 55
Feminino 23 36 59
Total 50 64 114
4.4.3.1.2 Procedimento de recolha de dados
As respostas dos participantes foram recolhidas colectivamente em sala de aula. A
investigadora apelou à participação dos estudantes numa investigação sobre psicologia
intercultural, tendo como objectivo estudar questões relacionadas com a forma como as
pessoas de diferentes culturas se percepcionam umas às outras. No questionário (ver
Anexo 6) os participantes eram confrontados com uma lista de 80 adjectivos, sendo-lhes
pedido que classificassem essas características de acordo com a sua opinião pessoal. A
mesma lista de adjectivos era apresentada três vezes, sendo associada a três escalas de 7
pontos: uma para averiguar a estereotipicalidade em relação aos angolanos; outra para
averiguar a estereotipicalidade em relação aos portugueses; e outra para avaliar a
valência das características. A ordem dos dois grupos-alvo era contrabalançada, de
modo que cerca de metade dos participantes começava por responder em relação ao
grupo-alvo ‘angolanos’ e a outra metade começava por responder em relação ao grupo-
49
Foram eliminados deste estudo 11 participantes portugueses por terem dupla nacionalidade e/ou
naturalidade africana.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
307
alvo ‘portugueses’. A avaliação da valência dos traços era sempre efectuada no fim.
Esta tarefa demorou aproximadamente 30 minutos. Depois dos questionários recolhidos,
a investigadora esclarecia os objectivos do estudo e respondia às eventuais questões dos
participantes.
4.4.3.1.3 Instrumentos de medida
Valência dos traços. Foi pedido aos participantes para estimarem a valência
avaliativa de cada um dos traços usados no questionário através de uma escala de sete
pontos (1= “muito negativo”; 7 = “muito positivo”).
Estereotipicalidade dos traços em relação aos angolanos. Foi pedido aos
participantes para estimarem a estereotipicalidade de cada um dos traços usados no
questionário através de uma escala de sete pontos para averiguar a estereotipicalidade em
relação ao grupo dos angolanos (1= “nada típico dos angolanos”; 7 = “muito típico dos
angolanos”).
Estereotipicalidade dos traços em relação aos portugueses. Foi pedido aos
participantes para estimarem a estereotipicalidade de cada um dos traços usados no
questionário através de uma escala de sete pontos, uma para averiguar a estereotipicalidade
em relação ao grupo dos portugueses (1= “nada típico dos portugueses”; 7 = “muito típico
dos portugueses”).
4.4.3.1.4 Procedimento de análise de dados
Classificação dos traços. Para classificar os traços em função da sua valência
avaliativa e em função do sua estereotipicalidade, foram efectuados vários testes-t
testando contra o ponto médio das escalas (one-sample t test; test value = 4). Foram
realizados três testes-t para cada uma das três escalas (valência avaliativa;
estereotipicalidade em relação aos angolanos; estereotipicalidade em relação aos
portugueses): um para os participantes angolanos; outro para os participantes
portugueses; e outro considerando a totalidade dos participantes. O Anexo 7 apresenta
os resultados dos nove testes-t efectuados50
.
50
Em nenhum dos tratamentos estatísticos efectuados nesta pesquisa empírica se procedeu a substituições
de médias no caso de “não-respostas”, uma vez que consideramos que a não-resposta é um aspecto a
ter em conta. O não preenchimento das não-respostas têm como consequência que a informação
estatística (médias, desvios-padrão, graus de liberdade, etc.) relativa a determinados itens não seja
sempre a mesma, pois tal depende do número de participantes que para cada análise estão em
condições de ser ou não incluídos.
Racismo e Etnicidade em Portugal
308
Para a escala referente à valência avaliativa das características, uma diferença
significativa positiva face ao ponto médio da escala indica que esse traço é considerado
positivo, enquanto que uma diferença significativa negativa indica que esse traço é
considerado negativo. Uma diferença não significativa face ao ponto médio da escala
indica que esse traço é considerado neutro.
No caso das escalas referentes ao carácter estereotípico dos traços, uma diferença
significativa positiva em relação ao ponto médio da escala indica que esse traço é
considerado estereotípico do grupo-alvo em questão, enquanto que uma diferença
significativa negativa indica que esse traço é considerado contra-estereotípico do grupo-
alvo em questão. Uma diferença não significativa face ao ponto médio da escala indica
que esse traço não é considerado relevante para caracterizar o grupo em questão.
Consenso na classificação dos traços. Uma vez classificados os traços em função
dos testes-t efectuados, verificámos se existia um consenso entre participantes
angolanos e participantes portugueses relativamente à forma como os traços foram
classificados nas três escalas. Nesse sentido foram efectuados testes-t confrontando as
respostas de ambos os grupos de participantes relativamente a cada traço (independent-
samples t test).
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
309
4.4.3.2. Resultados
Valência avaliativa dos traços tendo em conta a opinião pessoal dos
participantes
A Tabela 18 apresenta os traços considerados positivos pelos participantes
angolanos e portugueses (indicamos apenas os traços que obtiveram uma média igual ou
superior a 5, pelo menos para um dos grupos de participantes). Para não sobrecarregar o
corpo do texto, e por comodidade de leitura, remetemos os desvios-padrão e a
informação estatística detalhada correspondente aos testes efectuados para anexo (ver
Anexo 7).
Dos 80 traços apresentados aos participantes, 43 foram considerados positivos.
Verifica-se um grande consenso entre participantes angolanos e participantes
portugueses quanto à valência avaliativa dos traços apresentados, embora a valorização
dos traços não siga exactamente a mesma ordem para ambos os grupos. Podemos
constatar que os traços considerados mais positivos estão ligados, por um lado, à
sociabilidade e solidariedade e, por outro, à instrumentalidade.
Dada a consensualidade da classificação destes 43 traços entre participantes
angolanos e portugueses, estes serão a partir de agora designados como traços positivos.
Racismo e Etnicidade em Portugal
310
Tabela 18 - Traços considerados positivos em função do grupo dos participantes
Traços positivos Angolanos Traços positivos Portugueses
Trabalhadores 5.71 Unidos 6.25
Boa capacidade de adaptação 5.68 Honestos 6.08
Sociáveis 5.68 Amigáveis 6.03
Alegres 5.66 Bem dispostos 6.03
Bem humorados 5.62 Simpáticos 6.02
Dinâmicos 5.62 Bem humorados 5.98
Simpáticos 5.61 Cultos 5.98
Unidos 5.61 Sociáveis 5.96
Bem dispostos 5.60 Divertidos 5.95
Acolhedores 5.57 Espírito de camaradagem 5.95
Espírito de camaradagem 5.56 Boa capacidade de adaptação 5.92
Lutadores 5.56 Sensíveis 5.92
Divertidos 5.54 Solidários 5.90
Comunicativos 5.53 Alegres 5.89
Amigáveis 5.48 Hospitaleiros 5.89
Inteligentes 5.47 Trabalhadores 5.89
Calorosos 5.41 Inteligentes 5.83
Solidários 5.40 Leais 5.81
Cultos 5.38 Simples 5.81
Forte ligação à família 5.37 Dinâmicos 5.80
Hospitaleiros 5.36 Acolhedores 5.75
Simples 5.36 Forte ligação à família 5.72
Criativos 5.34 Criativos 5.67
Empreendedores 5.30 Corajosos 5.63
Leais 5.26 Desportivos 5.63
Cheios de ritmo 5.24 Lutadores 5.63
Corajosos 5.22 Calorosos 5.61
Desportivos 5.22 Comunicativos 5.59
Honestos 5.20 Humildes 5.41
Humildes 5.14 Extrovertidos 5.40
Religiosos 5.14 Aventureiros 5.38
Imaginativos 5.12 Empreendedores 5.38
Sensuais 5.10 Imaginativos 5.36
Amantes do prazer 5.08 Cheios de ritmo 5.34
Musicais 5.02 Receptivos 5.32
Românticos 5.02 Nacionalistas 5.30
Aventureiros 4.96 Festivos 5.25
Extrovertidos 4.94 Românticos 5.24
Festivos 4.92 Amantes do prazer 5.21
Nacionalistas 4.86 Espontâneos 5.19
Receptivos 4.84 Sensuais 5.05
Sensíveis 4.74 Musicais 5.00
Espontâneos 4.67 Religiosos 4.71
Nota: Escala 1 = “muito negativo”; 7 = “muito positivo” (opinião pessoal dos participantes).
Todos os valores apresentados diferem significativa e positivamente do ponto médio da escala.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
311
A Tabela 19 apresenta os traços considerados negativos pelos participantes
angolanos e portugueses (indicamos apenas os traços que obtiveram média igual ou
inferior a 3.25, pelo menos para um dos grupos de participantes). Globalmente, os
traços considerados mais negativos estão relacionados com a sociabilidade negativa e
com a fraca instrumentalidade.
Podemos constatar que existe um grande consenso entre participantes angolanos e
participantes portugueses quanto aos traços negativos, embora este seja menor que
relativamente aos traços positivos. Assim, para além da ordem de negatividade dos
traços não ser a mesma para ambos os grupos, podemos verificar que em alguns casos,
traços considerados negativos por um grupo são considerados neutros pelo outro. Seis
dos traços apresentados nesta lista são considerados significativamente negativos pelos
participantes portugueses, mas não pelos participantes angolanos: conflituosos,
desconfiados, materialistas, ostentosos, passivos e pessimistas. Esta diferença na
classificação dos traços foi confirmada pelos testes-t confrontando as médias de ambos
os grupos.
Assim, dos 23 traços apresentados nesta tabela, 17 têm avaliações consensuais
entre participantes angolanos e portugueses. Estes 17 traços serão a partir de agora
designados como traços negativos.
Racismo e Etnicidade em Portugal
312
Tabela 19 - Traços considerados negativos em função do grupo dos participantes
Traços negativos Angolanos Traços negativos Portugueses
Hipócritas 2.38 Racistas 1.60
Preguiçosos 2.41 Falsos 1.61
Falsos 2.45 Antipáticos 1.92
Ignorantes 2.49 Hipócritas 1.92
Racistas 2.53 Cínicos 1.95
Cínicos 2.54 Invejosos 1.98
Invejosos 2.70 Egoístas 2.00
Frios 2.73 Avarentos 2.06
Antipáticos 2.82 Ignorantes 2.13
Agressivos 2.88 Agressivos 2.27
Fechados 3.14 Frios 2.30
Preconceituosos 3.14 Conflituosos 2.30
Egoístas 3.18 Preguiçosos 2.31
Avarentos 3.31 Fechados 2.43
Conflituosos 3.39* Pessimistas 2.56
Conformados 3.42 Preconceituosos 2.58
Individualista 3.48 Desconfiados 2.81
Pessimistas 3.48 Conformados 2.84
Supersticiosos 3.66* Passivos 2.89
Ostentosos 3.94* Ostentosos 3.00
Passivos 3.98* Individualistas 3.10
Desconfiados 4.08* Supersticiosos 3.15
Materialistas 4.24* Materialistas 3.28
Nota: Escala 1 = “muito negativo”; 7 = “muito positivo” (opinião pessoal dos participantes).
Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala
(traços neutros).
Traços estereotípicos dos angolanos
A Tabela 20 apresenta os traços considerados estereotípicos dos angolanos. Como
podemos constatar, 34 dos 80 traços apresentados aos participantes são considerados
estereotípicos dos angolanos. Destes apenas 6 não reúnem consenso entre os
participantes angolanos e participantes portugueses: o traço simples é considerado
neutro pelos participantes angolanos e é considerado estereotípico dos angolanos pelos
participantes portugueses; os traços aventureiros, boa capacidade de adaptação e
sensuais são considerados estereotípicos dos angolanos pelos participantes angolanos,
mas são considerados neutros pelos participantes portugueses; os traços ostentosos e
vaidosos são considerados típicos dos angolanos pelos participantes angolanos e são
considerados contra-estereotípicos dos angolanos pelos participantes portugueses.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
313
De notar que todos os traços estereotípicos dos angolanos são considerados
consensualmente positivos (ver Tabela 18), com as seguintes excepções: o traço
orgulhosos é considerado positivo pelos angolanos (mas com média inferior a 5 pelo
que não consta na Tabela 18) e neutro pelos portugueses; os traços ostentosos e
vaidosos são considerados neutros pelos angolanos e negativos pelos portugueses
(embora com média superior a 3 pelo que não constam na Tabela 19) ; os traços
emotivos e patrióticos, são considerados consensualmente positivos por angolanos e
portugueses (mas não constam da Tabela 18 por apresentam valores inferiores a 5).
Assim podemos constatar que os angolanos reivindicam para o endogrupo todos
os traços positivos ligados à expressividade, sociabilidade e solidariedade, recusando
todos os traços negativos. Por seu turno, os portugueses atribuem aos angolanos os
traços positivos ligados à expressividade, sociabilidade e exotismo, não lhes atribuindo
nenhum traço negativo.
Racismo e Etnicidade em Portugal
314
Tabela 20 - Traços considerados estereotípicos dos angolanos em função do grupo dos participantes
Traços típicos dos
angolanos
+/- Angolanos
Traços típicos dos
angolanos
+/- Portugueses
Alegres + 6.40 Cheios de ritmo + 5.64
Festivos + 6.36 Festivos + 5.59
Vaidosos + 6.20 Nacionalistas + 5.45
Cheios de ritmo + 6.12 Unidos + 5.44
Forte ligação à família + 6.10 Bem dispostos + 5.38
Calorosos + 6.08 Musicais + 5.35
Divertidos + 6.08 Bem humorados + 5.33
Sociáveis + 6.08 Forte ligação à família + 5.31
Acolhedores + 6.06 Alegres + 5.29
Simpáticos + 6.02 Simples + 5.29
Hospitaleiros + 5.94 Emotivos + 5.24
Amantes do prazer + 5.92 Patrióticos + 5.24
Bem dispostos + 5.92 Amigáveis + 5.23
Amigáveis + 5.76 Lutadores + 5.14
Receptivos + 5.68
Espírito de
camaradagem
+ 5.09
Musicais + 5.67 Divertidos + 5.02
Bem humorados + 5.64 Solidários + 4.95
Comunicativos + 5.56 Calorosos + 4.94
Extrovertidos + 5.48 Simpáticos + 4.85
Emotivos 5.44 Sociáveis + 4.84
Boa capacidade de
adaptação
+ 5.41 Hospitaleiros + 4.77
Orgulhosos 5.32 Religiosos + 4.73
Solidários + 5.28 Receptivos + 4.66
Espírito de
camaradagem
+ 5.22 Espontâneos + 4.63
Ostentosos + 5.20 Amantes do prazer + 4.60
Aventureiros + 5.10 Acolhedores + 4.55
Espontâneos + 5.04 Orgulhosos + 4.55
Sensuais + 5.04 Comunicativos + 4.52
Religiosos + 5.02 Extrovertidos + 4.51
Nacionalistas + 4.96
Boa capacidade de
adaptação
+ 4.30*
Patrióticos + 4.88 Aventureiros + 4.27*
Lutadores + 4.80 Sensuais + 4.11*
Unidos + 4.65 Vaidosos 3.42**
Simples + 4.24* Ostentosos 3.38**
Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala.
Os valores assinalados com dois asteriscos** diferem significativamente do ponto médio da
escala, mas no sentido oposto (traços contra-estereotípicos).
Avaliação dos traços (opinião pessoal dos participantes): (+) traços positivos; (-) traços negativos.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
315
Traços estereotípicos dos portugueses
A Tabela 21 apresenta os traços estereótipos dos portugueses. Como podemos
constatar, 36 dos 80 traços apresentados aos participantes são considerados
estereotípicos dos portugueses, mas destes apenas 16 reúnem consenso entre os
participantes angolanos e portugueses, e se considerarmos como mínimo o critério de
média igual ou superior a 5, a lista reduz-se a cinco traços: religiosos (M = 5.72),
empreendedores (M = 5.32), orgulhosos (M = 5.30), trabalhadores (M = 5.24), e
ambiciosos (M = 5.19).
Relativamente aos traços que não reúnem consenso, destacam-se os traços
calorosos, divertidos, festivos, e simples considerados estereotípicos dos portugueses
pelos participantes portugueses, mas considerados contra-estereotípicos dos portugueses
pelos participantes angolanos. De referir ainda que o traço desconfiados é considerado
estereotípico dos portugueses pelos participantes angolanos, mas é considerado neutro
pelos participantes portugueses. Em contrapartida, os traços acolhedores, alegres,
amantes do prazer, amigáveis, bem dispostos, bem humorados, emotivos, forte ligação
à família, honestos, hospitaleiros, humildes, inteligentes, simpáticos e sociáveis são
considerados estereotípicos dos portugueses pelos participantes portugueses, mas são
considerados neutros pelos participantes angolanos.
Assim, podemos constatar que aos portugueses são atribuídos traços positivos e
traços negativos, sendo estes últimos mais frequentemente atribuídos pelos participantes
angolanos. De um modo geral, os portugueses são descritos através de traços ligados à
instrumentalidade positiva (trabalhadores, empreendedores, dinâmicos). Quanto à
dimensão de sociabilidade verifica-se uma predominância de traços positivos
(acolhedores, amigáveis, divertidos, etc) face aos traços negativos (desconfiados,
individualistas).
Racismo e Etnicidade em Portugal
316
Tabela 21 - Traços considerados estereotípicos dos portugueses em função do grupo dos
participantes
Traços típicos dos
portugueses
+/- Angolanos
Traços típicos dos
portugueses
+/- Portugueses
Religiosos + 5.61 Forte ligação à família + 6.84
Materialistas 5.55 Religiosos + 5.80
Ambiciosos + 5.34 Hospitaleiros + 5.66
Orgulhosos 5.20 Simpáticos + 5.63
Trabalhadores + 5.20 Acolhedores + 5.56
Vaidosos 5.20 Nacionalistas + 5.50
Empreendedores + 5.14 Bem dispostos + 5.47
Aventureiros + 5.04 Empreendedores + 5.47
Desconfiados - 5.02 Patrióticos + 5.47
Individualistas - 5.02 Amigáveis + 5.46
Nacionalistas + 4.96 Sociáveis + 5.45
Saudosistas 4.88 Festivos + 5.40
Desportivos + 4.82 Bem humorados + 5.38
Patrióticos + 4.80 Orgulhosos 5.38
Românticos + 4.74 Sensíveis + 5.34
Lutadores + 4.68 Simples + 5.30
Dinâmicos + 4.42 Saudosistas + 5.29
Sensíveis + 4.42 Trabalhadores + 5.27
Inteligentes + 4.30* Amantes do prazer + 5.25
Amantes do prazer + 4.24* Emotivos 5.25
Amigáveis + 4.00* Dinâmicos + 5.23
Emotivos 3.98* Divertidos + 5.20
Sociáveis + 3.86* Românticos + 5.20
Alegres + 3.84* Alegres + 5.16
Bem humorados + 3.84* Honestos + 5.14
Honestos + 3.84* Calorosos + 5.11
Simpáticos + 3.78* Humildes + 5.11
Bem dispostos + 3.66* Inteligentes + 5.11
Humildes + 3.66* Lutadores + 5.09
Hospitaleiros + 3.62* Ambiciosos 5.08
Forte ligação à família + 3.60* Desportivos + 5.02
Acolhedores + 3.58* Aventureiros + 4.95
Festivos + 3.56** Materialistas 4.86
Divertidos + 3.55** Vaidosos 4.79
Calorosos + 3.42** Individualistas - 4.42
Simples + 3.38** Desconfiados - 4.27*
Nota: Escala 1 = “nada típico dos portugueses”; 7 = “muito típico dos portugueses” (opinião pessoal
dos participantes).
Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala.
Os valores assinalados com dois asteriscos** diferem significativamente do ponto médio da
escala, mas no sentido oposto (traços contra-estereotípicos).
Avaliação dos traços: (+) traços positivos; (-) traços negativos.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
317
Quando comparamos o estereótipo dos portugueses com o dos angolanos, a
primeira constatação que efectuamos diz respeito à consensualidade e força dos
estereótipos: o estereótipo dos portugueses é muito menos consensual do que o
estereótipo dos angolanos; para além de menos consensual o estereótipo dos
portugueses é menos marcado, isto é, as médias de estereotipicalidade dos atributos
consensuais são muito mais baixas do que as médias dos atributos consensuais dos
angolanos.
A segunda constatação diz respeito à valência dos estereótipos: o estereótipo dos
angolanos reúne apenas traços positivos, enquanto que o estereótipo dos portugueses
reúne também traços negativos, especialmente quando consideramos as respostas dos
participantes angolanos.
Por último, podemos constatar que o estereótipo dos angolanos reúne
essencialmente traços ligados à expressividade, sociabilidade, solidariedade e exotismo,
enquanto que o estereótipo dos portugueses apresenta essencialmente traços ligados à
instrumentalidade positiva e traços de sociabilidade positiva e negativa. Estes dados vão
ao encontro dos já evidenciados no estudo anterior.
Assim, aparentemente, os participantes angolanos apresentam um nível superior
de etnocentrismo ou favoritismo endogrupal do que os participantes portugueses, pois
reivindicam para o endogrupo apenas traços positivos, sobretudo os ligados à
expressividade e sociabilidade, enquanto que negam esses mesmos traços ao exogrupo.
Em contrapartida, os portugueses apenas negam ao exogrupo os traços positivos ligados
à instrumentalidade, que reivindicam para o endogrupo.
A manifestação de favoritismo endogrupal por parte dos participantes angolanos
pode estar ligada à reinvidicação de uma identidade positiva que é ameaçada pelo
exterior. Por seu turno, a ausência de manifestação de favoritismo endogrupal da parte
dos portugueses pode estar ligada à preocupação de não manifestar preconceitos e assim
enquadrar-se na norma anti-racista, mas também pode estar ligada simplesmente ao
facto de os participantes responderem em duas escalas independentes.
Até que ponto este padrão de resultados se manterá se os estereótipos forem
avaliados de forma interdependente, isto é, através de uma única escala em que os traços
sejam atribuídos a um grupo ou ao outro ? Qual o significado destes traços tendo como
referente o modelo ‘universal’ de pessoa? São estas as questões que vamos averiguar no
próximo estudo.
Racismo e Etnicidade em Portugal
318
4.4.4 Estudo 3c - Significados dos conteúdos
Neste estudo foi utilizada a mesma lista de 80 adjectivos que no estudo anterior,
mas o procedimento foi algo diferente. No estudo anterior os participantes avaliaram
cada traço numa escala de 7 pontos (1 = “muito negativo”; 7= “muito positivo”) em
função da sua opinião pessoal. Neste estudo, os participantes procederam à avaliação
dos traços também numa escala de 7 pontos, mas tendo como referência os estereótipos
de adulto na nossa sociedade (e.g., Amâncio, 1989a).
No estudo anterior verificámos que os angolanos manifestaram muito mais
favoritismo endogrupal do que os portugueses. Pensamos que a ausência de
manifestação de favoritismo endogrupal da parte dos portugueses pode estar ligada à
preocupação de não manifestar preconceitos e assim enquadrar-se na norma anti-racista,
mas também pode estar ligada simplesmente ao facto de os participantes responderem
em duas escalas independentes - uma para os angolanos (1 = “nada típico dos
angolanos”; 7= “muito típico dos angolanos”) e outra para os portugueses (1 = “nada
típico dos portugueses”; 7 = “muito típico dos portugueses”) – permitindo assim que os
traços positivos fossem atribuídos a ambos os grupos, ou seja, os portugueses para se
auto-atribuírem determinados traços não precisavam de os negar ao exogrupo. Para
verificar esta hipótese no presente estudo foi utilizada uma escala interdependente
(1 = “muito típico dos angolanos”; 7= “muito típico dos portugueses”), à semelhança
do que tem sido feito noutros estudos envolvendo grupos de estatuto assimétrico (e.g.,
Sedikides, 1997). Com este tipo de escala os participantes não têm a possibilidade de
classificar um determinado traço como sendo simultaneamente estereotípico de um
grupo e do outro, como acontecia no estudo anterior.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
319
4.4.4.1 Método
4.4.4.1.1 Participantes e desenho
Participaram neste estudo 32 estudantes angolanos (21 rapazes e 11 raparigas) e
49 estudantes portugueses (10 rapazes e 39 raparigas)51
. A idade média difere
significativamente em função do sexo dos participantes, sendo os rapazes mais velhos
do que as raparigas (respectivamente 24 anos e 21 anos, ?2
=32.074, p<0.031), e também
em função do grupo dos participantes, sendo os angolanos mais velhos do que os
portugueses (respectivamente 26 anos e 19 anos, ?2
=54.566, p<0.001).
As respostas dos participantes foram recolhidas colectivamente. Este estudo foi
realizado em Março de 1999. A Tabela 22 representa a distribuição dos participantes de
angolanos e portugueses.
Tabela 22 - Grupo e sexo dos participantes
Grupo dos participantesSexo dos
Participantes Angolanos Portugueses Total
Masculino 21 10 31
Feminino 11 39 50
Total 32 49 81
4.4.4.1.2 Procedimento de recolha de dados
A investigadora apelou à participação dos estudantes num estudo sobre psicologia
intercultural, tendo como objectivo estudar questões relacionadas com a forma como as
pessoas de diferentes culturas se percepcionam umas às outras. No questionário (ver
Anexo 8) os participantes eram confrontados com uma lista de 80 adjectivos. A mesma
lista de adjectivos era apresentada duas vezes, sendo associada a duas escalas de 7
pontos: uma para averiguar a estereotipicalidade em relação aos angolanos e aos
portugueses; e outra para avaliar a distância das características em relação ao estereótipo
de pessoa adulta na sociedade portuguesa. A ordem das duas escalas era
contrabalançada, de modo que cerca de metade dos participantes começava por
responder em relação ao carácter estereotípico dos traços e a outra metade começava
por responder em relação à distância simbólica dos traços. Esta tarefa demorou
51
Foram eliminados deste estudo 8 participantes portugueses por terem dupla nacionalidade e/ou
naturalidade africana.
Racismo e Etnicidade em Portugal
320
aproximadamente 20 minutos. Depois dos questionários recolhidos, a investigadora
esclarecia os objectivos do estudo e respondia às eventuais questões dos participantes.
4.4.4.1.3 Instrumentos de medida
Significado dos traços. Foi pedido aos participantes para estimarem o significado
avaliativo de cada um dos traços usados no questionário através de uma escala de sete
pontos (1= “muito negativo”; 7 = “muito positivo”) recorrendo aos estereótipos de adulto
na sociedade portuguesa e não à sua opinião pessoal.
Estereotipicalidade dos traços. Foi pedido aos participantes para estimarem a
estereotipicalidade de cada um dos traços usados no questionário através de uma escala de
sete pontos (1= “muito típico dos angolanos”; 2 = “moderadamente típico dos
angolanos”; 3 = “ligeiramente típico dos angolanos”; 4 = “igualmente típico dos
angolanos e dos portugueses”; 5 = “ligeiramente típico dos portugueses”; 6 =
“moderadamente típico dos portugueses”; 7 = “muito típico dos portugueses”), tendo em
conta a sua opinião pessoal.
4.4.4.1.4 Procedimento de análise de dados
Tal como no estudo anterior, na fase inicial do tratamento de dados efectuámos
vários testes-t testando contra o ponto médio das escalas (test value = 4). Foram
realizados três testes-t para cada uma das duas escalas (estereotipicalidade em relação
aos angolanos e em relação aos portugueses; e significado avaliativo): um para os
participantes angolanos; outro para os participantes portugueses; e outro considerando a
totalidade dos participantes. O Anexo 9 apresenta os resultados dos seis testes-t
efectuados.
No caso da escala referente à significado avaliativo dos traços (1= “muito
negativo”; 7 = “muito positivo”), uma diferença significativa positiva indica que esse
traço é considerado positivo, enquanto que uma diferença significativa negativa indica
que esse traço é considerado negativo. Uma diferença não significativa face ao ponto
médio da escala indica que esse traço é considerada neutro.
No caso da escala referente ao carácter estereotípico dos traços (1 = “muito típico
dos angolanos”; 7 = “muito típico dos portugueses”), uma diferença significativa
positiva em relação ao ponto médio da escala indica que esse traço é estereotípico dos
portugueses, enquanto que uma diferença significativa negativa indica que esse traço é
estereotípico dos angolanos. Uma diferença não significativa face ao ponto médio da
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
321
escala indica que esse traço não é considerado relevante para diferenciar os dois grupos-
alvo em questão (angolanos e portugueses).
Racismo e Etnicidade em Portugal
322
4.4.4.2 Resultados
Significado dos traços tendo como referente o estereótipo de pessoa adulta
A Tabela 23 apresenta os traços considerados positivos pelos participantes
angolanos e portugueses tendo como referente o estereótipo de pessoa adulta (indicamos
apenas os traços com média igual a superior a 5, pelo menos para um dos grupos de
participantes). Para não sobrecarregar as tabelas, e por comodidade de leitura,
remetemos os desvios-padrão e a informação estatística correspondente aos testes
efectuados para anexo (ver Anexo 9).
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
323
Tabela 23 - Traços considerados qualidades em função do grupo dos participantes
Qualidades Angolanos Qualidades Portugueses
Trabalhadores 6.19 Cultos 6.16
Solidários 5.97 Leais 6.14
Inteligentes 5.77 Sociáveis 6.14
Sociáveis 5.75 Solidários 6.08
Cultos 5.63 Trabalhadores 6.02
Calorosos 5.56 Comunicativos 5.94
Honestos 5.56 Simpáticos 5.92
Espírito de camaradagem 5.53 Amigáveis 5.86
Leais 5.50 Espírito de camaradagem 5.86
Amigáveis 5.47 Divertidos 5.85
Simpáticos 5.44 Lutadores 5.84
Bem humorados 5.38 Honestos 5.82
Boa capacidade de adaptação 5.34 Alegres 5.80
Bem dispostos 5.28 Inteligentes 5.78
Empreendedores 5.28 Bem dispostos 5.76
Lutadores 5.26 Bem humorados 5.71
Forte ligação à família 5.25 Forte ligação à família 5.69
Acolhedores 5.22 Simples 5.63
Dinâmicos 5.19 Boa capacidade de adaptação 5.53
Patriótico 5.19 Hospitaleiros 5.52
Pragmáticos 5.16 Criativos 5.41
Comunicativos 5.13 Corajosos 5.38
Criativos 5.13 Humildes 5.34
Hospitaleiros 5.06 Acolhedores 5.31
Alegres 5.00 Receptivos 5.31
Corajosos 4.94 Dinâmicos 5.26
Imaginativos 4.81 Calorosos 5.16
Românticos 4.81 Extrovertidos 5.10
Receptivos 4.78 Pragmáticos 5.08
Divertidos 4.75 Empreendedores 5.06
Simples 4.72 Imaginativos 5.04
Espontâneos 4.69 Românticos 5.04
Sensíveis 4.68 Espontâneos 5.02
Humildes 4.31* Sensíveis 5.02
Extrovertidos 4.03* Patriótico 4.69
Nota: Escala 1 = “muito negativo”; 7 = “muito positivo”
(tendo como referência o estereótipo de adulto na sociedade portuguesa).
Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala.
Racismo e Etnicidade em Portugal
324
Tal como no estudo anterior, verifica-se um grande consenso entre participantes
angolanos e participantes portugueses quanto ao significado avaliativo dos traços
apresentados. Embora a valorização dos traços não siga exactamente a mesma ordem
para ambos os grupos, apenas dois dos traços positivos não reúnem consenso:
extrovertidos e humildes.
Comparativamente ao estudo anterior, a lista dos traços positivos diminui de 43
para 33, o que significa um maior grau de exigência relativamente aos traços que são
considerados qualidades tendo como referente o modelo de adulto. Alguns dos traços
ligados à expressividade e sociabilidade são vistos como menos positivos do que no
estudo anterior, enquanto que os traços ligados à instrumentalidade mantêm ou vêem
reforçada a sua positividade.
A Tabela 24 apresenta os traços considerados defeitos pelos participantes
angolanos e portugueses (indicamos apenas os traços com média igual ou inferior a 3,
pelo menos para um dos grupos de participantes).
Podemos constatar que existe um grande consenso entre participantes angolanos e
participantes portugueses quanto aos traços negativos. Embora a ordem de negatividade
dos traços não seja a mesma para ambos os grupos, podemos verificar que apenas um
traço negativo não reúne consenso entre os grupos: materialistas.
Globalmente, os traços considerados mais negativos estão relacionados com a
sociabilidade negativa e com a fraca instrumentalidade.
Comparando com os resultados do estudo anterior, podemos verificar que a lista
de traços negativos é muito semelhante, o que significa que a opinião pessoal dos
participantes coincide com a avaliação que é efectuada tendo em conta o universo
comum de valores.
Relativamente ao estudo anterior, podemos constatar que dois traços desaparecem
da lista dos traços negativos: conformados e passivos, mas tal deve-se ao critério de
colocar na tabela apenas os traços com classificação inferior a 3. Assim, estes dois
traços são consensualmente considerados negativos, mas a sua média de classificação
excede ligeiramente o critério de inclusão na tabela (conformados = 3.01 e passivos =
3.28). Em contrapartida quatro novos traços são incluídos na lista dos traços negativos:
individualistas, introvertidos, materialistas e supersticiosos (estes traços tinham sido
considerados negativos no estudo anterior, mas apresentavam médias superiores a três e
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
325
dois deles eram considerados neutros pelos participantes angolanos: materialista e
supersticioso).
Tabela 24 - Traços considerados defeitos em função do grupo dos participantes
Defeitos Angolanos Defeitos Portugueses
Racistas 1.97 Falsos 1.59
Preguiçosos 2.09 Racistas 1.59
Hipócritas 2.25 Hipócritas 1.73
Falsos 2.38 Egoístas 1.76
Invejosos 2.50 Invejosos 1.78
Preconceituosos 2.50 Agressivos 1.83
Conflituosos 2.53 Antipáticos 1.90
Ignorantes 2.53 Cínicos 1.92
Agressivos 2.55 Avarentos 2.06
Cínicos 2.66 Frios 2.06
Frios 2.78 Conflituosos 2.12
Antipáticos 2.84 Ignorantes 2.33
Avarentos 2.87 Pessimistas 2.37
Fechados 2.91 Preguiçosos 2.47
Supersticiosos 2.91 Preconceituosos 2.55
Egoístas 2.94 Individualistas 2.65
Pessimistas 3.03 Materialistas 2.67
Passivos 3.06 Fechados 2.69
Desconfiados 3.09 Introvertidos 2.80
Individualistas 3.09 Desconfiados 2.96
Ostentosos 3.15 Conformados 3.02
Conformados 3.16 Ostentosos 3.12
Introvertidos 3.16 Supersticiosos 3.23
Materialistas 4.22* Passivo 3.42
Nota: Escala 1 = “muito negativo”; 7 = “muito positivo”
(tendo como referência o estereótipo de adulto na sociedade portuguesa).
Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala.
Traços estereotípicos dos angolanos
A Tabela 25 apresenta os traços estereotípicos dos angolanos. Comparando com o
estudo anterior podemos constatar que a lista de traços estereotípicos dos angolanos é
muito mais reduzida: 16 em vez de 34 traços. Dos 16 traços apenas três reúnem
consenso entre os participantes angolanos e portugueses: alegres (M = 2.92), cheios de
ritmo (M = 2.53), e humildes (M = 2.88).
Racismo e Etnicidade em Portugal
326
Contrariamente ao estudo anterior, esta lista apresenta traços negativos:
agressivos, conflituosos, ignorantes, preguiçosos e supersticiosos (e se tivéssemos em
conta apenas o critério do teste-t outros seriam incluídos: conformados e passivos).
Assim, verificamos que a simples mudança de estratégia de recolha de dados -
uma escala interdependente em vez de duas escalas independentes - provocou uma
mudança bastante significativa nos resultados: o estereótipo dos angolanos continua a
incluir traços positivos ligados à expressividade e sociabilidade positiva, mas passa a
incluir também traços negativos ligados à fraca instrumentalidade (ignorantes,
preguiçosos) e à sociabilidade negativa (agressivos, conflituosos).
Tabela 25 - Traços considerados estereotípicos dos angolanos em função do grupo dos participantes
(avaliação interdependente)
Traços típicos dos
angolanos
+/- Angolanos
Traços típicos dos
angolanos
+/- Portugueses
Cheios de ritmo 2.00 Cheios de ritmo 2.83
Acolhedores + 2.10 Alegres + 2.96
Simples + 2.59 Humildes 2.96
Preguiçosos - 2.66 Musicais 3.71*
Supersticiosos - 2.66 Agressivos - 3.88*
Musicais 2.76 Conflituosos - 3.88*
Calorosos + 2.79 Supersticiosos - 3.96*
Conflituosos - 2.79 Preguiçosos - 3.98*
Humildes 2.76 Impulsivos 4.00*
Alegres + 2.86 Simples + 4.00*
Agressivos - 2.86 Sociáveis + 4.00*
Solidários + 2.86 Solidários + 4.10*
Sociáveis + 2.90 Calorosos + 4.18*
Sensuais 2.93 Sensuais 4.69**
Impulsivos 3.00 Acolhedores + 4.78**
Escala: 1 = “muito típico dos angolanos”; 2 = “moderadamente típico dos angolanos”;
3 = “ligeiramente típico dos angolanos”; 4 = “igualmente típico dos angolanos e dos portugueses”;
5 = “ligeiramente típico dos portugueses”; 6 = “moderadamente típico dos angolanos”;
7 = “muito típico dos portugueses”.
Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala.
Os valores assinalados com dois asteriscos** diferem significativamente do ponto neutro da escala,
mas no sentido oposto (traços contra-estereotípicos).
Avaliação dos traços tendo como referente o estereótipo de adulto:
(+) traços positivos; (-) traços negativos.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
327
Traços estereotípicos dos portugueses
A Tabela 26 apresenta os traços estereotípicos dos portugueses. Tal como
referimos em relação aos traços estereotípicos dos angolanos, comparando com o estudo
anterior podemos constatar que a lista de traços estereotípicos dos portugueses é muito
mais reduzida: 10 em vez de 36 traços. Como podemos constatar, destes 10 traços
apenas 4 reúnem consenso entre os participantes angolanos e portugueses, e se
considerarmos como mínimo o critério de média igual ou superior a 5, a lista reduz-se a
dois traços: ambiciosos (M = 5.12) e trabalhadores (M = 5.28).
Quando comparamos os resultados deste estudo com os do estudo anterior
verificamos que alguns aspectos se mantêm enquanto outros se alteram
significativamente.
No que diz respeito ao consenso e à força dos estereótipos, constatamos que o
estereótipo dos portugueses continua a ser menos consensual do que o estereótipo dos
angolanos, embora a diferença seja muito mais esbatida. Além de menos consensual, o
estereótipo dos portugueses é também menos marcado, isto é, as médias de tipicalidade
dos traços que constituem o estereótipo são menos extremas do que as médias dos traços
que constituem o estereótipo dos angolanos.
Tal como no estudo anterior, o estereótipo dos angolanos reúne essencialmente
traços ligados à expressividade e sociabilidade positiva, mas também passou a incluir
traços ligados à fraca instrumentalidade e à sociabilidade negativa. Por sua vez, o
estereótipo dos portugueses apresenta traços ligados à instrumentalidade, mas também
traços de sociabilidade positiva.
A diferença mais significativa entre os resultados deste estudo e os do estudo
anterior diz respeito à valência avaliativa do estereótipo dos angolanos: enquanto que no
estudo anterior o estereótipo dos angolanos reúne apenas traços positivos, neste estudo
inclui também traços negativos, sobretudo quando consideramos as respostas dos
próprios participantes angolanos.
Assim, enquanto que no estudo anterior os participantes angolanos apresentavam
um nível de favoritismo endogrupal bastante superior ao dos participantes portugueses –
reivindicaram para si quase todas as qualidades e negando essas mesmas qualidades aos
portugueses, enquanto estes últimos atribuíram ao exogrupo mais qualidades do que ao
endogrupo - neste estudo esta diferença esbate-se.
Racismo e Etnicidade em Portugal
328
Tabela 26 - Traços considerados estereotípicos dos portugueses em função do grupo dos
participantes (avaliação interdependente)
Traços típicos dos
portugueses
+/- Angolanos
Traços típicos dos
portugueses
+/- Portugueses
Racistas - 5.52 Trabalhadores + 5.24
Invejosos - 5.34 Hospitaleiros + 5.16
Trabalhadores + 5.34 Ambiciosos 5.10
Empreendedores - 5.31 Empreendedores + 4.76
Egoístas - 5.17 Racistas - 4.51
Ambiciosos 5.14 Cínicos - 4.20*
Antipáticos - 5.10 Egoístas - 4.18*
Avarentos - 5.07 Avarentos - 4.14*
Cínicos - 5.07 Invejosos - 4.14*
Hospitaleiros + 3.38** Antipáticos - 4.04*
Escala: 1 = “muito típico dos angolanos”; 2 = “moderadamente típico dos angolanos”;
3 = “ligeiramente típico dos angolanos”; 4 = “igualmente típico dos angolanos e dos portugueses”;
5 = “ligeiramente típico dos portugueses”; 6 = “moderadamente típico dos angolanos”;
7 = “muito típico dos portugueses”.
Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala
(traços neutros). Os valores assinalados com dois asteriscos** diferem significativamente do
ponto neutro da escala, mas no sentido oposto (traços contra-estereotípicos).
Avaliação dos traços tendo como referente o estereótipo de adulto:
(+) traços positivos; (-) traços negativos.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
329
4.4.5 Síntese dos resultados do Estudo 3b e do Estudo 3c
A Tabela 27 apresenta a lista dos traços considerados positivos em função da
opinião pessoal dos participantes (Estudo 3b) ou em função do referente de adulto
(Estudo 3c). De um modo geral, as médias de positividade são mais baixas no último
estudo, o que significa um maior grau de exigência relativamente aos traços que são
considerados positivos tendo como referente o modelo de adulto. Os traços ligados à
expressividade e sociabilidade (por exemplo: cheios de ritmo, extrovertidos, festivos)
são vistos como menos positivos do que no estudo anterior, enquanto que alguns dos
traços ligados à instrumentalidade vêem reforçada a sua positividade (por exemplo:
trabalhadores, inteligentes).
Estes resultados demonstram que tanto os participantes angolanos como os
participantes portugueses reconhecem um universo de valores comuns, que passa pela
valorização da pessoa adulta caracterizada por traços de instrumentalidade e
sociabilidade positiva, o que reproduz o padrão de resultados obtido por Amâncio
(1989) para outro tipo de categorizações sociais.
Racismo e Etnicidade em Portugal
330
Tabela 27 - Traços considerados positivos em função da opinião pessoal (Estudo 3b) e do referente
de adulto (Estudo 3c)
Traços positivos Estudo 3b (N = 114) Estudo 3c (N = 81)
Acolhedores 5.67 5.27
Alegres 5.79 5.48
Amantes do prazer 5.15 4.40
Amigáveis 5.79 5.70
Aventureiros 5.20 4.72
Bem dispostos 5.84 5.57
Bem humorados 5.82 5.58
Boa capacidade de adaptação 5.82 5.46
Calorosos 5.52 5.32
Cheios de ritmo 5.30 4.58
Comunicativos 5.56 5.62
Corajosos 5.45 5.20
Criativos 5.53 5.30
Cultos 5.71 5.95
Desportivos 5.45 4.54
Dinâmicos 5.72 5.23
Divertidos 5.77 5.42
Empreendedores 5.34 5.15
Espírito de camaradagem 5.78 5.73
Espontâneos 4.96 4.89
Extrovertidos 5.19 4.68
Festivos 5.11 4.50
Forte ligação à família 5.57 5.52
Honestos 5.69 5.72
Hospitaleiros 5.66 5.34
Humildes 5.29 4.90
Imaginativos 5.25 4.95
Inteligentes 5.67 5.78
Leais 5.57 5.89
Lutadores 5.60 5.61
Musicais 5.01 4.38
Nacionalistas 5.11 4.56
Patrióticos 4.85 4.89
Receptivos 5.11 5.10
Religiosos 4.90 4.33
Românticos 5.14 4.95
Sensíveis 5.40 4.89
Sensuais 5.07 4.48
Simpáticos 5.84 5.73
Simples 5.61 5.27
Sociáveis 5.84 5.99
Solidários 5.68 6.04
Trabalhadores 5.81 6.09
Unidos 5.97 4.50
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
331
Nota: Escala de 1 = “muito negativo” a 7 = “muito positivo”.
Estudo 3b: avaliação em função da opinião pessoal
Estudo 3c: avaliação em função do referente de adulto
A Tabela 28 apresenta a lista dos traços considerados negativos em função da
opinião pessoal dos participantes (Estudo 3b) ou em função do referente de adulto
(Estudo 3c). Os traços considerados mais negativos estão relacionados com a
sociabilidade negativa e com a fraca instrumentalidade.
De um modo geral, as médias de negatividade dos traços são muito semelhantes
em ambos os estudos, o que significa que a opinião pessoal dos participantes coincide
com a avaliação que é efectuada tendo em conta o universo comum de valores. No
entanto, as médias dos traços são ligeiramente mais altas em função da opinião pessoal
dos participantes do que em função do referente de adulto, o que aponta para uma maior
negatividade desses traços.
Racismo e Etnicidade em Portugal
332
Tabela 28 - Traços considerados negativos em função da opinião pessoal (Estudo 3b) e do referente
de adulto (Estudo 3c)
Traços negativos
Estudo 3b
(N = 114)
Estudo 3c
(N = 81)
Agressivos 2.54 2.12
Antipáticos 2.31 2.27
Avarentos 2.60 2.38
Cínicos 2.21 2.21
Conflituosos 2.77 2.28
Conformados 3.10 3.08
Desconfiados 3.67 3.01
Egoístas 2.52 2.22
Falsos 1.97 1.90
Fechados 2.74 2.78
Frios 2.49 2.35
Hipócritas 2.12 1.94
Ignorantes 2.28 2.41
Invejosos 2.30 2.06
Individualistas 3.27 2.83
Introvertidos 3.05 2.93
Materialistas 3.70 3.28
Ostentosos 3.41 3.14
Passivos 3.37 3.28
Pessimistas 2.96 2.63
Preconceituosos 2.82 2.53
Preguiçosos 2.35 2.32
Racistas 2.00 1.74
Supersticiosos 3.78 3.10
Nota: Escala de 1 = “muito negativo” a 7 = “muito positivo”.
Estudo 3b: avaliação em função da opinião pessoal
Estudo 3c: avaliação em função do referente de adulto
A Tabela 29 apresenta a lista dos traços considerados estereotípicos dos
angolanos numa escala independente (Estudo 3b) ou numa escala interdependente
(Estudo 3c). No primeiro estudo foram considerados estereotípicos dos angolanos
apenas traços positivos ou neutros, enquanto que no segundo foram também incluídos
traços negativos.
Assim, verificamos que a simples mudança de estratégia de recolha de dados: uma
escala interdependente em vez de duas escalas independentes, provocou uma mudança
bastante significativa nos resultados: o estereótipo dos angolanos continua a incluir
traços positivos ligados à expressividade e sociabilidade positiva, mas passa a incluir
também traços negativos ligados à fraca instrumentalidade (ignorantes, preguiçosos) e à
sociabilidade negativa (agressivos, conflituosos).
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
333
Tabela 29 - Traços considerados estereotípicos dos angolanos numa escala independente (Estudo 3b)
e numa escala interdependente (Estudo 3c)
Traços típicos dos angolanos +/-
Estudo 3b
(N = 114)
Estudo 3c
(N = 81)
Acolhedores + 5.22 3.78*
Agressivos - 3.29** 3.50
Alegres + 5.78 2.92
Amantes do prazer 5.17 4.23*
Amigáveis + 5.48 3.63
Aventureiros 4.63 4.80**
Bem dispostos + 5.62 3.65
Bem humorados + 5.47 3.64
Boa capacidade de adaptação + 4.79 4.08*
Calorosos + 5.45 3.67
Cheios de ritmo 5.85 2.53
Conflituosos - 3.86* 3.48
Comunicativos + 4.98 4.01*
Divertidos + 5.48 3.94*
Emotivos 5.33 3.92*
Espírito de camaradagem + 5.15 3.44
Espontâneos 4.81 3.41
Extrovertidos 4.93 3.63
Festivos 5.93 3.33
Forte ligação à família + 5.65 4.10*
Hospitaleiros + 5.29 4.50**
Humildes + 4.62 2.88
Impulsivos 4.52 3.44
Lutadores + 4.99 3.81*
Musicais 5.50 3.44
Nacionalistas 5.24 4.45**
Orgulhosos 4.90 4.22*
Ostentosos - 4.22* 4.60**
Patrióticos 5.08 4.22*
Preguiçosos - 3.83* 3.49
Receptivos + 5.12 3.96*
Religiosos 4.86 4.28*
Sensuais 4.53 4.04*
Simpáticos + 5.37 3.78*
Simples + 4.82 3.44
Sociáveis + 5.39 3.59
Solidários + 5.10 3.64
Supersticiosos - 4.46 3.47
Unidos 5.09 4.22*
Vaidosos 4.68 4.21*
Racismo e Etnicidade em Portugal
334
Escala do Estudo 3b: 1 = “nada típico dos angolanos”; 7 = “muito típico dos angolanos”.
Escala do Estudo 3c: 1 = “muito típico dos angolanos”; 2 = “moderadamente típico dos angolanos”;
3 = “ligeiramente típico dos angolanos”; 4 = “igualmente típico dos angolanos e dos
portugueses”; 5= “ligeiramente típico dos portugueses”; 6= “moderadamente típico dos
angolanos”; 7 = “muito típico dos portugueses”.
Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto mé dio da escala
(traços neutros). Os valores assinalados com dois asteriscos** diferem significativamente do
ponto neutro da escala, mas no sentido oposto.
Avaliação dos traços tendo como referente o estereótipo de adulto:
(+) traços positivos; (-) traços negativos.
A Tabela 30 apresenta a lista dos traços considerados estereotípicos dos
portugueses numa escala independente (Estudo 3b) ou numa escala interdependente
(Estudo 3c). Tal como se verificou relativamente aos angolanos, o número de traços
considerados estereotípicos dos portugueses foi muito mais reduzido no segundo estudo
do que no primeiro.
No entanto, em termos da valência avaliativa dos traços não se verificaram
diferenças tão significativas, já que em ambos os estudos foram atribuídos aos
portugueses traços positivos e traços negativos, embora a proporção destes últimos seja
superior no segundo estudo. Enquanto que no primeiro estudo abundam os traços de
sociabilidade positiva (acolhedores, amigáveis, simpáticos, etc.), no segundo surgem
reforçados os traços de sociabilidade negativa (egoístas, racistas, etc.). Os traços
ligados à instrumentalidade (trabalhadores, empreendedores, dinâmicos) surgem como
estruturantes do estereótipo dos portugueses, já que estão presentes em ambos os
estudos, sendo consideravelmente reforçados no segundo.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
335
Tabela 30 - Traços considerados estereotípicos dos portugueses numa escala independente (Estudo
3b) e numa escala interdependente (Estudo 3c)
Traços típicos dos portugueses
+/-
Estudo 3b
(N = 114)
Estudo 3c
(N = 81)
Acolhedores + 4.68 3.78*
Alegres + 4.58 2.92*
Amantes do prazer 4.81 4.24*
Ambiciosos 5.19 5.12
Amigáveis + 4.81 3.63**
Antipáticos - 3.43** 4.44
Avarentos - 3.86* 4.44
Aventureiros 4.99 4.79
Bem dispostos + 4.68 3.65**
Bem humorados + 4.71 3.64**
Calorosos + 4.37 3.67**
Cínicos - 3.50** 4.53
Desconfiados - 4.60 3.97*
Desportivos 4.93 4.54
Dinâmicos + 4.88 4.44
Divertidos + 4.49 3.94*
Egoístas - 4.06* 4.55
Emotivos 4.69 3.92*
Empreendedores + 5.32 4.96
Festivos 4.58 3.33**
Forte ligação à família + 5.43 4.10*
Honestos + 4.57 4.21*
Hospitaleiros + 4.76 4.50*
Humildes 4.47 2.88**
Individualistas - 4.68 4.59
Inteligentes + 4.75 4.49
Invejosos - 4.14* 4.59
Lutadores + 4.91 3.81*
Materialistas - 5.16 4.77
Nacionalistas 5.26 4.45
Orgulhosos 5.30 4.22*
Patrióticos 5.18 4.22*
Racistas - 4.28* 4.88
Religiosos 5.72 4.28*
Românticos 5.00 4.82
Saudosistas 5.11 4.76
Sensíveis 4.94 4.19*
Simpáticos + 4.82 3.78*
Simples + 4.46 3.47**
Sociáveis + 4.75 3.59**
Trabalhadores + 5.24 5.28
Vaidosos 4.97 4.21*
Racismo e Etnicidade em Portugal
336
Escala do Estudo 3b: 1 = “nada típico dos portugueses”; 7 = “muito típico dos portugueses”.
Escala do Estudo 3c: 1 = “muito típico dos angolanos”; 2 = “moderadamente típico dos angolanos”;
3 = “ligeiramente típico dos angolanos”; 4 = “igualmente típico dos angolanos e dos
portugueses”; 5= “ligeiramente típico dos portugueses”; 6= “moderadamente típico dos
angolanos”; 7 = “muito típico dos portugueses”.
Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala
(traços neutros). Os valores assinalados com dois asteriscos** diferem significativamente do
ponto neutro da escala, mas no sentido oposto.
Avaliação dos traços tendo como referente o estereótipo de adulto:
(+) traços positivos; (-) traços negativos.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
337
4.4.6 Discussão dos estudos sobre estereótipos
Nestes três estudos sobre os estereótipos dos angolanos e dos portugueses
obtivemos resultados consonantes com as nossas hipóteses de partida, e que nos
permitem avançar para os estudos experimentais seguintes.
No Estudo 3a procedemos à organização de dicionários descritivos do grupo dos
‘angolanos’ e do grupo dos ‘portugueses’ com base no vocabulário fornecido livremente
pelos participantes. A comparação do vocabulário retido nos dicionários evidencia um
efeito ligado ao grupo do participante: os participantes portugueses fornecem descrições
mais heterogéneas do que os participantes angolanos. Verifica-se também uma
diferenciação em função do grupo-alvo: o grupo dos ‘angolanos’ é descrito de forma
mais homogénea do que o grupo dos ‘portugueses’.
Globalmente, verifica-se um menor consenso na representação do grupo dos
portugueses do que no grupo dos angolanos, isto é, uma maior heterogeneidade na
representação do grupo dos portugueses. Tal heterogeneidade está patente não só na
diversidade dos traços considerados exclusivos dos portugueses, como é referida
explicitamente por alguns participantes. Assim, em consonância com as nossas
hipóteses, verificamos uma assimetria apontando para uma maior variabilidade na
representação do grupo dos portugueses.
Os traços associados ao grupo dos angolanos são predominantemente ligados à
sociabilidade positiva, à expressividade, ao exotismo e à fraca instrumentalidade, o que
remete para o modelo de jovem. De destacar, ainda, as referências ao conflito, à
solidariedade e à coesão dentro do grupo. Estas referências remetem claramente para
um grupo dominado que, sentindo-se em posição desfavorável e ameaçado pelo
exterior, reforça a solidariedade e coesão internas. A posição desfavorável deste grupo é
igualmente patente em algumas referências directas à precariedade da sua situação
económica e social, e a alguns traços de submissão. Por último, as referências à cor da
pele como marca exterior da pertença grupal, referidas maioritariamente pelos
portugueses, remetem para uma diferença que é vista como estigma.
Os traços associados ao grupo dos portugueses remetem para a instrumentalidade
positiva, para a dominância e a discriminação social. As referências a traços de
sociabilidade são também bastante frequentes: os participantes portugueses referem
sobretudo traços de sociabilidade positiva enquanto nos participantes angolanos se
Racismo e Etnicidade em Portugal
338
verifica uma preponderância dos traços de sociabilidade negativa. De destacar, ainda, os
traços ligados ao conservadorismo e ao materialismo, assim como os traços ligados a
uma certa nostalgia do passado. No seu conjunto estas descrições remetem para o
modelo de pessoa adulta.
Resumindo, comparando as dimensões de conteúdo atribuídas exclusivamente a
cada um dos grupos, constatamos que aos angolanos são associados os traços remetendo
para um grupo ocupando uma posição desfavorecida social e economicamente –
submissão, vítima de discriminação -, enquanto que aos portugueses são associados os
traços remetendo para um grupo ocupando uma posição privilegiada – dominância,
actor de discriminação. Paralelamente, aos angolanos são atribuídos traços remetendo
para a solidariedade e coesão grupais (típicos dos membros dos grupos dominados cuja
identidade é ameaçada pelo exterior) enquanto que aos portugueses são atribuídos traços
remetendo para a autonomia e independência (típicos dos membros dos grupos
dominantes, cuja singularidade e idiossincrasia não estão ameaçadas pela sua pertença
grupal).
Por último, as referências à cor da pele como marca exterior da pertença grupal
são mais frequentes para caracterizar os angolanos do que para caracterizar os
portugueses. Este resultado ilustra a forte associação entre nacionalidade e cor da pele,
que não são vistas pelos participantes como dimensões independentes. Remete
igualmente para a maior centralidade da cor da pele nos membros do grupo dominado
do que nos membros do grupo dominante, visto que nos primeiros funciona como
estigma que os demarca da sociedade em geral.
Tal como esperávamos, a maior diferenciação entre os grupos opera-se ao nível
das dimensões subjacentes aos conteúdos que lhe estão associados: sociabilidade
positiva, expressividade, exotismo e instrumentalidade negativa para os angolanos;
sociabilidade negativa, conservadorismo, dominância e instrumentalidade positiva para
os portugueses. Outro aspecto que ressalta dos nossos dados, é a maior diversidade de
conteúdos associados aos portugueses, o que aponta para uma representação mais
heterogénea, isto é, menos estereotipada, deste grupo.
O Estudo 3b permitiu-nos analisar de forma mais sistemática o carácter
estereotípico de um conjunto de traços relativamente ao grupo dos ‘angolanos’ e ao
grupo dos ‘portugueses’, através de duas escalas independentes, e averiguar a sua
valência avaliativa a partir da opinião pessoal dos participantes.
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
339
Da comparação dos estereótipos referentes aos dois grupos-alvo, ressaltam três
diferenças fundamentais. A primeira diferença diz respeito à consensualidade e força
dos estereótipos: o estereótipo dos portugueses é menos consensual e menos marcado do
que o estereótipo dos angolanos.
A segunda diferença diz respeito à valência dos estereótipos: o estereótipo dos
angolanos reúne apenas traços positivos, enquanto que o estereótipo dos portugueses
reúne também traços negativos, especialmente quando consideramos as respostas dos
participantes angolanos.
Por último, verifica-se uma diferenciação ao nível do conteúdo dos estereótipos: o
estereótipo dos angolanos reúne essencialmente traços ligados à expressividade, à
sociabilidade, à solidariedade e ao exotismo, enquanto que o estereótipo dos
portugueses apresenta essencialmente traços de instrumentalidade positiva e traços de
sociabilidade positiva e negativa. Estes resultados vão ao encontro dos já evidenciados
no estudo anterior e são consonantes com as nossas hipóteses.
No Estudo 3c analisámos o carácter estereotípico dos traços relativamente ao
grupo dos ‘angolanos’ e ao grupo dos ‘portugueses’, através de uma escala
interdependente, e averiguámos o significado dos traços tendo como referente o modelo
universal de pessoa. Quando comparamos os resultados deste estudo com os do estudo
anterior verificamos que alguns aspectos se mantêm enquanto outros se alteram
significativamente.
Relativamente ao significado dos traços, constatamos que os traços ligados ao
exotismo e à juventude são menos valorizados do que no estudo anterior (opinião
pessoal dos participantes) enquanto que os traços instrumentais são mais valorizados. O
grau de consenso relativamente ao significado dos traços permite-nos concluir que tanto
os participantes angolanos como os participantes portugueses reconhecem um universo
de valores comuns, que passa pela valorização da pessoa adulta caracterizada por traços
de instrumentalidade e sociabilidade positiva (Amâncio, 1989a).
No que diz respeito ao consenso e à força dos estereótipos, constatamos que o
estereótipo dos portugueses continua a ser menos consensual e menos marcado do que
o estereótipo dos angolanos, embora a diferença seja muito mais esbatida.
Contrariamente ao que se verificou no estudo anterior, o estereótipo dos
angolanos passa a incluir traços considerados negativos. Assim, verificamos que a
simples mudança de estratégia de recolha de dados - uma escala interdependente em vez
Racismo e Etnicidade em Portugal
340
de duas escalas independentes - provocou uma alteração bastante significativa nos
resultados: o estereótipo dos angolanos continua a incluir traços positivos ligados à
expressividade e sociabilidade positiva, mas passa a incluir também traços negativos
ligados à fraca instrumentalidade e à sociabilidade negativa. Por sua vez, o estereótipo
dos portugueses continua a apresentar traços ligados à instrumentalidade positiva e
traços de sociabilidade positiva e negativa.
No estudo em que a avaliação da estereotipicalidade foi realizada através de duas
escalas independentes os participantes angolanos apresentaram um nível de favoritismo
endogrupal superior ao dos participantes portugueses: os angolanos reivindicaram para
o endogrupo quase todas os traços positivos e negaram esses mesmos traços aos
portugueses enquanto que estes últimos atribuíram ao exogrupo mais traços positivos do
que ao endogrupo. Em contrapartida, no estudo em que a avaliação da
estereotipicalidade foi realizada através de uma escala interdependente ambos os grupos
atribuíram qualidades e defeitos ao endogrupo e ao exogrupo: aos angolanos foram
predominantemente reconhecidas qualidades de expressividade e sociabilidade positiva
enquanto aos portugueses foram reconhecidas qualidades instrumentais, mais próximas
do modelo de adulto.
Globalmente, as nossas hipóteses são corroboradas pelos dados. Tal como
esperávamos, os conteúdos associados a ambos os grupos são predominantemente
positivos. Assim, a maior diferenciação entre os grupos não se opera ao nível da
valência avaliativa dos conteúdos associados a cada grupo, mas ao nível das dimensões
subjacentes a esses conteúdos e ao nível do seu significado tendo como referente a
imagem universal de pessoa adulta. Os conteúdos associados aos angolanos são
predominantemente ligados à expressividade, ao exotismo, e à juventude, enquanto que
os conteúdos associados aos portugueses são fundamentalmente ligados à
instrumentalidade e à imagem de adulto. Quando temos em conta a opinião pessoal dos
participantes, todos eles jovens, o estereótipo dos angolanos é mais positivo pois
aproxima-se mais do modelo de jovem, mas quando temos em conta o universo comum
de valores o estereótipo dos portugueses aproxima-se mais do referente de pessoa
adulta.
Verificou-se um grande consenso entre participantes angolanos e participantes
portugueses quanto à valência dos conteúdos (avaliação tendo em conta a opinião
pessoal) e ao seu significado (avaliação tendo em conta o referente de adulto), mas
Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos
341
verificou-se menor grau de consenso quanto ao carácter estereotípico desses conteúdos,
nomeadamente nos traços negativos.
Finalmente, verificou-se um maior grau de consenso relativamente ao estereótipo
dos angolanos do que relativamente ao estereótipo dos portugueses, isto é, os angolanos
são vistos de forma mais estereotipada do que os portugueses.
Estes três estudos sobre o grau de consenso, o conteúdo e o significado dos
estereótipos do grupo dos angolanos e do grupo dos portugueses serviram-nos de base
para a construção do material-estímulo dos estudos experimentais seguintes, onde
vamos analisar mais sistematicamente a percepção da variabilidade grupal e o
favoritismo endogrupal.
Tese Rc Final
CAPÍTULO 5 -
ESTUDOS EXPERIMENTAIS:
DISCRIMINAÇÃO NO TRATAMENTO DA
INFORMAÇÃO
Racismo e Etnicidade em Portugal
344
5.1 Introdução
No capítulo anterior apresentámos e discutimos os resultados de cinco estudos
exploratórios. Nos dois primeiros estudos constatámos a centralidade da categorização
social baseada na cor da pele no posicionamento relativo de diversos grupos
minoritários na sociedade portuguesa. Com base nos resultados obtidos nestes dois
estudos seleccionámos dois grupos-alvo para aprofundar a nossa investigação. Estes
dois grupos-alvo são grupos ‘naturais’, com o mesmo grau de generalidade, mas com
um estatuto assimétrico na sociedade portuguesa: portugueses (grupo maioritário) e
angolanos (grupo minoritário). Nos três estudos exploratórios seguintes analisámos os
conteúdos que são associados a estes grupos, a valência avaliativa desses conteúdos e
seu significado simbólico, tendo como referência um universo de valores comum (e.g.,
Amâncio, 1989a; Deschamps, 1982a).
Com base nos resultados obtidos nestes estudos classificámos os traços em função
da sua estereotipicalidade (traços estereotípicos dos angolanos, traços estereotípicos dos
portugueses e traços não relevantes) e também em função da sua valência avaliativa
(traços positivos, traços negativos e traços neutros). Estes traços foram, como
explicaremos mais adiante, utilizados para construir os materiais-estímulo dos dois
estudos experimentais que apresentaremos neste capítulo, ambos realizados com
estudantes portugueses e angolanos a residir em Portugal.
Estes estudos experimentais diferem em alguns aspectos fundamentais da maior
parte da pesquisa que tem sido produzida sobre esta temática no âmbito da psicologia
social. Por um lado, temos em consideração as posições relativas dos grupos e os
significados que lhes estão associados (Amâncio, 1993/2000; Lorenzi-Cioldi, 1998).
Por outro, analisamos não só a perspectiva do agente da discriminação mas também a
do alvo da discriminação (Swim e Stangor, 1998). E, finalmente, recorremos a
diferentes tipos de medidas para a análise dos processos de discriminação, umas mais
explícitas ou ‘directas’ e outras mais implícitas ou ‘indirectas’. Como referimos na
introdução geral, a maior parte da investigação sobre esta temática tem sido efectuada
utilizando medidas ‘directas’, isto é, medidas em que os participantes facilmente se
podem aperceber dos objectivos da pesquisa e controlar as suas respostas no sentido do
que é ‘socialmente correcto’. Parece-nos, no entanto, que no estudo da discriminação
racial ou étnica, em que as questões de ordem normativa têm um peso significativo, se
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
345
torna particularmente relevante a utilização de medidas ‘indirectas’ ou ‘não-
obstrusivas’, de modo a ter acesso aos processos mais automáticos de processamento de
informação sobre os grupos.
Ambas as experiências que apresentamos neste capítulo são constituídas por duas
fases: na primeira os participantes são confrontados com uma tarefa de recuperação de
informação referente a pessoas-estímulo de dois grupos diferentes (medidas
‘indirectas’); e na segunda fase os participantes respondem a um questionário sobre
ambos os grupos (medidas ‘directas’). A maior diferença entre os dois estudos diz
respeito ao material-estímulo apresentado aos participantes na primeira fase: no Estudo
4 as pessoas-estímulo são categorizadas segundo a nacionalidade (angolanos vs.
portugueses) enquanto que no Estudo 5, dependendo da condição experimental, as
pessoas-estímulo são categorizadas em função da cor da pele (brancos vs. negros) ou
estão disponíveis ambas as categorizações (nacional e racial).
Em ambas os estudos analisamos os efeitos de categorização, os efeitos de
homogeneidade, os efeitos de favoritismo pelo grupo de pertença, e a relação entre os
efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo. Analisamos ainda em que medida
estes fenómenos são mediados pelo auto-conceito, pelos níveis de identificação com o
grupo de pertença e com o grupo dos outros e pelo nível de contacto entre os grupos. No
Estudo 5 analisamos ainda a relação entre as atitudes ou orientações racistas e os
processos perceptivos.
Racismo e Etnicidade em Portugal
346
5.2 Estudo 4 – Homogeneização de uma minoria nacional
5.2.1 Introdução
Neste estudo experimental prosseguimos objectivos de ordem teórica e de ordem
metodológica. Passamos de seguida à explicitação dos três objectivos teóricos deste
estudo e das respectivas hipóteses, e finalmente referiremos um objectivo metedológico.
1) O principal objectivo deste estudo experimental foi a análise do papel do
estatuto relativo dos grupos na percepção da homogeneidade grupal. Nesse sentido,
como já referimos, escolhemos dois grupos com estatuto assimétrico na sociedade
portuguesa e categorizados segundo a nacionalidade: o grupo maioritário (portugueses)
e um grupo minoritário (angolanos). Trata-se de grupos ‘reais’, com uma história, um
passado de relações e posicionamentos sociais relativos cujo peso contribui para a
saliência desta categorização.
Como referimos no Capítulo 3, de acordo com Lorenzi-Cioldi (1988; 1998), o
estatuto influencia profundamente o processamento da informação social: os grupos
dominantes enfatizam a distintividade individual e a diferenciação interpessoal,
enquanto que os grupos dominados salientam a indiferenciação dos seus membros,
definem-se e são definidos pelos outros em termos de características holísticas que
distinguem o seu grupo dos outros grupos. Assim, os membros do grupo dominado são
mais homogeneizados do que os membros do grupo dominante, independentemente do
observador ser ele próprio membro de um ou outro grupo.
Este modelo tem recebido algum apoio empírico com categorias sexuais: os
membros do grupo dominado – as mulheres - são mais homogeneizados do que os
membros do grupo dominante – os homens (e.g., Lorenzi-Cioldi, 1993; Lorenzi-Cioldi,
Eagly e Stewart, 1995). Contudo, a relevância desta perspectiva não se aplica só às
categorias sexuais, podendo ser estendida a outros grupos sociais ocupando posições
assimétricas na estrutura social, nomeadamente, os grupos étnicos.
Efeitos de homogeneidade. Considerando os resultados de estudos anteriores (e.g.,
Cabecinhas, 1994; Lorenzi-Cioldi, 1993; Lorenzi-Cioldi, Eagly e Stewart, 1995),
esperamos uma manifestação assimétrica do efeito de homogeneidade do exogrupo em
função do estatuto relativo dos grupos. Espera-se que os membros do grupo dominante
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
347
(portugueses) manifestem o efeito de homogeneidade do exogrupo enquanto que os
membros do grupo dominado (angolanos) homogenizem igualmente ambos os grupos,
ou manifestem mesmo a homogeneização do endogrupo.
2) Outro dos objectivos foi verificar se o efeito de homogeneidade do exogrupo é
moderado pelo favoritismo endogrupal - a tendência para favorecer o grupo de pertença
relativamente ao exogrupo (e.g., Brewer, 1979; Tajfel e Turner, 1979) - ou se se trata de
fenómenos independentes. Como referimos anteriormente, a relação entre os efeitos de
homogeneidade e o favoritismo endogrupal é ambígua tanto a nível teórico como a nível
empírico (e.g., Brewer, 1993; Judd et al., 1995).
Diversos autores têm estudado a relação entre o favoritismo pelo grupo de
pertença e o efeito de homogeneidade do exogrupo, mas os dados obtidos não são
inteiramente consistentes: uns apontam para uma interdependência entre estes dois
fenómenos (e.g., Simon, 1992b) enquanto que outros apontam para uma independência
(e.g., Krueger, 1992; Park e Rothbart, 1982).
Algumas pesquisas sugerem que a valência dos traços é um determinante
normativo-motivacional da homogeneidade percebida (Haslam et al., 1995). Contudo,
outros estudos indicam que a percepção de homogeneidade é equivalente em traços
favoráveis e desfavoráveis, sugerindo que o efeito de homogeneidade do exogrupo é
independente do favoritismo endogrupal (Jones et al., 1981; Park e Rothbart, 1982; Park
e Judd, 1990).
Relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo. Espera-se
que a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo é moderada
pelo estatuto relativo dos grupos - variável que tem sido negligenciada nos estudos
anteriores. Esperamos que os participantes tenham estratégias diferentes de
‘diferenciação positiva’ (Tajfel, 1984) em função do estatuto relativo dos grupos: para
os membros do grupo dominante (os portugueses) a ‘diferenciação positiva’ será
conseguida através da afirmação da heterogeneidade endogrupal, mesmo que isso
implique abdicar de traços estereotípicos positivos, enquanto que para os membros do
grupo dominado (os angolanos) a ‘diferenciação positiva’ será conseguida através da
reivindicação de traços estereotípicos positivos e a negação dos traços negativos,
contribuindo assim para a homogeneização do endogrupo.
Racismo e Etnicidade em Portugal
348
3) Pretendemos ainda explorar o papel mediador de algumas variáveis na
percepção da variabilidade e no favoritismo endogrupal: o nível de identificação com o
endogrupo e o exogrupo; o nível de contacto com o endogrupo e com o exogrupo; e a
representação do self.
O papel do nível de identificação com endogrupo já foi explorado em pesquisas
anteriores (e.g., Castano e Yzerbyt, 1998; Doosje et al., 1995), mas o papel da
identificação com o exogrupo tem sido negligenciado. Ora, parece-nos muito relevante
analisar também o papel da identificação com o exogrupo uma vez que os membros do
grupo minoritário (os angolanos) são imigrantes e poderão sentir-se muito identificados
com a sociedade de acolhimento (e.g., Berry, 1984, 1992), especialmente se a inserção
nessa sociedade ocorreu durante os períodos de socialização mais marcantes (infância,
adolescência).
Segundo Berry (1984, 1992) as estratégias dos imigrantes face à sociedade de
acolhimento podem assumir quatro modalidades: a assimilação caracteriza-se pela
interiorização da cultura da sociedade de acolhimento e pela perda da identidade
cultural de origem; a separação corresponde ao fechamento do grupo imigrante, isto é,
ao evitamento do contacto com os outros grupos no sentido da preservação da
identidade cultural de origem; a integração compreende a defesa da integridade da
cultura do grupo de pertença e, simultaneamente, o respeito pela cultura da sociedade de
acolhimento; e a marginalização, caracteriza-se pela não participação na sociedade de
acolhimento e, simultaneamente, pela perda da cultura de origem, o que se traduz num
estado de alienação psicológica.
De acordo com os resultados de estudos realizados com este modelo (e.g., Berry,
1984, 1992), o melhor equilíbrio nas relações intergrupais pode ser conseguido através
de estratégias de integração: os grupos minoritários conservam a sua identidade cultural
e, simultaneamente, respeitam e adoptam os valores da sociedade de acolhimento (para
uma revisão crítica deste modelo ver, por exemplo: Bourhis, Moïse, Perreault e Senécal,
1997; Khan, 1998).
Identificação grupal. Esperamos que os participantes de ambos os grupos (angolanos
e portugueses) manifestem uma identificação endogrupal superior à identificação
exogrupal, embora os níveis de identificação com o endogrupo e com o exogrupo possam
variar em função das estratégias de integração dos participantes angolanos na sociedade
portuguesa e do seu tempo de permanência em Portugal.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
349
Quanto à comparação dos níveis de identificação endogrupal em função do estatuto
dos grupos, tendo em conta os resultados de pesquisa anterior sobre os níveis de
identificação dos membros de grupos dominantes e de grupos dominados (e.g.,
Cabecinhas, 1994), esperamos encontrar um nível de identificação endogrupal superior
para os participantes angolanos do que para os participantes portugueses, já que os
primeiros sentiriam maior necessidade de proteger a sua identidade do que os segundos.
Quanto à comparação dos níveis de identificação exogrupal em função do estatuto
dos grupos, tendo em conta os resultados das pesquisas efectuadas no âmbito do modelo de
Berry (1984), esperamos encontrar um nível de identificação exogrupal superior para os
participantes angolanos do que para os participantes portugueses, já que os primeiros
poderão sentir-se identificados com a sociedade de acolhimento.
No global, esperamos que a diferença entre os níveis de identificação endogrupal e
exogrupal seja mais acentuada para os participantes portugueses do que para os
participantes angolanos. Relativamente a este último grupo, esperamos que esta diferença
seja tanto menor quanto maior for o seu tempo de permanência em Portugal.
Tendo em conta os resultados de pesquisas anteriores (e.g., Castano e Yzerbyt, 1998;
Doosje et al., 1995), esperamos que o grau de identificação endogrupal modere os efeitos
de homogeneidade: independentemente do grupo de pertença dos participantes, esperamos
que os participantes com elevado grau de identificação endogrupal manifestem um efeito
de homogeneidade do endogrupo mais forte do que os participantes com baixo grau de
identificação endogrupal. Também esperamos que o grau de identificação endogrupal
modere o favoritismo endogrupal: independentemente do grupo de pertença dos
participantes, esperamos que os participantes com elevado grau de identificação
endogrupal manifestem um favoritismo endogrupal mais forte do que os participantes com
baixo grau de identificação endogrupal.
O grau de contacto endogrupal e exogrupal constitui outro potencial mediador da
variabilidade grupal percebida e do favoritismo endogrupal. A familiaridade diferencial
com membros do endogrupo e com membros do exogrupo tem sido considerado um factor
chave para a compreensão dos efeitos de homogeneidade (e.g., Linville et al., 1986). No
entanto, o papel desta variável tem sido relativizado por diversos estudos, pois têm sido
observadas assimetrias na percepção da variabilidade de grupos sexuais (homens vs.
mulheres) que não podem ser justificados pela falta de contacto entre estes grupos (e.g.,
Cabecinhas, 1994; Lorenzi-Cioldi, 1993; Park e Rothbart, 1982). Embora o contacto por si
Racismo e Etnicidade em Portugal
350
só não possa justificar as assimetrias observadas, grande parte dos autores salienta que,
geralmente, um maior nível de contacto entre os grupos conduz a uma diminuição da força
dos estereótipos e, consequentemente, a um aumento da variabilidade grupal percebida. As
nossas hipóteses relativamente aos níveis de contactos são análogas às que apresentámos
relativamente aos níveis de identificação.
Nível de contacto. Esperamos que os participantes de ambos os grupos manifestem
um nível de contacto endogrupal superior ao nível de contacto exogrupal. Esperamos,
ainda, encontrar um nível de contacto exogrupal superior para os participantes angolanos
do que para os participantes portugueses, já que os primeiros, sendo imigrantes, têm maior
necessidade de contacto com a sociedade de acolhimento (e.g., Berry, 1984). No global,
esperamos que a diferença entre os níveis de contacto endogrupal e exogrupal seja mais
acentuada para os participantes portugueses do que para os participantes angolanos.
Relativamente a este último grupo, esperamos que esta diferença seja tanto menor quanto
maior for o seu tempo de permanência em Portugal.
Tendo em conta os resultados de pesquisas anteriores (e.g., Allport, 1954/1979;
Hewstone e Brown, 1988), esperamos que os participantes com elevado nível de contacto
com o exogrupo manifestem menor favoritismo endogrupal do que os participantes com
baixo grau de contacto com o exogrupo. De igual modo, esperamos que os participantes
com elevado nível de contacto com o exogrupo manifestem um menor efeito de
homogeneidade do exogrupo do que os participantes com baixo grau de contacto com o
exogrupo.
Na opinião de diversos autores, o efeito de homogeneidade do exogrupo deve-se em
parte à forma como os indivíduos se pensam a si próprios enquanto membros do
endogrupo (e.g., Judd e Park, 1988; Linville et al., 1989; Park e Judd, 1990). Porque o
indivíduo geralmente concebe o self como simultaneamente semelhante ao endogrupo mas
também como único (Codol, 1975, 1984; Tajfel e Turner, 1979), pensar no self enquanto
membro do endogrupo pode conduzir a percepções de maior variabilidade do endogrupo.
Segundo o modelo da co-variação (Deschamps, 1984), a diferenciação intragrupal e
a diferenciação intergrupal não são mutuamente exclusivas, mas podem ocorrer
simultaneamente. Para o autor, estas estratégias de diferenciação dependem do estatuto
relativo dos grupos: a diferenciação entre o self e o endogrupo é maior para os membros
dos grupos dominantes do que os membros dos grupos dominados.
Auto-conceito. Esperamos que a discrepância entre a descrição de si próprio e a
descrição do endogrupo seja maior para os participantes portugueses do que para os
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
351
participantes angolanos. Esperamos ainda que a auto-descrição dos participantes angolanos
seja mais consonante com os estereótipos do seu grupo do que a auto-descrição dos
participantes portugueses.
5) Para além dos objectivos teóricos atrás mencionados, temos um objectivo de
ordem metodológica. Uma vez que a magnitude dos efeitos de homogeneidade depende
do tipo de medidas utilizadas (Linville et al., 1989; Park e Judd, 1990; Ostrom e
Sedikides, 1992), alguns autores têm salientado a necessidade de confrontar diversos
tipos de medidas (e.g. Devos et al., 1996).
Como referimos no Capítulo 3, a maior parte da investigação sobre esta temática
tem sido efectuada utilizando medidas ‘directas’, isto é, medidas com grande validade
facial em que os participantes facilmente se podem aperceber dos objectivos da pesquisa
e controlar as suas respostas no sentido do ‘socialmente correcto’. Parece-nos que no
estudo da discriminação étnica, em que as questões de ordem normativa são muito
fortes, é particularmente relevante a utilização de medidas ‘indirectas’ ou ‘não-
obstrusivas’, de modo a ter acesso aos processos mais automáticos de processamento de
informação sobre os grupos.
Nesta investigação iremos testar a hipótese da assimetria do estatuto relativo dos
grupos sobre os efeitos de homogeneidade, recorrendo a diferentes tipos de medidas.
Assim, neste estudo experimental iremos utilizar medidas não-obstrusivas (tarefas de
recordação indiciada e de recordação livre) e medidas mais ‘clássicas’ (tarefas de
questionário), umas ligadas directamente ao conteúdo dos estereótipos grupais (tarefa de
estimação de percentagens; tarefa de estimação de médias; e tarefa de estimação de
amplitudes) e outras não relacionadas com o conteúdo dos estereótipos (tarefa de
estimação de distribuições; e tarefa de estimação de variabilidade).
Na literatura sobre relações intergrupais é frequente a ambiguidade entre os
efeitos de favoritismo e o efeito de homogeneidade do exogrupo. Frequentemente, as
medidas da variabilidade grupal percebida baseiam-se em traços cuja valência avaliativa
e cujo significado simbólico para os participantes não são controlados. Nesta
investigação efectuámos um grande esforço de ordem metodológica no sentido de
controlar exaustivamente todos os materiais-estímulo envolvidos, no sentido de evitar
uma ‘contaminação’ entre estes dois efeitos.
Assim foi efectuado um controlo sistemático da estereotipicalidade dos traços e da
sua valência, o que permitiu a operacionalização de novas ‘medidas’ no sentido de
Racismo e Etnicidade em Portugal
352
investigar os efeitos de homogeneidade controlando os efeitos de favoritismo, e
paralelamente, investigar os efeitos de favoritismo controlando os efeitos de
homogeneidade.
Referimos nesta introdução apenas as hipóteses gerais deste estudo experimental.
As hipóteses específicas relativas a cada tipo medida são explicitadas depois de
apresentado o procedimento de recolha e de análise dos dados.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
353
5.2.2 Método
5.2.2.1 Participantes e desenho experimental
Participaram neste estudo 163 estudantes universitários, 55 angolanos (20 rapazes
e 35 raparigas) e 108 estudantes portugueses (48 rapazes e 60 raparigas). A idade média
é de 22 anos, não diferindo significativamente em função do sexo dos participantes
(?2
=22.290, p<0.134). No entanto, a idade média difere significativamente em função
do grupo dos participantes, sendo os angolanos mais velhos do que os portugueses
(respectivamente 25 anos e 21 anos, ?2
=65.951, p<0.001).
Todos os participantes angolanos nasceram em Angola, tendo vindo para Portugal
para estudar (83.3%), para trabalhar (1.9%), ou à procura de melhores condições de vida
(14.8%). Vieram sozinhos (35.2%), com a família (50.0%), ou com amigos (9.3%). Em
média, vivem em Portugal há 7 anos, e 13.6 % adquiriram a nacionalidade portuguesa52
.
Estes dados foram recolhidos em Março e Abril de 1998.
Este estudo foi constituído por duas fases. Na primeira fase, foram apresentadas
aos participantes as descrições de oito pessoas-estímulo (quatro angolanas e quatro
portuguesas), sendo estes posteriormente confrontados com uma tarefa de recordação da
informação recebida (livre ou indiciada, conforme as condições experimentais). Estas
tarefas de memorização permitiram o cálculo de medidas indirectas de variabilidade
grupal percebida, como se explica mais adiante (ver Instrumentos de medida).
Cada participante recebeu informação referente a oito pessoas-estímulo, quatro
angolanas e quatro portuguesas. Os participantes de sexo masculino receberam
informação acerca de oito pessoas-estímulo do sexo masculino e os participantes de
sexo feminino receberam informação acerca de oito pessoas-estímulo do sexo
feminino53
. Por razões associadas ao controlo dos dados, utilizámos duas versões do
material-estímulo (versão A e versão B) e também duas ordens de apresentação das
pessoas-estímulo: para aproximadamente metade dos participantes a primeira pessoa-
52
Neste estudo, para efeitos de tratamento de dados foram considerados como angolanos, todos os
participantes de naturalidade angolana que se auto-categorizaram como sendo angolanos
(independentemente da sua nacionalidade ser angolana ou portuguesa).
53
Embora fosse interessante o cruzamento das variáveis “sexo do participante” e “sexo da pessoa-
estímulo”, isso implicaria um número de participantes muito superior ao que poderíamos dispor para
esta experiência (dado o reduzido número de estudantes angolanos em Braga), pelo que optámos por
trabalhar apenas com a variável “grupo do participante”, sendo os efeitos do sexo controlados no
tratamento de dados.
Racismo e Etnicidade em Portugal
354
estímulo a ser apresentada era angolana, sendo seguida de uma portuguesa, enquanto
que para a outra metade dos participantes a primeira pessoa-estímulo a ser apresentada
era portuguesa, sendo seguida de uma angolana e assim sucessivamente.
Na segunda fase, os participantes responderam a um questionário com medidas
‘directas’ da variabilidade grupal percebida de ambos os grupos, medidas de favoritismo
endogrupal, medidas de identificação com os grupos, medidas de contacto com os
grupos e, finalmente, medidas de controle do contexto e dos materiais da experiência.
Mais uma vez, a ordem das questões foi contrabalançada, sendo que aproximadamente
metade dos participantes começava por responder às questões sobre os angolanos e
depois respondia às questões sobre os portugueses, enquanto a outra metade dos
participantes começava por responder às questões sobre os portugueses e só depois
respondia em relação aos angolanos.
Assim, o desenho experimental foi o seguinte: 2 (grupo-alvo: endogrupo vs.
exogrupo) x 2 (grupo do participante: angolanos vs. portugueses) x 2 (sexo do
participante: masculino vs. feminino) x 2 (ordem de apresentação dos grupos-alvo:
primeiro os angolanos vs. primeiro os portugueses) x 2 (versão do material-estímulo: A
vs. B). Todas as variáveis são inter-participantes, à excepção da primeira que é intra-
participantes. Os participantes foram aleatoriamente distribuídos pelas diferentes
condições experimentais.
Tabela 31 - Distribuição dos participantes angolanos e portugueses por condição experimental
Grupo dos participantes
Condição experimental
Angolanos Portugueses Total
1 = Recordação indiciada - Ordem 1 - Versão A 4 16 20
2 = Recordação indiciada - Ordem 1 - Versão B 5 16 21
3 = Recordação indiciada - Ordem 2 - Versão A 6 9 15
4 = Recordação indiciada - Ordem 2 - Versão B 6 17 23
5 = Recordação livre - Ordem 1 - Versão A 7 14 21
6 = Recordação livre - Ordem 1 - Versão B 8 11 19
7 = Recordação livre - Ordem 2 - Versão A 10 13 23
8 = Recordação livre - Ordem 2 - Versão B 9 12 21
Total 55 108 163
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
355
5.2.2.2. Materiais-estímulo
As descrições das dezasseis pessoas-estímulo utilizadas nesta experiência (oito
para cada versão) foram elaboradas a partir dos resultados de um estudo piloto
efectuado com o objectivo de testar os materiais-estímulo. Antes de apresentarmos a
versão definitiva dos materiais-estímulo utilizados neste estudo experimental, iremos
descrever sumariamente o estudo piloto efectuado e os seus principais resultados.
5.2.2.2.1 Teste dos materiais-estímulo (Estudo piloto)
Vinte e quatro estudantes portugueses (8 rapazes e 16 raparigas) e 18 estudantes
angolanos (11 rapazes e 7 raparigas) responderam a um questionário (ver Anexo 10) cujo
objectivo era testar os materiais-estímulo do Estudo 4: testar a coerência das descrições das
pessoas-estímulo; testar a valência e estereotipicalidade dos atributos utilizados nessas
descrições; testar a sua adequabilidade para descrever pessoas-estímulo de sexo masculino
e feminino; e seleccionar os nomes próprios a atribuir às pessoas-alvo angolanas e
portuguesas.
Previamente à realização deste estudo piloto uma equipa de juízes composta por
dois angolanos (um rapaz e uma rapariga) e dois portugueses (um rapaz e uma rapariga)
realizou uma análise de conteúdo do vocabulário obtido no Estudo 3a. Os atributos
foram agrupados em 10 categorias. As 8 categorias com maior número de atributos
foram seleccionadas como base para a construção das descrições das pessoas-estímulo:
“relação com a família”, “tempo livre”, “estilo de vida”, “vestuário”, “atitude em
relação ao trabalho”, “atitude em relação ao dinheiro”, “sociabilidade” e “gastronomia”.
Os participantes no estudo piloto eram confrontados com 16 ‘perfis’ que
consistiam na descrição de pessoas hipotéticas. Cada perfil era designado por um número
(de 1 a 16) e era composto por quatro atributos seleccionados a partir das 8 categorias
atrás referidas (cada atributo correspondia a uma categoria diferente). A tarefa dos
participantes era avaliar a coerência de cada um desses perfis numa escala de 7 pontos
(1 = “nada coerente”; 7 = “muito coerente”).
Seguidamente, os participantes recebiam a lista de todos os atributos constantes
nos perfis (ordenados aleatoriamente) e era-lhes pedido para classificar em que medida
cada um dos atributos era masculino, feminino ou igualmente característico de homens
e mulheres, usando a seguinte classificação: M = "Esta característica aplica-se
Racismo e Etnicidade em Portugal
356
exclusivamente aos homens”; N = " Esta característica aplica-se tanto aos homens como
às mulheres”; F = " Esta característica aplica-se exclusivamente às mulheres”.
Ainda relativamente à mesma lista de atributos, era pedido aos participantes para
estimarem, através de três escalas de 7 pontos independentes (tal como no Estudo 3b), a
estereotipicalidade de cada atributo em relação aos angolanos, a estereotipicalidade de
cada atributo em relação aos portugueses e a valência avaliativa de cada atributo.
Seguidamente, os participantes deveriam classificar cada uma das oito categorias
de atributos (relação com a família, tempo livre, estilo de vida, etc.) utilizadas nas
descrições em função da sua pertença à esfera pública ou privada (1 = “Esta dimensão
pertence à esfera privada”; 2 = “Esta dimensão pertence à esfera pública”).
Finalmente, pedia-se aos participantes para referirem os oito nomes próprios
(masculinos e femininos) que considerassem mais frequentes nos jovens angolanos e
nos jovens portugueses. Sendo assim, cada participante deveria referir 32 nomes
próprios, 8 para cada categoria.
Terminado o preenchimento do questionário, a investigadora pedia para os
participantes comentarem os perfis avaliados no início da sessão e, no caso de terem
classificado algum dos perfis como não coerente, referirem o motivo.
Globalmente, os perfis angolanos (M=4.19) foram considerados mais coerentes do
que os perfis portugueses (M=3.97), ?F(1,40)=2.731, p<0.045?. Os atributos incluídos
nos perfis portugueses (M=4.96) foram percebidos como estereotípicos dos portugueses,
?t(41)=10.35, p<0.0001?. De igual modo, os atributos incluídos nos perfis angolanos
(M=5.01) foram percebidos como estereotípicos dos angolanos ?t(41)=10.49,
p<0.0001?.
Relativamente à valência avaliativa, tanto os atributos incluídos nos perfis
portugueses como os incluídos nos perfis angolanos foram considerados globalmente
positivos ?respectivamente: M=4.81, t(41)=9.201, p<0.0001; e M=4.36, t(41)=3.782,
p<0.0001?.
Globalmente, os atributos incluídos nos perfis foram considerados como
aplicando-se igualmente a ambos os sexos, uma vez que a média geral (M=1.97) não
diferiu significativamente do ponto neutro da escala ?t(41)=1.24, p<0.22?. Contudo, os
atributos incluídos nos perfis portugueses foram considerados como aplicando-se mais
ao sexo masculino (M=1.94) do que os atributos incluídos nos perfis angolanos
(M=2.02), ?F(1,40)=13.63, p<0.001?.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
357
Relativamente às oito categorias de atributos incluídas nos perfis, as categorias
“família”, “tempo livre”, “estilo de vida” e “vestuário” foram consideradas como
pertencendo à esfera privada ?M=1.30; t(1,39)=-5.71, p<0.0005? e as categorias
“trabalho”, “dinheiro”, “sociabilidade” e “gastronomia” foram consideradas como
pertencendo à esfera pública ?M=1.68; t(1,39)=5.85, p<0.0005?.
Considerando estes resultados e os comentários dos participantes, efectuámos
alterações consideráveis nos perfis originalmente apresentados no sentido de aumentar a
sua coerência.
Seleccionámos os oito nomes próprios masculinos e os oito nomes próprios
femininos considerados mais comuns pelos participantes e atribuímos esses nomes aos
perfis (pessoas-estímulo). De acordo com os dados deste estudo (ver Anexo 11), os
nomes próprios mais frequentes são os mesmos para os jovens angolanos e portugueses,
assim o nome atribuído às pessoas-estímulo não permite a sua identificação étnica. A
este propósito é de recordar que este estudo foi efectuado em 1998, sendo a idade média
dos participantes de 22 anos, o que significa que a grande maioria destes estudantes
nasceu pouco antes ou pouco depois do 25 de Abril de 1974. Ora, segundo algumas
entrevistas exploratórias por nós realizadas, o uso de nomes próprios tradicionais
angolanos só começou a vulgarizar-se depois da independência de Angola.
5.2.2.2.2 Versão definitiva do material-estímulo
A Tabela 32 e a Tabela 33 apresentam a versão definitiva dos dezasseis perfis
usados neste estudo experimental, depois das modificações efectuadas com base no
estudo piloto. Resumidamente, os atributos seleccionados a partir do Estudo 3a foram
distribuídos pelas duas versões do material-estímulo. A Versão A descreve quatro
pessoas-estímulo angolanas através das categorias “família”, “tempo livre”, “estilo de
vida” e “vestuário” (consideradas como pertencendo à esfera privada, de acordo com os
resultados do estudo piloto) e quatro pessoas-estímulo portuguesas através das
categorias “trabalho”, “dinheiro”, “sociabilidade” e “gastronomia” (consideradas como
pertencendo à esfera pública, de acordo com os resultados do estudo piloto). A Versão
B inverte as categorias associadas às pessoas-estímulo angolanas e portuguesas, isto é,
as quatro pessoas-estímulo angolanas são descritas através das categorias “trabalho”,
“dinheiro”, “sociabilidade” e “gastronomia” (esfera pública) enquanto as quatro
pessoas-estímulo portuguesas são descritas através das categorias “família”, “tempo
livre”, “estilo de vida” e “vestuário” (esfera privada).
Racismo e Etnicidade em Portugal
358
Assim, ambas as versões do material-estímulo contêm 32 atributos e cada pessoa-
estímulo é descrita através de quatro atributos. A ordem de apresentação dos atributos
dentro de cada versão do material-estímulo foi mantida fixa (de acordo com a ordem
que está indicada na Tabela 32 e na Tabela 33)54
.
54
Como podemos verificar, os atributos para as categorias “família”, “estilo de vida”, “dinheiro” e
“sociabilidade” são os mesmos para descrever as pessoas -estímulo angolanas e portuguesas. Na
primeira versão do material-estímulo, só os atributos relativos às categorias “família” e “sociabilidade”
eram iguais, visto que segundo os resultados do Estudo 3a, estas dimensões eram muito importantes
para descrever tanto os angolanos como os portugueses, no entanto, em função do estudo piloto
efectuado para testar os materiais -estímulo optámos por colocar também os mesmos atributos para as
dimensões “estilo de vida” e “dinheiro” na versão definitiva do material-estímulo. De facto, enquanto
no estudo 3a os participantes eram levados a pensar nos angolanos e nos portugueses em geral, neste
estudo os participantes eram levados a pensar especificamente em jovens, segundo as instruções:
“Nesta página e seguintes, ser-lhe-ão apresentados os perfis de 16 jovens. Cada jovem é descrito
através de quatro características. Gostaríamos que examinasse cada um desses perfis e avaliasse a sua
coerência, utilizando a escala que se segue”. Em função dos comentários dos participantes
relativamente aos perfis considerados inconsistentes, podemos constatar que a clivagem entre
angolanos e portugueses relativamente à atitude face ao “dinheiro” e ao “estilo de vida” se prende
essencialmente com a imagem dos adultos, sendo os jovens angolanos e portugueses percebidos como
idênticos nestes duas dimensões.
Tabela 32 - Materiais-estímulo (Versão A)
Versão A Família Tempo livre Estilo de vida Vestuário Trabalho Dinheiro Sociabilidade Gastronomia
Angolanos (m/f)
Manuel/Ana
Pensa
frequentemente
na família
Adora dançar Aventureiro/a
Gosta dos
trajes
tradicionais
Jorge/Paula
Está muito
ligado/a
à família
Anda sempre
em festas
Dinâmico/a
Veste-se
bem
António/Carla
Respeita as
tradições
familiares
Costuma ver
telenovelas
Simples
Gosta de
roupas
coloridas
João/Sónia
Costuma pedir
conselhos aos
familiares
Gosta de rap Activo/a
Usa roupas
largas
Portugueses (m/f)
José/Maria
Planifica o seu
futuro profissional
Tem hábitos de
poupança
Simpático/a
Grande
apreciador/a
de bacalhau
Paulo/Sandra Muito estudioso/a
Tem dificuldades
económicas
Amigável
Gosta de
uma boa
sardinhada
Pedro/Joana Trabalha bastante
Gosta de esbanjar
dinheiro
Comunicativo/a
Apreciador/a
de
bom vinho
Carlos/Isabel
Empenhado/a na
sua carreira
profissional
Despreocupado/a
com o dinheiro
Acolhedor/a
Gosta muito
de feijoada
Tabela 33 - Materiais-estímulo (Versão B)
Versão B Família Tempo livre Estilo de vida Vestuário Trabalho Dinheiro Sociabilidade Gastronomia
Angolanos (m/f)
Manuel/Ana Trabalha pouco
Despreocupado/a
com o dinheiro
Simpático/a
Gosta de
mandioca
Jorge/Paula Vive o dia-a-dia
Gosta de esbanjar
dinheiro
Amigável
Adora
comida
picante
António/Carla
Pouco dedicado/a
ao trabalho
Tem dificuldades
económicas
Comunicativo/a
Apreciador/a
de cerveja
João/Sónia
Despreocupado/a
com a sua carreira
profissional
Tem hábitos de
poupança
Acolhedor/a
Gosta de
óleo de
palma
Portugueses (m/f)
José/Maria
Pensa
frequentemente
na família
Vai
regularmente
ao cinema
Dinâmico/a
Gosta de
andar na
moda
Paulo/Sandra
Está muito
ligado/a
à família
Gosta da vida
nocturna
Activo/a
Veste roupa
de marca
Pedro/Joana
Costuma pedir
conselhos aos
familiares
Pratica
desportos
radicais
Aventureiro/a
Usa calças
de ganga
Carlos/Isabel
Respeita as
tradições
familiares
Gosta de fado Simples
Veste cores
sóbrias
Racismo e etnicidade em Portugal
361
Quanto às variáveis dependentes medidas por questionário, os julgamentos sobre
os grupos-alvo foram efectuados a partir de uma reduzida lista de traços que era
apresentada aos participantes. Estes traços foram seleccionados a partir dos resultados
do Estudo 3b, tendo em conta os seguintes critérios: a existência de consenso entre os
participantes angolanos e portugueses quanto ao carácter estereotípico de cada traço e
simultaneamente quanto à sua valência avaliativa55
.
Assim foram seleccionados: dois traços estereotípicos dos angolanos – festivos
(positivo) e preguiçosos (negativo); dois traços estereotípicos dos portugueses –
trabalhadores (positivo) e individualistas (negativo); e ainda quatro traços considerados
neutros tanto no que respeita à estereotipicalidade como no que respeita à valência
avaliativa – gulosos, impulsivos, tradicionalistas e vaidosos.
5.2.2.3 Procedimento de recolha de dados
Os estudantes angolanos e portugueses participaram na experiência em pequenos
grupos, sendo os dados recolhidos sempre pela mesma investigadora. No início da
sessão, foram convidados a participar numa experiência sobre percepção de pessoas,
sendo-lhes dito que iriam receber informação acerca de oito jovens, sendo a sua tarefa
formar uma impressão acerca de cada jovem. Seguidamente os participantes foram
confrontados com uma tarefa de recordação da informação recebida.
A investigadora começa por distribuir a cada participante um caderno (tamanho
A7) com as descrições das oito pessoas-estímulo (quatro angolanas e quatro
portuguesas). Os rapazes recebem informação sobre oito pessoas-estímulo do sexo
masculino, enquanto que as raparigas recebem informação sobre oito pessoas-estímulo
do sexo feminino (ver Anexo 12). Na folha de rosto do caderno, as instruções explicam
aos participantes que a sua tarefa é formar uma impressão e recordar a informação
recebida sobre cada pessoa-estímulo e que só deverão avançar na leitura de cada página
à medida que forem recebendo instruções nesse sentido por parte da investigadora.
Cada pessoa-estímulo é descrita numa página separada. No topo da página, em
destaque, aparece o nome próprio e a pertença étnica (exemplo: Manuel, Angolano), e
55
Sendo díficil encontrar atributos negativos considerados consensualmente (tanto por participantes
angolanos como por participantes portugueses) estereotípicos de cada grupo-alvo, recorremos aos
atributos negativos cuja classificação mais se aproximou dos valores exigidos para serem considerados
estereotípicos de um grupo e contra-estereotípico do outro grupo.
Racismo e Etnicidade em Portugal
362
seguidamente, os quatro atributos, cada um numa linha diferente. A apresentação das
pessoas-estímulo é feita em ordem alternada: uma angolana, seguida de uma portuguesa,
seguida de uma angolana, e assim sucessivamente. Aproximadamente metade dos
participantes começa por uma pessoa-estímulo angolana seguida de uma portuguesa
(Ordem 1) e a outra metade dos participantes começa por uma pessoa-estímulo portuguesa
seguida de uma angolana (Ordem 2).
O procedimento seguinte difere ligeiramente conforme a condição de recordação. Na
condição de recordação indiciada os participantes têm 20 segundos para examinar cada
página, isto é, cada descrição, sendo a investigadora que, com a ajuda de um cronómetro
indica aos participantes o momento de passar à página seguinte. Terminada a leitura das
oito descrições (2’40’’), a investigadora recolhe os materiais e distribui a cada participante
uma página A4 com uma matriz contendo 8 colunas (cada uma encabeçada pelo nome de
uma pessoa-estímulo e a respectiva identificação étnica) e 32 linhas (contendo em ordem
aleatória os atributos constantes nos perfis das pessoas-estímulo). Os participantes são
instruídos no sentido de indicarem que pessoa-estímulo era descrita por cada atributo,
colocando uma cruz na coluna apropriada para cada linha da matriz56
. Passados 10
minutos, é dada por terminada a tarefa de recordação indiciada e são recolhidas as matrizes
de resposta.
Na condição de recordação livre os participantes têm 30 segundos para examinar
cada página, sendo a investigadora que, com a ajuda de um cronómetro indica aos
participantes o momento de passar à página seguinte. Terminada a leitura das oito
descrições (4’), a investigadora recolhe os materiais e distribui a cada participante um
caderno (tamanho A7) com 16 páginas em branco. Depois de uma pequena explicação, a
investigadora pede aos participantes para recordarem os atributos das pessoas-estímulo
angolanas (Ordem 1) ou das pessoas-estímulo portuguesas (Ordem 2) “na ordem que vos
vier à cabeça”. A folha de rosto do caderno explica aos participantes que deverão listar um
atributo por página e passar à página seguinte, sem voltar atrás. Passados 10 minutos, a
investigadora recolhe este caderno, e distribui um outro a cada participante, pedindo-lhes
para recordarem os atributos das pessoas-estímulo portuguesas (Ordem 1) ou das pessoas-
56
Foram utilizadas oito matrizes de recordação diferentes em função das quatro condições experimentais
associadas à recordação indiciada e ainda em função do sexo do participante (que coincidia sempre
com o sexo das pessoas-estímulo): 1AM = Ordem 1 – Versão A – Masculino; 2AM = Ordem 2 –
Versão A – Masculino; 1BM = Ordem 1 – Versão B – Masculino; 2BM = Ordem 2 – Versão B –
Masculino; 1AF = Ordem 1 – Versão A – Feminino; 2AF = Ordem 2 – Versão A – Feminino; 1BF =
Ordem 1 – Versão B – Feminino; 2BF = Ordem 2 – Versão B – Feminino (ver Anexo 13).
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
363
estímulo angolanas (Ordem 2). Passados 10 minutos, é dada por terminada a tarefa de
recordação livre e são recolhidos os cadernos referentes à recordação dos atributos do
segundo grupo-alvo.
Assim, aproximadamente metade dos participantes recordava primeiro as
características das pessoas-estímulo angolanas e depois as características das pessoas-
estímulo portuguesas (Ordem 1) e a outra metade dos participantes recordava primeiro
as características das pessoas-estímulo portuguesas e depois as características das
pessoas-estímulo angolanas (Ordem 2).
Uma vez recolhidos os materiais correspondentes à tarefa de recordação (as
matrizes no caso da recordação indiciada ou os cadernos A7 no caso da recordação
livre), cada participante recebe um questionário (ver Anexo 15) com uma série de
questões sobre cada um dos grupos-alvo: os angolanos e os portugueses, sendo a ordem
dos grupos-alvo contrabalançada. A investigadora salienta que a tarefa seguinte será de
natureza completamente diferente da precedente, pois o que interessa agora é a opinião dos
participantes sobre uma série de questões, apela à sinceridade dos participantes no
preenchimento das suas respostas e garante a confidencialidade das mesmas.
Na primeira secção do questionário os participantes realizaram uma série de
tarefas que consistiam na descrição dos dois grupos-alvo através de um número limitado
de atributos e que permitiram o cálculo de diversas medidas de variabilidade grupal
percebida, medidas de tendência central percebida e também medidas de favoritismo
endogrupal. Seguidamente, era pedido aos participantes para se descreverem a si
próprios através dos mesmos atributos usados para descrever os grupos-alvo.
Na segunda secção do questionário, os participantes responderam a uma série de
questões sobre o nível de identificação com o endogrupo e com o exogrupo e também
sobre o nível de contacto com o endogrupo e com o exogrupo. Estas questões permitiram
investigar o papel mediador destas variáveis na percepção da variabilidade grupal e no
favoritismo endogrupal.
Na terceira secção do questionário, os participantes responderam a várias questões
cujo objectivo era controlar os materiais-estímulo (estereotipicalidade e valência dos
traços) e o contexto desta investigação (estatuto social percebido e estatuto numérico
percebido).
Racismo e Etnicidade em Portugal
364
Por último, os participantes respondiam a questões de identificação: sexo, idade,
nacionalidade e naturalidade. No caso da naturalidade não ser portuguesa, deveriam
responder ainda a três questões relativas às circunstâncias da sua vinda para Portugal57
.
Finalmente, a investigadora recolhia os questionários, esclarecia os objectivos do
estudo, agradecia a participação dos estudantes e respondia às suas eventuais questões.
5.2.2.4 Instrumentos de medida
Seguidamente apresentaremos os instrumentos de medida utilizados neste estudo
na ordem em que vão ser apresentados na secção de resultados. Começaremos por
explicar a construção das medidas ‘indirectas’ derivadas das tarefas de recordação
indiciada e de recordação livre. Seguidamente apresentaremos as medidas ‘directas’
derivadas das tarefas de questionário. Uma vez que algumas das tarefas do questionário
deram origem a diferentes tipos de medidas, apresentaremos as medidas tarefa a tarefa
para facilitar a compreensão. A Tabela 34 resume todas as questões e tarefas envolvidas
neste estudo e as respectivas medidas.
57
As questões eram as seguintes: a) Há quantos anos reside em Portugal?; b) Qual o motivo que o trouxe
a Portugal? (1 = estudar; 2 = trabalhar; 3 =outro motivo; qual?); c) Qual foi a sua situação quando
chegou a Portugal? (1 = sozinho; 2 = com a família; 3 = com os amigos; 4 = outra situação; qual?).
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
365
Tabela 34 - Síntese dos instrumentos de medida
Tipo de medida Questões / Tarefas
Caracterização dos
participantes
Sexo
Idade
Nacionalidade
Naturalidade
Tempo de permanência em Portugal*
Motivo da vinda para Portugal*
Situação*
Controlo do contexto da
experiência
Estatuto social percebido
Estatuto numérico percebido
Valência dos traços
Estereotipicalidade dos traços
Efeitos de categorização Recordação indiciada
Efeitos de homogeneidade
Recordação indiciada
Recordação livre
Estimação de percentagens
Estimação de médias
Estimação de amplitudes
Estimação de distribuições
Estimação de variabilidade
Efeitos de Favoritismo
Estimação de percentagens
Estimação de médias
Auto-descrição Auto-descrição
Identificação grupal Nível de identificação nacional
Contacto intergrupal
Nível de familiaridade
Número de amigos
Nota: As questões assinaladas com asterisco só foram respondidas pelos participantes angolanos.
5.2.2.4.1 Medidas de controlo dos materiais e do contexto da investigação
Estatuto social relativo percebido. Tal como no Estudo 2, foi pedido aos
participantes para situarem o endogrupo e o exogrupo em seis escalas (de 0 a 100mm)
relativas ao nível educacional, ao nível cultural, ao nível económico, ao estatuto social,
ao prestígio, e ao poder. A média destas seis escalas foi considerada como um indicador
do estatuto social relativo (ver ponto 4.3.2.3).
Estatuto numérico relativo percebido. Foi pedido aos participantes para
estimarem a percentagem de vários grupos na população residente em Portugal,
incluindo os Portugueses e os Angolanos.
Racismo e Etnicidade em Portugal
366
Estereotipicalidade dos traços. Tal como no Estudo 3b, foi pedido aos
participantes para estimarem a estereotipicalidade de cada um dos traços usados no
questionário através de duas escalas de sete pontos, uma para averiguar a
estereotipicalidade em relação aos angolanos, e outra para avaliar a estereotipicalidade
em relação aos portugueses (ver ponto 4.4.3.1.3).
Valência dos traços. Tal como no Estudo 3b, foi pedido aos participantes para
estimarem a valência avaliativa de cada um dos traços usados no questionário através de
uma escala de sete pontos (ver ponto 4.4.3.1.3).
5.2.2.4.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada
A tarefa de recordação indiciada permite o cálculo do número de respostas
correctas assim como de diferentes tipos de erros (ou confusões entre as pessoas-
estímulo). Os diferentes tipos de erros podem ser usados para avaliar em que medida os
participantes percebem o endogrupo e o exogrupo de forma mais ou menos homogénea.
O efeito de categorização pode ser medido através da proporção de erros inter-
categoriais e intra-categoriais. Os erros intergrupais correspondem à atribuição de uma
característica pertencente a uma pessoa-estímulo de um grupo a uma pessoa-estímulo de
outro grupo (por exemplo, atribuir uma característica do Manuel, angolano, ao Pedro,
português, e vice-versa). Os erros intragrupais correspondem à atribuição de uma
característica pertencente a uma pessoa-estímulo de um grupo a outra pessoa desse
mesmo grupo (por exemplo: atribuir uma característica do Manuel ao Jorge, ambos
angolanos; ou atribuir uma característica do Pedro ao Paulo, ambos portugueses).
Como o número de erros intergrupais esperados ao acaso é superior ao número de
erros intragrupais, corrigimos os erros intergrupais multiplicando por 3/4, seguindo o
procedimento de Taylor et al. (1978). (Num grupo com oito pessoas-estímulo, quatro de
cada grupo, cada atributo pode ser correctamente emparelhado com o alvo;
incorrectamente atribuído a uma das três outras pessoas-estímulo do mesmo grupo; ou
incorrectamente atribuído a qualquer das quatro pessoas-estímulo do outro grupo). O
efeito de categorização pode ser inferido a partir do maior número de erros intragrupais
do que erros intergrupais (Taylor et al., 1978).
Para averiguar os efeitos de homogeneidade, os erros intragrupais foram depois
classificados em função da sua relevância em termos do grupo de pertença de cada
participante: erros endogrupais versus erros exogrupais. Os erros endogrupais
correspondem à atribuição de uma característica de uma pessoa-estímulo pertencente ao
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
367
mesmo grupo do participante a outra pessoa-estímulo do mesmo grupo e os erros
exogrupais correspondem à atribuição de uma característica de uma pessoa-estímulo
pertencente a um grupo étnico diferente do participante a outra pessoa-estímulo desse
outro grupo. O efeito de homogeneidade do exogrupo pode ser inferido a partir do
maior número de erros exogrupais que endogrupais (Lorenzi-Cioldi, 1993).
5.2.2.4.3 Medidas indirectas – Tarefa de recordação livre
A tarefa de recordação livre permite uma análise alternativa da estrutura da
informação recuperada (Ostrom et al., 1993; Sedikides, 1997). A descrição das pessoas-
estímulo oferecia uma base para duas formas ortogonais de organizar a informação,
quer em termos pessoais (Manuel, José, etc.) quer em termos das categorias de atributos
(família, trabalho, etc.).
Para averiguar a forma como os participantes organizaram a informação foram
calculados dois tipos de clustering scores: organização da informação em termos
pessoais (person clustering) ou em termos das categorias de atributos (atribut
clustering)58
. Para tal usámos o Adjusted Ratio of Clustering59
(ARC), desenvolvido por
Roenker, Thompson e Brown (1971). Este índice é baseado na frequência com que dois
items da mesma categoria cognitiva são listados em sequência directa durante a tarefa
de recordação (repetições). Se a frequência é significativamente maior do que a
esperada ao acaso é presumido que esta categoria foi usada pelos participantes como
uma base para recuperar a informação memorizada. Um ARC-score com valor 0 (zero)
indica clustering ao acaso; um ARC-score positivo, diferente de zero, indica uma
organização da informação em termos das categorias previstas pelo investigador (pessoa
ou categoria de atributo, neste caso). Um ARC-score negativo indica que os
58
Mais uma vez nos confrontamos com um problema de tradução a partir do inglês. O termo clustering
(organização, aglomeração, conglomeração) foi aqui traduzido por tipo de organização da informação.
Assim a variável clustering category (person clustering vs. attribut clustering) é por nós referida como:
tipo de organização da informação (organização pessoal vs. organização categorial) (cf: Sedikides,
1997).
59
A fórmula matemática para o ARC-score é a seguinte: ARC = [R – E(R)]/ [maxR – E(R)].
Em que: R = número total de repetições observadas (i.e., o número de vezes que um item de
determinada categoria é seguido por um item da mesma categoria); MaxR = o número máximo
possível de repetições de cada categoria; E(R) = o número esperado (ao acaso) de repetições
categoriais. MaxR = N – k, onde N = número total de items recordados, e k = o número de categorias
representado no protocolo de recordação. E(R) = [? ni2 ]/N –1, onde ni = número de items recordados
da categoria i, e N é o mesmo que na formula anterior.
Os ARC-scores têm sido considerados por diversos autores como a medida mais adequada para
tratamento dos protocolos de recordação livre (Ostromet al., 1993; Taylor e Fiske, 1981).
Racismo e Etnicidade em Portugal
368
participantes usaram categorias de clustering diferentes do esquema de codificação do
experimentador.
Calculámos quatro ARC-scores para cada participante: um ARC-score reflecte o
clustering em função das pessoas do endogrupo; outro em função dos atributos do
endogrupo; outro em função de pessoas do exogrupo; e outro em função dos atributos
do exogrupo.
Previamente ao cálculo dos ARC-scores foi necessário um trabalho de codificação
dos protocolos de recordação dos participantes, tendo em conta as seguintes variáveis
dependentes: número total de atributos recordados; número total de duplos (atributos
repetidos); número total de intrusos tipo A (atributos falsos); número total de intrusos
tipo B (erros intergrupais); número total de intrusos C (atributos falsos mas
correspondentes às categorias de atributo apresentadas); número total de atributos
recordados de cada pessoa-estímulo (José, Manuel, etc.); número total de atributos
recordados de cada categoria de atributo (família, trabalho, etc.); número total de
repetições observadas para cada pessoa-estímulo; número total de repetições observadas
de atributo. Este trabalho de codificação dos protocolos de recordação livre foi realizado
separadamente para cada participante e para cada grupo-alvo, isto é, para cada
participante foram preenchidas duas folhas de codificação, uma relativa ao endogrupo e
outra relativa ao exogrupo (ver Anexo 14).
5.2.2.4.4 Medidas directas – Tarefas de questionário
Tarefa de estimação de percentagens (percentage estimates task, Park e Rothbart,
1982). Os participantes foram confrontados com quatro traços, dois estereotípicos dos
angolanos e dois estereotípicos dos portugueses (de acordo com os resultados obtidos no
Estudo 3b). Estes traços eram os seguintes: festivos e preguiçosos (estereotípicos dos
angolanos); e trabalhadores e individualistas (estereotípicos dos portugueses). A tarefa
dos participantes era estimar a percentagem (de 0% a 100%) de membros de cada um
dos grupos-alvo que possuía cada um destes traços.
Seguindo o procedimento de Park e Judd (1990), a partir desta tarefa calculámos
uma medida de tendência central, uma medida de variabilidade grupal percebida, e uma
medida de favoritismo endogrupal.
A percentagem média de cada grupo nos quatro traços foi considerada como uma
medida de tendência central (PERMG). Para calcular a medida de variabilidade grupal
percebida, subtraímos a média dos traços contra-estereotípicos à média dos traços
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
369
estereotípicos (PERSC)60
. O valor desta diferença (traços estereotípicos minus traços
contra-estereotípicos) reflecte em que medida os membros do grupo são vistos como
conformando-se com o estereótipo grupal. Valores elevados indicam baixa variabilidade
grupal percebida (muitos membros do grupo são vistos como possuindo os traços
estereotípicos e poucos são vistos como possuindo os traços contra-estereotípicos).
Valores baixos indicam alta variabilidade grupal percebida ou menor conformidade com
o estereótipo grupal. Para calcular a medida de favoritismo endogrupal, subtraímos a
média dos traços positivos à média dos traços negativos (PERPN)61
. O valor desta
diferença (traços positivos minus traços negativos) reflecte em que medida o endogrupo
é descrito de forma mais positiva do que o exogrupo.
Para além destas medidas utilizadas por Park e Judd (1990), procedemos ainda à
operacionalização de novas medidas de variabilidade grupal percebida que nos
permitissem realizar análises de variância separadamente para traços positivos e para
traços negativos, no sentido de controlar os efeitos de favoritismo nestas. Assim
calculámos de novo a diferença entre os traços estereotípicos e contra-estereotípicos (S –
CS), mas em vez de uma medida envolvendo os quatro atributos utilizados para descrever
cada grupo-alvo (festivos, preguiçosos, trabalhadores, e individualistas; os dois primeiros
estereotípicos dos angolanos e contra-estereotípicos dos portugueses e os dois últimos
estereotípicos dos portugueses e contra-estereotípicos dos angolanos), calculámos duas
medidas: uma referente apenas aos traços positivos (festivos e trabalhadores); e outra
referente apenas aos traços negativos (preguiçosos e individualistas). Para facilitar o rápido
reconhecimento destas novas medidas, designámos PERSC(+)
à medida baseada
exclusivamente nos traços positivos e PERSC(-)
à medida baseada exclusivamente nos
traços negativos62
.
60
As medidas baseadas na diferença entre traços estereotípicos minus contra-estereótipos (S – CS) foram
calculadas da seguinte forma: para o grupo-alvo «angolanos» (S – CS) = ?(alegres + preguiçosos)/2? -
?(trabalhadores + individualistas)/2? enquanto que para o grupo-alvo «portugueses» (S – CS) =
?(trabalhadores + individualistas)/2? - ?(alegres + preguiçosos)/2?.
61
Para calcular as medidas baseadas na diferença entre traços positivos minus negativos procedemos ao
seguinte cálculo: (P – N) = ?(alegres + trabalhadores)/2? - ?(preguiçosos + individualistas)/2?,
independentemente do grupo do participante e do grupo-alvo.
62
Para o cálculo da medida PERSC(+)
procedemos do seguinte modo: para os participantes angolanos, a
medida PERSC(+)
para o endogrupo = alegres (S) – trabalhadores (CS) e para o exogrupo =
trabalhadores (S) – alegres (CS); para os participantes portugueses, a medida PERSC(+)
para o
endogrupo = trabalhadores (S) – alegres (CS) e para o exogrupo = alegres (S) – trabalhadores (CS).
Para o cálculo da medida PERSC(-)
procedemos do seguinte modo: para os participantes angolanos, a
medida PERSC(-)
para o endogrupo = preguiçosos (S) – individualistas (CS) e para o exogrupo =
individualistas (S) – preguiçosos (CS); para os participantes portugueses, a medida PERSC(-)
para o
Racismo e Etnicidade em Portugal
370
Paralelamente calculámos de novo a diferença entre traços positivos e negativos (P –
N), não tendo em conta os quatro atributos para cada grupo (festivos, trabalhadores,
preguiçosos e individualistas; os dois primeiros positivos e os dois últimos negativos), mas
sim separadamente para traços estereotípicos e para traços contra-estereotípicos de cada
grupo-alvo, isto é, em vez de uma medida de favoritismo, calculámos duas: uma referente
apenas aos traços estereotípicos; e outra referente apenas aos traços contra-estereotípicos.
Para facilitar o rápido reconhecimento destas novas medidas, designámos PERPN(S)
à
medida baseada exclusivamente nos traços estereotípicos e PERPN(CS)
à medida baseada
exclusivamente nos traços contra-estereotípicos63
.
Tarefa de estimação de médias (central tendency task, Park e Judd, 1990). Os
participantes foram confrontados com os mesmos quatro traços da tarefa anterior e foi-
lhes pedido para estimar a média de cada grupo marcando uma cruz em quatro linhas de
100mm de comprimento, cujos extremos correspondiam à presença ou ausência de cada
um dos traços (e.g., nada festivo – muito festivo).
A partir desta tarefa calculámos uma medida de tendência central, uma medida de
variabilidade grupal percebida, e uma medida de favoritismo endogrupal, seguindo o
procedimento de Park e Judd (1990). O valor médio de cada grupo nos quatro traços foi
tomado como um indicador da tendência central (MEDMG). A diferença entre a
pontuação atribuída aos membros extremos do grupo foi considerada como a amplitude
percebida em cada traço (AMPLI). Tal como na tarefa anterior, a média dos traços
contra-estereotípicos foi subtraída à média dos traços estereotípicos (MEDSC). Foi
também calculada uma medida de favoritismo endogrupal, através da subtracção da
média dos traços negativos à média dos traços positivos (MEDPN).
Posteriormente, tal como procedemos relativamente à tarefa anterior,
operacionalizámos novas medidas de variabilidade grupal percebida (controlando os
efeitos da valência dos traços) e novas medidas de favoritismo (controlando os efeitos
endogrupo = individualistas (S) – preguiçosos (CS) e para o exogrupo = preguiçosos (S) –
individualistas (CS).
63
Para o cálculo da medida PERPN(S)
procedemos do seguinte modo: para os participantes angolanos, a
medida PERPN(S)
para o endogrupo = alegres (P) – preguiçosos (N) e para o exogrupo = trabalhadores
(P) – individualista (N); para os participantes portugueses, a medida PERPN(S)
para o endogrupo =
trabalhadores (P) – individualista (N) e para o exogrupo = alegres (P) – preguiçosos (N). Para o cálculo
da medida PERPN(CS)
procedemos do seguinte modo: para os participantes angolanos, a medida
PERPN(CS)
para o endogrupo = trabalhadores (P) – individualista (N), e para o exogrupo = alegres (P)
– preguiçosos (N); para os participantes portugueses, a medida PERPN(CS)
para o endogrupo = alegres
(P) – preguiçosos (N), e para o exogrupo = trabalhadores (P) – individualista (N).
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
371
da estereotipicalidade dos traços). Nesse sentido, recalculámos a medida MEDSC em
função da valência dos traços, o que resultou em duas novas medidas: uma para os
traços positivos ?MEDSC(+)
?e outra para os traços negativos ?MEDSC(-)
?. De igual modo
recalculámos a medida MEDPN em função da estereotipicalidade dos traços: uma para
os traços estereotípicos ?MEDPN(S)
? e outra para os traços contra-estereotípicos
?MEDPN(CS)
?.
Tarefa estimação de amplitude (range task, Park e Judd, 1990). Os participantes
foram confrontados com os mesmos quatro traços da tarefa anterior e foi-lhes pedido
para indicarem onde se situavam os membros mais extremos do grupo efectuando duas
cruzes em cada uma das quatro linhas de 100mm (por exemplo: foi-lhes pedido para
indicarem onde se situaria a pessoa menos festiva e também onde se situaria a pessoa
mais festiva). Assim, enquanto na tarefa anterior os participantes julgaram a tendência
central do grupo nesta tarefa julgaram a sua dispersão.
Para cada um dos quatro traços foi calculada a diferença entre a pontuação
atribuída aos membros extremos do grupo, o que corresponde à amplitude percebida
(AMPLI). A média da amplitude percebida nos quatro traços foi considerada como uma
medida de variabilidade grupal percebida.
Tarefa de estimação de distribuição (distribution task, Linville et al., 1989). Os
participantes foram confrontados com quatro traços considerados neutros: gulosos,
impulsivos, tradicionalistas e vaidosos. Foi-lhes pedido para considerarem 100
angolanos (ou portugueses) ao acaso e para indicarem a sua distribuição numa dada
dimensão, colocando um número em cada um dos sete níveis da dimensão, sendo que a
soma desses números deveria corresponder a 100. Assim, a tarefa dos participantes era
distribuir os 100 membros do grupo ao longo de um contínuo designado no seu extremo
baixo pela ausência do traço (e.g., nada guloso) e no seu extremo alto pela presença do
traço (e.g., muito guloso).
Para cada uma destas quatro distribuições, foi calculado o índice de probabilidade
de diferenciação (DISPD), a variabilidade percebida (DISVP), e a média (DISMG).
Segundo Linville et al. (1989), a probalidade de diferenciação corresponde à
Racismo e Etnicidade em Portugal
372
probabilidade de distinguir entre os membros do grupo e a variabilidade percebida
corresponde ao grau de dispersão dos membros do grupo64
.
Tarefa de estimação de variabilidade (Similarity task, Quattrone e Jones, 1980).
Foi pedido aos participantes para avaliarem globalmente a variabilidade grupal, usando
uma escala de sete pontos, cujos extremos eram 1 = “eles são todos semelhantes” e 7=
“eles são todos completamente diferentes”. Os valores directos fornecidos pelos
participantes foram considerados como indicadores da variabilidade grupal percebida
(VARIA).
Auto-descrição (Self-description, Park e Judd, 1990). Os participantes foram
confrontados com os quatro atributos usados anteriormente para descrever o endogrupo
e o exogrupo, sendo-lhes pedido para se descreverem a si próprios marcando com uma
cruz o lugar apropriado em quatro linhas rectas de 100mm, cujos extremos
correspondiam à presença ou ausência de cada atributo (e.g., nada festivo – muito
festivo).
A partir desta tarefa foram calculadas três medidas seguindo o procedimento de
Park e Judd (1990). A medida AUTSC65
reflecte a diferença entre a média obtida na
auto-descrição nos atributos estereotípicos e nos atributos contra-estereotípicos. Valores
elevados indicam maior conformidade com o estereótipo endogrupal. A medida
AUTPN reflecte a diferença entre os atributos positivos e negativos na auto-descrição.
Pequenos valores indicam que os participantes se descrevem a si próprios e ao
endogrupo de forma muito semelhante. A medida AUTDA reflecte a distância absoluta
entre a média obtida na auto-descrição e a média atribuída ao endogrupo (MEDM).
Posteriormente, procedemos à operacionalização de novas medidas da distância
entre a auto-descrição e a tendência central atribuída ao endogrupo controlando os
efeitos da estereotipicalidade dos traços e os efeitos da valência dos traços. Nesse
64
Para cada uma das quatro distribuições, calculámos a tendência central (DISMG = ? PiXi, onde Pi é
igual à proporção dos membros da categoria descritos pelo nível i do traço em questão e Xi é o valor
da escala desse i), a variabilidade percebida (DISVP = ? Pi(Xi – M)2), e a probabilidade de
diferenciação (DISPD = 1 - ? pi2).
65
As medidas derivadas da auto-descrição baseadas na diferença entre traços estereotípicos minus contra-
estereótipos foram calculadas da seguinte forma: para os participantes angolanos (S – CS) =
?(alegres + preguiçosos)/2? - ?(trabalhadores + individualistas)/2? enquanto que para os participantes
portugueses (S – CS) = ?(trabalhadores + individualistas)/2?- ?(alegres + preguiçosos)/2?.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
373
sentido, recalculámos a medida AUTDA em função do carácter estereotípico ou contra-
estereotípico dos traços (AUTDA-SC). De igual modo, recalculámos a medida AUTDA
tendo em conta a valência dos traços (AUTDA-PN). A medida AUTDA-SC indica até
que ponto a distância da auto-descrição do indivíduo face à tendência central atribuída
ao seu endogrupo é maior para os traços estereotípicos ou para os traços contra-
estereotípicos (traços estereotípicos vs. traços contra-estereotípicos), enquanto que a
medida AUTDA-PN indica até que ponto a distância da auto-descrição do indivíduo
face à tendência central atribuída ao seu endogrupo é maior para os traços positivos ou
para os traços negativos (traços positivos vs. traços negativos).
Nível de identificação grupal. Foi pedido aos participantes para avaliarem em que
medida se sentiam identificados com o “grupo dos angolanos” e com o “grupo dos
portugueses”, através de uma escala de sete pontos, variando entre 1= “nada
identificado” a 7= “muito fortemente”.
Nível de contacto grupal. Foi pedido aos participantes para avaliarem o nível de
contacto com o endogrupo e com o exogrupo através de três escalas de sete pontos e
uma questão aberta 66
.
A Tabela 35 especifica as várias medidas de variabilidade grupal percebida, de
tendência central percebida e de favoritismo endogrupal derivadas das tarefas do
questionário. Estas medidas vão ser a partir de agora designadas pelas respectivas
abreviaturas.
66
As questões eram as seguintes: “Gostaríamos de saber qual é o seu grau de familiaridade com os
angolanos/ portugueses. Por favor, faça uma cruz no número que corresponde à sua opinião. O seu
contacto com os angolanos/ portugueses é …(1=muito distante; 7=muito próximo). Costuma convidar
angolanos/portugueses para sair? (1=nunca; 7=sempre). Costuma convidar angolanos/portugueses para
ir a sua casa? (1=nunca; 7=sempre). Quantos amigos angolanos/portugueses você tem? (questão
aberta).
Tabela 35 - Medidas derivadas do questionário e respectivas abreviaturas
Tarefas
Medidas de
variabilidade percebida
Medidas de
tendência central
Medidas de
favoritismo endogrupal
Percentagens
PERSC: traços estereotípicos – traços contra-
estereotípicos
PERSC(+): traços estereotípicos positivos – traços
contra-estereotípicos positivos
PERSC(-): traços estereotípicos negativos – traços
contra-estereotípicos negativos
PERMG
PERPN: traços positivos – traços negativos
PERPN(S): traços estereotípicos positivos –
traços estereotípicos negativos
PERPN(CS): traços contra-estereotípicos
positivos – traços contra-estereotípicos
negativos
Médias
MEDSC: traços estereotípicos – traços contra-
estereotípicos
MEDSC(+): traços estereotípicos positivos – traços
contra-estereotípicos positivos
MEDSC(-): traços estereotípicos negativos – traços
contra-estereotípicos negativos
MEDMG
MEDPN: traços positivos – traços negativos
MEDPN(S): traços estereotípicos positivos –
traços estereotípicos negativos
MEDPN(CS):traços contra-estereotípicos
positivos – traços contra-estereotípicos
negativos
Amplitudes AMPLI: diferença entre extremos
Distribuições
DISPD: probabilidade de diferenciação (Pd)
DISVP: variabilidade percebida
DISMG
Variabilidade VARIA: variabilidade percebida (valores directos)
Auto-
descrição
AUTSC: traços estereotípicos – traços contra-
estereotípicos
AUTDA: distância absoluta face à média geral do
endogrupo (MEDMG)
AUTD-SC: distância face à média geral do endogrupo
em função do carácter estereotípico dos traços (S
- CS)
AUTPN: traços positivos – traços negativos
AUTD-PN: distância face à média geral do
endogrupo em função da valência
avaliativa dos traços (P- N)
Racismo e etnicidade em Portugal
375
5.2.2.5 Procedimento de análise de dados
Numa fase inicial do tratamento de dados, realizámos análises de variância tendo
como variáveis independentes o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo), o grupo do
participante (angolanos vs. portugueses), o sexo do participante (masculino vs.
feminino), a ordem de apresentação (primeiro angolanos vs. primeiro portugueses) e -
no caso das medidas derivadas das tarefas de recordação - a versão do material-estímulo
(A vs. B).
Como a variável “sexo do participante” não produziu quaisquer efeitos
significativos, foram realizadas novas análises sem incluir esta variável. A variável
“ordem de apresentação” foi excluída das análises relativas às medidas derivadas do
questionário por não ter produzido nenhum efeito significativo nestas medidas, mas foi
mantida na análise das medidas derivadas das tarefas de recordação.
5.2.2.5.1 Controlo dos materiais-estímulo e do contexto da experiência
Começámos por verificar se existia um consenso entre os participantes angolanos
e portugueses quanto ao estatuto social percebido e ao estatuto numérico percebido de
ambos os grupos-alvo (ver procedimento de análise de dados do Estudo 2).
Seguidamente verificámos se a valência avaliativa e a estereotipicalidade dos
traços utilizados para descrever os grupos-alvo tinham sido consideradas da forma
prevista pelos participantes na experiência. Este controlo era particularmente importante
relativamente aos quatro traços usados para calcular as medidas de variabilidade
percebida e de favoritismo que derivam do questionário (festivos, trabalhadores,
individualistas e preguiçosos), pois poderia inviabilizar a construção destas medidas
(ver procedimento de análise de dados do Estudo 3b).
5.2.2.5.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada
Exactidão da recordação. As respostas correctas foram submetidas a uma análise
de variância (ANOVA) tendo o grupo do participante, a ordem de apresentação e a
versão do material-estímulo como variáveis independentes.
Efeito de categorização. Para examinar o efeito de categorização, efectuámos uma
análise de variância multivariada (MANOVA) com medidas repetidas no primeiro
factor: 2 (tipo de erro: intragrupais vs. intergrupais) x 2 (grupo do participante) x 2
(ordem de apresentação) x 2 (versão do material-estímulo). O efeito de categorização
Racismo e etnicidade em Portugal
376
pode ser inferido na medida em que os participantes efectuarem mais os erros
intragrupais do que intergrupais, isto é, se verificar um efeito principal do tipo de erro.
Efeitos de homogeneidade. Para investigar os efeitos de homogeneidade, os erros
intragrupais foram examinados através de uma análise de variância multivariada
(MANOVA), com medidas repetidas no primeiro factor: 2 (tipo de erro: erros
endogrupais vs. erros exogrupais) x 2 (grupo do participante) x 2 (versão do material-
estímulo) x 2 (ordem de apresentação). O efeito de homogeneidade do exogrupo pode
ser inferido na medida em que os participantes efectuarem mais erros exogrupais do que
endogrupais, isto é, se se verificar um efeito principal da variável tipo de erro. Em
contrapartida, a hipótese de assimetria nos efeitos de homogeneidade toma a forma de
um efeito de interacção entre o grupo do participante e o grupo-alvo67
.
5.2.2.5.3 Medidas indirectas – Tarefa de recordação livre
Quantidade de informação recordada. O número total de atributos correctamente
recordados foi submetido a uma análise de variância (ANOVA), tendo como variáveis
independentes o grupo do participante (angolanos vs. portugueses), a versão do
material-estímulo (A vs. B) e a ordem de apresentação (primeiro angolanos vs. primeiro
portugueses). O número total de atributos correctamente recordados foi igualmente
submetido a uma análise de variância multivariada (MANOVA), com medidas repetidas
no primeiro factor: 2 (grupo-alvo: pessoas-estímulo angolanas vs. pessoas-estímulo
67
A análise dos efeitos de homogeneidade pode ser efectuada de duas formas alternativas: em vez de
classificar os erros intragrupais em função da sua relevância para o grupo de pertença do participante
(pessoas -estímulo do endogrupo vs. pessoas -estímulo do exogrupo), podemos classifica-los em função
do grupo de pertença das pessoas -estímulo (pessoas -estímulo angolanas vs. pessoas -estímulo
portuguesas). Neste caso, a nossa hipótese toma a forma de um efeito principal do tipo de erro
intragrupal. Isto é, espera-se que tanto os participantes angolanos como os participantes portugueses
cometam maior número de erros em relação a alvos angolanos do que a alvos portugueses (efeito de
homogeneidade do grupo dominado). Contudo, não necessitamos de efectuar ambas as análises, pois
elas são estatisticamente redundantes. Quando temos em conta a relação entre os participantes e as
pessoas -estímulo (pessoas-estímulo do endogrupo vs. pessoas-estímulo do exogrupo) o efeito de
homogeneidade do exogrupo (ou do endogrupo) corresponde a um efeito principal do tipo de erro
intragrupal e o efeito de homogeneidade do grupo dominado corresponde a um efeito de interacção
entre o grupo do participante (angolanos vs. portugueses) e o tipo de erro intragrupal. Inversamente,
quando temos em conta o estatuto relativo das pessoas -estímulo (pessoas -estímulo angolanas vs.
pessoas -estímulo portuguesas), o efeito de homogeneidade do grupo dominado corresponde a um
efeito principal do tipo de erro intragrupal e o efeito de homogeneidade do exogrupo (ou do
endogrupo) corresponde a um efeito de interacção entre o grupo do participante (angolanos vs.
portugueses) e o tipo de erro intragrupal. Como os valores do F, os graus de liberdade e os níveis de
significância são exactamente os mesmos nos dois tipos de análise, teremos em conta as duas
perspectivas de análise mas, para não tornar o texto demasiado pesado, apresentaremos apenas uma das
análises estatísticas: em termos de endogrupo versus exogrupo.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
377
portuguesas) x 2 (grupo do participante) x 2 (versão do material-estímulo) x 2 (ordem da
recordação).
Efeitos de homogeneidade. Os ARC-scores foram submetidos a uma análise
multivariada de variância (MANOVA) com medidas repetidas nos dois últimos
factores: 2 (grupo do participante: angolanos vs. portugueses) x 2 (versão do material-
estímulo: A vs. B) x 2 (ordem de recordação: as pessoas-estímulo angolanas recordadas
em primeiro lugar vs. as pessoas-estímulo portuguesas recordadas em primeiro lugar) x 2
(grupo-alvo: endogrupo vs. exogrupo) x 2 (tipo de organização da informação:
organização pessoal vs. organização categorial). Neste caso, a hipótese de assimetria nos
efeitos de homogeneidade toma a forma de uma tripla interacção entre o grupo do
participante, o grupo-alvo e o tipo de organização da informação.
5.2.2.5.4 Medidas directas – Tarefas de questionário
Efeitos de homogeneidade. Os resultados obtidos em cada uma das medidas de
variabilidade grupal percebida calculadas a partir do questionário (PERSC, MEDSC,
AMPLI, DISPD, DISPV e VARIA) foram submetidos a análises multivariadas de
variância tendo o grupo do participante (angolanos vs. portugueses) como variável
independente e o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável dependente68
.
Neste caso, a hipótese de assimetria nos efeitos de homogeneidade toma a forma de um
efeito de interacção entre o grupo do participante e o grupo-alvo.
Efeitos de favoritismo. Os resultados obtidos nas medidas de favoritismo
endogrupal (PERPN e MEDPN) foram igualmente submetidos a análises multivariadas
de variância tendo o grupo do participante (angolanos vs. portugueses) como variável
independente e o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável dependente. O
favoritismo endogrupal é revelado quando é atribuída ao endogrupo uma média superior
nos traços positivos comparativamente com o exogrupo, e uma média inferior nos traços
negativos, isto é, quando se verifica um efeito principal do grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo).
68
Análises de variância prévias tendo o “sexo do participante” (masculino vs. feminino) e a “ordem de
apresentação” (primeiro angolanos vs. primeiro portugueses) como variáveis independentes não
produziram quaisquer resultados significativos, pelo que foram realizadas novas análises sem incluir
estas variáveis.
Racismo e etnicidade em Portugal
378
Relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo
Explorámos a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo
a partir dos dados provenientes das tarefas de estimação de percentagens e de estimação
de médias. Uma vez que os quatro atributos utilizados nestas tarefas permitiam tanto o
cálculo de medidas de variabilidade grupal percebida (PERSC e MEDPN) como de
medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN), começámos por verificar se
existiria uma relação entre estas duas medidas.
Assim, os dados referentes a cada uma destas tarefas (estimação de percentagens e
estimação de medias) foram analisados através de uma análise de variância multivariada
(MANOVA), com medidas repetidas nos três primeiros factores: 2 x (grupo-alvo:
endogrupo vs. exogrupo) x 2 (estereotipicalidade dos traços: estereotípico vs. contra-
estereotípico) x 2 (valência dos traços: positivos vs. negativos) x 2 (grupo dos
participantes: angolanos vs. portugueses).
Este tipo de análise de variância, para além de nos permitir confirmar os efeitos da
estereotipicalidade dos traços (previamente analisados a partir das PERSC e MEDSC) e
os efeitos da valência dos traços (previamente analisados a partir das medidas PERPN e
MEDPN), permite-nos averiguar os efeitos conjuntos da estereotipicalidade dos traços e
da sua valência, o que nos fornece uma indicação sobre a relação entre os fenómenos
em estudo.
Neste caso, o favoritismo endogrupal pode ser avaliado pela interacção entre o
grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo), e a valência dos atributos (positivos vs.
negativos). Existe evidência de favoritismo endogrupal quando os participantes
atribuem uma maior diferença entre os traços positivos e os traços negativos (P – N)
para o endogrupo do que para o exogrupo.
Em contrapartida, o efeito de homogeneidade do exogrupo pode ser avaliado pela
interacção entre o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) e a estereotipicalidade dos
traços (estereotípicos vs. contra-estereotípicos). Existe evidência de o efeito de
homogeneidade do exogrupo quando os participantes atribuem uma menor diferença
entre os traços estereotípicos e os traços contra-estereotípicos (S – SC) para o
endogrupo do que para o exogrupo.
Se se verificar uma tripla interacção entre o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo),
a estereotipicalidade dos traços (estereotípicos vs. contra-estereotípicos), e a valência
dos mesmos (positivos vs. negativos), então poderemos considerar a existência de uma
relação entre o efeito de homogeneidade do exogrupo e o favoritismo endogrupal.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
379
Se se verificar uma quádrupla interacção entre o grupo do participante (angolanos
vs. portugueses), o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo), a estereotipicalidade dos
traços (estereotípicos vs. contra-estereotípicos), e a valência dos mesmos (positivos vs.
negativos), então poderemos considerar a existência de uma assimetria na relação entre
o efeito de homogeneidade do exogrupo e o favoritismo endogrupal em função do
estatuto dos grupos.
Dadas as dificuldades de interpretação dos resultados de interacções triplas e,
mais ainda, quádruplas, procedemos ao cálculo de novas medidas de variabilidade grupal
percebida separadamente para os traços positivos ?PERSC(+)
? e para os traços negativos
?PERSC(-)
?, como explicámos no ponto 5.2.2.4.4. Paralelamente, calculámos duas novas
medidas de favoritismo separadamente para traços estereotípicos ?PERPN(S)
?e para traços
contra-estereotípicos ?PERPN(CS)
?. Cada uma destas quatro novas medidas (duas de
variabilidade grupal percebida e duas de favoritismo endogrupal) foi submetida a análises
de variância multivariadas, tendo o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável
intra-participantes e o grupo dos participantes (angolanos vs. portugueses) como variável
inter-participante.
Auto-descrição
Começamos por averiguar se existiam diferenças significativas para cada uma das
medidas derivadas da tarefa de auto-descrição (AUTSC, AUTPN, AUTDA, AUTD-SC
e AUTD-PN) em função do grupo do participante.
A medida AUDSC (auto-descrição em função do carácter estereotípico ou contra-
estereotípico dos traços para o endogrupo) foi submetida a uma análise de variância
multivariada tendo a estereotipicalidade dos traços como variável intra-participantes e o
grupo dos participantes como variável inter-participantes.
A medida AUDPN (auto-descrição em função do carácter positivo ou negativo
dos traços) foi submetida a uma análise de variância multivariada tendo como variável
intra-participantes a valência dos traços e como variável inter-participantes o grupo dos
participantes.
A medida AUTDA (distância absoluta face à media do endogrupo) foi submetida a
uma análise de variância simples tendo como variável independente o grupo dos
participantes.
Racismo e etnicidade em Portugal
380
A medida AUTDA-SC indica até que ponto a distância da auto-descrição do
indivíduo face à tendência central atribuída ao seu endogrupo é maior para os traços
estereotípicos ou para os traços contra-estereotípicos. Esta medida foi submetida a uma
análise de variância multivariada tendo a estereotipicalidade dos traços como variável
intra-participantes e o grupo dos participantes como variável inter-participantes.
A medida AUTDA-PN indica até que ponto a distância da auto-descrição do
indivíduo face à tendência central atribuída ao seu endogrupo é maior para os traços
positivos ou para os traços negativos. Esta medida foi submetida a uma análise de
variância multivariada tendo a estereotipicalidade dos traços como variável intra-
participantes e o grupo dos participantes como variável inter-participantes.
Seguidamente, analisámos as correlações entre as medidas derivadas da tarefa de
auto-descrição dos participantes e as diferentes medidas de variabilidade grupal
percebida (PERSC, MEDSC, AMPLI, VARIA, DISPV e DISPD). Em primeiro lugar,
verificámos se a discrepância entre a auto-descrição e a tendência central do endogrupo
permitia predizer a variabilidade grupal percebida. Assim, investigámos as correlações
entre a distância absoluta face à media geral do endogrupo e várias medidas de
variabilidade grupal percebida. Em segundo lugar, averiguámos se o facto de o
indivíduo se descrever em consonância com os estereótipos do seu grupo estaria
relacionado com uma percepção do endogrupo como mais ou menos homogéneo.
Nível de identificação grupal
Os valores de identificação endogrupal e exogrupal foram analisados através de
uma análise de variância multivariada, tendo o grupo-alvo de identificação (endogrupo
vs. exogrupo) como variável dependente e o grupo dos participantes como variável
independente.
No caso dos participantes angolanos analisámos também a influência do tempo de
permanência no país de acolhimento nos níveis de identificação nacional e exogrupal.
Nesse sentido, dividimos a amostra dos estudantes angolanos em dois grupos (com base
no valor da mediana da variável tempo de permanência em Portugal): aqueles que
residem há menos de 6 anos em Portugal; e aqueles que residem há mais de 6 anos em
Portugal.
As medidas de identificação (endogrupal vs. exogrupal) foram submetidas a uma
análise de variância multivariada tendo o grupo-alvo de identificação como variável
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
381
intra-participantes e o tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de
6 anos) como variável inter-participantes. Realizámos também duas análises de
variância tendo como variável independente o tempo de permanência em Portugal, uma
tendo o nível de identificação endogrupal como variável dependente e outra tendo o
nível de identificação exogrupal como variável dependente.
Para analisar o impacto da identificação grupal nos efeitos de homogeneidade e
nos efeitos de favoritismo, efectuámos uma classificação dos participantes de ambos os
grupos, tendo em conta o valor da mediana de cada grupo para cada uma das medidas
(identificação endogrupal e identificação exogrupal), dividindo assim os participantes
em “fortemente identificados” e “fracamente identificados”. (Para os participantes
angolanos a mediana da identificação endogrupal foi =6 e a mediana da identificação
exogrupal foi =3; para os participantes portugueses a mediana da identificação
endogrupal foi =6 e a mediana da identificação exogrupal foi =2).
Analisámos o impacto do grau de identificação endogrupal e exogrupal em
diversas medidas de variabilidade grupal percebida (PERSC, MEDSC, AMPLI e
VARIA) e nas duas medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN). Para cada
uma destas medidas foi efectuada uma análise de variância multivariada, tendo a
identificação endogrupal, a identificação exogrupal e o grupo do participante como
variáveis inter-participantes e o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável
intra-participante.
Nível de contacto
Os valores referentes aos níveis de contacto foram submetidos a análises de
variância multivariada tendo o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável
intra-participantes e o grupo do participante como variável inter-participante. Foram
efectuadas duas análises separadas: uma para o nível de familiaridade (correspondente à
média das três escalas) e outra ao número de amigos69
.
Tal como efectuámos em relação aos níveis de identificação, analisámos os níveis de
contacto endogrupal e exogrupal dos participantes angolanos em função do seu tempo de
permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos). As medidas de
familiaridade (endogrupo vs. exogrupo) foram submetidas a uma análise de variância
multivariada tendo o grupo-alvo de identificação como variável intra-participantes e o
69
Foram excluídos da análise 8 participantes angolanos por referirem um número de amigos igual ou
superior a 1000.
Racismo e etnicidade em Portugal
382
tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) como variável
inter-participantes.
Realizámos também duas análises de variância tendo como variável independente o
tempo de permanência em Portugal, uma tendo o nível de familiaridade endogrupal como
variável dependente e outra tendo o nível de familiaridade exogrupal como variável
dependente.
Para analisar o impacto do nível de contacto endogrupal e do nível de contacto
exogrupal nos efeitos de homogeneidade e no favoritismo endogrupal, efectuámos uma
classificação dos participantes de ambos os grupos, tendo em conta o valor da mediana de
cada grupo para cada uma das medidas (contacto endogrupal e contacto exogrupal),
dividindo assim os participantes conforme o alto ou baixo nível de contacto. (Para os
participantes angolanos a mediana do contacto endogrupal foi =6 e a mediana do contacto
exogrupal foi =4.67; para os participantes portugueses a mediana do contacto endogrupal
foi =6.33 e a mediana do contacto exogrupal foi =2.00).
Analisámos o impacto do grau de contacto endogrupal e exogrupal em diversas
medidas de variabilidade grupal percebida (PERSC, MEDSC, AMPLI e VARIA) e nas
duas medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN). Para cada uma destas
medidas foi efectuada uma análise de variância multivariada, tendo como variáveis inter-
participantes o contacto endogrupal, o contacto exogrupal e o grupo do participante e como
variável intra-participante o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo).
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
383
5.2.3 Resultados
5.2.3.1 Controlo dos materiais-estímulo e do contexto da investigação
Antes de analisar os dados relativos aos efeitos de categorização e de
homogeneidade, que constituem o aspecto central da nossa análise de resultados, é
importante controlar vários aspectos que se prendem com o contexto desta experiência.
O estatuto social percebido de ambos os grupos para os participantes angolanos e
portugueses, afigura-se como um aspecto central a controlar. Os resultados do Estudo 2,
realizado com o objectivo de averiguar o estatuto social percebido e o estatuto numérico
percebido dos diferentes grupos étnicos em Portugal, indicaram que os portugueses são
percebidos como o grupo maioritário e dominante, enquanto que os angolanos são
percebidos como um grupo minoritário e dominado. No entanto, os participantes neste
estudo eram todos de nacionalidade e naturalidade portuguesas, pelo que se torna
necessário averiguar o consenso na percepção do estatuto destes grupos.
5.2.3.1.1 Estatuto social percebido
Os participantes nesta experiência atribuem um estatuto social mais elevado aos
portugueses (M=57.80) do que aos angolanos (M=27.96), F(1,158)=290.50, p<0.0001.
Os estudantes portugueses percebem o endogrupo (M=55.80) como tendo um estatuto
significativamente mais elevado do que o exogrupo (M=26.12), F(1,158)=230.49,
p<0.0001, enquanto que os estudantes angolanos percebem o exogrupo (M=61.81)
como tendo um estatuto significativamente mais elevado do que o endogrupo
(M=31.76), F(1,158)=104.27, p<0.0001. Estes resultados mostram que existe um
consenso no estatuto relativo atribuído a cada um dos grupos: tanto os participantes
angolanos como os portugueses atribuem significativamente maior estatuto aos
portugueses do que aos angolanos residentes em Portugal.
5.2.3.1.2 Estatuto numérico percebido
Quanto ao tamanho relativo dos grupos, os participantes percebem os portugueses
como sendo o grupo maioritário (M=62%) e os angolanos como sendo um grupo
minoritário (M=7%), F(1,145)=688.30, p<0.0001. Curiosamente, tanto os participantes
angolanos como os participantes portugueses sobrestimam a percentagem de angolanos
residentes em Portugal (respectivamente, M=8% e M=6%), quando na realidade não
Racismo e etnicidade em Portugal
384
chega aos 0.03%) e subestimaram a percentagem de portugueses (respectivamente,
M=62% e M=68%, quando na realidade ultrapassa os 97%).
Estes resultados estão em consonância com os obtidos no Estudo 2 que
demonstraram que os portugueses são percebidos como o grupo dominante e os
angolanos como um grupo dominado na sociedade portuguesa. Os resultados
mostraram, como previsto, que existe um consenso no estatuto relativo atribuído a cada
grupo: tanto os participantes portugueses como os participantes angolanos atribuíram
um estatuto social significativamente mais elevado aos portugueses do que aos
angolanos residentes em Portugal.
5.2.3.1.3 Estereotipicalidade e valência dos traços
Outro aspecto central a controlar era a estereotipicalidade e a valência avaliativa
dos traços. Para o cálculo das medidas de variabilidade e favoritismo previstas era
necessário que os participantes na experiência reproduzissem os resultados obtidos no
Estudo 3b nos traços escolhidos para a descrição dos grupos-alvo.
Os resultados foram idênticos ao do Estudo 3b tanto no que respeita à
estereotipicalidade dos traços como no que respeita à sua valência avaliativa, o que
viabilizou o cálculo das diversas medidas previstas. Assim os traços festivos e
preguiçosos foram considerados estereotípicos dos angolanos e os traços trabalhadores
e individualistas foram considerados estereotípicos dos portugueses. Os traços festivos e
trabalhadores foram considerados positivos e os traços preguiçosos e individualistas
foram considerados negativos.
5.2.3.2 Tarefa de recordação indiciada
Como referimos na secção dedicada ao método, a tarefa de recordação indiciada
permite o cálculo das respostas correctas assim como dos diferentes tipos de erros (ou
confusões entre as pessoas-estímulo). Os diferentes tipos de erro podem ser usados para
avaliar em que medida os participantes percebem os grupos de forma mais ou menos
homogénea. Contudo, antes de examinarmos os efeitos de homogeneidade, devemos
certificar-nos que a quantidade de respostas correctas não diferiu significativamente em
função da versão do material-estímulo nem em função do grupo dos participantes.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
385
Devemos igualmente certificar-nos que ambos os grupos categorizaram as pessoas-
estímulo, e que este efeito de categorização não variou significativamente em função
das variáveis independentes deste estudo (grupo dos participantes, versão do material-
estímulo, e ordem de apresentação).
5.2.3.2.1 Exactidão da recordação
Antes de testarmos os efeitos das variáveis independentes nos erros, que são
particularmente relevantes para as nossas hipóteses, calculámos as respostas correctas.
A média global de respostas correctas foi 15.75, como se pode constatar na Tabela 36.
Tal como esperávamos não se verificou qualquer efeito significativo ligado à
ordem de apresentação nem à versão do material-estímulo. No entanto, verificou-se um
efeito principal do grupo do participante tendencialmente significativo: os participantes
portugueses apresentam uma média superior de respostas correctas (M=16.40) do que
os participantes angolanos (M=13.95), ?F(1,71)=3.57, p<0.063?. Tal poderá dever-se ao
facto dos angolanos que participaram nesta experiência serem significativamente mais
velhos do que os portugueses (a idade média dos participantes angolanos é de 25 anos
enquanto que a idade média dos participantes portugueses é de 21 anos, como referimos
aquando da descrição da amostra).
Tabela 36 - Médias e desvios-padrão das respostas correctas em função do grupo do participante e
do grupo-alvo
Grupo-alvoGrupo do
participante Angolanos Portugueses Total
Angolanos (N=21)
6.48
(2.32)
7.36
(2.61)
13.95
(4.08)
Portugueses (N=58)
7.48
(2.75)
9.03
(3.47)
16.40
(4.94)
Total (N=79)
7.13
(2.55)
8.62
(3.35)
15.75
(4.82)
Nota: As respostas correctas poderiam variar entre 0 e 32.
Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o número de “respostas correctas”70
:
Grupo: F(1,71)=3.57, p<0.063
70
Por uma questão de economia de espaço na apresentação dos resultados das análises de variância
efectuadas nos estudos experimentais utilizaremos as seguintes abreviaturas : Grupo = Grupo do
participante (angolanos vs. portugueses) ; Ordem = Ordem de apresentação (primeiro angolanos vs.
primeiro portugueses) ; e Versão = Versão do material-estímulo (A vs. B).
Racismo e etnicidade em Portugal
386
5.2.3.2.2 Efeito de categorização
O nosso desenho experimental só será apropriado para analisar os efeitos de
homogeneidade se os participantes efectivamente categorizarem as pessoas-estímulo em
grupos étnicos e se esse efeito se verificar em ambas as versões do material-estímulo.
Na medida em que os participantes categorizarem os alvos em grupos, os erros
intragrupais serão superiores aos erros intergrupais (efeito de categorização). A Tabela
37 apresenta as médias e desvios-padrão dos erros em função do grupo do participante.
Consistentemente com as nossas hipóteses, observou-se um efeito principal do
tipo de erro muito significativo: o número de erros intragrupais (M=12.10) foi
significativamente superior ao número de erros intergrupais (M=3.11), ?F(1,71)=203.31,
p<0.0001?. A proporção de erros intragrupais e intergrupais demonstra que os
participantes efectivamente categorizaram as pessoas-estímulo em diferentes grupos. Os
participantes mostraram uma tendência muito mais forte para confundir a informação
referente aos membros do mesmo grupo étnico (erros intragrupais) do que a informação
referente a grupos étnicos diferentes (erros intergrupais).
Tabela 37 - Médias e des vios-padrão dos erros intragrupais e intergrupais em função do grupo do
participante e do grupo-alvo
Tipo de erro
Grupo do
participante
erros
intragrupais
erros
intergrupais
Total
Angolanos (N=21)
13.81
(4.50)
3.18
(2.09)
16.99
(4.01)
Portugueses (N=58)
11.48
(3.94)
3.09
(2.50)
14.57
(4.48)
Total (N=79)
12.10
(4.20)
3.11
(2.38)
15.22
(4.47)
Nota: Os erros poderiam variar entre 0 e 32.
Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o Tipo de erro (erros intragrupais vs. erros
intergrupais):
Tipo de erro: F(1,71)=203.31, p<0.0001
Grupo x Tipo de erro: F(1,71)=4.05, p<0.048
Angolanos: F(1,71)=90.86, p<0.0001
Portugueses: F(1,71)=156.38, p<0.0001
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
387
O efeito de interacção entre o tipo de erro e o grupo do participante também foi
significativo, indicando que os angolanos fazem mais erros do que os portugueses
?F(1,71)=4.05, p<0.048?. As análises de contrastes mostraram que o efeito principal do
tipo de erro foi muito significativo tanto para os participantes angolanos
?F(1,71)=90.86, p<0.0001? como para os participantes portugueses ?F(1,71)=156.38,
p<0.0001?. Isto é, tanto os membros do grupo dominante como os membros do grupo
dominado estruturaram a informação a partir da pertença étnica das pessoas-estímulo.
Tal como esperávamos, a interacção entre o tipo de erro e a ordem de
apresentação não foi significativa, nem a interacção entre o tipo de erro e a versão do
material-estímulo.
Resumindo, estes resultados demonstram que os participantes efectivamente
categorizaram as pessoas-estímulo em dois grupos (angolanos vs. portugueses)
independentemente da ordem de apresentação e da versão do material (A vs. B),
validando assim o uso destes materiais-estímulo para a análise de questões relacionadas
com a percepção de grupos.
5.2.3.2.3 Efeitos de homogeneidade
Para investigar os efeitos de homogeneidade, repartimos os erros intragrupais
tendo em conta a relação entre o grupo de pertença do participante e o grupo de pertença
da pessoa-estímulo: erros endogrupais vs. erros exogrupais (ver ponto 5.2.2.4.2). A
Tabela 38 apresenta as médias e desvios-padrão desses erros em função do grupo do
participante.
Racismo e etnicidade em Portugal
388
Tabela 38 - Médias e desvios-padrão dos erros endogrupais e exogrupais em função do grupo do
participante e do grupo-alvo
Tipo de erro
Grupo do
participante
erros
endogrupais
erros
exogrupais
Total
Angolanos (N=21)
7.19
(2.46)
6.62
(2.75)
13.81
(4.50)
Portugueses (N=58)
4.88
(3.10)
6.60
(2.13)
11.48
(3.94)
Total (N=79)
5.49
(3.10)
6.61
(2.29)
12.10
(4.20)
Nota: Os erros poderiam variar entre 0 e 16.
Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o Tipo de erro (erros endogrupais vs. erros
exogrupais):
Tipo de erro: F(1,71)=2.56, p<0.114
Grupo x Tipo de erro: F(1,71)=6.64, p<0.012
Angolanos: F(1,71)=0.63, p<0.428
Portugueses: F(1,71)=15.96, p<0.0002
O efeito principal do tipo de erro intragrupal (erros endogrupais vs. erros
exogrupais) não atingiu o limiar de significância estatística, demonstrando a ausência de
um efeito de homogeneidade do exogrupo para a globalidade da amostra.
Consistentemente com as nossas hipóteses, verificou-se um efeito de interacção
significativo entre o grupo do participante e o tipo de erro intragrupal, ?F(1,71)=6.64,
p<0.012?. As análises de contrastes realizadas demonstraram que os participantes
portugueses efectuaram significativamente mais erros exogrupais (M = 6.60) do que
erros endogrupais (M = 4.88), isto é, os angolanos são mais homogeneizados do que os
portugueses ?F(1,71)=15.96, p< 0.0002?. Em contrapartida, os participantes angolanos
efectuaram mais erros endogrupais (M = 7.19) do que exogrupais (M = 6.62), mas esta
diferença não foi estatisticamente significativa.
5.2.3.3 Tarefa de recordação livre
A tarefa de recordação indiciada não permite testar a quantidade de recordação
porque é fornecida aos participantes toda a informação respeitante às pessoas-estímulo.
Para nos certificarmos de que os efeitos de homogeneidade verificados não são devidos
à capacidade de memorização diferencial para o endogrupo e para o exogrupo, mas sim
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
389
devido à tendência dos participantes para organizarem a informação respeitante ao
endogrupo e ao exogrupo de forma diferencial, foi efectuada uma tarefa de recordação
livre.
5.2.3.3.1 Quantidade de informação recordada
De acordo com as nossas hipóteses, o estatuto relativo dos grupos afectaria a
organização cognitiva da informação, mas não a quantidade de informação recordada
(Cf: Sedikides, 1997). A média total de atributos recordados é de 16.40, como se pode
verificar na Tabela 39.
Como foi referido na secção dedicada ao procedimento de análise de dados (ponto
5.2.2.5.3), o número total de atributos correctamente recordados foi submetido a duas
análises de variância: uma análise de variância simples para verificar se o número total
de atributos correctamente recordados diferia em função do grupo do participante, da
ordem e da versão do material-estímulo; e uma análise de variância com medidas
repetidas (grupo-alvo: endogrupo vs. exogrupo).
Tal como esperávamos, o número total de atributos correctamente recordados não
variou significativamente em função da ordem de apresentação nem no que respeita à
versão do material-estímulo, o que valida o uso destes materiais. No entanto, verificou-
se um inesperado efeito principal significativo do grupo do participante: os participantes
portugueses apresentam uma média superior de atributos recordados (M=17.60) do que
os participantes angolanos (M=14.65), ?F(1,76)=10.692, p<0.002?. Tal como referimos
para a tarefa de recordação indiciada, tal poderá dever-se à diferença de idade dos
participantes angolanos e portugueses, uma vez que estes últimos são significativamente
mais jovens, sendo a capacidade de memorização muito influenciada pela idade.
A análise multivariada de variância produziu um efeito significativo do grupo-
alvo, revelando que os participantes recordaram maior quantidade de informação sobre as
pessoas-estímulo portuguesas (M=8.70) do que das pessoas-estímulo angolanas (M=7.70),
?F(1,76)=8.42, p<0.005?. A interacção entre o grupo-alvo e o grupo de pertença dos
participantes não foi significativa.
Não surpreendentemente, verificou-se uma interacção significativa entre o grupo-
alvo e a ordem de recordação ?F(1,76)=7.94, p<0.006?. Quando a informação respeitante
às pessoas-estímulo portuguesas era recordada em primeiro lugar (ordem 2), os
participantes recordaram mais informação sobre as pessoas-estímulo portuguesas
Racismo e etnicidade em Portugal
390
(M=9.16) do que as pessoas-estímulo angolanas (M=7.36), ?F(1,76)=20.14, p<0.0001?.
Em contrapartida, quando a informação respeitante às pessoas-estímulo angolanas era
recordada em primeiro lugar (ordem 1), os participantes recordaram sensivelmente a
mesma quantidade de informação sobre as pessoas-estímulo portuguesas (M=8.20) e as
pessoas-estímulo angolanas (M=8.07).
Tabela 39 - Médias e desvios-padrão do número total de atributos correctamente recordados em
função do grupo do participante e do grupo-alvo
Grupo-alvoGrupo do
participante Angolanos Portugueses Total
Angolanos (N=34)
7.06
(2.49)
7.59
(2.31)
14.65
(3.75)
Portugueses (N=50)
8.14
(2.59)
9.46
(2.37)
17.60
(4.22)
Total (N=84)
7.70
(2.59)
8.70
(2.51)
16.40
(4.27)
Nota: O número total de atributos recordados poderia variar entre 0 e 32.
Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o número de “atributos recordados”:
Grupo: F(1,76)=10.692, p<0.002
Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o número de “atributos recordados” (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,76)=8.42, p<0.005
Grupo x Grupo-alvo: F(1,76)=2.05, p<0.157
5.2.3.3.2 Efeitos de homogeneidade
Como foi anteriormente referido, a tarefa de recordação livre permite uma análise
alternativa da estrutura da informação recuperada (Ostrom et al., 1993; Sedikides,
1997). A descrição das pessoas-estímulo oferecia uma base para duas formas ortogonais
de organizar a informação, quer em termos pessoais (Manuel, José, etc.) quer em termos
das categorias de atributos (família, trabalho, etc.).
Neste caso, a hipótese da assimetria nos efeitos de homogeneidade foi testada a
partir do cálculo de dois tipos de clustering scores: organização da informação em
termos pessoais (ARC-scores pessoais) ou em termos das categorias de atributos (ARC-
scores categoriais).
Como referimos na secção dedicada ao método, para cada participante calculámos
quatro ARC-scores: um ARC-score reflecte o clustering em função das pessoas do
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
391
endogrupo; outro em função dos atributos do endogrupo; outro em função de pessoas do
exogrupo; e outro em função dos atributos do exogrupo.
A Tabela 40 apresenta as médias dos ARC-scores em função do grupo-alvo e do
grupo do participante. Mais uma vez, esperávamos observar uma assimetria nos efeitos
de homogeneidade, com uma maior homogeneização do grupo-alvo de menor estatuto.
Neste caso, a nossa hipótese toma a forma de uma tripla interacção entre o grupo-alvo
(endogrupo vs. exogrupo), o grupo do participante (angolanos vs. portugueses) e o tipo
de organização da informação (pessoal vs. categorial). Mais precisamente, a informação
sobre as pessoas-estímulo portuguesas seria organizada preferencialmente em torno de
“pessoas” (um ARC-score pessoal superior ao ARC-score categorial), enquanto que a
informação sobre as pessoas-estímulo angolanas seria organizada preferencialmente em
torno de “categorias de atributos” (um ARC-score categorial superior ao ARC-score
pessoal).
Tal como esperávamos, não se verificaram quaisquer efeitos significativos ligados
à versão do material-estímulo nem à ordem de apresentação. A interacção entre o grupo-
alvo (endogrupo vs. exogrupo) e o tipo de organização da informação (pessoal vs.
categorial) foi tendencialmente significativa ?F(1,76)=3.10, p<0.082?. A esperada tripla
interacção entre o grupo-alvo, o grupo do participante e o tipo de organização da
informação também foi tendencialmente significativa ?F(1,76)=3.19, p<0.078?. Esta
interacção foi decomposta no sentido de se examinar a interacção entre o grupo-alvo e o
tipo de organização da informação separadamente para os participantes angolanos e
portugueses. Os participantes angolanos demonstraram um efeito de homogeneidade do
endogrupo significativo, uma vez que processaram a informação sobre o endogrupo
preferencialmente em termos categoriais (M=0.16) em vez de em termos de pessoas
(M=-0.02), mas processaram a informação sobre o exogrupo em torno de pessoas
(M=0.84) mais do que em torno de categoriais de atributos (M=-0.62), F(1,76)=4.55,
p<0.036. Em contrapartida, a interacção entre o grupo-alvo e o tipo de organização da
informação não foi significativa para os participantes portugueses, F(1,76)=0.01,
p<0.942.
Racismo e etnicidade em Portugal
392
Tabela 40 - Médias dos ARC-scores em função do grupo do participante, do grupo-alvo, e do tipo
de organização da informação
Tipo de organização da informação
Grupo dos participantes
Arc-scores pessoais Arc-scores categorais
Angolanos
(N=34)
Endogrupo
Exogrupo
-0.02
0.84
0.16
-0.62
Portugueses
(N=50)
Endogrupo
Exogrupo
-0.15
-0.25
0.31
0.26
Total
(N=84)
Endogrupo
Exogrupo
-0.10
0.20
0.25
-0.10
Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre os “ARC-scores” em função do Grupo-alvo
(endogrupo vs. exogrupo) e do Tipo de organização da informação (pessoal vs. categorial):
Grupo-alvo x Tipo de organização: F(1,76)=3.10, p<0.082
Grupo x Grupo-alvo x Tipo de organização: F(1,76)=3.19, p<0.078
Angolanos: F(1,76)=4.55, p<0.036
Portugueses: F(1,76)=0.01, p<0.942
Resumindo, em consonância com as nossas hipóteses, encontrámos uma
assimetria no processamento da informação em função do estatuto relativo dos grupos.
Os membros do grupo dominado processaram a informação referente ao endogrupo
preferencialmente em termos categoriais (e.g., família, trabalho, etc.) e,
simultaneamente, processaram a informação referente ao exogrupo preferencialmente
em termos pessoais (e.g., José, Paulo, etc.), isto é, homogeneizaram o endogrupo e
individualizaram o exogrupo. Para os membros do grupo dominante não foram
encontrados efeitos estatisticamente significativos.
5.2.3.4 Tarefas do questionário
5.2.3.4.1 Efeitos de homogeneidade
Como referimos na secção dedicada ao procedimento de análise dos dados (ponto
5.2.2.4.4), os resultados obtidos em cada uma das medidas de variabilidade grupal
percebida derivadas do questionário (PERSC, MEDSC, AMPLI, DISPD, DISPV e
VARIA) foram submetidos a análises multivariadas de variância tendo o grupo do
participante como variável independente e o grupo-alvo como variável dependente. Tal
como nas medidas indirectas baseadas na recordação da informação, esperávamos
encontrar uma assimetria nos efeitos de homogeneidade em função do estatuto relativo
dos grupos, mais concretamente, esperávamos que o grupo-alvo de estatuto mais baixo
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
393
(os angolanos) fosse mais homogeneizado do que o grupo alvo de estatuto mais elevado
(os portugueses). Neste caso, a hipótese de assimetria nos efeitos de homogeneidade
concretiza-se num efeito de interacção entre o grupo do participante e o grupo-alvo.
A Tabela 41 apresenta os resultados das duas medidas de variabilidade grupal
percebida baseadas na diferença entre os traços estereotípicos e os contra-estereotípicos
(PERSC e MEDSC). O valor desta diferença (S – CS) reflecte a força do estereótipo:
valores elevados indicam menor variabilidade grupal percebida enquanto que valores
baixos indicam maior variabilidade grupal percebida, isto é, menor conformidade com o
estereótipo grupal.
Tabela 41 - Médias e desvios-padrão das medidas PERSC e MEDSC em função do grupo do
participante e do grupo-alvo
Grupo do participante
Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163)Medidas
Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo
PERSC
S
CS
S – CS
69.88
(14.97)
37.35
(14.23)
32.53
(18.15)
70.45
(21.86)
35.25
(17.17)
35.20
(26.10)
54.67
(16.07)
48.69
(16.58)
5.97
(21.05)
57.00
(17.27)
40.40
(17.28)
16.60
(24.89)
59.74
(17.24)
44.91
(16.68)
14.82
(23.68)
61.54
(19.93)
38.66
(17.37)
22.88
(26.72)
MEDSC
S
CS
S – CS
72.92
(13.04)
39.15
(17.16)
33.76
(24.79)
74.63
(20.41)
42.75
(22.13)
31.87
(32.52)
57.35
(16.50)
51.64
(15.26)
5.70
(22.44)
62.28
(16.50)
41.56
(16.49)
20.71
(24.57)
62.63
(17.06)
47.40
(16.95)
15.23
(26.75)
66.44
(18.79)
41.97
(18.52)
24.48
(27.91)
Nota: S = Média dos traços estereotípicos; CS = Média dos traços contra-estereotípicos.
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida PERSC em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,160)=7.70, p<0.006
Grupo x Grupo-alvo: F(1,160)=2.70, p<0.102
Angolanos: F(1,160)=0.48, p<0.489
Portugueses: F(1,160)=14.63, p<0.0002
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida MEDSC em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,160)=5.52, p<0.020
Grupo x Grupo-alvo: F(1,160)=9.15, p<0.003
Angolanos: F(1,160)=0.17, p<0.678
Portugueses: F(1,160)=21.28, p<0.0001
Racismo e etnicidade em Portugal
394
No que respeita à medida PERSC, verificou-se um efeito significativo do grupo-
alvo, revelando um efeito de homogeneidade do exogrupo em termos globais: os
participantes atribuíram uma maior diferença entre os traços estereotípicos e contra-
estereotípicos ao exogrupo (S – CS = 22.88) do que ao endogrupo (S – CS = 14.82),
?F(1,160) = 7.70, p < 0.006?. O efeito de interacção entre o grupo do participante e o
grupo-alvo não alcançou o limiar de significância estatística, ?F(1,160)=2.70, p<0.101?. A
análise do efeito principal do grupo-alvo separadamente para cada grupo de participantes,
revelou que os participantes portugueses estabeleceram uma maior diferença entre os
traços estereotípicos e contra-estereotípicos para o exogrupo (S - CS=16.60) do que para o
endogrupo (S - CS=5.97), ?F(1,160)=14.63, p<0.0002?, enquanto que esta diferença não
foi estatisticamente significativa para os participantes angolanos.
O padrão de resultados da medida MEDSC foi ligeiramente diferente. Verificou-se
um efeito principal do grupo-alvo significativo, revelando um efeito de homogeneidade do
exogrupo global. Isto é, os participantes acentuaram a diferença entre os traços
estereotípicos e os contra-estereotípicos para o exogrupo (S - CS=24.48) do que para o
endogrupo (S-CS=15.23), ?F(1,160)=5.52, p<0.020?. A interacção entre o grupo-alvo e o
grupo do participante também foi significativa, ?F(1,160)=9.15, p<0.003?. Análises de
contrastes revelaram que os participantes portugueses estabeleceram uma maior diferença
entre os traços estereotípicos e os contra-estereotípicos do exogrupo (S - CS=20.71) do que
do endogrupo (S - CS=5.70), ?F(1,160)=53.03, p<0.0001?, enquanto que os participantes
angolanos atribuíram uma maior diferença entre os traços estereotípicos e os contra-
estereotípicos do endogrupo (S - CS=33.76) do que do exogrupo (S - CS=31.87), mas esta
diferença não foi estatisticamente significativa.
Resumindo, ambas as medidas baseadas na diferença de atribuição de traços
estereotípicos e contra-estereotípicos revelaram um efeito de homogeneidade do exogrupo
para a globalidade da amostra. No entanto, as análises de contrastes mostraram que este
efeito foi muito significativo para os membros do grupo dominante (participantes
portugueses), visto que estes atribuíram maior conformidade aos estereótipos grupais ao
exogrupo do que ao endogrupo, mas não significativo para os membros do grupo
dominado (participantes angolanos).
A Tabela 42 apresenta os resultados da medida AMPLI (diferença média entre os
membros mais extremos do grupo nos quatro traços considerados para a descrição).
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
395
Valores mais elevados correspondem a maior amplitude, isto é, a variabilidade grupal
percebida.
A análise dos dados relativos à medida AMPLI produziu um efeito do grupo-alvo
(endogrupo vs. exogrupo) não significativo, isto é, globalmente os participantes não
demonstraram um efeito de homogeneidade do exogrupo significativo. A interacção
entre o grupo-alvo e o grupo do participante foi significativa, revelando a esperada
assimetria nos efeitos de homogeneidade, ?F(1,161)=10.11, p<0.002?. As análises de
contrastes demonstraram que o efeito de homogeneidade do exogrupo foi significativo
para os participantes portugueses, visto que estes atribuíram uma maior diferença entre
os membros extremos do endogrupo (M=62.59) do que do exogrupo (M=54.47),
?F(1,161)=11.30, p<0.001?. Em contraste, os participantes angolanos estabeleceram
uma maior diferença entre os membros extremos do exogrupo (M=37.08) do que do
endogrupo (M=31.98), mas esta diferença não atingiu o limiar da significância
estatística, ?F(1,161)=2.27, p<0.134?.
Tabela 42 - Médias e desvios-padrão da medida AMPLI em função do grupo do participante e do
grupo-alvo
Grupo do participante
Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Total
(N=163)
Medida
Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo
AMPLI
31.98
(33.11)
37.08
(23.42)
62.59
(23.96)
54.47
(27.39)
52.26
(30.91)
48.60
(27.32)
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida AMPLI em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,161)=0.53, p<0.469
Grupo x Grupo-alvo: F(1,161)=10.11, p<0.002
Angolanos: F(1,161)=2.27, p<0.134
Portugueses: F(1,161)=11.30, p<0.001
A Tabela 43 apresenta os resultados da medida VARIA (variabilidade grupal
atribuída directamente pelos participantes). Valores mais elevados correspondem a
maior variabilidade grupal percebida.
A análise realizada sobre os valores da medida VARIA produziu um significativo
efeito principal do grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo), demonstrando que na sua
globalidade os participantes homogeneizaram mais o exogrupo (M=3.73) do que o
Racismo e etnicidade em Portugal
396
endogrupo (M=4.41), ?F(1,158)=20.84, p<0.0005?. A interacção entre o grupo-alvo e o
grupo do participante não atingiu o limiar de significância estatística, ?F(1,158)=1.89,
p<0.172?. A análise do efeito principal do grupo-alvo separadamente para cada grupo de
participantes revelou que os participantes portugueses homogeneizaram mais o exogrupo
(M=3.64) do que o endogrupo (M=4.43), demonstrando um efeito de homogeneidade do
exogrupo muito significativo, ?F(1,158)=6.12, p<0.0001?. Este efeito foi também
significativo, mas mais fraco, para os participantes angolanos (M=4.38 para o endogrupo e
=3.91 para o exogrupo), ?F(1,158)=3.84, p<0.052?.
Tabela 43 - Médias e desvios-padrão da medida VARIA em função do grupo do participante e do
grupo-alvo
Grupo do participante
Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Total
(N=163)
Medida
Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo
VARIA
4.38
(1.48)
3.91
(1.69)
4.43
(1.17)
3.64
(1.23)
4.41
(1.28)
3.73
(1.40)
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida VARIA em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,158)=20.84, p<0.0001
Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=1.89, p<0.172
Angolanos: F(1,158)=3.84, p<0.052
Portugueses: F(1,158)=26.12, p<0.0001
A partir da tarefa de distribuição calculámos duas medidas de variabilidade grupal
percebida: probabilidade de diferenciação (DISPD) e variabilidade percebida (DISVAR).
A Tabela 44 apresenta os resultados destas duas medidas (resultados médios dos quatro
traços utilizados na tarefa de distribuição). Valores mais elevados correspondem a maior
variabilidade grupal percebida.
A análise de variância efectuada com os valores da medida DISPD não produziu
quaisquer efeitos significativos. A probabilidade de diferenciação foi similar para o
endogrupo (M=0.73) e para o exogrupo (M=0.74), isto é, globalmente não se verificou o
efeito de homogeneidade do exogrupo. A interacção entre o grupo-alvo e o grupo do
participante também não foi significativa.
A análise de variância efectuada com os valores da medida DISVAR produziu um
efeito principal do grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) significativo: globalmente, os
participantes homogeneizaram mais o endogrupo (M=2.25) que o exogrupo (M=2.38),
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
397
demonstrando um efeito de homogeneidade do endogrupo, ?F(1,161)=11.91, p<0.001?. A
interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante também foi significativa,
?F(1,161)=5.91, p<0.016?. Análises de contrastes revelaram que os participantes angolanos
homogeneizaram mais o endogrupo (M=2.22) do que o exogrupo (M=2.50), demonstrando
um efeito de homogeneidade do endogrupo muito significativo, ?F(1,161)=13.05,
p<0.0004?. Contudo, os participantes portugueses homogeneizaram de igual forma o
endogrupo (M=2.27) e o exogrupo (M=2.31).
Tabela 44 - Médias e desvios-padrão das medidas DISPD e DISVAR em função do grupo do
participante e do grupo-alvo
Grupo do participante
Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Total
(N=163)
Medidas
Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo
DISPD
0.70
(0.13)
0.71
(0.11)
0.75
(0.08)
0.75
(0.06)
0.73
(0.10)
0.74
(0.08)
DISVAR
2.22
(1.03)
2.50
(1.05)
2.27
(0.75)
2.31
(0.74)
2.25
(0.85)
2.38
(0.86)
Análise dos efeitos do Grupo na medida DISVP em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,161)=11.91, p<0.001
Grupo x Grupo-alvo: F(1,161)=5.91, p<0.016
Angolanos: F(1,161)=13.05, p<0.0005
Portugueses: F(1,161)=0.77, p<0.381
Todas estas medidas de variabilidade grupal percebida, com a excepção das
derivadas da tarefa de distribuição (DISPD e DISVP), produziram um padrão consistente
de resultados. De acordo com as nossas previsões, encontrámos uma assimetria nas
percepções do endogrupo e do exogrupo em função do estatuto social relativo dos grupos.
Os membros do grupo dominante (participantes portugueses) exibiram um efeito de
homogeneidade do exogrupo significativo (PERSC, MEDSC, AMPLI e VARIA),
enquanto que os membros do grupo dominado (participantes angolanos) homogeneizaram
de forma similar o exogrupo e o endogrupo (com a excepção da medida VARIA, onde
demonstraram um efeito de homogeneidade do exogrupo significativo).
Com as medidas derivadas da tarefa de distribuição encontrámos um padrão de
resultados mais inconsistente. A medida DISPD não produziu quaisquer efeitos
significativos, enquanto que a medida DISVP foi a única em que encontrámos um efeito de
homogeneidade do endogrupo globalmente significativo. Este resultado foi devido
Racismo e etnicidade em Portugal
398
principalmente aos participantes angolanos, que homogeneizaram bastante o endogrupo
enquanto que os participantes portugueses exibiram níveis similares de homogeneização
para ambos os grupos. Assim, globalmente, observámos um significativo efeito de
homogeneidade do grupo dominado (angolanos).
Resumindo, os membros do grupo dominado foram mais homogeneizados do que os
membros do grupo dominante. Este padrão de resultados foi encontrado com medidas
ligadas aos estereótipos grupais (PERSC e MEDSC), mas também com medidas sem uma
conexão directa com os estereótipos (DISVP e AMPLI). Estes resultados estão também de
acordo com os obtidos em estudos anteriores em que foram utilizadas medidas indirectas
da variabilidade grupal percebida (e.g., Cabecinhas, 1996). Curiosamente, neste estudo
podemos verificar que a medida mais directa (VARIA) foi a única em que obtivemos um
efeito de homogeneidade do exogrupo significativo para ambos os grupos de participantes.
5.2.3.4.2 Efeitos de Favoritismo
Nesta pesquisa analisámos o favoritismo endogrupal através dos dados recolhidos na
tarefa de estimação de percentagens (PERPN) e na tarefa de estimação de médias
(MEDPN). Os resultados médios obtidos nestas duas medidas, baseadas na diferença de
atribuição de traços positivos e traços negativos, são apresentados na Tabela 45.
Existe evidência para o favoritismo endogrupal quando os participantes atribuem
ao endogrupo uma média superior de traços positivos e uma média inferior de traços
negativos, comparativamente ao exogrupo.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
399
Tabela 45 - Médias e desvios-padrão das medidas de favoritismo endogrupal em função do grupo
do participante e do grupo-alvo
Grupo dos participantes
Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163)Medidas
Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo
PERPN
Positivos
Negativos
P – N
68.45
(13.45)
38.78
(19.03)
29.68
(23.70)
57.96
(18.38)
47.73
(19.92)
10.24
(24.58)
62.86
(14.70)
40.60
(15.65)
22.26
(17.68)
60.84
(17.53)
37.15
(18.26)
23.69
(26.29)
64.72
(14.50)
39.99
(16.82)
24.73
(20.13)
59.87
(17.82)
40.72
(19.43)
19.15
(26.43)
MEDPN
Positivos
Negativos
P – N
68.18
(11.41)
43.89
(18.61)
24.29
(25.28)
63.54
(19.53)
53.85
(17.62)
9.69
(25.09)
64.31
(13.44)
44.71
(16.64)
19.59
(20.11)
62.38
(16.32)
41.60
(19.96)
20.78
(29.03)
65.62
(12.88)
44.44
(17.28)
21.19
(22.04)
62.77
(17.42)
45.73
(20.01)
17.04
(28.18)
Nota: P - N = (Média dos traços positivos - Média dos traços negativos)
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida PERPN em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,160)=13.20, p<0.0005
Grupo x Grupo-alvo: F(1,160)=17.55, p<0.0001
Angolanos: F(1,160)=22.95, p<0.0001
Portugueses: F(1,160)=0.23, p<0.631
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida MEDPN em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,160)=5.41, p<0.021
Grupo x Grupo-alvo: F(1,160)=7.63, p<0.006
Angolanos: F(1,160)=9.80, p<0.002
Portugueses: F(1,160)=0.14, p<0.708
No que respeita à estimação de percentagens (PERPN), a análise de variância
efectuada produziu um efeito principal do grupo-alvo, demonstrando um favoritismo
endogrupal global ?F(1,160)=13.20, p<0.0004?. O efeito de interacção entre o grupo-alvo e
o grupo dos participantes também foi significativo, apontando para uma assimetria no
favoritismo endogrupal ?F(1,160)=17.55, p<0.0005?. Análises de contrastes revelaram que
os participantes angolanos atribuíram maiores percentagens nos traços positivos ao
endogrupo (M=68.45) do que ao exogrupo (M=57.96) e simultaneamente atribuíram
menores percentagens nos traços negativos ao endogrupo (M=38.78) do que ao exogrupo
(M=47.73), demonstrando assim um favoritismo endogrupal bastante significativo
?F(1,160)=22.95, p<0.0001?. Em contraste, os participantes portugueses atribuíram
Racismo e etnicidade em Portugal
400
percentagens equivalentes de traços positivos e negativos ao endogrupo (positivo -
negativo = 22.26) e ao exogrupo (positivo - negativo = 23.69), isto é, não demonstraram
um favoritismo endogrupal significativo ?F(1,160)=0.23, p<0.631?.
Relativamente à estimação de médias (MEDPN), encontramos um padrão de
resultados semelhante. A análise de variância produziu um efeito principal significativo do
grupo alvo, demonstrando um favoritismo endogrupal global ?F(1,160)=5.41, p<0.021?. A
interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante também foi significativa,
demonstrando uma assimetria no favoritismo endogrupal ?F(1,160)=7.63, p<0.006?.
Análises de contraste revelaram que os participantes angolanos atribuíram uma maior
média de traços positivos ao endogrupo (M=68.18) do que ao exogrupo (M=63.54) e
atribuíram menores médias de traços negativos ao endogrupo (M=43.89) do que ao
exogrupo (M=53.85), assim revelando um significativo favoritismo endogrupal
?F(1,160)=9.80, p<0.002?. Em contrapartida, os participantes portugueses atribuíram
médias similares de traços positivos e negativos ao endogrupo (positivo - negativo =
19.59) e ao exogrupo (positivo - negativo = 20.78), isto é, não exibiram um favoritismo
endogrupal significativo.
Resumindo, verificou-se um padrão consistente de resultados em ambas as medidas
de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN). Em ambas as medidas se verificou um
favoritismo endogrupal para a globalidade da amostra, sendo este efeito muito significativo
para os participantes angolanos, mas não significativo para os participantes portugueses.
5.2.3.4.3 Relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo
Nesta experiência explorámos a relação entre os efeitos de homogeneidade e os
efeitos de favoritismo a partir dos dados provenientes das tarefas de estimação de
percentagens e de estimação de médias. Uma vez que os quatro atributos utilizados
nestas tarefas permitiam tanto o cálculo de medidas de variabilidade grupal percebida
(PERSC e MEDPN) como medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN),
começámos por verificar se existiria uma relação entre estas duas medidas.
Como referimos na secção dedicada ao método, os dados referentes a cada uma
destas tarefas (estimação de percentagens e de estimação de medias) foram analisados
através de uma análise de variância multivariada tomando o grupo-alvo, a
estereotipicalidade dos traços e a valência dos traços como variáveis intra-participantes
e o grupo dos participantes como variável inter-participantes.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
401
As análises efectuadas com estas novas medidas produziram um padrão de
resultados idêntico quer para as estimativas de percentagens quer para as estimativas de
médias, pelo que vamos apresentá-los conjuntamente. Os resultados destas novas
análises de variância confirmam os das precedentes, tanto no que respeita aos efeitos de
homogeneidade como no que respeita ao favoritismo endogrupal.
Relativamente aos efeitos associados à estereotipicalidade dos traços (ver Tabela
41), verificou-se um efeito principal desta variável, indicando que, na globalidade da
amostra, os participantes descreveram ambos os grupos (endogrupo e exogrupo) atribuindo
percentagens superiores aos traços estereotípicos do que aos traços contra-estereotípicos
?Percentagens: F(1,156)=238.45, p<0.0001; Médias: F(1,156)=199.37, p<0.0001?. A
interacção entre a estereotipicalidade dos traços e o grupo-alvo foi significativa,
demonstrando a existência de um efeito de homogeneidade do exogrupo para a globalidade
de amostra ?Percentagens: F(1,156)=7.28, p<0.008; F(1,156)=6.68, p<0.011?. A tripla
interacção entre o grupo dos participantes, a estereotipicalidade dos traços e o grupo-alvo
foi significativa na estimação de médias ?F(1,156)=7.31, p<0.008?, mas não atingiu o
limiar da significância estatística na estimação de percentagens ?F(1,156)=2.49, p<0.117?.
As análises de contrastes realizadas demonstram que os participantes portugueses
atribuíram uma menor diferença entre os traços estereotípicos e os traços contra-
estereotípicos para o endogrupo do que para o exogrupo, demonstrando assim um efeito de
homogeneidade do exogrupo significativo ?Percentagens: F(1,156)=13.38, p<0.0005;
F(1,156)=20.45, p<0.0001?, enquanto que para os participantes angolanos esta diferença
não foi significativa ?F(1,156)=0.48, p<0.491; F(1,156)=0.01, p<0.942?.
Quanto aos efeitos da valência dos traços (ver Tabela 45), verificou-se um efeito
principal desta variável, indicando que os participantes descreveram ambos os grupos
(endogrupo e exogrupo) atribuindo percentagens superiores aos traços positivos do que aos
traços negativos ?Percentagens: F(1,156)=222.24, p<0.0001; Médias: F(1,156)=153.35,
p<0.0001?. A interacção entre a valência dos traços e o grupo-alvo foi significativa,
demonstrando a existência de um favoritismo endogrupal para a globalidade de amostra,
?Percentagens: F(1,156)=13.22, p<0.0005; F(1,156)=4.95, p<0.028?. Verificou-se
igualmente uma tripla interacção entre o grupo dos participantes, a valência dos traços e o
grupo-alvo, apontando para uma assimetria nos efeitos de favoritismo ?Percentagens:
F(1,156)=16.78, p<0.0001; Médias: F(1,156)=8.29, p<0.005?. Nas análises de contrastes
realizadas, verificou-se que os participantes angolanos atribuíram uma maior diferença
Racismo e etnicidade em Portugal
402
entre os traços positivos e os traços negativos para o endogrupo do que para o exogrupo,
demonstrando assim um favoritismo endogrupal significativo ?Percentagens:
F(1,156)=22.71, p<0.0001; Médias: F(1,156)=9.89, p<0.002?, enquanto que para os
participantes portugueses a diferença na atribuição de traços positivos menos negativos
para o endogrupo e para o exogrupo não foi significativa ?Percentagens: F(1,156)=0.15,
p<0.695; Médias: F(1,156)=0.31, p<0.677?.
Quanto aos efeitos conjuntos da estereotipicalidade dos traços (estereotípicos vs.
contra-estereotípicos) e da valência dos traços (positivos vs. negativos), verificou-se uma
interacção significativa entre estes dois factores ?Percentagens: F(1,156)=10.69, p<0.001; e
Médias: F(1,156)=14.35, p<0.0005?. A tripla interacção entre o grupo-alvo (endogrupo
vs. exogrupo), a estereotipicalidade dos traços e a valência dos traços também foi
significativa para a estimativa de percengens ?F(1,156)=7.43, p<0.007?, mas não atingiu o
limiar de significância estatística para a estimativa de médias. Verificou-se igualmente
uma quádrupla interacção entre o grupo do participante, o grupo-alvo, a estereotipicalidade
dos traços e a valência dos traços ?Percentagens: F(1,156)=58.59, p<0.0001; e Médias:
F(1,156)=79.48, p<0.0001?. Tal poderá significar a existência de uma relação entre estes
dois fenómenos, que é diferenciada em função do estatuto dos grupos.
Para clarificar esta quádrupla interacção, procedemos ao cálculo de quatro novas
medidas de variabilidade grupal percebida, duas baseadas exclusivamente nos traços
positivos ?PERSC(+)
e MEDSC(+)
?, e duas baseadas exclusivamente nos traços negativos
?PERSC(-)
e MEDSC(-)
?. Estas novas medidas de variabilidade grupal percebida são
apresentadas na Tabela 46.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
403
Tabela 46 - Médias e desvios-padrão das medidas de variabilidade grupal percebida controlando a
valência dos traços.
Grupo dos participantes
Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Total
(N=163)
Medidas
Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo
PERSC
Positivos
Negativos
46.17
(20.39)
18.89
(25.88)
29.71
(27.99)
40.69
(35.22)
3.36
(24.76)
8.44
(25.93)
22.46
(30.47)
9.98
(27.46)
17.71
(30.90)
11.92
(26.30)
24.92
(29.76)
20.47
(33.57)
MEDSC
Positivos
Negativos
48.62
(23.67)
18.91
(37.76)
25.55
(30.83)
38.91
(44.90)
0.98
(25.17)
10.50
(28.03)
31.09
(31.58)
10.25
(24.37)
17.25
(33.44)
13.35
(31.80)
29.22
(31.34)
19.93
(35.34)
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida PERSC(+)
em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,158)=0.28, p<0.595
Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=31.78, p<0.0001
Angolanos: F(1,158)=9.83, p<0.002
Portugueses: F(1,158)=28.21, p<0.0001
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida PERSC(-)
em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,158)=16.24, p<0.0001
Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=12.79, p<0.0001
Angolanos: F(1,158)=21.83, p<0.0001
Portugueses: F(1,158)=0.15, p<0.696
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida MEDSC(+)
em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,158)=1.00, p<0.318
Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=65.63, p<0.0001
Angolanos: F(1,158)=19.14, p<0.0001
Portugueses: F(1,158)=60.64, p<0.0001
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida MEDSC(-)
em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,158)=8.76, p<0.004
Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=8.55, p<0.004
Angolanos: F(1,158)=13.11, p<0.0001
Portugueses: F(1,158)=0.00, p<0.975
Como foi referido na secção dedicada ao método, estas novas medidas de
variabilidade grupal percebida foram analisadas através de análises de variância
multivariadas, tendo o grupo-alvo como variável intra-participantes e o grupo dos
participantes como variável inter-participante.
Racismo e etnicidade em Portugal
404
No que respeita às medidas baseadas exclusivamente nos traços positivos ?PERSC(+)
e MEDSC(+)
?, o efeito principal do grupo-alvo não foi significativo. Verificou-se uma
interacção significativa entre o grupo-alvo e o grupo do participante, o que aponta para
uma assimetria no efeito de homogeneidade do exogrupo ?PERSC(+)
: F(1,158)=31.78,
p<0.0001; MEDSC(+)
: F(1,158)=65.63, p<0.0001?. Análises de contrastes demonstraram
que o efeito do grupo-alvo é significativo tanto para os participantes angolanos, ?PERSC(+)
:
F(1,158)=9.83, p<0.002; MEDSC(+)
: F(1,158)=19.14, p<0.0001?, como para os
participantes portugueses ?PERSC(+)
: F(1,158)=28.21, p<0.0001; e MEDSC(+)
:
F(1,158)=60.64, p<0.0001?. No entanto, a observação das médias apresentadas na Tabela
46 indica que este efeito principal assume direcções diferentes para os participantes
angolanos e portugueses. Os participantes angolanos face a traços positivos homogeneízam
o endogrupo comparativamente ao exogrupo enquanto que os participantes portugueses
face a traços positivos heterogeneízam o endogrupo comparativamente ao exogrupo.
No que respeita às medidas baseadas exclusivamente nos traços negativos ?PERSC(-)
e MEDSC(-)
?, o efeito principal do grupo-alvo foi significativo, indicando a existência do
efeito de homogeneidade do exogrupo para a globalidade da amostra ?PERSC(-)
:
F(1,158)=16.24, p<0.0001; MEDSC(-)
: F(1,158)=8.76, p<0.004?. Verificou-se igualmente
uma interacção significativa entre o grupo-alvo e o grupo do participante, o que aponta
para uma assimetria no efeito de homogeneidade do exogrupo, ?PERSC(-)
: F(1,158)=12.79,
p<0.0001; e MEDSC(-)
: F(1,158)=8.55, p<0.004?. Análises de contrastes demonstraram
que os participantes angolanos face a traços negativos heterogeneizaram o endogrupo
comparativamente ao exogrupo ?PERSC(-)
: F(1,158)=21.83, p<0.0001; MEDSC(-)
:
F(1,158)=13.11, p<0.0001?, enquanto que os participantes portugueses face a traços
negativos não estabelecem uma diferenciação significativa entre o endogrupo e o
exogrupo.
Assim, verifica-se que os participantes angolanos e os participantes portugueses
apresentam estratégias diferenciadas de homogeneização ou heterogeneização dos grupos
em função da valência dos traços em causa. Os participantes angolanos face a traços
positivos homogeneízam o endogrupo comparativamente ao exogrupo, mas face a traços
negativos heterogeneízam o endogrupo comparativamente ao exogrupo. Em contrapartida,
os participantes portugueses face a traços positivos heteregeneizaram o endogrupo
comparativamente ao exogrupo, mas face a traços negativos, não estabelecem uma
diferenciação entre o endogrupo e o exogrupo.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
405
Uma vez que a análise dos efeitos de homogeneidade controlando a valência dos
traços (positivos vs. negativos) nos forneceu uma nova visão sobre as estratégias de
homogeneização ou heteregeneização dos grupos em função do seu estatuto relativo,
decidimos proceder de forma equivalente para a análise do favoritismo endogrupal. Assim,
calculámos novas medidas de favoritismo controlando o carácter estereotípico dos traços
(estereotípicos vs. contra-estereotípicos). Tal poderá contribuir para interpretar os
resultados algo inesperados que obtivemos com as medidas PERNP e MEDNP: os
angolanos manifestaram um favoritismo endogrupal significativo enquanto que os
portugueses não.
Assim calculámos quatro novas medidas de favoritismo, duas baseadas
exclusivamente nos traços estereotípicos ?PERPN(S)
e MEDPN(S)
?, e duas baseadas
exclusivamente nos traços contra-estereotípicos ?PERPN(CS)
e MEDPN(CS)
?.
Estas novas
medidas de favoritismo endogrupal são apresentadas na Tabela 47.
Racismo e etnicidade em Portugal
406
Tabela 47 - Médias e desvios-padrão das medidas de favoritismo endogrupal controlando a
estereotipicalidade dos traços.
Grupo dos participantes
Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Total
(N=163)
Medidas
Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo
PERPN
Estereotípicos
Contra-
Estereotípicos
43.31
(22.11)
16.04
(32.58)
4.75
(25.13)
15.73
(35.19)
19.70
(22.03)
24.86
(23.25)
29.92
(29.49)
17.34
(31.24)
27.57
(24.66)
21.90
(26.97)
21.42
(30.45)
16.79
(32.55)
MEDPN
Estereotípicos
Contra-
Estereotípicos
39.15
(24.85)
9.44
(37.64)
3.36
(26.55)
16.31
(37.65)
14.91
(23.46)
24.36
(25.86)
31.30
(30.09)
10.74
(34.18)
23.19
(26.51)
19.29
(31.08)
21.87
(31.75)
12.62
(35.37)
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida PERPN(S)
em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,158)=22.77, p<0.0001
Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=66.48, p<0.0001
Angolanos: F(1,158)=62.66, p<0.0001
Portugueses: F(1,158)=8.58, p<0.004
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida PERPN(SC)
em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,158)=1.88, p<0.172
Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=1.00, p<0.319
Angolanos: F(1,158)=0.05, p<0.819
Portugueses: F(1,158)=4.12, p<0.044
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida MEDPN(S)
em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,158)=9.06, p<0.003
Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=67.51, p<0.0001
Angolanos: F(1,158)=47.86, p<0.0001
Portugueses: F(1,158)=19.84, p<0.0001
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida MEDPN(CS)
em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,158)=0.76, p<0.386
Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=6.80, p<0.010
Angolanos: F(1,158)=1.14, p<0.287
Portugueses: F(1,158)=8.89, p<0.003
Estas novas medidas de favoritismo endogrupal foram submetidas a análises de
variância multivariadas, tendo o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável intra-
participantes e o grupo dos participantes (angolanos vs. portugueses) como variável inter-
participantes.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
407
No que respeita às medidas baseadas exclusivamente nos traços estereotípicos
?PERPN(S)
e MEDPN(S)
?, o efeito principal do grupo-alvo foi significativo, indicando que a
globalidade da amostra demonstrou favoritismo endogrupal ?PERPN(S)
: F(1,158)=22.77,
p<0.0001; e MEDPN(S)
: F(1,158)=9.06, p<0.003?. Verificou-se uma interacção
significativa entre o grupo-alvo e o grupo do participante, o que aponta para uma
assimetria nos efeitos de favoritismo ?PERPN(S)
: F(1,158)= 66.48, p<0.0001; e MEDPN(S)
:
F(1,158)=67.51, p<0.0001?. Análises de contrastes demonstraram que o efeito do grupo-
alvo é significativo tanto para os participantes angolanos ?PERPN(S)
: F(1,158)=62.66,
p<0.0001; e MEDPN(S)
: F(1,158)=47.86, p<0.0001? como para os participantes
portugueses ?PERPN(S)
: F(1,158)=8.58, p<0.004; e MEDPN(S)
: F(1,158)=19.84, p<0.001?.
No entanto, a observação das médias apresentadas na Tabela 4.9b indica que o efeito
principal do grupo-alvo assume direcções diferentes para os participantes angolanos e
portugueses. Os participantes angolanos face a traços estereotípicos favorecem o
endogrupo, enquanto que os participantes portugueses face a traços estereotípicos
favorecem o exogrupo.
No que respeita às medidas baseadas exclusivamente nos traços contra-estereotípicos
?PERPN(CS)
e MEDPN(CS)
?, o efeito principal do grupo-alvo não foi significativo,
indicando a ausência do favoritismo endogrupal significativo para a globalidade da
amostra. A interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante é significativa para a
medida baseada na estimação de médias ?(F(1,158)=6.80, p<0.010?, mas não atinge o
limiar da significância estatística para a medida baseada na estimação de percentagens. As
análises de contrastes demonstraram que os participantes portugueses face a traços contra-
estereotípicos favorecem o endogrupo face ao exogrupo ?PERPN(CS)
: F(1,158)=4.22,
p<0.044; e MEDPN(CS)
: F(1,158)=8.89, p<0.003?, enquanto que os participantes angolanos
face a traços contra-estereotípicos, não estabelecem diferenciações significativas entre o
endogrupo o exogrupo.
Assim, os participantes angolanos e os participantes portugueses apresentam
estratégias diferenciadas de favoritismo em relação ao endogrupo ou ao exogrupo, em
função do carácter estereotípico ou contra-estereotípico dos traços em causa. Os
participantes angolanos face a traços estereotípicos favorecem o endogrupo, mas face a
traços contra-estereotípicos não favorecem nem o endogrupo nem o exogrupo. Em
contrapartida, os participantes portugueses face a traços estereotípicos favorecem o
exogrupo, mas face a traços contra-estereotípicos favorecem o endogrupo.
Racismo e etnicidade em Portugal
408
5.2.3.4.4 Auto-descrição
A partir da tarefa de auto-descrição, foram calculadas três medidas seguindo o
procedimento de Park e Judd (1990): AUTSC, AUTPN e AUTDA. Posteriormente
procedemos à operacionalização e cálculo de duas novas medidas - AUTDA-SC e
AUTDA-PN – como explicámos na secção dedicada aos instrumentos de medida (ponto
5.2.2.4.4). Começámos por averiguar se existiam diferenças significativas para cada
uma destas medidas em função do estatuto relativo dos grupos.
A medida AUTOSC indica até que ponto o indivíduo se descreve de forma
consonante com os traços estereotípicos do endogrupo (traços estereotípicos vs. traços
contra-estereotípicos). A Tabela 48 apresenta as médias e desvios-padrão desta medida
em função do grupo dos participantes.
Globalmente, o efeito principal da variável estereotipicalidade dos traços (traços
estereotípicos vs. traços contra-estereotípicos) não foi estatisticamente significativo. No
entanto, a interacção entre a estereotipicalidade dos traços e o grupo do participante foi
significativa, ?F(1,161)=36.00, p<0.0001?. As análises de contrastes demonstraram que
os participantes angolanos se descrevem a si próprios recorrendo mais aos traços
estereotípicos do endogrupo (M=58.52) do que aos traços contra-estereotípicos
(M=45.55), ?F(1,161)=15.89, p<0.0001? enquanto que os participantes portugueses se
descrevem a si próprios recorrendo mais aos traços contra-estereotípicos do endogrupo
(M=60.47) do que aos traços estereotípicos (M=49.46), ?F(1,161)=22.50, p<0.0001?.
Estes resultados demonstram que os participantes angolanos se descrevem a si
próprios de forma consonante com os estereótipos do endogrupo enquanto os
participantes portugueses preferem descrever-se de uma forma dissonante com os
estereótipos do endogrupo. Isto é, os participantes portugueses enfatizam a sua
diferenciação interpessoal dentro do grupo de pertença, enquanto que os participantes
angolanos enfatizam a indiferenciação interpessoal dentro do endogrupo, o que vai ao
encontro das nossas hipóteses.
Esta assimetria nos padrões de diferenciação dos indivíduos face ao seu grupo de
pertença parece ir ao encontro dos resultados obtidos nas diversas medidas de
variabilidade grupal percebida: os participantes angolanos homogeneízam o endogrupo
e enfatizam a indiferenciação do self face ao grupo de pertença, enquanto que os
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
409
participantes portugueses heterogeneízam o endogrupo e enfatizam a diferenciação do
self face ao grupo de pertença.
Tabela 48 - Médias e desvios-padrão da medida AUTSC
Grupo dos participantes
AUTOSC Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Total
(N=163)
Estereotípicos (S)
Contra-estereotípicos (CS)
S – CS
58.52
(17.15)
45.55
(17.88)
12.96
(26.77)
49.46
(15.01)
60.47
(15.47)
-11.01
(22.66)
52.52
(16.29)
55.44
(17.74)
- 2.92
(26.60)
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida AUTSC (traços estereotípicos vs. traços contra-
estereotípicos):
Estereotipicalidade: F(1,161)=0.24, p<0.625
Grupo x Estereotipicalidade: F(1,161)=36.00, p<0.0001
Angolanos: F(1,161)=15.89, p<0.0001
Portugueses: F(1,161)=22.50, p<0.0001
A medida AUTPN indica até que ponto o indivíduo se descreve a si próprio
recorrendo preferencialmente a traços positivos ou a traços negativos. Verificou-se um
efeito principal da valência dos traços significativo ?F(1,160)=216.19 p<0.0001?: os
indivíduos descrevem-se a si próprios recorrendo mais aos traços positivos (M=68.65) do
que aos traços negativos (M=39.22), como se pode observar na Tabela 49. A interacção
entre a valência dos traços e o grupo dos participantes também foi significativa,
?F(1,160)=7.41, p<0.007?. As análises de contrastes revelaram que tanto os participantes
angolanos ?F(1,160)=111.47, p<0.0001? como os participantes portugueses
?F(1,160)=105.72, p<0.0001?se auto-descrevem de forma mais positiva do que negativa.
Racismo e etnicidade em Portugal
410
Tabela 49 - Médias e desvios-padrão da medida AUTPN
Grupo dos participantes
AUTOPN Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Total
(N=163)
Positivos (P)
Negativos (N)
P – N
70.64
(16.00)
33.44
(21.34)
37.20
(30.18)
67.63
(13.11)
42.19
(17.49)
25.58
(23.14)
68.65
(14.17)
39.22
(19.27)
29.52
(26.24)
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida AUTOPN (traços negativos vs. traços positivos):
Valência: F(1,160)=216.19, p<0.0001
Grupo x Valência: F(1,160)=7.41, p<0.007
Angolanos: F(1,160)=114.93, p<0.0001
Portugueses: F(1,160)=105.72, p<0.0001
Contrariamente às nossas expectativas, a distância absoluta das auto-descrições face
à média do endogrupo (AUTDA) não variou significativamente em função do grupo dos
participantes (ver Tabela 50). Tendo em conta os resultados obtidos com as medidas
AUTSC e AUTPN podemos deduzir que, embora a distância das auto-descrições face à
média do endogrupo seja equivalente para participantes portugueses e angolanos, tal deve-
se a uma aproximação dos angolanos dos traços estereotípicos do endogrupo e a uma
aproximação dos portugueses dos traços contra-estereotípicos do endogrupo.
Tabela 50 - Médias e desvios-padrão da medida AUTDA
Grupo dos participantes
Medida Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Total
(N=163)
AUTDA
22.75
(13.56)
20.79
(9.76)
21.46
(11.19)
Para verificarmos esta hipótese, recalculámos a medida AUTDA em função do
carácter estereotípico ou contra-estereotípico dos traços (AUTD-SC). Paralelamente, para
verificarmos se a distância face ao endogrupo era afectada pela valência dos traços,
recalculámos a medida AUTDA tendo em conta a valência dos traços (AUTD-PN). As
médias destas medidas são apresentadas na Tabela 51.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
411
Tabela 51 - Médias das medidas de distância da auto-descrição face à tendência central do
endogrupo em função da estereotipicalidade e da valência dos traços
Grupo dos participantes
Medidas Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Total
(N=163)
AUTD-SC
Estereotípicos (S)
Contra-estereotípicos (CS)
S – CS
20.38
(16.03)
25.13
(16.64)
-4.75
(18.24)
21.69
(12.73)
19.96
(11.58)
1.72
(14.47)
21.24
(13.91)
21.72
(13.68)
- 0.47
(16.09)
AUTD-PN
Positivos (P)
Negativos (N)
P – N
19.22
(14.24)
26.29
(16.78)
-7.07
(15.28)
16.57
(11.19)
24.52
(12.75)
-8.40
(13.62)
17.47
(12.33)
25.28
(14.09)
-7.95
(14.18)
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida AUTD-SC (traços estereotípicos vs. traços contra-
estereotípicos):
Estereotipicalidade: F(1,160)=1.32, p<0.252
Grupo x Estereotipicalidade: F(1,160)=6.06, p<0.015
Angolanos: F(1,160)=4.94, p<0.028
Portugueses: F(1,160)=1.27, p<0.262
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida AUTD-PN (traços negativos vs. traços positivos):
Valência: F(1,159)=42.97, p<0.0001
A medida AUTD-SC indica até que ponto a distância da auto-descrição do indivíduo
face à tendência central atribuída ao seu endogrupo é maior para os traços estereotípicos ou
para os traços contra-estereotípicos. Globalmente, o efeito principal da variável
estereotipicalidade dos traços não foi estatisticamente significativo. No entanto, a
interacção entre a estereotipicalidade dos traços e o grupo do participante foi significativa,
?F(1,160)=6.06, p<0.015?. As análises de contrastes demonstraram que para os
participantes angolanos a distância das auto-descrições face à tendência central atribuída
ao endogrupo é significativamente menor para os traços estereotípicos (M=20.38) do que
para os traços contra-estereotípicos (M=25.13), ?F(1,160)=4.94, p<0.028? enquanto que
para os participantes portugueses a distância das auto-descrições face à tendência central
atribuída ao endogrupo não é significativamente diferente no que diz respeito aos traços
estereotípicos (M=21.69) aos traços contra-estereotípicos (M=19.96).
Racismo e etnicidade em Portugal
412
A medida AUTDA-PN indica até que ponto a distância da auto-descrição do
indivíduo face à tendência central atribuída ao seu endogrupo é maior para os traços
positivos ou para os traços negativos. Globalmente, o efeito principal da variável valência
dos traços (traços positivos vs. traços negativos) foi estatisticamente significativo
?F(1,159)=42.97, p<0.0001?. A interacção entre a valência dos traços e o grupo do
participante não foi significativa, isto é, as auto-descrições dos participantes foram
significativamente mais próximas da tendência central do endogrupo nos traços positivos
(M=17.47) do que nos traços negativos (M=25.28), independentemente do grupo de
pertença dos participantes.
Assim, a principal diferença nas estratégias de diferenciação pessoal face ao
endogrupo que observamos nos participantes dá-se ao nível da estereotipicalidade dos
traços: os angolanos distanciam-se mais da tendência central do endogrupo quando são
confrontados com traços contra-estereotípicos do que quando confrontados com traços
estereotípicos, enquanto que portugueses se distanciam mais face aos traços estereotípicos
do que contra-estereotípicos, embora esta diferença não seja estatisticamente significativa.
No que respeita à valência dos traços, os dois grupos de participantes apresentam
estratégias semelhantes: ambos se aproximam da tendência central do endogrupo nos
traços positivos e se distanciam da tendência central do endogrupo nos traços negativos.
Seguidamente, investigámos as correlações entre as medidas derivadas da auto-
descrição e as várias medidas de variabilidade grupal percebida. Primeiro, averiguámos se
a distância face à tendência central percebida do endogrupo seria uma boa preditora da
variabilidade grupal percebida. Assim investigámos a correlação entre AUTDA e as
seguintes medidas de variabilidade grupal percebida: PERSC, MEDSC, AMPLI e
VARIA (excluímos as medidas indirectas, derivadas das tarefas de recordação indiciada
e de recordação livre, porque apenas aproximadamente metade dos participantes
efectuaram uma ou outra). Calculámos as correlações separadamente para os
participantes angolanos e para os participantes portugueses, uma vez que estes
apresentam padrões de resposta completamente distintos nestas medidas.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
413
Tabela 52 - Correlações entre as medidas de auto-descrição e as me didas de variabilidade grupal
percebida
Grupo dos participantes
Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Medidas
AUTSC AUTDA AUTD_SC AUTSC AUTDA AUTD_SC
Endogrupo ,026 ,083 ,019 ,208* ,250** -,045
PERSC
Exogrupo ,075 -,123 ,090 -,110 ,177 -,023
Endogrupo ,242 ,108 ,069 ,193* ,294** -,096
MEDSC
Exogrupo ,152 -,204 ,248 -,147 ,266** ,006
Endogrupo -,148 ,147 .093 ,148 -,135 ,034
AMPLI
Exogrupo ,028 ,291* -.053 ,202* -,243* -,092
Endogrupo -,012 -,388** .356** -,226* ,098 ,031
VARIA
Exogrupo ,099 -,140 ,039 -,206* -,186 ,038
Endogrupo ,114 -,094 ,080 -,049 ,171 ,187
DISPV
Exogrupo ,113 -,087 ,082 ,016 ,176 ,255**
Endogrupo ,043 -,078 -,016 -,057 ,039 ,055
DISPD
Exogrupo ,074 -,041 -,053 -,097 -,010 ,143
Nota: * Correlação significativa a 0.05; ** Correlação significativa a 0.01.
No que respeita aos participantes angolanos, verifica-se uma correlação negativa
significativa entre a medida AUTDA e a medida VARIA-endogrupo (r = - 0.388,
p<0.003), e uma correlação positiva significativa entre a medida AUTDA e a medida
AMPLI-exogrupo (r = 0.291, p<0.031).
Para os participantes portugueses, relativamente à medida AUTDA verifica-se
uma correlação negativa significativa com a medida AMPLI endogrupo (r = - 0.243,
p<0.011), e correlações positivas significativas com as medidas PERSC-endogrupo (r
=0.250, p<0.009), MEDSC-endogrupo (r =0.294, p<0.002) e MEDSC-exogrupo (r
=0.266, p<0.006).
Em segundo lugar, averiguámos se o facto do indivíduo se descrever a si próprio
de forma consonante com os estereótipos do seu grupo estaria relacionado com o efeito
de homogeneidade do endogrupo. Assim, investigámos as correlações entre a medida
AUTSC e as outras medidas baseadas na diferença entre traços estereotípicos e traços
contra-estereotípicos: PERSC e MEDSC.
Racismo e etnicidade em Portugal
414
Para os participantes angolanos não se verifica nenhuma correlação significativa
entre AUTSC e as outras medidas baseadas na atribuição diferencial de traços
estereotípicos versus contra-estereotípicos.
Para os participantes portugueses verificam-se correlações negativas significativas
com VARIA-endogrupo (r =-0.226, p<0.019) e VARIA-exogrupo (r=-0.206, p<0.033),
e correlações positivas significativas com as medidas AMPLI-exogrupo (r=0.202,
p<0.036), PERSC-endogrupo (r=0.208, p<0.031), e MEDSC-endogrupo (r=0.193,
p<0.046).
Assim, globalmente, estas análises indicam que não é possível prever os efeitos de
homogeneidade a partir dos valores da auto-descrição. No entanto, o facto de
encontrarmos poucas correlações significativas, sobretudo para os participantes
angolanos, pode dever-se simplesmente ao reduzido número de efectivos.
5.2.3.4.5 Nível de identificação grupal
A Tabela 53 apresenta os valores referentes aos níveis de identificação grupal. A
análise de variância multivariada efectuada sobre os níveis de identificação (endogrupo
vs. exogrupo) produziu um efeito principal significativo do grupo-alvo, demonstrando
que os participantes se identificam mais fortemente com o endogrupo do que com o
exogrupo, ?F(1,157)=253.62, p<0.0001?. Também se verificou uma interacção
significativa entre o grupo-alvo e o grupo do participante, ?F(1,157)=7.80, p<0.006?.
As análises de contrastes demonstraram que, tal como esperávamos, embora ambos os
grupos manifestem um nível de identificação endogrupal significativamente superior ao
nível de identificação exogrupal, tal diferença é mais acentuada nos participantes
portugueses ?M=5.93 para o endogrupo e =2.55 para o exogrupo; F(1,157)=57.93,
p<0.0001? do que para os participantes angolanos ?M=5.73 para o endogrupo e o
exogrupo =3.37, F(1,157)=65.29, p<0.0001?.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
415
Tabela 53 - Médias e desvios-padrão dos níveis de identificação em função do grupo do participante
Grupo do participante
Nível de identificação Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Total
(N=163)
Endogrupo
5.73
(1.38)
5.93
(1.13)
5.86
(1.22)
Exogrupo
3.37
(1.80)
2.55
(1.25)
2.83
(1.51)
Nota: Nível de identificação grupal: “Eu sinto-me identificado com o grupo dos
?angolanos/portugueses?...” (1=absolutamente nada; 7=muito fortemente)
Análise dos efeitos do Grupo sobre o Nível de identificação em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,157)=253.62, p<0.0001
Grupo x Grupo-alvo: F(1,157)=7.80, p<0.006
Angolanos: F(1,157)=65.29, p<0.0001
Portugueses: F(1,157)=257.93, p<0.0001
Como podemos constatar, a diferença entre os participantes angolanos e portugueses
deve-se sobretudo ao nível de identificação com o exogrupo, que é significativamente
superior nos angolanos. O nível de identificação com o endogrupo não difere
significativamente em função do grupo dos participantes.
Como foi referido na introdução, por um lado, tendo em conta os resultados de
pesquisa anterior sobre os níveis de identificação dos membros de grupos dominantes ou
de grupos dominados, esperaríamos encontrar um nível de identificação endogrupal
superior para os participantes angolanos do que para os participantes portugueses (cf.:
Cabecinhas, 1994). Por outro lado, tratando-se de um grupo imigrante poderia dar-se o
fenómeno inverso, dependendo das estratégias de adaptação à sociedade de acolhimento.
Colocámos a hipótese dos níveis de identificação dos participantes angolanos com o
endogrupo e com o exogrupo variarem em função do seu tempo de permanência em
Portugal. De facto, constatámos que alguns dos participantes angolanos vieram com idades
muito jovens para Portugal, e aqui viveram os períodos mais marcantes de socialização.
Para analisar esta hipótese dividimos a amostra dos estudantes angolanos em dois grupos
(com base no valor da mediana da variável tempo de permanência em Portugal): aqueles
que residem há menos de 6 anos em Portugal; e aqueles que residem há mais de 6 anos em
Portugal. A Tabela 54 apresenta as médias dos níveis de identificação endogrupal e
exogrupal dos participantes angolanos em função do tempo de permanência em Portugal.
Racismo e etnicidade em Portugal
416
Tabela 54 - Médias e desvios-padrão dos níveis de identificação dos participantes angolanos em
função do tempo de permanência em Portug al
Tempo de permanência em Portugal
Nível de
identificação
Menos de 6 anos
(N=30)
Mais de 6 anos
(N=25)
Total
(N=55)
Endogrupo
6.23
(0.97)
5.05
(1.62)
5.73
(1.38)
Exogrupo
3.00
(1.65)
3.77
(2.02)
3.37
(1.80)
Nota: Nível de identificação grupal: “Eu sinto-me identificado com o grupo dos
?angolanos/portugueses?...” (1=absolutamente nada; 7=muito fortemente).
Análise dos efeitos do Tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) sobre o
Nível de identificação em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,49)=7.57, p<0.008
Tempo x Grupo-alvo: F(1,49)=39.82, p<0.0001
Menos de 6 anos: F(1,49)=47.60, p<0.0001
Mais de 6 anos: F(1,49)=5.57, p<0.0001
Análise dos efeitos do Tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) sobre o
Nível de identificação endogrupal:
Tempo: F(1,50)=10.878, p<0.002
As medidas de identificação (endogrupal vs. exogrupal) foram submetidas a uma
análise de variância multivariada tendo o grupo-alvo de identificação como variável intra-
participantes e o tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos)
como variável inter-participantes. Esta análise produziu um efeito principal significativo
do grupo-alvo de identificação, demonstrando que globalmente os participantes angolanos,
independentemente do tempo de permanência em Portugal, se sentem mais identificados
com o endogrupo do que o exogrupo ?F(1,49)=7.57, p<0.008?. A interacção entre o grupo-
alvo e o tempo de permanência em Portugal também é significativa ?F(1,49)=39.82,
p<0.0001?. Tal como prevíamos, as análises de contrastes demonstraram que esta diferença
é mais acentuada para os angolanos a residir em Portugal há menos de 6 anos
?F(1,49)=47.60, p<0.0001? do que para os que residem há mais de 6 anos ?F(1,49)=5.57,
p<0.0001?.
O nível de identificação endogrupal é significativamente superior para os angolanos
que residem em Portugal há menos de 6 anos (M=6.23) do que para os angolanos que
residem em Portugal há mais de 6 anos (M=5.05), ?F(1,50)=10.878, p<0.002?. Quanto ao
nível de identificação exogrupal, embora seja superior para os angolanos que residem em
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
417
Portugal há mais de 6 anos (M=3.77) do que para os angolanos que residem em Portugal
há menos de 6 anos (M=3.00), esta diferença não é estatisticamente significativa
?F(1,50)=2.261, p<0.139?.
Assim, tal como prevíamos, o nível de identificação endogrupal dos angolanos é
menor quanto maior o seu tempo de permanência em Portugal. De notar que o nível de
identificação endogrupal dos angolanos que residem em Portugal há menos tempo
(M=6.23) é superior ao nível de identificação endogrupal dos portugueses (M=5.93), o que
vai ao encontro dos estudos que salientam a grande centralidade da identificação
endogrupal nos membros dos grupos dominados (Cabecinhas, 1994).
Para analisar o impacto da identificação grupal nos efeitos de homogeneidade e nos
efeitos de favoritismo, efectuámos uma classificação dos participantes de ambos os grupos,
tendo em conta o valor da mediana de cada grupo para cada uma das medidas
(identificação endogrupal e identificação exogrupal), dividindo assim os participantes em
“fortemente identificados” e “fracamente identificados”.
Analisámos o impacto do grau de identificação endogrupal e exogrupal nas diversas
medidas de variabilidade grupal percebida (PERSC, MEDSC, AMPLI e VARIA) e nas
duas medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN). Para cada uma destas
medidas foi efectuada uma análise de variância multivariada, tendo a identificação
endogrupal, a identificação exogrupal e o grupo do participante como variáveis inter-
participantes e o grupo-alvo como variável intra-participante.
No que respeita às medidas de variabilidade grupal percebida, em todas as análises
de variância efectuadas, a interacção entre o grupo-alvo e o grau de identificação
endogrupal não foi significativa, assim como a interacção entre o grupo-alvo e o grau de
identificação exogrupal. A tripla interacção entre o grupo-alvo, a identificação endogrupal
e o grupo do participante não foi significativa, assim como a tripla interacção entre grupo-
alvo, identificação endogrupal e grupo do participante (com a excepção da medida
MEDSC). Assim, globalmente não encontrámos evidência para uma mediação do grau de
identificação endogrupal e do grau de identificação exogrupal na variabilidade grupal
percebida.
Nas análises efectuadas com as medidas de favoritismo endogrupal, a interacção
entre o grupo-alvo e a identificação endogrupal não foi significativa, assim como a tripla
interacção entre o grupo-alvo, a identificação endogrupal e o grupo do participante.
Contudo, a interacção entre o grupo-alvo e a identificação exogrupal foi significativa tanto
Racismo e etnicidade em Portugal
418
na análise da medida PERPN ?F(1,150)=7.57, p<0.007? como na análise da medida
MEDPN ?F(1,150)=9.55, p<0.002?, revelando que quanto maior o grau de identificação
exogrupal menor o favoritismo endogrupal. As análises de contrastes demonstraram que os
participantes com baixo nível de identificação exogrupal apresentam um favoritismo
endogrupal significativo, ?F(1,150)=15.61, p<0.0001 para PERPN e F(1,150)=11.26,
p<0.001 para MEDPN? enquanto que os participantes com alto nível de identificação
exogrupal apresentam um favoritismo face ao endogrupo não significativo,
?F(1,150)=0.59, p<0.444 para PERPN e F(1,150)=2.09, p<0.150 para MEDPN?.
A tripla interacção entre grupo-alvo, identificação exogrupal e grupo do
participante não foi significativa para ambas as medidas. Assim, os resultados apontam
para uma mediação do favoritismo endogrupal pelo grau de identificação exogrupal
(mas não pelo grau de identificação endogrupal): globalmente, quanto maior o grau de
identificação exogrupal menor o favoritismo endogrupal, como se pode verificar na
Tabela 55.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
419
Tabela 55 – Médias e desvios-padrão do favoritismo endogrupal em função do nível de identificação
exogrupal
Grupo dos participantes
Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Total
(N=163)
Identificação
exogrupal
Baixa Alta Baixa Alta Baixa Alta
PERPN
Endogrupo
Exogrupo
35.75
(23.63)
6.09
(26.34)
22.36
(22.51)
15.22
(22.43)
23.05
(17.46)
19.22
(26.58)
22.08
(18.22)
30.29
(23.82)
27.09
(20.38)
14.94
(27.07)
22.18
(19.69)
24.91
(24.28)
MEDPN
Endogrupo
Exogrupo
29.91
(22.45)
5.55
(23.28)
17.18
(27.38)
15.00
(26.98)
21.22
(19.60)
15.18
(27.98)
19.23
(19.16)
29.52
(28.53)
24.09
(20.86)
12.04
(26.79)
18.50
(22.27)
24.34
(28.65)
Análise dos efeitos do Grupo x Nível de identificação endogrupal (alto vs. baixo) x Nível de identificação
exogrupal (alto vs. baixo) sobre a medida PERPN em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,150)=5.71, p<0.018
Grupo x Grupo-alvo: F(1,150)=9.45, p<0.003
Identidade exogrupal x Grupo-alvo: F(1,150)=7.57, p<0.007
Baixo: F(1,150)=15.61, p<0.0001
Alto: F(1,150)=0.59, p<0.444
Grupo x Identidade exogrupal x Grupo-alvo: F(1,150)=2.56, p<0.112
Angolanos – Baixo nível de identificação exogrupal: F(1,150)=30.71, p<0.0001
Angolanos – Alto nível de identificação exogrupal: F(1,150)=1.44, p<0.232
Portugueses – Baixo nível de identificação exogrupal: F(1,150)= 1.00, p<0.320
Portugueses – Alto nível de identificação exogrupal: F(1,150)= 3.43, p<0.066
Análise dos efeitos do Grupo x Nível de identificação endogrupal (alto vs. baixo) x Nível de identificação
exogrupal (alto vs. baixo) sobre a medida MEDPN em função do grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,150)=2.76, p<0.099
Grupo x Grupo-alvo: F(1,150)=3.38, p<0.068
Identidade exogrupal x Grupo-alvo: F(1,150)=9.55, p<0.002
Baixo: F(1,150)=11.26, p<0.001
Alto: F(1,150)=2.09, p<0.150
Grupo x Identidade endogrupal x Grupo-alvo: F(1,150)=1.63, p<0.203
Angolanos – Baixo nível de identificação exogrupal: F(1,150)=15.12, p<0.0001
Angolanos – Alto nível de identificação exogrupal: F(1,150)=0.10, p<0.747
Portugueses – Baixo nível de identificação exogrupal: F(1,150)=1.88, p<0.172
Portugueses – Alto nível de identificação exogrupal: F(1,150)=4.18, p<0.043
5.2.3.4.6 Nível de contacto
Como referimos na secção dedicada ao método, o nível de contacto foi
investigado através de três escalas de 7 pontos e uma pergunta aberta sobre o número de
amigos. Os valores correspondentes ao nível de familiaridade (média das três escalas)
Racismo e etnicidade em Portugal
420
são apresentados na Tabela 56. A maiores valores corresponde maior nível de
familiaridade com o respectivo grupo.
A análise de variância multivariada efectuada sobre os níveis de familiaridade
produziu um efeito principal significativo do grupo-alvo, demonstrando que a
globalidade dos participantes considera ter maior familiaridade com o endogrupo do que
ao exogrupo ?F(1,161)=324.45, p<0.0001?. Também se verificou um efeito de
interacção significativo entre o grupo-alvo e o grupo do participante ?F(1,161)=123.54,
p<0.0001?. Tal como esperávamos, as análises de contrastes demonstraram que os
participantes angolanos atribuem maior familiaridade ao endogrupo (M=5.50) do que ao
exogrupo (M=4.53), ?F(1,161)=17.95, p<0.0001? mas esta diferença é ainda mais
acentuada para os participantes portugueses ?M=6.33 para o endogrupo e M=2.21 para o
exogrupo; F(1,161)=628.59, p<0.0001?.
Assim, ambos os participantes angolanos e portugueses manifestam ter um nível
de contacto superior com o endogrupo do que com o exogrupo, sendo esta diferença
mais acentuada para os participantes portugueses.
Tabela 56 - Médias e desvios-padrão do nível de familiaridade entre os grupos
Grupo do participante
Nível de
familiaridade
Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Total
(N=163)
Endogrupo
5.50
(1.38)
6.33
(0.68)
6.05
(1.05)
Exogrupo
4.53
(1.59)
2.21
(1.21)
2.99
(1.74)
Análise dos efeitos do Grupo sobre o Nível de familiaridade em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,161)=324.45, p<0.0001
Grupo x Grupo-alvo: F(1,161)=123.54, p<0.001
Angolanos: F(1,161)=17.95, p<0.0001
Portugueses: F(1,161)=628.59, p<0.0001
A análise de variância multivariada efectuada com os valores referentes ao
número de amigos também produziu um efeito significativo do grupo-alvo,
demonstrando que tanto os angolanos como os portugueses declaram ter mais amigos do
endogrupo do que do exogrupo, ?F(1,145)=17.63, p<0.0001?. Também se verificou um
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
421
efeito de interacção significativo entre o grupo-alvo e o grupo do participante
?F(1,145)=5.12, p<0.025?. As análises de contrastes mostraram que participantes
portugueses referiram ter mais amigos do endogrupo (M=45.74) do que do exogrupo
(M=2.56), ?F(1,145)=8.13, p<0.005?, mas esta diferença é ainda mais acentuada para os
participantes angolanos ?M=185.35 para o endogrupo e =44.71 para o exogrupo,
F(1,145)= 19.19, p<0.0001?. Pensamos que tal se deve a uma interpretação diferencial
do conceito “amigo” que é mais alargado para os participantes angolanos (recordar que
foram excluídos vários participantes angolanos desta análise por referirem um número
de amigos superior a 1000).
Tabela 57 - Médias e desvios-padrão do número de amigos do endogrupo e do exogrupo
Grupo do participante
Número de amigos Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Total
(N=163)
Endogrupo
185.35
(529.88)
45.74
(82.29)
91.35
(315.14)
Exogrupo
44.71
(142.94)
2.56
(3.67)
16.34
(83.63)
Análise dos efeitos do Grupo sobre o Número de amigos em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,145)=17.63, p<0.0001
Grupo x Grupo-alvo: F(1,145)=5.12, p<0.025
Angolanos: F(1,145)=19.19, p<0.0001
Portugueses: F(1,145)=8.13, p<0.005
Tal como efectuámos em relação aos níveis de identificação, analisámos os níveis de
contacto endogrupal e exogrupal dos participantes angolanos em função do seu tempo de
permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos). A Tabela 58 apresenta as
médias dos níveis de familiaridade endogrupal e exogrupal dos participantes angolanos em
função do tempo de permanência em Portugal.
Racismo e etnicidade em Portugal
422
Tabela 58 - Médias e desvios-padrão respeitantes aos níveis de familiaridade dos participantes
angolanos em função do tempo de permanência em Portugal
Tempo de permanência em Portugal
Nível de
familiaridade
Menos de 6 anos
(N=30)
Mais de 6 anos
(N=25)
Total
(N=55)
Endogrupo
5.82
(1.19)
5.08
(1.59)
5.50
(1.38)
Exogrupo
3.99
(1.55)
5.24
(1.32)
4.53
(1.59)
Análise dos efeitos do Tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) sobre o
Nível de familiaridade em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,50)=8.36, p<0.006
Tempo x Grupo-alvo: F(1,50)=12.04, p<0.001
Menos de 6 anos: F(1,50)=23.92, p<0.0001
Mais de 6 anos: F(1,50)=0.14, p<0.705
Análise dos efeitos do Tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) sobre o
Nível de familiaridade endogrupal:
Tempo: F(1,50)=3.765, p<0.058
Análise dos efeitos do Tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) sobre o
Nível de familiaridade exogrupal:
Tempo: F(1,50)=9.394, p<0.004
As medidas de familiaridade (endogrupo vs. exogrupo) foram submetidas a uma
análise de variância multivariada tendo o grupo-alvo de identificação como variável intra-
participantes e o tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos)
como variável inter-participantes. Esta análise produziu um efeito principal significativo
do grupo-alvo, demonstrando que globalmente os participantes angolanos apresentam
maiores níveis de familiaridade com o endogrupo do que o exogrupo ?F(1,50)=8.36,
p<0.006?. A interacção entre o grupo-alvo e o tempo de permanência em Portugal também
é significativa ?F(1,50)=12.04, p<0.001?. As análises de contrastes demonstraram que o
efeito principal do grupo-alvo é significativo para os angolanos a residir em Portugal há
menos de 6 anos ?F(1,50)=23.92, p<0.0001?, mas não o é para os angolanos que residem
há mais de 6 anos ?F(1,50)=0.14, p<0.705?.
O nível de familiaridade exogrupal é significativamente superior para os angolanos
que residem em Portugal há mais de 6 anos (M=5.24) do que para os angolanos que
residem em Portugal há menos de 6 anos (M=3.99), ?F(1,50)=9.394, p<0.004?. Quanto ao
nível de familiaridade endogrupal, embora seja superior para os angolanos que residem em
Portugal há menos de 6 anos (M=5.82) do que para os angolanos que residem em Portugal
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
423
há mais de 6 anos (M=5.08), esta diferença é apenas tendencialmente significativa,
?F(1,50)=3.765, p<0.058?.
Resumindo, os angolanos que residem há mais tempo em Portugal apresentam níveis
de familiaridade com os portugueses significativamente superiores aos angolanos que
residem há menos tempo no país. Quanto aos níveis de familiaridade com o endogrupo dá-
se o processo inverso, embora de forma menos significativa: os angolanos que vivem há
mais tempo em Portugal referem ter menor contacto com outros angolanos do que aqueles
que residem na nosso país há menos tempo.
Comparando a evolução dos níveis de identificação e dos níveis de familiaridade
com o exogrupo, verificamos que estes evoluem na mesma direcção: à medida que
aumenta o contacto com os portugueses, aumenta também o nível de identificação dos
angolanos com o exogrupo.
O nível de contacto endogrupal e exogrupal constitui outro potencial mediador da
variabilidade grupal percebida e do favoritismo. Como referimos na secção dedicada ao
método, para analisar o impacto do nível de contacto endogrupal e do nível de contacto
exogrupal nos efeitos de homogeneidade e no favoritismo endogrupal, efectuámos uma
classificação dos participantes de ambos os grupos, tendo em conta o valor da mediana de
cada grupo para cada uma das medidas (contacto endogrupal e contacto exogrupal),
dividindo assim os participantes conforme o alto ou baixo nível de contacto.
Analisámos o impacto do grau de contacto endogrupal e exogrupal nas diversas
medidas de variabilidade grupal percebida (PERSC, MEDSC, AMPLI e VARIA) e nas
duas medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN). Para cada uma destas
medidas foi efectuada uma análise de variância multivariada, tendo o contacto endogrupal,
o contacto exogrupal e o grupo do participante como variáveis inter-participantes e o
grupo-alvo como variável intra-participante.
Em todas as análises de variância efectuadas com as medidas de variabilidade grupal
percebida (com a excepção da medida MEDSC), a interacção entre o grupo-alvo e o nível
de contacto endogrupal não foi significativa, assim como a interacção entre o grupo-alvo e
o nível de contacto exogrupal. A tripla interacção entre o grupo-alvo, o nível de contacto
endogrupal e o grupo do participante também não foi significativa, assim como a tripla
interacção entre o grupo-alvo, o nível de contacto exogrupal e o grupo do participante.
Assim, não há evidência para uma mediação da variabilidade grupal percebida pelos níveis
de contacto endogrupal e exogrupal.
Racismo e etnicidade em Portugal
424
No que respeita ao favoritismo endogrupal, encontrámos o mesmo padrão de
resultados para as medidas PERPN e MEDPN. A interacção entre o grupo-alvo e o nível
de contacto endogrupal não foi significativa, assim como a tripla interacção entre o grupo-
alvo, o nível de contacto endogrupal e o grupo do participante. No entanto, a interacção
entre o grupo-alvo e o nível de contacto exogrupal foi significativa tanto para a medida
PERPN ?F(1,154)=9.19, p<0.003? como para a medida MEDPN ?F(1,154)=4.29,
p<0.040?, assim como a tripla interacção entre o grupo-alvo, o nível de contacto exogrupal
e o grupo do participante ?significativamente para PERPN, F(1,154)=4.53, p<0.035; e
tendencialmente para MEDPN, F(1,154)=2.24, p<0.094?. As análises de contrastes
revelaram que para os participantes angolanos quanto maior o nível de contacto com o
exogrupo menor o favoritismo endogrupal ?F(1,154)=10.39, p<0.002 para PERPN e
F(1,154)=3.89, p<0.050 para MEDPN?. Em contrapartida, para os participantes
portugueses o nível de favoritismo endogrupal não difere significativamente em função do
nível de contacto exogrupal ?F(1,154)=0.00, p<0.954 para PERPN e F(1,154)=0.00,
p<0.975 para MEDPN?. Assim, o nível de contacto exogrupal parece ser um mediador do
favoritismo endogrupal, mas o seu efeito só é significativo para os angolanos: quanto
maior o nível de contacto com os portugueses menor o favoritismo endogrupal
demonstrado, como se pode verificar na Tabela 59.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
425
Tabela 59 – Médias e desvios-padrão do favoritismo endogrupal em função dos níveis de
familiaridade endogrupal e exogrupal
Grupo dos participantes
Angolanos
(N=55)
Portugueses
(N=108)
Total
(N=163)
Nível de
familiaridade
Baixo Alto Baixo Alto Baixo Alto
PERPN
Endogrupo
Exogrupo
36.25
(22.13)
4.53
(23.87)
22.60
(23.69)
16.60
(24.23)
21.36
(16.86)
21.12
(26.74)
23.67
(19.03)
27.73
(25.35)
25.80
(19.69)
16.06
(26.89)
23.26
(20.77)
23.47
(25.34)
MEDPN
Endogrupo
Exogrupo
31.07
(23.47)
5.72
(23.32)
16.73
(25.49)
14.12
(26.69)
18.51
(17.92)
19.64
(26.56)
21.34
(23.36)
22.57
(32.81)
22.34
(20.49)
15.39
(26.29)
19.55
(24.12)
19.34
(30.68)
Análise dos efeitos do Grupo do participante x Nível de familiaridade endogrupal (alto vs. baixo) x Nível
de familiaridade exogrupal (alto vs. baixo) sobre a medida PERPN em função do Grupo-alvo (endogrupo
vs. exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,154)=11.05, p<0.001
Grupo x Grupo-alvo: F(1,154)=16.21, p<0.0001
Familiaridade exogrupal x Grupo-alvo: F(1,154)=9.19, p<0.003
Baixa: F(1,154)=10.39, p<0.002
Alta: F(1,154)=0.00, p<0.954
Grupo x Familiaridade exogrupal x Grupo-alvo: F(1,154)=4.53, p<0.035
Angolanos – Baixo nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=33.70, p<0.0001
Angolanos – Alto nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=1.02, p<0.314
Portugueses – Baixo nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=0.00, p<0.948
Portugueses – Alto nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=0.75, p<0.387
Análise dos efeitos do Grupo do participante x Nível de familiaridade endogrupal (alto vs. baixo) x Nível
de familiaridade exogrupal (alto vs. baixo) sobre a medida MEDPN em função do Grupo-alvo (endogrupo
vs. exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,154)=3.61, p<0.059
Grupo x Grupo-alvo: F(1,154)=7.03, p<0.009
Identidade exogrupal x Grupo-alvo: F(1,154)=4.29, p<0.040
Baixa: F(1,154)=3.89, p<0.050
Alta: F(1,154)=0.00, p<0.975
Grupo x Familiaridade exogrupal x Grupo-alvo: F(1,154)=4.34, p<0.037
Angolanos – Baixo nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=15.79, p<0.0001
Angolanos – Alto nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=0.15, p<0.698
Portugueses – Baixo nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=0.07, p<0.788
Portugueses – Alto nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=0.07, p<0.789
Racismo e etnicidade em Portugal
426
5.2.4 Discussão
Efeitos de homogeneidade
Um dos objectivos desta pesquisa foi a análise do papel do estatuto relativo dos
grupos na percepção da homogeneidade grupal. Nesse sentido, escolhemos dois grupos
com estatuto assimétrico na sociedade portuguesa: os ‘portugueses’ e os ‘angolanos’.
Tendo em conta a perspectiva de Lorenzi-Cioldi (1988, 1998), previmos uma
manifestação assimétrica do efeito de homogeneidade do exogrupo em função do
estatuto social relativo dos grupos: esperávamos um efeito de homogeneidade do
exogrupo significativo da parte dos participantes portugueses, e a ausência deste efeito
da parte dos participantes angolanos. Isto é, globalmente, esperávamos que os angolanos
fossem percebidos de forma mais homogénea do que os portugueses.
Uma vez que a magnitude dos efeitos de homogeneidade depende do tipo de
medidas utilizadas (Linville et al., 1989; Park e Judd, 1990; Ostrom e Sedikides, 1992),
testámos a hipótese da assimetria nos efeitos de homogeneidade em função do estatuto
social relativo recorrendo a diferentes tipos de medidas. Utilizámos medidas não-
obstrusivas (tarefas de recordação indiciada e de recordação livre) e medidas mais
directas (tarefas de questionário), umas ligadas directamente ao conteúdo dos
estereótipos grupais (tarefa de estimação de percentagens, tarefa de estimação de médias
e tarefa de estimação de amplitudes) e outras medidas não relacionadas com o conteúdo
dos estereótipos (tarefa de estimação de distribuições e tarefa de estimação de
variabilidade).
Na tarefa de recordação indiciada verificou-se um forte efeito de categorização. A
comparação dos erros intergrupais com os erros intragrupais demonstrou que os
participantes efectivamente categorizaram as pessoas-estímulo em dois grupos distintos:
os portugueses e os angolanos. Tanto os membros do grupo dominante como os
membros do grupo dominado mostraram uma forte tendência para confundir a
informação acerca dos membros de um mesmo grupo-alvo do que a informação
referente a membros de grupos-alvo distintos, isto é, estruturaram a informação a partir
da pertença étnica das pessoas-estímulo. O efeito de categorização foi igualmente forte
em ambas as versões do material-estímulo e em ambas as ordens de apresentação,
validando assim o uso deste material para o exame de questões relativas à percepção de
grupos.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
427
No que respeita aos efeitos de homogeneidade, a comparação entre os diferentes
tipos de erros intragrupais (endogrupais vs. exogrupais) evidenciou a esperada
assimetria em função do estatuto relativo dos grupos em presença. Consistentemente
com as nossas hipóteses, os membros do grupo dominante (os participantes
portugueses) demonstraram um forte efeito de homogeneidade do exogrupo, isto é,
confundiram muito mais a informação respeitante às pessoas-estímulo angolanas
(exogrupo) do que a informação respeitante às pessoas-estímulo portuguesas
(endogrupo), enquanto que os membros do grupo dominado (os participantes
angolanos) confundiram igualmente a informação respeitante ao endogrupo e ao
exogrupo. Consonantemente com as nossas hipóteses, verifica-se um efeito de
homogeneidade do grupo dominado, isto é, as pessoas-estímulo do grupo dominado são
mais homogeneizadas do que as pessoas-estímulo do grupo dominante,
independentemente dos participantes serem eles próprios pertencentes a um ou a outro
grupo.
Na tarefa de recordação livre, partimos da hipótese de que os protocolos de
recordação dos participantes iriam revelar diferentes formas de estruturar a informação:
a informação sobre o grupo dominante seria organizada preferencialmente em termos
pessoais enquanto que a informação sobre o grupo dominado seria organizada
preferencialmente em termos categoriais. Esta hipótese sobre a organização diferencial
da informação em função do estatuto relativo dos grupos foi parcialmente verificada.
As médias dos ARC-scores apresentaram as direcções previstas, demonstrando
que a informação acerca das pessoas-estímulo portuguesas foi organizada
preferencialmente em termos ‘pessoais’ e a informação acerca das pessoas-estímulo
angolanas foi organizada preferencialmente em termos ‘categoriais’. No entanto, esta
diferença foi apenas tendencialmente significativa para a globalidade da amostra.
Curiosamente, foi estatisticamente significativa apenas para os participantes angolanos,
que exibiram assim um significativo efeito de homogeneidade do endogrupo, enquanto
que para os portugueses esta diferença não foi significativa.
O facto da nossa hipótese ser verificada através de uma tripla interacção (grupo do
participante x grupo-alvo x tipo de organização da informação), e ainda o reduzido
número de efectivos, dificultou a obtenção de resultados estatisticamente significativos.
A isto acresce o facto de se verificar uma elevada variância dos ARC-scores, e também
o facto de vários participantes não produzirem os quatro ARC-scores válidos (uma vez
Racismo e etnicidade em Portugal
428
que a análise da hipótese dependia da proporção relativa de quatro ARC-scores, bastava
um deles não ser válido para excluir esse participante da análise; recordamos que pela
fórmula de cálculo do ARC-score poderia obter-se uma divisão por zero, o que dá
infinito, o que aconteceu com 14 participantes).
Apesar destas limitações, uma vez que as diferenças esperadas foram
tendencialmente significativas para a globalidade da amostra e estatisticamente
significativas para os participantes angolanos, podemos afirmar que, em consonância
com as nossas hipóteses, encontrámos uma assimetria no processamento da informação
em função do estatuto relativo dos grupos. Os membros do grupo dominado
processaram a informação referente ao endogrupo preferencialmente em termos
categoriais e, simultaneamente, processaram a informação referente ao exogrupo
preferencialmente em termos pessoais, isto é, homogeneizaram o endogrupo e
individualizaram o exogrupo. Para os membros do grupo dominante não foram
encontrados efeitos estatisticamente significativos.
A hipótese da assimetria dos efeitos de homogeneidade em função do estatuto dos
grupos foi também verificada através das medidas ‘directas’ obtidas a partir das tarefas
do questionário. Como referimos, algumas dessas medidas são directamente ligadas ao
conteúdo dos estereótipos grupais (tarefa de estimação de percentagens; tarefa de
estimação de médias; e tarefa de estimação de amplitudes), mas outras medidas não
estão relacionadas com o conteúdo dos estereótipos (tarefa de estimação de
distribuições; e tarefa de estimação de variabilidade).
As duas medidas baseadas na diferença de atribuição de traços estereotípicos e
contra-estereotípicos (tarefa de estimação de percentagens e tarefa de estimação de
médias) revelaram o mesmo padrão de resultados. Globalmente verificou-se um efeito
de homogeneidade do exogrupo significativo, isto é, os participantes atribuíram mais
traços estereotípicos ao exogrupo do que ao endogrupo e atribuíram mais traços contra-
estereotípicos ao endogrupo do que ao exogrupo. Tal como prevíamos, este efeito foi
fortemente significativo para os portugueses, mas não foi significativo para os angolanos.
Foi encontrado um padrão de resultados semelhante com a tarefa de estimação de
amplitudes. O efeito de homogeneidade do exogrupo foi muito significativo para os
participantes portugueses – estes atribuíram uma maior diferença entre os membros
extremos ao endogrupo do que ao exogrupo - mas não foi significativo para os
participantes angolanos.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
429
Nas medidas derivadas da tarefa de estimação de distribuições verificou-se um
padrão de resultados ligeiramente diferente. Não foram encontrados efeitos significativos
com o índice de probabilidade de diferenciação. Em contrapartida, o índice de
variabilidade percebida produziu um efeito de homogeneidade do endogrupo para a
globalidade da amostra. Os angolanos manifestaram um efeito de homogeneidade do
endogrupo muito significativo, enquanto que os portugueses exibiram níveis de
homogeneização semelhantes para o endogrupo e para o exogrupo. Assim, globalmente, os
angolanos foram mais homogeneizados do que os portugueses, revelando um efeito de
homogeneidade do grupo dominado.
Em todas estas medidas (à excepção das derivadas da tarefa de estimação de
distribuições) encontramos um padrão consistente de resultados. De acordo com as nossas
predições, verificou-se uma assimetria na percepção da homogeneidade grupal em função
do estatuto relativo dos grupos. O grupo dominante apresenta um efeito de homogeneidade
do exogrupo significativo (tarefa de estimação de percentagens, tarefa de estimação de
médias, tarefa de estimação de amplitudes, e tarefa de estimação de variabilidade),
enquanto que o grupo dominado homogeneizou igualmente o exogrupo e o endogrupo.
Resumindo, os membros do grupo dominado são mais homogeneizados do que os
membros do grupo dominante. Este resultado é encontrado em medidas ligadas aos
estereótipos grupais (tarefa de estimação de percentagens e tarefa de estimação de médias),
mas também em medidas sem ligação directa com os estereótipos (tarefa de estimação de
variabilidade). Assim, no que respeita aos efeitos de homogeneidade, os dados suportam a
nossa hipótese: o efeito de homogeneidade manifesta-se assimetricamente em função do
estatuto relativo dos grupos em presença. Globalmente, o grupo dominado é mais
homogeneizado do que o grupo dominante, independentemente do grupo de pertença
dos participantes.
Relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo
Outro dos nossos objectivos era analisar o favoritismo pelo grupo de pertença e
investigar a relação entre este fenómeno e os efeitos de homogeneidade. Como já
referimos, a pesquisa sobre a relação entre estes fenómenos tem dado origem a
resultados muito inconsistentes (Brewer, 1993; Judd et al., 1995). Avançámos com a
hipótese de que a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo
seja moderada pelo estatuto relativo dos grupos - variável que tem sido negligenciada na
investigação anterior.
Racismo e etnicidade em Portugal
430
Nesta investigação, as medidas de favoritismo endogrupal foram baseadas na
atribuição diferencial de traços positivos e de traços negativos ao endogrupo e ao
exogrupo, nas tarefas de estimação de percentagens e de estimação de médias.
Encontrámos um padrão consistente de resultados em ambas as medidas: o favoritismo
endogrupal foi significativo para a globalidade da amostra, isto é, os participantes
atribuíram uma média superior de traços positivos e uma média inferior de traços
negativos ao endogrupo comparativamente com o exogrupo. Esta diferença foi muito
significativa para os participantes angolanos, mas não foi significativa para os participantes
portugueses. Assim, estes resultados apontam para a ausência de uma relação directa entre
o favoritismo endogrupal e o efeito de homogeneidade do exogrupo. Os participantes
portugueses manifestaram um forte efeito de homogeneidade do exogrupo mas não
exibiram favoritismo endogrupal, enquanto que os participantes angolanos manifestaram
um forte favoritismo endogrupal, mas o efeito de homogeneidade do exogrupo não foi
significativo.
Resultados semelhantes foram obtidos por Judd e colaboradores (1995) numa
investigação sobre a percepção de variabilidade grupal e etnocentrismo com afro-
americanos (African Americans) e euro-americanos (White Americans): o etnocentrismo
foi significativo nos participantes afro-americanos enquanto que os participantes euro-
americanos se mostraram ligeiramente mais favoráveis face ao exogrupo do que face ao
endogrupo. Segundo os autores, este resultado pode ser explicado pelos diferentes padrões
de socialização: os afro-americanos e os euro-americanos atribuem um significado
diferente à identidade étnica. Os membros das minorias étnicas são socializados no sentido
de considerar a pertença étnica como uma componente importante do seu auto-conceito,
para encarar a etnicidade como algo a ser salientado em vez de ignorado. Em contraste, os
americanos brancos são actualmente socializados para evitar fazer distinções com base na
pertença étnica. Segundo a perspectiva da socialização diferencial, os americanos brancos
não manifestaram etnocentrismo porque teriam interiorizado os valores da perspectiva
“color-blind” (Judd et al., 1995, p.470).
Tal como na presente investigação, os resultados obtidos por Judd et al. (1995)
sugerem uma relação não linear entre o favoritismo pelo grupo de pertença e a percepção
da variabilidade grupal. Embora os resultados do presente estudo sejam análogos aos
obtidos por Judd et al. (1995) no que respeita ao etnocentrismo, no entanto, a interpretação
fornecida por estes autores parece esquecer que os membros dos grupos dominados são
marcados pela sua pertença, isto é, que a sociedade está sempre a torná-la saliente. Por
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
431
outro lado, os membros do grupo dominante podem não ter interiorizado os valores da
perspectiva “color-blind”, mas apenas agir em conformidade com ela numa estratégia de
auto-apresentação consonante com as normas sociais em vigor.
Este padrão de resultados, algo surpreendente, obtido com as medidas de
favoritismo, tornou-se claro quando procedemos à operacionalização de novas medidas:
desdobrámos as medidas da variabilidade grupal percebida em função da valência dos
traços (separadamente para traços positivos e para traços negativos) e desdobrámos as
medidas de favoritismo em função da estereotipicalidade dos traços (separadamente
para traços estereotípicos e traços contra-estereotípicos).
Estas novas medidas permitiram-nos verificar que os dois grupos de participantes
optaram por estratégias diferenciadas de homogeneização ou heterogeneização em função
da valência dos traços de que dispunham para proceder à descrição do endogrupo e do
exogrupo. Os participantes angolanos face a traços positivos homogeneízam o endogrupo
comparativamente ao exogrupo, mas face a traços negativos heterogeneízam o endogrupo
comparativamente ao exogrupo. Em contrapartida, os participantes portugueses face a
traços positivos heteregeneízam o endogrupo comparativamente ao exogrupo, mas face a
traços negativos, não estabelecem uma diferenciação entre o endogrupo e o exogrupo.
Uma vez que a análise dos efeitos de homogeneidade controlando a valência dos
traços (positivos vs. negativos) nos forneceu uma nova visão sobre as estratégias de
homogeneização ou heteregeneização dos grupos em função do seu estatuto relativo,
decidimos proceder de forma equivalente para a análise do favoritismo endogrupal. Neste
sentido, calculámos novas medidas de favoritismo, duas integrando apenas os traços
estereotípicos e duas integrando apenas os traços contra-estereotípicos. Verificámos que os
dois grupos de participantes optaram por estratégias diferenciadas de favoritismo em
função da estereotipicalidade dos traços de que dispunham para proceder à descrição do
endogrupo e do exogrupo. Os participantes angolanos demonstram favoritismo endogrupal
quando os traços são estereotípicos, mas não favorecem nem o endogrupo nem o exogrupo
quando os traços são contra-estereotípicos. Em contrapartida, os portugueses demonstram
favoritismo exogrupal quando os traços são estereotípicos, mas demonstram favoritismo
endogrupal quando os traços são contra-estereotípicos.
Assim, verifica-se que os participantes angolanos e os participantes portugueses
apresentam estratégias diferenciadas de favoritismo em função do carácter estereotípico ou
contra-estereotípico dos traços em causa. Os participantes angolanos face a traços
estereotípicos favorecem o endogrupo face ao exogrupo, mas face a traços contra-
Racismo e etnicidade em Portugal
432
estereotípicos não favorecem nem o endogrupo nem o exogrupo. Em contrapartida, os
participantes portugueses face a traços estereotípicos favorecem o exogrupo face ao
exogrupo, mas face a traços contra-estereotípicos, favorecem o endogrupo face ao
exogrupo.
Isto é, para os angolanos parece ser mais importante reforçar uma identidade grupal
coesa nos traços estereotípicos, mesmo que isso se traduza numa homogeneização do
endogrupo, enquanto que para os participantes portugueses parece ser mais importante
heterogeneizar o endogrupo, mesmo que isso contribua para uma imagem menos positiva
do endogrupo face ao exogrupo.
Em consonância com as nossas hipóteses, estes resultados demonstram que não
existe uma relação linear entre o efeito de homogeneidade do exogrupo e o favoritismo
endogrupal: esta relação depende do estatuto dos grupos em presença e das suas estratégias
de diferenciação positiva. Para os participantes portugueses a “diferenciação positiva” é
conseguida através da afirmação da heterogeneidade endogrupal (“nós somos todos
diferentes”), mesmo que isso implique abdicar de traços estereotípicos positivos, enquanto
que para os angolanos a “diferenciação positiva” é conseguida através da reivindicação de
traços estereotípicos positivos e da negação dos traços estereotípicos negativos,
contribuindo assim para a homogeneização do endogrupo.
Mediação da variabilidade grupal percebida e do favoritismo endogrupal
Neste estudo pretendemos ainda explorar o papel mediador de algumas variáveis
na percepção da variabilidade grupal e no favoritismo endogrupal: a representação do
self; o nível de identificação com o endogrupo e o exogrupo; e o nível de contacto com
o endogrupo e com o exogrupo.
Auto-descrição. Neste estudo averiguámos até que ponto o estatuto relativo dos
grupos em presença se reflecte na forma como o indivíduo se descreve em
conformidade com os traços estereotípicos do endogrupo. Em consonância com as
nossas hipóteses, os participantes angolanos descrevem-se a si próprios de forma
consonante com os estereótipos do endogrupo (recorrendo mais aos traços estereotípicos
do endogrupo do que aos traços contra-estereotípicos) enquanto que os participantes
portugueses preferem descrever-se de uma forma dissonante com os estereótipos do
endogrupo. Isto é, os membros do grupo dominante enfatizam a sua diferenciação
interpessoal dentro do grupo de pertença, enquanto que os membros do grupo dominado
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
433
enfatizam a indiferenciação interpessoal dentro do endogrupo (e.g., Deschamps, 1982a;
Lorenzi-Cioldi, 1988).
Esta assimetria nos padrões de diferenciação dos indivíduos face ao seu grupo de
pertença parece ir ao encontro dos resultados obtidos nas diversas medidas de
variabilidade grupal percebida: os membros do grupo dominado homogeneízam o
endogrupo e enfatizam a indiferenciação do self face ao grupo de pertença, enquanto
que os membros do grupo dominante heterogeneízam o endogrupo e enfatizam a
diferenciação do self face ao grupo de pertença.
Quanto à valência dos traços, tanto os participantes angolanos como os
participantes portugueses se descrevem a si próprios recorrendo mais aos traços
positivos do que aos traços negativos, o que vai ao encontro da norma da positividade
nas descrições de pessoas e de grupos (Zajonc, 1968).
Contrariamente às nossas expectativas, a distância absoluta das auto-descrições
face à média do endogrupo não variou significativamente em função do grupo dos
participantes. Embora a distância das auto-descrições face à média do endogrupo seja
equivalente para participantes portugueses e angolanos, tal deve-se a uma aproximação
dos angolanos dos traços estereotípicos do endogrupo e a uma aproximação dos
portugueses dos traços contra-estereotípicos do endogrupo.
Para os participantes angolanos a distância das auto-descrições face à tendência
central atribuída ao endogrupo é significativamente menor para os traços estereotípicos
do que para os traços contra-estereotípicos, enquanto que para os participantes
portugueses a distância das auto-descrições face à tendência central atribuída ao
endogrupo não é significativamente diferente para os traços estereotípicos e para os
traços contra-estereotípicos.
As auto-descrições dos participantes foram significativamente mais próximas da
tendência central do endogrupo nos traços positivos do que nos traços negativos,
independentemente do grupo de pertença dos participantes. No que respeita à valência
dos traços, os dois grupos de participantes apresentam estratégias semelhantes: ambos
se aproximam da tendência central do endogrupo nos traços positivos e se distanciam da
tendência central do endogrupo nos traços negativos.
Assim, a principal diferença nas estratégias de diferenciação pessoal face ao
endogrupo que observamos nos participantes dá-se ao nível da estereotipicalidade dos
traços: os membros do grupo dominado distanciam-se mais da tendência central do
endogrupo quando são confrontados com traços contra-estereotípicos do que quando
Racismo e etnicidade em Portugal
434
confrontados com traços estereotípicos, enquanto que os membros do grupo dominante
se distanciam mais face aos traços estereotípicos do que contra-estereotípicos, embora
esta diferença não seja estatisticamente significativa.
Nível de identificação grupal. No que respeita aos níveis de identificação
endogrupal e exogrupal, verificámos que ambos os grupos de participantes se
identificam mais fortemente com o endogrupo do que com o exogrupo. Esta diferença é
mais acentuada para os participantes portugueses do que para os participantes
angolanos, o que vai ao encontro das nossas hipóteses.
Colocámos a hipótese dos níveis de identificação dos participante angolanos com
o o endogrupo e com o exogrupo variarem significativamente em função do seu tempo
de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos). De facto,
constatámos que alguns dos participantes angolanos vieram com idades muito jovens
para Portugal, e aqui viveram os períodos mais marcantes de socialização. Tal como
prevíamos, o nível de identificação endogrupal dos angolanos é menor quanto maior o
seu tempo de permanência em Portugal. De notar que os que residem em Portugal há
mais de 6 anos vieram para o nosso país quando crianças ou adolescentes, o que sem
dúvida influenciou o seu processo de socialização. De notar ainda que o nível de
identificação endogrupal dos angolanos que residem em Portugal há menos tempo é
superior ao nível de identificação endogrupal dos portugueses, o que vai ao encontro
dos dados obtidos em estudos anteriores com grupos dominados (e.g., Cabecinhas,
1994).
As análises de variância efectuadas sobre as medidas de variabilidade grupal
fazendo co-variar os níveis de identificação endogrupal e de identificação exogrupal não
produziram resultados significativos, isto é, os efeitos de homogeneidade não variaram
significativamente em função da alta ou baixa identificação com os grupos. Assim, o
nível de identificação endogrupal e o nível de identificação exogrupal não parecem
mediar a variabilidade grupal percebida.
Em contrapartida, no que diz respeito às análises de co-variância efectuadas sobre
as medidas de favoritismo endogrupal, verificámos que quanto maior é o nível de
identificação exogrupal menor é o favoritismo endogrupal, especialmente para os
participantes angolanos. Assim, o nível de identificação exogrupal (mas não o nível de
identificação endogrupal) parece mediar a manifestação do favoritismo pelo grupo de
pertença.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
435
Nível de contacto. Por último, analisámos os níveis de contacto entre os grupos.
Globalmente os participantes consideram ter maior familiaridade com o endogrupo do
que com o exogrupo. Tal como esperávamos, esta diferença é mais acentuada para os
participantes portugueses do que para os participantes angolanos.
Para os participantes angolanos, o nível de contacto com o exogrupo é tanto maior
quanto maior o seu tempo de permanência Portugal, mas o nível de contacto com o
endogrupo não varia significativamente em função do tempo de permanência em Portugal.
Comparando a evolução dos níveis de identificação e dos níveis de familiaridade
com o exogrupo, verificamos que estes evoluem na mesma direcção: à medida que
aumenta o contacto com os portugueses, aumenta também o nível de identificação dos
angolanos com o exogrupo.
As análises de variância efectuadas sobre as medidas de variabilidade grupal
percebida fazendo co-variar os níveis de contacto endogrupal e de contacto exogrupal não
produziram resultados significativos. Assim, não há evidência de mediação da
variabilidade grupal percebida pelos níveis de contacto endogrupal e exogrupal.
No que respeita às medidas de favoritismo endogrupal, as análises de co-variância
efectuadas revelaram que para os participantes angolanos quanto maior o nível de contacto
com o exogrupo menor o favoritismo endogrupal. Em contrapartida, para os participantes
portugueses o nível de favoritismo endogrupal não difere significativamente em função do
nível de contacto exogrupal. Assim, o nível de contacto exogrupal parece ser um mediador
do favoritismo endogrupal, mas o seu efeito só é significativo para os angolanos: quanto
maior o nível de contacto com os portugueses menor o favoritismo endogrupal
demonstrado.
Resumindo, no que respeita à percepção da variabilidade grupal, nem o nível de
contacto endogrupal nem o nível de contacto exogrupal produziram resultados
significativos, isto é, os efeitos de homogeneidade não variaram significativamente em
função do alto ou baixo contacto com os grupos. Assim, parece difícil argumentar que o
efeito de homogeneidade do exogrupo é uma simples consequência do nível de contacto e
da informação recolhida sobre os grupos (Lorenzi-Cioldi, 1998; Park e Judd, 1990; Park e
Rothbart, 1982).
Neste estudo demonstrámos uma assimetria nos efeitos de homogeneidade em
função do estatuto dos grupos: o grupo dominado foi mais homogeneizado do que o
Racismo e etnicidade em Portugal
436
grupo dominante, independentemente do grupo de pertença do participante. Além disso,
esta assimetria foi demonstrada usando medidas ‘indirectas’ e medidas ‘directas’.
Parece-nos, no entanto, relevante verificar se este padrão de resultados se mantêm quando
os grupos são definidos a partir da categorização racial (brancos vs. negros), em que as
pressões de ordem normativa são mais activadas do que quando os grupos são definidos a
partir da categorização nacional (angolanos vs. portugueses).
Nesta investigação explorámos ainda questões sobre as quais existe certa
controvérsia teórica e inconsistência de dados empíricos, como, por exemplo, a relação
entre o efeito de homogeneidade do exogrupo e o favoritismo endogrupal, assim como o
papel do nível de identificação grupal e do nível de contacto entre os grupos na
manifestação destes fenómenos.
No que respeita à relação entre a percepção de variabilidade grupal e o favoritismo
endogrupal, os nossos dados indicam que a relação entre o efeito de homogeneidade do
exogrupo e o favoritismo endogrupal é moderada pelo estatuto do grupo de pertença. Para
os membros do grupo dominado parece ser mais importante reforçar uma identidade
grupal coesa nos traços estereotípicos, mesmo que isso se traduza numa homogeneização
do endogrupo, enquanto que para os membros do grupo dominante parece ser mais
importante heterogeneizar o endogrupo, mesmo que isso contribua para uma imagem
menos positiva do endogrupo face ao exogrupo. Este parece-nos um dos resultados mais
interessantes e inovadores deste estudo. Não conhecemos nenhum outro estudo que tenha
estudado a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo tendo em
conta o estatuto relativo dos grupos em presença. Do ponto de vista metodológico
efectuámos um considerável esforço para operacionalizar medidas de variabilidade grupal
percebida controlando os efeitos de favoritismo e, reciprocamente, para operacionalizar
medidas de favoritismo controlando os efeitos da estereotipicalidade dos traços.
Sendo um resultado de investigação inédito torna-se necessário replicá-lo em
condições diferentes. De facto, neste estudo analisámos a relação entre a variabilidade
grupal percebida e o favoritismo endogrupal através de medidas ‘directas’ derivadas do
questionário. Parece-nos extremamente pertinente averiguar até que ponto este padrão
de resultados pode ser replicado recorrendo a medidas ‘indirectas’ baseadas na
memorização diferencial da informação sobre os grupos. Este é um dos objectivos a que
o estudo experimental seguinte procura responder.
Racismo e etnicidade em Portugal
437
5.3 Estudo 5 - Homogeneização de uma minoria étnica
5.3.1 Introdução
Este estudo foi realizado com o objectivo de replicar alguns dos resultados
encontrados no estudo anterior, no sentido de uma maior validação dos mesmos e de um
aprofundamento da sua discussão. Assim os objectivos e hipóteses enunciados na
introdução do Estudo 4 mantêm-se para este este estudo.
Pretendíamos, ainda, abordar novas questões, nomeadamente verificar a saliência
categorial da cor da pele (negros vs. brancos) isoladamente ou misturada com a
classificação da nacionalidade já utilizada no estudo anterior (angolanos vs.
portugueses), e analisar a relação entre as atitudes ou orientações racistas e os processos
perceptivos e os juízos sobre os grupos.
O objectivo central do estudo anterior foi a análise do papel do estatuto social
relativo nos efeitos de homogeneidade. De acordo com a nossa hipótese, verificou-se
uma assimetria nos efeitos de homogeneidade em função do estatuto dos grupos
definidos pela nacionalidade (angolanos vs. portugueses). Os participantes portugueses
homogeneizaram fortemente o exogrupo enquanto que os participantes angolanos
manifestaram níveis semelhantes de homogeneização do exogrupo e do endogrupo. Isto
é, globalmente, o grupo dominado foi mais homogeneizado, independentemente do
grupo de pertença do participante. Parece-nos, no entanto, relevante verificar se este
padrão de resultados se mantem quando os grupos são definidos a partir da categorização
racial (brancos vs. negros), em que a norma anti-discriminação é mais facilmente activada.
No que respeita especificamente aos efeitos de categorização, pretendemos verificar
a saliência da categorização racial (da cor da pele), isoladamente ou conjuntamente com
a categorização nacional. A nossa hipótese é que em ambas as situações se verifique um
forte efeito de categorização, mas este seja mais acentuado quando os dois sistemas de
categorização estão disponíveis (uma vez que estão em consonância com o estereótipo:
todos os portugueses são brancos e todos os angolanos são negros).
Outro dos nossos objectivos do estudo anterior era analisar o favoritismo pelo
grupo de pertença e investigar a relação entre este fenómeno e os efeitos de
homogeneidade. Tal como esperávamos, verificou-se que a relação entre o efeito de
Racismo e etnicidade em Portugal
438
homogeneidade do exogrupo e o favoritismo endogrupal é moderada pelo estatuto do
grupo de pertença. Para os membros do grupo dominado parece ser mais importante
reforçar uma identidade grupal coesa nos traços estereotípicos, o que se traduz numa
homogeneização do endogrupo, enquanto que para os membros do grupo dominante
parece ser mais importante heterogeneizar o endogrupo, o que conduz a imagem menos
positiva do endogrupo face ao exogrupo.
Sendo um resultado de investigação inédito torna-se necessária a sua replicação, de
preferência recorrendo a outro tipo de medidas. No estudo anterior analisámos a relação
entre a variabilidade grupal percebida e o favoritismo endogrupal através de medidas
‘directas’ derivadas do questionário. Parece-nos extremamente pertinente averiguar até que
ponto este padrão de resultados pode ser replicado recorrendo a medidas ‘indirectas’,
baseadas na memorização diferencial da informação sobre os grupos, e por isso menos
susceptíveis de controlo da parte dos participantes.
No estudo anterior explorámos o papel mediador de algumas variáveis na
percepção da variabilidade grupal: a representação do self; o nível de identificação com
o endogrupo e o exogrupo; e o nível de contacto com o endogrupo e com o exogrupo.
De um modo geral os resultados apontaram para a inexistência de correlações
significativas entre estas variáveis. Neste estudo vamos retomar este objectivo
introduzindo algumas alterações na forma como estas variáveis foram medidas, como
explicaremos mais adiante.
Apresentados os objectivos deste estudo, passamos à explicitação das diferenças em
termos metodológicos relativamente ao estudo anterior. Como referimos, um dos
objectivos deste estudo experimental foi a replicação de alguns dos resultados obtidos
no estudo anterior, no sentido de uma maior validação dos mesmos. Assim, o desenho
experimental foi bastante idêntico tal como as medidas recolhidas no questionário que
se seguiu à tarefa de recordação.
Relativamente ao desenho experimental, a principal diferença consistiu no
material-estímulo apresentado aos participantes. No estudo anterior as oito pessoas-
estímulo (4 angolanas e 4 portuguesas) eram descritas através de quatro características
estereotípicas do respectivo grupo, sendo estas descrições moderadamente positivas. As
duas versões do material-estímulo diferiam no tipo de características associadas às
pessoas-estímulo de cada grupo (na Versão A as pessoas-estímulo angolanas eram
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
439
descritas através de características ligadas à esfera privada e as pessoas-estímulo
portuguesas eram descritas através de características ligadas à esfera pública, enquanto
que na Versão B as pessoas-estímulo angolanas eram descritas através de características
ligadas à esfera pública e as pessoas-estímulo portuguesas eram descritas através de
características ligadas à esfera privada), mas não diferiam significativamente nem em
termos do carácter estereotípico nem em termos da valência avaliativa dessas
características. A identificação das pessoas-estímulo era efectuada pelo nome e
nacionalidade (e.g., Manuel, angolano; José, português).
Neste estudo existem igualmente duas versões do material-estímulo (A e B), mas
a diferença entre estas versões não reside no tipo de características utilizadas para
descrever as pessoas-estímulo, mas sim no tipo de identificação das pessoas-estímulo:
na Versão A as pessoas-estímulo são identificadas pela fotografia (negros vs. brancos),
pelo nome próprio e pela nacionalidade (angolanos vs. portugueses); na Versão B é
omitida a nacionalidade, isto é, as pessoas-estímulo são identificadas pela fotografia
(negros vs. brancos) e pelo nome próprio. A descrição das pessoas-estímulo é efectuada
igualmente através de quatro características e não varia de versão para versão.
Outra diferença fundamental em relação ao estudo anterior consiste no facto da
valência dos traços usados para descrever cada pessoa-estímulo ser sistematicamente
controlada e balançada, isto é, cada pessoa-estímulo é descrita através de um traço
positivo, seguido de um traço neutro, seguido de um traço negativo, seguido de um
traço neutro, de modo que todas as pessoas-estímulo são descritas de forma globalmente
neutra e moderadamente estereotípica.
Esta alteração do desenho experimental permite-nos estudar a relação entre os
efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo de forma ‘indirecta’.
Relativamente ao questionário aplicado depois da tarefa de recordação, este é
semelhante ao utilizado no estudo anterior, mas foram-lhe acrescentadas algumas
medidas numa tentativa de esclarecer alguns aspectos insuficientemente explorados
nesse estudo. As medidas de variabilidade grupal percebida são as mesmas, com
excepção das medidas derivadas da tarefa de estimação de distribuições que não foi
efectuada (visto que no estudo anterior os participantes revelaram alguma dificuldade
em compreender a tarefa) e foi acrescentada uma medida de estimação de semelhança
do indivíduo face aos grupos-alvo (endogrupo e exogrupo).
Quanto às medidas de favoritismo, mantiveram-se as do estudo anterior, e
acrescentaram-se duas medidas de discriminação. Como referimos no Capítulo 1,
Racismo e etnicidade em Portugal
440
Pettigrew e Meertens (1995) conceberam uma medida de racismo com duas escalas:
uma escala de racismo flagrante, que inclui as subescalas “ameaça e rejeição” e
“rejeição de intimidade”, e uma escala de racismo subtil, que inclui as subescalas
“defesa de valores tradicionais”, “negação de emoções positivas” e “acentuação das
diferenças culturais”. Estas escalas foram traduzidas para português e aferidas para a
população portuguesa por Vala e colaboradores (Vala, 1999; Vala, Brito e Lopes,
1999a)71
.
Estas escalas foram elaboradas para inquirir membros de grupos maioritários
acerca de grupos minoritários nas respectivas sociedades: os franceses sobre os norte-
africanos e sobre os asiáticos, os ingleses sobre os antilhanos e sobre os asiáticos, os
holandeses sobre os surinameses e sobre os turcos, e os alemães sobre os turcos
(Pettigrew e Meertens, 1995); os italianos sobre os marroquinos (Arcuri e Boca, 1999);
e os portugueses sobre os imigrantes negros (Vala, Brito e Lopes, 1999a).
No entanto, não conhecemos nenhuma escala de racismo preparada para ser
respondida também pelos grupos minoritários ou dominados. Assim, recorremos às
duas únicas sub-escalas que poderiam ser respondidas tanto pelo grupo dominante
(portugueses) como pelo grupo minoritário (angolanos): a “acentuação de diferenças
culturais” e a “negação da expressão de emoções positivas”, ambas sub-escalas de
racismo subtil (Pettigrew e Meertens, 1995).
Relativamente às medidas sobre os níveis de identificação e os níveis de contacto
entre os grupos também efectuámos algumas alterações. Acrescentámos ainda outras
variáveis que nos permitissem comparar os nossos dados com os resultados de outros
estudos entretanto efectuados em Portugal (Vala, Brito e Lopes, 1999a). Assim foram
acrescentadas medidas relativas a variáveis interpessoais, nomeadamente o nível de
tolerância face à diferença.
71
A versão portuguesa foi-nos gentilmente concedida pelos autores aquando da realização do Seminário
Expressões dos Racismos – Perspectivas Psicossociológicas, que decorreu no Palácio da Fronteira em
Outubro de 1997.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
441
5.3.2 Método
5.3.2.1 Participantes e desenho experimental
Participaram neste estudo 137 estudantes, 54 angolanos (25 rapazes e 29
raparigas) e 83 estudantes portugueses (21 rapazes e 62 raparigas). A idade média é de
20 anos, não diferindo significativamente em função do sexo dos participantes
(?2
=15.168, p<0.232). No entanto, a idade média difere significativamente em função
do grupo dos participantes, sendo os angolanos mais velhos do que os portugueses
(respectivamente 22 anos e 19 anos, ?2
=67.03, p<0.001).
Todos os participantes angolanos nasceram em Angola, tendo vindo para Portugal
para estudar (83.3%), para trabalhar (3.7%) ou à procura de melhores condições de vida
(9.3%). Vieram sozinhos (37.0%), com a família (35.2%) ou com amigos (20.4%). Em
média, vivem em Portugal há 5 anos, e 1.3 % adquiriram a nacionalidade portuguesa72
.
Este estudo foi constituído por duas fases. Na primeira fase, foram apresentadas
aos participantes as descrições de oito pessoas-estímulo, sendo estes posteriormente
confrontados com uma tarefa de recordação da informação recebida. Tal como no
estudo anterior, esta tarefa de recuperação da informação memorizada permitiu o
cálculo de medidas indirectas de variabilidade grupal percebida.
Cada participante recebeu informação referente a oito pessoas-estímulo, quatro
angolanas e quatro portuguesas. Por razões associadas ao controlo dos dados, utilizámos
duas ordens de apresentação das pessoas-estímulo: para aproximadamente metade dos
participantes a primeira pessoa-estímulo apresentada era angolana, sendo seguida de
uma portuguesa e assim sucessivamente, enquanto que para a outra metade dos
participantes a primeira pessoa-estímulo apresentada era portuguesa, sendo seguida de
uma angolana.
Utilizámos igualmente duas versões do material-estímulo (versão A e versão B),
mas enquanto no estudo anterior as duas versões do material correspondiam a
descrições alternativas das pessoas-estímulo, neste estudo as duas versões do material
correspondem a duas formas de apresentação e identificação das pessoas-estímulo que
72
Foram considerados como ‘angolanos’ os participantes de naturalidade angolana que se auto-
categorizaram como ‘angolanos’, independentemente da sua nacionalidade ser angolana ou portuguesa.
Quanto aos participantes ‘portugueses’, todos eles tinham nacionalidade e naturalidade portuguesa, e
além disso auto-categorizaram-se como ‘portugueses’.
Racismo e etnicidade em Portugal
442
correspondem a diferentes contextos de saliência categorial: na Versão A as pessoas-
estímulo são identificadas pela fotografia, nome, e nacionalidade; e na Versão B as
pessoas-estímulo são identificadas pela fotografia e nome.
Na segunda fase, os participantes responderam a um questionário com medidas
“directas” da variabilidade grupal percebida, medidas de favoritismo endogrupal e de
‘racismo subtil’, medidas de identificação e de contacto com os grupos, e finalmente,
medidas de controlo dos materiais e do contexto da experiência. Mais uma vez, a ordem
das questões foi contrabalançada, sendo que aproximadamente metade dos participantes
começava por responder às questões sobre os angolanos e depois respondia às questões
sobre os portugueses, enquanto a outra metade dos participantes começava por
responder às questões sobre os portugueses e só depois respondia em relação aos
angolanos.
Assim, o desenho experimental foi o seguinte: 2 (grupo-alvo: endogrupo vs.
exogrupo) x 2 (grupo do participante: angolanos vs. portugueses) x 2 (ordem de
apresentação dos grupos-alvo: primeiro os angolanos vs. primeiro os portugueses) x 2
(versão do material-estímulo: A vs. B). Todas as variáveis são inter-participantes, à
excepção da primeira que é intra-participantes. Os participantes angolanos e
portugueses foram aleatoriamente distribuídos pelas diferentes condições experimentais.
Estes dados foram recolhidos na Universidade do Minho em Outubro e Novembro
de 2000.
Tabela 60 - Distribuição dos participantes angolanos e portugueses por condição experimental
Grupo dos participantes
Condição experimental
Angolanos Portugueses Total
1 = Versão A - Ordem 1 13 23 36
2 = Versão A - Ordem 2 12 22 34
3 = Versão B - Ordem 1 14 21 35
4 = Versão B - Ordem 2 15 17 32
Total 54 83 137
Nota:
Versão A = Identificação das pessoas-estímulo pelo nome, fotografia e nacionalidade
Versão B = Identificação das pessoas-estímulo pelo nome e fotografia
Ordem 1 = Primeira pessoa-estímulo angolana
Ordem 2 = Primeira pessoa-estímulo portuguesa
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
443
5.3.2.2 Materiais-estímulo
As fotografias das pessoas-estímulo (tanto brancas como negras) foram
recolhidas em Lisboa (de modo a diminuir a possibilidade de algum participante
reconhecer alguma das pessoas que cederam a sua fotografia para a experiência). As
fotografias, de jovens da mesma faixa etária dos participantes na experiência, foram
seleccionadas de acordo com os seguintes critérios: os jovens não mostram qualquer
expressão facial particular, não possuem nenhumas características somáticas notáveis,
nem marcas particulares, usam vestuário informal (camisa ou t-shirt). As fotografias
foram digitalizadas e trabalhadas de modo a que todas as fotografias tivessem o mesmo
fundo branco.
As descrições das oito pessoas-estímulo utilizadas nesta experiência foram
elaboradas a partir dos resultados do Estudo 3c, em função do carácter estereotípico dos
traços e da sua valência avaliativa tendo como referente o estereótipo de pessoa adulta
na sociedade portuguesa. Estes traços foram seleccionados tendo em conta os seguintes
critérios: a existência de consenso entre os participantes angolanos e portugueses quanto
ao carácter estereotípico de cada traço e simultaneamente quanto à sua valência
avaliativa73
. Cada pessoa-estímulo foi descrita através de quatro traços estereotípicos do
seu grupo étnico e cuja valência foi sistematicamente controlada: um traço positivo, um
traço negativo, e dois traços neutros.
A Tabela 61 apresenta as descrições das oito pessoas-estímulo usadas neste estudo
experimental. Como se pode observar, cada pessoa-estímulo é descrita através de quatro
traços, o que totaliza 32 traços. A ordem de apresentação dos traços para cada pessoa-
estímulo foi mantida fixa (de acordo com a ordem que está indicada na Tabela 61).
73
Sendo díficil encontrar atributos negativos considerados consensualmente (tanto por participantes
angolanos como por participantes portugueses) estereotípicos de cada grupo-alvo, recorremos aos
atributos negativos cuja classificação mais se aproximou dos valores exigidos para serem considerados
estereotípicos de um grupo e contra-estereotípicos do outro grupo.
Racismo e etnicidade em Portugal
444
Tabela 61 - Material-estímulo (Versões A e B)
Versão A
Identificação das pessoas-estímulo pela fotografia, nome e nacionalidade
Angolanos (negros)
Valência dos
traços
Manuel Jorge António João
Positivo Caloroso Comunicativo Divertido Sociável
Neutro Cheio de ritmo
Amante do
prazer
Musical Artístico
Negativo Supersticioso Invejoso Conflituoso Desconfiado
Neutro Desorganizado Impulsivo Emotivo Vaidoso
Portugueses (brancos)
Valência dos
traços
José Paulo Pedro Carlos
Positivo Criativo Corajoso Dinâmico Honesto
Neutro Ambicioso Aventureiro Desportivo Tradicionalista
Negativo Fechado Frio Egoísta Pessimista
Neutro Saudosista Orgulhoso Guloso Reservado
Versão B
Identificação das pessoas-estímulo pela fotografia e nome
(negros)
Valência dos
traços
Manuel Jorge António João
Positivo Caloroso Comunicativo Divertido Sociável
Neutro Cheio de ritmo
Amante do
prazer
Musical Artístico
Negativo Supersticioso Invejoso Conflituoso Desconfiado
Neutro Desorganizado Impulsivo Emotivo Vaidoso
(brancos)
Valência dos
traços
José Paulo Pedro Carlos
Positivo Criativo Corajoso Dinâmico Honesto
Neutro Ambicioso Aventureiro Desportivo Tradicionalista
Negativo Fechado Frio Egoísta Pessimista
Neutro Saudosista Orgulhoso Guloso Reservado
Nota: A categorização baseada na cor da pele (brancos vs. negros) nunca era mencionada nem nas
instruções nem no material-estímulo, sendo apenas induzida através das fotografias das
pessoas-alvo.
Quanto ao questionário, os julgamentos sobre os grupos-alvo foram efectuados a
partir de uma reduzida lista de traços que era apresentada aos participantes. Estes traços
foram seleccionados a partir dos resultados do Estudo 3c, tendo em conta os seguintes
critérios: a existência de consenso entre os participantes angolanos e portugueses quanto
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
445
ao carácter estereotípico de cada traço e simultaneamente quanto à sua valência
avaliativa74
.
Assim foram seleccionados dois traços estereotípicos dos angolanos – alegres
(positivo) e preguiçosos (negativo) e dois traços estereotípicos dos portugueses –
trabalhadores (positivo) e individualistas (negativo). A única diferença relativamente ao
questionário do estudo anterior é a utilização do traço alegres em vez de festivos, já que
este último traço tem um nível de positividade significativamente mais baixo quando se
tem como referente o estereótipo de pessoa adulta.
5.3.2.3 Procedimento de recolha de dados
Os estudantes angolanos e portugueses participaram em pequenos grupos, sendo
os dados recolhidos sempre pela mesma investigadora. No início da sessão, os
estudantes foram convidados a participar numa experiência sobre percepção de pessoas,
sendo-lhes dito que iriam receber informação acerca de oito jovens, em que a sua tarefa
era formar uma impressão acerca de cada jovem. Seguidamente os participantes foram
confrontados com uma tarefa de recordação da informação recebida.
A investigadora começa por distribuir a cada participante um caderno (tamanho
A7) com as descrições das oito pessoas-estímulo, quatro angolanas e quatro portuguesas
(ver Anexo 16). Na folha de rosto do caderno, as instruções explicam aos participantes
que a sua tarefa é formar uma impressão e recordar a informação recebida sobre cada
pessoa-estímulo e que só deverão avançar na leitura de cada página à medida que forem
recebendo instruções nesse sentido por parte da investigadora.
Cada pessoa-estímulo é descrita numa página separada. No topo da página,
aparece a fotografia e o nome próprio (no caso da Versão A aparece também a sua
nacionalidade: angolano ou português), e seguidamente, os quatro atributos, cada um
numa linha diferente. A apresentação das pessoas-estímulo é feita em ordem alternada:
um angolano, seguido de um português, seguido de um angolano, e assim
sucessivamente. Aproximadamente metade dos participantes começa por uma pessoa-
estímulo angolana seguida de uma portuguesa (Ordem 1) e a outra metade dos
74
Mais uma vez, sendo difícil encontrar atributos negativos considerados consensualmente (tanto por
participantes angolanos como por participantes portugueses) estereotípicos de cada grupo-alvo,
recorremos aos atributos negativos cuja classificação mais se aproximou dos valores exigidos para
serem considerados estereotípicos de um grupo e contra-estereotípicos do outro grupo.
Racismo e etnicidade em Portugal
446
participantes começa por uma pessoa-estímulo portuguesa seguida de uma angolana
(Ordem 2).
Os participantes têm 20 segundos para examinar cada página, isto é, cada
descrição, sendo a investigadora que, com a ajuda de um cronómetro indica aos
participantes o momento de passar à página seguinte. Terminada a leitura das oito
descrições (2’40’’), a investigadora recolhe os materiais e distribui a cada participante
um envelope contendo as oito fotografias das pessoas-estímulo e o respectivo nome
próprio, e uma página A4 com uma matriz contendo 8 colunas, cada uma encabeçada
pelo nome de uma pessoa-estímulo (e a respectiva identificação nacional na Versão A) e
32 linhas, contendo em ordem aleatória os atributos constantes nos retratos das pessoas-
estímulo. Os participantes são instruídos no sentido de indicarem que pessoa-estímulo
era descrita por cada atributo, colocando uma cruz na coluna apropriada para cada linha
da matriz75
. Passados 10 minutos, é dada por terminada a tarefa de recordação indiciada
e são recolhidas as matrizes de resposta.
Uma vez recolhidos os materiais correspondentes à tarefa de recordação, cada
participante recebe um questionário (ver Anexo 18) com uma série de questões sobre
cada um dos grupos-alvo: os angolanos e os portugueses, sendo a ordem dos grupos-
alvo contrabalançada. A investigadora salienta que a tarefa seguinte será de natureza
completamente diferente da precedente, pois o que interessa agora é a opinião dos
participantes sobre uma série de questões. Neste sentido, a investigadora apela para a
sinceridade dos participantes no preenchimento das suas respostas e garante a
confidencialidade das mesmas.
Embora divergindo relativamente a algumas questões, este questionário seguiu a
mesma estrutura do aplicado no estudo anterior.
Na primeira secção do questionário os participantes realizaram uma série de
tarefas que consistiam na descrição dos dois grupos-alvo através de um número limitado
de atributos e que permitiram o cálculo de diversas medidas de variabilidade grupal
percebida, medidas de tendência central percebida e também medidas de favoritismo
endogrupal. Seguidamente, era pedido aos participantes para se descreveram a si
próprios através dos mesmos atributos usados para descrever os grupos-alvo.
75
Foram utilizadas quatro matrizes de recordação diferentes em função das quatro condições
experimentais associadas à recordação indiciada: 1A = Ordem 1 – Versão A; 2A = Ordem 2 – Versão
A; 1B = Ordem 1 – Versão B; 2B = Ordem 2 – Versão B (ver Anexo 17).
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
447
Na segunda secção do questionário, os participantes responderam a uma série de
questões sobre os níveis de identificação e os níveis de contacto com diversos grupos,
os níveis de racismo subtil, e os níveis de tolerância à diferença.
Na terceira secção do questionário, os participantes responderam a várias questões
cujo objectivo era controlar os materiais-estímulo (estereotipicalidade e valência dos
traços) e o contexto desta investigação (estatuto social percebido e estatuto numérico
percebido).
Por último, os participantes respondiam a questões de caracterização: sexo, idade,
nacionalidade e naturalidade. No caso da naturalidade não ser portuguesa, deveriam
responder ainda a três questões relativas às circunstâncias da sua vinda para Portugal76
.
Finalmente, os questionários eram recolhidos e os objectivos do estudo
esclarecidos. A investigadora agradecia a participação dos estudantes e respondia às
suas eventuais questões.
5.3.2.4 Instrumentos de medida
A maior parte das medidas é idêntica às utilizadas na experiência anterior, pelo
que não vamos repetir a sua apresentação (ver ponto 5.2.2.4). Passamos de seguida à
explicitação das alterações efectuadas e à apresentação das novas medidas. A Tabela 62
resume todas as questões e tarefas envolvidas neste estudo e as respectivas medidas.
76
As questões eram as seguintes: a) Há quantos anos reside em Portugal?; b) Qual o motivo que o trouxe
a Portugal? (1 = estudar; 2 = trabalhar; 3 =outro motivo; qual?); c) Qual foi a sua situação quando
chegou a Portugal? (1 = sozinho (a); 2 = com a família; 3 = com os amigos; 4 = outra situação; qual?).
Racismo e etnicidade em Portugal
448
Tabela 62 - Síntese dos instrumentos de medida
Tipo de medida Questões ou tarefas
Caracterização dos participantes
Sexo
Idade
Nacionalidade
Naturalidade
Tempo de permanência em Portugal*
Motivo da vinda para Portugal*
Situação*
Controlo do contexto da experiência
Estatuto social percebido
Estatuto numérico percebido
Valência dos traços
Estereotipicalidade dos traços
Efeitos de categorização Recordação indiciada
Efeitos de homogeneidade
Recordação indiciada
Estimação de percentagens
Estimação de médias
Estimação de amplitudes
Estimação de variabilidade
Estimação de semelhanças
Efeitos de Favoritismo
Estimação de percentagens
Estimação de médias
Auto-descrição Auto-descrição
Importância da pertença grupal
Nível de importância da pertença nacional
Nível de importância da pertença supranacional
Nível de importância da pertença racial
Orgulho grupal
Nível de orgulho nacional
Nível de orgulho supranacional
Nível de orgulho racial
Identificação grupal
Nível de identificação nacional
Nível de identificação supranacional
Nível de identificação racial
Contacto grupal
Nível de familiaridade
Número de pessoas conhecidas pelo nome
Número de amigos íntimos
Tolerância à diferença
Amizades intergrupais
Grau de incomodidade com opiniões diferentes
Racismo subtil
Negação de emoções positivas
Acentuação de diferenças culturais
Nota: As questões assinaladas com asterisco* só foram respondidas pelos participantes angolanos.
5.3.2.4.1 Medidas de controlo dos materiais e do contexto da investigação
Foram utilizadas exactamente as mesmas medidas do estudo anterior: estatuto
social percebido, estatuto numérico percebido, estereotipicalidade dos traços e valência
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
449
dos traços (ver ponto 5.2.2.4.1). A única diferença prende-se com a forma como a
valência dos traços foi avaliada. Enquanto no estudo anterior essa avaliação foi
efectuada a partir da opinião pessoal dos participantes (tal como no Estudo 3b), neste
caso foi avaliada tendo como referente o estereótipo de pessoa adulta na nossa
sociedade (tal como no Estudo 3c – ver ponto 4.4.4.1.3).
5.3.2.4.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada
Tal como no estudo anterior, procedemos ao cálculo do número de respostas
correctas assim como de diferentes tipos de erros. O efeito de categorização foi medido
através da proporção de erros erros intergrupais (atribuição de uma característica
pertencente a uma pessoa-estímulo angolana a uma pessoa-estímulo portuguesa; ou
vice-versa) e erros intragrupais (atribuição de uma característica pertencente a uma
pessoa-estímulo angolana a outra pessoa-estímulo angolana; ou atribuição de uma
característica pertencente a uma pessoa-estímulo portuguesa a outra pessoa-estímulo
portuguesa). Estes últimos foram subdivididos em erros endogrupais (quando referentes
a uma pessoa-estímulo da mesma nacionalidade que o participante) e em erros
exogrupais (quando referentes a uma pessoa-estímulo com uma pertença nacional
diferente da do participante), o que nos permitiu averiguar os efeitos de homogeneidade
(ver explicação no ponto 5.2.2.4.2).
Para além destas medidas, procedemos à operacionalização de novas medidas de
modo a averiguar a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de
favoritismo. Uma vez que a valência dos traços utilizados para descrever as pessoas-
estímulo foi sistematicamente controlada, subdividimos os erros intragrupais tendo em
conta a valência dos traços, o que deu origem a quatro novas medidas: erros
endogrupais positivos; erros endogrupais negativos; erros exogrupais positivos; erros
exogrupais negativos.
Os erros endogrupais positivos correspondem à atribuição de um traço positivo
pertencente a uma pessoa-estímulo angolana a outra pessoa-estímulo angolana quando
o(a) participante é ele(a) próprio(a) angolano(a), ou à atribuição de um traço positivo
pertencente a uma pessoa-estímulo portuguesa a outra pessoa-estímulo portuguesa
quando o(a) participante é ele próprio(a) português(a).
Os erros endogrupais negativos correspondem à atribuição de um traço negativo
pertencente a uma pessoa-estímulo angolana a outra pessoa-estímulo angolana quando o
participante é angolano, ou atribuição de um traço negativo pertencente a uma pessoa-
Racismo e etnicidade em Portugal
450
estímulo portuguesa a outra pessoa-estímulo portuguesa quando o participante é
português).
Os erros exogrupais positivos correspondem à atribuição de um traço positivo
pertencente a uma pessoa-estímulo angolana a outra pessoa-estímulo angolana quando o
participante é português, ou atribuição de um traço positivo pertencente a uma pessoa-
estímulo portuguesa a outra pessoa-estímulo portuguesa quando o participante é
angolano.
Os erros exogrupais negativos correspondem à atribuição de um traço negativo
pertencente a uma pessoa-estímulo angolana a outra pessoa-estímulo angolana quando o
participante é português, ou atribuição de um traço negativo pertencente a uma pessoa-
estímulo portuguesa a outra pessoa-estímulo portuguesa quando o participante é
angolano.
5.3.2.4.3 Medidas directas – Tarefas de questionário
A maior parte das tarefas do questionário e das respectivas medidas de
variabilidade grupal percebida e de favoritismo são idênticas às do estudo anterior (ver
ponto 5.2.2.4.4): tarefa de estimação de percentagens (PERGM, PERSC, e PERPN);
tarefa de estimação de médias (MEDGM, MEDSC, e MEDPN); tarefa de estimação de
amplitudes (AMPLI); tarefa de estimação de variabilidade (VARIA); e tarefa de auto-
descrição (AUTSC, AUTPN, AUTDA, AUTD-SC, e AUTD-PN). No que respeita ao
cálculo destas medidas, a única alteração relativamente ao estudo anterior deu-se ao
nível das medidas baseadas na diferença entre traços estereotípicos e traços contra-
estereotípicos, devido ao facto de nas medidas de controlo se ter constatado que dois
dos traços, sendo estereotípicos de um grupo não eram contra-estereotípicos do outro
como explicaremos mais adiante.
A tarefa de estimação de distribuições não foi efectuada neste estudo. Em
contrapartida, foram introduzidas novas tarefas e outras tarefas foram ligeiramente
modificadas. Passamos de seguida a descrever essas tarefas e as respectivas medidas.
Tarefa de estimação de semelhança. Foi pedido aos participantes para estimarem
em que medida se sentiam muito semelhantes ou muito diferentes dos “?angolanos?77
em
77
Por uma questão de simplicidade de apresentação, colocámos a designação do primeiro grupo-alvo a
ser apresentado na Ordem 1 (angolanos).
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
451
geral” , usando uma escala de sete pontos, cujos extremos eram 1 = “sinto-me muito
semelhante” e 7= “sinto-me muito diferente”. Os valores directos fornecidos pelos
participantes foram considerados como indicadores da semelhança percebida (SEMEL).
Os participantes responderam igualmente a uma série de questões sobre a sua
pertença a determinados grupos e em que medida essa pertença era importante para si,
assim como o seu nível de identificação com esses diversos grupos. Foram ainda
colocadas algumas questões sobre a tolerância dos participantes a ideias diferentes das
suas e as suas amizades com pessoas pertencentes a outros grupos sociais, religiosos ou
culturais. Foram ainda efectuadas questões relativas à expressão de emoções positivas
face ao exogrupo e sobre a acentuação das diferenças culturais entre os dois grupos, e
finalmente os participantes respondiam a uma escala sobre a sua percepção da
diversidade social. Estas questões permitiram investigar o papel mediador destas
variáveis na percepção da variabilidade grupal.
Negação da expressão de emoções positivas (Pettigrew e Meertens, 1995). Os
participantes deveriam estimar com que frequência sentiam simpatia e admiração pelos
?angolanos?, através de uma escala de 4 pontos (1 = “muitas vezes”; 2 = “algumas
vezes”; 3 = “raramente”; e 4 = “nunca”). A medida da expressão das emoções positivas
corresponde à média aritmética da expressão de ambas as emoções (simpatia e
admiração).
Acentuação de diferenças culturais (Pettigrew e Meertens, 1995). Os participantes
deveriam indicar em que medida consideravam os angolanos diferentes ou semelhantes
aos portugueses, relativamente aos seguintes aspectos: valores e princípios morais;
religião – crenças e práticas religiosas; valores e comportamentos sexuais; e língua que
falam. A apreciação era efectuada através de uma escala de quatro pontos (1 = “muito
semelhantes”; 2 = “um pouco semelhantes”; 3= “um pouco diferentes”; 4 = “muito
diferentes”). A medida da acentuação de diferenças culturais corresponde à média
aritmética dos vários itens (valores e princípios morais; crenças e práticas religiosas;
valores e comportamentos sexuais; e língua que falam).
Racismo e etnicidade em Portugal
452
Nível de contacto grupal. Foi pedido aos participantes para avaliarem o nível de
contacto com o endogrupo e com o exogrupo através de três escalas de sete pontos e
duas questões abertas 78
.
Auto-categorização. Os participantes deveriam indicar a que grupo(s) pertenciam
assinalando “sim” ou “não” para cada um dos seguintes grupos: “eu pertenço ao grupo
dos angolanos” (1 = “sim”; 2 = “não”); “eu pertenço ao grupo dos portugueses”
(1 = “sim”; 2= “não”); “eu pertenço ao grupo dos africanos” (1 = “sim”; 2= “não”);
“eu pertenço ao grupo dos europeus” (1 = “sim”; 2 = “não”); “eu pertenço ao grupo dos
negros” (1 = “sim”; 2 = “não”); “eu pertenço ao grupo dos brancos” (1 = “sim”;
2 = “não”). Foi explicado aos participantes que as pertenças não eram necessariamente
exclusivas (logo, poderiam pertencer simultaneamente ao grupo dos angolanos e ao
grupo dos portugueses; ao grupo dos brancos e ao grupo dos negros).
Importância da pertença grupal (Vala, Brito e Lopes, 1999a). Os participantes
deveriam indicar em que medida a pertença a cada um dos grupos atrás assinalados (os
angolanos; os portugueses; os africanos; os europeus; os negros; os brancos) era
importante para si, através de uma escala de 4 pontos (1 = “não é importante para mim”;
2 = “é apenas um pouco importante ”; 3 = “é importante”; e 4 = “é muito importante”).
Nível de orgulho grupal (Vala, Brito e Lopes, 1999a). Os participantes deveriam
indicar em que medida se sentiam orgulhosos por pertencer a cada um dos grupos atrás
assinalados (os angolanos; os portugueses; os negros; os brancos), através de uma escala
de 4 pontos (1 = “muito orgulhoso”; 2 = “orgulhoso”; 3 = “pouco orgulhoso”; e
4 = “nada orgulhoso”).
Nível de identificação grupal. Foi pedido aos participantes para avaliarem em que
medida se sentiam identificados com cada um dos grupos atrás referidos, através de uma
escala de sete pontos, variando entre 1 = “nada identificado” a 7 = “muito fortemente”.
Amizades intergrupais (Pettigrew e Meertens, 1995). Os participantes deveriam
indicar, do conjunto dos seus amigos, se existiam muitas, poucas ou nenhumas pessoas:
de outra nacionalidade; de outra raça; de outra religião; de outra cultura; de outra classe
78
As questões eram as seguintes: “Gostaríamos de saber qual é o seu grau de familiaridade com os
?angolanos?. Por favor, faça uma cruz no número que corresponde à sua opinião. O seu contacto com
os ?angolanos? é …(1 = “muito distante”; 7 = “muito próximo”). Costuma convidar ?angolanos?para
sair? (1 = “nunca”; 7= “sempre”). Costuma convidar ?angolanos? para ir a sua casa? (1 = “nunca”;
7 = “sempre”). Por favor, escreva o número aproximado de ?angolanos? cujo nome conhece:____. Por
favor, escreva o número aproximado de ?angolanos?que são seus amigos íntimos:____.”
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação
453
social, através de uma escala de três pontos (1= “nenhuma”; 2 = “poucas”;
3 = “muitas”).
Nível de incomodidade com opiniões diferentes (Vala, Brito e Lopes, 1999a). Os
participantes deveriam indicar com que frequência se sentiam incomodados com a
presença de pessoas com opiniões e costumes diferentes dos seus, através de uma escala
de quatro pontos (1= “frequentemente”; 2 = “algumas vezes”; 3 = “raramente”;
4 = “nunca”).
A Tabela 63 especifica as várias medidas derivadas do questionário: medidas de
variabilidade percebida, medidas de tendência central e medidas de favoritismo
endogrupal. Estas medidas vão ser a partir de agora designadas pelas respectivas
abreviaturas. Comparando com o questionário utilizado no estudo anterior, podemos
verificar que as medidas de variabilidade grupal percebida são as mesmas, com uma
única excepção: desaparecem as medidas derivadas da tarefa de estimação de
distribuições. Relativamente às medidas de favoritismo endogrupal, acrescentaram-se
neste questionário duas medidas directas de discriminação, nomeadamente duas
medidas de racismo subtil (negação da expressão de emoções positivas e acentuação de
diferenças culturais).
Tabela 63 - Medidas derivadas do questionário e respectivas abreviaturas
Tarefas
Medidas de
variabilidade percebida
Medidas de
tendência central
Medidas de
favoritismo
endogrupal/discriminação
Percentagens
PERSC: traços estereotípicos – traços contra-
estereotípicos
PERMG
PERPN: traços positivos – traços
negativos
Médias
MEDSC: traços estereotípicos – traços contra-
estereotípicos
MEDMG
MEDPN: traços positivos – traços
negativos
Amplitudes AMPLI: diferença entre extremos
Variabilidade VARIA: variabilidade percebida (valores directos) DISMG
Semelhança SEMEL: semelhança percebida (valores directos)
Auto-descrição
AUTSC: traços estereotípicos – traços contra-
estereotípicos
AUTDA: distância absoluta face à média geral do
endogrupo (MEDMG)
AUTD-SC: distância face à média geral do
endogrupo em função do carácter estereotípico dos
traços (S - CS)
AUTPN: traços positivos – traços
negativos
AUTD-PN: distância face à média
geral do endogrupo em função da
valência avaliativa dos traços (P- N)
Emoções
Negação da expressão emoções
positivas (valores directos)
Diferenças
Acentuação de diferenças culturais
(valores directos)
Racismo e etnicidade em Portugal
455
5.3.2.5 Procedimento de análise dos dados
Tal como no estudo anterior, numa fase inicial do tratamento de dados, realizámos
análises de variância tendo o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo), o grupo do
participante (angolanos vs. portugueses), o sexo do participante (masculino vs.
feminino), a ordem de apresentação (primeiro angolanos vs. primeiro portugueses) e -
no caso das medidas derivadas das tarefas de recordação - a versão do material-estímulo
(A vs. B), como variáveis independentes.
Como a variável “sexo do participante” não produziu quaisquer efeitos
significativos, foram realizadas novas análises sem incluir esta variável. A variável
“ordem de apresentação” foi excluída das análises relativas às medidas derivadas do
questionário por não ter produzido nenhum efeito significativo nestas medidas, mas foi
mantida nas análises relativas às medidas derivadas da tarefa de recordação indiciada.
5.3.2.5.1 Controlo dos materiais-estímulo e do contexto da investigação
Começámos por verificar o estatuto social percebido e o estatuto numérico
percebido de ambos os grupos-alvo para os participantes angolanos e portugueses (ver
procedimento de análise de dados do Estudo 2).
Seguidamente verificámos se a valência avaliativa e a estereotipicalidade dos
traços utilizados para descrever os grupos-alvo tinham sido consideradas da forma
prevista pelos participantes na experiência. Este controlo era importante tanto para os 32
traços usados para descrever as pessoas-estímulo como para os 4 traços usados no
questionário para descrever os grupos-alvo, pois poderia inviabilizar a construção das
medidas de variabilidade grupal percebida e de favoritismo endogrupal previstas (ver
procedimento de análise de dados do Estudo 3c).
5.3.2.5.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada
Exactidão da recordação. As respostas correctas foram submetidas a uma análise
de variância (ANOVA) tendo o grupo do participante, a ordem de apresentação e a
versão do material-estímulo como variáveis independentes.
Efeito de categorização. Para examinar o efeito de categorização, efectuámos uma
análise de variância multivariada (MANOVA) com medidas repetidas no primeiro
factor: 2 (tipo de erro: intragrupais vs. intergrupais) x 2 (grupo do participante) x 2
(ordem de apresentação) x 2 (versão do material-estímulo). O efeito de categorização
Racismo e etnicidade em Portugal
456
pode ser inferido na medida em que os participantes efectuarem mais erros intragrupais
do que intergrupais, isto é, se se verificar um efeito principal do tipo de erro.
Efeitos de homogeneidade. Para investigar os efeitos de homogeneidade os erros
intragrupais foram examinados através de uma análise de variância multivariada
(MANOVA), com medidas repetidas no primeiro factor: 2 (tipo de erro: erros
endogrupais vs. erros exogrupais) x 2 (grupo do participante) x 2 (versão do material-
estímulo) x 2 (ordem de apresentação). O efeito de homogeneidade do exogrupo pode
ser inferido na medida em que os participantes efectuarem mais erros exogrupais do que
endogrupais, isto é, se se verificar um efeito principal da variável tipo de erro. Em
contrapartida, a hipótese de assimetria nos efeitos de homogeneidade toma a forma de
um efeito de interacção entre o grupo do participante e o grupo-alvo.
Relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo
Explorámos a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo
a partir da proporção relativas dos diferentes tipos de erros intragrupais na tarefa de
recordação indiciada. Uma vez que a valência dos traços utilizados para descrever as
pessoas-estímulo foi controlada, efectuámos novas análises dos erros intragrupais tendo
em conta a valência dos traços. Nestas novas análises tivemos em conta apenas os oito
traços positivos e os oito traços negativos (16 traços neutros foram excluídos destas
análises).
Começámos por efectuar uma análise multivariada de variância (MANOVA) com
medidas repetidas nos dois primeiros factores: 2 (tipo de erro: erros endogrupais vs.
erros exogrupais) x 2 (valência dos traços: positivos vs. negativos) x 2 (grupo do
participante: angolanos vs. portugueses) x ordem (primeiro angolanos vs. primeiro
portugueses) x versão (A vs. B).
Seguidamente efectuámos novas análises de variância que nos permitissem observar
os efeitos de homogeneidade separadamente para os traços positivos e para os traços
negativos. Em cada uma destas novas análises de variância tivemos o grupo-alvo
(endogrupo vs. exogrupo) como variável intra-participantes e o grupo dos participantes
(angolanos vs. portugueses) como variável inter-participantes.
5.3.2.5.3 Medidas directas – Tarefas de questionário
Efeitos de homogeneidade. Os resultados obtidos em cada uma das medidas de
variabilidade grupal percebida calculadas a partir do questionário (PERSC, MEDSC,
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação
457
AMPLI, e VARIA e SEMEL) foram submetidos a análises multivariadas de variância
tendo o grupo do participante (angolanos vs. portugueses) como variável independente e
o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável dependente. Neste caso, a
hipótese de assimetria nos efeitos de homogeneidade toma a forma de um efeito de
interacção entre o grupo do participante e o grupo-alvo.
Efeitos de favoritismo. Os resultados obtidos nas medidas de favoritismo
endogrupal (PERPN e MEDPN) foram igualmente submetidos a análises multivariadas
de variância tendo o grupo do participante (angolanos vs. portugueses) como variável
independente e o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável dependente. O
favoritismo endogrupal é revelado quando é atribuída ao endogrupo uma média superior
nos traços positivos comparativamente com o exogrupo, e uma média inferior nos traços
negativos, isto é, quando se verifica um efeito principal do grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo).
Racismo subtil
Os dados relativos a ambas as sub-escalas (negação da expressão de emoções
positivas e acentuação das diferenças culturais) foram analisadas através de análises de
variância simples (sem medidas repetidas, uma vez que contrariamente às outras
medidas em que dispúnhamos sempre de dois valores – um referente ao endogrupo e
outro referente ao exogrupo – relativamente a estas medidas dispomos apenas do valor
referente ao exogrupo) tendo como variável independente o grupo do participante
(angolanos vs. portugueses).
Os dados relativos a cada uma das sub-escalas foram ainda submetidos a testes-t
testando contra o valor neutro (valor de teste = 2.5). Se a média ficar significativamente
além do ponto neutro, poderemos inferir discriminação.
Auto-descrição
As diversas medidas derivadas da tarefa de auto-descrição (AUTSC, AUTPN,
AUTDA, AUTD-SC E AUTD-PN) foram analisadas exactamente da mesma forma que
no estudo anterior (ver ponto 5.2.2.4.4).
Os dados relativos às medidas AUDSC e AUTD-SC foram submetidos a análises
de variância multivariadas tendo a estereotipia dos traços como variável intra-
participantes e o grupo dos participantes como variável inter-participantes. Os dados
relativos às medidas AUDPN e AUTDPN foram submetidos a análises de variância
Racismo e etnicidade em Portugal
458
multivariadas tendo a valência dos traços como variável intra-participantes e o grupo
dos participantes como variável inter-participantes. A medida AUTDA foi submetida a
uma análise de variância simples tendo como variáveis independentes o grupo dos
participantes.
Seguidamente, analisámos as correlações entre as medidas derivadas das auto-
descrições dos participantes e as diferentes medidas de variabilidade grupal percebida
(erros intergrupais, PERSC, MEDSC, AMPLI, VARIA e SEMEL).
Pertença, orgulho e identificação grupais
Importância da pertença grupal. Os valores relativos à importância da pertença
nacional (angolanos ou portugueses), supranacional (africanos ou europeus) e racial
(negros ou brancos) foram submetidos a análises de variância simples tendo como variável
independente o grupo dos participantes. Efectuou-se também uma análise de variância
multivariada tendo como variável independente o grupo dos participantes e a importância
atribuída à pertença grupal (nacional vs. racial) como variável intra-participantes.
Orgulho grupal. Os valores relativos ao nível de orgulho nacional, supranacional e
racial foram submetidos a análises de variância simples tendo como variável independente
o grupo dos participantes. Efectuou-se igualmente uma análise de variância multivariada
tendo como variável independente o grupo dos participantes e os níveis de orgulho grupal
(nacional vs. racial) como variável intra-participantes.
Identificação grupal. Enquanto que nas variáveis anteriores (importância da pertença
grupal e orgulho grupal) apenas analisámos os valores referentes ao endogrupo dos
participantes (tendo em conta as suas auto-categorizações), relativamente aos níveis de
identificação grupal analisámos igualmente as respostas em relação ao exogrupo.
Começámos por analisar separadamente as respostas em relação ao endogrupo (nacional,
supranacional e racial) e as respostas em relação ao exogrupo (nacional, supranacional e
racial) e finalmente, efectuámos análises comparativas dos níveis de identificação
endogrupal versus exogrupal (nacional, supranacional e racial).
Os valores relativos aos níveis de identificação endogrupal (nacional, supranacional
e racial) foram submetidos a análises de variância simples tendo como variável
independente o grupo dos participantes. Efectuou-se também uma análise de variância
multivariada tendo como variável independente o grupo dos participantes e como variável
intra-participantes os níveis de identificação endogrupal (nacional vs. racial).
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação
459
Os valores relativos aos níveis de identificação exogrupal foram examinados
exactamente da mesma forma: com uma análise de variância simples tendo como variável
independente o grupo dos participantes e como variável dependente cada um dos níveis de
identificação (nacional, supranacional e racial); e com uma análise de variância
multivariada comparando os níveis de identificação endogrupal (nacional vs. racial) em
função do grupo dos participantes.
Finalmente, os valores de identificação (nacional, supranacional e racial) foram
ainda analisados através de análises de variância multivariadas tendo o grupo-alvo de
identificação (endogrupo vs. exogrupo) como variável dependente e o grupo dos
participantes como variável independente.
Para analisar o impacto da identificação (nacional e racial) nos efeitos de
homogeneidade e nos efeitos de favoritismo, efectuámos uma classificação dos
participantes de ambos os grupos, tendo em conta o valor da mediana de cada grupo para
cada uma das medidas (identificação endogrupal e identificação exogrupal), dividindo
assim os participantes em “fortemente identificados” e “fracamente identificados”.
Relativamente à identificação nacional, para os participantes angolanos a mediana da
identificação endogrupal foi =6 e a mediana da identificação exogrupal foi =3 enquanto
que para os participantes portugueses a mediana da identificação endogrupal foi =6 e a
mediana da identificação exogrupal foi =2).
Quanto à identificação racial, para os participantes angolanos a mediana da
identificação endogrupal foi =6 e a mediana da identificação exogrupal foi =2 enquanto
que para os participantes portugueses a mediana da identificação endogrupal foi =5 e a
mediana da identificação exogrupal foi =2).
Analisámos o impacto do grau de identificação nacional (endogrupal e exogrupal)
nas diversas medidas de variabilidade grupal percebida (erros intragrupais, PERSC,
MEDSC, AMPLI e VARIA e SEMEL) e nas duas medidas de favoritismo endogrupal
(PERPN e MEDPN). Para cada uma destas medidas foi efectuada uma análise de variância
multivariada, tendo a identificação endogrupal, a identificação exogrupal e o grupo do
participante como variáveis inter-participantes e o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo)
como variável intra-participante.
Efectuámos análises de variância multivariadas equivalentes para analisar o impacto
do grau de identificação racial (endogrupal e exogrupal) nas diversas medidas de
variabilidade grupal percebida e nas duas medidas de favoritismo endogrupal.
Racismo e etnicidade em Portugal
460
Nível de contacto
Os valores referentes aos níveis de contacto foram submetidos a análises de
variância multivariada tendo o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável
intra-participantes e o grupo do participante como variável inter-participantes. Foram
efectuadas três análises separadas: uma para o nível de familiaridade (correspondente à
média das três escalas), outra para o número de pessoas conhecidas pelo nome, outra
para o número de amigos íntimos.
Para analisar o impacto do nível de contacto endogrupal e do nível de contacto
exogrupal nos efeitos de homogeneidade e no favoritismo endogrupal, efectuámos uma
classificação dos participantes de ambos os grupos, tendo em conta o valor da mediana de
cada grupo para cada uma das medidas (contacto endogrupal e contacto exogrupal),
dividindo assim os participantes conforme o alto ou baixo nível de contacto. (Para os
participantes angolanos a mediana do contacto endogrupal foi =6 e a mediana do contacto
exogrupal foi =4.67; para os participantes portugueses a mediana do contacto endogrupal
foi =6.33 e a mediana do contacto exogrupal foi =2.00).
Analisámos o impacto do grau de contacto endogrupal e exogrupal em diversas
medidas de variabilidade grupal percebida (erros intragrupais, PERSC, MEDSC, AMPLI,
VARIA e SEMEL) e nas duas medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN).
Para cada uma destas medidas foi efectuada uma análise de variância multivariada, tendo o
contacto endogrupal, o contacto exogrupal e o grupo do participante como variáveis inter-
participantes e o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável intra-participantes.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação
461
5.3.3 Resultados
5.3.3.1 Controlo dos materiais-estímulo e contexto da investigação
Tal como procedemos no estudo anterior, antes de analisar os dados relativos aos
efeitos de categorização e de homogeneidade, que constituem o aspecto central da nossa
análise de resultados, controlámos vários aspectos que se prendem com os materiais-
estímulo e o contexto desta experiência: o estatuto social percebido de ambos os grupos
para os participantes angolanos e portugueses, afigura-se como um aspecto central a
controlar, assim como o estatuto numérico relativo dos grupos. Outro aspecto
fundamental a controlar prende-se com o carácter estereotípico dos traços e a sua
valência avaliativa tendo como referente a imagem de adulto, pois desses aspectos
depende o cálculo das diversas medidas de variabilidade percebida e de favoritismo.
5.3.3.1.1 Estatuto social percebido
Os participantes nesta experiência atribuíram um estatuto mais elevado aos
portugueses (M=63.19) do que aos angolanos (M=33.55), ?F(1,126)=304.06, p<0.0001?.
Os estudantes portugueses perceberam o endogrupo (M=59.29) como tendo um estatuto
significativamente mais elevado do que o exogrupo (M=28.18), ?F(1,126)=225.46,
p<0.0001?, enquanto que os estudantes angolanos perceberam o exogrupo (M=69.49)
como tendo um estatuto significativamente mais elevado do que o endogrupo
(M=42.20), ?F(1,126)=107.55, p<0.0001?. Estes resultados demonstram que existe
consenso numa diferenciação de estatuto relativo claramente favorável aos portugueses.
5.3.3.1.2 Estatuto numérico percebido
Quanto ao tamanho relativo dos grupos, os participantes perceberam os
portugueses como sendo o grupo maioritário (M=60%) e os angolanos como sendo um
grupo minoritário (M=7%), ?F(1,91)=561.55, p<0.0001?. Curiosamente, tanto os
participantes angolanos como os participantes portugueses sobrestimam a percentagem
de angolanos residentes em Portugal (respectivamente, M=6.42% e M=6.70%, quando
na realidade não chega aos 0.03%) e subestimaram a percentagem de portugueses
(respectivamente, M=53.80% e M=63.46%, quando na realidade ultrapassa os 97%),
um resultado consistente com o que já fora obtido na experiência anterior.
Racismo e etnicidade em Portugal
462
5.3.3.1.3 Teste dos materiais-estímulo
Uma vez que relativamente a este estudo experimental não foi efectuado um
estudo piloto específico para o teste dos materiais-estímulo, dado que considerámos
suficiente a abundante informação anteriormente recolhida nos diversos estudos
exploratórios, julgámos pertinente a realização de testes a posteriori dos materiais-
estímulo usados, no sentido de nos assegurarmos da sua adequabilidade para o cálculo
das diversas medidas de variabilidade grupal percebida e de favoritismo endogrupal.
Assim, antes de calcularmos as referidas medidas, procedemos ao controle do carácter
estereotípico e da valência avaliativa (tendo como referente o modelo de adulto) de
todos os traços presentes nos materiais-estímulo.
Os atributos incluídos nas descrições das pessoas-estímulo angolanas (M = 4.78)
foram percebidos como estereotípicos dos angolanos ?t(135)=12.996, p<0.001?. De
igual modo, os atributos incluídos nas descrições das pessoas-estímulo portugueses
(M=4.52) foram percebidos como estereotípicos dos portugueses ?t(135)=10.994,
p<0.001?. Os testes-t realizados separadamente para participantes angolanos e
participantes portugueses revelaram o mesmo padrão de resultados.
Relativamente à valência avaliativa, tanto os traços incluídos nas descrições das
quatro pessoas-estímulo angolanas como os incluídos nas descrições das quatro pessoas-
estímulo portuguesas foram considerados globalmente neutros ?respectivamente:
M = 4.10, t(136)=1.832, p<0.064; e M= 4.14, t(136)=1.914, p<0.058?. Testámos cada
um dos traços individualmente e verificámos que os participantes atribuíram em média a
mesma valência a cada traço obtida no Estudo 3c. Assim, os traços “positivos”
(caloroso, comunicativo, divertido, sociável, criativo, corajoso, dinâmico, honesto)
foram novamente considerados positivos, e os traços ‘negativos’ (supersticioso,
invejoso, conflituoso, desconfiado, fechado, frio, egoísta, pessimista) foram de novo
considerados negativos pelos participantes, independentemente destes serem angolanos
ou portugueses. Assim, podemos concluir que os traços seleccionados para descrever as
pessoas-estímulo são adequados para o cálculo das medidas pretendidas.
Já no que respeita aos quatro traços seleccionados para o cálculo das medidas
‘directas’ de variabilidade grupal percebida, defrontámo-nos com um padrão de resposta
dos participantes significativamente diferente do obtido no Estudo 3c em dois dos
atributos seleccionados no que respeita ao seu carácter estereotípico: alegre e
trabalhador. Assim, o traço alegre foi considerado estereotípico dos angolanos
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação
463
?M = 5.59, t(135)=14.100, p<0.001?, mas foi considerado neutro do ponto de vista da
estereotipia para os portugueses ?M = 4.23, t(135)= 1.827, p<0.070?. De forma
equivalente, o traço trabalhador foi considerado estereotípico dos portugueses
?M = 5.11, t(135)=11.427, p<0.001?, mas foi considerado neutro do ponto de vista da
estereotipicalidade para os angolanos ?M = 3.87, t(133)= -1.011, p<0.314?. Tal implicou
ajustamentos no cálculo previsto para as medidas de variabilidade grupal percebida
baseadas nos traços estereotípicos minus traços contra-estereotípicos79
. Relativamente à
valência avaliativa, estes traços foram avaliados de forma equivalente à verificada no
Estudo 3c (os traços alegre e trabalhador foram considerados positivos e os traços
preguiçoso e individualista foram considerados negativos), o que nos permite avançar
com as medidas previstas de favoritismo endogrupal.
5.3.3.2 Tarefa de recordação indiciada
5.3.3.2.1 Exactidão da recordação
A Tabela 64 apresenta as médias de respostas correctas em função do grupo do
participante e do grupo-alvo. A análise de variância efectuada revelou que a média de
respostas correctas (M=13.31) não variou significativamente nem em função da versão
do material-estímulo nem em função da ordem de apresentação. No entanto, esta análise
produziu um efeito principal do grupo do participante tendencialmente significativo
?F(1,129)=3.59, p<0.060?: os participantes portugueses apresentam uma média superior
de respostas correctas (M=14.01) do que os participantes angolanos (M=12.22). Tal
como na experiência anterior, tal poderá dever-se ao facto dos angolanos que
participaram nesta experiência serem significativamente mais velhos do que os
portugueses: a idade média dos participantes angolanos é de 23 anos enquanto que a
idade média dos participantes portugueses é de 19 anos.
79
No estudo anterior os traços estereotípicos de um grupo-alvo foram considerados simultaneamente
contra-estereotípicos do outro grupo-alvo, o que nos permitiu calcular as medidas baseadas na
diferença entre traços estereotípicos minus contra-estereótipos (S – CS) utilizando os quatro traços.
Neste estudo, como os participantes não consideraram o traço «alegre» como contra-estereotípico dos
portugueses nem o traço «trabalhador» como contra-estereotípico dos angolanos, estes traços tiveram
que ser eliminados no cálculo das medidas baseadas nessa diferença (PERSC, MEDCS e AUTSC).
Assim, para o grupo-alvo «angolanos» as medidas baseadas na diferença entre traços estereotípicos
minus contra-estereótipos (S – CS) foram calculadas da seguinte forma: alegres (S) – individualistas
(SC). Em contrapartida para o grupo-alvo «portugueses» foram calculadas da seguinte forma:
trabalhadores (S) – preguiçosos (SC).
Racismo e etnicidade em Portugal
464
Tabela 64 - Médias e desvios-padrão das respostas correctas em função do grupo do participante e
do grupo-alvo
Grupo-alvoGrupo étnico do
participante Endogrupo Exogrupo Total
Angolanos
(N = 54)
5.41
(2.26)
6.81
(2.93)
12.22
(4.58)
Portugueses
(N = 83)
7.53
(3.30)
6.48
(3.09)
14.01
(5.81)
Total
(N = 137)
6.69
(3.11)
6.61
(3.02)
13.31
(5.41)
Nota: As respostas correctas po deriam variar entre 0 e 32.
Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o número de “Respostas correctas”:
Grupo: F(1,129)=3.59, p<0.060
5.3.3.2.2 Efeito de categorização
Antes de examinarmos os efeitos de homogeneidade, devemos verificar se os
participantes efectivamente categorizaram as pessoas-estímulo em grupos distintos. Na
medida em que os participantes categorizarem os alvos em grupos, os erros intragrupais
serão superiores aos erros intergrupais (efeito de categorização). A Tabela 65 apresenta
as médias e desvios-padrão dos erros em função do grupo do participante.
Consistentemente com as nossas hipóteses, a análise de variância multivariada
efectuada sobre os erros revelou um efeito principal do tipo de erro muito significativo:
o número de erros intragrupais (M=11.13) foi significativamente superior ao número de
erros intergrupais (M=5.67), ?F(1,129)=212.63, p<0.0001?. A proporção de erros
intragrupais e intergrupais demonstra que os participantes efectivamente categorizaram
as pessoas-estímulo em grupos étnicos. Os participantes mostraram uma tendência
muito mais forte para confundir a informação referente aos membros do mesmo grupo
étnico (erros intragrupais) do que a informação referente a grupos étnicos diferentes
(erros intergrupais).
O efeito de interacção entre o tipo de erro e o grupo do participante também foi
significativo ?F(1,129)=13.39, p<0.0005?. Contudo, as análises de contrastes
demonstraram que o efeito principal do tipo de erro foi muito significativo tanto para os
participantes angolanos ?F(1,129)=135.06, p<0.0001? como para os participantes
portugueses ?F(1,129)=78.02, p<0.0001?. Isto é, tanto os membros do grupo dominante
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação
465
como os membros do grupo dominado estruturaram a informação a partir da pertença
étnica das pessoas-estímulo.
O efeito de interacção entre o tipo de erro e a versão do material-estímulo também
foi significativo ?F(1,129)=7.30, p<0.008?. As análises de contrastes mostraram que o
efeito principal do tipo de erro foi mais forte na Versão A ?identificação das pessoas-
estímulo pela fotografia e nacionalidade; F(1,129)=138.06, p<0.0001? do que na Versão
B ?identificação das pessoas-estímulo pela fotografia; F(1,129)=68.14, p<0.0001?. Isto
é, o efeito de categorização foi bastante significativo em ambas as versões do material-
estímulo, mas foi especialmente forte quando cada pessoa-estímulo era identificada
simultaneamente pela nacionalidade e pela fotografia.
Resumindo, estes resultados demonstram que os participantes efectivamente
categorizaram as pessoas-estímulo em dois grupos étnicos (brancos vs. negros),
validando assim o uso destes materiais-estímulo para a análise de questões relacionadas
com a percepção de grupos.
Tabela 65 - Médias e desvios-padrão dos erros intragrupais e intergrupais em função do grupo do
participante e do grupo-alvo
Tipo de erroGrupo do
Participante erros intragrupais erros intergrupais Total
Angolanos
(N = 54)
12.56
(3.40)
5.42
(2.69)
17.97
(4.02)
Portugueses
(N = 83)
10.20
(3.93)
5.83
(2.84)
16.03
(5.15)
Total (N = 137)
11.13
(3.89)
5.67
(2.78)
16.80
(4.82)
Nota: Os erros poderiam variar entre 0 e 32.
Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o Tipo de erro (erros intragrupais vs. erros
intergrupais):
Tipo de erro : F(1,129)=212.63, p<0.0001
Grupo x Tipo de erro: F(1,129)=13.39, p<0.0005
Angolanos: F(1,129)=135.06, p<0.0001
Portugueses: F(1,129)=78.02, p<0.0001
Versão x Tipo de erro: F(1,129)=7.30, p<0.008
Versão 1: F(1,129)=138.06, p<0.0001
Versão 2: F(1,129)=68.14, p<0.0001
Racismo e etnicidade em Portugal
466
5.3.3.2.3 Efeitos de homogeneidade
Para investigar os efeitos de homogeneidade, repartimos os erros intragrupais
tendo em conta a relação entre o grupo de pertença do participante e o grupo de pertença
da pessoa-estímulo: erros endogrupais vs. erros exogrupais. A Tabela 66 apresenta as
médias e desvios-padrão desses erros em função do grupo do participante.
A análise de variância multivariada efectuada sobre os erros intragrupais (erros
endogrupais vs. erros exogrupais) não produziu um efeito estatisticamente significativo
do tipo de erro, demonstrando a ausência de um efeito de homogeneidade do exogrupo
para a globalidade da amostra.
Consistentemente com as nossas hipóteses, verificou-se um efeito de interacção
significativo entre o grupo do participante e o tipo de erro intragrupal ?F(1,129)=27.99,
p<0.0001?. As análises de contrastes realizadas demonstraram que os participantes
portugueses efectuaram significativamente mais erros exogrupais (M = 5.59) do que
erros endogrupais (M = 4.61), ?F(1,129)=12.58, p < 0.001?. Em contraste, os
participantes angolanos efectuaram mais erros endogrupais (M = 6.98) do que erros
exogrupais (M = 5.57), ?F(1,129)=17.02, p < 0.0001?. Isto é, verificou-se uma
assimetria do efeito de homogeneidade do exogrupo em função do estatuto relativo dos
grupos.
Tabela 66 - Médias e desvios-padrão dos erros endogrupais e exogrupais em função do grupo do
participante e do grupo-alvo
Tipo de erro
Grupo étnico
do participante
erros
endogrupais
erros
exogrupais
Total
Angolanos (N = 54)
6.98
(2.18)
5.57
(2.03)
12.56
(3.40)
Portugueses (N = 83)
4.61
(2.34)
5.59
(2.34)
10.20
(3.93)
Total (N = 137)
5.55
(2.55)
5.58
(2.22)
11.13
(3.89)
Nota: Os erros poderiam variar entre 0 e 16.
Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o Tipo de erro (erros endogrupais vs. erros
exogrupais):
Tipo de erro: F(1,129)=0.89, p<0.346
Grupo x Tipo de erro: F(1,129)=27.99, p<0.0001
Angolanos: F(1,129)=17.02, p<0.0001
Portugueses: F(1,129)=12.58, p<0.001
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação
467
5.3.3.2.4 Efeitos de homogeneidade e efeitos de favoritismo
Uma vez que a valência dos traços utilizados para descrever as pessoas-estímulo
foi controlada, efectuámos novas análises dos erros intragrupais tendo em conta a
valência dos traços. Nestas novas análises tivemos em conta apenas os oito traços
positivos e os oito traços negativos (16 traços neutros foram excluídos destas análises).
A Tabela 67 apresenta as médias dos erros endogrupais e exogrupais em função do
grupo do participante e da valência dos traços.
Como explicámos na secção dedicada ao método, começámos por efectuar uma
análise multivariada de variância tomando como variáveis intra-participantes o tipo de
erro intragrupal (erros endogrupais vs. erros exogrupais) e a valência dos traços
(positivos vs. negativos), e como variáveis inter-participantes a versão do material-
estímulo, a ordem de apresentação e o grupo do participante (foram excluídos desta
análise os erros relativos aos 16 traços neutros).
Relativamente ao efeito do tipo de erro, esta nova análise confirmou os resultados
obtidos na análise anterior (efectuada com a totalidade dos traços): globalmente o
número de erros endogrupais foi semelhante ao número de erros exogrupais. A
interacção entre o tipo de erro e o grupo do participante foi significativa apontando para
uma assimetria nos efeitos de homogeneidade ?F (1,129) = 16.01, p < 0.0005?. As
análises de contrastes revelaram que os participantes angolanos efectuaram mais erros
endogrupais do que erros exogrupais ?F (1,129) = 6.14, p< 0.014?, enquanto que os
participantes portugueses apresentaram o padrão oposto ?F (1,129) = 10.56, p < 0.001?.
Quanto à valência dos traços, não se verificaram quaisquer efeitos significativos.
O efeito principal da valência dos traços não foi significativo, demonstrando que a
quantidade de erros não foi afectada pela valência dos traços. A interacção entre a
valência dos traços e o grupo do participante também não foi significativa, assim como
as interacções com a ordem de apresentação, ou com a versão do material-estímulo.
A interacção entre o tipo de erro e a valência de traços também não foi
significativa. No entanto, verificou-se uma tripla interacção entre o grupo do
participante, o tipo de erro e a valência dos traços ?F (1,129) = 7.14, p< 0.009?. Pela
observação da Tabela 67 podemos constatar que os participantes angolanos cometem
mais erros endogrupais quando os traços são positivos (M = 1.76) do que quando os
traços são negativos (M = 1.56), e efectuam mais erros exogrupais quando os traços são
negativos (M = 1.46) do que quando os traços são positivos (M = 1.26), mas a
Racismo e etnicidade em Portugal
468
interacção entre o tipo de erro e a valência dos traços não atinge o limiar da
significância estatística ?F (1,129) = 2.63, p < 0.107?. Os participantes portugueses
apresentam um padrão de resultados oposto: cometem mais erros endogrupais quando
os traços são negativos (M = 1.24) do que quando os traços são positivos (M = 0.93), e
efectuam mais erros exogrupais quando os traços são positivos (M = 1.46) do que
quando os traços são negativos (M = 1.34) ?F (1,129) = 4.59, p < 0.034?.
Numa tentativa de esclarecer esta tripla interacção efectuámos novas análises de
variância que nos permitissem observar os efeitos de homogeneidade separadamente para
os traços positivos e para os traços negativos. Em cada uma destas novas análises de
variância tivemos o grupo-alvo como variável intra-participantes e o grupo dos
participantes como variável inter-participante.
A análise de variância multivariada efectuada sobre os erros intragrupais relativos
exclusivamente aos traços positivos (erros endogrupais positivos vs. erros exogrupais
positivos) produziu um efeito de interacção significativo entre o tipo de erro e o grupo do
participante. As análises de contrastes revelaram um efeito de homogeneidade do
endogrupo significativo para os participantes angolanos, já que estes apresentam
significativamente mais erros endogrupais positivos (M = 1.76) do que erros exogrupais
positivos (M = 1.26) ?F(1,135)=8.28, p<0.005?. Em contrapartida, os participantes
portugueses apresentam um efeito de homogeneidade do exogrupo significativo,
apresentando maior número de erros exogrupais positivos (M = 1.46) do que erros
endogrupais positivos (M = 0.93) ?F(1,135)=14.30, p<0.0005?.
A análise de variância efectuada sobre os erros intragrupais relativos exclusivamente
aos traços negativos (erros endogrupais negativos vs. erros exogrupais negativos) não
revelou quaisquer efeitos estatisticamente significativos. Embora as médias das células
variem no mesmo sentido do que as dos traços positivos, quando os traços são negativos as
estratégias dos participantes angolanos e portugueses aproximam-se.
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação
469
Tabela 67 - Médias e desvios-padrão dos erros endogrupais e exogrupais em função da valência dos
traços e do grupo do participante
Grupo do participante
Angolanos (N=54) Portugueses (N=83) Total (N=137)
Valência
dos
traços
erros
endogrupais
erros
exogrupais
erros
endogrupais
erros
exogrupais
erros
endogrupais
erros
exogrupais
Positivos
1.76
(1.03)
1.26
(1.05)
0.93
(0.92)
1.46
(1.04)
1.26
(1.04)
1.38
(1.04)
Negativos
1.56
(1.00)
1.46
(0.88)
1.24
(0.97)
1.34
(1.04)
1.36
(0.99)
1.39
(0.98)
Nota: Os erros poderiam variar entre 0 e 4.
Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o Tipo de erro em função do grupo-alvo
(endogrupo vs. exogrupo) e da valência dos traços (positivos vs. negativos):
Tipo de erro x Valência dos traços: F(1,129)=0.00, p<0.986
Grupo do participante x Tipo de erro x Valência dos traços: F(1,129)=7.14, p<0.009
Angolanos: F(1,129)=2.63, p<0.107
Portugueses: F(1,129)=4.59, p<0.034
Análise dos efeitos do Grupo sobre o Tipo de erro (endogrupais vs. exogrupais) quando os traços são
positivos:
Tipo de erro: F(1,135)=0.02, p<0.893
Grupo do participante x Tipo de erro: F(1,135)=21.29, p<0.0001
Angolanos: F(1,135)=8.28, p<0.005
Portugueses: F(1,135)=14.30, p<0.0005
Análise dos efeitos do Grupo sobre o Tipo de erro (endogrupais vs. exogrupais) quando os traços são
negativos:
Tipo de erro: F(1,135)=0.00, p<0.987
Grupo do participante x Tipo de erro: F(1,135)=0.71, p<0.401
Resumindo, os portugueses aumentam a distintividade dos membros do
endogrupo nos traços positivos e reduzem-na nos traços negativos. Já em relação ao
exogrupo, os portugueses usam sempre a mesma estratégia: independentemente da
valência dos traços prevalece a homogeneidade. Em contrapartida, os angolanos
homogeneízam sempre o endogrupo, mas mais ainda quando os traços são positivos, e
heterogeneízam o exogrupo, sobretudo quando os traços são positivos. Assim, é
sobretudo ao nível dos traços positivos que se verificam as maiores divergências nas
estratégias cognitivas em relação ao endogrupo entre participantes angolanos e
participantes portugueses.
Racismo e etnicidade em Portugal
470
5.3.3.3 Tarefas do questionário
5.3.3.3.1 Efeitos de homogeneidade
A Tabela 68 apresenta os resultados das medidas de variabilidade grupal
percebida. Para as medidas baseadas na diferença entre os traços estereotípicos e os
traços contra-estereotípicos (PERSC e MEDSC) os valores mais elevados correspondem
a maior conformidade com os estereotípicos, isto é, menor variabilidade grupal
percebida.
Tabela 68 - Médias e desvios-padrão das medidas PERSC e MEDSC em função do grupo do
participante e do grupo-alvo
Grupo do participante
Angolanos (N = 54) Portugueses (N = 83) Total (N = 137)Medidas
Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo
PERSC
S
CS
S – CS
62.91
(22.03)
31.02
(27.61)
31.89
(36.43)
72.54
(18.83)
66.81
(26.12)
5.72
(26.60)
65.33
(13.91)
53.05
(21.12)
12.28
(26.48)
57.33
(21.71)
34.69
(22.73)
22.68
(34.16)
64.37
(17.55)
44.30
(26.15)
20.07
(32.16)
63.41
(21.71)
47.54
(28.77)
15.84
(32.32)
MEDSC
S
CS
S – CS
67.07
(22.10)
36.31
(27.71)
30.76
(37.06)
73.65
(19.36)
69.41
(26.69)
4.24
(28.33)
62.46
(13.88)
59.41
(21.16)
3.05
(24.03)
59.61
(21.92)
39.24
(24.19)
20.37
(36.66)
64.29
(17.67)
50.24
(26.44)
14.05
(32.72)
65.18
(21.97)
51.22
(29.16)
13.96
(34.41)
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida PERSC em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,131)=4.45, p<0.037
Grupo x Grupo-alvo: F(1,131)=26.00, p<0.0001
Angolanos: F(1,131)=21.87, p<0.0001
Portugueses: F(1,131)=5.50, p<0.021
Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida MEDSC em função do Grupo-alvo (endogrupo vs.
exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,133)=1.19, p<0.276
Grupo x Grupo-alvo: F(1,133)=28.78, p<0.0001
Angolanos: F(1,133)=17.38, p<0.0001
Portugueses: F(1,133)=11.41, p<0.001
No que respeita a medida PERSC, verificou-se um efeito significativo do grupo-
alvo, revelando um efeito de homogeneidade do endogrupo em termos globais: os
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação
471
participantes estabeleceram uma maior diferença entre os traços estereotípicos e contra-
estereotípicos para o endogrupo (S – CS = 20.07) do que para o exogrupo (S – CS =
15.84), ?F(1,133) = 4.45, p < 0.037?. O efeito de interacção entre o grupo do participante e
o grupo-alvo foi também estatisticamente significativo apontando assim para uma
assimetria nos efeitos de homogeneidade, ?F(1,133)=26.00, p< 0.0001?. As análises de
contrastes revelaram que os participantes angolanos atribuíram uma maior diferença entre
os traços estereotípicos e os traços contra-estereotípicos para o endogrupo (S - CS=31.89)
do que ao exogrupo (S - CS=5.72), ?F(1,131)=21.87, p<0.0001?, enquanto que os
participantes portugueses atribuíram uma maior diferença entre os traços estereotípicos e
os traços contra-estereotípicos para o exogrupo (S - CS=22.68) do que ao endogrupo (S -
CS=12.68), ?F(1,133)=5.50, p<0.021?.
O padrão de resultados da medida MEDSC foi bastante semelhante. O efeito
principal do grupo-alvo não foi estatisticamente significativo. A interacção entre o grupo-
alvo e o grupo do participante foi significativa apontando para uma assimetria nos efeitos
de homogeneidade, ?F(1,133)=28.78, p<0.0001?. Análises de contrastes revelaram que os
participantes angolanos atribuíram uma maior diferença entre os traços estereotípicos e os
contra-estereotípicos ao endogrupo (S - CS=30.76) do que ao exogrupo (S - CS=4.24),
?F(1,133)=17.38, p<0.0001?. Em contrapartida, os participantes portugueses atribuíram
uma maior diferença entre os traços estereotípicos e os contra-estereotípicos ao exogrupo
(S - CS=20.37) do que ao endogrupo (S - CS=3.05), ?F(1,133)=11.41, p<0.001?.
Resumindo, ambas as medidas baseadas na diferença de atribuição de traços
estereotípicos e contra-estereotípicos revelaram um efeito de homogeneidade do exogrupo
muito significativo para os membros do grupo dominante (participantes portugueses), visto
que estes atribuíram maior conformidade aos estereótipos grupais ao exogrupo do que ao
endogrupo. Em contrapartida, os membros do grupo dominado (participantes angolanos)
demonstraram um efeito de homogeneidade do endogrupo.
A Tabela 69 apresenta os resultados das AMPLI e VARIA. Para ambas as
medidas os valores mais elevados correspondem a maior variabilidade grupal percebida.
Racismo e etnicidade em Portugal
472
Tabela 69 - Médias e desvios-padrão das medidas de AMPLI, VARIA em função do grupo do
participante e do grupo-alvo
Grupo do participante
Angolanos
(N = 54)
Portugueses
(N = 83)
Total
(N = 137)
Medidas
Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo
AMPLI
48.75
(29.61)
43.41
(20.03)
68.61
(17.54)
65.20
(23.75)
60.90
(24.86)
56.74
(24.72)
VARIA
3.50
(1.61)
3.78
(1.37)
4.52
(1.28)
3.69
(1.40)
4.12
(1.50)
3.72
(1.39)
Análise do efeito do Grupo sobre a medida AMPLI em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,133)=5.43, p<0.021
Análise do efeito do Grupo sobre a medida VARIA em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo):
Grupo-alvo: F(1,133)=1.74, p<0.189
Grupo x Grupo-alvo: F(1,133)=8.05, p<0.005
Angolanos: F(1,133)=1.03, p<0.312
Portugueses: F(1,133)=14.20, p<0.0005
A análise dos dados relativos à medida AMPLI produziu um efeito do grupo-alvo
significativo: globalmente os participantes estimaram maior amplitude para o endogrupo
(M = 60.90) do que para o exogrupo (M = 56.74), F(1,133)=5.43, p<0.021. Contrariamente
às nossas expectativas, a interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante não foi
significativa.
A análise realizada sobre os valores da medida VARIA não produziu um efeito
principal do grupo-alvo significativo, ?F(1,133)=1.74, p<0.189?. A interacção entre o
grupo-alvo e o grupo do participante foi significativa apontando para uma assimetria nos
efeitos de homogeneidade, ?F(1,133)=8.05, p<0.005?. As análises de contrastes revelaram
que os participantes portugueses homogeneizaram mais o exogrupo (M=3.69) do que o
endogrupo (M=4.52), demonstrando um efeito de homogeneidade do exogrupo muito
significativo, ?F(1,133)=14.20, p<0.0005?, enquanto os participantes angolanos
homogeneizaram mais o endogrupo (M=3.50) do que o exogrupo (M =3.78), mas esta
diferença não é estatisticamente significativa.
A Tabela 70 apresenta os resultados da medida SEMEL. Para esta medida, valores
mais elevados correspondem a menor semelhança percebida com o grupo-alvo.
A análise realizada sobre os valores da medida SEMEL produziu um efeito principal
do grupo-alvo significativo, demonstrando que a globalidade dos participantes se sentem
Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação
473
mais semelhantes ao endogrupo (M = 3.74) do que ao exogrupo (M = 4.96),
?F(1,133)=40.65, p<0.001?. A interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante
também foi significativa apontando para uma assimetria na diferenciação que os
participantes estabelecem entre si próprios e o grupo de pertença e o grupo dos outros
?F(1,133)=11.10, p<0.001?. As análises de contrastes revelaram que os participantes
portugueses se sentem mais semelhantes com os membros do endogrupo (M=4.07) do que
com os membros do exogrupo (M=4.96), ?F(1,133)=5.88, p<0.017?, mas esta diferença é
muito mais acentuada nos
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  • 1. DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS UNIVERSIDADE DO MINHO Rosa Cabecinhas Racismo e Etnicidade em Portugal Uma análise psicossociológica da homogeneização das minorias Dissertação para obtenção do grau de Doutor em Ciências da Comunicação Sob a orientação de: Professora Lígia Amâncio Professor Aníbal Alves Professor Fabio Lorenzi-Cioldi BRAGA 2002
  • 3. Para Arlete Pais, minha professora da Telescola, Por me ter oferecido o meu primeiro livro.
  • 5. AGRADECIMENTOS Este não foi um percurso solitário. Ao longo da caminhada que me conduziu a esta dissertação pude contar com a ajuda de numerosas pessoas e de algumas instituições. Na impossibilidade de mencionar todas elas, expresso aqui o meu agradecimento àquelas que mais marcaram este percurso. A realização deste trabalho foi possível graças a duas ajudas institucionais decisivas. O Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho concedeu-me três anos de equiparação a bolseira e permitiu-me usufruir de um espaço próprio para a realização das minhas experiências. Ao longo deste percurso pude contar com o apoio inestimável do Departamento de Ciências da Comunicação. A Fundação Calouste Gulbenkian concedeu-me uma bolsa de estudos que permitiu a minha estadia na Universidade de Genebra durante um período de dois anos, e apoiou, por diversas vezes, a minha participação em congressos internacionais. Para além deste apoio mais próximo, não posso deixar de mencionar um apoio mais distante, mas de grande relevância para mim: a Biblioteca Itinerante de Fundação Calouste Gulbenkian, que visitava a minha aldeia uma vez por mês, encheu de sonhos a minha adolescência e despertou o meu interesse pela ciência. A Lígia Amâncio acompanha o meu trabalho há uma década. Tendo sido minha professora e minha orientadora da dissertação de mestrado, aceitou ser de novo minha orientadora no projecto de doutoramento. As minhas palavras nunca poderão expressar o quanto lhe devo: a clareza de raciocínio que tantas vezes me faltou foi colmatada pela sua viva inteligência e sabedoria. O seu constante entusiasmo e o seu encorajamento ajudaram-me a resistir nos momentos mais difíceis. A sua competência científica, disponibilidade e capacidade de diálogo foram de um valor inestimável para a concretização deste projecto. Devo a Aníbal Alves, meu orientador interno, o respeito pelo meu tema de investigação, o acompanhamento do meu trabalho, o constante encorajamento na
  • 6. concretização deste projecto e a criação das condições que o tornaram possível. Obrigada também pela amizade demonstrada e a capacidade de olhar em frente. Ao Fabio Lorenzi-Cioldi, meu co-orientador, agradeço os comentários críticos e as sugestões que muito me ajudaram a melhorar este trabalho. Não posso também deixar de referir o apoio, encorajamento e as sugestões que recebi da parte de outros professores e colegas da Universidade de Genebra: Willem Doise, Gabriel Mugny, Anne-Claude Dafflon, Christian Staerkle, Thalia Magioglou e Agatta Dragulescu. Agradeço aos 1871 estudantes que participaram voluntariamente nesta investigação e também aos colegas que disponibilizaram parte das suas aulas para a realização dos diversos estudos: Alberto Sá, Alexandra Lázaro, Alice Matos, Ana Paula Marques, Emília Fernandes, João Paulo André, Joel Felizes, Luís Cunha, Luísa Magalhães, Manuel Afonso, Manuel Caldeira Cabral, Manuela Palmeirim, Paulo Nossa, Paulo Xavier, Sandra Marinho, Silvana Mota Ribeiro e Teresa Mora. Um agradecimento muito especial vai para os colegas que me ajudaram na recolha de dados em outros locais do país: Jaime Ramos e Osvaldo Régua em Bragança; Ana Paula Simões e Carolina Leite no Porto; Albino Lopes, Joana Pereira Leite e Isabel Correia em Lisboa; Carlos Brígida em Évora; Guilhermina Carvalheira e Manuela Neto em Faro. Agradeço à Associação de Estudantes Angolanos em Portugal, e muito em particular a Eugénio Silva, Amélia Mutango, Carlos Gando, Ruben Silva e Viegas Bernardo a sua colaboração no ‘recrutamento’ dos estudantes angolanos que participaram nos diversos estudos. Agradeço a Adriano Bondo a sua colaboração na recolha das fotografias utilizadas num dos estudos experimentais. Em termos técnicos e informáticos agradeço o aconselhamento e apoio da parte de José Carlos Palmeirim e José Manuel Machado. A Ana Margarida Dias fez uma revisão paciente da minha lista de referências bibliográficas, a Virgínia Santos verificou todas as citações e o Alberto Sá formatou este volumoso texto.
  • 7. Ao longo destes anos pude receber ensinamentos e trocar ideias com alguns professores e colegas que se disponibilizaram para discutir comigo os seus dados e os meus: Jorge Vala, Isabel Correia, Rodrigo Brito, Diniz Lopes, Marcus Lima, Abílio Oliveira, Joana Miranda, Manuela Ivone Cunha, Manuel Carlos Silva, Luís Cunha e Silvana Mota Ribeiro. Aos meus pais e à minha irmã agradeço terem permanecido sempre do meu lado, apesar das minhas tão prolongadas ausências. Ao Pedro e à Teresa agradeço terem-me recebido tantas vezes em Lisboa, sempre com a maior disponibilidade e carinho. Ao longo deste trajecto pude contar com a colaboração, o apoio e o constante encorajamento dos meus queridos amigos Anabela, Christel, Guida, Luís, Manuela, Paulo e Rui. Muito obrigada a todos.
  • 8. Racismo e Etnicidade em Portugal 8 ÍNDICE GERAL RESUMO...............................................................................................................23 ABSTRACT..........................................................................................................24 INTRODUÇÃO GERAL ............................................................................................. 25 PARTE I: PROBLEMÁTICA E ENQUADRAMENTO TEÓRICO..................... 35 CAPÍTULO 1 - RACISMO, RACIALIZAÇÃO E ETNICIZAÇÃO DAS MINORIAS ...........37 1.1 Introdução ........................................................................................................38 1.2 Racismo e etnocentrismo: a actualidade de uma velha questão ......................40 1.3 Contexto histórico-político, Ciência e Racismo ..............................................51 1.3.1 O racismo na ciência e no senso comum ............................................... 51 1.3.2 As normas da igualdade e os novos racismos........................................ 58 1.4 O contexto português.......................................................................................73 1.4.1 Colonianismo, idendidade nacional e representações do ‘negro’.......... 73 1.4.2 Descolonização, Imigração e os Novos Racismos ................................ 99 1.5. Desminar um terreno repleto de ambiguidades............................................115 CAPÍTULO 2 - RELAÇÕES INTERGRUPAIS, IDENTIDADE SOCIAL E DIFERENCIAÇÃO SIMBÓLICA................................................................125 2.1 Introdução ......................................................................................................126 2.2 Relações intergrupais, identidade social e discriminação social...................128 2.3 Categorização social, Identidade social e identidade pessoal........................138 2.3.1. Identidade social e comparação social................................................ 143 2.3.2. Identidade social e auto-categorização ............................................... 157 2.4 Representações sociais, identidade social, e dominação simbólica...............166 2.4.1. Identidade social e diferenciação categorial....................................... 167 2.4.2 Identidade dominante e identidade dominada ..................................... 170 2.4.3. Identidade social e representação de ‘pessoa’ .................................... 180 CAPÍTULO 3 - PROCESSOS COGNITIVOS, ESTEREÓTIPOS SOCIAIS E PERCEPÇÃO DA VARIABILIDADE GRUPAL ............................................187 3.1 Introdução ......................................................................................................188 3.2 Processos cognitivos e realidade social.........................................................192
  • 9. Racismo e Etnicidade em Portugal 9 3.3 Processos cognitivos, cultura e estereótipos sociais ......................................201 3.4 Processos cognitivos, identidade social e percepção da variabilidade grupal..........................................................................................................217 3.5 Questões metodológicas no estudo da variabilidade grupal percebida .........244 PARTE II: INVESTIGAÇÃO EMPÍRICA ............................................................ 249 CAPÍTULO 4 - ESTUDOS EXPLORATÓRIOS: CATEGORIZAÇÃO E DIFERENCIAÇÃO ENTRE GRUPOS ÉTNICOS...........................................250 4.1 Introdução ......................................................................................................251 4.2 Estudo 1 - Crenças sobre grupo étnico e raça .................................................253 4.2.1 Objectivos ............................................................................................ 253 4.2.2 Método................................................................................................. 255 4.2.2.1 Participantes.................................................................................. 255 4.2.2.2 Procedimento de recolha de dados ............................................... 255 4.2.2.3 Procedimento de análise de dados ................................................ 256 4.2.3 Resultados............................................................................................ 257 4.2.3.1 Grupo étnico versus raça .............................................................. 257 4.2.3.2 Grupos etnicizados e grupos racializados em Portugal................ 260 4.2.3.3 Auto-categorização dos participantes ........................................... 262 4.2.4 Discussão ............................................................................................. 264 4.3 Estudo 2 - Percepção do estatuto social dos diferentes grupos étnicos em Portugal........................................................................................266 4.3.1 Objectivos ............................................................................................ 266 4.3.2 Método................................................................................................. 268 4.3.2.1 Participantes e desenho ................................................................. 268 4.3.2.2 Procedimento de recolha de dados ............................................... 269 4.3.2.3 Procedimento de análise de dados ................................................ 270 4.3.3 Resultados............................................................................................ 272 4.3.3.1 Estatuto social percebido .............................................................. 272 4.3.3.2 Estatuto numérico percebido ........................................................ 279 4.3.4 Discussão ............................................................................................. 283 4.4 Estudo 3 - Estereótipos sociais e assimetria simbólica...................................287 4.4.1 Introdução ............................................................................................ 287
  • 10. Racismo e Etnicidade em Portugal 10 4.4.2 Estudo 3a - Conteúdos dos estereótipos .............................................. 290 4.4.2.1 Método.......................................................................................... 291 4.4.2.1.1 Participantes............................................................................291 4.4.2.1.2 Procedimento de recolha de dados .........................................291 4.4.2.1.3 Procedimento de análise de dados ..........................................292 4.4.2.2 Resultados..................................................................................... 294 4.4.3 Estudo 3b - Avaliação dos conteúdos.................................................. 304 4.4.3.1 Método.......................................................................................... 306 4.4.3.1.1 Participantes e desenho ...........................................................306 4.4.3.1.2 Procedimento de recolha de dados .........................................306 4.4.3.1.3 Instrumentos de medida..........................................................307 4.4.3.1.4 Procedimento de análise de dados ..........................................307 4.4.3.2. Resultados.................................................................................... 309 4.4.4 Estudo 3c - Significados dos conteúdos............................................... 318 4.4.4.1 Método.......................................................................................... 319 4.4.4.1.1 Participantes e desenho ...........................................................319 4.4.4.1.2 Procedimento de recolha de dados .........................................319 4.4.4.1.3 Instrumentos de medida..........................................................320 4.4.4.1.4 Procedimento de análise de dados ..........................................320 4.4.4.2 Resultados..................................................................................... 322 4.4.5 Síntese dos resultados do Estudo 3b e do Estudo 3c........................... 329 4.4.6 Discussão dos estudos sobre estereótipos............................................ 337 CAPÍTULO 5 - ESTUDOS EXPERIMENTAIS: DISCRIMINAÇÃO NO TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO...........................................................343 5.1 Introdução .......................................................................................................344 5.2 Estudo 4 – Homogeneização de uma minoria nacional ..................................346 5.2.1 Introdução ............................................................................................ 346 5.2.2 Método................................................................................................. 353 5.2.2.1 Participantes e desenho experimental........................................... 353 5.2.2.2. Materiais-estímulo ....................................................................... 355 5.2.2.2.1 Teste dos materiais-estímulo (Estudo piloto).........................355 5.2.2.2.2 Versão definitiva do material-estímulo ..................................357 5.2.2.3 Procedimento de recolha de dados ............................................... 361 5.2.2.4 Instrumentos de medida................................................................ 364
  • 11. Racismo e Etnicidade em Portugal 11 5.2.2.4.1 Medidas de controlo dos materiais e do contexto da investigação ............................................................................365 5.2.2.4.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada.............366 5.2.2.4.3 Medidas indirectas – Tarefa de recordação livre....................367 5.2.2.4.4 Medidas directas – Tarefas de questionário............................368 5.2.2.5 Procedimento de análise de dados ................................................ 375 5.2.2.5.1 Controlo dos materiais-estímulo e do contexto da experiência..............................................................................375 5.2.2.5.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada.............375 5.2.2.5.3 Medidas indirectas – Tarefa de recordação livre....................376 5.2.2.5.4 Medidas directas – Tarefas de questionário............................377 5.2.3 Resultados............................................................................................ 383 5.2.3.1 Controlo dos materiais-estímulo e do contexto da investigação .. 383 5.2.3.1.1 Estatuto social percebido ........................................................383 5.2.3.1.2 Estatuto numérico percebido ..................................................383 5.2.3.1.3 Estereotipicalidade e valência dos traços ...............................384 5.2.3.2 Tarefa de recordação indiciada..................................................... 384 5.2.3.2.1 Exactidão da recordação .........................................................385 5.2.3.2.2 Efeito de categorização...........................................................386 5.2.3.2.3 Efeitos de homogeneidade......................................................387 5.2.3.3 Tarefa de recordação livre ............................................................ 388 5.2.3.3.1 Quantidade de informação recordada .....................................389 5.2.3.3.2 Efeitos de homogeneidade......................................................390 5.2.3.4 Tarefas do questionário................................................................. 392 5.2.3.4.1 Efeitos de homogeneidade......................................................392 5.2.3.4.2 Efeitos de Favoritismo............................................................398 5.2.3.4.3 Relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo..............................................................................400 5.2.3.4.4 Auto-descrição........................................................................408 5.2.3.4.5 Nível de identificação grupal..................................................414 5.2.3.4.6 Nível de contacto ....................................................................419 5.2.4 Discussão ............................................................................................. 426 5.3 Estudo 5 - Homogeneização de uma minoria étnica .......................................437 5.3.1 Introdução ............................................................................................ 437
  • 12. Racismo e Etnicidade em Portugal 12 5.3.2 Método................................................................................................. 441 5.3.2.1 Participantes e desenho experimental........................................... 441 5.3.2.2 Materiais-estímulo ........................................................................ 443 5.3.2.3 Procedimento de recolha de dados ............................................... 445 5.3.2.4 Instrumentos de medida................................................................ 447 5.3.2.4.1 Medidas de controlo dos materiais e do contexto da investigação ............................................................................448 5.3.2.4.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada.............449 5.3.2.4.3 Medidas directas – Tarefas de questionário............................450 5.3.2.5 Procedimento de análise dos dados .............................................. 455 5.3.2.5.1 Controlo dos materiais-estímulo e do contexto da investigação ............................................................................455 5.3.2.5.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada.............455 5.3.2.5.3 Medidas directas – Tarefas de questionário............................456 5.3.3 Resultados............................................................................................ 461 5.3.3.1 Controlo dos materiais-estímulo e contexto da investigação ....... 461 5.3.3.1.1 Estatuto social percebido ........................................................461 5.3.3.1.2 Estatuto numérico percebido ..................................................461 5.3.3.1.3 Teste dos materiais-estímulo ..................................................462 5.3.3.2 Tarefa de recordação indiciada..................................................... 463 5.3.3.2.1 Exactidão da recordação .........................................................463 5.3.3.2.2 Efeito de categorização...........................................................464 5.3.3.2.3 Efeitos de homogeneidade......................................................466 5.3.3.2.4 Efeitos de homogeneidade e efeitos de favoritismo ...............467 5.3.3.3 Tarefas do questionário................................................................. 470 5.3.3.3.1 Efeitos de homogeneidade......................................................470 5.3.3.3.2 Efeitos de favoritismo .............................................................473 5.3.3.3.3 Auto-descrição........................................................................475 5.3.3.3.4 Pertença, orgulho e identificação grupais...............................482 5.3.3.3.5 Nível de contacto ....................................................................491 5.3.3.3.6 Racismo subtil ........................................................................495 5.3.3.3.7 Tolerância à diferença.............................................................499 5.3.4 Discussão ............................................................................................. 503
  • 13. Racismo e Etnicidade em Portugal 13 CAPÍTULO 6 - ESTUDO CORRELACIONAL: RACISMO E VARIABILIDADE GRUPAL PERCEBIDA..............................................................................515 6.1 Estudo 6 ......................................................................................................516 6.1.1 Introdução ............................................................................................ 516 6.1.2 Método................................................................................................. 519 6.1.2.1 Participantes e desenho ................................................................. 519 6.1.2.2 Procedimento ................................................................................ 520 6.1.2.3 Instrumentos de medida................................................................ 521 6.1.2.4 Procedimento de análise dos dados .............................................. 524 6.1.3 Resultados............................................................................................ 528 6.1.3.1 Percepções do exogrupo ............................................................... 528 6.1.3.2 Contacto com o exogrupo............................................................. 545 6.1.3.3 Pertença, orgulho e identificação grupais..................................... 550 6.1.3.4 Tolerância à diferença................................................................... 553 6.1.3.5 Preditores da variabilidade percebida do exogrupo...................... 555 6.1.4 Discussão ............................................................................................. 560 CONCLUSÕES ........................................................................................................... 569 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 591 ANEXOS...................................................................................................................... 701 Índice de anexos ..................................................................................................703 Índice de tabelas dos anexos................................................................................705
  • 14. Racismo e Etnicidade em Portugal 14 ÍNDICE DE TABELAS Tabelas do Estudo 1 Tabela 1 - Distribuição dos participantes por condição................................................ 255 Tabela 2 - Frequências relativas dos conteúdos associados a grupo étnico e raça ...... 258 Tabela 3 - Frequências relativas das categorias de conteúdos associadas a grupo étnico e raça ................................................................................................259 Tabela 4 - Frequências relativas dos sinónimos de grupo étnico e raça ...................... 260 Tabela 5 - Frequências relativas dos grupos étnicos e raças referidos pelos participantes................................................................................................ 261 Tabela 6 - Frequências relativas das categorias de grupos étnicos e raças referidos pelos participantes ...................................................................................... 262 Tabela 7 - Frequências relativas das auto-categorizações dos participantes ................ 263 Tabela 8 - Frequências relativas dos grupos étnicos e raças referidos nas auto- categorizações dos participantes................................................................. 263 Tabelas do Estudo 2 Tabela 9 - Distribuição dos participantes em função do local de recolha de dados ..... 269 Tabela 10 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo em função da categorização nacional ou racial........................................................................................ 272 Tabela 11 – Estatuto numérico percebido dos grupos-alvo em função da categorização nacional ou racial................................................................. 280 Tabelas do Estudo 3a Tabela 12 - Grupo e sexo dos participantes.................................................................. 291 Tabela 13 - Indicadores relativos aos seis dicionários.................................................. 294 Tabela 14 - Atributos exclusivos do grupo dos angolanos ........................................... 296 Tabela 15 - Atributos exclusivos do grupo dos portugueses ........................................ 298 Tabela 16 - Atributos comuns ao grupo dos angolanos e ao grupo dos portugueses ... 300 Tabelas do Estudo 3b Tabela 17 - Grupo e sexo dos participantes.................................................................. 306 Tabela 18 - Traços considerados positivos em função do grupo dos participantes ...... 310 Tabela 19 - Traços considerados negativos em função do grupo dos participantes..... 312
  • 15. Racismo e Etnicidade em Portugal 15 Tabela 20 - Traços considerados estereotípicos dos angolanos em função do grupo dos participantes ............................................................................... 314 Tabela 21 - Traços considerados estereotípicos dos portugueses em função do grupo dos participantes ............................................................................... 316 Tabelas do Estudo 3c Tabela 22 - Grupo e sexo dos participantes.................................................................. 319 Tabela 23 - Traços considerados qualidades em função do grupo dos participantes... 323 Tabela 24 - Traços considerados defeitos em função do grupo dos participantes........ 325 Tabela 25 - Traços considerados estereotípicos dos angolanos em função do grupo dos participantes (avaliação interdependente).................................. 326 Tabela 26 - Traços considerados estereotípicos dos portugueses em função do grupo dos participantes (avaliação interdependente).................................. 328 Tabela 27 - Traços considerados positivos em função da opinião pessoal (Estudo 3b) e do referente de adulto (Estudo 3c)..................................................... 330 Tabela 28 - Traços considerados negativos em função da opinião pessoal (Estudo 3b) e do referente de adulto (Estudo 3c)..................................................... 332 Tabela 29 - Traços considerados estereotípicos dos angolanos numa escala independente (Estudo 3b) e numa escala interdependente (Estudo 3c)...... 333 Tabela 30 - Traços considerados estereotípicos dos portugueses numa escala independente (Estudo 3b) e numa escala interdependente (Estudo 3c)...... 335 Tabelas do Estudo 4 Tabela 31 - Distribuição dos participantes angolanos e portugueses por condição experimental ............................................................................................... 354 Tabela 32 - Materiais-estímulo (Versão A) .................................................................. 359 Tabela 33 - Materiais-estímulo (Versão B) .................................................................. 360 Tabela 34 - Síntese dos instrumentos de medida.......................................................... 365 Tabela 35 - Medidas derivadas do questionário e respectivas abreviaturas ................. 374 Tabela 36 - Médias e desvios-padrão das respostas correctas em função do grupo do participante e do grupo-alvo .................................................................. 385 Tabela 37 - Médias e desvios-padrão dos erros intragrupais e intergrupais em função do grupo do participante e do grupo-alvo ....................................... 386
  • 16. Racismo e Etnicidade em Portugal 16 Tabela 38 - Médias e desvios-padrão dos erros endogrupais e exogrupais em função do grupo do participante e do grupo-alvo ....................................... 388 Tabela 39 - Médias e desvios-padrão do número total de atributos correctamente recordados em função do grupo do participante e do grupo-alvo .............. 390 Tabela 40 - Médias dos ARC-scores em função do grupo do participante, do grupo-alvo, e do tipo de organização da informação.................................. 392 Tabela 41 - Médias e desvios-padrão das medidas PERSC e MEDSC em função do grupo do participante e do grupo-alvo ................................................... 393 Tabela 42 - Médias e desvios-padrão da medida AMPLI em função do grupo do participante e do grupo-alvo ....................................................................... 395 Tabela 43 - Médias e desvios-padrão da medida VARIA em função do grupo do participante e do grupo-alvo ....................................................................... 396 Tabela 44 - Médias e desvios-padrão das medidas DISPD e DISVAR em função do grupo do participante e do grupo-alvo ................................................... 397 Tabela 45 - Médias e desvios-padrão das medidas de favoritismo endogrupal em função do grupo do participante e do grupo-alvo ....................................... 399 Tabela 46 - Médias e desvios-padrão das medidas de variabilidade grupal percebida controlando a valência dos traços. ............................................. 403 Tabela 47 - Médias e desvios-padrão das medidas de favoritismo endogrupal controlando a estereotipicalidade dos traços. ............................................. 406 Tabela 48 - Médias e desvios-padrão da medida AUTSC............................................ 409 Tabela 49 - Médias e desvios-padrão da medida AUTPN ........................................... 410 Tabela 50 - Médias e desvios-padrão da medida AUTDA........................................... 410 Tabela 51 - Médias das medidas de distância da auto-descrição face à tendência central do endogrupo em função da estereotipicalidade e da valência dos traços .................................................................................................... 411 Tabela 52 - Correlações entre as medidas de auto-descrição e as medidas de variabilidade grupal percebida.................................................................... 413 Tabela 53 - Médias e desvios-padrão dos níveis de identificação em função do grupo do participante .................................................................................. 415 Tabela 54 - Médias e desvios-padrão dos níveis de identificação dos participantes angolanos em função do tempo de permanência em Portugal.................... 416 Tabela 55 – Médias e desvios-padrão do favoritismo endogrupal em função do nível de identificação exogrupal................................................................. 419
  • 17. Racismo e Etnicidade em Portugal 17 Tabela 56 - Médias e desvios-padrão do nível de familiaridade entre os grupos......... 420 Tabela 57 - Médias e desvios-padrão do número de amigos do endogrupo e do exogrupo ..................................................................................................... 421 Tabela 58 - Médias e desvios-padrão respeitantes aos níveis de familiaridade dos participantes angolanos em função do tempo de permanência em Portugal....................................................................................................... 422 Tabela 59 – Médias e desvios-padrão do favoritismo endogrupal em função dos níveis de familiaridade endogrupal e exogrupal......................................... 425 Tabelas do Estudo 5 Tabela 60 - Distribuição dos participantes angolanos e portugueses por condição experimental ............................................................................................... 442 Tabela 61 - Material-estímulo (Versões A e B)............................................................ 444 Tabela 62 - Síntese dos instrumentos de medida.......................................................... 448 Tabela 63 - Medidas derivadas do questionário e respectivas abreviaturas ................. 454 Tabela 64 - Médias e desvios-padrão das respostas correctas em função do grupo do participante e do grupo-alvo .................................................................. 464 Tabela 65 - Médias e desvios-padrão dos erros intragrupais e intergrupais em função do grupo do participante e do grupo-alvo ....................................... 465 Tabela 66 - Médias e desvios-padrão dos erros endogrupais e exogrupais em função do grupo do participante e do grupo-alvo ....................................... 466 Tabela 67 - Médias e desvios-padrão dos erros endogrupais e exogrupais em função da valência dos traços e do grupo do participante .......................... 469 Tabela 68 - Médias e desvios-padrão das medidas PERSC e MEDSC em função do grupo do participante e do grupo-alvo ................................................... 470 Tabela 69 - Médias e desvios-padrão das medidas de AMPLI, VARIA em função do grupo do participante e do grupo-alvo ................................................... 472 Tabela 70 - Médias e desvios-padrão da medidas SEMEL em função do grupo do participante e do grupo-alvo ....................................................................... 473 Tabela 71 - Médias e desvios-padrão das medidas de favoritismo endogrupal ........... 474 Tabela 72 - Médias e desvios-padrão da medida AUTSC em função do grupo do participante ................................................................................................. 476 Tabela 73 - Médias e desvios-padrão da medida AUTPN em função do grupo do participante ................................................................................................. 478
  • 18. Racismo e Etnicidade em Portugal 18 Tabela 74 - Médias e desvios-padrão das medidas de auto-descrição em função do grupo do participante .................................................................................. 478 Tabela 75 - Médias e desvios-padrão das medidas de distância da auto-descrição face à tendência central do endogrupo em função da estereotipicalidade e da valência dos traços ............................................... 479 Tabela 76 - Correlações entre as medidas de variabilidade grupal percebida e as medidas de auto-descrição.......................................................................... 481 Tabela 77 - Médias e desvios-padrão das medidas respeitantes à importância da pertença grupal............................................................................................ 484 Tabela 78 - Médias e desvios-padrão das medidas respeitantes ao orgulho da pertença grupal............................................................................................ 486 Tabela 79 - Médias e desvios-padrão das medidas respeitantes à identificação nacional, supranacional e racial.................................................................. 487 Tabela 80 - Médias e desvios-padrão das questões sobre ao nível de contacto ........... 492 Tabela 81 - Médias e desvios-padrão do favoritismo endogrupal em função dos níveis de familiaridade endogrupal............................................................. 495 Tabela 82 - Estrutura factorial do racismo subtil ......................................................... 496 Tabela 83 - Médias e desvios-padrão das questões sobre negação da expressão de emoções positivas ....................................................................................... 497 Tabela 84 - Médias e desvios-padrão das questões sobre a acentuação das diferenças culturais ..................................................................................... 498 Tabela 85 - Correlações entre as medidas de variabilidade grupal percebida e as outras medidas ............................................................................................ 499 Tabela 86 - Médias e desvios-padrão das questões sobre as amizades intergrupais .... 500 Tabela 87 - Médias e desvios-padrão da questão sobre a incomodidade face a opiniões diferentes ...................................................................................... 501 Tabela 88 - Correlações entre as medidas de variabilidade grupal percebida e as medidas de tolerância à diferença............................................................... 502 Tabelas do Estudo 6 Tabela 89 - Distribuição dos participantes em função do grupo-alvo e do local de recolha de dados ......................................................................................... 520 Tabela 90 - Síntese dos instrumentos de medida.......................................................... 521
  • 19. Racismo e Etnicidade em Portugal 19 Tabela 91 - Percepção da variabilidade do exogrupo em função da respectiva designação................................................................................................... 529 Tabela 92 - Percepção da semelhança com o exogrupo em função da respectiva designação................................................................................................... 531 Tabela 93 - Médias da sub-escala negação de emoções positivas em função do grupo-alvo ................................................................................................... 533 Tabela 94- Médias da sub-escala de acentuação das diferenças culturais em função do grupo-alvo .................................................................................. 535 Tabela 95 - Médias da sub-escala de defesa dos valores tradicionais em função do grupo-alvo ................................................................................................... 536 Tabela 96 - Médias da sub-escala de ameaça e rejeição em função do grupo-alvo .... 538 Tabela 97 - Médias da sub-escala rejeição de intimidade em função do grupo-alvo... 539 Tabela 98 - Médias do racismo subtil e racismo flagrante em função do grupo- alvo ............................................................................................................. 541 Tabela 99 - Médias do racismo subtil e do racismo flagrante em função do tipo de categorização do grupo-alvo ....................................................................... 543 Tabela 100 - Correlações entre o racismo subtil e o racismo flagrante e as restantes variáveis....................................................................................... 544 Tabela 101 - Médias relativas ao nível de familiaridade em função do grupo-alvo..... 546 Tabela 102 - Médias relativas ao número de pessoas conhecidas pelo nome em função do grupo-alvo .................................................................................. 547 Tabela 103 - Médias relativas ao número de amigos íntimos em função do grupo- alvo ............................................................................................................. 549 Tabela 104 - Médias relativas à importância da pertença nacional e racial em função do sexo do participante ................................................................... 550 Tabela 105 - Médias relativas ao orgulho nacional e racial em função do sexo do participante ................................................................................................. 551 Tabela 106 - Médias relativas à identificação nacional e racial em função do sexo do participante ............................................................................................ 552 Tabela 107 - Médias das amizades intergrupais em função do sexo dos participantes................................................................................................ 553 Tabela 108 - Nível de incomodidade com opiniões diferentes em função do sexo dos participantes ......................................................................................... 554
  • 20. Racismo e Etnicidade em Portugal 20 Tabela 109 - Correlações entre a percepção da variabilidade do exogrupo e as restantes variáveis....................................................................................... 556 Tabela 110 - Preditores da variabilidade percebida do exogrupo (total da amostra) ... 557 Tabela 111 - Preditores da variabilidade percebida do exogrupo (excluindo grupo- alvo ‘negros’).............................................................................................. 558 Tabela 112 - Preditores da variabilidade percebida do exogrupo (grupo-alvo ‘angolanos’). ............................................................................................... 559 Tabela 113 - Preditores da variabilidade percebida do exogrupo (síntese) .................. 559
  • 21. Racismo e Etnicidade em Portugal 21 ÍNDICE DE GRÁFICOS Gráfico 1 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização nacional) em função do local de recolha de dados ............................................................274 Gráfico 2 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização racial) em função do local de recolha de dados ........................................................... 274 Gráfico 3 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização nacional) em função do sexo dos participantes ................................................................ 275 Gráfico 4 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização racial) em função do sexo dos participantes ................................................................ 276 Gráfico 5 – Estatuto numérico percebido dos grupos-alvo (categorização nacional) em função do sexo do participante ............................................. 281 Gráfico 6 – Estatuto numérico percebido dos grupos-alvo (categorização racial) em função do sexo do participante ............................................................. 282 Gráfico 7 - Percepção da semelhança com o exogrupo em função do local de recolha de dados ......................................................................................... 531 Gráfico 8 - Percepção da semelhança com o exogrupo em função do sexo dos participantes................................................................................................ 532 Gráfico 9 - Negação de emoções positivas em função do grupo-alvo e do local de recolha de dados ......................................................................................... 534 Gráfico 10 - Negação de emoções positivas em função do grupo-alvo e do sexo dos participantes ......................................................................................... 534 Gráfico 11 - Defesa dos valores tradicionais em função do grupo-alvo e do sexo dos participantes ......................................................................................... 537 Gráfico 12 - Ameaça e rejeição em função do grupo-alvo e do local de recolha de dados........................................................................................................... 538 Gráfico 13 - Rejeição de intimidade em função do grupo-alvo e do local de recolha de dados ......................................................................................... 540 Gráfico 14 - Racismo subtil e racismo flagrante em função do sexo dos participantes................................................................................................ 542 Gráfico 15 - Racismo subtil e racismo flagrante em função do local de recolha de dados........................................................................................................... 542
  • 22. Racismo e Etnicidade em Portugal 22 Gráfico 16 - Número de pessoas conhecidas pelo nome em função do grupo-alvo e do local de recolha de dados .................................................................... 548 Gráfico 17 - Número de pessoas conhecidas pelo nome em função do grupo-alvo e do sexo dos participantes ......................................................................... 548
  • 23. Racismo e Etnicidade em Portugal 23 RESUMO Nesta investigação empírica analisámos os processos cognitivos subjacentes à discriminação social. No plano teórico, foi enfatizada a insuficiência dos modelos puramente cognitivos na explicação dos enviesamentos que ocorrem na percepção de grupos sociais e salientada a necessidade de ter em consideração o contexto histórico e social. Demos particular relevância ao papel do estatuto social relativo dos grupos e às suas consequências nas estratégias identitárias adoptadas pelos membros desses grupos. No plano metodológico, confrontámos diversos tipos de técnicas de recolha e de tratamento de dados. Foi precisamente o confronto das perspectivas dos diferentes grupos e a comparação dos resultados obtidos através das diversas metodologias que nos permitiu questionar a ‘universalidade’ de determinados enviesamentos cognitivos. Nos estudos exploratórios averiguámos quais os grupos raciais ou étnicos mais relevantes na sociedade portuguesa e de que forma estes são percepcionados, o que nos permitiu seleccionar um grupo minoritário de origem africana para os estudos seguintes: os angolanos. Os estudos sobre estereótipos demonstraram que a diferenciação entre os portugueses e os angolanos se opera essencialmente ao nível das dimensões subjacentes aos conteúdos associados a cada grupo e do seu significado tendo como referente a imagem ‘universal’ de pessoa adulta. Os estudos experimentais indicaram que os membros de ambos os grupos estruturam a informação a partir da pertença racial ou étnica das pessoas-estímulo. Globalmente, as pessoas-estímulo do grupo dominado foram mais homogeneizadas do que as pessoas-estímulo do grupo dominante, independentemente do grupo de pertença dos observadores. O estudo correlacional demonstrou que os portugueses não têm uma percepção diferenciada dos vários grupos nacionais africanos. O nível de discriminação foi mais alto relativamente a cada um dos grupos nacionais africanos do que relativamente aos ‘negros’ em geral e foi mais baixo nas medidas ‘directas’ do que nas medidas ‘indirectas’. Globalmente, os resultados dos diversos estudos demonstram que o racismo sofreu uma metamorfose nas suas formas de expressão. O racismo actual manifesta-se essencialmente pela negação do reconhecimento da singularidade do outro, ou seja, pelo tratamento dos membros das minorias não como ‘indivíduos’ mas simplesmente como ‘representantes’ de uma categoria homogénea. Este processo manifesta-se num tratamento mais automático da informação relativamente a estes grupos, isto é, mais baseado nos estereótipos sociais. Os membros das minorias tornam-se ‘invisíveis’ enquanto pessoas, mas extremamente ‘visíveis’ enquanto grupo.
  • 24. Racismo e Etnicidade em Portugal 24 ABSTRACT The present research focuses on cognitive processes underlying social discrimination. At the theoretical level, the thesis emphasizes the insufficiency of purely cognitive models for explaining the biases involved in the perception of social groups and highlights the need to account for historical and social contexts. The role of the groups’ relative social status and their impact on the identity strategies chosen by the groups’ members were the object of special attention. At the methodological level, various types of techniques for data gathering and data analysis were confronted. The comparison of, on the one hand, the perspectives of different groups and, on the other hand, the results achieved by different methodologies raised questions about the ‘universal’ nature of certain cognitive biases. In exploratory studies we have identified the most relevant racial or ethnic groups in the Portuguese society and the ways in which such groups are perceived. This led to the selection of a minority group of African origin – the Angolans – for the subsequent studies. Our studies on stereotypes showed that differentiation between Portuguese and Angolans operates essentially at the level of underlying dimensions of the contents associated to each group and their meaning, having as a referent the ‘universal’ image of the adult person. Experimental studies suggested that the members of both groups structured information on the basis of the racial or ethnic membership of the target-persons. In general, the target-persons of the dominated group were more homogenized that the target-persons of the dominant group, apart from the observers’ own group. A correlational study demonstrated that the Portuguese do not have a differential perception of the various national African groups. The level of discrimination was higher regarding each of the national African groups than regarding ‘blacks’ in general. Such level was lower in ‘direct’ measures than in ‘indirect’ measures. Taken globally, the results of the various studies demonstrate that racism underwent a metamorphosis in its forms of expression. Present-day racism essentially involves refusing to recognize the singularity of the ‘Other’. In other words, racism is expressed in the treatment of members of minorities as ‘representatives’ of a homogeneous category rather than as ‘individuals’. This is reflected on a more automatic processing of information relative to those groups, i.e., more stereotype- based. Members of minorities become ‘invisible’ as persons, but extremely ‘visible’ as a group.
  • 26. Racismo e Etnicidade em Portugal 26 Este trabalho insere-se num percurso académico e científico que se iniciou com a dissertação de mestrado, intitulada Assimetrias na percepção dos outros: para uma abordagem psicossociológica do processamento da informação sobre grupos sociais. Numa linha de continuidade com a referida dissertação, analisamos o processamento de informação sobre grupos sociais. No trabalho anterior analisámos uma problemática específica - a percepção da variabilidade grupal. Na presente dissertação essa mesma problemática é enquadrada no âmbito mais geral dos fenómenos de discriminação social, racialização e etnicização. Neste sentido, analisamos o processo de homogeneização das minorias não só através do processamento da informação, mas também ao nível das crenças, das atitudes e dos estereótipos. A escolha deste tema deve-se, por um lado, à sua pertinência no âmbito dos debates teóricos actuais em psicologia social e, por outro, à relevância social desta problemática. Este trabalho insere-se no quadro das mudanças recentes que têm ocorrido na sociedade portuguesa. Tradicionalmente considerado um país de emigração, Portugal tornou-se recentemente também um país de imigração (Machado, 1999), o que contribuiu para uma maior heterogeneidade da população portuguesa. A questão da imigração tem vindo a ganhar grande visibilidade pública, ocupando um lugar de destaque na agenda dos meios de comunicação social. Nos anos noventa assistiu-se a um despertar das elites políticas portuguesas para a problemática do racismo e da etnicidade (e.g., Bacelar de Vasconcelos, 1998; Leitão, 1998) e também a uma explosão de estudos sobre estas questões no seio das ciências sociais (e.g., Albuquerque, 2002; Contador, 1998; Khan, 1998; Machado, 2000; Miranda, 2001; Vala, 1999). Assim, este trabalho insere-se claramente num ciclo histórico que conduziu, em Portugal, à grande relevância da problemática da discriminação social na opinião pública, no meio político e no meio científico. Diversos autores consideram o racismo uma das questões mais delicadas e controversas da agenda contemporânea (Fernandes, 1998; Jorge, 1998; Machado, 2000; Pina-Cabral, 1998; Silva, 2000). A compreensão dos fenómenos de discriminação social em larga escala, e dos processos identitários e comunicativos que lhe estão subjacentes, exige uma abordagem interdisciplinar (Alves, 1999; Chow, Wilkinson e
  • 27. Introdução geral 27 Zinn, 1996; Donald e Rattansi, 1992/1997; Essed, 1991; Fenton, 1999; Martins, 1996, 2002; Sampson, 1999). Neste trabalho, sem negligenciar os contributos de outras disciplinas como a Antropologia, a História e a Sociologia, pretendemos evidenciar o contributo da Psicologia Social para a compreensão destes fenómenos. Damos especial relevo aos processos cognitivos subjacentes à discriminação social (Allport, 1954/1979; Brown, 1995; Tajfel, 1982) e analisamos de que forma esses processos cognitivos são influenciados pelas ideologias dominantes (Deschamps, 1982a; Doise, 1976/1984; Lorenzi-Cioldi, 1988), ideologias essas que definem o lugar e o papel que os membros de diferentes grupos ocupam na sociedade e a margem de liberdade desses grupos na negociação das identidades (Amâncio, 1994; Bourdieu, 1979; De Rudder, Poiret e Vourc’h, 2000; Guillaumin, 1972; Worchel, Morales, Paéz e Deschamps, 1998). No plano teórico, o nosso trabalho parte das contribuições de duas grandes áreas da psicologia social: a ‘cognição social’ e as ‘relações intergrupais’. A primeira das perspectivas centra-se, sobretudo, no processo de categorização social e nos seus efeitos na selecção, tratamento e recuperação da informação social, enquanto que a segunda, não subestimando o papel da categorização social enquanto processo organizador da realidade, tem em conta o contexto e a natureza das relações intergrupais. Como refere Brewer (1994), estas duas grandes correntes na psicologia social têm-se desenvolvido separadamente como ‘duas solidões’, com pouco em comum tanto a nível teórico como a nível empírico. Nos últimos anos, alguns autores têm salientado a ‘urgência’ da conciliação entre as duas correntes (e.g., Brewer, 1994; Bourhis e Leyens, 1994) com vista a uma análise integrada das percepções e das relações intergrupais. A conciliação destas duas perspectivas apresenta o interessante desafio da articulação de níveis de análise (Doise, 1982, 1984) no estudo dos fenómenos de discriminação social em larga escala. Doise distingue quatro níveis de análise nos trabalhos dos psicólogos sociais. No nível intra-individual estão incluídos os modelos que descrevem o modo como os indivíduos organizam a sua percepção, avaliação e comportamento em relação ao meio social em que se inserem. A interacção entre o indivíduo e ambiente social é negligenciada nestes modelos - são os mecanismos que, ao nível do indivíduo, lhe permitem organizar as suas experiências que constituem o seu objecto de análise. No nível inter-individual ou situacional encontram-se os modelos que descrevem o modo como os indivíduos interagem numa dada situação, não tomando em consideração as diferentes posições que estes possam ocupar fora
  • 28. Racismo e Etnicidade em Portugal 28 dessa situação, isto é, as posições dos indivíduos são consideradas como intermutáveis. O nível posicional integra os modelos que recorrem explicitamente às diferentes posições ou estatutos sociais que os indivíduos ocupam previamente a qualquer interacção para explicar as diferentes modalidades de interacção. Finalmente, o nível ideológico integra os modelos que descrevem o modo como as representações e os comportamentos dos indivíduos, numa dada situação, são modelados pelos sistemas de valores, crenças e ideologias veiculados pela sociedade. No que respeita ao estudo do processamento da informação sobre os grupos sociais, a pesquisa desenvolvida no âmbito da perspectiva socio-cognitiva (e.g., Judd e Park, 1988; Linville, Salovey e Fischer, 1986) tem-se focalizado preferencialmente nos níveis de análise intra-individual (os processos cognitivos) e situacional (a consideração das posições relativas observador/observado em termos de endogrupo/exogrupo, mas em que as pertenças grupais são consideradas como intermutáveis). Em contrapartida, a perspectiva psicossociológica (e.g., Deschamps, 1982a; Doise, 1976/1984; Lorenzi- Cioldi, 1988) toma em consideração a influência do estatuto relativo dos grupos em presença, ou seja, faz intervir o nível ideológico na ancoragem da definição das posições relativas dos grupos em sistemas simbólicos. Um dos principais objectivos da investigação empírica que efectuámos foi, precisamente, uma articulação entre níveis de análise no estudo das relações intergrupais, na tentativa de alcançar uma compreensão mais completa desta problemática, uma vez que centrámos o nosso estudo no processamento da informação relativa a membros de grupos cujas posições relativas não são intermutáveis e relativamente aos quais existem ideologias largamente difundidas. A pesquisa empírica foi efectuada junto de uma população jovem. No conjunto dos estudos participaram 1871 estudantes do ensino superior público de várias regiões do país, tendo a recolha de dados decorrido de Outubro de 1997 a Fevereiro de 2001. O objectivo que atravessa os vários estudos efectuados é o aprofundar o conhecimento dos processos cognitivos subjacentes à discriminação social, baseada na cor da pele, sem aspirar à generalização dos resultados à população portuguesa em geral. Nesta investigação participaram estudantes portugueses e estudantes angolanos residentes em Portugal, o que nos permitiu averiguar a perspectiva dos membros de grupos que ocupam posições assimétricas na estrutura da sociedade portuguesa: o grupo maioritário e um grupo minoritário. Este aspecto difere da maior parte da pesquisa em psicologia social, que tem sido conduzida sem ter em consideração as posições relativas
  • 29. Introdução geral 29 dos grupos, para além de ter sistematicamente privilegiado a perspectiva do grupo dominante, isto é, do agente da discriminação, ignorando a perspectiva do alvo da discriminação, como tem sido recentemente salientado por alguns autores (Celious e Oyserman, 2001; Fiske e Leyens, 1997; Sidanius e Pratto, 1999; Swim e Stangor, 1998). A maior parte da investigação sobre esta temática tem sido efectuada utilizando medidas ‘directas’, isto é, medidas com grande validade facial em que os participantes facilmente se podem aperceber dos objectivos da pesquisa e controlar as suas respostas no sentido do que é ‘socialmente correcto’. Pareceu-nos, no entanto, que no estudo da discriminação racial ou étnica, em que as questões de ordem normativa têm um peso significativo se tornava particularmente relevante a utilização de medidas ‘indirectas’ ou ‘não-obstrusivas’, de modo a ter acesso aos processos mais automáticos de processamento de informação sobre os grupos. Tentamos assim contribuir para um conhecimento mais aprofundado desta problemática através da análise conjugada dos dois tipos de medidas que, na maior parte dos casos, são estudadas separadamente. Este trabalho é constituído por duas partes. Na primeira procede-se à contextualização da problemática desta investigação e ao enquadramento teórico e metodológico. Na segunda parte apresentamos os objectivos, as hipóteses, o método, os resultados e a respectiva discussão dos diversos estudos empíricos realizados. Cada uma das partes é constituída por três capítulos que passamos a apresentar. No capítulo 1 – Racismo, racialização e etnicização das minorias – é feito o enquadramento da problemática da presente investigação. Na primeira das quatro secções que compõem este capítulo são lançadas diversas questões sobre a forma como se opera a diferenciação entre nós e os outros e sobre as consequências desta diferenciação. É também nesta secção que se procede a uma primeira delimitação de diversos conceitos relativos a diferentes formas de discriminação social: etnocentrismo, racismo, nacionalismo e xenofobia. Na segunda secção discute-se a problemática do racismo, racialização e etnicização das minorias no contexto histórico, sócio-político e científico internacional. Para esta breve contextualização considera-se a evolução da noção de ‘raça’ em dois momentos históricos distintos: um primeiro período que vai desde a génese do ‘racismo científico’ no século XVIII até meados dos século XX; e um segundo período que se inicia após a II Guerra Mundial e que marca uma viragem no posicionamento político e científico face à ‘raça’ e ao ‘racismo’. Na terceira secção
  • 30. Racismo e Etnicidade em Portugal 30 essa mesma problemática é contextualizada no Portugal pré e pós-25 de Abril de 1974. No que respeita ao primeiro período analisa-se a relação entre o colonialismo, a identidade nacional e a ideologia racialista. No que se refere ao segundo período procede-se a uma breve caracterização da evolução do fenómeno imigratório desde a descolonização até ao final do século XX e faz-se uma revisão das questões raciais e étnicas no meio social, político e científico na década de noventa. Na última secção são discutidas as ambiguidades conceptuais que têm caracterizado esta temática e são propostas algumas definições. No capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica – efectuamos uma revisão de literatura sobre uma área de estudos no seio da psicologia social que é designada por ‘relações intergrupais’, apresentando os modelos teóricos e as investigações empíricas que consideramos mais relevantes para a fundamentação teórica do nosso trabalho. Neste capítulo, cuja análise é centrada nos processos de diferenciação intra e intergrupais e na forma como estes processos são afectados pela posição relativa dos grupos, são discutidos alguns dos conceitos fundamentais do presente trabalho, tais como: categorização social, identidade social, comparação social e estatuto social. Este segundo capítulo é constituído por três secções. Na primeira, fazemos referência a algumas das abordagens clássicas sobre relações intergrupais e discriminação social no âmbito da psicologia social. Na segunda secção apresentamos os modelos da escola de Bristol, dando especial destaque à teoria da identidade social de Henri Tajfel, uma vez que esta serviu de base a todos os estudos posteriores nesta área, para além de ser aquela que pela primeira vez articulou os conceitos fundamentais sobre os quais se alicerça o nosso estudo. Efectuamos ainda uma apresentação da teoria da auto-categorização de John Turner e discutimos algumas das limitações dos modelos referidos. Na última secção apresentamos os modelos desenvolvidos no âmbito da escola de Genebra e seus desenvolvimentos recentes, salientando o esforço de integração de várias contribuições anteriores e articulação de níveis de análise empreendido pelos autores, nomeadamente, Willem Doise, Jean- Claude Deschamps, Fabio Lorenzi-Cioldi e Lígia Amâncio, o que permitiu ultrapassar algumas das limitações apontadas aos modelos anteriores. Foi no âmbito deste quadro teórico que se procedeu à fundamentação das hipóteses gerais desta investigação.
  • 31. Introdução geral 31 No capítulo 3 - Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal - debruçamo-nos sobre a área da ‘cognição social’, isto é, sobre a forma como as pessoas processam a informação social, mais precisamente a informação sobre grupos sociais, dando especial relevo aos estudos que mais contribuíram para a fundamentação teórica e metodológica da nossa investigação. Este capítulo é constituído por quatro secções. Na primeira apresentamos de forma concisa esta área de estudo e referimos alguns dos debates teóricos sobre a percepção de pessoas e de grupos, o que nos conduzirá a uma curta explicitação das semelhanças e das diferenças entre a perspectiva da cognição social e a das representações sociais. A segunda secção é dedicada ao estudo dos estereótipos sociais, desde a obra pioneira de Walter Lippmann até aos dias de hoje. Ao longo da apresentação faremos referência ao conteúdo dos estereótipos, à conotação avaliativa desse conteúdo, e ao seu significado tendo como referência um quadro de valores ‘universal’. Na terceira secção apresentamos a pesquisa sobre os efeitos da categorização e sobre a percepção da variabilidade grupal e fazemos referência aos modelos cognitivos da representação categorial. Finalmente, discutimos a insuficiência dos modelos cognitivos e salientamos o carácter assimétrico dos enviesamentos observados na percepção dos grupos em função do seu estatuto relativo, apresentando brevemente alguns dos primeiros estudos que questionaram o carácter simétrico e universal do efeito de homogeneidade do exogrupo. Na última secção são apresentadas as metodologias que têm sido utilizadas no estudo dos estereótipos e da percepção da variabilidade grupal e é discutida a necessidade da utilização de diferentes tipos de medidas. No capítulo 4 – Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos – são apresentados e discutidos os resultados referentes a cinco estudos exploratórios. O primeiro estudo teve como objectivos específicos: investigar a noção de ‘grupo étnico’ dos jovens portugueses e em que medida esta difere ou não da noção de ‘raça’; averiguar quais os ‘grupos étnicos’ mais significativos para os jovens portugueses e; verificar em que medida os jovens portugueses se consideram eles próprios membros de um ‘grupo étnico’. Os grupos mais mencionados pelos participantes neste estudo foram seleccionados para o estudo seguinte. O segundo estudo exploratório teve como objectivo averiguar o estatuto social percebido e o estatuto numérico percebido de catorze ‘grupos étnicos’ na sociedade portuguesa. Desses catorze grupos, onze foram categorizados em função da origem
  • 32. Racismo e Etnicidade em Portugal 32 nacional ou geográfica (angolanos, brasileiros, cabo-verdianos, ciganos, guineenses, indianos, macaenses, moçambicanos, portugueses, são-tomenses, e timorenses) e três foram categorizados em função da cor da pele (brancos, negros e mestiços). Este estudo foi realizado em diferentes zonas do país (Braga, Bragança, Porto, Lisboa, Évora e Faro), a fim de identificar regularidades nos resultados. Outro dos objectivos deste estudo era seleccionar um grupo minoritário na sociedade portuguesa que também se distinguisse por características físicas. Os resultados permitiram verificar que, há excepção dos ciganos que são colocados numa posição inferior, os grupos oriundos das ex-colónias africanas constituem os grupos de menor estatuto social percebido na sociedade portuguesa. Destes cinco grupos seleccionámos os angolanos visto que, sendo o segundo grupo africano em termos numéricos em Portugal, são um grupo de imigração mais recente e um dos menos estudados. Uma vez seleccionados os dois grupos-alvo para os estudos experimentais – os portugueses (grupo maioritário) e os angolanos (grupo minoritário) – foram realizados três estudos exploratórios, com participantes de ambos os grupos, com o objectivo de analisar os estereótipos que os estudantes portugueses e os estudantes angolanos a residir em Portugal têm do seu próprio grupo (auto-estereótipo) e do grupo dos outros (hetero-estereótipo). Em primeiro lugar analisámos os estereótipos dos ‘angolanos’ e dos ‘portugueses’, salientando as dimensões comuns e as dimensões diferenciadoras e o nível de diversidade dos conteúdos associados a cada grupo (Estudo 3a). Em segundo lugar averiguámos a avaliação dos conteúdos descritivos associados a cada grupo a partir da simples opinião pessoal de cada participante (Estudo 3b). E, finalmente, analisámos o significado simbólico desses conteúdos, tendo como referente a representação ‘universal’ de pessoa adulta (Estudo 3c). Com base nos resultados destes estudos foram seleccionados os traços - classificados em função do seu carácter estereotípico e em função da sua valência avaliativa – que foram utilizados para construir os materiais-estímulo dos dois estudos experimentais. No capítulo 5 – Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação – são apresentados e discutidos os resultados de dois estudos experimentais, ambos realizados com estudantes portugueses e angolanos a residir em Portugal. O principal objectivo destes estudos experimentais foi a análise do papel que o estatuto relativo dos grupos tem na percepção da homogeneidade grupal. No Estudo 4
  • 33. Introdução geral 33 as pessoas-estímulo eram categorizadas segundo a nacionalidade (angolanos vs. portugueses) enquanto que no Estudo 5 as pessoas-estímulo eram categorizadas em função da cor da pele (brancos vs. negros) ou estavam disponíveis ambas as categorizações (nacional e racial). Nestas experiências analisámos os efeitos de categorização, os efeitos de homogeneidade, os efeitos de favoritismo pelo grupo de pertença, a relação entre estes fenómenos e em que medida eles são mediados pelo auto-conceito, pelos níveis de identificação com o grupo de pertença e o grupo dos outros e pelo nível de contacto entre os grupos. Prosseguimos ainda com objectivos de ordem metodológica, relativos à comparação de diferentes tipos de medidas, umas mais explícitas ou ‘directas’ e outras mais implícitas ou ‘indirectas’. No Estudo 5 analisámos ainda a relação entre as atitudes ou orientações racistas e os processos perceptivos. No capítulo 6 - Estudo correlacional: Racismo e variabilidade grupal percebida - apresentamos um estudo realizado com o objectivo de comparar as percepções que os portugueses têm dos vários grupos nacionais de origem africana - angolanos, cabo- verdianos, guineenses, moçambicanos, são-tomenses – e em relação aos imigrantes ‘negros’ no geral. A utilização destes seis grupos-alvo permitiu-nos, por um lado, a comparação das respostas dos participantes em função dos diferentes grupos nacionais africanos e, por outro, a comparação das respostas dos participantes em função do tipo de categorização: nacional ou racial. O segundo objectivo deste estudo foi averiguar quais as variáveis preditoras da variabilidade grupal percebida. Nesse sentido construímos um questionário com várias medidas, a maior parte já presentes no estudo anterior: o racismo subtil e o racismo flagrante, a tolerância à diferença, o contacto entre os grupos e a identificação com o endogrupo. As seis versões deste questionário (cada uma correspondendo a um grupo-alvo) foram aplicadas a estudantes portugueses nas mesmas seis cidades onde foi realizado o Estudo 2. Por último, apresentamos as conclusões gerais desta investigação e fazemos referência a algumas das linhas de pesquisa que o nosso trabalho permitirá explorar no futuro.
  • 37. CAPÍTULO 1 - RACISMO, RACIALIZAÇÃO E ETNICIZAÇÃO DAS MINORIAS
  • 38. Racismo e Etnicidade em Portugal 38 1.1 Introdução Este capítulo tem por objectivo contextualizar o nosso objecto de estudo. Assim iremos referir brevemente o velho debate sobre a influência da natureza e da cultura na diferenciação entre grupos, para além de abordar as especificidades históricas e sociológicas da sociedade portuguesa que contribuem para a actualidade da questão do racismo. Embora esta questão não seja centrada na psicologia social, os contributos desta disciplina para o referido debate e para a problematização do racismo não deixarão de ser assinalados. Os contributos específicos da disciplina para o enquadramento teórico e metodológico do trabalho de investigação aqui apresentado serão aprofundados nos capítulos seguintes. Neste capítulo vamos abordar um primeiro conjunto de questões: Como se estabelece a diferenciação entre grupos humanos? Quais as características que estão na base dessa diferenciação? Quais são as consequências dessa diferenciação? Quem define as fronteiras entre os grupos? Com que objectivos? Quão definitivas são essas fronteiras? Quão permeáveis são as essas fronteiras? Nos capítulos subsequentes vamos aprofundar estas questões e analisar detalhadamente as assimetrias envolvidas nestes processos: Os processos de diferenciação são recíprocos? Existe consenso entre os grupos quanto às respectivas definições? Quais são as implicações das fronteiras para uns e para outros? Essas fronteiras são igualmente permeáveis para uns e para outros? Assim, este primeiro capítulo da Parte I está subdividido em quatro secções. Na primeira secção são lançadas diversas questões sobre a forma como se opera a diferenciação entre nós e os outros e sobre as consequências desta diferenciação para uns e para outros, sendo efectuada uma primeira delimitação de diversos conceitos relativos a diferentes formas de discriminação social: etnocentrismo, racismo, nacionalismo, e xenofobia. A segunda secção é dedicada à problemática do racismo, racialização e etnicização das minorias no contexto histórico, sócio-político e científico internacional. Nesta breve contextualização teremos em conta a evolução da noção de ‘raça’ em dois momentos históricos distintos: um primeiro período que vai desde a génese do ‘racismo
  • 39. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 39 científico’ no século XVIII até meados dos século XX; e um segundo período que se inicia após a II Guerra Mundial, que marca uma viragem no posicionamento político e científico face à ‘raça’ e ao ‘racismo’. Na secção seguinte procede-se à contextualização dessa mesma problemática em Portugal. Ao efectuarmos esta separação não partimos do pressuposto de que o racismo se manifesta em Portugal de forma distinta dos outros países europeus. De facto, os recentes estudos sobre racismo efectuados em Portugal demonstram resultados idênticos, tanto em natureza como em grau, aos obtidos noutros países da União Europeia. Tal separação deve-se à necessidade de analisar o contexto português no que ele tem de específico, já que a nossa recolha de dados empíricos foi efectuada em Portugal. Numa análise que não se pretende exaustiva mas apenas ilustrativa, traçamos um breve resumo da ‘ideologia racista’ que se desenvolveu em Portugal, sobretudo a partir do início do século XIX até ao 25 de Abril de 1974, com especial destaque ao período do Estado Novo por ser considerado por diversos autores o período mais marcante da ideologia racista em Portugal (Alexandre, 1999; Castelo, 1998; Rosas, 1994). Seguimos a evolução das concepções em torno deste tema no meio político e científico portugueses, socorrendo-nos neste percurso de trabalhos efectuados por historiadores, sociólogos e antropólogos. Pontualmente, fazemos referência a outras fontes, nomeadamente a literatura africana. Na última secção, procedemos à discussão das ambiguidades conceptuais que têm caracterizado esta temática e propomos algumas definições. Terminamos o capítulo com a delimitação do objecto de estudo da nossa pesquisa empírica, bem como uma primeira enunciação dos seus objectivos gerais.
  • 40. Racismo e Etnicidade em Portugal 40 1.2 Racismo e etnocentrismo: a actualidade de uma velha questão “Men are similar to one another by nature. They diverge gradually as a result of different customs.” Confúcio (551-479 a.c.) “De acordo com as leis da natureza, há homens feitos para a liberdade e outros para a escravidão, aos quais por justiça e por interesse, é conveniente a sujeição.” Aristóteles (384-322 a.c.) A problemática da diferença é uma constante na história da humanidade. Em todas as sociedades humanas se estabelece a diferenciação entre nós e os outros, diferenciação essa inerente à própria definição de uns e outros. No entanto, a forma como se opera essa diferenciação e as suas consequências variam de sociedade em sociedade, e têm conhecido consideráveis mutações em diferentes momentos históricos. Confúcio explica as desigualdades humanas a partir da cultura, Aristóteles situa- as no âmbito da natureza. A discussão sobre a influência relativa da cultura e da natureza no ser humano constituiu uma das mais acesas problemáticas científicas do século XX: paleontólogos, biólogos, neurologistas, psicólogos, antropólogos, sociólogos, historiadores, filósofos, políticos, discutiram amplamente esta questão. A partir do século XVIII até meados do século XX as desigualdades humanas foram essencialmente explicadas a partir da natureza, sendo essa natureza considerada imutável e facilmente identificável a partir de características fenotípicas (cor da pele, forma dos lábios, dos olhos ou do nariz, etc.). O genocídio de milhões de judeus e ciganos durante a II Guerra Mundial levou cientistas e políticos a problematizar a noção de ‘raça’ e a cultura ganhou terreno. Os grupos humanos que até aí eram categorizados racialmente passaram a designar-se por ‘grupos étnicos’ para enfatizar as características culturais e não as hereditárias. Mas,
  • 41. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 41 como veremos, a um processo de racialização seguiu-se um processo de etnicização: a cultura passou também ela a ser percebida como algo estático e absoluto. A distinção entre nós e os outros implica o reconhecimento de uma diferença e essa diferença nunca é neutra: pode provocar repulsa, receio, inquietação ou atracção (Memmi, 1993; Taguieff, 1997; Wieviorka, 1992/1995). A diferenciação baseia-se em características reais ou imaginárias, e as características atribuídas a determinado grupo são geralmente generalizadas a todos os seus membros e consideradas imutáveis. No entanto, essas mesmas características são constantemente reinventadas e reinterpretadas em função do momento histórico e das normas sociais (Memmi, 1993; Machado, 2000; Taguieff, 1997). Através de um processo de ‘alquimia moral’ a sociedade “transforma facilmente a virtude em vício e o vício em virtude, conforme as necessidades de ocasião” (Merton, 1949/1968, p.522). Cada sociedade cria os seus ‘bodes expiatórios’ (Dollard, Doob, Miller, Mower, e Sears, 1939), agarrando-se ao que for preciso para justificar a sua exclusão social. No ensaio Réflexions sur la question juive, Sartre discute esta problemática salientando que “si le Juif n’existait pas, l’antisémite l’inventerait” (1954/2001, p.14). Trata-se de um processo de diferenciação simbólica que se traduz na ‘desumanização’ do outro, já que os membros desse grupo não são percebidos enquanto pessoas, com a sua individualidade e a sua “singularidade subjectiva”, mas enquanto representantes indiferenciados do grupo (Amâncio, 1994; Lorenzi-Cioldi, 1988; Tajfel, 1981/1983). Neste sentido os outros tornam-se um outro indiferenciado, um verdadeiro alter. A exclusão simbólica dos outros retira-lhes o estatuto de sujeito e impõe-lhes um destino comum (Amâncio, 1998; Guillaumin, 1972; Lewin, 1948/1997). Como a diferenciação nós/outros não é neutra, a ela está associada o conceito de discriminação. Em psicologia social, o conceito de discriminação é geralmente utilizado apenas para referir comportamentos ou orientações comportamentais. Neste trabalho, faremos uma utilização menos restritiva do conceito, englobando aspectos comportamentais, mas também cognitivos e emocionais. O termo discriminação é utilizado para referir percepções, avaliações ou comportamentos que resultam numa desvantagem para o grupo-alvo, isto é, que prejudicam o outro. Neste sentido, quando usamos o termo discriminação estamos a referir-nos à discriminação negativa.
  • 42. Racismo e Etnicidade em Portugal 42 No entanto, o termo discriminação pode assumir também uma conotação positiva, quando é utilizado para designar acções que resultam numa vantagem para o grupo- alvo: discriminação positiva ou acção afirmativa. Por exemplo, nos Estados Unidos da América (EUA) desde 1964 tem vigorado uma política que estimula as instituições sociais e as organizações empregadoras a recrutar membros de grupos minoritários que tenham sofrido discriminação no passado, isto é, trata-se de uma medida política destinada a contrabalançar as desigualdades produzidas socialmente (Kerstein, 1996). Apesar das políticas de discriminação positiva terem como objectivo proporcionar igualdade de oportunidades, alguns autores consideram que estas são causadoras de desigualdades ainda mais profundas na sociedade, uma vez que assentam num tratamento desigual que, em última instância, é prejudicial para as próprias minorias (Sowell, 1990; citado por Miranda, 2001). Associado ao conceito de discriminação surgem outros, em função do grupo-alvo e do tipo de discriminação: etnocentrismo, racismo, nacionalismo, xenofobia, entre outros. Neste trabalho vamos focalizar-nos no racismo e etnocentrismo, e deixaremos por desenvolver as questões relacionadas com o nacionalismo e xenofobia, embora estejam intimamente relacionadas. Não podemos, no entanto, deixar de referir brevemente estes conceitos. No Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, o nacionalismo é definido como a “preferência por tudo o que é relativo à nação, por tudo o que é nacional. [...] Doutrina baseada no sentimento de exaltação das características consideradas essenciais da nação e que subordina a política interna do país ao desenvolvimento do poderio nacional” (Academia de Ciências de Lisboa, 2001, p.2561). A questão do nacionalismo e da identidade nacional está intimamente ligada com a questão racial, trata-se de uma questão extremamente complexa que não iremos aprofundar no âmbito deste trabalho. Na perspectiva de Billig (1996), a identidade nacional está intrinsecamente alicerçada na existência e partilha de um território, território esse que é delimitado por fronteiras. Billig (1996, p.183) realça a precisão com que as fronteiras são material e simbolicamente demarcadas, enfatizando os limites da sua extensão. No dicionário acima referido da Academia de Ciências de Lisboa (2001, p.3792) define-se xenofobia como a “aversão ou hostilidade manifestada a pessoas ou coisas estrangeiras”. Essa aversão ou antipatia pode ser traduzível em percepções ou comportamentos e tem sempre um denominador comum, manifesta-se em relação a indivíduos de uma nacionalidade diferente da do próprio, isto é, estrangeiros. Mas,
  • 43. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 43 como veremos, nem sempre é a nacionalidade que determina o facto do outro ser percebido como ‘estrangeiro’, por isso alguns autores preferem termos mais abrangentes como a heterofobia, que se refere à hostilidade manifestada em relação a indivíduos que são percebidos como diferentes. De notar, no entanto, que nalgumas das formas de racismo contemporâneo o desprezo pelos ‘inferiores’ dá lugar à obsessão do contacto com eles através do culto exacerbado do ‘exótico’, isto é, os novos discursos do racismo são menos heterófobos e mais heterófilos (Taguieff, 1987, 1997). A palavra racismo surge na língua francesa entre as duas Grandes Guerras, adquirindo maior significado depois do Holocausto. O conceito apresenta uma diversidade de conotações, sendo definido, num sentido restrito, como uma doutrina, dogma, ideologia ou conjunto de crenças, ou num sentido mais lato, envolvendo também o preconceito e os comportamentos discriminatórios. Apesar do carácter relativamente recente da palavra racismo, o facto é que este constitui um fenómeno antigo e de carácter largamento difundido, muito anterior à sua conceptualização (Taguieff, 1997). Alguns autores argumentam que no mundo clássico e medieval não havia ‘consciência racial’, uma vez que a cor da pele não determinava categorizações socialmente relevantes, isto é, as diferenças sociais não eram ‘biologizadas’ (Hannaford, 1996; citado por Cunha, 2000, p.202). Para outros, o Tratado de Política de Aristóteles representa uma das primeiras teorizações racistas, uma vez que o autor procurou legitimar uma ordem social baseada na escravatura referindo-se à natural inferioridade dos escravos (e.g., Taguieff, 1997). De facto, Aristóteles não faz qualquer referência à cor da pele no seu ensaio sobre a escravidão. Mas segundo alguns autores, terá sido precisamente porque os escravos não eram fisicamente distintos dos cidadãos que levou o autor a ensinar aos gregos uma maneira de os ver, isto é, de os diferenciar (Lippmann, 1922/1961, p.97). O seu comportamento submisso seria assim a prova irrefutável da sua escravidão natural. Embora o comportamento de obediência fosse o aspecto central da definição do escravo, Aristóteles não deixou de tecer algumas considerações sobre o corpo, que estão espelhadas em teorizações racialistas muito posteriores:
  • 44. Racismo e Etnicidade em Portugal 44 “Não é somente necessário, é também vantajoso que haja comando duma parte e obediência da outra; e todos os seres, desde o primeiro instante do seu nascimento, estão marcados pela natureza, uns para mandar, outros para obedecer [...]. O homem que, por natureza, não pertence a si próprio mas a outro, é, por natureza escravo: é um objecto de posse e um instrumento para agir separadamente e sob as ordens do seu patrão [...] Todos aqueles que nada têm de melhor para nos oferecer do que o uso dos seus corpos e dos seus membros estão condenados pela própria natureza à escravidão. Para eles é melhor servir do que ficar abandonados a si próprios. Numa palavra, é naturalmente escravo aquele que não tem alma nem meios para se decidir [...]. A natureza imprimiu a liberdade e a escravidão nos próprios hábitos corporais. ?Uns com? corpos robustos talhados para transportar fardos [...] e, pelo contrário, outros mais bem feitos mas mais delicados incapazes de tais tarefas, próprios somente para a actividade política [...]” (Aristóteles, s/d, p. 12-14). Isto remete-nos para outra questão: o racismo existe apenas quando são invocadas características físicas visíveis (cor da pele, formato do nariz, lábios, olhos) ou pode ser considerado como racista uma discriminação que invoca aspectos culturais? Este é actualmente um dos mais acesos debates, ao qual voltaremos mais adiante. Outra das questões em debate é a universalidade do racismo. Diversos investigadores consideram que os fenómenos racistas são omnipresentes na história da humanidade e que o ódio racial faria parte constituinte da natureza humana (e.g., Kovel, 1970). Na opinião de Taguieff (1997) esta perspectiva não distingue o racismo do etnocentrismo e da xenofobia. Para esses investigadores o etnocentrismo, enquanto fenómeno universal, estaria na origem do racismo, que assumiria manifestações específicas em determinados momentos históricos. Mas será o etnocentrismo um fenómeno universal? O conceito de etnocentrismo foi introduzido pelo sociólogo William Graham Sumner em 1906 no livro Folkways: A Study of the Sociological Importance of Usages, Manners, Customs, Mores, and Morals. Apoiado numa vasta documentação etnográfica das mais diversas proveniências (Papua Nova Guiné, China, Japão, França, Alemanha, EUA, Brasil, etc.), Sumner define etnocentrismo da seguinte forma: “a view of things in which one's group is the center of everything, and all others are scaled and rated with reference to it. Folkways correspond to it to cover both the
  • 45. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 45 inner and the outer relation. Each group nourishes its own pride and vanity, boasts itself superior, exalts its own divinities, and look with contempt on outsiders. Each group thinks its own folkways the only right ones, and if it observes that other groups have other folkways, these excite its scorn” (1906/1940, p.13). Sumner argumenta que o etnocentrismo é visível nas tradições populares dos mais diversos povos e com os mais diversos níveis de desenvolvimento. Na opinião do autor, essas tradições populares são destinadas a justificar, por um lado, as relações no interior do grupo (relações intragrupais) e, por outro, as relações com os outros grupos (relações intergrupais). Cada grupo cultiva o seu orgulho e vaidade próprias, exibe ritualmente a sua superioridade, exalta os seus próprios deuses e considera com desconfiança os ‘estrangeiros’. Cada grupo pensa que os seus próprios costumes e normas são as melhores, e vê-se como o único detentor da ‘verdade’ (Sumner, 1906/1940, p.29), o que faz olhar os outros com desdém e sentir-se superiores. A interdependência das relações intra e intergrupais está reflectida numa célebre frase do autor, infelizmente tão visível em conflitos actuais: “The exigencies of war with outsiders are what make peace inside. [...] Thus war and peace have reacted on each other and developed each other, one within the group, the other in the intergroup relation. [...] Loyalty to the group, sacrifice for it, hatred and contempt for outsiders, brotherhood within, warlikeness without – all grow together, common products of the same situation” (Sumner, 1906/1940, p.12). Na acepção de Sumner (1906/1940, p.12) o etnocentrismo é fenómeno universal (observável em todos os povos humanos) e global (englobando componentes cognitivas, afectivas, avaliativas ou normativas, e comportamentais) e assenta na distinção elementar entre o grupo de pertença (we-group ou in-group) e os outros grupos (others- group ou out-group)1 . 1 Os termos ingroup e outgroup usados na literatura anglo-saxónica foram inicialmente traduzidos por Lígia Amâncio na versão portuguesa do livro de Henry Tajfel (1981/1983) como ‘grupo de pertença’ e ‘grupo dos outros’. Posteriormente, na década de noventa, adoptaram-se as designações ‘endogrupo’ e ‘exogrupo’, de origem francesa, sendo essas as designações utilizadas no livro de referência Psicologia Social da Fundação Calouste Gulbenkian, organizado por Jorge Vala e Maria Benedicta Monteiro, razão pela qual adoptamos tal tradução. Em consonância, utilizaremos o prefixo endo para nos referirmos a aspectos relativos ao grupo de pertença (favoritismo endogrupal, identificação endogrupal, etc.) e o prefixo exo para nos referirmos a aspectos relativos ao grupo dos outros.
  • 46. Racismo e Etnicidade em Portugal 46 O etnocentrismo conduzia cada povo a exagerar, a intensificar os traços particulares dos seus costumes, que os distinguem dos outros povos. Esta centração sobre a diferença do endogrupo corresponderia ao mesmo tempo a uma sobrevalorização das suas qualidades exclusivas. Assim, a auto-referência face ao endogrupo implicaria necessariamente a desconfiança e a intolerância face aos outros grupos. Cada grupo se definiria a si mesmo como o único representante da humanidade, excluindo os outros, a elegeria o ‘nós’ como o ‘verdadeiro Homem’, por oposição ao ‘Outro’ que seria em certo grau ‘desumanizado’ (1906/1940, p.14); ideia que foi posteriormente desenvolvida por Lévi-Strauss, Tajfel, entre outros. Na acepção do autor, o etnocentrismo preenche uma função socialmente positiva: favorece os comportamentos altruístas no interior do grupo. No entanto, trata-se de um altruísmo limitado, já que os laços de simpatia e de solidariedade não passam as fronteiras do endogrupo2 . O conflito intergrupal é visto como uma resposta racional face a objectivos incompatíveis (aspecto que foi mais tarde desenvolvido no âmbito da perspectiva dos conflitos intergrupais realistas, Cf: Sherif e Sherif, 1953; Levine e Campbell, 1972). Diversos autores da psicologia social têm efectuado críticas à metodologia utilizada por Sumner e têm salientado as inconsistências de alguns dos seus pressupostos fundamentais, nomeadamente a universalidade do etnocentrismo e a correlação positiva entre a diferenciação intergrupal e a indiferenciação intragrupal, aspecto que retomaremos detalhadamente no segundo capítulo (e.g., LeVine e Campbell, 1972; Brewer, 1979). Num vasto estudo sobre o etnocentrismo Brewer (1979) demonstra que o favoritismo pelo grupo de pertença não se manifesta em todas as dimensões, mas apenas naquelas que são relevantes para o grupo em causa, aspecto que desenvolveremos mais adiante. Ao referir as diversas inconsistências observadas nos estudos sobre o etnocentrismo, a autora conclui: 2 Algumas teses no âmbito da sociobiologia vieram a extremar esta conceptualização, considerando que o etnocentrismo seria uma mera extensão do ‘espírito de família’. Nesta acepção, o etnocentrismo seria uma preferência pelos ‘parentes genéticos’, no sentido de assegurar o ‘sucesso reprodutivo’ e de preservar os genes do indivíduo, isto é, seria uma atitude retida por selecção natural (e.g., Dawkins, 1975; Wilson, 1978).
  • 47. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 47 “Perhaps the essence of ethnocentrism is this tendency to expect that the out-group will share the in-group’s definition of the conflict or distinction between them and willing to make comparisons in terms that favor the in-group” (1979, p.84). A expectativa de que o exogrupo ‘partilhe a mesma definição’ da realidade, definição essa que favorece o endogrupo nas dimensões que são mais valorizadas por este, constitui o âmago da questão. Embora não tenha desenvolvido esta ideia, Sumner implicitamente reconheceu os limites do etnocentrismo enquanto fenómeno universal: “Every emigrant is forced to change his mores. He looses the sustaining help of use and wont. He has to acquire a new outfit of it” (1906/1940, p.108). Na acepção do autor, quando um homem passa de uma classe social para outra, quando imigra, quando há relações de conquista entre povos ou escravatura, verifica-se uma mudança nos costumes e normas. Um dos grupos estabelece os padrões (grupo dominante) e os outros submetem-se a esses padrões (grupos ou classes inferiores), isto é, sempre que dois grupos estabelecem contacto há uma selecção dos costumes e normas que é destrutiva para alguns deles, o que está bem patente na afirmação seguinte: “One of the groups takes precedence and sets the standards. The inferior group or classes imitate the ways of the dominant group, and eradicate from their children the traditions of their own ancestors. [...] Thus, whenever two groups are brought into contact and contagion, there is, by syncretism, a selection of the folkways which are destructive to some of them” (Sumner, 1906/1940, p.116). Modificar as suas normas e representações significa aderir às normas e representações do outro grupo, isto é, interiorizar um sistema de valores não endocêntrico mas exocêntrico, porque definido pelo exogrupo. Entramos então no domínio da dominação simbólica: determinados grupos (dominantes) desenvolveram ideologias que lhes permitiram legitimar o tratamento ‘desumano’ dos outros grupos (dominados). Como veremos, o ‘Homem Branco’ nos últimos séculos tem efectuado uma acção sistemática para levar outros grupos a partilhar a sua ‘definição de realidade’, na qual ele representa a ‘universalidade’, enquanto os outros são remetidos para a ‘especificidade’ de determinado papel
  • 48. Racismo e Etnicidade em Portugal 48 (Amâncio, 1998; Chombart de Lauwe, 1983-1984; Deschamps, 1982a; Lorenzi-Cioldi, 1988). Ora, como tem sido demonstrado por inúmeros estudos na área da psicologia social, esse sistema pode implicar uma visão negativa do seu próprio endogrupo com efeitos nefastos para a auto-estima da pessoa (Lewin, 1948/1997; Phinney, 1990). As consequências sobre a auto-estima dependem da percepção da legitimidade da discriminação. Os membros dos grupos dominados podem interiorizar a sua inferioridade, tomando como legítima a posição dos grupos dominantes (Jost e Banaji, 1994). Em apoio desta perspectiva, podemos mencionar os estudos realizados nos EUA que demonstraram que as crianças negras, no sul segregacionista, manifestavam preferência pelas crianças brancas, rejeitando as negras (Clark e Clark, 1947). Frequentemente, os próprios alvos do racismo interiorizam a hierarquia que lhes é transmitida. Ervin Goffman (1959/1989) refere que as pessoas estigmatizadas tentam reduzir o peso do seu próprio estigma acusando outros de possuírem o mesmo estigma mas com mais intensidade, num sistema que denominou de ‘estratificação auto- destrutiva’ (e.g., Pina-Cabral e Lourenço, 1993). No entanto, quando os membros dos grupos dominados tomam consciência da arbitrariedade e ilegitimidade da discriminação, reivindicam uma identidade positiva e não sentem a sua auto-estima ameaçada pela pertença ao grupo (e.g., Khan, 1998), assunto que desenvolveremos no segundo capítulo. Mas, não deixa de ser paradoxal que mesmo quando envolvidos em lutas colectivas contra a discriminação (Négritude, Black Power, etc.), recorrem a auto-designações racializadas que coincidem, frequentemente, com as usadas nos discursos racistas (Machado, 2000, p.20), dando assim uma continuidade perversa ao que querem eliminar. Se o racismo partilha alguns aspectos com o etnocentrismo – a diferenciação face ao outro, diferenciação essa que é acompanhada por uma inferiorização do outro -, possui aspectos distintos tanto no grau com que a ‘desumanização’ do outro é operada cognitivamente como na forma como é mantida e reforçada socialmente. Na literatura sociológica é relativamente consensual que o racismo envolve três dimensões distintas: ideologia, preconceito e comportamento discriminatório (Machado, 2000, p.10). Nos próximos capítulos iremos abordar detalhadamente os aspectos cognitivos do preconceito e as dinâmicas da discriminação entre grupos humanos marcados por fortes assimetrias de estatuto. Neste capítulo iremos focalizar-nos na
  • 49. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 49 ideologia racista, enquanto sistema de crenças forjado na ciência com objectivos políticos claros: legitimar um sistema social com fortes desigualdades sociais que estabelecia claramente o lugar e o papel que os diferentes grupos humanos deveriam ocupar na sociedade, grupos esses definidos e reconhecidos a partir de características físicas que eram supostas traduzir as suas capacidades intelectuais e as suas aptidões. Ao longo da história, o racismo tem variado muito nos seus alvos (ciganos, judeus, negros, amarelos, ...), nos seus interesses (exploração de mão-de-obra, preservação da pureza da raça, preservação da identidade nacional...), nas crenças que o legitimam (irredutível inferioridade intelectual ou moral, perigosidade, incompatibilidade de culturas,...) e nos modos de actuação (exterminação, perseguição, expulsão, segregação, ou exclusão simbólica). É por isso extremamente difícil delimitar o conceito, sem cair em demasiadas restrições e sem o alargar demasiado (Machado, 2000; Taguieff, 1997). Miles (1989/1995) critica a “inflação conceptual” que tem caracterizado as investigações sobre racismo. Na mesma linha de ideias, Taguieff (1997, p.9) critica o que ele designa como “définition ultralarge du racisme” porque torna difícil estabelecer as fronteiras com outros conceitos como a xenofobia e o tribalismo. No entanto, como refere Machado (2000) se restringirmos demasiado a definição de racismo, arriscamo- nos a não estar atentos nem às metamorfoses ideológicas nem à diversidade dos novos contextos sociopolíticos. Se é verdade que o racismo reactiva certas características do etnocentrismo não se poderá reduzir a estas. Como refere Taguieff (1997), algumas das características do racismo têm uma data e um local de nascimento: um sistema de dominação simbólica cuja emergência se deu na Europa e que é paralela ao estabelecimento do colonialismo europeu. Assim, estamos no plano do racismo, enquanto ideologia fabricada num determinado local – Europa – numa determinada época – na modernidade recente (fim do século XVIII até meados do século XX) – com um determinado objectivo – legitimar o colonialismo, a escravatura e o tráfico de escravos, invocando a sua animalidade (Taguieff, 1997; Wieviorka, 1998) A grande maioria dos historiadores considera que o racismo é moderno, situando seu nascimento nas proximidades do século XVIII, na altura em que começou a ser
  • 50. Racismo e Etnicidade em Portugal 50 elaborado o projecto de uma ciência moderna e em que se iniciou uma reflexão científica sobre a espécie humana que levou ao grande desenvolvimento da antropologia física (Wieviorka, 1992/1995, p.9). O ‘racismo científico’ teve o seu auge no século XIX, e embora no início do século XX já se ouvissem vozes críticas no seio das novas ciências sociais emergentes (por exemplo, Sumner, 1906/1940; Lippmann, 1922/1961), só na segunda metade do século XX, depois do genocídio de milhões de judeus e ciganos em nome da ‘pureza racial’, este sistema de crenças viria a ser rigorosamente desmontado e considerado ‘pseudo-científico’ (UNESCO, 1960/1973). Mas como veremos, o fim do ‘racismo científico’ não significou o fim do racismo na sociedade. Este transformou-se, vestiu novas roupagens e diversificou-se, o que levou alguns autores a falar de ‘racismos’ e não de ‘racismo’ para salientar a multiplicidade de manifestações. Nos últimos anos tem-se também discutido a questão da unicidade do racismo. Perante a diversidade de doutrinas e de práticas racistas, assim como a sua interferência com uma multiplicidade de fenómenos sociais e históricos, alguns autores preferem falar de racismos e não de racismo (e.g., Pettigrew e Meertens, 1995; Vala, 1999). Apesar da ideologia racista ter sido desenvolvida de forma sistemática na sociedade ocidental, não podemos afirmar que seja um problema exclusivo do mundo ocidental, já que mesmo depois do fim do colonialismo, esta tem continuado a ser difundida através dos media, contribuindo dessa forma para a globalização do racismo (e.g., van Dijk, 1991; Hecht, 1998). Como refere Taguieff: “Invention occidental, le racisme comme ideólogie et ensemble de pratiques sociopolitiques s’est ensuite universalisé. Ses schémas constitutifs on été diffusés partout dans le monde par l’impéralisme colonial, le système esclavagiste et le nacionalisme, et, plus recentement, à travers la banalisation des utopies eugénistes et ethnicistes – ‘purifier’ la race, défendre ou réaliser la ‘purité’ d’une origine ethnique ou culturelle” (1997, p. 9).
  • 51. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 51 1.3 Contexto histórico-político, Ciência e Racismo 1.3.1 O racismo na ciência e no senso comum “O carácter singular do Africano é difícil de entender, porque temos que renunciar àquilo que está implícito em todos nós, o conceito de Universalidade.” George W. F. Hegel, 1822 A noção de ‘raça’ tem, em relação a outras maneiras de classificar grupos humanos, a especificidade de estabelecer uma ligação directa entre características físicas visíveis (fenótipo) e características profundas (genótipo), explicativas das diferentes aptidões e capacidades dos indivíduos. As classificações raciais invocam “a natureza como registo fixo, dado e inelutável”, daí decorrendo o seu peso e dureza (Cunha, 2000, p.123). Como veremos nesta secção, as classificações raciais serviram de alicerce à discriminação intencional e sistemática de determinados grupos humanos, durante pelo menos dois séculos. As várias teorias da raciologia clássica tinham em comum uma perspectiva sobre as ‘raças’ hierarquizadora e desigualitária. Como já referimos, a popularidade que no século XIX tais teorias alcançaram nos Estados Unidos e na Europa não foi alheia à justificação que proporcionavam à escravatura (Taguieff, 1997; Wieviorka, 1992/1995). Existem numerosas revisões de literatura sobre a noção de ‘raça’ e sobre ‘racismo’. Sem qualquer pretensão de exaustividade apresentamos apenas os elementos que consideramos mais pertinentes para a linha de argumentação que iremos desenvolver e para a posterior discussão dos nossos dados empíricos. A noção de ‘raça’ apoiou-se na antropologia física clássica, que utilizava critérios morfológicos como a cor da pele, a forma craniana, a textura do cabelo, entre outros. As classificações que deles resultavam eram contraditórias e muito variáveis, de acordo com o critério escolhido ou com a importância atribuída a cada um deles, mas essa variabilidade de resultados e ausência de rigor foi muitas vezes escamoteada. Embora as classificações raciais fossem quase tantas quantos os antropólogos físicos (Langaney,
  • 52. Racismo e Etnicidade em Portugal 52 1988; citado por Cunha, 2000) e o número de ‘raças’ que identificavam variasse bastante (para revisões ver Amorim, Almeida, Mota, Souta, Cunha, e Marques, 1997; Bracinha-Vieira, 1995), a divisão mais frequentemente invocada identificava três ‘raças’ principais: brancos (caucasóide), amarelos (mongolóide), e negros (negróide). A ‘ciência da classificação’ foi iniciada por Lineu no século XVIII. Com base numa multiplicidade de critérios principalmente de natureza fenotípica o autor dividiu os seres humanos em quatro categorias – Americanos, Africanos, Asiáticos e Europeus (‘belos’, ‘cabelo louro, castanho leve’, ‘amáveis’, ‘perspicazes’, ‘inventivos’, ‘cobertos com vestes’, ‘governados por leis’, foram alguns dos atributos usados para caracterizar estes últimos) (Lineu; citado por Bracinha-Vieira, 1995). Numa sucinta revisão de literatura, a antropóloga Manuela Cunha refere as diversas correntes da raciologia clássica. Os poligenistas consideravam que cada ‘raça’ principal tinha sido criada como uma espécie verdadeiramente separada e que cada uma teria traços físicos e mentais específicos: os brancos seriam dotados de maiores capacidades intelectuais e os negros teriam uma “especial vocação manual”. Para os polifiléticos cada ‘raça’ descendia de diferentes primatas: os ‘brancos’ do chimpanzé, os ‘amarelos’ do orangotango, e os ‘negros’ do gorila. Como Manuela Cunha salienta, sendo o chimpanzé considerado o mais elaborado dos macacos, fica claro qual o sentido da hierarquia. Em contrapartida, os monogenistas e os monofiléticos convergiam na defesa de uma origem única para as diferentes ‘raças’, que representariam, no entanto, diferentes etapas da evolução humana. Os monogenistas defendiam a teoria da recapitulação (‘a ontogenia recapitula a filogenia’) segundo a qual o desenvolvimento embrionário reproduzia as etapas de evolução das espécies (peixe, réptil, macaco). Assim, os negros seriam menos evoluídos porque permanecem num estado que os brancos só passam na infância. Como salienta Manuela Cunha: “Em todo o caso, quer reportasse as ‘raças’ a diferentes origens ou a lugares particulares na evolução humana, a raciologia clássica sempre as ordenou em superiores e inferiores – ocupando invariavelmente os brancos o topo dessa hierarquia. Esta perspectiva hierarquizadora fundamenta-se na pressuposta existência de uma equação ‘natural’ entre aparência física e aptidões” (2000, p.193- 194).
  • 53. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 53 O paleontólogo Stephen J. Gould (1981/1990) no seu livro O Polegar do Panda: Reflexões sobre a História Natural demonstra habilmente o carácter falacioso das ‘provas’ da antropologia física e dá-nos a conhecer os discursos de alguns dos famosos cientistas que participaram nesta construção social da realidade. Louis Agassiz, reputado poligenista, na sua maior declaração sobre a raça (publicada em 1850) apresenta os argumentos da doutrina do ‘separados e desiguais’: "O indomável, corajoso, orgulhoso, Índio, em que plano tão diferente ele se encontra ao lado do submisso, obsequioso, imitativo Negro ou ao lado do manhoso, astuto e cobarde Mongol! Não constituem estes factos indicações de que as diferentes raças não se alinham em um nível único na natureza?" (citado por Gould, 1981/1990, p.193). Agassiz termina a sua declaração advogando uma política social específica - a educação deve ser ajustada à capacidade inata: “treinem os Negros no trabalho manual e os Brancos no trabalho mental: Qual seria a melhor educação para as diferentes raças em consequência da sua diferença primitiva [...] nós não acalentamos a mais pequena dúvida de que os negócios humanos referentes às raças de cor seriam muito mais judiciosamente conduzidos se na nossa relação com eles fossemos guiados por uma consciência total das diferenças reais existentes entre eles e nós e de um desejo de nutrir essas disposições que são eminentemente marcadas neles, de preferência a tratá-los em termos de igualdade” (citado por Gould, 1981/1990, p.193; itálico nosso). Como refere Gould, já que estas disposições eminentemente marcadas são a submissão, a obsequiosidade e a imitação, não é difícil imaginar aquilo que Agassiz tinha em mente. Mas há neste discurso outro pormenor importante para a nossa argumentação: essas disposições são eminentemente marcadas neles, não em nós. Assim, a natureza marca os homens de forma desigual: marca uns (eles) e não outros (nós), assunto que desenvolveremos mais adiante. Noutra ocasião Agassiz (1863) argumentou que as raças deviam ser mantidas separadas, a fim de a superioridade branca não se diluir. Esta separação teria de ocorrer naturalmente, já que os mulatos, como elo fraco, deveriam desaparecer. Os negros
  • 54. Racismo e Etnicidade em Portugal 54 deveriam deixar os climas frios do hemisfério norte, tão inadequados para eles e mover- se para sul (referido por Gould, 1981/1990, p.194). Este receio da miscigenação não será alheio ao facto de ela tornar menos nítidas as fronteiras entre os grupos e, eventualmente, ameaçar a “consciência total das diferenças reais existentes entre eles e nós” (Agassiz, 1950; citado por Gould, 1981/1990, p.193). Na opinião de diversos autores o pensamento racialista foi dominado pela inquietação pela decadência e degenerescência acarretada pela mistura de ‘raças’ (Taguieff, 1997; Wieviorka, 1992/1995). No século XIX Paul Broca desenvolveu métodos de mensuração do volume da caixa craniana que passaram a ser amplamente utilizados. Com base nestas diferenças, supostamente objectivas, os antropólogos físicos alegavam que os brancos eram mais inteligentes, porque tinham cérebros maiores. Mas neste, como noutros tipos de medição, não eram os negros as únicas vítimas: “Na generalidade, o cérebro é maior nos homens que nas mulheres, nos homens eminentes do que nos de talento medíocre, nas raças superiores do que nas inferiores. Como noutras coisas, existe uma relação notável entre o desenvolvimento da inteligência e o volume do cérebro (Broca, 1861; citado por Gould, 1981/1990, p.168). Enquanto os antropólogos mediam crânios, médicos e psicólogos desenvolveram outros métodos supostamente mais rigorosos e que viriam a constituir uma das formas ‘inequívocas’ de demonstrar a alegada superioridade dos brancos: os testes de aptidões físicas e intelectuais, especialmente os testes relativos ao Quoficiente de Inteligência (Q.I.). Este é um dos domínios onde o carácter ‘eurocêntrico’ e ‘androcêntrico’ da ciência moderna é mais visível (Cf: Amâncio, 1994, 1998; Gould, 1981/1990; Sousa Santos, 1987/2001, 1991)3 . Gould (1981) faz referência a estas distorções, descreve os preconceitos que marcaram a história dos testes de Q.I. e as manipulações a que estes se prestaram no 3 Ainda hoje, apesar do grande investimento estatístico no rigor psicométrico dos testes psicológicos, não é possível conceber testes de ‘inteligência’ totalmente ‘culture free’ (Cattell, 1944), pois todos eles partem de uma certa definição do que é a inteligência, definição essa que, seguindo uma longa tradição (Cf. Platão, s.d./2001), tem privilegiado as componentes cognitivas (racionais) em detrimento das relacionais (emocionais). Ver o famoso debate entre Lippmann e Terman (Block e Dworkin, 1976) e também as críticas ferozes de Lippmann à ‘race psychology’ (1922/1961, p.79-93). Para um discussão actual do conceito ver Poeschl (1992), Damásio (1994), Howe (1997) e Mackintosh (1998).
  • 55. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 55 início do século com o fim de recusar, em nome da ciência, a entrada a imigrantes considerados indesejáveis. Quaisquer que fossem os critérios utilizados (volume craniano, tempos de reacção, testes de inteligência), os ‘brancos’ eram sempre posicionados no topo da escala e os ‘negros’ em baixo, ocupando os ‘amarelos’ a posição intermédia, mas muito mais próximos dos últimos do que dos primeiros (para revisões alargadas ver Montagu, 1997; Richards, 1997). Mas se a ‘grande clivagem’ se verificava entre os ‘brancos’ e os ‘outros’ (africanos, asiáticos, indígenas americanos), que eram frequentemente homogeneizados na categoria de ‘selvagens’, no seio da raça branca reconhecia-se a heterogeneidade. Assim, alguns autores identificaram a existência de algumas nacionalidades de elite, a que não era alheia a própria nacionalidade do cientista. Por exemplo, Goddard (referido por Gould, 1981/1990), um dos arquitectos principais da interpretação hereditária rígida dos testes de QI, sugeriu uma classificação das capacidades mentais de modo a abarcar uma ‘classificação natural das raças e nacionalidades humanas’. Nesta classificação os White Anglo-Saxonic Protestants (WASP) americanos situavam-se no topo, correspondendo ao desenvolvimento completo, e os emigrantes europeus do Sul e Leste no escalão mais baixo, no limiar entre a normalidade e a debilidade mental. Goddard, depois de instituir os testes de QI para os emigrantes à sua chegada aos EUA, proclamou mais de 80% débeis mentais e apressou-lhes o regresso à Europa4 . Na mesma linha de ideias, Down publicou as Observations on a classification of idiots (1866), observações essas realizadas num hospital psiquiátrico, nas quais descrevia ‘idiotas’ caucasianos que lhe lembravam africanos, malaios, índios americanos e orientais. Como refere Gould (1981/1990, pp.182-187), destas imaginárias comparações entre os ‘débeis mentais causasianos’ e as ‘capacidades normais nos adultos de raças inferiores’ só os ‘idiotas que se agrupam à volta do tipo mongolóide’ sobreviveram na literatura como designação técnica (‘idiota mongolóide’ para designar a Trissomia XXI ou Síndrome de Down). 4 Hoje em dia, na Inglaterra discute-se a eventualidade de instaurar um sistema de selecção dos imigrantes a partir de testes de ‘cultura geral’, segundo relato recente na Euronews.
  • 56. Racismo e Etnicidade em Portugal 56 Meio século após Charles Darwin ter publicado o seu livro sobre a origem das espécies (1859), alguns biólogos e antropólogos continuavam a não admitir uma origem comum para o Homo Sapiens (Banton, 1996, p.295). O termo ‘raça’ foi sendo utilizado no sentido ‘espécie’, para designar grupos humanos distintos na sua constituição física e nas suas capacidades mentais e, de certa forma esta ideia subsistiu até hoje, passando a constituir o núcleo duro das doutrinas designadas de ‘racismo científico’. Como refere Miranda (2001), é difícil precisar o momento em que se passou de um cenário em que a preocupação científica era dominante para um cenário em que o racismo assumiu um carácter doutrinário. A obra de Gobineau, Essay on the Inequality of the Human Races, integra nitidamente o segundo cenário e terá exercido uma influência fundamental no desenvolvimento posterior da ideologia nazi. A utilização do termo ‘ariano’, palavra do sânscrito que significa nobre, tornou-se mais frequente a partir do momento em que foi utilizada por Gobineau e Muller nos anos 1850 e 1860 para identificar um grupo de indivíduos que produziu uma civilização particular e mais avançada (Miles, 1989/1995). Outra das referências marcantes da doutrina racista foi Galton, que se preocupou com a influência da genética no desenvolvimento da inteligência humana e fundou um laboratório de eugenia em Londres. O eugenismo constituiu simultaneamente um movimento social e uma ciência aplicada, fundados em teorias da hereditariedade e nas leis da reprodução da espécie humana que prescreve os meios para melhorar a espécie. Em Hereditary Genius (1869, citado por Freeman, 1962/1980), Galton argumentou em defesa da eliminação progressiva dos ‘indesejáveis’ da sociedade, proibindo-lhes o casamento ou impondo a sua esterilização (eugenia negativa) e, simultaneamente, tentou proteger, aperfeiçoar, e multiplicar os indivíduos ‘mais aptos’ de melhor saúde física e moral (eugenia positiva). Na introdução da sua obra Inquiries into Human Faculty, Galton afirma: "O meu objectivo geral foi registar várias faculdades hereditárias dos diferentes homens e as grandes diferenças nas várias famílias e raças para determinar em que medida a história pode ter demonstrado a viabilidade de substituir a reserva humana ineficiente por melhores linhagens, e reflectir se não seria dever nosso fazê-lo na medida do razoável, agindo assim no sentido de alcançar mais depressa o termo de evolução menos penosamente do que deixando os acontecimentos entregues ao seu curso normal" (1883, citado por Freeman, 1962/1980, p. 9).
  • 57. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 57 No final do século XIX, as doutrinas raciais estavam extremamente divulgadas na Europa e nos EUA. Como mostra a teoria das representações sociais (Moscovici, 1972/1977), o determinismo biológico não só marcou profundamente a ciência moderna, como se propagou ao senso comum, tornando-se um verdadeiro fenómeno social. Isto é, o discurso ‘científico’ dos séculos XVIII e XIX estimulou e legitimou o discurso racialista do senso comum. Depois do Holocausto poucos cientistas continuaram a defender uma hierarquia de ‘raças’ e as investigações desenvolvidas no domínio da genética vieram questionar muitas das ‘verdades’ anteriores. Mas, se a ciência contemporânea se esforça por desmascarar o ‘mito da raça’ (Montagu, 1997), o senso comum, bom aluno, reproduz hoje alguns dos elementos fundamentais dessas teorizações racialistas5 . 5 Actualmente, as teorias sobre as hierarquias raciais, embora minoritárias, ressurgem, esporadicamente, no campo científico. Há menos de uma década, Herrnstein e Murray publicaram o The Bell Curve: Intelligence and Class Structure in American Life (1994), que rapidamente se tornou um best seller, no qual os autores advogavam uma política de discriminação baseada nas classificações obtidas por diferentes categorias sociais e raciais nos testes de QI, que consideram a maior realização científica da psicologia. Rushton vai ainda mais longe numa aberta agenda racial no seu livro Race, Evolution, and Behavior (1995), no qual afirma ser possível identificar clara e distintamente grupos raciais com diferentes histórias de evolução, que conduziram a diferentes capacidades.
  • 58. Racismo e Etnicidade em Portugal 58 1.3.2 As normas da igualdade e os novos racismos “Mais l’homme n’existe pas: il y a des juifs, des protestants, des catholiques; il y a des Français, des Anglais, des Allemands; il y a des blancs, des noirs, des jaunes.” Jean Paul Sartre, 1954 Após a guerra de 1939-1945 as políticas e doutrinas ‘coloniais’ e ‘racialistas’ são postas em causa. A tal não será alheio a participação significativa de soldados de origem asiática e africana nas tropas aliadas. Como refere Magalhães (1996, p.7; citado por Correia, 1999, p.114), participaram cerca de quinhentos mil africanos e dois mil indianos nas tropas aliadas. As lutas pela independência ganham uma dinâmica incontornável nos territórios asiáticos e africanos sob o domínio europeu, o que conduz à independência de numerosos territórios: a independência da União Indiana em 1947 marca o ‘princípio do fim’ do colonialismo europeu nos seus moldes tradicionais. Na África Negra as primeiras independências ocorrem em 1956 (Gana) e até final dos anos 60 todas as potências coloniais tinham perdido o seu império, à excepção de Portugal, assunto que desenvolveremos na próxima secção6 . A 10 de Dezembro de 1948 a Organização das Nações Unidas (ONU) proclama a Declaração Universal dos Direitos do Homem na qual se lê o seguinte: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (§1º); “Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autónomo ou sujeito a alguma limitação de soberania” (§2º). 6 Para uma análise do colonialismo e das lutas pela independência, ver Fanon (1967) e Benot (1969/1981). Para uma ilustração dos discursos reivindicativos africanos, ver Senghor (1977/1997) e Biondi (1993).
  • 59. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 59 Embora esta Declaração tenha sido ratificada por 159 países, a realidade tem ficado sempre aquém das palavras. Dez anos depois desta declaração, instala-se oficialmente o regime de Apartheid na África do Sul (1958-1991) e os negros americanos só em 1964 vêem aprovado o Act of Civic Rights, depois de intensas lutas e manifestações. De notar que no segundo artigo a ‘raça’ aparece em primeiro lugar e sem ‘aspas’. De facto, o uso de ‘aspas’ para referir a ‘raça’ só se começou a vulgarizar nas ciências sociais nos anos oitenta, para salientar que se trata de uma noção do senso comum. Assiste-se assim no pós-guerra a mudança do posicionamento científico e político relativamente ao conceito de ‘raça’. Se até aí, como ilustrámos na secção anterior, iminentes cientistas das mais variadas ciências ‘naturais’, sociais e humanas tinham ocupado as suas energias a demonstrar cientificamente a ‘raça’, a partir daí todas estas áreas científicas começaram a desnaturalizar a noção de ‘raça’, isto é, a demonstrar o carácter falacioso dos estudos do ‘racismo científico’. No livro de referência Le Racisme Devant la Science (UNESCO, 1960/1973) procede-se a uma desmontagem detalhada do carácter falacioso das ‘provas’ da superioridade branca nos vários domínios científicos. As mais recentes investigação ligadas à descodificação e à sequenciação do Genoma Humano7 vieram dar razão aos vários relatórios elaborados no âmbito da UNESCO, pois não foi possível identificar nenhum gene ou conjunto de genes ligados às supostas ‘raças’ humanas, pelo que a ‘raça’ enquanto conceito aplicado para classificar os seres humanos está, à luz do conhecimento científico presente, definitivamente abandonado. 7 Com a análise do genoma humano a noção de raça foi completamente desacreditada: “De um ponto de vista genético, todos os seres humanos são africanos - que ou vivem em África ou estão no exílio”. A nossa origem africana é verificada pelo facto da diversidade genética ser maior em África do que em qualquer outro ponto do mundo, o que leva a pensar em vagas de migração humana a partir daquele continente. [...] A noção de raça leva ainda outro golpe: podem verificar-se mais diferenças genéticas entre um louro nórdico e o seu também louro vizinho do que entre eles e um africano. Na opinião de Svante Paäbo, do Instituto Max Planck de Antropologia da Evolução, a sequência do genoma humano não trará grandes riscos de aumentar a discriminação, e refere de forma optimista: “Terá o efeito contrário, porque os preconceitos, a opressão e o racismo alimentam-se de ignorância” (Clara Barata, in Público, 10 de Outubro de 2001).
  • 60. Racismo e Etnicidade em Portugal 60 A questão racial foi tema de discórdias internacionais e assumiu tal importância que, após o termo da II Grande Guerra, a UNESCO promoveu amplas investigações interdisciplinares sobre a questão racial, cujos resultados foram debatidos por quatro equipas diferentes e que deram origem a quatro Declarações (1950, 1951, 1964, e 1967). Na sua primeira Declaração, a UNESCO8 (1950) proclama que todos os seres humanos pertencem à mesma espécie, o Homo Sapiens e estabeleceu as bases da igualdade de facto entre todas as ‘raças’: “Les donnés scientifiques dont on dispose à l’heure actuelle ne corroborent pas la théorie selon laquelle les différences génétiques héréditaires constitueraient un facteur d’importance primordiale parmi les causes des différences qui se manifestent entre les cultures et les oeuvres de la civilization des divers peuples ou groupes ethniques. Elles nous apprennent à l’inverse que ces différences s’expliquent avant tout par l’histoire culturelle de chaque groupe” (UNESCO, 1960/1973, p.366). A segunda Declaração (1951) chama a atenção para o uso abusivo da palavra ‘raça’ e para os mitos que a esta palavra estão associados, pelo que recomenda o uso de outra palavra para designar os grupos humanos: “Le mot ‘race’ étant marqué, pour avoir servi à designer des différences nationales, linguistiques ou religieuses et pour avoir été utilisé dans un sens délibérément abusif par des partisants des doutrines racistes, nous sommes efforcés de trouver un nouveau mot [...], mais nous n’y avons pas reússi” (UNESCO, 1960/1973, p.368). A quarta Declaração (1967) vai mais longe nesta ideia e refere que “les doctrines racistes sont dénuées de toute base scientifique”, sendo a noção de ‘raça’ convencional ou arbitrária (UNESCO, 1960/1973, p.379). Nesse sentido recomenda o abandono da palavra no meio científico e o uso de designações menos discriminatórias. Recomenda igualmente que se proteja a diversidade cultural: 8 Declaração redigida por diversos cientistas de diferentes pontos do globo: Beaglehole (Nova Zelândia), Comas (México), Costa Pinto (Brasil), Frazier (Estados Unidos), Ginsberg (Reino Unido), Kabir (Índia), Lévi-Strauss (França) e Montagu (Estados Unidos).
  • 61. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 61 “Les groupes ethniques qui sont victimes de la discrimination sous une forme ou une autre sont parfois acceptés et tolérés par les groupes dominants à condition de renoncer totalment à leur identité culturelle. Il convient de souligner la nécessité d’encourager ces groupes ethniques à préserver leurs valeurs culturelles. Ils seront ainsi mieux en mesure de contribuer à enrichir la culture totale de l’humanité” (UNESCO, 1960/1973, p.384). Desde então, o termo ‘grupo étnico’ tem sido empregue para referir situações de grupos sociais minoritários, que são percebidos e classificados em função da sua diferenciação cultural face aos padrões estabelecidos pela cultura dominante. Todavia, o pensamento do senso comum terá acompanhado esta deslocação da ‘raça’ para as ‘práticas culturais’ dos ‘grupos étnicos’, sendo estas percebidas como rígidas e imutáveis, e até mesmo geneticamente herdadas (Chapman, McDonald e Tonkin, 1989; Rex, 1986; referidos por Lima, 2002). A cultura não é entendida como algo fluido e dinâmico, mas como algo análogo à ‘raça’ e os laços culturais passam a ser vistos como ‘laços de sangue’ (Gilroy, 1993; referido por Lima, 2002). Como salienta Guillaumin (1992/1995), apenas os grupos minoritários, isto é, destituídos de poder ou estatuto, são objecto deste processo de naturalização. Assim, o deslocamento da percepção das diferenças entre os grupos humanos do pólo das características físicas ou raciais para o pólo das características comportamentais e culturais permanece um processo de naturalização da diferença, isto é, a um processo de racialização seguiu-se um processo de etnicização (Vala, Lopes, Brito, 1999a), processo esse que se verifica em relação aos grupos minoritários mas não em relação aos dominantes. O termo ‘racialização’ começou a ser utilizado a partir da década de setenta (Fanton, 1967; Banton, 1977) para fazer referência a um processo político e ideológico pelo qual determinadas populações são identificadas mediante referência directa ou indirecta às suas características fenotípicas, isto é, este termo refere-se à utilização da ideia de ‘raça’ enquanto estruturador da percepção de determinada população (Miles, 1989/1995).
  • 62. Racismo e Etnicidade em Portugal 62 Miles define racialização como: “a process of delineation of group boundaries and of allocation of persons within those boundaries by primary referense to (supposedly) inherent and/or biological (usually phenotical) characteristics. It is therefore an ideological process” (1982, p.157). Assim, apesar de estar cientificamente desacreditado, o conceito de ‘raça’ que existe na mente dos indivíduos, não pode ser ignorado pelos cientistas sociais, isto é, a raça deixa de ser ‘biológica’ para se tornar ‘social’. O facto da hierarquização racial ter sido banida do discurso público não exclui comportamentos e percepções racistas. Atentas às novas normas sociais, as pessoas têm o cuidado de velar os seus discursos discriminatórios, “fazendo preceder a sua enunciação com a invariável asserção ‘eu não sou racista, mas...’ - ?o que? mostra bem que se está ciente do grau de consensualidade discursiva que a sua condenação conquistou na arena pública” (Cunha, 2000, p.194). Como o argumento da desigualdade e da hierarquização racial é actualmente contra-normativo, enfatizam-se as diferenças culturais. Assim, já não se detestam os árabes pela sua cor morena, mas por serem ‘fanáticos religiosos’ ou por ‘tratarem mal as mulheres’ ou porque o Islão é uma ‘cultura rétrogada’. Estes têm sido alguns dos argumentos apresentados por certos líderes de extrema direita, tal como o holandês Pym Fortuyn, recentemente assassinado, mas que conseguiu, depois de morto, a maior votação de extrema direita na Holanda. O líder populista Pim Fortuyn reclamava não ser como os outros líderes de extrema direita racistas: “De uma vez por todas, quero que fique claro que não tenho nada a ver com os senhores Le Pen, Haider e Dewinter”. No entanto, defendia a supressão na constituição holandesa do artigo que proíbe as discriminações. O argumento de que “a Holanda está cheia” resume a sua política anti- imigração, salientando também os malefícios dos “excessos do clima de tolerância”. Seria por isso fundamental acabar com a “falsa tolerância”, pelo que recomendava a restrição drástica do número de imigrantes e refugiados, e uma política mais repressiva em relação à integração de estrangeiros (por exemplo, aplicar multas a quem não faz o
  • 63. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 63 curso obrigatório de língua holandesa). Fortuyn é, no entanto, peremptório em negar quaisquer alegações de racismo: “Vejam bem que o número dois da minha lista, João Varela, é de origem cabo- verdiana!” [...] “é preciso ser mais duro com estrangeiros que não se querem integrar” (o referido cabo-verdiano seria um bom exemplo da integração: “prefere falar holandês em vez de português” (afirmações de Fortuyn citado por Simon Kuin, Expresso, 27 de Abril de 2002). Se, como já referimos, hoje em dia poucos ousam defender uma hierarquia racial, em contrapartida a ideia de ‘raça’, no sentido de uma população natural definida por caracteres hereditários comuns, persiste e continua a servir de suporte a ideologias racistas. E também aqui reencontramos as armadilhas do relativismo cultural extremo que, levado às suas últimas consequências lógicas, nega a própria possibilidade de ‘tradução intercultural’ Cf: Lévi-Srauss, 1983; Tagieff, 1997). A este propósito Manuela Cunha (2000, p.194) fornece-nos uma interessante análise de um discurso de Bruno Mégret, ex-número dois do partido de extrema direita francês, que num colóquio sobre ecologia questionava o seguinte: “Porquê batermo-nos pela preservação das espécies animais quando ao mesmo tempo aceitamos o princípio do desaparecimento das raças humanas pela mestiçagem generalizada?”. Como refere a autora: “A apropriação de dois actualíssimos temas – a consciência ecológica e a apologia da diferença – em torno dos quais se gerou um largo consenso público funciona aqui como caução legitimadora de uma ideologia segregacionista. Por outro lado, encontramos de novo a assimilação das ‘raças’ a espécies que marcou várias teorias raciais [...]. O efeito retórico que Mégret obtém através da equivalência ‘raças’ – espécies acentua subliminarmente a ideia de descontinuidade entre tipos humanos que seriam as ‘raças’. É esse, afinal, o cerne das doutrinas rácicas: es tipular a existência de uma descontinuidade natural no interior do género humano” (Cunha, 2000, p.195). Segundo Manuela Cunha (2000, p.295), “falha-se porém o alvo quando se procura demonizar este ideário segregacionista apostrofando-o de hitleriano, ou nazi”, já que os autores de tais discursos descartam essa acusação com uma desconcertante facilidade. Com efeito, os novos racismos são bem mais sofisticados e subtis, já não defendem a
  • 64. Racismo e Etnicidade em Portugal 64 hierarquização racial de outrora, mas sim a distanciação. Isto é, não há ‘raças’ superiores ou inferiores, mas cada uma devia permanecer no seu ‘canto’, lógica que presidia ao regime do apartheid. Assim, invoca-se a defesa da especificidade cultural dos grupos racializados, por um lado, e, por outro lado, clama-se o direito à identidade própria, que essas culturas ‘outras’ são supostas ameaçar. Desemboca-se, assim, na questão da imigração, um dos factores que supostamente produziriam o indesejado efeito de contaminação. Desta forma, o elogio “da diferença pode caucionar e camuflar uma vontade de exclusão” (Cunha, 2000, p.196). Verena Stolcke (1995; referida por Cunha, 2000, p.196) analisa o modo como na Europa os novos discursos de exclusão “absolutizam a diferença e sustentam a insuperável incapacidade de comunicação entre diferentes culturas”, porque a supõem radicada na própria natureza humana. Na opinião de diversos autores (Cunha, 2000; Taguieff, 1997), o ‘fundamentalismo cultural’ não substituiu totalmente o discurso do ‘fundamentalismo racial’, pelo contrário, o primeiro compactou-se com o segundo, constituindo uma das suas metamorfoses. Neste sentido, as ‘raças’ não desapareceram do discurso diferencialista, deixaram apenas de ser ordenadas hierarquicamente (Cunha, 2000, p.196) e aparentemente perderam a sua visibilidade biológica. Como refere Jean Pouillon: “?à? la limite, le relativisme rejoint l´ethnocentrisme en enfermant chacun dans sa propre culture, la différence se réduisant à ceci que dans un cas, on admet la pluralité des prisons tandis que dans l´autre on ne sait même pas qu´il y en a une » (1975; citado por Cunha, 2000, p.196). E isto porque a ideia de ‘raça’ continua a estruturar a percepção que se tem dos outros e a operar o discurso de exclusão, ainda que mais ou menos camuflada pela referência à identidade cultural, remetendo-a constantemente para o terreno da natureza. Deste modo, apesar da palavra ‘raça’ ter sido banida do discurso científico e político é legítimo continuar a falar de ‘racismo’ (Cunha, 2000; Segall, 1999; Taguieff, 1997).
  • 65. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 65 Depois de ‘desnaturalizada’ a ‘raça’, os cientistas sociais, constatando que esta não tinha desaparecido do conhecimento do ‘senso comum’, preocuparam-se em estudar a forma como este ‘naturaliza’ as categorias sociais. Não deixa de ser irónico que muitos cientistas venham agora acusar o senso comum de ignorância, ingenuidade ou irracionalidade quando este recorta a realidade através das categorias humanas que a própria ciência tinha forjado e lhes associa os conteúdos que a elas tinham sido tão convenientemente associados. Por exemplo, Taguieff (1992/1995) salientou que apesar dos geneticistas terem provado a inexistência de ‘raças’, a noção de ‘raça’ continuou a ser aceite pelo senso comum, dado que a clássica tipologia branco/amarelo/negro é facilmente apreendida e o senso comum confia na evidência imediata dos seus sentidos, e apoia-se em caracteres visíveis (fenótipo) ignorando os invisíveis (genótipo). Como salienta Manuela Cunha (2000, p.199) os mesmos cientistas que fazem as imputações de ingenuidade ao senso comum, consideram que os caracteres visíveis (cor da pele, textura do cabelo) se prestam quase ‘automaticamente’, isto é, ‘naturalmente’, à racialização. Constata-se assim que o ‘binómio natureza-cultura’, continua a estar presente nas ciências sociais, mas agora organizado de forma diferente, como exemplifica Manuela Cunha: “as ‘raças’ são criações sociais e não entidades biológicas, mas os traços fenotípicos fornecem uma base natural em que a cultura investe, constituem uma matéria neutra da qual ela se apropria; os traços físicos são dados fixos e evidentes que a cultura é chamada a interpretar e a transformar em símbolos. E é assim, por via desta incontornável base natural, que somos quase conduzidos ao ponto inicial, quer dizer, à especial dificuldade que enfrentariam as tentativas de combate às classificações raciais” (2000, p. 200). Como argumenta a autora, a altura, a cor dos olhos, a cor do cabelo, e até os lóbulos das orelhas entre outros, são também traços fenotípicos, igualmente naturais, expostos e evidentes e, no entanto, não são evocados quando se fala nas classificações raciais. A aparência física, enquanto matéria-prima para as classificações raciais, não é terreno neutro, já que a própria saliência de certas características físicas é resultado de definições sociais e não de enviesamentos ‘naturais’ da percepção humana. O recurso a
  • 66. Racismo e Etnicidade em Portugal 66 certos traços físicos em detrimento de outros não constitui um fenómeno natural, mas decorre de processos ideológicos que devem ser historicamente situados. Considerar a aparência física como um suporte meramente “biológico e a- histórico” é esquecer que foram ideologias ocidentais num determinado período histórico que definiram certas características físicas como mais importantes do que outras para marcar diferenças, e contribuíram assim, para a sua visibilidade. Como escreve Wade “The realm of nature is not a neutral given, but is itself in a relationship of mutual constitution with the cultural categories that take it as a resource” (1993, p.27). No seio da Psicologia Social, Gordon Allport no livro The Nature of Prejudice, (1954/1975) foi o primeiro autor a desmontar claramente o conceito de ‘raça’ e a ilustrar o processo de racialização: inclusão dos indivíduos em categorias ‘raciais’, às quais corresponde um determinado ‘rótulo’, e às quais são atribuídos significados. Allport (1954/1979, p.171) define uma categoria como: “an accessible cluster of associated ideas which as a whole has the property of guiding daily adjustments”. A categorização dos grupos sociais minoritários seria acompanhada por uma essencialização: “One thinks of heredity as inexorable, as conferring an essence upon a group from which there is no escape” (p.170). Allport, evidencia as consequências da essencialização dos grupos humanos: “Some labels [...] are exceedingly salient and powerful. They tend to prevent alternative classification, or even cross-classification. Ethnic labels are often of this type, particularly if they refer to some highly visible feature, e.g., Negro, Oriental. ?...? These symbols act like shrieking sirens, deafening us to all finer discriminations that we might otherwise perceive” (Allport, 1954/1979, p.179). Como o autor salienta, “some categories are more flexible (differentieted) than others. ?...? Not all categories have a granitic character. Some are flexible and discriminated. ?...? the more they know about a group the less likely are to form monopolistic categories” (1954/1979, p. 172)
  • 67. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 67 Assim, segundo Allport, quanto maior o nível de contacto com os membros de determinada categoria, maior a flexibilidade desta categoria, mas fica claro pelos exemplos que nos fornece que as categorias mais rígidas (monopolistic) são as relativas aos grupos étnicos, enquanto as mais diferenciadas são relativas aos americanos: “most Americans know that any fixed hypotheses about ‘Americans’ are likely to be a poor guide of conduct” (p.172). Como o autor salienta: “while most of us have learned to be critical and open- minded in certain regions of experience we obey the law of least effort in others” (Allport, 1954/1979, p.173). Uma das consequências da ‘lei do menor esforço’ é o desenvolvimento de uma crença sobre a essência desses grupos: “There is an inherent ‘Jewishness’ in every Jew”, “The soul of the Oriental”, “Negro blood”, ?...? “the passionate Latin” - all represent a belief in essence” (p.174). Infelizmente esta perspectiva sobre o processo de racialização foi ignorada pelos psicólogos sociais durante décadas e só recentemente veio a ser retomada e desenvolvida em detalhe por diversos autores, entre os quais Rothbart e Taylor (1992), que no entanto, se esqueceram de alguns aspectos com enorme importância da argumentação de Allport. Rothbart e Taylor (1992) consideram que o senso comum distingue entre categorias naturais (peixes, pássaros, etc.) e categorias artificiais (cadeiras, bicicletas, etc.). Os autores argumentam que as pessoas tenderiam a ver as primeiras como “menos arbitrárias” (p.11) do que as segundas, que acreditariam que as categorias ‘naturais’ possuem uma essência profunda que torna uma categoria diferente de outra. O senso comum atribuiria um maior potencial indutivo às primeiras do que às segundas, uma vez que a sua experiência no dia a dia lhe mostraria que comete menos erros quando faz inferências sobre objectos ‘naturais’ do que em relação a objectos artificiais. Esta diferença conduziria o senso comum a supor que os primeiros são dotados de essências que justificariam a forma como são categorizados, e que essas essências se manifestariam, geralmente, em diferenças perceptíveis. Assim, o processo de essencialização operar-se-ia através da inferência de uma estrutura profunda (genótipo) a partir de diferenças de superfície (fenótipos). Uma vez essencializadas, as categorias ‘naturais’ não só disporiam de um elevado potencial indutivo, como seriam vistas como inalteráveis e exclusivas. Segundo Rothbart e Taylor as categorias ‘naturais’ funcionam como um modelo para pensar as categorias sociais, nomeadamente as categorias raciais, na medida em
  • 68. Racismo e Etnicidade em Portugal 68 que ambas são pensadas como produtos da natureza e não como resultado de uma construção humana. A essencialização das categorias sociais reflecte-se na percepção de inalterabilidade das categorias: da mesma forma que não seria possível transformar um peixe numa ave, também não seria mudar de ‘sexo’, ‘raça’, ‘casta’ (1992, p.20). Uma outra propriedade das categorias essencializadas é a exclusividade. Os seres classificados em categorias naturais apenas podem fazer parte de uma categoria, aquela que reflecte a sua essência. Seria esta propriedade, a exclusividade, que estaria subjacente ao efeito de acentuação, que consiste em exagerar as semelhanças entre os membros da mesma categoria social e em acentuar as diferenças entre membros de diferentes categorias (Tajfel e Wilkes, 1963), como veremos adiante. Finalmente, as categorias sociais essencializadas revestir-se-iam de um elevado potencial indutivo. Em resumo, determinadas categorias sociais seriam regidas por um princípio de essencialismo psicológico (Leyens e Corneille, 1994). Como referem Vala e colaboradores (1999a), na proposta de Rothbart e Taylor a analogia entre as categorias naturais e sociais levou os autores a esquecer alguns aspectos essenciais, nomeadamente o valor das categorias para os próprios observadores (Tajfel, 1957, 1972) e as assimetrias envolvidas neste processo (Lorenzi-Cioldi, 1988), aspecto que desenvolveremos no próximo capítulo. Em primeiro lugar, os autores parecem conferir às diferenças físicas um estatuto de evidência perceptiva que estas, de facto, nem sempre possuem, uma vez que a sua saliência já é o resultado de teorias e convenções sociais, como já atrás referimos. De facto, alguns estudos têm demonstrado que os indivíduos mais preconceituosos são os que se revelam mais ‘aptos’ a identificar sinais físicos como indicadores de diferenças ‘raciais’, ainda que cometendo muitos erros por sobre-exclusão do endogrupo (e.g., Leyens, Yzerbyt e Bellour, 1993; Pettigrew, Allport e Barnet, 1958; Tajfel, 1972), assunto que retomaremos no próximo capítulo. É precisamente porque as diferenças físicas nem sempre são pertinentes para as classificações raciais que, ao longo da história, grupos discriminados foram obrigados a usar sinais distintivos, como sucedeu com os judeus durante o período do nazismo, apenas para citar um exemplo9 . 9 A este propósito será elucidativo ver o vídeo relativo ao exercício de anti-discriminação realizado pela professora Jane Elliott com os seus alunos do ensino básico (efectuado pela primeira vez em 1968 depois do assassinato de Martin Luther King Jr. e desde aí repetido em inúmeras escolas e organizações diversas, tanto com crianças como com adultos) e que ilustra de forma clara o poder da ‘marca’ como estigma nos grupos de menor estatuto (neste caso operacionalizados através da divisão
  • 69. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 69 Na década de setenta, à medida que os afro-americans conquistavam um maior protagonismo social na sequência do fim da segregação (Act of Civil Rights, 1968), e afirmavam orgulhosamente a sua pertença ‘racial’ (Black Power), foi crescendo nos white-americans um sentimento de ‘ameaça’ em relação a esta minoria, que de repente ocupava lugares até aí exclusivos da maioria. Estas alterações políticas e sociais relativas aos afro-americanos, conduziram a uma mudança na perspectivação desta categoria, o que veio requerer a introdução de novos conceitos explicativos do fenómeno. Na década de oitenta surgiram uma série de novos conceitos, permitindo estabelecer uma distinção entre expressões tradicionais e as novas formas de racismo emergentes nas sociedades formalmente anti-racistas. Sociólogos e psicólogos contribuíram para uma ‘explosão’ de novos conceitos relativos aos racismos contemporâneos. Esta renovação conceptual ocorreu inicialmente nos EUA e na Grã-Bretanha e, em seguida, alargou-se a outros países europeus. Diversos autores verificaram que a percepção de que os afro-americanos ameaçam os valores vistos como tradicionais da sociedade americana se traduzia em novas formas de racismo: racismo moderno (McConahay, 1983); ou racismo simbólico (Sears, 1988). Por exemplo, Jones (1972) refere um racismo cultural nos EUA: na opinião dos indivíduos preconceituosos, as minorias discriminadas sê-lo-iam por razões que lhe são intrínsecas - por partilharem uma cultura que não lhes permite uma boa adaptação às exigências do sistema económico capitalista, o individualismo meritocrático, a orientação para o poder e o êxito em detrimento dos valores afiliativos. Assim, existiria uma forma ideal de Homem (WASP), e formas menores de humanidade que se manifestariam na incapacidade de adaptação às sociedades capitalistas liberais. Isto é, quando já não se pode afirmar publicamente que os negros possuem capacidades intelectuais e aptidões inferiores aos brancos, atribui-se-lhes a responsabilidade da discriminação de que são vítimas por não aderirem aos valores necessários para serem bem sucedidos nas sociedades ocidentais e por não efectuarem um esforço de adaptação. em dois grupos em função da cor dos olhos, castanhos ou azuis, aos quais estava supostamente associado um maior ou menor nível de inteligência, sendo o grupo ‘menos inteligente’ marcado por um lenço azul ao pescoço para facilitar o ‘reconhecimento’ dos membros deste grupo à distância (site: http://www.horizonmag.com/4/jane-elliott.asp).
  • 70. Racismo e Etnicidade em Portugal 70 Para Pettigrew e Meertens podemos considerar duas expressões contrastantes do preconceito nas sociedades contemporâneas: o preconceito flagrante (blatant prejudice) e o preconceito subtil (subtle prejudice), que os autores caracterizam da seguinte forma: “Blatant prejudice is hot, close and direct. Subtle prejudice is cool, distant, and indirect” (1995, p.58). A explicação proposta pelos autores é de natureza socionormativa, situando-se no quadro dos processos de influência social10 . Na opinião dos autores, as sociedades ocidentais, a partir da II Guerra Mundial, desenvolveram progressivamente uma norma social contra as formas tradicionais de expressão do racismo. A relação dos indivíduos com esta norma social pode assumir três formas: rejeição, aceitação ou internalização. Na perspectiva de Kelman, a aceitação de uma norma corresponde à sua adopção instrumental, de modo a garantir recompensas ou evitar punições, enquanto a internalização de uma nova norma ocorre quando existe congruência entre ela e o sistema de valores de um indivíduo (1961; referido por Vala, Brito e Lopes, 1999b). Isto é, num caso estamos perante um acordo público (submissão) e noutro perante um acordo privado (conversão), usando a terminologia de Moscovici (1976/1979). Na perspectiva de Pettigrew e Meertens (1995), os indivíduos que rejeitam a norma anti-racista não se inibem de exprimir publicamente o racismo tradicional, sendo as suas respostas claramente anti-normativas (racismo flagrante). Os indivíduos que aceitam a norma não exprimem o racismo na sua forma tradicional, mas manifestam expressões mais subtis de racismo que não violam a norma anti-racista, uma vez que esta incide apenas sobre as expressões tradicionais do racismo (racismo subtil). Por sua vez, os que internalizaram a norma, rejeitam ambas as formas de racismo, uma vez que a norma anti-racista se enquadra no quadro de valores igualitários mais gerais (igualitarismo). Resumindo: o racismo flagrante é claramente antinormativo; o racismo subtil corresponde à aceitação da norma, acompanhada de expressões de racismo não censuradas por esta); e igualitarismo corresponde à internalização da norma, com base em valores igualitários. 10 Uma vez que estes processos não são centrais nesta discussão não nos debruçaremos detalhadamente sobre eles remetendo para uma revisão da literatura dos processos de influência social: Garcia- Marques (1993/2000).
  • 71. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 71 Segundo os autores, o conceito de racismo subtil permite sintetizar num só conceito expressões de racismo ligadas a configurações de valores individualistas (racismo simbólico) e expressões que não põem em causa um auto-conceito igualitário dos indivíduos (racismo aversivo). Os autores realizaram um estudo no âmbito do Eurobarómetro de 1988, envolvendo amostras aleatórias e representativas de quatro países europeus, questionadas sobre diferentes grupos-alvo minoritários: na Inglaterra os grupos-alvo foram os ‘antilhanos’ e os ‘asiáticos’; em França os ‘norte-africanos’ e os ‘asiáticos’; na Holanda os ‘surinameses’ e os ‘turcos’; e na Alemanha os ‘turcos’ (Pettigrew e Meertens, 1995)11 . Os autores identificaram (tanto na amostra global como em cada uma das subamostras), dois factores correlacionados: o preconceito flagrante e o preconceito subtil. O preconceito flagrante integra duas dimensões: a rejeição do grupo-alvo e a percepção de que este constitui uma ameaça; e a rejeição de intimidade com membros do grupo-alvo. O preconceito subtil integra três dimensões: a percepção de que o grupo- alvo não se ajusta aos valores tradicionais da sociedade (nomeadamente aos valores de trabalho e sucesso); a acentuação das diferenças culturais entre o grupo-alvo e o endogrupo; e a negação de emoções positivas relativamente aos membros do grupo- alvo. Para compreender a expressão do preconceito flagrante e do preconceito subtil no conjunto das amostras, os autores usaram uma série diversificada de variáveis independentes12 . O racismo flagrante encontra-se associado à diferenciação no plano biológico (racialização) enquanto que o segundo se associa à diferenciação no plano cultural (etnicização). O facto de ambos os factores se encontrarem fortemente correlacionados “mostra que se está perante duas dimensões diferentes de um mesmo fenómeno” (Vala, Brito e Lopes, 1999b, p.37). Nas várias amostras europeias verifica-se uma maior adesão ao racismo subtil do que ao racismo flagrante, o que apoia a hipótese de partida dos autores, segundo a qual 11 Posteriormente estas foram aplicadas noutros país es europeus que entretanto se tornaram também eles países de imigração: na Itália o grupo-alvo foram os ‘marroquinos’ (Arcuri e Boca, 1999); e em Portugal os ‘imigrantes negros’ (Vala, 1999; Vala, Brito e Lopes, 1999a), assunto que desenvolveremos na próxima secção. 12 Para uma descrição detalhada destas dimensões do racismo e uma discussão sobre as variáveis predictoras ver Meertens e Pettigrew (1999), Pettigrew e Meertens (1995), e Pettigrew (1999); a sua relação com pesquisas precedentes é apresentada pelos autores do modelo nos capítulos com que contribuem para este livro.
  • 72. Racismo e Etnicidade em Portugal 72 o racismo flagrante é percebido como anti-normativo, mas não o racismo subtil. Contudo, não devemos “esquecer que os dados foram recolhidos através de questionário, quer dizer, em condições que não facilitam a expressão do racismo tradicional anti-normativo, e em que os respondentes têm controlo sobre as suas respostas” (Vala, Brito e Lopes, 1999b, p.38). Relativamente a outras conceptualizações sobre os ‘novos racismos’, a proposta de Pettigrew e Meertens (1995) tem a vantagem de colocar claramente a análise do racismo no âmbito dos processos intergrupais, e de salientar a importância das questões de ordem normativa nas novas expressões do racismo (Vala, 1999). De salientar que os diversos estudos realizados pelos diversos autores mencionados relativamente a esta temática apenas apresentam a perspectiva dos membros dos grupos maioritários ou dominantes, deixando na sombra as percepções que os membros dos grupos vítimas de racismo têm destes processos. Este ‘esquecimento’ a que são votados os membros das minorias por parte dos investigadores constitui só por si uma discriminação digna de registo e limita o avanço do conhecimento científico nesta área.
  • 73. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 73 1.4 O contexto português 1.4.1 Colonianismo, idendidade nacional e representações do ‘negro’ “Devemos organizar cada vez mais eficazmente e melhor a protecção das raças inferiores cujo chamamento à nossa civilização cristã é uma das concepções mais arrojadas e das mais altas obras da colonização portuguesa.” António Oliveira Salazar, 1935 “Aos olhos desses alguns, as músicas, a dança, as línguas, a filosofia, as religiões africanas são ‘coisas’ e coisas sem importância. O próprio homem africano é submetido a esse processo. Na sua mente, nós somos coisas desprezíveis, destituídas do valor humano que têm todos os homens sobre a terra. Logicamente, deste processo de ‘coisificação’ passa-se com a maior facilidade para a violência e a imoralidade.” Agostinho Neto, 1959 Portugal foi durante muito tempo perspectivado como um país ‘homogéneo’ em termos linguísticos, culturais e religiosos (por exemplo: Dias, 1950/1990, p.139; 1961, p.121), mas também como possuindo um “temperamento paradoxal ?que? explica os períodos de grande apogeu e de grande decadência da história portuguesa” (Dias, 1950/1990, p.146). Por seu turno, Eduardo Lourenço refere ser difícil encontrar "um país tão centrado, tão concentrado, tão bem definido em si mesmo como Portugal" (1990, p.10), mas constata também o “gozo da diferença” (1990, p.10). Numa investigação sobre a identidade nacional Joana Miranda refere que, desde o período dos Descobrimentos, Portugal revestiu-se de uma ‘identidade mítica’, uma identidade imaginária já expressa por Luís de Camões em Os Lusíadas. Segundo a autora, somos um povo com um elevado grau de ‘segurança ontológica’, isto é, sabemos quem somos e para onde vamos, e salienta “o contraste entre o sentimento de segurança ontológica e a realidade da nossa fragilidade objectiva, se nos pensarmos em termos de pura força económica, política, tecnológica ou científica” (Miranda, 2001, pp.13-14). Não nos vamos aqui debruçar sobre as questões da identidade nacional a não ser aquelas que se prendem especificamente com a nossa relação com um Outro específico: o Negro. Não deixa de ser curioso que tendo o território português sido
  • 74. Racismo e Etnicidade em Portugal 74 permanentemente um palco de fluxos migratórios, por onde passaram e ficaram povos das mais diversas origens, se continue a perspectivar Portugal como um país homogéneo. A presença de diferentes ‘povos’ no actual território português é anterior à era cristã. Aqui residiram e se cruzaram Iberos, Lusitanos, Fenícios, Romanos, Celtas, Visigodos e Mouros. A partir do século VI registou-se a presença de Judeus, os quais constituíram comunidades dispersas pelo país, revestindo-se de particular importância as judiarias de Lisboa e do Porto. Os Ciganos iniciaram a sua deslocação para Portugal no século XV e a sua presença foi-se tornando cada vez mais significativa com o tempo (Rocha-Trindade, 1995, p.197). A presença de Negros em Portugal a partir do século XV foi uma consequência da política de expansão inaugurada pelos primeiros reis da dinastia de Avis. José Tinhorão no livro Os Negros em Portugal: Uma presença silenciosa (1988/1997) faz uma análise da presença e a participação dos negros na vida portuguesa, desde os primórdios da nacionalidade até século XX. Recorrendo a materiais tão diversos como a legislação produzida, a literatura histórica, a literatura de cordel, o teatro, as festas e romarias populares, a música e a dança. Para além de averiguar a participação dos negros na vida portuguesa, especialmente no seu papel de trabalhadores no artesanato, no serviço doméstico, no campo, e nos “serviços mais sujos e pesados” (Tinhorão, 1988/1997, p.107). A sua análise remete-nos para os papéis que os negros eram chamados a desempenhar e também para as representações do negro na cultura popular, embora essa apresentação não seja realizada de forma sistemática. Segundo o autor, a partir do século XIV são frequentes nos registos históricos as referências ao negro, sendo a palavra usada tanto para designar ‘mouros’ como ‘africanos’. A palavra era também usada como apelido identificador da cor da pele: David Negro, Pêro Palha, Luís Mulato, Rita Malhada (Tinhorão, 1988/1997). Uma dúvida que muitas vezes tem ocorrido a historiadores e estudiosos da antropologia e dos costumes em Portugal, diante da documentada presença de negros africanos durante mais de três séculos no país, é a de saber até que ponto essa minoria étnica se relacionou com os naturais, em termos de cruzamento. Na opinião de Tinhorão, a maioria dos autores portugueses, visivelmente influenciados pelos preconceitos racistas, tomou como problema os possíveis vestígios de ‘nódoas
  • 75. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 75 pigmentares’ (expressão de Pedro d´Azevedo, 1903, citado por Tinhorão, 1988/1997, p.406) para concluir quase sempre como Mendes Correia que "a proporção de negróides, mulatos ou negros na nossa gente metropolitana é escassíssima”, que os "Portugueses não têm afinidades hemáticas com os negros africanos" e "têm-se acumulado os comportamentos comprovativos de que são reduzidíssimos os vestígios das influências negríticas ou simplesmente negróides na população portuguesa actual" (1938, citado por Tinhorão, 1988/1997, p.405-406). Esta opinião de Mendes Correia é partilhada por diversos médicos que se preocuparam com a ‘pureza bioquímica do povo português’. Por exemplo, Aires de Azevedo (1940, p.32) refere que a “influência das raças coloniais (nomeadamente Hindu e Negra) na pureza bioquímica do povo português, é praticamente nula”. E Pires de Lima (1940, p.167) fornece uma indicação mais detalhada: “Não há dúvida que o nosso fundo étnico provém dos Lusitanos, dos Romanos e dos Germânicos; mas onde quer se topam indícios de influências estranhas. As ideias fatalistas do nosso povo derivam da alma dos Árabes, que deixaram aqui tantas mouras encantadas; onde quer se notam sobrevivências judaicas no espírito mercantil e usurário de tantos Portugueses; e o abominável fado, que muitos consideram indevidamente como a mais típica das canções nacionais, provém certamente da triste música dos escravos negros, que herdamos das Descobertas. Com grande exagêro, tem sido Portugal acusado, sobretudo por alemães, de albergar um povo inferior, de carácter acentuadamente negróide”. Na opinião de Tinhorão, este conjunto de opiniões mostra que os autores portugueses, em geral, preferem não aprofundar o tema, talvez para não cair em contradições gritantes, como a de Mendes Correia na conferência onde, após sugerir que "se tenha exagerado a prolificidade dos escravos em Portugal", cita longamente a conclusão de Oliveira Martins, que o contradiz: "Os escravos, repugnante legado da descoberta da África e do domínio ultramarino, punham na sociedade uma mancha torpe; e na fisionomia das massas, borrões de cor negra, pelas ruas e praças da capital. Tinham-se e tratavam-se como gado. Criavam- se rebanhos de mulheres para crias, porque um pretinho novo, desmamado apenas, já valia 30 a 40 escudos. As negras soíam ser fecundas e inçavam as casas de negrinhos e mulatinhos, como diabos, chocarreiros, ladinos, quem não gostaria deles?" (citado por Tinhorão, 1988/1997, p.406).
  • 76. Racismo e Etnicidade em Portugal 76 Conclui Tinhorão que, diante de tais exemplos, o mais razoável a fazer seria reunir e apreciar sem pré-julgamentos as informações disponíveis sobre como se processou, desde o início dos contactos com a África Negra, na segunda metade do século XV, o relacionamento entre a sociedade branca e os escravos que daquele continente chegavam cada vez em maior número. O autor refere que a indiferença científica e o preconceito oficial teriam conduzindo “ao esquecimento da dívida inegável da nação e da gente portuguesa à força de trabalho e ao sangue dos negros africanos” (1988/1997, p.422). Segundo o historiador Valentim Alexandre (1999, p.133) o moderno Império de Portugal em África constrói-se no século XIX, a partir da independência do Brasil (declarada em 1822 e reconhecida em 1825), após a qual o poder imperial português fica reduzido a uma expressão menor, sendo neste contexto, muito desfavorável, que nascem os primeiros projectos de formação de um novo Império, centrado no Continente Africano. Segundo o autor, coube a Sá da Bandeira formular e dar expressão política ao mais consistente desses projectos - o único que, rompendo com as práticas correntes, toma por base a abolição imediata do tráfico de escravos e, a prazo, a da própria escravatura. Para justificar as medidas abolicionistas, Sá da Bandeira valia-se das disposições da Carta Constitucional, que consagrava a “inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos portugueses” e que concedia a cidadania portuguesa a quem tivesse nascido “em Portugal ou seus domínios”. Partindo destes princípios Sá da Bandeira concluía: “é positivo que os habitantes portugueses das províncias da Africa, da Ásia e da Oceânia, sem diferença de raça, de cor ou de religião, têm direitos iguais àqueles de que gozam os portugueses da Europa” (citado por Alexandre, 1999, p.134). No entanto, apesar de traduzido em vários diplomas legais, o abolicionismo de Sá da Bandeira encontrou múltiplas resistências. Alexandre (1999) refere que a proibição do tráfico negreiro em 1836 em pouco contribuiu para a sua efectiva extinção face à posição dos negreiros, que dominavam a vida económica e política das possessões africanas, para além de que a perspectiva abolicionista era também muito minoritária na própria metrópole, sendo geralmente atacada como uma simples utopia, que poderia pôr em causa a soberania nacional nos territórios do Continente Negro. Para a ideologia dominante “a raça negra estava irremediavelmente ferida por uma inferioridade inata:
  • 77. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 77 tratar-se-ia de uma "população selvagem", "essencialmente indolente", inclinada por natureza à embriaguez e ao roubo, que não conhecia nenhum dever social nem experimentava "sentimento do amor à família" ou o do amor do próximo", concepção essa que legitimava o tráfico de escravos e a escravatura: “o debate ideológico tem, como pano de fundo, uma realidade fortemente marcada pela persistência do tráfico negreiro e de formas de produção baseadas na coerção (trabalho escravo ou trabalho forçado) contrariamente aos mitos correntes, alimentados ainda hoje por certa historiografia, da prioridade portuguesa na abolição do comércio negreiro e da escravatura” (Alexandre, 1999, p.135). Segundo Alexandre o predomínio desta ideologia só iria esbater-se na década de 1870, época em que Andrade Corvo retoma e aprofunda muitos dos temas enunciados por Sá da Bandeira. A manifestação mais clara dessa renovação está na lei de 29 de Abril e 1875 que extingue o trabalho servil nas colónias. No âmbito da política colonial defende-se “a integração dos povos das possessões no conjunto nacional, de preferência por aliança com os ‘chefes indígenas’ e preservando as instituições tradicionais africanas, nas quais via um embrião da vida democrática” (1999, p.136). Para Andrade Corvo a grande maioria das populações africanas seria susceptível de progredir e civilizar-se, recuperando do seu atraso histórico. Caberia à Europa abrir- lhe o caminho, mostrando aos “povos selvagens” as formas de “domínio do homem sobre as forças da natureza pela ciência”, ao mesmo tempo que se lhes inculcaria uma superioridade moral da civilização cristã “fundada na igualdade de todos os homens, na paridade de todas as raças e no progresso em comum de toda a humanidade” (1883/1887; citado por Alexandre, 1999, p.136). Mas a política de Andrade Corvo teria sucumbido rapidamente, não resistindo à emergência de uma forte corrente de nacionalismo populista nos finais da década de 1870. Nas colónias, as formas coercivas de trabalho e o próprio tráfico de escravos impuseram-se de novo, contra o disposto no regulamento de 21 de Novembro de 1878, de imediato infringido por regulamentos locais, com a complacência do governo de Lisboa (Alexandre, 1999, p.136). No campo ideológico, o ‘racismo científico’ recorre aos tópicos recém- desenvolvidos pelo darwinismo social e pela antropologia física, que ilustrámos no ponto 1.3.1. Oliveira Martins (1880/1953, pp.262-265) fornece-nos um exemplo:
  • 78. Racismo e Etnicidade em Portugal 78 "Sempre o preto produziu em todos esta impressão: é uma criança adulta. A precocidade, a mobilidade, a agudeza próprias das crianças não lhe faltam; mas essas qualidades infantis não se transformam em faculdades intelectuais superiores. Resta educá-los, dizem, desenvolver e germinar as sementes. [...] Não haverá, porém, motivos para supor que esse facto do limite da capacidade intelectual das raças negras, provado em tantos e tão diversos momentos e lugares, tenha uma causa íntima e constitucional? Há decerto, e abundam os documentos que nos mostram no negro um tipo antropológico inferior, não raro próximo do antropóide, e bem pouco digno do nome de homem. A transição de um para o outro manifesta-se, como se sabe, em diversos caracteres: o aumento de capacidade da cavidade cerebral, a diminuição inversamente relativa do crânio e da face, a abertura do ângulo facial que daí deriva, e a situação do orifício occipital. Em todos estes sinais os negros se encontram colocados entre o homem e o antropóide.[...] A ideia de uma educação dos negros é portanto, absurda não só perante a História, como também perante a capacidade mental dessas raças inferiores. [...] Que será daqui por muitos séculos das raças negras? Obedecendo a leis inerentes à existência do homem sobre a Terra, terão desaparecido, em vez de se terem civilizado” (citado por Alexandre, 1999, pp.136-137). Segundo Alexandre, a doutrina expressa neste texto é uma ilustração de uma “teoria geral da história, muito elaborada e muito coerente, que Oliveira Martins expõe noutras obras”. Na sua base, estava a ideia de uma desigualdade congénita das diversas “ ‘raças naturais’, biologicamente distintas e irredutíveis. De entre elas, a superioridade caberia à ariana, destinada a criar a civilização europeia e a dominar o mundo, submetendo ou exterminando os povos inferiores”. As consequências desta teoria, no domínio da política colonial, eram óbvias. Segundo Oliveira Martins, seria absurda a aplicação da Carta Constitucional à "pretaria" de Angola, sendo a utilização do trabalho forçado do negro a única forma de criar "colónias fazenda" proveitosas à economia nacional (Alexandre, 1999, p.137) Alexandre salienta que estas ideias tiveram larga aceitação nos meios imperiais portugueses. António Enes (Governador de Moçambique), desenvolveu o tema do trabalho obrigatório, justificando o exercício de uma "compulsão" sobre "entes quase impensantes e impulsivos para os arrancar à ociosidade", considerando que o Estado não devia "ter escrúpulo de obrigar e, sendo assim, de forçar a trabalharem, isto é, a melhorarem-se pelo trabalho, a adquirirem pelo trabalho meios de existência mais feliz, a civilizarem-se trabalhando, esses rudes negros da Africa, esses ignaros párias da Ásia, esses meios selvagens da Oceânia” (Enes, 1899; citado por Alexandre, 1999, p.138),
  • 79. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 79 tendo participado num regulamento de 9 de Novembro de 1899 que, revogando o de 1878, consagrará de novo o trabalho obrigatório. A mesma perspectiva contribuía para justificar a apropriação de terras em África, uma vez que aos negros faltava a noção de propriedade, para defender a aplicação aos "indígenas" de um direito penal específico, fortemente repressivo, que seria o único eficaz perante povos selvagens, e ainda para preconizar a limitação da educação dos africanos aos mais simples rudimentos “sendo tudo mais inútil e mesmo prejudicial” (Alexandre, 1999, p.138). É dentro desta perspectiva que Eduardo Ferreira da Costa (1901), no primeiro Congresso Colonial, apresenta uma comunicação na qual faz a apologia de um “despotismo atenuado” para governo das colónias: negação do princípio da liberdade de imprensa e do direito de sufrágio; e a instauração de um "regime militar", nos territórios ainda não inteiramente "pacificados", com a concentração de todos os poderes nas mãos dos governadores e a utilização de processos militares sumários na administração. Em qualquer caso, a lei aplicável a ‘europeus’ e a "indígenas" não poderia ser igual, pois: "as razões antropológicas, as razões sociais, mostrando a disparidade de caracteres étnicos, de usos e de instintos, e a inferioridade manifesta do selvagem, evidencia[vam] a necessidade de aplicar diferentes sistemas de governo a raças tão diversas e de manter nas mãos dos mais civilizados, como dos mais dignos, a tutela dos mais selvagens e primitivos, como de uma classe desgraçada ou incompleta da sociedade humana" (Costa, 1901; citado por Alexandre, 1999, p.139). Segundo Alexandre, esta seria a doutrina dominante nos começos do século XX, em plena época da ocupação militar dos territórios coloniais. No entanto, algumas vozes davam um maior crédito às possibilidades de "civilização" e de assimilação da raça negra - embora sempre num futuro longínquo, após uma longa evolução. Paiva Couceiro (Governador de Angola, 1907-1909), apontava como objectivo final da colonização de Angola a sua transformação numa "grande província portuguesa", dando "cunho nacional à totalidade do seu povo", a constituir por "portugueses do Velho Continente", pelas "raças nativas" e por uma "percentagem devidamente doseada de estrangeiros adventícios". Para o "integramento final de todas as populações dentro da paz, da ordem e do progresso da hegemonia portuguesa” que, na sua perspectiva, levaria centenas de anos a realizar (1948; citado por Alexandre, 1999, p.139).
  • 80. Racismo e Etnicidade em Portugal 80 Esta ideia de integração nacional será continuada por Norton de Matos (Governador de Angola, 1912-1915, 1921-1923). Os seus planos tinham como elemento essencial fomentar a emigração metropolitana para Africa, única forma de transformar o ultramar no "prolongamento da nacionalidade, brilhante receptáculo da nossa língua, campo vastíssimo à expansão da nova civilização [...] abençoada pelos povos primitivos que a História nos entregou para os elevarmos até nós" (Norton de Matos, 1926; citado por Alexandre, 1999, pp.139-140). Uma vez estabelecidas a hegemonia e a civilização nacional, processo que duraria séculos, seria então possível a fusão das raças em presença, sob a égide dos valores portugueses. No entanto, durante as gerações mais próximas, a conservação do domínio de Portugal exigiria uma rigorosa separação racial, de modo a evitar a diluição dos elementos de civilização (Norton de Matos, 1926; citado por Alexandre, 1999, p.140). A necessidade de consolidar o espaço colonial e de o desenvolver economicamente teria estado na origem da promoção de um inquérito etnográfico em 1912 ou, no mesmo ano, a criação do Museu Etnográfico de Angola e Congo (cf. Pereira, 1986, p.201). Nessa linha, a acção de Norton de Matos em Angola, nomeadamente na sua primeira governação (1912-15), parece ter contribuído para estimular o interesse pelo conhecimento dos nativos das colónias. Criará assim o Serviço dos Negócios Indígenas, «cuja principal função consistia na codificação dos "usos e costumes indígenas"» (cf. Pereira, 1986, p.202). No entanto, a crise gerada pela I Guerra Mundial acabaria todavia por suscitar um notório refluxo no entusiasmo pelos projectos coloniais (Cunha, L., 2001, pp.112-113). A emergência do Estado Novo marcará uma inversão nesta política colonial com o retorno à "arrumação" simplificadora das sociedades em duas esferas distintas – "civilizadas" vs. "primitivas", exigindo a conceptualização de mecanismos capazes de atenuar as diferenças pela absorção gradual da "civilização" por parte daqueles que eram supostos não a possuirem. Esta política dará lugar à elaboração de diversos projectos assimilacionistas que Moutinho (1980, p.49) designará por “acção etnocidária”, na medida em que fazia tábua rasa das culturas dos povos colonizados (Cunha, L., 2001). Na opinião de Alexandre, estaríamos perante uma concepção “fortemente etnocentrica, muito marcada pelo nacionalismo exacerbado que, desde o último quartel
  • 81. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 81 de Oitocentos, tomara a quase totalidade das elites políticas portuguesas” (Alexandre, 1999, p.140). Um dos aspectos fundamentais subjacentes a esta ideologia era a ideia de uma "finalidade" ou de uma "missão” a cumprir por Portugal no ultramar, como portador dos valores universais da civilização face aos "povos primitivos" (Alexandre, 1999; Cunha, L., 2001). Este espírito de ‘missão’ foi uma das ideias fortes do Estado Novo e viria a ser expresso formalmente no Acto Colonial de 1930. No início do Estado Novo, à entrada da década de trinta, o império está à beira da falência, sendo a sua importância "muito maior no plano político e ideológico do que no campo económico" (Rosas, 1994, p.131). Pode mesmo dizer-se que, embora no plano político e jurídico se expresse a intenção de promover o desenvolvimento económico, parece ser mais ao nível simbólico que o império assume a sua verdadeira importância (Cunha, 1994). Um breve olhar pela legislação produzida na primeira fase do Estado Novo, ajuda- nos a perceber tanto o esforço de desenvolvimento, quanto o apelo ao império como factor de mobilização nacional. Braga da Cruz afirma não ser "possível entender cabalmente o nacionalismo autoritário do salazarismo sem uma referência à sua dimensão colonial, não só porque o colonialismo do Estado Novo foi um colonialismo nacionalizador, mas também porque o próprio nacionalismo foi intrinsecamente determinado pela situação colonial" (Braga da Cruz; citado por Silva, 1989, p.141). Em 1926 são publicadas as Bases Orgânicas da Administração Colonial, onde se vinca a necessidade de remodelar a administração colonial. Pela primeira vez se fala de "império colonial" (cf. Silva, 1992, p.358), o que evidentemente nos remete para a importância estratégica que tal ideia começa então a assumir, e em 23 de Outubro é aprovado o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas pelo Decreto nº12533 (Rosas, 2000, p.320). Aprovado pelo decreto n.º 28570 de 8 de Julho de 1930 e tornado constitucional em 1933, o Acto Colonial exemplifica de forma clara o desejo de reafirmação do país através da revalorização das colónias: "É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que nelas se compreendam" (Art. 2; Silva, 1989, p.118).
  • 82. Racismo e Etnicidade em Portugal 82 Armindo Monteiro (Ministro das Colónias; 1931-1935), considerado o principal propagandista da ideia imperial na primeira fase do Estado Novo, retoma e dá força aos temas da vocação colonial do país, e da especial capacidade do povo português para lidar com as populações "indígenas" do ultramar, muito generalizados em Portugal desde a época da partilha de Africa (Cunha, L., 2001, p.95). O antropólogo Luís Cunha (2001) analisou detalhadamente a documentação produzida no âmbito de dois eventos concretos marcantes durante este período: a Exposição Colonial do Porto (1934) e a Exposição do Mundo Português em Lisboa (1940). Referindo-se ao primeiro destes eventos, o autor salienta, por um lado, o discurso de exaltação do império e, por outro, a sua tónica pedagógica. Através da exposição procurou-se “cativar interesses e vocações, mas sobretudo demonstrar a verdadeira dimensão e vocação do país”. A exposição da “vastidão geográfica” da nação permitiria negar a sua “pequenez europeia”, evidenciando “o valor da alma missionária e civilizadora portuguesa”. Neste sentido, face à ameaça de outras potências coloniais europeias que cobiçavam o solo português, pretendia-se evidenciar “os direitos históricos e morais de possuir um império” e legitimar as expectativas de um “novo ciclo político” com vista à consolidação destes direitos (Cunha, L., 2001, p.95). Armindo Monteiro (Ministro das Colónias) na sessão inaugural da exposição procurou precisamente vincar o carácter imperial da nação portuguesa: apesar das suas limitações económicas, Portugal consegue realizar uma obra válida porque possui uma verdadeira ‘vocação’ colonial, exercitada por séculos de contacto com povos longínquos. Esta "Predestinação histórica" ou "pesada tarefa" abraçada por Portugal fez com "que se acrescentem territórios ao mundo e novos povos recebam as luzes da civilização" (Salazar, 1935, p.237; citado por Cunha, L., 2001, p.97). Por exemplo, Octávio Sérgio ao relatar a sua visita à exposição (1934, p.42), onde o seu olhar deambulou brevemente pela "pretalhada", refere que o que realmente o impressionou foi um monumento erguido ao "Esforço da Raça" que descreve da seguinte forma: “Uma figura máscula, bem musculada, ergue os braços ao ritmo do abrir das asas, sôbre a meia calote do globo; a ouro escritas estas palavras: Europa, África, Ásia, América, Oceania. Por baixo, a legenda camoneana: - ‘Se mais mundo houvera lá chegara’” (1934, p. 47; citado por Cunha, L., 2001, p. 99).
  • 83. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 83 Sintetizando o material analisado, Luís Cunha refere: “Seres que conservam do ‘primitivismo’ a nota exótica, os nativos que a Exposição Colonial mostra apresentam-se docilizados, convenientemente submetidos aos desejos de uma ‘autoridade superior’, sem que, todavia, se tenham tornado já seres plenamente civilizados, pois importa fazer notar que ‘dum selvícola, que só conhece o ritmo sensual do seu batuque e a simplicidade primeva da sua esteira, não se faz, de golpe, um cidadão’” (1934, p. 185; citado por Cunha, L., 2001, p. 100). Na opinião do autor, as imagens e os discursos sobre os ‘indígenas’ devem ser entendidos “como prova de dois factos convergentes: a sua pacificação, que os tornou súbditos do estado português; e a necessidade de os fazer ainda evoluir no sentido da aquisição de uma cidadania plena” (Cunha, L., 2001, p.100). No número especial que a revista Civilização dedica à exposição, os ‘indígenas’ são desprovidos da palavra, mas constituem o essencial da ilustração da revista, onde se evidencia a “sensualidade de corpos seminus” ou o “exotismo das roupas e adornos”. Assim, “é pela imagem que o discurso do colonizado se constrói, num processo onde o olhar de quem domina estabelece as regras decisivas do processo de comunicação” (Cunha, L., 2001, p.101). Neste sentido o autor afirma que fica elucidado de forma clara que “possuindo uma imagem, o indígena não parece possuir ainda uma alma e essa ausência remete-o inevitavelmente ao silêncio” (Cunha, L., 2001, p.101). Na análise que faz das diversas conferências a bordo do Cruzeiro de Férias que levou jovens portugueses a visitar as Colónias, Luís Cunha refere que os conferencistas nunca atribuíam relevo à diversidade dos ‘nativos’, sendo estes “sempre designados genericamente por pretos, do mesmo modo que o universo de práticas culturais se reduz quase sempre ao sedutor batuque”. Por exemplo, Jorge Brutas Cardoso (1935) enfatiza "a ingenuidade e criancice dos pretos, que apreciam ainda as bugigangas berrantes” (1935, p.303, citado por Cunha, L., 2001, p.111). Mais tarde, Marcelo Caetano, Director Cultural do referido cruzeiro, salientou a importância deste evento na formação moral e patriótica de potenciais novos administradores, cuja acção mais valiosa seria o “domínio das almas” (1936, p.379; citado por Cunha, L., 2001, p.110). Os Trabalhos do 1º Congresso Nacional de Antropologia Colonial (1934) oferecem-nos uma clara demonstração do saber antropológico da época sobre os
  • 84. Racismo e Etnicidade em Portugal 84 ‘indígenas’. A título meramente ilustrativo iremos referir algumas das comunicações apresentadas na secção de Psicologia. A comunicação de Mendes Correia, sobre o ‘valor psico-social comparado das raças coloniais’ apresenta os resultados de um inquérito no qual se procurava estabelecer um ‘índice de eficiência racial’ (1934, p.386) baseado numa adaptação do método de Poteus e Babcock13 . O inquérito foi efectuado junto de 27 portugueses (missionários, oficiais do exército, médicos, funcionários e outras profissões), que deveriam expressar a sua opinião sobre várias qualidades (a aptidão para o trabalho, a impulsividade, moralidade, sugestibilidade, auto-controle, capacidade de decisão, previdência, tenacidade, inteligência global e educabilidade) das seguintes ‘raças puras’: negros da Guiné, negros de S. Tomé e Príncipe, negros de Angola e Congo, Mucancalas, negros de Moçambique, Indianos, Chineses de Macau e Timor, e Timorenses (1934, p.388). Tendo presente que o reduzido número de respostas recebidas não permitia conclusões definitivas, os resultados do inquérito não deixavam, no entanto, de fornecer algumas indicações úteis. Por exemplo, os bantos manifestavam aptidão para o trabalho mas eram pouco previdentes, no que eram acompanhados pelos negros da Guiné e pelos timorenses. Quanto à educabilidade e a inteligência global imperava o desacordo entre os informantes, tendo alguns deles considerado os portugueses metropolitanos em desvantagem face aos chinas e aos negros da Guiné! Talvez por isso, Mendes Correia reconheceu a “heterogeneidade complexa das populações das nossas colónias” e salientou a necessidade da “utilização de processos científicos mais directos e seguros do que o de Porteus e Babcock para o conhecimento do valor psico-social das populações, como certos métodos antropológicos e psicotécnicos” (1934, p.393). 13 Poteus e Babcock (1925) efectuaram um inquérito a 25 pessoas (administradores de fazendas, industriais, médicos e educadores – sobre alguns caracteres psico-sociais dos trabalhadores agrícolas e industriais) sobre as qualidades (group planning capacity, resistance to suggestion, self determination, inhibition of impulse – prudence, resolution – determination, self control, stability of interest, conciliatory attitude, dependability) de vários ‘grupos raciais’ do Hawai (japoneses, chineses, portugueses, hawaianos, filipinos e porto-riquenses). Sobre os resultados do referido inquérito, Mendes Correia refere: “de passagem, registemos que os portugueses ficaram dum modo geral abaixo dos japoneses e chineses. A verdade é que os ditos autores e os juizes – de certo norte-americanos como aqueles – não mostram muita simpatia por nós...” (p.385). Não deixa de ser curioso que o reconhecimento do etnocentrismo dos americanos não o tenha levado a reflectir sobre o etnocentrismo espelhado nas suas próprias concepções.
  • 85. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 85 Foram precisamente os resultados obtidos através de métodos psicotécnicos ‘mais rigorosos’ que foram apresentados por Leite Costa na comunicação seguinte, sobre a ‘avaliação mental dos indígenas de Angola’. A autora aproveitou a presença dos indígenas na exposição colonial para através dos testes de Burt14 (adaptados dos testes de Binet-Simon) comparar o nível mental destes com os das crianças metropolitanas, tendo concluído o seguinte: “os indígenas de Angola ?têm? um nível mental correspondente ao das crianças europeias entre os 6 e 13 anos (1934, p.493). Lima Vidal (Arcebispo de Ossirinco), na sua comunicação sobre os “autóctones e imigrados na África do Sul", ao falar de forma substancialmente abrangente dos povos nómadas da África central, diz-nos estarmos "em presença de uma raça indolente, de um tipo ínfimo de humanidade, por nenhuma esperança, por nenhuma ambição despertada para as lutas da vida e para os progressos que delas provêem" (1934, p.316). A caracterização dos negros como "crianças grandes" é uma das ideias mais recorrentes, ilustrada na seguinte afirmação de Santos Júnior: “Não posso deixar de dizer que a alma indígena moçambicana é, no conjunto, infantil. Inegavelmente, nos testes de inteligência e em muitas atitudes, surgem marcadas características infantis. Mas temos de reconhecer que há muito de complexo, de evoluído e de misterioso naquela alma.” (1950, p.28; citado por Cunha, L., 2001, p.125). Mas o ‘paternalismo’ com que os nativos são encarados é apenas uma das faces do relacionamento colonial. O seu contraponto é o ‘temor da selvajaria’ que marca o indígena. João de Figueiredo (Governador da Província do Niassa), a partir das 14 Não podemos deixar de dar um exemplo dos referidos testes: “Teste também valioso para se formar um diagnóstico mental é o da construção de uma frase com três palavras dadas. Este teste, que as crianças entre 10, 11 e 12 anos satisfazem de uma maneira mais ou menos completa, construindo com as três palavras dadas uma frase com duas ideias distintas ou duas frases distintas, ou numa só frase distinta, não foi compreendido por nenhum dos indígenas. Nenhum foi capaz de compreender aquilo de que se tratava, nem mesmo os mais pretensiosos. As palavras dadas foram – porto, dinheiro, rio – com os quais uma criança da metrópole de 8 anos [...] formulou – no Porto passa um rio que trás muito dinheiro”. Leite Costa salienta que apenas um angolano foi capaz de escrever, “mas três frases distintas, o que não satisfazia” o critério do teste: “1) Porto é uma cidade, segunda capital de Portugal e onde se encontram os barcos; 2) Dinheiro é moeda destinada a trocos com objectos; 3) Rio contém água para consumo do homem” (Leite Costa, 1934, p. 399, sublinhados nossos).
  • 86. Racismo e Etnicidade em Portugal 86 informações fornecidas pelas Missões Católicas, salientou a "dimensão perigosa", difícil de controlar ou disciplinar. O ‘feiticeiro’ encarnaria o lado selvagem dos povos colonizados: "horroroso ser humano”, “repugnante indivíduo mata gente para comer carne humana" (Figueiredo, 1939, p.25; citado por Cunha, L., 2001, p.124). Outra dimensão considerada igualmente incontrolada e perigosa é a da ‘sexualidade’ (Cunha, L., 2001, p.125). Torna-se por isso necessário orientar os indígenas nos rumos difíceis da civilização, contrariando a sua dimensão marcadamente perigosa. O caminho que o ‘selvagem’ deve trilhar significa um afastamento face a um primitivismo que ora é grosseiro e violento, ora irracional e incompreensível, mas representa também a perda da ingenuidade infantil frequentemente atribuída aos indígenas, e que os conferencistas do congresso colonial procuram demonstrar cientificamente (Cunha, L., 2001, p.125). Numa breve análise das teses apresentadas neste congresso podemos constatar que estas espelham aquilo que cientistas anglo-saxónicos procuravam demonstrar ‘cientificamente’ desde o século XIX em relação a outras minorias raciais e étnicas, e que, como já referimos, incluíam os Europeus do Sul, e especificamente os portugueses (e.g., Porteus e Babcock, 1925). De salientar, no entanto, o seu carácter ‘anacrónico’ já que grande parte das comunicações apresentadas se debruçava na ‘antropologia física’ (estudo do crânio, dos nervos, dos músculos, da estatura, do índice torácico, do índice cefálico, do índice esquelético, do ângulo de inserção da orelha, etc.) e na ‘biologia étnica’ (os grupos sanguíneos dos indígenas, os problemas causados pela mestiçagem, etc.) numa altura em que noutros países europeus e nos EUA a antropologia física já era seriamente contestada (Cunha, L., 2001). Esta tentativa de conhecimento das características físicas, psicológicas e sociais dos diferentes tipos de ‘indígenas’ visava sobretudo um melhor aproveitamento da mão-de-obra disponível no vasto império, e não um reconhecimento da heterogeneidade dos diferentes povos. Sintetizando alguns dos aspectos fundamentais do relacionamento da metrópole com os povos dos territórios colonizados, Luís Cunha (2001, p.105) destaca: “a negação do princípio da autonomia ?...?; a ambição de ‘elevar o indígena para níveis altos de civilização, de o converter, de o ensinar, de o proteger’ ?...?”. Referindo-se ao primado da ‘unidade do império’, o autor salienta ainda o “itinerário de acção política especificamente orientado para as colónias, através do qual se procura consolidar essa
  • 87. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 87 unidade, pela conversão do indígena “aos valores imanentes à alma humana” (Cunha, L., 2001, p.105). Ao impor “uma língua, uma fé e uma história ‘superiores’, Portugal fazia-os participar da sua própria identidade” rejeitando a "política de segregação, adoptada por outros países coloniais" (Vieira Machado, 1936, p.103; citado por Cunha, L., 2001, p.106). Na opinião de Luís Cunha (1994), a análise do processo colonial no plano político e científico é insuficiente para compreender todo o fenómeno “já que em grande parte deixa na sombra a natureza das relações sociais que o sustentam” (p.3). Para descortinar essas relações sociais, isto é, perceber “quais os ‘actores’ e quais os ‘papéis’ que a cada um cabe desempenhar para o bom sucesso do empreendimento colonial” (p.4), o autor empreende uma análise sobre ‘A imagem do Negro na Banda Desenhada do Estado Novo”. Na sua análise de revistas infantis (especialmente, o Papagaio e o Mosquito) o autor tem em conta duas dimensões: a representação pictórica (a imagem das personagens); e a acção desenrolada (o comportamento atribuído e/ou realizado pelas personagens). O objectivo foi analisar as continuidades e as transformações das representações do negro que acompanharam os acontecimentos históricos, cujo ponto de viragem é a II Guerra Mundial. O autor destaca uma caracterização que tende a dicotomizar-se em duas imagens do negro, as quais simbolizam uma aparente evolução devida à acção civilizadora do Homem Branco: a transformação do negro selvagem num negro civilizado, isto é, assimilado. Mas, como o autor refere, o negro mesmo quando civilizado: “surge quase sempre em posição de subalternidade face ao branco (são frequentemente os criados) ou, pelo menos, integrados numa disciplina que o colonizador define [...] caracterizando-se antes de mais por uma fidelidade estrita ao seu ‘patrão” (Cunha, 1994, pp.27-28). Ao nível pictórico os elementos mais salientes da dicotomia selvagem - assimilado15 são: o grau de nudez das personagens, oscilando entre “a quase nudez e o uso de roupas claramente ‘modernas’” (p.27); e o contexto situacional que as envolve, a 15 O autor refere ainda uma terceira categoria, transversal à dicotomia selvagem/civilizado, a representação caricatural ou grotesca em que o negro surge como veículo de ‘comicidade’ (Cunha, 1994, p.27).
  • 88. Racismo e Etnicidade em Portugal 88 “selva ameaçadora” ou o “contexto urbano, e mesmo quando este não existe o ambiente natural surge docilizado, como por exemplo quando o africano nos surge protegido pelas missões” (p.28). Mas é sobretudo ao nível dos comportamentos que se opera a diferenciação. A construção da especificidade identitária do negro acentua-se através do uso de designações em termos genéricos (preto, selvagem, etc.). Quando são atribuídos nomes às personagens negras é também notório o reforço dessa especificidade, que é efectuado ora acentuando a marca distintiva da cor (Juca Alcatrão, Neca Choça, Zé Escarumba, Zé Preto, Zé Pretinho, Farrusco, etc.16 ) ora invocando, ironicamente, o seu contrário através do uso da antonímia (surgindo Bola de Neve, Arminho, etc.) (p.30). Algumas expressões remetem ainda para a esfera da animalidade (‘guerreiros selvagens, maus como escorpiões’, ‘como um berro selvagem, o filho das matas esticou-se todo’, etc.) sendo estas acompanhadas de “imagens onde negros e macacos praticamente se não distinguem” (Cunha, 1994, p.30). A propósito da participação do negro na natureza indómita, Luís Cunha salienta uma interessante ambiguidade: “se por um lado o negro surge enquadrado harmoniosamente com a natureza que o envolve [...] por outro é frequente apontar-se a sua inépcia para enfrentar as ameaças próprias da selva. Basta notar como a acção dos brancos causa espanto e admiração [...], sendo mesmo solicitada quando a ameaça se torna incomportável pelos indígenas [...]. O negro [...] aparece sempre, mesmo quando no seu próprio contexto, numa posição de inferioridade face ao branco, que munido de instrumentos e saberes que a "civilização" lhe forneceu, se mostra capaz de dominar com eficácia a natureza inóspita que o negro teme apesar de nela se inserir” (1994, p. 30-31). Ou ainda: “Impondo-se e dominando um meio natural que não é o seu, o branco define as regras de acesso ao que se apresenta como o saber justo e verdadeiro, aquele através do qual os comportamentos sociais se devem orientar. A educação mostra-se o instrumento eficaz e necessário, senão para o negro perder a sua noção de inferioridade, pelo menos para aceder ao limiar da civilização. Transformados pela 16 Esclarece-se que ‘Escarumba’ significa ‘pessoa de raça negra’ e ‘Choça’ é sinónimo de ‘carvão’ (Cunha, 1994).
  • 89. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 89 educação surgem então os ‘pretos de alma branca’ [...], criaturas que, moldadas pelas missões, eram capazes de cometer acções inesperadas atendendo à sua raça – por exemplo expressando bondade espontânea e desinteressada” (Cunha, 1994, p.31). Porém, não é tanto ao nível técnico que a educação expressa a sua máxima importância, mas na transformação espiritual: “É pela sujeição da ‘alma’ ao rigor de uma disciplina ‘civilizadora’, que o negro se liberta, quer dizer, que a ‘alma’ se lhe "branqueia" (p.31). A educação apresenta-se portanto como o meio indispensável para aspirar a um novo nível de ‘civilização’. O autor refere que a imagem positiva do negro surge frequentemente associada a uma boa prestação escolar (por exemplo: "Os quatro pretinhos espertos são muito aplicados na escola, sempre sossegados e atentos às lições do professor”), isto é, “a expressão de uma positividade está como que dependente da participação do africano nos critérios de ‘civilização’ que o colonizador define” (Cunha, 1994, p.31-32). Sintetizando, ao ‘selvagem’ corresponde uma imagem negativa do negro caracterizada essencialmente pela agressividade associada à acção guerreira, pela perigosidade associada às práticas de feitiçaria, e pela voracidade associada ao canibalismo, e ainda pela inabilidade e ignorância. Em contrapartida, ao negro ‘assimilado’ são associados “um conjunto de traços positivos que, em grau de importância decrescente, podemos agrupar da seguinte forma: prestabilidade, submissão, heroicidade, esperteza/inteligência e habilidade (p.34). De salientar que a inteligência/esperteza só se expressa de forma clara, ainda que restrita, pela participação no universo do Homem Branco (Cunha, 1994, p.33-34). Assim, a construção de uma imagem positiva do negro é um mero reflexo da interiorização de um modo de ser que é definido num universo simbólico comum, mas de recursos polarizados para os diferentes actores. Considerando as revistas infantis abordadas, Luís Cunha refere que até ao início dos anos quarenta predomina a imagem de: “um negro embrutecido, enredado em práticas perigosa e quase a-humanas, como a agressividade gratuita ou o canibalismo. Quando não é a agressividade a imperar os negros tendem a aparecer como uma espécie de ‘crianças grandes’, facilmente
  • 90. Racismo e Etnicidade em Portugal 90 controladas pela inteligência do branco civilizado [...], mas ainda nessa situação fica a ideia de uma inferioridade intransponível, mas que parece residir mais numa espécie de ‘natureza racial’, que o acesso à educação apenas belisca sem jamais remover” (Cunha, 1994, p.80). Antes da II Guerra Mundial predomina a imagem do negro selvagem, enquanto que depois desta é a do negro assimilado que predomina, acompanhando assim a mudança que se efectuou a nível internacional na perspectivação das diferenças ‘raciais’, a que fizemos referência no ponto 1.3.1 (de referir que algumas das revistas correspondiam a traduções de edições estrangeiras). No pós-guerra predomina uma imagem positiva do negro, imagem esta que resulta da aceitação dos valores da ‘civilização’ expressa na submissão e lealdade face ao branco. Aparentemente a distância entre o branco e o negro deixa de ser intransponível, desde que o segundo se submeta ao universo do primeiro. Assim, em ambos os momentos históricos o negro surge como ser ‘dominado’ (Cunha, 1994, p.80). De notar que a dicotomia entre os negros ‘selvagens’ e os ‘assimilados’ tem o seu paralelismo com uma alteração do estatuto do indígena, introduzida legalmente pelo Decreto de Lei n.º 39 666 de 20 de Maio de 1954 que distinguia entre os indígenas e os assimilados: “Pode perder a condição de indígena e adquirir a cidadania o indivíduo ?de raça negra?que comprovar satisfazer as cinco condições: 1) Ter mais de 18 anos; 2) Falar correctamente a língua portuguesa; 3) Exercer uma profissão, uma arte ou um ofício que lhe dê um rendimento necessário à sua subsistência e de seus familiares ou das pessoas que estão a ser cargo; 4) Ter bom comportamento e ter adquirido a instrução e os hábitos pressupostos para a aplicação integral do direito público e privado dos cidadãos portugueses; 5) Não ter sido considerado refractário no serviço militar ou desertor” (Art.º 56; citado por Barradas, 1991, p.74). Como salienta Luís Cunha (1994, p.19) “o cumprimento das exigências feitas a quem quisesse adquirir o estatuto de assimilado e dessa forma a cidadania, obrigaria o ‘candidato’ a participar do universo cultural do colonizador, dir-se-ia mesmo que a integrar-se nele”. Segundo o autor, se se considerar a figura do ‘assimilado’ como um elemento de aferição do sucesso da missão ‘civilizador’ do colonialismo português, fica clara a sua ineficácia, visto que a percentagem de ‘assimilados’ era bastante reduzida.
  • 91. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 91 Por exemplo, em Angola, segundo os censos de 1940 e 1950 a percentagem de negros ‘assimilados’ era apenas de 0,7% (24 221 em 1940 e 30 089 em 1950). Esta percentagem era bastante superior para os mestiços: 82,9% (23 244) em 1940 e 88,8% (26 335) em 195017 (Bender, 1976/1980, p.216-218). Assim, a aquisição do estatuto era em grande medida uma questão racial, já que a percentagem de ‘assimilados’ entre os mestiços era muito mais elevada do que entre os negros. A distinção entre ‘indígenas’ e ‘assimilados’ e a sua estreita ligação com a questão racial poderá estar na origem do desenvolvimento “em Angola de uma hierarquização da cor da pele (‘preto retinto/negro’, ‘preto fulo/mulato/cabrito’, etc.) com grande impacto na estruturação social da sociedade” e cuja influência ainda é visível nos dias de hoje (Delgado, 1997, p.19; Pepetela, 1985). Por um lado, no pós-guerra verifica-se um estreitamento dos laços entre a economia de Portugal e a das colónias africanas e ganha expressão significativa a emigração da população da metrópole para os territórios de África. Para tal terá contribuído o desenvolvimento económico e do melhoramento das condições sanitárias nas colónias e a “insistente propaganda da ideia imperial levada a cabo pelos aparelhos ideológicos do Estado Novo” (Alexandre, 1999, p.141) Por outro lado, a progressiva autonomia e independência de países anteriormente colonizados por potencias europeias tornava o sistema colonial português cada vez mais anacrónico e adensavam-se as ameaças externas sobre ele. Face a este novo contexto, o Estado Novo procede a uma inflexão da sua política: em 1951 foram abolidas as designações de ‘império colonial’ e de ‘colónias’, até então utilizadas nos textos oficiais, sendo substituídas pelas de ‘ultramar’ e ‘províncias ultramarinas’. Estas ‘províncias’ formariam com a metrópole um “Portugal uno do Minho a Timor” (Correia, 1999, p.139). No entanto, manteve-se no ultramar o “estatuto dos indígenas" que retirava à grande maioria dos africanos o direito de cidadania. Este só seria abolido em 1961, aquando de um conjunto de reformas efectuadas por Adriano Moreira, entre as quais se destaca a abolição do trabalho obrigatório (Alexandre, 1999, p.143). 17 A população total de Angola segundo os censos de 1940 era constituída por 3 665 829 negros, 28 035 mestiços e 44 083 brancos e nos censos de 1950 por 4 036 689 negros, 29 648 mestiços, e 78 826 brancos (Bender, 1981, p.216).
  • 92. Racismo e Etnicidade em Portugal 92 Segundo Alexandre (1999), esta mudança jurídica e institucional corresponde à adopção do luso-tropicalismo como doutrina oficial pelo regime, teoria formulada pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre (1933, 1940). Analisando a formação da sociedade brasileira, Freyre (1933) realçava os efeitos benéficos do processo de miscigenação biológica e cultural que ocorrera na Brasil, valorizando o papel dos portugueses nesse processo, dada a sua ‘singular predisposição’ para lidar com os ‘povos dos trópicos’ e a sua aceitação dos valores culturais das populações que colonizou. Estas qualidades seriam explicadas pelo próprio fundo étnico do povo português, já de si uma mistura de gentes de diversas origens. Este passado histórico explicaria também o “carácter ‘cristocêntrico’ – e não etnocêntrico - da colonização portuguesa, transmissora de valores universais e não especificamente nacionais” (Alexandre, 1999, p.142). O resultado final da presença de Portugal nos trópicos seria a criação de uma verdadeira ‘civilização luso-tropical’ fundada na fusão de elementos dos vários povos. Apesar de ser conhecida em Portugal já nos anos 30, a teoria do luso-tropicalismo foi, na altura, recebida com reservas pelo regime devido, por um lado, à sua apologia da mestiçagem e, por outro, porque a noção de ‘fusão’ dos contributos culturais das diversas raças não se coadunava com “o quadro conceptual, ao tempo dominante em Portugal, que se fundava na oposição 'entre povos ‘civilizados’ e povos ‘primitivos’ ou ‘selvagens’ (Alexandre, 1999, p.142). Num contexto político e social europeu onde o princípio da ‘assimilação’ fora substituído por uma cada vez maior autonomia e mesmo independência, era fundamental encontrar justificação para a conservação de um distinto relacionamento de uma metrópole com os espaços africanos que tutelava. O luso-tropicalismo apresentar- se-á então como o instrumento adequado à afirmação da especificidade que o colonialismo português necessitava. De recordar que ainda nos anos quarenta o discurso dos responsáveis políticos era marcado pelo desejo de contrariar a miscigenação. Por exemplo, Marcelo Caetano afirmava em 1945: "Num só ponto devemos ser rigorosos quanto à separação racial: no respeitante aos cruzamentos familiares ou ocasionais entre pretos e brancos, fonte de perturbações graves na vida social de europeus e indígenas e origem do grave problema de
  • 93. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 93 mestiçamento, grave, digo, senão sob o aspecto biológico, tão controvertido [...], ao menos sob o aspecto sociológico" (1945; citado por Barradas, 1991, p.73). A partir dos anos 50 assiste-se a uma notória transformação na ênfase com que a relação do colonizado-colonizador é pensada e enfatiza-se a ‘multiracialidade’: "A maneira de ser portuguesa, os princípios morais que presidiram aos descobrimentos e à colonização fizeram que em todo o território nacional seja desconhecida qualquer forma de discriminação e se hajam constituído sociedades pluriraciais, impregnadas do espírito de convivência amigável, e só por isso pacíficas" (Salazar, 1961, p.18; citado por Cunha, 1994, p.21). A demonstração da especificidade portuguesa constituía um dos pilares fundamentais para sustentar a conservação de um modelo de colonização cada vez mais desajustado das práticas seguidas por outros países europeus. Mal acabou a II Guerra Mundial o governo português procurou apagar da legislação os indícios mais evidentes de discriminação racial (Alexandre, 1999). Porém, a representação do negro mudou mais à superfície que em profundidade, tendo permanecido o paternalismo, que devia continuar a ser exercido sobre os povos das províncias ultramarinas (Cunha, 1994, p.22). A eclosão das guerras coloniais nos territórios africanos (Angola, 1961; Guiné- Bissau, 1963; Moçambique, 1964; ver Correia, 1999), terá conduzido à acentuação do recurso ao mito do lusotropicalismo pelo regime e à introdução de reformas importantes que, no entanto, não tiveram grande expressão no terreno (Alexandre, 1999, p.143). Vamos agora referir brevemente alguns depoimentos de Mário Pinto de Andrade e Agostinho Neto, antes do eclodir das guerras, sobre a forma como estes dirigentes nacionalistas das ex-colónias portuguesas percepcionaram o colonialismo português. Nos escassos documentos por nós consultados é evidente uma crítica ao “terreno movediço da luso-tropicalogia” (Pinto de Andrade, 1958/2000, p.43) e uma constante referência aos malefícios do processo de assimilação a que foram sujeitos os povos africanos (Cf: Pinto de Andrade, 1958/2000, 1961/2000; Neto, 1959/2000). Por exemplo, Pinto de Andrade refere:
  • 94. Racismo e Etnicidade em Portugal 94 “No caso português a assimilação traduziu-se sempre praticamente por uma deses truturação dos quadros negro-africanos e a criação de uma elite, quantitativamente reduzida. Ela apresenta-se como a receita mágica que conduziria o indígena depois das trevas da ignorância até à luz do saber. Uma forma de passagem do não-ser ao ser cultural, para empregar a linguagem hegeliana” (1961/2000, p.58). Mais adiante, salientando a perda de ‘autenticidade’ dos povos africanos, refere: “O peso do assimilacionismo sofrido por todos pesava sobre os ombros. Com efeito, não somente nos dávamos conta de todo o artifício da nossa formação intelectual mas igualmente da dificuldade para nos encontrarmos a repensar pelos nossos próprios meios os valores negro-africanos. Era preciso rasgar o véu que nos obnubilava, para permanecermos nós mesmos” (1961/2000, p. 63). Na mesma linha de ideias Agostinho Neto (1959/2000) critica o facto de as línguas tradicionais não serem faladas nas escolas nem nos meios de comunicação social (jornais, rádio, etc.), apenas encontrando “guarida em sorridentes e paternais caçadores do exótico”, fazendo com que a cultura angolana não se possa desenvolver (p. 49). E acrescenta: “é mais triste que espantoso que uma grande parte de nós, os chamados "assimilados", não sabe falar ou entender qualquer das nossas línguas! E isto é tanto mais dramático quanto é certo que pais há que proíbem os filhos de falar a língua dos seus avós. É claro, quem conhece o ambiente social em que estes fenómenos se produzem e vê dia a dia o desenvolvimento impiedoso do processo de ‘coisificação’ não se admirará de tanta falta de coragem. Este desconhecimento das línguas que impede a aproximação do intelectual junto do povo cava um fosso bem profundo entre os grupos chamados ‘assimilados’ e ‘indígenas’” (1959/2000, p. 51). Agostinho Neto salienta que “a assimilação é um processo complicado e sempre doloroso” (1959/2000, p.52) visto que: “o ‘assimilado’ é um indivíduo que se encontra entre dois mundos. Desenraizado, sem laços que o unam ao seu povo, sem a sua língua, sem os meios de realizar a sua vida conforme a sente, não se encontra também no mundo europeu, cujos costumes adoptou, cuja língua fala, cujos hábitos pratica, sem que todas essas características culturais sejam de facto sentidas, sem que façam parte do seu eu” (p.52).
  • 95. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 95 Na opinião de Alexandre (1999) o mito do luso-tropicalismo não se dissipou com a ‘queda do Império’, em 1975, continuando a circular de forma difusa. Segundo o autor esta persistência deve-se, por um lado, “ao peso avassalador dos aparelhos ideológicos do Estado Novo na formação das mentalidades, com consequências a longo prazo” e, por outro, ao paralelismo entre o luso-tropicalismo e “algumas das ideias de fundo do nacionalismo português (a capacidade colonizadora, a faculdade de relacionamento harmonioso com os povos de outras raças, a missão civilizadora do país)” (pp.143-144). A partir dos materiais analisados e das sínteses fornecidas pelos autores que citamos torna-se claro que os traços outorgados ao ‘negro’ remetem para um ser com forte ligação à natureza: são ‘crianças grandes’, incapazes de dominar os seus impulsos e de tomar conta de si próprios e, embora possam manifestar certa ‘esperteza’, são privados de inteligência. A imagem do negro oscila entre a atracção do exótico (o batuque, as danças, os corpos sensuais) e a repulsa (são agressivos, perigosos, feiticeiros, têm uma sexualidade descontrolada). Quando ‘assimilados’, isto é, dominados e disciplinados, manifestam alguns traços positivos, mas estes só se expressam pela sua submissão ao sistema de valores do Homem Branco, a sua dependência e obediência. Os papéis que lhes são destinados são ligados à execução e não à concepção de algo, uma vez que podem imitar mas são incapazes de criar, são papéis subordinados. Os Negros são considerados essencialmente como força de trabalho, mas também podem ser fonte de divertimento e entretimento para o Homem Branco. Sintetizando, estamos perante seres limitados a um modo de ser específico, que mesmo depois de ‘civilizados’, permanecem fora da ‘história universal’ (Amâncio, 1998; Chombart de Lauwe, 1983-1984; Guillaumin, 1972). De salientar ainda que segundo a ideologia vigente durante o Estado Novo “estaríamos perante raças inferiores, por essência e não por acidente histórico sendo parte delas votadas à extinção, por ‘insusceptíveis de aperfeiçoamento’” (Alexandre, 1999; itálico nosso). Bem diferente é a representação dos portugueses expressa pelos autores que durante este período se dedicaram a descrever a identidade nacional (e.g., Dias, 1950/1990; Leão, 1960/1992). Numa recente investigação sobre a identidade nacional, Miranda refere:
  • 96. Racismo e Etnicidade em Portugal 96 “quando se lêem descrições e análises sobre Portugal, encontra-se um conjunto de teorias míticas e messiânicas, insistentes e carregadas de emotividade, relativas ao destino universal do povo português, ao seu ‘insondável mistério’, à sua irredutível originalidade. [...] Se nos parece relativamente fácil afirmar que o Portugal de hoje, apresenta uma elevada identidade nacional, não nos podemos esquecer que tal identidade, tal como existe hoje, resulta de um processo histórico que atravessou, fases diversas, até atingir a expressão que actualmente lhe conhecemos” (2001, pp. 18-19). Jorge Dias (1950/1990) define a personalidade base do povo português da seguinte forma: "o português é um misto de sonhador e de homem de acção, ou melhor, é um sonhador activo, a que não falta certo fundo prático e realista [...]. O português é, sobretudo, profundamente humano, sensível, amoroso e bondoso, sem ser fraco. Não gosta de fazer sofrer e evita conflitos, mas, ferido no seu orgulho, pode ser violento e cruel. É [...] fortemente individualista, mas possui um grande fundo de solidariedade humana. O português não tem muito humor, mas um forte espírito crítico e trocista e uma ironia pungente” (Dias, 1950/1990: 145-146). Assim para Jorge Dias a singularidade do português define-se essencialmente pela versatilidade de carácter que, como salienta Mário Moutinho, tem como preocupação “não deixar nada de fora” (1980, p.90). Especial importância é dada à especial capacidade de adaptação dos portugueses, que explica o carácter sui generis da colonização portuguesa: “Há no Português uma enorme capacidade de adaptação a todas as coisas, ideias e seres, sem que isso implique perda de carácter. É [...] curioso que o Português se adapta a outro ambiente cultural tão bem que parece ter sido assimilado [...]. A capacidade de adaptação, a simpatia humana e o temperamento amoroso são a chave da colonização portuguesa. O português assimilou adaptando-se. Nunca sentiu repugnância por outras raças e foi sempre relativamente tolerante com as culturas e religiões alheias” (Dias, 1950/1990, p.156). Como salienta Luís Cunha (2001, p.53), para Jorge Dias esta “maleabilidade não significa negar ou sequer diminuir as singularidades”. Na mesma linha de ideias Cunha Leão refere-se à "nação portuguesa, tão permeável ao universo como universalizante"
  • 97. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 97 (Leão, 1960/1992, p.149). Para este autor a valorização do que é alheio à nação traduz uma ‘plasticidade única’, que permite a adaptação sem que o indivíduo se dissolva (1960/1992, p.187). Assim, o gosto pelo que é estranho e exótico nada tem de ameaçador para a identidade nacional, traduzindo-se, pelo contrário, em realizações históricas. Para este autor o povo português teria propensão para deixar a sua marca no mundo: “O nosso povo só rende na justa medida do seu valor, se possuído do espírito de missão. Quando pode ultrapassar-se em algo de nobre e universal” (Leão, 1960/1992, p.138). Para Jorge Dias “a mentalidade complexa” dos portugueses “resulta da combinação de factores diferentes e, às vezes, opostos” (Dias, 1950/1990: 146). Para o autor “este temperamento paradoxal explica os períodos de grande apogeu e de grande decadência da história portuguesa” (Dias, 1950/1990: 146). De notar ainda que esta síntese de contrários dá origem “a um quadro excessivamente heterogéneo” (Dias, 1961, p.121; sublinhado nosso) que, como salienta Luís Cunha corresponde a “uma forma de abrir todos os caminhos, nada deixando de fora” (2001, p.54). No seu livro sobre a identidade nacional durante o Estado Novo, Luís Cunha (2001) salienta que estas constituem algumas das ideias mais recorrentes: a especial capacidade de adaptação dos portugueses e a complexidade da sua maneira de ser. Se o objectivo dos autores analisados é apresentar “Portugal como entidade singular e inconfundível” (Cunha, L., 2001, p.58), constata-se também o “gozo da diferença” (Lourenço, 1990, p.10). Luís Cunha refere a este propósito que “a ideia de uma originalidade portuguesa parece, paradoxalmente, ligar-se a algo de universal e transcultural” (2001, p.70). No nosso entendimento isto nada tem de paradoxal, pois a originalidade dos portugueses não se opõe a universalidade, mas sim à especificidade dos outros. Este é, na nossa opinião, o elemento fundamental do sistema simbólico que estamos a analisar, e que fica mais claro quando confrontamos a representação dos portugueses com a representação dos negros durante este período. Enquanto aos portugueses são abertos todos os caminhos e diluídas todas as fronteiras, aos outros (os negros) é destinado um papel específico num lugar com fronteiras bem delimitadas (Cf: Lewin, 1948/1997; Amâncio, 1998; Deschamps, 1982a;
  • 98. Racismo e Etnicidade em Portugal 98 Lorenzi-Cioldi, 1988). Assim a complexidade dos portugueses opõe-se à simplicidade dos ‘negros’, e a heterogeneidade dos primeiros à homogeneidade dos segundos, assunto que desenvolveremos aprofundadamente nesta investigação.
  • 99. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 99 1.4.2 Descolonização, Imigração e os Novos Racismos A revolução de 25 de Abril de 1974 provocou mudanças profundas na política interna e externa portuguesa. O fim da guerra colonial e a descolonização tornou-se um dos imperativos, sendo frequentes as manifestações de ruas gritando o slogan “nem mais um só soldado para as colónias” (Vieira, 1999, p.171). As negociações para o reconhecimento da autonomia dos diversos territórios começaram de imediato, tendo sido reconhecida a independência das diversas ex-colónias africanas entre 1974 e 1975: Guiné-Bissau (10 de Setembro de 1974; tinha sido proclamada unilateralmente em 1973, mas não reconhecida por Portugal), Moçambique (25 de Junho de 1975), Cabo Verde (5 de Setembro de 1975), São Tomé e Príncipe (12 Setembro de 1975), e Angola (11 de Novembro de 1975). (ver Correia, 1999 para uma revisão detalhada). A soberania indiana sobre Goa, Damão e Diu, integrados na União Indiana a 17 de Dezembro de 1961, foi reconhecida em 15 de Outubro de 1974. O enclave de Macau continuou sob administração portuguesa até 20 de Dezembro de 1999, altura em que foi devolvido à China. Quanto a Timor-Leste, a 28 de Novembro a Fretilin proclama unilateralmente a independência, mas a 7 de Dezembro a Indonésia anexa o território, que passa a ser considerado a sua 27ª Província. Esta anexação nunca será reconhecida por Portugal (que corta relações diplomáticas com a Indosénia) nem pela ONU. Em consonância com os resultados de um referendo promovido pela ONU, Timor-Leste viria a tornar-se um Estado Independente a 20 de Maio de 2002. Na opinião de Miranda (2001, p. 15) “a perda das ex-colónias não feriu a imagem nacional” e Lourenço (1990, p.22) refere que estamos perante uma “estranha permanência no seio da mudança” porque o império permanece no nosso imaginário. A Revolução de 25 de Abril de 1974, a descolonização e a consolidação da democracia, vieram provocar um aumento significativo da população residente em Portugal, não só devido ao regresso de um número bastante significativo de portugueses residentes nas ex-colónias e na Europa, mas sobretudo pelo aumento dos fluxos imigratórios. Sem deixar de ser um país de emigração18 , nas últimas duas décadas 18 A emigração portuguesa foi uma constante ao longo do século XX, tendo atingido a sua expressão máxima nos anos sessenta – cerca de 1,3 milhões de portugueses, isto é, 15% da população (que passou de 8,85 milhões para 8, 62 milhões) (Viera, 1999). Embora com menor expressão, a emigração continua a ser um fenómeno importante na nossa sociedade (Gonçalves, 1996; Leandro, 1995; Leite,
  • 100. Racismo e Etnicidade em Portugal 100 Portugal tornou-se também num país de imigração (Machado, 1994, p.112), como demonstram os dados retrospectivos fornecidos pelo Instituto Nacional de Estatística (INE): em 1975 havia 31 983 estrangeiros com residência legalizada em Portugal; em 1990 esse número ascendia a 107 767; e uma década depois este número havia duplicado, situando-se nos 208 198. Ao contrário do que se verifica relativamente à emigração, a imigração constituía, até há bem pouco tempo, um fenómeno de reduzida visibilidade. Não só não se revelava uma temática privilegiada de estudo, como também não constituía objecto de representações enraizadas no conjunto da população portuguesa (Esteves, 1991, citado por Miranda, 2001). Na segunda metade da década de setenta, assistiu-se a um aumento substancial no crescimento da população residente em Portugal em resultado do processo de descolonização. Um primeiro fluxo foi constituído pelo regresso de mais de meio milhão de portugueses residentes nas ex-colónias (especialmente em Angola e em Moçambique) e que passaram a ser designados por ‘retomados’19 . Um segundo fluxo (especialmente, entre 1976 e 1980) foi constituído por população africana dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP). Finalmente, verificou-se uma intensificação dos fluxos migratórios com origem na Europa e na América, devido ao regresso de emigrantes portugueses e pela vinda de naturais desses países (Rocha- Trindade, 1995; Vieira, 1999). Segundo os dados do censo de 1981 residiam em Portugal 9 833 014 habitantes. De notar que, entre 1960 e 1981, o número de imigrantes aumentou 313%: o seu peso total na população residente passou de 0.33 % em 1960 para 1.24 % em 1981 (Esteves, 1991, p.21). Os estrangeiros provenientes das ex-colónias de África, aproximadamente 45000, representavam 42% do número total de estrangeiros residentes no país (Saint- Maurice e Pires, 1989). Ultrapassado o período da descolonização, desenvolveram-se novos padrões de imigrações dos PALOP para Portugal. Por um lado, verificou-se uma intensificação dos 1998) e diversos historiadores contemporâneos consideram a emigração fenómeno ‘estrutural’ na sociedade portuguesa (Serrão, 1974; Godinho, 1978; citados por Neto, 1997, p.91). 19 Como refere Machado (1994, p.113-115) não é possível saber de entre os ‘retornados’ quantos deles seriam de origem africana. De facto, muitos dos africanos ‘retornados’ não podem ser considerados imigrantes, visto que formalmente têm a nacionalidade portuguesa. Machado propõe a designação de ‘luso-africanos’ que engloba tanto os africanos de nacionalidade portuguesa que optaram por se fixar em Portugal na sequência da descolonização, como os novos luso-africanos que, sendo filhos dos primeiros, “nasceram e/ou cresceram em Portugal e aos quais se chama, erroneamente, ‘imigrantes de segunda geração’ ” (1994, p.112).
  • 101. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 101 fluxos migratórios laborais já existentes, sobretudo de Cabo-Verde20 , e a constituição de fluxos envolvendo os outros países, em especial da Guiné-Bissau e de São Tomé e Príncipe. Por outro lado, verificaram-se fluxos migratórios de menor amplitude, envolvendo refugiados políticos, especialmente de Angola e Moçambique. Finalmente, a institucionalização de acordos de cooperação entre Portugal e os PALOP ao nível do ensino secundário e superior permitiu que estudantes oriundos destes países efectuassem a sua formação académica em Portugal (Miranda, 2001). Mas foi sobretudo depois da adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia (CEE; actualmente designada União Europeia) em 12 de Julho de 1986 que a imigração passou a assumir uma importância crescente, e, acentuando-se ainda mais desde a concretização dos Acordos de Schengen, permitindo a livre circulação de pessoas na União Europeia (UE). O fim da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em 1989, e as subsequentes alterações profundas na geopolítica europeia, levaram a um aumento exponencial de imigrantes oriundos dos países do Leste Europeu em todos os países da União Europeia, o que também atingiu Portugal, especialmente a partir da segunda metade dos anos noventa21 . Segundo o INE a população residente em Portugal é actualmente de 10 318 084 habitantes. De 1991 a 2001 a população portuguesa registou um aumento de 4,6%, sendo este devido, em grande parte, à imigração22 . Segundo dados provisórios do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), em 2001 o número de estrangeiros ascendia a 219 792, isto é, 2.13% da população residente em Portugal. Apesar destes números serem inferiores em termos percentuais aos registados noutros países europeus23 , não deixam de ser significativos, tendo a questão da imigração ganho enorme visibilidade na comunicação social ao longo da última década. Aproximadamente metade dos estrangeiros residentes em Portugal são imigrantes provenientes de África - 104 012 pessoas -, 65 314 são oriundos de países europeus, 20 A população de origem cabo-verdiana já assumia grande expressão desde a década de sessenta, sendo a sua fixação estimulada pelo governo português, para colmatar a carência de mão-de-obra provocada pela emigração maciça para a Europa. 21 Serra (2000, p.128; citado por Miranda, 2001) apresenta uma estimativa de 100 000 cidadãos clandestinos oriundos da Europa de Leste. Sem dúvida, pelo carácter muito recente deste fenómeno, existe ainda pouca investigação científica sobre ele. 22 Dados preliminares dos Censos 2001 consultados no site oficial do INE em 28/12/2001. 23 Em Portugal, os estrangeiros activos legais representam menos de 2,5% do total da força de trabalho enquanto que na União Europeia este valor é em média de aproximadamente 4% (Baganha, Ferrão e Malheiros, 1999, p.147).
  • 102. Racismo e Etnicidade em Portugal 102 40 369 da América, 9 279 da Ásia, 539 da Oceânia, e 273 são apátridas24 . Entre os imigrantes de origem africana destacam-se os oriundos dos PALOP: 48 873 cabo-verdianos, 21 700 angolanos, 16 796 guineenses, 5 895 são-tomense e 4 747 moçambicanos. Entre os imigrantes de origem americana, 23 400 são brasileiros, constituindo o segundo grupo de imigrantes mais importante em termos numéricos25 . Estes números referem-se apenas aos estrangeiros com residência legalizada em Portugal, estimando-se que, na realidade, o número de residentes estrangeiros seja bastante mais elevado. Verifica-se uma enorme assimetria na proporção de estrangeiros residentes em Portugal entre as grandes e as pequenas cidades, as áreas urbanas e as rurais. Em 1996, 65% dos estrangeiros residentes em Portugal concentravam-se na Região de Lisboa e Vale do Tejo. A segunda região com maior número de estrangeiros era o Algarve com 12,4%, seguida da Área Metropolitana do Porto com 6% (Machado, 1999, pp.50-51)26 . Os imigrantes oriundos das ex-colónias portuguesas são maioritariamente jovens, com poucas ou nenhumas habilitações literárias (Esteves, 1991, p.43; citado por Miranda, 2001) e desempenham tarefas não qualificadas (Rocha-Trindade, 1995, p.201). Os homens trabalham predominantemente por conta de outrem, na construção e obras públicas e nos serviços, dedicando-se as mulheres basicamente aos serviços domésticos e ao comércio. Trata-se de imigrantes que, em geral, não possuem habilitações profissionais adequadas às sociedades de tipo urbano e industrial e que apresentam dificuldades linguísticas que dificultam a sua integração profissional e social e que, em resultado desses factores, são impelidos para situações profissionais de carácter precário e mal remuneradas. Os de origem indiana (parte significativa do contingente de retornados de Moçambique) representam uma excepção, estando ligados, sobretudo, ao pequeno comércio (Rocha-Trindade, 1995, p.201). Em Portugal não há estatísticas oficiais baseadas na cor da pele, uma vez que os censos populacionais não implicam qualquer registo relativo a grupos ‘raciais’ ou ‘étnicos’, ao contrário do que acontece noutros países (EUA, Reino Unido, etc.). No entanto, alguns autores avançam com estimativas sobre algumas minorias étnicas. 24 Refira-se que alguns estrangeiros com situação regularizada em Portugal usufruem do estatuto de asilado e de refugiado. O número de pedidos de asilo tem vindo a aumentar nos últimos anos e também tem vindo a diversificar-se a origem desses pedidos. No entanto, verifica-se a predominância dos Angolanos, Romenos e Zairenses (Rocha-Trindade, 1995, p.202). 25 Dados provisórios fornecidos pelo Serviços de Estrangeiros e Fronteiras em 31 de Novembro de 2001. 26 Para uma descrição da localização espacial dos imigrantes em território nacional e a sua caracterização sociológica ver, por exemplo, Baganha, Ferrão e Malheiros (1999) e Machado (1997, 1999).
  • 103. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 103 Os ciganos constituem a minoria étnica mais antiga e mais significativa em Portugal27 . As estimativas sobre o número de ciganos actualmente em Portugal variam enormemente em função da fonte: 20 000 (Nunes, 1981); 20 000 a 30 000 (Liégeois, 1989); 50 000 (Bacelar de Vasconcelos, 1998); 30 000 a 92 000 (Mendes, 1998). De referir ainda a presença de duas ‘hiperminorias’ (Vala, Brito, Lopes, 1999a, p.11) que adquiriram alguma visibilidade sobretudo nos meios urbanos: os indianos, grupo constituído por cidadãos oriundos dos territórios do Estado Indiano, nos anos sessenta, e de Moçambique, nos anos setenta; e os timorenses, cujo primeiro contingente, de 1500 pessoas, chegou a Portugal em 1976 depois da ocupação de Timor-Leste pela Indonésia, não tendo esse número sofrido alterações significativas (Rocha-Trindade, 1995, p.199). Na opinião de Machado (1993; referido por Miranda, 2001) não existem em Portugal grandes contrastes entre a população portuguesa e as comunidades imigrantes. Não existe nenhuma comunidade que difira da população portuguesa simultaneamente no nível sócio-económico, na situação residencial, na identidade linguística, na filiação religiosa e no estilo de vida. A reduzida diferenciação deriva do facto de muitos dos portugueses terem condições económicas e sociais tão desfavorecidas como as dos imigrantes: “[...] embora a percentagem de pobres entre os membros das comunidades imigrantes seja muito elevada - mais elevada, em média, do que para o conjunto da população portuguesa -, já a percentagem de membros dessas comunidades entre os que em Portugal vivem numa situação de pobreza é bastante pequena” (Machado (1993, p.409; citado por Miranda, 2001). Machado (2000) salienta que as ‘desigualdades de classe’ e as ‘desigualdades raciais’, constituem duas dimensões de análise autónomas, uma vez que se podem combinar entre si de diversas formas: “A dupla desvantagem, racial e de classe, é uma delas. Os migrantes africanos inseridos nos segmentos precários do mercado de trabalho em Portugal, por exemplo, terão uma condição ainda mais desfavorecida do que os portugueses com 27 As primeiras referências a ciganos datam do início do século XVI (Correia, Brito e Vala, 2001). Para uma descrição da localização espacial dos ciganos em Portugal e a sua caracterização sociológica, ver, por exemplo, Coelho (1982) e Mendes (1995, 1999).
  • 104. Racismo e Etnicidade em Portugal 104 idêntica colocação laboral, na medida em que sejam vítimas de discriminação racial, o que acontece com alguma frequência, em termos de salários, horários ou noutras condições de exercício da actividade profissional. Não se pode é presumir que o facto de os migrantes africanos terem essa localização profissional é, em si mesmo, sinónimo de discriminação racial ou de racismo institucional no mercado de trabalho. A ser assim, ficaria por explicar porque é que tantos portugueses partilham essa situação, porque é que outros migrantes africanos ocupam posições profissionais de classe média, para não falar dos casos em que a sobre-exploração é imposta, não por portugueses, mas por outros migrantes africanos, mais antigos e com posições de poder no mercado informal do trabalho” (Machado, 2000, p.31). Apesar do significativo crescimento da imigração em Portugal, até meados da década de noventa eram escassíssimos os estudos sobre a problemática da imigração e do racismo no nosso país. Na opinião de diversos autores, o mito do luso-tropicalismo, a que fizemos referência no ponto anterior, terá contribuído para que a sociedade portuguesa acordasse tão tarde para este problema (e.g., Bacelar de Vasconcelos, 1998; Vala, 1999). No início da década de noventa, Machado afirmava premonitoriamente: “Se até hoje a problemática das minorias étnicas não tem tido grande relevância na sociedade portuguesa, a situação poderá conhecer uma inversão num futuro próximo. Sensivelmente nos últimos dois anos, têm-se tornado nítidos alguns sinais de que a politização das questões da imigração e da etnicidade já se iniciou” (1992, p.134). O crescimento de actividade e de influência do movimento associativo, “tanto ao nível da publicitação dos problemas dos imigrantes como através da interpelação directa do Estado” e o tema da legalização dos imigrantes clandestinos começava então a ganhar alguma visibilidade, constituindo o “grau zero da politização da etnicidade” (Machado, 1992, p.134). A partir da segunda metade da década de noventa a problemática da imigração, do racismo e etnicidade tem vindo a ocupar um lugar cada vez mais central na opinião pública portuguesa. Paralelamente, a problemática do racismo constituiu-se como objecto social de reflexão, tendo-se assistido a um incremento de estudos nas diversas
  • 105. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 105 ciências sociais e humanas sobre esta problemática, tanto relativamente aos diversos grupos de origem africana como relativamente aos ciganos, que vivendo entre nós há tantos séculos, continuam a ser considerados ‘estrangeiros’. Na segunda metade dos anos noventa o discurso ‘anti-racista’ passou a assumir na sociedade portuguesa uma posição central no debate público e político, tendo frequentemente lugar de destaque na agenda dos diversos meios de comunicação social, como refere Miranda (2001). O discurso político oficial é um discurso anti-discriminação e incentivo à integração das minorias na sociedade portuguesa, com particular atenção para os imigrantes lusófonos. Em 17 de Julho de 1996 foi criada a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), com o objectivo de estreitar os laços de cooperação entre os sete países de língua oficial portuguesa (Angola, Cabo-Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Brasil, e Portugal), aos quais se juntou Timor-Leste após a independência em 2002. Os crescentes fluxos de imigração na Europa e o aumento da visibilidade da discriminação racial e étnica levou à criação do Observatório Europeu do Racismo e da Xenofobia (EUMC)28 , do qual Portugal se tornou membro. Como membro do EUMC, Portugal tem participado nas diversas acções definidas por este organismo. As políticas adoptadas em Portugal relativamente à imigração e ao combate à discriminação estão em consonância com as preconizadas pela União Europeia, embora haja nesta matéria consideráveis variações entre os quinze países da união. O Decreto-Lei 3-A/96 de 26 de Janeiro 1996 instituiu o Alto Comissário para a Imigração e Minorias Étnicas (ACIME; cargo assumido por José Leitão até ao início de 2002) cujas funções são as seguintes: (artigo 2º): a) Contribuir para a melhoria das condições de vida dos imigrantes em Portugal, de forma a proporcionar a sua integração na sociedade, no respeito pela sua identidade e cultura de origem; b) Contribuir para que todos os cidadãos legalmente residentes em Portugal gozem de dignidade e oportunidades idênticas, de forma a eliminar as 28 O principal objectivo do EUMC “consiste em proporcionar à comunidade e aos seus Estados – Membros dados objectivos, fiáveis e comparáveis, a nível europeu, sobre os fenómenos do racismo, xenofobia e anti-semitismo, estudar o grau e o desenvolvimento destes fenómenos, analisar as suas causas, consequências e efeitos, e examinar os exemplos de boas práticas na sua abordagem” (EUMC, 1999).
  • 106. Racismo e Etnicidade em Portugal 106 discriminações e a combater o racismo e a xenofobia; c) Acompanhar a acção dos diversos serviços da Administração Pública competentes em matéria de entrada, saída e permanência de cidadãos estrangeiros em Portugal, com respeito pelas respectivas competências e pelas dos membros do Governo especificamente encarregados destas matérias; d) Colaborar na definição e assegurar o acompanhamento e dinamização de políticas activas de combate à exclusão, estimulando uma acção horizontal interdepartamental junto dos serviços da Administração Pública e dos departamentos governamentais com intervenção no sector; e) Propor medidas, designadamente de índole normativa, de apoio aos imigrantes e às minorias étnicas”29 . O dia 21 de Março 1996 foi proclamado o Dia Internacional do Racismo, tendo sido celebrado também em Portugal. Nesse mesmo ano foi criado o programa "Todos diferentes, todos iguais" no âmbito da Secretaria de Estado da Juventude (SEJ), tendo por objectivo sensibilizar os jovens para os valores da paz e da tolerância (Miranda, 2001). O ano 1997 foi consagrado Ano Europeu Contra o Racismo30 , o que intensificou a visibilidade desta questão nos media e na sociedade em geral, já que foram realizados inúmeros seminários, cursos, e debates ao longo do ano, com a participação de representantes das mais variadas organizações e dos cidadãos em geral, como refere José Leitão (1998). Foram criados outros organismos oficiais de luta anti-discriminação, entre as quais se destaca a Comissão para a Igualdade e contra a Discriminação Racial em 2000 (ver site oficial do ACIME para uma revisão da evolução recente sobre a 29 Posteriormente, diversos Decretos-lei vieram alargar estas competências (ver site oficial do ACIME: www.acime.gov.pt). 30 Objectivos do Ano Europeu Contra o Racismo: a) Realçar a ameaça que o racismo, a xenofobia e o anti-semitismo constituem para o respeito dos direitos fundamentais e para a coesão económica e social da Comunidade; b) Incentivar a reflexão e o debate sobre as medidas necessárias para combater o racismo, a xenofobia e o anti-semitismo na Europa; c) Promover o intercâmbio de experiências relativas a boas práticas e estratégias eficazes organizadas no plano local, nacional e europeu para combater o racismo, a xenofobia e o anti-semitismo; d) Divulgar as informações relativas a essas boas práticas e estratégias eficazes entre aqueles que militam contra o racismo, a xenofobia e o anti- semitismo, para tornar mais eficaz a sua acção neste domínio; e) Divulgar os benefícios das políticas de integração desenvolvidas a nível nacional, em especial nos domínios do emprego, educação, formação e habitação; f) Tirar partido, sempre que possível, da experiência das pessoas real ou potencialmente afectadas pelo racismo, a xenofobia, o anti-semitismo ou a intolerância, e promover a sua participação na vida da sociedade (Jornal Oficial das Comunidades Europeias, 15.08.1996, p.3).
  • 107. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 107 legislação nacional referente aos imigrantes e minorias étnicas residentes em território nacional) e foram realizados vários seminários e conferências com a participação conjunta de cientistas sociais, políticos, representantes de diversas Organizações Não Governamentais (ONG). Na opinião de José Leitão (1998a, pp.58-59), a Constituição da República Portuguesa, ao consagrar o princípio da igualdade (art.º 13º) e o princípio da equiparação de direitos entre nacionais e estrangeiros (art.º 15.º na versão resultante da revisão de 1997), lançou as bases de uma sociedade mais solidária. O princípio da igualdade determina que: "ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social" (art.º13). O princípio da equiparação determina que os estrangeiros que se encontrem em Portugal gozem de todos os direitos dos cidadãos portugueses31 . José Leitão (ACIME, 1996-2002) salienta a importância dos processos de regularização extraordinária dos estrangeiros no sentido de diminuir a vulnerabilidade dos imigrantes a situações de ‘super-exploração’, embora reconheça ser necessário muito fazer para a erradicação da pobreza e integração dos imigrantes na sociedade portuguesa, vítimas de graves situações de exclusão social (1998a, p.59). O ‘associativismo étnico’32 conheceu entretanto um grande crescimento e vitalidade, o que se tem traduzido na profissionalização de muitas associações assim como na sua integração em parcerias a nível local, nacional e internacional (Albuquerque, 2002; Albuquerque, Ferreira e Viegas, 2000; Kastoryano, 2000; Vieira, 31 Com três excepções: ver www.acime.gov.pt. 32 Referimo -nos a ‘associatismo étnico’ sem distinguir entre as associações constituídas por cidadãos portugueses, cidadãos imigrantes ou membros de minorias étnicas, uma vez que o regime legal que enquadrava o associativismo até 1999 não efectuava essa distinção. Esta situação alterou-se com a aprovação do decreto lei n.º 115/99 de 3 de Agosto relativo ao Regime Jurídico das Associações de Imigrantes. São associações que podem ainda abranger populações de origens muito diferenciadas, mas partilhando o mesmo objectivo de promover a integração das minorias e lutar contra a discriminação (Albuquerque et al., 2000; Albuquerque, 2002).
  • 108. Racismo e Etnicidade em Portugal 108 2001; Yañez, 2000). Numa recente revisão sobre o ‘associativismo étnico’, Albuquerque salienta: “De um ‘grau zero de politização da etnicidade’ (Machado, 1992) no princípio dos anos 90, passa-se para uma forte intervenção política no sentido de reclamar direitos de cidadania. Esta mobilização centrava-se na exigência da regularização de documentos, dado o elevado número de imigrantes em situação ilegal devido à dificuldade de obter autorização de residência. No entanto, o movimento associativo não esqueceu a bandeira da integração social, designadamente a integração escolar das gerações descendentes de imigrantes” (Albuquerque, 2002, p. 4). Como refere Albuquerque (2002), o crescendo da mobilização associativa teve o seu auge na manifestação colectiva de protesto pelo assassinato de Alcino Monteiro, cidadão português de origem cabo-verdiana, no Bairro Alto a 10 de Junho de 1995, que conduziu à união de diversas associações em torno de uma causa comum. A criação da ACIME em 1996 “constitui um ponto marcante para a evolução do movimento associativo, pois as associações passam a ter um mediador oficial nas suas relações com o Estado”. Um factor muito importante foi o reconhecimento destas associações por parte do Estado. Segundo a autora, “estima-se que em 1990 existiam 10 associações de origem africana enquanto que em 1996 esse número ascendia às 77, ao qual se podia acrescentar 10 associações de estudantes africanos” (Albuquerque, 2002, p.4). Segundo Albuquerque, o associativismo étnico começou por funcionar como espaço privilegiado de afirmação identitária, contribuindo para a manutenção, difusão e afirmação da suposta identidade cultural de determinada minoria no contexto português, promovendo actividades que apelavam a especificidades culturais e que tentavam instituir práticas e símbolos socialmente unificadores (por exemplo, o desporto, a música, a dança ou gastronomia). O associativismo desempenha também funções culturais, de recreação e convívio, assim como de solidariedade ou acção social, facilitando a entreajuda no processo inicial de fixação e de adaptação dos seus membros ao novo contexto social e cultural (em termos monetários, burocráticos ou de inserção habitacional, educacional ou profissional do recém-chegado). Actualmente, o associativismo desempenha cada vez mais funções político-legais, funcionando como instrumento de representação e de intervenção das minorias junto do poder político- administrativo, no sentido de influenciar ou determinar as orientações da acção política
  • 109. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 109 em função dos interesses da minoria que representa: garantia dos direitos de cidadania adquiridos, e sua eventual extensão, e a aplicação dos princípios de igualdade de oportunidades e de justiça social. Estas acções visam a melhoria das condições de vida dos membros das minorias e a sua plena integração (Cf: Berry, 1997; Khan, 1998) na sociedade de acolhimento (Albuquerque et al., 2000; Capucha, 1990; Machado, 1992, 1994). Paralelamente ao aumento do protagonismo do ‘associativismo étnico’ em Portugal, registou-se também na segunda metade dos anos noventa o despertar do interesse pela questão da discriminação racial e da etnicidade nas mais diversas áreas científicas: Antropologia, Filosofia, Geografia, História, Literatura, Psicologia, Relações Internacionais, Semiótica, Sociologia. De facto nos últimos anos têm aumentado o número de trabalhos académicos sobre esta temática e têm sido realizados diversos colóquios, seminários, conferências em diversas instituições de ensino e investigação. De salientar a investigação sobre o ‘associativismo étnico’ (e.g., Albuquerque, 2002; Albuquerque et al., 2000), sobre a situação económica e social dos imigrantes e minorias étnicas, os números da imigração e a caracterização dos fluxos migratórios (e.g., Areia, 1998; Baganha, Ferrão, Malheiros, 1998, 1999; Baganha e Góis, 1999; Baganha, Marques e Fonseca, 2000; Esteves, 1991; Machado, 1992, 1994, 1997, 1999; Malheiros, 1996; Paes, 1992, 1993; Pires e Saint-Maurice, 1989; Rocha-Trindade, 1995; Seabra, 1994; Toscano, 1990), sobre algumas das medidas que têm sido tomadas no sentido de aumentar a sua integração na sociedade portuguesa e diminuir a discriminação social (e.g., Bacelar de Vasconcelos; Leitão, 1998), e especificamente sobre a integração dos estudantes oriundos dos PALOP no sistema de ensino português (e.g., Pacheco, 1996; Samutelela Pires, 1996, 2000). Especialmente relevantes para a nossa problemática são os trabalhos que têm sido realizados sobre as estratégias identitárias e as representações dos jovens africanos ou de origem africana em Portugal, assim como os trabalhos que se debruçam sobre a identidade nacional, os valores da sociedade portuguesa, e, muito particularmente, sobre as representações e atitudes dos portugueses face às diversas minorias raciais ou étnicas em Portugal. Algumas investigações têm-se debruçado sobre as questões identitárias nas crianças e nos jovens com origens africanas em geral (‘imigrantes dos PALOP’,
  • 110. Racismo e Etnicidade em Portugal 110 ‘negros’, ‘luso-africanos’, ‘imigrantes de segunda geração’), (e.g., Cantador, 1998, 2001; Delgado, 1997; Khan, 1998), enquanto outras se têm focalizado em grupos específicos: cabo-verdianos (e.g., Saint-Maurice, 1993, 1997); os guineenses (e.g., Machado, 1993, 1998); os indianos (e.g., Alves e Ávila, 1994; Bastos, 1990), os goeses (e.g., Magalhães, 1994); os timorenses (Viegas, 1998). Outras investigações têm analisado o racismo em Portugal em relação a diversas minorias, e em particular, a forma como os portugueses percepcionam ‘os PALOP’ (e.g., Miranda, 1994), ‘os imigrantes negros’ (e.g., Brito, 1998; Vala, 1999; Vala, Brito e Lopes, 1999a), ‘os cabo-verdianos’ (Miranda, 1994; 2001), ‘os ciganos’ (e.g., Correia et al., 2001). Relevantes ainda para a nossa problemática são as análises sobre a identidade nacional (e.g., Cunha, L., 2001; Mattoso, 1998; Miranda, 2001; Neto, 1996; Rosado, 1999; Viegas e Costa, 1998), sobre os valores na sociedade portuguesa, muito particularmente, valores dos jovens e as culturas juvenis (Cabral e Pais, 1998; Contador, 2001; Ferreira, 1998; França, 1993; Pais, 1998). Também relevantes para o nosso trabalho são as análises de conteúdo dos media, nomeadamente notícias da imprensa e da televisão sobre minorias raciais ou étnicas, que infelizmente são bastante escassas (e.g., Cunha, Policarpo, Monteiro, e Figueiras, 2002; Leitão, 1991). José Leitão, numa análise das notícias da imprensa sobre os imigrantes no início dos anos noventa concluiu que “não existe na sociedade portuguesa um sentimento de rejeição em geral dos estrangeiros ou desta ou daquela comunidade imigrante” (1991, p.14). Em contrapartida, nos finais da década de noventa afirmava que os “crescentes fluxos migratórios têm sido acompanhados pelo aumento do racismo e da exclusão social, fenómenos que hoje parecem estar de novo na ribalta assumindo, no entanto, um novo tipo de protagonismo” (1998a, p.55). O racismo em Portugal é um fenómeno ainda pouco estudado e urge desenvolver estudos aprofundados sobre esta problemática cuja complexidade exige um olhar atento e interdisciplinar. Os comportamentos racistas mais visíveis em termos mediáticos e com maior impacto na opinião pública portuguesa têm envolvido cidadãos também eles portugueses (por exemplo, o tristemente célebre caso do Alcino Monteiro a que já
  • 111. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 111 fizemos referência) mas que são percepcionados como sendo ‘estrangeiros’: os ciganos e os negros33 . Não podemos deixar de mencionar os confrontos em 1996, 1997 e 1998 em Oleiros entre a população ‘residente’ e os membros da minoria cigana. O agravamento do conflito levou à constituição de milícias populares contra os ciganos, que a população justificava como forma de combater o tráfico de drogas e a insegurança. De facto, nas sociedades formalmente anti-racistas, “a discriminação veste-se sempre com outras roupagens, como o medo de assaltos ou a defesa das populações contra a droga” (Femandes, 1995, p.3). A gravidade dos confrontos levou a que pela primeira vez em Portugal se constituísse uma Comissão Interministerial, sob a coordenação do ACIME, para a elaboração de um estudo sobre a situação social dos ciganos. Bacelar de Vasconcelos, que teve um papel fundamental na mediação destes conflitos, tem alertado diversas ocasiões para o problema da exclusão social dos ciganos: “A situação de marginalização social dos cerca de 50 mil ciganos portugueses [...] revela-se nas carências em termos de assistência médica, na falta de escolaridade, nas taxas elevadas de analfabetismo, no grande absentismo e insucesso escolar, traduzindo-se inevitavelmente em dificuldades no relacionamento com o exterior, no exercício da cidadania por falta de competências socio-profissionais e dificuldades de inserção no mercado de trabalho” (1998, p.37). O autor salienta que “o combate à marginalidade e exclusão social vividas por esta comunidade requer uma actuação concertada, nomeadamente nas áreas de educação, emprego, formação profissional, habitação e segurança social” (Bacelar de Vasconcelos, 1998, p.37). No domínio da psicologia social, merece especial destaque o estudo pioneiro de Jorge Vala e colaboradores (Vala, 1999; Vala, Brito e Lopes, 1999a) que permitiu aferir e evidenciar as novas formas de racismo em Portugal. Estes autores realizaram uma investigação empírica sobre os racismos na sociedade portuguesa, recorrendo a uma amostra aleatória e representativa de 600 33 Nos últimos dois anos têm aumentado consideravelmente as notícias referentes a casos de exploração de indivíduos oriundos da Europa de Leste. No entanto, não faremos referência a estes ‘novos imigrantes’ pois quando iniciámos a nossa investigação empírica (1997) essa minoria ainda não era socialmente relevante (Cf: Estudo 1).
  • 112. Racismo e Etnicidade em Portugal 112 indivíduos, com idades entre os 18 e os 64 anos, residentes em Lisboa residentes na região da Grande Lisboa, cujos dados foram recolhidos em 1996. Como Jorge Vala salienta: “A questão não é a de saber se os portugueses são ou não racistas, porque ninguém é o que quer que seja, e muito menos um povo, uma nação ou um qualquer outro grupo [...]; o problema consiste em identificar, numa perspectiva processual, os factores que podem facilitar a ocorrência de comportamentos racistas. Estudar o racismo numa perspectiva psicossociológica não significa descrever o indivíduo racista, o seu perfil ou as suas características, mas determinar quais os factores de ordem cognitiva e motivacional, intergrupal e normativa cuja articulação contextual torna provável a organização de crenças e de atitudes racistas e a manifestação de comportamentos racistas” (1999, p.3). As questões contextuais e normativas assumem enorme importância e exigem um esforço redobrado. Para Vala “estudar o racismo hoje, em sociedades formalmente anti- racistas, implica saber descortinar as manifestações mais civilizadas deste fenómeno, aquelas que não questionam a auto-imagem anti-racista” (1999, p.3). Colocando-se numa perspectiva claramente comparativa, o autor refere que o problema base é o seguinte: “saber se as expressões dos racismos, abertas ou veladas, em Portugal, correspondem a configurações de crenças, atitudes e predisposições comportamentais discriminatórias semelhantes àquelas que têm sido identificadas noutros países europeus; e se os factores que subjazem a essas configurações de crenças e predisposições apresentam ou não semelhanças com aqueles que foram identificados nesses países” (1999, p.3). Nesse sentido as escalas de racismo subtil e flagrante foram integradas num questionário mais vasto desenvolvido pelos autores, e que foi aplicado a ‘portugueses’ (brancos), por entrevistadores também eles ‘portugueses’ (brancos), tendo como grupo- alvo os ‘negros’ (‘os negros’, ‘os negros residentes no nosso país’, ou ‘os imigrantes negros’, conforme as questões). Assim, “os inquiridos eram colocados perante a dicotomização entre a categoria endogrupal ‘os portugueses’ e a categoria exogrupal ‘os negros residentes no nosso país’” (Vala, Brito e Lopes, 1999b, p.39). Como os próprios autores salientam “estas categorias (‘portugueses’ e ‘negros’) não se situam no mesmo
  • 113. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 113 plano lógico, nem são mutuamente exclusivas” (1999b, p.39). Assim, quando “opomos ‘portugueses’ a ‘negros’, estamos a referir-nos à forma de categorização utilizada no questionário, adequada ao senso comum, mas inadequada do ponto de vista sociológico e legal” (1999a, p.13). De facto, “os ‘negros’ em Portugal representam uma multiplicidade de situações jurídicas, de origens geográficas e nacionais, de pertenças comunitárias, etc., sendo ainda uns cidadãos portugueses, e outros cidadãos estrangeiros” (1999b, p.40). Esta opção é justificada pelos autores pela sua “pertinência fenomenológica” (1999b, p.40): “este trabalho parte do pressuposto segundo o qual as representações que deles têm os portugueses ‘brancos’ os dilui dentro da mesma categoria lata de pessoas cuja ascendência africana é identificável, remetendo para a categorização ‘negro’. A categorização do exogrupo com base na cor será, então, aquela que mais automaticamente se toma saliente nos processos de comparação e discriminação” (1999b, p. 40). Assim, os autores propõem-se analisar “as atitudes dos portugueses ‘brancos’ face a uma categoria minoritária, vista como distinta da maioria da população, tendo maioritariamente um estatuto social baixo, e que se tornou socialmente visível: os ‘negros’ em Portugal” (1999a, p.11). Os resultados obtidos em Portugal em relação ao grupo-alvo ‘negros’ foram semelhantes aos encontrados noutros países europeus em relação a diferentes grupos- alvo, como já dissemos atrás. Assim, os portugueses parecem ter interiorizado a norma anti-racista vigente na sociedade, o que os impede de exprimir publicamente formas de discriminação flagrantes, que contrariem claramente essa norma. No entanto, as suas respostas revelam formas de discriminação mais subtis que, não contrariando claramente a norma anti-racista, não deixam de ser formas de discriminação (Vala, 1999; Vala, Brito e Lopes, 1999b). Assim, como afirma Vala, é possível “descortinar fortes continuidades do fenómeno do racismo entre contextos sociais muito diversificados” (1999, p.7) bem ilustradas nos diversos capítulos que compõem o livro organizado pelo autor, Novos Racismos: Perspectivas Comparativas (Arcuri e Boca, 1999; Pettigrew, 1999; Vala, Brito, Lopes, 1999b). Os autores concluem:
  • 114. Racismo e Etnicidade em Portugal 114 “o que o conjunto de resultados apresentados monstra é que as crenças racistas se organizam em Portugal de forma semelhante à de outros países europeus; que os factores que estão na sua génese não são, significativamente, diferentes daqueles que subjazem ao racismo subtil ou flagrante noutros países; e que, em Portugal, tal como nos restantes países europeus, a norma anti-racista incide sobre o racismo flagrante, mas não sobre o racismo subtil” (Vala, Brito, Lopes, 1999b, p.55). No entanto, se em relação aos ‘negros’ os estudos realizados apontam para o predomínio do racismo subtil face ao flagrante, em relação a outras categorias persiste o racismo flagrante, como salientam Correia, Brito e Vala (2001) numa investigação sobre as atitudes dos portugueses face aos ciganos (Cf: Bacelar de Vasconcelos, 1998). Parece assim que a norma anti-discriminação deixa de fora algumas categorias sociais, em relação às quais não tem havido campanhas de sensibilização da população tão sistemáticas como em relação aos ‘negros’.
  • 115. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 115 1.5. Desminar um terreno repleto de ambiguidades “La lutte contre le racisme commence avec le travail sur la langage.” Tahar Ben Jelloun, 1998 Ao longo deste capítulo já fizemos referência a algumas ambiguidades conceptuais que têm caracterizado esta área de estudos, nomeadamente, à difícil delimitação das fronteiras entre os conceitos de racismo, xenofobia e nacionalismo. Também o uso das noções de raça, nação, grupo étnico, classe, e minoria varia muito consoante os textos e revela ambiguidades nos discursos científico e do senso comum. Como referimos no ponto 1.3, a noção de ‘raça’ quando aplicada aos seres humanos não tem fundamento científico (UNESCO, 1960/1973). No entanto esta palavra continua a ser utilizada no quotidiano, misturando-se com outras. Por vezes a palavra ‘raça’ é utilizada como sinónimo de nação: ‘raça francesa’, ‘raça alemã’. Apesar desta acepção, comum no século XIX e início do século XX, se ter tornado obsoleta (van den Berghe, 1996, p.297) continua a ser usada no quotidiano. No ponto anterior vimos como a identidade nacional durante o Estado Novo se construiu muito à base da ideia de ‘raça’. Ora, a herança dessa conceptualização é ainda visível nos dias de hoje. João Nuno Coelho (2001), no livro Portugal: A equipa de todos nós – Nacionalismo, Futebol e Media, fornece-nos um exemplo desta acepção. Segundo o autor, o nacionalismo baseado na ideia de ‘raça’ é particularmente visível nos discursos da imprensa desportiva, “tradicionalmente dominados por retóricas de diferença e de caracterização física e mental”, sendo os estilos de jogo identificados “a partir das ‘essências’ e ‘naturezas’ dos povos (...) baseadas em mitos históricos” (Coelho, 2001, p.144). A partir da análise dos discursos em A Bola, o mais vendido periódico desportivo português, entre 1945 e 2000, o autor ilustra como “ainda hoje a noção de raça está profundamente ligada à concepção da nacionalidade e da identidade nacional, ao privilegiar-se os ‘laços de sangue’ e os traços físicos como definidores de pertenças identitárias” (Coelho, 2001, p.143).
  • 116. Racismo e Etnicidade em Portugal 116 Um exemplo interessante para a temática que iremos aprofundar neste trabalho é- nos dado por um excerto de um relato aquando do jogo Portugal-Correia do Norte no Mundial de 1966: “(...) os coreanos têm, neste aspecto da resistência, o truque fácil de, ao intervalo, trocarem todos os homens, acabando por jogar com vinte e dois, sem o árbitro dar por isso. É que eles são todos iguais, chamem-se Sub, Sun, Lim, Zin, Kim, Won ou Seung (...). São todos amarelinhos, pequeninos e senhores de nomes esquisitos (...)” (Vítor Santos, 23 de Julho de 1966; citado por Coelho, 2001, p.144). Ainda relativamente às ambiguidades entre a raça e nacionalidade é importante referirmos que os estudos sobre a percepção dos indivíduos de origem africana em Portugal nos anos oitenta referiam a assimilação de todos os africanos à categoria de cabo-verdianos que, como já referimos, constituem o grupo de origem africana mais antiga e mais numerosa em Portugal. Na opinião de Manuela Cunha (2001, p.286) a saliência desta categoria era devida “às representações hegemónicas que à época isolavam a comunidade cabo-verdiana em Portugal como ‘problema’ e lhe colavam a propensão para a violência, a delinquência e o desvio”. À medida que as outras comunidades de origem africana foram aumentando o seu número e visibilidade, deixou de se utilizar uma categoria nacional específica (cabo-verdianos) para se usar categorias raciais genéricas: pretos, negros, africanos (Cf: Cunha, M., 2001; Machado, 1999). Por exemplo, Manuela Cunha (2001) num trabalho longitudinal realizado numa prisão feminina (cujos dados foram recolhidos em 1987/1988 e uma década depois) refere que a saliência quotidiana das categorias raciais ou étnicas é praticamente nula, ao invés do que sucedia há uma década, quando eram constantemente activadas. “Tratava-se então de denegrir colectivamente um conjunto de reclusas, manobrando-se neste processo essencialmente dois termos: ciganas e cabo- verdianas. A categoria cabo-verdianas era alvo de uma definição particularmente elástica por parte das detidas não africanas, para quem pareciam ser irrelevantes para o efeito os factos da nacionalidade, origem ou naturalidade. A cor da pele era critério suficiente para uma tal delimitação, sendo por conseguinte remetidas para a ‘cabo-verdianidade' a maioria das reclusas provenientes de outros países africanos” (2001, p.286).
  • 117. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 117 Na opinião da autora, é possível destrinçar nestas construções discursivas alguns pontos de contacto com os processos de criminalização analisados na Grã-Bretanha por Michael Keith (1993; referido por Cunha, M., 2001, p.287) enquanto discursos racializadores. Segundo Keith o termo black não se limitaria a designar uma parcela concreta da população, mas seria, em parte, um termo flutuante criado pelo discurso da criminalização. Estas designações seriam extremamente mutáveis e contextuais e coexistiriam com as que decorrem de outros campos discursivos, interagindo com eles. A este propósito Manuela Cunha refere: “assim como no passado os/as cabo-verdianos/as emergiam, fora e dentro da cadeia, como sujeito discursivo destacado e distinto, assim, eles/elas imergiriam depois, dissolvendo-se. Fora, hoje, são outras as ‘classes perigosas’ ?...? e não se ouve mais falar em ‘criminalidade cabo-verdiana’. Dentro, hoje, os referentes étnico-‘raciais’ são manejados no modo desqualificante pelas esparsas detidas da pequena burguesia branca e cujo crime não tem a ver com o tráfico de droga. São estas que, convocando representações emergentes no exterior, procedem a uma categorização que amalgama pretos (entre os quais, os cabo-verdianos), ciganos, droga, degradação e bairro-ghetto” (2001, p.287-288). Esta situação é bem diferente da verificada nos EUA onde a associação entre raça e crime é muito forte. Peffley e Hurwitz (2002) num estudo recente realizado nos EUA demonstraram que a mera referência a assuntos relacionados com o crime “bring an image of African American to the mind of the ?White? individuals” (p.69). Os autores demonstraram a conexão entre raça e crime nas mentes de muitos americanos brancos. A crença de que os negros são ‘violentos’ e ‘preguiçosos’ constitui uma importante fonte de suporte para políticas punitivas como a Pena de Morte e a Prisão Perpétua. Os resultados desta investigação sugerem que “when many whites think of punitive crime policies to deal with violent offenders, they are thinking of black offenders” (Peffley e Hurwitz, 2002, p.59). Por outro lado, Ortner (1998) debruça-se sobre a organização semântica e ideológica das categorias culturais através das quais é pensada a diferença no discurso ‘americano’, tanto leigo e académico. Segundo a autora, existiria uma tendência para traduzir a condição de classe na raça e etnia, categorias discursivas dominantes e com enorme saliência nos EUA. A autora conclui:
  • 118. Racismo e Etnicidade em Portugal 118 [T]here is no class in America that is not always already racialized and ethnicized, or to turn the point around, racial and ethnic categories are already class categories. (…) If to be Jewish is to be, in deepest essence, middle class (whether one is ‘in reality’ or not), then to be (...) African-American is to be seen/felt to be, in deepest essence – and whether one is in reality or not – lower class. African-Americaness carries a more or less automatic lower class identity in the eyes of others; this much we know. But it also apparently carries a lower-class identity in terms of self-image” (1998, p.10-13; citada por Cunha, M., 2001, p.289-290). Diversos autores têm salientado que o desfavorecimento social de membros de minorias étnicas ou raciais não é necessariamente consequência de racismo, pois quanto mais baixa a posição na hierarquia social maior a vulnerabilidade à discriminação (Cf: Machado, 2000; Pina-Cabral, 1998). As complexas ligações entre classe, raça, e etnia também têm sido salientadas em diversos estudos. Estas têm variado significativamente ao longo do tempo e variam consideravelmente de país para país (Cf: Machado, 2000; Miles, 1989/1995). Por exemplo, Vale de Almeida refere o actual processo de ‘branqueamento’ dos portugueses nas ilhas Trindade: no início do século XX os portugueses, emigrantes pobres, eram incluídos na categoria racial ‘vermelhos’, juntamente com os emigrantes indianos; hoje, associados a uma influente Europa, são incluídos na categoria ‘brancos’ (1997, p.24). Na mesma linha de ideias, Pina-Cabral (1998) refere que em Macau, tal como frequentemente ocorria noutros contextos da colonização portuguesa, a cor da pele tornava-se menos marcante como barreira discriminatória consoante as pessoas iam subindo na escala socio-económica34 . Por seu turno, John Camaroff (1996; referido por Cunha, M., 2001, p.331) dizia que se o inquietava a política da diferença, não o inquietava menos a “política da indiferença” (itálico no original) referindo-se concretamente, no primeiro caso, a modos de representação implicados na etnicidade e no nacionalismo e, no segundo, aos que deixam na sombra a pobreza e as materialidades do poder (Cunha, M., 2001, p.331). Esta questão remete-nos para outra: o perigo de transpor categorias analíticas de um contexto para o outro, sem ter esse contexto em consideração. A “transposição 34 Para uma discussão sobre a necessidade de ter a ‘classe’ e a ‘raça’/‘grupo étnico’ como categorias analíticas distintas ver Oommen (1994), Machado (2000) e Vale de Almeida (2000).
  • 119. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 119 mecânica de categorias e perspectivas de análise entre espaços e tempos muito diferentes” (Machado, 2000, p.30) pode acarretar perigos, quando conceitos e teorias produzidas nos EUA, “o maior exportador de conceitos analíticos”, são transpostos acriticamente para a análise das questões raciais na Europa ou América Latina. Para Miles, por exemplo, essa importação teórica tem interesse muito reduzido: “a concept of racism that was formulated by reference to a single historical example (the United States) and then uncritically applied to one other (Britain) has a degree of specificity that seriously limits its analytical scope” (Miles, 1989/1995, p.60). A questão da articulação entre as desigualdades de classe e as desigualdades raciais, a que fizemos referência, é uma delas (Cf: Machado, 2000). Outra das ambiguidades frequentemente presente na literatura refere-se ao termo minoria (e.g., Moscovici, 1976; Galissot, 1991). Este termo tanto pode designar simplesmente uma minoria quantitativa (isto é, em estatuto numérico) como uma minoria qualitativa (isto é, em termos de estatuto social ou poder). No caso concreto dos imigrantes estamos perante grupos duplamente minoritários (em termos quantitativos e qualitativos) os que os coloca numa situação de acentuada fragilidade. Mas outros grupos, não sendo minorias quantitativas, constituem minorias qualitativas: o caso dos ‘negros’ durante o regime de apartheid na África do Sul constituem um exemplo flagrante deste tipo de minoria. De igual modo podemos observar minorias quantitativas que são maiorias qualitativas: as elites políticas, por exemplo. Na maior parte das vezes o termo minoria é utilizado para designar um grupo destituído de poder e de recursos. Como salientam Burguière e Grew “more than merely quantitative, minority is a loaded term; and its meaning is always culture-bound” (2001, p.2). Numa obra que reúne diversos estudos sobre a construção social das ‘minorias’ em diferentes países e em diferentes momentos históricos, os autores salientam: “To be considered a minority, a group must be both an integral element in the larger society and sufficiently outside its sociopolitical core to lack that Access to status and power considered normal (even when in practice only dominant elites exercise that access). The significance of minority status thus differs from society to society,
  • 120. Racismo e Etnicidade em Portugal 120 according to which characteristics come to be treated as critically distinctive (attributes of race, ethnicity, region, religion, or class are among the most common) and according to the disadvantages or advantages that accompanied that status. Constraints on a minority’s access to power may be a matter of social custom, economic condition, regional difference, or formal, legal restriction; but that differential access, more than its number relative to the population at large, marks a minority” (Burguière e Grew, 2001, p.3-4). Na opinião dos autores a ambiguidade do termo minoria reside na sua conotação: “In its ambivalent contemporary usage, the concept of a minority designates a weakness and affirms a strength. ?…? Negative in the sense that it identifies a group in terms of its vulnerability to a majority that threatens to oppress or reject it, the concept is positive in its recognition of a group’s cultural or moral value, which must be affirmed or recognized or protected” (Burguière e Grew, 2001, p.3-4). Se a análise empreendida pelo autores nos parece estimulante por salientar a construção social das ‘minorias’ em diferentes sociedades e por demonstrar que essa construção se baseia em critérios convencionais e arbitrários, não deixa de ser surpreendente que a necessidade da minoria ‘ser protegida’ aparece como um aspecto ‘positivo’, já que esta necessidade de protecção corresponde precisamente à negação da sua autonomia. Outra questão polémica, a que já fizemos referência no ponto 1.2, prende-se com o conceito de racismo, e se este pode ser assimilado ao conceito de etnocentrismo. Claude Lévi-Strauss, por exemplo, opõe-se firmemente a essa possibilidade, dizendo que não se pode confundir o racismo com o etnocentrismo: “O racismo é uma doutrina que pretende ver nas características intelectuais e morais atribuídas a um conjunto de indivíduos ?...? o efeito necessário de um património genético comum. Não se pode alinhar sob a mesma rubrica ?...? a atitude de indivíduos ou de grupos cuja fidelidade a determinados valores os torna parcial ou totalmente insensíveis a outros valores. ?...? Esta incomunicabilidade relativa não autoriza, claro, a oprimir ou destruir os valores que se rejeita ou os seus representantes, mas, mantida nestes limites, ela nada tem de revoltante” (1983/1986, p.15).
  • 121. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 121 Confrontado com esta questão, Pina-Cabral refere que, uma vez que nas novas formas de preconceito se manifestam essencialmente pela diferenciação cultural, em vez de racismo, seria preferível adoptar “expressões mais abrangentes do género de ‘etnocentrismo’ ou ‘discriminação e preconceito étnico’” (1998, p.24). Segundo o autor, o conceito de racismo: “põe uma ênfase excessiva na diferenciação fenotípica como principio classificatório dominante - ora isto é indubitavelmente verdade em contextos radicados na tradição anglo-americana, mas não é em tantos outros contextos a nível mundial, onde o preconceito e a discriminação também grassam, como os lusófonos” (Pina-Cabral, 1998, p.24). Numa artigo dedicado a esta questão, Machado (2000, p.14) refere ainda uma terceira posição, distinta de qualquer das anteriores, é a daqueles que falam de ‘etnicismo’ para designar essas novas formas de preconceito, não deixando, no entanto, de o incluir num conceito mais alargado de ‘racismo’ (e.g., Essed, 1991; van Dijk, 1991). Taguieff (1997, p.44) critica a ‘banalização’ da palavra, mas alerta para os efeitos indesejáveis de uma definição restrita do racismo – reduzir o racismo a um fenómeno ideológico próprio da modernidade recente, isto é, reduzi-lo à doutrina ‘científica’ da desigualdade entre raças humanas é insuficiente para compreender o racismo, sobretudo nas suas formulações actuais, mais ‘veladas’. Relativamente a esta questão Machado refere o seguinte: “Sem negar que há uma faixa de sobreposição entre os dois fenómenos, e não entrando aqui na discussão aprofundada do problema, pode, de qualquer modo, dizer-se que a fusão do etnocentrismo e do racismo, ou a substituição do segundo pelo primeiro, é precipitada. Se isso permite dar conta daquilo que os dois têm em comum, perde-se de vista o que eles têm de diferente, e que justificou a evolução autónoma dos dois conceitos” (2000, p.14). Vamos deixar clara qual a nossa posição neste debate: consideramos como racista uma discriminação negativa (ao nível dos comportamentos, cognições ou emoções)
  • 122. Racismo e Etnicidade em Portugal 122 quando esta se baseia numa diferença essencial entre o grupo de pertença e o(s) outro(s) grupo(s). Uma diferença essencial significa que é percepcionada como absoluta, fixa e imutável, isto é, define fronteiras nítidas e intransponíveis entre os grupos. Esta diferenciação pode basear-se em critérios biológicos ou culturais, mas é sempre remetida para a uma essência. Mas como vimos, o carácter vinculativo dessa essência difere em função da posição relativa dos grupos: marca um dos grupos (grupo dominado), mas liberta o outro (grupo dominante), isto é, as fronteiras que delimitam os grupos são impermeáveis para uns e fluídas para outros. Por último, debrucemo-nos brevemente sobre o conceito de etnicidade. Segundo Fenton: “The concept of ethnicity refers to the way in which social and cultural difference, language and ancestry combine as a dimension of social action and social organization, and form a socially reproduced system of classification. ?...? In its concrete form ethnicity refers to the social mobilization of ethnic ties and the social significance of ancestry, language and culture. We may speak of ethnic groups – identifiable groups whose ‘actual’ or ‘claimed’ shared ethnic attributes mark them off within a social system” (1999, p.62). De referir que esta ‘mobilização étnica’ ou ‘acção afirmativa’ que, em certas circunstâncias, pode levar à exacerbação e absolutização das ‘diferenças’ entre os grupos, não pode ser considerada como uma forma de racismo (Fenton, 1999; Burguière e Grew, 2001). Se concordamos com Miles quando este afirma que o racismo não pode ser conceptualizado como uma “prerrogativa dos brancos” contra os negros (1989/1995, p.55), não podemos deixar de salientar que a luta identitária por parte dos grupos dominados não pode ser confundida com racismo, mesmo quando advoga um certo grau de ‘separação’ face à sociedade dominante. No seu tão famoso quanto polémico Orphée noir, Sartre referiu-se à luta dos ‘negros’ contra o colonialismo como devendo passar por um período de separação ou negatividade face aos ‘brancos’: “ce racisme antiraciste est le seul chemin qui puisse mener à l’abolition des différences de races” (1948/2002, p.XIV; itálico nosso). E acrescenta: “il faut d’abord qu’ils apprennent à formuler en commun ces revendications, donc qu’ils se pensent comme noirs » (p.XIV) ou ainda « le noir qui revendique sa négritude dans un mouvement révolutionnaire ?…? espère découvrir l’Essence noire
  • 123. Capítulo 1 - Racismo, Racialização e Etnicização das minorias 123 dans le puits de son cœur » (p.XV ; itálico nosso). Mas reivindicar uma ‘essência negra’ não implicará abdicar da sua individualidade, isto é, do estatuto de ‘pessoa’ ?
  • 125. CAPÍTULO 2 - RELAÇÕES INTERGRUPAIS, IDENTIDADE SOCIAL E DIFERENCIAÇÃO SIMBÓLICA
  • 126. Racismo e Etnicidade em Portugal 126 2.1 Introdução No capítulo anterior focalizámo-nos numa forma específica de discriminação social - o racismo - tendo recorrido aos contributos de diferentes disciplinas para a compreensão deste complexo fenómeno. Neste capítulo debruçamo-nos sobre uma área de estudos no seio da psicologia social que é designada por ‘relações intergrupais’. Trata-se de uma das áreas mais vastas e mais relevantes no seio da referida disciplina, envolvendo uma grande diversidade de modelos teóricos e linhas de investigação empírica, e com estreitas ligações a outras áreas da psicologia social, nomeadamente com a área da cognição social, que aprofundaremos no próximo capítulo. Não vamos efectuar uma análise exaustiva e detalhada desta vasta área de estudos, mas apenas apresentar os modelos teóricos e investigações empíricas que consideramos mais relevantes para a fundamentação teórica do nosso trabalho. Nesse sentido, damos especial relevância aos modelos que têm em consideração as relações entre grupos ocupando posições assimétricas na estrutura social. Assim, neste capítulo discutimos alguns dos conceitos fundamentais no nosso trabalho: categorização social, identidade social, comparação social, e estatuto social. A nossa análise é centrada nos processos de diferenciação intra e intergrupais e na forma como estes processos são efectados pela posição relativa dos grupos. No âmbito das teorias sobre as relações intergrupais é atribuído um lugar central à análise dos processos de discriminação social, quer ao nível dos juízos e das avaliações, quer ao nível dos comportamentos (Amâncio, 1993/2000). Apesar de no seio da psicologia social, sobretudo a partir dos anos trinta do século passado, se terem desenvolvido esforços para compreender os fenómenos de discriminação social, até à década de setenta a produção do conhecimento sofrera rupturas e recuos sucessivos não se tendo verificado um verdadeiro esforço cumulativo (Doise, 1985, 1999). De facto, só a partir da década de setenta é que no seio da psicologia social europeia se procurou desenvolver modelos sobre o comportamento intergrupal que integrassem o conhecimento resultante de abordagens anteriores. Nestas últimas décadas, desenvolveram-se esforços de articulação de diferentes níveis de análise, desde o nível interindividual até ao situacional e ideológico. Consequentemente, os modelos têm-se complexificado no sentido de dotar a disciplina de um quadro teórico de análise dos fenómenos de discriminação em larga escala (Amâncio, 1994).
  • 127. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 127 Este capítulo é constituído por três secções. Na primeira, fazemos referência a algumas das abordagens clássicas sobre relações intergrupais e discriminação social no âmbito da psicologia social, nomeadamente as desenvolvidas por Kurt Lewin, Gordon Allport, e Muzafer Sherif. Na segunda, apresentamos o modelo da identidade social desenvolvido no âmbito da escola de Bristol, modelo central no quadro actual das teorias sobre as relações intergrupais. Começamos por efectuar uma breve referência aos estudos que precederam este modelo. Seguidamente, apresentamos com algum detalhe a teoria da identidade social de Henri Tajfel, uma vez que esta serviu de base a todos os estudos posteriores nesta área, para além de ser aquela que, pela primeira vez articula os conceitos fundamentais sobre os quais se alicerça o nosso estudo. Efectuamos ainda uma apresentação da teoria da auto-categorização de John Turner e discutimos algumas das limitações destes modelos. Na última secção, apresentamos os modelos desenvolvidos no âmbito da escola de Genebra e seus desenvolvimentos recentes. Começamos por apresentar o modelo da diferenciação categorial de Willem Doise e o modelo da covariação de Jean-Claude Deschamps. Especial relevância é dada aos trabalhos de Fabio Lorenzi-Cioldi sobre identidade dominante e dominada e aos de Lígia Amâncio sobre a identidade social e a representação de ‘pessoa’. Como veremos, os estudos da escola de Genebra permitiram ultrapassar algumas das limitações apontadas à escola de Bristol, o que se prende com o esforço de integração de várias contribuições anteriores e articulação de níveis de análise empreendido pelos autores.
  • 128. Racismo e Etnicidade em Portugal 128 2.2 Relações intergrupais, identidade social e discriminação social “For a stranger to the country, the city, the race, and so on, what is stressed is again nothing individual, but alien origin, a quality which he has, or could have, in common with many others strangers. For this reason strangers are not really perceived as individuals, but as strangers of a certain type.” Georg Simmel, 1908 No seio da psicologia social, a obra póstuma de Kurt Lewin (1948/1997), Resolving Social Conflicts, que reúne diversos artigos publicados durante a sua vida, apresenta uma das primeiras reflexões teóricas sobre a questão da discriminação social, a partir da observação e análise dos acontecimentos e movimentos sociais nos anos trinta, na Europa e nos EUA, nomeadamente, o anti-semitismo, a luta dos negros e das mulheres pelo direito de voto. Orientado por um projecto de action-research, que caracterizou grande parte da sua pesquisa, Lewin procurou identificar práticas de socialização e as dinâmicas intra e intergrupais que permitissem aos membros de grupos ‘desprivilegiados’ fazer face à discriminação social de que eram alvo. Como refere Amâncio (1994, p.137), embora Lewin não tenha desenvolvido propriamente um modelo teórico sobre as relações intergrupais, formulou conceitos fundamentais para a análise das relações intergrupais e enunciou alguns dos pressupostos que viriam a ser adoptados por teorizações posteriores mais sistemáticas (Apfelbaum, 1979; Tajfel e Turner, 1979). De facto, reconheceu-se imediatamente a grande importância dos trabalhos que Lewin desenvolveu sobre liderança e dinâmica de grupos restritos, tendo-se esquecido, por largos anos, o contributo deste autor na análise das dinâmicas intergrupais. Esta separação entre o estudo das relações intragrupais, por um lado, e das relações intergrupais, por outro, contribuiu sem dúvida para a dificuldade em se alcançar um modelo integrativo destas relações. Concretamente em relação ao anti-semitismo, Lewin salienta a sua origem social, situando-o em forças externas ao grupo discriminado e independentes do comportamento ou das características dos seus membros. A discriminação abrange todos os membros do grupo, independentemente das suas características individuais e que a centralidade da pertença a esse grupo é também independente do comportamento dos seus membros. Os membros dos grupos dominados, na acepção de Lewin, estão
  • 129. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 129 sujeitos a um ‘destino comum’ (1948/1997, p.165) que lhes é imposto pelo exterior. Lewin analisa ainda as implicações de pensamentos negativos relativamente ao grupo de pertença e que dão origem a estratégias individuais de adaptação ao grupo dominante, passando pela recusa ou negação da pertença ao grupo minoritário. Estas estratégias, como o autor salienta, podem ter efeitos positivos na auto-estima dos indivíduos, mas não são geradoras de mudança social, visto que esta só pode ser alcançada através de estratégias colectivas. Lewin salienta a necessidade de distinguir: “two kinds of forces acting on the individual: those resulting from the individual’s own wishes and hopes, and those socially ‘induced’ or applied to the individual from without by some other agent” (1948/1997, p.113). Referindo-se à situação vivida pelos judeus durante o nazismo, Lewin argumenta: “Even if some individual had some secret wish to cross the boundaries of his group, the character of this boundary as a strong and practical impassable barrier destroyed all such hopes at once” (1948/1997, p.113). Lewin interroga-se sobre o que é que torna os judeus um grupo e o que é que torna um indivíduo um membro do grupo dos judeus? A sua resposta é clara: “it is not similarity or dissimilarity of individuals that constitutes a group, but interdependence of fate. [...] It is easy enough to see that the common fate of all Jews makes them a group in reality” (1948/1997, p.120). O autor salienta a importância da identificação com o grupo de pertença para fazer face à discriminação e evitar as consequências negativas ao nível da auto-estima dos indivíduos: “The only way to avoid Jewish self-hatred in its various forms is a change of the negative balance between the forces toward any away from the Jewish group into a positive balance, the creation of loyalty to the Jewish group instead of negative chauvinism. We are unable to safeguard our fellow Jews or our growing children today against those handicaps which are the result of their being Jewish. However, we can try to build up a Jewish education both on the children´s level and on the
  • 130. Racismo e Etnicidade em Portugal 130 adult level to counteract the feeling of inferiority and the feeling of fear which are the most important sources of the negative balance” (1948/1997, p.140, itálico no original). Lewin alerta para o facto do ‘bom’ comportamento dos judeus, baseado na assimilação dos valores do grupo dominante, em nada afectar a condição colectiva deste, representando a aceitação de uma forma de pensamento para a qual os indivíduos não haviam participado, sem conduzir portanto ao desaparecimento do anti-semitismo (Amâncio, 1993/2000). As soluções situar-se-iam assim, ao nível da ‘acção colectiva’ dos grupos minoritários e não nas acções individuais: “Among the members of minorities or other social groups which are not in fortunate positions, there are single individuals or larger sections of the group which see their main hope in crossing the line that separates their group from others. They may hope to cross the line individually or to destroy it entirely. One speaks in this connection of a tendency for ‘assimilation’. It is worth-while to ask how this tendency of the individual is related to the situation of his group and his position within the group” (1948/1997, p.109). A perspectiva de análise das relações intergrupais desenvolvida por Lewin tem em conta as determinantes reais e simbólicas dessas relações, podendo ser considerada um esboço dos modelos das relações de dominação que só viriam a ser desenvolvidos algumas décadas depois (Apfelbaum, 1979; Amâncio, 1994; Doise, 1976/1984; Lorenzi-Cioldi, 1998). Como salienta Apfelbaum (1979), as interacções sociais analisadas por Lewin constituem relações de dominação, baseadas numa assimetria de poder simbólico, que se traduz numa assimetria na capacidade de intervenção dos grupos. Segundo esta perspectiva, o grupo dominado seria uma entidade subjectivamente construída, que reúne os seus membros sob um destino comum, no quadro de uma definição categorial que retira aos seus membros a distintividade individual. Esta assimetria entre os grupos no domínio dos recursos simbólicos repercute-se numa assimetria na capacidade de decisão e de acção. A mudança social depende do desenvolvimento de uma consciência colectiva da natureza da relação de dominação por parte dos membros do grupo dominado. No entanto, Apfelbaum salienta a dificuldade da mudança social, uma vez
  • 131. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 131 que as relações de dominação tendem a tornar ‘irreversível’ a assimetria entre os grupos: “(a) all the rights and privileges are concentrated on one side - the market is cornered by the dominant group; (b) this dominant group is the only group to set the limits, and define the nature, of these rights and privileges; and (c) the other group has no share of, or perhaps more accurately, has been dispossessed of, these rights and privileges. In thinking of women, Blacks, various minority national groups, or any other group that has been subordinated, the term ‘invisibles’ has previously been used” (Apfelbaum, 1979, p.196). Nesta perspectiva, os grupos dominados são: “collectivities which have been denied at the outset a socially recognized role in the history of a given society (....) Invisibles have, thus, no legal, autonomous existence and as a direct consequence no contractual power [...]. The dominant group does not recognized, or chooses to ignore, the very existence of the invisible and when expressed, their claims to be recognized as partners who participated fully in the decisions regarding the fundamental options for society (Apfelbaum e Lubek, 1976, p.84; citados por Apfelbaum, 1979, p.196). O processo do poder, actuando através dos mecanismos referidos acima, cria uma disparidade entre os dois grupos envolvidos numa relação de dominação que “denies any sort of contractual power to one of them, and may even deny this group’s right to exist as an autonomous and legitimate coactor in the relation” (Apfelbaum, 1979, p.196). O poder determina as dinâmicas internas específicas de cada grupo assim como a natureza das relações entre ambos. O primeiro passo no estabelecimento de uma dinâmica de dominação consiste em marcar os membros do grupo dominado, atribuir- lhes um rótulo: “To be ‘a Negro’ establishes ‘who he is’ by relating him to all other individuals, known or unknown, who have the same defining features. In time, he must realize the general nature of his racial category because others label and identify him in these terms, making his racial group membership the nexus of his emerging self identity” (Proshansky e Newton, 1973, p.181; Apfelbaum, 1979, p.196).
  • 132. Racismo e Etnicidade em Portugal 132 Uma vez que os grupos dominantes e dominados estão reciprocamente ligados na relação de poder, “the process of marking and identifying members of the to-be-subordinated group also defines membership in the dominant group: it may not be necessary for the latter group to actively, explicitly, and precisely define itself. [...] By marking members of the to-be-subordinated group, and excluding them at the same time from membership in the dominant group, the latter group comes to act as the representative of a set of norms to be imposed on all others, as if they were universal” (Apfelbaum, 1979, p.197). Numa perspectiva diferente da precedente, Allport (1954/1979) na sua análise do preconceito de discriminação também faz referência a fenómenos intergrupais envolvendo relações de dominação. Como referimos no capítulo anterior, Allport atribui enorme peso ao processo de categorização na explicação da discriminação social, nomeadamente ao poder dos ‘rótulos’ na estigmação dos grupos socialmente desfavorecidos, uma vez que estes evocam ‘automaticamente’ determinados conteúdos associados a esses grupos, conteúdos esses que são mais vinculativos para esses grupos. Embora reconhecendo a causalidade múltipla do fenómeno do preconceito, na sua análise dos estereótipos, o autor discute os seus aspectos ‘objectivos’, ligados a um ‘real’ conhecimento dos grupos, e os seus aspectos ‘falsos’ devidos à falta de informação e de contacto com os grupos, e à generalização abusiva de determinadas características a todos os membros desse grupo. Nesse sentido o autor propos o aumento da informação sobre os diferentes grupos étnicos através da difusão de imagens mais tolerantes das minorias étnicas nos meios de comunicação social, e também um aumento do contacto directo entre os diferentes grupos, nomeadamente entre as crianças em idade escola: “Without intercultural information obtained at school a child cannot acquire this perspective, for most children come from homes an neighborhoods where they have no opportunity to learn about out-groups in an objective way. And so we conclude that the teaching of correct information does not automatically change prejudice; but it may in the long run help” (Allport, 1954/1979, p.486; itálico nosso). Estas alterações nas práticas de socialização na escola, nos empregos e nos mass media visavam desenvolver cidadãos capazes de formular juízos não enviesados sobre
  • 133. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 133 as minorias étnicas, consonantes com os valores igualitários da sociedade americana. No entanto, Allport reconhece os limites das acções propostas na irradicação dos estereótipos: “Sterotypes (…) are primarily rationalizers. They adapt to the prevailing temper of prejudice or the needs of the situation. While it does no harm (and may do some good) to combat them in school and colleges, and to reduce them in mass media of comunication, it must not be thought that this attack alone will eradicate the roots of prejudice” (Allport, 1954/1979, p.204). Allport salientou que o contacto entre grupos e o desenvolvimento de interesses supraordenados comuns aos membros de ambos os grupos, só será plenamente efectivo na redução do preconceito se for entre invidíduos do mesmo estatuto social: “Prejudice (unless deeply rooted in the character stucture of the individual) may be reduced by equal status contact between majority and minority groups in the persuit of common goals. The effect is greatly enhanced if this contact is sanctioned by institutional supports (i.e., by law, custom or local atmosphere), and provided it is of a sort that leads to the perception of common interests and common humanity between members of the two groups” (Allport, 1954/1979, p.281; itálico nosso). Assim, o autor teve em consideração aspectos ligados às estruturas de poder, mas não os desenvolveu suficientemente, centrando-se principalmente em variáveis intra- individuais ou situacionais emdetrimento das estruturais. Como salienta Amâncio (1993/2000), a análise da discriminação social, no âmbito da psicologia social até aos anos setenta, ficou limitada a extrapolações do nível psicológico para as relações intergrupais: o etnocentrismo resultaria de uma rigidez na visão da realidade social que se explicaria pela falta de informação ou contacto com os grupos-alvo (Allport, 1954/1979) ou pela personalidade autoritária (Adorno et al., 1950), não havendo a integração de variáveis estruturais presentes nos estudos no âmbito da antropologia e da sociologia. Esta conceptualização da discriminação social apresenta alguns problemas: o pressuposto de que os preconceitos são específicos de certos tipos de pessoas e irradicáveis, não permite compreender a sua incidência e resistência nas interacções
  • 134. Racismo e Etnicidade em Portugal 134 sociais. Também não permite compreender a persistência da discriminação de minorias emigrantes nas sociedades ocidentais, onde ela coexiste com normas anti-discriminação, como salientámos no capítulo anterior. Já Lewin (1948/1997) salientava a necessidade de uma ‘integrated approach’ (p.144) para a análise das relações intergrupais tendo em conta o contexto, pelo que os psicológos deveriam ter em conta os trabalhos da sociologia e antropologia cultural. No entanto, o contributo deste autor neste domínio foi neglegenciado durante muito tempo. De modo que, numa revisão sobre o etnocentrismo a que já fizemos referência no capítulo anterior, LeVine e Campbell (1972) salientam novamente as limitações que resultam da falta de integração entre as ciências sociais, considerando essencial ‘an integrated social science’ (p.223) para o desenvolvimento dos estudos sobre a discriminação intergrupal. De facto, até ao início da década de setenta a sociologia e a antropologia ocupavam-se das variáveis estruturais e societais, enquanto que “a psicologia social apresentava modelos mais psicológicos do que verdadeiramente psicossociológicos” (Amâncio, 1994, p.140). Esta necessidade de articulação da psicologia social com outras ciências sociais e humanas está bem presente no modelo sobre as relações intergrupais desenvolvido por Sherif e seus colaboradores (Sherif, Harvey, White, Hood e Sherif, 1961/1988; Sherif, 1967; Sherif e Sherif, 1979), durante os anos 60, demarcando-se nitidamente do quadro explicativo dominante na época. Este modelo visava uma integração entre o ‘psicológico’ e o ‘sociológico’, a fim de ultrapassar a tendência para extrapolar do nível de análise individual ou interindividual para o nível de análise intergrupal: “research on intergroup relations entails more than study of the intergroup behavior of individuals - which is the proper level of analysis for social psychology. It also entails problems of institutionalized power relations and complex organizational systems, both formal and informal, which require analysis at their own level by political scientists, sociologists, anthropologists and others” (Sherif e Sherif, 1979, p. 8).
  • 135. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 135 Os autores demarcam-se das abordagens que analisam o comportamento intergrupal a partir da personalidade dos indíviduos (e.g., Adorno et al., 1950), salientando que: “We cannot legitimately extrapolate from the individual’s motivational urges and frustrations to his experiences and behavior in group situations as if interaction processes and reciprocities within a group were a play of shadows. It is equally erroneous to extrapolate from the properties of relations within a group to explain relations between groups, as though the area of interaction between groups consisted of a vacuum” (Sherif e Sherif, 1979, pp.8-9). Por isso mesmo, na opinião de Doise, “é indiscutível a importância histórica e teórica das pesquisas sobre a interacção entre grupos efectuadas por Sherif e seus colaboradores (1961). Com efeito, Sherif não somente foi o primeiro a empreender pesquisas experimentais neste domínio, mas também elaborou um quadro teórico sobre a competição e a cooperação entre os grupos” (1976/1984, p.89). Os trabalhos de Sherif representam um esforço pioneiro de articulação entre explicações psicológicas e sociológicas, tendo este autor insistido várias vezes sobre a insuficiência dos modelos ‘individualistas’ para explicar as regularidades que se manifestam nas relações entre grupos. No entanto, as pesquisas de Sherif, situam-se principalmente no nível de análise situacional, visto que dizem respeito à interacção entre indivíduos repartidos em grupos diferentes mas não ocupando necessariamente uma posição diferente no sistema social (Doise, 1982b). Esta limitação está bem patente na definição de grupo proposta pelo autor, onde não há qualquer referência aos critérios externos, já tidos em consideração por Lewin: “A group is a delineated social unit with properties which can be measured and which have consequences for the behavior of its members. These include, at least (1) structure or organization - that is, a dimension as measured by effective initiative of members, and (2) a set of norms regulating behavior of the members in pursuing goals, in relationships with one another and with out-groups and their members - that is, evaluative dimensions which can be assessed in terms of what is upheld in the group and what is treated as deviate” (Sherif e Sherif, 1979, p.8).
  • 136. Racismo e Etnicidade em Portugal 136 Uma das mais famosas pesquisas de Sherif sobre esta temática, é conhecida por ‘Robbers Cave’ (nome do local onde decorreu a experiência). Esta experiência, realizada com rapazes num acampamento de Verão, foi constituída por várias fases. Na primeira fase, Sherif estudou as interacções naturais em dois grupos de rapazes, que ignoravam a existência um do outro. Esta fase permitiu observar a formação de normas e a emergência de uma hierarquia dentro dos grupos. Na segunda fase, os dois grupos foram postos em contacto e empenhados em tarefas competitivas (e.g., caça ao tesouro, jogos de basebol) o que desencadeou o surgimento de estereótipos e hostilidade entre os grupos. Numa terceira fase, com o objectivo de reduzir o conflito entre os grupos, foram realizadas tarefas não competitivas em conjunto (e.g., lançar fogo-de-artifício), mas a hostilidade entre os grupos não diminuiu. Finalmente, Sherif foi capaz de reduzir o conflito, introduzindo uma série de problemas que requeriam a participação conjunta de todos os elementos de ambos os grupos (e.g., falta de água no acampamento), isto é, objectivos supra-ordenados. O modelo de Sherif, construído a partir da criação experimental de situações de competição e cooperação entre dois grupos, estipula que os comportamento hostis entre grupos, assim como as representações que favorecem o endogrupo face ao exogrupo, resultam da situação de conflito e não da estrutura interna do grupo ou das características dos seus membros. Os padrões de comportamento intergrupal observados são resultantes da identificação dos membros com o seu grupo, o que coloca a questão da identidade no cerne das relações intergrupais (Amâncio, 1993/2000). Campbell (1965; citado por Tajfel e Turner, 1979) denominou este modelo como Realistic Conflit Theory (RCT) porque o ponto de partida para a explicação do comportamento intergrupal foi o que Sherif denominou as ‘relações funcionais entre grupos sociais’. Na opinião de Tajfel e Turner (1979), a sua hipótese central, segundo a qual é um conflito real de interesses entre os grupos que causa o conflito intergrupal, obteve enorme suporte empírico, mas é ‘deceptively simple’ (p. 33). O facto de Sherif ter analisado uma modalidade específica de relações intergrupais - o conflito de interesses - serve de fundamento para algumas críticas a este modelo (Tajfel e Turner, 1979), mas, como veremos no ponto 2.3.1, a mesma crítica se poderá fazer a estes autores, “por terem feito depender a sua análise da identidade de um outro padrão específico de relações intergrupos” (Amâncio, 1993/2000, p.290).
  • 137. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 137 Sherif verificou que a competição intergrupal aumenta a coesão e a cooperação intragrupal - isto é, os conflitos reais de interesses entre grupos não só criam relações intergrupais antagónicas, como aumentam a identificação e a ligação positiva com o grupo de pertença. No entanto, na opinião de Tajfel e Turner (1979) a identificação dos membros com o seu grupo foi negligenciada pelo modelo de Sherif, sendo considerada quase ‘as an epiphenomenon of intergroup conflict’ (p.34). De facto, a identificação com o grupo é associada a certos padrões de relações intergrupais, mas este modelo não se foca nem nos processos subjacentes ao desenvolvimento e manutenção da identidade grupal nem nos seus possíveis efeitos autónomos quer ao intragrupal quer ao nível intergrupal. Na opinião de Tajfel e Turner (1979), a relativa negligência deste processo no modelo de Sherif é responsável por certas inconsistências entre este modelo e os dados empíricos. Neste sentido, estes autores propõem uma orientação teórica que “is intended not to replace RCT, but to supplement it in some respects that seem to us essential for a adequate social psychology of intergroup conflict”(p.34). Como veremos no ponto seguinte, o modelo da identidade social da escola de Bristol foi o primeiro a colocar a identidade no âmago das relações intergrupais, atribuindo-lhe uma posição explicativa da diferenciação e da discriminação sociais.
  • 138. Racismo e Etnicidade em Portugal 138 2.3 Categorização social, Identidade social e identidade pessoal “During the war, under the influence of powerful feeling, the difference between ‘Teutons’ on the one hand, and ‘Anglo-Saxons’ and French on the other, was popularly believed to be an eternal difference. They had always been opposing races. (…) The general rule is: if you like a people today you came down the branches to the trunk; if you dislike them you insist that the separate branches are separate trunks. In one case you fix your attention on the period before they were distinguishable; in the other on the period after which they became distinct. And the view which fits the mood is taken as the ‘truth’.” Walter Lippmann, 1922 “Si la relativité se révèle juste, les Allemands diront que je suis allemand, les Suisses que je suis citoyen suisse, et les Français que je suis un grand homme de science. Si la relativité se révèle fausse, les Français diront que je suis suisse, les Suisses que je suis allemand, et les Allemands que je suis juif.” Albert Einstein, 1929 A teoria da identidade social (Tajfel, 1978a; Tajfel, 1981/1983; Tajfel e Turner, 1979) consiste numa perspectiva das relações intergrupais cujo objectivo inicial era não só ultrapassar as extrapolações do nível individual e interindividual para o nível intergrupal (e.g., a teoria da personalidade autoritária de Adorno et al., 1950; a teoria da frustração-agressão de Berkowitz, 1962) como questionar a relevância do conflito objectivo enquanto determinante da discriminação entre grupos sociais (e.g., Sherif et al., 1961). Como Tajfel e Turner (1979) referiam, a complexa integração entre o comportamento individual ou interpessoal com os processos sociais e contextuais nos conflitos intergrupais não tinha recebido atenção dos psicólogos sociais. Embora o modelo da identidade social da escola de Bristol - modelo central no quadro actual das teorias sobre as relações intergrupais - seja frequentemente associado a Henri Tajfel e John Turner, as contribuições destes autores foram significativamente diferentes, tanto ao nível empírico como teórico (Amâncio, 1993/2000). Por isso, optámos por fazer uma distinção entre as formulações iniciais da teoria da identidade
  • 139. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 139 social e a formulação de Turner - a teoria da autocategorização. Por uma questão de simplicidade de apresentação, referimo-nos à primeira como SIT (Social Identity Theory) e à segunda como SCT (Self-Categorization Theory). Os primeiros estudos da escola de Bristol resultam, sobretudo, do percurso científico de Tajfel, em particular dos estudos que efectuara nos anos 60 sobre a sobreestima perceptiva, estudos esses que foram fortemente influenciados pela sua colaboração com Bruner, nos anos 50. Desta colaboração “resultara uma crítica á visão mecanicista da percepção, que pressupunha que as pessoas apreendiam a realidade de forma ‘objectiva’ e que as excepções a esta forma de apreensão da realidade constituíam ‘erros’ (Amâncio, 1993/2000, p.392). Jerome Bruner é comummente apontado como o pai da Nova Vaga no estudo da percepção, que se traduziu numa ruptura com as perspectivas precedentes, caracterizadas por uma visão mecanicista da percepção, que pressupunha que as pessoas apreendiam a realidade de forma ‘objectiva’ e que as excepções a esta forma de apreensão da realidade constituíam ‘erros’ (Amâncio, 1993/2000). Na acepção de Bruner (1957), a categorização constitui um dos processos básicos através dos quais se manifesta a actividade estruturante do participante na percepção. Quando um organismo é estimulado por um objecto exterior, reage a ele associando-o a uma categoria de estímulos (aspecto indutivo da categorização), ao mesmo tempo que lhe atribui as características da categoria no qual o inclui (aspecto dedutivo da categorização). O acto da categorização não implicaria, contudo, um sistema rígido de categorias em que cada indivíduo só pode ser atribuído a uma categoria de determinado nível de abstracção. Pelo contrário, a categoria utilizada será a mais acessível, sendo a acessibilidade determinada pela aprendizagem e pelo estado motivacional do indivíduo no momento. Quanto mais acessível é uma categoria menor o input necessário para evocar a categorização e maior o espectro de características do input que tende a ser percebido como congruente com a categoria, enquanto que as características que não se ajustam à categorização tendem a ser mascaradas (Bruner, 1957). Segundo este autor, a categorização permitiria a simplificação, organização e a previsão de um mundo de outro modo excessivamente complexo.
  • 140. Racismo e Etnicidade em Portugal 140 De acordo com Tajfel, a categorização dos objectos, incluindo os grupos sociais, é baseada nas semelhanças intracategoriais e nas diferenças intercategoriais. Um dos fenómenos associado com a categorização é o efeito de acentuação. Este consiste numa acentuação, por parte do observador, das semelhanças entre objectos ou pessoas pertencendo à mesma categoria - efeito de assimilação - e das diferenças entre objectos ou pessoas pertencendo a diferentes categorias - efeito de contraste. Estes dois efeitos ocorreriam simultânea e simetricamente sendo inerentes ao processo de categorização. O efeito de acentuação foi originalmente estudado na percepção de objectos físicos (Tajfel e Wilkes, 1963), tendo sido posteriormente generalizado para os grupos sociais (Tajfel, Sheikh e Gardner, 1964). Segundo Tajfel, o efeito de acentuação verifica-se sempre que à dimensão em causa esteja associada uma dimensão valorativa. A categorização é conceptualizada como um processo cognitivo universal que se aplica tanto a estímulos físicos como a estímulos sociais, e que não depende nem da personalidade nem do grau de informação dos indivíduos, mas constitui antes um processo cognitivo necessário para a selecção e organização da informação. Assim, na acepção de Tajfel, existiria uma homologia entre a apreensão dos estímulos físicos e sociais. No entanto, a experiência de Tajfel, Sheikh e Gardner (1964) parecia apontar para uma certa assimetria na percepção dos grupos sociais, aspecto que não foi explorado pelos autores. Nesta experiência os participantes, todos canadianos, deveriam emitir julgamentos sobre dois grupos-estímulo constituídos por dois indivíduos da mesma nacionalidade - o grupo dos canadianos e o grupo dos indianos. Os resultados mostraram que os participantes sobrestimavam a semelhança das duas pessoas-estímulo indianos nos traços mais típicos do estereótipo dos indianos, mas não sobrestimavam a semelhança dos pessoas-estímulo canadianos nos traços mais típicos do seu estereótipo. Esta assimetria no efeito de acentuação a nível das categorias sociais foi também evidenciada numa experiência de Doise, Deschamps e Meyer (1978). Nesta experiência, os participantes, crianças do sexo masculino e do sexo feminino, observavam as fotografias de seis pessoas-estímulo, três rapazes e três raparigas, sendo a sua tarefa descrevê-los a partir de uma lista de adjectivos. Verificou-se que os rapazes apresentaram uma tendência significativamente maior para acentuar as diferenças intercategoriais do que as raparigas e, além disso, acentuaram mais fortemente as semelhanças intracategoriais dos pessoas-estímulo do sexo feminino do que do sexo masculino.
  • 141. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 141 Os resultados destas experiências evidenciam uma assimetria nos efeitos da categorização, em função do grupo-estímulo (Amâncio, 1993/2000). Note-se que em ambos os casos o efeito de assimilação foi mais acentuado para o grupo-alvo de menor estatuto relativo (os indianos na primeira experiência e as raparigas na segunda). Beauvois e Deschamps (1990) consideram que existe uma diferença fundamental entre a apreensão de estímulos físicos e sociais que é necessário sublinhar: «[...] contrairement à ce qui se passe dans la catégorisation de stimuli physiques, dans le cas de la catégorisation sociale les sujets sont eux-mêmes à l'intérieur d'un réseau de catégories. La catégorisation entraîne non seulement une exagération des différences entre les catégories et une minimisation des différences intra-catégories, mais ces différences sont évaluatives. Lorsque des individus sont répartis en deux catégories, le comportement des sujets au regard des membres de l'autre catégorie devient systématiquement discriminatoire: les sujets ont tendance à favoriser leur groupe et à défavoriser l'autre groupe; plus qu'une différenciation, c'est bien à un traitement différentiel entre et dans les groupes auquel on assiste. Dans le cas de la catégorisation sociale, l'effet de contraste (accentuation des différences perçues entre les objets classés dans des catégories distinctes) débouche donc sur un phénomène de discrimination alors que l'effet d'assimilation (accentuation des ressemblances perçues entre les objets classés dans une même catégorie) conduit à la stéréotypie» (pp.16-17). Mas vamos centrar-nos, por enquanto, nas consequências destes estudos na conceptualização da discriminação social. Estes estudos levaram Tajfel (1969) a propor uma nova abordagem da diferenciação entre grupos sociais, segundo a qual a categorização constituía um poderoso processo organizador e simplificador da realidade social, sendo mais forte quando estão associadas dimensões avaliativas às categorias sociais, seja ao nível dos critérios classificatórios, seja ao nível dos conteúdos descritivos. Como refere Amâncio: “a preservação do sistema de categorização e das conotações valorativas que lhe estão associadas, e que são transmitidas pela cultura e pelos valores dos grupos de pertença, é conseguida através do tratamento dos critérios classificatórios, como homem-mulher, branco-negro, inglês-francês, enquanto dimensões descontínuas, através da selecção nas interacções sociais das características que confirmam o efeito preditivo da categoria e que validam um conhecimento 'subjectivo' da
  • 142. Racismo e Etnicidade em Portugal 142 realidade facilitador da integração dos indivíduos ; e, finalmente através da instrumentalidade dos conteúdos categoriais, sob a forma de estereótipos, nas interacções sociais, visto que a identificação da categoria de pertença dos indivíduos é facilitada pela visibilidade do critério que a define, sobretudo quando esses critérios são físicos, como o sexo ou a cor da pele” (1993/2000, pp.392-393). Assim, nesta perspectiva, os estereótipos sociais constituem formas específicas de organização subjectiva da realidade social, reguladas por mecanismos sociocognitivos, o que permite compreender a sua incidência e resistência nas interacções sociais.
  • 143. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 143 2.3.1. Identidade social e comparação social Tajfel e colaboradores (Tajfel, Billig, Bundy e Flament, 1971) realizaram uma experiência com o objectivo de determinar as condições mínimas do aparecimento do favoritismo endogrupal, cujos resultados constituíram o estímulo inicial para a formulação do modelo da identidade social. Na primeira parte da experiência, os participantes, adolescentes do sexo masculino, realizaram uma tarefa de julgamentos estéticos. Em seguida, os participantes foram repartidos em dois grupos, o grupo ‘Klee’ e o grupo ‘Kandinsky’, supostamente em função dos resultados da tarefa precedente. Na segunda parte da experiência, pediu-se aos participantes para, com a ajuda de várias matrizes de resposta, decidirem as remunerações que membros anónimos do grupo próprio e/ou do outro grupo deveriam receber pela sua participação na experiência. Estes grupos foram denominados ‘grupos mínimos’ porque ‘these groups are purely cognitive’ (Tajfel e Turner, 1979, p.39). Segundo Amâncio (1993/2000) o procedimento utilizado no paradigma dos ‘grupos mínimos’ caracteriza-se fundamentalmente pela : “criação de uma situação socialmente 'vazia' [...] os sujeitos pertenciam todos ao mesmo sexo e à mesma faixa etária, não havia interacção entre eles em nenhuma das fases da experiência e a categorização era introduzida através de um critério inteiramente abstracto e sem qualquer significado, visto que não havia conteúdos associados ao 'grupo Klee' ou ao 'grupo Kandinsky'” (pp.293-294). Os resultados desta e doutras experiências similares demonstram que a mera categorização em grupos diferentes conduz a estratégias discriminatórias face ao exogrupo. A estratégia ‘máximo para o grupo’ (Maximum Ingroup Profit - MIP) é preterida face à estratégia de ‘máxima diferença’ (Maximum Difference - MD). Assim, os participantes parecem competir com o exogrupo, em vez de seguirem uma estratégia de simples ganho económico para o endogrupo - optando pela estratégia MD, os participantes sacrificam os ganhos objectivos do endogrupo, para ganhar em termos relativos: distintividade positiva do endogrupo. Os participantes mostram, ainda, decisões mais próximas do ‘máximo comum’ (Maximum Joint Payoff - MJP) quando as
  • 144. Racismo e Etnicidade em Portugal 144 decisões dizem respeito a dois membros anónimos do endogrupo do que quando são dois membros do exogrupo. Billig e Tajfel (1973; citados por Tajfel e Turner, 1979) encontraram estes resultados mesmo quando a designação para os grupos era efectuada de forma explicitamente aleatória (eliminando assim a semelhança percebida dentro do grupo de pertença como explicação alternativa para os resultados), isto é, mesmo categorizações sociais arbitrárias são suficientes para desencadear a discriminação intergrupal. Na acepção de Tajfel e Turner (1979), estes resultados demonstram que a discriminação intergrupal não é exclusivamente baseada em interesses grupais incompatíveis: a condição para a competição intergrupal parece ser tão mínima que pode ser considerada como um processo inerente à situação intergrupal em si mesma. Tajfel e Turner (1979) referem que todo o vasto trabalho desenvolvido pela equipa de Bristol sobre relações intergrupais, aponta para que o favoritismo endogrupal constitua uma ‘remarkable omnipresent feature of intergroup relations’ (p.38). As pesquisas com o paradigma do ‘grupos mínimos’ demonstram que: “the mere perception of belonging to two distinct groups - that is, social categorization per se - is sufficient to trigger intergroup discrimination favoring the ingroup. In other words, the mere awareness of the presence of an outgroup is sufficient to provoke intergroup competitive or discriminatory responses on the part of the ingroup” (p.38). Para explicar estes resultados, Tajfel (1972) estabelece uma ligação entre três conceitos fundamentais: categorização social, identidade social e comparação social. Uma vez que a identidade social está associada ao conhecimento da pertença, evocado pela categorização, o significado emocional e avaliativo que resulta dessa pertença exprimir-se-ia no favoritismo pelo grupo de pertença em detrimento do outro. Neste sentido, os grupos sociais contribuem para a construção da identidade social dos seus membros. Um aspecto importante na teoria de Tajfel é a noção de grupo. O autor critica as definições de grupo habitualmente encontradas na literatura, que têm um ‘núcleo comum’: o grupo é definido pela interacção ou interdependência dos seus membros. O grupo é definido a partir do ‘interior’ - preocupação com certos processos intragrupais
  • 145. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 145 fazendo como se as relações do grupo com outros grupos não tivessem qualquer influência sobre a sua estruturação interna, ou mesmo sobre a sua existência enquanto tal. Na opinião de Tajfel, estes elementos não são suficientes para definir um grupo: ‘les caractéristiques de son propre groupe (son statut, sa richesse ou sa pauvreté, sa couleur de peau, sa capacité à atteindre ses buts) n'acquièrent de signification qu'en liaison avec les différences perçues avec les autres groupes ou les différences évaluatives. [...] La définition d'un groupe (national, racial ou tout autre) n'a de sens que par rapport aux autres groupes. Un groupe devient un groupe en ce sens qu'il est perçu comme ayant des caractéristiques communes ou un devenir commun, que si d'autres groupes sont présents dans l'environnement’ (1972, p.295). Como o autor salienta, os grupos não existem num vazio social: “um grupo não é uma ilha da mesma maneira que um grupo também não é uma ilha; a única maneira de atribuir valores positivos ao seu próprio grupo [...]é comparando com outros grupos” (Tajfel, 1982a, p.24). Para Tajfel, um grupo pode ser definido com base em critérios externos ou internos. Os primeiros não derivam da auto-identificação dos membros do grupo, sendo tecidos por indivíduos ou grupos de indivíduos exteriores ao grupo, podendo o consenso exterior acerca de um determinado grupo originar critérios de pertença nesse mesmo grupo (Tajfel, 1978b, p.31). Esta questão, como referimos, foi também abordada por Lewin na sua análise do anti-semitismo. Os critérios internos, por seu lado, derivam da auto-identificação dos membros do grupo, isto é, do facto de os indivíduos se sentirem membros desse grupo. A origem desta conceptualização de Tajfel reporta-se à teoria da comparação social de Festinger (1954). Esta teoria postula nos indivíduos uma necessidade de auto- avaliação que, em certas condições, só se pode realizar através de comparações com outros indivíduos, considerados semelhantes ou ligeiramente superiores na(s) característica(s) a comparar. Na acepção de Festinger, a comparação é essencialmente interindividual, enquanto que a teoria de Tajfel assenta em comparações intergrupais. Na opinião de Tajfel e Turner (1979), a necessidade de avaliação positiva de um
  • 146. Racismo e Etnicidade em Portugal 146 indivíduo poderá satisfazer-se através de pertenças a grupos sociais avaliados positivamente pelo indivíduo. As consequências psicológicas da pertença a um grupo estão directamente ligadas à inserção desse grupo numa determinada estrutura de relações intergrupais. Na acepção de Tajfel, "l´identité social d´un individu est lié à la connaissance de son appartenance à certains groupes sociaux et à la signification émotionnelle et évaluative qui résulte de cette appartenance" (1972, p.292). Tendo em conta esta definição de identidade social, Tajfel e Turner (1979) partem dos seguintes pressupostos: os indivíduos esforçam-se por manter ou aumentar a sua auto-estima, isto é, lutam por um auto-conceito positivo; os grupos sociais estão associados a conotações de valor positivo ou negativo, isto é, a identidade social pode ser positiva ou negativa de acordo com as avaliações (que tendem a ser consensuais) dos grupos que contribuem para a identidade social de um indivíduo; a avaliação do seu próprio grupo é determinada tendo como referência outros grupos específicos em termos de certas dimensões ou características. Destes pressupostos foram derivados os seguintes princípios teóricos: os indivíduos esforçam-se por alcançar ou manter uma identidade social positiva; a identidade social positiva é baseada, em larga medida, em comparações favoráveis entre o grupo de pertença e outro(s) grupo(s) relevante(s); quando a identidade social é insatisfatória, os indivíduos esforçam-se ou por deixar o seu grupo e juntar-se a um grupo avaliado mais positivamente ou por tornar o seu grupo mais positivamente diferenciado (Tajfel e Turner, 1979). Neste sentido, a hipótese básica de que parte a SIT é que as pressões para avaliar o seu próprio grupo positivamente através de uma comparação endogrupo/exogrupo conduzem os grupos sociais a uma tentativa de se diferenciarem uns dos outros (Tajfel, 1978a; Turner, 1975; Tajfel e Turner, 1979). Há pelo menos três classes de variáveis que influenciam as diferenciações intergrupais numa situação intergrupal concreta: os indivíduos deverão ter interiorizado a sua pertença ao grupo como um aspecto do seu auto-conceito, isto é, deverão sentir-se subjectivamente identificados com o grupo de pertença; a situação social deverá permitir comparações intergrupais através da selecção
  • 147. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 147 e avaliação de certas dimensões ou atributos relevantes; os outros grupos deverão ser percebidos como grupos de comparação relevantes (a semelhança, a proximidade, a saliência situacional são exemplos de variáveis que determinam a comparabilidade dos outros grupos). Neste sentido, o objectivo da diferenciação intergrupal é alcançar ou manter a superioridade em algumas dimensões relevantes, isto é, consiste numa resposta essencialmente competitiva (Tajfel e Turner, 1979). A procura de uma explicação para os resultados obtidos nas experiências utilizando o paradigma dos ‘grupos mínimos’ levou Turner (1975) a introduzir uma alteração no procedimento, que consistiu em dar a possibilidade aos participantes de atribuirem pontos a si próprios e a outros. Turner demonstrou que o favoritismo endogrupal e a discriminação intergrupal aparecem em situações de categorização, independentemente de os pontos das matrizes terem ou não valor monetário. Mas se a situação experimental o permitir, ou porque não existe categorização ou porque os participantes começam por fazer escolhas entre eles próprios e outros, então o favoritismo endogrupal é substituído pelo auto-favoritismo, e a discriminação intergrupal é substituída pela discriminação interindividual. Estes resultados evidenciam o efeito da competição social por uma identidade pessoal positiva que explicaria os resultados obtidos nas experiências dos ‘grupos mínimos’. Nesta sequência, Turner (1975) distinguiu entre competição ‘social’ ou ‘instrumental’ e competição ‘realista’. A competição ‘social’ seria motivada pela auto- avaliação e aconteceria através da comparação social, enquanto que a competição ‘realista’ seria baseada no auto-interesse. Para a competição ‘realista’ seria necessária a existência de objectivos grupais incompatíveis, enquanto que para a competição ‘social’ as comparações intergrupais mútuas seriam condição necessária e, frequentemente, suficiente. Assim, na acepção de Turner (1975, 1978), “os processos intergrupais de categorização e comparação sociais passam a ser regulados por uma motivação e o próprio grupo de pertença torna-se uma entidade temporária e arbitrária, que serve de mero substituto funcional à satisfação da necessidade de um self positivamente distintivo” (Amâncio, 1993/2000, p.397). Tajfel (1978b) considera que o comportamento social pode ser conceptualizado em termos de um continuum ‘interpessoal versus intergrupal’. O primeiro dos extremos,
  • 148. Racismo e Etnicidade em Portugal 148 o interpessoal, corresponde a uma interacção entre dois ou mais indivíduos que é completamente determinada pelas suas características individuais ou pelas suas relações pessoais, não sendo afectada pelas respectivas pertenças sociais. No entanto, Tajfel salienta que se trata de um “extremo teórico, abstracto, não real” (1982a, p.16) no sentido em que nenhum exemplo de comportamento intrapessoal pode puramente observado na ‘vida real’: “It is impossible to imagine a social encounter between two people which will not be affected, at least to some minimal degree, by their mutual assignments of one another to a variety of social categories about which some general expectations concerning their characteristics and behaviour exist in the minds of the interactants” (Tajfel, 1978b, p.41). O outro extremo, o intergrupal, corresponde a uma interacção entre dois ou mais indivíduos (ou grupos de indivíduos) que é completamente determinada pelas respectivas pertenças grupais, não sendo afectada pelas características dos indivíduos ou pelas suas relações pessoais. Tajfel considera que a probabilidade de este extremo ser encontrado na sua forma pura em situações reais é baixa, mas existe: “se pensarmos em certas coisas que se passaram durante a Segunda Guerra Mundial, e mesmo depois, vê-se bem que há situações em que o extremo intergrupo é determinante, onde todo o comportamento é determinado não por características individuais ou por relações individuais, mas pela estrutura dessa relação intergrupo. Isto não é uma abstracção, pois verifica-se em muitas circunstâncias (Tajfel, 1982a, p.16). Relativamente a este continuum, Tajfel preocupou-se com as condições que determinam a adopção de formas de comportamento social mais próximas de um extremo ou de outro. Uma dessas condições, como já referimos, é o conflito intergrupal. Assume-se, geralmente, que quanto mais intenso é um conflito intergrupal, maior será a probabilidade de que os membros de grupos opostos se comportem em função das suas pertenças grupais, mais do que em termos das suas características individuais ou relações interpessoais. Contudo, Tajfel considera que um conflito institucionalizado ou explícito de interesses entre grupos, não é suficiente, tanto teórica como empiricamente, para explicar muitas situações em que o comportamento social dos indivíduos
  • 149. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 149 pertencentes a grupos distintos se aproxima do extremo ‘intergrupal’ do continuum. Os resultados das experiências utilizando o paradigma dos ‘grupos mínimos’ demonstram que: “the institutionalization, explicitness, and objectivity of an intergroup conflit are not necessary conditions for behavior in terms of the 'group' extreme, although they will often prove to be sufficient conditions” (Tajfel e Turner, 1979, p.34). Associado ao continuum ‘interpessoal-intergrupal’ está outro continuum cujos extremos são a ‘mobilidade social’ e a ‘mudança social’. Estes extremos referem-se a sistemas de crenças acerca da natureza e das estruturas das relações entre os grupos sociais numa dada sociedade. O sistema de crenças de ‘mobilidade social’ é baseado no pressuposto de que a sociedade na qual os indivíduos estão inseridos é flexível e permeável, e portanto, alguém que não esteja satisfeito com as condições que advêm da sua pertença a determinado grupo social pode mudar-se individualmente para outro grupo, que se ajuste melhor aos seus objectivos. Tajfel adoptou a definição de mobilidade social de Goldhamer: “social mobility is the movement of individuals, families and groups from one social position to another” (1968, p.429; citado por Tajfel, 1978b, p.46). No entanto, na teorização de Tajfel, o termo foi restringido à mobilidade social individual, isto é, aos movimentos de indivíduos e de famílias de uma posição social para outra (excluindo, os ‘grupos’ da definição de Goldhamer). A crença na ‘mudança social’ é baseada no pressuposto de que a natureza e estrutura das relações entre os grupos sociais na sociedade é caracterizada por uma marcada estratificação, que torna impossível ou muito difícil para o indivíduo, como indivíduo, sair de um grupo insatisfatório ou desfavorecidos (Tajfel e Turner, 1979). Tajfel adoptou a definição de mudança social proposta por Toch: “A social movement represents an effort by a large number of people to solve collectively a problem that they feel they have in common” (1965, citado por Tajfel, 1978b, p.46). Encontramos aqui os elementos já enunciados por Lewin, nomeadamente a necessidade dos membros de grupos sociais desprivilegiados desenvolverem uma consciência do seu destino comum.
  • 150. Racismo e Etnicidade em Portugal 150 Na acepção de Tajfel, as crenças na ‘mobilidade social’ não constituem ameaças para o grupo dominante, enfraquecem a solidariedade dentro do grupo dominado e mantêm o statu quo. Em contraste, as crenças na ‘mudança social’ implicam a solidariedade no seio do grupo dominado e constituem uma ameaça para o grupo dominante, pois visam a alteração de um statu quo que privilegia estes últimos (Abrams e Hogg, 1990). Ao continuum interpessoal-intergrupal são associados dois outros contínuos, relacionados com a variabilidade ou uniformidade nas representações ou nos comportamentos dos membros do grupo de pertença em relação com os membros do outro grupo (Tajfel e Turner, 1979). O primeiro continuum diz respeito à ‘variabilidade versus uniformidade’ do comportamento em relação ao grupo dos outros: quanto mais próximos os membros de um grupo estiverem do extremo ‘intergrupal’ e do extremo ‘mudança social’, maior será a ‘uniformidade’ do seu comportamento em relação aos membros de um outro grupo relevante; quanto maior a aproximação com os extremos opostos de ambos os contínuos, maior será a ‘variabilidade’ do comportamento em relação aos membros do outro grupo. O segundo continuum está intimamente relacionado com o anterior: quanto mais próximos os membros de um grupo estiverem dos extremos ‘mudança social’ e ‘intergrupal’, maior será a tendência para tratar os membros do grupo dos outros como elementos ‘indiferenciados’ de uma categoria social unificada, isto é, os indivíduos serão definidos quase exclusivamente em função das suas pertenças grupais, em detrimento das suas características individuais. Este extremo exprime a percepção estereotipada dos membros dos grupos sociais definidos por critérios de categorização. Esta concepção baseia-se numa hipótese central do modelo clássico da categorização, segundo a qual os elementos de uma mesma categoria serão percebidos de forma semelhante - efeito de assimilação. Tajfel considera que a investigação em psicologia social se tem situado, sobretudo, “próximo de um dos extremos dessas quatro polaridades, ou seja, do pólo mobilidade social, do pólo comportamento interindividual e do pólo variabilidade de um ou do outro género” (1982a, p.18) devendo-se ultrapassar esta situação.
  • 151. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 151 Tajfel também se debruçou sobre a influência do estatuto dos grupos na determinação do comportamento dos seus membros. Por ‘estatuto social’ Tajfel entende uma hierarquia de prestígio percebida - o estatuto é o resultado de uma comparação, isto é, reflecte a posição relativa do grupo na(s) dimensão(ões) de comparação. Tajfel considera que o baixo estatuto não provoca directamente a competição intergrupal, os seus efeitos no comportamento intergrupal são mediados pelo processo de identidade social: quanto mais baixo o estatuto subjectivo do grupo em relação com grupos de comparação relevantes, menor é a sua contribuição para uma identidade social positiva. Tajfel e Turner (1979) apontam várias reacções possíveis face a uma identidade social negativa ou ameaçada: a) ‘mobilidade individual’: os indivíduos podem tentar deixar o grupo para entrar num de estatuto mais elevado. Uma das características desta estratégia é que o estatuto do seu grupo anterior não muda, ou seja, é uma estratégia individualista com o objectivo, pelo menos a curto prazo, de alcançar uma solução individual e não uma solução grupal. Assim, esta estratégia implica uma desidentificação com o grupo. b) ‘criatividade social’: os membros do grupo dominado podem procurar uma distintividade positiva para o grupo de pertença redefinindo ou alterando os elementos da situação de comparação. Esta é uma estratégia grupal, que pode focar-se nos seguintes aspectos: criar novas dimensões de comparação entre o grupo de pertença e o grupo dos outros; mudar os valores das dimensões, de modo que comparações previamente negativas passem a ser percebidas como positivas, isto é, as dimensões salientes mantêm-se, mas inverte-se o sistema de valorização; mudar de grupo de comparação, evitando usar um grupo com elevado estatuto como referência para a comparação. Um exemplo clássico de ‘criatividade social’ foi o movimento ‘Black is Beautifull’: a dimensão saliente continua a mesma, mas o sistema de valorização foi invertido. c) ‘competição social’: os membros do grupo podem procurar uma distintividade positiva através de competição directa com o grupo dos outros, tentando inverter as posições relativas nas dimensões salientes. Esta estratégia implica, portanto, uma mudança na posição social objectiva do grupo. Tanto a mobilidade individual como certas formas de criatividade social podem reduzir o conflito intergrupal tendo, no entanto, diferentes implicações. A primeira enfraquece a solidariedade no grupo dominado e não fornece um antídoto para a
  • 152. Racismo e Etnicidade em Portugal 152 identidade social negativa a nível grupal, enquanto a segunda pode restaurar ou criar a auto-estima positiva. Tajfel considera ainda duas outras variáveis que podem contribuir para a compreensão das estratégias a adoptar pelos indivíduos: a percepção da legitimidade e da estabilidade da situação. Quanto mais uma situação é percebida como simultaneamente ilegítima e instável, maior a probabilidade que os membros de um grupo dominado se empenhem em estratégias colectivas de mudança social (Tajfel, 1981/1983). Assim, as comparações sociais entre grupos, baseiam-se na percepção da legitimidade das relações entre eles. O conceito de identidade social, [...] está ligado à necessidade duma imagem positiva e diferente do grupo próprio; é por esta razão que a percepção da ilegitimidade duma relação transcende os limites da semelhança intergrupo no plano das comparações sociais relevantes, e procura as causas da ilegitimidade onde quer que julgue que elas se encontrem (Tajfel, 1981/1983, p.301- 302). A propósito de percepção de legitimidade, Tajfel cita Durkheim, a respeito do que este disse sobre a manutenção da ordem social: “O que é preciso, para reinar a ordem social, é que a grande massa dos homens esteja satisfeita com o que tem. Mas para que eles estejam satisfeitos não é preciso que tenham mais ou menos, mas sim que estejam convencidos que não têm direito a mais” (Durkheim, citado por Tajfel, 1981/1983, p.301). Quando as relações de estatuto são percebidas como imutáveis, como uma parte de uma ordem estática, a identidade social está ‘segura’. A identidade social torna-se ‘insegura’ ou ‘ameaçada’ quando a ordem estabelecida começa a ser questionada. Assim, os grupos com elevado estatuto também podem experimentar uma identidade social insegura, por isso toda a ameaça à distintividade positiva do grupo tenderá a ser evitada. Na opinião de Tajfel, tanto os grupos de elevado estatuto como os de baixo estatuto reagem a uma identidade social insegura procurando aumentar a distintividade positiva do seu grupo. Como foi referido, quando a situação é percebida como ilegítima e instável, a probabilidade dos membros do grupos de baixo estatuto rejeitarem a sua inferioridade e se empenharem em estratégias de mudança social é maior.
  • 153. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 153 Quanto aos membros do grupo dominante, várias soluções são possíveis quando a legitimidade do seu estatuto é posta em causa: reforçar, tanto quanto possível, as barreiras existentes e sistemas ‘legais’ de discriminação; e/ou a criação e manutenção de uma ideologia que justifique o statu quo, como, por exemplo, ‘o fardo do homem branco’ (White man´s burden) (Tajfel, 1978b, p.90), como foi ilustrado no capítulo 1, a propósito do colonialismo. O significado avaliativo e emocional da pertença grupal (Tajfel, 1972) pode adquirir maior peso no caso dos grupos dominados do que no caso dos dominantes, uma vez que estes são constantemente confrontados com a sua pertença grupal e limitados por ela. Uma vez desenvolvida a consciência de ‘destino comum’, os membros de grupos dominados podem exagerar a inequidade que os distancia do grupo dominante, de forma a salientar a ilegitimidade da situção (van Knippenberg e van Oers, 1984, citados por Amâncio, 1988, p.310). Podem também manifestar maior favoritismo pelo seu grupo de pertença do que os membros de grupos dominantes, que conscientes da situação de desigualdade, evitam discriminar abertamente os membros das minorias (Branthwarte e Jones, 1975; citados por Tajfel, 1978c, p.91). Assim, numa “situation of dissymmetry in which the conflict of values in the superior group and/or the relative lack of importance for it of a part icular comparison of identities lead to the prediction that intergroup discrimination will be stronger in the inferior than in the inferior group” (Tajfel, 1978c, pp.90-91). Actualmente, o modelo de Tajfel continua a ter desenvolvimentos contínuos, nomeadamente no que respeita às estratégias dos membros de grupos desfavorecidos para fazer face à discriminação (Brown, 2000; Schmitt e Branscombe, 2002). Por exemplo, Branscombe e Ellemers (1998) analisam as estratégias de mobilidade ou mudança social em função do nível de identificação com o endogrupo. As autoras distinguem dois tipos de estratégias: “individualistic versus group-based” (p.243). A adopção destas estratégias por parte dos membros de grupos desfavorecidos depende essencialmente “on their ultimate goal - either to salvage personal or group-based self- esteem” (p.246). Segundo as autoras, as estratégias individualistas salvaguardam a identidade e auto-estima pessoais, mas implicam o distanciamento face ao endogrupo. Em
  • 154. Racismo e Etnicidade em Portugal 154 contrapartida, as estratégias grupais aumentam o nível de identificação com o endogrupo e contribuem para um reforço da posição do grupo na estrutura social, mas podem implicar maiores dificuldades no relacionamento com os grupos dominantes. Assim, conforme a discriminação seja percepcionada como uma ameaça à identidade pessoal ou social, diferentes consequências cognitivas, emocionais ou comportamentais podem ser esperadas (Branscombe e Ellemers, 1998). Mais recentemente, Barreto e Ellemers (2002), debruçaram-se sobre os efeitos do preconceito ‘subtil’ sobre o bem-estar dos indivíduos, tendo chegado à conclusão que este pode ter efeitos nefastos, uma vez que dificulta o reconhecimento da discriminação e a consciência de destino comum, levando os indivíduos a desinvestir das estratégias de ‘coping’ e a efectuar atribuições internas quando confrontados com os seus fracassos pessoais. Nesse sentido, as autoras salientam que as ‘novas’ formas de preconceito podem ter efeitos mais nefastos sobre a auto-estima dos indivíduos do que as formas ‘clássicas’, não só porque são mais difíceis de reconhecer e de contrariar. Resumindo, o modelo da identidade social de Bristol parte da integração de três processos: categorização social, identidade social e comparação social, num quadro coerente que contribui para a explicação de várias formas de comportamento intergrupal, conflito social e mudança social. Na opinião de Tajfel e Turner (1979), este modelo tem em consideração as realidades sociais, bem como os seus reflexos no comportamento social através da mediação de um sistema de crenças socialmente partilhado. No entanto, a sua dependência face ao paradigma dos ‘grupos mínimos’ conduziu à relativa negligência dos aspectos de natureza ideológica, o que está patente na universalização a todos os grupos sociais da procura da distintividade positiva (Amâncio, 1993/2000). As críticas a este modelo de identidade social surgiram, desde o seu início, na própria escola de Bristol. Billig (1976; citado por Amâncio, 1993/2000) foi o primeiro a pôr em dúvida a generalização a todos os grupos sociais de uma necessidade de identidade social positiva. Na opinião deste autor, esta necessidade não podia existir independentemente da estrutura e ideologia sociais. Neste sentido, Billig salientou a necessidade de compreender as próprias condições sociais de emergência de uma identidade social positiva.
  • 155. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 155 De facto, várias investigações empíricas apontam para que a necessidade de distintividade positiva não é algo universal, mas está estritamente ligada a uma ideologia que valoriza a individualidade. Wetherell (1982) comparou os resultados obtidos em réplicas da experiência dos ‘grupos mínimos’ com adolescentes europeus e da Polinésia, tendo verificado que estes últimos escolhiam preferencialmente a estratégia da recompensa máxima comum (MJP), o que aponta para as raízes culturais de uma identidade que se manifesta por uma distintividade positiva. Breakwell (1978) considera que os processos que estão associados à identidade social não são explicativos por si só, mas sim algo a explicar. A modalidade de identidade social salientada pela escola de Bristol revela-se insuficiente para o estudo de determinadas relações intergrupais, particularmente aquelas que envolvem grupos com estatutos desiguais na estrutura social. Por exemplo, as relações que envolvem as categorias masculina e feminina não são inteligíveis no âmbito da SIT, ‘uma vez que a distintividade positiva de si e do grupo correspondem mais a um padrão perceptivo e comportamental do sexo masculino do que do sexo feminino’ (Amâncio, 1993/2000, p.399). O facto das experiências da equipa de Bristol terem sido quase todas realizadas com participantes do sexo masculino e colocados em grupos com estatutos simétricos na situação experimental está na origem de algumas das limitações deste modelo. De facto, a única experiência efectuada por esta equipa com participantes de ambos os sexos mostrou também que as raparigas preferiam a estratégia da equidade relativamente à diferenciação (Turner, Brown e Tajfel, 1979), mas, como salienta Amâncio, (1993/2000) este resultado não foi objecto de qualquer reflexão particular pelos autores da experiência Doise (1987, 1988) critica o modelo de Tajfel e Turner (1979) por este não ter tido em consideração as determinantes sociais da identidade social. Tal negligência deve-se à dependência deste modelo teórico face a um paradigma experimental socialmente ‘vazio’ e do qual se extrapolou para as condições sociais reais. Na opinião de Amâncio (1993/2000) verifica-se, assim, uma contradição na produção teórica de Tajfel, que procurava, com os seus estudos sobre a diferenciação perceptiva entre os grupos, ultrapassar as extrapolações do âmbito psicológico para o das relações intergrupais e pusera em causa a tendência da psicologia social para efectuar experiências num ‘vácuo social’, negligenciando os aspectos socialmente relevantes da realidade social. Como já foi referido, nos seus estudos sobre a
  • 156. Racismo e Etnicidade em Portugal 156 categorização social Tajfel salientara que tanto os critérios classificatórios como os conteúdos da categorias possuem significados avaliativos, sendo este aspecto retomado na integração da comparação social no seu modelo. No entanto, na âmbito da SIT, são muito raros os estudos que têm em consideração as dimensões relevantes de comparação entre os grupos e/ou a relevância dos grupos de comparação. Por consequência, a identidade social, tal como foi operacionalizada na SIT, é vazia de significados sociais (Rabbie e Horwitz, 1988).
  • 157. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 157 2.3.2. Identidade social e auto-categorização Como já foi referido, embora Tajfel e Turner tenham associado as suas ideias num mesmo modelo de identidade social (1979), as reflexões dos dois autores apresentam algumas diferenças, que se tornam bem patentes nos pressupostos da teoria da auto-categorização (e.g, Turner et al., 1987). Se o modelo da identidade social é criticável por um certo ‘reducionismo psicológico’ que se deveu às extrapolações efectuadas a partir dos ‘grupos mínimos’ para os grupos reais, algumas das concepções de Tajfel sofrerão ainda uma radicalização psicológica na reinterpretação de Turner (Amâncio, 1993/2000). Turner considera que a SCT, embora derivando directamente da SIT, constitui uma teoria substancialmente diferente, em termos dos problemas em que se focaliza e das hipóteses que propõe. Um dos aspectos em que a SIT e a SCT diferem é na interpretação do contínuo intergrupal vs interpessoal. Enquanto que para Tajfel o polo interpessoal era considerado meramente teórico, para Turner o self determina todo o processo, mesmo no polo intergrupal: “[...] the interpersonal-intergroup continuum was conceptualized as varying from 'acting in terms of self' to 'acting in terms of group' (Tajfel, 1978, Turner, 1978) - as if the latter were not an expression of the former. The self-categorization theory makes social identity the cognitive basis of group behaviour, the mechanism that makes it possible [...], and by asserting that self-categorizations function at different levels of abstraction makes both group and individual behaviour ‘acting in terms of self’” (Turner et al., 1987, p.viii-ix; itálico nosso). Nesta afirmação de Turner está bem patente a soberania do psicológico face ao social, isto é, a ‘radicalização psicológica’ (Amâncio, 1993/2000, p.298) que caracteriza a SCT. Turner acrescenta ainda que, relativamente à SIT, a SCT representa ‘a shift in focus from the problem of social conflict to the problem of the relationship of the individual to the group’ (Turner, 1988, p.113). Assim, a SCT parece privilegiar aspectos microssociais, em detrimento da análise de fenómenos macrossociais que constituíram uma das preocupações de Tajfel (Amâncio, 1993/2000).
  • 158. Racismo e Etnicidade em Portugal 158 Turner (1987) define o auto-conceito ‘as the set of cognitive representation of self available to a person’ (p.44). O auto-conceito compreende diferentes componentes, isto é, cada pessoa possui múltiplos conceitos de si próprio. O funcionamento do auto- conceito é dependente da situação: auto-conceitos particulares tendem a ser activados e a tornar-se salientes em situações específicas. Qualquer auto-conceito particular tende a tornar-se saliente em função de uma interacção entre as características da pessoa e da situação (Bruner, 1957; Oakes, 1987). As representações cognitivas do self tomam a forma, entre outras, de auto- categorizações. Estas fazem parte de um sistema hierárquico de classificação, de acordo com o seu nível de abstracção. O nível de abstracção da auto-categorização refere-se ao grau de inclusividade, no sentido de Rosch (1978), das categorias nesse nível: quanto mais inclusiva a auto-categorização, mais elevado o nível de abstracção. Turner (1987) considera que há, pelo menos, três níveis de abstracção nas auto-categorizações que são importantes para o auto-conceito: “(a) the superordinate level of the self as human being, self-categorizations based on one's identity as a human being, the common features shared with other members of the human species in contrast to others forms of life, (b) the intermediate level of ingroup-outgroup categorizations based on social similarities and differences between human beings that define one as a member of certain social groups and not others, and (c) the subordinate level of personal self-categorizations based on differentiations between one-self as a unique individual and other ingroup members that define one as a specific individual person. These levels can be said to define one's 'human', 'social' and 'personal' identity respectively, based on inter-species, intergroup (i.e., intra-species) and interpersonal (i.e., intragroup) comparisons between oneself and others” (p.45). As auto-categorizações a um determinado nível tendem a formar-se e a tornar-se salientes através de comparações entre estímulos seguindo o princípio de ‘meta- contraste’: “within any given frame of reference (in any situation comprising some definite pool of psychologically significant stimuli), any collection of stimuli is more likely to be categorized as an entity (i.e., grouped as identical) to the degree that the differences between those stimuli on relevant dimensions of comparison (intra-class
  • 159. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 159 differences) are perceived as less than the differences between that collection and other stimuli (inter-class differences)” (Turner, 1987, p.46-47). Na opinião de Turner (1987), estes pressupostos sumarizam as ideias básicas sobre a formação de categorias de Bruner (1957), Campbell (1958), Tajfel (1969, 1972), Rosch (1978) e Tversky e Gati (1978), uma vez que todos estes autores salientam o papel determinante das semelhanças intra-categoriais e das diferenças inter-categoriais. Contudo, Turner considera que a SCT vai mais além, tornando claro que as semelhanças e as diferenças não são independentes e aditivas, mas são aspectos do mesmo meta- contraste. Este aspecto parece-nos problemático, uma vez que não está comprovada empiricamente a co-ocorrência destes dois fenómenos (e.g., Tajfel, Sheikh e Gardner, 1964), havendo inclusivé autores que afirmam a sua independência, atribuindo-lhes origens diferentes (e.g., Krueger, 1992). De acordo com Turner (1987), verifica-se um ‘antagonismo funcional’ (p.49) entre a saliência de um nível de categorização e a saliência dos outros níveis. A saliência das diferenças intergrupais, no nível intermédio da categorização, pressupõe reduzir ou inibir a percepção das diferenças intragrupais. Nesta sequência, “there tends to be an inverse relationship between the salience of the personal and social levels of self-categorization. Social self-perception tends to vary along a continuum from the perception of self as unique person (maximum intra -personal identity and maximum difference perceived between self and endogrupo members) to the perception of the self as an endogrupo category (maximum similarity to endogrupo members and difference from exogrupo members)” (Turner, 1987, p.49; itálico no original). A saliência do nível intermédio de auto-categorização é definida como a condição ‘under which some specific group membership becomes cognitively prepotent in self- perception to act as the immediate influence on perception and behavior’ (Turner, 1987, p.54). Por consequência, “(…) factors which enhance the salience of ingroup-outgroup categorizations tend to increase the perceived identity (similarity, equivalence, interchangeability) between self and ingroup members (and difference from exogrupo members) and so depersonalize individual self-perception on the stereotypical dimensions which
  • 160. Racismo e Etnicidade em Portugal 160 define the relevant ingroup membership. Depersonalization refers to the process of 'self-stereotyping' whereby people come to perceive themselves more as the interchangeable exemplars of a social category than as unique personalities defined by their individual differences from others” (Turner, 1987, p.50; itálico no original). Turner (1987) salienta que o termo despersonalização não tem uma conotação negativa: “Depersonalization [...] is not a loss of individual identity, nor a loss or submergence of the self in the group (as in the concept of de-individuation), and nor any kind of regression to a more primitive or unconscious form of identity” (p.51). No entanto, esta afirmação parece-nos infundada, já que, por um lado, não é apresentada evidência empírica que a sustente, e por outro, a despersonalização corresponde a uma perda do estatuto de ‘sujeito’, que constitui um pilar fundamental do projecto da modernidade: a concepção do indivíduo como livre, autónomo e internamente determinado (e.g., Doise, 1999, Lorenzi-Cioldi e Dafflon, 1998). Resumindo, segundo a SCT a saliência da pertença grupal é um fenónemo dinâmico, sendo definido como um processo psicológico que implica a despersonalização da auto-percepção. O comportamento intergrupal expressa uma mudança, no nível de abstracção da auto-categorização, do nível pessoal para o nível social, a que corresponde “a shift towards the perception of self as an interchangeable exemplar of some social category and away from the perception of self as a unique person defined by individual differences from others” (Turner, 1987, p.50). A saliência das auto-categorizações é um aspecto com elevada pertinência no âmbito da SCT. A questão de saliência refere-se às condições sob as quais a pertença a uma categoria específica se torna cognitivamente predominante na auto-percepção agindo como a influência imediata na percepção e no comportamento. Oakes (1987) apresenta um modelo relativo à saliência das categorias, conhecido por modelo ‘accessibility x fit’ (p.126), baseado principalmente nos trabalhos sobre a percepção de Bruner (1957).
  • 161. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 161 Segundo este modelo, a saliência de uma categoria, numa situação específica, é determinada pela interacção entre a sua ‘acessibilidade’ para o observador e o ‘ajustamento’ entre as características do estímulo e as especificações da categoria. A ''acessibilidade’ refere-se à facilidade com que uma categorização particular pode ser cognitivamente activada. Categorizações que são mais prontamente acessíveis têm maior probabilidade de se tornarem salientes, e assim de serem usadas, do que categorias cujo acesso cognitivo é mais difícil. Quanto mais acessível é uma categoria, menos input é necessário para evocar a categorização relevante, e uma maior amplitude de características dos estímulos tende a ser percebida como congruente com a categoria, enquanto que as características que não se ajustam à categorização tendem a ser mascaradas. A acessibilidade é determinada sobretudo por dois factores: a aprendizagem passada e a motivação presente. O ‘ajustamento’ refere-se à correlação entre a distribuição dos estímulos, em termos de uma ou mais características, e a classificação fornecida pela categorização. Oakes (1987) define e mede o ‘ajustamento’ como o grau em que as semelhanças e as diferenças percebidas entre as pessoas e as suas acções se correlacionam com uma determinada classificação (baseada em Tajfel, 1969). Resumindo, o sistema cognitivo, na procura de maximizar o significado de um contexto específico, activa a categorização que maximiza a interacção entre a ‘acessibilidade’ da categoria e o ‘ajustamento’ entre o estímulo e as especificações de categoria. Isto é, a categorização saliente é a que melhor explica as semelhanças a as diferenças entre os estímulos. Hogg e McGarty (1990) referem que este processo pode ser comparado, ilustrativamente, a uma análise multivariada de variância (MANOVA) com um grande número tanto de dimensões categoriais como de variáveis contínuas. A categoria saliente será aquela que explica o máximo de variância. Esta conceptualização é inspirada em modelos cognitivos, tais como o sistema hierárquico de inclusividade de Rosch (1978) da incompatibilidade entre a atenção dirigida a características globais (categorias) e locais (membros). Na acepção de Rosch (1978), o nível de inclusividade mais eficiente, adoptado pelos indivíduos em ordem a maximizar o conhecimento acerca dos outros, é o nível intermédio de classificação (i.e., o nível da categorização endogrupo/exogrupo). O nível interpessoal é informativamente mais rico, mas é menos eficiente para uma série de propósitos. Em contrapartida, de acordo com a SCT, o nível de abstracção saliente numa interacção social não é fixo, mas varia conforme o quadro de referência: o nível de abstracção saliente é o
  • 162. Racismo e Etnicidade em Portugal 162 imediatamente subordinado ao nível no qual o estímulo sob comparação pode ser tratado como idêntico (Turner, 1987). Na opinião de Turner, a SCT consiste numa teoria geral do processo grupal, constituindo uma base para a derivação de ‘sub-teorias intermédias’ (1987, p.43) de alguns dos principais fenómenos grupais tais como a atracção, a cooperação e a influência social. Essas sub-teorias consistem em análises mais detalhadas de consequências particulares da formação do grupo, e podem ser aplicadas a problemas mais específicos neste campo. Na acepção do autor, é importante não só produzir uma teoria geral unificada do grupo, mas também testá-la em variados contextos. Turner et al. (1987) apresentam em detalhe algumas pesquisas testando hipóteses específicas derivadas da SCT nas áreas de formação de grupo (Hogg, 1987), saliência das categorizações sociais (Oakes, 1987), influência social e polarização de grupo (Wetherell, 1987) e psicologia das multidões (Reicher, 1987). O julgamento social e estereotipia constituem uma das áreas em que a SCT tem sido ‘vigorosamente aplicada’ (Hogg e McGarty, 1990, p.21). A SCT assume-se como uma alternativa à conceptualização da estereotipia no âmbito do modelo ‘cognitive miser’ (Fiske e Taylor, 1991, p.13). De acordo com as teorias socio-cognitivas a saliência das categorias sociais seria determinada pela sua relativa novidade, frequência estatística, ou proeminência perceptual. Assim, por exemplo, a categorização social ‘mulher’ tem maior probabilidade de ser aplicada quando a mulher está em minoria numérica numa dada situação (efeito ‘solo’) visto que a categoria se torna perceptualmente distintiva sob estas condições (e.g., Taylor, 1981). Oakes (1987; Oakes e Turner, 1990) tem sublinhado algumas limitações importantes desta análise da saliência categorial e adoptou, como já referimos, a ideia de que a aplicação de uma determinada categoria numa dada situação depende muito mais do significado social e da relevância da pertença categorial do que da mera proeminência perceptual: “Fundamental to this self-categorization approach is the idea that social categories are applied in a way which is social-psychologically adaptive for the perceiver rather than on the basis of error, information overload or the perceptual prominence of particular stimuli” (Hogg e McGarty, 1990, p.22).
  • 163. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 163 Hogg e McGarty (1990) consideram que: ‘One of the attractions of self- categorization theory [...] is that it represents a means by which the social context can be incorporated in social psychological analyses’ (p.23). E acrescentam: ‘We are interested in two sides of a dialectic: the effect of the social upon the individual and the individual on the social’ (p.24). No entanto, a integração do contexto social, nomeadamente os factores de ordem ideológica, não é visível na maior parte da pesquisa empírica e da produção teórica no âmbito da SCT. O desenvolvimento do modelo da identidade social de Bristol por parte de Turner e de autores sob a sua inflência (e.g., Turner et al., 1987; Hogg e Abrams, 1988; Abrams e Hogg, 1990) vai no sentido da “articulação entre explicações situacionais, como a da dinâmica contextual da relação intergrupos, e explicações psicológicas, como a identificação com o grupo” (Amâncio, 1993/2000, verificarcitaçãop.215). Se estes desenvolvimentos constituem lacunas da teoria da identidade social que era necessário colmatar, a verdade é que as explicações de nível ideológico continuam ausentes, apesar de serem necessárias para analisar dinâmicas inter e intragrupos, como salientam Hinkle e Brown (1990; citados por Amâncio, 1993/2000, p.215). A SCT tem sido alvo de algumas críticas, oriundas, nomeadamente dos autores da escola de Genebra (e.g., Doise, 1988; Doise e Lorenzi-Cioldi, 1989). Algumas dessas críticas são comuns às que já referimos em relação à SIT (ver ponto 2.3.1), outras são especificamente dirigidas à SCT, o que se prende sobretudo com a ‘radicalização psicológica’ de que já falámos. Tajfel (1978b) situava o seu modelo da identidade social no âmbito das relações intergrupais, uma vez que ele se referia às situações que se encontravam no pólo intergrupal do continuum interpessoal-intergrupal do comportamento social, ou seja, as situações em que a pertença grupal se torna perceptiva e avaliativamente saliente para os indivíduos. Em contrapartida, grande parte dos trabalhos desenvolvidos no âmbito da SCT não se focalizam propriamente nas relações intergrupais, mas sim na identificação do indivíduo com o(s) grupo(s) de pertença, como salienta Amâncio “o continuum interpessoal-intergrupo transforma -se numa oposição entre o self e o grupo (Turner, 1982), à qual corresponde uma oposição entre uma identidade
  • 164. Racismo e Etnicidade em Portugal 164 pessoal, construída por traços físicos, de personalidade, intelectuais e idiossincráticos, e uma identidade social, que é composta pelo conjunto das autodefinições em termos de categoria de pertença (Amâncio, 1993/2000, p.398). Os conteúdos da identidade social não são considerados e o grupo surge como um simples meio de satisfação da necessidade de uma identidade individual positiva (Turner, 1975). Por outro lado, na acepção de Tajfel, é a relação entre uma pertença grupal socialmente saliente e as crenças que os membros do grupo têm sobre as características do sistema social em que estão inseridos, e da legitimidade ou ilegitimidade da posição social do seu grupo, que determina o tipo de estratégias, individuais (mobilidade social) ou colectivas (mudança social), que os membros do grupo desenvolverão para mudar a sua situação. Tajfel (1978a, 1981/1983, 1982a) afirma, ainda, a necessidade e relevância da contribuição da psicologia social para a análise de fenómenos macrossociais, como as situações de discriminação nacional, étnica e linguística, assim como os movimentos sociais. Em contraste, a SCT focaliza-se sobretudo nos determinantes sociocognitivos da saliência da pertença grupal e na identificação do indivíduo com o grupo, em detrimento da análise de aspectos macrossociais. Na opinião de Amâncio (1993/2000), a SCT constitui “uma teoria universal do eu, no quadro da qual a própria categorização já não organiza a realidade em termos de distintividade entre grupos, mas sim em termos de uma distintividade entre o eu e os outros, incluindo os grupos” (p.298). Como referimos, a SCT é inspirada em modelos cognitivos (e.g., Rosch, 1978; Navon, 1977) e tais modelos situam-se no nível de análise intraindividual (Lorenzi- Cioldi e Doise, 1990). A teoria da auto-categorização deverá ser articulada com outros modelos explicativos para poder dar conta das variações observadas nas percepções intergrupais, nomeadamente para permitir compreender ‘when the postulated processes at the group level and at the individual level are antagonistic or, on the contrary, when they reinforce each other’ (Lorenzi-Cioldi e Doise, 1990, p.87). Doise e Lorenzi-Cioldi (1989; Lorenzi-Cioldi e Doise, 1990) argumentam em favor de uma perspectiva pluralista onde diferentes padrões de diferenciação intra e
  • 165. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 165 intergrupais sejam considerados. Na opinião destes autores, as diferenciações self-outro podem ser perceptualmente compatíveis com a identidade grupal, mesmo quando a categorização endogrupo/exogrupo é tornada saliente. Estes autores consideram que a concepção de Turner et al. (1987), em que níveis de identidade pessoal e social são considerados como antagónicos, não sendo possível a sua activação simultânea, sofre de excessiva simplicidade e não permite explicar as assimetrias observadas na percepção dos grupos. De facto, estudos desenvolvidos pela equipa de Genebra vieram demonstrar que a relação entre as diferenciações intra e intergrupais não é linear - complexos padrões de diferenciação podem acontecer dependendo da natureza das relações intergrupais, como veremos no ponto seguinte.
  • 166. Racismo e Etnicidade em Portugal 166 2.4 Representações sociais, identidade social, e dominação simbólica “The class of the poor (…) possesses a great homogeneity insofar as its meaning and location in the social body is concerned; but it lacks is completely insofar as the individual qualification of its elements is concerned. It is the common end of the most diverse destinies, an ocean into which lives derived from the most diverse social strata flow together. (…) What is most terrible in poverty is the fact that there are human beings who, in their social position, are just poor and nothing but poor.” Georg Simmel, 1907 “Yet the distinguishing characteristic of the nobility is that other element – personality, freedom, the internally grounded – became of grater value and of greater significance here than in other structures. (…) Nobility's special synthesis is one between the extremes in which the individual is either swallowed up by his group or comes to regard it with oppositional self- centeredness. (…) The nobility has smelted individuals into the common grouping to a degree not otherwise attained. But the superpersonal structure thus created has its goal and meaning, here more than anywhere else, in the existence of individuals, in their might and significance, in the freedom and self sufficiency of their lives”. Georg Simmel, 1908
  • 167. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 167 2.4.1. Identidade social e diferenciação categorial O modelo da diferenciação categorial (e.g., Doise, 1976/1984) visa a integração e articulação entre alguns modelos anteriores (e.g., Sherif et al., 1961; Tajfel, 1969). Este esforço de articulação está extremamente patente no livro de William Doise, A articulação psicossociológica e as relações entre grupos (1976/1984), dado que o autor convoca não só experiências realizadas por si e seus colaboradores para apoiar o modelo da diferenciação categorial mas também experiências realizadas por outros investigadores no âmbito de outros modelos. O modelo da diferenciação categorial atribui um papel preponderante à categorização, considerando-a como um processo psicológico de estruturação do meio, mas integra a análise deste processo no quadro das relações intergrupais, tendo em consideração variáveis de ordem situacional e estrutural (Doise, 1976/1984; Deschamps, 1984). Na opinião de Doise, os conteúdos das categorias não podem ser desligados dos seus critérios classificatórios. Numa experiência de Doise (1969; citado por Doise, 1976/1984) os participantes, franceses e alemães, foram colocados em grupos, divididos em três condições experimentais: numa condição, os grupos distinguiam-se pela nacionalidade (o grupo dos franceses e o grupo dos alemães); noutra condição, os grupos eram ambos formados por participantes da mesma nacionalidade; e na outra condição, as nacionalidades estavam misturadas (grupos mistos). A situação experimental exigia escolhas cooperativas intra e intergrupais, tendo os resultados demonstrado que as escolhas cooperativas intragrupais eram significativamente mais elevadas do que as escolhas intergrupais, nas situações em que um grupo de participantes da mesma nacionalidade interagia com um grupo de participantes de outra nacionalidade. Esta experiência demonstra que a discriminação intergrupal resulta de uma associação entre critérios classificatórios e conteúdos significantes. Neste caso, o tratamento diferenciado dos membros do grupo de pertença não dependia de uma mera categorização classificatória, mas verificava-se sobretudo quando esta estava associada a uma dimensão que adquiria significado subjectivo para os participantes - a nacionalidade. Doise (1976/1984) demonstrou que as representações assumem um lugar central nas relações intergrupais, desempenhando três tipos de funções: selecção, justificação e antecipação. A função selectiva traduz-se numa centralidade dos conteúdos relevantes, relativamente aos conteúdos irrelevantes, ao nível das representações mútuas nas
  • 168. Racismo e Etnicidade em Portugal 168 relações intergrupais. Avigdor (1953, citado por Doise, 1976/1984) realizou uma experiência em que os participantes (adolescentes do sexo feminino) faziam parte de dois grupos que tinham de competir por recursos comuns para levar a cabo o seu objectivo (a montagem de uma peça de teatro). Os resultados evidenciaram a função selectiva no conteúdo dos estereótipos mútuos: a diferenciação entre os grupos verificou-se nas características que eram relevantes para a situação (tais como batoteiras, egoístas) mas não naquelas que eram irrelevantes. A função justificativa revela-se nos conteúdos das representações que veiculam uma imagem do outro grupo que justifica um comportamento hostil em relação a ele e/ou a sua posição desfavorável no contexto da interacção entre os grupos. Na opinião de Doise (1976/1984), os estudos dos estereótipos apoiam esta interpretação. A semelhança, que existe em vários países, entre os estereótipos referentes a grupos diferentes mas com uma mesma posição socio-económica desfavorecida, sugere que estes estereótipos têm, em toda a parte, a função de preservar a distância económica e cultural dos grupos dominantes face aos dominados. A função antecipatória manifesta-se na influência que as representações exercem no próprio desenvolvimento da relação entre os grupos, como demonstra a experiência de Doise e Weinberger (1972-1973; citados por Doise, 1976/1984). Nesta experiência, participantes do sexo masculino são levados a antecipar situações de competição, de cooperação ou de co-presença com duas parceiras do sexo feminino, comparsas dos experimentadores. Verificou-se que os participantes projectavam uma imagem das suas parceiras globalmente mais desfavorável e mais feminina quando antecipavam uma situação de competição do que quando antecipavam os outros tipos de interacção. Assim, as representações não se limitam a seguir o desenvolvimento das relações intergrupais, adaptando-se a ele, mas também intervêm “na determinação deste desenvolvimento, antecipando-o activamente” (Doise, 1976/1984, p.105). Como refere o autor, a selecção, a justificação e a antecipação não são, evidentemente, três funções independentes das representações intergrupais, mas derivam de uma mesma dinâmica. O modelo da diferenciação categorial estabelece, assim, uma ligação entre a realidade objectiva e simbólica na análise das relações intergrupais. Doise (1976/1984) refere que:
  • 169. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 169 “o processo de diferenciação categorial constitui um processo psicossociológico [...] [que] esclarece o modo como, em variadas situações, uma realidade social constituída por grupos se constrói e afecta os comportamentos dos indivíduos que, por seu turno, interagem e corroboram esta realidade” (p.138). Várias experiências realizadas por Doise e colaboradores (e.g., Doise e Sinclair, 1973; citados por Doise 1976/1984) têm demonstrado que o processo de diferenciação categorial não se manifesta de forma simétrica, sendo modelado pelo contexto das relações intergrupais. Também os estudos sobre o etnocentrismo realizados por LeVine e Campbell (1972) e Brewer (1979), aos quais fizemos referência no capítulo 1, demonstraram que o processo de diferenciação categorial não é nem universal na sua extensão, nem simétrico na sua expressão, uma vez que a diferenciação se estabelecia sobretudo ao nível das dimensões consideradas mais relevantes para o grupo (Brewer, 1979). Estes estudos também demonstram que, no caso de categorizações cruzadas, a sobreposição de duas categorias pode anular o efeito diferenciador de uma delas. Tal não se verifica, no entanto, relativamente a categorias muito significantes para os indivíduos e, por isso, estruturantes das suas representação (por exemplo, nacionalidade). Assim, os processos de diferenciação perceptiva e avaliativa são mediados pelas pertenças dos indivíduos a categorias sociais ‘reais’, mas o seu peso depende do contexto específico em que essas categorizações são activadas. A manifestação assimétrica do favoritismo endogrupal e da discriminação intergrupal, quer ao nível das representações quer ao nível dos comportamentos, “mostra bem os limites de uma causalidade psicológica universal daqueles processos como defendia Turner (1975) no quadro do modelo de Bristol” (Amâncio, 1993/2000, p.302).
  • 170. Racismo e Etnicidade em Portugal 170 2.4.2 Identidade dominante e identidade dominada Na acepção de Deschamps (1982a), o estudo da identidade deve ter em consideração que os indivíduos se definem e são definidos em relação a um universo simbólico comum que diferencia os grupos através das suas posições relativas, o que se traduz em diferentes modalidades de identidade social. “Esta abordagem da identidade social situa-se numa perspectiva psicossociológica, na medida em que articula as condições objectivas da relação intergrupos com uma dimensão cognitiva que faz da identidade social um constructo subjectivo” (Amâncio, 1993/2000, p.390). Contrariamente à hipótese de exclusão mútua das diferenciações intra e intergrupais, subjacente ao continuum interpessoal-intergrupal, diversos estudos (e.g., Deschamps, 1982b; Lorenzi-Cioldi, 1988) têm demonstrado que a um maior índice de diferenciação intragrupal pode estar ligado com um maior índice de diferenciação intergrupal: hipótese da co-variação. Deschamps (1982b) considera que a perspectiva da escola de Bristol se caracteriza por uma visão ‘homeostática’ dos processos de diferenciação: "(…) cette théorisation nous conduit à un modèle homéostatique ou de l´équilibre dans lequel, si l´individu, par son identification à un groupe, accède à une identité positive, il n´a plus tendance à établir une différence d´avec autrui et si l´individu a la possibilité de se différencier d´autrui et par là même d´accéder à une évaluation positive de lui-même, il n´établit plus de discrimination entre les différents groupes de son entourage" (p.251-252). Em contrapartida, Deschamps (1982b) procura situar os comportamentos de diferenciação e discriminação intergrupais num universo de referências sociais e normativas. Na acepção deste autor, o comportamento intergrupal seria o resultado de diferentes modalidades de identificação com o grupo, como a individuação e a fusão. Deschamps e Lorenzi-Cioldi (1981; citados por Deschamps, 1982b) operacionalizaram estas modalidades de identificação com o grupo numa experiência em que foi utilizado um procedimento semelhante ao dos ‘grupos mínimos’. Numa das condições os participantes, adolescentes de ambos os sexos, foram informados de que iriam receber individualmente os pontos que lhes fossem atribuídos pelos outros (condição de individuação), enquanto na outra os participantes eram informados de que
  • 171. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 171 iriam receber a média dos pontos atribuídos ao seu grupo (condição de fusão). Os resultados evidenciaram maiores índices de diferenciação intra e intergrupal na condição de individuação do que na de fusão, confirmando a hipótese de co-variação nos comportamentos de diferenciação interindividual e intergrupal. Numa experiência de Wagnen e Schönbach (1984; citados por Doise, 1988) verificou-se que quando se pedia a participantes alemães de mais baixo estatuto para se descreverem a si próprios e aos alemães em geral, antes de descreverem os trabalhadores imigrantes, produzia-se uma imagem mais negativa destes últimos do que quando os próprios eram descritos depois do exogrupo. Contudo, o mesmo não acontecia com os participantes de mais alto estatuto, para os quais a ordem de se descreverem a si próprios, antes ou depois dos trabalhadores imigrantes, não teve efeito. Estes resultados apontam para uma certa assimetria nos padrões de diferenciação, sendo os membros dos grupos dominados mais influenciados pelo contexto do que os membros do grupo dominante. Os estudos sobre o ‘efeito ovelha negra’ (Marques, 1990; Marques, Robalo e Rocha, 1992; Marques e Paéz, 1994) também apontam para uma co-variação nos comportamentos de diferenciação. Basicamente, o ‘efeito ovelha negra’ é considerado uma consequência dos membros do grupo tentarem alcançar superioridade para o seu grupo comparando-o com outro(s) grupo(s) relevante(s). Marques considera que uma forma de alcançar essa superioridade consiste em desvalorizar os membros marginais ou desviantes do grupo de pertença, isto é, que não revelem as características positivas dos membros mais prototípicos do grupo - apenas estes membros seriam considerados relevantes para o estabelecimento de uma identidade positiva nas comparações com outros grupos. O resultado deste processo é uma polarização nos juízos sobre os membros do grupo de pertença relativamente aos juízos sobre os membros dos outros grupos. Numa das suas experiências, Marques (1986; citado por Marques, 1990), pedia a estudantes belgas para descreverem ‘estudantes belgas simpáticos’, ‘estudantes belgas antipáticos’, ‘estudantes norte-africanos simpáticos’ e ‘estudantes norte-africanos antipáticos’. Tal como se esperava, os estudantes belgas simpáticos foram descritos de forma mais positiva do que os estudantes norte-africanos simpáticos, enquanto que os estudantes belgas antipáticos foram descritos de forma mais negativa que os estudantes
  • 172. Racismo e Etnicidade em Portugal 172 norte-africanos antipáticos. Experiências posteriores demonstraram que este efeito só ocorre para dimensões relevantes para a definição do grupo de pertença ou para a relação intergrupal. Os estudos de Codol (1975; 1984) sobre o efeito Primus Inter Pares (PIP), apesar de apenas analisarem os efeitos de diferenciação em situações de comparação interindividual, demonstraram que os participantes resolvem a tensão entre a norma do conformismo (contextual) e a norma da originalidade (social), afirmando a sua distintividade através da própria semelhança. Segundo Codol, os indivíduos estão sujeitos à pressão dos conteúdos avaliativos e normativos inscritos nos contextos ou nas pertenças categoriais, isto é, a um conflito permanente entre a diferença e a semelhança; pois tanto a igualdade excessiva como a diferença excessiva terão consequências nefastas na identidade dos indivíduos. A identidade social estaria ligada ao: «conflit entre l’affirmation et la nécessité individuelle et l’affirmation et la nécessité collective ; entre la recherche d’une identité personnelle et la recherche d’une identité collective ; entre ce qui constitue tout à la fois la différence individuelle et la similitude à autrui ; entre la visibilité sociale et la conformité, en bref, entre l’individu et le groupe» (Codol, 1979, p.424, citado por Deschamps e Devos, 1999, p.149-150). O comportamento do indivíduo no seio do grupo e em relação aos grupos relevantes, num dado contexto, não é universalmente orientado por uma motivação, mas sim pela referência a valores e normas colectivas que a categorização torna significativas ou as normas contextuais que possibilitam a procura da singularidade, quer através da diferença, quer através da semelhança (Codol, 1984). Assim, Codol chama a atenção para o facto da diferenciação interpessoal ser dependente das normas contextuais e colectivas: “Differentiation and non-differentiation cannot [...] be considered solely as two poles between which the conduct of individuals ceaselessly oscillates. In many social situations, difference and similarity are sought simultaneously. This is ?...?the ‘superior conformity of the self’ (or the ‘PIP effect’) (Codol, 1984, p.328).
  • 173. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 173 Este efeito seria tanto mais acentuado quanto maior a identificação do indivíduo com o grupo, isto é, quanto mais este aderisse às suas normas. Perante os resultados destes diversos estudos, Deschamps (1982a) afirma que a dicotomia entre identidade pessoal diferenciada e identidade social homogeneizante se torna inaceitável. O comportamento do indivíduo, no seio do grupo e em relação ao grupo comparativamente relevante, é orientado por normas e valores colectivos que dão significado à categorização intergrupal. Uma dessas referências colectivas são as ideologias relativas à estratificação dos grupos sociais numa escala de poder, que Deschamps (1982a, p.88) designa por um ‘universo simbólico comum de valores’, que serve de referência à posição relativa dos grupos sociais. De acordo com Deschamps (1984), as dinâmicas sociais a nível interindividual e a nível intergrupal são ao mesmo tempo homólogas e interrelacionadas. As tensões entre a cooperação e a competição, a nível intergrupal, são semelhantes às tensões entre a fusão e a individuação, a nível interpessoal. Fortalecer experimentalmente um pólo a um nível aumentará a saliência do pólo homólogo no outro nível. Assim, na acepção de Deschamps, os pólos do continuum interpessoal-intergrupal não são antagónicos (Tajfel e Turner, 1979), mas podem co-variar. Deschamps (1982a) chamou a atenção para a ideia de que a distintividade interpessoal depende das posições dos indivíduos num dado sistema de relações intergrupais. Os membros dos grupos dominantes consideram-se a si próprios individualmente como um ponto de referência em relação aos quais as outras pessoas são definidas, concebem-se a si próprios como indivíduos únicos e a pertença grupal não contribui muito para a definição de si próprios. Por outro lado, os membros dos grupos dominados definem-se a si próprios, e são também definidos pelos outros, em termos das categorizações sociais que lhe são impostas. A procura de diferenciação seria, portanto, privilégio dos membros dos grupos dominantes e seria aumentada quando essa pertença grupal fosse tornada saliente. Neste sentido, a hipótese da co-variação aplica-se mais especificamente aos membros dos grupos que estão numa posição dominante em relação a outros grupos, mas é necessário ter em conta que os membros dos grupos dominados também podem ocupar posições dominantes em situações específicas (Doise, 1988).
  • 174. Racismo e Etnicidade em Portugal 174 Vamos debruçar-nos um pouco mais sobre esta conceptualização. Como já referimos, a escola de Bristol considera que as definições ‘ortodoxas’ de grupo são insuficientes quando aplicadas às relações intergrupais, tendo sido proposta uma noção de grupo que salienta o facto de este não ter existência senão pela relação com outros grupos (Tajfel, 1972, p.295). No entanto, Deschamps (1982a) considera que esta definição de grupo é ainda insuficiente. É necessário que a definição de grupo tenha em consideração as relações de interdependência e de interdeterminação que existem entre os grupos: “The relations between groups are not only those of co-existence or juxtaposition [...]. Groups exist within a system of mutual dependence; they acquire a reality which is defined in and through their interdependence. They are not preexisting closed spheres each of which would be able to engender its own specific system of meanings. It cannot therefore be said that each group has its own interpretations and values; groups exist as something which is concrete and 'objective' only in the context of some values which are common to the society as a whole. Therefore, it is not the difference between systems of values which determines the existence of specific groups but - on the contrary - a common system of values and its homogeneity. The existence of concrete and 'objective' differences between individuals is not sufficient for the emergence of a group or the formation of several groups. These differences will remain unnoticed if they do not acquire their significance in relation to shared values. In other words, they can become 'legible' only if they relate to a shared and common symbolic universe of values which makes it possible for different groups to exist” (p.87-88). Neste sentido, Deschamps (1982a) considera que é necessário não reduzir as relações entre grupos a uma interacção entre elementos intermutáveis e equivalentes. Com efeito, as relações de interdependência entre grupos, quer a nível concreto quer a nível simbólico, são frequentemente assimétricas: os grupos das ‘crianças’, das ‘mulheres’, dos ‘negros’, dos ‘operários’, não são grupos equivalentes ou intermutáveis com os dos ‘adultos’, ‘homens’, ‘brancos’, ‘classe média’, visto que a idade, o sexo, e a ‘raça’, a posição social destinam-lhes posições específicas nas relações sociais (p.88). As relações de poder vão actualizar-se nas relações de interdependência entre os grupos. Os grupos dominantes vão procurar preservar a sua posição de dominação. Por outro lado, no caso dos grupos dominados, a valorização global do seu próprio grupo
  • 175. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 175 será difícil. A imagem desfavorecida enviada pela sociedade (ou pelo menos por parte do modelo dominante) opõe-se à tendência de etnocentrismo (Lorenzi-Cioldi, 1988). A ordem social, criada e mantida pelos grupos dominantes a que se referia Apfelbaum (1979), implica que a pertença aos grupos não seja igualmente saliente para todos. A saliência da pertença grupal varia conforme os indivíduos dependendo da sua distância do ponto de referência em relação ao qual qualquer indivíduo é suposto ser capaz de se definir a si próprio. Neste sentido, Deschamps (1982a) refere: “one can distinguish between two kinds of individuals. On the one hand, there are those who conceive of themselves as unique, or at least as not belonging to any particular category; on the other, there are those who are particles of an entity and are not considered in terms of their personal characteristics. Once designated as a woman, a child, or a black, they are defined by these terms” (p.89). Nesta sequência, podemos falar em duas modalidades de identidade social: “social identity can vary fundamentally as a function of the material and symbolic capital which is owned by the individual. [...] the social identity of those who dominate will be defined in terms of 'subjects' and of those who are dominated in terms of 'objects'. The former do not think of themselves as being determined by their group membership or their social affiliation. They see themselves above all as individualized human beings who are singular, 'subjects', voluntary actors, free and autonomous. Their group is first and foremost a collection of persons. This is not the case for the dominated who are defined as undifferentiated elements in a collection of impersonal particles, and are thought of as 'objects' rather than 'subjects'” (p.90)35 . Na perspectiva de Deschamps (1979), a consideração destas duas modalidades de identidade social impõe alguns limites à generalização do efeito PIP, uma vez que as comparações interindividuais analisadas por Codol, eram efectuadas entre ‘iguais’. Dado que a norma da singularidade se aplica mais aos membros dos grupos dominantes do que aos dos dominados, estes últimos terão uma maior probabilidade de se encontrarem em contextos que envolvam um conflito normativo (Amâncio, 1994, 1995). 35 Recordar a este propósito o processo de ‘coisificação’ a que se referia Agostinho Neto (1959, p.49) e a forma como esse processo destruía o valor inerente a cada ser humano, como fizemos referência no ponto 1.3.1.
  • 176. Racismo e Etnicidade em Portugal 176 Neste tipo de relações intergrupos, o grupo comparativamente relevante também não é arbitrário, visto que, e através da interdependência, a relação de dominação se torna insignificante (Deschamps, 1982a). O modelo proposto por Deschamps não toma como ponto de partida a distinção entre a identidade pessoal e a identidade social, mas sim a distinção entre a ‘de facto identity’ e a ‘imaginary identity’ (1982a, p.90). A primeira é a definição do self atribuída aos indivíduos através das suas relações sociais. No caso de serem membros de grupos dominantes, essas definições são feitas em termos de pessoas ou sujeitos; para os membros de grupos dominados, elas são parte de um objecto colectivo. Como resultado, a identidade de facto é, para os dominantes, homóloga com a identidade imaginária. Em contraste, as identidades de facto e imaginária não têm congruência no caso dos dominados. Uma técnica frequentemente usada em psicologia social para estudar a identidade social é o Twenty Statements Test (TST - técnica criada por Kuhn e McPartland, 1954; referidos por Deschamps, 1982a), que consiste em o participante responder 20 vezes à questão ‘Quem sou eu?’. Os resultados obtidos em diversos estudos demonstram que as referências a categorias sociais, nomeadamente papéis, estatutos ou pertenças grupais (e.g., negro, judeu, mulher) ultrapassam as referências a traços de personalidade, aptidões ou escolhas pessoais (e.g., dinâmico, inteligente, alegre), sobretudo nos indivíduos pertencentes a grupos minoritários ou desfavorecidos (Deschamps, Lorenzi- Cioldi e Meyer, 1982; Lorenzi-Cioldi e Meyer, 1984). Estes resultados apontam para o facto da pertença a um grupo minoritário ou dominado produzir nos indivíduos uma maior consciência da categoria social que determina o seu estatuto minoritário (Deschamps, 1982a; Lorenzi-Cioldi e Dafflon, 1999). Para esta ‘consciência de categoria de pertença’ contribuem os processos de estigmatização referidos por outros clássicos da psicologia social (Lewin, 1948/1997; Allport, 1954/1979). Num estudo respeitante às atitudes de estudantes, Doise, Meyer e Perret-Clermont (1976; citados por Deschamps, 1982a) utilizaram o TST, entre outras medidas. Os participantes, adolescentes suíços de ambos os sexos, eram alunos de escolas técnicas ou de liceus. Cada participante respondeu sete vezes à questão ‘Quem sou eu?’. Os
  • 177. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 177 resultados mostraram que os alunos das escolas técnicas (grupo de menor estatuto) referiram uma proporção maior de respostas ‘consensuais’ (53% referiram mais de duas de tais respostas num total possível de sete respostas) do que os alunos dos liceus (só 33% referiram mais de duas respostas ‘consensuais’). Na opinião de Deschamps (1982a), estes dados confirmam que os ‘dominados’ se definem a si próprios mais em termos da sua posição social e da sua pertença grupal - isto é, como membros de uma entidade colectiva - do que os ‘dominantes’, que se concebem a si próprios menos em termos das suas pertenças grupais e mais em termos das suas características pessoais. Esta experiência demonstrou ainda que os alunos do liceu, particularmente aqueles dos cursos ‘prestigiados’, vêem-se a si próprios como ‘senhores do seu destino’ (p.92) e relativamente autónomos, isto é, têm uma visão de si próprios que acentua a causalidade interna. Em contraste, os alunos das escolas técnicas mostram uma maior tendência para se percepcionarem a si próprios como dependentes de contingências exteriores. Ou seja, os dominantes definem-se a si próprios mais como sujeitos e percebem as suas acções como voluntárias, enquanto que os dominados se vêm a si próprios como objectos de forças exteriores. Lorenzi-Cioldi (1988) realizou uma série de experiências nas quais operacionalizou, de várias formas, uma relação de dominação intergrupal, o que lhe permitiu analisar os padrões de diferenciação interindividual e intergrupal que lhe estão associados, definir o perfil das identidades dominante e dominada e demonstrar a sua homologia com os padrões de comportamento masculino e feminino (Amâncio, 1993/2000). Numa das experiências, após uma tarefa de julgamentos estéticos (escolha entre dois compositores: Riley e Kabelac), os participantes (adolescentes de ambos os sexos) são divididos em dois grupos. Num dos casos, a pertença colectiva dos participantes é supostamente devida às preferências estéticas individuais - os grupos tomam o nome do compositor escolhido (grupos ‘colecção’). No segundo caso, o experimentador afirma que a pertença de cada participante ao grupo ‘vermelho’ ou ‘azul’ é fruto de uma decisão arbitrária. Estes nomes são simples denominações, que não se referem às escolhas feitas pelos participantes, nem à sua especificidade individual (grupos ‘agregado’). Assim, metade dos participantes são categorizados de acordo com um critério ‘interno’, que são as suas próprias preferências, e metade de acordo com um critério ‘externo’, que é a decisão arbitrária do experimentador.
  • 178. Racismo e Etnicidade em Portugal 178 Seguidamente, os participantes efectuam uma tarefa de distribuição de pontos utilizando as matrizes de Tajfel. As matrizes permitem a distribuição de pontos entre o próprio e um membro anónimo do endogrupo, e entre o próprio e um membro anónimo do exogrupo. De acordo com as instruções nos cadernos das matrizes, metade dos participantes do grupo ‘colecção’ e metade dos participantes do grupo ‘agregado’ irão receber exactamente os pontos que lhe forem atribuídos pelos outros - condição ‘individualismo’ -, enquanto a outra metade dos participantes irão receber a média dos pontos atribuídos ao seu grupo - condição ‘fusão’. Esta variável - ‘individualismo vs. fusão’ - introduz de outra forma a pertença a um grupo colecção ou agregado. O autor esperava uma homologia entre, respectivamente, grupos sexuais (rapazes e raparigas) e os grupos experimentais (colecção e agregado; individualismo e fusão), isto é, os rapazes (grupo dominante) deveriam ajustar-se melhor aos resultados do paradigma clássico dos ‘grupos mínimos’ quando pertencendo a um grupo ‘colecção’ ou na condição ‘individualismo’. Os resultados foram interpretados em termos de discriminação intergrupal global, tendo o autor analisado, particularmente, a estratégia de máxima diferença. O favoritismo endogrupal não diferiu globalmente entre as condições grupo ‘agregado’ e grupo ‘colecção’. Contudo, diferiu entre rapazes e raparigas. As médias globais mostram que as raparigas são mais justas que os rapazes (Cf: Turner, Brown e Tajfel, 1979). Embora os rapazes e as raparigas não difiram na condição ‘agregado’, eles diferem bastante na condição ‘colecção’: os rapazes apresentam maiores índices de discriminação intergrupal do que as raparigas. Para os rapazes, o favoritismo endogrupal tende a diminuir na condição agregado, e para as raparigas tende a aumentar nesta última condição. Paralelamente, o ‘individualismo’, mas não a ‘fusão’, dá origem a diferenças entre homens e mulheres, sendo maior o favoritismo endogrupal nos homens. Assim, a variável ‘individualismo vs. fusão’ produz efeitos bastante similares aos da variável ‘colecção vs. agregado’. Considerando, em particular, a estratégia da máxima diferença, verifica-se uma interacção altamente significativa entre o sexo e cada uma das variáveis experimentais: ‘colecção vs. agregado’; e ‘individualismo vs. Fusão’. Globalmente, os resultados mostram que a diferenciação interindividual e intergrupal está associada à pertença a um grupo ‘dominante’ e não à pertença a um grupo ‘dominado’.
  • 179. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 179 Os resultados desta e doutras experiências efectuadas por Lorenzi-Cioldi (1988), demonstram que as raparigas são mais flexíveis, ou seja, mais influenciadas pelas manipulações experimentais do que os rapazes, o que se prende com o seu estatuto ‘dominado’. Na opinião deste autor, estes resultados não se coadunam com a formulação clássica do modelo da identidade social, que estipula uma oposição entre o pessoal e o colectivo.
  • 180. Racismo e Etnicidade em Portugal 180 2.4.3. Identidade social e representação de ‘pessoa’ No âmbito dos estudos da escola de Genebra desenvolveu-se uma perspectiva que conceptualiza a identidade enquanto representação social. Na acepção de Lorenzi-Cioldi e Doise: “the self and the group must both be conceived of as social representations” (1990, p.87). Doise e Lorenzi-Cioldi (1987; citados por Doise, 1988) realizaram um estudo em que compararam as auto-descrições, descrições dos amigos e os estereótipos grupais de alunos do ensino secundário de acordo com a sua origem, suíços ou estrangeiros. Verificou-se que os adolescentes manifestaram claramente o favoritismo endogrupal quando descrevendo ‘os suíços em geral’ e ‘os estrangeiros em geral’. Mas, quando se descreviam a si próprios, os alunos suíços e os imigrantes de segunda geração não diferiram significativamente. Palmonari, Carugati, Ricci, Bitti e Sarchielli (1984; citados por Doise, 1988) encontraram também uma grande homogeneidade nas auto- descrições de diferentes grupos de adolescentes. Estudos desenvolvimentistas (Hart e Damon, 1986; citados por Doise, 1988) têm demonstrado tendências etárias sistemáticas no tipo de características usadas para descrever o self por crianças e adolescentes. Face a estes dados, Doise (1988) argumenta: “Self-images are socially produced. It is now commonsense to add that Western culture has its own representation of individual personality (see for instance, Dumont, 1983; Geertz, 1879). This representation obviously reflects social, economical and juridical relationships and it intervenes constantly in shaping these relations as well as in our scientific investigations” (p.106-107). Na acepção de Doise (1988), ‘'self' concept has to be studied as a social representation as it is an important organizing principle of symbolic relationships between social agents” (p.107). Segundo o autor, os progressos neste campo de investigação exigem a articulação de diferentes perspectivas e uma visão mais complexa do funcionamento dos indivíduos nos diversos contextos sociais. Para o desenvolvimento desta perspectiva contribuíram sobretudo os estudos sobre a relação intersexos, visto que esta constitui, sem dúvida, um tipo de relação
  • 181. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 181 intergrupal onde o peso do universo simbólico é bem visível (Amâncio, 1994; Doise, 1999). Como refere Amâncio (1993/2000), ‘as diferentes posições e funções sociais dos dois sexos não são meramente situacionais, mas sim históricas’ (p.305), de modo que um contexto experimental, ou outro, que torne a categorização intersexos saliente evoca nos homens e mulheres conteúdos categoriais sobre os quais se estabeleceram noções de si e de comportamentos apropriados. O consenso que envolve os estereótipos sexuais em diferentes culturas e sociedades, evidenciado ao longo de vários anos de investigação em psicologia social (e.g., Amâncio, 1994), permite considerá-los não só um suporte simbólico das posições sociais objectivas destes grupos mas também da construção da representação de si dos indivíduos de ambos os sexos (e.g., Amâncio, 1992, 1993a, 1994). Na opinião da autora, o enorme peso histórico da ideologia sexista e a sua grande influência ao nível dos sistemas de saber e de poder na criação da realidade social, tem fortes implicações na formação do self e na marcação das trajectórias individuais das mulheres, constituindo, na forma mais estrutural de todas, a forma de exclusão social (Amâncio, 1998, p.88). A este propósito Amâncio salienta: “as próprias características estereotipadas dos membros dos grupos são interdependentes, porque todas elas provêm de um mesmo universo finito de crenças sobre o que é uma ‘pessoa’. É, por outro lado, a dimensão histórica da relação de dominação que faz com que os indivíduos internalizem estas representações no seu autoconceito e as reproduzam nos seus comportamentos em diferentes situações [...] A proximidade entre o modelo "universal" de pessoa e o modo de ser socialmente construído dos membros dos grupos dominantes permite-lhes aceder a um self, que só aparentemente é descategorizado e universal [...] enquanto que o self dos membros dos grupos dominados emerge aparentemente marcado pela categoria social de pertença” (1994, p.173) . Se se analisar o significado dos conteúdos associados ao masculino e ao feminino no quadro do universo simbólico comum da noção de ‘pessoa’, verifica-se que este diferencia os sexos através de uma representação de pessoa singular, autónoma e
  • 182. Racismo e Etnicidade em Portugal 182 independente dos contextos, no caso do masculino - ‘modelo de pessoa universal’ (Amâncio, 1993/2000, 1993b) -, e de uma representação de pessoa definida por uma função social e delimitada pelas fronteiras do contexto em que essa função é exercida, no caso do feminino - ‘modelo de pessoa situacional’ (Amâncio, 1993/2000, 1993b). Amâncio (1992, 1994) demonstrou que esta assimetria nas definições de pessoa masculina e feminina se traduz numa assimetria no significado normativo assumido pelos estereótipos sexuais para os actores homens e mulheres. Nesta experiência os participantes, estudantes-trabalhadores de ambos os sexos, receberam a descrição de um episódio referente a uma decisão em contexto organizacional. Foram elaboradas oito versões diferentes de um mesmo episódio, onde só variavam as informações relevantes para as condições experimentais, que eram definidas por quatro níveis da categoria actor - homem ou mulher; baixo ou alto estatuto hierárquico na organização -, e por dois níveis da variável tipo de decisão - formal (‘masculina’) ou interpessoal (‘feminina’). Os participantes recebiam uma lista, com traços conotados com os estereótipos sexuais masculino ou feminino e com traços sem conotação sexual (elaborada com base num estudo anterior), a partir da qual deveriam estabelecer os seus juízos sobre os actores e sobre as suas decisões. Os resultados demonstram que os conteúdos do estereótipo feminino servem para caracterizar os actores do sexo feminino, assim como caracterizam os comportamentos femininos (neste caso, a decisão interpessoal), enquanto os traços do estereótipo masculino não caracterizam os actores do sexo masculino, nem nenhum tipo de comportamento em particular, mas servem para caracterizar os actores do sexo feminino quando o seu comportamento não corresponde às orientações normativas definidas pelo estereótipo feminino (neste caso, quando o actor-estímulo mulher toma uma decisão formal). Assim, “é pela ausência de uma função ou contexto específico na definição do masculino que o comportamento dos membros deste grupo revela uma aparente independência de imposições normativas e se apresenta individualmente diferenciado, imprimindo ele próprio um significado aos contextos, mas também inserido numa ideologia colectiva que os indivíduos, homens ou mulheres, não 'criaram', antes reproduzem ou 'recriam' nos processos sociocognitivos que orientam a sua percepção da realidade” (Amâncio, 1993/2000, pp.305-306).
  • 183. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 183 O efeito desta ideologia é também visível na procura da causalidade dos comportamentos. Deaux e Emswiller (1974; citados por Deschamps, 1982a), num estudo sobre o sucesso e o insucesso, mostraram que o sucesso era atribuído aos homens pela sua competência e às mulheres devido à sorte. Pediu-se aos participantes, estudantes de ambos os sexos, para avaliar a performance de uma pessoa-estímulo, homem ou mulher, nas mesmas tarefas, uma das quais era ‘masculina’ e outra ‘feminina’ (os autores certificaram-se previamente que estas tarefas eram consensualmente percebidas como ‘masculina’ e ‘feminina’). A performance das pessoas-estímulo, homem ou mulher, era percebida pelos participantes como sendo de nível similar. Verificou-se, tal como previsto, que a performance da pessoa-estímulo homem era atribuída a causalidade interna (competência) quando a tarefa era masculina, e que, na mesma tarefa, uma performance idêntica de pessoa estímulo-mulher era atribuída à causalidade externa (sorte), não havendo diferenças significativas entre as atribuições dos participantes de ambos os sexos. Em contraste, o padrão inverso não aparece para a tarefa ‘feminina’ na qual a pessoa-estímulo homem é percebida como tão competente como a pessoa-estímulo mulher, não havendo novamente diferenças entre as atribuições de ambos os sexos. Assim, estes dados demonstram que a posição dos grupos no sistema social desempenha um papel nas atribuições de causalidade, e assim, na percepção dos seres humanos como participantes ou como objectos (Deschamps, 1982a). Esta e outras experiências demonstraram que a procura de causalidade dos comportamentos é orientada por uma norma de internalidade para os membros do grupo dominante, enquanto que relativamente aos membros do grupo dominado a procura de causalidade visa provar o seu conformismo a normas sociais e contextuais (Amâncio, 1992). Os efeitos desta ideologia manifestam-se, ainda, na construção da imagem de si próprios, aparentemente ‘liberta’ dos estereótipos para o grupo dominante e muito dependente destes para o grupo dominado, como mostrou uma experiência de Amâncio (1988, 1989). Nesta experiência pedia-se aos participantes, estudantes-trabalhadores de ambos os sexos, para participarem num exercício de comunicação. As instruções contidas no texto, que apresentava aos participantes a tarefa a desempenhar, manipulavam a variável ‘dimensão de comparação’, salientando ora características masculinas para o bom desempenho da tarefa - condição dimensão de comparação
  • 184. Racismo e Etnicidade em Portugal 184 masculina -, ora características femininas - condição dimensão de comparação feminina -, ou não salientando quaisquer características - condição sem dimensão. Depois de explicado o exercício aos participantes era-lhes pedido para efectuarem uma estimativa do que iria ser o seu desempenho através da atribuição dos pontos das matrizes a si próprios e a um outro do mesmo sexo, e a si próprios e a um outro do sexo oposto, que eram designados por números seguidos da categorização ‘grupo dos homens’ ou ‘grupo das mulheres’ (procedimento inspirado no paradigma ‘grupos mínimos’). Introduziu-se ainda uma outra variável independente que consistiu em manipular o tipo de interacção. Num dos casos, os participantes respondiam isoladamente - condição individual - e, no outro, respondiam na presença de outra pessoa do mesmo sexo e duas pessoas do sexo oposto - condição face-a-face (que visava salientar a categorização sexual). Os resultados desta experiência evidenciaram complexos padrões de diferenciação intra e intergrupal. A co-ocorrência da diferenciação interindividual e intergrupal verificou-se nos resultados dos homens, independentemente das dimensões salientes. No caso das mulheres a diferenciação intergrupal verificou-se sobretudo na dimensão masculina, enquanto a diferenciação interindividual se verificou sobretudo na ausência de dimensões de comparação categorialmente relevantes. Isto demonstra que: “para o grupo dominado, a diferenciação está sujeita à dupla pressão da referência da representação dominante de pessoa e da representação do seu modo de ser específico, fusional e indiferenciado” (Amâncio, 1993/2000, p.306). Como a autora salienta: “[...] the members of a dominat group can ‘manage’ social stereotypes, in a way that is always relevant to the maintenance of a positive individual distinctiveness. Members of a dominated group, on the other hand, once they have integrated the social devaluation of their categorial characteristics in their social identity, are more likely to strive for intergroup and interindividual differentiation either on the outgroup’s dimensions or on ‘asocial’ or ‘imaginative’ dimensions” (Amâncio, 1989b, p.8). Na opinião de Amâncio (1993/2000), a evidência empírica da assimetria simbólica nos modelos de ser masculino e feminino, socialmente consensuais, permite
  • 185. Capítulo 2 - Relações intergrupais, identidade social e diferenciação simbólica 185 concluir que existem, pelo menos, três níveis de expressão da posição social dominante de um grupo, no plano simbólico: “Ao nível da ideologia, a identidade deste grupo corresponde a um modelo de pessoa universal, que constitui um referente tanto para os membros do seu grupo como para os membros do grupo dominado. Por outro lado, este mesmo modelo de pessoa participa para uma representação de si dos membros do grupo dominante, em que a individualidade não é incompatível com uma pertença categorial e se exprime com uma aparente 'naturalidade', ao contrário do que acontece na representação de si dos membros do grupo dominado, cuja irregularidade de comportamento revela as contradições a que estão sujeitos. O grupo dominante é, além disso, aquele que pode manipular os conteúdos simbólicos, conferindo-lhes um significado universal quando eles servem para salientar a sua distintividade, ou um significado categorial quando servem para salientar as diferenças entre os grupos, ao contrário do grupo dominado, para quem os conteúdos simbólicos assumem uma função claramente normativa, que evidencia a externalidade da sua condição social” (p.306). Ou seja, a identidade dos grupos dominados apresenta-se sob a forma de modos de estar nos contextos particulares, enquanto que a identidade dos grupos dominantes corresponde a um modo de ser, aparentemente independente dos contextos (Amâncio, 1993b, p.219). Como vimos no capítulo anterior, no caso da ideologia racista, a diferenciação entre o grupo dominante e o grupo dominado caracteriza-se fundamentalmente pela associação de significados universais e socialmente referentes ao primeiro, e significados particulares e específicos ao segundo (Guillaumin, 1972, Amâncio, 1998). Chombart de Lauwe (1983-1984) chamou a atenção para a analogia nas dimensões das representações de diferentes grupos sociais ocupando posições assimétricas na estrutura social: os grupos dominados (as mulheres, os ‘selvagens’ e as crianças) partilham as dimensões da dependência, da irresponsabilidade e da irracionalidade, enquanto que os grupos dominantes (os homens, os ‘brancos’, os adultos) são dotados de inteligência, de autonomia e de responsabilidade. Existe assim um paralelismo entre a ideologia sexista e a racista, já que ambas estão profundamente ancoradas na história das relações entre os grupos. Neste sentido, o modelo desenvolvido para a análise do conteúdo dos estereótipos sexuais poderá ser aplicado à análise dos estereótipos raciais e à percepção da variabilidade grupal, como veremos no próximo capítulo.
  • 187. CAPÍTULO 3 - PROCESSOS COGNITIVOS, ESTEREÓTIPOS SOCIAIS E PERCEPÇÃO DA VARIABILIDADE GRUPAL
  • 188. Racismo e Etnicidade em Portugal 188 3.1 Introdução No capítulo anterior apresentámos diversos modelos teóricos sobre as relações intergrupais, tendo salientado a necessidade de articulação de níveis de análise para uma compreensão dos fenómenos de discriminação social. Neste capítulo vamos debruçar- nos sobre a área da ‘cognição social’, isto é, sobre os modelos que se centram na forma como as pessoas processam a informação social, mais precisamente a informação sobre grupos sociais. Mais uma vez, tratando-se de uma área de estudos vastíssima, optámos por nos focalizar nos aspectos que consideramos mais relevantes para a fundamentação teórica e metodológica da nossa investigação. Os primeiros estudos sobre discriminação social no âmbito da psicologia social, eram baseados no modelo clássico das atitudes. Neste sentido, analisaram a sua componente cognitiva (estereótipos), a componente avaliativa ou afectiva (preconceito), considerando que estas duas componentes seriam indicadoras da predisposição para os comportamentos hostis em relação ás minorias. Rapidamente se constatou que não existia uma relação linear entre estas três componentes, o que levou a profundas reformulações nos modelos das atitudes, aspecto que não vamos desenvolver no âmbito deste trabalho. Neste capítulo focalizamo-nos nos aspectos cognitivos, mais precisamente na forma como as pessoas processam a informação sobre os grupos sociais, nos estereótipos e na percepção da variabilidade grupal. Os estereótipos são geralmente definidos como estruturas cognitivas que contêm os nossos conhecimentos e expectativas acerca de grupos humanos e dos seus membros, estruturas essas que determinam os nossos julgamentos e avaliações acerca desses grupos (Hamilton e Trolier, 1986). No entanto, na sua análise das funções cognitivas e sociais dos estereótipos, Tajfel (1969, 1972, 1978ab) salientou a necessidade de substituir o conceito de estereótipo pelo de estereótipo social, entendido como uma definição colectiva de um dado grupo social, amplamente partilhada dentro e fora desse grupo, isto é, difundinda num dado contexto cultural. Como foi referido no capítulo anterior, a ampla difusão de estereótipos sociais sobre determinados grupos sociais repercute-se na construção do auto-conceito dos membros desses grupos e na difusão de uma noção de posição relativa face a outros grupos relevantes. Nesta perspectiva, os estereótipos sociais são representações subjectivas e socialmente partilhadas, sobre as
  • 189. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 189 características e os comportamentos de determinados grupos humanos, estratificados segundo critérios socialmente valorizados, e traduzindo uma determinada ordem nas relações intergrupais (Tajfel, 1981/1983, 1982b). Neste sentido, existe uma coincidência conceptual entre estereótipos sociais e representações sociais, ao nível dos conteúdos socialmente partilhados sobre grupos sociais. No entanto, o conceito de representação social é mais amplo do que o de estereótipo social, uma vez que o primeiro abrange todo o tipo de representações independentemente do seu objecto, desde que estas sejam partilhadas no seio de determinado grupo social, enquanto que o segundo, se restringe às representações sobre grupos humanos. As primeiras pesquisas empíricas sobre estereótipos focalizaram-se no seu conteúdo, sendo estes conceptualizados em termos de traços prototípicos de um dado grupo social (e.g., Katz e Braly, 1933; Gilbert, 1951). Nesta perspectiva, o estudo dos estereótipos centrava-se essencialmente na tendência central percebida do grupo em vários traços. Posteriormente, com o desenvolvimento da psicologia cognitiva, os investigadores começaram a debruçar-se sobre os processos em detrimento dos conteúdos (e.g., Hamilton, 1979; Snyder, 1981). A pesquisa sobre os processos de formação, manutenção e mudança dos estereótipos e as suas implicações nas interacções sociais, tornou notória a necessidade de ter em conta não só a tendência central percebida de um grupo, mas também a variabilidade grupal percebida, isto é, o grau em que os indivíduos julgam o grupo como relativamente heterogéneo ou homogéneo. Os primeiros estudos sobre a percepção da variabilidade grupal realizados no quadro da cognição social demonstraram a existência de um enviesamento que veio a ser designado efeito de homogeneidade do exogrupo. Este efeito tem sido conceptualizado como a tendência para perceber o grupo dos outros como mais homogéneo do que o grupo de pertença, o que é representado pela expressão "they all look alike but we don´t" (Quattrone e Jones, 1980, p. 142). A maior parte da pesquisa sobre a variabilidade grupal percebida, conduzida no quadro de referência da cognição social (e.g., Linville, Salovey e Fischer, 1986; Linville, Fischer e Salovey, 1989; Linville e Fischer, 1993; Judd e Park, 1988; Park e Judd, 1990; Kraus, Ryan, Judd, Hastie e Park, 1993; Ostrom, Carpenter, Sedikides e Li, 1993; Kashima e Kashima, 1993), tem demonstrado repetidamente este efeito. Estes estudos tem-se focalizado preferencialmente nos níveis de análise (Doise, 1982, 1984) intra-individual (os processos cognitivos) e situacional (a consideração das posições relativas
  • 190. Racismo e Etnicidade em Portugal 190 observador/observado em termos de endogrupo/exogrupo, mas em que as pertenças grupais são consideradas como intermutáveis). Contudo, no início dos anos noventa alguns autores (e.g., Lorenzi-Cioldi e Doise, 1990) enfatizaram a pertinência dos níveis de análise posicional e ideológico para uma melhor compreensão dos complexos padrões de homogeneidade e diferenciação observados. Os estudos em que o contexto e a natureza das relações intergrupais foram tidos em conta (e.g., Dafflon, 1997; Lorenzi-Cioldi, 1993; Lorenzi-Cioldi, Deaux e Dafflon, 1998; Lorenzi-Cioldi, Eagly e Stewart, 1995) questionaram a simetria e universalidade do efeito de homogeneidade do endogrupo, demonstrando que este é observável nos membros dos grupos dominantes mas não nos membros dos grupos dominados. Nestes últimos, observou-se uma tendência contrária: o efeito de homogeneidade do endogrupo. Assim, a consideração do nível de análise ideológico veio lançar um novo olhar sobre os processos cognitivos considerados básicos, levando a uma especificação das condições em que são observáveis determinados enviesamentos. Uma vez que a maior parte da pesquisa sobre a percepção de grupos, nomeadamente sobre a variabilidade grupal tem sido realizada no quadro da cognição social, dedicamos a primeira secção deste capítulo a uma apresentação concisa desta área de estudo. Nesta apresentação faremos uma breve referência a alguns dos debates teóricos sobre a percepção de pessoas e grupos, o que nos conduzirá a uma curta explicitação das semelhanças e das diferenças entre a perspectiva da cognição social e a das representações sociais. A segunda secção é dedicada ao estudo dos estereótipos sociais. Dedicamos especial atenção à obra pioneira de Walter Lippmann, à sua conceptualização dos estereótipos e às questões de pesquisa que levantou. Segue-se uma breve apresentação, por ordem cronológica, de alguns dos estudos empíricos que marcaram esta área de estudos. Ao longo da apresentação faremos referência ao conteúdo dos estereótipos, à conotação avaliativa desse conteúdo, e ao seu significado tendo como referência um quadro de valores ‘universal’. Teremos também em conta o nível de consenso dos estereótipos, a sua uniformidade ou variabilidade. Na terceira secção apresentamos alguns estudos sobre os efeitos da categorização e sobre a percepção da variabilidade grupal. Começamos por referir alguns estudos sobre os efeitos de acentuação e de contraste associados à categorização simples e à
  • 191. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 191 categorização cruzada, e de que forma estes efeitos são influenciados pelo contexto. Seguidamente apresentamos alguns dos estudos sobre o efeito de homogeneidade do exogrupo efectuados no quadro da cognição social e fazemos referência aos modelos cognitivos explicativos deste fenómeno. Finalmente, discutimos a insuficiência dos modelos cognitivos e salientamos o carácter assimétrico dos enviesamentos observados na percepção dos grupos em função do seu estatuto relativo, apresentando brevemente alguns dos primeiros estudos que questionaram o carácter simétrico e universal do efeito de homogeneidade do exogrupo. Na última secção, procedemos uma apresentação das metodologias que têm sido utilizadas no estudo da percepção da variabilidade grupal e discutimos a necessidade da utilização de diferentes tipos de medidas no sentido de esclarecer algumas das inconsistências que têm sido observadas nesta área de estudos.
  • 192. Racismo e Etnicidade em Portugal 192 3.2 Processos cognitivos e realidade social “For the real environment is altogether too big, too complex, and too fleeting for direct acquaintance. We are not equipped to deal with so much subtlety, so much variety, so many permutations and combinations. And although we have to act in that environment, we have to reconstruct it on a simpler model before we can manage with it. To traverse the world men must have maps of the world”. Walter Lippmann, 1922 Em 1922, o jornalista e analista político Walter Lippmann publica Public Opinion, uma obra sobre como as pessoas constroem as suas representações da realidade social e de que forma essas representações são afectadas tanto por factores internos como externos ao indivíduo. Essas representações funcionam como ‘mapas’ guiando o indivíduo e ajudando-o a lidar com informação complexa, mas também são ‘defesas’ que permitem ao indivíduo proteger os seus valores, os seus interesses, as suas ideologias, em suma, a sua posição numa rede de relações sociais. As representações não são o espelho da realidade, mas sim versões hipersimplificadas desta realidade. As representações nunca são neutras, pois dependem mais do observador do que do objecto, já que este define primeiro e vê depois. Lippman debruça-se sobre a forma como a cultura nos fornece os elementos para ‘recortar’ a realidade em elementos significativos, conferindo-lhe nitidez, distintividade, consistência e estabilidade de significado. O autor reflecte sobre as limitações humanas no processamento da informação, e sobre a forma como os preconceitos introduzem enviesamentos na selecção, interpretação, memorização, recuperação e uso da informação. Neste sentido, podemos considerar que esta obra de Lippmann constitui um primeiro esboço de uma área de estudos, hoje dominante no seio da psicologia social americana: a cognição social. Embora a expressão ‘cognição social’ tenha sida introduzida na psicologia social por Bruner e Tagiuri (1954) num artigo sobre a percepção de pessoas, esta expressão não captou na altura a atenção dos investigadores, que a consideraram demasiado vaga e imprecisa (Leyens, Yzertyt e Schadron, 1994, p.15). Esta designação só viria a tornar-se corrente nos anos oitenta, quando a perspectiva da cognição social se tornou dominante no seio da disciplina (Santos, 1993/2000; Jesuíno, 1993/2000).
  • 193. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 193 No seio da psicologia social, a década de sessenta foi marcada pela crítica ao modelo S-O-R - que concebe o estímulo (S) e a resposta (R) como tendo uma existência exterior ao organismo (O) - e pela emergência do modelo O-S-O-R (Markus e Zajonc, 1985, p.138). Dois marcos assinalam a emergência deste modelo: a obra de Jones e Davis sobre atribuição causal (1965), que é geralmente apontada como a percursora do paradigma da cognição social; e a obra de Moscovici (1961) sobre as representações sociais, que assinala o início do paradigma da sociedade pensante. Este novo modelo vem salientar a construção activa do ambiente por parte do indivíduo e atribuir uma posição de primazia às representações (esquemas, teorias implícitas, representações sociais) - estas são factores constituintes do estímulo e modeladores da resposta, dominando todo o processo. Como salienta Moscovici, no modelo O-S-O-R “the subject (...) is expected to define the S and the R by his constructive activity” (Moscovici, 1988, p.226). Na concepção do autor "[il n'y a] pas de coupure entre l'univers extérieur et l'univers intérieur de l'individu (ou du groupe)" (Moscovici, 1969, p.9). Moscovici propõe a expressão sociedade pensante para situar o estudo das representações sociais: "When we study social representations, what we are studying are human beings asking questions and looking for answers, human beings who think, not just handle information or act in a certain way” (Moscovici, 1981, p.182). Na opinião do autor, o paradigma da sociedade pensante questiona as teorias que consideram que "our brains are little black boxes enclosed in a gigantic black box, which merely takes in information, words and thoughts and processes them into movements, attributions and judgments, all on the strength of external conditioning" (Moscovici, 1981, p.183).
  • 194. Racismo e Etnicidade em Portugal 194 Questiona, simultaneamente, as teorias para as quais, "groups and individuals are always and completely under the way of a dominant ideology which is produced and imposed by a social class, the State, the Church or school, and that their thoughts and words reflect this ideology. In other words, on their own, they do not do any thinking and they create nothing new: they reproduce and are reproduced" (p.183) . Em contrapartida, o paradigma da sociedade pensante assume que "individuals and groups are anything but passive receptors, and that they think autonomously, constantly producing and commu nicating representations. For them, facts, the sciences and ideologies are nothing more than 'food for thought' " (p.183). No início dos anos oitenta Moscovici referia-se à "era of representation" (1984, p.12) para veicular, por um lado, a importância das representações sociais nas sociedades de hoje, e por outro, a importância do conceito de representação social no quadro das novas orientações da psicologia social. No mesmo ano, Ostrom (1984), considerado um dos pais fundadores da cognição social (Leyens, Yzerbyt e Schadrom, 1994, p.74), publicava um ensaio intitulado ‘The Sovereignty of Social Cognition’. Leyens, Yzerbyt e Schadrom (1994, p.74) referem que “in the late 1970s, the social cognition wave flooded over social psychology”. Embora partilhando algumas características com a perspectiva das representações sociais, a perspectiva da cognição social assumiu-se com a ambição de abranger todo o domínio da psicologia social (Devine, Hamilton e Ostrom, 1944; Hogg e Abrams, 1988). Como referem Leyens, Yzerbyt e Schadrom “‘the social cognitivist’ dream was to revolutionize the field by bringing in important metatheoretical and methodological chances” (1994, p.74). Com o ‘movimento da cognição social’ a psicologia social sofreu uma grande transformação nos seus objectos de interesse e nos seus métodos de pesquisa (Bar-Tal e Kruglanski, 1988, p.1). Na opinião de Hamilton, a perspectiva da cognição social caracteriza-se pela consideração de “all factors influencing the acquisition, representation, and retrieval of person information, as well as the relationship of these processes to judgement made by the perceiver” (1981, p.136). Por seu turno, Fiske e Taylor definem a cognição social como “the study of how people make sense of other
  • 195. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 195 people and themselves. It focuses on how ordinary people think about people and how they think they think about people” (1991, p.1). Esta perspectiva foi fortemente influenciada pelas teorias e métodos da psicologia cognitiva (Bar-Tal e Krusglanski, 1988; Markus e Zajonc, 1985). Como resultado desta influência, a cognição social é marcada pela ‘information-processing metaphor’ (Bar- Tal e Kruglanski, 1988, p.2), introduzindo na psicologia social novos conceitos (tais como codificação, armazenamento e recuperação da informação social) e novas metodologias de pesquisa, mais ‘rigorosas’ e ‘sofisticadas’, com o objectivo de discriminar entre tais “fine cognitive microprocesses” (p.2). A cognição social procura analisar o processamento da informação social, isto é, debruça-se sobre os processos de aquisição, armazenamento e recuperação da informação. Sinteticamente, “a ‘codificação’ diz respeito aos processos através dos quais a informação é interpretada e organizada, o ‘armazenamento’ refere -se aos processos de retenção da informação já codificada e a ‘recuperação’ diz respeito aos processos que permitem a um participante encontrar a informação que um dia armazenou” (Caetano, 1993/2000, p.103). Embora, de certa forma, a psicologia social tenha sido cognitiva a partir dos anos quarenta (Beauvois e Deschamps, 1990; Fiske e Taylor, 1991), a perspectiva da cognição social redefiniu as principais questões em psicologia social (Bar-Tal e Kruglanski, 1988) e inspirou uma intensa actividade de pesquisa nas últimas décadas (e.g., Fiske e Taylor, 1991; Forgas, 1981a; Leyens e Codol, 1988; Markus e Zajonc, 1985; Showers e Cantor, 1985; Sherman, Judd e Park, 1989; Wyer e Srull, 1984; Bless, Fiedler, Strack, 2002; Forgas, 2000; Leyens, Yzerbyt e Schadron, 1994; Higgins, 2000). Na opinião de Beauvois e Deschamps (1990), o paradigma da cognição social não é mais do que uma das formas recentes, repousando numa nova linguagem, de abordar um problema já antigo na psicologia social: “la construction, par les individus, de ce qu' ils tiennent pour leur réalité sociale” (p.4). Entendida neste sentido geral, “la cognition sociale est le processus par lequel un individu construit et entretient une connaissance de cette réalité et, ce faisant, la produit ou la reproduit socialement” (p.4).
  • 196. Racismo e Etnicidade em Portugal 196 A apreensão teórica deste processo de construção da realidade tem suscitado, desde longa data, algumas questões e alimentado alguns debates. Um primeiro debate opõe as teorias para as quais o conhecimento é determinado pelos conjuntos, às teorias para as quais o conhecimento é determinado pelos elementos ou componentes. Para as primeiras, largamente inspiradas pela tradição da Gestalt, o conhecimento vai do todo para as partes (e.g., Asch, 1946), para as segundas, vai das partes para o todo (e.g., Anderson, 1974). Um segundo debate opõe as teorias que atribuem um maior peso à informação ‘bruta’ (os dados) no processo de conhecimento (e.g., Anderson, 1974) às teorias que atribuem um maior peso às concepções a priori do indivíduo quando confrontado com essa informação (e.g., Bruner e Tagiuri, 1954/1979; Leyens, 1983/1985). Isto é, para as primeiras, o processamento da informação é ‘guiado pelas teorias’ (theory-driven ou top-down), para as segundas, o processamento é ‘guiado pelos dados’ (data-driven ou bottom-up) (Caetano, 1993/2000, p.106). Um terceiro debate refere-se à natureza distintiva da cognição social. Enquanto alguns psicólogos sociais não vêem diferenças substanciais entre cognição e cognição social (e.g., Simon, 1976), outros diferenciam claramente entre as duas (e.g., Beauvois e Deschamps, 1990; Forgas, 1981b; Zajonc, 1980; Schwartz, 2000). Por exemplo, Simon (1976) considera que os processos pelos quais o ‘cérebro humano’ manipula os objectos sociais não são diferentes daqueles pelos quais manipula os outros objectos. No entanto, a partir dos anos oitenta, diversos autores recusaram esta perspectiva, argumentando que a cognição social é muito mais representativa dos processos cognitivos do que os casos particulares analisados pelos psicólogos da ‘cold cognition’, despidos de todo o peso afectivo e dos pré-saberes sociais, e desprendidos de qualquer investimento pessoal e interacção com o objecto (e.g., Zajonc, 1980; Marques e Paéz, 2000). Como referem Bar-Tal e Kruglanski, o facto dos seres humanos serem, simultaneamente, ‘objects of cognition and cognizing subjects’ (1988, p.2) torna a cognição social qualitativamente distinta da percepção dos objectos não sociais. Como já referimos, a partir da década de oitenta, a perspectiva cognitiva tornou-se claramente dominante entre os psicólogos sociais, pelo que a ‘psicologia social’ tornou- se quase um sinónimo de ‘psicologia social cognitiva’ (Markus e Zajonc, 1985, p.137). No entanto, esta perspectiva não está isenta de críticas. Por exemplo, Bar-Tal e Kruglanski (1988) consideram que a perspectiva cognitiva se tornou tão radical quanto
  • 197. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 197 o behaviorismo, citanto a esse propósito a afrimação de Neisser: “every psychological phenomenon is a cognitive phenomenon’ (1967, p.4; citado por Bar-Tal e Kruglanski, 1988). O foco quase exclusivo nos processos intraindividuais e a pesada influência das teorias e métodos da psicologia cognitiva estão na origem da maior parte das críticas à perspectiva da cognição social. Alguns autores objectam a dominância da abordagem do processamento da informação (e.g., McGuire, 1983; citado por Bar-Tal e Kruglanski, 1988), outros salientam as limitações que advêm da negligência da motivação e do afecto (e.g., Zajonc, 1980), assim como do contexto social (e.g., Amâncio, 1994; Forgas, 1981b; Lorenzi-Cioldi, 1998). Embora na década de noventa se tenha operado uma profunda mudança nesta área, com a revalorização das emoções, da motivação e do contexto (Fiske, 2000; Schwarz, 2000), a forma como este último tem sido operacionalizado, na maior parte das vezes, não tem tido em conta variáveis de ordem estrutural (Lorenzi-Cioldi, 1998). Na opinião de Fiske e Taylor podem-se identificar, no âmbito da psicologia social, quatro visões gerais do indivíduo enquanto processador da informação social: ‘consistency seeker’, ‘naive scientist’, ‘cognitive miser’ e ‘motived tactician’ (1991, p.10). O primeiro modelo emergiu dos trabalhos sobre mudança de atitudes após a II Guerra Mundial. As teorias do equilíbrio ou da consistência conceptualizam o indivíduo enquanto ‘buscador de consistência’ motivado pelas discrepâncias percebidas nas suas cognições (e.g., Heider, 1958; Festinger, 1957). Nestas teorias o ênfase é colocado nas discrepâncias percebidas, o que remete a actividade cognitiva para um papel central. O segundo modelo conceptualiza o indivíduo enquanto ‘cientista ingénuo’. As teorias da atribuição debruçam-se sobre a forma como o indivíduo explica o seu próprio comportamento e o dos outros. As primeiras formulações destas teorias (e.g., Kelley, 1967) avançaram com a hipótese de que o indivíduo, assemelhando-se a um cientista, tendo tempo suficiente, consideraria todos os dados relevantes e chegaria à conclusão mais lógica. Os erros no tratamento da informação resultariam, principalmente, da interferência de motivações não racionais, ou de uma simples falha na informação disponível. O terceiro modelo conceptualiza o indivíduo enquanto ‘avarento cognitivo’. O ponto fulcral deste modelo é que os indivíduos são conceptualizados enquanto processadores de informação de capacidade limitada, podendo lidar, num dado
  • 198. Racismo e Etnicidade em Portugal 198 momento, unicamente com uma pequena quantidade de informação. Assim, os indivíduos adoptam estratégias para simplificar problemas complexos. Estas estratégias podem não produzir respostas normativamente correctas, mas aumentam a eficiência: “the capacity-limited thinker searches for rapid adequate solutions, rather than slow accurate solutions” (Fiske e Taylor, 1991, p.13). Consequentemente, os erros e enviesamentos no tratamento da informação são considerados como fruto de características inerentes ao próprio sistema cognitivo e não devidos à interferência de motivações. Neste modelo, tal como no anterior, a cognição desempenha um papel central, sendo negligenciado o papel da motivação, das emoções e do contexto envolvente. No entanto, a ampla pesquisa desenvolvida no âmbito do terceiro modelo tornou clara a importância da motivação, da emoção e do contexto. Tendo desenvolvido sofisticados modelos sobre os processos cognitivos, os investigadores começaram a considerar de novo as importantes influências da motivação na cognição (e.g., Showers e Cantor, 1985). Assim, no início dos anos noventa emerge um novo modelo, no qual o indivíduo é conceptualizado enquanto ‘tactico-motivado’: ''a fully engaged thinker who has multiple cognitive strategies available and chooses among them based on goals, motives, and needs: sometimes the motived tactician chooses wisely, in the interests of adaptability and accuracy, and sometimes the motived tactician chooses defensively, in the interests of speed or self-esteem’ (Fiske e Taylor, 1991, p.13). Como Fiske (1992, p.877) refere: “After a hiatus, during which social cognition research neglected its proper attunement to social behavior, researchers again are emphasizing that thinking is for doing, that social understanding operates in the service of social interaction”. Este modelo tornou-se dominante nos anos noventa. Em vez de um indivíduo ‘limitado’ a cometer ‘erros’ no processamento da informação, na percepção das pessoas e no julgamento dos outros, surge um indivíduo ‘estratégico’ capaz de controlar os seus julgamentos (Leyens, Yzerbyt e Schandrom, 1994). Estes julgamentos já não são ‘enviesados’ mas sim ‘verdades subjectivas’ com funções políticas claras (Oakes,
  • 199. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 199 Haslam e Turner, 1994). O indivíduo, já não é ‘ingénuo’ mas ‘táctico’, adequando os seus julgamentos às normas sociais vigentes (Snyder, 1995). A consideração do carácter ‘estratégico’ dos julgamentos emitidos pelos indivíduos veio introduzir a necessidade de considerar simultaneamente os processos automáticos e os processos controlados no processamento da informação social. Os processos automáticos ocorrem sem intervenção consistente ou intencional requerendo pouco esforço cognitivo por parte do indivíduo, enquanto que os processos controlados requerem a intervenção consciente e intencional, e um esforço específico da parte do indivíduo (Caetano, 1993/2000). Assim, os julgamentos e avaliações dos indivíduos seriam extremamente flexíveis e adaptativos, variando em função da natureza do julgamento a realizar, do tipo de informação a tratar e da motivação para tratar essa informação (Oakes, Haslam, Turner, 1994; McGarty, Yzerbyt e Spears, 2002). Para distinguir entre as percepções e avaliações que decorrem de processos automáticos das que decorrem de processos controlados, tornou-se clara a necessidade de desenvolver diferentes tipos de medidas: medidas explícitas, em que o indivíduo facilmente se apercebe dos objectivos da pesquisa e pode controlar as suas respostas em função da desejabilidade social e medidas implícitas, não-reactivas às normas sociais, que permitiram ter acesso aos processos automáticos da percepção (e.g., Devine, 1989; Dovidio e Gaertner, 1991; Higgins, 1996). Schwartz (2000), num artigo sobre os desafios actuais da investigação sobre julgamento social, atitudes e processamento da informação, salienta: “That human are information processors is a truism that can hardly be called into question. Moreover, the adoption of the information processing paradigm has stimulated tremendous progress in social judgment research. But more than a quarter century after its option, at a time when the information-processing perspective has become the dominant theoretical framework of our field, it behooves us well to consider the risk of blind spots. If the reviewed research is any indication, our understanding of human judgment, and the explanatory power of an information- processing perspective, will only benefit from a closer consideration of the interplay of affect, motivation, and cognition, an exploration of the poorly understood interplay of explicit and implicit processes, and a serious acknowledgement of the pragmatic and socially, as well as culturally, contextualized nature of human cognition” (Schwartz, 2000, p. 168).
  • 200. Racismo e Etnicidade em Portugal 200 Nos anos noventa, a tomada de consciência das insuficiências de uma abordagem meramente cognitiva e contextual levou os investigadores da cognição social a terem em consideração variáveis de ordem ideológica (Fiske, 2000). Há pelo menos duas décadas que diversos investigadores recomendam uma articulação entre o paradigma da cognição social e as representações sociais, considerando que esta articulação poderá ser benéfica para ambas (e.g., Codol, 1984; Jahoda, 1988; Vala, 1986). Por exemplo, Vala (1986) ilustra como ao accionar o conceito de representações sociais se consegue um olhar novo sobre os problemas formulados e analisados no quadro da cognição social. Por outro lado, Jahoda (1988) salienta a vantagem da pesquisa em representações sociais adoptar metodologias mais rigorosas desenvolvidas no quadro da cognição social. No entanto, esta articulação, a nível teórico ou metodológico, não deve ser confundida com uma submissão da teoria das representações sociais aos modelos da cognição social, aspecto sobre o qual Moscovici tem as maiores reservas: "Any reduction to cognitive patterns and constructs, by eliminating the extraordinary richness of collective thought, its rootedness in a well-defined setting, and by flattening all social relations into interactions between two individuals, converts an important problem into a mere academic exercise" (1981, p.208).
  • 201. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 201 3.3 Processos cognitivos, cultura e estereótipos sociais “For most part we do not first see, and then define, we define first and then see. In the great blooming, buzzing confusion of the outer world we pick out what our culture has already defined for us, and we tend to perceive that which we have picked out in the form stereotyped for us by our culture.” Walter Lippmann, 1922 Lippmann (1992/1961) é considerado o fundador da conceptualização contemporânea dos estereótipos e do estudo das suas funções psicossociais (e.g., Amâncio, 1989a; Ashmore e DelBoca, 1981; Marques e Paéz, 2000; Oakes, Haslam e Turner, 1994; Wetherell, 1996). O termo ‘estereótipo’ já existia desde 1798, mas o seu uso corrente estava reservado à tipografia, onde o termo designa uma chapa de metal utilizada para produzir cópias repetidas do mesmo texto (Stroebe e Insko, 1989). O termo também já era usado de forma esporádica nas ciências sociais para designar algo ‘fixo’ e ‘rígido’ (e.g., Sumner, 1906/1940; Simmel, 1908/1984), o que se prende com a origem etimológica da palavra: stereo que em grego significa ‘sólido’, ‘firme’. Por analogia, Lippman salientou a ‘rigidez’ das imagens mentais, especialmente aquelas que dizem respeito a grupos sociais com os quais temos pouco ou nenhum contacto directo. A visão dos estereótipos como algo rígido caracterizou muitos dos estudos posteriores sobre os estereótipos (e.g., Kerr, 1943; Mace, 1943; Zawadzki, 1942), no entanto, na sua análise Lippmann (1922/1961) não descurou a possibilidade de mudança dos estereótipos e salientou o carácter criativo da mente humana. Lippmann conceptualizou os estereótipos como resultantes de um processo ‘normal’ e ‘inevitável’, inerente à forma como processamos a informação, mas a maior parte dos estudos empíricos realizados sobre estereótipos até aos anos cinquenta caracterizaram os estereótipos como uma forma inferior de pensamento e situaram-os no domínio do ‘patológico’: estes seriam projecções de fantasias indesejáveis, deslocamentos de tendências agressivas para os membros de outros grupos, ou subprodutos de certas síndromes de personalidade associadas ao autoritarismo e intolerância (Adorno, Frenkel-Brunswick, Levison e Sanford, 1950; Rockeach, 1948). Assim, as ideias inovadoras de Lippmann foram negligenciadas pela grande maioria das investigações que foram efectuadas nas três décadas seguintes sobre
  • 202. Racismo e Etnicidade em Portugal 202 estereótipos, só sendo recuperadas e amplamente desenvolvidas a partir dos trabalhos de Bruner, Allport e Tajfel, que já referimos no capítulo anterior. Lippmann (1922/1961) define os estereótipos como imagens mentais que se interpõem, sob a forma de enviesamento, entre o indivíduo e a realidade. Segundo o autor, os estereótipos formavam-se a partir do sistema de valores do indivíduo, tendo como função a organização e estruturação da realidade, de outra forma demasiado complexa para ser assimilada. Interrogando-se sobre os factores que contribuiram para o que “the pictures inside so often misleads men in their dealing with the world outside” (p.30), Lippman aponta limitações externas - “the artificial censorships, the limitation of social contact” (p.30) - e limitações internas: “this trickle of messages from the outside is affected by the stored up images, the preconception, and the prejudices which interpret, fill them out, and in their turn powerfully direct the play of our attention, and our vision itself” (Lippmann, 1922/1961, p.16). Lippmann salienta o papel do indivíduo na construção dos estereótipos que são sempre ‘selectivos’ e ‘parciais’ (1922/1961, p.80). Na sua análise encontramos os elementos sobre as funções psicosociais dos estereótipos, que viriam a ser desenvolvidas e estudadas sistematicamente algumas décadas depois por Allport (1954/1979), que liga explicitamente os estereótipos ao processo de categorização, e por Talfel (1969) que pela primeira vez explicita as suas funções cognitivas e sociais, integrando-as num modelo explicativo das relações intergrupais. Relativamente às funções cognitivas Lippmann (1922/1961) salienta “the economy of effort” (p.95), a necessidade de “definiteness and distinction and (…) consistency or stability of meaning” (p.80; itálico no original). Relativamente às funções sociais, Lippmann enfatisa o papel dos estereótipos na ‘defesa’ dos interesses do indivíduo: “The systems of stereotypes may be the core of our personal tradition, the defenses of our position in society. (…) In that world people and things have their well- known places, and do certain expected things. We feel at home there. We fit in. We are members” (Lippmann, 1922/1961, p.96).
  • 203. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 203 Um dos motivos que explicariam o carácter ‘fixo’ dos estereótipos seria precisamente a necessidade do indivíduo proteger a sua definição da realidade: “any disturbance of the stereotypes seems like an attack upon the foundations of the universe. It is an attack upon the foundations of our universe, and, where big things are at stake, we do not readily admit that there is any distinction between our universe and the universe” (Lippmann, 1922/1961, p.96). Neste sentido: “A pattern of stereotypes is not neutral. (…) It is the guarantee of our self-respect; it is the projection upon the world of our own sense of our own value, our own position and our own rights. The stereotypes are, therefore, highly charged with the feelings that are attached to them. They are the fortress of our tradition, and behind its defense we can continue to feel ourselves safe in the position we occupy” (Lippmann, 1922/1961, p.96). É precisamente pelo seu papel na manutenção do sistema de valores do indivíduo e do statu quo, que os estereótipos dificilmente são abalados por informação incongruente com os mesmos. “There is nothing so obdurate to education or to criticism as the stereotype. It stamps itself upon the evidence in the very act of securing the evidence. (…) If what we are looking at corresponds successfully with what we anticipated, the stereotypes is reinforced for the future” (pp.98-99). (...) For when a system of stereotypes is well fixed, our attention is called to those facts which support it, and diverted from those which contradict” (Lippmann, 1922/1961, p.119). Neste sentido, Lippmann faz referência ao que posteriormente se veio da designar por ‘profecias auto-confirmatorias’ (Merton, 1949/1968), amplamente demonstradas pelos estudos posteriores na cognição social (e.g., Hamilton, 1979). Quando um membro de determinado grupo age de forma contraditória ao estereótipo, Lippmann considera que, na maior parte das vezes, este membro passa a ser visto como uma excepção, mantendo o estereótipo intacto. Este só é abalado se o
  • 204. Racismo e Etnicidade em Portugal 204 indivíduo ainda tiver alguma flexibilidade de espírito ou se a informação incongruente for demasiado impressionante para ser ignorada; “If the experience contradicts the stereotype, one of two things happens. If the man is no longer plastic, or if some powerful interests makes it highly inconvenient to rearrange his stereotypes, he pooh-poohs the contradiction as an exception that proves the rule, discredits the witness, finds a flaw somewhere, and manages to forget it. But if he is still curious and open-minded, the novelty is taken into the picture, and allowed to modify it. Sometimes, if the incident is striking enough, and if he has felt a general discomfort with his established scheme, he may be shaken to such an extent as to distrust all accepted ways of looking at life” (Lippmann, 1922/1961, p.100). Estes aspectos viriam a ser posteriormente estudados por Allport (1954/1979) e amplamente demonstrados por estudos em cognição social. O autor salienta o carácter rígido dos estereótipos e o facto de estes constituírem imagens demasiado ‘generalizadas’ e ‘exageradas’ que descuram a variabilidade dos membros dos outros grupos e negam a sua individualidade (Lippmann, 1922/1961, p.116). Este aspecto foi amplamente demonstrado pelos estudos iniciados por Tajfel e colaboradores, sobre a sobrestima perceptiva e sobre o efeito de homogeneidade do exogrupo a que dedicaremos a secção seguinte. Lippmann debruçou-se ainda sobre o poder dos rótulos e os seus efeitos nefastos na percepção das pessoas: “They are too empty, too abstract, too inhuman” (1922/1961, p.160). Na perspectiva do autor, só uma longa educação crítica permitirá aos indivíduos tomarem consciência do carácter diferido e subjectivo da sua apreensão da realidade social (p.126). Embora salientando o papel da educação - ‘the supreme remedy’ (p.408) - Lippman considera os estereótipos inevitáveis: “Yet a people without prejudice, a people with altogether neutral vision, is so unthinkable in any civilization of which it is useful to think, that no scheme of education could be based upon that ideal. Prejudice can be detected, discounted, and refined, but so long as finite men must compress into a short schooling preparation
  • 205. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 205 for dealing with a vast civilization, they must carry pictures of it around with them, and have prejudice(1922/1961, p.120). Esta concepção sobre a inevitabilidade dos estereótipos, porque inerentes ao funcionamento cognitivo normal, só começou a ser sistematicamente analisada pelas investigações da Nova Vaga sobre os estereótipos iniciada por Bruner e colaboradores (e.g., Bruner, 1957), tendo sido amplamente demonstrada pelos estudos da cognição social (e.g., Garcia-Marques, 1999; Zogmaister, Castelli, Arcuri, Smith, 2002; Kawakami e Dovidio, 2002; Dovidio, Kawakami, Gaertner, van Vergert, 2002; Wittenbrink, 2002). Outros dos aspectos salientados por Lippmann foi o facto do senso comum, na maior parte dos casos, não procurar infirmar as suas hipóteses, mas sim confirmá-las: “in the codes that come unexamined from the past or bubble up from the caverns of the mind, the conception is not taken as an hypothesis demanding proof or contradiction, but as a fiction accepted without questions” (1922/1961, p.122-123). A delimitação das condições em que os indivíduos enveredam pela confirmação automática das hipóteses ou em que encetam processos de infirmação das mesmas constitui um aspecto central na pesquisa actual sobre os estereótipos (e.g., Snyder, 1981; Garcia-Marques e Sherman, 2002; Ferreira e Garcia-Marques, 2002; Walter, 2002; Cobos, López, e Caño, 2002; Freytag e Fiedler, 2002; Schulz-Hardt, 2002; Dumont, Yzertyt e Snyder, 2002). Lippmann considera que as pessoas ‘ignorantes’ têm maior tendência a efectuar estas generalizações acriticamente do que as ‘cultas’, mas recorda que todos possuímos estereótipos, uma vez que “inevitably our opinion cover a bigger space, a longer reach of time, a greater number of things, than we can directly observe” (1922/1961, p.79). Nenhum ser humano é “omnipresent and omniscient” (1922/1961, p.161), ao seja, de certa forma todos somos como os prisioneiros da caverna de que nos fala Platão, no Sétimo Livro da A República.
  • 206. Racismo e Etnicidade em Portugal 206 O estudo empírico dos estereótipos começou pouco depois da publicação da obra de Lippmann. Ainda na década de vinte, fortemente influenciados pela definição dos estereótipos como ‘pictures inside our heards’, Rice (1926-1927; referido por Oakes, Haslam e Turner, 1994) realizou um estudo em que apresentou aos participantes uma série de fotografias de pessoas pertencentes a diferentes grupos sociais. Os participantes efectuaram facilmente correspondências entre as fotografias e os ‘social types’ e procederam a atribuições de traços de personalidade baseando-se neste processo de correspondência. Esta técnica não teve contudo grande sucesso na altura, só vindo a ser recuperada muito mais tarde (Leyens, Yzerbyt e Schadron, 1994). Durante as primeiras décadas do estudo dos estereótipos a técnica mais utilizada foi a lista de adjectivos de Katz e Braly (1993). Mas antes de nos referirmos aos estudos destes autores, parece-nos necessário abrir um breve parêntese sobre alguns estudos clássicos sobre discriminação social realizados no âmbito do modelo das atitudes. Na sua primeira definição (Thomas e Znaniecki, 1918; citados por Amâncio, 1993/2000), o conceito de atitude permitia estabelecer uma ligação entre o psicólogo e o cultural, constituindo, por isso mesmo, um objecto de análise específico da Psicologia Social. Definições posteriores do conceito negligenciaram a vertente cultural ao considerar a atitude um estado de prontidão mental, e esta psicologização do conceito dominou durante largos anos no seio da disciplina (Jaspars e Frasers, 1984, citados por Amâncio, 1984). No início do estudo das atitudes, estava implícita a consonância entre atitudes e comportamentos, daí a grande ênfase dada pelos psicólogos sociais à construção de escalas de atitudes. Numa época caracterizada por um grande fluxo migratório de grupos de origem asiática e europeia para os EUA, Bogardus (1928) estudou as ‘atitudes raciais’ dos americanos a partir de uma Escala de Distância Social. Os participantes deveriam indicar as suas atitudes face a diversos grupos raciais, étnicos e religiosos (por exemplo: franceses, indianos, judeus, chineses, ingleses, negros, etc.), numa escala de sete pontos, ordenados da menor distância à maior distância social: ‘casaria com um membro deste grupo’; ‘aceitaria como amigo íntimo’; ‘aceitaria como vizinho do lado’; ‘aceitaria como colega de escritório’; ‘aceitaria como conhecido’; ‘apenas como turista no país’; ‘excluí-los-ia do país’ (Lima, 1993/2000, p.198). O estudo revelou que os participantes, americanos ‘brancos’, rejeitavam sobretudo os grupos de origem asiática e africana, preferindo os imigrantes de origem europeia, principalmente os anglo-
  • 207. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 207 saxónicos e os nórdicos. Esta hierarquização dos grupos está em perfeita consonância com os estudos do ‘racismo científico’ realizados no século XIX e início do século XX, que referimos no primeiro capítulo, testemunhando o carácter normativo do racismo neste período nos EUA e na Europa. No início da década de quarenta Hartley (1946/1969) realizou um estudo sobre o preconceito em relação a 49 grupos-alvo utilizando a escala de Bogardus. Para além dos grupos-alvo presentes no estudo precedente, Hatley averiguou o preconceito em relação a grupos políticos (nazis, socialistas, comunistas, etc.) e a três grupos fictícios: Danarean, Pirenean e Wallonian (p.5). Os resultados mais baixos (indicando maior distância social) são obtidos pelos grupos políticos ‘extremistas’ - nazis, fascistas e comunistas -, logo seguidos dos grupos étnicos minoritários – judeus, negros, turcos, árabes, chineses, hindus, mexicanos, imigrantes da Europa de Leste (romenos, russos, lituânios, etc.), e imigrantes da Europa Mediterrânica (gregos, italianos e portugueses). Mais uma vez os imigrantes anglo-saxónicos e nórdicos (irlandeses, ingleses, alemães, dinamarqueses, etc.) obtiveram resultados indicadores de menor distância social, e o endogrupo foi o único a ocupar o topo da escala. O aspecto mais curioso deste estudo, é que os três grupos fictícios obtiveram resultados idênticos aos dos grupos étnicos ‘indesejáveis’, indicadores de grande distância social, isto é, a simples evocação de um grupo desconhecido, logo minoritário e eventualmente perigoso, levou os participantes a rejeitar esses grupos. Estes resultados, indicam claramente que o preconceito não está directamente ligado ao nível de conhecimento dos grupos-alvo em causa, e são indicadores do carácter normativo da discriminação social nesta época, já que os participantes não hesitaram em discriminar com base num simples rótulo evocativo de minoria étnica. Como referimos, no início do estudo das atitudes, estava implícita a consonância entre atitudes e comportamentos, pressupondo-se que as atitudes eram boas preditoras do comportamento. A questão do poder preditivo das atitudes avaliadas por questionários foi claramente colocada por LaPiere (1934), num estudo clássico sobre preconceito racial. LaPiere, um psicólogo social americano branco, viajou pelos EUA acompanhado por um casal de chineses, bem parecidos e bem vestidos, muito sorridentes e com um ‘unaccented English’ (p.232). O autor foi anotando as reacções dos funcionários dos diversos estabelecimentos hoteleiros. Nesta viagem foram recebidos em 66 hotéis e em 184 restaurantes e cafés, tendo apenas sofrido uma recusa
  • 208. Racismo e Etnicidade em Portugal 208 num hotel. Algum tempo depois foi enviada uma carta a cada um destes estabelecimentos, perguntando se aceitariam chineses como clientes. Das respostas recebidas, 92% eram negativas, tendo os restantes afirmado que dependeria das circunstâncias. Estes resultados mostraram que é possível haver uma manifestação de tolerância ao nível comportamental e simultaneamente uma expressão de intolerância ao nível atitudinal, pelo que foram interpretados como reflectindo uma inconsistência entre atitudes e comportamentos (Lima, 1993/2000). Para além da importância deste aspecto, interessa-nos salientar outro: este estudo demonstra claramente o carácter normativo da discriminação racial nos EUA nos anos 30. Nesta altura, havia um forte preconceito contra os chineses sendo comum os restaurantes e lojas terem uma placa à porta com a seguinte inscrição: “É proibida a entrada a cães e chineses”. Segundo LaPierre este preconceito influencia as respostas que os hotéis e dos restaurantes efectuaram por escrito, assemelhando-se aos questionários de atitudes, mas não o comportamento dos funcionários face a pessoas concretas: “In the end I was forced to conclude that those factors which most influenced the behaviour of others towards the Chinese had nothing at all to do with race. Quality and condition of clothing, appearance of baggage (by which, it seems, hotel clerks are prone to base their quick evaluation), cleanliness and neatness were far more significant for person to person reacting in the situations I was studying than skin pigmentation, straight black hair, slanting eyes, and flat noses. And yet an air of self- confidence might entirely offset the ‘unfavorable’ impression (1934, p.232). Nesse sentido, LaPierre (1934) é extremamente crítico face aos questionários usados na mensuração das atitudes, e recomenda o uso de métodos mais qualitativos do que quantitativos: “Nothing could be used as a more accurate index of color prejudice than the admission or non-admission of colored people to hotels. For the proprietor must reflect the group attitude in his policy regardless of his own feelings in the matter. Since he determines what the group attitude is towards Negroes through the expression of that attitude in overt behaviour and over a long period of actual experience, the results will be exceptionally free from those disturbing factors which inevitably affect the effort to study attitudes by direct questioning (p.231). (…) The questionnaire is cheap, easy, and mechanical. The study of human behaviour is time consuming, intellectually fatiguing, and depends for its success upon the ability of
  • 209. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 209 the investigator. The former method gives quantitative results, the latter mainly qualitative. Quantitative measurements are quantitatively accurate; qualitative evaluations are always subject to the errors of human judgment. Yet it would seem far more worth while to make a shrewd guess regarding that which is essential than to accurately measure that which is likely to prove quite irrelevant” (p.237). Esta discrepância entre atitudes e comportamentos está bem ilustrada empiricamente por réplicas do estudo de LaPierre. Por exemplo, Kutner, Wilkins e Yarrow (1952) realizaram uma réplica deste estudo em relação aos negros, tendo obtido resultados idênticos. Mas apesar destas críticas iniciais ao método de questionário, esse foi sem dúvida o método mais popular no estudo dos estereótipos, pelo menos até à ‘revolução cognitiva’. O método mais utilizado foi o da ‘lista de adjectivos’, desenvolvido por Katz e Braly (1933; 1935). Os autores tinham como objectivo obter uma medida psicológica dos preconceitos raciais. Para esse efeito, Katz e Braly (1933) construíram uma lista de 84 traços de personalidade, seleccionados a partir da imprensa e da literatura da época e/ou fornecidos por uma amostra de 100 estudantes universitários nas descrições de dez grupos: alemães, americanos, chineses, ingleses, irlandeses, italianos, japoneses, judeus, negros, e turcos. Katz e Braly (1933) pediram a uma outra amostra de 100 estudantes universitários para seleccionarem os cinco traços mais típicos de cada um dos dez grupos-alvo referidos. Os autores analisaram o conteúdo dos estereótipos e o seu consenso, através do menor número de traços atribuídos a um grupo-alvo pela maior percentagem de participantes. Não surpreendentemente para a época, os ‘americanos’ (referindo-se obviamente aos americanos brancos) foram considerados empreendedores, inteligentes, materialistas, ambiciosos e progressistas, enquanto os ‘negros’ foram considerados supersticiosos, preguiçosos, despreocupados, ignorantes e musicais. Assim, ao endogrupo (americanos) foram atribuídas características positivas que contribuíam para o chamado ‘sonho americano’, enquanto que aos negros foram atribuídas características negativas que contrariavam os valores dominantes da sociedade americana, justificando assim a sua exclusão social (Amâncio, 1989a). Mas outro aspecto importante ressalta dos resultados: o estereótipo sobre os ‘negros’ é muito mais uniforme do que o estereótipo dos ‘americanos’, isto é, relativamente a este grupo existe menor consenso entre os participantes. Este padrão de resultados indica claramente que o consenso não está ligado ao maior nível de contacto
  • 210. Racismo e Etnicidade em Portugal 210 com o grupo-alvo em causa, já que os estudantes em questão, tinham pouco ou nenhum contacto directo com os grupos sobre os quais havia maior consenso. Em consonância com a perspectiva de Lippmann (1922/1961), Katz e Braly (1933; 1935) consideram os estereótipos como um fenómeno sociocultural. Para os autores os estereótipos são crenças que são transmitidas pelos agentes de socialização (a família, a escola, os meios de comunicação social, etc.), o que explicaria o consenso do estereótipo relativamente aos diversos grupos sociais, a sua independência do conhecimento ‘real’ dos membros desses grupos e a sua dependência do contexto histórico e cultural (Amâncio, 1989a). Uma réplica do estudo de Katz e Braly realizada no início dos anos cinquenta, na mesma universidade (Gilbert, 1951) indicava um declínio na consistência dos estereótipos de certas minorias, nomeadamente relativamente aos negros e aos judeus. Este ‘fading effect’ foi atribuído à difusão de imagens mais tolerantes desses grupos nos mass media, a uma maior popularidade das ciências sociais entre os estudantes, e ainda facto da composição sociológica dos estudantes de Princeton ser menos elitista do que a da década de 30. Segundo Gilbert (1951), os estudantes tornaram-se mais ‘sofisticados’ e ‘objectivos’ tendo relutância em efectuar generalizações infundadas acerca de outros grupos, o que conduziu o autor ao optimismo: “If it is true, as this study suggests, that present-day students tend to base their social attitudes on experience and social science rather than fiction, we have perhaps a ray of hope that the future of our country will be more rational in the realm of social relationships than it has been in the past” (pp.253-254). Replicações realizadas por outros autores noutras locais na década de 1950 pareciam confirmar o declínio dos estereótipos, mostrando que estes são eram ‘rigídos’ mas sim ‘flexíveis’, isto é, sensíveis às mudanças sociais ocorridas depois da II Guerra Mundial (e.g., Buchanan e Cantrill, 1953; Prothro e Melikan, 1955; citados por Oakes, Haslam e Turner, 1994). Mas, como refere Amâncio (1989a), uma segunda réplica do mesmo estudo na Universidade de Princeton realizada nos anos sessenta (Karlins, Coffman e Walters, 1969) veio desiludir os cientistas sociais, porque de novo os resultados se distanciavam dos obtidos por Gilbert (1951). Embora o conteúdo de alguns estereótipos tivesse sofrido alterações e se apresentasse globalmente mais
  • 211. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 211 positivo, aos americanos e aos grupos de origem europeia continuavam a ser associados atributos com grande desejabilidade social, consonantes com os valores da sociedade americana, e aos grupos minoritários de origem africana e asiática continuavam a ser associados atributos socialmente indesejáveis, isto é, distantes dos ideais de realização e progresso. Verificou-se igualmente um aumento na consistência nos estereótipos em relação a algumas minorias étnicas, contrariando a tendência observada nos anos cinquenta. Em contrapartida, o estereótipo dos ‘americanos’ é o que apresenta menor consistência, confirmando os resultados dos anos trinta: “The low frequencies of remaining adjectives make the present characterization of Americans one of the sharpest images in the study. Katz and Braly’s observations in 1993 that ‘the description is not greatly at variance with the stereotypes held by non- Americans (p.206)’ is also applicable to the 1967 results” (Karlins, Coffman e Walters, 1969, p.6). Relativamente ao estereótipo dos ‘negros’ os autores fazem a seguinte observação: “The most dramatic and consistent trend over then 25-years period has been the more favorable characterization of the Negro. (...) The ‘new view’ of the Negro focuses on the term ‘musical’ (47%) and includes ‘pleasure loving’ (26%), ‘ostentatious’ (25%), and ‘happy-go-lucky’ (27%). This image would appear to be more innocuous modern counterpart of the minstrel figure, probably reflecting the success of Negroes in the popular entertainment world supported by teen-age and collegiate audiences. Certainly, the Civil Rights movement of the past decade has strongly influenced the present generation of college students” (p.8). Mas, se como já referirmos, analisarmos o conteúdo do estereótipo dos ‘negros’ à luz dos valores da sociedade americana, constatamos que esta ‘nova visão’ dos negros corresponde mais a uma mudança facial do que profunda, já que a este grupo são negadas as características instrumentais necessárias para participaram no desenvolvimento e progresso da sociedade, sendo-lhes atribuídas características expressivas e exóticas, que embora apresentando uma conotação positiva nas camadas juvenis, continua a retirar-lhes o estatuto de pessoa adulta, responsável e com capacidade de realização (Amâncio, 1989a).
  • 212. Racismo e Etnicidade em Portugal 212 Mais uma vez verificou-se que o grau de consenso dos estereótipos relativamente a determinado grupo não está directamente ligado ao grau de preconceito exibido em relação a esse grupo. Nas suas conclusões os autores salientam: “First, every stereotype in these studies is comprised of both positive and negative terms. (...) Second, positive values consistently outweigh negative values. (...) Finally, there is the obvious fact that some characterizations are unduly harsh while others are too good to be true” (Karlins, Coffman e Walters, 1969, p.11; itálico nosso). Comparando os seus resultados com os de Gilbert (1951), os autores salientam: “(...) the apparent ‘fading’ of social stereotypes in 1951 is not upheld as a genuine overall trend. Where traditional assignments have declined in frequency they have, in the long run, been replaced by others, resulting in restored stereotypes uniformity. (...) A feature of this data which is still impressive is the extent to which ‘new’ stereotypes resemble previous ones. Paradoxically enough, the changes which have occured stand out because so much has remained the same. Uniformity and favorableness scores correlate significantly across the three generations of students. The collections of traits selected to characterize specific groups are very much alike from one generation to the next, though the relative popularities of those traits have been thoroughly rearranged. A great deal of change consists of a shift of emphasis in the already existing picture” (Karlins, Coffman e Walters, 1969, p.14; itálico nosso). Como os autores referem, o conteúdo dos ‘novos estereótipos’ é mais consistente com as ‘atitudes mais liberais’ (p.14) da sociedade americana, como demonstrado em diversos estudos nos anos sessenta. A esse propósito os autores citam Triandis e Vassiliou (1967, p.238): “it is no longer appropriate to be prejudice toward other groups”. Mas isso não significa que o preconceito tenha desaparecido. Os autores salientaram a necessidade de distinguir entre estereótipo pessoal, fenómeno psicológico, e estereótipo social, fenómeno cultural: “(…) we may refer to a single individual’s assignments as his personal stereotype and the consensual assignment of a given population of judges as a social stereotype (...) The absence of a traditional pattern of stereotyping may not indicate a decline of stereotyping may not indicate a decline of stereotyping itself, but perhaps the
  • 213. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 213 formation of a revised social consensus” (Karlins, Coffman e Walters, 1969, p.3; itálico no original). Como salienta Roger Brown (1986; citado por Amâncio, 1989a), face aos resultados deste estudo, a tentação da intervenção social, baseada na função moralizadora da investigação em ciências sociais perdia parte da sua solidez entre os psicólogos sociais. Ironizando sobre a ilusão de que os estereótipos seriam erradicados se se ensinasse as pessoas a pensar de forma ‘objectiva’, Brown conclui que o único resultado dessa intervenção social foi o de ter ensinado aos americanos da classe média que não devem exprimir os seus estereótipos e preconceitos em público, mas uma anedota racista num círculo de amigos até cai bem (Amâncio, 1989a). Os resultados de um estudo realizado por Sigall e Page (1971) são bem elucidativos destas pressões normativas que deram origem aos ‘novos racismos’, a que fizemos referência no primeiro capítulo. Os autores complementaram o uso da tradicional lista de adjectivos de Katz e Braly com uma manipulação experimental. Numa das condições os participantes respondiam simplesmente (condição controlo) e na outra (bogus pipeline) eram informados que o experimentador detinha uma medida fisiológica infalível capaz de medir a atitude, uma espécie de ‘detector de mentiras’. Os autores compararam estereótipos dos participantes (americanos brancos) relativamente aos americanos e aos negros, nas duas condições de resposta. Verificou-se que na condição bogus pipeline o estereótipo relativo aos ‘americanos’ era mais favorável e o relativo aos ‘negros’ mais desfavorável do que na condição controlo, isto é, o favoritismo endogrupal aumentou quando os participantes julgavam que a sua verdadeira atitude estava a ser medida através de um instrumento infalível. Sigall e Page consideram este resultado “as relatively distortion-free, as more honest and ‘truer’ than rating-condition responses” (p.254; citados por Oakes, Haslam e Turner, 1994), o que sugere que, em geral, os estudos com base na lista de adjectivos, sobretudo os realizados a partir do momento em que se tornou contra-normativo discriminar, subestimam os estereótipos negativos e o preconceito. Numa revisão sobre as mudanças ocorridas na expressão dos estereótipos relativamente aos ‘negros’, Dovidio e Gaertner (1991) afirmam:
  • 214. Racismo e Etnicidade em Portugal 214 “(…) adjective checklist studies, in which respondents are asked to select traits that are the most typical of particular racial or ethnic categories, indicate that negative stereotypes are consistently fading” (p.202). No entanto, os autores salientam que a evolução observada no conteúdo e consistência dos estereótipos pode decorrer de uma maior sensibilidade às normas sociais anti-discriminação do que a uma verdadeira mudança nos estereótipos (Crosby, Bromly e Saxe, 1980; Dovidio e Gaertner, 1996, 1991; Sigall e Page, 1971). No entanto, esta interpretação de carácter normativo é recusada por autores da perspectiva da cognição social, que interpretam estes resultados estabelecendo uma clara distinção entre crenças pessoais e estereótipos culturais (e.g., Devine, 1989; Devine e Elliot, 1995; Garcia-Marques, 1999). Numa ‘revisitação da triologia de Princeton’, Devine e Elliot (1995) introduziram algumas alterações no procedimento com vista a colmatar algumas falhas metodológicas dos estudos precedentes. Partido da lista de adjectivos original de Katz e Braly (1933) efectuaram as seguintes alterações: introduziram novos adjectivos com o objectivo de actualizar a referida lista (esses adjectivos foram previamente recolhidos através de uma técnica aberta: “athletic, criminal, hostile, low intelligence, poor, rhythmic, sexually perverse, uneducated, and violent” (p.1142); os participantes respondiam duas vezes à referida lista, uma vez tendo em conta as suas ‘crenças pessoais’ e outra partindo dos ‘estereótipos culturais’, efectuadas em ordem contrabalançada; e, finalmente, os participantes responderam a uma “nonreactive measure of anti-Black attitudes” (p.1142) que consistia na Escala de Racismo Moderno (Modern Racism Scale, MRS) de McConahay (1986). Comparando as respostas dos participantes nas condições de ‘stereotype assessment’ e ‘personal belief assessment’, os autores salientam: “In contrast to the commonly espoused fading stereotype proposition, data suggest that there exist a consistent and negative contemporary stereotype of Blacks (p.1139). (…) the stereotype has remained stable through the years (in consistency and valence, not necessarily in specific content), whereas personal beliefs have undergone a revision” (p.1141).
  • 215. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 215 Na perspectiva dos autores, enquanto o estereótipo cultural dos ‘negros’ é consistente e muito negativo, as crenças pessoais são muito mais positivas, especialmente as crenças pessoais dos participantes que demonstram uma atitude favorável aos negros na escala de racismo moderno (MRS). Segundo os autores, a comparação dos resultados obtidos pelos participantes muito e pouco preconceituosos na MRS apoia o modelo dissociativo de Devine (1989) segundo o qual “high- and low- prejudiced individuals both possess the same stereotype of Blacks but that the stereotype is only endorsed by the former group of individuals” (Devine e Elliot, 1995, p.1145). No entanto, em determinadas circunstâncias (por exemplo, nas situações de sobrecarga de informação – cognitive loading) pode haver uma ‘contaminação mental’ pelos estereótipos, levando os indivíduos não preconceituosos a ser influenciados por estes, uma vez que estes, tendo sido aprendidos ao longo do processo de socialização, estão armazenados na memória, interferindo nos processos cognitivos dos indivíduos, a não ser que estes estejam permanentemente vigilantes a uma possível ‘contaminação mental’ e procurem evitá-la activamente, o que exige grande esforço cognitivo e motiviação. Devine e Elliot (1989) apontam os factores cognitivos e socioculturais que contribuem para a persistência dos estereótipos, apesar da mudança das normas sociais: “First, it is important to recognized that individual-level changes in one’s beliefs (i.e., renouncing prejudice and stereotypes) does not lead to immediate elimination of stereotypes from memory (…). Moreover, during the process of prejudice reduction, stereotype-based responses are highly accessible and serve as rivals to belief-based responses (…). Thus change at the individual level is not all-or-none; overcoming stereotyped-based responding requires a great deal of personal motivation and effort (…). An additional challenge to such efforts is suggested by recent evidence that efforts to suppress stereotypes may even heighten their accessibility (…). One of the main impediments to the fading of racial stereotypes is that they remain deeply embedded in the cultural fabric of our nation (…). Despite a shift in social norms regarding overt expressions of prejudice and discrimination, stereotypic images of Black persist in the dominant media (e.g., television, newspapers), and Blacks continue to be underrepresented in traditional positions of power (e.g., education and industry) (…). As a result, stereotypes are perpetuated within the cultural in subtle, yet highly effectual, ways” (Devine e Elliot, 1995, p. 1149).
  • 216. Racismo e Etnicidade em Portugal 216 No nosso entendimento, esta interpretação, baseada na clara separação entre ‘crenças pessoais’ e ‘estereótipos culturais’ e pressupondo que quando os indivíduos ‘não preconceituosos’, em situações de grande carga cognitiva (Devine, 1989), associam mentalmente características negativas aos negros porque sofrem uma ‘contaminação mental’ pelos ‘esteótipos culturais’ é inaceitável, pois não se coaduna com a conceptualização dos estereótipos sociais enquanto representações sociais, que referimos no início deste capítulo. Se os estereótipos culturais existem, mas não estão na cabeça de ninguém, ou de quase ninguém, onde se encontram então? E se não estão na cabeça das pessoas ‘não preconceituosas’ porque é que estas têm que ter energia mental disponível e motivação para não se deixar influenciar por eles? Na nossa perspectiva, os resultados de diversos estudos indicando crenças pessoais mais positivas do que os estereótipos sociais (e.g., Devine e Elliot, 1995; Garcia-Marques, 1999; Vala, Brito e Lopes, 1999a), e dos estudos que indicam que as pessoas geralmente se consideram menos racistas do que a média das pessoas do seu endogrupo (e.g., Miranda, 2001), podem ser interpretados como uma manifestação do efeito PIP (Codol, 1975). Conhecendo as normas sociais de não discriminação, os indivíduos apresentam-se de forma mais consonante com essas normas do que os restantes membros da sociedade em que se encontram, o que consiste numa forma de obter distintividade através da adesão a normas socialmente valorizadas. Como já referimos, o desenvolvimento da psicologia cognitiva (Bruner, 1957) conduziu a uma mudança significativa no estudo sobre os estereótipos, tanto no que respeita à perspectiva teórica como à metodologia. Enquanto que as primeiras pesquisas se focalizaram no conteúdo dos estereótipos (Katz e Braly, 1933; Gilbert, 1951), a abordagem cognitivista vai centrar-se nos processos (e.g., Hamilton, 1979; Snyder, 1981). Esta focalização nos processos levou ao desenvolvimento de metodologias mais ‘sofisticadas’ e ‘rigorosas’: medição de tempos de reacção a determinadas palavras- estímulo; medição das reacções automáticas; medidas de recuperação de informação; medidas de associação em condições de carga cognitiva; etc. (Marques e Paéz, 2000). Os estudos sobre a tendência central percebida dos estereótipos foram diminuindo a partir dos anos oitenta, dando lugar a estudos sobre a variabilidade grupal percebida (Ostrom e Sedikides, 1992), aspecto que abordaremos na próxima secção.
  • 217. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 217 3.4 Processos cognitivos, identidade social e percepção da variabilidade grupal “All strangers of another race proverbially look alike to the visiting stranger.” Walter Lippmann, 1922 Numa revisão de literatura sobre o estudo da percepção da variabilidade grupal, Sedikides e Ostrom (1993) referem que este tem seguido três direcções. Os primeiros estudos orientaram-se sobretudo para a demonstração empírica dos efeitos da categorização na percepção dos grupos sociais, nomeadamente o efeito de acentuação e o efeito de homogeneidade do exogrupo. Seguidamente, a maior parte dos investigadores empenhou-se no desenvolvimento dos modelos cognitivos capazes de explicar o efeito de homogeneidade do exogrupo, o que constitui actualmente o maior foco da pesquisa nesta área. No início dos anos noventa, estudos inspirados na teoria da identidade social começaram a enfatizar a importância do contexto social e do papel mediador da identidade social na percepção da variabilidade grupal, tendo demonstrado que o efeito de homogeneidade do exogrupo não é simétrico nem universal. Revisões de literatura mais recentes sobre a percepção da variabilidade grupal (e.g., Devos, Comby e Deschamps, 1996; Guinote, 1999; Lorenzi-Cioldi, 1998; Voci, 2000) têm evidenciado o papel moderador do estatuto dos grupos na explicação das assimetrias observadas. Como referimos no ponto 2.3.1, de acordo com Tajfel, a categorização dos objectos (incluindo os grupos sociais) é baseada nas semelhanças intracategoriais e nas diferenças intercategoriais. Um dos fenómenos associado à categorização é o efeito de acentuação: a sobrestima, por parte do observador, das semelhanças entre objectos ou pessoas pertencendo à mesma categoria - efeito de assimilação - e das diferenças entre objectos ou pessoas pertencendo a diferentes categorias - efeito de contraste. O efeito de acentuação está ligado à simplificação que a categorização opera na percepção dos objectos e das pessoas. Como referem Beauvois e Deschamps (1990): “la catégorisation, de par sa fonction de systématisation de l'environnement, nous donne à voir un monde plus structuré, mieux organisé, donc plus explicable et contrôlable, mais aussi simplifié" (p.14).
  • 218. Racismo e Etnicidade em Portugal 218 A magnitude do efeito de acentuação tem sido encarada como um índice do grau com que a informação é organizada em torno das categorias sociais. Na literatura sobre julgamento social e sobre percepção de pessoas e grupos, o critério de categorização está frequentemente associado a uma dimensão de valor - o que conduz a um efeito de acentuação mais forte, comparativamente a uma dimensão neutra. Taylor, Fiske, Etcoff e Ruderman (1978) desenvolveram um paradigma experimental para apreender estes fenómenos. Os participantes escutam uma gravação com uma pequena discussão entre seis pessoas-estímulo e, simultaneamente, observam diapositivos com as fotografias de cada pessoa-estímulo à medida que estes intervêm. As pessoas-estímulo são membros de dois grupos (negros e brancos). Depois de escutarem a gravação, os participantes (brancos - Exp.1) recebem uma lista com todas as frases efectuadas na discussão (desordenadas) e as fotografias de todas as pessoas-estímulo. A tarefa dos participantes consiste em emparelhar as frases com as fotografias apropriadas. A ideia subjacente a este paradigma é a seguinte: se a ‘raça’ é usada como base para codificar e armazenar a informação no sentido categorial, então os participantes deverão ser capazes de recordar se foi um homem branco ou um homem negro a fazer uma determinada afirmação, mas não necessariamente qual o homem branco ou homem negro que fez uma determinada afirmação (Hewstone, Hantzi e Johnston, 1991). A dificuldade relativa da tarefa permite o cálculo, para cada participante, de dois tipos de erros: uma frase pode ser atribuída a um outro membro do mesmo grupo (erro intracategorial), ou a um membro do outro grupo (erro intercategorial). Estas medidas empíricas dos erros são consideradas como a expressão de processos psicológicos ligados à actividade de categorização. Os erros intracategoriais denotam um tratamento da informação indiferenciado do outro dentro do grupo, ou seja, uma hipersensibilidade à categoria de pertença. Os erros intercategoriais denotam o aspecto oposto, isto é, a insensibilidade do indivíduo à pertença categorial do outro (Lorenzi-Cioldi, 1993). Assim, o exagero perceptivo das semelhanças intracategoriais e das diferenças intercategoriais entre os estímulos traduz-se, no paradigma de Taylor et al. (1978), por uma quantidade elevada de erros intracategoriais relativamente à quantidade de erros intercategoriais. O processo de categorização, conduz os participantes a distinguirem correctamente os indivíduos dos dois grupos e a tratar de maneira homogénea os indivíduos que são semelhantes do ponto de vista categorial. De acordo com as suas
  • 219. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 219 previsões, Taylor et al. (1978) encontraram um maior número de erros intracategoriais do que de erros intercategoriais, o que evidencia o efeito de acentuação. Estudos subsequentes replicaram o efeito de acentuação na memória para pessoas usando vários critérios de categorização: ‘raça’ (e.g., Cabecinhas, 1994; Frable e Bem, 1985; Hewstone, Hantzi e Johnston, 1991); sexo (e.g. Arcuri, 1982; Cabecinhas, 1994; Frable e Bem, 1985; Lorenzi-Cioldi, 1993; Lorenzi-Cioldi et al., 1995; Van Knippenberg et al., 1992); atracção física (Miller, 1988); orientação sexual (Walker e Antaki, 1986); e estatuto académico (Arcuri, 1982; Van Knippenberg et al., 1992). Os estudos utilizando o paradigma de Taylor et al. (1978) apoiam a ideia de que a informação não é armazenada simplesmente indivíduo-por-indivíduo, mas que a pertença grupal dos indivíduos determina como a informação é organizada (e.g., Brewer, 1988, 1998; Fiske e Neuberg, 1990). Este enviesamento ao nível da memória, assim como outras manifestações do efeito de acentuação, tem efeitos prejudiciais nas relações intergrupais. De acordo com Stephan (1985), os efeitos de assimilação e de contraste conduzem a uma variedade de enviesamentos no processamento da informação acerca dos grupos sociais: formação dos estereótipos e atitudes negativas entre grupos; formação de expectativas negativas acerca do exogrupo; obstrução a tentativas de mudar os estereótipos; e evitamento do contacto intergrupal. Por todas estas razões, têm sido desenvolvidos estudos com o objectivo de explorar como pode ser atenuado o efeito de acentuação. Taylor et al. (1978, Exp.1) estudaram os efeitos da ‘categorização simples’, isto é, os estímulos foram seleccionados de forma a induzir uma divisão particular em grupos (brancos vs. negros), possibilitando aos participantes o uso desse critério com virtual exclusão de alternativas potenciais de categorização. Arcuri (1982), utilizando o paradigma experimental de Taylor et al., verificou que o efeito de acentuação é mais forte numa condição de categorização sobreposta (‘sexo’ e ‘estatuto académico’ como critérios: grupo de discussão entre 4 homens estudantes e 4 mulheres professoras), intermédia numa condição de categorização simples (sexo como critério: 4 homens e 4 mulheres), e mais fraca numa condição de categorização cruzada (sexo e estatuto académico com critério: 2 mulheres e 2 homens estudantes, e 2 mulheres e 2 homens professores). Os resultados de Arcuri apontam para uma influência do contexto sobre a intensidade do efeito de acentuação, sendo consistentes com uma interpretação em termos da teoria da auto-categorização (Turner et al., 1987).
  • 220. Racismo e Etnicidade em Portugal 220 O contexto é um termo ‘vago’, referindo-se, geralmente, a todos os factores que não são directamente relevantes para o processo sob investigação, mas que podem influenciá-lo (Markus e Zajonc, 1985, p.172). O contexto de uma experiência pode ser manipulado de diversas formas: as instruções dadas aos sujeitos, a natureza das tarefas precedentes, etc. Mas o contexto social mais vasto também tem impacto, como é ilustrado, por exemplo, pelas replicações da experiência dos ‘grupos mínimos’ efectuadas em sociedades não ocidentais (e.g., Wetherel, 1982). Embora nas experiências de Taylor et al. (1978) o efeito de acentuação não tenha sido afectado por factores contextuais, a pesquisa subsequente tem demonstrado com sucesso que a força do efeito de acentuação varia em função de manipulações do contexto. Na experiência de Arcuri (1982) a discussão entre as pessoas-estímulo era relativa a um assunto académico. Na condição de categorização cruzada, há duas formas de calcular os erros intra e intercategorias: de acordo com o critério ‘sexo’ (homem/mulher) ou de acordo com o critério ‘académico’ (professor/estudante). Neste estudo, a diferença entre os erros intra e intercategoriais foi maior para a categorização ‘académica’ do que para a categorização ‘sexual’. Na opinião de van Knippenberg et al. (1992), este resultado deve-se ao facto da discussão ser relativa a um assunto académico: face a este tema a categorização professor/estudante poderia fornecer um quadro de referência mais adequado do que a categorização homem/mulher. Esta interpretação assenta no pressuposto de que a probabilidade de uso de uma categorização social particular é função da relevância da categorização para a situação concreta, neste caso, o tópico de discussão. Hewstone, Hantzi e Johnston (1991, Exp.1) utilizaram o paradigma experimental desenvolvido por Taylor et al. (1978), com participantes brancos e negros, com o objectivo de investigar se a saliência da categoria ‘raça’ seria sensível a factores contextuais, tais como a relevância do tópico de discussão para o critério de categorização: relevante (‘relações raciais’) ou irrelevante (‘educação’) para a categorização racial. Na opinião destes autores, existem duas explicações possíveis para o facto do tópico de discussão relevante poder aumentar o efeito de acentuação. A primeira é uma hipótese cognitiva: quando o tópico diz respeito à ‘raça’, esta torna-se uma categoria particularmente acessível, tornando-se mais provável que os participantes categorizem
  • 221. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 221 em termos dessa categoria e, consequentemente, aumentem o número de confusões entre pessoas-estímulo que são semelhantes em termos dessa categorização. A segunda é uma hipótese motivacional: o tópico pode aumentar a ‘utilidade subjectiva’ da categorização. Assim, quando a discussão é sobre as ‘relações raciais’, a categoria racial das pessoas-estímulo pode ajudar o observador a compreender o significado das suas intervenções na discussão. Contrariamente às expectativas dos autores, não houve maior número de erros intrarraciais na condição ‘tópico relevante’ do que na condição ‘tópico irrelevante’, isto é, os resultados evidenciaram que o efeito de acentuação (maior número de erros intrarraciais do que erros interraciais) não foi significativamente afectado pela manipulação do tópico de discussão. Os autores explicaram estes resultados considerando que a categorização racial é tão forte, que não é afectada por este tipo de manipulação. Park e Rothbart (1982) consideram que há certas categorias que são altamente acessíveis e difíceis de suprimir, em particular a ‘raça’ e o sexo. Assumindo que essas categorias são extremamente salientes e poderosas, e que são automaticamente codificadas na ausência de quaisquer instruções específicas (Fiske e Neuberg, 1990), então talvez sejam insensíveis ao tipo de variação contextual estudada. Alguns estudos, comparando directamente a saliência das categorizações sexual e racial, apontam para o facto de, embora ambas sejam extremamente poderosas, a categorização sexual ser de natureza mais forte do que a racial (e.g., Fiske, Haslam e Fiske, 1991; Stangor, Lynch, Duan e Glass, 1992). Hewstone et al. (1991, Exp.2) investigaram também o efeito da ‘interacção antecipada’ na quantidade relativa de erros intra e intercategoriais. Os autores partiram da hipótese de que os efeitos da categorização seriam mais reduzidos na condição de ‘interacção antecipada’ (quando os participantes esperavam interagir com as pessoas- estímulo) do que na condição controlo. Esta hipótese foi infirmada: na condição ‘interacção antecipada’ foram encontrados menos erros do que na condição controlo, mas a diferença entre os erros intra e intercategoriais foi igual em ambas as condições, o que mais uma vez aponta no sentido da grande saliência da categorização racial: os participantes têm tendência em tratar a informação em termos raciais mesmo quando instruídos no sentido de anteciparem uma interacção em termos pessoais.
  • 222. Racismo e Etnicidade em Portugal 222 Diversos estudos têm sugerido alguns factores que podem influenciar o uso de uma dada categoria em detrimento de outra, mas esses factores não estão organizados num quadro de referência coerente. Partindo do trabalho de Oakes (1987; ver ponto 2.3.2), van Knippenberg et al. (1992) estudaram os factores que afectam o uso de uma determinada categorização numa dada situação. De acordo com os autores, estes factores podem ser organizados em três categorias amplas: a) factores ‘pessoais’, tais como uma forte identificação com um dos grupos envolvidos, ou uma frequência elevada de utilização da categorização social específica. Estes factores podem levar a que uma categorização particular possa ser activada em todos os tipos de situações - ‘acessibilidade crónica’ (chronic acessibility) - e, como resultado disso, essa categorização apresenta maior probabilidade de ser usada ao longo de diferentes situações do que categorizações alternativas. A ‘acessibilidade crónica’ de uma categorização pode ser também inerente à cultura de um grupo ou sociedade. Por exemplo: sexo, idade, cor da pele são mais facilmente acessíveis do que estatuto académico (Messick e Mackie, 1989). b) factores de ‘contexto’, tais como as instruções dadas ao participante, a natureza das tarefas directamente precedentes, a relevância do tópico de discussão para uma dada categorização ou os objectivos do indivíduo na situação particular. Pressupõe-se que os factores do contexto aumentam a ‘acessibilidade situacional’ (situational accessibility) de uma categorização específica, incrementando o uso dessa categorização nessa situação particular. c) factores do ‘estímulo’: ‘ajustamento estrutural’, ‘ajustamento normativo’, proximidade/distância, relação numérica entre os diferentes tipos de estímulos (maioria/minoria). Pressupõe-se que estes factores aumentam a saliência de uma categorização particular, num dado momento. Quanto mais perceptivamente saliente for uma dada categorização, maior a probabilidade de ser usada comparando com categorizações alternativas. Globalmente, os resultados das experiências empreendidas pelos autores sugerem que determinadas categorizações (sexo, ‘raça’, idade) estão ‘automaticamente’ disponível como ‘default option’, tendendo a guiar o processamento da informação, a não ser que haja uma alternativa obviamente mais desejável na situação concreta (van Knippenberg et al., 1992). Estudos utilizando outro tipo de medidas implícitas têm demonstrado que os indivíduos detectam o sexo, ‘raça’ e idade prováveis das pessoas- alvo em milésimos de segundo (Banaji e Hardin, 1996; Zárate e Smith, 1990). A
  • 223. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 223 investigação tem demonstrado que os grupos socialmente marcados - minorias étnicas, linguísticas, etc. - são categorizados muito mais rapidamente do que os grupos não marcados, isto é, aqueles que se ajustam ao ‘cultural default’, que no caso das sociedades ocidentais é ser homem, branco, adulto, heterossexual, classe média (Fiske, 2000, p.307). Assim, o facto de algumas categorizações serem consideradas como ‘default option’ (sexo, ‘raça, idade) não significa que não se verifiquem assimetrias significativas no uso destas categorizações. Assim, as mulheres são mais facilmente categorizadas sexualmente do que os homens e os negros são mais facilmente categorizados racialmente do que os brancos (Zárate e Sandoval, 1995). Os estudos realizados sobre a saliência relativa de diversas categorizações cruzadas mostram que um homem negro é mais frequentemente categorizado como ‘negro’ enquanto que uma mulher branca é mais frequentemente categorizada como ‘mulher’ (Zárate, Bonilha e Luevano, 1995; Zárate e Smith, 1990). Numerosas pesquisas realizadas sobre os efeitos decorrentes da categorização social demonstraram também a existência de um enviesamento denominado efeito de homogeneidade do exogrupo, isto é, a tendência para perceber o exogrupo como mais homogéneo do que o endogrupo (e.g., Linville, Salovey e Fischer, 1986; Park e Rothbart, 1982; Quattrone e Jones, 1980). Quattrone e Jones (1980) estudaram o efeito de homogeneidade do exogrupo com estudantes das Universidades de Princeton e de Rutgers. Os participantes vêm um pequeno vídeo que apresenta um estudante fazendo uma escolha (e.g., esperar acompanhado vs. sozinho numa experiência de bio-feedback). O estudante é apresentado ora como da Universidade de Princeton ora como da Universidade de Rutgers. A tarefa dos participantes consiste em estimar a percentagem de estudantes da mesma universidade que fariam a mesma opção. De acordo com as previsões dos autores, os participantes inferiram uma maior percentagem de escolha grupal a partir da escolha individual quando a pessoa-estímulo era um membro do exogrupo do que quando era um membro do endogrupo. Contudo, a evidência do efeito de homogeneidade do exogrupo só foi encontrada num tipo de escolha e manifestou-se de forma assimétrica: só quando o grupo da universidade de Princeton estava sendo julgado.
  • 224. Racismo e Etnicidade em Portugal 224 Linville e Jones (1980) mediram indirectamente o efeito de homogeneidade do exogrupo. Numa das suas experiências (Exp.3), a tarefa dos participantes (brancos) consistia em atribuir conjuntos de traços de personalidade a duas populações de estudantes (brancos/negros). De acordo com as previsões, os participantes escolheram traços de maneira a atribuir maior complexidade dimensional ao grupo dos brancos (endogrupo) do que ao grupo dos negros (exogrupo). Esta experiência está incompleta, pois seria necessário verificar se o mesmo tipo de resultados se obteria com participantes negros. O efeito de homogeneidade do exogrupo traduz-se no paradigma de Taylor et al. (1978) por um maior número de erros intracategorias em relação aos membros do exogrupo (erros exogrupais) do que em relação aos membros do endogrupo (erros endogrupais), isto é, os participantes são capazes de fazer discriminações mais finas dentro do seu endogrupo. Taylor e colaboradores (1978) não encontraram apoio para essa hipótese (menos confusões entre os membros do endogrupo do que entre os do exogrupo). É necessário contudo ter em consideração que os autores testaram esta hipótese (Exp.1) unicamente com participantes brancos, sendo provável que os resultados dos negros e brancos difiram: ''members of a black minority living in a white-domined society might have greater motivation to learn to distinguish among power-holding whites, than vice versa'' (Hewstone, Hantzi e Johnston, 1991, p.520). Park e Rothbart (1982) consideram que a percepção da homogeneidade do exogrupo deriva, pelo menos em parte, da confiança do observador nos estereótipos. Assim, um índice apropriado para medir o efeito de homogeneidade do exogrupo poderia ser uma medida da força do estereótipo. Numa das experiências realizadas pelos autores (Exp.1), a tarefa dos sujeitos, de ambos os sexos, consistia em estimar a proporção de homens e de mulheres que apresentavam determinados traços de personalidade. Estes traços variavam em duas dimensões: a estereotipicalidade (estereotípico vs. contra-estereotípico); e a desejabilidade social (favorável, neutro e desfavorável). De acordo com as hipóteses formuladas pelos autores, os membros do exogrupo foram vistos como possuindo um maior número de traços estereotípicos do que os membros do endogrupo, enquanto que os membros do endogrupo foram vistos
  • 225. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 225 como possuindo maior número de traços contra-estereotípicos do que os membros do exogrupo. Os resultados desta experiência indicaram que os participantes tinham uma imagem mais complexa do endogrupo do que do exogrupo – efeito de homogeneidade do exogrupo – e demonstraram que este efeitos não foi influenciado pela desejabilidade dos traços (manifestou-se tanto nos traços favoráveis como nos desfavoráveis), sugerindo que este fenómeno pode ser independente do favoritismo endogrupal. Como vimos nos capítulos anteriores, o favoritismo endogrupal, tem recebido enorme suporte empírico, tanto em grupos ‘naturais’ como com grupos ‘mínimos’ (e.g., Brewer, 1979; Tajfel et al., 1971). Diversos autores têm estudado a relação entre o favoritismo endogrupal e o efeito de homogeneidade do exogrupo, mas os resultados têm-se mostrado inconsistentes. Como referimos, os resultados obtidos por Park e Rothbart (1982) apontam para uma independência do efeito de homogeneidade do exogrupo face ao favoritismo endogrupal. Na mesma linha de ideias, Krueger (1992) considera o favoritismo endogrupal e o efeito de homogeneidade do exogrupo como fenómenos independentes, sendo a sua frequente co-ocorrência na percepção social um importante antecedente do conflito social. Na opinião de Simon (1992a), existe evidência empírica para considerar o favoritismo endogrupal como uma consequência do efeito de homogeneidade do exogrupo. Mas, o favoritismo endogrupal também pode ser positivamente relacionado com o efeito de homogeneidade do endogrupo (e.g., Brown e Simon, 1989; Simon e Pettigrew, 1990). Globalmente, o favoritismo endogrupal parece justificado por causa deste ser percebido como relativamente homogéneo em atributos avaliados positivamente, enquanto que, simultaneamente, o exogrupo é percebido como relativamente homogéneo em atributos avaliados negativamente. Simon (1992a) refere que: “depending on the relative strength of the two homogeneity effects, ingroup favouritism may be mainly a function of the absolute enhancement of the ingroup, mainly a function of the absolute devaluation of the outgroup, or a combined function of both” (p.26). Neste sentido, Simon (1992a) considera que a pesquisa sobre a homogeneidade percebida pode ajudar a identificar o locus do favoritismo endogrupal. No entanto, a
  • 226. Racismo e Etnicidade em Portugal 226 pesquisa desenvolvida no sentido de esclarecer a relação entre estes dois fenómenos tem produzido resultados ambíguos ou inconsistentes (e.g., Brewer, 1993; Judd et al., 1995). Algumas pesquisas sugerem que a valência dos traços é um determinante normativo-motivacional da homogeneidade percebida (Haslam et al., 1995). Contudo, outros estudos indicam que a percepção de homogeneidade é equivalente em traços favoráveis e desfavoráveis, sugerindo que o efeito de homogeneidade do exogrupo é independente do favoritismo endogrupal (Jones et al., 1981; Park e Rothbart, 1982; Park e Judd, 1990). Ou seja, enquanto uns estudos apontam para uma interdependência entre estes dois fenómenos (e.g., Haslam et al., 1995; Simon, 1992a), outros apontam para uma independência (e.g., Jones et al., 1981; Krueger, 1992; Park e Rothbart, 1982; Park e Judd, 1990), e outros não permitem quaisquer conclusões sobre a relação entre estes fenómenos (Judd et al., 1995). Por outro lado, a pesquisa sobre o efeito de homogeneidade do exogrupo partiu da constatação de que a pertença grupal tem um forte impacto na percepção da variabilidade grupal. Mas o endogrupo e exogrupo podem diferir de numerosas maneiras - uma das diferenças que tem recebido alguma atenção por parte dos investigadores no âmbito da cognição social é o contraste entre os grupos ‘naturais’ e os ‘grupos mínimos’. A maior partes das investigações sobre o efeito de homogeneidade do exogrupo foram efectuadas com grupos ‘naturais’ (e.g., Haslam, Oakes e Turner, 1995; Linville e Jones, 1980; Linville, Fischer e Salovey, 1989; Park e Judd, 1990; Park, Ryan e Judd, 1990; Park e Rothbart, 1982; Quattrone e Jones, 1980). Sobretudo a partir do início da década de noventa diversos estudos começaram a examinar o efeito da homogeneidade do exogrupo em ‘grupos mínimos’ (e.g., Doosje, Ellemers e Spears, 1995; Ellemers, Spears e Doosje, 1997; Judd e Park, 1988; Mackie, Sherman e Worth, 1993; Simon e Mummendey, 1990). Na opinião de Ostrom e Sedikides (1992), o paradigma dos ‘grupos mínimos’ oferece oportunidades para refinar e testar teorias básicas da percepção de grupos. Na sua revisão de literatura sobre o efeito de homogeneidade do exogrupo, Ostrom e Sedikides (1992) apresentam forte suporte para o efeito de homogeneidade do exogrupo (utilizando diferentes tipos de medidas) em grupos naturais, mas uma fraca evidência para a emergência deste efeito em experiências com ‘grupos mínimos’. Em contrapartida, Mullen e Hu (1989), numa meta-análise da literatura, referem fraca, mas significativa, evidência para o efeito de homogeneidade do exogrupo em ‘grupos mínimos’. Numa revisão de literatura mais recente, Voci (2000) demonstra que o efeito
  • 227. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 227 de homogeneidade do exogrupo é observável em grupos mínimos quando estes têm todos o mesmo tamanho, mas quando os grupos têm tamanhos relativos diferentes observam-se significativas assimetrias na percepção da variabilidade grupal. As pesquisas com ‘grupos mínimos’ apresentam algumas limitações: criando experimentalmente pertenças categoriais mínimas, omite-se, na maior parte dos casos, a introduzição na situação de um factor essencial - a posição respectiva dos grupos na sociedade e as representações que os indivíduos podem ter das categorias sociais em interacção (Doise e Lorenzi-Cioldi, 1990). As explicações sobre o efeito de homogeneidade do exogrupo têm mudado consideravelmente à medida que se esclarecem as condições de ocorrência deste fenómeno. A primeira explicação do efeito de homogeneidade do exogrupo foi baseada na familiaridade diferencial (e.g., Taylor et al., 1978): maior familiaridade com o endogrupo conduziria a um maior conhecimento deste, o que por seu turno, levaria a maior variabilidade percebida deste grupo face ao exogrupo. Relativamente a esta hipótese, Park e Rothbart (1982) referem: “It is not surprising that several generations of Princeton students judge Turks in a rather stereotypic manner (Gilbert, 1951; Karlins, Coffman e Walters, 1969; Katz e Braly, 1933). It would be more impressive if out-group homogeneity could be demonstrated between groups with close contact, and it is difficult to find two groups that have more continual contact than men and women” (p.1055). Neste sentido, a demonstração do efeito de homogeneidade do exogrupo entre homens e mulheres (e.g., Park e Rothbart, 1982; Lorenzi-Cioldi, 1993) constituiu um severo teste a esta hipótese. Diversos estudos apontam para o facto de não existir uma relação linear entre a percepção da variabilidade e a frequência dos contactos e/ou o número de membros conhecidos nos grupos considerados (e.g., Judd e Park, 1988; Park e Rothbart, 1982; Quattrone, 1986; Quattrone e Jones, 1980). Outro severo teste à hipótese da familiaridade advêm da observação do efeito de homogeneidade do exogrupo em experiências com ‘grupos mínimos’, onde os participantes possuem pouca ou nenhuma informação sobre os membros do endogrupo e do exogrupo (Brown, 2000), assim como das variações observadas neste fenómeno em função das dinâmicas de
  • 228. Racismo e Etnicidade em Portugal 228 formação de grupos ‘reais’ ao longo do tempo (Brown e Wootton-Millward, 1993; Oakes, Haslam, Morrison e Grace, 1992; Ryan e Bogardt, 1997). Quattrone (1986) sugere que, quando se encontram elementos de um exogrupo, se atende primeiramente às semelhanças entre eles, não se atribuindo atenção às diferenças individuais. Na opinião de Quattrone (1986), um factor que pode explicar o efeito de homogeneidade do exogrupo apesar dos numerosos contactos (e.g., sexo oposto) é que os contactos intergrupais tendem a ocorrer numa gama restrita de situações – ‘enviesamento situacional da amostra’ (situational sample bias) - e que estas situações implicam papéis mais ou menos rígidos aos indivíduos. Mas, mesmo que os membros do exogrupo sejam observados numa variedade de papéis e de contextos situacionais, o indivíduo pode continuar a perceber o exogrupo como mais homogéneo. Um factor adicional que pode explicar este efeito é que a amostra de elementos do exogrupo pode estar enviesada – ‘enviesamento taxonómico da amostra’ (taxonomic sample bias) - isto é, pode ser constituída apenas por um determinado subtipo de indivíduos. Contudo, o enviesamento pode não estar na amostra mas na informação que dela é retirada (e.g., o participante pode prestar mais atenção à ‘raça’ do que à profissão de um membro do exogrupo, embora considere a profissão para avaliar um membro do seu próprio grupo). Neste sentido, Park e Rothbart (1982) propõem uma explicação alternativa para o efeito de homogeneidade do exogrupo: “the categories used to encode out-group behavior are superordinate, general and undifferentiated, whereas the categories used to encode in-group behavior include more subordinate, differentiated categories as well” (p.1064). Para testar esta hipótese, Park e Rothbart (1982, Exp.4) realizaram uma experiência em que os participantes, estudantes do sexo masculino e feminino, receberam informação idêntica (um pequeno episódio) acerca de um indivíduo (homem/mulher). Os resultados demonstraram que os participantes recordam melhor os atributos subordinados (e.g., profissão) de um membro do endogrupo do que de um membro do exogrupo. Já que a exposição à informação acerca do endogrupo e do exogrupo foi equivalente, a informação diferencial, por si só, não constitui explicação
  • 229. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 229 suficiente para o efeito de homogeneidade do exogrupo. Na opinião dos autores, a aprendizagem diferencial para as características dos membros do endogrupo e do exogrupo pode constituir uma fonte poderosa de erro na formação de impressões sobre os membros do exogrupo (e.g., Hamilton e Gifford, 1975; Howard e Rothbart, 1980). Rothbart (1981) considera que, dentro de certos limites, as estruturas existentes tornam-se auto-perpetuadoras, isto é, a falha em codificar ou apreender os atributos subordinados dos membros do exogrupo perpetua a visão do exogrupo como relativamente homogéneo e indiferenciado. Uma outra explicação para o efeito de homogeneidade do exogrupo, referida por Quattrone (1986), é a insensibilidade dos indivíduos aos dados infirmatórios: o facto dos indivíduos ignorarem os dados infirmatórios preserva a percepção da homogeneidade do exogrupo. Com efeito, a pesquisa sobre estereótipos tem demonstrado que estes são bastante resistentes à mudança, mesmo em presença de evidência desconfirmatória (e.g., Hamilton, 1979; Snyder, 1981). Um caso frequentemente observado, consiste em considerar o actor cujo comportamento desacredita as nossas crenças como uma excepção à regra (Hewstone e Brown, 1988; Quattrone, 1986). Numerosos estudos demonstram como os estereótipos podem ser mantidos através da natureza auto-realizadora da sua influência na interacção social, tanto da parte dos observadores como dos alvos dos estereótipos (e.g., Darley e Fazio, 1980; Hamilton, 1979, 1981; Snyder, 1981; Snyder e Swann, 1978; Steel, 1997; Word, Zanna e Cooper, 1977). Os estereótipos influenciam, de várias formas, o processamento da informação acerca de um membro de um grupo social: focar a atenção num aspecto particular do comportamento do indivíduo, tornando esse aspecto mais saliente; interpretar certos comportamentos ambíguos como consonantes com o estereótipo; recuperar selectivamente a informação armazenada na memória; procurar informação adicional confirmatória e não infirmatória (e.g., Johnston e Macrae, 1994; Yzerbyt e Leyens, 1991). Para além da influência no processamento da informação per se, os estereótipos podem levar o observador a ir além da informação disponível. Como protótipos, os estereótipos bem desenvolvidos “may result in the perceiver ‘seeing’ certain things
  • 230. Racismo e Etnicidade em Portugal 230 which were not a part of the stimulus configuration, ‘filling in the gaps’ in terms of the schema-based expectancies” (Hamilton, 1979, p.68). Diversos estudos demonstram que os participantes ‘vêem’ o que é congruente com o estereótipo e ‘não vêem’ o que é incongruente. No entanto, a informação incongruente com o estereótipo nem sempre é ignorada: em certas condições, a informação fortemente incongruente com as expectativas pode aumentar a sua saliência e assim o seu impacto, resultando numa mudança da estrutura cognitiva. Assim, a percepção da homogeneidade do exogrupo parece ser um dos factores que contribui para a formação dos estereótipos, e estes, por sua vez, parecem contribuir para a manutenção da percepção da homogeneidade do exogrupo, através da sua influência ao nível da selecção e do tratamento da informação (e.g., Brewer e Brown, 1998). As pesquisas empíricas sobre a variabilidade grupal percebida conduziram à elaboração e refinamento de diferentes modelos cognitivos explicativos do efeito de homogeneidade do exogrupo. Os modelos cognitivos da variabilidade grupal percebida que mais têm sido testados empiricamente são os de Linville, Salovey e Fischer (1986) e de Judd e Park (1988). De acordo com Linville, Salovey e Fischer (1986; Linville, Fischer e Salovey, 1989; Linville e Fischer, 1993) as pessoas armazenam informação acerca de ‘exemplares’ da categoria, isto é, membros individualizados do grupo ou diferentes subtipos do grupo, não sendo armazenadas na memória quaisquer abstracções acerca da variabilidade grupal. De notar que, segundo Linville e colaboradores, os subtipos são registados a título de exemplares concretos, isto é, não têm estatuto particular nos julgamentos de variabilidade. No momento de efectuar um julgamento, o indivíduo estima o grau de variabilidade - calcula os índices de tendência central e de dispersão - somente na base da recuperação de informação acerca dos exemplares (exemplar level information). Como a interacção com os membros do endogrupo é, usualmente, mais frequente e numa maior variedade de contextos, pode ser recuperada informação mais diferenciada acerca dos exemplares do endogrupo do que acerca dos exemplares do exogrupo. Deste modo, o exogrupo é percebido como mais homogéneo do que o endogrupo. Assim, o modelo de Linville explica o efeito de homogeneidade do exogrupo essencialmente a partir da familiaridade diferencial com os exemplares. De acordo com este modelo, como conhecemos tantos homens como mulheres, uma repartição dos
  • 231. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 231 grupos baseada puramente no sexo não deveria dar origem ao efeito de homogeneidade do exogrupo (Linville et al., 1989). No entanto, Park e Judd (1990) mostram que a ausência de diferenças na homogeneidade percebida entre grupos sexuais, defendida por Linville e colaboradores, depende do índice de variabilidade que é escolhido. Se é verdade que a medida relativa à probabilidade de diferenciação (Pd) não apresentou diferença significativa (Linville et al., 1989), tal não se verificou em outras medidas de dispersão percebida (por exemplo, a amplitude) nem nas medidas de conformidade com o estereótipo. Além disso, o efeito de homogeneidade do exogrupo entre grupos sexuais tem sido evidenciado em pesquisas realizadas por diversos investigadores (e.g., Lorenzi-Cioldi, 1993; Lorenzi-Cioldi et al., 1995; Mackie et al., 1993; Park e Rothbart, 1982). Judd e Park (1988; Park e Judd, 1990) argumentam que, em adição à informação acerca dos ‘exemplares’, é também armazenada na memória informação ‘abstracta’ acerca do grupo como um todo (group level information). Na opinião dos autores, as abstracções acerca da variabilidade grupal, com inclusão da sua tendência central e da sua dispersão, são também armazenadas na memória. Assim, os julgamentos de variabilidade seriam baseados na recuperação das abstracções acerca da variabilidade grupal. A informação recuperada acerca de exemplares também pode influenciar estes julgamentos, mas esta teria menor probabilidade de ser usada para os julgamentos da variabilidade do exogrupo do que para os julgamentos de variabilidade do endogrupo. Consequentemente, a relativa heterogeneidade do endogrupo seria maior e o exogrupo seria avaliado como mais homogéneo do que o endogrupo. O modelo de Judd e Park atribui muito menor peso à familiaridade do que o de Linville e colaboradores, baseado unicamente na recuperação de exemplares. Em contrapartida, atribui maior peso às expectativas, às ideias pré-estabelecidas sobre a homogeneidade do grupo, que podem filtrar a codificação e recuperação dos exemplares e as suas interpretações. Park, Judd e Ryan (1991) sugerem vários factores que afectam o processo de codificação ou de recuperação da informação, sendo responsáveis pelo uso diferencial de informações sobre ‘exemplares’ para os julgamentos do endogrupo e do exogrupo. Primeiro, existe uma maior motivação para a exactidão nos julgamentos do endogrupo do que nos julgamentos do exogrupo. Segundo, diferentes níveis de experiência ou de familiaridade com o endogrupo podem significar mais exemplares disponíveis, e mais variados, do endogrupo do que do exogrupo. Terceiro, o uso diferencial do self,
  • 232. Racismo e Etnicidade em Portugal 232 elemento saliente e único, como um exemplar do endogrupo pode influenciar os julgamentos sobre o endogrupo mas não os julgamentos sobre o exogrupo. Assim, os indivíduos confiariam nas crenças pré-existentes acerca da homogeneidade grupal quando julgando a variabilidade do exogrupo, mas alterariam essas crenças na base da recuperação de exemplares quando julgando a variabilidade do endogrupo. Ostrom, Carpenter, Sedikides e Li (1993) postulam que a informação armazenada sobre o endogrupo e o exogrupo é estruturada de forma diferente. Mais especificamente, a informação relativa ao endogrupo é estruturada sob a forma de ‘categorias pessoais’ (person categories) enquanto que a informação sobre o exogrupo é estruturada sob a forma de ‘atributos categoriais’ relacionados com o estereótipo grupal. Segundo estes autores, os julgamentos da variabilidade grupal envolvem, por vezes, a procura desta informação armazenada. A procura de tais estruturas cognitivas produziria informação individualizada para o endogrupo e informação baseada nas semelhanças categoriais para o exogrupo. Assim, o endogrupo seria percebido como relativamente heterogéneo, enquanto o exogrupo seria percebido como relativamente homogéneo. Por seu turno, Kashima e Kashima (1993) consideram que a percepção da variabilidade grupal é uma função aditiva do conjunto das semelhanças e das diferenças entre os membros do grupo. Este modelo - Dual Predictor Model - é adaptado do modelo de Tversky (1977; citado por Kashima e Kashima, 1993) sobre os julgamentos de semelhança. De acordo com Tversky, a semelhança entre dois exemplares é duplamente determinada pelo número de características que esses dois exemplares partilham e pelo número de características distintas de cada exemplar. Quando aumenta o número de características partilhadas, aumenta a semelhança e quando aumenta o número de características distintas, a semelhança diminui. Kashima e Kashima sugerem que os julgamentos de variabilidade grupal são essencialmente julgamentos sobre a semelhança entre os membros do grupo. Quando é pedido um julgamento de variabilidade, são recuperados os exemplares do grupo disponíveis na memória e são comparadas as suas semelhanças e diferenças. Com base no número global de semelhanças e de diferenças nos exemplares recuperados é formada uma estimativa global da variabilidade grupal. De acordo com este modelo, o efeito de homogeneidade do exogrupo resulta da utilização diferencial das informações de semelhança e de diferença nos julgamentos do endogrupo e do exogrupo.
  • 233. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 233 De acordo com Kraus, Ryan, Judd, Hastie e Park (1993), as pessoas criam espontaneamente distribuições mentais de frequências que resumem o número de membros do grupo que apresentam determinados atributos em diferentes níveis de várias dimensões. Quando é requerido um julgamento de variabilidade, os participantes recuperam estas distribuições e baseiam os seus julgamentos de variabilidade no número de níveis (subtipos) usados para discriminar entre os membros do grupo nos vários atributos. De acordo com este modelo, o efeito de homogeneidade do exogrupo ocorre porque os membros do endogrupo são espontaneamente classificados ao longo de um maior número de subtipos qualquer que seja a dimensão em causa. Na opinião dos autores, isto ocorre porque as pessoas estão mais interessadas em detalhes diferenciados e individualizados sobre os membros do endogrupo do que sobre os membros do exogrupo. Estes diferentes modelos cognitivos diferem no grau em que assumem que os julgamentos de variabilidade são efectuados em directo (on-line) ou em diferido (memory-based), aspectos que não cabe explorar no âmbito deste trabalho. Mackie et al. (1993) efectuaram duas experiências na tentativa de testar o poder explicativo destes diferentes modelos, no entanto, não chegaram a resultados conclusivos. Globalmente, os modelos cognitivos da percepção da variabilidade grupal apresentam uma preocupação quase exclusiva com os ‘microprocessos’ intraindividuais de natureza estreitamente cognitiva, embora tenham em consideração alguns aspectos de ordem motivacional. Uma das críticas que têm sido apontadas a estes modelos é a negligência do contexto intergrupal em que os julgamentos de variabilidade ocorrem. Ao focalizar-se na forma como os participantes lidam com a ‘informação objectiva’ que lhes é fornecida sobre determinado grupo, a perspectiva da cognição social esquece que o significado dessa informação é determinado pelo contexto envolvente. Como referem Oakes e Turner: “For social-psychological purposes it does not seem appropriate to define 'information' in the abstract. Information is what the perceiver needs to know at a given moment in order to represent reality such as he can achieve his goals. Categorization works to maximize information in this sense (e.g. Rosch, 1978, p.28) by selectively drawing out aspects of structure, of similarity and difference in stimulus information, which are relevant to the perceiver's current requirements within the stimulus context as a whole” (1990, p.121).
  • 234. Racismo e Etnicidade em Portugal 234 No início da década de noventa, diversas linhas de pesquisa inspiradas na teoria da identidade social (Tajfel e Turner, 1979) ou nos seus desenvolvimentos mais recentes, vieram demonstrar a necessidade de estudar a percepção da variabilidade grupal tendo em conta o contexto social (e.g., Brewer, 1993; Oakes, Haslam e Turner, 1994; Simon, 1992a). A investigação desenvolvida neste âmbito conduziu à identificação de diversos factores que contribuem para uma atenuação do efeito de homogeneidade do exogrupo e até a sua eventual substituição pelo efeito de homogeneidade do endogrupo. Na década de oitenta a maior parte dos autores da cognição social, era da opinião de que o efeito de homogeneidade do exogrupo se manifestava de forma simétrica para ambos os grupos em presença: “(a) the perception of variability within a group is influenced by one's status as an in-group or out-group member, and (b) the effect should be symmetrical for both parties of the in-group - out-group dichotomy” (Park e Rothbart, 1982, p.1052). No entanto, os estudos explorando o impacto da identidade social na percepção dos grupos sociais apontaram para uma manifestação assimétrica deste fenómeno conforme o estatuto dos grupos em presença (e.g., Lorenzi-Cioldi, 1993; Simon, 1992a). No início dos anos noventa, numa revisão de literatura sobre a importância do contexto na percepção da variabilidade grupal, Simon (1992a) conclui que: “the outgroup homogeneity effect (...) is by no means a universal law - rather, both outgroup and ingroup homogeneity effects are found - and that models of category representation which ignore the influence of intergroup context are insufficient” (p.1). Na opinião do autor considera, os modelos cognitivos da percepção da variabilidade grupal não permitem explicar o aparecimento do efeito da homogeneidade do endogrupo, salientando a necessidade de atribuírem maior peso a variáveis motivacionais e contextuais. Simon (1992a) examina três factores moderadores da variabilidade grupal percebida ligados ao contexto intergrupal: a relação numérica entre endogrupo e o exogrupo; a relevância das dimensões ou atributos em questão para a
  • 235. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 235 definição da identidade social dos membros do endogrupo e dos membros do exogrupo; e os estereótipos grupais socialmente predominantes. Seguidamente, iremos apresentar algumas experiências em que estes factores do contexto foram tidos em consideração, e cujos resultados apontam para uma manifestação assimétrica do efeito de homogeneidade do exogrupo. A tipicabilidade dos traços ou dimensões julgados, isto é, a sua importância para a identidade social dos membros do grupo, parece ser um factor moderador do efeito de homogeneidade do exogrupo. Simon (1990, citado por Simon, 1992a), recorrendo a experiências com ‘grupos mínimos’, verificou que o exogrupo era percebido como mais homogéneo nos traços típicos deste, o mesmo acontecendo com o endogrupo. A questão da tipicabilidade das escalas de avaliação utilizadas tem consequências teóricas importantes. Se as diferenças na dispersão percebida derivam da confiança do indivíduo nos estereótipos, então estes efeitos deveriam ser observados apenas nos traços estereotípicos. Se, por outro lado, as diferenças derivam de uma crença global, não específica, de que os membros do exogrupo são todos parecidos uns com os outros, então o efeito de homogeneidade do exogrupo deveria ser obtido tanto em traços estereotípicos como em traços irrelevantes para o estereótipo (Simon, 1992a). Quando a identidade social está saliente, tanto o efeito de homogeneidade do exogrupo como o efeito de homogeneidade do endogrupo são prováveis de ocorrer, dependendo dos atributos específicos em questão (Simon, 1990, 1992b). Isto é, independentemente da posição maioritária ou minoritária dos grupos, é muito provável ocorrer o efeito de homogeneidade do endogrupo nos atributos relevantes para a identidade social respectiva, enquanto que o efeito de homogeneidade do exogrupo é esperado nos atributos tipicamente associados com o exogrupo. Simon (1992a) argumenta que o exogrupo tem, geralmente, maior probabilidade de se tornar uma entidade social saliente do que o endogrupo. Isto implica que os atributos típicos do exogrupo apresentem maior probabilidade de serem activados espontaneamente do que os traços típicos do endogrupo. Assim, os julgamentos de variabilidade podem ser feitos espontaneamente em referência aos traços típicos do exogrupo. Por exemplo, quando a variabilidade é julgada sem referência explícita a traços específicos (e.g., Park e Rothbart, 1982, Exp.3), os julgamentos da variabilidade geral podem ser largamente determinados pelos pressupostos acerca da variabilidade do endogrupo e do exogrupo em atributos típicos do exogrupo. No conjunto, então, a
  • 236. Racismo e Etnicidade em Portugal 236 homogeneidade percebida do exogrupo deveria exceder a homogeneidade percebida do endogrupo. Por outro lado, quando a identidade social está ameaçada, o endogrupo tornar-se-ia uma entidade social mais saliente, e nesta sequência, os membros do grupo fariam espontaneamente julgamentos de variabilidade tendo como referência os traços típicos do endogrupo, o que se traduziria no efeito de homogeneidade do endogrupo. O tamanho relativo dos grupos parece ser outro factor moderador do efeito da homogeneidade do outgroup. Mullen e Hu (1989) verificaram que este efeito é mais forte quando o endogrupo está em maioria numérica face ao exogrupo. Este efeito foi obtido em várias experiências com ‘grupos mínimos’: os membros das minorias consideraram o endogrupo como mais previsível e menos variável do que o exogrupo, enquanto que para os membros das maiorias se verificou o efeito inverso (e.g., Simon e Brown, 1987; Simon e Mummendey, 1990; Simon e Pettigrew, 1990). Outras pesquisas também demonstraram o efeito de homogeneidade do endogrupo para membros de minorias com grupos ‘naturais’ (e.g., Brown e Smith, 1989; Mullen e Hu, 1989). De acordo com Simon, a percepção da variabilidade grupal está relacionada não somente com a posição explícita de maioria ou minoria dos grupos, mas também com os pressupostos implícitos dos membros do grupo acerca da sua posição maioritária ou minoritária. Numa experiência com ‘grupos mínimos’, Simon e Mummendey (1990) criaram duas condições experimentais: condição ‘paridade’ (50% ingroup / 50% outgroup) e condição ‘não informação’ (os participantes não recebiam informação acerca do tamanho dos grupos). Seguindo apesquisa sobre o falso consenso (Rose, Greene e House, 1977; citados por Simon e Mummendey, 1990), os autores esperavam que os participantes da condição ‘não informação’ sobrestimassem o tamanho relativo do endogrupo. Assim, na ausência de informação explícita acerca do tamanho relativo do grupo, os membros do grupo vêm-se a si próprios como membros de uma maioria. Na condição ‘paridade’, o efeito de homogeneidade do exogrupo foi mais fraco, tal como era esperado pelos autores. Na opinião de Simon (1992a), os indivíduos utilizam o conhecimento do tamanho do grupo como uma heurística para estimar a variabilidade grupal, sendo os grupos maiores considerados mais heterogéneos do que os grupos menores. Assim, quando o endogrupo está em minoria numérica, é provável verificar-se o efeito da homogeneidade do endogrupo. As situações intergrupais na vida real são frequentemente caracterizadas por uma assimetria em termos de tamanho dos grupos envolvidos. Simon (1992a) refere
  • 237. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 237 que nas culturas ocidentais (com um ênfase ideológico na regra da maioria) a inferioridade numérica é provavelmente associada ao erro, ao desvio ou à fraqueza (Festinger, 1954; Gerard, 1985; Sachdev e Bourhis, 1984; Sherif, 1966; citados por Simon, 1992a). Assim, este autor considera que, ser membro de uma minoria pode constituir uma ameaça à auto-estima, e por isso os membros de uma minoria estariam motivados para contrariar esta ameaça, acentuando a sua identidade social positiva. Percepcionar maior homogeneidade no endogrupo do que no exogrupo seria um meio para alcançar esse fim. À maior homogeneidade do grupo seria associado um valor mais alto de ‘groupness’, que constitui uma medida de suporte social e solidariedade que o grupo oferece aos seus membros (Allen, 1985; citado por Simon, 1992a). Neste sentido, a relativa homogeneidade do endogrupo prometeria superioridade deste grupo em termos de suporte e solidariedade intragrupal. Resumindo: “minority members were expected to perceive more ingroup than outgroup homogeneity, while non-minority members, being less motived to accentuate their positive social identity, were expected to show the usual outgroup homogeneity effect” (Simon, 1992a, p.5). A posição do grupo como maioria ou minoria tem sido aqui definida em termos numéricos. No entanto, como referimos no primeiro capítulo, as maiorias ou minorias numéricas têm de ser distinguidas das maiorias e minorias sociais, que habitualmente são definidas em termos do estatuto social do grupo (dominante versus dominado) (Deschamps, 1982a; Lorenzi-Cioldi, 1988; Tajfel, 1981/1983). Embora nos contextos intergrupais da vida real, a assimetria numérica maioria/minoria coincida, frequentemente, com as assimetrias de poder ou de estatuto, de tal forma que a maioria/minoria numérica seja também uma maioria/minoria social (Farley, 1982; citado por Simon, 1992a), existem numerosas excepções a esta regra, sendo a mais óbvia de todas a categoria ‘mulheres’. Por consequência, os resultados obtidos com as maiorias ou minorias numéricas não devem ser acriticamente generalizados para as maiorias ou minorias sociais. Simon, Glässner-Bayerl e Stratenwerth (1991), num estudo com grupos naturais, examinaram as percepções da variabilidade grupal em membros de uma minoria estigmatizada (homens homossexuais) e membros da correspondente maioria dominante
  • 238. Racismo e Etnicidade em Portugal 238 (homens heterossexuais). Os autores esperavam que os membros da minoria estigmatizada participassem nas crenças socialmente prevalentes, isto é, nas crenças da maioria heterossexual. Essas crenças, incluindo crenças sobre a variabilidade dos homossexuais e dos heterossexuais, seriam, muito provavelmente, partilhadas para além das fronteiras do grupo. A tarefa dos participantes (homens homossexuais e heterossexuais) consistia em julgar a distribuição de frequências de vários atributos, tanto para o endogrupo como para o exogrupo: conotados positiva ou negativamente e tipicamente associados aos homossexuais ou aos heterossexuais. Foram utilizadas três medidas de variabilidade grupal percebida: a amplitude da distribuição; o desvio-padrão; e a probabilidade de diferenciação. Verificou-se que, para os participantes heterossexuais, o efeito de homogeneidade do exogrupo foi a regra, mas com uma excepção: foi atribuída maior variabilidade ao exogrupo nos atributos conotados positivamente e típicos dos heterossexuais. Contrariamente, para os participantes homossexuais, o efeito de homogeneidade do endogrupo foi a regra, mas novamente com uma excepção: foi atribuída maior variabilidade ao endogrupo nos atributos positivos típicos dos heterossexuais. Na opinião dos autores, a explicação mais parcimoniosa para este padrão de resultados é que existe uma forte crença na sociedade (alemã) que os homossexuais são mais semelhantes uns aos outros do que os heterossexuais, em quase todos os atributos relevantes. Por consequência, os participantes homossexuais e heterossexuais, como membros da mesma sociedade, partilhariam essa crença. No entanto, este padrão de resultados não foi observado na homogeneidade geral. Quando os julgamentos não se referiam a atributos específicos, mas a semelhanças ou diferenças em geral, tanto homossexuais como heterossexuais atribuíram significativamente maior homogeneidade ao exogrupo do que ao endogrupo. Na opinião de Simon, o acordo entre ambos os grupos de participantes em relação à variabilidade percebida dos dois grupos-alvo sugere que os efeitos de homogeneidade observados não são efeitos ‘puros’ da categorização social: “ingroup-outgroup categorizations do not operate in a social vacuum and, more specifically, that socially shared stereotypes are important co-determinants of the homogeneity one ascribes to one's own as well as to other groups” (1992a, pp.22- 23).
  • 239. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 239 Simon (1992a) considera a percepção da homogeneidade grupal como uma componente central do processo de estereotipia. Na acepção deste autor, o efeito de homogeneidade do exogrupo pode ser visto como um indicador da estereotipia do exogrupo e, paralelamente, o efeito de homogeneidade do endogrupo pode ser interpretado como um indicador da estereotipia do endogrupo ou da auto-estereotipia. Na opinião de Simon e colaboradores (1991), as percepções da homogeneidade grupal, tal como os estereótipos sociais, são socialmente partilhadas. No global, os membros da maioria dominante vêem a minoria em termos mais estereotipados, isto é, como mais homogénea, do que a maioria dominante. Os membros da minoria estigmatizada, pelo menos ao nível dos atributos específicos, partilham a visão da maioria. Assim, a percepção da variabilidade grupal não depende somente da perspectiva do observador (se o grupo em questão é o endogrupo ou o exogrupo) mas também dos estereótipos e das crenças específicas (acerca dos grupos em questão) predominantes no contexto social ou intergrupal. De acordo com Simon, os modelos da representação cognitiva que ignoram a influência do contexto intergrupal no processamento da informação social são demasiado estáticos para dar conta da plasticidade observada na percepção da variabilidade grupal. Neste sentido, Simon (1992a, 1993) propõe um modelo - Egocentric Social Categorization (ESC-model) - que se baseia na premissa de que, pelo menos nas culturas ocidentais, com a sua orientação individualista, a diferenciação cognitiva do mundo social, por parte do observador, é egocêntrica, isto é, a distinção básica que o indivíduo faz no mundo social é a distinção entre as categorias ‘eu’ (me) e ‘não-eu’ (not-me). Este egocentrismo facilita a construção cognitiva da categoria exogrupo relativamente à categoria endogrupo: “Outgroups are construed simply by futher subcategorization of the category NOT- ME, while the cognitive construal of ingroups requires a shift in the dominant social categorization from ME vs. NOT-ME to WE vs. THEY. This shift, however, presupposes social identification processes. Thus, unless these processes are triggered, an asymmetry in the cognitive construal of outgroups and ingroups is to be expected. Outgroups are more likely to be construed as homogeneous social categories or groups (group level representation) than ingroups, which are instead construed more in termes of heterogeneous aggregates of individual exemples (exemplar-level representation). Perceived relative outgroup homogeneity is then the likely cognitive outcome” (1992a, p.24).
  • 240. Racismo e Etnicidade em Portugal 240 Como referimos, Simon critica os modelos cognitivos por não terem em consideração o papel mediador do contexto intergrupal. No entanto, o ESC-model, claramente inspirado na teoria da auto-categorização (ver ponto 2.3.2), parece-nos igualmente limitativo. Ao estipular a orientação egocêntrica como uma característica universal (pelo menos nas sociedades ocidentais), este modelo aplica-se sobretudo aos membros dos grupos dominantes. Colocando as estratégias de diferenciação do indivíduo enquanto indivíduo como o motor explicativo de todo o processo, este modelo parece esquecer as determinantes sociais que, como o próprio autor salienta, têm um papel determinante no processamento da informação sobre os grupos sociais. Lorenzi-Cioldi, debruçando-se igualmente sobre a influência do contexto na percepção da variabilidade grupal, aborda esta questão segundo uma perspectiva diferente. Tendo como referência teórica o modelo da dominação (ver ponto 2.3.2), Lorenzi-Cioldi (1988) considera que o estatuto dos grupos em presença constitui um factor modelador da percepção da variabilidade grupal. Os grupos distinguem-se dentro da estrutura social em função, nomeadamente das suas propensões para invocar a indiferenciação e a intermutabilidade dos seus membros - os grupos ‘dominados’ - ou, no caso oposto, a unicidade e diferenciação dos seus membros - os grupos ‘dominantes’. Neste sentido, pode esperar-se que os grupos ‘dominantes’ manifestem o efeito de homogeneidade do exogrupo de forma mais intensa do que os grupos ‘dominados’. Nestes últimos, este enviesamento deverá atenuar-se até, eventualmente, à aparição de um efeito de homogeneidade do endogrupo (Lorenzi-Cioldi, 1993). Para desenvolver esta ideia, o autor realizou uma experiência baseado no paradigma de Taylor et al. (1978). O efeito de homogeneidade do exogrupo traduz-se neste paradigma por um maior número de erros intracategorias em relação aos membros do exogrupo (erros exogrupais) do que em relação aos membros do endogrupo (erros endogrupais), isto é, os participantes são capazes de fazer discriminações mais finas dentro do seu endogrupo. Para que o paradigma de Taylor et al. (1978) constituísse um instrumento útil para o exame da hipótese relativa à assimetria das categorias sociais ao nível do efeito de homogeneidade do exogrupo, Lorenzi-Cioldi (1993) introduziu algumas alterações neste dispositivo experimental. Como o autor refere, nos estudos realizados por outros autores, os temas de discussão escutados pelos participantes foram muito variados, mas,
  • 241. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 241 na maior parte dos casos, estes temas não estavam ligados ao critério de categorização social em questão. Neste sentido, Lorenzi-Cioldi (1993) substituiu o paradigma ‘Quem disse o quê?’ pelo paradigma ‘Quem estava onde?’. A principal característica do paradigma ‘Quem estava onde?’ consiste precisamente em tomar em consideração os conteúdos que estão em relação com o critério da categorização dos grupos em presença. Assim, Lorenzi- Cioldi para testar a hipótese da assimetria entre homens (grupo ‘dominante’) e mulheres (grupo ‘dominado’) manipulou os contextos: contextos ‘privados’ (domésticos); e contextos ‘públicos’ (ligados ao local de trabalho). A escolha deste tipo de manipulação deveu-se ao facto de a dicotomia privado versus público estar bastante presente na literatura sobre estereótipos sexuais. Na opinião de Lorenzi-Cioldi, a manipulação dos contextos pertinentes permite ancorar as percepções na realidade social e desta forma activar de forma mais eficaz a categorização endogrupo/exogrupo. Os resultados deste estudo forneceram algum apoio à hipótese da assimetria: o efeito de homogeneidade do exogrupo manifestou-se de forma mais intensa nos homens do que nas mulheres, isto é, os homens efectuaram um maior número de erros endogrupais (erros intracategoriais em relação ao exogrupo) do que as mulheres, embora esta diferença seja apenas ligeiramente significativa. Os resultados evidenciaram também que as mulheres são mais sensíveis à manipulação do contexto: homogeneizaram o exogrupo (grupo masculino) de forma mais intensa nos contextos privados (‘situação incongruente’) do que nos contextos públicos (‘situação congruente’). Estes resultados apontam no sentido de o estatuto social dos grupos constituir um factor modelador da percepção da homogeneidade grupal: os membros do grupo dominante manifestam o efeito de homogeneidade do exogrupo de forma mais intensa do que os membros do grupo dominado. Nestes últimos, o efeito de homogeneidade do exogrupo atenua-se, podendo, em determinadas circunstâncias verificar-se o efeito inverso, isto é, o efeito de homogeneidade do endogrupo. De acordo com estes resultados e parafraseando a célebre afirmação de Quatrone e Jones (1980), o autor afirma: “They all look alike, but so do we... sometimes” (Lorenzi-Cioldi, 1993, p.111). Cabecinhas (1994) realizou a primeira investigação experimental sobre esta problemática em Portugal. Utilizando uma adaptação do paradigma experimental de Taylor et al. (1978), foram considerados dois critérios de categorização – a cor da pele
  • 242. Racismo e Etnicidade em Portugal 242 (branco/negro: Estudo 1) e o sexo (homem/mulher: Estudo 2) – e foi manipulado o contexto através do tema de conversação – relevante (relações inter-étnicas no Estudo 1 e namoro no Estudo 2) ou irrelevante (vida académica em ambos os estudos). Verificou-se um forte efeito de categorização, isto é, os participantes usaram a cor da pele (Estudo 1) ou o sexo (Estudo 2) como estratégia para codificar, memorizar e recuperar a informação sobre as pessoas-estímulo apresentadas. Este efeito foi influenciado pelo contexto no caso da categorização racial, mas não no caso da categorização sexual, o que demonstra que embora ambas categorizações sejam extremamente poderosas e cronicamente acessíveis a sexual é mais forte do que a racial. Os resultados de ambos os estudos evidenciaram uma manifestação assimétrica do efeito de homogeneidade do exogrupo: globalmente, os membros dos grupos ‘dominados’ (negros num estudo e mulheres no outro) foram mais homogeneizados do que os membros dos grupos ‘dominantes’ (brancos num estudo e homens no outro), independentemente do grupo de pertença do observador. Estudos posteriores realizados por Lorenzi-Cioldi e colaboradores vieram confirmar esta assimetria nos efeitos de homogeneidade em função do estatuto relativo dos grupos, tanto com grupos ‘naturais’ (e.g., Dafflon, 1997; Lorenzi-Cioldi, Eagly e Stewart, 1995; Lorenzi-Cioldi, Deaux e Dafflon, 1998) como com grupos ‘mínimos’, cujo processo de criação implicou uma adaptação no paradigma experimental original (Tajfel et al., 1971) de modo a que os grupos artificialmente criados tivessem estatutos assimétricos (e.g., Lorenzi-Cioldi, 1998, estudos 6,7, 8 e 9). Estudos realizados por outros autores, e recorrendo a diferentes tipos de grupos, vieram confirmar que os grupos com menor estatuto social são mais homogeneizados do que os grupos com maior estatuto (e.g., Boldry e Kashy, 1999; Sedikides, 1997; Stewart, Vassar, Sanchez e David, 2000). Este padrão de resultados não é explicável no âmbito dos modelos cognitivos (e.g., Linville et al., 1989; Park e Judd, 1990) nem no âmbito dos modelos nos quais as assimetrias na percepção de homogeneidade são explicadas por factores meramente contextuais ligados ao princípio do meta-contraste (e.g., Oakes et al., 1994). A compreensão dos complexos padrões de homogeneização e heterogeneização exige a consideração de variáveis de ordem ideológica ou estrutural, que determinam que as posições em que os indivíduos se encontram num dado momento não são intermutáveis.
  • 243. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 243 Esta discussão sobre as assimetrias verificadas nos efeitos de homogeneidade em função do estatuto relativo dos grupos prende-se com a questão dos níveis de análise na investigação em psicologia social. Ao distinguir quatro níveis de análise nos trabalhos dos psicólogos sociais (ver introdução geral), Doise pretendia salientar a necessidade de articulação entre esses diferentes níveis para o alcance de explicações mais completas sobre os fenómenos. Na opinião deste autor, é precisamente o trabalho de articulação que constitui o objecto próprio da psicologia social experimental. Sem este trabalho, as explicações propostas permanecerão necessariamente incompletas (Doise, 1982b, 1999). O autor considera o estudo das relações intergrupais como uma área em que a articulação entre vários níveis de análise é indispensável: “Nem o psicológico nem o sociológico bastam para estudar as relações intergrupos, (...) um estudo psicossociológico (...) completa estas duas abordagens” (Doise, 1976/1984, p.87).
  • 244. Racismo e Etnicidade em Portugal 244 3.5 Questões metodológicas no estudo da variabilidade grupal percebida “?...? la méthodologie n’est pas l’arbitre mais un protagoniste de premier plan dans la recherche et le progrès des sciences sociales”. Fabio Lorenzi-Cioldi, 1997 Nos primeiros estudos sobre a percepção da variabilidade dos grupos sociais foram utilizados diferentes tipos de medidas, sendo a maior parte de natureza descritiva: a intensidade das inferências a partir de um membro da categoria para a categoria como um todo (e.g., Quattrone e Jones, 1980); o número de dimensões usadas para descrever o grupo (e.g., Linville e Jones, 1980); o grau de confiança no estereótipo (e.g., Park e Rothbart, 1982); a estimação de distribuições (e.g., Linville et al., 1989); a listagem de subtipos do grupo (e.g., Park, Judd e Ryan, 1991). A preocupação com os mediadores cognitivos do efeito de homogeneidade do exogrupo conduziu ao desenvolvimento de novas medidas da variabilidade grupal percebida: o tempo de reacção (e.g., Mackie, Sherman e Worth, 1993); a organização da informação em tarefas de recordação livre (e.g., Carpenter, 1993; Ostrom, Carpenter, Sedikides e Li, 1993); os erros na recuperação da informação em tarefas de recordação indiciada (e.g., Lorenzi-Cioldi, 1993); a memória diferencial para atributos supra e subordinados (e.g., Park e Rothbart, 1982). As técnicas usadas para medir a variabilidade grupal percebida têm sido classificadas de diversas formas (Devos et al., 1996; Linville et al., 1986; Ostrom e Sedikides, 1992; Park e Judd, 1990; Quattrone, 1986; Voci, 2000). Numa das primeiras revisões de literatura sobre a percepção da variabilidade grupal, Quattrone (1986) distingue três aspectos da percepção da variabilidade: a ‘variabilidade dimensional’ refere-se às crenças acerca da distribuição dos membros de um grupo ao longo de várias dimensões psicológicas; a ‘variabilidade taxonómica’ relaciona-se com a forma como essas dimensões psicológicas ou atributos covariam (quanto maior a correlação entre os atributos característicos de um dado grupo, menor número de subtipos são reconhecidos dentro do grupo; inversamente, quanto menor a
  • 245. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 245 correlação entre os atributos maior número de subtipos podem ser distinguidos dentro do grupo); a ‘variabilidade geral’ é frequentemente medida interrogando os participantes acerca do grau médio de variabilidade percebida. Por seu turno, Park e Judd (1990; Park, Judd e Ryan, 1991) distinguem três famílias de medidas da variabilidade percebida: a conformidade com o estereótipo ou estereotipicalidade; a dispersão percebida; e a variabilidade global. A conformidade com o estereótipo relaciona-se com a percepção do grau em que os membros do grupo se ajustam aos estereótipos grupais (e.g., Bartsch e Judd, 1993; Park e Judd, 1990; Park, Judd e Ryan, 1991; Park e Rothbart, 1982; Quattrone e Jones, 1980). Por exemplo, pode ser obtido pedindo aos participantes para estimar a percentagem de membros do grupo que apresentam determinados traços estereotípicos e traços contra-estereotípicos: quanto maior for a diferença entre os traços estereotípicos e traços contra-estereotípicos grupal maior a conformidade com o estereótipo. Este tem sido considerado como um dos índices mais robustos de estereotipicalidade (Park e Judd, 1990). Ostrom e Sedikides (1992) consideram que há uma dificuldade séria com a utilização dos índices de estereotipicalidade como medidas da variabilidade percebida devido à interferência do favoritismo endogrupal: os participantes têm tendência a atribuir características mais desejáveis ao endogrupo e características mais indesejáveis ao exogrupo. Consequentemente, as classificações nos índices de conformidade com o estereótipo deverão ser baseadas em igual número de atributos positivos e negativos para cada um dos grupos (Park e Rothbart, 1982; Ostrom e Sedikides, 1992) o que nem sempre tem sido respeitado pelos investigadores. Por exemplo, Bartsch e Judd (1993) avaliaram a conformidade com os estereótipos sexuais a partir de quatro atributos característicos de cada um dos grupos. No entanto, 3 dos 4 atributos estereotípicos femininos tinham uma valência negativa enquanto apenas 2 dos 4 atributos estereotípicos masculinos tinham valência negativa. As medidas de dispersão percebida apresentam aos participantes o mesmo tipo de escalas de respostas que são usadas na determinação da conformidade com o estereótipo, mas em vez de se ter em consideração a média das pontuações, têm em conta a sua dispersão (e.g., Jones et al., 1981; Judd et al., 1991; Judd e Park, 1988; Linville et al., 1989; Park e Judd, 1990; Simon e Brown, 1987; Simon e Pittegrew, 1990; Wilder, 1984). Por exemplo, o índice amplitude é obtido pedindo aos
  • 246. Racismo e Etnicidade em Portugal 246 participantes para indicar os membros mais extremos de um dado grupo em determinado traço. A diferença entre as duas pontuações fornece o índice de amplitude percebida. Este tem sido considerado um dos mais robustos índices de dispersão (Park e Judd, 1990). Nas medidas de variabilidade global solicita-se directamente aos participantes para estimarem a variabilidade de determinado grupo. Por exemplo, recorrendo a escalas cujos extremos são designados com frases do tipo: ‘eles são todos diferentes’ vs. ‘eles são todos semelhantes’ (e.g., Park e Judd, 1990; Park e Rothbart, 1982; Quattrone e Jones, 1980). Na nossa opinião estas classificações de medidas deixa de fora aquelas que são potencialmente mais promissoras para a compreensão dos processos envolvidos na percepção da variabilidade grupal, isto é, as medidas ‘indirectas’. Podemos considerar as medidas de estereotipicalidade, dispersão e variabilidade global como medidas ‘directas’ ou ‘explícitas’, uma vez que os participantes podem facilmente aperceber-se dos objectivos da investigação e ‘controlar’ as suas respostas. Em contrapartida, as medidas ligadas à organização e à recuperação de informação em tarefas de recordação ou ao tempo de resposta são designadas de medidas ‘indirectas’ ou ‘implícitas’ (pois incidem sobre aspectos ‘automáticos’ que dificilmente podem ser conscientemente controlados pelos participantes). Com efeito, numa revisão de literatura anterior (Cabecinhas, Lorenzi-Cioldi e Dafflon, 2002) sobre as diversas medidas da variabilidade percebida conduziu-nos a algumas constatações. Primeiro, a grande maioria dos estudos sobre esta temática utiliza apenas um tipo de medida (e.g., Judd, Ryan e Park, 1991; Park e Judd, 1990; Park, Ryan e Judd, 1992, medidas de estereotipicalidade e de dispersão; Linville, Fischer, e Salovey, 1989, medidas de dispersão; Carpenter, 1993, estudos 1 e 2; Ostrom, Carpenter, Sedikides e Li, 1993, estudos 1, 2 e 3; Sedikides, 1997, estudos 1 e 2, medidas de recordação livre e Lorenzi-Cioldi, 1993; 1998, estudos 5, 6 e 7; Lorenzi- Cioldi, Deaux e Dafflon, 1998; Lorenzi-Cioldi, Eagly e Stewart, 1995, medidas de recordação indiciada). Segundo, os estudos em que são usadas várias medidas revelam inconsistências nos padrões de homogeneização observados. Por exemplo, Park e Judd (1990) usaram várias medidas directas conjuntamente: o efeito de homogeneidade do exogrupo não foi
  • 247. Capítulo 3: Processos cognitivos, estereótipos sociais e percepção da variabilidade grupal 247 observado em todas as medidas empregues e, além disso, as correlações entre as cinco medidas directas utilizadas foram bastante baixas. Terceiro, raramente são utilizadas medidas directas e indirectas (Carpenter, 1993, estudos 1 e 2; Judd e Park, 1988; Ostrom, Carpenter, Sedikides, e Li, 1993, estudos 1, 2 e 3). Destes seis estudos, apenas dois obtiveram resultados concordantes entre as medidas directas e indirectas (Carpenter, 1993, estudo 1; Ostrom et al., 1993, estudo 1). Nos outros três estudos levados a cabo por Carpenter (1993, estudo 2) e Ostrom e colaboradores (1993, estudo 2 e 3), o efeito de homogeniedade do exogrupo foi evidenciado nas medidas indirectas mas não nas medidas directas (no entanto, a inconsistência de resultados obtidos com as medidas directas e indirectas foi apenas mencionada numa nota de roda-pé sem qualquer comentário). Judd e Park (1988) também obtiveram resultados opostos com diferentes medidas directas (medidas de dispersão) e medidas indirectas (medidas de recordação). Na condição de cooperação intergrupal foi obtido um efeito de homogeneidade do exogrupo com medidas indirectas, mas não com medidas directas, enquanto que na condição de competição se verificou um efeito de homogeneidade do exogrupo nas medidas directas, mas não nas medidas indirectas. Quarto, alguns estudos sobre a percepção de variabilidade de grupos com estatuto social assimétrico em que foram utilizadas medidas ‘indirectas’ ou ‘não-obstrusivas’ (por exemplo, o tipo de organização da informação na recordação livre e o tipo de erros de associação da informação na recordação indiciada; Lorenzi-Cioldi, 1998) revelaram padrões de resultados promissores. Com as medidas indirectas os participantes não estão conscientes de que a sua tarefa diz respeito ao grau em que estes categorizam e homogeneízam as pessoas em grupos. Isto constitui uma importante vantagem face às medidas ‘clássicas’ ou ‘directas’ na medida em que os procedimentos que invocam grupos de estatuto desigual tornam a tarefa dos participantes particularmente reactiva (e.g., Wittenbrink, Judd, e Park, 1997). Resumindo, a grande maioria dos estudos sobre a percepção da variabilidade grupal usam apenas um tipo de medida e na maior parte dos casos os resultados confirmam as suas previsões. Contudo, quando várias medidas são usadas, a convergência dos resultados das diferentes medidas não é sistemática. Além disso, os casos que apresentam maior inconsistência nos padrões de homogeneização advêm de estudos que usam conjuntamente as medidas directas e indirectas.
  • 248. Racismo e Etnicidade em Portugal 248 Uma vez que a magnitude dos efeitos de homogeneidade depende das metodologias e do tipo específico de medidas usadas (e.g., Linville, Fischer, e Salovey, 1989; Park e Judd, 1990) é aconselhável o uso de diferentes tipos de medidas para uma melhor compreensão dos processos envolvidos (Devos, Compy e Deschamps, 1996; Marques e Paéz, 2000; Ostrom e Sedikides, 1992). As metodologias indirectas, especificamente a recordação da informação sobre membros do endogrupo e do exogrupo (Lorenzi-Cioldi, 1998; Sedikides, 1997) ou a construção de complexos índices derivados da percepção interpessoal dentro e entre os grupos (Boldry e Kashy, 1999), são particularmente adequadas para avaliar os efeitos de homogeneidade com grupos de estatuto desigual. Mas só uma comparação dos resultados obtidos através de diferentes tipos de medidas nos pode fornecer pistas para uma melhor compreensão dos processos envolvidos. Este é um dos objectivos a que a nossa investigação pretende responder no plano do debate metodológico.
  • 250. CAPÍTULO 4 - ESTUDOS EXPLORATÓRIOS: CATEGORIZAÇÃO E DIFERENCIAÇÃO ENTRE GRUPOS ÉTNICOS
  • 251. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 251 4.1 Introdução Nesta investigação empírica prosseguimos objectivos de ordem teórica e de ordem metodológica. No plano teórico, pretendemos aprofundar o conhecimento dos processos cognitivos subjacentes à discriminação social, baseada na cor da pele, através de uma articulação de níveis de análise. No plano metodológico, pretendemos comparar a eficácia de diferentes tipos de medidas para a compreensão dos processos de tratamento de informação discriminatórios. Como referimos na introdução geral, a pesquisa empírica realizada será apresentada em três capítulos: um dedicado aos estudos exploratórios; outro dedicado aos estudos experimentais; e outro ao estudo correlacional. A explicitação dos objectivos específicos de cada estudo e das respectivas hipóteses será efectuada estudo a estudo, assim como a descrição das metodologias utilizadas. Neste capítulo são apresentados e discutidos os resultados referentes a cinco estudos exploratórios. Nos dois primeiros estudos averiguámos quais os grupos raciais ou étnicos mais relevantes na sociedade portuguesa e de que forma estes são percepcionados, o que nos permitiu seleccionar um grupo minoritário de origem africana para os estudos subsequentes: os ‘angolanos’. Uma vez tomada a decisão sobre os grupos-alvo a considerar nesta investigação – os angolanos (grupo minoritário) e os portugueses (grupo maiortitário) – foram efectuados três estudos sobre os auto- e os hetero-estereótipos de angolanos e de portugueses. Estes três estudos sobre estereótipos, para além dos respectivos objectivos específicos, foram realizados com o objectivo geral de seleccionar os materiais-estímulo para os estudos experimentais subsequentes. A metodologia adoptada na recolha e no tratamento dos dados difere em alguns aspectos fundamentais da que caracteriza a tradição anglo-saxónica nos estudos sobre estereótipos relativos a grupos étnicos. Por um lado, uma vez que se trata de analisar tanto as percepções do grupo maioritário como as percepções de um grupo minoritário, os dados foram recolhidos junto de participantes angolanos e de participantes portugueses. Por outro lado, pretendíamos identificar as dimensões caracterizadoras e diferenciadoras dos estereótipos através da interpretação dos conteúdos fornecidos pelos próprios participantes. Finalmente, a inexistência de estudos anteriores sobre os
  • 252. Racismo e Etnicidade em Portugal 252 estereótipos mútuos destes dois grupos não permitia o recurso a uma lista de adjectivos previamente definida, sob pena de vir a induzir os conteúdos que se procuravam. Por exemplo, Miranda (1994) estudou os estereótipos dos estudantes do ensino secundário (todos portugueses) sobre os ‘portugueses’ e os ‘PALOPs’ em geral (recorrendo à lista de adjectivos seleccionados a partir de um estudo preliminar no qual apenas participaram estudantes portugueses). Vala e colaboradores (Vala, Brito e Lopes, 1999a), num estudo contemporâneo do nosso, analisaram os estereótipos sobre os ‘imigrantes negros’ e os ‘portugueses’ de uma amostra significativa da população residente na Grande Lisboa (todos portugueses brancos) recorrendo a uma reduzida lista de oito adjectivos (agressivo, alegre, bonito, desonesto, egoísta, impulsivo, inteligente e trabalhador), que foram escolhidos sem preocupações de “representatividade como traços estereotípicos de portugueses e de negros, mas sim com a sua representatividade para descrever pessoas de forma positiva ou negativa” (p.76)36 . Outro aspecto a salientar é o facto de termos escolhido dois grupos com o mesmo grau de generalidade – angolanos e portugueses – o que nos permite comparar o grau de homogeneidade dos conteúdos associados a cada um dos grupos. Tal aspecto tem sido frequentemente negligenciado na investigação sobre estereótipos sociais. Como referimos no capítulo 1, no estudo pioneiro sobre racismo em Portugal, Vala e colaboradores (Vala, Brito e Lopes, 1999b) oposeram duas categorias - ‘portugueses’ e ‘negros’, categorias essas que “não se situam no mesmo plano lógico, nem são mutuamente exclusivas” (p.39). Se esta opção nos parece perfeitamente justificada – uma vez que os autores partem do pressuposto segundo o qual os portugueses ‘brancos’ homogeneízam dentro da categoria ‘negro’ as pessoas cuja ascendência africana é identificável através da cor da pele - ela acarreta questões delicadas do ponto de vista metodológico, sobretudo quando os autores pretendem analisar as percepções de variabilidade grupal, pondo ao mesmo nível duas categorias com diferentes graus de generalidade. Foi precisamente este problema de ordem metodológica que quisemos contornar debruçamo-nos sobre um grupo africano específico, os ‘angolanos’, e não sobre os ‘africanos’ ou os ‘negros’ em geral. 36 Posteriormente, os autores efectuaram um novo estudo com uma amostra representativa dos ‘jovens negros’ residentes na Grande Lisboa em que foram utilizados os mesmos atributos (Vala, no prelo).
  • 253. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 253 4.2 Estudo 1 - Crenças sobre grupo étnico e raça 4.2.1 Objectivos O primeiro estudo exploratório teve os seguintes objectivos específicos: investigar a noção de ‘grupo étnico’ dos jovens portugueses e em que medida esta difere ou não da noção de ‘raça’; averiguar quais são os ‘grupos étnicos’ mais significativos para os jovens portugueses; e verificar em que medida os jovens portugueses se consideram eles próprios membros de um grupo étnico. Tal como referimos no Capítulo 1, o racismo pode ser analisado no âmbito do processo mais geral de construção da identidade social, que se define a partir da clivagem entre as representações sobre o endogrupo e as representações sobre o(s) exogrupo(s) relevante(s). Sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial o conceito de ‘raça’ baseada em diferenças genotípicas foi progressivamente sendo substituído pelo conceito de ‘grupo étnico’ assente em diferenças culturais e comportamentais. Segundo Vala e colaboradores (Vala, 1999; Vala, Brito, e Lopes, 1999a), a difusão de conhecimentos científicos e o apoio institucional à não racialização dos grupos humanos tem vindo a traduzir-se na construção de novas representações sociais (Moscovici, 1961) sobre as diferenças entre povos, caracterizadas por uma maior rejeição do discurso racista tradicional, que opera a diferenciação a partir de características “naturais”, e pela adopção de um discurso que opera novas diferenciações a partir dos conceitos de cultura e etnia. Na investigação empírica conduzida por estes autores são confrontadas duas formas de categorização de grupos humanos – a categorização racial e a categorização cultural – e analisadas as suas consequências. De um modo muito sintético, a categorização racial seria baseada nas diferenças profundas (genotípicas) que estariam na origem das diferenças de superfície (fenotípicas), ambas percebidas como naturais e inalteráveis, e consequentemente com elevado potencial indutivo. Por sua vez, a categorização cultural seria baseada nas diferenças culturais e comportamentais, vistas como adquiridas e menos estáveis, mas na maior parte dos casos sofrendo igualmente um processo de essencialização (Corneille e Leyens, 1994; Rothbart e Taylor, 1992) que as tornaria aos olhos do senso
  • 254. Racismo e Etnicidade em Portugal 254 comum inalteráveis e, igualmente, com grande potencial indutivo (Vala, Lopes e Brito, 1999). Tendo em conta que este estudo foi realizado em Outubro de 1997 - Ano Europeu Contra o Racismo - em que o apoio político-institucional à não racialização dos grupos humanos foi particularmente divulgado nos meios de comunicação social, esperávamos encontrar reacções de surpresa ou mesmo de contestação da parte dos estudantes face às nossas questões sobre as raças em Portugal.
  • 255. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 255 4.2.2 Método 4.2.2.1 Participantes Participaram neste estudo 56 estudantes universitários de ambos os sexos (31 raparigas e 25 rapazes), com idades compreendidas entre os 18 e os 23 anos (a idade média é de 19 anos e não difere significativamente entre rapazes e raparigas, ?2 =8.82, p<0.267), todos de nacionalidade e naturalidade portuguesa37 . A Tabela 1 apresenta a distribuição dos participantes de sexo masculino e feminino que é relativamente equilibrada para ambas as condições. Este estudo foi realizado em Outubro de 1997. Tabela 1 - Distribuição dos participantes por condição Sexo dos participantes Condição Masculino Feminino Total 1 = ‘grupo étnico’ 13 15 28 2 = ‘raça’ 12 16 28 Total 25 31 56 4.2.2.2 Procedimento de recolha de dados Este estudo foi realizado em duas turmas do primeiro ano do ensino superior, cada uma delas correspondendo a uma condição de recolha de dados: na condição 1 todas as questões eram relativas a ‘grupos étnicos’ enquanto que na condição 2 as mesmas questões eram referentes a ‘raças’. Este estudo foi efectuado em sala de aula e a sua duração foi de aproximadamente uma hora (incluindo o debriefing). A investigadora apelou à participação dos estudantes num estudo sobre os ‘grupos étnicos’ (condição 1) ou sobre as ‘raças’ (condição 2) em Portugal. Os estudantes que não quisessem participar no estudo deveriam abandonar a sala de aula. A investigadora começava por distribuir uma folha de papel em branco (tamanho A4) a cada um dos participantes. Depois de se assegurar que todos os participantes estavam em condições para começar, a investigadora fornecia as seguintes instruções: “Vou ditar-vos três questões, uma de cada vez. Só depois de todos terem respondido à 37 Foram eliminados deste estudo cinco participantes por terem nacionalidade e/ou naturalidade africana.
  • 256. Racismo e Etnicidade em Portugal 256 primeira questão é que colocarei a segunda questão, e assim sucessivamente. Peço-vos que não façam qualquer comentário com os colegas, pois poderão influenciar as suas respostas. O importante é a vossa opinião sincera. As vossas respostas são anónimas e confidenciais”. As questões eram as seguintes: 1) “O que é um grupo étnico/raça?”; 2) “Quais os grupos étnicos/raças existentes em Portugal?”; 3) “Pertence a algum dos grupos étnicos/ raças por si referidos na questão anterior?”. Quando todos os participantes terminavam de responder à última questão, a investigadora pedia-lhes para colocarem no verso da folha o sexo, a idade, a nacionalidade e a naturalidade. Depois de recolhidas as folhas de resposta, a investigadora esclarecia os objectivos do estudo e respondia às eventuais questões dos participantes. 4.2.2.3 Procedimento de análise de dados Grupo étnico versus raça. As respostas dos participantes à primeira questão foram analisadas a partir dos grandes eixos organizadores da ideia de ‘raça’ e ‘grupo étnico’ encontrados em estudos anteriores (Allport, 1954/1979; Rothbart e Taylor, 1992). Efectuámos uma análise de conteúdo das respostas dos participantes em algumas categorias básicas e averiguámos a sua preponderância relativa em função da condição experimental: ‘grupo étnico’ vs. ‘raça’. Foram também contabilizados os sinónimos fornecidos pelos participantes nas suas definições destes dois conceitos. Grupos etnicizados e grupos racializados em Portugal. Relativamente à segunda questão procedeu-se à listagem dos grupos étnicos / raças mencionados pelos participantes e à contabilização das respectivas frequências. Efectuou-se posteriormente um agrupamento em função dos critérios subjacentes às designações fornecidas pelos participantes. Auto-categorização. Quanto à terceira questão contabilizámos as auto- categorizações dos participantes e efectuámos um teste de Qui-quadrado para averiguar se estas variavam significativamente em função da condição experimental. As respostas dos participantes na íntegra a cada uma das três questões encontram- se no Anexo 1, sendo apresentadas em função da condição grupo étnico/raça.
  • 257. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 257 4.2.3 Resultados 4.2.3.1 Grupo étnico versus raça A Tabela 2 apresenta os itens mais referidos pelos participantes nas suas definições de grupo étnico e de raça, utilizando as próprias palavras fornecidas pelos participantes. Para cada condição são apresentadas as designações referidas pelos participantes por ordem decrescente de frequência. Foram retidas as designações com frequência igual ou superior a dois (7.1%). Relativamente ao grupo étnico os três conteúdos mais frequentes dizem respeito à “cultura” (46.4%), aos “costumes” (25.0%) e à “religião” (21.4%). Outras características ligadas à socialização e à cultura são mencionadas frequentemente: os “valores” (17.9%), as “crenças” (10.7%), os “hábitos” (10.7%), as “características sociais” (7.1%), a “identidade” (7.1%), e os “rituais” (7.1%). As “características físicas” no geral aparecem em quarto lugar (17.9%) e a “cor da pele” em décimo primeiro (7.1%). Ainda em lugar de destaque aparecem conteúdos ligados às relações de conflito ou submissão face à cultura dominante: “diferentes da maioria” (17.9%) e “diferentes dos outros grupos” (7.1%). Também expressivo é o facto de o grupo étnico ser visto como migrante, isto é, deslocado do seu local, região, ou país de origem: “vivem num país que não é seu” (17.9%), “oriundos dum local ou região diferente” (7.1%), “oriundos dum meio diferente” (7.1%). Quanto à raça, o conteúdo mais frequentemente referido foi a “cor da pele” (42.9%), seguido da “cultura” (25.0%) e das “características físicas” em geral (21.4%). As “características genéticas” e a “constituição física” surgem em décimo lugar (7.1%), sendo apresentadas exclusivamente para definir a ‘raça’. Diversos aspectos ligados à socialização e à cultura são mencionados frequentemente: os “hábitos” (17.9%), os “costumes” (14.3%), as “crenças” (10.7%), as “tradições” (10.7%), a “história” (10.7%), as “ideologias” (7.1%), a “maneira de agir” (7.1%), e a “maneira de pensar” (7.1%), e as “vivências” (7.1%). Curiosamente estes conteúdos surgem predominantemente associados à raça.
  • 258. Racismo e Etnicidade em Portugal 258 Tabela 2 - Frequências relativas dos conteúdos associados a grupo étnico e raça Grupo étnico (N=28) % Raça (N=28) % Cultura 46.4 Cor (da pele, olhos, cabelo) 42.9 Costumes 25.0 Cultura 25.0 Religião 21.4 Características físicas 21.4 Características físicas 17.9 Hábitos 17.9 Valores 17.9 Costumes 14.3 Vivem num país que não é seu 17.9 Crenças 10.7 Diferentes da maioria 17.9 História 10.7 Crenças 10.7 Religião 10.7 Hábitos 10.7 Tradições 10.7 Características sociais 7.1 Características genéticas 7.1 Cor (da pele, olhos, cabelo) 7.1 Características iguais 7.1 Diferentes dos outros grupos 7.1 Constituição física (altura, etc.) 7.1 Identidade 7.1 Ideologias 7.1 Oriundos dum local/região 7.1 Maneira de agir 7.1 Oriundos dum meio diferente 7.1 Maneira de pensar 7.1 Rituais 7.1 Oriundos dum local/região 7.1 Unidos na defesa dos seus valores 7.1 Vivências 7.1 A comparação das frequências relativas dos itens mais associados ao grupo étnico e à raça torna clara a equivalência destas noções para os participantes. Constata-se uma forte associação entre as características biológicas e as características culturais, sendo que a preponderância relativa destas características varia em função da condição. De modo a facilitar a comparação dos conteúdos associados ao grupo étnico e à raça, efectuámos um agrupamento das respostas dos participantes em quatro categorias básicas: características biológicas, nas quais incluímos as características fenotípicas (cor da pele, tipo de cabelo, forma do nariz, etc.) e as características genotípicas (ligadas à hereditariedade); características culturais (valores, religião, hábitos, etc.); características geográficas (referências ao deslocamento de local, região, país, etc.); e por último, características ligadas à relação com os outros grupos (“alvo de discriminação”, “diferentes da maioria”, etc.). Procurámos nas repostas dos participantes referências à estabilidade versus plasticidade das características associadas a ‘grupo étnico’ e a ‘raça’, mas não encontrámos nenhuma referência explícita a esta problemática. A análise do conteúdo das respostas dos participantes aponta para uma essencialização das categorias sociais, que são vistas como mutuamente exclusivas e inalteráveis (Rothbart e Taylor, 1992).
  • 259. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 259 A informação detalhada sobre os itens que foram incluídos em cada categoria de análise e as respectivas frequências absolutas e relativas em função da condição é apresentada em anexo (ver Tabela 1 do Anexo 2). Tabela 3 - Frequências relativas das categorias de conteúdos associadas a grupo étnico e raça Grupo étnico (N=28) % Raça (N=28) % Características culturais 89.3 Características biológicas 71.4 Relação com os outros grupos 42.6 Características culturais 64.3 Características geográficas 32.1 Características geográficas 7.1 Características biológicas 28.6 Relação com os outros grupos 3.6 Como podemos verificar na Tabela 3, idênticos conteúdos são referidos para definir ‘grupo étnico’ e ‘raça’, embora no que respeita ao grupo étnico predominem as características culturais (89.3 % dos participantes) relativamente às características biológicas (28.6 %), enquanto que à raça estão associadas sobretudo características “naturais” ligadas à hereditariedade (71.4 %) logo seguidas das características culturais (64.3 %). As relações de conflito ou submissão face à cultura dominante (42.6 %) e o facto de o ‘grupo étnico’ ser visto como migrante (deslocado do seu local, região, país de origem) (32.1 %) são outros dos aspectos associados preferencialmente ao ‘grupo étnico’. A equivalência entre ‘grupo étnico’ e ‘raça’ é demonstrada em numerosas respostas dos participantes (exemplos: participante 1 “grupo étnico é um conjunto de pessoas que se agrupam por serem da mesma raça, logo têm a mesma cultura e religião”; participante 15 “um grupo étnico caracteriza-se por um aglomerado de pessoas que apresentam características semelhantes, quer ao nível do país de origem, quer ao nível das crenças religiosas, raça, ideais”). Ao definir os conceitos de grupo étnico / raça os participantes forneceram, em alguns casos, ‘sinónimos’. A Tabela 4 apresenta esses sinónimos e as respectivas frequências relativas (percentagens) em função da condição. Para cada condição são apresentadas as designações referidas pelos participantes por ordem decrescente de frequência.
  • 260. Racismo e Etnicidade em Portugal 260 Tabela 4 - Frequências relativas dos sinónimos de grupo étnico e raça Grupo étnico (N=28) % Raça (N=28) % Raça 42.6 Povo 10.7 Comunidade 17.9 Etnia 7.1 Minoria 14.3 Minoria 3.6 Total 75.0 Total 17.9 Em primeiro lugar, é curioso constatar que a ‘raça’ é apresentada como sinónimo de ‘grupo étnico’ (42.6 %), mas a “etnia” raramente é apresentada como sinónimo de ‘raça’ (3.6 %). Um dos aspectos que distingue a concepção de ‘grupo étnico’ da concepção de ‘raça’ é o facto do primeiro ser conceptualizado como uma “minoria” (14.2 %) enquanto que o segundo é conceptualizado preferencialmente como um “povo” (10.7 %). O termo “comunidade” é utilizado como sinónimo de ‘grupo étnico’ (17.9%), mas não como sinónimo de raça. Assim, a noção de ‘grupo étnico’ remete para grupos humanos de estatuto minoritário enquanto que a ‘raça’ se aplica à mistura de características biológicas e culturais. A análise de conteúdo das respostas dos participantes parece indicar uma distinção de significados: enquanto que o termo ‘grupo étnico’ serviria para diferenciar uma minoria emersa numa maioria, o termo ‘raça’ corresponderia a uma naturalização da distintividade dos grupos sociais. 4.2.3.2 Grupos etnicizados e grupos racializados em Portugal A segunda questão colocada aos participantes consistia na simples listagem dos ‘grupos étnicos’/ ‘raças’ existentes em Portugal. A Tabela 5 apresenta os vários grupos referidos em ambas as condições e as respectivas frequências relativas de ocorrência. Para cada condição são apresentadas as designações referidas pelos participantes por ordem decrescente de frequência. Foram retidas as designações com frequência igual ou superior a dois. A informação detalhada sobre todos os grupos mencionados pelos participantes encontra-se em anexo (ver Tabela 2 do Anexo 2).
  • 261. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 261 Tabela 5 - Frequências relativas dos grupos étnicos e raças referidos pelos participantes Grupo étnico (N=28) % Raça (N=28) % Ciganos 92.9 Ciganos 64.3 Africanos 46.4 Brancos 53.6 Cabo-verdianos 35.7 Negros 46.4 Angolanos 28.6 Africanos 25.0 Indianos 25.0 Amarelos 14.3 Muçulmanos 25.0 Chineses 10.7 Judeus 21.4 Indianos 10.7 Moçambicanos 21.4 Latinos 10.7 Brancos 17.6 Albinos 7.1 Macaenses 17.6 Índios 7.1 Timorenses 17.6 PALOP 7.1 Negros 14.3 Pretos 7.1 Árabes 10.7 Vermelhos 7.1 Chineses 10.7 Europeus 10.7 Brasileiros 7.1 Marroquinos 7.1 Portugueses 7.1 Como podemos verificar, no total (ver Tabela 2 no Anexo 2) os “ciganos” foram o grupo mais referido, tanto na condição grupo étnico como na condição raça (respectivamente 92.9 % e 64.3 %, totalizando 78.6 %). Para além de este ser o grupo mais frequentemente referido, é também aquele que é referido em primeiro lugar pela maioria dos participantes (respectivamente 75% e 28.6%, totalizando 51.8%), o que remete para a elevada saliência deste grupo na sociedade portuguesa. Seguiu-se o grupo dos ‘negros’ (respectivamente 14.3 % e 46.4 %, totalizando 37.5 %) e em terceiro lugar ex aequo o grupo dos ‘africanos’ (respectivamente 46.4 % e 25 %, totalizando 35.7 %) e o grupo dos ‘brancos’ (respectivamente 17.6 % e 53.6 %, totalizando 35.7 %). Globalmente, as referências aos ‘brancos’, aos ‘portugueses’ e aos vários grupos nacionais europeus assim como aos ‘europeus’, em geral, são menos frequentes do que as referências aos ‘negros’, aos vários nacionais africanos e aos ‘africanos’ em geral, especialmente na condição grupo étnico, o que se prende com o facto de o processo de etnicização se aplicar essencialmente a minorias que são percebidas como ocupando um lugar desfavorecido na sociedade. Em termos globais (ver Tabela 2 do Anexo 2), as denominações mais frequentes são ligadas à ‘nacionalidade’: “cabo-verdianos” (17.9 %), “indianos” (17.9 %), “angolanos” (14.3 %), “chineses” (10.7 %), “moçambicanos” (10.7 %), “macaenses”
  • 262. Racismo e Etnicidade em Portugal 262 (8.9 %), “timorenses” (8.9 %), “portugueses” (5.4 %), “marroquinos” (3.6 %), “alemães” (1.8 %), “brasileiros” (1.8 %), “espanhóis” (1.8 %), “japoneses” (1.8 %). Seguem-se as designações baseadas na ‘cor da pele’: “negros” (37.5 %), “brancos” (35.7 %), “amarelos” (7.1 %), “pretos” (5.4 %), e “vermelhos” (3.6 %). Com menor expressão surgem as denominações ligadas à ‘religião’: “muçulmanos” (14.3%), “judeus” (10.7 %), “hindus” (1.8 %), e “islâmicos” (1.8 %). Os grupos referidos pelos participantes são basicamente os mesmos em ambas as condições, variando apenas o seu posicionamento relativo. Como podemos constatar na Tabela 6, na condição grupo étnico predominam as designações baseadas na origem nacional ou geográfica (100% dos participantes), seguindo-se as designações baseadas na religião (46.4%) e por último na cor da pele (21.4%). Em contrapartida na condição raça predominam as designações baseadas na cor da pele (85.7%), seguindo-se as designações baseadas na origem nacional ou geográfica (75%), e por último as baseadas na religião (3.6%). Tabela 6 - Frequências relativas das categorias de grupos étnicos e raças referidos pelos participantes Grupo étnico (N=28) % Raça (N=28) % Origem nacional ou geográfica 100 Cor da pele 85.7 Religião 46.4 Origem nacional ou geográfica 75.7 Cor da pele 21.4 Religião 3.6 4.2.3.3 Auto-categorização dos participantes Finalmente, os participantes eram questionados sobre a sua pertença aos ‘grupos étnicos’ ou ‘raças’ anteriormente referidos. Nesta questão verifica-se uma diferença significativa no modo de resposta em função da condição ‘grupo étnico’ ou ‘raça’ (?2 = 19.636, p< 0.001) . Como se pode constatar na Tabela 7, na condição ‘grupo étnico’ a resposta predominante foi o “não” (67.9 %) enquanto que na condição ‘raça’ a resposta dominante foi “sim” (85.7%). Apenas dois participantes (3.6 %), um em cada condição, não responderam a esta questão.
  • 263. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 263 Verifica-se aqui uma assimetria nos processos de etnicização e racialização: a etnicidade é conceptualizada como algo específico das minorias enquanto que a noção de raça é aplicada também às maiorias. Tabela 7 - Frequências relativas das auto-categorizações dos participantes Grupo étnico (N=28) % Raça (N=28) % Não 67.9 Sim 85.7 Sim 28.6 Não 10.7 Não resposta 3.6 Não resposta 3.6 ?2 = 19.636, p < 0.001 Na Tabela 8 podemos observar o tipo de auto-categorizações efectuadas pelos participantes em função da condição de resposta. Na condição ‘grupo étnico’ apenas 28.6 % dos participantes referiram pertencer a um grupo étnico: “brancos” (17.9 %); “portugueses” (7.1 %); e “ocidentais” (3.6 %). Em contrapartida na condição ‘raça’ a resposta dominante foi “sim” (85.7%): “brancos” (64.3 %); “europeus” (7.1 %); “portugueses” (7.1 %); “ibéricos” (3.6 %); “lusitanos” (3.6 %). Tabela 8 - Frequências relativas dos grupos étnicos e raças referidos nas auto-categorizações dos participantes Grupo étnico (N=28) % Raça (N=28) % Brancos 17.9 Brancos 64.3 Portugueses 7.1 Europeus 7.1 Ocidentais 3.6 Portugueses 7.1 Total 28.6 Ibéricos 3.6 Lusitanos 3.6 Total 85.7
  • 264. Racismo e Etnicidade em Portugal 264 4.2.4 Discussão Tendo em conta que este estudo foi realizado em 1997 - Ano Europeu Contra o Racismo - esperávamos encontrar reacções fortes por parte dos estudantes a este estudo, sobretudo na condição ‘raça’. Tal não aconteceu. Os estudantes não questionaram os conceitos ‘raça’ ou ‘grupo étnico’, encarando de forma muito natural que alguém (que não era seu docente) lhes perguntasse o que era uma raça e quais as raças existentes em Portugal. No debriefing do estudo constatámos que a maior parte dos estudantes nunca tinha problematizado estes conceitos, considerando ‘raça’ e ‘grupo étnico’ como conceitos objectivos e explicativos das assimetrias sociais. Os resultados deste estudo estão em consonância com os resultados de outros estudos contemporâneos realizados sobre esta problemática, embora recorrendo a outro tipo de questões (Vala, Lopes e Brito, 1999). Essencialmente, verifica-se que os estudantes não distinguem ‘grupo étnico’ de ‘raça’. As características culturais amplamente referidas como definidoras dos ‘grupos étnicos’ são consideradas inseparáveis das características físicas ligadas à hereditariedade. Os ‘grupos étnicos’ são vistos como possuindo características intrínsecas, muito marcadas, que os distinguem da maioria ou da cultura dominante, imutáveis e, como tal, justificativas do seu estatuto e das assimetrias de poder. Em ambas as condições (grupo étnico e raça), as repostas dos participantes apontam para uma essencialização das categorias sociais que são vistas como mutuamente exclusivas e inalteráveis (Rothbart e Taylor, 1992). Apesar do conteúdo das respostas dos participantes remeter claramente para a naturalização das ‘raças’ e dos ‘grupos étnicos’, verifica-se uma certa assimetria de significado destes dois termos: o ‘grupo étnico’ é visto como uma minoria emersa numa maioria, ou seja, como algo ‘transitório’ que resulta das trajectórias de migração dos grupos enquanto que o termo ‘raça’ remete mais claramente para a imutabilidade de uma pertença social. Da análise de conteúdo das respostas dos participantes ressalta a centralidade da cor da pele na categorização dos grupos sociais. Verifica-se a predominância de traços físicos nas definições de raça, mas estes estão também significativamente presentes nas definições de grupo étnico. Esta centralidade da cor da pele na categorização dos grupos sociais é especialmente evidente nas designações de grupos fornecidas pelos
  • 265. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 265 participantes. Embora predominem designações baseadas na nacionalidade, o que poderá dever-se ao seu carácter normativo, estas são sistematicamente associadas a designações baseadas na cor da pele. Tal como esperávamos as auto-categorizações dos participantes foram significativamente mais frequentes na condição raça do que na condição grupo étnico, o que mais uma vez demonstra que a raça constitui um elemento central da categorização social para os participantes. Estes resultados vão ao encontro dos encontrados por outros autores, recorrendo a outro tipo de metodologias, segundo os quais a categorização racial é extremamente saliente, altamente acessível e difícil de suprimir (e.g., Devine, 1989; Fiske e Neuberg, 1990; Messick e Mackie, 1989; Park e Rothbart, 1982). Tendo em conta que a maior parte dos grupos referidos pelos participantes são grupos baseados na nacionalidade (destacando-se, entre eles, as ex-colónias portuguesas) ou na cor da pele (sobretudo a dicotomia “branco” versus “negro”), optámos por realizar um segundo estudo exploratório tendo por objectivo averiguar o estatuto social percebido e o estatuto numérico percebido dos diferentes grupos na sociedade portuguesa.
  • 266. Racismo e Etnicidade em Portugal 266 4.3 Estudo 2 - Percepção do estatuto social dos diferentes grupos étnicos em Portugal 4.3.1 Objectivos No estudo anterior verificámos que os participantes mencionaram essencialmente grupos baseados na cor da pele (sobretudo a dicotomia branco versus negro) e baseados na nacionalidade (destacando-se os PALOP), tendo sido efectuadas poucas referências a minorias religiosas (judeus, muçulmanos, etc.). A única excepção a estes resultados diz respeito aos ciganos, que foram o grupo mais referido. Tendo em conta estes resultados foram seleccionados para este novo estudo catorze grupos-alvo, onze categorizados em função da origem nacional ou geográfica - angolanos, brasileiros, cabo-verdianos, ciganos, guineenses, indianos, macaenses, moçambicanos, portugueses, são-tomenses, e timorenses – e três categorizados em função da cor da pele - brancos, negros e mestiços. Assim, o segundo estudo exploratório teve como objectivo averiguar o estatuto social percebido e o estatuto numérico percebido de vários grupos étnicos em Portugal. Este estudo foi realizado em diferentes zonas do país, a fim de procurar resultados consensuais. Foram escolhidas seis cidades - Braga, Bragança, Porto, Lisboa, Évora e Faro - com o objectivo de ter uma amostra equilibrada em termos de Norte / Sul, Litoral / Interior. Um segundo objectivo deste estudo tinha a ver com a escolha do grupo-alvo que pudesse ser utilizado nos estudos subsequentes. Relativamente ao estatuto social percebido esperávamos encontrar um paralelismo entre a hierarquização dos grupos-alvo em função da nacionalidade ou origem geográfica e a hierarquização em função da cor da pele. Relativamente às categorizações baseadas na origem nacional ou geográfica esperávamos que os portugueses ocupassem a posição superior e os ciganos a posição inferior, visto que este grupo foi o mais referido no Estudo 1, o que nos dá uma indicação de que este é o grupo étnico mais saliente na sociedade portuguesa. Quanto aos restantes grupos esperávamos observar uma hierarquização em função inversa da proporção em que foram mencionados no Estudo 1, isto é, menor estatuto para os grupos de origem africana,
  • 267. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 267 seguidos por ordem crescente dos grupos de origem asiática, e finalmente dos brasileiros. Quanto às categorizações baseadas na cor da pele esperávamos verificar uma hierarquização, em que os brancos ocupariam a posição superior e os negros uma posição inferior. Esperávamos ainda que aos mestiços fosse atribuída uma posição mais próxima dos negros do que dos brancos. Não esperávamos encontrar diferenças significativas ligadas ao local de recolha de dados nem ao sexo dos participantes.
  • 268. Racismo e Etnicidade em Portugal 268 4.3.2 Método 4.3.2.1 Participantes e desenho Participaram neste estudo 304 estudantes do ensino superior, 81 do sexo masculino e 223 do sexo feminino, com idades compreendidas entre os 18 e os 25 anos, todos de nacionalidade e naturalidade portuguesa38 . A idade média das raparigas é de 20 anos e a dos rapazes é de 21 anos, sendo esta diferença marginalmente significativa, ?2 =23.710, p<0.056. As respostas dos participantes foram recolhidas colectivamente em estabelecimentos de ensino superior público nas seis cidades seleccionadas: Braga (Universidade do Minho); Porto (Universidade do Porto); Lisboa (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa); Bragança (Instituto Politécnico de Bragança); Évora (Universidade de Évora); e Faro (Universidade do Algarve). Sempre que possível, os dados foram recolhidos junto de estudantes do primeiro ou segundo ano de cursos ligados às ciências sociais (Gestão de Empresas, Economia, Sociologia, História, Comunicação Social, etc.). O desenho adoptado permite dois procedimentos na análise de dados. No primeiro temos: 14 grupos-alvo (angolanos, brasileiros, cabo-verdianos, ciganos, guineenses, indianos, macaenses, moçambicanos, portugueses, são-tomenses, timorenses, brancos, negros e mestiços) x 6 locais de recolha de dados (Braga, Porto, Lisboa, Bragança, Évora, e Faro) x 2 sexos (masculino vs. feminino). Todas as variáveis são inter- participantes, à excepção da primeira que é intra-participantes. Alternativamente podemos considerar a seguinte modalidade de análise: 2 tipos de categorização do grupo-alvo (categorização nacional vs. categorização racial) x 6 locais de recolha de dados (Braga, Porto, Lisboa, Bragança, Évora, e Faro) x 2 sexos (masculino vs. feminino). Todas as variáveis são inter-participantes, à excepção da primeira que é intra-participantes. A Tabela 9 apresenta a distribuição dos participantes de sexo masculino e feminino pelos diferentes locais de recolha de dados. Este estudo foi realizado entre Outubro e Dezembro de 1997. 38 Foram eliminados deste estudo 37 participantes por não terem nacionalidade e/ou naturalidade portuguesa.
  • 269. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 269 Tabela 9 - Distribuição dos participantes em função do local de recolha de dados Sexo dos participantes Local Masculino Feminino Total Braga 15 39 54 Porto 4 38 42 Lisboa 12 45 57 Bragança 26 15 41 Évora 10 53 63 Faro 14 33 47 Total 81 223 304 4.3.2.2 Procedimento de recolha de dados Este estudo foi efectuado em sala de aula e a sua duração foi de aproximadamente 45 minutos. Na apresentação do questionário apelava-se à participação dos estudantes num estudo acerca de vários grupos sociais residentes em Portugal. Dizia-se aos participantes que a tarefa consistia em dar a sua opinião sobre vários grupos sociais, relativamente a várias dimensões. Apelava-se à sinceridade dos participantes e garantia- se o anonimato das suas respostas. Os estudantes que não quisessem participar no estudo eram convidados a abandonar a sala de aula. Quando todos os estudantes já tinham recebido o questionário, as instruções constantes na folha de rosto do questionário eram lidas e era dado um exemplo no quadro da escala de resposta usada no questionário. Depois de nos certificarmos que todos os estudantes não tinham dúvidas quanto à escala de resposta, pedia-se-lhes para responderem ao questionário página a página sem voltar atrás. O questionário era composto por folhas A5, sendo cada página relativa a um grupo diferente, na seguinte ordem: angolanos, brasileiros, cabo-verdianos, ciganos, guineenses, indianos, macaenses, moçambicanos, portugueses, são-tomenses, timorenses, brancos, negros e mestiços (ver Anexo 3). A tarefa dos participantes consistia em estimar, relativamente a cada um destes grupos, o seu estatuto social (através de 6 escalas relativas ao nível educacional, nível cultural, nível económico, estatuto social, prestígio e poder) e o seu estatuto numérico (percentagem de pessoas desse grupo na população residente em Portugal). Para estimar o estatuto social percebido dos vários grupos, eram apresentadas aos participantes seis rectas de 100 milímetros de comprimento, cujos extremos correspondiam a baixo versus alto estatuto.
  • 270. Racismo e Etnicidade em Portugal 270 As instruções eram as seguintes para cada um dos grupos: “Pense um pouco nos ?angolanos?39 residentes em Portugal. Gostaríamos que posicionasse o grupo dos ?angolanos? nas linhas que se seguem. Para isso deverá marcar com uma cruz, em cada uma das linhas, a posição que lhe parece adequada para caracterizar o grupo”. Seguia-se a pergunta: “Qual é a percentagem de ?angolanos? na população residente em Portugal? _____ %”. Na última página do questionário eram colocadas as questões sócio-demográficas: sexo, idade, nacionalidade e naturalidade. Finalmente, os questionários eram recolhidos e os objectivos do estudo eram esclarecidos. A investigadora agradecia a participação dos estudantes e respondia às suas eventuais questões. 4.3.2.3 Procedimento de análise de dados Para cada grupo-alvo foram consideradas duas medidas: o estatuto social percebido e o estatuto numérico percebido. Estatuto social percebido. Esta medida era obtida através da média dos valores obtidos nas seis escalas relativas a cada grupo (nível educacional, nível cultural, nível económico, estatuto social, prestígio e poder). Com efeito, a tarefa dos participantes consistia em estimar o estatuto social de cada grupo-alvo através de seis rectas de 100 milímetros de comprimento, cujos extremos correspondiam às seguintes designações: baixo nível educacional – alto nível educacional; baixo nível cultural – alto nível cultural; baixo nível económico – alto nível económico; baixo estatuto social – alto estatuto social; pouco prestigioso – muito prestigioso; pouco poder – muito poder. Em cada uma das linhas os participantes deveriam fazer uma cruz na posição que lhes parecesse mais adequada para caracterizar o grupo nessa dimensão. Com uma régua foram medidos os milímetros a que cada cruz se distanciava do ponto zero. Assim, os valores correspondentes a cada escala poderiam variar entre 1 a 99. A média dos valores obtidos nas seis escalas relativas a cada grupo (nível educacional, nível cultural, nível económico, estatuto social, prestígio e poder) foi considerada como um indicador do estatuto social percebido desse grupo. 39 A título de exemplo referimos os angolanos uma vez que se tratava do primeiro grupo-alvo do questionário.
  • 271. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 271 Estatuto numérico percebido. Para cada grupo-alvo, os participantes deveriam efectuar uma estimativa da percentagem de pessoas desse grupo na população residente em Portugal. Relativamente ao tratamento estatístico dos dados, começámos por realizar uma análise de variância (ANOVA) para cada grupo-alvo tendo o estatuto social percebido como variável dependente e o sexo do participante e o local de recolha de dados como variáveis independentes. Seguidamente realizámos uma série de análises multivariadas de variância (MANOVA) para comparar o estatuto social percebido de diversos grupos-alvo em função da pertinência dessa comparação para as nossas hipóteses. Nas diversas análises efectuadas tivemos o sexo do participante e o local de recolha de dados como variáveis inter-participantes (between-subjects) e o estatuto social percedido dos grupos-alvo como medidas repetidas (within-subjects). Quanto ao estatuto numérico percebido realizámos para cada grupo-alvo uma análise de variância (ANOVA) tendo o sexo do participante e o local de recolha de dados como variáveis independentes.
  • 272. Racismo e Etnicidade em Portugal 272 4.3.3 Resultados 4.3.3.1 Estatuto social percebido A Tabela 10 apresenta as médias do estatuto social percebido (média global das seis escalas) para cada um dos grupos-alvo categorizados em função da sua origem nacional ou geográfica (categorização nacional)40 ou em função da cor da pele (categorização racial). Os grupos são apresentados por ordem decrescente de estatuto social percebido. A informação detalhada sobre as médias e os desvios-padrão em função do local de recolha de dados e em função do sexo dos participantes é apresentada no Anexo 4. Tabela 10 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo em função da categorização nacional ou racial Categorização nacional Média Categorização racial Média Portugueses 55.39 Brancos 57.30 Brasileiros 47.54 Mestiços 35.32 Macaenses 44.58 Negros 29.86 Indianos 34.33 Timorenses 26.97 Angolanos 26.00 Moçambicanos 25.55 São-tomenses 25.22 Cabo-verdianos 23.71 Guineenses 22.25 Ciganos 20.31 Começamos por averiguar se existiam diferenças significativas no estatuto social percebido de cada grupo-alvo em função do sexo do participante e do local de recolha de dados. Nesse sentido, efectuámos, para cada grupo-alvo, uma análise de variância tendo o sexo do participante e o local de recolha de dados como variáveis independentes e o estatuto social percebido do grupo-alvo como variável dependente. 40 Por uma questão de simplificação incluímos na ‘categorização nacional’ dois grupos definidos pela sua origem geográfica – os macaences e os timorenses (que na altura em que foi realizado este estudo ainda não constituíam um grupo nacional) – e os ciganos. Como já referimos, os ciganos constituem o grupo étnico mais saliente na sociedade portuguesa: embora portugueses, são representados como ‘estrangeiros’ como se pode constatar no Estudo 1 (Cf: Coelho, 1982; Correia, Brito e Vala, 2001; Mendes, 1999).
  • 273. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 273 De um modo geral, não se registaram efeitos significativos do local da recolha de dados relativamente ao estatuto social percebido dos grupos-alvo baseados na nacionalidade ou origem geográfica (Gráfico 1). Das onze análises de variância realizadas (uma para cada grupo-alvo) apenas se observaram efeitos significativos do local da recolha de dados em três casos: os ciganos, os indianos, e os moçambicanos. O estatuto social percebido dos ciganos é superior nos grandes centros urbanos, Lisboa (M = 23.80) e Porto (M = 21.98), do que nas cidades de menor dimensão, Faro (M = 15.91) e Bragança (M = 18.28), Braga (M = 20.23) e Évora (M = 20.72), ?F (1,292) = 4.937, p< 0.001?. Quanto aos indianos, o seu estatuto social percebido é significativamente mais baixo em Bragança (M=28.45) do que nas outras cinco cidades, ?F (1,292) = 2.296, p < 0.045?. O estatuto social percebido dos moçambicanos é significativamente mais baixo em Faro (M=21.88) do que nas outras cinco cidades, ?F (1,292) = 2.484, p < 0.032?. Numa tentativa de perceber os efeitos devidos ao local consultámos as estatísticas do SEF41 para ver se existiria alguma relação entre o estatuto social percebido dos grupos estrangeiros (indianos e moçambicanos) e a sua concentração relativa no local de recolha de dados, mas não encontrámos elementos que sugerissem alguma ligação, pelo que julgamos que os resultados ligados ao local de recolha de dados não são explicáveis pelo contexto. 41 Correspondência particular.
  • 274. Racismo e Etnicidade em Portugal 274 Gráfico 1 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização nacional) em função do local de recolha de dados Efeitos do Local sobre o estatuto percebido do grupo-alvo (categorização nacional): Ciganos: F(5,292)=4.937, p<0.001 Indianos: F(5,292)=2.296, p<0.045 Moçambicanos: F(5,292)=4.937, p<0.001 Gráfico 2 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização racial) em função do local de recolha de dados Efeitos do Local sobre o estatuto percebido do grupo-alvo (categorização racial): Negros: F(5,292)=3.028, p<0.011 Mestiços: F(5,292)=2.740, p<0.019 0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100 Portugueses Brancos Negros Mestiços Palop Braga Porto Lisboa Bragança Évora Faro 0 10 20 30 40 50 60 70 Portugueses Brasileiros Macaenses Indianos Tim orenses Angolanos Cabo-verdianos Guineenses Ciganos Braga Porto Lisboa Bragança Évora Faro
  • 275. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 275 No que respeita aos grupos baseados na cor da pele (Gráfico 2), o estatuto social percebido dos brancos não difere em função do local de recolha de dados. Em contrapartida, verificam-se efeitos significativos do local tanto para os negros ?F (5,292) = 3.028, p < 0.011? como para os mestiços ?F (5,292) = 2.740, p < 0.019?. O estatuto social atribuído a ambos os grupos-alvo é significativamente mais baixo em Faro do que nas restantes cidades. Comparando estes resultados com os obtidos relativamente aos cinco grupos nacionais oriundos dos PALOP constatamos que o estatuto social percebido destes grupos é ligeiramente mais baixo em Faro do que nas restantes cidades, mas curiosamente esta diferença só é estatisticamente significativa para os moçambicanos, como referimos anteriormente. A variável sexo dos participantes não produziu efeitos significativos no estatuto social percebido dos dez grupos-alvo minoritários categorizados com base na sua origem nacional ou geográfica (Gráfico 3). Em contrapartida, verificou-se um efeito significativo do sexo dos participantes em relação ao grupo maioritário: as mulheres (M = 54.25) atribuíram significativamente menor estatuto aos portugueses do que os homens (M = 58.52), ?F (5,292) = 4.771, p < 0.030?. Gráfico 3 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização nacional) em função do sexo dos participantes 0 10 20 30 40 50 60 70 PortuguesesBrasileiros M acaensesIndianos Tim orensesAngolanos Cabo-verdianos GuineensesCiganos Masculino Feminino Efeitos do Sexo sobre o estatuto percebido de cada grupo-alvo (categorização nacional): Portugueses: F(1,292)=4.771, p<0.030
  • 276. Racismo e Etnicidade em Portugal 276 O mesmo padrão de resultados foi encontrado em relação aos três grupos-alvo baseados na cor da pele (Gráfico 4). O estatuto social percebido dos grupos minoritários – negros e mestiços - não difere em função do sexo dos participantes. Em contrapartida, o estatuto social atribuído aos brancos difere significativamente em função do sexo do participante: os homens (M = 61.20) atribuíram um estatuto mais elevado aos brancos do que as mulheres (M = 55.87), ?F (1,291) = 6.386, p < 0.012?. Resumindo, na maior parte das catorze análises de variância efectuadas (uma para cada grupo-alvo) não se encontraram efeitos significativos do local de recolha de dados nem do sexo do participante, nem da interacção entre estas duas variáveis. Os efeitos do local da recolha de dados em relação a alguns grupos não são consistentes nem na categorização nacional nem na categorização racial. Poderão, eventualmente, estar ligados à menor visibilidade de certos grupos em algumas cidades, mas este estudo não permite verificar essa hipótese. Quanto ao sexo dos participantes o seu efeito só foi significativo relativamente ao grupo maioritário, fosse este designado pela nacionalidade (portugueses) ou pela cor da pele (brancos): os homens atribuíram significativamente maior estatuto social ao grupo maioritário do que as mulheres. Gráfico 4 - Estatuto social percebido dos grupos-alvo (categorização racial) em função do sexo dos participantes 0 10 20 30 40 50 60 70 Portugueses Brancos Negros Palop Masculino Feminino
  • 277. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 277 Efeitos do Sexo sobre o estatuto percebido do grupo-alvo (categorização racial): Brancos: F(1,292)=6.386, p<0.012 Efeitos do Grupo-alvo: Brancos vs. Portugueses: F(1,291)=2.40, p<0.123 Brancos vs. Negros: F(1,291)=391.59, p<0.0001 Brancos vs. Mestiços: F(1,290)=35.86, p<0.0001 Negros vs. Mestiços: F(1,290)=35.86, p<0.001 Negros vs. PALOP: F(1,292)=41.40, p<0.001 Seguidamente efectuámos uma série de análises multivariadas de variância para comparar o estatuto social percebido de diversos grupos-alvo em função da pertinência da respectiva comparação. Nas diversas análises efectuadas, tivemos o sexo do participante e o local de recolha de dados como variáveis inter-participantes e o grupo- alvo como variável intra-participante. 4.2.3.1.1 Hierarquização em função da nacionalidade ou origem geográfica Como podemos verificar no Gráfico 3, os ciganos constituem o grupo de menor estatuto social percebido (M = 20.31). Seguidamente, surgem os vários grupos africanos de língua oficial portuguesa: guineenses (M = 22.25); cabo-verdianos (M = 23.71); são- tomenses (M = 25.22); moçambicanos (M = 25.55); e angolanos (M = 26.00). Por ordem crescente de estatuto social percebido, seguem-se os três grupos de origem asiática: os timorenses (M = 26.97); os indianos (M = 34.33); e os macaenses (M = 44.58). Finalmente, os brasileiros (M = 47.54) são o grupo estrangeiro de estatuto social percebido mais elevado, sendo os portugueses (M = 55.39) o grupo de estatuto mais elevado. Esta hierarquização dos grupos não difere em função do local de recolha de dados nem em função do sexo dos participantes. Com o objectivo de averiguar se as diferenças no estatuto social percebido das diferentes nacionalidades africanas (angolanos, cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos e são-tomenses) eram estatisticamente significativas efectuámos uma nova análise de variância mista tendo estes cinco grupos-alvo como medida variável intra-participantes. O efeito do grupo-alvo foi significativo, revelando que o estatuto social percebido dos cinco grupos africanos, embora próximo, é significativamente diferente ?F (1,289) = 8.62, p < 0.001? sendo o estatuto percebido dos cabo-verdianos e dos guineenses significativamente inferior ao dos angolanos, moçambicanos e
  • 278. Racismo e Etnicidade em Portugal 278 são-tomenses. A interacção entre o grupo-alvo e o sexo dos participantes não foi significativa, nem a interacção entre o grupo-alvo e o local de recolha de dados. A tripla interacção entre o grupo-alvo, o local e o sexo do participante também não foi significativa. 4.2.3.1.2 Hierarquização em função da cor da pele Relativamente às categorizações baseadas na cor da pele (Gráfico 4), verifica-se uma hierarquização, em que aos brancos é atribuído um estatuto social mais elevado (M = 57.30) do que aos negros (M = 29.86), ?F (1,291) = 391.59, p < 0.0001?. Verifica- se uma interacção significativa entre o grupo-alvo e o sexo dos participantes ?F (1,291) = 4.74, p < 0.030?. As análises de contrastes revelaram que o efeito principal do grupo-alvo é significativo tanto para os homens ?F (1,291) = 235.02, p< 0.0001? como para as mulheres ?F (1,291) = 379.61, p< 0.0001?. Relativamente ao local, a interacção com o grupo-alvo não foi significativa, nem a tripla interacção entre o grupo- alvo, o local e o sexo do participante. O estatuto social atribuído aos brancos também é significativamente mais elevado (M = 57.30) do que o atribuído aos mestiços (M = 35.32), ?F (1,289) = 270.17, p < 0.0001?. Verifica-se uma interacção significativa entre o grupo-alvo e o sexo dos participantes, ?F (1,289) = 5.05, p< 0.025?. As análises de contrastes revelaram que o efeito principal do grupo-alvo é significativo tanto para os homens ?F (1,189) = 176.00, p < 0.0001? como para as mulheres ?F (1,289) = 248.48, p < 0.0001?. Relativamente ao local, a interacção com o grupo-alvo não foi significativa nem a tripla interacção entre o grupo-alvo, o local e o sexo do participante. O estatuto social atribuído aos mestiços (M = 35.32) é significativamente mais elevado (M = 57.30) do que o atribuído aos negros (M = 29.86), ?F (1,290) = 35.86, p < 0.0001?. A interacção entre o grupo-alvo e o sexo dos participantes não é significativa, nem a interacção entre o grupo-alvo e o local de recolha de dados. A tripla interacção entre o grupo-alvo, o local e o sexo do participante também não é significativa. 4.2.3.1.3 Hierarquização nacional e hierarquização racial O estatuto social atribuído aos brancos (M = 57.30) não é significativamente diferente do atribuído aos portugueses (M = 55.39), ?F (1,291) = 2.40, p< 0.123?. A
  • 279. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 279 interacção entre o grupo-alvo e o sexo dos participantes não é significativa, nem a interacção entre o grupo-alvo e o local de recolha de dados. A tripla interacção entre o grupo-alvo, o local e o sexo do participante também não é significativa. O estatuto social atribuído aos negros (M = 29.86) é significativamente superior ao estatuto atribuído à média dos PALOP no seu conjunto (M = 24.53), ?F (1,292) = 41.40, p < 0.0001?. A interacção entre o grupo-alvo e o sexo dos participantes não é significativa. A interacção entre o grupo-alvo e o local de recolha de dados é significativa ?F (1,292) = 2.34, p < 0.042?. As análises de contrastes revelaram que a diferença entre o estatuto atribuído aos negros em geral e o atribuído à média das cinco nacionalidades africanas consideradas foi significativa em Braga ?M = 35.57 para os negros e = 25.65 para os PALOP; F (1,292) = 42.34, p < 0.0001?, no Porto ?M = 30.70 para os negros e = 22.32 para os PALOP; F (1,292) = 23.53, p < 0.0001?, e em Lisboa ?M = 30.88 para os negros e = 25.10 para os PALOP; F(1,292) = 15.17, p < 0.0001?. Em contrapartida, em Bragança ?F (1,292) = 2.99, p < 0.085?, em Évora ?F (1,292) = 2.63, p < 0.106?, e em Faro ?F (1,292) = 3.05, p < 0.082?essa diferença não atinge o limiar da significância estatística. A tripla interacção entre o grupo-alvo, o local e o sexo do participante também não é significativa. Resumindo, o estatuto social atribuído aos negros é superior ao estatuto social atribuído à média dos cinco grupos africanos (PALOP). Esta diferença é significativa tanto para os participantes do sexo masculino como para os participantes do sexo feminino. Em relação ao local de recolha de dados, esta diferença é significativa nas três maiores cidades (Lisboa, Porto e Braga), mas não nas cidades de menor dimensão (Bragança, Évora e Faro). 4.3.3.2 Estatuto numérico percebido A Tabela 11 apresenta as médias do estatuto numérico percebido (percentagem de cada um dos grupos-alvo na população residente em Portugal). Os grupos são apresentados por ordem decrescente de estatuto numérico percebido. Como se pode constatar a soma das percentagens médias dos vários grupos ultrapassa em muito os cem por cento. Tal deve-se ao facto dos participantes efectuarem as suas estimativas separadamente para cada grupo-alvo, sem qualquer preocupação em obter um total de 100. A informação detalhada sobre as médias e os desvios-padrão em função do local de recolha de dados e em função do sexo dos participantes é apresentada no Anexo 4.
  • 280. Racismo e Etnicidade em Portugal 280 Tabela 11 – Estatuto numérico percebido dos grupos-alvo em função da categorização nacional ou racial Categorização nacional % Categorização racial % Portugueses 77.30 Brancos 75.32 Ciganos 14.08 Negros 18.84 Angolanos 13.90 Mestiços 10.16 Moçambicanos 9.58 Brasileiros 9.38 Cabo-verdianos 9.13 Guineenses 6.28 Timorenses 5.44 Indianos 4.71 Macaenses 4.65 São-tomenses 4.33 Como podemos constatar, os participantes sobrestimaram a percentagem dos vários grupos minoritários residentes em Portugal e, paralelamente, subestimaram a percentagem dos portugueses (77.30 %). Esta subestima da percentagem de portugueses foi significativamente superior nas mulheres (M = 75.87) do que nos homens (M = 81.23), ?F (1,281) = 5.148, p < 0.024?. O estatuto numérico percebido dos portugueses não variou em função do local de recolha de dados. A interacção entre o local e o sexo do participante também não foi significativa. Os ciganos constituem o grupo minoritário ao qual é atribuído um maior estatuto numérico (M = 14.08 %). Seguem-se, por ordem decrescente de estatuto numérico percebido: os angolanos (M = 13.90 %), os moçambicanos (M = 9.58 %), os brasileiros (M = 9.38 %), os cabo-verdianos (M = 9.38 %), os guineenses (M = 6.28 %); os timorenses (M = 5.44 %), os indianos (M = 4.71 %), os macaenses (M = 4.65 %), e os são-tomenses (M = 4.33 %). Quanto às designações baseadas na cor da pele, aos brancos foi atribuído o estatuto maioritário (75.32 %), seguido dos negros (18.84 %) e dos mestiços (10.16 %). Não se verificaram diferenças significativas ligadas ao sexo do participante ou ao local de recolha de dados. Tal como procedemos para os dados referentes ao estatuto social, relativamente ao estatuto numérico (percentagem na população residente em Portugal) averiguámos para cada grupo-alvo se existiam diferenças no estatuto numérico percebido em função do
  • 281. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 281 sexo do participante e do local de recolha de dados. Nesse sentido, efectuámos catorze análises de variância tendo o estatuto social percebido do grupo-alvo como variável dependente e sexo do participante e o local de recolha de dados como variáveis independentes. Para todos os grupos baseados na nacionalidade ou origem geográfica (Gráfico 5) o efeito do sexo do participante foi significativo, sendo que as mulheres sobrestimaram a percentagem destes grupos comparativamente aos homens. Quanto aos grupos baseados na cor da pele (Gráfico 6) apenas se registou um efeito significativo do sexo no caso dos mestiços: as mulheres estimaram um número significativamente superior de mestiços (M = 11.33) do que os homens (M = 6.73). O efeito do local de recolha de dados não foi significativo para nenhum dos catorze grupos-alvo nem a interacção entre o local e o sexo do participante. Gráfico 5 – Estatuto numérico percebido dos grupos-alvo (categorização nacional) em função do sexo do participante 0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 PortuguesesCiganos Angolanos Brasileiros Cabo-verdianos Guineenses Tim orensesIndianos M acaenses Masculino Feminino Efeitos do Sexo sobre o estatuto numérico percebido de cada grupo-alvo: Angolanos: F(1,286)=7.268, p<0.007 Macaenses: F(1,284)=12.316, p<0.0001 Brasileiros: F(1,285)=3.112, p<0.079 Moçambicanos: F(1,282)=7.983, p<0.005 Caboverdianos: F(1,283)=7.236, p<0.006 Portugueses: F(1,281)=5.148, p<0.024 Guineenses: F(1,282)=6.913, p<0.009 São-tomenses: F(1,280)=7.026, p<0.008 Indianos: F(1,285)=4.703, p<0.031 Timorenses: F(1,284)=10.563, p<0.001
  • 282. Racismo e Etnicidade em Portugal 282 Gráfico 6 – Estatuto numérico percebido dos grupos-alvo (categorização racial) em função do sexo do participante 0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 Brancos Negros Mestiços Masculino Feminino Efeitos do sexo dos participantes sobre o estatuto numérico percebido de cada grupo-alvo: Mestiços: F(1,276)=8.276, p<0.005
  • 283. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 283 4.3.4 Discussão Neste estudo analisou-se o estatuto social percebido e o estatuto numérico percebido de catorze grupos presentes na sociedade portuguesa (angolanos, brasileiros, cabo-verdianos, ciganos, guineenses, indianos, macaenses, moçambicanos, portugueses, são-tomenses, timorenses, brancos, negros e mestiços). Relativamente às categorizações baseadas na origem nacional ou geográfica verifica-se uma hierarquização dos grupos-alvo consonante com as nossas hipóteses. Os participantes atribuem um maior estatuto social ao endogrupo (os portugueses) do que aos restantes grupos-alvo. Os brasileiros são o grupo estrangeiro de maior estatuto social percebido. Seguem-se, por ordem decrescente, os três grupos de origem asiática (macaenses, indianos, e timorenses), os cinco grupos oriundos dos países africanos de língua oficial portuguesa (angolanos, moçambicanos, são-tomenses, cabo-verdianos e guineenses). Os ciganos são o grupo de menor estatuto social percebido, o que vai de encontro aos resultados do Estudo 1, onde verificámos que este era um grupo fortemente etnicizado e racializado na sociedade portuguesa. Estes resultados confirmam a grande saliência deste grupo na sociedade portuguesa que tem sido evidenciado em outros estudos recentemente efectuados (Correia, Brito e Vala, 2001; Mendes, 1998). Relativamente às categorizações baseadas na cor da pele, tal como esperávamos, verifica-se uma hierarquização, em que os brancos ocupam a posição superior, e os negros uma posição inferior, sendo atribuída aos mestiços uma posição muito mais próxima dos negros do que dos brancos. Embora não tivéssemos partido de qualquer hipótese referente ao tipo de categorização (nacional versus racial), verificámos uma assimetria nos resultados. O estatuto social atribuído aos brancos não é significativamente diferente do atribuído aos portugueses. Em contrapartida, o estatuto social atribuído aos negros é significativamente superior ao estatuto atribuído aos cinco grupos africanos considerados (angolanos, cabo-verdianos, guineenses, moçambicanos e são-tomenses). Tal poderá dever-se ao facto de os participantes estarem mais preocupados em não discriminar em função da cor da pele do que em relação à nacionalidade. Nos últimos anos as campanhas anti-racismo têm salientado a ilegitimidade da discriminação racial e é natural que mesmo sendo uma questão de natureza descritiva, os participantes tenham procurado ir ao encontro da norma anti-racista em vigor na sociedade actual. A norma
  • 284. Racismo e Etnicidade em Portugal 284 de corresponder ao ‘politicamente correcto’ que é mais facilmente activada pela designação racial do que pela designação nacional. É curioso que esta diferença seja significativa sobretudo nos grandes centros urbanos, onde a presença de imigrantes é superior. O estatuto social percebido dos diversos grupos minoritários não difere significativamente em função do sexo dos participantes. Já em relação ao grupo dominante, os homens atribuíram significativamente maior estatuto social do que as mulheres, quer a designação assente na nacionalidade (portugueses) quer na cor da pele (brancos). De um modo geral, o estatuto social percebido dos diversos grupos não diferiu significativamente em função do local de recolha de dados, isto é, verifica-se um consenso na forma como os diferentes grupos são representados em diferentes regiões do país, com maior ou menor concentração de residentes estrangeiros. No entanto, verificaram-se algumas excepções. Os participantes dos grandes centros urbanos (Lisboa e Porto) atribuíram maior estatuto social aos ciganos do que os participantes das cidades de menor dimensão (por ordem crescente: Faro, Bragança, Braga e Évora). No que respeita aos grupos oriundos dos PALOP (angolanos, cabo- verdianos, guineenses, moçambicanos e são-tomenses), apenas no caso dos moçambicanos se verificou um efeito significativo do local, sendo o seu estatuto social percebido significativamente inferior em Faro do que nas outras cinco cidades. Relativamente aos três grupos de origem asiática (indianos, macaenses e timorenses), verifica-se que o estatuto social percebido é significativamente inferior em Bragança do que nas restantes cinco cidades. Finalmente, nos grupos designados pela cor da pele, verificaram-se efeitos significativos do local de recolha de dados tanto para o grupo dos negros como no dos mestiços: o estatuto social dos negros e dos mestiços é inferior em Faro que nas restantes cidades. Assim, o estatuto social percebido dos grupos não parece estar directamente relacionado com a sua maior ou menor concentração nas diferentes zonas do país. Relativamente ao estatuto numérico percebido, o aspecto mais curioso foi a significativa sobrestima da percentagem dos diversos grupos minoritários a residir em Portugal, paralelamente à subestima da percentagem do grupo maioritário. A sobrestima da percentagem dos diversos grupos minoritários verificou-se de forma mais
  • 285. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 285 significativa nas mulheres do que nos homens, e em todas as regiões do país. Tal como aconteceu relativamente ao estatuto social percebido, o facto da concentração destes grupos ser maior ou menor na localidade em questão não parece ter tido qualquer impacto nos resultados. Os resultados deste estudo exploratório ajudaram-nos a tomar decisões pertinentes para o prosseguimento da investigação. De facto, verificámos que, na sociedade portuguesa, os grupos de menor estatuto social percebido são os ciganos e os grupos oriundos dos PALOP. A escolha dos ciganos como grupo-alvo foi, no entanto, excluída por dois motivos. Por um lado, os métodos escolhidos para analisar os estereótipos sociais e para medir a variabilidade grupal percebida não se adequam a participantes com baixo nível de escolaridade. De facto, quase todas as pesquisas sobre esta problemática têm sido realizadas com estudantes universitários e utilizando métodos que requerem grande familiarização com a linguagem escrita, com a matemática ou mesmo o domínio do computador. Por outro lado, o estatuto social atribuído aos ciganos diferiu significativamente em função do local de recolha de dados, sendo superior nos grandes centros urbanos (Lisboa e Porto) do que nas restantes cidades. Assim optámos por seleccionar um grupo africano, uma vez que a percentagem de estudantes africanos ou de origem africana nos estabelecimentos de ensino secundário e de ensino superior é maior. Uma vez que na investigação da percepção da variabilidade grupal não seria conveniente comparar os dados relativos a dois grupos-alvo de graus de generalidade diferente, não poderíamos opor os ‘africanos em geral’ aos ‘portugueses’. Por isso optámos por trabalhar com um grupo africano específico: os angolanos como grupo minoritário e os portugueses como grupo maioritário. Neste caso, estamos face a dois grupos com o mesmo nível de generalidade. O grupo dos angolanos foi seleccionado por ser um dos mais significativos grupos de imigrantes em Portugal em termos numéricos - é o segundo grupo africano em número a seguir aos cabo-verdianos - e por ser um dos grupos menos estudado. De facto, na data em que iniciámos esta investigação empírica, não tínhamos conhecimento de nenhum estudo especifico sobre os angolanos, existindo já diversos estudos sobre os cabo-verdianos (e.g., França, 1992; Saint-Maurice, 1997) e também sobre os guineenses (e.g., Machado, 1991). Por outro lado, o facto do estatuto social percebido dos angolanos não diferir significativamente em função do local de recolha de dados,
  • 286. Racismo e Etnicidade em Portugal 286 permitia-nos uma maior flexibilidade no local de recolha de dados dos estudos seguintes. Nos dois primeiros estudos exploratórios constatámos os efeitos da categorização social na percepção do posicionamento relativo de diversos grupos sociais na sociedade portuguesa. Uma vez seleccionados os dois grupos-alvo – portugueses (grupo maioritário) e angolanos (grupo minoritário) – é necessário analisar os contéudos que são associados a estes grupos e qual o significado simbólico destes conteúdos, tendo como referência um universo de valores comum (e.g., Amâncio, 1989a; Deschamps, 1982a). É neste quadro que se inscrevem os três estudos seguintes sobre estereótipos sociais.
  • 287. Racismo e Etnicidade em Portugal 287 4.4 Estudo 3 - Estereótipos sociais e assimetria simbólica 4.4.1 Introdução Um dos objectivos do estudo anterior era seleccionar um grupo minoritário na sociedade portuguesa que também se distinguisse por características físicas. Os resultados permitiram verificar que, exceptuando o singular lugar de destaque que é atribuído aos ciganos, os grupos nacionais africanos (PALOP) constituem os grupos de menor estatuto social percebido na sociedade portuguesa. Destes cinco grupos seleccionámos os angolanos por razões já explicitadas na discussão do estudo anterior: segundo grupo africano em termos numéricos em Portugal, grupo de imigração mais recente e menos estudado do que os cabo-verdianos (primeiro grupo em termos numéricos e com várias gerações em Portugal; Saint-Maurice, 1997). Uma vez seleccionados os dois grupos-alvo para os estudos experimentais – os portugueses (grupo maioritário) e os angolanos (grupo minoritário) – foram realizados estudos exploratórios, com participantes de ambos os grupos (angolanos e portugueses), com o objectivo de analisar os conteúdos que são associados a estes grupos e qual o significado simbólico destes conteúdos (Amâncio, 1989a; Deschamps, 1982a). Os três estudos apresentados neste capítulo têm por objectivo analisar os estereótipos dos estudantes portugueses e dos estudantes angolanos a residir em Portugal sobre o seu próprio grupo (auto-estereótipo) e sobre o exogrupo (hetero- estereótipo). Em primeiro lugar pretendemos analisar os estereótipos dos ‘angolanos’ e dos ‘portugueses’, salientando quais as dimensões comuns e quais as dimensões que os diferenciam e ainda qual o nível de diversidade dos conteúdos associados a cada grupo (Estudo 3a). Em segundo lugar, pretendemos averiguar qual a avaliação dos conteúdos descritivos associados a cada grupo, a partir da simples opinião pessoal de cada participante (Estudo 3b). E, finalmente, pretendemos analisar a distância destes conteúdos em relação ao referente universal de pessoa adulta (Estudo 3c). Tendo em vista estes objectivos, foram efectuados três estudos para proceder à caracterização dos estereótipos dos angolanos e portugueses. No Estudo 3a os participantes forneceram livremente os conteúdos descritivos de ambos os grupos. Com base nas características mais mencionadas para descrever os dois grupos-alvo, foi
  • 288. Racismo e Etnicidade em Portugal 288 elaborada uma lista de adjectivos que foi posteriormente apresentada aos participantes do Estudo 3b e do Estudo 3c. No Estudo 3b foi pedido aos participantes para classificarem, de forma independente (recorrendo a duas escalas separadas), em que medida cada um dos traços da referida lista era típico dos angolanos e dos portugueses, e também para avaliarem cada traço tendo em conta a sua opinião pessoal. No Estudo 3c foi pedido aos participantes para classificarem, de forma interdependente (recorrendo a uma só escala), em que medida cada um dos traços da referida lista era típico dos angolanos ou dos portugueses, e também para avaliarem cada característica tendo em conta o estereótipo de pessoa adulta na sociedade portuguesa, seguindo o procedimento adoptado por Amâncio (1993, 1994). Os dados destes três estudos foram analisados em função das pertenças grupais dos participantes a fim de identificar especificidades na percepção social associadas a estas pertenças, para além da procura de dimensões consensuais entre elas42 . A nossa hipótese é de que numa época em que o racismo é claramente anti- normativo os conteúdos associados a ambos os grupos sejam predominantemente positivos. Assim, esperamos que a maior diferenciação entre os grupos não se opere ao nível da valência avaliativa dos conteúdos associados a cada grupo, mas ao nível das dimensões subjacentes a esses conteúdos. Esperamos que os conteúdos associados aos angolanos sejam predominantemente ligados à expressividade, ao exotismo, e à juventude, enquanto que os conteúdos associados aos portugueses sejam fundamentalmente ligados à instrumentalidade e à imagem de adulto. Esperamos ainda que o estereótipo dos portugueses se aproxime mais do modelo ‘universal’ de pessoa adulta enquanto que o estereótipo dos angolanos se aproximará do modelo de pessoa jovem. Mas, numa época em que existe uma clara valorização social dos atributos ‘exóticos’ e ‘juvenis’43 , e sendo os participantes nestes estudos jovens, é provável que o estereótipo dos angolanos seja avaliado mais positivamente do que o estereótipo dos portugueses, especialmente quando essa avaliação é feita tendo em conta a opinião pessoal. No entanto, quando a avaliação dos traços é efectuada tendo em conta o estereótipo de adulto na nossa sociedade, confrontando assim a opinião pessoal dos 42 Seria interessante analisar nestes três estudos os efeitos da variável sexo dos participantes (masculino vs. feminino) assim como os efeitos de interacção entre o sexo e o grupo étnico dos participantes (angolanos vs. portugueses). No entanto, uma vez que se trata de estudos exploratórios nos quais se pretende essencialmente identificar as especificidades e procurar os consensos entre angolanos e portugueses, não vamos explorar os efeitos do sexo nestes três estudos. 43 Ver a este propósito um interessante dossier sobre a juventude – “The Young” - em The Economist, 2000, nº8202, pp.84-90.
  • 289. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 289 participantes com um modelo de referência universal, esperamos que o estereótipo dos portugueses seja avaliado mais positivamente. Por último, esperamos um menor grau de consenso relativamente ao estereótipo dos portugueses do que relativamente ao estereótipo dos angolanos, isto é, esperamos verificar uma maior heterogeneidade na representação do grupo dos ‘portugueses’ do que na representação do grupo dos ‘angolanos’.
  • 290. Racismo e Etnicidade em Portugal 290 4.4.2 Estudo 3a - Conteúdos dos estereótipos O Estudo 3a foi efectuado com o objectivo de averiguar quais os conteúdos descritivos associados aos angolanos e aos portugueses, tanto por membros do endogrupo como por membros do exogrupo. A técnica utilizada para a recolha de dados foi a associação livre de palavras. Esta técnica tem sido amplamente utilizada nos estudos sobre representações sociais por “permitir apreender campos semânticos que se pressupõe possuírem propriedades estruturais e significantes” (Amâncio, 1989a, p.226). A inexistência de estudos psicossociológicos sobre as representações recíprocas dos angolanos e dos portugueses na altura em que iniciámos a nossa investigação empírica, e o facto de o desenvolvimento da nossa investigação exigir o conhecimento fundamentado das principais dimensões caracterizadoras e diferenciadoras destes dois grupos, justificam a necessidade deste estudo. De notar que o uso da lista original de Katz e Braly (1993) nos pareceu, neste caso, desadequado, pois diz respeito a um contexto geográfico, político-institucional e temporal completamente distinto do que se vive, hoje em dia, em Portugal. Os estudos clássicos conduzidos por estes autores foram efectuados numa época em que o racismo era normativo nos EUA e não anti-normativo como actualmente. Aquele estudo evidencia uma grande preponderância de adjectivos extremamente negativos para caracterizar os grupos étnicos minoritários, especialmente os que mais se distanciavam dos valores da sociedade americana (vejam-se os resultados de Katz e Braly (1933) sobre os estereótipos dos grupos minoritários e a discussão de Amâncio (1989a, pp. 45-46) sobre a relação daqueles resultados com os valores dominantes, na altura, na sociedade americana.
  • 291. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 291 4.4.2.1 Método 4.4.2.1.1 Participantes Participaram neste estudo 31 estudantes angolanos (10 rapazes e 21 raparigas) e 31 estudantes portugueses (12 rapazes e 19 raparigas), com idades compreendidas entre os 18 e os 25 anos44 . Este estudo foi realizado em Fevereiro de 1998. A idade média dos participantes é de 21 anos e não difere significativamente entre rapazes e raparigas, ?2 =15.311, p<0.429. Já relativamente ao grupo dos participantes, verifica-se uma diferença significativa entre a idade média dos angolanos (23 anos) e a dos portugueses (19 anos), ?2 =45.43, p<0.001. Tabela 12 - Grupo e sexo dos participantes Sexo dos Grupo dos participantes participantes Angolanos Portugueses Total Masculino 10 12 22 Feminino 21 19 40 Total 31 31 62 4.4.2.1.2 Procedimento de recolha de dados Os estudantes foram convidados a participar num estudo sobre percepção social. A investigadora distribuía a cada participante uma folha em branco (tamanho A4) e fornecia as seguintes instruções: “Qualquer grupo pode ser descrito em termos das suas características típicas. Gostaríamos que nos desse a sua opinião sobre quais são as características típicas dos ?angolanos?45 . De preferência, exprima a sua opinião em termos de adjectivos, de modo a completar a frase seguinte: “Os ?angolanos? são …”. Quando os participantes terminavam a descrição do primeiro grupo-alvo, a investigadora pedia-lhes para voltarem a folha de costas e efectuarem a descrição do segundo grupo-alvo. A ordem das palavras-estímulo foi contrabalançada: aproximadamente metade dos participantes começou pela palavra-estímulo ‘angolanos’ e a outra metade começou pela palavra-estímulo ‘portugueses’. Finalmente, eram 44 Foram excluídos do tratamento de dados 8 participantes portugueses, 5 por terem dupla nacionalidade e/ou naturalidade africana, e 3 por não terem indicado características dos angolanos (argumentando a falta de contacto com esse grupo). 45 A título de exemplo, colocámos as instruções relativamente ao primeiro grupo-alvo da Ordem 1.
  • 292. Racismo e Etnicidade em Portugal 292 solicitados dados pessoais: sexo, idade, nacionalidade e naturalidade. Terminada esta tarefa (aproximadamente 30 minutos), a investigadora agradecia a colaboração dos participantes e explicava sumariamente os objectivos do estudo. 4.4.2.1.3 Procedimento de análise de dados Organização dos dicionários. As palavras referidas pelos participantes foram submetidas a alguns agrupamentos na base estrita da raiz etimológica e todos os verbos e substantivos foram integrados numa forma adjectiva do masculino plural, seguindo o procedimento adoptado por Amâncio (1989, p. 228). Com este procedimento obtivemos um total de 320 palavras diferentes. Seguidamente, para cada grupo de participantes, procedemos à listagem das palavras associadas a cada grupo-alvo, acompanhadas das respectivas frequências de ocorrência, o que deu origem a quatro dicionários: Aang – Descrição dos angolanos efectuada por participantes angolanos Pang – Descrição dos angolanos efectuada por participantes portugueses Apor – Descrição dos portugueses efectuada por participantes angolanos Ppor – Descrição dos portugueses efectuada por participantes portugueses Procedemos igualmente à listagem das palavras associadas a cada grupo-alvo, acompanhadas das respectivas frequências de ocorrência, independentemente do grupo étnico dos participantes, o que deu origem a dois dicionários: Tang – Descrição dos angolanos efectuada pela totalidade dos participantes Tpor – Descrição dos portugueses efectuada pela totalidade dos participantes A fim de evitar as palavras cuja ocorrência pudesse ser devida a idiossincrasias dos participantes, foram eliminadas, dentro de cada dicionário, todas as palavras cuja frequência de ocorrência fosse inferior a dois. Com o total das associações retidas em todos os dicionários construímos uma tabela de frequências (ver Tabela 1 do Anexo 5) de 6 colunas x 130 palavras, onde as células são preenchidas com as frequências de ocorrência de cada palavra em cada dicionário.
  • 293. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 293 Homogeneidade dos dicionários. Para averiguar o grau de homogeneidade dos dicionários foi calculado um índice de homogeneidade46 para cada um dos seis dicionários. Este índice varia entre zero e 1, sendo que o zero corresponde ao máximo de homogeneidade. Análise de conteúdo dos dicionários. Num primeiro momento, verificámos quais as palavras comuns aos vários dicionários e quais as palavras específicas de cada um. Num segundo momento, o vocabulário retido nos diversos dicionários foi analisado tendo em conta os grandes eixos estruturadores encontrados noutros estudos sobre estereótipos em que estão envolvidas assimetrias de estatuto: expressividade vs. instrumentalidade; dominância vs. submissão; sociabilidade positiva vs. sociabilidade negativa (e.g., Amâncio, 1989a; Delgado, 1997). 46 Índice de homogeneidade = (Associações / Ocorrências); Associações = total de palavras diferentes; e Ocorrências = total de palavras, incluindo frequências.
  • 294. Racismo e Etnicidade em Portugal 294 4.4.2.2 Resultados Homogeneidade dos dicionários Na Tabela 13 apresentamos os indicadores relativos ao vocabulário obtido originalmente (colunas da esquerda) e os que dizem respeito ao vocabulário retido após a selecção (colunas da direita). Tabela 13 - Indicadores relativos aos seis dicionários Associações Ocorrências Índice de HomogeneidadeDicionário Obtido Retido Obtido Retido Obtido Retido Aang 201 161 86 37 0.43 0.23 Pang 188 149 123 42 0.65 0.28 Apor 209 171 87 42 0.42 0.25 Ppor 189 140 120 42 0.63 0.30 Tang 389 347 182 73 0.47 0.21 Tpor 385 337 182 83 0.47 0.24 Nota: Associações = total de palavras diferentes Ocorrências = total de palavras, incluindo frequências Índice de homogeneidade = (Associações / Ocorrências) Varia entre 0 e 1, sendo 0 o máximo de homogeneidade Da comparação entre os índices de homogeneidade relativos ao vocabulário obtido e retido, verifica-se que o critério de selecção utilizado contribuiu globalmente para uma maior homogeneidade interna dos dicionários. Relativamente ao vocabulário retido, os dois dicionários mais heterogéneos dizem respeito às descrições fornecidas pelos participantes portugueses (Ppor e Pang) e os dois dicionários mais homogéneos correspondem às descrições fornecidas pelos participantes angolanos (Aang e Apor). Verifica-se também uma diferenciação em função do grupo-alvo: os dicionários respeitantes às descrições do grupo-alvo angolanos (Aang e Pang) são mais homogéneos do que os dicionários referentes às descrições do grupo-alvo portugueses (Apor e Ppor). Assim, verificam-se dois efeitos, um relativo ao grupo dos participantes e o outro relativo ao grupo-alvo que combinados se traduzem numa maior heterogeneidade do grupo dos portugueses, especialmente quando este é descrito por membros do endogrupo (Ppor) e por uma maior homogeneidade do grupo angolanos, especialmente quando descrito pelos membros do próprio grupo (Aang).
  • 295. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 295 Conteúdo dos dicionários Na análise de conteúdo dos dicionários averiguámos quais os traços considerados específicos de cada um dos grupo-alvos (dimensões diferenciadoras) e quais os traços comuns a ambos os grupos (dimensões comuns). A Tabela 14 apresenta os traços atribuídos exclusivamente ao grupo dos angolanos. Como podemos constatar, dos 47 traços (Tang) apenas 7 são referidos por participantes angolanos (Aang) e por participantes portugueses (Pang): alegres (N=20), pele escura (N=10), pobres (N=9), incultos (N=7), música mexida (N=5), espírito de família (N=4), lutadores (N=4) e nacionalistas (N=4). Tal como esperávamos os traços associados ao grupo dos angolanos são predominantemente ligados à expressividade (alegres, bem dispostos, bem humorados, calorosos, emotivos, espontâneos, festivos, etc.), e ao exotismo (bons cantores, dançam bem, música mexida, música rap, ritmo, rituais, roupas coloridas, roupas tradicionais, etc.). As referências à instrumentalidade negativa são também frequentes (burros, desorganizados, despreocupados, ignorantes, incultos) assim como os traços de submissão (passivos, acomodados). De destacar, ainda, as referências ao conflito e à luta (batalhadores, conflituosos, corajosos, lutadores) e à solidariedade grupal (camaradagem, companheiros, unidos). Estas referências relativas ao conflito e à luta social, por um lado, e à solidariedade e coesão dentro do grupo, por outro, remetem claramente para um grupo dominado que, sentindo-se em posição desfavorável e ameaçado pelo exterior, reforça a solidariedade e coesão internas. A posição desfavorável deste grupo é também patente em algumas referências directas à precariedade da sua situação económica e social (discriminados, pobres, sofredores). Por último, as referências à cor da pele como marca exterior da pertença grupal são referidas maioritariamente pelos portugueses (pele escura, negros).
  • 296. Racismo e Etnicidade em Portugal 296 Tabela 14 - Atributos exclusivos do grupo dos angolanos Traços exlusivos dos angolanos Aang Pang Tang Acomodados 2 3 Alegres* 14 6 20 Artistas 2 Batalhadores 2 2 Bem dispostos 3 4 Bem humorados 2 Bons cantores 4 5 Burros 2 2 Calorosos 2 2 Camaradagem 3 3 Companheiros 2 3 Conflituosos 2 Corajosos 2 3 Cultos 3 3 Dançam bem 8 9 Desorganizados 2 Despreocupados 2 2 Discriminados 2 Emotivos 2 2 Esbanjadores 2 2 Espírito de família* 2 2 4 Espontâneos 2 2 Festivos 2 2 Generosos 2 3 Ignorantes 2 Incultos* 2 5 7 Invejosos 2 2 Leais 3 3 Lutadores* 2 2 4 Mulherengos 2 Música mexida* 3 2 5 Música rap 3 3 Nacionalistas* 2 2 4 Negros 3 4 Passivos 2 2 Pele escura* 3 7 10 Persistentes 2 3 Pobres 9 9 Prepotentes 3 3 Pretensiosos 2 2 Ritmo 4 4 Rituais 2 2 Roupas coloridas 2 3 Roupas tradicionais 2 Sinceros 2 2 Sofredores 2 3 Unidos 3 3 Nota: Os atributos assinalados com um asterisco* são consensuais entre participantes angolanos e portugueses.
  • 297. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 297 A Tabela 15 apresenta os traços atribuídos exclusivamente ao grupo dos portugueses. Como podemos constatar, dos 57 traços (Tpor) apenas 3 são referidos por participantes angolanos (Apor) e por participantes portugueses (Ppor): conservadores (N=14), desportivos (N=12) e pessimistas (N=4). Estes resultados remetem-nos claramente para um menor consenso na representação do grupo dos portugueses (três traços) do que no grupo dos angolanos (sete traços) e, simultaneamente, para uma maior heterogeneidade na representação do grupo dos portugueses (57 traços) do que na representação do grupo dos angolanos (47 traços). Tal heterogeneidade está patente na diversidade dos traços considerados exclusivos dos portugueses, sendo referida explicitamente por três participantes (heterogéneos). Outros traços, não fazendo referência explícita à heterogeneidade, remetem para uma certa idiossincrasia e originalidade dos portugueses (criativos, críticos, imaginativos). Tal como esperávamos os conteúdos associados ao grupo dos portugueses remetem para a instrumentalidade positiva (determinados, dinâmicos, empreendedores, estudiosos, inteligentes, pragmáticos) e para a dominância e a discriminação (autoritários, exploradores, preconceituosos, xenófobos). Contrariamente às nossas expectativas, são bastante frequentes as referências à sociabilidade negativa, sobretudo da parte dos participantes angolanos (antipáticos, arrogantes, cínicos, desunidos, egoístas, fechados, frios, hipócritas, individualistas, interesseiros, introvertidos, mesquinhos, reservados, tímidos, tristes). De destacar, ainda, as referências ao conservadorismo (antiquados, conservadores) e ao materialismo (avarentos, consumistas, gananciosos, materialistas, poupadores). As referências a uma certa nostalgia do passado também não são de descurar (nostálgicos, saudosistas, sebastianistas). Por último, as referências à cor da pele são mais frequentes para caracterizar os angolanos (pele escura, negros; N=14) do que para caracterizar os portugueses (pele clara, brancos; N=7). Este resultado ilustra a forte associação entre nacionalidade e cor da pele, que não são vistas pelos participantes como dimensões independentes: angolano, logo negro.
  • 298. Racismo e Etnicidade em Portugal 298 Tabela 15 - Atributos exclusivos do grupo dos portugueses Atributos exclusivos dos portugueses Apor Ppor Tpor Antipáticos 3 3 Antiquados 2 2 Arrogantes 3 3 Autónomos 2 2 Autoritários 2 2 Avarentos 3 3 Aventureiros 2 2 Boémios 2 2 Bom vinho 3 3 Brancos 2 Cínicos 6 6 Complexados 3 3 Conservadores* 5 9 14 Consumistas 2 2 Criativos 2 2 Críticos 2 2 Desportivos* 9 3 12 Desunidos 4 4 Determinados 2 Dinâmicos 2 2 Egoístas 4 5 Empreendedores 3 3 Estudiosos 2 2 Exploradores 2 2 Fado 2 2 Fechados 3 3 Frios 3 3 Futebol 3 4 Gananciosos 2 2 Heterogéneos 2 3 Hipócritas 4 4 Imaginativos 3 3 Individualistas 2 2 Inteligentes 2 2 Interesseiros 3 3 Introvertidos 7 8 Materialistas 2 3 Mesquinhos 2 2 Nostálgicos 2 2 Originais 3 3 Ostentosos 2 Pacatos 2 2 Pele clara 4 5 Pessimistas* 2 2 4 Poupadores 2
  • 299. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 299 (cont.) Apor Ppor Tpor Pragmáticos 2 2 Preconceituosos 2 2 Receptivos 2 2 Religiosos 3 3 Reservados 6 7 Românticos 2 Saudosistas 3 4 Sebastianistas 2 2 Sensíveis 2 Tímidos 2 2 Tristes 2 2 Xenófobos 2 Nota: Os atributos assinalados com um asterisco* são consensuais entre participantes angolanos e portugueses A Tabela 16 apresenta os traços comuns ao grupo dos angolanos e ao grupo dos portugueses. Dos 26 traços constantes nesta tabela, quatro são comuns a todos os dicionários, isto é, foram atribuídos ao grupo dos angolanos e ao grupo dos portugueses, tanto por participantes angolanos como por participantes portugueses (acolhedores, simpáticos, sociáveis e trabalhadores). Embora estes traços sejam atribuídos a ambos os grupos, a sua frequência varia em função do grupo-alvo. No que diz respeito à dimensão de instrumentalidade, aos portugueses são associados preferencialmente traços de instrumentalidade positiva (o traço trabalhadores surge 20 vezes associado ao grupo dos portugueses e apenas 5 vezes associado ao grupo dos angolanos) enquanto que aos angolanos são associados preferencialmente traços de instrumentalidade negativa (o traço preguiçosos surge 8 vezes associado ao grupo dos angolanos e apenas 2 vezes associado ao grupo dos portugueses). Quanto à dimensão de expressividade, os traços de expressividade positiva (abertos, amigáveis, comunicativos, divertidos, extrovertidos, simpáticos, sociáveis, solidários) são mais frequentemente associados aos angolanos (à excepção dos traços que remetem para o acolhimento: acolhedores e hospitaleiros) enquanto que os traços de expressividade negativa (desconfiados, falsos, racistas) são mais frequentemente associados aos portugueses.
  • 300. Racismo e Etnicidade em Portugal 300 Tabela 16 - Atributos comuns ao grupo dos angolanos e ao grupo dos portugueses Atributos comuns Tang Tpor Abertos 4 2 Acolhedores* 10 14 Ambiciosos 5 9 Amigáveis 7 4 Boa comida 2 6 Capacidade adaptação 4 2 Comunicativos 3 2 Conformados 2 2 Desconfiados 2 4 Divertidos 8 5 Extrovertidos 15 2 Falsos 2 3 Hospitaleiros 4 11 Humildes 8 2 Orgulhosos 6 2 Patrióticos 6 5 Preguiçosos 8 2 Prestáveis 2 2 Racistas 2 20 Simpáticos* 24 13 Simples 8 2 Sociáveis* 11 4 Solidários 11 9 Trabalhadores* 5 20 Tradicionalistas 5 6 Vaidosos 13 7 Nota : Os atributos assinalados com um asterisco* são comuns aos seis dicionários. Neste estudo procedemos à organização de seis dicionários descritivos do grupo dos ‘angolanos’ e do grupo dos ‘portugueses’ com base no vocabulário fornecido livremente pelos participantes. A comparação do vocabulário retido nos dicionários elaborados neste estudo permitiu-nos verificar um efeito ligado ao grupo do participante: os dois dicionários mais heterogéneos dizem respeito às descrições fornecidas pelos participantes portugueses e os dois dicionários mais homogéneos correspondem às descrições fornecidas pelos participantes angolanos. Verifica-se também uma diferenciação em função do grupo-alvo: os dicionários respeitantes às descrições do grupo-alvo ‘os angolanos’ são mais homogéneos do que os dicionários referentes às descrições do grupo-alvo ‘os portugueses’. Estes dois efeitos combinados traduzem-se numa maior heterogeneidade do grupo dominante, especialmente quando
  • 301. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 301 este é descrito por membros do endogrupo (portugueses) e numa maior homogeneidade do grupo dominado, especialmente quando descrito pelos membros do próprio grupo (angolanos). Na análise de conteúdo dos dicionários averiguámos quais dimensões comuns a ambos os grupos e quais as dimensões diferenciadoras, assim como o nível de diversidade do conteúdo associado a cada um dos grupos. A comparação do número de traços usados para descrever exclusivamente cada um dos grupos-alvo remete claramente para um menor consenso na representação do grupo dos portugueses do que no grupo dos angolanos, isto é, para uma maior heterogeneidade na representação do grupo dos portugueses do que na representação do grupo dos angolanos. Tal heterogeneidade está patente não só na diversidade dos traços considerados exclusivos dos portugueses, como é referida explicitamente por alguns participantes, que descrevem o grupo dos portugueses fazendo referência a traços que remetem para uma certa idiossincrasia e originalidade dos portugueses. Assim, mais uma vez, verificamos uma assimetria apontando para uma maior variabilidade do grupo dos portugueses. Tal como esperávamos, os traços associados exclusivamente ao grupo dos angolanos são predominantemente ligados à expressividade e ao exotismo. As referências à instrumentalidade negativa são também frequentes assim como os traços de submissão. De destacar, ainda, as referências ao conflito e à luta social, por um lado, e à solidariedade e coesão dentro do grupo, por outro. Estas referências remetem claramente para um grupo dominado que, sentindo-se em posição desfavorável e ameaçado pelo exterior, reforça a solidariedade e coesão internas. A posição desfavorável deste grupo é também patente em algumas referências directas à precariedade da sua situação económica e social. Por último, as referências à cor da pele como marca exterior da pertença grupal, referidas maioritariamente pelos portugueses, remetem para a diferença que é vista como estigma. Os conteúdos associados exclusivamente ao grupo dos portugueses remetem para a instrumentalidade positiva, para a dominância e a discriminação social. As referências a traços de sociabilidade negativa são também bastante frequentes, sobretudo da parte
  • 302. Racismo e Etnicidade em Portugal 302 dos participantes angolanos. De destacar, ainda, os traços ligados ao conservadorismo e ao materialismo, assim como os traços ligados a uma certa nostalgia do passado. Verificámos também alguns traços atribuídos a ambos os grupos, no entanto, a sua frequência varia consideravelmente em função do grupo-alvo. No que diz respeito à dimensão de instrumentalidade, aos portugueses são associados preferencialmente traços de instrumentalidade positiva enquanto que aos angolanos são associados preferencialmente traços de instrumentalidade negativa. Quanto à dimensão de sociabilidade, os traços de sociabilidade positiva são mais frequentemente associados aos angolanos enquanto que os traços de sociabilidade negativa são mais frequentemente associados aos portugueses. Comparando as dimensões de conteúdo atribuídas exclusivamente a cada um dos grupos, constatamos que ao grupo dos angolanos são associados traços referentes à sociabilidade positiva e ao exotismo, enquanto que ao grupo dos portugueses são associados traços referentes à sociabilidade negativa, ao conservadorismo e ao materialismo. Aos angolanos são associados os traços remetendo para um grupo ocupando uma posição desfavorecida social e economicamente – submissão, vítima de discriminação -, enquanto que aos portugueses são associados os traços remetendo para um grupo ocupando uma posição privilegiada – dominância, actor de discriminação. Paralelamente, aos angolanos são atribuídos traços remetendo para a solidariedade e coesão grupais (típicos dos membros dos grupos dominados cuja identidade é ameaçada pelo exterior) enquanto que aos portugueses são atribuídos traços remetendo para a autonomia e independência (típicos dos membros dos grupos dominantes, cuja singularidade e idiossincrasia não estão ameaçadas pela sua pertença grupal). As referências à cor da pele como marca exterior da pertença grupal são mais frequentes para caracterizar os angolanos do que para caracterizar os portugueses. Este resultado ilustra a forte associação entre nacionalidade e cor da pele, que não são consideradas pelos participantes como dimensões independentes. Remete igualmente para a maior centralidade da cor da pele nos membros do grupo dominado do que nos membros do grupo dominante, visto que nos primeiros funciona como estigma que os demarca da sociedade em geral.
  • 303. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 303 Resumindo, tal como esperávamos, a maior diferenciação entre os grupos opera- se ao nível das dimensões subjacentes aos conteúdos que lhe estão associados: sociabilidade positiva, expressividade, exotismo e instrumentalidade negativa para os angolanos; sociabilidade negativa, conservadorismo, dominância e instrumentalidade positiva para os portugueses. Outro aspecto que ressalta dos nossos dados, é a maior diversidade de conteúdos associados aos portugueses, o que aponta para uma representação mais heterogénea deste grupo, isto é, menos estereotipada. Uma vez analisadas as dimensões de conteúdo subjacentes às representações de cada um dos grupos, resta-nos empreender uma análise mais sistemática para verificar até que ponto estes traços, fornecidos livremente pelos participantes, são percebidos como estereotípicos ou como contra-estereotípicos de cada um dos grupos-alvo. Outro aspecto essencial é averiguar qual valência avaliativa destes traços a partir da opinião pessoal dos participantes.
  • 304. Racismo e Etnicidade em Portugal 304 4.4.3 Estudo 3b - Avaliação dos conteúdos No estudo anterior procedemos à análise das dimensões de conteúdo subjacentes às representações do ‘grupo dos angolanos’ e do ‘grupo dos portugueses’, e averiguámos o nível de diversidade dos conteúdos associados a cada um dos grupos. Neste estudo, com base numa lista de adjectivos fornecida aos participantes, vamos empreender uma análise mais sistemática da estereotipicalidade de cada um dos traços (até que ponto cada traço é percebido como estereotípico ou como contra- estereotípico de cada um dos grupos-alvo) e da sua valência avaliativa a partir da opinião pessoal dos participantes (até que ponto cada traço é percebido como positivo, neutro ou negativo). A partir do vocabulário obtido no estudo anterior foi constituída uma lista de adjectivos cuja selecção foi orientada sobretudo por critérios qualitativos. Procurou-se uma representação equilibrada dos traços referidos por participantes angolanos e por participantes portugueses, considerando sempre que possível os traços obtidos em mais de um dicionário. Foram eliminados todos os traços relativos a características físicas (por exemplo: “pele escura”, “pele clara”) e às relações entre os sexos (por exemplo: “mulherengos”), visto serem ou irrelevantes para os estudos seguintes ou indutores de efeitos não controlados. A lista de traços utilizada neste estudo foi elaborada com os traços mais frequentemente referidos no estudo anterior. Foram ainda acrescentados seis novos traços47 geralmente presentes nas listas de adjectivos utilizadas nos estudos sobre estereótipos relativos a grupos étnicos para permitir comparações dos nossos dados com os estudos anteriores devido à sua relevância em diversos estudos sobre estereótipos de grupos minoritários africanos ou afro-americanos (e.g., Delgado, 1997; Gilbert, 1951; Katz e Braly, 1933). Foram efectuadas algumas adaptações do vocabulário de modo a aproximá-lo mais dos traços habitualmente considerados48 . 47 Foram acrescentados os seguintes traços: “agressivos”, “amantes do prazer”, “honestos”, “impulsivos”, “sensuais” e “supersticiosos”. 48 As adapatações de vocabulário foram as seguintes: “bons cantores”, “música rap” e “música mexida” foram substituídos por “musicais”; “apreciadores de boa comida” por “gulosos”; “ritmo” por “cheios de ritmo”; “camaradagem” por “espírito de camaradagem”; “espírito de família” por “forte ligação à família”.
  • 305. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 305 Neste estudo, os 80 traços que resultaram desta selecção foram submetidos a três classificações independentes tendo em conta a opinião pessoal dos participantes: a estereotipicalidade em relação aos angolanos; a estereotipicalidade em relação aos portugueses; e a valência avaliativa.
  • 306. Racismo e Etnicidade em Portugal 306 4.4.3.1 Método 4.4.3.1.1 Participantes e desenho Participaram neste estudo 50 estudantes angolanos (27 rapazes e 23 raparigas) e 64 estudantes portugueses (28 rapazes e 36 raparigas)49 . A idade média difere significativamente em função do sexo dos participantes, sendo os rapazes mais velhos do que as raparigas (respectivamente 23 anos e 21 anos, ?2 =26.956, p<0.029) e também em função do grupo étnico dos participantes, sendo os angolanos mais velhos do que os portugueses (respectivamente 24 anos e 19 anos, ?2 =61.053, p<0.001). Este estudo foi realizado de Fevereiro a Março de 1998. A Tabela 17 representa a distribuição dos participantes de angolanos e portugueses. Tabela 17 - Grupo e sexo dos participantes Sexo dos Grupo dos participantes participantes Angolanos Portugueses Total Masculino 27 28 55 Feminino 23 36 59 Total 50 64 114 4.4.3.1.2 Procedimento de recolha de dados As respostas dos participantes foram recolhidas colectivamente em sala de aula. A investigadora apelou à participação dos estudantes numa investigação sobre psicologia intercultural, tendo como objectivo estudar questões relacionadas com a forma como as pessoas de diferentes culturas se percepcionam umas às outras. No questionário (ver Anexo 6) os participantes eram confrontados com uma lista de 80 adjectivos, sendo-lhes pedido que classificassem essas características de acordo com a sua opinião pessoal. A mesma lista de adjectivos era apresentada três vezes, sendo associada a três escalas de 7 pontos: uma para averiguar a estereotipicalidade em relação aos angolanos; outra para averiguar a estereotipicalidade em relação aos portugueses; e outra para avaliar a valência das características. A ordem dos dois grupos-alvo era contrabalançada, de modo que cerca de metade dos participantes começava por responder em relação ao grupo-alvo ‘angolanos’ e a outra metade começava por responder em relação ao grupo- 49 Foram eliminados deste estudo 11 participantes portugueses por terem dupla nacionalidade e/ou naturalidade africana.
  • 307. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 307 alvo ‘portugueses’. A avaliação da valência dos traços era sempre efectuada no fim. Esta tarefa demorou aproximadamente 30 minutos. Depois dos questionários recolhidos, a investigadora esclarecia os objectivos do estudo e respondia às eventuais questões dos participantes. 4.4.3.1.3 Instrumentos de medida Valência dos traços. Foi pedido aos participantes para estimarem a valência avaliativa de cada um dos traços usados no questionário através de uma escala de sete pontos (1= “muito negativo”; 7 = “muito positivo”). Estereotipicalidade dos traços em relação aos angolanos. Foi pedido aos participantes para estimarem a estereotipicalidade de cada um dos traços usados no questionário através de uma escala de sete pontos para averiguar a estereotipicalidade em relação ao grupo dos angolanos (1= “nada típico dos angolanos”; 7 = “muito típico dos angolanos”). Estereotipicalidade dos traços em relação aos portugueses. Foi pedido aos participantes para estimarem a estereotipicalidade de cada um dos traços usados no questionário através de uma escala de sete pontos, uma para averiguar a estereotipicalidade em relação ao grupo dos portugueses (1= “nada típico dos portugueses”; 7 = “muito típico dos portugueses”). 4.4.3.1.4 Procedimento de análise de dados Classificação dos traços. Para classificar os traços em função da sua valência avaliativa e em função do sua estereotipicalidade, foram efectuados vários testes-t testando contra o ponto médio das escalas (one-sample t test; test value = 4). Foram realizados três testes-t para cada uma das três escalas (valência avaliativa; estereotipicalidade em relação aos angolanos; estereotipicalidade em relação aos portugueses): um para os participantes angolanos; outro para os participantes portugueses; e outro considerando a totalidade dos participantes. O Anexo 7 apresenta os resultados dos nove testes-t efectuados50 . 50 Em nenhum dos tratamentos estatísticos efectuados nesta pesquisa empírica se procedeu a substituições de médias no caso de “não-respostas”, uma vez que consideramos que a não-resposta é um aspecto a ter em conta. O não preenchimento das não-respostas têm como consequência que a informação estatística (médias, desvios-padrão, graus de liberdade, etc.) relativa a determinados itens não seja sempre a mesma, pois tal depende do número de participantes que para cada análise estão em condições de ser ou não incluídos.
  • 308. Racismo e Etnicidade em Portugal 308 Para a escala referente à valência avaliativa das características, uma diferença significativa positiva face ao ponto médio da escala indica que esse traço é considerado positivo, enquanto que uma diferença significativa negativa indica que esse traço é considerado negativo. Uma diferença não significativa face ao ponto médio da escala indica que esse traço é considerado neutro. No caso das escalas referentes ao carácter estereotípico dos traços, uma diferença significativa positiva em relação ao ponto médio da escala indica que esse traço é considerado estereotípico do grupo-alvo em questão, enquanto que uma diferença significativa negativa indica que esse traço é considerado contra-estereotípico do grupo- alvo em questão. Uma diferença não significativa face ao ponto médio da escala indica que esse traço não é considerado relevante para caracterizar o grupo em questão. Consenso na classificação dos traços. Uma vez classificados os traços em função dos testes-t efectuados, verificámos se existia um consenso entre participantes angolanos e participantes portugueses relativamente à forma como os traços foram classificados nas três escalas. Nesse sentido foram efectuados testes-t confrontando as respostas de ambos os grupos de participantes relativamente a cada traço (independent- samples t test).
  • 309. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 309 4.4.3.2. Resultados Valência avaliativa dos traços tendo em conta a opinião pessoal dos participantes A Tabela 18 apresenta os traços considerados positivos pelos participantes angolanos e portugueses (indicamos apenas os traços que obtiveram uma média igual ou superior a 5, pelo menos para um dos grupos de participantes). Para não sobrecarregar o corpo do texto, e por comodidade de leitura, remetemos os desvios-padrão e a informação estatística detalhada correspondente aos testes efectuados para anexo (ver Anexo 7). Dos 80 traços apresentados aos participantes, 43 foram considerados positivos. Verifica-se um grande consenso entre participantes angolanos e participantes portugueses quanto à valência avaliativa dos traços apresentados, embora a valorização dos traços não siga exactamente a mesma ordem para ambos os grupos. Podemos constatar que os traços considerados mais positivos estão ligados, por um lado, à sociabilidade e solidariedade e, por outro, à instrumentalidade. Dada a consensualidade da classificação destes 43 traços entre participantes angolanos e portugueses, estes serão a partir de agora designados como traços positivos.
  • 310. Racismo e Etnicidade em Portugal 310 Tabela 18 - Traços considerados positivos em função do grupo dos participantes Traços positivos Angolanos Traços positivos Portugueses Trabalhadores 5.71 Unidos 6.25 Boa capacidade de adaptação 5.68 Honestos 6.08 Sociáveis 5.68 Amigáveis 6.03 Alegres 5.66 Bem dispostos 6.03 Bem humorados 5.62 Simpáticos 6.02 Dinâmicos 5.62 Bem humorados 5.98 Simpáticos 5.61 Cultos 5.98 Unidos 5.61 Sociáveis 5.96 Bem dispostos 5.60 Divertidos 5.95 Acolhedores 5.57 Espírito de camaradagem 5.95 Espírito de camaradagem 5.56 Boa capacidade de adaptação 5.92 Lutadores 5.56 Sensíveis 5.92 Divertidos 5.54 Solidários 5.90 Comunicativos 5.53 Alegres 5.89 Amigáveis 5.48 Hospitaleiros 5.89 Inteligentes 5.47 Trabalhadores 5.89 Calorosos 5.41 Inteligentes 5.83 Solidários 5.40 Leais 5.81 Cultos 5.38 Simples 5.81 Forte ligação à família 5.37 Dinâmicos 5.80 Hospitaleiros 5.36 Acolhedores 5.75 Simples 5.36 Forte ligação à família 5.72 Criativos 5.34 Criativos 5.67 Empreendedores 5.30 Corajosos 5.63 Leais 5.26 Desportivos 5.63 Cheios de ritmo 5.24 Lutadores 5.63 Corajosos 5.22 Calorosos 5.61 Desportivos 5.22 Comunicativos 5.59 Honestos 5.20 Humildes 5.41 Humildes 5.14 Extrovertidos 5.40 Religiosos 5.14 Aventureiros 5.38 Imaginativos 5.12 Empreendedores 5.38 Sensuais 5.10 Imaginativos 5.36 Amantes do prazer 5.08 Cheios de ritmo 5.34 Musicais 5.02 Receptivos 5.32 Românticos 5.02 Nacionalistas 5.30 Aventureiros 4.96 Festivos 5.25 Extrovertidos 4.94 Românticos 5.24 Festivos 4.92 Amantes do prazer 5.21 Nacionalistas 4.86 Espontâneos 5.19 Receptivos 4.84 Sensuais 5.05 Sensíveis 4.74 Musicais 5.00 Espontâneos 4.67 Religiosos 4.71 Nota: Escala 1 = “muito negativo”; 7 = “muito positivo” (opinião pessoal dos participantes). Todos os valores apresentados diferem significativa e positivamente do ponto médio da escala.
  • 311. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 311 A Tabela 19 apresenta os traços considerados negativos pelos participantes angolanos e portugueses (indicamos apenas os traços que obtiveram média igual ou inferior a 3.25, pelo menos para um dos grupos de participantes). Globalmente, os traços considerados mais negativos estão relacionados com a sociabilidade negativa e com a fraca instrumentalidade. Podemos constatar que existe um grande consenso entre participantes angolanos e participantes portugueses quanto aos traços negativos, embora este seja menor que relativamente aos traços positivos. Assim, para além da ordem de negatividade dos traços não ser a mesma para ambos os grupos, podemos verificar que em alguns casos, traços considerados negativos por um grupo são considerados neutros pelo outro. Seis dos traços apresentados nesta lista são considerados significativamente negativos pelos participantes portugueses, mas não pelos participantes angolanos: conflituosos, desconfiados, materialistas, ostentosos, passivos e pessimistas. Esta diferença na classificação dos traços foi confirmada pelos testes-t confrontando as médias de ambos os grupos. Assim, dos 23 traços apresentados nesta tabela, 17 têm avaliações consensuais entre participantes angolanos e portugueses. Estes 17 traços serão a partir de agora designados como traços negativos.
  • 312. Racismo e Etnicidade em Portugal 312 Tabela 19 - Traços considerados negativos em função do grupo dos participantes Traços negativos Angolanos Traços negativos Portugueses Hipócritas 2.38 Racistas 1.60 Preguiçosos 2.41 Falsos 1.61 Falsos 2.45 Antipáticos 1.92 Ignorantes 2.49 Hipócritas 1.92 Racistas 2.53 Cínicos 1.95 Cínicos 2.54 Invejosos 1.98 Invejosos 2.70 Egoístas 2.00 Frios 2.73 Avarentos 2.06 Antipáticos 2.82 Ignorantes 2.13 Agressivos 2.88 Agressivos 2.27 Fechados 3.14 Frios 2.30 Preconceituosos 3.14 Conflituosos 2.30 Egoístas 3.18 Preguiçosos 2.31 Avarentos 3.31 Fechados 2.43 Conflituosos 3.39* Pessimistas 2.56 Conformados 3.42 Preconceituosos 2.58 Individualista 3.48 Desconfiados 2.81 Pessimistas 3.48 Conformados 2.84 Supersticiosos 3.66* Passivos 2.89 Ostentosos 3.94* Ostentosos 3.00 Passivos 3.98* Individualistas 3.10 Desconfiados 4.08* Supersticiosos 3.15 Materialistas 4.24* Materialistas 3.28 Nota: Escala 1 = “muito negativo”; 7 = “muito positivo” (opinião pessoal dos participantes). Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala (traços neutros). Traços estereotípicos dos angolanos A Tabela 20 apresenta os traços considerados estereotípicos dos angolanos. Como podemos constatar, 34 dos 80 traços apresentados aos participantes são considerados estereotípicos dos angolanos. Destes apenas 6 não reúnem consenso entre os participantes angolanos e participantes portugueses: o traço simples é considerado neutro pelos participantes angolanos e é considerado estereotípico dos angolanos pelos participantes portugueses; os traços aventureiros, boa capacidade de adaptação e sensuais são considerados estereotípicos dos angolanos pelos participantes angolanos, mas são considerados neutros pelos participantes portugueses; os traços ostentosos e vaidosos são considerados típicos dos angolanos pelos participantes angolanos e são considerados contra-estereotípicos dos angolanos pelos participantes portugueses.
  • 313. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 313 De notar que todos os traços estereotípicos dos angolanos são considerados consensualmente positivos (ver Tabela 18), com as seguintes excepções: o traço orgulhosos é considerado positivo pelos angolanos (mas com média inferior a 5 pelo que não consta na Tabela 18) e neutro pelos portugueses; os traços ostentosos e vaidosos são considerados neutros pelos angolanos e negativos pelos portugueses (embora com média superior a 3 pelo que não constam na Tabela 19) ; os traços emotivos e patrióticos, são considerados consensualmente positivos por angolanos e portugueses (mas não constam da Tabela 18 por apresentam valores inferiores a 5). Assim podemos constatar que os angolanos reivindicam para o endogrupo todos os traços positivos ligados à expressividade, sociabilidade e solidariedade, recusando todos os traços negativos. Por seu turno, os portugueses atribuem aos angolanos os traços positivos ligados à expressividade, sociabilidade e exotismo, não lhes atribuindo nenhum traço negativo.
  • 314. Racismo e Etnicidade em Portugal 314 Tabela 20 - Traços considerados estereotípicos dos angolanos em função do grupo dos participantes Traços típicos dos angolanos +/- Angolanos Traços típicos dos angolanos +/- Portugueses Alegres + 6.40 Cheios de ritmo + 5.64 Festivos + 6.36 Festivos + 5.59 Vaidosos + 6.20 Nacionalistas + 5.45 Cheios de ritmo + 6.12 Unidos + 5.44 Forte ligação à família + 6.10 Bem dispostos + 5.38 Calorosos + 6.08 Musicais + 5.35 Divertidos + 6.08 Bem humorados + 5.33 Sociáveis + 6.08 Forte ligação à família + 5.31 Acolhedores + 6.06 Alegres + 5.29 Simpáticos + 6.02 Simples + 5.29 Hospitaleiros + 5.94 Emotivos + 5.24 Amantes do prazer + 5.92 Patrióticos + 5.24 Bem dispostos + 5.92 Amigáveis + 5.23 Amigáveis + 5.76 Lutadores + 5.14 Receptivos + 5.68 Espírito de camaradagem + 5.09 Musicais + 5.67 Divertidos + 5.02 Bem humorados + 5.64 Solidários + 4.95 Comunicativos + 5.56 Calorosos + 4.94 Extrovertidos + 5.48 Simpáticos + 4.85 Emotivos 5.44 Sociáveis + 4.84 Boa capacidade de adaptação + 5.41 Hospitaleiros + 4.77 Orgulhosos 5.32 Religiosos + 4.73 Solidários + 5.28 Receptivos + 4.66 Espírito de camaradagem + 5.22 Espontâneos + 4.63 Ostentosos + 5.20 Amantes do prazer + 4.60 Aventureiros + 5.10 Acolhedores + 4.55 Espontâneos + 5.04 Orgulhosos + 4.55 Sensuais + 5.04 Comunicativos + 4.52 Religiosos + 5.02 Extrovertidos + 4.51 Nacionalistas + 4.96 Boa capacidade de adaptação + 4.30* Patrióticos + 4.88 Aventureiros + 4.27* Lutadores + 4.80 Sensuais + 4.11* Unidos + 4.65 Vaidosos 3.42** Simples + 4.24* Ostentosos 3.38** Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala. Os valores assinalados com dois asteriscos** diferem significativamente do ponto médio da escala, mas no sentido oposto (traços contra-estereotípicos). Avaliação dos traços (opinião pessoal dos participantes): (+) traços positivos; (-) traços negativos.
  • 315. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 315 Traços estereotípicos dos portugueses A Tabela 21 apresenta os traços estereótipos dos portugueses. Como podemos constatar, 36 dos 80 traços apresentados aos participantes são considerados estereotípicos dos portugueses, mas destes apenas 16 reúnem consenso entre os participantes angolanos e portugueses, e se considerarmos como mínimo o critério de média igual ou superior a 5, a lista reduz-se a cinco traços: religiosos (M = 5.72), empreendedores (M = 5.32), orgulhosos (M = 5.30), trabalhadores (M = 5.24), e ambiciosos (M = 5.19). Relativamente aos traços que não reúnem consenso, destacam-se os traços calorosos, divertidos, festivos, e simples considerados estereotípicos dos portugueses pelos participantes portugueses, mas considerados contra-estereotípicos dos portugueses pelos participantes angolanos. De referir ainda que o traço desconfiados é considerado estereotípico dos portugueses pelos participantes angolanos, mas é considerado neutro pelos participantes portugueses. Em contrapartida, os traços acolhedores, alegres, amantes do prazer, amigáveis, bem dispostos, bem humorados, emotivos, forte ligação à família, honestos, hospitaleiros, humildes, inteligentes, simpáticos e sociáveis são considerados estereotípicos dos portugueses pelos participantes portugueses, mas são considerados neutros pelos participantes angolanos. Assim, podemos constatar que aos portugueses são atribuídos traços positivos e traços negativos, sendo estes últimos mais frequentemente atribuídos pelos participantes angolanos. De um modo geral, os portugueses são descritos através de traços ligados à instrumentalidade positiva (trabalhadores, empreendedores, dinâmicos). Quanto à dimensão de sociabilidade verifica-se uma predominância de traços positivos (acolhedores, amigáveis, divertidos, etc) face aos traços negativos (desconfiados, individualistas).
  • 316. Racismo e Etnicidade em Portugal 316 Tabela 21 - Traços considerados estereotípicos dos portugueses em função do grupo dos participantes Traços típicos dos portugueses +/- Angolanos Traços típicos dos portugueses +/- Portugueses Religiosos + 5.61 Forte ligação à família + 6.84 Materialistas 5.55 Religiosos + 5.80 Ambiciosos + 5.34 Hospitaleiros + 5.66 Orgulhosos 5.20 Simpáticos + 5.63 Trabalhadores + 5.20 Acolhedores + 5.56 Vaidosos 5.20 Nacionalistas + 5.50 Empreendedores + 5.14 Bem dispostos + 5.47 Aventureiros + 5.04 Empreendedores + 5.47 Desconfiados - 5.02 Patrióticos + 5.47 Individualistas - 5.02 Amigáveis + 5.46 Nacionalistas + 4.96 Sociáveis + 5.45 Saudosistas 4.88 Festivos + 5.40 Desportivos + 4.82 Bem humorados + 5.38 Patrióticos + 4.80 Orgulhosos 5.38 Românticos + 4.74 Sensíveis + 5.34 Lutadores + 4.68 Simples + 5.30 Dinâmicos + 4.42 Saudosistas + 5.29 Sensíveis + 4.42 Trabalhadores + 5.27 Inteligentes + 4.30* Amantes do prazer + 5.25 Amantes do prazer + 4.24* Emotivos 5.25 Amigáveis + 4.00* Dinâmicos + 5.23 Emotivos 3.98* Divertidos + 5.20 Sociáveis + 3.86* Românticos + 5.20 Alegres + 3.84* Alegres + 5.16 Bem humorados + 3.84* Honestos + 5.14 Honestos + 3.84* Calorosos + 5.11 Simpáticos + 3.78* Humildes + 5.11 Bem dispostos + 3.66* Inteligentes + 5.11 Humildes + 3.66* Lutadores + 5.09 Hospitaleiros + 3.62* Ambiciosos 5.08 Forte ligação à família + 3.60* Desportivos + 5.02 Acolhedores + 3.58* Aventureiros + 4.95 Festivos + 3.56** Materialistas 4.86 Divertidos + 3.55** Vaidosos 4.79 Calorosos + 3.42** Individualistas - 4.42 Simples + 3.38** Desconfiados - 4.27* Nota: Escala 1 = “nada típico dos portugueses”; 7 = “muito típico dos portugueses” (opinião pessoal dos participantes). Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala. Os valores assinalados com dois asteriscos** diferem significativamente do ponto médio da escala, mas no sentido oposto (traços contra-estereotípicos). Avaliação dos traços: (+) traços positivos; (-) traços negativos.
  • 317. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 317 Quando comparamos o estereótipo dos portugueses com o dos angolanos, a primeira constatação que efectuamos diz respeito à consensualidade e força dos estereótipos: o estereótipo dos portugueses é muito menos consensual do que o estereótipo dos angolanos; para além de menos consensual o estereótipo dos portugueses é menos marcado, isto é, as médias de estereotipicalidade dos atributos consensuais são muito mais baixas do que as médias dos atributos consensuais dos angolanos. A segunda constatação diz respeito à valência dos estereótipos: o estereótipo dos angolanos reúne apenas traços positivos, enquanto que o estereótipo dos portugueses reúne também traços negativos, especialmente quando consideramos as respostas dos participantes angolanos. Por último, podemos constatar que o estereótipo dos angolanos reúne essencialmente traços ligados à expressividade, sociabilidade, solidariedade e exotismo, enquanto que o estereótipo dos portugueses apresenta essencialmente traços ligados à instrumentalidade positiva e traços de sociabilidade positiva e negativa. Estes dados vão ao encontro dos já evidenciados no estudo anterior. Assim, aparentemente, os participantes angolanos apresentam um nível superior de etnocentrismo ou favoritismo endogrupal do que os participantes portugueses, pois reivindicam para o endogrupo apenas traços positivos, sobretudo os ligados à expressividade e sociabilidade, enquanto que negam esses mesmos traços ao exogrupo. Em contrapartida, os portugueses apenas negam ao exogrupo os traços positivos ligados à instrumentalidade, que reivindicam para o endogrupo. A manifestação de favoritismo endogrupal por parte dos participantes angolanos pode estar ligada à reinvidicação de uma identidade positiva que é ameaçada pelo exterior. Por seu turno, a ausência de manifestação de favoritismo endogrupal da parte dos portugueses pode estar ligada à preocupação de não manifestar preconceitos e assim enquadrar-se na norma anti-racista, mas também pode estar ligada simplesmente ao facto de os participantes responderem em duas escalas independentes. Até que ponto este padrão de resultados se manterá se os estereótipos forem avaliados de forma interdependente, isto é, através de uma única escala em que os traços sejam atribuídos a um grupo ou ao outro ? Qual o significado destes traços tendo como referente o modelo ‘universal’ de pessoa? São estas as questões que vamos averiguar no próximo estudo.
  • 318. Racismo e Etnicidade em Portugal 318 4.4.4 Estudo 3c - Significados dos conteúdos Neste estudo foi utilizada a mesma lista de 80 adjectivos que no estudo anterior, mas o procedimento foi algo diferente. No estudo anterior os participantes avaliaram cada traço numa escala de 7 pontos (1 = “muito negativo”; 7= “muito positivo”) em função da sua opinião pessoal. Neste estudo, os participantes procederam à avaliação dos traços também numa escala de 7 pontos, mas tendo como referência os estereótipos de adulto na nossa sociedade (e.g., Amâncio, 1989a). No estudo anterior verificámos que os angolanos manifestaram muito mais favoritismo endogrupal do que os portugueses. Pensamos que a ausência de manifestação de favoritismo endogrupal da parte dos portugueses pode estar ligada à preocupação de não manifestar preconceitos e assim enquadrar-se na norma anti-racista, mas também pode estar ligada simplesmente ao facto de os participantes responderem em duas escalas independentes - uma para os angolanos (1 = “nada típico dos angolanos”; 7= “muito típico dos angolanos”) e outra para os portugueses (1 = “nada típico dos portugueses”; 7 = “muito típico dos portugueses”) – permitindo assim que os traços positivos fossem atribuídos a ambos os grupos, ou seja, os portugueses para se auto-atribuírem determinados traços não precisavam de os negar ao exogrupo. Para verificar esta hipótese no presente estudo foi utilizada uma escala interdependente (1 = “muito típico dos angolanos”; 7= “muito típico dos portugueses”), à semelhança do que tem sido feito noutros estudos envolvendo grupos de estatuto assimétrico (e.g., Sedikides, 1997). Com este tipo de escala os participantes não têm a possibilidade de classificar um determinado traço como sendo simultaneamente estereotípico de um grupo e do outro, como acontecia no estudo anterior.
  • 319. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 319 4.4.4.1 Método 4.4.4.1.1 Participantes e desenho Participaram neste estudo 32 estudantes angolanos (21 rapazes e 11 raparigas) e 49 estudantes portugueses (10 rapazes e 39 raparigas)51 . A idade média difere significativamente em função do sexo dos participantes, sendo os rapazes mais velhos do que as raparigas (respectivamente 24 anos e 21 anos, ?2 =32.074, p<0.031), e também em função do grupo dos participantes, sendo os angolanos mais velhos do que os portugueses (respectivamente 26 anos e 19 anos, ?2 =54.566, p<0.001). As respostas dos participantes foram recolhidas colectivamente. Este estudo foi realizado em Março de 1999. A Tabela 22 representa a distribuição dos participantes de angolanos e portugueses. Tabela 22 - Grupo e sexo dos participantes Grupo dos participantesSexo dos Participantes Angolanos Portugueses Total Masculino 21 10 31 Feminino 11 39 50 Total 32 49 81 4.4.4.1.2 Procedimento de recolha de dados A investigadora apelou à participação dos estudantes num estudo sobre psicologia intercultural, tendo como objectivo estudar questões relacionadas com a forma como as pessoas de diferentes culturas se percepcionam umas às outras. No questionário (ver Anexo 8) os participantes eram confrontados com uma lista de 80 adjectivos. A mesma lista de adjectivos era apresentada duas vezes, sendo associada a duas escalas de 7 pontos: uma para averiguar a estereotipicalidade em relação aos angolanos e aos portugueses; e outra para avaliar a distância das características em relação ao estereótipo de pessoa adulta na sociedade portuguesa. A ordem das duas escalas era contrabalançada, de modo que cerca de metade dos participantes começava por responder em relação ao carácter estereotípico dos traços e a outra metade começava por responder em relação à distância simbólica dos traços. Esta tarefa demorou 51 Foram eliminados deste estudo 8 participantes portugueses por terem dupla nacionalidade e/ou naturalidade africana.
  • 320. Racismo e Etnicidade em Portugal 320 aproximadamente 20 minutos. Depois dos questionários recolhidos, a investigadora esclarecia os objectivos do estudo e respondia às eventuais questões dos participantes. 4.4.4.1.3 Instrumentos de medida Significado dos traços. Foi pedido aos participantes para estimarem o significado avaliativo de cada um dos traços usados no questionário através de uma escala de sete pontos (1= “muito negativo”; 7 = “muito positivo”) recorrendo aos estereótipos de adulto na sociedade portuguesa e não à sua opinião pessoal. Estereotipicalidade dos traços. Foi pedido aos participantes para estimarem a estereotipicalidade de cada um dos traços usados no questionário através de uma escala de sete pontos (1= “muito típico dos angolanos”; 2 = “moderadamente típico dos angolanos”; 3 = “ligeiramente típico dos angolanos”; 4 = “igualmente típico dos angolanos e dos portugueses”; 5 = “ligeiramente típico dos portugueses”; 6 = “moderadamente típico dos portugueses”; 7 = “muito típico dos portugueses”), tendo em conta a sua opinião pessoal. 4.4.4.1.4 Procedimento de análise de dados Tal como no estudo anterior, na fase inicial do tratamento de dados efectuámos vários testes-t testando contra o ponto médio das escalas (test value = 4). Foram realizados três testes-t para cada uma das duas escalas (estereotipicalidade em relação aos angolanos e em relação aos portugueses; e significado avaliativo): um para os participantes angolanos; outro para os participantes portugueses; e outro considerando a totalidade dos participantes. O Anexo 9 apresenta os resultados dos seis testes-t efectuados. No caso da escala referente à significado avaliativo dos traços (1= “muito negativo”; 7 = “muito positivo”), uma diferença significativa positiva indica que esse traço é considerado positivo, enquanto que uma diferença significativa negativa indica que esse traço é considerado negativo. Uma diferença não significativa face ao ponto médio da escala indica que esse traço é considerada neutro. No caso da escala referente ao carácter estereotípico dos traços (1 = “muito típico dos angolanos”; 7 = “muito típico dos portugueses”), uma diferença significativa positiva em relação ao ponto médio da escala indica que esse traço é estereotípico dos portugueses, enquanto que uma diferença significativa negativa indica que esse traço é estereotípico dos angolanos. Uma diferença não significativa face ao ponto médio da
  • 321. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 321 escala indica que esse traço não é considerado relevante para diferenciar os dois grupos- alvo em questão (angolanos e portugueses).
  • 322. Racismo e Etnicidade em Portugal 322 4.4.4.2 Resultados Significado dos traços tendo como referente o estereótipo de pessoa adulta A Tabela 23 apresenta os traços considerados positivos pelos participantes angolanos e portugueses tendo como referente o estereótipo de pessoa adulta (indicamos apenas os traços com média igual a superior a 5, pelo menos para um dos grupos de participantes). Para não sobrecarregar as tabelas, e por comodidade de leitura, remetemos os desvios-padrão e a informação estatística correspondente aos testes efectuados para anexo (ver Anexo 9).
  • 323. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 323 Tabela 23 - Traços considerados qualidades em função do grupo dos participantes Qualidades Angolanos Qualidades Portugueses Trabalhadores 6.19 Cultos 6.16 Solidários 5.97 Leais 6.14 Inteligentes 5.77 Sociáveis 6.14 Sociáveis 5.75 Solidários 6.08 Cultos 5.63 Trabalhadores 6.02 Calorosos 5.56 Comunicativos 5.94 Honestos 5.56 Simpáticos 5.92 Espírito de camaradagem 5.53 Amigáveis 5.86 Leais 5.50 Espírito de camaradagem 5.86 Amigáveis 5.47 Divertidos 5.85 Simpáticos 5.44 Lutadores 5.84 Bem humorados 5.38 Honestos 5.82 Boa capacidade de adaptação 5.34 Alegres 5.80 Bem dispostos 5.28 Inteligentes 5.78 Empreendedores 5.28 Bem dispostos 5.76 Lutadores 5.26 Bem humorados 5.71 Forte ligação à família 5.25 Forte ligação à família 5.69 Acolhedores 5.22 Simples 5.63 Dinâmicos 5.19 Boa capacidade de adaptação 5.53 Patriótico 5.19 Hospitaleiros 5.52 Pragmáticos 5.16 Criativos 5.41 Comunicativos 5.13 Corajosos 5.38 Criativos 5.13 Humildes 5.34 Hospitaleiros 5.06 Acolhedores 5.31 Alegres 5.00 Receptivos 5.31 Corajosos 4.94 Dinâmicos 5.26 Imaginativos 4.81 Calorosos 5.16 Românticos 4.81 Extrovertidos 5.10 Receptivos 4.78 Pragmáticos 5.08 Divertidos 4.75 Empreendedores 5.06 Simples 4.72 Imaginativos 5.04 Espontâneos 4.69 Românticos 5.04 Sensíveis 4.68 Espontâneos 5.02 Humildes 4.31* Sensíveis 5.02 Extrovertidos 4.03* Patriótico 4.69 Nota: Escala 1 = “muito negativo”; 7 = “muito positivo” (tendo como referência o estereótipo de adulto na sociedade portuguesa). Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala.
  • 324. Racismo e Etnicidade em Portugal 324 Tal como no estudo anterior, verifica-se um grande consenso entre participantes angolanos e participantes portugueses quanto ao significado avaliativo dos traços apresentados. Embora a valorização dos traços não siga exactamente a mesma ordem para ambos os grupos, apenas dois dos traços positivos não reúnem consenso: extrovertidos e humildes. Comparativamente ao estudo anterior, a lista dos traços positivos diminui de 43 para 33, o que significa um maior grau de exigência relativamente aos traços que são considerados qualidades tendo como referente o modelo de adulto. Alguns dos traços ligados à expressividade e sociabilidade são vistos como menos positivos do que no estudo anterior, enquanto que os traços ligados à instrumentalidade mantêm ou vêem reforçada a sua positividade. A Tabela 24 apresenta os traços considerados defeitos pelos participantes angolanos e portugueses (indicamos apenas os traços com média igual ou inferior a 3, pelo menos para um dos grupos de participantes). Podemos constatar que existe um grande consenso entre participantes angolanos e participantes portugueses quanto aos traços negativos. Embora a ordem de negatividade dos traços não seja a mesma para ambos os grupos, podemos verificar que apenas um traço negativo não reúne consenso entre os grupos: materialistas. Globalmente, os traços considerados mais negativos estão relacionados com a sociabilidade negativa e com a fraca instrumentalidade. Comparando com os resultados do estudo anterior, podemos verificar que a lista de traços negativos é muito semelhante, o que significa que a opinião pessoal dos participantes coincide com a avaliação que é efectuada tendo em conta o universo comum de valores. Relativamente ao estudo anterior, podemos constatar que dois traços desaparecem da lista dos traços negativos: conformados e passivos, mas tal deve-se ao critério de colocar na tabela apenas os traços com classificação inferior a 3. Assim, estes dois traços são consensualmente considerados negativos, mas a sua média de classificação excede ligeiramente o critério de inclusão na tabela (conformados = 3.01 e passivos = 3.28). Em contrapartida quatro novos traços são incluídos na lista dos traços negativos: individualistas, introvertidos, materialistas e supersticiosos (estes traços tinham sido considerados negativos no estudo anterior, mas apresentavam médias superiores a três e
  • 325. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 325 dois deles eram considerados neutros pelos participantes angolanos: materialista e supersticioso). Tabela 24 - Traços considerados defeitos em função do grupo dos participantes Defeitos Angolanos Defeitos Portugueses Racistas 1.97 Falsos 1.59 Preguiçosos 2.09 Racistas 1.59 Hipócritas 2.25 Hipócritas 1.73 Falsos 2.38 Egoístas 1.76 Invejosos 2.50 Invejosos 1.78 Preconceituosos 2.50 Agressivos 1.83 Conflituosos 2.53 Antipáticos 1.90 Ignorantes 2.53 Cínicos 1.92 Agressivos 2.55 Avarentos 2.06 Cínicos 2.66 Frios 2.06 Frios 2.78 Conflituosos 2.12 Antipáticos 2.84 Ignorantes 2.33 Avarentos 2.87 Pessimistas 2.37 Fechados 2.91 Preguiçosos 2.47 Supersticiosos 2.91 Preconceituosos 2.55 Egoístas 2.94 Individualistas 2.65 Pessimistas 3.03 Materialistas 2.67 Passivos 3.06 Fechados 2.69 Desconfiados 3.09 Introvertidos 2.80 Individualistas 3.09 Desconfiados 2.96 Ostentosos 3.15 Conformados 3.02 Conformados 3.16 Ostentosos 3.12 Introvertidos 3.16 Supersticiosos 3.23 Materialistas 4.22* Passivo 3.42 Nota: Escala 1 = “muito negativo”; 7 = “muito positivo” (tendo como referência o estereótipo de adulto na sociedade portuguesa). Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala. Traços estereotípicos dos angolanos A Tabela 25 apresenta os traços estereotípicos dos angolanos. Comparando com o estudo anterior podemos constatar que a lista de traços estereotípicos dos angolanos é muito mais reduzida: 16 em vez de 34 traços. Dos 16 traços apenas três reúnem consenso entre os participantes angolanos e portugueses: alegres (M = 2.92), cheios de ritmo (M = 2.53), e humildes (M = 2.88).
  • 326. Racismo e Etnicidade em Portugal 326 Contrariamente ao estudo anterior, esta lista apresenta traços negativos: agressivos, conflituosos, ignorantes, preguiçosos e supersticiosos (e se tivéssemos em conta apenas o critério do teste-t outros seriam incluídos: conformados e passivos). Assim, verificamos que a simples mudança de estratégia de recolha de dados - uma escala interdependente em vez de duas escalas independentes - provocou uma mudança bastante significativa nos resultados: o estereótipo dos angolanos continua a incluir traços positivos ligados à expressividade e sociabilidade positiva, mas passa a incluir também traços negativos ligados à fraca instrumentalidade (ignorantes, preguiçosos) e à sociabilidade negativa (agressivos, conflituosos). Tabela 25 - Traços considerados estereotípicos dos angolanos em função do grupo dos participantes (avaliação interdependente) Traços típicos dos angolanos +/- Angolanos Traços típicos dos angolanos +/- Portugueses Cheios de ritmo 2.00 Cheios de ritmo 2.83 Acolhedores + 2.10 Alegres + 2.96 Simples + 2.59 Humildes 2.96 Preguiçosos - 2.66 Musicais 3.71* Supersticiosos - 2.66 Agressivos - 3.88* Musicais 2.76 Conflituosos - 3.88* Calorosos + 2.79 Supersticiosos - 3.96* Conflituosos - 2.79 Preguiçosos - 3.98* Humildes 2.76 Impulsivos 4.00* Alegres + 2.86 Simples + 4.00* Agressivos - 2.86 Sociáveis + 4.00* Solidários + 2.86 Solidários + 4.10* Sociáveis + 2.90 Calorosos + 4.18* Sensuais 2.93 Sensuais 4.69** Impulsivos 3.00 Acolhedores + 4.78** Escala: 1 = “muito típico dos angolanos”; 2 = “moderadamente típico dos angolanos”; 3 = “ligeiramente típico dos angolanos”; 4 = “igualmente típico dos angolanos e dos portugueses”; 5 = “ligeiramente típico dos portugueses”; 6 = “moderadamente típico dos angolanos”; 7 = “muito típico dos portugueses”. Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala. Os valores assinalados com dois asteriscos** diferem significativamente do ponto neutro da escala, mas no sentido oposto (traços contra-estereotípicos). Avaliação dos traços tendo como referente o estereótipo de adulto: (+) traços positivos; (-) traços negativos.
  • 327. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 327 Traços estereotípicos dos portugueses A Tabela 26 apresenta os traços estereotípicos dos portugueses. Tal como referimos em relação aos traços estereotípicos dos angolanos, comparando com o estudo anterior podemos constatar que a lista de traços estereotípicos dos portugueses é muito mais reduzida: 10 em vez de 36 traços. Como podemos constatar, destes 10 traços apenas 4 reúnem consenso entre os participantes angolanos e portugueses, e se considerarmos como mínimo o critério de média igual ou superior a 5, a lista reduz-se a dois traços: ambiciosos (M = 5.12) e trabalhadores (M = 5.28). Quando comparamos os resultados deste estudo com os do estudo anterior verificamos que alguns aspectos se mantêm enquanto outros se alteram significativamente. No que diz respeito ao consenso e à força dos estereótipos, constatamos que o estereótipo dos portugueses continua a ser menos consensual do que o estereótipo dos angolanos, embora a diferença seja muito mais esbatida. Além de menos consensual, o estereótipo dos portugueses é também menos marcado, isto é, as médias de tipicalidade dos traços que constituem o estereótipo são menos extremas do que as médias dos traços que constituem o estereótipo dos angolanos. Tal como no estudo anterior, o estereótipo dos angolanos reúne essencialmente traços ligados à expressividade e sociabilidade positiva, mas também passou a incluir traços ligados à fraca instrumentalidade e à sociabilidade negativa. Por sua vez, o estereótipo dos portugueses apresenta traços ligados à instrumentalidade, mas também traços de sociabilidade positiva. A diferença mais significativa entre os resultados deste estudo e os do estudo anterior diz respeito à valência avaliativa do estereótipo dos angolanos: enquanto que no estudo anterior o estereótipo dos angolanos reúne apenas traços positivos, neste estudo inclui também traços negativos, sobretudo quando consideramos as respostas dos próprios participantes angolanos. Assim, enquanto que no estudo anterior os participantes angolanos apresentavam um nível de favoritismo endogrupal bastante superior ao dos participantes portugueses – reivindicaram para si quase todas as qualidades e negando essas mesmas qualidades aos portugueses, enquanto estes últimos atribuíram ao exogrupo mais qualidades do que ao endogrupo - neste estudo esta diferença esbate-se.
  • 328. Racismo e Etnicidade em Portugal 328 Tabela 26 - Traços considerados estereotípicos dos portugueses em função do grupo dos participantes (avaliação interdependente) Traços típicos dos portugueses +/- Angolanos Traços típicos dos portugueses +/- Portugueses Racistas - 5.52 Trabalhadores + 5.24 Invejosos - 5.34 Hospitaleiros + 5.16 Trabalhadores + 5.34 Ambiciosos 5.10 Empreendedores - 5.31 Empreendedores + 4.76 Egoístas - 5.17 Racistas - 4.51 Ambiciosos 5.14 Cínicos - 4.20* Antipáticos - 5.10 Egoístas - 4.18* Avarentos - 5.07 Avarentos - 4.14* Cínicos - 5.07 Invejosos - 4.14* Hospitaleiros + 3.38** Antipáticos - 4.04* Escala: 1 = “muito típico dos angolanos”; 2 = “moderadamente típico dos angolanos”; 3 = “ligeiramente típico dos angolanos”; 4 = “igualmente típico dos angolanos e dos portugueses”; 5 = “ligeiramente típico dos portugueses”; 6 = “moderadamente típico dos angolanos”; 7 = “muito típico dos portugueses”. Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala (traços neutros). Os valores assinalados com dois asteriscos** diferem significativamente do ponto neutro da escala, mas no sentido oposto (traços contra-estereotípicos). Avaliação dos traços tendo como referente o estereótipo de adulto: (+) traços positivos; (-) traços negativos.
  • 329. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 329 4.4.5 Síntese dos resultados do Estudo 3b e do Estudo 3c A Tabela 27 apresenta a lista dos traços considerados positivos em função da opinião pessoal dos participantes (Estudo 3b) ou em função do referente de adulto (Estudo 3c). De um modo geral, as médias de positividade são mais baixas no último estudo, o que significa um maior grau de exigência relativamente aos traços que são considerados positivos tendo como referente o modelo de adulto. Os traços ligados à expressividade e sociabilidade (por exemplo: cheios de ritmo, extrovertidos, festivos) são vistos como menos positivos do que no estudo anterior, enquanto que alguns dos traços ligados à instrumentalidade vêem reforçada a sua positividade (por exemplo: trabalhadores, inteligentes). Estes resultados demonstram que tanto os participantes angolanos como os participantes portugueses reconhecem um universo de valores comuns, que passa pela valorização da pessoa adulta caracterizada por traços de instrumentalidade e sociabilidade positiva, o que reproduz o padrão de resultados obtido por Amâncio (1989) para outro tipo de categorizações sociais.
  • 330. Racismo e Etnicidade em Portugal 330 Tabela 27 - Traços considerados positivos em função da opinião pessoal (Estudo 3b) e do referente de adulto (Estudo 3c) Traços positivos Estudo 3b (N = 114) Estudo 3c (N = 81) Acolhedores 5.67 5.27 Alegres 5.79 5.48 Amantes do prazer 5.15 4.40 Amigáveis 5.79 5.70 Aventureiros 5.20 4.72 Bem dispostos 5.84 5.57 Bem humorados 5.82 5.58 Boa capacidade de adaptação 5.82 5.46 Calorosos 5.52 5.32 Cheios de ritmo 5.30 4.58 Comunicativos 5.56 5.62 Corajosos 5.45 5.20 Criativos 5.53 5.30 Cultos 5.71 5.95 Desportivos 5.45 4.54 Dinâmicos 5.72 5.23 Divertidos 5.77 5.42 Empreendedores 5.34 5.15 Espírito de camaradagem 5.78 5.73 Espontâneos 4.96 4.89 Extrovertidos 5.19 4.68 Festivos 5.11 4.50 Forte ligação à família 5.57 5.52 Honestos 5.69 5.72 Hospitaleiros 5.66 5.34 Humildes 5.29 4.90 Imaginativos 5.25 4.95 Inteligentes 5.67 5.78 Leais 5.57 5.89 Lutadores 5.60 5.61 Musicais 5.01 4.38 Nacionalistas 5.11 4.56 Patrióticos 4.85 4.89 Receptivos 5.11 5.10 Religiosos 4.90 4.33 Românticos 5.14 4.95 Sensíveis 5.40 4.89 Sensuais 5.07 4.48 Simpáticos 5.84 5.73 Simples 5.61 5.27 Sociáveis 5.84 5.99 Solidários 5.68 6.04 Trabalhadores 5.81 6.09 Unidos 5.97 4.50
  • 331. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 331 Nota: Escala de 1 = “muito negativo” a 7 = “muito positivo”. Estudo 3b: avaliação em função da opinião pessoal Estudo 3c: avaliação em função do referente de adulto A Tabela 28 apresenta a lista dos traços considerados negativos em função da opinião pessoal dos participantes (Estudo 3b) ou em função do referente de adulto (Estudo 3c). Os traços considerados mais negativos estão relacionados com a sociabilidade negativa e com a fraca instrumentalidade. De um modo geral, as médias de negatividade dos traços são muito semelhantes em ambos os estudos, o que significa que a opinião pessoal dos participantes coincide com a avaliação que é efectuada tendo em conta o universo comum de valores. No entanto, as médias dos traços são ligeiramente mais altas em função da opinião pessoal dos participantes do que em função do referente de adulto, o que aponta para uma maior negatividade desses traços.
  • 332. Racismo e Etnicidade em Portugal 332 Tabela 28 - Traços considerados negativos em função da opinião pessoal (Estudo 3b) e do referente de adulto (Estudo 3c) Traços negativos Estudo 3b (N = 114) Estudo 3c (N = 81) Agressivos 2.54 2.12 Antipáticos 2.31 2.27 Avarentos 2.60 2.38 Cínicos 2.21 2.21 Conflituosos 2.77 2.28 Conformados 3.10 3.08 Desconfiados 3.67 3.01 Egoístas 2.52 2.22 Falsos 1.97 1.90 Fechados 2.74 2.78 Frios 2.49 2.35 Hipócritas 2.12 1.94 Ignorantes 2.28 2.41 Invejosos 2.30 2.06 Individualistas 3.27 2.83 Introvertidos 3.05 2.93 Materialistas 3.70 3.28 Ostentosos 3.41 3.14 Passivos 3.37 3.28 Pessimistas 2.96 2.63 Preconceituosos 2.82 2.53 Preguiçosos 2.35 2.32 Racistas 2.00 1.74 Supersticiosos 3.78 3.10 Nota: Escala de 1 = “muito negativo” a 7 = “muito positivo”. Estudo 3b: avaliação em função da opinião pessoal Estudo 3c: avaliação em função do referente de adulto A Tabela 29 apresenta a lista dos traços considerados estereotípicos dos angolanos numa escala independente (Estudo 3b) ou numa escala interdependente (Estudo 3c). No primeiro estudo foram considerados estereotípicos dos angolanos apenas traços positivos ou neutros, enquanto que no segundo foram também incluídos traços negativos. Assim, verificamos que a simples mudança de estratégia de recolha de dados: uma escala interdependente em vez de duas escalas independentes, provocou uma mudança bastante significativa nos resultados: o estereótipo dos angolanos continua a incluir traços positivos ligados à expressividade e sociabilidade positiva, mas passa a incluir também traços negativos ligados à fraca instrumentalidade (ignorantes, preguiçosos) e à sociabilidade negativa (agressivos, conflituosos).
  • 333. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 333 Tabela 29 - Traços considerados estereotípicos dos angolanos numa escala independente (Estudo 3b) e numa escala interdependente (Estudo 3c) Traços típicos dos angolanos +/- Estudo 3b (N = 114) Estudo 3c (N = 81) Acolhedores + 5.22 3.78* Agressivos - 3.29** 3.50 Alegres + 5.78 2.92 Amantes do prazer 5.17 4.23* Amigáveis + 5.48 3.63 Aventureiros 4.63 4.80** Bem dispostos + 5.62 3.65 Bem humorados + 5.47 3.64 Boa capacidade de adaptação + 4.79 4.08* Calorosos + 5.45 3.67 Cheios de ritmo 5.85 2.53 Conflituosos - 3.86* 3.48 Comunicativos + 4.98 4.01* Divertidos + 5.48 3.94* Emotivos 5.33 3.92* Espírito de camaradagem + 5.15 3.44 Espontâneos 4.81 3.41 Extrovertidos 4.93 3.63 Festivos 5.93 3.33 Forte ligação à família + 5.65 4.10* Hospitaleiros + 5.29 4.50** Humildes + 4.62 2.88 Impulsivos 4.52 3.44 Lutadores + 4.99 3.81* Musicais 5.50 3.44 Nacionalistas 5.24 4.45** Orgulhosos 4.90 4.22* Ostentosos - 4.22* 4.60** Patrióticos 5.08 4.22* Preguiçosos - 3.83* 3.49 Receptivos + 5.12 3.96* Religiosos 4.86 4.28* Sensuais 4.53 4.04* Simpáticos + 5.37 3.78* Simples + 4.82 3.44 Sociáveis + 5.39 3.59 Solidários + 5.10 3.64 Supersticiosos - 4.46 3.47 Unidos 5.09 4.22* Vaidosos 4.68 4.21*
  • 334. Racismo e Etnicidade em Portugal 334 Escala do Estudo 3b: 1 = “nada típico dos angolanos”; 7 = “muito típico dos angolanos”. Escala do Estudo 3c: 1 = “muito típico dos angolanos”; 2 = “moderadamente típico dos angolanos”; 3 = “ligeiramente típico dos angolanos”; 4 = “igualmente típico dos angolanos e dos portugueses”; 5= “ligeiramente típico dos portugueses”; 6= “moderadamente típico dos angolanos”; 7 = “muito típico dos portugueses”. Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto mé dio da escala (traços neutros). Os valores assinalados com dois asteriscos** diferem significativamente do ponto neutro da escala, mas no sentido oposto. Avaliação dos traços tendo como referente o estereótipo de adulto: (+) traços positivos; (-) traços negativos. A Tabela 30 apresenta a lista dos traços considerados estereotípicos dos portugueses numa escala independente (Estudo 3b) ou numa escala interdependente (Estudo 3c). Tal como se verificou relativamente aos angolanos, o número de traços considerados estereotípicos dos portugueses foi muito mais reduzido no segundo estudo do que no primeiro. No entanto, em termos da valência avaliativa dos traços não se verificaram diferenças tão significativas, já que em ambos os estudos foram atribuídos aos portugueses traços positivos e traços negativos, embora a proporção destes últimos seja superior no segundo estudo. Enquanto que no primeiro estudo abundam os traços de sociabilidade positiva (acolhedores, amigáveis, simpáticos, etc.), no segundo surgem reforçados os traços de sociabilidade negativa (egoístas, racistas, etc.). Os traços ligados à instrumentalidade (trabalhadores, empreendedores, dinâmicos) surgem como estruturantes do estereótipo dos portugueses, já que estão presentes em ambos os estudos, sendo consideravelmente reforçados no segundo.
  • 335. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 335 Tabela 30 - Traços considerados estereotípicos dos portugueses numa escala independente (Estudo 3b) e numa escala interdependente (Estudo 3c) Traços típicos dos portugueses +/- Estudo 3b (N = 114) Estudo 3c (N = 81) Acolhedores + 4.68 3.78* Alegres + 4.58 2.92* Amantes do prazer 4.81 4.24* Ambiciosos 5.19 5.12 Amigáveis + 4.81 3.63** Antipáticos - 3.43** 4.44 Avarentos - 3.86* 4.44 Aventureiros 4.99 4.79 Bem dispostos + 4.68 3.65** Bem humorados + 4.71 3.64** Calorosos + 4.37 3.67** Cínicos - 3.50** 4.53 Desconfiados - 4.60 3.97* Desportivos 4.93 4.54 Dinâmicos + 4.88 4.44 Divertidos + 4.49 3.94* Egoístas - 4.06* 4.55 Emotivos 4.69 3.92* Empreendedores + 5.32 4.96 Festivos 4.58 3.33** Forte ligação à família + 5.43 4.10* Honestos + 4.57 4.21* Hospitaleiros + 4.76 4.50* Humildes 4.47 2.88** Individualistas - 4.68 4.59 Inteligentes + 4.75 4.49 Invejosos - 4.14* 4.59 Lutadores + 4.91 3.81* Materialistas - 5.16 4.77 Nacionalistas 5.26 4.45 Orgulhosos 5.30 4.22* Patrióticos 5.18 4.22* Racistas - 4.28* 4.88 Religiosos 5.72 4.28* Românticos 5.00 4.82 Saudosistas 5.11 4.76 Sensíveis 4.94 4.19* Simpáticos + 4.82 3.78* Simples + 4.46 3.47** Sociáveis + 4.75 3.59** Trabalhadores + 5.24 5.28 Vaidosos 4.97 4.21*
  • 336. Racismo e Etnicidade em Portugal 336 Escala do Estudo 3b: 1 = “nada típico dos portugueses”; 7 = “muito típico dos portugueses”. Escala do Estudo 3c: 1 = “muito típico dos angolanos”; 2 = “moderadamente típico dos angolanos”; 3 = “ligeiramente típico dos angolanos”; 4 = “igualmente típico dos angolanos e dos portugueses”; 5= “ligeiramente típico dos portugueses”; 6= “moderadamente típico dos angolanos”; 7 = “muito típico dos portugueses”. Os valores assinalados com um asterisco* não diferem significativamente do ponto médio da escala (traços neutros). Os valores assinalados com dois asteriscos** diferem significativamente do ponto neutro da escala, mas no sentido oposto. Avaliação dos traços tendo como referente o estereótipo de adulto: (+) traços positivos; (-) traços negativos.
  • 337. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 337 4.4.6 Discussão dos estudos sobre estereótipos Nestes três estudos sobre os estereótipos dos angolanos e dos portugueses obtivemos resultados consonantes com as nossas hipóteses de partida, e que nos permitem avançar para os estudos experimentais seguintes. No Estudo 3a procedemos à organização de dicionários descritivos do grupo dos ‘angolanos’ e do grupo dos ‘portugueses’ com base no vocabulário fornecido livremente pelos participantes. A comparação do vocabulário retido nos dicionários evidencia um efeito ligado ao grupo do participante: os participantes portugueses fornecem descrições mais heterogéneas do que os participantes angolanos. Verifica-se também uma diferenciação em função do grupo-alvo: o grupo dos ‘angolanos’ é descrito de forma mais homogénea do que o grupo dos ‘portugueses’. Globalmente, verifica-se um menor consenso na representação do grupo dos portugueses do que no grupo dos angolanos, isto é, uma maior heterogeneidade na representação do grupo dos portugueses. Tal heterogeneidade está patente não só na diversidade dos traços considerados exclusivos dos portugueses, como é referida explicitamente por alguns participantes. Assim, em consonância com as nossas hipóteses, verificamos uma assimetria apontando para uma maior variabilidade na representação do grupo dos portugueses. Os traços associados ao grupo dos angolanos são predominantemente ligados à sociabilidade positiva, à expressividade, ao exotismo e à fraca instrumentalidade, o que remete para o modelo de jovem. De destacar, ainda, as referências ao conflito, à solidariedade e à coesão dentro do grupo. Estas referências remetem claramente para um grupo dominado que, sentindo-se em posição desfavorável e ameaçado pelo exterior, reforça a solidariedade e coesão internas. A posição desfavorável deste grupo é igualmente patente em algumas referências directas à precariedade da sua situação económica e social, e a alguns traços de submissão. Por último, as referências à cor da pele como marca exterior da pertença grupal, referidas maioritariamente pelos portugueses, remetem para uma diferença que é vista como estigma. Os traços associados ao grupo dos portugueses remetem para a instrumentalidade positiva, para a dominância e a discriminação social. As referências a traços de sociabilidade são também bastante frequentes: os participantes portugueses referem sobretudo traços de sociabilidade positiva enquanto nos participantes angolanos se
  • 338. Racismo e Etnicidade em Portugal 338 verifica uma preponderância dos traços de sociabilidade negativa. De destacar, ainda, os traços ligados ao conservadorismo e ao materialismo, assim como os traços ligados a uma certa nostalgia do passado. No seu conjunto estas descrições remetem para o modelo de pessoa adulta. Resumindo, comparando as dimensões de conteúdo atribuídas exclusivamente a cada um dos grupos, constatamos que aos angolanos são associados os traços remetendo para um grupo ocupando uma posição desfavorecida social e economicamente – submissão, vítima de discriminação -, enquanto que aos portugueses são associados os traços remetendo para um grupo ocupando uma posição privilegiada – dominância, actor de discriminação. Paralelamente, aos angolanos são atribuídos traços remetendo para a solidariedade e coesão grupais (típicos dos membros dos grupos dominados cuja identidade é ameaçada pelo exterior) enquanto que aos portugueses são atribuídos traços remetendo para a autonomia e independência (típicos dos membros dos grupos dominantes, cuja singularidade e idiossincrasia não estão ameaçadas pela sua pertença grupal). Por último, as referências à cor da pele como marca exterior da pertença grupal são mais frequentes para caracterizar os angolanos do que para caracterizar os portugueses. Este resultado ilustra a forte associação entre nacionalidade e cor da pele, que não são vistas pelos participantes como dimensões independentes. Remete igualmente para a maior centralidade da cor da pele nos membros do grupo dominado do que nos membros do grupo dominante, visto que nos primeiros funciona como estigma que os demarca da sociedade em geral. Tal como esperávamos, a maior diferenciação entre os grupos opera-se ao nível das dimensões subjacentes aos conteúdos que lhe estão associados: sociabilidade positiva, expressividade, exotismo e instrumentalidade negativa para os angolanos; sociabilidade negativa, conservadorismo, dominância e instrumentalidade positiva para os portugueses. Outro aspecto que ressalta dos nossos dados, é a maior diversidade de conteúdos associados aos portugueses, o que aponta para uma representação mais heterogénea, isto é, menos estereotipada, deste grupo. O Estudo 3b permitiu-nos analisar de forma mais sistemática o carácter estereotípico de um conjunto de traços relativamente ao grupo dos ‘angolanos’ e ao grupo dos ‘portugueses’, através de duas escalas independentes, e averiguar a sua valência avaliativa a partir da opinião pessoal dos participantes.
  • 339. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 339 Da comparação dos estereótipos referentes aos dois grupos-alvo, ressaltam três diferenças fundamentais. A primeira diferença diz respeito à consensualidade e força dos estereótipos: o estereótipo dos portugueses é menos consensual e menos marcado do que o estereótipo dos angolanos. A segunda diferença diz respeito à valência dos estereótipos: o estereótipo dos angolanos reúne apenas traços positivos, enquanto que o estereótipo dos portugueses reúne também traços negativos, especialmente quando consideramos as respostas dos participantes angolanos. Por último, verifica-se uma diferenciação ao nível do conteúdo dos estereótipos: o estereótipo dos angolanos reúne essencialmente traços ligados à expressividade, à sociabilidade, à solidariedade e ao exotismo, enquanto que o estereótipo dos portugueses apresenta essencialmente traços de instrumentalidade positiva e traços de sociabilidade positiva e negativa. Estes resultados vão ao encontro dos já evidenciados no estudo anterior e são consonantes com as nossas hipóteses. No Estudo 3c analisámos o carácter estereotípico dos traços relativamente ao grupo dos ‘angolanos’ e ao grupo dos ‘portugueses’, através de uma escala interdependente, e averiguámos o significado dos traços tendo como referente o modelo universal de pessoa. Quando comparamos os resultados deste estudo com os do estudo anterior verificamos que alguns aspectos se mantêm enquanto outros se alteram significativamente. Relativamente ao significado dos traços, constatamos que os traços ligados ao exotismo e à juventude são menos valorizados do que no estudo anterior (opinião pessoal dos participantes) enquanto que os traços instrumentais são mais valorizados. O grau de consenso relativamente ao significado dos traços permite-nos concluir que tanto os participantes angolanos como os participantes portugueses reconhecem um universo de valores comuns, que passa pela valorização da pessoa adulta caracterizada por traços de instrumentalidade e sociabilidade positiva (Amâncio, 1989a). No que diz respeito ao consenso e à força dos estereótipos, constatamos que o estereótipo dos portugueses continua a ser menos consensual e menos marcado do que o estereótipo dos angolanos, embora a diferença seja muito mais esbatida. Contrariamente ao que se verificou no estudo anterior, o estereótipo dos angolanos passa a incluir traços considerados negativos. Assim, verificamos que a simples mudança de estratégia de recolha de dados - uma escala interdependente em vez
  • 340. Racismo e Etnicidade em Portugal 340 de duas escalas independentes - provocou uma alteração bastante significativa nos resultados: o estereótipo dos angolanos continua a incluir traços positivos ligados à expressividade e sociabilidade positiva, mas passa a incluir também traços negativos ligados à fraca instrumentalidade e à sociabilidade negativa. Por sua vez, o estereótipo dos portugueses continua a apresentar traços ligados à instrumentalidade positiva e traços de sociabilidade positiva e negativa. No estudo em que a avaliação da estereotipicalidade foi realizada através de duas escalas independentes os participantes angolanos apresentaram um nível de favoritismo endogrupal superior ao dos participantes portugueses: os angolanos reivindicaram para o endogrupo quase todas os traços positivos e negaram esses mesmos traços aos portugueses enquanto que estes últimos atribuíram ao exogrupo mais traços positivos do que ao endogrupo. Em contrapartida, no estudo em que a avaliação da estereotipicalidade foi realizada através de uma escala interdependente ambos os grupos atribuíram qualidades e defeitos ao endogrupo e ao exogrupo: aos angolanos foram predominantemente reconhecidas qualidades de expressividade e sociabilidade positiva enquanto aos portugueses foram reconhecidas qualidades instrumentais, mais próximas do modelo de adulto. Globalmente, as nossas hipóteses são corroboradas pelos dados. Tal como esperávamos, os conteúdos associados a ambos os grupos são predominantemente positivos. Assim, a maior diferenciação entre os grupos não se opera ao nível da valência avaliativa dos conteúdos associados a cada grupo, mas ao nível das dimensões subjacentes a esses conteúdos e ao nível do seu significado tendo como referente a imagem universal de pessoa adulta. Os conteúdos associados aos angolanos são predominantemente ligados à expressividade, ao exotismo, e à juventude, enquanto que os conteúdos associados aos portugueses são fundamentalmente ligados à instrumentalidade e à imagem de adulto. Quando temos em conta a opinião pessoal dos participantes, todos eles jovens, o estereótipo dos angolanos é mais positivo pois aproxima-se mais do modelo de jovem, mas quando temos em conta o universo comum de valores o estereótipo dos portugueses aproxima-se mais do referente de pessoa adulta. Verificou-se um grande consenso entre participantes angolanos e participantes portugueses quanto à valência dos conteúdos (avaliação tendo em conta a opinião pessoal) e ao seu significado (avaliação tendo em conta o referente de adulto), mas
  • 341. Capítulo 4 - Estudos exploratórios: categorização e diferenciação entre grupos étnicos 341 verificou-se menor grau de consenso quanto ao carácter estereotípico desses conteúdos, nomeadamente nos traços negativos. Finalmente, verificou-se um maior grau de consenso relativamente ao estereótipo dos angolanos do que relativamente ao estereótipo dos portugueses, isto é, os angolanos são vistos de forma mais estereotipada do que os portugueses. Estes três estudos sobre o grau de consenso, o conteúdo e o significado dos estereótipos do grupo dos angolanos e do grupo dos portugueses serviram-nos de base para a construção do material-estímulo dos estudos experimentais seguintes, onde vamos analisar mais sistematicamente a percepção da variabilidade grupal e o favoritismo endogrupal.
  • 343. CAPÍTULO 5 - ESTUDOS EXPERIMENTAIS: DISCRIMINAÇÃO NO TRATAMENTO DA INFORMAÇÃO
  • 344. Racismo e Etnicidade em Portugal 344 5.1 Introdução No capítulo anterior apresentámos e discutimos os resultados de cinco estudos exploratórios. Nos dois primeiros estudos constatámos a centralidade da categorização social baseada na cor da pele no posicionamento relativo de diversos grupos minoritários na sociedade portuguesa. Com base nos resultados obtidos nestes dois estudos seleccionámos dois grupos-alvo para aprofundar a nossa investigação. Estes dois grupos-alvo são grupos ‘naturais’, com o mesmo grau de generalidade, mas com um estatuto assimétrico na sociedade portuguesa: portugueses (grupo maioritário) e angolanos (grupo minoritário). Nos três estudos exploratórios seguintes analisámos os conteúdos que são associados a estes grupos, a valência avaliativa desses conteúdos e seu significado simbólico, tendo como referência um universo de valores comum (e.g., Amâncio, 1989a; Deschamps, 1982a). Com base nos resultados obtidos nestes estudos classificámos os traços em função da sua estereotipicalidade (traços estereotípicos dos angolanos, traços estereotípicos dos portugueses e traços não relevantes) e também em função da sua valência avaliativa (traços positivos, traços negativos e traços neutros). Estes traços foram, como explicaremos mais adiante, utilizados para construir os materiais-estímulo dos dois estudos experimentais que apresentaremos neste capítulo, ambos realizados com estudantes portugueses e angolanos a residir em Portugal. Estes estudos experimentais diferem em alguns aspectos fundamentais da maior parte da pesquisa que tem sido produzida sobre esta temática no âmbito da psicologia social. Por um lado, temos em consideração as posições relativas dos grupos e os significados que lhes estão associados (Amâncio, 1993/2000; Lorenzi-Cioldi, 1998). Por outro, analisamos não só a perspectiva do agente da discriminação mas também a do alvo da discriminação (Swim e Stangor, 1998). E, finalmente, recorremos a diferentes tipos de medidas para a análise dos processos de discriminação, umas mais explícitas ou ‘directas’ e outras mais implícitas ou ‘indirectas’. Como referimos na introdução geral, a maior parte da investigação sobre esta temática tem sido efectuada utilizando medidas ‘directas’, isto é, medidas em que os participantes facilmente se podem aperceber dos objectivos da pesquisa e controlar as suas respostas no sentido do que é ‘socialmente correcto’. Parece-nos, no entanto, que no estudo da discriminação racial ou étnica, em que as questões de ordem normativa têm um peso significativo, se
  • 345. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 345 torna particularmente relevante a utilização de medidas ‘indirectas’ ou ‘não- obstrusivas’, de modo a ter acesso aos processos mais automáticos de processamento de informação sobre os grupos. Ambas as experiências que apresentamos neste capítulo são constituídas por duas fases: na primeira os participantes são confrontados com uma tarefa de recuperação de informação referente a pessoas-estímulo de dois grupos diferentes (medidas ‘indirectas’); e na segunda fase os participantes respondem a um questionário sobre ambos os grupos (medidas ‘directas’). A maior diferença entre os dois estudos diz respeito ao material-estímulo apresentado aos participantes na primeira fase: no Estudo 4 as pessoas-estímulo são categorizadas segundo a nacionalidade (angolanos vs. portugueses) enquanto que no Estudo 5, dependendo da condição experimental, as pessoas-estímulo são categorizadas em função da cor da pele (brancos vs. negros) ou estão disponíveis ambas as categorizações (nacional e racial). Em ambas os estudos analisamos os efeitos de categorização, os efeitos de homogeneidade, os efeitos de favoritismo pelo grupo de pertença, e a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo. Analisamos ainda em que medida estes fenómenos são mediados pelo auto-conceito, pelos níveis de identificação com o grupo de pertença e com o grupo dos outros e pelo nível de contacto entre os grupos. No Estudo 5 analisamos ainda a relação entre as atitudes ou orientações racistas e os processos perceptivos.
  • 346. Racismo e Etnicidade em Portugal 346 5.2 Estudo 4 – Homogeneização de uma minoria nacional 5.2.1 Introdução Neste estudo experimental prosseguimos objectivos de ordem teórica e de ordem metodológica. Passamos de seguida à explicitação dos três objectivos teóricos deste estudo e das respectivas hipóteses, e finalmente referiremos um objectivo metedológico. 1) O principal objectivo deste estudo experimental foi a análise do papel do estatuto relativo dos grupos na percepção da homogeneidade grupal. Nesse sentido, como já referimos, escolhemos dois grupos com estatuto assimétrico na sociedade portuguesa e categorizados segundo a nacionalidade: o grupo maioritário (portugueses) e um grupo minoritário (angolanos). Trata-se de grupos ‘reais’, com uma história, um passado de relações e posicionamentos sociais relativos cujo peso contribui para a saliência desta categorização. Como referimos no Capítulo 3, de acordo com Lorenzi-Cioldi (1988; 1998), o estatuto influencia profundamente o processamento da informação social: os grupos dominantes enfatizam a distintividade individual e a diferenciação interpessoal, enquanto que os grupos dominados salientam a indiferenciação dos seus membros, definem-se e são definidos pelos outros em termos de características holísticas que distinguem o seu grupo dos outros grupos. Assim, os membros do grupo dominado são mais homogeneizados do que os membros do grupo dominante, independentemente do observador ser ele próprio membro de um ou outro grupo. Este modelo tem recebido algum apoio empírico com categorias sexuais: os membros do grupo dominado – as mulheres - são mais homogeneizados do que os membros do grupo dominante – os homens (e.g., Lorenzi-Cioldi, 1993; Lorenzi-Cioldi, Eagly e Stewart, 1995). Contudo, a relevância desta perspectiva não se aplica só às categorias sexuais, podendo ser estendida a outros grupos sociais ocupando posições assimétricas na estrutura social, nomeadamente, os grupos étnicos. Efeitos de homogeneidade. Considerando os resultados de estudos anteriores (e.g., Cabecinhas, 1994; Lorenzi-Cioldi, 1993; Lorenzi-Cioldi, Eagly e Stewart, 1995), esperamos uma manifestação assimétrica do efeito de homogeneidade do exogrupo em função do estatuto relativo dos grupos. Espera-se que os membros do grupo dominante
  • 347. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 347 (portugueses) manifestem o efeito de homogeneidade do exogrupo enquanto que os membros do grupo dominado (angolanos) homogenizem igualmente ambos os grupos, ou manifestem mesmo a homogeneização do endogrupo. 2) Outro dos objectivos foi verificar se o efeito de homogeneidade do exogrupo é moderado pelo favoritismo endogrupal - a tendência para favorecer o grupo de pertença relativamente ao exogrupo (e.g., Brewer, 1979; Tajfel e Turner, 1979) - ou se se trata de fenómenos independentes. Como referimos anteriormente, a relação entre os efeitos de homogeneidade e o favoritismo endogrupal é ambígua tanto a nível teórico como a nível empírico (e.g., Brewer, 1993; Judd et al., 1995). Diversos autores têm estudado a relação entre o favoritismo pelo grupo de pertença e o efeito de homogeneidade do exogrupo, mas os dados obtidos não são inteiramente consistentes: uns apontam para uma interdependência entre estes dois fenómenos (e.g., Simon, 1992b) enquanto que outros apontam para uma independência (e.g., Krueger, 1992; Park e Rothbart, 1982). Algumas pesquisas sugerem que a valência dos traços é um determinante normativo-motivacional da homogeneidade percebida (Haslam et al., 1995). Contudo, outros estudos indicam que a percepção de homogeneidade é equivalente em traços favoráveis e desfavoráveis, sugerindo que o efeito de homogeneidade do exogrupo é independente do favoritismo endogrupal (Jones et al., 1981; Park e Rothbart, 1982; Park e Judd, 1990). Relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo. Espera-se que a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo é moderada pelo estatuto relativo dos grupos - variável que tem sido negligenciada nos estudos anteriores. Esperamos que os participantes tenham estratégias diferentes de ‘diferenciação positiva’ (Tajfel, 1984) em função do estatuto relativo dos grupos: para os membros do grupo dominante (os portugueses) a ‘diferenciação positiva’ será conseguida através da afirmação da heterogeneidade endogrupal, mesmo que isso implique abdicar de traços estereotípicos positivos, enquanto que para os membros do grupo dominado (os angolanos) a ‘diferenciação positiva’ será conseguida através da reivindicação de traços estereotípicos positivos e a negação dos traços negativos, contribuindo assim para a homogeneização do endogrupo.
  • 348. Racismo e Etnicidade em Portugal 348 3) Pretendemos ainda explorar o papel mediador de algumas variáveis na percepção da variabilidade e no favoritismo endogrupal: o nível de identificação com o endogrupo e o exogrupo; o nível de contacto com o endogrupo e com o exogrupo; e a representação do self. O papel do nível de identificação com endogrupo já foi explorado em pesquisas anteriores (e.g., Castano e Yzerbyt, 1998; Doosje et al., 1995), mas o papel da identificação com o exogrupo tem sido negligenciado. Ora, parece-nos muito relevante analisar também o papel da identificação com o exogrupo uma vez que os membros do grupo minoritário (os angolanos) são imigrantes e poderão sentir-se muito identificados com a sociedade de acolhimento (e.g., Berry, 1984, 1992), especialmente se a inserção nessa sociedade ocorreu durante os períodos de socialização mais marcantes (infância, adolescência). Segundo Berry (1984, 1992) as estratégias dos imigrantes face à sociedade de acolhimento podem assumir quatro modalidades: a assimilação caracteriza-se pela interiorização da cultura da sociedade de acolhimento e pela perda da identidade cultural de origem; a separação corresponde ao fechamento do grupo imigrante, isto é, ao evitamento do contacto com os outros grupos no sentido da preservação da identidade cultural de origem; a integração compreende a defesa da integridade da cultura do grupo de pertença e, simultaneamente, o respeito pela cultura da sociedade de acolhimento; e a marginalização, caracteriza-se pela não participação na sociedade de acolhimento e, simultaneamente, pela perda da cultura de origem, o que se traduz num estado de alienação psicológica. De acordo com os resultados de estudos realizados com este modelo (e.g., Berry, 1984, 1992), o melhor equilíbrio nas relações intergrupais pode ser conseguido através de estratégias de integração: os grupos minoritários conservam a sua identidade cultural e, simultaneamente, respeitam e adoptam os valores da sociedade de acolhimento (para uma revisão crítica deste modelo ver, por exemplo: Bourhis, Moïse, Perreault e Senécal, 1997; Khan, 1998). Identificação grupal. Esperamos que os participantes de ambos os grupos (angolanos e portugueses) manifestem uma identificação endogrupal superior à identificação exogrupal, embora os níveis de identificação com o endogrupo e com o exogrupo possam variar em função das estratégias de integração dos participantes angolanos na sociedade portuguesa e do seu tempo de permanência em Portugal.
  • 349. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 349 Quanto à comparação dos níveis de identificação endogrupal em função do estatuto dos grupos, tendo em conta os resultados de pesquisa anterior sobre os níveis de identificação dos membros de grupos dominantes e de grupos dominados (e.g., Cabecinhas, 1994), esperamos encontrar um nível de identificação endogrupal superior para os participantes angolanos do que para os participantes portugueses, já que os primeiros sentiriam maior necessidade de proteger a sua identidade do que os segundos. Quanto à comparação dos níveis de identificação exogrupal em função do estatuto dos grupos, tendo em conta os resultados das pesquisas efectuadas no âmbito do modelo de Berry (1984), esperamos encontrar um nível de identificação exogrupal superior para os participantes angolanos do que para os participantes portugueses, já que os primeiros poderão sentir-se identificados com a sociedade de acolhimento. No global, esperamos que a diferença entre os níveis de identificação endogrupal e exogrupal seja mais acentuada para os participantes portugueses do que para os participantes angolanos. Relativamente a este último grupo, esperamos que esta diferença seja tanto menor quanto maior for o seu tempo de permanência em Portugal. Tendo em conta os resultados de pesquisas anteriores (e.g., Castano e Yzerbyt, 1998; Doosje et al., 1995), esperamos que o grau de identificação endogrupal modere os efeitos de homogeneidade: independentemente do grupo de pertença dos participantes, esperamos que os participantes com elevado grau de identificação endogrupal manifestem um efeito de homogeneidade do endogrupo mais forte do que os participantes com baixo grau de identificação endogrupal. Também esperamos que o grau de identificação endogrupal modere o favoritismo endogrupal: independentemente do grupo de pertença dos participantes, esperamos que os participantes com elevado grau de identificação endogrupal manifestem um favoritismo endogrupal mais forte do que os participantes com baixo grau de identificação endogrupal. O grau de contacto endogrupal e exogrupal constitui outro potencial mediador da variabilidade grupal percebida e do favoritismo endogrupal. A familiaridade diferencial com membros do endogrupo e com membros do exogrupo tem sido considerado um factor chave para a compreensão dos efeitos de homogeneidade (e.g., Linville et al., 1986). No entanto, o papel desta variável tem sido relativizado por diversos estudos, pois têm sido observadas assimetrias na percepção da variabilidade de grupos sexuais (homens vs. mulheres) que não podem ser justificados pela falta de contacto entre estes grupos (e.g., Cabecinhas, 1994; Lorenzi-Cioldi, 1993; Park e Rothbart, 1982). Embora o contacto por si
  • 350. Racismo e Etnicidade em Portugal 350 só não possa justificar as assimetrias observadas, grande parte dos autores salienta que, geralmente, um maior nível de contacto entre os grupos conduz a uma diminuição da força dos estereótipos e, consequentemente, a um aumento da variabilidade grupal percebida. As nossas hipóteses relativamente aos níveis de contactos são análogas às que apresentámos relativamente aos níveis de identificação. Nível de contacto. Esperamos que os participantes de ambos os grupos manifestem um nível de contacto endogrupal superior ao nível de contacto exogrupal. Esperamos, ainda, encontrar um nível de contacto exogrupal superior para os participantes angolanos do que para os participantes portugueses, já que os primeiros, sendo imigrantes, têm maior necessidade de contacto com a sociedade de acolhimento (e.g., Berry, 1984). No global, esperamos que a diferença entre os níveis de contacto endogrupal e exogrupal seja mais acentuada para os participantes portugueses do que para os participantes angolanos. Relativamente a este último grupo, esperamos que esta diferença seja tanto menor quanto maior for o seu tempo de permanência em Portugal. Tendo em conta os resultados de pesquisas anteriores (e.g., Allport, 1954/1979; Hewstone e Brown, 1988), esperamos que os participantes com elevado nível de contacto com o exogrupo manifestem menor favoritismo endogrupal do que os participantes com baixo grau de contacto com o exogrupo. De igual modo, esperamos que os participantes com elevado nível de contacto com o exogrupo manifestem um menor efeito de homogeneidade do exogrupo do que os participantes com baixo grau de contacto com o exogrupo. Na opinião de diversos autores, o efeito de homogeneidade do exogrupo deve-se em parte à forma como os indivíduos se pensam a si próprios enquanto membros do endogrupo (e.g., Judd e Park, 1988; Linville et al., 1989; Park e Judd, 1990). Porque o indivíduo geralmente concebe o self como simultaneamente semelhante ao endogrupo mas também como único (Codol, 1975, 1984; Tajfel e Turner, 1979), pensar no self enquanto membro do endogrupo pode conduzir a percepções de maior variabilidade do endogrupo. Segundo o modelo da co-variação (Deschamps, 1984), a diferenciação intragrupal e a diferenciação intergrupal não são mutuamente exclusivas, mas podem ocorrer simultaneamente. Para o autor, estas estratégias de diferenciação dependem do estatuto relativo dos grupos: a diferenciação entre o self e o endogrupo é maior para os membros dos grupos dominantes do que os membros dos grupos dominados. Auto-conceito. Esperamos que a discrepância entre a descrição de si próprio e a descrição do endogrupo seja maior para os participantes portugueses do que para os
  • 351. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 351 participantes angolanos. Esperamos ainda que a auto-descrição dos participantes angolanos seja mais consonante com os estereótipos do seu grupo do que a auto-descrição dos participantes portugueses. 5) Para além dos objectivos teóricos atrás mencionados, temos um objectivo de ordem metodológica. Uma vez que a magnitude dos efeitos de homogeneidade depende do tipo de medidas utilizadas (Linville et al., 1989; Park e Judd, 1990; Ostrom e Sedikides, 1992), alguns autores têm salientado a necessidade de confrontar diversos tipos de medidas (e.g. Devos et al., 1996). Como referimos no Capítulo 3, a maior parte da investigação sobre esta temática tem sido efectuada utilizando medidas ‘directas’, isto é, medidas com grande validade facial em que os participantes facilmente se podem aperceber dos objectivos da pesquisa e controlar as suas respostas no sentido do ‘socialmente correcto’. Parece-nos que no estudo da discriminação étnica, em que as questões de ordem normativa são muito fortes, é particularmente relevante a utilização de medidas ‘indirectas’ ou ‘não- obstrusivas’, de modo a ter acesso aos processos mais automáticos de processamento de informação sobre os grupos. Nesta investigação iremos testar a hipótese da assimetria do estatuto relativo dos grupos sobre os efeitos de homogeneidade, recorrendo a diferentes tipos de medidas. Assim, neste estudo experimental iremos utilizar medidas não-obstrusivas (tarefas de recordação indiciada e de recordação livre) e medidas mais ‘clássicas’ (tarefas de questionário), umas ligadas directamente ao conteúdo dos estereótipos grupais (tarefa de estimação de percentagens; tarefa de estimação de médias; e tarefa de estimação de amplitudes) e outras não relacionadas com o conteúdo dos estereótipos (tarefa de estimação de distribuições; e tarefa de estimação de variabilidade). Na literatura sobre relações intergrupais é frequente a ambiguidade entre os efeitos de favoritismo e o efeito de homogeneidade do exogrupo. Frequentemente, as medidas da variabilidade grupal percebida baseiam-se em traços cuja valência avaliativa e cujo significado simbólico para os participantes não são controlados. Nesta investigação efectuámos um grande esforço de ordem metodológica no sentido de controlar exaustivamente todos os materiais-estímulo envolvidos, no sentido de evitar uma ‘contaminação’ entre estes dois efeitos. Assim foi efectuado um controlo sistemático da estereotipicalidade dos traços e da sua valência, o que permitiu a operacionalização de novas ‘medidas’ no sentido de
  • 352. Racismo e Etnicidade em Portugal 352 investigar os efeitos de homogeneidade controlando os efeitos de favoritismo, e paralelamente, investigar os efeitos de favoritismo controlando os efeitos de homogeneidade. Referimos nesta introdução apenas as hipóteses gerais deste estudo experimental. As hipóteses específicas relativas a cada tipo medida são explicitadas depois de apresentado o procedimento de recolha e de análise dos dados.
  • 353. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 353 5.2.2 Método 5.2.2.1 Participantes e desenho experimental Participaram neste estudo 163 estudantes universitários, 55 angolanos (20 rapazes e 35 raparigas) e 108 estudantes portugueses (48 rapazes e 60 raparigas). A idade média é de 22 anos, não diferindo significativamente em função do sexo dos participantes (?2 =22.290, p<0.134). No entanto, a idade média difere significativamente em função do grupo dos participantes, sendo os angolanos mais velhos do que os portugueses (respectivamente 25 anos e 21 anos, ?2 =65.951, p<0.001). Todos os participantes angolanos nasceram em Angola, tendo vindo para Portugal para estudar (83.3%), para trabalhar (1.9%), ou à procura de melhores condições de vida (14.8%). Vieram sozinhos (35.2%), com a família (50.0%), ou com amigos (9.3%). Em média, vivem em Portugal há 7 anos, e 13.6 % adquiriram a nacionalidade portuguesa52 . Estes dados foram recolhidos em Março e Abril de 1998. Este estudo foi constituído por duas fases. Na primeira fase, foram apresentadas aos participantes as descrições de oito pessoas-estímulo (quatro angolanas e quatro portuguesas), sendo estes posteriormente confrontados com uma tarefa de recordação da informação recebida (livre ou indiciada, conforme as condições experimentais). Estas tarefas de memorização permitiram o cálculo de medidas indirectas de variabilidade grupal percebida, como se explica mais adiante (ver Instrumentos de medida). Cada participante recebeu informação referente a oito pessoas-estímulo, quatro angolanas e quatro portuguesas. Os participantes de sexo masculino receberam informação acerca de oito pessoas-estímulo do sexo masculino e os participantes de sexo feminino receberam informação acerca de oito pessoas-estímulo do sexo feminino53 . Por razões associadas ao controlo dos dados, utilizámos duas versões do material-estímulo (versão A e versão B) e também duas ordens de apresentação das pessoas-estímulo: para aproximadamente metade dos participantes a primeira pessoa- 52 Neste estudo, para efeitos de tratamento de dados foram considerados como angolanos, todos os participantes de naturalidade angolana que se auto-categorizaram como sendo angolanos (independentemente da sua nacionalidade ser angolana ou portuguesa). 53 Embora fosse interessante o cruzamento das variáveis “sexo do participante” e “sexo da pessoa- estímulo”, isso implicaria um número de participantes muito superior ao que poderíamos dispor para esta experiência (dado o reduzido número de estudantes angolanos em Braga), pelo que optámos por trabalhar apenas com a variável “grupo do participante”, sendo os efeitos do sexo controlados no tratamento de dados.
  • 354. Racismo e Etnicidade em Portugal 354 estímulo a ser apresentada era angolana, sendo seguida de uma portuguesa, enquanto que para a outra metade dos participantes a primeira pessoa-estímulo a ser apresentada era portuguesa, sendo seguida de uma angolana e assim sucessivamente. Na segunda fase, os participantes responderam a um questionário com medidas ‘directas’ da variabilidade grupal percebida de ambos os grupos, medidas de favoritismo endogrupal, medidas de identificação com os grupos, medidas de contacto com os grupos e, finalmente, medidas de controle do contexto e dos materiais da experiência. Mais uma vez, a ordem das questões foi contrabalançada, sendo que aproximadamente metade dos participantes começava por responder às questões sobre os angolanos e depois respondia às questões sobre os portugueses, enquanto a outra metade dos participantes começava por responder às questões sobre os portugueses e só depois respondia em relação aos angolanos. Assim, o desenho experimental foi o seguinte: 2 (grupo-alvo: endogrupo vs. exogrupo) x 2 (grupo do participante: angolanos vs. portugueses) x 2 (sexo do participante: masculino vs. feminino) x 2 (ordem de apresentação dos grupos-alvo: primeiro os angolanos vs. primeiro os portugueses) x 2 (versão do material-estímulo: A vs. B). Todas as variáveis são inter-participantes, à excepção da primeira que é intra- participantes. Os participantes foram aleatoriamente distribuídos pelas diferentes condições experimentais. Tabela 31 - Distribuição dos participantes angolanos e portugueses por condição experimental Grupo dos participantes Condição experimental Angolanos Portugueses Total 1 = Recordação indiciada - Ordem 1 - Versão A 4 16 20 2 = Recordação indiciada - Ordem 1 - Versão B 5 16 21 3 = Recordação indiciada - Ordem 2 - Versão A 6 9 15 4 = Recordação indiciada - Ordem 2 - Versão B 6 17 23 5 = Recordação livre - Ordem 1 - Versão A 7 14 21 6 = Recordação livre - Ordem 1 - Versão B 8 11 19 7 = Recordação livre - Ordem 2 - Versão A 10 13 23 8 = Recordação livre - Ordem 2 - Versão B 9 12 21 Total 55 108 163
  • 355. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 355 5.2.2.2. Materiais-estímulo As descrições das dezasseis pessoas-estímulo utilizadas nesta experiência (oito para cada versão) foram elaboradas a partir dos resultados de um estudo piloto efectuado com o objectivo de testar os materiais-estímulo. Antes de apresentarmos a versão definitiva dos materiais-estímulo utilizados neste estudo experimental, iremos descrever sumariamente o estudo piloto efectuado e os seus principais resultados. 5.2.2.2.1 Teste dos materiais-estímulo (Estudo piloto) Vinte e quatro estudantes portugueses (8 rapazes e 16 raparigas) e 18 estudantes angolanos (11 rapazes e 7 raparigas) responderam a um questionário (ver Anexo 10) cujo objectivo era testar os materiais-estímulo do Estudo 4: testar a coerência das descrições das pessoas-estímulo; testar a valência e estereotipicalidade dos atributos utilizados nessas descrições; testar a sua adequabilidade para descrever pessoas-estímulo de sexo masculino e feminino; e seleccionar os nomes próprios a atribuir às pessoas-alvo angolanas e portuguesas. Previamente à realização deste estudo piloto uma equipa de juízes composta por dois angolanos (um rapaz e uma rapariga) e dois portugueses (um rapaz e uma rapariga) realizou uma análise de conteúdo do vocabulário obtido no Estudo 3a. Os atributos foram agrupados em 10 categorias. As 8 categorias com maior número de atributos foram seleccionadas como base para a construção das descrições das pessoas-estímulo: “relação com a família”, “tempo livre”, “estilo de vida”, “vestuário”, “atitude em relação ao trabalho”, “atitude em relação ao dinheiro”, “sociabilidade” e “gastronomia”. Os participantes no estudo piloto eram confrontados com 16 ‘perfis’ que consistiam na descrição de pessoas hipotéticas. Cada perfil era designado por um número (de 1 a 16) e era composto por quatro atributos seleccionados a partir das 8 categorias atrás referidas (cada atributo correspondia a uma categoria diferente). A tarefa dos participantes era avaliar a coerência de cada um desses perfis numa escala de 7 pontos (1 = “nada coerente”; 7 = “muito coerente”). Seguidamente, os participantes recebiam a lista de todos os atributos constantes nos perfis (ordenados aleatoriamente) e era-lhes pedido para classificar em que medida cada um dos atributos era masculino, feminino ou igualmente característico de homens e mulheres, usando a seguinte classificação: M = "Esta característica aplica-se
  • 356. Racismo e Etnicidade em Portugal 356 exclusivamente aos homens”; N = " Esta característica aplica-se tanto aos homens como às mulheres”; F = " Esta característica aplica-se exclusivamente às mulheres”. Ainda relativamente à mesma lista de atributos, era pedido aos participantes para estimarem, através de três escalas de 7 pontos independentes (tal como no Estudo 3b), a estereotipicalidade de cada atributo em relação aos angolanos, a estereotipicalidade de cada atributo em relação aos portugueses e a valência avaliativa de cada atributo. Seguidamente, os participantes deveriam classificar cada uma das oito categorias de atributos (relação com a família, tempo livre, estilo de vida, etc.) utilizadas nas descrições em função da sua pertença à esfera pública ou privada (1 = “Esta dimensão pertence à esfera privada”; 2 = “Esta dimensão pertence à esfera pública”). Finalmente, pedia-se aos participantes para referirem os oito nomes próprios (masculinos e femininos) que considerassem mais frequentes nos jovens angolanos e nos jovens portugueses. Sendo assim, cada participante deveria referir 32 nomes próprios, 8 para cada categoria. Terminado o preenchimento do questionário, a investigadora pedia para os participantes comentarem os perfis avaliados no início da sessão e, no caso de terem classificado algum dos perfis como não coerente, referirem o motivo. Globalmente, os perfis angolanos (M=4.19) foram considerados mais coerentes do que os perfis portugueses (M=3.97), ?F(1,40)=2.731, p<0.045?. Os atributos incluídos nos perfis portugueses (M=4.96) foram percebidos como estereotípicos dos portugueses, ?t(41)=10.35, p<0.0001?. De igual modo, os atributos incluídos nos perfis angolanos (M=5.01) foram percebidos como estereotípicos dos angolanos ?t(41)=10.49, p<0.0001?. Relativamente à valência avaliativa, tanto os atributos incluídos nos perfis portugueses como os incluídos nos perfis angolanos foram considerados globalmente positivos ?respectivamente: M=4.81, t(41)=9.201, p<0.0001; e M=4.36, t(41)=3.782, p<0.0001?. Globalmente, os atributos incluídos nos perfis foram considerados como aplicando-se igualmente a ambos os sexos, uma vez que a média geral (M=1.97) não diferiu significativamente do ponto neutro da escala ?t(41)=1.24, p<0.22?. Contudo, os atributos incluídos nos perfis portugueses foram considerados como aplicando-se mais ao sexo masculino (M=1.94) do que os atributos incluídos nos perfis angolanos (M=2.02), ?F(1,40)=13.63, p<0.001?.
  • 357. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 357 Relativamente às oito categorias de atributos incluídas nos perfis, as categorias “família”, “tempo livre”, “estilo de vida” e “vestuário” foram consideradas como pertencendo à esfera privada ?M=1.30; t(1,39)=-5.71, p<0.0005? e as categorias “trabalho”, “dinheiro”, “sociabilidade” e “gastronomia” foram consideradas como pertencendo à esfera pública ?M=1.68; t(1,39)=5.85, p<0.0005?. Considerando estes resultados e os comentários dos participantes, efectuámos alterações consideráveis nos perfis originalmente apresentados no sentido de aumentar a sua coerência. Seleccionámos os oito nomes próprios masculinos e os oito nomes próprios femininos considerados mais comuns pelos participantes e atribuímos esses nomes aos perfis (pessoas-estímulo). De acordo com os dados deste estudo (ver Anexo 11), os nomes próprios mais frequentes são os mesmos para os jovens angolanos e portugueses, assim o nome atribuído às pessoas-estímulo não permite a sua identificação étnica. A este propósito é de recordar que este estudo foi efectuado em 1998, sendo a idade média dos participantes de 22 anos, o que significa que a grande maioria destes estudantes nasceu pouco antes ou pouco depois do 25 de Abril de 1974. Ora, segundo algumas entrevistas exploratórias por nós realizadas, o uso de nomes próprios tradicionais angolanos só começou a vulgarizar-se depois da independência de Angola. 5.2.2.2.2 Versão definitiva do material-estímulo A Tabela 32 e a Tabela 33 apresentam a versão definitiva dos dezasseis perfis usados neste estudo experimental, depois das modificações efectuadas com base no estudo piloto. Resumidamente, os atributos seleccionados a partir do Estudo 3a foram distribuídos pelas duas versões do material-estímulo. A Versão A descreve quatro pessoas-estímulo angolanas através das categorias “família”, “tempo livre”, “estilo de vida” e “vestuário” (consideradas como pertencendo à esfera privada, de acordo com os resultados do estudo piloto) e quatro pessoas-estímulo portuguesas através das categorias “trabalho”, “dinheiro”, “sociabilidade” e “gastronomia” (consideradas como pertencendo à esfera pública, de acordo com os resultados do estudo piloto). A Versão B inverte as categorias associadas às pessoas-estímulo angolanas e portuguesas, isto é, as quatro pessoas-estímulo angolanas são descritas através das categorias “trabalho”, “dinheiro”, “sociabilidade” e “gastronomia” (esfera pública) enquanto as quatro pessoas-estímulo portuguesas são descritas através das categorias “família”, “tempo livre”, “estilo de vida” e “vestuário” (esfera privada).
  • 358. Racismo e Etnicidade em Portugal 358 Assim, ambas as versões do material-estímulo contêm 32 atributos e cada pessoa- estímulo é descrita através de quatro atributos. A ordem de apresentação dos atributos dentro de cada versão do material-estímulo foi mantida fixa (de acordo com a ordem que está indicada na Tabela 32 e na Tabela 33)54 . 54 Como podemos verificar, os atributos para as categorias “família”, “estilo de vida”, “dinheiro” e “sociabilidade” são os mesmos para descrever as pessoas -estímulo angolanas e portuguesas. Na primeira versão do material-estímulo, só os atributos relativos às categorias “família” e “sociabilidade” eram iguais, visto que segundo os resultados do Estudo 3a, estas dimensões eram muito importantes para descrever tanto os angolanos como os portugueses, no entanto, em função do estudo piloto efectuado para testar os materiais -estímulo optámos por colocar também os mesmos atributos para as dimensões “estilo de vida” e “dinheiro” na versão definitiva do material-estímulo. De facto, enquanto no estudo 3a os participantes eram levados a pensar nos angolanos e nos portugueses em geral, neste estudo os participantes eram levados a pensar especificamente em jovens, segundo as instruções: “Nesta página e seguintes, ser-lhe-ão apresentados os perfis de 16 jovens. Cada jovem é descrito através de quatro características. Gostaríamos que examinasse cada um desses perfis e avaliasse a sua coerência, utilizando a escala que se segue”. Em função dos comentários dos participantes relativamente aos perfis considerados inconsistentes, podemos constatar que a clivagem entre angolanos e portugueses relativamente à atitude face ao “dinheiro” e ao “estilo de vida” se prende essencialmente com a imagem dos adultos, sendo os jovens angolanos e portugueses percebidos como idênticos nestes duas dimensões.
  • 359. Tabela 32 - Materiais-estímulo (Versão A) Versão A Família Tempo livre Estilo de vida Vestuário Trabalho Dinheiro Sociabilidade Gastronomia Angolanos (m/f) Manuel/Ana Pensa frequentemente na família Adora dançar Aventureiro/a Gosta dos trajes tradicionais Jorge/Paula Está muito ligado/a à família Anda sempre em festas Dinâmico/a Veste-se bem António/Carla Respeita as tradições familiares Costuma ver telenovelas Simples Gosta de roupas coloridas João/Sónia Costuma pedir conselhos aos familiares Gosta de rap Activo/a Usa roupas largas Portugueses (m/f) José/Maria Planifica o seu futuro profissional Tem hábitos de poupança Simpático/a Grande apreciador/a de bacalhau Paulo/Sandra Muito estudioso/a Tem dificuldades económicas Amigável Gosta de uma boa sardinhada Pedro/Joana Trabalha bastante Gosta de esbanjar dinheiro Comunicativo/a Apreciador/a de bom vinho Carlos/Isabel Empenhado/a na sua carreira profissional Despreocupado/a com o dinheiro Acolhedor/a Gosta muito de feijoada
  • 360. Tabela 33 - Materiais-estímulo (Versão B) Versão B Família Tempo livre Estilo de vida Vestuário Trabalho Dinheiro Sociabilidade Gastronomia Angolanos (m/f) Manuel/Ana Trabalha pouco Despreocupado/a com o dinheiro Simpático/a Gosta de mandioca Jorge/Paula Vive o dia-a-dia Gosta de esbanjar dinheiro Amigável Adora comida picante António/Carla Pouco dedicado/a ao trabalho Tem dificuldades económicas Comunicativo/a Apreciador/a de cerveja João/Sónia Despreocupado/a com a sua carreira profissional Tem hábitos de poupança Acolhedor/a Gosta de óleo de palma Portugueses (m/f) José/Maria Pensa frequentemente na família Vai regularmente ao cinema Dinâmico/a Gosta de andar na moda Paulo/Sandra Está muito ligado/a à família Gosta da vida nocturna Activo/a Veste roupa de marca Pedro/Joana Costuma pedir conselhos aos familiares Pratica desportos radicais Aventureiro/a Usa calças de ganga Carlos/Isabel Respeita as tradições familiares Gosta de fado Simples Veste cores sóbrias
  • 361. Racismo e etnicidade em Portugal 361 Quanto às variáveis dependentes medidas por questionário, os julgamentos sobre os grupos-alvo foram efectuados a partir de uma reduzida lista de traços que era apresentada aos participantes. Estes traços foram seleccionados a partir dos resultados do Estudo 3b, tendo em conta os seguintes critérios: a existência de consenso entre os participantes angolanos e portugueses quanto ao carácter estereotípico de cada traço e simultaneamente quanto à sua valência avaliativa55 . Assim foram seleccionados: dois traços estereotípicos dos angolanos – festivos (positivo) e preguiçosos (negativo); dois traços estereotípicos dos portugueses – trabalhadores (positivo) e individualistas (negativo); e ainda quatro traços considerados neutros tanto no que respeita à estereotipicalidade como no que respeita à valência avaliativa – gulosos, impulsivos, tradicionalistas e vaidosos. 5.2.2.3 Procedimento de recolha de dados Os estudantes angolanos e portugueses participaram na experiência em pequenos grupos, sendo os dados recolhidos sempre pela mesma investigadora. No início da sessão, foram convidados a participar numa experiência sobre percepção de pessoas, sendo-lhes dito que iriam receber informação acerca de oito jovens, sendo a sua tarefa formar uma impressão acerca de cada jovem. Seguidamente os participantes foram confrontados com uma tarefa de recordação da informação recebida. A investigadora começa por distribuir a cada participante um caderno (tamanho A7) com as descrições das oito pessoas-estímulo (quatro angolanas e quatro portuguesas). Os rapazes recebem informação sobre oito pessoas-estímulo do sexo masculino, enquanto que as raparigas recebem informação sobre oito pessoas-estímulo do sexo feminino (ver Anexo 12). Na folha de rosto do caderno, as instruções explicam aos participantes que a sua tarefa é formar uma impressão e recordar a informação recebida sobre cada pessoa-estímulo e que só deverão avançar na leitura de cada página à medida que forem recebendo instruções nesse sentido por parte da investigadora. Cada pessoa-estímulo é descrita numa página separada. No topo da página, em destaque, aparece o nome próprio e a pertença étnica (exemplo: Manuel, Angolano), e 55 Sendo díficil encontrar atributos negativos considerados consensualmente (tanto por participantes angolanos como por participantes portugueses) estereotípicos de cada grupo-alvo, recorremos aos atributos negativos cuja classificação mais se aproximou dos valores exigidos para serem considerados estereotípicos de um grupo e contra-estereotípico do outro grupo.
  • 362. Racismo e Etnicidade em Portugal 362 seguidamente, os quatro atributos, cada um numa linha diferente. A apresentação das pessoas-estímulo é feita em ordem alternada: uma angolana, seguida de uma portuguesa, seguida de uma angolana, e assim sucessivamente. Aproximadamente metade dos participantes começa por uma pessoa-estímulo angolana seguida de uma portuguesa (Ordem 1) e a outra metade dos participantes começa por uma pessoa-estímulo portuguesa seguida de uma angolana (Ordem 2). O procedimento seguinte difere ligeiramente conforme a condição de recordação. Na condição de recordação indiciada os participantes têm 20 segundos para examinar cada página, isto é, cada descrição, sendo a investigadora que, com a ajuda de um cronómetro indica aos participantes o momento de passar à página seguinte. Terminada a leitura das oito descrições (2’40’’), a investigadora recolhe os materiais e distribui a cada participante uma página A4 com uma matriz contendo 8 colunas (cada uma encabeçada pelo nome de uma pessoa-estímulo e a respectiva identificação étnica) e 32 linhas (contendo em ordem aleatória os atributos constantes nos perfis das pessoas-estímulo). Os participantes são instruídos no sentido de indicarem que pessoa-estímulo era descrita por cada atributo, colocando uma cruz na coluna apropriada para cada linha da matriz56 . Passados 10 minutos, é dada por terminada a tarefa de recordação indiciada e são recolhidas as matrizes de resposta. Na condição de recordação livre os participantes têm 30 segundos para examinar cada página, sendo a investigadora que, com a ajuda de um cronómetro indica aos participantes o momento de passar à página seguinte. Terminada a leitura das oito descrições (4’), a investigadora recolhe os materiais e distribui a cada participante um caderno (tamanho A7) com 16 páginas em branco. Depois de uma pequena explicação, a investigadora pede aos participantes para recordarem os atributos das pessoas-estímulo angolanas (Ordem 1) ou das pessoas-estímulo portuguesas (Ordem 2) “na ordem que vos vier à cabeça”. A folha de rosto do caderno explica aos participantes que deverão listar um atributo por página e passar à página seguinte, sem voltar atrás. Passados 10 minutos, a investigadora recolhe este caderno, e distribui um outro a cada participante, pedindo-lhes para recordarem os atributos das pessoas-estímulo portuguesas (Ordem 1) ou das pessoas- 56 Foram utilizadas oito matrizes de recordação diferentes em função das quatro condições experimentais associadas à recordação indiciada e ainda em função do sexo do participante (que coincidia sempre com o sexo das pessoas-estímulo): 1AM = Ordem 1 – Versão A – Masculino; 2AM = Ordem 2 – Versão A – Masculino; 1BM = Ordem 1 – Versão B – Masculino; 2BM = Ordem 2 – Versão B – Masculino; 1AF = Ordem 1 – Versão A – Feminino; 2AF = Ordem 2 – Versão A – Feminino; 1BF = Ordem 1 – Versão B – Feminino; 2BF = Ordem 2 – Versão B – Feminino (ver Anexo 13).
  • 363. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 363 estímulo angolanas (Ordem 2). Passados 10 minutos, é dada por terminada a tarefa de recordação livre e são recolhidos os cadernos referentes à recordação dos atributos do segundo grupo-alvo. Assim, aproximadamente metade dos participantes recordava primeiro as características das pessoas-estímulo angolanas e depois as características das pessoas- estímulo portuguesas (Ordem 1) e a outra metade dos participantes recordava primeiro as características das pessoas-estímulo portuguesas e depois as características das pessoas-estímulo angolanas (Ordem 2). Uma vez recolhidos os materiais correspondentes à tarefa de recordação (as matrizes no caso da recordação indiciada ou os cadernos A7 no caso da recordação livre), cada participante recebe um questionário (ver Anexo 15) com uma série de questões sobre cada um dos grupos-alvo: os angolanos e os portugueses, sendo a ordem dos grupos-alvo contrabalançada. A investigadora salienta que a tarefa seguinte será de natureza completamente diferente da precedente, pois o que interessa agora é a opinião dos participantes sobre uma série de questões, apela à sinceridade dos participantes no preenchimento das suas respostas e garante a confidencialidade das mesmas. Na primeira secção do questionário os participantes realizaram uma série de tarefas que consistiam na descrição dos dois grupos-alvo através de um número limitado de atributos e que permitiram o cálculo de diversas medidas de variabilidade grupal percebida, medidas de tendência central percebida e também medidas de favoritismo endogrupal. Seguidamente, era pedido aos participantes para se descreverem a si próprios através dos mesmos atributos usados para descrever os grupos-alvo. Na segunda secção do questionário, os participantes responderam a uma série de questões sobre o nível de identificação com o endogrupo e com o exogrupo e também sobre o nível de contacto com o endogrupo e com o exogrupo. Estas questões permitiram investigar o papel mediador destas variáveis na percepção da variabilidade grupal e no favoritismo endogrupal. Na terceira secção do questionário, os participantes responderam a várias questões cujo objectivo era controlar os materiais-estímulo (estereotipicalidade e valência dos traços) e o contexto desta investigação (estatuto social percebido e estatuto numérico percebido).
  • 364. Racismo e Etnicidade em Portugal 364 Por último, os participantes respondiam a questões de identificação: sexo, idade, nacionalidade e naturalidade. No caso da naturalidade não ser portuguesa, deveriam responder ainda a três questões relativas às circunstâncias da sua vinda para Portugal57 . Finalmente, a investigadora recolhia os questionários, esclarecia os objectivos do estudo, agradecia a participação dos estudantes e respondia às suas eventuais questões. 5.2.2.4 Instrumentos de medida Seguidamente apresentaremos os instrumentos de medida utilizados neste estudo na ordem em que vão ser apresentados na secção de resultados. Começaremos por explicar a construção das medidas ‘indirectas’ derivadas das tarefas de recordação indiciada e de recordação livre. Seguidamente apresentaremos as medidas ‘directas’ derivadas das tarefas de questionário. Uma vez que algumas das tarefas do questionário deram origem a diferentes tipos de medidas, apresentaremos as medidas tarefa a tarefa para facilitar a compreensão. A Tabela 34 resume todas as questões e tarefas envolvidas neste estudo e as respectivas medidas. 57 As questões eram as seguintes: a) Há quantos anos reside em Portugal?; b) Qual o motivo que o trouxe a Portugal? (1 = estudar; 2 = trabalhar; 3 =outro motivo; qual?); c) Qual foi a sua situação quando chegou a Portugal? (1 = sozinho; 2 = com a família; 3 = com os amigos; 4 = outra situação; qual?).
  • 365. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 365 Tabela 34 - Síntese dos instrumentos de medida Tipo de medida Questões / Tarefas Caracterização dos participantes Sexo Idade Nacionalidade Naturalidade Tempo de permanência em Portugal* Motivo da vinda para Portugal* Situação* Controlo do contexto da experiência Estatuto social percebido Estatuto numérico percebido Valência dos traços Estereotipicalidade dos traços Efeitos de categorização Recordação indiciada Efeitos de homogeneidade Recordação indiciada Recordação livre Estimação de percentagens Estimação de médias Estimação de amplitudes Estimação de distribuições Estimação de variabilidade Efeitos de Favoritismo Estimação de percentagens Estimação de médias Auto-descrição Auto-descrição Identificação grupal Nível de identificação nacional Contacto intergrupal Nível de familiaridade Número de amigos Nota: As questões assinaladas com asterisco só foram respondidas pelos participantes angolanos. 5.2.2.4.1 Medidas de controlo dos materiais e do contexto da investigação Estatuto social relativo percebido. Tal como no Estudo 2, foi pedido aos participantes para situarem o endogrupo e o exogrupo em seis escalas (de 0 a 100mm) relativas ao nível educacional, ao nível cultural, ao nível económico, ao estatuto social, ao prestígio, e ao poder. A média destas seis escalas foi considerada como um indicador do estatuto social relativo (ver ponto 4.3.2.3). Estatuto numérico relativo percebido. Foi pedido aos participantes para estimarem a percentagem de vários grupos na população residente em Portugal, incluindo os Portugueses e os Angolanos.
  • 366. Racismo e Etnicidade em Portugal 366 Estereotipicalidade dos traços. Tal como no Estudo 3b, foi pedido aos participantes para estimarem a estereotipicalidade de cada um dos traços usados no questionário através de duas escalas de sete pontos, uma para averiguar a estereotipicalidade em relação aos angolanos, e outra para avaliar a estereotipicalidade em relação aos portugueses (ver ponto 4.4.3.1.3). Valência dos traços. Tal como no Estudo 3b, foi pedido aos participantes para estimarem a valência avaliativa de cada um dos traços usados no questionário através de uma escala de sete pontos (ver ponto 4.4.3.1.3). 5.2.2.4.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada A tarefa de recordação indiciada permite o cálculo do número de respostas correctas assim como de diferentes tipos de erros (ou confusões entre as pessoas- estímulo). Os diferentes tipos de erros podem ser usados para avaliar em que medida os participantes percebem o endogrupo e o exogrupo de forma mais ou menos homogénea. O efeito de categorização pode ser medido através da proporção de erros inter- categoriais e intra-categoriais. Os erros intergrupais correspondem à atribuição de uma característica pertencente a uma pessoa-estímulo de um grupo a uma pessoa-estímulo de outro grupo (por exemplo, atribuir uma característica do Manuel, angolano, ao Pedro, português, e vice-versa). Os erros intragrupais correspondem à atribuição de uma característica pertencente a uma pessoa-estímulo de um grupo a outra pessoa desse mesmo grupo (por exemplo: atribuir uma característica do Manuel ao Jorge, ambos angolanos; ou atribuir uma característica do Pedro ao Paulo, ambos portugueses). Como o número de erros intergrupais esperados ao acaso é superior ao número de erros intragrupais, corrigimos os erros intergrupais multiplicando por 3/4, seguindo o procedimento de Taylor et al. (1978). (Num grupo com oito pessoas-estímulo, quatro de cada grupo, cada atributo pode ser correctamente emparelhado com o alvo; incorrectamente atribuído a uma das três outras pessoas-estímulo do mesmo grupo; ou incorrectamente atribuído a qualquer das quatro pessoas-estímulo do outro grupo). O efeito de categorização pode ser inferido a partir do maior número de erros intragrupais do que erros intergrupais (Taylor et al., 1978). Para averiguar os efeitos de homogeneidade, os erros intragrupais foram depois classificados em função da sua relevância em termos do grupo de pertença de cada participante: erros endogrupais versus erros exogrupais. Os erros endogrupais correspondem à atribuição de uma característica de uma pessoa-estímulo pertencente ao
  • 367. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 367 mesmo grupo do participante a outra pessoa-estímulo do mesmo grupo e os erros exogrupais correspondem à atribuição de uma característica de uma pessoa-estímulo pertencente a um grupo étnico diferente do participante a outra pessoa-estímulo desse outro grupo. O efeito de homogeneidade do exogrupo pode ser inferido a partir do maior número de erros exogrupais que endogrupais (Lorenzi-Cioldi, 1993). 5.2.2.4.3 Medidas indirectas – Tarefa de recordação livre A tarefa de recordação livre permite uma análise alternativa da estrutura da informação recuperada (Ostrom et al., 1993; Sedikides, 1997). A descrição das pessoas- estímulo oferecia uma base para duas formas ortogonais de organizar a informação, quer em termos pessoais (Manuel, José, etc.) quer em termos das categorias de atributos (família, trabalho, etc.). Para averiguar a forma como os participantes organizaram a informação foram calculados dois tipos de clustering scores: organização da informação em termos pessoais (person clustering) ou em termos das categorias de atributos (atribut clustering)58 . Para tal usámos o Adjusted Ratio of Clustering59 (ARC), desenvolvido por Roenker, Thompson e Brown (1971). Este índice é baseado na frequência com que dois items da mesma categoria cognitiva são listados em sequência directa durante a tarefa de recordação (repetições). Se a frequência é significativamente maior do que a esperada ao acaso é presumido que esta categoria foi usada pelos participantes como uma base para recuperar a informação memorizada. Um ARC-score com valor 0 (zero) indica clustering ao acaso; um ARC-score positivo, diferente de zero, indica uma organização da informação em termos das categorias previstas pelo investigador (pessoa ou categoria de atributo, neste caso). Um ARC-score negativo indica que os 58 Mais uma vez nos confrontamos com um problema de tradução a partir do inglês. O termo clustering (organização, aglomeração, conglomeração) foi aqui traduzido por tipo de organização da informação. Assim a variável clustering category (person clustering vs. attribut clustering) é por nós referida como: tipo de organização da informação (organização pessoal vs. organização categorial) (cf: Sedikides, 1997). 59 A fórmula matemática para o ARC-score é a seguinte: ARC = [R – E(R)]/ [maxR – E(R)]. Em que: R = número total de repetições observadas (i.e., o número de vezes que um item de determinada categoria é seguido por um item da mesma categoria); MaxR = o número máximo possível de repetições de cada categoria; E(R) = o número esperado (ao acaso) de repetições categoriais. MaxR = N – k, onde N = número total de items recordados, e k = o número de categorias representado no protocolo de recordação. E(R) = [? ni2 ]/N –1, onde ni = número de items recordados da categoria i, e N é o mesmo que na formula anterior. Os ARC-scores têm sido considerados por diversos autores como a medida mais adequada para tratamento dos protocolos de recordação livre (Ostromet al., 1993; Taylor e Fiske, 1981).
  • 368. Racismo e Etnicidade em Portugal 368 participantes usaram categorias de clustering diferentes do esquema de codificação do experimentador. Calculámos quatro ARC-scores para cada participante: um ARC-score reflecte o clustering em função das pessoas do endogrupo; outro em função dos atributos do endogrupo; outro em função de pessoas do exogrupo; e outro em função dos atributos do exogrupo. Previamente ao cálculo dos ARC-scores foi necessário um trabalho de codificação dos protocolos de recordação dos participantes, tendo em conta as seguintes variáveis dependentes: número total de atributos recordados; número total de duplos (atributos repetidos); número total de intrusos tipo A (atributos falsos); número total de intrusos tipo B (erros intergrupais); número total de intrusos C (atributos falsos mas correspondentes às categorias de atributo apresentadas); número total de atributos recordados de cada pessoa-estímulo (José, Manuel, etc.); número total de atributos recordados de cada categoria de atributo (família, trabalho, etc.); número total de repetições observadas para cada pessoa-estímulo; número total de repetições observadas de atributo. Este trabalho de codificação dos protocolos de recordação livre foi realizado separadamente para cada participante e para cada grupo-alvo, isto é, para cada participante foram preenchidas duas folhas de codificação, uma relativa ao endogrupo e outra relativa ao exogrupo (ver Anexo 14). 5.2.2.4.4 Medidas directas – Tarefas de questionário Tarefa de estimação de percentagens (percentage estimates task, Park e Rothbart, 1982). Os participantes foram confrontados com quatro traços, dois estereotípicos dos angolanos e dois estereotípicos dos portugueses (de acordo com os resultados obtidos no Estudo 3b). Estes traços eram os seguintes: festivos e preguiçosos (estereotípicos dos angolanos); e trabalhadores e individualistas (estereotípicos dos portugueses). A tarefa dos participantes era estimar a percentagem (de 0% a 100%) de membros de cada um dos grupos-alvo que possuía cada um destes traços. Seguindo o procedimento de Park e Judd (1990), a partir desta tarefa calculámos uma medida de tendência central, uma medida de variabilidade grupal percebida, e uma medida de favoritismo endogrupal. A percentagem média de cada grupo nos quatro traços foi considerada como uma medida de tendência central (PERMG). Para calcular a medida de variabilidade grupal percebida, subtraímos a média dos traços contra-estereotípicos à média dos traços
  • 369. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 369 estereotípicos (PERSC)60 . O valor desta diferença (traços estereotípicos minus traços contra-estereotípicos) reflecte em que medida os membros do grupo são vistos como conformando-se com o estereótipo grupal. Valores elevados indicam baixa variabilidade grupal percebida (muitos membros do grupo são vistos como possuindo os traços estereotípicos e poucos são vistos como possuindo os traços contra-estereotípicos). Valores baixos indicam alta variabilidade grupal percebida ou menor conformidade com o estereótipo grupal. Para calcular a medida de favoritismo endogrupal, subtraímos a média dos traços positivos à média dos traços negativos (PERPN)61 . O valor desta diferença (traços positivos minus traços negativos) reflecte em que medida o endogrupo é descrito de forma mais positiva do que o exogrupo. Para além destas medidas utilizadas por Park e Judd (1990), procedemos ainda à operacionalização de novas medidas de variabilidade grupal percebida que nos permitissem realizar análises de variância separadamente para traços positivos e para traços negativos, no sentido de controlar os efeitos de favoritismo nestas. Assim calculámos de novo a diferença entre os traços estereotípicos e contra-estereotípicos (S – CS), mas em vez de uma medida envolvendo os quatro atributos utilizados para descrever cada grupo-alvo (festivos, preguiçosos, trabalhadores, e individualistas; os dois primeiros estereotípicos dos angolanos e contra-estereotípicos dos portugueses e os dois últimos estereotípicos dos portugueses e contra-estereotípicos dos angolanos), calculámos duas medidas: uma referente apenas aos traços positivos (festivos e trabalhadores); e outra referente apenas aos traços negativos (preguiçosos e individualistas). Para facilitar o rápido reconhecimento destas novas medidas, designámos PERSC(+) à medida baseada exclusivamente nos traços positivos e PERSC(-) à medida baseada exclusivamente nos traços negativos62 . 60 As medidas baseadas na diferença entre traços estereotípicos minus contra-estereótipos (S – CS) foram calculadas da seguinte forma: para o grupo-alvo «angolanos» (S – CS) = ?(alegres + preguiçosos)/2? - ?(trabalhadores + individualistas)/2? enquanto que para o grupo-alvo «portugueses» (S – CS) = ?(trabalhadores + individualistas)/2? - ?(alegres + preguiçosos)/2?. 61 Para calcular as medidas baseadas na diferença entre traços positivos minus negativos procedemos ao seguinte cálculo: (P – N) = ?(alegres + trabalhadores)/2? - ?(preguiçosos + individualistas)/2?, independentemente do grupo do participante e do grupo-alvo. 62 Para o cálculo da medida PERSC(+) procedemos do seguinte modo: para os participantes angolanos, a medida PERSC(+) para o endogrupo = alegres (S) – trabalhadores (CS) e para o exogrupo = trabalhadores (S) – alegres (CS); para os participantes portugueses, a medida PERSC(+) para o endogrupo = trabalhadores (S) – alegres (CS) e para o exogrupo = alegres (S) – trabalhadores (CS). Para o cálculo da medida PERSC(-) procedemos do seguinte modo: para os participantes angolanos, a medida PERSC(-) para o endogrupo = preguiçosos (S) – individualistas (CS) e para o exogrupo = individualistas (S) – preguiçosos (CS); para os participantes portugueses, a medida PERSC(-) para o
  • 370. Racismo e Etnicidade em Portugal 370 Paralelamente calculámos de novo a diferença entre traços positivos e negativos (P – N), não tendo em conta os quatro atributos para cada grupo (festivos, trabalhadores, preguiçosos e individualistas; os dois primeiros positivos e os dois últimos negativos), mas sim separadamente para traços estereotípicos e para traços contra-estereotípicos de cada grupo-alvo, isto é, em vez de uma medida de favoritismo, calculámos duas: uma referente apenas aos traços estereotípicos; e outra referente apenas aos traços contra-estereotípicos. Para facilitar o rápido reconhecimento destas novas medidas, designámos PERPN(S) à medida baseada exclusivamente nos traços estereotípicos e PERPN(CS) à medida baseada exclusivamente nos traços contra-estereotípicos63 . Tarefa de estimação de médias (central tendency task, Park e Judd, 1990). Os participantes foram confrontados com os mesmos quatro traços da tarefa anterior e foi- lhes pedido para estimar a média de cada grupo marcando uma cruz em quatro linhas de 100mm de comprimento, cujos extremos correspondiam à presença ou ausência de cada um dos traços (e.g., nada festivo – muito festivo). A partir desta tarefa calculámos uma medida de tendência central, uma medida de variabilidade grupal percebida, e uma medida de favoritismo endogrupal, seguindo o procedimento de Park e Judd (1990). O valor médio de cada grupo nos quatro traços foi tomado como um indicador da tendência central (MEDMG). A diferença entre a pontuação atribuída aos membros extremos do grupo foi considerada como a amplitude percebida em cada traço (AMPLI). Tal como na tarefa anterior, a média dos traços contra-estereotípicos foi subtraída à média dos traços estereotípicos (MEDSC). Foi também calculada uma medida de favoritismo endogrupal, através da subtracção da média dos traços negativos à média dos traços positivos (MEDPN). Posteriormente, tal como procedemos relativamente à tarefa anterior, operacionalizámos novas medidas de variabilidade grupal percebida (controlando os efeitos da valência dos traços) e novas medidas de favoritismo (controlando os efeitos endogrupo = individualistas (S) – preguiçosos (CS) e para o exogrupo = preguiçosos (S) – individualistas (CS). 63 Para o cálculo da medida PERPN(S) procedemos do seguinte modo: para os participantes angolanos, a medida PERPN(S) para o endogrupo = alegres (P) – preguiçosos (N) e para o exogrupo = trabalhadores (P) – individualista (N); para os participantes portugueses, a medida PERPN(S) para o endogrupo = trabalhadores (P) – individualista (N) e para o exogrupo = alegres (P) – preguiçosos (N). Para o cálculo da medida PERPN(CS) procedemos do seguinte modo: para os participantes angolanos, a medida PERPN(CS) para o endogrupo = trabalhadores (P) – individualista (N), e para o exogrupo = alegres (P) – preguiçosos (N); para os participantes portugueses, a medida PERPN(CS) para o endogrupo = alegres (P) – preguiçosos (N), e para o exogrupo = trabalhadores (P) – individualista (N).
  • 371. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 371 da estereotipicalidade dos traços). Nesse sentido, recalculámos a medida MEDSC em função da valência dos traços, o que resultou em duas novas medidas: uma para os traços positivos ?MEDSC(+) ?e outra para os traços negativos ?MEDSC(-) ?. De igual modo recalculámos a medida MEDPN em função da estereotipicalidade dos traços: uma para os traços estereotípicos ?MEDPN(S) ? e outra para os traços contra-estereotípicos ?MEDPN(CS) ?. Tarefa estimação de amplitude (range task, Park e Judd, 1990). Os participantes foram confrontados com os mesmos quatro traços da tarefa anterior e foi-lhes pedido para indicarem onde se situavam os membros mais extremos do grupo efectuando duas cruzes em cada uma das quatro linhas de 100mm (por exemplo: foi-lhes pedido para indicarem onde se situaria a pessoa menos festiva e também onde se situaria a pessoa mais festiva). Assim, enquanto na tarefa anterior os participantes julgaram a tendência central do grupo nesta tarefa julgaram a sua dispersão. Para cada um dos quatro traços foi calculada a diferença entre a pontuação atribuída aos membros extremos do grupo, o que corresponde à amplitude percebida (AMPLI). A média da amplitude percebida nos quatro traços foi considerada como uma medida de variabilidade grupal percebida. Tarefa de estimação de distribuição (distribution task, Linville et al., 1989). Os participantes foram confrontados com quatro traços considerados neutros: gulosos, impulsivos, tradicionalistas e vaidosos. Foi-lhes pedido para considerarem 100 angolanos (ou portugueses) ao acaso e para indicarem a sua distribuição numa dada dimensão, colocando um número em cada um dos sete níveis da dimensão, sendo que a soma desses números deveria corresponder a 100. Assim, a tarefa dos participantes era distribuir os 100 membros do grupo ao longo de um contínuo designado no seu extremo baixo pela ausência do traço (e.g., nada guloso) e no seu extremo alto pela presença do traço (e.g., muito guloso). Para cada uma destas quatro distribuições, foi calculado o índice de probabilidade de diferenciação (DISPD), a variabilidade percebida (DISVP), e a média (DISMG). Segundo Linville et al. (1989), a probalidade de diferenciação corresponde à
  • 372. Racismo e Etnicidade em Portugal 372 probabilidade de distinguir entre os membros do grupo e a variabilidade percebida corresponde ao grau de dispersão dos membros do grupo64 . Tarefa de estimação de variabilidade (Similarity task, Quattrone e Jones, 1980). Foi pedido aos participantes para avaliarem globalmente a variabilidade grupal, usando uma escala de sete pontos, cujos extremos eram 1 = “eles são todos semelhantes” e 7= “eles são todos completamente diferentes”. Os valores directos fornecidos pelos participantes foram considerados como indicadores da variabilidade grupal percebida (VARIA). Auto-descrição (Self-description, Park e Judd, 1990). Os participantes foram confrontados com os quatro atributos usados anteriormente para descrever o endogrupo e o exogrupo, sendo-lhes pedido para se descreverem a si próprios marcando com uma cruz o lugar apropriado em quatro linhas rectas de 100mm, cujos extremos correspondiam à presença ou ausência de cada atributo (e.g., nada festivo – muito festivo). A partir desta tarefa foram calculadas três medidas seguindo o procedimento de Park e Judd (1990). A medida AUTSC65 reflecte a diferença entre a média obtida na auto-descrição nos atributos estereotípicos e nos atributos contra-estereotípicos. Valores elevados indicam maior conformidade com o estereótipo endogrupal. A medida AUTPN reflecte a diferença entre os atributos positivos e negativos na auto-descrição. Pequenos valores indicam que os participantes se descrevem a si próprios e ao endogrupo de forma muito semelhante. A medida AUTDA reflecte a distância absoluta entre a média obtida na auto-descrição e a média atribuída ao endogrupo (MEDM). Posteriormente, procedemos à operacionalização de novas medidas da distância entre a auto-descrição e a tendência central atribuída ao endogrupo controlando os efeitos da estereotipicalidade dos traços e os efeitos da valência dos traços. Nesse 64 Para cada uma das quatro distribuições, calculámos a tendência central (DISMG = ? PiXi, onde Pi é igual à proporção dos membros da categoria descritos pelo nível i do traço em questão e Xi é o valor da escala desse i), a variabilidade percebida (DISVP = ? Pi(Xi – M)2), e a probabilidade de diferenciação (DISPD = 1 - ? pi2). 65 As medidas derivadas da auto-descrição baseadas na diferença entre traços estereotípicos minus contra- estereótipos foram calculadas da seguinte forma: para os participantes angolanos (S – CS) = ?(alegres + preguiçosos)/2? - ?(trabalhadores + individualistas)/2? enquanto que para os participantes portugueses (S – CS) = ?(trabalhadores + individualistas)/2?- ?(alegres + preguiçosos)/2?.
  • 373. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 373 sentido, recalculámos a medida AUTDA em função do carácter estereotípico ou contra- estereotípico dos traços (AUTDA-SC). De igual modo, recalculámos a medida AUTDA tendo em conta a valência dos traços (AUTDA-PN). A medida AUTDA-SC indica até que ponto a distância da auto-descrição do indivíduo face à tendência central atribuída ao seu endogrupo é maior para os traços estereotípicos ou para os traços contra- estereotípicos (traços estereotípicos vs. traços contra-estereotípicos), enquanto que a medida AUTDA-PN indica até que ponto a distância da auto-descrição do indivíduo face à tendência central atribuída ao seu endogrupo é maior para os traços positivos ou para os traços negativos (traços positivos vs. traços negativos). Nível de identificação grupal. Foi pedido aos participantes para avaliarem em que medida se sentiam identificados com o “grupo dos angolanos” e com o “grupo dos portugueses”, através de uma escala de sete pontos, variando entre 1= “nada identificado” a 7= “muito fortemente”. Nível de contacto grupal. Foi pedido aos participantes para avaliarem o nível de contacto com o endogrupo e com o exogrupo através de três escalas de sete pontos e uma questão aberta 66 . A Tabela 35 especifica as várias medidas de variabilidade grupal percebida, de tendência central percebida e de favoritismo endogrupal derivadas das tarefas do questionário. Estas medidas vão ser a partir de agora designadas pelas respectivas abreviaturas. 66 As questões eram as seguintes: “Gostaríamos de saber qual é o seu grau de familiaridade com os angolanos/ portugueses. Por favor, faça uma cruz no número que corresponde à sua opinião. O seu contacto com os angolanos/ portugueses é …(1=muito distante; 7=muito próximo). Costuma convidar angolanos/portugueses para sair? (1=nunca; 7=sempre). Costuma convidar angolanos/portugueses para ir a sua casa? (1=nunca; 7=sempre). Quantos amigos angolanos/portugueses você tem? (questão aberta).
  • 374. Tabela 35 - Medidas derivadas do questionário e respectivas abreviaturas Tarefas Medidas de variabilidade percebida Medidas de tendência central Medidas de favoritismo endogrupal Percentagens PERSC: traços estereotípicos – traços contra- estereotípicos PERSC(+): traços estereotípicos positivos – traços contra-estereotípicos positivos PERSC(-): traços estereotípicos negativos – traços contra-estereotípicos negativos PERMG PERPN: traços positivos – traços negativos PERPN(S): traços estereotípicos positivos – traços estereotípicos negativos PERPN(CS): traços contra-estereotípicos positivos – traços contra-estereotípicos negativos Médias MEDSC: traços estereotípicos – traços contra- estereotípicos MEDSC(+): traços estereotípicos positivos – traços contra-estereotípicos positivos MEDSC(-): traços estereotípicos negativos – traços contra-estereotípicos negativos MEDMG MEDPN: traços positivos – traços negativos MEDPN(S): traços estereotípicos positivos – traços estereotípicos negativos MEDPN(CS):traços contra-estereotípicos positivos – traços contra-estereotípicos negativos Amplitudes AMPLI: diferença entre extremos Distribuições DISPD: probabilidade de diferenciação (Pd) DISVP: variabilidade percebida DISMG Variabilidade VARIA: variabilidade percebida (valores directos) Auto- descrição AUTSC: traços estereotípicos – traços contra- estereotípicos AUTDA: distância absoluta face à média geral do endogrupo (MEDMG) AUTD-SC: distância face à média geral do endogrupo em função do carácter estereotípico dos traços (S - CS) AUTPN: traços positivos – traços negativos AUTD-PN: distância face à média geral do endogrupo em função da valência avaliativa dos traços (P- N)
  • 375. Racismo e etnicidade em Portugal 375 5.2.2.5 Procedimento de análise de dados Numa fase inicial do tratamento de dados, realizámos análises de variância tendo como variáveis independentes o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo), o grupo do participante (angolanos vs. portugueses), o sexo do participante (masculino vs. feminino), a ordem de apresentação (primeiro angolanos vs. primeiro portugueses) e - no caso das medidas derivadas das tarefas de recordação - a versão do material-estímulo (A vs. B). Como a variável “sexo do participante” não produziu quaisquer efeitos significativos, foram realizadas novas análises sem incluir esta variável. A variável “ordem de apresentação” foi excluída das análises relativas às medidas derivadas do questionário por não ter produzido nenhum efeito significativo nestas medidas, mas foi mantida na análise das medidas derivadas das tarefas de recordação. 5.2.2.5.1 Controlo dos materiais-estímulo e do contexto da experiência Começámos por verificar se existia um consenso entre os participantes angolanos e portugueses quanto ao estatuto social percebido e ao estatuto numérico percebido de ambos os grupos-alvo (ver procedimento de análise de dados do Estudo 2). Seguidamente verificámos se a valência avaliativa e a estereotipicalidade dos traços utilizados para descrever os grupos-alvo tinham sido consideradas da forma prevista pelos participantes na experiência. Este controlo era particularmente importante relativamente aos quatro traços usados para calcular as medidas de variabilidade percebida e de favoritismo que derivam do questionário (festivos, trabalhadores, individualistas e preguiçosos), pois poderia inviabilizar a construção destas medidas (ver procedimento de análise de dados do Estudo 3b). 5.2.2.5.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada Exactidão da recordação. As respostas correctas foram submetidas a uma análise de variância (ANOVA) tendo o grupo do participante, a ordem de apresentação e a versão do material-estímulo como variáveis independentes. Efeito de categorização. Para examinar o efeito de categorização, efectuámos uma análise de variância multivariada (MANOVA) com medidas repetidas no primeiro factor: 2 (tipo de erro: intragrupais vs. intergrupais) x 2 (grupo do participante) x 2 (ordem de apresentação) x 2 (versão do material-estímulo). O efeito de categorização
  • 376. Racismo e etnicidade em Portugal 376 pode ser inferido na medida em que os participantes efectuarem mais os erros intragrupais do que intergrupais, isto é, se verificar um efeito principal do tipo de erro. Efeitos de homogeneidade. Para investigar os efeitos de homogeneidade, os erros intragrupais foram examinados através de uma análise de variância multivariada (MANOVA), com medidas repetidas no primeiro factor: 2 (tipo de erro: erros endogrupais vs. erros exogrupais) x 2 (grupo do participante) x 2 (versão do material- estímulo) x 2 (ordem de apresentação). O efeito de homogeneidade do exogrupo pode ser inferido na medida em que os participantes efectuarem mais erros exogrupais do que endogrupais, isto é, se se verificar um efeito principal da variável tipo de erro. Em contrapartida, a hipótese de assimetria nos efeitos de homogeneidade toma a forma de um efeito de interacção entre o grupo do participante e o grupo-alvo67 . 5.2.2.5.3 Medidas indirectas – Tarefa de recordação livre Quantidade de informação recordada. O número total de atributos correctamente recordados foi submetido a uma análise de variância (ANOVA), tendo como variáveis independentes o grupo do participante (angolanos vs. portugueses), a versão do material-estímulo (A vs. B) e a ordem de apresentação (primeiro angolanos vs. primeiro portugueses). O número total de atributos correctamente recordados foi igualmente submetido a uma análise de variância multivariada (MANOVA), com medidas repetidas no primeiro factor: 2 (grupo-alvo: pessoas-estímulo angolanas vs. pessoas-estímulo 67 A análise dos efeitos de homogeneidade pode ser efectuada de duas formas alternativas: em vez de classificar os erros intragrupais em função da sua relevância para o grupo de pertença do participante (pessoas -estímulo do endogrupo vs. pessoas -estímulo do exogrupo), podemos classifica-los em função do grupo de pertença das pessoas -estímulo (pessoas -estímulo angolanas vs. pessoas -estímulo portuguesas). Neste caso, a nossa hipótese toma a forma de um efeito principal do tipo de erro intragrupal. Isto é, espera-se que tanto os participantes angolanos como os participantes portugueses cometam maior número de erros em relação a alvos angolanos do que a alvos portugueses (efeito de homogeneidade do grupo dominado). Contudo, não necessitamos de efectuar ambas as análises, pois elas são estatisticamente redundantes. Quando temos em conta a relação entre os participantes e as pessoas -estímulo (pessoas-estímulo do endogrupo vs. pessoas-estímulo do exogrupo) o efeito de homogeneidade do exogrupo (ou do endogrupo) corresponde a um efeito principal do tipo de erro intragrupal e o efeito de homogeneidade do grupo dominado corresponde a um efeito de interacção entre o grupo do participante (angolanos vs. portugueses) e o tipo de erro intragrupal. Inversamente, quando temos em conta o estatuto relativo das pessoas -estímulo (pessoas -estímulo angolanas vs. pessoas -estímulo portuguesas), o efeito de homogeneidade do grupo dominado corresponde a um efeito principal do tipo de erro intragrupal e o efeito de homogeneidade do exogrupo (ou do endogrupo) corresponde a um efeito de interacção entre o grupo do participante (angolanos vs. portugueses) e o tipo de erro intragrupal. Como os valores do F, os graus de liberdade e os níveis de significância são exactamente os mesmos nos dois tipos de análise, teremos em conta as duas perspectivas de análise mas, para não tornar o texto demasiado pesado, apresentaremos apenas uma das análises estatísticas: em termos de endogrupo versus exogrupo.
  • 377. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 377 portuguesas) x 2 (grupo do participante) x 2 (versão do material-estímulo) x 2 (ordem da recordação). Efeitos de homogeneidade. Os ARC-scores foram submetidos a uma análise multivariada de variância (MANOVA) com medidas repetidas nos dois últimos factores: 2 (grupo do participante: angolanos vs. portugueses) x 2 (versão do material- estímulo: A vs. B) x 2 (ordem de recordação: as pessoas-estímulo angolanas recordadas em primeiro lugar vs. as pessoas-estímulo portuguesas recordadas em primeiro lugar) x 2 (grupo-alvo: endogrupo vs. exogrupo) x 2 (tipo de organização da informação: organização pessoal vs. organização categorial). Neste caso, a hipótese de assimetria nos efeitos de homogeneidade toma a forma de uma tripla interacção entre o grupo do participante, o grupo-alvo e o tipo de organização da informação. 5.2.2.5.4 Medidas directas – Tarefas de questionário Efeitos de homogeneidade. Os resultados obtidos em cada uma das medidas de variabilidade grupal percebida calculadas a partir do questionário (PERSC, MEDSC, AMPLI, DISPD, DISPV e VARIA) foram submetidos a análises multivariadas de variância tendo o grupo do participante (angolanos vs. portugueses) como variável independente e o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável dependente68 . Neste caso, a hipótese de assimetria nos efeitos de homogeneidade toma a forma de um efeito de interacção entre o grupo do participante e o grupo-alvo. Efeitos de favoritismo. Os resultados obtidos nas medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN) foram igualmente submetidos a análises multivariadas de variância tendo o grupo do participante (angolanos vs. portugueses) como variável independente e o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável dependente. O favoritismo endogrupal é revelado quando é atribuída ao endogrupo uma média superior nos traços positivos comparativamente com o exogrupo, e uma média inferior nos traços negativos, isto é, quando se verifica um efeito principal do grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo). 68 Análises de variância prévias tendo o “sexo do participante” (masculino vs. feminino) e a “ordem de apresentação” (primeiro angolanos vs. primeiro portugueses) como variáveis independentes não produziram quaisquer resultados significativos, pelo que foram realizadas novas análises sem incluir estas variáveis.
  • 378. Racismo e etnicidade em Portugal 378 Relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo Explorámos a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo a partir dos dados provenientes das tarefas de estimação de percentagens e de estimação de médias. Uma vez que os quatro atributos utilizados nestas tarefas permitiam tanto o cálculo de medidas de variabilidade grupal percebida (PERSC e MEDPN) como de medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN), começámos por verificar se existiria uma relação entre estas duas medidas. Assim, os dados referentes a cada uma destas tarefas (estimação de percentagens e estimação de medias) foram analisados através de uma análise de variância multivariada (MANOVA), com medidas repetidas nos três primeiros factores: 2 x (grupo-alvo: endogrupo vs. exogrupo) x 2 (estereotipicalidade dos traços: estereotípico vs. contra- estereotípico) x 2 (valência dos traços: positivos vs. negativos) x 2 (grupo dos participantes: angolanos vs. portugueses). Este tipo de análise de variância, para além de nos permitir confirmar os efeitos da estereotipicalidade dos traços (previamente analisados a partir das PERSC e MEDSC) e os efeitos da valência dos traços (previamente analisados a partir das medidas PERPN e MEDPN), permite-nos averiguar os efeitos conjuntos da estereotipicalidade dos traços e da sua valência, o que nos fornece uma indicação sobre a relação entre os fenómenos em estudo. Neste caso, o favoritismo endogrupal pode ser avaliado pela interacção entre o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo), e a valência dos atributos (positivos vs. negativos). Existe evidência de favoritismo endogrupal quando os participantes atribuem uma maior diferença entre os traços positivos e os traços negativos (P – N) para o endogrupo do que para o exogrupo. Em contrapartida, o efeito de homogeneidade do exogrupo pode ser avaliado pela interacção entre o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) e a estereotipicalidade dos traços (estereotípicos vs. contra-estereotípicos). Existe evidência de o efeito de homogeneidade do exogrupo quando os participantes atribuem uma menor diferença entre os traços estereotípicos e os traços contra-estereotípicos (S – SC) para o endogrupo do que para o exogrupo. Se se verificar uma tripla interacção entre o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo), a estereotipicalidade dos traços (estereotípicos vs. contra-estereotípicos), e a valência dos mesmos (positivos vs. negativos), então poderemos considerar a existência de uma relação entre o efeito de homogeneidade do exogrupo e o favoritismo endogrupal.
  • 379. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 379 Se se verificar uma quádrupla interacção entre o grupo do participante (angolanos vs. portugueses), o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo), a estereotipicalidade dos traços (estereotípicos vs. contra-estereotípicos), e a valência dos mesmos (positivos vs. negativos), então poderemos considerar a existência de uma assimetria na relação entre o efeito de homogeneidade do exogrupo e o favoritismo endogrupal em função do estatuto dos grupos. Dadas as dificuldades de interpretação dos resultados de interacções triplas e, mais ainda, quádruplas, procedemos ao cálculo de novas medidas de variabilidade grupal percebida separadamente para os traços positivos ?PERSC(+) ? e para os traços negativos ?PERSC(-) ?, como explicámos no ponto 5.2.2.4.4. Paralelamente, calculámos duas novas medidas de favoritismo separadamente para traços estereotípicos ?PERPN(S) ?e para traços contra-estereotípicos ?PERPN(CS) ?. Cada uma destas quatro novas medidas (duas de variabilidade grupal percebida e duas de favoritismo endogrupal) foi submetida a análises de variância multivariadas, tendo o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável intra-participantes e o grupo dos participantes (angolanos vs. portugueses) como variável inter-participante. Auto-descrição Começamos por averiguar se existiam diferenças significativas para cada uma das medidas derivadas da tarefa de auto-descrição (AUTSC, AUTPN, AUTDA, AUTD-SC e AUTD-PN) em função do grupo do participante. A medida AUDSC (auto-descrição em função do carácter estereotípico ou contra- estereotípico dos traços para o endogrupo) foi submetida a uma análise de variância multivariada tendo a estereotipicalidade dos traços como variável intra-participantes e o grupo dos participantes como variável inter-participantes. A medida AUDPN (auto-descrição em função do carácter positivo ou negativo dos traços) foi submetida a uma análise de variância multivariada tendo como variável intra-participantes a valência dos traços e como variável inter-participantes o grupo dos participantes. A medida AUTDA (distância absoluta face à media do endogrupo) foi submetida a uma análise de variância simples tendo como variável independente o grupo dos participantes.
  • 380. Racismo e etnicidade em Portugal 380 A medida AUTDA-SC indica até que ponto a distância da auto-descrição do indivíduo face à tendência central atribuída ao seu endogrupo é maior para os traços estereotípicos ou para os traços contra-estereotípicos. Esta medida foi submetida a uma análise de variância multivariada tendo a estereotipicalidade dos traços como variável intra-participantes e o grupo dos participantes como variável inter-participantes. A medida AUTDA-PN indica até que ponto a distância da auto-descrição do indivíduo face à tendência central atribuída ao seu endogrupo é maior para os traços positivos ou para os traços negativos. Esta medida foi submetida a uma análise de variância multivariada tendo a estereotipicalidade dos traços como variável intra- participantes e o grupo dos participantes como variável inter-participantes. Seguidamente, analisámos as correlações entre as medidas derivadas da tarefa de auto-descrição dos participantes e as diferentes medidas de variabilidade grupal percebida (PERSC, MEDSC, AMPLI, VARIA, DISPV e DISPD). Em primeiro lugar, verificámos se a discrepância entre a auto-descrição e a tendência central do endogrupo permitia predizer a variabilidade grupal percebida. Assim, investigámos as correlações entre a distância absoluta face à media geral do endogrupo e várias medidas de variabilidade grupal percebida. Em segundo lugar, averiguámos se o facto de o indivíduo se descrever em consonância com os estereótipos do seu grupo estaria relacionado com uma percepção do endogrupo como mais ou menos homogéneo. Nível de identificação grupal Os valores de identificação endogrupal e exogrupal foram analisados através de uma análise de variância multivariada, tendo o grupo-alvo de identificação (endogrupo vs. exogrupo) como variável dependente e o grupo dos participantes como variável independente. No caso dos participantes angolanos analisámos também a influência do tempo de permanência no país de acolhimento nos níveis de identificação nacional e exogrupal. Nesse sentido, dividimos a amostra dos estudantes angolanos em dois grupos (com base no valor da mediana da variável tempo de permanência em Portugal): aqueles que residem há menos de 6 anos em Portugal; e aqueles que residem há mais de 6 anos em Portugal. As medidas de identificação (endogrupal vs. exogrupal) foram submetidas a uma análise de variância multivariada tendo o grupo-alvo de identificação como variável
  • 381. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 381 intra-participantes e o tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) como variável inter-participantes. Realizámos também duas análises de variância tendo como variável independente o tempo de permanência em Portugal, uma tendo o nível de identificação endogrupal como variável dependente e outra tendo o nível de identificação exogrupal como variável dependente. Para analisar o impacto da identificação grupal nos efeitos de homogeneidade e nos efeitos de favoritismo, efectuámos uma classificação dos participantes de ambos os grupos, tendo em conta o valor da mediana de cada grupo para cada uma das medidas (identificação endogrupal e identificação exogrupal), dividindo assim os participantes em “fortemente identificados” e “fracamente identificados”. (Para os participantes angolanos a mediana da identificação endogrupal foi =6 e a mediana da identificação exogrupal foi =3; para os participantes portugueses a mediana da identificação endogrupal foi =6 e a mediana da identificação exogrupal foi =2). Analisámos o impacto do grau de identificação endogrupal e exogrupal em diversas medidas de variabilidade grupal percebida (PERSC, MEDSC, AMPLI e VARIA) e nas duas medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN). Para cada uma destas medidas foi efectuada uma análise de variância multivariada, tendo a identificação endogrupal, a identificação exogrupal e o grupo do participante como variáveis inter-participantes e o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável intra-participante. Nível de contacto Os valores referentes aos níveis de contacto foram submetidos a análises de variância multivariada tendo o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável intra-participantes e o grupo do participante como variável inter-participante. Foram efectuadas duas análises separadas: uma para o nível de familiaridade (correspondente à média das três escalas) e outra ao número de amigos69 . Tal como efectuámos em relação aos níveis de identificação, analisámos os níveis de contacto endogrupal e exogrupal dos participantes angolanos em função do seu tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos). As medidas de familiaridade (endogrupo vs. exogrupo) foram submetidas a uma análise de variância multivariada tendo o grupo-alvo de identificação como variável intra-participantes e o 69 Foram excluídos da análise 8 participantes angolanos por referirem um número de amigos igual ou superior a 1000.
  • 382. Racismo e etnicidade em Portugal 382 tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) como variável inter-participantes. Realizámos também duas análises de variância tendo como variável independente o tempo de permanência em Portugal, uma tendo o nível de familiaridade endogrupal como variável dependente e outra tendo o nível de familiaridade exogrupal como variável dependente. Para analisar o impacto do nível de contacto endogrupal e do nível de contacto exogrupal nos efeitos de homogeneidade e no favoritismo endogrupal, efectuámos uma classificação dos participantes de ambos os grupos, tendo em conta o valor da mediana de cada grupo para cada uma das medidas (contacto endogrupal e contacto exogrupal), dividindo assim os participantes conforme o alto ou baixo nível de contacto. (Para os participantes angolanos a mediana do contacto endogrupal foi =6 e a mediana do contacto exogrupal foi =4.67; para os participantes portugueses a mediana do contacto endogrupal foi =6.33 e a mediana do contacto exogrupal foi =2.00). Analisámos o impacto do grau de contacto endogrupal e exogrupal em diversas medidas de variabilidade grupal percebida (PERSC, MEDSC, AMPLI e VARIA) e nas duas medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN). Para cada uma destas medidas foi efectuada uma análise de variância multivariada, tendo como variáveis inter- participantes o contacto endogrupal, o contacto exogrupal e o grupo do participante e como variável intra-participante o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo).
  • 383. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 383 5.2.3 Resultados 5.2.3.1 Controlo dos materiais-estímulo e do contexto da investigação Antes de analisar os dados relativos aos efeitos de categorização e de homogeneidade, que constituem o aspecto central da nossa análise de resultados, é importante controlar vários aspectos que se prendem com o contexto desta experiência. O estatuto social percebido de ambos os grupos para os participantes angolanos e portugueses, afigura-se como um aspecto central a controlar. Os resultados do Estudo 2, realizado com o objectivo de averiguar o estatuto social percebido e o estatuto numérico percebido dos diferentes grupos étnicos em Portugal, indicaram que os portugueses são percebidos como o grupo maioritário e dominante, enquanto que os angolanos são percebidos como um grupo minoritário e dominado. No entanto, os participantes neste estudo eram todos de nacionalidade e naturalidade portuguesas, pelo que se torna necessário averiguar o consenso na percepção do estatuto destes grupos. 5.2.3.1.1 Estatuto social percebido Os participantes nesta experiência atribuem um estatuto social mais elevado aos portugueses (M=57.80) do que aos angolanos (M=27.96), F(1,158)=290.50, p<0.0001. Os estudantes portugueses percebem o endogrupo (M=55.80) como tendo um estatuto significativamente mais elevado do que o exogrupo (M=26.12), F(1,158)=230.49, p<0.0001, enquanto que os estudantes angolanos percebem o exogrupo (M=61.81) como tendo um estatuto significativamente mais elevado do que o endogrupo (M=31.76), F(1,158)=104.27, p<0.0001. Estes resultados mostram que existe um consenso no estatuto relativo atribuído a cada um dos grupos: tanto os participantes angolanos como os portugueses atribuem significativamente maior estatuto aos portugueses do que aos angolanos residentes em Portugal. 5.2.3.1.2 Estatuto numérico percebido Quanto ao tamanho relativo dos grupos, os participantes percebem os portugueses como sendo o grupo maioritário (M=62%) e os angolanos como sendo um grupo minoritário (M=7%), F(1,145)=688.30, p<0.0001. Curiosamente, tanto os participantes angolanos como os participantes portugueses sobrestimam a percentagem de angolanos residentes em Portugal (respectivamente, M=8% e M=6%), quando na realidade não
  • 384. Racismo e etnicidade em Portugal 384 chega aos 0.03%) e subestimaram a percentagem de portugueses (respectivamente, M=62% e M=68%, quando na realidade ultrapassa os 97%). Estes resultados estão em consonância com os obtidos no Estudo 2 que demonstraram que os portugueses são percebidos como o grupo dominante e os angolanos como um grupo dominado na sociedade portuguesa. Os resultados mostraram, como previsto, que existe um consenso no estatuto relativo atribuído a cada grupo: tanto os participantes portugueses como os participantes angolanos atribuíram um estatuto social significativamente mais elevado aos portugueses do que aos angolanos residentes em Portugal. 5.2.3.1.3 Estereotipicalidade e valência dos traços Outro aspecto central a controlar era a estereotipicalidade e a valência avaliativa dos traços. Para o cálculo das medidas de variabilidade e favoritismo previstas era necessário que os participantes na experiência reproduzissem os resultados obtidos no Estudo 3b nos traços escolhidos para a descrição dos grupos-alvo. Os resultados foram idênticos ao do Estudo 3b tanto no que respeita à estereotipicalidade dos traços como no que respeita à sua valência avaliativa, o que viabilizou o cálculo das diversas medidas previstas. Assim os traços festivos e preguiçosos foram considerados estereotípicos dos angolanos e os traços trabalhadores e individualistas foram considerados estereotípicos dos portugueses. Os traços festivos e trabalhadores foram considerados positivos e os traços preguiçosos e individualistas foram considerados negativos. 5.2.3.2 Tarefa de recordação indiciada Como referimos na secção dedicada ao método, a tarefa de recordação indiciada permite o cálculo das respostas correctas assim como dos diferentes tipos de erros (ou confusões entre as pessoas-estímulo). Os diferentes tipos de erro podem ser usados para avaliar em que medida os participantes percebem os grupos de forma mais ou menos homogénea. Contudo, antes de examinarmos os efeitos de homogeneidade, devemos certificar-nos que a quantidade de respostas correctas não diferiu significativamente em função da versão do material-estímulo nem em função do grupo dos participantes.
  • 385. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 385 Devemos igualmente certificar-nos que ambos os grupos categorizaram as pessoas- estímulo, e que este efeito de categorização não variou significativamente em função das variáveis independentes deste estudo (grupo dos participantes, versão do material- estímulo, e ordem de apresentação). 5.2.3.2.1 Exactidão da recordação Antes de testarmos os efeitos das variáveis independentes nos erros, que são particularmente relevantes para as nossas hipóteses, calculámos as respostas correctas. A média global de respostas correctas foi 15.75, como se pode constatar na Tabela 36. Tal como esperávamos não se verificou qualquer efeito significativo ligado à ordem de apresentação nem à versão do material-estímulo. No entanto, verificou-se um efeito principal do grupo do participante tendencialmente significativo: os participantes portugueses apresentam uma média superior de respostas correctas (M=16.40) do que os participantes angolanos (M=13.95), ?F(1,71)=3.57, p<0.063?. Tal poderá dever-se ao facto dos angolanos que participaram nesta experiência serem significativamente mais velhos do que os portugueses (a idade média dos participantes angolanos é de 25 anos enquanto que a idade média dos participantes portugueses é de 21 anos, como referimos aquando da descrição da amostra). Tabela 36 - Médias e desvios-padrão das respostas correctas em função do grupo do participante e do grupo-alvo Grupo-alvoGrupo do participante Angolanos Portugueses Total Angolanos (N=21) 6.48 (2.32) 7.36 (2.61) 13.95 (4.08) Portugueses (N=58) 7.48 (2.75) 9.03 (3.47) 16.40 (4.94) Total (N=79) 7.13 (2.55) 8.62 (3.35) 15.75 (4.82) Nota: As respostas correctas poderiam variar entre 0 e 32. Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o número de “respostas correctas”70 : Grupo: F(1,71)=3.57, p<0.063 70 Por uma questão de economia de espaço na apresentação dos resultados das análises de variância efectuadas nos estudos experimentais utilizaremos as seguintes abreviaturas : Grupo = Grupo do participante (angolanos vs. portugueses) ; Ordem = Ordem de apresentação (primeiro angolanos vs. primeiro portugueses) ; e Versão = Versão do material-estímulo (A vs. B).
  • 386. Racismo e etnicidade em Portugal 386 5.2.3.2.2 Efeito de categorização O nosso desenho experimental só será apropriado para analisar os efeitos de homogeneidade se os participantes efectivamente categorizarem as pessoas-estímulo em grupos étnicos e se esse efeito se verificar em ambas as versões do material-estímulo. Na medida em que os participantes categorizarem os alvos em grupos, os erros intragrupais serão superiores aos erros intergrupais (efeito de categorização). A Tabela 37 apresenta as médias e desvios-padrão dos erros em função do grupo do participante. Consistentemente com as nossas hipóteses, observou-se um efeito principal do tipo de erro muito significativo: o número de erros intragrupais (M=12.10) foi significativamente superior ao número de erros intergrupais (M=3.11), ?F(1,71)=203.31, p<0.0001?. A proporção de erros intragrupais e intergrupais demonstra que os participantes efectivamente categorizaram as pessoas-estímulo em diferentes grupos. Os participantes mostraram uma tendência muito mais forte para confundir a informação referente aos membros do mesmo grupo étnico (erros intragrupais) do que a informação referente a grupos étnicos diferentes (erros intergrupais). Tabela 37 - Médias e des vios-padrão dos erros intragrupais e intergrupais em função do grupo do participante e do grupo-alvo Tipo de erro Grupo do participante erros intragrupais erros intergrupais Total Angolanos (N=21) 13.81 (4.50) 3.18 (2.09) 16.99 (4.01) Portugueses (N=58) 11.48 (3.94) 3.09 (2.50) 14.57 (4.48) Total (N=79) 12.10 (4.20) 3.11 (2.38) 15.22 (4.47) Nota: Os erros poderiam variar entre 0 e 32. Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o Tipo de erro (erros intragrupais vs. erros intergrupais): Tipo de erro: F(1,71)=203.31, p<0.0001 Grupo x Tipo de erro: F(1,71)=4.05, p<0.048 Angolanos: F(1,71)=90.86, p<0.0001 Portugueses: F(1,71)=156.38, p<0.0001
  • 387. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 387 O efeito de interacção entre o tipo de erro e o grupo do participante também foi significativo, indicando que os angolanos fazem mais erros do que os portugueses ?F(1,71)=4.05, p<0.048?. As análises de contrastes mostraram que o efeito principal do tipo de erro foi muito significativo tanto para os participantes angolanos ?F(1,71)=90.86, p<0.0001? como para os participantes portugueses ?F(1,71)=156.38, p<0.0001?. Isto é, tanto os membros do grupo dominante como os membros do grupo dominado estruturaram a informação a partir da pertença étnica das pessoas-estímulo. Tal como esperávamos, a interacção entre o tipo de erro e a ordem de apresentação não foi significativa, nem a interacção entre o tipo de erro e a versão do material-estímulo. Resumindo, estes resultados demonstram que os participantes efectivamente categorizaram as pessoas-estímulo em dois grupos (angolanos vs. portugueses) independentemente da ordem de apresentação e da versão do material (A vs. B), validando assim o uso destes materiais-estímulo para a análise de questões relacionadas com a percepção de grupos. 5.2.3.2.3 Efeitos de homogeneidade Para investigar os efeitos de homogeneidade, repartimos os erros intragrupais tendo em conta a relação entre o grupo de pertença do participante e o grupo de pertença da pessoa-estímulo: erros endogrupais vs. erros exogrupais (ver ponto 5.2.2.4.2). A Tabela 38 apresenta as médias e desvios-padrão desses erros em função do grupo do participante.
  • 388. Racismo e etnicidade em Portugal 388 Tabela 38 - Médias e desvios-padrão dos erros endogrupais e exogrupais em função do grupo do participante e do grupo-alvo Tipo de erro Grupo do participante erros endogrupais erros exogrupais Total Angolanos (N=21) 7.19 (2.46) 6.62 (2.75) 13.81 (4.50) Portugueses (N=58) 4.88 (3.10) 6.60 (2.13) 11.48 (3.94) Total (N=79) 5.49 (3.10) 6.61 (2.29) 12.10 (4.20) Nota: Os erros poderiam variar entre 0 e 16. Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o Tipo de erro (erros endogrupais vs. erros exogrupais): Tipo de erro: F(1,71)=2.56, p<0.114 Grupo x Tipo de erro: F(1,71)=6.64, p<0.012 Angolanos: F(1,71)=0.63, p<0.428 Portugueses: F(1,71)=15.96, p<0.0002 O efeito principal do tipo de erro intragrupal (erros endogrupais vs. erros exogrupais) não atingiu o limiar de significância estatística, demonstrando a ausência de um efeito de homogeneidade do exogrupo para a globalidade da amostra. Consistentemente com as nossas hipóteses, verificou-se um efeito de interacção significativo entre o grupo do participante e o tipo de erro intragrupal, ?F(1,71)=6.64, p<0.012?. As análises de contrastes realizadas demonstraram que os participantes portugueses efectuaram significativamente mais erros exogrupais (M = 6.60) do que erros endogrupais (M = 4.88), isto é, os angolanos são mais homogeneizados do que os portugueses ?F(1,71)=15.96, p< 0.0002?. Em contrapartida, os participantes angolanos efectuaram mais erros endogrupais (M = 7.19) do que exogrupais (M = 6.62), mas esta diferença não foi estatisticamente significativa. 5.2.3.3 Tarefa de recordação livre A tarefa de recordação indiciada não permite testar a quantidade de recordação porque é fornecida aos participantes toda a informação respeitante às pessoas-estímulo. Para nos certificarmos de que os efeitos de homogeneidade verificados não são devidos à capacidade de memorização diferencial para o endogrupo e para o exogrupo, mas sim
  • 389. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 389 devido à tendência dos participantes para organizarem a informação respeitante ao endogrupo e ao exogrupo de forma diferencial, foi efectuada uma tarefa de recordação livre. 5.2.3.3.1 Quantidade de informação recordada De acordo com as nossas hipóteses, o estatuto relativo dos grupos afectaria a organização cognitiva da informação, mas não a quantidade de informação recordada (Cf: Sedikides, 1997). A média total de atributos recordados é de 16.40, como se pode verificar na Tabela 39. Como foi referido na secção dedicada ao procedimento de análise de dados (ponto 5.2.2.5.3), o número total de atributos correctamente recordados foi submetido a duas análises de variância: uma análise de variância simples para verificar se o número total de atributos correctamente recordados diferia em função do grupo do participante, da ordem e da versão do material-estímulo; e uma análise de variância com medidas repetidas (grupo-alvo: endogrupo vs. exogrupo). Tal como esperávamos, o número total de atributos correctamente recordados não variou significativamente em função da ordem de apresentação nem no que respeita à versão do material-estímulo, o que valida o uso destes materiais. No entanto, verificou- se um inesperado efeito principal significativo do grupo do participante: os participantes portugueses apresentam uma média superior de atributos recordados (M=17.60) do que os participantes angolanos (M=14.65), ?F(1,76)=10.692, p<0.002?. Tal como referimos para a tarefa de recordação indiciada, tal poderá dever-se à diferença de idade dos participantes angolanos e portugueses, uma vez que estes últimos são significativamente mais jovens, sendo a capacidade de memorização muito influenciada pela idade. A análise multivariada de variância produziu um efeito significativo do grupo- alvo, revelando que os participantes recordaram maior quantidade de informação sobre as pessoas-estímulo portuguesas (M=8.70) do que das pessoas-estímulo angolanas (M=7.70), ?F(1,76)=8.42, p<0.005?. A interacção entre o grupo-alvo e o grupo de pertença dos participantes não foi significativa. Não surpreendentemente, verificou-se uma interacção significativa entre o grupo- alvo e a ordem de recordação ?F(1,76)=7.94, p<0.006?. Quando a informação respeitante às pessoas-estímulo portuguesas era recordada em primeiro lugar (ordem 2), os participantes recordaram mais informação sobre as pessoas-estímulo portuguesas
  • 390. Racismo e etnicidade em Portugal 390 (M=9.16) do que as pessoas-estímulo angolanas (M=7.36), ?F(1,76)=20.14, p<0.0001?. Em contrapartida, quando a informação respeitante às pessoas-estímulo angolanas era recordada em primeiro lugar (ordem 1), os participantes recordaram sensivelmente a mesma quantidade de informação sobre as pessoas-estímulo portuguesas (M=8.20) e as pessoas-estímulo angolanas (M=8.07). Tabela 39 - Médias e desvios-padrão do número total de atributos correctamente recordados em função do grupo do participante e do grupo-alvo Grupo-alvoGrupo do participante Angolanos Portugueses Total Angolanos (N=34) 7.06 (2.49) 7.59 (2.31) 14.65 (3.75) Portugueses (N=50) 8.14 (2.59) 9.46 (2.37) 17.60 (4.22) Total (N=84) 7.70 (2.59) 8.70 (2.51) 16.40 (4.27) Nota: O número total de atributos recordados poderia variar entre 0 e 32. Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o número de “atributos recordados”: Grupo: F(1,76)=10.692, p<0.002 Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o número de “atributos recordados” (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,76)=8.42, p<0.005 Grupo x Grupo-alvo: F(1,76)=2.05, p<0.157 5.2.3.3.2 Efeitos de homogeneidade Como foi anteriormente referido, a tarefa de recordação livre permite uma análise alternativa da estrutura da informação recuperada (Ostrom et al., 1993; Sedikides, 1997). A descrição das pessoas-estímulo oferecia uma base para duas formas ortogonais de organizar a informação, quer em termos pessoais (Manuel, José, etc.) quer em termos das categorias de atributos (família, trabalho, etc.). Neste caso, a hipótese da assimetria nos efeitos de homogeneidade foi testada a partir do cálculo de dois tipos de clustering scores: organização da informação em termos pessoais (ARC-scores pessoais) ou em termos das categorias de atributos (ARC- scores categoriais). Como referimos na secção dedicada ao método, para cada participante calculámos quatro ARC-scores: um ARC-score reflecte o clustering em função das pessoas do
  • 391. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 391 endogrupo; outro em função dos atributos do endogrupo; outro em função de pessoas do exogrupo; e outro em função dos atributos do exogrupo. A Tabela 40 apresenta as médias dos ARC-scores em função do grupo-alvo e do grupo do participante. Mais uma vez, esperávamos observar uma assimetria nos efeitos de homogeneidade, com uma maior homogeneização do grupo-alvo de menor estatuto. Neste caso, a nossa hipótese toma a forma de uma tripla interacção entre o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo), o grupo do participante (angolanos vs. portugueses) e o tipo de organização da informação (pessoal vs. categorial). Mais precisamente, a informação sobre as pessoas-estímulo portuguesas seria organizada preferencialmente em torno de “pessoas” (um ARC-score pessoal superior ao ARC-score categorial), enquanto que a informação sobre as pessoas-estímulo angolanas seria organizada preferencialmente em torno de “categorias de atributos” (um ARC-score categorial superior ao ARC-score pessoal). Tal como esperávamos, não se verificaram quaisquer efeitos significativos ligados à versão do material-estímulo nem à ordem de apresentação. A interacção entre o grupo- alvo (endogrupo vs. exogrupo) e o tipo de organização da informação (pessoal vs. categorial) foi tendencialmente significativa ?F(1,76)=3.10, p<0.082?. A esperada tripla interacção entre o grupo-alvo, o grupo do participante e o tipo de organização da informação também foi tendencialmente significativa ?F(1,76)=3.19, p<0.078?. Esta interacção foi decomposta no sentido de se examinar a interacção entre o grupo-alvo e o tipo de organização da informação separadamente para os participantes angolanos e portugueses. Os participantes angolanos demonstraram um efeito de homogeneidade do endogrupo significativo, uma vez que processaram a informação sobre o endogrupo preferencialmente em termos categoriais (M=0.16) em vez de em termos de pessoas (M=-0.02), mas processaram a informação sobre o exogrupo em torno de pessoas (M=0.84) mais do que em torno de categoriais de atributos (M=-0.62), F(1,76)=4.55, p<0.036. Em contrapartida, a interacção entre o grupo-alvo e o tipo de organização da informação não foi significativa para os participantes portugueses, F(1,76)=0.01, p<0.942.
  • 392. Racismo e etnicidade em Portugal 392 Tabela 40 - Médias dos ARC-scores em função do grupo do participante, do grupo-alvo, e do tipo de organização da informação Tipo de organização da informação Grupo dos participantes Arc-scores pessoais Arc-scores categorais Angolanos (N=34) Endogrupo Exogrupo -0.02 0.84 0.16 -0.62 Portugueses (N=50) Endogrupo Exogrupo -0.15 -0.25 0.31 0.26 Total (N=84) Endogrupo Exogrupo -0.10 0.20 0.25 -0.10 Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre os “ARC-scores” em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) e do Tipo de organização da informação (pessoal vs. categorial): Grupo-alvo x Tipo de organização: F(1,76)=3.10, p<0.082 Grupo x Grupo-alvo x Tipo de organização: F(1,76)=3.19, p<0.078 Angolanos: F(1,76)=4.55, p<0.036 Portugueses: F(1,76)=0.01, p<0.942 Resumindo, em consonância com as nossas hipóteses, encontrámos uma assimetria no processamento da informação em função do estatuto relativo dos grupos. Os membros do grupo dominado processaram a informação referente ao endogrupo preferencialmente em termos categoriais (e.g., família, trabalho, etc.) e, simultaneamente, processaram a informação referente ao exogrupo preferencialmente em termos pessoais (e.g., José, Paulo, etc.), isto é, homogeneizaram o endogrupo e individualizaram o exogrupo. Para os membros do grupo dominante não foram encontrados efeitos estatisticamente significativos. 5.2.3.4 Tarefas do questionário 5.2.3.4.1 Efeitos de homogeneidade Como referimos na secção dedicada ao procedimento de análise dos dados (ponto 5.2.2.4.4), os resultados obtidos em cada uma das medidas de variabilidade grupal percebida derivadas do questionário (PERSC, MEDSC, AMPLI, DISPD, DISPV e VARIA) foram submetidos a análises multivariadas de variância tendo o grupo do participante como variável independente e o grupo-alvo como variável dependente. Tal como nas medidas indirectas baseadas na recordação da informação, esperávamos encontrar uma assimetria nos efeitos de homogeneidade em função do estatuto relativo dos grupos, mais concretamente, esperávamos que o grupo-alvo de estatuto mais baixo
  • 393. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 393 (os angolanos) fosse mais homogeneizado do que o grupo alvo de estatuto mais elevado (os portugueses). Neste caso, a hipótese de assimetria nos efeitos de homogeneidade concretiza-se num efeito de interacção entre o grupo do participante e o grupo-alvo. A Tabela 41 apresenta os resultados das duas medidas de variabilidade grupal percebida baseadas na diferença entre os traços estereotípicos e os contra-estereotípicos (PERSC e MEDSC). O valor desta diferença (S – CS) reflecte a força do estereótipo: valores elevados indicam menor variabilidade grupal percebida enquanto que valores baixos indicam maior variabilidade grupal percebida, isto é, menor conformidade com o estereótipo grupal. Tabela 41 - Médias e desvios-padrão das medidas PERSC e MEDSC em função do grupo do participante e do grupo-alvo Grupo do participante Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163)Medidas Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo PERSC S CS S – CS 69.88 (14.97) 37.35 (14.23) 32.53 (18.15) 70.45 (21.86) 35.25 (17.17) 35.20 (26.10) 54.67 (16.07) 48.69 (16.58) 5.97 (21.05) 57.00 (17.27) 40.40 (17.28) 16.60 (24.89) 59.74 (17.24) 44.91 (16.68) 14.82 (23.68) 61.54 (19.93) 38.66 (17.37) 22.88 (26.72) MEDSC S CS S – CS 72.92 (13.04) 39.15 (17.16) 33.76 (24.79) 74.63 (20.41) 42.75 (22.13) 31.87 (32.52) 57.35 (16.50) 51.64 (15.26) 5.70 (22.44) 62.28 (16.50) 41.56 (16.49) 20.71 (24.57) 62.63 (17.06) 47.40 (16.95) 15.23 (26.75) 66.44 (18.79) 41.97 (18.52) 24.48 (27.91) Nota: S = Média dos traços estereotípicos; CS = Média dos traços contra-estereotípicos. Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida PERSC em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,160)=7.70, p<0.006 Grupo x Grupo-alvo: F(1,160)=2.70, p<0.102 Angolanos: F(1,160)=0.48, p<0.489 Portugueses: F(1,160)=14.63, p<0.0002 Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida MEDSC em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,160)=5.52, p<0.020 Grupo x Grupo-alvo: F(1,160)=9.15, p<0.003 Angolanos: F(1,160)=0.17, p<0.678 Portugueses: F(1,160)=21.28, p<0.0001
  • 394. Racismo e etnicidade em Portugal 394 No que respeita à medida PERSC, verificou-se um efeito significativo do grupo- alvo, revelando um efeito de homogeneidade do exogrupo em termos globais: os participantes atribuíram uma maior diferença entre os traços estereotípicos e contra- estereotípicos ao exogrupo (S – CS = 22.88) do que ao endogrupo (S – CS = 14.82), ?F(1,160) = 7.70, p < 0.006?. O efeito de interacção entre o grupo do participante e o grupo-alvo não alcançou o limiar de significância estatística, ?F(1,160)=2.70, p<0.101?. A análise do efeito principal do grupo-alvo separadamente para cada grupo de participantes, revelou que os participantes portugueses estabeleceram uma maior diferença entre os traços estereotípicos e contra-estereotípicos para o exogrupo (S - CS=16.60) do que para o endogrupo (S - CS=5.97), ?F(1,160)=14.63, p<0.0002?, enquanto que esta diferença não foi estatisticamente significativa para os participantes angolanos. O padrão de resultados da medida MEDSC foi ligeiramente diferente. Verificou-se um efeito principal do grupo-alvo significativo, revelando um efeito de homogeneidade do exogrupo global. Isto é, os participantes acentuaram a diferença entre os traços estereotípicos e os contra-estereotípicos para o exogrupo (S - CS=24.48) do que para o endogrupo (S-CS=15.23), ?F(1,160)=5.52, p<0.020?. A interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante também foi significativa, ?F(1,160)=9.15, p<0.003?. Análises de contrastes revelaram que os participantes portugueses estabeleceram uma maior diferença entre os traços estereotípicos e os contra-estereotípicos do exogrupo (S - CS=20.71) do que do endogrupo (S - CS=5.70), ?F(1,160)=53.03, p<0.0001?, enquanto que os participantes angolanos atribuíram uma maior diferença entre os traços estereotípicos e os contra- estereotípicos do endogrupo (S - CS=33.76) do que do exogrupo (S - CS=31.87), mas esta diferença não foi estatisticamente significativa. Resumindo, ambas as medidas baseadas na diferença de atribuição de traços estereotípicos e contra-estereotípicos revelaram um efeito de homogeneidade do exogrupo para a globalidade da amostra. No entanto, as análises de contrastes mostraram que este efeito foi muito significativo para os membros do grupo dominante (participantes portugueses), visto que estes atribuíram maior conformidade aos estereótipos grupais ao exogrupo do que ao endogrupo, mas não significativo para os membros do grupo dominado (participantes angolanos). A Tabela 42 apresenta os resultados da medida AMPLI (diferença média entre os membros mais extremos do grupo nos quatro traços considerados para a descrição).
  • 395. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 395 Valores mais elevados correspondem a maior amplitude, isto é, a variabilidade grupal percebida. A análise dos dados relativos à medida AMPLI produziu um efeito do grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) não significativo, isto é, globalmente os participantes não demonstraram um efeito de homogeneidade do exogrupo significativo. A interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante foi significativa, revelando a esperada assimetria nos efeitos de homogeneidade, ?F(1,161)=10.11, p<0.002?. As análises de contrastes demonstraram que o efeito de homogeneidade do exogrupo foi significativo para os participantes portugueses, visto que estes atribuíram uma maior diferença entre os membros extremos do endogrupo (M=62.59) do que do exogrupo (M=54.47), ?F(1,161)=11.30, p<0.001?. Em contraste, os participantes angolanos estabeleceram uma maior diferença entre os membros extremos do exogrupo (M=37.08) do que do endogrupo (M=31.98), mas esta diferença não atingiu o limiar da significância estatística, ?F(1,161)=2.27, p<0.134?. Tabela 42 - Médias e desvios-padrão da medida AMPLI em função do grupo do participante e do grupo-alvo Grupo do participante Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163) Medida Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo AMPLI 31.98 (33.11) 37.08 (23.42) 62.59 (23.96) 54.47 (27.39) 52.26 (30.91) 48.60 (27.32) Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida AMPLI em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,161)=0.53, p<0.469 Grupo x Grupo-alvo: F(1,161)=10.11, p<0.002 Angolanos: F(1,161)=2.27, p<0.134 Portugueses: F(1,161)=11.30, p<0.001 A Tabela 43 apresenta os resultados da medida VARIA (variabilidade grupal atribuída directamente pelos participantes). Valores mais elevados correspondem a maior variabilidade grupal percebida. A análise realizada sobre os valores da medida VARIA produziu um significativo efeito principal do grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo), demonstrando que na sua globalidade os participantes homogeneizaram mais o exogrupo (M=3.73) do que o
  • 396. Racismo e etnicidade em Portugal 396 endogrupo (M=4.41), ?F(1,158)=20.84, p<0.0005?. A interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante não atingiu o limiar de significância estatística, ?F(1,158)=1.89, p<0.172?. A análise do efeito principal do grupo-alvo separadamente para cada grupo de participantes revelou que os participantes portugueses homogeneizaram mais o exogrupo (M=3.64) do que o endogrupo (M=4.43), demonstrando um efeito de homogeneidade do exogrupo muito significativo, ?F(1,158)=6.12, p<0.0001?. Este efeito foi também significativo, mas mais fraco, para os participantes angolanos (M=4.38 para o endogrupo e =3.91 para o exogrupo), ?F(1,158)=3.84, p<0.052?. Tabela 43 - Médias e desvios-padrão da medida VARIA em função do grupo do participante e do grupo-alvo Grupo do participante Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163) Medida Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo VARIA 4.38 (1.48) 3.91 (1.69) 4.43 (1.17) 3.64 (1.23) 4.41 (1.28) 3.73 (1.40) Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida VARIA em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,158)=20.84, p<0.0001 Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=1.89, p<0.172 Angolanos: F(1,158)=3.84, p<0.052 Portugueses: F(1,158)=26.12, p<0.0001 A partir da tarefa de distribuição calculámos duas medidas de variabilidade grupal percebida: probabilidade de diferenciação (DISPD) e variabilidade percebida (DISVAR). A Tabela 44 apresenta os resultados destas duas medidas (resultados médios dos quatro traços utilizados na tarefa de distribuição). Valores mais elevados correspondem a maior variabilidade grupal percebida. A análise de variância efectuada com os valores da medida DISPD não produziu quaisquer efeitos significativos. A probabilidade de diferenciação foi similar para o endogrupo (M=0.73) e para o exogrupo (M=0.74), isto é, globalmente não se verificou o efeito de homogeneidade do exogrupo. A interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante também não foi significativa. A análise de variância efectuada com os valores da medida DISVAR produziu um efeito principal do grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) significativo: globalmente, os participantes homogeneizaram mais o endogrupo (M=2.25) que o exogrupo (M=2.38),
  • 397. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 397 demonstrando um efeito de homogeneidade do endogrupo, ?F(1,161)=11.91, p<0.001?. A interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante também foi significativa, ?F(1,161)=5.91, p<0.016?. Análises de contrastes revelaram que os participantes angolanos homogeneizaram mais o endogrupo (M=2.22) do que o exogrupo (M=2.50), demonstrando um efeito de homogeneidade do endogrupo muito significativo, ?F(1,161)=13.05, p<0.0004?. Contudo, os participantes portugueses homogeneizaram de igual forma o endogrupo (M=2.27) e o exogrupo (M=2.31). Tabela 44 - Médias e desvios-padrão das medidas DISPD e DISVAR em função do grupo do participante e do grupo-alvo Grupo do participante Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163) Medidas Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo DISPD 0.70 (0.13) 0.71 (0.11) 0.75 (0.08) 0.75 (0.06) 0.73 (0.10) 0.74 (0.08) DISVAR 2.22 (1.03) 2.50 (1.05) 2.27 (0.75) 2.31 (0.74) 2.25 (0.85) 2.38 (0.86) Análise dos efeitos do Grupo na medida DISVP em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,161)=11.91, p<0.001 Grupo x Grupo-alvo: F(1,161)=5.91, p<0.016 Angolanos: F(1,161)=13.05, p<0.0005 Portugueses: F(1,161)=0.77, p<0.381 Todas estas medidas de variabilidade grupal percebida, com a excepção das derivadas da tarefa de distribuição (DISPD e DISVP), produziram um padrão consistente de resultados. De acordo com as nossas previsões, encontrámos uma assimetria nas percepções do endogrupo e do exogrupo em função do estatuto social relativo dos grupos. Os membros do grupo dominante (participantes portugueses) exibiram um efeito de homogeneidade do exogrupo significativo (PERSC, MEDSC, AMPLI e VARIA), enquanto que os membros do grupo dominado (participantes angolanos) homogeneizaram de forma similar o exogrupo e o endogrupo (com a excepção da medida VARIA, onde demonstraram um efeito de homogeneidade do exogrupo significativo). Com as medidas derivadas da tarefa de distribuição encontrámos um padrão de resultados mais inconsistente. A medida DISPD não produziu quaisquer efeitos significativos, enquanto que a medida DISVP foi a única em que encontrámos um efeito de homogeneidade do endogrupo globalmente significativo. Este resultado foi devido
  • 398. Racismo e etnicidade em Portugal 398 principalmente aos participantes angolanos, que homogeneizaram bastante o endogrupo enquanto que os participantes portugueses exibiram níveis similares de homogeneização para ambos os grupos. Assim, globalmente, observámos um significativo efeito de homogeneidade do grupo dominado (angolanos). Resumindo, os membros do grupo dominado foram mais homogeneizados do que os membros do grupo dominante. Este padrão de resultados foi encontrado com medidas ligadas aos estereótipos grupais (PERSC e MEDSC), mas também com medidas sem uma conexão directa com os estereótipos (DISVP e AMPLI). Estes resultados estão também de acordo com os obtidos em estudos anteriores em que foram utilizadas medidas indirectas da variabilidade grupal percebida (e.g., Cabecinhas, 1996). Curiosamente, neste estudo podemos verificar que a medida mais directa (VARIA) foi a única em que obtivemos um efeito de homogeneidade do exogrupo significativo para ambos os grupos de participantes. 5.2.3.4.2 Efeitos de Favoritismo Nesta pesquisa analisámos o favoritismo endogrupal através dos dados recolhidos na tarefa de estimação de percentagens (PERPN) e na tarefa de estimação de médias (MEDPN). Os resultados médios obtidos nestas duas medidas, baseadas na diferença de atribuição de traços positivos e traços negativos, são apresentados na Tabela 45. Existe evidência para o favoritismo endogrupal quando os participantes atribuem ao endogrupo uma média superior de traços positivos e uma média inferior de traços negativos, comparativamente ao exogrupo.
  • 399. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 399 Tabela 45 - Médias e desvios-padrão das medidas de favoritismo endogrupal em função do grupo do participante e do grupo-alvo Grupo dos participantes Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163)Medidas Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo PERPN Positivos Negativos P – N 68.45 (13.45) 38.78 (19.03) 29.68 (23.70) 57.96 (18.38) 47.73 (19.92) 10.24 (24.58) 62.86 (14.70) 40.60 (15.65) 22.26 (17.68) 60.84 (17.53) 37.15 (18.26) 23.69 (26.29) 64.72 (14.50) 39.99 (16.82) 24.73 (20.13) 59.87 (17.82) 40.72 (19.43) 19.15 (26.43) MEDPN Positivos Negativos P – N 68.18 (11.41) 43.89 (18.61) 24.29 (25.28) 63.54 (19.53) 53.85 (17.62) 9.69 (25.09) 64.31 (13.44) 44.71 (16.64) 19.59 (20.11) 62.38 (16.32) 41.60 (19.96) 20.78 (29.03) 65.62 (12.88) 44.44 (17.28) 21.19 (22.04) 62.77 (17.42) 45.73 (20.01) 17.04 (28.18) Nota: P - N = (Média dos traços positivos - Média dos traços negativos) Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida PERPN em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,160)=13.20, p<0.0005 Grupo x Grupo-alvo: F(1,160)=17.55, p<0.0001 Angolanos: F(1,160)=22.95, p<0.0001 Portugueses: F(1,160)=0.23, p<0.631 Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida MEDPN em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,160)=5.41, p<0.021 Grupo x Grupo-alvo: F(1,160)=7.63, p<0.006 Angolanos: F(1,160)=9.80, p<0.002 Portugueses: F(1,160)=0.14, p<0.708 No que respeita à estimação de percentagens (PERPN), a análise de variância efectuada produziu um efeito principal do grupo-alvo, demonstrando um favoritismo endogrupal global ?F(1,160)=13.20, p<0.0004?. O efeito de interacção entre o grupo-alvo e o grupo dos participantes também foi significativo, apontando para uma assimetria no favoritismo endogrupal ?F(1,160)=17.55, p<0.0005?. Análises de contrastes revelaram que os participantes angolanos atribuíram maiores percentagens nos traços positivos ao endogrupo (M=68.45) do que ao exogrupo (M=57.96) e simultaneamente atribuíram menores percentagens nos traços negativos ao endogrupo (M=38.78) do que ao exogrupo (M=47.73), demonstrando assim um favoritismo endogrupal bastante significativo ?F(1,160)=22.95, p<0.0001?. Em contraste, os participantes portugueses atribuíram
  • 400. Racismo e etnicidade em Portugal 400 percentagens equivalentes de traços positivos e negativos ao endogrupo (positivo - negativo = 22.26) e ao exogrupo (positivo - negativo = 23.69), isto é, não demonstraram um favoritismo endogrupal significativo ?F(1,160)=0.23, p<0.631?. Relativamente à estimação de médias (MEDPN), encontramos um padrão de resultados semelhante. A análise de variância produziu um efeito principal significativo do grupo alvo, demonstrando um favoritismo endogrupal global ?F(1,160)=5.41, p<0.021?. A interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante também foi significativa, demonstrando uma assimetria no favoritismo endogrupal ?F(1,160)=7.63, p<0.006?. Análises de contraste revelaram que os participantes angolanos atribuíram uma maior média de traços positivos ao endogrupo (M=68.18) do que ao exogrupo (M=63.54) e atribuíram menores médias de traços negativos ao endogrupo (M=43.89) do que ao exogrupo (M=53.85), assim revelando um significativo favoritismo endogrupal ?F(1,160)=9.80, p<0.002?. Em contrapartida, os participantes portugueses atribuíram médias similares de traços positivos e negativos ao endogrupo (positivo - negativo = 19.59) e ao exogrupo (positivo - negativo = 20.78), isto é, não exibiram um favoritismo endogrupal significativo. Resumindo, verificou-se um padrão consistente de resultados em ambas as medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN). Em ambas as medidas se verificou um favoritismo endogrupal para a globalidade da amostra, sendo este efeito muito significativo para os participantes angolanos, mas não significativo para os participantes portugueses. 5.2.3.4.3 Relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo Nesta experiência explorámos a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo a partir dos dados provenientes das tarefas de estimação de percentagens e de estimação de médias. Uma vez que os quatro atributos utilizados nestas tarefas permitiam tanto o cálculo de medidas de variabilidade grupal percebida (PERSC e MEDPN) como medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN), começámos por verificar se existiria uma relação entre estas duas medidas. Como referimos na secção dedicada ao método, os dados referentes a cada uma destas tarefas (estimação de percentagens e de estimação de medias) foram analisados através de uma análise de variância multivariada tomando o grupo-alvo, a estereotipicalidade dos traços e a valência dos traços como variáveis intra-participantes e o grupo dos participantes como variável inter-participantes.
  • 401. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 401 As análises efectuadas com estas novas medidas produziram um padrão de resultados idêntico quer para as estimativas de percentagens quer para as estimativas de médias, pelo que vamos apresentá-los conjuntamente. Os resultados destas novas análises de variância confirmam os das precedentes, tanto no que respeita aos efeitos de homogeneidade como no que respeita ao favoritismo endogrupal. Relativamente aos efeitos associados à estereotipicalidade dos traços (ver Tabela 41), verificou-se um efeito principal desta variável, indicando que, na globalidade da amostra, os participantes descreveram ambos os grupos (endogrupo e exogrupo) atribuindo percentagens superiores aos traços estereotípicos do que aos traços contra-estereotípicos ?Percentagens: F(1,156)=238.45, p<0.0001; Médias: F(1,156)=199.37, p<0.0001?. A interacção entre a estereotipicalidade dos traços e o grupo-alvo foi significativa, demonstrando a existência de um efeito de homogeneidade do exogrupo para a globalidade de amostra ?Percentagens: F(1,156)=7.28, p<0.008; F(1,156)=6.68, p<0.011?. A tripla interacção entre o grupo dos participantes, a estereotipicalidade dos traços e o grupo-alvo foi significativa na estimação de médias ?F(1,156)=7.31, p<0.008?, mas não atingiu o limiar da significância estatística na estimação de percentagens ?F(1,156)=2.49, p<0.117?. As análises de contrastes realizadas demonstram que os participantes portugueses atribuíram uma menor diferença entre os traços estereotípicos e os traços contra- estereotípicos para o endogrupo do que para o exogrupo, demonstrando assim um efeito de homogeneidade do exogrupo significativo ?Percentagens: F(1,156)=13.38, p<0.0005; F(1,156)=20.45, p<0.0001?, enquanto que para os participantes angolanos esta diferença não foi significativa ?F(1,156)=0.48, p<0.491; F(1,156)=0.01, p<0.942?. Quanto aos efeitos da valência dos traços (ver Tabela 45), verificou-se um efeito principal desta variável, indicando que os participantes descreveram ambos os grupos (endogrupo e exogrupo) atribuindo percentagens superiores aos traços positivos do que aos traços negativos ?Percentagens: F(1,156)=222.24, p<0.0001; Médias: F(1,156)=153.35, p<0.0001?. A interacção entre a valência dos traços e o grupo-alvo foi significativa, demonstrando a existência de um favoritismo endogrupal para a globalidade de amostra, ?Percentagens: F(1,156)=13.22, p<0.0005; F(1,156)=4.95, p<0.028?. Verificou-se igualmente uma tripla interacção entre o grupo dos participantes, a valência dos traços e o grupo-alvo, apontando para uma assimetria nos efeitos de favoritismo ?Percentagens: F(1,156)=16.78, p<0.0001; Médias: F(1,156)=8.29, p<0.005?. Nas análises de contrastes realizadas, verificou-se que os participantes angolanos atribuíram uma maior diferença
  • 402. Racismo e etnicidade em Portugal 402 entre os traços positivos e os traços negativos para o endogrupo do que para o exogrupo, demonstrando assim um favoritismo endogrupal significativo ?Percentagens: F(1,156)=22.71, p<0.0001; Médias: F(1,156)=9.89, p<0.002?, enquanto que para os participantes portugueses a diferença na atribuição de traços positivos menos negativos para o endogrupo e para o exogrupo não foi significativa ?Percentagens: F(1,156)=0.15, p<0.695; Médias: F(1,156)=0.31, p<0.677?. Quanto aos efeitos conjuntos da estereotipicalidade dos traços (estereotípicos vs. contra-estereotípicos) e da valência dos traços (positivos vs. negativos), verificou-se uma interacção significativa entre estes dois factores ?Percentagens: F(1,156)=10.69, p<0.001; e Médias: F(1,156)=14.35, p<0.0005?. A tripla interacção entre o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo), a estereotipicalidade dos traços e a valência dos traços também foi significativa para a estimativa de percengens ?F(1,156)=7.43, p<0.007?, mas não atingiu o limiar de significância estatística para a estimativa de médias. Verificou-se igualmente uma quádrupla interacção entre o grupo do participante, o grupo-alvo, a estereotipicalidade dos traços e a valência dos traços ?Percentagens: F(1,156)=58.59, p<0.0001; e Médias: F(1,156)=79.48, p<0.0001?. Tal poderá significar a existência de uma relação entre estes dois fenómenos, que é diferenciada em função do estatuto dos grupos. Para clarificar esta quádrupla interacção, procedemos ao cálculo de quatro novas medidas de variabilidade grupal percebida, duas baseadas exclusivamente nos traços positivos ?PERSC(+) e MEDSC(+) ?, e duas baseadas exclusivamente nos traços negativos ?PERSC(-) e MEDSC(-) ?. Estas novas medidas de variabilidade grupal percebida são apresentadas na Tabela 46.
  • 403. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 403 Tabela 46 - Médias e desvios-padrão das medidas de variabilidade grupal percebida controlando a valência dos traços. Grupo dos participantes Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163) Medidas Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo PERSC Positivos Negativos 46.17 (20.39) 18.89 (25.88) 29.71 (27.99) 40.69 (35.22) 3.36 (24.76) 8.44 (25.93) 22.46 (30.47) 9.98 (27.46) 17.71 (30.90) 11.92 (26.30) 24.92 (29.76) 20.47 (33.57) MEDSC Positivos Negativos 48.62 (23.67) 18.91 (37.76) 25.55 (30.83) 38.91 (44.90) 0.98 (25.17) 10.50 (28.03) 31.09 (31.58) 10.25 (24.37) 17.25 (33.44) 13.35 (31.80) 29.22 (31.34) 19.93 (35.34) Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida PERSC(+) em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,158)=0.28, p<0.595 Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=31.78, p<0.0001 Angolanos: F(1,158)=9.83, p<0.002 Portugueses: F(1,158)=28.21, p<0.0001 Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida PERSC(-) em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,158)=16.24, p<0.0001 Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=12.79, p<0.0001 Angolanos: F(1,158)=21.83, p<0.0001 Portugueses: F(1,158)=0.15, p<0.696 Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida MEDSC(+) em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,158)=1.00, p<0.318 Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=65.63, p<0.0001 Angolanos: F(1,158)=19.14, p<0.0001 Portugueses: F(1,158)=60.64, p<0.0001 Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida MEDSC(-) em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,158)=8.76, p<0.004 Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=8.55, p<0.004 Angolanos: F(1,158)=13.11, p<0.0001 Portugueses: F(1,158)=0.00, p<0.975 Como foi referido na secção dedicada ao método, estas novas medidas de variabilidade grupal percebida foram analisadas através de análises de variância multivariadas, tendo o grupo-alvo como variável intra-participantes e o grupo dos participantes como variável inter-participante.
  • 404. Racismo e etnicidade em Portugal 404 No que respeita às medidas baseadas exclusivamente nos traços positivos ?PERSC(+) e MEDSC(+) ?, o efeito principal do grupo-alvo não foi significativo. Verificou-se uma interacção significativa entre o grupo-alvo e o grupo do participante, o que aponta para uma assimetria no efeito de homogeneidade do exogrupo ?PERSC(+) : F(1,158)=31.78, p<0.0001; MEDSC(+) : F(1,158)=65.63, p<0.0001?. Análises de contrastes demonstraram que o efeito do grupo-alvo é significativo tanto para os participantes angolanos, ?PERSC(+) : F(1,158)=9.83, p<0.002; MEDSC(+) : F(1,158)=19.14, p<0.0001?, como para os participantes portugueses ?PERSC(+) : F(1,158)=28.21, p<0.0001; e MEDSC(+) : F(1,158)=60.64, p<0.0001?. No entanto, a observação das médias apresentadas na Tabela 46 indica que este efeito principal assume direcções diferentes para os participantes angolanos e portugueses. Os participantes angolanos face a traços positivos homogeneízam o endogrupo comparativamente ao exogrupo enquanto que os participantes portugueses face a traços positivos heterogeneízam o endogrupo comparativamente ao exogrupo. No que respeita às medidas baseadas exclusivamente nos traços negativos ?PERSC(-) e MEDSC(-) ?, o efeito principal do grupo-alvo foi significativo, indicando a existência do efeito de homogeneidade do exogrupo para a globalidade da amostra ?PERSC(-) : F(1,158)=16.24, p<0.0001; MEDSC(-) : F(1,158)=8.76, p<0.004?. Verificou-se igualmente uma interacção significativa entre o grupo-alvo e o grupo do participante, o que aponta para uma assimetria no efeito de homogeneidade do exogrupo, ?PERSC(-) : F(1,158)=12.79, p<0.0001; e MEDSC(-) : F(1,158)=8.55, p<0.004?. Análises de contrastes demonstraram que os participantes angolanos face a traços negativos heterogeneizaram o endogrupo comparativamente ao exogrupo ?PERSC(-) : F(1,158)=21.83, p<0.0001; MEDSC(-) : F(1,158)=13.11, p<0.0001?, enquanto que os participantes portugueses face a traços negativos não estabelecem uma diferenciação significativa entre o endogrupo e o exogrupo. Assim, verifica-se que os participantes angolanos e os participantes portugueses apresentam estratégias diferenciadas de homogeneização ou heterogeneização dos grupos em função da valência dos traços em causa. Os participantes angolanos face a traços positivos homogeneízam o endogrupo comparativamente ao exogrupo, mas face a traços negativos heterogeneízam o endogrupo comparativamente ao exogrupo. Em contrapartida, os participantes portugueses face a traços positivos heteregeneizaram o endogrupo comparativamente ao exogrupo, mas face a traços negativos, não estabelecem uma diferenciação entre o endogrupo e o exogrupo.
  • 405. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 405 Uma vez que a análise dos efeitos de homogeneidade controlando a valência dos traços (positivos vs. negativos) nos forneceu uma nova visão sobre as estratégias de homogeneização ou heteregeneização dos grupos em função do seu estatuto relativo, decidimos proceder de forma equivalente para a análise do favoritismo endogrupal. Assim, calculámos novas medidas de favoritismo controlando o carácter estereotípico dos traços (estereotípicos vs. contra-estereotípicos). Tal poderá contribuir para interpretar os resultados algo inesperados que obtivemos com as medidas PERNP e MEDNP: os angolanos manifestaram um favoritismo endogrupal significativo enquanto que os portugueses não. Assim calculámos quatro novas medidas de favoritismo, duas baseadas exclusivamente nos traços estereotípicos ?PERPN(S) e MEDPN(S) ?, e duas baseadas exclusivamente nos traços contra-estereotípicos ?PERPN(CS) e MEDPN(CS) ?. Estas novas medidas de favoritismo endogrupal são apresentadas na Tabela 47.
  • 406. Racismo e etnicidade em Portugal 406 Tabela 47 - Médias e desvios-padrão das medidas de favoritismo endogrupal controlando a estereotipicalidade dos traços. Grupo dos participantes Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163) Medidas Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo PERPN Estereotípicos Contra- Estereotípicos 43.31 (22.11) 16.04 (32.58) 4.75 (25.13) 15.73 (35.19) 19.70 (22.03) 24.86 (23.25) 29.92 (29.49) 17.34 (31.24) 27.57 (24.66) 21.90 (26.97) 21.42 (30.45) 16.79 (32.55) MEDPN Estereotípicos Contra- Estereotípicos 39.15 (24.85) 9.44 (37.64) 3.36 (26.55) 16.31 (37.65) 14.91 (23.46) 24.36 (25.86) 31.30 (30.09) 10.74 (34.18) 23.19 (26.51) 19.29 (31.08) 21.87 (31.75) 12.62 (35.37) Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida PERPN(S) em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,158)=22.77, p<0.0001 Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=66.48, p<0.0001 Angolanos: F(1,158)=62.66, p<0.0001 Portugueses: F(1,158)=8.58, p<0.004 Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida PERPN(SC) em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,158)=1.88, p<0.172 Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=1.00, p<0.319 Angolanos: F(1,158)=0.05, p<0.819 Portugueses: F(1,158)=4.12, p<0.044 Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida MEDPN(S) em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,158)=9.06, p<0.003 Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=67.51, p<0.0001 Angolanos: F(1,158)=47.86, p<0.0001 Portugueses: F(1,158)=19.84, p<0.0001 Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida MEDPN(CS) em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,158)=0.76, p<0.386 Grupo x Grupo-alvo: F(1,158)=6.80, p<0.010 Angolanos: F(1,158)=1.14, p<0.287 Portugueses: F(1,158)=8.89, p<0.003 Estas novas medidas de favoritismo endogrupal foram submetidas a análises de variância multivariadas, tendo o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável intra- participantes e o grupo dos participantes (angolanos vs. portugueses) como variável inter- participantes.
  • 407. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 407 No que respeita às medidas baseadas exclusivamente nos traços estereotípicos ?PERPN(S) e MEDPN(S) ?, o efeito principal do grupo-alvo foi significativo, indicando que a globalidade da amostra demonstrou favoritismo endogrupal ?PERPN(S) : F(1,158)=22.77, p<0.0001; e MEDPN(S) : F(1,158)=9.06, p<0.003?. Verificou-se uma interacção significativa entre o grupo-alvo e o grupo do participante, o que aponta para uma assimetria nos efeitos de favoritismo ?PERPN(S) : F(1,158)= 66.48, p<0.0001; e MEDPN(S) : F(1,158)=67.51, p<0.0001?. Análises de contrastes demonstraram que o efeito do grupo- alvo é significativo tanto para os participantes angolanos ?PERPN(S) : F(1,158)=62.66, p<0.0001; e MEDPN(S) : F(1,158)=47.86, p<0.0001? como para os participantes portugueses ?PERPN(S) : F(1,158)=8.58, p<0.004; e MEDPN(S) : F(1,158)=19.84, p<0.001?. No entanto, a observação das médias apresentadas na Tabela 4.9b indica que o efeito principal do grupo-alvo assume direcções diferentes para os participantes angolanos e portugueses. Os participantes angolanos face a traços estereotípicos favorecem o endogrupo, enquanto que os participantes portugueses face a traços estereotípicos favorecem o exogrupo. No que respeita às medidas baseadas exclusivamente nos traços contra-estereotípicos ?PERPN(CS) e MEDPN(CS) ?, o efeito principal do grupo-alvo não foi significativo, indicando a ausência do favoritismo endogrupal significativo para a globalidade da amostra. A interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante é significativa para a medida baseada na estimação de médias ?(F(1,158)=6.80, p<0.010?, mas não atinge o limiar da significância estatística para a medida baseada na estimação de percentagens. As análises de contrastes demonstraram que os participantes portugueses face a traços contra- estereotípicos favorecem o endogrupo face ao exogrupo ?PERPN(CS) : F(1,158)=4.22, p<0.044; e MEDPN(CS) : F(1,158)=8.89, p<0.003?, enquanto que os participantes angolanos face a traços contra-estereotípicos, não estabelecem diferenciações significativas entre o endogrupo o exogrupo. Assim, os participantes angolanos e os participantes portugueses apresentam estratégias diferenciadas de favoritismo em relação ao endogrupo ou ao exogrupo, em função do carácter estereotípico ou contra-estereotípico dos traços em causa. Os participantes angolanos face a traços estereotípicos favorecem o endogrupo, mas face a traços contra-estereotípicos não favorecem nem o endogrupo nem o exogrupo. Em contrapartida, os participantes portugueses face a traços estereotípicos favorecem o exogrupo, mas face a traços contra-estereotípicos favorecem o endogrupo.
  • 408. Racismo e etnicidade em Portugal 408 5.2.3.4.4 Auto-descrição A partir da tarefa de auto-descrição, foram calculadas três medidas seguindo o procedimento de Park e Judd (1990): AUTSC, AUTPN e AUTDA. Posteriormente procedemos à operacionalização e cálculo de duas novas medidas - AUTDA-SC e AUTDA-PN – como explicámos na secção dedicada aos instrumentos de medida (ponto 5.2.2.4.4). Começámos por averiguar se existiam diferenças significativas para cada uma destas medidas em função do estatuto relativo dos grupos. A medida AUTOSC indica até que ponto o indivíduo se descreve de forma consonante com os traços estereotípicos do endogrupo (traços estereotípicos vs. traços contra-estereotípicos). A Tabela 48 apresenta as médias e desvios-padrão desta medida em função do grupo dos participantes. Globalmente, o efeito principal da variável estereotipicalidade dos traços (traços estereotípicos vs. traços contra-estereotípicos) não foi estatisticamente significativo. No entanto, a interacção entre a estereotipicalidade dos traços e o grupo do participante foi significativa, ?F(1,161)=36.00, p<0.0001?. As análises de contrastes demonstraram que os participantes angolanos se descrevem a si próprios recorrendo mais aos traços estereotípicos do endogrupo (M=58.52) do que aos traços contra-estereotípicos (M=45.55), ?F(1,161)=15.89, p<0.0001? enquanto que os participantes portugueses se descrevem a si próprios recorrendo mais aos traços contra-estereotípicos do endogrupo (M=60.47) do que aos traços estereotípicos (M=49.46), ?F(1,161)=22.50, p<0.0001?. Estes resultados demonstram que os participantes angolanos se descrevem a si próprios de forma consonante com os estereótipos do endogrupo enquanto os participantes portugueses preferem descrever-se de uma forma dissonante com os estereótipos do endogrupo. Isto é, os participantes portugueses enfatizam a sua diferenciação interpessoal dentro do grupo de pertença, enquanto que os participantes angolanos enfatizam a indiferenciação interpessoal dentro do endogrupo, o que vai ao encontro das nossas hipóteses. Esta assimetria nos padrões de diferenciação dos indivíduos face ao seu grupo de pertença parece ir ao encontro dos resultados obtidos nas diversas medidas de variabilidade grupal percebida: os participantes angolanos homogeneízam o endogrupo e enfatizam a indiferenciação do self face ao grupo de pertença, enquanto que os
  • 409. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 409 participantes portugueses heterogeneízam o endogrupo e enfatizam a diferenciação do self face ao grupo de pertença. Tabela 48 - Médias e desvios-padrão da medida AUTSC Grupo dos participantes AUTOSC Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163) Estereotípicos (S) Contra-estereotípicos (CS) S – CS 58.52 (17.15) 45.55 (17.88) 12.96 (26.77) 49.46 (15.01) 60.47 (15.47) -11.01 (22.66) 52.52 (16.29) 55.44 (17.74) - 2.92 (26.60) Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida AUTSC (traços estereotípicos vs. traços contra- estereotípicos): Estereotipicalidade: F(1,161)=0.24, p<0.625 Grupo x Estereotipicalidade: F(1,161)=36.00, p<0.0001 Angolanos: F(1,161)=15.89, p<0.0001 Portugueses: F(1,161)=22.50, p<0.0001 A medida AUTPN indica até que ponto o indivíduo se descreve a si próprio recorrendo preferencialmente a traços positivos ou a traços negativos. Verificou-se um efeito principal da valência dos traços significativo ?F(1,160)=216.19 p<0.0001?: os indivíduos descrevem-se a si próprios recorrendo mais aos traços positivos (M=68.65) do que aos traços negativos (M=39.22), como se pode observar na Tabela 49. A interacção entre a valência dos traços e o grupo dos participantes também foi significativa, ?F(1,160)=7.41, p<0.007?. As análises de contrastes revelaram que tanto os participantes angolanos ?F(1,160)=111.47, p<0.0001? como os participantes portugueses ?F(1,160)=105.72, p<0.0001?se auto-descrevem de forma mais positiva do que negativa.
  • 410. Racismo e etnicidade em Portugal 410 Tabela 49 - Médias e desvios-padrão da medida AUTPN Grupo dos participantes AUTOPN Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163) Positivos (P) Negativos (N) P – N 70.64 (16.00) 33.44 (21.34) 37.20 (30.18) 67.63 (13.11) 42.19 (17.49) 25.58 (23.14) 68.65 (14.17) 39.22 (19.27) 29.52 (26.24) Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida AUTOPN (traços negativos vs. traços positivos): Valência: F(1,160)=216.19, p<0.0001 Grupo x Valência: F(1,160)=7.41, p<0.007 Angolanos: F(1,160)=114.93, p<0.0001 Portugueses: F(1,160)=105.72, p<0.0001 Contrariamente às nossas expectativas, a distância absoluta das auto-descrições face à média do endogrupo (AUTDA) não variou significativamente em função do grupo dos participantes (ver Tabela 50). Tendo em conta os resultados obtidos com as medidas AUTSC e AUTPN podemos deduzir que, embora a distância das auto-descrições face à média do endogrupo seja equivalente para participantes portugueses e angolanos, tal deve- se a uma aproximação dos angolanos dos traços estereotípicos do endogrupo e a uma aproximação dos portugueses dos traços contra-estereotípicos do endogrupo. Tabela 50 - Médias e desvios-padrão da medida AUTDA Grupo dos participantes Medida Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163) AUTDA 22.75 (13.56) 20.79 (9.76) 21.46 (11.19) Para verificarmos esta hipótese, recalculámos a medida AUTDA em função do carácter estereotípico ou contra-estereotípico dos traços (AUTD-SC). Paralelamente, para verificarmos se a distância face ao endogrupo era afectada pela valência dos traços, recalculámos a medida AUTDA tendo em conta a valência dos traços (AUTD-PN). As médias destas medidas são apresentadas na Tabela 51.
  • 411. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 411 Tabela 51 - Médias das medidas de distância da auto-descrição face à tendência central do endogrupo em função da estereotipicalidade e da valência dos traços Grupo dos participantes Medidas Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163) AUTD-SC Estereotípicos (S) Contra-estereotípicos (CS) S – CS 20.38 (16.03) 25.13 (16.64) -4.75 (18.24) 21.69 (12.73) 19.96 (11.58) 1.72 (14.47) 21.24 (13.91) 21.72 (13.68) - 0.47 (16.09) AUTD-PN Positivos (P) Negativos (N) P – N 19.22 (14.24) 26.29 (16.78) -7.07 (15.28) 16.57 (11.19) 24.52 (12.75) -8.40 (13.62) 17.47 (12.33) 25.28 (14.09) -7.95 (14.18) Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida AUTD-SC (traços estereotípicos vs. traços contra- estereotípicos): Estereotipicalidade: F(1,160)=1.32, p<0.252 Grupo x Estereotipicalidade: F(1,160)=6.06, p<0.015 Angolanos: F(1,160)=4.94, p<0.028 Portugueses: F(1,160)=1.27, p<0.262 Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida AUTD-PN (traços negativos vs. traços positivos): Valência: F(1,159)=42.97, p<0.0001 A medida AUTD-SC indica até que ponto a distância da auto-descrição do indivíduo face à tendência central atribuída ao seu endogrupo é maior para os traços estereotípicos ou para os traços contra-estereotípicos. Globalmente, o efeito principal da variável estereotipicalidade dos traços não foi estatisticamente significativo. No entanto, a interacção entre a estereotipicalidade dos traços e o grupo do participante foi significativa, ?F(1,160)=6.06, p<0.015?. As análises de contrastes demonstraram que para os participantes angolanos a distância das auto-descrições face à tendência central atribuída ao endogrupo é significativamente menor para os traços estereotípicos (M=20.38) do que para os traços contra-estereotípicos (M=25.13), ?F(1,160)=4.94, p<0.028? enquanto que para os participantes portugueses a distância das auto-descrições face à tendência central atribuída ao endogrupo não é significativamente diferente no que diz respeito aos traços estereotípicos (M=21.69) aos traços contra-estereotípicos (M=19.96).
  • 412. Racismo e etnicidade em Portugal 412 A medida AUTDA-PN indica até que ponto a distância da auto-descrição do indivíduo face à tendência central atribuída ao seu endogrupo é maior para os traços positivos ou para os traços negativos. Globalmente, o efeito principal da variável valência dos traços (traços positivos vs. traços negativos) foi estatisticamente significativo ?F(1,159)=42.97, p<0.0001?. A interacção entre a valência dos traços e o grupo do participante não foi significativa, isto é, as auto-descrições dos participantes foram significativamente mais próximas da tendência central do endogrupo nos traços positivos (M=17.47) do que nos traços negativos (M=25.28), independentemente do grupo de pertença dos participantes. Assim, a principal diferença nas estratégias de diferenciação pessoal face ao endogrupo que observamos nos participantes dá-se ao nível da estereotipicalidade dos traços: os angolanos distanciam-se mais da tendência central do endogrupo quando são confrontados com traços contra-estereotípicos do que quando confrontados com traços estereotípicos, enquanto que portugueses se distanciam mais face aos traços estereotípicos do que contra-estereotípicos, embora esta diferença não seja estatisticamente significativa. No que respeita à valência dos traços, os dois grupos de participantes apresentam estratégias semelhantes: ambos se aproximam da tendência central do endogrupo nos traços positivos e se distanciam da tendência central do endogrupo nos traços negativos. Seguidamente, investigámos as correlações entre as medidas derivadas da auto- descrição e as várias medidas de variabilidade grupal percebida. Primeiro, averiguámos se a distância face à tendência central percebida do endogrupo seria uma boa preditora da variabilidade grupal percebida. Assim investigámos a correlação entre AUTDA e as seguintes medidas de variabilidade grupal percebida: PERSC, MEDSC, AMPLI e VARIA (excluímos as medidas indirectas, derivadas das tarefas de recordação indiciada e de recordação livre, porque apenas aproximadamente metade dos participantes efectuaram uma ou outra). Calculámos as correlações separadamente para os participantes angolanos e para os participantes portugueses, uma vez que estes apresentam padrões de resposta completamente distintos nestas medidas.
  • 413. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 413 Tabela 52 - Correlações entre as medidas de auto-descrição e as me didas de variabilidade grupal percebida Grupo dos participantes Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Medidas AUTSC AUTDA AUTD_SC AUTSC AUTDA AUTD_SC Endogrupo ,026 ,083 ,019 ,208* ,250** -,045 PERSC Exogrupo ,075 -,123 ,090 -,110 ,177 -,023 Endogrupo ,242 ,108 ,069 ,193* ,294** -,096 MEDSC Exogrupo ,152 -,204 ,248 -,147 ,266** ,006 Endogrupo -,148 ,147 .093 ,148 -,135 ,034 AMPLI Exogrupo ,028 ,291* -.053 ,202* -,243* -,092 Endogrupo -,012 -,388** .356** -,226* ,098 ,031 VARIA Exogrupo ,099 -,140 ,039 -,206* -,186 ,038 Endogrupo ,114 -,094 ,080 -,049 ,171 ,187 DISPV Exogrupo ,113 -,087 ,082 ,016 ,176 ,255** Endogrupo ,043 -,078 -,016 -,057 ,039 ,055 DISPD Exogrupo ,074 -,041 -,053 -,097 -,010 ,143 Nota: * Correlação significativa a 0.05; ** Correlação significativa a 0.01. No que respeita aos participantes angolanos, verifica-se uma correlação negativa significativa entre a medida AUTDA e a medida VARIA-endogrupo (r = - 0.388, p<0.003), e uma correlação positiva significativa entre a medida AUTDA e a medida AMPLI-exogrupo (r = 0.291, p<0.031). Para os participantes portugueses, relativamente à medida AUTDA verifica-se uma correlação negativa significativa com a medida AMPLI endogrupo (r = - 0.243, p<0.011), e correlações positivas significativas com as medidas PERSC-endogrupo (r =0.250, p<0.009), MEDSC-endogrupo (r =0.294, p<0.002) e MEDSC-exogrupo (r =0.266, p<0.006). Em segundo lugar, averiguámos se o facto do indivíduo se descrever a si próprio de forma consonante com os estereótipos do seu grupo estaria relacionado com o efeito de homogeneidade do endogrupo. Assim, investigámos as correlações entre a medida AUTSC e as outras medidas baseadas na diferença entre traços estereotípicos e traços contra-estereotípicos: PERSC e MEDSC.
  • 414. Racismo e etnicidade em Portugal 414 Para os participantes angolanos não se verifica nenhuma correlação significativa entre AUTSC e as outras medidas baseadas na atribuição diferencial de traços estereotípicos versus contra-estereotípicos. Para os participantes portugueses verificam-se correlações negativas significativas com VARIA-endogrupo (r =-0.226, p<0.019) e VARIA-exogrupo (r=-0.206, p<0.033), e correlações positivas significativas com as medidas AMPLI-exogrupo (r=0.202, p<0.036), PERSC-endogrupo (r=0.208, p<0.031), e MEDSC-endogrupo (r=0.193, p<0.046). Assim, globalmente, estas análises indicam que não é possível prever os efeitos de homogeneidade a partir dos valores da auto-descrição. No entanto, o facto de encontrarmos poucas correlações significativas, sobretudo para os participantes angolanos, pode dever-se simplesmente ao reduzido número de efectivos. 5.2.3.4.5 Nível de identificação grupal A Tabela 53 apresenta os valores referentes aos níveis de identificação grupal. A análise de variância multivariada efectuada sobre os níveis de identificação (endogrupo vs. exogrupo) produziu um efeito principal significativo do grupo-alvo, demonstrando que os participantes se identificam mais fortemente com o endogrupo do que com o exogrupo, ?F(1,157)=253.62, p<0.0001?. Também se verificou uma interacção significativa entre o grupo-alvo e o grupo do participante, ?F(1,157)=7.80, p<0.006?. As análises de contrastes demonstraram que, tal como esperávamos, embora ambos os grupos manifestem um nível de identificação endogrupal significativamente superior ao nível de identificação exogrupal, tal diferença é mais acentuada nos participantes portugueses ?M=5.93 para o endogrupo e =2.55 para o exogrupo; F(1,157)=57.93, p<0.0001? do que para os participantes angolanos ?M=5.73 para o endogrupo e o exogrupo =3.37, F(1,157)=65.29, p<0.0001?.
  • 415. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 415 Tabela 53 - Médias e desvios-padrão dos níveis de identificação em função do grupo do participante Grupo do participante Nível de identificação Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163) Endogrupo 5.73 (1.38) 5.93 (1.13) 5.86 (1.22) Exogrupo 3.37 (1.80) 2.55 (1.25) 2.83 (1.51) Nota: Nível de identificação grupal: “Eu sinto-me identificado com o grupo dos ?angolanos/portugueses?...” (1=absolutamente nada; 7=muito fortemente) Análise dos efeitos do Grupo sobre o Nível de identificação em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,157)=253.62, p<0.0001 Grupo x Grupo-alvo: F(1,157)=7.80, p<0.006 Angolanos: F(1,157)=65.29, p<0.0001 Portugueses: F(1,157)=257.93, p<0.0001 Como podemos constatar, a diferença entre os participantes angolanos e portugueses deve-se sobretudo ao nível de identificação com o exogrupo, que é significativamente superior nos angolanos. O nível de identificação com o endogrupo não difere significativamente em função do grupo dos participantes. Como foi referido na introdução, por um lado, tendo em conta os resultados de pesquisa anterior sobre os níveis de identificação dos membros de grupos dominantes ou de grupos dominados, esperaríamos encontrar um nível de identificação endogrupal superior para os participantes angolanos do que para os participantes portugueses (cf.: Cabecinhas, 1994). Por outro lado, tratando-se de um grupo imigrante poderia dar-se o fenómeno inverso, dependendo das estratégias de adaptação à sociedade de acolhimento. Colocámos a hipótese dos níveis de identificação dos participantes angolanos com o endogrupo e com o exogrupo variarem em função do seu tempo de permanência em Portugal. De facto, constatámos que alguns dos participantes angolanos vieram com idades muito jovens para Portugal, e aqui viveram os períodos mais marcantes de socialização. Para analisar esta hipótese dividimos a amostra dos estudantes angolanos em dois grupos (com base no valor da mediana da variável tempo de permanência em Portugal): aqueles que residem há menos de 6 anos em Portugal; e aqueles que residem há mais de 6 anos em Portugal. A Tabela 54 apresenta as médias dos níveis de identificação endogrupal e exogrupal dos participantes angolanos em função do tempo de permanência em Portugal.
  • 416. Racismo e etnicidade em Portugal 416 Tabela 54 - Médias e desvios-padrão dos níveis de identificação dos participantes angolanos em função do tempo de permanência em Portug al Tempo de permanência em Portugal Nível de identificação Menos de 6 anos (N=30) Mais de 6 anos (N=25) Total (N=55) Endogrupo 6.23 (0.97) 5.05 (1.62) 5.73 (1.38) Exogrupo 3.00 (1.65) 3.77 (2.02) 3.37 (1.80) Nota: Nível de identificação grupal: “Eu sinto-me identificado com o grupo dos ?angolanos/portugueses?...” (1=absolutamente nada; 7=muito fortemente). Análise dos efeitos do Tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) sobre o Nível de identificação em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,49)=7.57, p<0.008 Tempo x Grupo-alvo: F(1,49)=39.82, p<0.0001 Menos de 6 anos: F(1,49)=47.60, p<0.0001 Mais de 6 anos: F(1,49)=5.57, p<0.0001 Análise dos efeitos do Tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) sobre o Nível de identificação endogrupal: Tempo: F(1,50)=10.878, p<0.002 As medidas de identificação (endogrupal vs. exogrupal) foram submetidas a uma análise de variância multivariada tendo o grupo-alvo de identificação como variável intra- participantes e o tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) como variável inter-participantes. Esta análise produziu um efeito principal significativo do grupo-alvo de identificação, demonstrando que globalmente os participantes angolanos, independentemente do tempo de permanência em Portugal, se sentem mais identificados com o endogrupo do que o exogrupo ?F(1,49)=7.57, p<0.008?. A interacção entre o grupo- alvo e o tempo de permanência em Portugal também é significativa ?F(1,49)=39.82, p<0.0001?. Tal como prevíamos, as análises de contrastes demonstraram que esta diferença é mais acentuada para os angolanos a residir em Portugal há menos de 6 anos ?F(1,49)=47.60, p<0.0001? do que para os que residem há mais de 6 anos ?F(1,49)=5.57, p<0.0001?. O nível de identificação endogrupal é significativamente superior para os angolanos que residem em Portugal há menos de 6 anos (M=6.23) do que para os angolanos que residem em Portugal há mais de 6 anos (M=5.05), ?F(1,50)=10.878, p<0.002?. Quanto ao nível de identificação exogrupal, embora seja superior para os angolanos que residem em
  • 417. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 417 Portugal há mais de 6 anos (M=3.77) do que para os angolanos que residem em Portugal há menos de 6 anos (M=3.00), esta diferença não é estatisticamente significativa ?F(1,50)=2.261, p<0.139?. Assim, tal como prevíamos, o nível de identificação endogrupal dos angolanos é menor quanto maior o seu tempo de permanência em Portugal. De notar que o nível de identificação endogrupal dos angolanos que residem em Portugal há menos tempo (M=6.23) é superior ao nível de identificação endogrupal dos portugueses (M=5.93), o que vai ao encontro dos estudos que salientam a grande centralidade da identificação endogrupal nos membros dos grupos dominados (Cabecinhas, 1994). Para analisar o impacto da identificação grupal nos efeitos de homogeneidade e nos efeitos de favoritismo, efectuámos uma classificação dos participantes de ambos os grupos, tendo em conta o valor da mediana de cada grupo para cada uma das medidas (identificação endogrupal e identificação exogrupal), dividindo assim os participantes em “fortemente identificados” e “fracamente identificados”. Analisámos o impacto do grau de identificação endogrupal e exogrupal nas diversas medidas de variabilidade grupal percebida (PERSC, MEDSC, AMPLI e VARIA) e nas duas medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN). Para cada uma destas medidas foi efectuada uma análise de variância multivariada, tendo a identificação endogrupal, a identificação exogrupal e o grupo do participante como variáveis inter- participantes e o grupo-alvo como variável intra-participante. No que respeita às medidas de variabilidade grupal percebida, em todas as análises de variância efectuadas, a interacção entre o grupo-alvo e o grau de identificação endogrupal não foi significativa, assim como a interacção entre o grupo-alvo e o grau de identificação exogrupal. A tripla interacção entre o grupo-alvo, a identificação endogrupal e o grupo do participante não foi significativa, assim como a tripla interacção entre grupo- alvo, identificação endogrupal e grupo do participante (com a excepção da medida MEDSC). Assim, globalmente não encontrámos evidência para uma mediação do grau de identificação endogrupal e do grau de identificação exogrupal na variabilidade grupal percebida. Nas análises efectuadas com as medidas de favoritismo endogrupal, a interacção entre o grupo-alvo e a identificação endogrupal não foi significativa, assim como a tripla interacção entre o grupo-alvo, a identificação endogrupal e o grupo do participante. Contudo, a interacção entre o grupo-alvo e a identificação exogrupal foi significativa tanto
  • 418. Racismo e etnicidade em Portugal 418 na análise da medida PERPN ?F(1,150)=7.57, p<0.007? como na análise da medida MEDPN ?F(1,150)=9.55, p<0.002?, revelando que quanto maior o grau de identificação exogrupal menor o favoritismo endogrupal. As análises de contrastes demonstraram que os participantes com baixo nível de identificação exogrupal apresentam um favoritismo endogrupal significativo, ?F(1,150)=15.61, p<0.0001 para PERPN e F(1,150)=11.26, p<0.001 para MEDPN? enquanto que os participantes com alto nível de identificação exogrupal apresentam um favoritismo face ao endogrupo não significativo, ?F(1,150)=0.59, p<0.444 para PERPN e F(1,150)=2.09, p<0.150 para MEDPN?. A tripla interacção entre grupo-alvo, identificação exogrupal e grupo do participante não foi significativa para ambas as medidas. Assim, os resultados apontam para uma mediação do favoritismo endogrupal pelo grau de identificação exogrupal (mas não pelo grau de identificação endogrupal): globalmente, quanto maior o grau de identificação exogrupal menor o favoritismo endogrupal, como se pode verificar na Tabela 55.
  • 419. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 419 Tabela 55 – Médias e desvios-padrão do favoritismo endogrupal em função do nível de identificação exogrupal Grupo dos participantes Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163) Identificação exogrupal Baixa Alta Baixa Alta Baixa Alta PERPN Endogrupo Exogrupo 35.75 (23.63) 6.09 (26.34) 22.36 (22.51) 15.22 (22.43) 23.05 (17.46) 19.22 (26.58) 22.08 (18.22) 30.29 (23.82) 27.09 (20.38) 14.94 (27.07) 22.18 (19.69) 24.91 (24.28) MEDPN Endogrupo Exogrupo 29.91 (22.45) 5.55 (23.28) 17.18 (27.38) 15.00 (26.98) 21.22 (19.60) 15.18 (27.98) 19.23 (19.16) 29.52 (28.53) 24.09 (20.86) 12.04 (26.79) 18.50 (22.27) 24.34 (28.65) Análise dos efeitos do Grupo x Nível de identificação endogrupal (alto vs. baixo) x Nível de identificação exogrupal (alto vs. baixo) sobre a medida PERPN em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,150)=5.71, p<0.018 Grupo x Grupo-alvo: F(1,150)=9.45, p<0.003 Identidade exogrupal x Grupo-alvo: F(1,150)=7.57, p<0.007 Baixo: F(1,150)=15.61, p<0.0001 Alto: F(1,150)=0.59, p<0.444 Grupo x Identidade exogrupal x Grupo-alvo: F(1,150)=2.56, p<0.112 Angolanos – Baixo nível de identificação exogrupal: F(1,150)=30.71, p<0.0001 Angolanos – Alto nível de identificação exogrupal: F(1,150)=1.44, p<0.232 Portugueses – Baixo nível de identificação exogrupal: F(1,150)= 1.00, p<0.320 Portugueses – Alto nível de identificação exogrupal: F(1,150)= 3.43, p<0.066 Análise dos efeitos do Grupo x Nível de identificação endogrupal (alto vs. baixo) x Nível de identificação exogrupal (alto vs. baixo) sobre a medida MEDPN em função do grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,150)=2.76, p<0.099 Grupo x Grupo-alvo: F(1,150)=3.38, p<0.068 Identidade exogrupal x Grupo-alvo: F(1,150)=9.55, p<0.002 Baixo: F(1,150)=11.26, p<0.001 Alto: F(1,150)=2.09, p<0.150 Grupo x Identidade endogrupal x Grupo-alvo: F(1,150)=1.63, p<0.203 Angolanos – Baixo nível de identificação exogrupal: F(1,150)=15.12, p<0.0001 Angolanos – Alto nível de identificação exogrupal: F(1,150)=0.10, p<0.747 Portugueses – Baixo nível de identificação exogrupal: F(1,150)=1.88, p<0.172 Portugueses – Alto nível de identificação exogrupal: F(1,150)=4.18, p<0.043 5.2.3.4.6 Nível de contacto Como referimos na secção dedicada ao método, o nível de contacto foi investigado através de três escalas de 7 pontos e uma pergunta aberta sobre o número de amigos. Os valores correspondentes ao nível de familiaridade (média das três escalas)
  • 420. Racismo e etnicidade em Portugal 420 são apresentados na Tabela 56. A maiores valores corresponde maior nível de familiaridade com o respectivo grupo. A análise de variância multivariada efectuada sobre os níveis de familiaridade produziu um efeito principal significativo do grupo-alvo, demonstrando que a globalidade dos participantes considera ter maior familiaridade com o endogrupo do que ao exogrupo ?F(1,161)=324.45, p<0.0001?. Também se verificou um efeito de interacção significativo entre o grupo-alvo e o grupo do participante ?F(1,161)=123.54, p<0.0001?. Tal como esperávamos, as análises de contrastes demonstraram que os participantes angolanos atribuem maior familiaridade ao endogrupo (M=5.50) do que ao exogrupo (M=4.53), ?F(1,161)=17.95, p<0.0001? mas esta diferença é ainda mais acentuada para os participantes portugueses ?M=6.33 para o endogrupo e M=2.21 para o exogrupo; F(1,161)=628.59, p<0.0001?. Assim, ambos os participantes angolanos e portugueses manifestam ter um nível de contacto superior com o endogrupo do que com o exogrupo, sendo esta diferença mais acentuada para os participantes portugueses. Tabela 56 - Médias e desvios-padrão do nível de familiaridade entre os grupos Grupo do participante Nível de familiaridade Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163) Endogrupo 5.50 (1.38) 6.33 (0.68) 6.05 (1.05) Exogrupo 4.53 (1.59) 2.21 (1.21) 2.99 (1.74) Análise dos efeitos do Grupo sobre o Nível de familiaridade em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,161)=324.45, p<0.0001 Grupo x Grupo-alvo: F(1,161)=123.54, p<0.001 Angolanos: F(1,161)=17.95, p<0.0001 Portugueses: F(1,161)=628.59, p<0.0001 A análise de variância multivariada efectuada com os valores referentes ao número de amigos também produziu um efeito significativo do grupo-alvo, demonstrando que tanto os angolanos como os portugueses declaram ter mais amigos do endogrupo do que do exogrupo, ?F(1,145)=17.63, p<0.0001?. Também se verificou um
  • 421. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 421 efeito de interacção significativo entre o grupo-alvo e o grupo do participante ?F(1,145)=5.12, p<0.025?. As análises de contrastes mostraram que participantes portugueses referiram ter mais amigos do endogrupo (M=45.74) do que do exogrupo (M=2.56), ?F(1,145)=8.13, p<0.005?, mas esta diferença é ainda mais acentuada para os participantes angolanos ?M=185.35 para o endogrupo e =44.71 para o exogrupo, F(1,145)= 19.19, p<0.0001?. Pensamos que tal se deve a uma interpretação diferencial do conceito “amigo” que é mais alargado para os participantes angolanos (recordar que foram excluídos vários participantes angolanos desta análise por referirem um número de amigos superior a 1000). Tabela 57 - Médias e desvios-padrão do número de amigos do endogrupo e do exogrupo Grupo do participante Número de amigos Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163) Endogrupo 185.35 (529.88) 45.74 (82.29) 91.35 (315.14) Exogrupo 44.71 (142.94) 2.56 (3.67) 16.34 (83.63) Análise dos efeitos do Grupo sobre o Número de amigos em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,145)=17.63, p<0.0001 Grupo x Grupo-alvo: F(1,145)=5.12, p<0.025 Angolanos: F(1,145)=19.19, p<0.0001 Portugueses: F(1,145)=8.13, p<0.005 Tal como efectuámos em relação aos níveis de identificação, analisámos os níveis de contacto endogrupal e exogrupal dos participantes angolanos em função do seu tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos). A Tabela 58 apresenta as médias dos níveis de familiaridade endogrupal e exogrupal dos participantes angolanos em função do tempo de permanência em Portugal.
  • 422. Racismo e etnicidade em Portugal 422 Tabela 58 - Médias e desvios-padrão respeitantes aos níveis de familiaridade dos participantes angolanos em função do tempo de permanência em Portugal Tempo de permanência em Portugal Nível de familiaridade Menos de 6 anos (N=30) Mais de 6 anos (N=25) Total (N=55) Endogrupo 5.82 (1.19) 5.08 (1.59) 5.50 (1.38) Exogrupo 3.99 (1.55) 5.24 (1.32) 4.53 (1.59) Análise dos efeitos do Tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) sobre o Nível de familiaridade em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,50)=8.36, p<0.006 Tempo x Grupo-alvo: F(1,50)=12.04, p<0.001 Menos de 6 anos: F(1,50)=23.92, p<0.0001 Mais de 6 anos: F(1,50)=0.14, p<0.705 Análise dos efeitos do Tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) sobre o Nível de familiaridade endogrupal: Tempo: F(1,50)=3.765, p<0.058 Análise dos efeitos do Tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) sobre o Nível de familiaridade exogrupal: Tempo: F(1,50)=9.394, p<0.004 As medidas de familiaridade (endogrupo vs. exogrupo) foram submetidas a uma análise de variância multivariada tendo o grupo-alvo de identificação como variável intra- participantes e o tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos) como variável inter-participantes. Esta análise produziu um efeito principal significativo do grupo-alvo, demonstrando que globalmente os participantes angolanos apresentam maiores níveis de familiaridade com o endogrupo do que o exogrupo ?F(1,50)=8.36, p<0.006?. A interacção entre o grupo-alvo e o tempo de permanência em Portugal também é significativa ?F(1,50)=12.04, p<0.001?. As análises de contrastes demonstraram que o efeito principal do grupo-alvo é significativo para os angolanos a residir em Portugal há menos de 6 anos ?F(1,50)=23.92, p<0.0001?, mas não o é para os angolanos que residem há mais de 6 anos ?F(1,50)=0.14, p<0.705?. O nível de familiaridade exogrupal é significativamente superior para os angolanos que residem em Portugal há mais de 6 anos (M=5.24) do que para os angolanos que residem em Portugal há menos de 6 anos (M=3.99), ?F(1,50)=9.394, p<0.004?. Quanto ao nível de familiaridade endogrupal, embora seja superior para os angolanos que residem em Portugal há menos de 6 anos (M=5.82) do que para os angolanos que residem em Portugal
  • 423. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 423 há mais de 6 anos (M=5.08), esta diferença é apenas tendencialmente significativa, ?F(1,50)=3.765, p<0.058?. Resumindo, os angolanos que residem há mais tempo em Portugal apresentam níveis de familiaridade com os portugueses significativamente superiores aos angolanos que residem há menos tempo no país. Quanto aos níveis de familiaridade com o endogrupo dá- se o processo inverso, embora de forma menos significativa: os angolanos que vivem há mais tempo em Portugal referem ter menor contacto com outros angolanos do que aqueles que residem na nosso país há menos tempo. Comparando a evolução dos níveis de identificação e dos níveis de familiaridade com o exogrupo, verificamos que estes evoluem na mesma direcção: à medida que aumenta o contacto com os portugueses, aumenta também o nível de identificação dos angolanos com o exogrupo. O nível de contacto endogrupal e exogrupal constitui outro potencial mediador da variabilidade grupal percebida e do favoritismo. Como referimos na secção dedicada ao método, para analisar o impacto do nível de contacto endogrupal e do nível de contacto exogrupal nos efeitos de homogeneidade e no favoritismo endogrupal, efectuámos uma classificação dos participantes de ambos os grupos, tendo em conta o valor da mediana de cada grupo para cada uma das medidas (contacto endogrupal e contacto exogrupal), dividindo assim os participantes conforme o alto ou baixo nível de contacto. Analisámos o impacto do grau de contacto endogrupal e exogrupal nas diversas medidas de variabilidade grupal percebida (PERSC, MEDSC, AMPLI e VARIA) e nas duas medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN). Para cada uma destas medidas foi efectuada uma análise de variância multivariada, tendo o contacto endogrupal, o contacto exogrupal e o grupo do participante como variáveis inter-participantes e o grupo-alvo como variável intra-participante. Em todas as análises de variância efectuadas com as medidas de variabilidade grupal percebida (com a excepção da medida MEDSC), a interacção entre o grupo-alvo e o nível de contacto endogrupal não foi significativa, assim como a interacção entre o grupo-alvo e o nível de contacto exogrupal. A tripla interacção entre o grupo-alvo, o nível de contacto endogrupal e o grupo do participante também não foi significativa, assim como a tripla interacção entre o grupo-alvo, o nível de contacto exogrupal e o grupo do participante. Assim, não há evidência para uma mediação da variabilidade grupal percebida pelos níveis de contacto endogrupal e exogrupal.
  • 424. Racismo e etnicidade em Portugal 424 No que respeita ao favoritismo endogrupal, encontrámos o mesmo padrão de resultados para as medidas PERPN e MEDPN. A interacção entre o grupo-alvo e o nível de contacto endogrupal não foi significativa, assim como a tripla interacção entre o grupo- alvo, o nível de contacto endogrupal e o grupo do participante. No entanto, a interacção entre o grupo-alvo e o nível de contacto exogrupal foi significativa tanto para a medida PERPN ?F(1,154)=9.19, p<0.003? como para a medida MEDPN ?F(1,154)=4.29, p<0.040?, assim como a tripla interacção entre o grupo-alvo, o nível de contacto exogrupal e o grupo do participante ?significativamente para PERPN, F(1,154)=4.53, p<0.035; e tendencialmente para MEDPN, F(1,154)=2.24, p<0.094?. As análises de contrastes revelaram que para os participantes angolanos quanto maior o nível de contacto com o exogrupo menor o favoritismo endogrupal ?F(1,154)=10.39, p<0.002 para PERPN e F(1,154)=3.89, p<0.050 para MEDPN?. Em contrapartida, para os participantes portugueses o nível de favoritismo endogrupal não difere significativamente em função do nível de contacto exogrupal ?F(1,154)=0.00, p<0.954 para PERPN e F(1,154)=0.00, p<0.975 para MEDPN?. Assim, o nível de contacto exogrupal parece ser um mediador do favoritismo endogrupal, mas o seu efeito só é significativo para os angolanos: quanto maior o nível de contacto com os portugueses menor o favoritismo endogrupal demonstrado, como se pode verificar na Tabela 59.
  • 425. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 425 Tabela 59 – Médias e desvios-padrão do favoritismo endogrupal em função dos níveis de familiaridade endogrupal e exogrupal Grupo dos participantes Angolanos (N=55) Portugueses (N=108) Total (N=163) Nível de familiaridade Baixo Alto Baixo Alto Baixo Alto PERPN Endogrupo Exogrupo 36.25 (22.13) 4.53 (23.87) 22.60 (23.69) 16.60 (24.23) 21.36 (16.86) 21.12 (26.74) 23.67 (19.03) 27.73 (25.35) 25.80 (19.69) 16.06 (26.89) 23.26 (20.77) 23.47 (25.34) MEDPN Endogrupo Exogrupo 31.07 (23.47) 5.72 (23.32) 16.73 (25.49) 14.12 (26.69) 18.51 (17.92) 19.64 (26.56) 21.34 (23.36) 22.57 (32.81) 22.34 (20.49) 15.39 (26.29) 19.55 (24.12) 19.34 (30.68) Análise dos efeitos do Grupo do participante x Nível de familiaridade endogrupal (alto vs. baixo) x Nível de familiaridade exogrupal (alto vs. baixo) sobre a medida PERPN em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,154)=11.05, p<0.001 Grupo x Grupo-alvo: F(1,154)=16.21, p<0.0001 Familiaridade exogrupal x Grupo-alvo: F(1,154)=9.19, p<0.003 Baixa: F(1,154)=10.39, p<0.002 Alta: F(1,154)=0.00, p<0.954 Grupo x Familiaridade exogrupal x Grupo-alvo: F(1,154)=4.53, p<0.035 Angolanos – Baixo nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=33.70, p<0.0001 Angolanos – Alto nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=1.02, p<0.314 Portugueses – Baixo nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=0.00, p<0.948 Portugueses – Alto nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=0.75, p<0.387 Análise dos efeitos do Grupo do participante x Nível de familiaridade endogrupal (alto vs. baixo) x Nível de familiaridade exogrupal (alto vs. baixo) sobre a medida MEDPN em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,154)=3.61, p<0.059 Grupo x Grupo-alvo: F(1,154)=7.03, p<0.009 Identidade exogrupal x Grupo-alvo: F(1,154)=4.29, p<0.040 Baixa: F(1,154)=3.89, p<0.050 Alta: F(1,154)=0.00, p<0.975 Grupo x Familiaridade exogrupal x Grupo-alvo: F(1,154)=4.34, p<0.037 Angolanos – Baixo nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=15.79, p<0.0001 Angolanos – Alto nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=0.15, p<0.698 Portugueses – Baixo nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=0.07, p<0.788 Portugueses – Alto nível de familiaridade exogrupal: F(1,154)=0.07, p<0.789
  • 426. Racismo e etnicidade em Portugal 426 5.2.4 Discussão Efeitos de homogeneidade Um dos objectivos desta pesquisa foi a análise do papel do estatuto relativo dos grupos na percepção da homogeneidade grupal. Nesse sentido, escolhemos dois grupos com estatuto assimétrico na sociedade portuguesa: os ‘portugueses’ e os ‘angolanos’. Tendo em conta a perspectiva de Lorenzi-Cioldi (1988, 1998), previmos uma manifestação assimétrica do efeito de homogeneidade do exogrupo em função do estatuto social relativo dos grupos: esperávamos um efeito de homogeneidade do exogrupo significativo da parte dos participantes portugueses, e a ausência deste efeito da parte dos participantes angolanos. Isto é, globalmente, esperávamos que os angolanos fossem percebidos de forma mais homogénea do que os portugueses. Uma vez que a magnitude dos efeitos de homogeneidade depende do tipo de medidas utilizadas (Linville et al., 1989; Park e Judd, 1990; Ostrom e Sedikides, 1992), testámos a hipótese da assimetria nos efeitos de homogeneidade em função do estatuto social relativo recorrendo a diferentes tipos de medidas. Utilizámos medidas não- obstrusivas (tarefas de recordação indiciada e de recordação livre) e medidas mais directas (tarefas de questionário), umas ligadas directamente ao conteúdo dos estereótipos grupais (tarefa de estimação de percentagens, tarefa de estimação de médias e tarefa de estimação de amplitudes) e outras medidas não relacionadas com o conteúdo dos estereótipos (tarefa de estimação de distribuições e tarefa de estimação de variabilidade). Na tarefa de recordação indiciada verificou-se um forte efeito de categorização. A comparação dos erros intergrupais com os erros intragrupais demonstrou que os participantes efectivamente categorizaram as pessoas-estímulo em dois grupos distintos: os portugueses e os angolanos. Tanto os membros do grupo dominante como os membros do grupo dominado mostraram uma forte tendência para confundir a informação acerca dos membros de um mesmo grupo-alvo do que a informação referente a membros de grupos-alvo distintos, isto é, estruturaram a informação a partir da pertença étnica das pessoas-estímulo. O efeito de categorização foi igualmente forte em ambas as versões do material-estímulo e em ambas as ordens de apresentação, validando assim o uso deste material para o exame de questões relativas à percepção de grupos.
  • 427. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 427 No que respeita aos efeitos de homogeneidade, a comparação entre os diferentes tipos de erros intragrupais (endogrupais vs. exogrupais) evidenciou a esperada assimetria em função do estatuto relativo dos grupos em presença. Consistentemente com as nossas hipóteses, os membros do grupo dominante (os participantes portugueses) demonstraram um forte efeito de homogeneidade do exogrupo, isto é, confundiram muito mais a informação respeitante às pessoas-estímulo angolanas (exogrupo) do que a informação respeitante às pessoas-estímulo portuguesas (endogrupo), enquanto que os membros do grupo dominado (os participantes angolanos) confundiram igualmente a informação respeitante ao endogrupo e ao exogrupo. Consonantemente com as nossas hipóteses, verifica-se um efeito de homogeneidade do grupo dominado, isto é, as pessoas-estímulo do grupo dominado são mais homogeneizadas do que as pessoas-estímulo do grupo dominante, independentemente dos participantes serem eles próprios pertencentes a um ou a outro grupo. Na tarefa de recordação livre, partimos da hipótese de que os protocolos de recordação dos participantes iriam revelar diferentes formas de estruturar a informação: a informação sobre o grupo dominante seria organizada preferencialmente em termos pessoais enquanto que a informação sobre o grupo dominado seria organizada preferencialmente em termos categoriais. Esta hipótese sobre a organização diferencial da informação em função do estatuto relativo dos grupos foi parcialmente verificada. As médias dos ARC-scores apresentaram as direcções previstas, demonstrando que a informação acerca das pessoas-estímulo portuguesas foi organizada preferencialmente em termos ‘pessoais’ e a informação acerca das pessoas-estímulo angolanas foi organizada preferencialmente em termos ‘categoriais’. No entanto, esta diferença foi apenas tendencialmente significativa para a globalidade da amostra. Curiosamente, foi estatisticamente significativa apenas para os participantes angolanos, que exibiram assim um significativo efeito de homogeneidade do endogrupo, enquanto que para os portugueses esta diferença não foi significativa. O facto da nossa hipótese ser verificada através de uma tripla interacção (grupo do participante x grupo-alvo x tipo de organização da informação), e ainda o reduzido número de efectivos, dificultou a obtenção de resultados estatisticamente significativos. A isto acresce o facto de se verificar uma elevada variância dos ARC-scores, e também o facto de vários participantes não produzirem os quatro ARC-scores válidos (uma vez
  • 428. Racismo e etnicidade em Portugal 428 que a análise da hipótese dependia da proporção relativa de quatro ARC-scores, bastava um deles não ser válido para excluir esse participante da análise; recordamos que pela fórmula de cálculo do ARC-score poderia obter-se uma divisão por zero, o que dá infinito, o que aconteceu com 14 participantes). Apesar destas limitações, uma vez que as diferenças esperadas foram tendencialmente significativas para a globalidade da amostra e estatisticamente significativas para os participantes angolanos, podemos afirmar que, em consonância com as nossas hipóteses, encontrámos uma assimetria no processamento da informação em função do estatuto relativo dos grupos. Os membros do grupo dominado processaram a informação referente ao endogrupo preferencialmente em termos categoriais e, simultaneamente, processaram a informação referente ao exogrupo preferencialmente em termos pessoais, isto é, homogeneizaram o endogrupo e individualizaram o exogrupo. Para os membros do grupo dominante não foram encontrados efeitos estatisticamente significativos. A hipótese da assimetria dos efeitos de homogeneidade em função do estatuto dos grupos foi também verificada através das medidas ‘directas’ obtidas a partir das tarefas do questionário. Como referimos, algumas dessas medidas são directamente ligadas ao conteúdo dos estereótipos grupais (tarefa de estimação de percentagens; tarefa de estimação de médias; e tarefa de estimação de amplitudes), mas outras medidas não estão relacionadas com o conteúdo dos estereótipos (tarefa de estimação de distribuições; e tarefa de estimação de variabilidade). As duas medidas baseadas na diferença de atribuição de traços estereotípicos e contra-estereotípicos (tarefa de estimação de percentagens e tarefa de estimação de médias) revelaram o mesmo padrão de resultados. Globalmente verificou-se um efeito de homogeneidade do exogrupo significativo, isto é, os participantes atribuíram mais traços estereotípicos ao exogrupo do que ao endogrupo e atribuíram mais traços contra- estereotípicos ao endogrupo do que ao exogrupo. Tal como prevíamos, este efeito foi fortemente significativo para os portugueses, mas não foi significativo para os angolanos. Foi encontrado um padrão de resultados semelhante com a tarefa de estimação de amplitudes. O efeito de homogeneidade do exogrupo foi muito significativo para os participantes portugueses – estes atribuíram uma maior diferença entre os membros extremos ao endogrupo do que ao exogrupo - mas não foi significativo para os participantes angolanos.
  • 429. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 429 Nas medidas derivadas da tarefa de estimação de distribuições verificou-se um padrão de resultados ligeiramente diferente. Não foram encontrados efeitos significativos com o índice de probabilidade de diferenciação. Em contrapartida, o índice de variabilidade percebida produziu um efeito de homogeneidade do endogrupo para a globalidade da amostra. Os angolanos manifestaram um efeito de homogeneidade do endogrupo muito significativo, enquanto que os portugueses exibiram níveis de homogeneização semelhantes para o endogrupo e para o exogrupo. Assim, globalmente, os angolanos foram mais homogeneizados do que os portugueses, revelando um efeito de homogeneidade do grupo dominado. Em todas estas medidas (à excepção das derivadas da tarefa de estimação de distribuições) encontramos um padrão consistente de resultados. De acordo com as nossas predições, verificou-se uma assimetria na percepção da homogeneidade grupal em função do estatuto relativo dos grupos. O grupo dominante apresenta um efeito de homogeneidade do exogrupo significativo (tarefa de estimação de percentagens, tarefa de estimação de médias, tarefa de estimação de amplitudes, e tarefa de estimação de variabilidade), enquanto que o grupo dominado homogeneizou igualmente o exogrupo e o endogrupo. Resumindo, os membros do grupo dominado são mais homogeneizados do que os membros do grupo dominante. Este resultado é encontrado em medidas ligadas aos estereótipos grupais (tarefa de estimação de percentagens e tarefa de estimação de médias), mas também em medidas sem ligação directa com os estereótipos (tarefa de estimação de variabilidade). Assim, no que respeita aos efeitos de homogeneidade, os dados suportam a nossa hipótese: o efeito de homogeneidade manifesta-se assimetricamente em função do estatuto relativo dos grupos em presença. Globalmente, o grupo dominado é mais homogeneizado do que o grupo dominante, independentemente do grupo de pertença dos participantes. Relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo Outro dos nossos objectivos era analisar o favoritismo pelo grupo de pertença e investigar a relação entre este fenómeno e os efeitos de homogeneidade. Como já referimos, a pesquisa sobre a relação entre estes fenómenos tem dado origem a resultados muito inconsistentes (Brewer, 1993; Judd et al., 1995). Avançámos com a hipótese de que a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo seja moderada pelo estatuto relativo dos grupos - variável que tem sido negligenciada na investigação anterior.
  • 430. Racismo e etnicidade em Portugal 430 Nesta investigação, as medidas de favoritismo endogrupal foram baseadas na atribuição diferencial de traços positivos e de traços negativos ao endogrupo e ao exogrupo, nas tarefas de estimação de percentagens e de estimação de médias. Encontrámos um padrão consistente de resultados em ambas as medidas: o favoritismo endogrupal foi significativo para a globalidade da amostra, isto é, os participantes atribuíram uma média superior de traços positivos e uma média inferior de traços negativos ao endogrupo comparativamente com o exogrupo. Esta diferença foi muito significativa para os participantes angolanos, mas não foi significativa para os participantes portugueses. Assim, estes resultados apontam para a ausência de uma relação directa entre o favoritismo endogrupal e o efeito de homogeneidade do exogrupo. Os participantes portugueses manifestaram um forte efeito de homogeneidade do exogrupo mas não exibiram favoritismo endogrupal, enquanto que os participantes angolanos manifestaram um forte favoritismo endogrupal, mas o efeito de homogeneidade do exogrupo não foi significativo. Resultados semelhantes foram obtidos por Judd e colaboradores (1995) numa investigação sobre a percepção de variabilidade grupal e etnocentrismo com afro- americanos (African Americans) e euro-americanos (White Americans): o etnocentrismo foi significativo nos participantes afro-americanos enquanto que os participantes euro- americanos se mostraram ligeiramente mais favoráveis face ao exogrupo do que face ao endogrupo. Segundo os autores, este resultado pode ser explicado pelos diferentes padrões de socialização: os afro-americanos e os euro-americanos atribuem um significado diferente à identidade étnica. Os membros das minorias étnicas são socializados no sentido de considerar a pertença étnica como uma componente importante do seu auto-conceito, para encarar a etnicidade como algo a ser salientado em vez de ignorado. Em contraste, os americanos brancos são actualmente socializados para evitar fazer distinções com base na pertença étnica. Segundo a perspectiva da socialização diferencial, os americanos brancos não manifestaram etnocentrismo porque teriam interiorizado os valores da perspectiva “color-blind” (Judd et al., 1995, p.470). Tal como na presente investigação, os resultados obtidos por Judd et al. (1995) sugerem uma relação não linear entre o favoritismo pelo grupo de pertença e a percepção da variabilidade grupal. Embora os resultados do presente estudo sejam análogos aos obtidos por Judd et al. (1995) no que respeita ao etnocentrismo, no entanto, a interpretação fornecida por estes autores parece esquecer que os membros dos grupos dominados são marcados pela sua pertença, isto é, que a sociedade está sempre a torná-la saliente. Por
  • 431. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 431 outro lado, os membros do grupo dominante podem não ter interiorizado os valores da perspectiva “color-blind”, mas apenas agir em conformidade com ela numa estratégia de auto-apresentação consonante com as normas sociais em vigor. Este padrão de resultados, algo surpreendente, obtido com as medidas de favoritismo, tornou-se claro quando procedemos à operacionalização de novas medidas: desdobrámos as medidas da variabilidade grupal percebida em função da valência dos traços (separadamente para traços positivos e para traços negativos) e desdobrámos as medidas de favoritismo em função da estereotipicalidade dos traços (separadamente para traços estereotípicos e traços contra-estereotípicos). Estas novas medidas permitiram-nos verificar que os dois grupos de participantes optaram por estratégias diferenciadas de homogeneização ou heterogeneização em função da valência dos traços de que dispunham para proceder à descrição do endogrupo e do exogrupo. Os participantes angolanos face a traços positivos homogeneízam o endogrupo comparativamente ao exogrupo, mas face a traços negativos heterogeneízam o endogrupo comparativamente ao exogrupo. Em contrapartida, os participantes portugueses face a traços positivos heteregeneízam o endogrupo comparativamente ao exogrupo, mas face a traços negativos, não estabelecem uma diferenciação entre o endogrupo e o exogrupo. Uma vez que a análise dos efeitos de homogeneidade controlando a valência dos traços (positivos vs. negativos) nos forneceu uma nova visão sobre as estratégias de homogeneização ou heteregeneização dos grupos em função do seu estatuto relativo, decidimos proceder de forma equivalente para a análise do favoritismo endogrupal. Neste sentido, calculámos novas medidas de favoritismo, duas integrando apenas os traços estereotípicos e duas integrando apenas os traços contra-estereotípicos. Verificámos que os dois grupos de participantes optaram por estratégias diferenciadas de favoritismo em função da estereotipicalidade dos traços de que dispunham para proceder à descrição do endogrupo e do exogrupo. Os participantes angolanos demonstram favoritismo endogrupal quando os traços são estereotípicos, mas não favorecem nem o endogrupo nem o exogrupo quando os traços são contra-estereotípicos. Em contrapartida, os portugueses demonstram favoritismo exogrupal quando os traços são estereotípicos, mas demonstram favoritismo endogrupal quando os traços são contra-estereotípicos. Assim, verifica-se que os participantes angolanos e os participantes portugueses apresentam estratégias diferenciadas de favoritismo em função do carácter estereotípico ou contra-estereotípico dos traços em causa. Os participantes angolanos face a traços estereotípicos favorecem o endogrupo face ao exogrupo, mas face a traços contra-
  • 432. Racismo e etnicidade em Portugal 432 estereotípicos não favorecem nem o endogrupo nem o exogrupo. Em contrapartida, os participantes portugueses face a traços estereotípicos favorecem o exogrupo face ao exogrupo, mas face a traços contra-estereotípicos, favorecem o endogrupo face ao exogrupo. Isto é, para os angolanos parece ser mais importante reforçar uma identidade grupal coesa nos traços estereotípicos, mesmo que isso se traduza numa homogeneização do endogrupo, enquanto que para os participantes portugueses parece ser mais importante heterogeneizar o endogrupo, mesmo que isso contribua para uma imagem menos positiva do endogrupo face ao exogrupo. Em consonância com as nossas hipóteses, estes resultados demonstram que não existe uma relação linear entre o efeito de homogeneidade do exogrupo e o favoritismo endogrupal: esta relação depende do estatuto dos grupos em presença e das suas estratégias de diferenciação positiva. Para os participantes portugueses a “diferenciação positiva” é conseguida através da afirmação da heterogeneidade endogrupal (“nós somos todos diferentes”), mesmo que isso implique abdicar de traços estereotípicos positivos, enquanto que para os angolanos a “diferenciação positiva” é conseguida através da reivindicação de traços estereotípicos positivos e da negação dos traços estereotípicos negativos, contribuindo assim para a homogeneização do endogrupo. Mediação da variabilidade grupal percebida e do favoritismo endogrupal Neste estudo pretendemos ainda explorar o papel mediador de algumas variáveis na percepção da variabilidade grupal e no favoritismo endogrupal: a representação do self; o nível de identificação com o endogrupo e o exogrupo; e o nível de contacto com o endogrupo e com o exogrupo. Auto-descrição. Neste estudo averiguámos até que ponto o estatuto relativo dos grupos em presença se reflecte na forma como o indivíduo se descreve em conformidade com os traços estereotípicos do endogrupo. Em consonância com as nossas hipóteses, os participantes angolanos descrevem-se a si próprios de forma consonante com os estereótipos do endogrupo (recorrendo mais aos traços estereotípicos do endogrupo do que aos traços contra-estereotípicos) enquanto que os participantes portugueses preferem descrever-se de uma forma dissonante com os estereótipos do endogrupo. Isto é, os membros do grupo dominante enfatizam a sua diferenciação interpessoal dentro do grupo de pertença, enquanto que os membros do grupo dominado
  • 433. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 433 enfatizam a indiferenciação interpessoal dentro do endogrupo (e.g., Deschamps, 1982a; Lorenzi-Cioldi, 1988). Esta assimetria nos padrões de diferenciação dos indivíduos face ao seu grupo de pertença parece ir ao encontro dos resultados obtidos nas diversas medidas de variabilidade grupal percebida: os membros do grupo dominado homogeneízam o endogrupo e enfatizam a indiferenciação do self face ao grupo de pertença, enquanto que os membros do grupo dominante heterogeneízam o endogrupo e enfatizam a diferenciação do self face ao grupo de pertença. Quanto à valência dos traços, tanto os participantes angolanos como os participantes portugueses se descrevem a si próprios recorrendo mais aos traços positivos do que aos traços negativos, o que vai ao encontro da norma da positividade nas descrições de pessoas e de grupos (Zajonc, 1968). Contrariamente às nossas expectativas, a distância absoluta das auto-descrições face à média do endogrupo não variou significativamente em função do grupo dos participantes. Embora a distância das auto-descrições face à média do endogrupo seja equivalente para participantes portugueses e angolanos, tal deve-se a uma aproximação dos angolanos dos traços estereotípicos do endogrupo e a uma aproximação dos portugueses dos traços contra-estereotípicos do endogrupo. Para os participantes angolanos a distância das auto-descrições face à tendência central atribuída ao endogrupo é significativamente menor para os traços estereotípicos do que para os traços contra-estereotípicos, enquanto que para os participantes portugueses a distância das auto-descrições face à tendência central atribuída ao endogrupo não é significativamente diferente para os traços estereotípicos e para os traços contra-estereotípicos. As auto-descrições dos participantes foram significativamente mais próximas da tendência central do endogrupo nos traços positivos do que nos traços negativos, independentemente do grupo de pertença dos participantes. No que respeita à valência dos traços, os dois grupos de participantes apresentam estratégias semelhantes: ambos se aproximam da tendência central do endogrupo nos traços positivos e se distanciam da tendência central do endogrupo nos traços negativos. Assim, a principal diferença nas estratégias de diferenciação pessoal face ao endogrupo que observamos nos participantes dá-se ao nível da estereotipicalidade dos traços: os membros do grupo dominado distanciam-se mais da tendência central do endogrupo quando são confrontados com traços contra-estereotípicos do que quando
  • 434. Racismo e etnicidade em Portugal 434 confrontados com traços estereotípicos, enquanto que os membros do grupo dominante se distanciam mais face aos traços estereotípicos do que contra-estereotípicos, embora esta diferença não seja estatisticamente significativa. Nível de identificação grupal. No que respeita aos níveis de identificação endogrupal e exogrupal, verificámos que ambos os grupos de participantes se identificam mais fortemente com o endogrupo do que com o exogrupo. Esta diferença é mais acentuada para os participantes portugueses do que para os participantes angolanos, o que vai ao encontro das nossas hipóteses. Colocámos a hipótese dos níveis de identificação dos participante angolanos com o o endogrupo e com o exogrupo variarem significativamente em função do seu tempo de permanência em Portugal (menos de 6 anos vs. mais de 6 anos). De facto, constatámos que alguns dos participantes angolanos vieram com idades muito jovens para Portugal, e aqui viveram os períodos mais marcantes de socialização. Tal como prevíamos, o nível de identificação endogrupal dos angolanos é menor quanto maior o seu tempo de permanência em Portugal. De notar que os que residem em Portugal há mais de 6 anos vieram para o nosso país quando crianças ou adolescentes, o que sem dúvida influenciou o seu processo de socialização. De notar ainda que o nível de identificação endogrupal dos angolanos que residem em Portugal há menos tempo é superior ao nível de identificação endogrupal dos portugueses, o que vai ao encontro dos dados obtidos em estudos anteriores com grupos dominados (e.g., Cabecinhas, 1994). As análises de variância efectuadas sobre as medidas de variabilidade grupal fazendo co-variar os níveis de identificação endogrupal e de identificação exogrupal não produziram resultados significativos, isto é, os efeitos de homogeneidade não variaram significativamente em função da alta ou baixa identificação com os grupos. Assim, o nível de identificação endogrupal e o nível de identificação exogrupal não parecem mediar a variabilidade grupal percebida. Em contrapartida, no que diz respeito às análises de co-variância efectuadas sobre as medidas de favoritismo endogrupal, verificámos que quanto maior é o nível de identificação exogrupal menor é o favoritismo endogrupal, especialmente para os participantes angolanos. Assim, o nível de identificação exogrupal (mas não o nível de identificação endogrupal) parece mediar a manifestação do favoritismo pelo grupo de pertença.
  • 435. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 435 Nível de contacto. Por último, analisámos os níveis de contacto entre os grupos. Globalmente os participantes consideram ter maior familiaridade com o endogrupo do que com o exogrupo. Tal como esperávamos, esta diferença é mais acentuada para os participantes portugueses do que para os participantes angolanos. Para os participantes angolanos, o nível de contacto com o exogrupo é tanto maior quanto maior o seu tempo de permanência Portugal, mas o nível de contacto com o endogrupo não varia significativamente em função do tempo de permanência em Portugal. Comparando a evolução dos níveis de identificação e dos níveis de familiaridade com o exogrupo, verificamos que estes evoluem na mesma direcção: à medida que aumenta o contacto com os portugueses, aumenta também o nível de identificação dos angolanos com o exogrupo. As análises de variância efectuadas sobre as medidas de variabilidade grupal percebida fazendo co-variar os níveis de contacto endogrupal e de contacto exogrupal não produziram resultados significativos. Assim, não há evidência de mediação da variabilidade grupal percebida pelos níveis de contacto endogrupal e exogrupal. No que respeita às medidas de favoritismo endogrupal, as análises de co-variância efectuadas revelaram que para os participantes angolanos quanto maior o nível de contacto com o exogrupo menor o favoritismo endogrupal. Em contrapartida, para os participantes portugueses o nível de favoritismo endogrupal não difere significativamente em função do nível de contacto exogrupal. Assim, o nível de contacto exogrupal parece ser um mediador do favoritismo endogrupal, mas o seu efeito só é significativo para os angolanos: quanto maior o nível de contacto com os portugueses menor o favoritismo endogrupal demonstrado. Resumindo, no que respeita à percepção da variabilidade grupal, nem o nível de contacto endogrupal nem o nível de contacto exogrupal produziram resultados significativos, isto é, os efeitos de homogeneidade não variaram significativamente em função do alto ou baixo contacto com os grupos. Assim, parece difícil argumentar que o efeito de homogeneidade do exogrupo é uma simples consequência do nível de contacto e da informação recolhida sobre os grupos (Lorenzi-Cioldi, 1998; Park e Judd, 1990; Park e Rothbart, 1982). Neste estudo demonstrámos uma assimetria nos efeitos de homogeneidade em função do estatuto dos grupos: o grupo dominado foi mais homogeneizado do que o
  • 436. Racismo e etnicidade em Portugal 436 grupo dominante, independentemente do grupo de pertença do participante. Além disso, esta assimetria foi demonstrada usando medidas ‘indirectas’ e medidas ‘directas’. Parece-nos, no entanto, relevante verificar se este padrão de resultados se mantêm quando os grupos são definidos a partir da categorização racial (brancos vs. negros), em que as pressões de ordem normativa são mais activadas do que quando os grupos são definidos a partir da categorização nacional (angolanos vs. portugueses). Nesta investigação explorámos ainda questões sobre as quais existe certa controvérsia teórica e inconsistência de dados empíricos, como, por exemplo, a relação entre o efeito de homogeneidade do exogrupo e o favoritismo endogrupal, assim como o papel do nível de identificação grupal e do nível de contacto entre os grupos na manifestação destes fenómenos. No que respeita à relação entre a percepção de variabilidade grupal e o favoritismo endogrupal, os nossos dados indicam que a relação entre o efeito de homogeneidade do exogrupo e o favoritismo endogrupal é moderada pelo estatuto do grupo de pertença. Para os membros do grupo dominado parece ser mais importante reforçar uma identidade grupal coesa nos traços estereotípicos, mesmo que isso se traduza numa homogeneização do endogrupo, enquanto que para os membros do grupo dominante parece ser mais importante heterogeneizar o endogrupo, mesmo que isso contribua para uma imagem menos positiva do endogrupo face ao exogrupo. Este parece-nos um dos resultados mais interessantes e inovadores deste estudo. Não conhecemos nenhum outro estudo que tenha estudado a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo tendo em conta o estatuto relativo dos grupos em presença. Do ponto de vista metodológico efectuámos um considerável esforço para operacionalizar medidas de variabilidade grupal percebida controlando os efeitos de favoritismo e, reciprocamente, para operacionalizar medidas de favoritismo controlando os efeitos da estereotipicalidade dos traços. Sendo um resultado de investigação inédito torna-se necessário replicá-lo em condições diferentes. De facto, neste estudo analisámos a relação entre a variabilidade grupal percebida e o favoritismo endogrupal através de medidas ‘directas’ derivadas do questionário. Parece-nos extremamente pertinente averiguar até que ponto este padrão de resultados pode ser replicado recorrendo a medidas ‘indirectas’ baseadas na memorização diferencial da informação sobre os grupos. Este é um dos objectivos a que o estudo experimental seguinte procura responder.
  • 437. Racismo e etnicidade em Portugal 437 5.3 Estudo 5 - Homogeneização de uma minoria étnica 5.3.1 Introdução Este estudo foi realizado com o objectivo de replicar alguns dos resultados encontrados no estudo anterior, no sentido de uma maior validação dos mesmos e de um aprofundamento da sua discussão. Assim os objectivos e hipóteses enunciados na introdução do Estudo 4 mantêm-se para este este estudo. Pretendíamos, ainda, abordar novas questões, nomeadamente verificar a saliência categorial da cor da pele (negros vs. brancos) isoladamente ou misturada com a classificação da nacionalidade já utilizada no estudo anterior (angolanos vs. portugueses), e analisar a relação entre as atitudes ou orientações racistas e os processos perceptivos e os juízos sobre os grupos. O objectivo central do estudo anterior foi a análise do papel do estatuto social relativo nos efeitos de homogeneidade. De acordo com a nossa hipótese, verificou-se uma assimetria nos efeitos de homogeneidade em função do estatuto dos grupos definidos pela nacionalidade (angolanos vs. portugueses). Os participantes portugueses homogeneizaram fortemente o exogrupo enquanto que os participantes angolanos manifestaram níveis semelhantes de homogeneização do exogrupo e do endogrupo. Isto é, globalmente, o grupo dominado foi mais homogeneizado, independentemente do grupo de pertença do participante. Parece-nos, no entanto, relevante verificar se este padrão de resultados se mantem quando os grupos são definidos a partir da categorização racial (brancos vs. negros), em que a norma anti-discriminação é mais facilmente activada. No que respeita especificamente aos efeitos de categorização, pretendemos verificar a saliência da categorização racial (da cor da pele), isoladamente ou conjuntamente com a categorização nacional. A nossa hipótese é que em ambas as situações se verifique um forte efeito de categorização, mas este seja mais acentuado quando os dois sistemas de categorização estão disponíveis (uma vez que estão em consonância com o estereótipo: todos os portugueses são brancos e todos os angolanos são negros). Outro dos nossos objectivos do estudo anterior era analisar o favoritismo pelo grupo de pertença e investigar a relação entre este fenómeno e os efeitos de homogeneidade. Tal como esperávamos, verificou-se que a relação entre o efeito de
  • 438. Racismo e etnicidade em Portugal 438 homogeneidade do exogrupo e o favoritismo endogrupal é moderada pelo estatuto do grupo de pertença. Para os membros do grupo dominado parece ser mais importante reforçar uma identidade grupal coesa nos traços estereotípicos, o que se traduz numa homogeneização do endogrupo, enquanto que para os membros do grupo dominante parece ser mais importante heterogeneizar o endogrupo, o que conduz a imagem menos positiva do endogrupo face ao exogrupo. Sendo um resultado de investigação inédito torna-se necessária a sua replicação, de preferência recorrendo a outro tipo de medidas. No estudo anterior analisámos a relação entre a variabilidade grupal percebida e o favoritismo endogrupal através de medidas ‘directas’ derivadas do questionário. Parece-nos extremamente pertinente averiguar até que ponto este padrão de resultados pode ser replicado recorrendo a medidas ‘indirectas’, baseadas na memorização diferencial da informação sobre os grupos, e por isso menos susceptíveis de controlo da parte dos participantes. No estudo anterior explorámos o papel mediador de algumas variáveis na percepção da variabilidade grupal: a representação do self; o nível de identificação com o endogrupo e o exogrupo; e o nível de contacto com o endogrupo e com o exogrupo. De um modo geral os resultados apontaram para a inexistência de correlações significativas entre estas variáveis. Neste estudo vamos retomar este objectivo introduzindo algumas alterações na forma como estas variáveis foram medidas, como explicaremos mais adiante. Apresentados os objectivos deste estudo, passamos à explicitação das diferenças em termos metodológicos relativamente ao estudo anterior. Como referimos, um dos objectivos deste estudo experimental foi a replicação de alguns dos resultados obtidos no estudo anterior, no sentido de uma maior validação dos mesmos. Assim, o desenho experimental foi bastante idêntico tal como as medidas recolhidas no questionário que se seguiu à tarefa de recordação. Relativamente ao desenho experimental, a principal diferença consistiu no material-estímulo apresentado aos participantes. No estudo anterior as oito pessoas- estímulo (4 angolanas e 4 portuguesas) eram descritas através de quatro características estereotípicas do respectivo grupo, sendo estas descrições moderadamente positivas. As duas versões do material-estímulo diferiam no tipo de características associadas às pessoas-estímulo de cada grupo (na Versão A as pessoas-estímulo angolanas eram
  • 439. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 439 descritas através de características ligadas à esfera privada e as pessoas-estímulo portuguesas eram descritas através de características ligadas à esfera pública, enquanto que na Versão B as pessoas-estímulo angolanas eram descritas através de características ligadas à esfera pública e as pessoas-estímulo portuguesas eram descritas através de características ligadas à esfera privada), mas não diferiam significativamente nem em termos do carácter estereotípico nem em termos da valência avaliativa dessas características. A identificação das pessoas-estímulo era efectuada pelo nome e nacionalidade (e.g., Manuel, angolano; José, português). Neste estudo existem igualmente duas versões do material-estímulo (A e B), mas a diferença entre estas versões não reside no tipo de características utilizadas para descrever as pessoas-estímulo, mas sim no tipo de identificação das pessoas-estímulo: na Versão A as pessoas-estímulo são identificadas pela fotografia (negros vs. brancos), pelo nome próprio e pela nacionalidade (angolanos vs. portugueses); na Versão B é omitida a nacionalidade, isto é, as pessoas-estímulo são identificadas pela fotografia (negros vs. brancos) e pelo nome próprio. A descrição das pessoas-estímulo é efectuada igualmente através de quatro características e não varia de versão para versão. Outra diferença fundamental em relação ao estudo anterior consiste no facto da valência dos traços usados para descrever cada pessoa-estímulo ser sistematicamente controlada e balançada, isto é, cada pessoa-estímulo é descrita através de um traço positivo, seguido de um traço neutro, seguido de um traço negativo, seguido de um traço neutro, de modo que todas as pessoas-estímulo são descritas de forma globalmente neutra e moderadamente estereotípica. Esta alteração do desenho experimental permite-nos estudar a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo de forma ‘indirecta’. Relativamente ao questionário aplicado depois da tarefa de recordação, este é semelhante ao utilizado no estudo anterior, mas foram-lhe acrescentadas algumas medidas numa tentativa de esclarecer alguns aspectos insuficientemente explorados nesse estudo. As medidas de variabilidade grupal percebida são as mesmas, com excepção das medidas derivadas da tarefa de estimação de distribuições que não foi efectuada (visto que no estudo anterior os participantes revelaram alguma dificuldade em compreender a tarefa) e foi acrescentada uma medida de estimação de semelhança do indivíduo face aos grupos-alvo (endogrupo e exogrupo). Quanto às medidas de favoritismo, mantiveram-se as do estudo anterior, e acrescentaram-se duas medidas de discriminação. Como referimos no Capítulo 1,
  • 440. Racismo e etnicidade em Portugal 440 Pettigrew e Meertens (1995) conceberam uma medida de racismo com duas escalas: uma escala de racismo flagrante, que inclui as subescalas “ameaça e rejeição” e “rejeição de intimidade”, e uma escala de racismo subtil, que inclui as subescalas “defesa de valores tradicionais”, “negação de emoções positivas” e “acentuação das diferenças culturais”. Estas escalas foram traduzidas para português e aferidas para a população portuguesa por Vala e colaboradores (Vala, 1999; Vala, Brito e Lopes, 1999a)71 . Estas escalas foram elaboradas para inquirir membros de grupos maioritários acerca de grupos minoritários nas respectivas sociedades: os franceses sobre os norte- africanos e sobre os asiáticos, os ingleses sobre os antilhanos e sobre os asiáticos, os holandeses sobre os surinameses e sobre os turcos, e os alemães sobre os turcos (Pettigrew e Meertens, 1995); os italianos sobre os marroquinos (Arcuri e Boca, 1999); e os portugueses sobre os imigrantes negros (Vala, Brito e Lopes, 1999a). No entanto, não conhecemos nenhuma escala de racismo preparada para ser respondida também pelos grupos minoritários ou dominados. Assim, recorremos às duas únicas sub-escalas que poderiam ser respondidas tanto pelo grupo dominante (portugueses) como pelo grupo minoritário (angolanos): a “acentuação de diferenças culturais” e a “negação da expressão de emoções positivas”, ambas sub-escalas de racismo subtil (Pettigrew e Meertens, 1995). Relativamente às medidas sobre os níveis de identificação e os níveis de contacto entre os grupos também efectuámos algumas alterações. Acrescentámos ainda outras variáveis que nos permitissem comparar os nossos dados com os resultados de outros estudos entretanto efectuados em Portugal (Vala, Brito e Lopes, 1999a). Assim foram acrescentadas medidas relativas a variáveis interpessoais, nomeadamente o nível de tolerância face à diferença. 71 A versão portuguesa foi-nos gentilmente concedida pelos autores aquando da realização do Seminário Expressões dos Racismos – Perspectivas Psicossociológicas, que decorreu no Palácio da Fronteira em Outubro de 1997.
  • 441. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 441 5.3.2 Método 5.3.2.1 Participantes e desenho experimental Participaram neste estudo 137 estudantes, 54 angolanos (25 rapazes e 29 raparigas) e 83 estudantes portugueses (21 rapazes e 62 raparigas). A idade média é de 20 anos, não diferindo significativamente em função do sexo dos participantes (?2 =15.168, p<0.232). No entanto, a idade média difere significativamente em função do grupo dos participantes, sendo os angolanos mais velhos do que os portugueses (respectivamente 22 anos e 19 anos, ?2 =67.03, p<0.001). Todos os participantes angolanos nasceram em Angola, tendo vindo para Portugal para estudar (83.3%), para trabalhar (3.7%) ou à procura de melhores condições de vida (9.3%). Vieram sozinhos (37.0%), com a família (35.2%) ou com amigos (20.4%). Em média, vivem em Portugal há 5 anos, e 1.3 % adquiriram a nacionalidade portuguesa72 . Este estudo foi constituído por duas fases. Na primeira fase, foram apresentadas aos participantes as descrições de oito pessoas-estímulo, sendo estes posteriormente confrontados com uma tarefa de recordação da informação recebida. Tal como no estudo anterior, esta tarefa de recuperação da informação memorizada permitiu o cálculo de medidas indirectas de variabilidade grupal percebida. Cada participante recebeu informação referente a oito pessoas-estímulo, quatro angolanas e quatro portuguesas. Por razões associadas ao controlo dos dados, utilizámos duas ordens de apresentação das pessoas-estímulo: para aproximadamente metade dos participantes a primeira pessoa-estímulo apresentada era angolana, sendo seguida de uma portuguesa e assim sucessivamente, enquanto que para a outra metade dos participantes a primeira pessoa-estímulo apresentada era portuguesa, sendo seguida de uma angolana. Utilizámos igualmente duas versões do material-estímulo (versão A e versão B), mas enquanto no estudo anterior as duas versões do material correspondiam a descrições alternativas das pessoas-estímulo, neste estudo as duas versões do material correspondem a duas formas de apresentação e identificação das pessoas-estímulo que 72 Foram considerados como ‘angolanos’ os participantes de naturalidade angolana que se auto- categorizaram como ‘angolanos’, independentemente da sua nacionalidade ser angolana ou portuguesa. Quanto aos participantes ‘portugueses’, todos eles tinham nacionalidade e naturalidade portuguesa, e além disso auto-categorizaram-se como ‘portugueses’.
  • 442. Racismo e etnicidade em Portugal 442 correspondem a diferentes contextos de saliência categorial: na Versão A as pessoas- estímulo são identificadas pela fotografia, nome, e nacionalidade; e na Versão B as pessoas-estímulo são identificadas pela fotografia e nome. Na segunda fase, os participantes responderam a um questionário com medidas “directas” da variabilidade grupal percebida, medidas de favoritismo endogrupal e de ‘racismo subtil’, medidas de identificação e de contacto com os grupos, e finalmente, medidas de controlo dos materiais e do contexto da experiência. Mais uma vez, a ordem das questões foi contrabalançada, sendo que aproximadamente metade dos participantes começava por responder às questões sobre os angolanos e depois respondia às questões sobre os portugueses, enquanto a outra metade dos participantes começava por responder às questões sobre os portugueses e só depois respondia em relação aos angolanos. Assim, o desenho experimental foi o seguinte: 2 (grupo-alvo: endogrupo vs. exogrupo) x 2 (grupo do participante: angolanos vs. portugueses) x 2 (ordem de apresentação dos grupos-alvo: primeiro os angolanos vs. primeiro os portugueses) x 2 (versão do material-estímulo: A vs. B). Todas as variáveis são inter-participantes, à excepção da primeira que é intra-participantes. Os participantes angolanos e portugueses foram aleatoriamente distribuídos pelas diferentes condições experimentais. Estes dados foram recolhidos na Universidade do Minho em Outubro e Novembro de 2000. Tabela 60 - Distribuição dos participantes angolanos e portugueses por condição experimental Grupo dos participantes Condição experimental Angolanos Portugueses Total 1 = Versão A - Ordem 1 13 23 36 2 = Versão A - Ordem 2 12 22 34 3 = Versão B - Ordem 1 14 21 35 4 = Versão B - Ordem 2 15 17 32 Total 54 83 137 Nota: Versão A = Identificação das pessoas-estímulo pelo nome, fotografia e nacionalidade Versão B = Identificação das pessoas-estímulo pelo nome e fotografia Ordem 1 = Primeira pessoa-estímulo angolana Ordem 2 = Primeira pessoa-estímulo portuguesa
  • 443. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 443 5.3.2.2 Materiais-estímulo As fotografias das pessoas-estímulo (tanto brancas como negras) foram recolhidas em Lisboa (de modo a diminuir a possibilidade de algum participante reconhecer alguma das pessoas que cederam a sua fotografia para a experiência). As fotografias, de jovens da mesma faixa etária dos participantes na experiência, foram seleccionadas de acordo com os seguintes critérios: os jovens não mostram qualquer expressão facial particular, não possuem nenhumas características somáticas notáveis, nem marcas particulares, usam vestuário informal (camisa ou t-shirt). As fotografias foram digitalizadas e trabalhadas de modo a que todas as fotografias tivessem o mesmo fundo branco. As descrições das oito pessoas-estímulo utilizadas nesta experiência foram elaboradas a partir dos resultados do Estudo 3c, em função do carácter estereotípico dos traços e da sua valência avaliativa tendo como referente o estereótipo de pessoa adulta na sociedade portuguesa. Estes traços foram seleccionados tendo em conta os seguintes critérios: a existência de consenso entre os participantes angolanos e portugueses quanto ao carácter estereotípico de cada traço e simultaneamente quanto à sua valência avaliativa73 . Cada pessoa-estímulo foi descrita através de quatro traços estereotípicos do seu grupo étnico e cuja valência foi sistematicamente controlada: um traço positivo, um traço negativo, e dois traços neutros. A Tabela 61 apresenta as descrições das oito pessoas-estímulo usadas neste estudo experimental. Como se pode observar, cada pessoa-estímulo é descrita através de quatro traços, o que totaliza 32 traços. A ordem de apresentação dos traços para cada pessoa- estímulo foi mantida fixa (de acordo com a ordem que está indicada na Tabela 61). 73 Sendo díficil encontrar atributos negativos considerados consensualmente (tanto por participantes angolanos como por participantes portugueses) estereotípicos de cada grupo-alvo, recorremos aos atributos negativos cuja classificação mais se aproximou dos valores exigidos para serem considerados estereotípicos de um grupo e contra-estereotípicos do outro grupo.
  • 444. Racismo e etnicidade em Portugal 444 Tabela 61 - Material-estímulo (Versões A e B) Versão A Identificação das pessoas-estímulo pela fotografia, nome e nacionalidade Angolanos (negros) Valência dos traços Manuel Jorge António João Positivo Caloroso Comunicativo Divertido Sociável Neutro Cheio de ritmo Amante do prazer Musical Artístico Negativo Supersticioso Invejoso Conflituoso Desconfiado Neutro Desorganizado Impulsivo Emotivo Vaidoso Portugueses (brancos) Valência dos traços José Paulo Pedro Carlos Positivo Criativo Corajoso Dinâmico Honesto Neutro Ambicioso Aventureiro Desportivo Tradicionalista Negativo Fechado Frio Egoísta Pessimista Neutro Saudosista Orgulhoso Guloso Reservado Versão B Identificação das pessoas-estímulo pela fotografia e nome (negros) Valência dos traços Manuel Jorge António João Positivo Caloroso Comunicativo Divertido Sociável Neutro Cheio de ritmo Amante do prazer Musical Artístico Negativo Supersticioso Invejoso Conflituoso Desconfiado Neutro Desorganizado Impulsivo Emotivo Vaidoso (brancos) Valência dos traços José Paulo Pedro Carlos Positivo Criativo Corajoso Dinâmico Honesto Neutro Ambicioso Aventureiro Desportivo Tradicionalista Negativo Fechado Frio Egoísta Pessimista Neutro Saudosista Orgulhoso Guloso Reservado Nota: A categorização baseada na cor da pele (brancos vs. negros) nunca era mencionada nem nas instruções nem no material-estímulo, sendo apenas induzida através das fotografias das pessoas-alvo. Quanto ao questionário, os julgamentos sobre os grupos-alvo foram efectuados a partir de uma reduzida lista de traços que era apresentada aos participantes. Estes traços foram seleccionados a partir dos resultados do Estudo 3c, tendo em conta os seguintes critérios: a existência de consenso entre os participantes angolanos e portugueses quanto
  • 445. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 445 ao carácter estereotípico de cada traço e simultaneamente quanto à sua valência avaliativa74 . Assim foram seleccionados dois traços estereotípicos dos angolanos – alegres (positivo) e preguiçosos (negativo) e dois traços estereotípicos dos portugueses – trabalhadores (positivo) e individualistas (negativo). A única diferença relativamente ao questionário do estudo anterior é a utilização do traço alegres em vez de festivos, já que este último traço tem um nível de positividade significativamente mais baixo quando se tem como referente o estereótipo de pessoa adulta. 5.3.2.3 Procedimento de recolha de dados Os estudantes angolanos e portugueses participaram em pequenos grupos, sendo os dados recolhidos sempre pela mesma investigadora. No início da sessão, os estudantes foram convidados a participar numa experiência sobre percepção de pessoas, sendo-lhes dito que iriam receber informação acerca de oito jovens, em que a sua tarefa era formar uma impressão acerca de cada jovem. Seguidamente os participantes foram confrontados com uma tarefa de recordação da informação recebida. A investigadora começa por distribuir a cada participante um caderno (tamanho A7) com as descrições das oito pessoas-estímulo, quatro angolanas e quatro portuguesas (ver Anexo 16). Na folha de rosto do caderno, as instruções explicam aos participantes que a sua tarefa é formar uma impressão e recordar a informação recebida sobre cada pessoa-estímulo e que só deverão avançar na leitura de cada página à medida que forem recebendo instruções nesse sentido por parte da investigadora. Cada pessoa-estímulo é descrita numa página separada. No topo da página, aparece a fotografia e o nome próprio (no caso da Versão A aparece também a sua nacionalidade: angolano ou português), e seguidamente, os quatro atributos, cada um numa linha diferente. A apresentação das pessoas-estímulo é feita em ordem alternada: um angolano, seguido de um português, seguido de um angolano, e assim sucessivamente. Aproximadamente metade dos participantes começa por uma pessoa- estímulo angolana seguida de uma portuguesa (Ordem 1) e a outra metade dos 74 Mais uma vez, sendo difícil encontrar atributos negativos considerados consensualmente (tanto por participantes angolanos como por participantes portugueses) estereotípicos de cada grupo-alvo, recorremos aos atributos negativos cuja classificação mais se aproximou dos valores exigidos para serem considerados estereotípicos de um grupo e contra-estereotípicos do outro grupo.
  • 446. Racismo e etnicidade em Portugal 446 participantes começa por uma pessoa-estímulo portuguesa seguida de uma angolana (Ordem 2). Os participantes têm 20 segundos para examinar cada página, isto é, cada descrição, sendo a investigadora que, com a ajuda de um cronómetro indica aos participantes o momento de passar à página seguinte. Terminada a leitura das oito descrições (2’40’’), a investigadora recolhe os materiais e distribui a cada participante um envelope contendo as oito fotografias das pessoas-estímulo e o respectivo nome próprio, e uma página A4 com uma matriz contendo 8 colunas, cada uma encabeçada pelo nome de uma pessoa-estímulo (e a respectiva identificação nacional na Versão A) e 32 linhas, contendo em ordem aleatória os atributos constantes nos retratos das pessoas- estímulo. Os participantes são instruídos no sentido de indicarem que pessoa-estímulo era descrita por cada atributo, colocando uma cruz na coluna apropriada para cada linha da matriz75 . Passados 10 minutos, é dada por terminada a tarefa de recordação indiciada e são recolhidas as matrizes de resposta. Uma vez recolhidos os materiais correspondentes à tarefa de recordação, cada participante recebe um questionário (ver Anexo 18) com uma série de questões sobre cada um dos grupos-alvo: os angolanos e os portugueses, sendo a ordem dos grupos- alvo contrabalançada. A investigadora salienta que a tarefa seguinte será de natureza completamente diferente da precedente, pois o que interessa agora é a opinião dos participantes sobre uma série de questões. Neste sentido, a investigadora apela para a sinceridade dos participantes no preenchimento das suas respostas e garante a confidencialidade das mesmas. Embora divergindo relativamente a algumas questões, este questionário seguiu a mesma estrutura do aplicado no estudo anterior. Na primeira secção do questionário os participantes realizaram uma série de tarefas que consistiam na descrição dos dois grupos-alvo através de um número limitado de atributos e que permitiram o cálculo de diversas medidas de variabilidade grupal percebida, medidas de tendência central percebida e também medidas de favoritismo endogrupal. Seguidamente, era pedido aos participantes para se descreveram a si próprios através dos mesmos atributos usados para descrever os grupos-alvo. 75 Foram utilizadas quatro matrizes de recordação diferentes em função das quatro condições experimentais associadas à recordação indiciada: 1A = Ordem 1 – Versão A; 2A = Ordem 2 – Versão A; 1B = Ordem 1 – Versão B; 2B = Ordem 2 – Versão B (ver Anexo 17).
  • 447. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 447 Na segunda secção do questionário, os participantes responderam a uma série de questões sobre os níveis de identificação e os níveis de contacto com diversos grupos, os níveis de racismo subtil, e os níveis de tolerância à diferença. Na terceira secção do questionário, os participantes responderam a várias questões cujo objectivo era controlar os materiais-estímulo (estereotipicalidade e valência dos traços) e o contexto desta investigação (estatuto social percebido e estatuto numérico percebido). Por último, os participantes respondiam a questões de caracterização: sexo, idade, nacionalidade e naturalidade. No caso da naturalidade não ser portuguesa, deveriam responder ainda a três questões relativas às circunstâncias da sua vinda para Portugal76 . Finalmente, os questionários eram recolhidos e os objectivos do estudo esclarecidos. A investigadora agradecia a participação dos estudantes e respondia às suas eventuais questões. 5.3.2.4 Instrumentos de medida A maior parte das medidas é idêntica às utilizadas na experiência anterior, pelo que não vamos repetir a sua apresentação (ver ponto 5.2.2.4). Passamos de seguida à explicitação das alterações efectuadas e à apresentação das novas medidas. A Tabela 62 resume todas as questões e tarefas envolvidas neste estudo e as respectivas medidas. 76 As questões eram as seguintes: a) Há quantos anos reside em Portugal?; b) Qual o motivo que o trouxe a Portugal? (1 = estudar; 2 = trabalhar; 3 =outro motivo; qual?); c) Qual foi a sua situação quando chegou a Portugal? (1 = sozinho (a); 2 = com a família; 3 = com os amigos; 4 = outra situação; qual?).
  • 448. Racismo e etnicidade em Portugal 448 Tabela 62 - Síntese dos instrumentos de medida Tipo de medida Questões ou tarefas Caracterização dos participantes Sexo Idade Nacionalidade Naturalidade Tempo de permanência em Portugal* Motivo da vinda para Portugal* Situação* Controlo do contexto da experiência Estatuto social percebido Estatuto numérico percebido Valência dos traços Estereotipicalidade dos traços Efeitos de categorização Recordação indiciada Efeitos de homogeneidade Recordação indiciada Estimação de percentagens Estimação de médias Estimação de amplitudes Estimação de variabilidade Estimação de semelhanças Efeitos de Favoritismo Estimação de percentagens Estimação de médias Auto-descrição Auto-descrição Importância da pertença grupal Nível de importância da pertença nacional Nível de importância da pertença supranacional Nível de importância da pertença racial Orgulho grupal Nível de orgulho nacional Nível de orgulho supranacional Nível de orgulho racial Identificação grupal Nível de identificação nacional Nível de identificação supranacional Nível de identificação racial Contacto grupal Nível de familiaridade Número de pessoas conhecidas pelo nome Número de amigos íntimos Tolerância à diferença Amizades intergrupais Grau de incomodidade com opiniões diferentes Racismo subtil Negação de emoções positivas Acentuação de diferenças culturais Nota: As questões assinaladas com asterisco* só foram respondidas pelos participantes angolanos. 5.3.2.4.1 Medidas de controlo dos materiais e do contexto da investigação Foram utilizadas exactamente as mesmas medidas do estudo anterior: estatuto social percebido, estatuto numérico percebido, estereotipicalidade dos traços e valência
  • 449. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 449 dos traços (ver ponto 5.2.2.4.1). A única diferença prende-se com a forma como a valência dos traços foi avaliada. Enquanto no estudo anterior essa avaliação foi efectuada a partir da opinião pessoal dos participantes (tal como no Estudo 3b), neste caso foi avaliada tendo como referente o estereótipo de pessoa adulta na nossa sociedade (tal como no Estudo 3c – ver ponto 4.4.4.1.3). 5.3.2.4.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada Tal como no estudo anterior, procedemos ao cálculo do número de respostas correctas assim como de diferentes tipos de erros. O efeito de categorização foi medido através da proporção de erros erros intergrupais (atribuição de uma característica pertencente a uma pessoa-estímulo angolana a uma pessoa-estímulo portuguesa; ou vice-versa) e erros intragrupais (atribuição de uma característica pertencente a uma pessoa-estímulo angolana a outra pessoa-estímulo angolana; ou atribuição de uma característica pertencente a uma pessoa-estímulo portuguesa a outra pessoa-estímulo portuguesa). Estes últimos foram subdivididos em erros endogrupais (quando referentes a uma pessoa-estímulo da mesma nacionalidade que o participante) e em erros exogrupais (quando referentes a uma pessoa-estímulo com uma pertença nacional diferente da do participante), o que nos permitiu averiguar os efeitos de homogeneidade (ver explicação no ponto 5.2.2.4.2). Para além destas medidas, procedemos à operacionalização de novas medidas de modo a averiguar a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo. Uma vez que a valência dos traços utilizados para descrever as pessoas- estímulo foi sistematicamente controlada, subdividimos os erros intragrupais tendo em conta a valência dos traços, o que deu origem a quatro novas medidas: erros endogrupais positivos; erros endogrupais negativos; erros exogrupais positivos; erros exogrupais negativos. Os erros endogrupais positivos correspondem à atribuição de um traço positivo pertencente a uma pessoa-estímulo angolana a outra pessoa-estímulo angolana quando o(a) participante é ele(a) próprio(a) angolano(a), ou à atribuição de um traço positivo pertencente a uma pessoa-estímulo portuguesa a outra pessoa-estímulo portuguesa quando o(a) participante é ele próprio(a) português(a). Os erros endogrupais negativos correspondem à atribuição de um traço negativo pertencente a uma pessoa-estímulo angolana a outra pessoa-estímulo angolana quando o participante é angolano, ou atribuição de um traço negativo pertencente a uma pessoa-
  • 450. Racismo e etnicidade em Portugal 450 estímulo portuguesa a outra pessoa-estímulo portuguesa quando o participante é português). Os erros exogrupais positivos correspondem à atribuição de um traço positivo pertencente a uma pessoa-estímulo angolana a outra pessoa-estímulo angolana quando o participante é português, ou atribuição de um traço positivo pertencente a uma pessoa- estímulo portuguesa a outra pessoa-estímulo portuguesa quando o participante é angolano. Os erros exogrupais negativos correspondem à atribuição de um traço negativo pertencente a uma pessoa-estímulo angolana a outra pessoa-estímulo angolana quando o participante é português, ou atribuição de um traço negativo pertencente a uma pessoa- estímulo portuguesa a outra pessoa-estímulo portuguesa quando o participante é angolano. 5.3.2.4.3 Medidas directas – Tarefas de questionário A maior parte das tarefas do questionário e das respectivas medidas de variabilidade grupal percebida e de favoritismo são idênticas às do estudo anterior (ver ponto 5.2.2.4.4): tarefa de estimação de percentagens (PERGM, PERSC, e PERPN); tarefa de estimação de médias (MEDGM, MEDSC, e MEDPN); tarefa de estimação de amplitudes (AMPLI); tarefa de estimação de variabilidade (VARIA); e tarefa de auto- descrição (AUTSC, AUTPN, AUTDA, AUTD-SC, e AUTD-PN). No que respeita ao cálculo destas medidas, a única alteração relativamente ao estudo anterior deu-se ao nível das medidas baseadas na diferença entre traços estereotípicos e traços contra- estereotípicos, devido ao facto de nas medidas de controlo se ter constatado que dois dos traços, sendo estereotípicos de um grupo não eram contra-estereotípicos do outro como explicaremos mais adiante. A tarefa de estimação de distribuições não foi efectuada neste estudo. Em contrapartida, foram introduzidas novas tarefas e outras tarefas foram ligeiramente modificadas. Passamos de seguida a descrever essas tarefas e as respectivas medidas. Tarefa de estimação de semelhança. Foi pedido aos participantes para estimarem em que medida se sentiam muito semelhantes ou muito diferentes dos “?angolanos?77 em 77 Por uma questão de simplicidade de apresentação, colocámos a designação do primeiro grupo-alvo a ser apresentado na Ordem 1 (angolanos).
  • 451. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 451 geral” , usando uma escala de sete pontos, cujos extremos eram 1 = “sinto-me muito semelhante” e 7= “sinto-me muito diferente”. Os valores directos fornecidos pelos participantes foram considerados como indicadores da semelhança percebida (SEMEL). Os participantes responderam igualmente a uma série de questões sobre a sua pertença a determinados grupos e em que medida essa pertença era importante para si, assim como o seu nível de identificação com esses diversos grupos. Foram ainda colocadas algumas questões sobre a tolerância dos participantes a ideias diferentes das suas e as suas amizades com pessoas pertencentes a outros grupos sociais, religiosos ou culturais. Foram ainda efectuadas questões relativas à expressão de emoções positivas face ao exogrupo e sobre a acentuação das diferenças culturais entre os dois grupos, e finalmente os participantes respondiam a uma escala sobre a sua percepção da diversidade social. Estas questões permitiram investigar o papel mediador destas variáveis na percepção da variabilidade grupal. Negação da expressão de emoções positivas (Pettigrew e Meertens, 1995). Os participantes deveriam estimar com que frequência sentiam simpatia e admiração pelos ?angolanos?, através de uma escala de 4 pontos (1 = “muitas vezes”; 2 = “algumas vezes”; 3 = “raramente”; e 4 = “nunca”). A medida da expressão das emoções positivas corresponde à média aritmética da expressão de ambas as emoções (simpatia e admiração). Acentuação de diferenças culturais (Pettigrew e Meertens, 1995). Os participantes deveriam indicar em que medida consideravam os angolanos diferentes ou semelhantes aos portugueses, relativamente aos seguintes aspectos: valores e princípios morais; religião – crenças e práticas religiosas; valores e comportamentos sexuais; e língua que falam. A apreciação era efectuada através de uma escala de quatro pontos (1 = “muito semelhantes”; 2 = “um pouco semelhantes”; 3= “um pouco diferentes”; 4 = “muito diferentes”). A medida da acentuação de diferenças culturais corresponde à média aritmética dos vários itens (valores e princípios morais; crenças e práticas religiosas; valores e comportamentos sexuais; e língua que falam).
  • 452. Racismo e etnicidade em Portugal 452 Nível de contacto grupal. Foi pedido aos participantes para avaliarem o nível de contacto com o endogrupo e com o exogrupo através de três escalas de sete pontos e duas questões abertas 78 . Auto-categorização. Os participantes deveriam indicar a que grupo(s) pertenciam assinalando “sim” ou “não” para cada um dos seguintes grupos: “eu pertenço ao grupo dos angolanos” (1 = “sim”; 2 = “não”); “eu pertenço ao grupo dos portugueses” (1 = “sim”; 2= “não”); “eu pertenço ao grupo dos africanos” (1 = “sim”; 2= “não”); “eu pertenço ao grupo dos europeus” (1 = “sim”; 2 = “não”); “eu pertenço ao grupo dos negros” (1 = “sim”; 2 = “não”); “eu pertenço ao grupo dos brancos” (1 = “sim”; 2 = “não”). Foi explicado aos participantes que as pertenças não eram necessariamente exclusivas (logo, poderiam pertencer simultaneamente ao grupo dos angolanos e ao grupo dos portugueses; ao grupo dos brancos e ao grupo dos negros). Importância da pertença grupal (Vala, Brito e Lopes, 1999a). Os participantes deveriam indicar em que medida a pertença a cada um dos grupos atrás assinalados (os angolanos; os portugueses; os africanos; os europeus; os negros; os brancos) era importante para si, através de uma escala de 4 pontos (1 = “não é importante para mim”; 2 = “é apenas um pouco importante ”; 3 = “é importante”; e 4 = “é muito importante”). Nível de orgulho grupal (Vala, Brito e Lopes, 1999a). Os participantes deveriam indicar em que medida se sentiam orgulhosos por pertencer a cada um dos grupos atrás assinalados (os angolanos; os portugueses; os negros; os brancos), através de uma escala de 4 pontos (1 = “muito orgulhoso”; 2 = “orgulhoso”; 3 = “pouco orgulhoso”; e 4 = “nada orgulhoso”). Nível de identificação grupal. Foi pedido aos participantes para avaliarem em que medida se sentiam identificados com cada um dos grupos atrás referidos, através de uma escala de sete pontos, variando entre 1 = “nada identificado” a 7 = “muito fortemente”. Amizades intergrupais (Pettigrew e Meertens, 1995). Os participantes deveriam indicar, do conjunto dos seus amigos, se existiam muitas, poucas ou nenhumas pessoas: de outra nacionalidade; de outra raça; de outra religião; de outra cultura; de outra classe 78 As questões eram as seguintes: “Gostaríamos de saber qual é o seu grau de familiaridade com os ?angolanos?. Por favor, faça uma cruz no número que corresponde à sua opinião. O seu contacto com os ?angolanos? é …(1 = “muito distante”; 7 = “muito próximo”). Costuma convidar ?angolanos?para sair? (1 = “nunca”; 7= “sempre”). Costuma convidar ?angolanos? para ir a sua casa? (1 = “nunca”; 7 = “sempre”). Por favor, escreva o número aproximado de ?angolanos? cujo nome conhece:____. Por favor, escreva o número aproximado de ?angolanos?que são seus amigos íntimos:____.”
  • 453. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da informação 453 social, através de uma escala de três pontos (1= “nenhuma”; 2 = “poucas”; 3 = “muitas”). Nível de incomodidade com opiniões diferentes (Vala, Brito e Lopes, 1999a). Os participantes deveriam indicar com que frequência se sentiam incomodados com a presença de pessoas com opiniões e costumes diferentes dos seus, através de uma escala de quatro pontos (1= “frequentemente”; 2 = “algumas vezes”; 3 = “raramente”; 4 = “nunca”). A Tabela 63 especifica as várias medidas derivadas do questionário: medidas de variabilidade percebida, medidas de tendência central e medidas de favoritismo endogrupal. Estas medidas vão ser a partir de agora designadas pelas respectivas abreviaturas. Comparando com o questionário utilizado no estudo anterior, podemos verificar que as medidas de variabilidade grupal percebida são as mesmas, com uma única excepção: desaparecem as medidas derivadas da tarefa de estimação de distribuições. Relativamente às medidas de favoritismo endogrupal, acrescentaram-se neste questionário duas medidas directas de discriminação, nomeadamente duas medidas de racismo subtil (negação da expressão de emoções positivas e acentuação de diferenças culturais).
  • 454. Tabela 63 - Medidas derivadas do questionário e respectivas abreviaturas Tarefas Medidas de variabilidade percebida Medidas de tendência central Medidas de favoritismo endogrupal/discriminação Percentagens PERSC: traços estereotípicos – traços contra- estereotípicos PERMG PERPN: traços positivos – traços negativos Médias MEDSC: traços estereotípicos – traços contra- estereotípicos MEDMG MEDPN: traços positivos – traços negativos Amplitudes AMPLI: diferença entre extremos Variabilidade VARIA: variabilidade percebida (valores directos) DISMG Semelhança SEMEL: semelhança percebida (valores directos) Auto-descrição AUTSC: traços estereotípicos – traços contra- estereotípicos AUTDA: distância absoluta face à média geral do endogrupo (MEDMG) AUTD-SC: distância face à média geral do endogrupo em função do carácter estereotípico dos traços (S - CS) AUTPN: traços positivos – traços negativos AUTD-PN: distância face à média geral do endogrupo em função da valência avaliativa dos traços (P- N) Emoções Negação da expressão emoções positivas (valores directos) Diferenças Acentuação de diferenças culturais (valores directos)
  • 455. Racismo e etnicidade em Portugal 455 5.3.2.5 Procedimento de análise dos dados Tal como no estudo anterior, numa fase inicial do tratamento de dados, realizámos análises de variância tendo o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo), o grupo do participante (angolanos vs. portugueses), o sexo do participante (masculino vs. feminino), a ordem de apresentação (primeiro angolanos vs. primeiro portugueses) e - no caso das medidas derivadas das tarefas de recordação - a versão do material-estímulo (A vs. B), como variáveis independentes. Como a variável “sexo do participante” não produziu quaisquer efeitos significativos, foram realizadas novas análises sem incluir esta variável. A variável “ordem de apresentação” foi excluída das análises relativas às medidas derivadas do questionário por não ter produzido nenhum efeito significativo nestas medidas, mas foi mantida nas análises relativas às medidas derivadas da tarefa de recordação indiciada. 5.3.2.5.1 Controlo dos materiais-estímulo e do contexto da investigação Começámos por verificar o estatuto social percebido e o estatuto numérico percebido de ambos os grupos-alvo para os participantes angolanos e portugueses (ver procedimento de análise de dados do Estudo 2). Seguidamente verificámos se a valência avaliativa e a estereotipicalidade dos traços utilizados para descrever os grupos-alvo tinham sido consideradas da forma prevista pelos participantes na experiência. Este controlo era importante tanto para os 32 traços usados para descrever as pessoas-estímulo como para os 4 traços usados no questionário para descrever os grupos-alvo, pois poderia inviabilizar a construção das medidas de variabilidade grupal percebida e de favoritismo endogrupal previstas (ver procedimento de análise de dados do Estudo 3c). 5.3.2.5.2 Medidas indirectas – Tarefa de recordação indiciada Exactidão da recordação. As respostas correctas foram submetidas a uma análise de variância (ANOVA) tendo o grupo do participante, a ordem de apresentação e a versão do material-estímulo como variáveis independentes. Efeito de categorização. Para examinar o efeito de categorização, efectuámos uma análise de variância multivariada (MANOVA) com medidas repetidas no primeiro factor: 2 (tipo de erro: intragrupais vs. intergrupais) x 2 (grupo do participante) x 2 (ordem de apresentação) x 2 (versão do material-estímulo). O efeito de categorização
  • 456. Racismo e etnicidade em Portugal 456 pode ser inferido na medida em que os participantes efectuarem mais erros intragrupais do que intergrupais, isto é, se se verificar um efeito principal do tipo de erro. Efeitos de homogeneidade. Para investigar os efeitos de homogeneidade os erros intragrupais foram examinados através de uma análise de variância multivariada (MANOVA), com medidas repetidas no primeiro factor: 2 (tipo de erro: erros endogrupais vs. erros exogrupais) x 2 (grupo do participante) x 2 (versão do material- estímulo) x 2 (ordem de apresentação). O efeito de homogeneidade do exogrupo pode ser inferido na medida em que os participantes efectuarem mais erros exogrupais do que endogrupais, isto é, se se verificar um efeito principal da variável tipo de erro. Em contrapartida, a hipótese de assimetria nos efeitos de homogeneidade toma a forma de um efeito de interacção entre o grupo do participante e o grupo-alvo. Relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo Explorámos a relação entre os efeitos de homogeneidade e os efeitos de favoritismo a partir da proporção relativas dos diferentes tipos de erros intragrupais na tarefa de recordação indiciada. Uma vez que a valência dos traços utilizados para descrever as pessoas-estímulo foi controlada, efectuámos novas análises dos erros intragrupais tendo em conta a valência dos traços. Nestas novas análises tivemos em conta apenas os oito traços positivos e os oito traços negativos (16 traços neutros foram excluídos destas análises). Começámos por efectuar uma análise multivariada de variância (MANOVA) com medidas repetidas nos dois primeiros factores: 2 (tipo de erro: erros endogrupais vs. erros exogrupais) x 2 (valência dos traços: positivos vs. negativos) x 2 (grupo do participante: angolanos vs. portugueses) x ordem (primeiro angolanos vs. primeiro portugueses) x versão (A vs. B). Seguidamente efectuámos novas análises de variância que nos permitissem observar os efeitos de homogeneidade separadamente para os traços positivos e para os traços negativos. Em cada uma destas novas análises de variância tivemos o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável intra-participantes e o grupo dos participantes (angolanos vs. portugueses) como variável inter-participantes. 5.3.2.5.3 Medidas directas – Tarefas de questionário Efeitos de homogeneidade. Os resultados obtidos em cada uma das medidas de variabilidade grupal percebida calculadas a partir do questionário (PERSC, MEDSC,
  • 457. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação 457 AMPLI, e VARIA e SEMEL) foram submetidos a análises multivariadas de variância tendo o grupo do participante (angolanos vs. portugueses) como variável independente e o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável dependente. Neste caso, a hipótese de assimetria nos efeitos de homogeneidade toma a forma de um efeito de interacção entre o grupo do participante e o grupo-alvo. Efeitos de favoritismo. Os resultados obtidos nas medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN) foram igualmente submetidos a análises multivariadas de variância tendo o grupo do participante (angolanos vs. portugueses) como variável independente e o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável dependente. O favoritismo endogrupal é revelado quando é atribuída ao endogrupo uma média superior nos traços positivos comparativamente com o exogrupo, e uma média inferior nos traços negativos, isto é, quando se verifica um efeito principal do grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo). Racismo subtil Os dados relativos a ambas as sub-escalas (negação da expressão de emoções positivas e acentuação das diferenças culturais) foram analisadas através de análises de variância simples (sem medidas repetidas, uma vez que contrariamente às outras medidas em que dispúnhamos sempre de dois valores – um referente ao endogrupo e outro referente ao exogrupo – relativamente a estas medidas dispomos apenas do valor referente ao exogrupo) tendo como variável independente o grupo do participante (angolanos vs. portugueses). Os dados relativos a cada uma das sub-escalas foram ainda submetidos a testes-t testando contra o valor neutro (valor de teste = 2.5). Se a média ficar significativamente além do ponto neutro, poderemos inferir discriminação. Auto-descrição As diversas medidas derivadas da tarefa de auto-descrição (AUTSC, AUTPN, AUTDA, AUTD-SC E AUTD-PN) foram analisadas exactamente da mesma forma que no estudo anterior (ver ponto 5.2.2.4.4). Os dados relativos às medidas AUDSC e AUTD-SC foram submetidos a análises de variância multivariadas tendo a estereotipia dos traços como variável intra- participantes e o grupo dos participantes como variável inter-participantes. Os dados relativos às medidas AUDPN e AUTDPN foram submetidos a análises de variância
  • 458. Racismo e etnicidade em Portugal 458 multivariadas tendo a valência dos traços como variável intra-participantes e o grupo dos participantes como variável inter-participantes. A medida AUTDA foi submetida a uma análise de variância simples tendo como variáveis independentes o grupo dos participantes. Seguidamente, analisámos as correlações entre as medidas derivadas das auto- descrições dos participantes e as diferentes medidas de variabilidade grupal percebida (erros intergrupais, PERSC, MEDSC, AMPLI, VARIA e SEMEL). Pertença, orgulho e identificação grupais Importância da pertença grupal. Os valores relativos à importância da pertença nacional (angolanos ou portugueses), supranacional (africanos ou europeus) e racial (negros ou brancos) foram submetidos a análises de variância simples tendo como variável independente o grupo dos participantes. Efectuou-se também uma análise de variância multivariada tendo como variável independente o grupo dos participantes e a importância atribuída à pertença grupal (nacional vs. racial) como variável intra-participantes. Orgulho grupal. Os valores relativos ao nível de orgulho nacional, supranacional e racial foram submetidos a análises de variância simples tendo como variável independente o grupo dos participantes. Efectuou-se igualmente uma análise de variância multivariada tendo como variável independente o grupo dos participantes e os níveis de orgulho grupal (nacional vs. racial) como variável intra-participantes. Identificação grupal. Enquanto que nas variáveis anteriores (importância da pertença grupal e orgulho grupal) apenas analisámos os valores referentes ao endogrupo dos participantes (tendo em conta as suas auto-categorizações), relativamente aos níveis de identificação grupal analisámos igualmente as respostas em relação ao exogrupo. Começámos por analisar separadamente as respostas em relação ao endogrupo (nacional, supranacional e racial) e as respostas em relação ao exogrupo (nacional, supranacional e racial) e finalmente, efectuámos análises comparativas dos níveis de identificação endogrupal versus exogrupal (nacional, supranacional e racial). Os valores relativos aos níveis de identificação endogrupal (nacional, supranacional e racial) foram submetidos a análises de variância simples tendo como variável independente o grupo dos participantes. Efectuou-se também uma análise de variância multivariada tendo como variável independente o grupo dos participantes e como variável intra-participantes os níveis de identificação endogrupal (nacional vs. racial).
  • 459. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação 459 Os valores relativos aos níveis de identificação exogrupal foram examinados exactamente da mesma forma: com uma análise de variância simples tendo como variável independente o grupo dos participantes e como variável dependente cada um dos níveis de identificação (nacional, supranacional e racial); e com uma análise de variância multivariada comparando os níveis de identificação endogrupal (nacional vs. racial) em função do grupo dos participantes. Finalmente, os valores de identificação (nacional, supranacional e racial) foram ainda analisados através de análises de variância multivariadas tendo o grupo-alvo de identificação (endogrupo vs. exogrupo) como variável dependente e o grupo dos participantes como variável independente. Para analisar o impacto da identificação (nacional e racial) nos efeitos de homogeneidade e nos efeitos de favoritismo, efectuámos uma classificação dos participantes de ambos os grupos, tendo em conta o valor da mediana de cada grupo para cada uma das medidas (identificação endogrupal e identificação exogrupal), dividindo assim os participantes em “fortemente identificados” e “fracamente identificados”. Relativamente à identificação nacional, para os participantes angolanos a mediana da identificação endogrupal foi =6 e a mediana da identificação exogrupal foi =3 enquanto que para os participantes portugueses a mediana da identificação endogrupal foi =6 e a mediana da identificação exogrupal foi =2). Quanto à identificação racial, para os participantes angolanos a mediana da identificação endogrupal foi =6 e a mediana da identificação exogrupal foi =2 enquanto que para os participantes portugueses a mediana da identificação endogrupal foi =5 e a mediana da identificação exogrupal foi =2). Analisámos o impacto do grau de identificação nacional (endogrupal e exogrupal) nas diversas medidas de variabilidade grupal percebida (erros intragrupais, PERSC, MEDSC, AMPLI e VARIA e SEMEL) e nas duas medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN). Para cada uma destas medidas foi efectuada uma análise de variância multivariada, tendo a identificação endogrupal, a identificação exogrupal e o grupo do participante como variáveis inter-participantes e o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável intra-participante. Efectuámos análises de variância multivariadas equivalentes para analisar o impacto do grau de identificação racial (endogrupal e exogrupal) nas diversas medidas de variabilidade grupal percebida e nas duas medidas de favoritismo endogrupal.
  • 460. Racismo e etnicidade em Portugal 460 Nível de contacto Os valores referentes aos níveis de contacto foram submetidos a análises de variância multivariada tendo o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável intra-participantes e o grupo do participante como variável inter-participantes. Foram efectuadas três análises separadas: uma para o nível de familiaridade (correspondente à média das três escalas), outra para o número de pessoas conhecidas pelo nome, outra para o número de amigos íntimos. Para analisar o impacto do nível de contacto endogrupal e do nível de contacto exogrupal nos efeitos de homogeneidade e no favoritismo endogrupal, efectuámos uma classificação dos participantes de ambos os grupos, tendo em conta o valor da mediana de cada grupo para cada uma das medidas (contacto endogrupal e contacto exogrupal), dividindo assim os participantes conforme o alto ou baixo nível de contacto. (Para os participantes angolanos a mediana do contacto endogrupal foi =6 e a mediana do contacto exogrupal foi =4.67; para os participantes portugueses a mediana do contacto endogrupal foi =6.33 e a mediana do contacto exogrupal foi =2.00). Analisámos o impacto do grau de contacto endogrupal e exogrupal em diversas medidas de variabilidade grupal percebida (erros intragrupais, PERSC, MEDSC, AMPLI, VARIA e SEMEL) e nas duas medidas de favoritismo endogrupal (PERPN e MEDPN). Para cada uma destas medidas foi efectuada uma análise de variância multivariada, tendo o contacto endogrupal, o contacto exogrupal e o grupo do participante como variáveis inter- participantes e o grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) como variável intra-participantes.
  • 461. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação 461 5.3.3 Resultados 5.3.3.1 Controlo dos materiais-estímulo e contexto da investigação Tal como procedemos no estudo anterior, antes de analisar os dados relativos aos efeitos de categorização e de homogeneidade, que constituem o aspecto central da nossa análise de resultados, controlámos vários aspectos que se prendem com os materiais- estímulo e o contexto desta experiência: o estatuto social percebido de ambos os grupos para os participantes angolanos e portugueses, afigura-se como um aspecto central a controlar, assim como o estatuto numérico relativo dos grupos. Outro aspecto fundamental a controlar prende-se com o carácter estereotípico dos traços e a sua valência avaliativa tendo como referente a imagem de adulto, pois desses aspectos depende o cálculo das diversas medidas de variabilidade percebida e de favoritismo. 5.3.3.1.1 Estatuto social percebido Os participantes nesta experiência atribuíram um estatuto mais elevado aos portugueses (M=63.19) do que aos angolanos (M=33.55), ?F(1,126)=304.06, p<0.0001?. Os estudantes portugueses perceberam o endogrupo (M=59.29) como tendo um estatuto significativamente mais elevado do que o exogrupo (M=28.18), ?F(1,126)=225.46, p<0.0001?, enquanto que os estudantes angolanos perceberam o exogrupo (M=69.49) como tendo um estatuto significativamente mais elevado do que o endogrupo (M=42.20), ?F(1,126)=107.55, p<0.0001?. Estes resultados demonstram que existe consenso numa diferenciação de estatuto relativo claramente favorável aos portugueses. 5.3.3.1.2 Estatuto numérico percebido Quanto ao tamanho relativo dos grupos, os participantes perceberam os portugueses como sendo o grupo maioritário (M=60%) e os angolanos como sendo um grupo minoritário (M=7%), ?F(1,91)=561.55, p<0.0001?. Curiosamente, tanto os participantes angolanos como os participantes portugueses sobrestimam a percentagem de angolanos residentes em Portugal (respectivamente, M=6.42% e M=6.70%, quando na realidade não chega aos 0.03%) e subestimaram a percentagem de portugueses (respectivamente, M=53.80% e M=63.46%, quando na realidade ultrapassa os 97%), um resultado consistente com o que já fora obtido na experiência anterior.
  • 462. Racismo e etnicidade em Portugal 462 5.3.3.1.3 Teste dos materiais-estímulo Uma vez que relativamente a este estudo experimental não foi efectuado um estudo piloto específico para o teste dos materiais-estímulo, dado que considerámos suficiente a abundante informação anteriormente recolhida nos diversos estudos exploratórios, julgámos pertinente a realização de testes a posteriori dos materiais- estímulo usados, no sentido de nos assegurarmos da sua adequabilidade para o cálculo das diversas medidas de variabilidade grupal percebida e de favoritismo endogrupal. Assim, antes de calcularmos as referidas medidas, procedemos ao controle do carácter estereotípico e da valência avaliativa (tendo como referente o modelo de adulto) de todos os traços presentes nos materiais-estímulo. Os atributos incluídos nas descrições das pessoas-estímulo angolanas (M = 4.78) foram percebidos como estereotípicos dos angolanos ?t(135)=12.996, p<0.001?. De igual modo, os atributos incluídos nas descrições das pessoas-estímulo portugueses (M=4.52) foram percebidos como estereotípicos dos portugueses ?t(135)=10.994, p<0.001?. Os testes-t realizados separadamente para participantes angolanos e participantes portugueses revelaram o mesmo padrão de resultados. Relativamente à valência avaliativa, tanto os traços incluídos nas descrições das quatro pessoas-estímulo angolanas como os incluídos nas descrições das quatro pessoas- estímulo portuguesas foram considerados globalmente neutros ?respectivamente: M = 4.10, t(136)=1.832, p<0.064; e M= 4.14, t(136)=1.914, p<0.058?. Testámos cada um dos traços individualmente e verificámos que os participantes atribuíram em média a mesma valência a cada traço obtida no Estudo 3c. Assim, os traços “positivos” (caloroso, comunicativo, divertido, sociável, criativo, corajoso, dinâmico, honesto) foram novamente considerados positivos, e os traços ‘negativos’ (supersticioso, invejoso, conflituoso, desconfiado, fechado, frio, egoísta, pessimista) foram de novo considerados negativos pelos participantes, independentemente destes serem angolanos ou portugueses. Assim, podemos concluir que os traços seleccionados para descrever as pessoas-estímulo são adequados para o cálculo das medidas pretendidas. Já no que respeita aos quatro traços seleccionados para o cálculo das medidas ‘directas’ de variabilidade grupal percebida, defrontámo-nos com um padrão de resposta dos participantes significativamente diferente do obtido no Estudo 3c em dois dos atributos seleccionados no que respeita ao seu carácter estereotípico: alegre e trabalhador. Assim, o traço alegre foi considerado estereotípico dos angolanos
  • 463. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação 463 ?M = 5.59, t(135)=14.100, p<0.001?, mas foi considerado neutro do ponto de vista da estereotipia para os portugueses ?M = 4.23, t(135)= 1.827, p<0.070?. De forma equivalente, o traço trabalhador foi considerado estereotípico dos portugueses ?M = 5.11, t(135)=11.427, p<0.001?, mas foi considerado neutro do ponto de vista da estereotipicalidade para os angolanos ?M = 3.87, t(133)= -1.011, p<0.314?. Tal implicou ajustamentos no cálculo previsto para as medidas de variabilidade grupal percebida baseadas nos traços estereotípicos minus traços contra-estereotípicos79 . Relativamente à valência avaliativa, estes traços foram avaliados de forma equivalente à verificada no Estudo 3c (os traços alegre e trabalhador foram considerados positivos e os traços preguiçoso e individualista foram considerados negativos), o que nos permite avançar com as medidas previstas de favoritismo endogrupal. 5.3.3.2 Tarefa de recordação indiciada 5.3.3.2.1 Exactidão da recordação A Tabela 64 apresenta as médias de respostas correctas em função do grupo do participante e do grupo-alvo. A análise de variância efectuada revelou que a média de respostas correctas (M=13.31) não variou significativamente nem em função da versão do material-estímulo nem em função da ordem de apresentação. No entanto, esta análise produziu um efeito principal do grupo do participante tendencialmente significativo ?F(1,129)=3.59, p<0.060?: os participantes portugueses apresentam uma média superior de respostas correctas (M=14.01) do que os participantes angolanos (M=12.22). Tal como na experiência anterior, tal poderá dever-se ao facto dos angolanos que participaram nesta experiência serem significativamente mais velhos do que os portugueses: a idade média dos participantes angolanos é de 23 anos enquanto que a idade média dos participantes portugueses é de 19 anos. 79 No estudo anterior os traços estereotípicos de um grupo-alvo foram considerados simultaneamente contra-estereotípicos do outro grupo-alvo, o que nos permitiu calcular as medidas baseadas na diferença entre traços estereotípicos minus contra-estereótipos (S – CS) utilizando os quatro traços. Neste estudo, como os participantes não consideraram o traço «alegre» como contra-estereotípico dos portugueses nem o traço «trabalhador» como contra-estereotípico dos angolanos, estes traços tiveram que ser eliminados no cálculo das medidas baseadas nessa diferença (PERSC, MEDCS e AUTSC). Assim, para o grupo-alvo «angolanos» as medidas baseadas na diferença entre traços estereotípicos minus contra-estereótipos (S – CS) foram calculadas da seguinte forma: alegres (S) – individualistas (SC). Em contrapartida para o grupo-alvo «portugueses» foram calculadas da seguinte forma: trabalhadores (S) – preguiçosos (SC).
  • 464. Racismo e etnicidade em Portugal 464 Tabela 64 - Médias e desvios-padrão das respostas correctas em função do grupo do participante e do grupo-alvo Grupo-alvoGrupo étnico do participante Endogrupo Exogrupo Total Angolanos (N = 54) 5.41 (2.26) 6.81 (2.93) 12.22 (4.58) Portugueses (N = 83) 7.53 (3.30) 6.48 (3.09) 14.01 (5.81) Total (N = 137) 6.69 (3.11) 6.61 (3.02) 13.31 (5.41) Nota: As respostas correctas po deriam variar entre 0 e 32. Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o número de “Respostas correctas”: Grupo: F(1,129)=3.59, p<0.060 5.3.3.2.2 Efeito de categorização Antes de examinarmos os efeitos de homogeneidade, devemos verificar se os participantes efectivamente categorizaram as pessoas-estímulo em grupos distintos. Na medida em que os participantes categorizarem os alvos em grupos, os erros intragrupais serão superiores aos erros intergrupais (efeito de categorização). A Tabela 65 apresenta as médias e desvios-padrão dos erros em função do grupo do participante. Consistentemente com as nossas hipóteses, a análise de variância multivariada efectuada sobre os erros revelou um efeito principal do tipo de erro muito significativo: o número de erros intragrupais (M=11.13) foi significativamente superior ao número de erros intergrupais (M=5.67), ?F(1,129)=212.63, p<0.0001?. A proporção de erros intragrupais e intergrupais demonstra que os participantes efectivamente categorizaram as pessoas-estímulo em grupos étnicos. Os participantes mostraram uma tendência muito mais forte para confundir a informação referente aos membros do mesmo grupo étnico (erros intragrupais) do que a informação referente a grupos étnicos diferentes (erros intergrupais). O efeito de interacção entre o tipo de erro e o grupo do participante também foi significativo ?F(1,129)=13.39, p<0.0005?. Contudo, as análises de contrastes demonstraram que o efeito principal do tipo de erro foi muito significativo tanto para os participantes angolanos ?F(1,129)=135.06, p<0.0001? como para os participantes portugueses ?F(1,129)=78.02, p<0.0001?. Isto é, tanto os membros do grupo dominante
  • 465. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação 465 como os membros do grupo dominado estruturaram a informação a partir da pertença étnica das pessoas-estímulo. O efeito de interacção entre o tipo de erro e a versão do material-estímulo também foi significativo ?F(1,129)=7.30, p<0.008?. As análises de contrastes mostraram que o efeito principal do tipo de erro foi mais forte na Versão A ?identificação das pessoas- estímulo pela fotografia e nacionalidade; F(1,129)=138.06, p<0.0001? do que na Versão B ?identificação das pessoas-estímulo pela fotografia; F(1,129)=68.14, p<0.0001?. Isto é, o efeito de categorização foi bastante significativo em ambas as versões do material- estímulo, mas foi especialmente forte quando cada pessoa-estímulo era identificada simultaneamente pela nacionalidade e pela fotografia. Resumindo, estes resultados demonstram que os participantes efectivamente categorizaram as pessoas-estímulo em dois grupos étnicos (brancos vs. negros), validando assim o uso destes materiais-estímulo para a análise de questões relacionadas com a percepção de grupos. Tabela 65 - Médias e desvios-padrão dos erros intragrupais e intergrupais em função do grupo do participante e do grupo-alvo Tipo de erroGrupo do Participante erros intragrupais erros intergrupais Total Angolanos (N = 54) 12.56 (3.40) 5.42 (2.69) 17.97 (4.02) Portugueses (N = 83) 10.20 (3.93) 5.83 (2.84) 16.03 (5.15) Total (N = 137) 11.13 (3.89) 5.67 (2.78) 16.80 (4.82) Nota: Os erros poderiam variar entre 0 e 32. Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o Tipo de erro (erros intragrupais vs. erros intergrupais): Tipo de erro : F(1,129)=212.63, p<0.0001 Grupo x Tipo de erro: F(1,129)=13.39, p<0.0005 Angolanos: F(1,129)=135.06, p<0.0001 Portugueses: F(1,129)=78.02, p<0.0001 Versão x Tipo de erro: F(1,129)=7.30, p<0.008 Versão 1: F(1,129)=138.06, p<0.0001 Versão 2: F(1,129)=68.14, p<0.0001
  • 466. Racismo e etnicidade em Portugal 466 5.3.3.2.3 Efeitos de homogeneidade Para investigar os efeitos de homogeneidade, repartimos os erros intragrupais tendo em conta a relação entre o grupo de pertença do participante e o grupo de pertença da pessoa-estímulo: erros endogrupais vs. erros exogrupais. A Tabela 66 apresenta as médias e desvios-padrão desses erros em função do grupo do participante. A análise de variância multivariada efectuada sobre os erros intragrupais (erros endogrupais vs. erros exogrupais) não produziu um efeito estatisticamente significativo do tipo de erro, demonstrando a ausência de um efeito de homogeneidade do exogrupo para a globalidade da amostra. Consistentemente com as nossas hipóteses, verificou-se um efeito de interacção significativo entre o grupo do participante e o tipo de erro intragrupal ?F(1,129)=27.99, p<0.0001?. As análises de contrastes realizadas demonstraram que os participantes portugueses efectuaram significativamente mais erros exogrupais (M = 5.59) do que erros endogrupais (M = 4.61), ?F(1,129)=12.58, p < 0.001?. Em contraste, os participantes angolanos efectuaram mais erros endogrupais (M = 6.98) do que erros exogrupais (M = 5.57), ?F(1,129)=17.02, p < 0.0001?. Isto é, verificou-se uma assimetria do efeito de homogeneidade do exogrupo em função do estatuto relativo dos grupos. Tabela 66 - Médias e desvios-padrão dos erros endogrupais e exogrupais em função do grupo do participante e do grupo-alvo Tipo de erro Grupo étnico do participante erros endogrupais erros exogrupais Total Angolanos (N = 54) 6.98 (2.18) 5.57 (2.03) 12.56 (3.40) Portugueses (N = 83) 4.61 (2.34) 5.59 (2.34) 10.20 (3.93) Total (N = 137) 5.55 (2.55) 5.58 (2.22) 11.13 (3.89) Nota: Os erros poderiam variar entre 0 e 16. Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o Tipo de erro (erros endogrupais vs. erros exogrupais): Tipo de erro: F(1,129)=0.89, p<0.346 Grupo x Tipo de erro: F(1,129)=27.99, p<0.0001 Angolanos: F(1,129)=17.02, p<0.0001 Portugueses: F(1,129)=12.58, p<0.001
  • 467. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação 467 5.3.3.2.4 Efeitos de homogeneidade e efeitos de favoritismo Uma vez que a valência dos traços utilizados para descrever as pessoas-estímulo foi controlada, efectuámos novas análises dos erros intragrupais tendo em conta a valência dos traços. Nestas novas análises tivemos em conta apenas os oito traços positivos e os oito traços negativos (16 traços neutros foram excluídos destas análises). A Tabela 67 apresenta as médias dos erros endogrupais e exogrupais em função do grupo do participante e da valência dos traços. Como explicámos na secção dedicada ao método, começámos por efectuar uma análise multivariada de variância tomando como variáveis intra-participantes o tipo de erro intragrupal (erros endogrupais vs. erros exogrupais) e a valência dos traços (positivos vs. negativos), e como variáveis inter-participantes a versão do material- estímulo, a ordem de apresentação e o grupo do participante (foram excluídos desta análise os erros relativos aos 16 traços neutros). Relativamente ao efeito do tipo de erro, esta nova análise confirmou os resultados obtidos na análise anterior (efectuada com a totalidade dos traços): globalmente o número de erros endogrupais foi semelhante ao número de erros exogrupais. A interacção entre o tipo de erro e o grupo do participante foi significativa apontando para uma assimetria nos efeitos de homogeneidade ?F (1,129) = 16.01, p < 0.0005?. As análises de contrastes revelaram que os participantes angolanos efectuaram mais erros endogrupais do que erros exogrupais ?F (1,129) = 6.14, p< 0.014?, enquanto que os participantes portugueses apresentaram o padrão oposto ?F (1,129) = 10.56, p < 0.001?. Quanto à valência dos traços, não se verificaram quaisquer efeitos significativos. O efeito principal da valência dos traços não foi significativo, demonstrando que a quantidade de erros não foi afectada pela valência dos traços. A interacção entre a valência dos traços e o grupo do participante também não foi significativa, assim como as interacções com a ordem de apresentação, ou com a versão do material-estímulo. A interacção entre o tipo de erro e a valência de traços também não foi significativa. No entanto, verificou-se uma tripla interacção entre o grupo do participante, o tipo de erro e a valência dos traços ?F (1,129) = 7.14, p< 0.009?. Pela observação da Tabela 67 podemos constatar que os participantes angolanos cometem mais erros endogrupais quando os traços são positivos (M = 1.76) do que quando os traços são negativos (M = 1.56), e efectuam mais erros exogrupais quando os traços são negativos (M = 1.46) do que quando os traços são positivos (M = 1.26), mas a
  • 468. Racismo e etnicidade em Portugal 468 interacção entre o tipo de erro e a valência dos traços não atinge o limiar da significância estatística ?F (1,129) = 2.63, p < 0.107?. Os participantes portugueses apresentam um padrão de resultados oposto: cometem mais erros endogrupais quando os traços são negativos (M = 1.24) do que quando os traços são positivos (M = 0.93), e efectuam mais erros exogrupais quando os traços são positivos (M = 1.46) do que quando os traços são negativos (M = 1.34) ?F (1,129) = 4.59, p < 0.034?. Numa tentativa de esclarecer esta tripla interacção efectuámos novas análises de variância que nos permitissem observar os efeitos de homogeneidade separadamente para os traços positivos e para os traços negativos. Em cada uma destas novas análises de variância tivemos o grupo-alvo como variável intra-participantes e o grupo dos participantes como variável inter-participante. A análise de variância multivariada efectuada sobre os erros intragrupais relativos exclusivamente aos traços positivos (erros endogrupais positivos vs. erros exogrupais positivos) produziu um efeito de interacção significativo entre o tipo de erro e o grupo do participante. As análises de contrastes revelaram um efeito de homogeneidade do endogrupo significativo para os participantes angolanos, já que estes apresentam significativamente mais erros endogrupais positivos (M = 1.76) do que erros exogrupais positivos (M = 1.26) ?F(1,135)=8.28, p<0.005?. Em contrapartida, os participantes portugueses apresentam um efeito de homogeneidade do exogrupo significativo, apresentando maior número de erros exogrupais positivos (M = 1.46) do que erros endogrupais positivos (M = 0.93) ?F(1,135)=14.30, p<0.0005?. A análise de variância efectuada sobre os erros intragrupais relativos exclusivamente aos traços negativos (erros endogrupais negativos vs. erros exogrupais negativos) não revelou quaisquer efeitos estatisticamente significativos. Embora as médias das células variem no mesmo sentido do que as dos traços positivos, quando os traços são negativos as estratégias dos participantes angolanos e portugueses aproximam-se.
  • 469. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação 469 Tabela 67 - Médias e desvios-padrão dos erros endogrupais e exogrupais em função da valência dos traços e do grupo do participante Grupo do participante Angolanos (N=54) Portugueses (N=83) Total (N=137) Valência dos traços erros endogrupais erros exogrupais erros endogrupais erros exogrupais erros endogrupais erros exogrupais Positivos 1.76 (1.03) 1.26 (1.05) 0.93 (0.92) 1.46 (1.04) 1.26 (1.04) 1.38 (1.04) Negativos 1.56 (1.00) 1.46 (0.88) 1.24 (0.97) 1.34 (1.04) 1.36 (0.99) 1.39 (0.98) Nota: Os erros poderiam variar entre 0 e 4. Análise dos efeitos do Grupo x Ordem x Versão sobre o Tipo de erro em função do grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo) e da valência dos traços (positivos vs. negativos): Tipo de erro x Valência dos traços: F(1,129)=0.00, p<0.986 Grupo do participante x Tipo de erro x Valência dos traços: F(1,129)=7.14, p<0.009 Angolanos: F(1,129)=2.63, p<0.107 Portugueses: F(1,129)=4.59, p<0.034 Análise dos efeitos do Grupo sobre o Tipo de erro (endogrupais vs. exogrupais) quando os traços são positivos: Tipo de erro: F(1,135)=0.02, p<0.893 Grupo do participante x Tipo de erro: F(1,135)=21.29, p<0.0001 Angolanos: F(1,135)=8.28, p<0.005 Portugueses: F(1,135)=14.30, p<0.0005 Análise dos efeitos do Grupo sobre o Tipo de erro (endogrupais vs. exogrupais) quando os traços são negativos: Tipo de erro: F(1,135)=0.00, p<0.987 Grupo do participante x Tipo de erro: F(1,135)=0.71, p<0.401 Resumindo, os portugueses aumentam a distintividade dos membros do endogrupo nos traços positivos e reduzem-na nos traços negativos. Já em relação ao exogrupo, os portugueses usam sempre a mesma estratégia: independentemente da valência dos traços prevalece a homogeneidade. Em contrapartida, os angolanos homogeneízam sempre o endogrupo, mas mais ainda quando os traços são positivos, e heterogeneízam o exogrupo, sobretudo quando os traços são positivos. Assim, é sobretudo ao nível dos traços positivos que se verificam as maiores divergências nas estratégias cognitivas em relação ao endogrupo entre participantes angolanos e participantes portugueses.
  • 470. Racismo e etnicidade em Portugal 470 5.3.3.3 Tarefas do questionário 5.3.3.3.1 Efeitos de homogeneidade A Tabela 68 apresenta os resultados das medidas de variabilidade grupal percebida. Para as medidas baseadas na diferença entre os traços estereotípicos e os traços contra-estereotípicos (PERSC e MEDSC) os valores mais elevados correspondem a maior conformidade com os estereotípicos, isto é, menor variabilidade grupal percebida. Tabela 68 - Médias e desvios-padrão das medidas PERSC e MEDSC em função do grupo do participante e do grupo-alvo Grupo do participante Angolanos (N = 54) Portugueses (N = 83) Total (N = 137)Medidas Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo PERSC S CS S – CS 62.91 (22.03) 31.02 (27.61) 31.89 (36.43) 72.54 (18.83) 66.81 (26.12) 5.72 (26.60) 65.33 (13.91) 53.05 (21.12) 12.28 (26.48) 57.33 (21.71) 34.69 (22.73) 22.68 (34.16) 64.37 (17.55) 44.30 (26.15) 20.07 (32.16) 63.41 (21.71) 47.54 (28.77) 15.84 (32.32) MEDSC S CS S – CS 67.07 (22.10) 36.31 (27.71) 30.76 (37.06) 73.65 (19.36) 69.41 (26.69) 4.24 (28.33) 62.46 (13.88) 59.41 (21.16) 3.05 (24.03) 59.61 (21.92) 39.24 (24.19) 20.37 (36.66) 64.29 (17.67) 50.24 (26.44) 14.05 (32.72) 65.18 (21.97) 51.22 (29.16) 13.96 (34.41) Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida PERSC em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,131)=4.45, p<0.037 Grupo x Grupo-alvo: F(1,131)=26.00, p<0.0001 Angolanos: F(1,131)=21.87, p<0.0001 Portugueses: F(1,131)=5.50, p<0.021 Análise dos efeitos do Grupo sobre a medida MEDSC em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,133)=1.19, p<0.276 Grupo x Grupo-alvo: F(1,133)=28.78, p<0.0001 Angolanos: F(1,133)=17.38, p<0.0001 Portugueses: F(1,133)=11.41, p<0.001 No que respeita a medida PERSC, verificou-se um efeito significativo do grupo- alvo, revelando um efeito de homogeneidade do endogrupo em termos globais: os
  • 471. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação 471 participantes estabeleceram uma maior diferença entre os traços estereotípicos e contra- estereotípicos para o endogrupo (S – CS = 20.07) do que para o exogrupo (S – CS = 15.84), ?F(1,133) = 4.45, p < 0.037?. O efeito de interacção entre o grupo do participante e o grupo-alvo foi também estatisticamente significativo apontando assim para uma assimetria nos efeitos de homogeneidade, ?F(1,133)=26.00, p< 0.0001?. As análises de contrastes revelaram que os participantes angolanos atribuíram uma maior diferença entre os traços estereotípicos e os traços contra-estereotípicos para o endogrupo (S - CS=31.89) do que ao exogrupo (S - CS=5.72), ?F(1,131)=21.87, p<0.0001?, enquanto que os participantes portugueses atribuíram uma maior diferença entre os traços estereotípicos e os traços contra-estereotípicos para o exogrupo (S - CS=22.68) do que ao endogrupo (S - CS=12.68), ?F(1,133)=5.50, p<0.021?. O padrão de resultados da medida MEDSC foi bastante semelhante. O efeito principal do grupo-alvo não foi estatisticamente significativo. A interacção entre o grupo- alvo e o grupo do participante foi significativa apontando para uma assimetria nos efeitos de homogeneidade, ?F(1,133)=28.78, p<0.0001?. Análises de contrastes revelaram que os participantes angolanos atribuíram uma maior diferença entre os traços estereotípicos e os contra-estereotípicos ao endogrupo (S - CS=30.76) do que ao exogrupo (S - CS=4.24), ?F(1,133)=17.38, p<0.0001?. Em contrapartida, os participantes portugueses atribuíram uma maior diferença entre os traços estereotípicos e os contra-estereotípicos ao exogrupo (S - CS=20.37) do que ao endogrupo (S - CS=3.05), ?F(1,133)=11.41, p<0.001?. Resumindo, ambas as medidas baseadas na diferença de atribuição de traços estereotípicos e contra-estereotípicos revelaram um efeito de homogeneidade do exogrupo muito significativo para os membros do grupo dominante (participantes portugueses), visto que estes atribuíram maior conformidade aos estereótipos grupais ao exogrupo do que ao endogrupo. Em contrapartida, os membros do grupo dominado (participantes angolanos) demonstraram um efeito de homogeneidade do endogrupo. A Tabela 69 apresenta os resultados das AMPLI e VARIA. Para ambas as medidas os valores mais elevados correspondem a maior variabilidade grupal percebida.
  • 472. Racismo e etnicidade em Portugal 472 Tabela 69 - Médias e desvios-padrão das medidas de AMPLI, VARIA em função do grupo do participante e do grupo-alvo Grupo do participante Angolanos (N = 54) Portugueses (N = 83) Total (N = 137) Medidas Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo Endogrupo Exogrupo AMPLI 48.75 (29.61) 43.41 (20.03) 68.61 (17.54) 65.20 (23.75) 60.90 (24.86) 56.74 (24.72) VARIA 3.50 (1.61) 3.78 (1.37) 4.52 (1.28) 3.69 (1.40) 4.12 (1.50) 3.72 (1.39) Análise do efeito do Grupo sobre a medida AMPLI em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,133)=5.43, p<0.021 Análise do efeito do Grupo sobre a medida VARIA em função do Grupo-alvo (endogrupo vs. exogrupo): Grupo-alvo: F(1,133)=1.74, p<0.189 Grupo x Grupo-alvo: F(1,133)=8.05, p<0.005 Angolanos: F(1,133)=1.03, p<0.312 Portugueses: F(1,133)=14.20, p<0.0005 A análise dos dados relativos à medida AMPLI produziu um efeito do grupo-alvo significativo: globalmente os participantes estimaram maior amplitude para o endogrupo (M = 60.90) do que para o exogrupo (M = 56.74), F(1,133)=5.43, p<0.021. Contrariamente às nossas expectativas, a interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante não foi significativa. A análise realizada sobre os valores da medida VARIA não produziu um efeito principal do grupo-alvo significativo, ?F(1,133)=1.74, p<0.189?. A interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante foi significativa apontando para uma assimetria nos efeitos de homogeneidade, ?F(1,133)=8.05, p<0.005?. As análises de contrastes revelaram que os participantes portugueses homogeneizaram mais o exogrupo (M=3.69) do que o endogrupo (M=4.52), demonstrando um efeito de homogeneidade do exogrupo muito significativo, ?F(1,133)=14.20, p<0.0005?, enquanto os participantes angolanos homogeneizaram mais o endogrupo (M=3.50) do que o exogrupo (M =3.78), mas esta diferença não é estatisticamente significativa. A Tabela 70 apresenta os resultados da medida SEMEL. Para esta medida, valores mais elevados correspondem a menor semelhança percebida com o grupo-alvo. A análise realizada sobre os valores da medida SEMEL produziu um efeito principal do grupo-alvo significativo, demonstrando que a globalidade dos participantes se sentem
  • 473. Capítulo 5 - Estudos experimentais: discriminação no tratamento da inform ação 473 mais semelhantes ao endogrupo (M = 3.74) do que ao exogrupo (M = 4.96), ?F(1,133)=40.65, p<0.001?. A interacção entre o grupo-alvo e o grupo do participante também foi significativa apontando para uma assimetria na diferenciação que os participantes estabelecem entre si próprios e o grupo de pertença e o grupo dos outros ?F(1,133)=11.10, p<0.001?. As análises de contrastes revelaram que os participantes portugueses se sentem mais semelhantes com os membros do endogrupo (M=4.07) do que com os membros do exogrupo (M=4.96), ?F(1,133)=5.88, p<0.017?, mas esta diferença é muito mais acentuada nos