Descrição de chapéu
Beatriz Bueno

Resposta: Parditude é conceito inovador, que busca equilíbrio e nada tem de retrocesso

Autores distorcem propostas, alegando que a noção fragmenta o campo negro e é funcional à branquitude

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Beatriz Bueno

Mestranda em cultura e territorialidades pela UFF (Universidade Federal Fluminense)

[RESUMO] Em resposta a artigo de Érico Andrade e Lia Vainer Schucman, autora afirma que a noção de parditude não é um retrocesso, mas um passo para a construção de um debate racial mais inclusivo e representativo no Brasil e que, em vez de fragmentar o movimento negro, busca reconhecer a especificidade da experiência parda.

Érico Andrade e Lia Vainer Schucman publicaram nesta Ilustríssima o texto "Noção de parditude é equivocada e representa regressão no debate racial do país". Fiquei lisonjeada com a atenção, afinal, já tive a oportunidade de conversar com os dois.

Érico me disse que, apesar das nossas divergências, era evidente que lutávamos juntos contra o racismo. Gentilmente, ele me enviou seu livro. Lia não foi diferente: ela reconheceu que o termo pardo está em disputa e que existem opiniões diversas e também me enviou seu trabalho. Curiosamente, longe dos olhos do público, ambos disseram que nós lutamos juntos.

A imagem mostra uma grande multidão de pessoas participando de um desfile. A maioria das pessoas está vestida com camisetas azuis e usa chapéus brancos. Algumas pessoas seguram guarda-chuvas azuis. O ambiente parece festivo, com muitas pessoas reunidas em uma rua.
Desfile do Filhos de Gandhy em Salvador; Bahia é o estado do país com a maior concentração de população preta (22,4%), segundo o Censo 2022 - Rafael Martins - 2.mar.25/AFP

Apesar do tom amigável das nossas conversas pessoais, em sua intervenção pública na Folha, eles adjetivaram meu trabalho como regressivo, perigoso, reacionário e até eugenista. Fui retratada como ressentida e não como alguém motivado por um interesse intelectual e político legítimo.

Esse tipo de retórica é estranha ao debate acadêmico e científico, que deve se manter no campo das ideias e dos argumentos, evitando desqualificações pessoais e suposições infundadas sobre as intenções ou estados mentais dos interlocutores. Acredito que o mais importante é discutir o mérito da questão e, nesse esforço, os adjetivos quase sempre atrapalham. Em resumo, os termos utilizados pelos autores violam os princípios de uma discussão construtiva e de um debate rigoroso e plural.

A redução da parditude a uma caricatura

Para um debate ser construtivo, é preciso compreender e apresentar os argumentos do outro com honestidade. Distorcer falas, criar versões simplificadas ou atribuir intenções inexistentes é uma tática que revela a recusa em dialogar genuinamente, buscando apenas a vitória fácil sobre uma versão distorcida do que foi dito. Infelizmente, é isso que tem acontecido no debate envolvendo a parditude.

Distorcem minhas propostas alegando que a noção de parditude não tem lastro no debate científico ou político, que ela fragmenta o campo negro e é funcional à branquitude, que presume a existência de raças puras, que é uma confusão ou que evoca discursos de pureza racial e, por fim, que visa retirar direitos de outros grupos —quando na verdade busca apenas assegurar direitos já designados por lei a pessoas pardas. Por isso, sou obrigada a mais uma vez defender meus argumentos de tantas distorções.

O debate acadêmico e científico sobre o pardo

Diferentemente do que alegam os autores, a mestiçagem e o debate sobre o pardo são temas clássicos das ciências humanas e do debate político brasileiro, não uma confusão. Um exemplo recente é o novo livro do pesquisador Alberto Carlos Almeida, "A Cabeça do Brasileiro, Vinte Anos Depois: O que Mudou", que dedica um capítulo inteiro à discussão sobre a questão do pardo.

A verdadeira confusão surge quando paradigmas antigos não conseguem explicar o mundo e seus defensores se recusam a aceitar esse fato. Nesse caso, preferem gastar suas energias omitindo ou minimizando as evidências de sua própria crise a se abrir à descoberta e aos debates controversos, que fazem a ciência avançar.

Fragmentação da luta antirracista

Uma das críticas mais comuns e, a meu ver, mais falhas à noção de parditude é que ela fragmenta o campo negro e é funcional à branquitude. Isso não só inverte a lógica do problema como ignora as verdadeiras causas das fissuras na luta antirracista.

Na verdade, a fragmentação nasce da insistência em uma categorização binária que apaga nuances e exclui parcelas significativas da população. São as contínuas exclusões de pardos das políticas de ações afirmativas e do próprio debate público que enfraquecem a agenda antirracista. Como pode haver um "pacto coletivo" entre pardos e negros, como sugerem os autores, se os pardos são marginalizados dentro da própria luta?

Longe de ser uma ferramenta da branquitude, a parditude é um movimento de autoafirmação e busca por justiça. A negação da experiência mestiça não promove união, mas enfraquece a luta antirracista. Se o objetivo é fortalecer o combate ao racismo, é necessário abraçar todas as suas manifestações e identidades, incluindo a complexidade da parditude, em vez de exigir a adesão a um modelo único que não reflete a realidade social de tantos brasileiros.

Mestiçagem e 'raças puras'

Acusam-me de acreditar em raças puras. Ora, é uma obviedade que as raças humanas, no sentido biológico, não existem e que todos somos produto de misturas genéticas. Contudo, ao afirmar a existência do mestiço, refiro-me a um conceito social e culturalmente construído em cima de diferenças físicas observáveis.

O fato de as classificações raciais serem socialmente construídas não as torna menos reais em seus profundos efeitos materiais e simbólicos. É surpreendente que os detratores do debate sobre a parditude recorram à retórica do "somos todos mestiços".

Curiosamente, essa abordagem ecoa os mesmos argumentos daqueles que buscam esvaziar a discussão sobre o racismo, ignorando que, em um país com a história do Brasil, as pessoas são persistentemente lidas, classificadas e hierarquizadas de acordo com características físicas que remetem a origens geográficas distintas —apesar de serem todas biologicamente mestiças.

Quem trabalha no campo das relações étnico-raciais sabe, portanto, que o ser humano é um espectro de misturas. Porém, sabe também que as classificações históricas, enraizadas na colonização e no racismo, criaram hierarquias baseadas em características físicas percebidas, o fenótipo. Se é bem verdade que existem variações fenotípicas e corpos diversos, essas variações são visíveis e reais em seus efeitos.

Afinal, é justamente com base nessas variações que as comissões de heteroidentificação têm decidido quem incluir ou excluir, muitas vezes deixando as pessoas percebidas como mestiças em um limbo. Assim, a ambiguidade fenotípica dos pardos é frequentemente agenciada por grupos de interesse para seus próprios fins. Afinal, quem é aprovado nas bancas de heteroidentificação? Quem recebe olhares de desconfiança e reprovação? Quem é considerado branco demais para ser negro e negro demais para ser branco?

O conceito de raças puras, embora cientificamente infundado, foi instrumentalizado por eugenistas como Madison Grant, que, em sua obra "The Passing of the Great Race" (1916), argumentava que a miscigenação entre brancos e outros grupos raciais resultava em uma descendência inferior. Essa ideologia da hipodescendência influenciou leis de segregação racial como a Regra de uma gota de sangue nos Estados Unidos, que buscava manter a "pureza" da raça branca, isolando-a de povos considerados subalternos.

No Brasil, nos anos 1970, conforme Kabengele Munanga em seu livro "Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil", os movimentos negros começaram a adotar o conceito de hipodescendência para redefinir a identidade negra do país, incluindo os mestiços com ascendência negra na categoria da negritude. Essa mudança gerou avanços importantes, como as cotas raciais, mas também trouxe uma série de problemas, com que lidamos até hoje.

A invenção das categorias raciais também levou ao apagamento do mestiço. Conceitos como negro e indígena foram criados durante a modernidade, no processo de colonização, desmantelando uma infinidade de etnias indígenas e africanas, reduzindo-as a rótulos homogêneos. Povos indígenas das Américas, como os tupis, guaranis, mapuches e navajos, foram forçosamente agrupados sob o termo índio. Da mesma forma, na África, sociedades ricas e diversas como os iorubás, bantos e mandingas foram simplificadas ao termo negro.

A pergunta é: por que não se esforçam em apagar os termos negro e índio das categorias como se esforçam em apagar o mestiço? A defesa da hipodescendência para gerar união ignora que a união e a solidariedade podem existir entre diferentes. Por que os mulatos não podem se unir aos negros sabendo que são mulatos? E os indígenas, por que continuam a ignorar que nessa soma os pardos indígenas são totalmente apagados?

A experiência concreta do mestiço e a rejeição nas bancas de heteroidentificação

A experiência de ser mestiço é concreta e não um mero sentimento a ser desconsiderado. A própria Lia Vainer, em seu livro "Famílias Inter-raciais", apresenta uma menina parda chamada Amanda, cujo pai branco diz que ela é branca enquanto sua mãe negra diz que ela é negra. Amanda, vinda de uma família abastada, não deseja cotas, mas quer entender seu lugar no mundo. Paradoxalmente, a mesma Vainer que relata o caso de Amanda em seu livro diz agora em seu novo texto que essa experiencia não é válida, é subjetiva, como se fosse algo pessoal e irrelevante.

No entanto, a realidade é que essa experiência se manifesta de forma contundente em políticas públicas. No concurso do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (DF e TO), 72% dos candidatos autodeclarados pardos foram reprovados pelas comissões de heteroidentificação. Dos 2.010 convocados, apenas 545 tiveram sua autodeclaração reconhecida como legítima. Seriam 72% de brancos fraudadores malignos?

Como justificar que mais de sete em cada dez pessoas pardas tenham sido consideradas fraudadoras ou achar que isso é algo subjetivo ou um erro pontual da política? Quero ajudar todas as Amandas que diariamente me mandam mensagens de socorro, pessoas que estão com pensamentos suicidas por receberem ataques ao serem chamadas de fraudadoras e acusadas de estarem invadindo espaços que não são seus.

Racismo e a redução da diversidade racial: a experiência parda

Frequentemente, argumenta-se que indivíduos classificados como pardos devem ser considerados negros porque eles têm uma experiência compartilhada de racismo. Um argumento comum é que "a polícia sabe quem é negro," sugerindo que a violência policial contra uma pessoa parda a torna automaticamente negra.

Essa perspectiva é limitada e reforça a noção equivocada de que apenas indivíduos negros enfrentam racismo ou, pior ainda, que ser negro é ser definido exclusivamente pela experiência do racismo.

Parditude: um conceito inovador para pensar o Brasil

Parditude é um conceito inovador porque busca integrar todo aprendizado do movimento negro à perspectiva da mestiçagem. É diferente das propostas feitas no passado que romantizavam a mestiçagem e minimizavam o problema do racismo. É a busca por equilíbrio.

Se a centralidade da categoria pardo impõe a necessidade de mais conceituação e teorização, que isso seja feito dentro de um debate plural e científico, em que todos possam apresentar seus argumentos sem medo de retaliação e censura. A atualização sobre o debate da mestiçagem, junto com a renovação de uma identidade nacional que não apague os legados indígenas e negros, é uma aposta em um país em que direitos sejam universalizados e pessoas saiam da pobreza extrema e vivam livres da discriminação racial.

Em resumo, a parditude não é um retrocesso, mas um passo para a construção de um debate racial mais inclusivo e representativo. Em vez de fragmentar, ela busca reconhecer a especificidade da experiência parda, sem negar a solidariedade fundamental com a comunidade negra.

É tempo de abandonar as resistências e abraçar a complexidade da racialização brasileira, permitindo que a parditude emerja como uma categoria política legítima e necessária para aperfeiçoar as ações afirmativas e garantir que a justiça racial alcance a todos.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.