Como é trabalhar (e viver) sentindo dor O TEMPO TODO

Como é trabalhar (e viver) sentindo dor O TEMPO TODO

Apesar do título, queria dizer que essa não é uma história só sobre dor.

A dor é causa, mas não consequência.

Pra conseguir ressignificar algo que foge ao meu controle, quis transformar essa em uma história sobre aprendizado, empatia e, acima de tudo, adaptação.

Pra começar, de onde vem a dor?

Eu convivo com a dor há 25 anos. O que começou com um diagnóstico incompleto de escoliose aos 12 anos terminou na descoberta de uma doença degenerativa na coluna (hidrosseringomielia extensa) no ano passado. Pra resumir: essa doença gera um cisto gigante ao longo da medula, tomando espaço, impedindo a circulação e matando neurônios do corpo aos poucos. Essa doença gera 3 consequências ruins: a deformação do corpo (iniciada pela escoliose, mas que hoje envolve problemas de bursite, tendinite e por aí vai) para tentar proteger os neurônios que faltam, a perda de sensibilidade de regiões do corpo em que os neurônios morreram (ou seja, eu me queimo com facilidade e começo a perder um pouco do equilíbrio) e, por fim, a geração de dores crônicas constantes na cabeça, nas costas, nos braços e pernas - tudo, no caso.

Depois de inúmeros diagnósticos errados ao longo dos anos, descobri a doença e fiz uma craniotomia (uma cirurgia que arranca um pedaço do crânio) para atuar a sua causa raiz e parar a sua progressão. O lado positivo é que, com a cirurgia, paramos a evolução de um prognóstico de perda completa da capacidade de me equilibrar e andar - antes tarde do que mais tarde.

Mas… O lado ruim é que o dano que está feito, está feito. Os neurônios que morreram, morreram, as deformações, seguem deformadas. Na prática, isso significa que meu prognóstico a partir de agora é conviver com as limitações provenientes da perda de sensibilidade e força e, principalmente, com a dor crônica. Com o diagnóstico e com o avanço da doença nos últimos anos, descobri que essa doença é considerada uma deficiência.

De 1 a 10, de quanta dor estamos falando?

No começo, era uma dor "normal", um dorflex e alongamento resolviam. Com o tempo e a progressão da doença, o dorflex virou trandrilax, que virou pregabalina, que virou metadona e um conjunto de outros 8 remédios, muita fisioterapia e muitos outros tratamentos e procedimentos paliativos para tentar aliviar a dor.

Não é fácil explicar e tangibilizar o que é a dor crônica. Ela é uma deficiência invisível, ninguém vê. Ela também não se compara com uma dor pontual, de uma cólica, um ralado até uma cólica de rim. A beleza da dor pontual é que ela tem fim. Essa, infelizmente, não tem. É 24/7 ocupando meus sentidos.

Toda vez que converso com médicos, eles me perguntam: "de 1 (quase nada) a 10 (estou morrendo), qual é o seu nível de dor?". De manhã, num dia normal, sempre já acordo no 7. Com o passar do dia, depois de ficar muito tempo sentada ou de pé, a dor vai pra um 8 a 9. Com os remédios e tratamentos paliativos, às vezes chega num 5-6. Mas nunca é 0.

Hoje, minha dor irradia para a cabeça, para os dois braços, na lombar e para a perna esquerda (sortuda é a minha perna direita 😂). No fim do dia, como descrevem meus médicos, a dor que eu sinto é tão forte quanto uma pedra no rim (nunca tive uma pra comparar), um nível de querer enfiar a cabeça na parede, vontade de enfiar uma faca e arrancar o que quer que está queimando e doendo ao longo do caminho da dor. Os remédios ajudam, mas também têm suas consequências e geram os remédios para cuidar dos efeitos dos remédios. Então é sempre uma relação de balancear o quanto eu aguento de dor com o quanto eu tomo de remédio.

Na prática, como isso afeta a vida?

Assim como outras deficiências, a minha doença gera limitações. Com isso, hoje a dor me limita de três formas.

A primeira limitação mais óbvia é física. Fisicamente, hoje a dor me limita a capacidade de dirigir, de ficar de pé, de ficar muito tempo sentada. Não posso mais andar muito tempo de carro, fazer vários exercícios e carregar peso.

A segunda limitação, menos óbvia e pior, é mental. A dor ensurdece e ocupa tudo: meus pensamentos, minha capacidade de raciocinar, minha vontade de fazer as coisas (e eu gosto de fazer muita coisa rs). A mente adoece não só pela dor do momento, mas também por saber que ela não vai acabar - a falta de perspectiva é que mata.

Quem vê cara na reunião e nas redes sociais, não vê perrengue: é muito difícil de explicar essa deficiência porque ela não é visível. E, se não é visível, a percepção (até pra mim mesma) é que ela não existe de verdade, é algo momentâneo ou que deveria ter um caminho mais fácil de solução.

Por não ser visível, é natural que as pessoas subestimem ou sugiram uma solução que parece miraculosa pra uma dor corriqueira, mas que não resolve uma deficiência: já fez pilates? Acupuntura? Fisioterapia? Osteopatia? Quiropraxia? Tomou floral? Você faz exercícios? E terapia? Operou por que? Será que precisa de remédio mesmo?

Da mesma forma, a invisibilidade do status da dor a cada momento gera reações que nem sempre são fáceis de responder. Se eu aparento estar bem e de bom humor (que felizmente tenho de sobra), as pessoas comemoram como se tivesse rolado uma cura: "nossa tá tão bem! Não tá de colar cervical, não tá deitada… Que bom que passou!". Internamente, sempre que isso acontece eu sinto como se eu tivesse decepcionando as pessoas, porque eu não consigo me curar. O que eu consigo é trabalhar e viver apesar da dor (e isso exige um esforço que também é invisível e que nem eu consigo reconhecer pra mim mesma).

Eu sei que nada disso é por mal: felizmente as pessoas querem ajudar, querem me ver bem, querem que a Carol "volte ao normal". O difícil de explicar é aquilo com que nem eu lidei: o normal agora é essa Carol f*dida mesmo. Em cada conversa eu sinto que eu revivo tudo de novo.

Por fim, a terceira limitação é consequência das outras duas: é uma limitação na vida profissional e pessoal. Com o corpo e a mente impondo tantos obstáculos, o mais desafiador de tudo isso é ver no banco do passageiro as limitações que isso acarreta na vida. Pessoalmente, eu vejo a doença limitar cada vez mais a minha vida com a minha família, com o meu marido, como mãe, como amiga. Eu não posso mais carregar minha filha no colo, correr pra lá e pra cá, ficar sentada por muito tempo no chão montando lego. Das visitas aos médicos às crises de desespero, a sensação é a de que a minha deficiência também limita a vida deles, vira um peso que eles carregam comigo. Não aproveitamos mais as viagens e os passeios da mesma forma. Não consigo ir para todos os programas com os amigos. Algumas pessoas se vão porque, vamos combinar, eu sei que não é fácil também ficar trocando ideia comigo deitada no sofá.

Profissionalmente, o gás que eu tinha para trabalhar também não é o mesmo. E a merda é que eu A-M-O  trabalhar. Eu amo o que eu faço, com quem eu faço, pelo propósito que fazemos juntos. Meu trabalho é parte do que eu sou e, por esse motivo, dói ver como ele se limita. A limitação física atrapalha reuniões, viagens, eventos. Minha agenda útil diminui com tanto tempo de médicos, procedimentos e fisioterapia. Minha capacidade de pensar muitas vezes diminui pela dor ou pelos remédios. Tanto os projetos que não consegui conquistar como as oportunidades que sinto que perdi por tudo isso me geram um ressentimento comigo mesma. Eu fico P da vida com a minha dor, comigo, com tudo.

Tudo isso é triste. Outras coisas são também, na vida de outras pessoas. Mas a tristeza não pode ser tudo. 

Então como lidar com isso tudo?

Ufa! Eu escrevi essa desgraceira toda pra chegar até aqui.

Sei que, assim como eu, tantas outras pessoas também possuem problemas tão ou bem mais relevantes como esse. Problemas de saúde. Problemas financeiros. Problemas estruturais. Problemas que não necessariamente são nossa culpa, mas estão aí do mesmo jeito pra gente resolver ou, pelo menos, para aprender a conviver.

Como muitos, se eu falar que eu aprendi 100% a lidar com isso tudo, é mentira deslavada. Por outro lado, demorei pra reconhecer o meu privilégio de poder contar com tratamentos caros e com minha rede de apoio. Demorei pra reconhecer que já consegui avançar bastante apesar da deficiência. Comecei, aos poucos, a me apropriar da minha deficiência -  pra evitar que ela não se aproprie de mim.

Todos os dias, é preciso fazer uma escolha consciente de levantar e seguir. Tem um pouco de verdade no lugar comum de "só resolve problema quem quer". Por mais que essa frase não reconheça o contexto ou tamanho de cada problema, ela traz uma verdade dolorida pra quem já está nocauteado no chão: o primeiro passo pra levantar é escolher levantar. Uma parte de mim quer ficar todo dia deitada chorando a morte da bezerra. Mas a outra parte aprendeu que ficar deitada é morrer abraçada com o problema, o que só piora a situação também. Escolher levantar, mesmo sabendo que você pode cair de novo, é um ato contínuo de coragem.

Pra escolher levantar, entendi também que é preciso se agarrar a um porquê. Ninguém se levanta sem ter uma motivação pra levantar - e a motivação precisa ser boa o suficiente para quebrar a inércia do problema. Pra mudar o curso e começar a enfrentar minha doença, eu precisei organizar e somar diariamente as motivações que não vão me deixar pisada no chão: pela minha filha, pelo meu marido, pela minha família, meus amigos, minha carreira, meus sonhos, minha vida. Não é sempre fácil e nem intuitivo, mas é poderoso e necessário.

Colocar minha saúde em primeiro lugar dá trabalho, mas é o que não deixa a doença ganhar. Sempre brinco que "trabalhar dá trabalho" - cuidar da saúde também dá (e é um saco, pra ser bem sincera). Ainda que não haja cura para a minha deficiência, há muitos tratamentos paliativos que me ajudam a atenuar a dor. Porém, isso exige, sim, muita dedicação e consistência. Por isso, estou me esforçando para ter disciplina para tomar todos os remédios do jeito certo e nas horas corretas, honrar o compromisso com os tratamentos rotineiros e com o acompanhamento periódico dos meus médicos.

Pra aguentar o tranco, ter uma rede de apoio também é uma virada de jogo. Toda condição crônica te obriga a viver e a reviver um mesmo problema over and over. Nesse sentido, ter a paciência de me ouvir e acolher nos piores momentos igual a um disco riscado não é pra qualquer um. Os poucos que conseguem são as pessoas que me mantém no jogo. Reconhecer quem são essas pessoas e aprender a contar com elas e confiar que elas querem mesmo estar ali é também um exercício contínuo que estou me esforçando a fazer.

Pra conviver com essa deficiência, eu preciso, aos poucos, reaprender a fazer, de um novo jeito, as coisas que eu quero fazer. Percebi que aqui também tenho uma escolha: posso tentar viver tudo o que eu quero sofrendo pelo que poderia ter sido se eu não tivesse a minha deficiência, ou eu posso desenvolver novos caminhos para continuar fazendo o que eu quero apesar da doença.

Esse último ponto é difícil porque precisa ser aplicado em praticamente tudo. Eu ainda posso fazer parte da vida da minha filha, mas priorizando os momentos e tarefas que consigo estar mais presente física e mentalmente. Eu ainda posso trabalhar, mas preciso descobrir novos caminhos para não forçar o corpo e priorizar a saúde quando necessário. Eu consigo viajar, realizar meus desejos e sonhos, mas pra isso preciso adaptar o escopo e formato para algo que caiba no que meu corpo aguente. Falar aqui é mais fácil do que fazer, tá? Um passo por vez, estou me obrigando a ressignificar cada pedacinho de cada jornada.

Pra fechar, o que cada um (inclusive eu) pode levar com isso tudo?

Pra mim, a escrita sempre foi um lugar de refúgio, de conforto para a minha mente. Por isso, falar (ou escrever) sobre tudo isso pode ser doloroso, mas também traz um tipo diferente de cura. A escrita me fez organizar na minha cabeça todos os meus sentimentos, meus medos e as possibilidades que estão nas minhas mãos para enfrentar de frente minha doença.

Para quem convive com uma condição crônica como eu, espero que você encontre acolhimento e encorajamento aqui. Acredito que melhor do que o sofrimento isolado em cima daquilo que não tem solução é a gente se inspirar uns com os outros com diferentes formas de atuar em cima do que está sob nosso controle. 

Pra quem convive comigo de alguma forma e chegou até aqui, espero poder ter compartilhado um pouco dos bastidores, daquilo que muitas vezes não consigo explicar da melhor forma. No clima de "desculpa qualquer coisa", queria sim me desculpar por expectativas não atendidas e agradecer pelo apoio quando precisei - pois fez mais diferença do que vocês imaginam.

Para os demais, fico feliz em ter tido a coragem de compartilhar com vocês uma realidade sobre a qual pouco se fala. Compreender um ponto de vista com o qual é muito difícil de empatizar pode ser um primeiro passo para ajudar outras pessoas como eu com quem vocês convivem.

Em todos os lugares, há alguém passando por algo que a gente nem imagina.

Espero que, ao me abrir sobre isso, eu tenha diminuído um pouco do medo para abordar temas difíceis como esse nos nossos trabalhos e nas nossas vidas. Enquanto o silêncio encoraja julgamentos e preconceitos, a curiosidade e a vontade de conhecer mais sobre cada pessoa e cada problema nos dá luz a um espectro de caminhos de solução conjunta.

Enfrentar é uma escolha conjunta.

Eliane De jesus

Assistente social na Prefeitura de Campo Limpo Paulista

6 m

Estou lendo seu relato em plena crise de dor, tenho estenose lombar e meralgia parestésica na coxa direita. Sou Assistente Social , casada , concurseira, e muitas vezes limitada pela dor. Obrigada por seu relato! Eu me vejo muito nele.😘

Alice Ribeiro

Experienced engineering manager, Group leader, Technical Manager, Researcher.

1 a

Agradeço por compartilhar e por escolher continuar a luta.

Paulo Cholla

Senior Product Designer • No Code • Inteligência Artificial • Enterprise SaaS • UX/UI Designer • User Experience • Fundador do Boteco Design

1 a

Carolina Nucci obrigado por compartilhar esse texto. eu também sofro com dores na coluna, mas um quadro muito menos complexo por ser resultado principalmente de má postura e falta de exercícios pra suportar meu próprio corpo. me identifiquei muito com esse assunto da dor crônica, porque é algo que eu sinto praticamente todos os dias, há pelo menos 8 anos. já tive essa fase de acordar com a dor 7 e piorar conforme o dia avança. e nunca é 0 mesmo. demorei pra perceber como isso me afetava de outras formas, como ficar constantemente mal humorado, emburrado, sem nem saber o motivo exato. hoje, depois de finalmente colocar o exercício físico de forma constante na rotina, a dor ficou menos intensa, e mais fácil de suportar. mais uma vez, obrigado ❤️

Fernanda Futada

Coordenadora de Marketing | Quinto Dia Útil co-host

1 a

Apesar do pouco tempo que convivemos, sua presença e companhia é TÃO impactante na caminhada de quem te cerca, que não tem como passar por você sem te carregar, nem que seja um pouquinho, pro resto da vida. Você é incrível, Carol! Tenho certeza de que NADA é por acaso, nem sua dor, nem sua coragem pra compartilhar e nem a quantidade de pessoas que "sem querer" vão esbarrar nesse texto aqui no linkedinho. Obrigada por tanto <3

Amanda Rosa

Revenue & Sales Operations | Arquitetando Eficiência com Dados, Processos e Pessoas | Consultora em CRM e Performance Comercial | Embaixadora Women in Sales

1 a

Eu te agradeço por compartilhar isso 🩵 você tem me ensinado demais! De coração, conte comigo para sua jornada linda 😍

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