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Poder local e_socialismo
Poder local e_socialismo
PODER LOCAL
E SOCIALISMO
Fundação Perseu Abramo
                             Instituída pelo Diretório Nacional
                      do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996
                                       Diretoria
                                 Luiz Dulci – presidente
                             Zilah Abramo – vice-presidente
                                Hamilton Pereira – diretor
                              Ricardo de Azevedo – diretor
                        Editora Fundação Perseu Abramo
                                Coordenação Editorial
                                  Flamarion Maués
                                 Assistentes Editoriais
                               Candice Quinelato Baptista
                                Viviane Akemi Uemura
                                       Revisão
                               Maurício Balthazar Leal
                              Márcio Guimarães de Araújo
                                Capa e Projeto Gráfico
                                  Gilberto Maringoni
                                  Ilustração da Capa
                                  Paulo França Lopes
                                 Editoração Eletrônica
                                  Enrique Pablo Grande
                                      Impressão
                                     Gráfica OESP




                   1a edição: abril de 2002 – Tiragem: 4 mil exemplares
                               Todos os direitos reservados à
                             Editora Fundação Perseu Abramo
         Rua Francisco Cruz, 234 – CEP 04117-091 – São Paulo – SP – Brasil
                    Telefone: (11) 5571-4299 – Fax: (11) 5571-0910
Na Internet: http://www.fpabramo.org.br – Correio eletrônico: editora@fpabramo.org.br
   Copyright © 2002 by Editora Fundação Perseu Abramo — ISBN 85-86469-69-6
Socialismo em discussão



                 PODER LOCAL
                 E SOCIALISMO

               Celso Daniel
Marina Silva, Miguel Rossetto e Ladislau Dowbor




              EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
                        (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

     Desenvolvimento local e socialismo / Celso Daniel... [et al.]. — São Paulo : Editora
  Fundação Perseu Abramo, 2002. — (Coleção Socialismo em Discussão)

     Outros autores: Marina Silva, Miguel Rossetto, Ladislau Dowbor

    Bibliografia.
    ISBN 85-86469-69-6

    1. Democracia 2. Desenvolvimento econômico 3. Governo local 4. Socialismo I. Daniel,
    Celso. II. Silva, Marina. III. Rossetto, Miguel. IV. Dowbor, Ladislau. V. Série

02-1513                                                                   CDD-320.531

                          Índices para catálogo sistemático:
                1. Socialismo e democracia : Ciência política 320.531
Apresentação
Francisco de Oliveira ..................................................................... 7
Nota do editor ................................................................................. 9
Perspectivas que o desenvolvimento local e a
distribuição de renda abrem à construção do socialismo
Celso Daniel .................................................................................. 11

Perspectivas que o desenvolvimento local ... – Roteiro
Celso Daniel .................................................................................. 37

Comentários

O caboclo, o pesquisador e a canoa
Marina Silva ................................................................................. 47
Projeto local e projeto nacional
    Miguel Rossetto ........................................................................ 55

    Urbanização e gestão social
    Ladislau Dowbor ..................................................................... 69


    Debate com o público
    Max Altmann ............................................................................................... 81
    Inácio Teixeira Neto ...................................................................................... 84
    Alencar ........................................................................................................ 85
    Valter Pomar ................................................................................................. 85
    Paul Singer ................................................................................................... 87
    Coordenador da mesa .................................................................................. 88
    Celso Daniel ................................................................................................ 89
    Marina Silva ............................................................................................. 100
    Miguel Rossetto ......................................................................................... 107
    Ladislau Dowbor ....................................................................................... 111


    Sobre os autores ................................................................... 117




6                                                                                 PODER LOCAL E SOCIALISMO
Apresentação
Francisco de Oliveira

   O segundo ciclo do seminário Socialismo e Democracia – reproduzido na
coleção Socialismo em Discussão –, que o Instituto Cidadania, a Fundação
Perseu Abramo e a Secretaria de Formação Política do Partido dos Traba-
lhadores realizaram no primeiro semestre de 2001, dedicou-se, desta vez,
ao exame de questões concretas que estão sendo postas para o movimento
das esquerdas no Brasil com urgência, particularmente a partir das expressi-
vas vitórias nas eleições municipais de outubro de 2000. O Partido dos Tra-
balhadores, para não usurparmos a fala das outras formações da esquerda
brasileira, foi chamado a dar soluções concretas aos já dramáticos proble-
mas das cidades, herança de um longo ciclo histórico, agravados pelas polí-
ticas ou antipolíticas neoliberais dos últimos dez anos.
   Entendeu-se que a votação cidadã optou pelo PT não apenas pela ur-
gência da conjuntura, mas como uma orientação de outra perspectiva de
desenvolvimento econômico, social, político e cultural, caucionada pela
trajetória do partido desde sua criação e pela exemplaridade das admi-
nistrações petistas ali onde a cidadania lhe tem entregue a gestão do
Estado, em municípios e estados.
   A abordagem das questões concretas juntou as urgências de curto pra-
zo com a perspectiva histórica mais ampla do futuro. Por isso os vários

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                        7
temas foram trabalhados, sempre, perguntando-se quais são suas
    interações com o socialismo. De modo que as gestões da esquerda não
    devem ser apenas o breve ciclo de uma administração, mas precisam
    também realizar concretamente, na vida cotidiana das cidades, das cida-
    dãs e cidadãos, uma mudança cujo nome histórico é socialismo. Não
    para um dia qualquer posterior à revolução, mas diuturnamente. Desse
    modo, a perspectiva histórica do socialismo ajuda, orienta e valoriza me-
    didas simples, ao alcance da cidadania, sem a grandiloqüência dos gran-
    des eventos, mas preparando-a para seu autogoverno.
      Foram abordados o recado das urnas de 2000, a rica experiência, que
    a vários títulos representa uma enorme inovação política, do orçamento
    participativo, o planejamento urbano, a reforma agrária e o movimento
    dos trabalhadores sem-terra, as formas contemporâneas da luta social, a
    decisiva revolução molecular-digital e a virada da informação, e, por
    último, as complexas relações econômicas internacionais na era da cha-
    mada globalização. O exame travejou, sempre, a experiência das lutas
    com a reflexão que procurava projetá-las e entendê-las no quadro da
    transformação urgente e radical. Destacados militantes do Partido dos
    Trabalhadores, desde seu presidente de honra, novos dirigentes munici-
    pais, calejados quadros políticos, governadores e prefeitos, especialistas,
    reputados professores universitários, apoiados, discutidos e contestados
    por um público sempre numeroso e participante, dedicaram o tempo ne-
    cessário para arejar o pensamento, desafiando o entendimento da nova
    complexidade. Assim, o PT busca juntar ação e reflexão, não apenas
    para preparar quadros, mas para assumir o mandato da transformação –
    como disse uma já clássica canção petista – “sem medo de ser feliz”.

                                       Em nome da Comissão Organizadora,
                                                   Francisco de Oliveira


8                                                     PODER LOCAL E SOCIALISMO
Nota do editor

  Pela primeira vez a coleção Socialismo em Discussão publica um
texto sem que ele tenha sido revisto e corrigido pelo autor. Em função
do brutal assassinato do prefeito Celso Daniel em janeiro de 2002, so-
mos obrigados a isso.
  Por esse motivo, optamos por publicar também, logo após o texto
transcrito da palestra, o roteiro preparado pelo então prefeito de
Santo André para esta exposição, tal e qual ele o entregou aos
organizadores do evento.
  Agradecemos a Ivone de Santana e a Gilberto Carvalho por terem
lido e feito correções e observações no texto transcrito da palestra,
proferida no seminário Socialismo e Democracia, na sessão realizada
em abril de 2001. Tais sugestões foram incorporadas à versão final.
  Ressalte-se que os demais textos, de Marina Silva, Miguel Rossetto e
Ladislau Dowbor, foram revistos e corrigidos pelos autores.
  Ditas estas palavras necessárias sobre os textos de Celso Daniel publi-
cados neste volume, resta-nos registrar nossa profunda indignação em
relação ao modo como fomos privados de sua convivência. Um ato de
violência e de covardia que nos deixa perplexos e é um retrato sem
retoques de nosso país nos dias de hoje.

SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                     9
Esperamos que esta publicação, assim como outras que venham a
     ser feitas, ao nos colocar novamente em contato com o pensamento de
     Celso Daniel, seja uma forma, mesmo que insuficiente e incompleta,
     de tê-lo ainda conosco.




10                                                PODER LOCAL E SOCIALISMO
Perspectivas que o desenvolvimento
local e a distribuição de renda
abrem à construção do socialismo
Celso Daniel

  Antes de mais nada, quero agradecer o convite da Fundação Perseu
Abramo, do Instituto Cidadania e da Secretaria de Formação Política
do PT para fazer essa exposição. Começo também dizendo que para
mim é uma responsabilidade, até um pouco complicada, fazer uma apre-
sentação vinculando as experiências de desenvolvimento local à pro-
posta de socialismo. Mais complicado ainda, levando em consideração
as pessoas que têm participado destes seminários e as pessoas que
estão hoje aqui presentes. E sei, desde logo, que a abordagem da qual
vai partir minha exposição significa estabelecer certas referências que
estão longe de ser consensuais, digamos assim, dentro do Partido dos
Trabalhadores ou da esquerda.
  Mas prefiro partir disso, mesmo correndo o risco de criar mais proble-
mas e mais divergências, a fazer uma exposição que partisse já direta-
mente da questão do desenvolvimento local.
  Por isso dividirei minha exposição em quatro pontos. O primeiro deles
chamo de duas dinâmicas contraditórias – sistema democrático e modo
de produção capitalista; no segundo ponto, abordarei rapidamente o que


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                    11
considero alguns importantes traços da herança da formação social bra-
     sileira e as transformações recentes pelas quais o Brasil tem passado.
     Um terceiro ponto, com algumas referências sobre socialismo, que já
     começam a criar condições para realizar um contato mais direto com o
     tema do desenvolvimento local; e uma conclusão sobre desenvolvimento
     local e sua vinculação com socialismo.

       Sistema democrático e modo de produção capitalista – Sobre o
     primeiro ponto, trabalho a partir da idéia de que, na verdade, particular-
     mente a partir do final do século XVIII, duas dinâmicas distintas, contradi-
     tórias, com muitos pontos de contato, se estabelecem no mundo ociden-
     tal. Elas são, por um lado, a constituição do modo de produção capitalista
     e, por outro, a constituição do Estado-nação moderno, que abre espaço
     para a emergência do próprio sistema democrático, entendido aqui, evi-
     dentemente, não como regime político, mas como sistema social.
       Já a constituição do modo de produção capitalista, como todos sabe-
     mos, se nutre do Estado-nação sob diferentes regimes políticos, seja di-
     tatorial, seja democrático.
       Queria também lembrar que muito do que discutimos hoje a respeito
     de globalização e neoliberalismo creio que não é, ou pelo menos não
     deveria ser, tão novo assim, como muitas vezes imaginamos. Considero
     que, a esse respeito, a obra de Karl Polanyi A grande transformação é
     uma referência muito interessante, pois, ao buscar entender as origens
     dos grandes problemas que a humanidade viveu na década de 1930 e
     que tiveram seu ápice na Segunda Guerra Mundial, o autor conclui que
     eles tinham a ver com a tentativa de implementação do que ele conside-
     rava uma utopia irrealizável: o mercado auto-regulador, a idéia de que
     seria possível pela primeira vez na história fazer com que as próprias
     relações sociais ficassem submetidas às relações econômicas. Diz Polanyi


12                                                      PODER LOCAL E SOCIALISMO
que as relações econômicas, evidentemente, sempre existiram na histó-
ria da humanidade, mas isso é muito diferente de uma etapa em que as
relações sociais têm de se ajustar ao figurino de uma economia de mer-
cado auto-regulada, às relações econômicas assim constituídas. E afir-
ma que essa é uma utopia irrealizável. Nem bem essa idéia evoluiu para
a prática – a partir da Grã-Bretanha, que foi a nação hegemônica no
século XIX e no início do século XX –, com a criação do mercado de
trabalho livre, automaticamente a sociedade começou a reagir a essa
tentativa de imposição, criando seus próprios mecanismos de autodefe-
sa, sobretudo a criação de alternativas de organização social ao sistema
capitalista, que foram basicamente as alternativas soviética, por um lado,
e fascista ou nazista, por outro.
  Em poucas palavras, Polanyi afirma que o que criou condições históricas
para a emergência dessas outras alternativas de organização da sociedade
foi a tentativa fracassada de implantação de um mercado auto-regulador.
  Faço essa referência porque busco meu contraponto à idéia de merca-
do auto-regulador, em primeira instância, em alguns textos de Francisco
de Oliveira, que falam do mercado socialmente regulado, do antivalor,
como ele chama [ver bibliografia, p. 44]. Mas também porque, digamos,
a reposição, principalmente a partir da década de 1980, dessa idéia de
economia auto-regulada, mercado auto-regulador, não é uma coisa nova
na humanidade, como eventualmente pode parecer a partir das discus-
sões que vemos estampadas nos jornais, ou mesmo por acadêmicos etc.
  O que me preocupa nessas questões todas é que, considerando que
meu ponto de vista foi sempre elaborado ainda durante a década de
1980, com minha militância no PT, comecei a ficar muito impactado com
a maneira como determinados grupos no partido se moviam – isso em
Santo André, sem generalizar –, e a partir daí comecei a desenvolver um
conjunto de reflexões críticas a propósito do chamado socialismo real,


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                      13
antes da queda do muro de Berlim. Isso tem muito a ver com minha
     vivência prática no PT – insisto, não é apenas uma reflexão teórica – e
     me aponta uma questão, a meu ver fundamental, que diz respeito exata-
     mente ao fato de que essas dinâmicas são contraditórias.
       Parto da noção de que a democracia não é efetivamente uma obra
     burguesa. Sei que o sistema democrático tem sido utilizado pelo capital,
     pelo movimento do capital, para sua reprodução ao longo de todos esses
     séculos. Mas não acho que isso nos autoriza a dizer que a democracia é
     uma obra burguesa. Creio que a luta de classes tem sido expressa sobre-
     tudo pela luta por direitos. Luta que é dotada de imprevisibilidade, algo
     que não pode ser domesticado por nenhum grupo social, nenhum gover-
     no, nenhum partido político.
       E, nesse sentido, considero correta a idéia de que é necessário fazer
     uma reflexão crítica a respeito do socialismo real que vá até a raiz de
     seus problemas.
       Ir até a raiz dos problemas do socialismo real significa, assim, a meu
     juízo, criticá-lo de maneira enfática, considerando que ele é uma versão
     de esquerda do sistema totalitário. Ir até a raiz dessas questões significa
     também fazer uma reflexão crítica a respeito do próprio Marx, não, no
     caso de Marx especificamente, no sentido de negar a obra marxista,
     mas no de, digamos assim, superar a ordem marxista a partir dela mes-
     ma, o que evidentemente não é uma coisa fácil de fazer.
       Queria mencionar aqui que a crítica que Marx faz a propósito da ques-
     tão dos direitos e, por tabela, à questão da democracia é pertinente, sem
     dúvida nenhuma, mas insuficiente. Porque ela na verdade esconde refe-
     rências ou questões que têm muito a ver exatamente com o papel positi-
     vo que o sistema democrático tem condição de desempenhar e tem con-
     cretamente desempenhado nas nossas sociedades. Ou pelo menos em
     algumas das nossas sociedades.


14                                                     PODER LOCAL E SOCIALISMO
Os direitos do homem aparecem para Marx como mera ilusão. Lembro
que participei de um debate com João Machado – professor de economia
da PUC-SP e dirigente do PT –, que está presente aqui, e ele me disse que
isso não é bem verdade, que é um pouco complicado afirmar que os direi-
tos do homem ou a democracia para Marx são mera ilusão. Ele argumen-
tava que, se a igualdade ou a liberdade são formas de aparecer das coisas,
elas encobrem um conteúdo, e para Marx forma e conteúdo estão ligados.
A forma não é nunca apenas aparência, nunca apenas ilusão.
  Pode ser que sim, mas ainda acredito no que eu havia dito inclusive em
relação àquela passagem no próprio O capital em que Marx se refere
ao fato de que a esfera da circulação era de fato o verdadeiro Éden dos
direitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente liberdade,
igualdade, propriedade... Bom, depois ele vai explicar que as pessoas
são livres porque podem ir ao mercado e estão livres dos seus meios de
produção, dos seus meios de subsistência e são livres também no sentido
de que poderiam optar, no caso da força de trabalho, pelo emprego que
melhor lhes conviesse; que reina a igualdade no mercado porque as
mercadorias se trocam pelos seus valores – na idéia do valor-trabalho.
Ou seja, essas idéias de que liberdade e igualdade aparecem fundamen-
talmente como ilusão não estão apenas numa obra anterior do jovem
Marx, mas no próprio O capital.
  Acredito que isso fez com que historicamente na tradição marxista
dominante houvesse uma profunda falta de preocupação ou de cuidado
com a democracia, particularmente com a democracia como sistema.
  Insisto: a democracia não pode ser considerada meramente uma obra
burguesa. E, mais do que isso, essa afirmação [sobre a preocupação
com a democracia] é verdadeira para o totalitarismo fascista, mas tam-
bém acho que é verdadeira para o totalitarismo soviético – ele se ergue
sobre a queda e a ruína da própria idéia dos direitos do homem.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                      15
Trotski, em seu livro sobre Stalin1, diz:

                                           “L´Etat c’est moi! é quase uma forma liberal em comparação
                                          com as realidades do regime totalitário de Stalin. Luís XIV identi-
                                          ficava-se apenas com o Estado. Os papas de Roma identifica-
                                          vam-se, ao mesmo tempo, com o Estado e com a Igreja, mas
                                          unicamente durante as épocas do poder temporal. O Estado to-
                                          talitário vai muito além do césaro-papismo, pois abarca toda a
                                          economia do país. Diferentemente do Rei-Sol, Stalin pode dizer
                                          a justo título: La societé c’est moi! O que é evidentemente uma
                                          outra coisa”.

                                      Ou seja, no fundo, é o início de uma elaboração a respeito da idéia de
                                    que na verdade o socialismo real era na prática um sistema totalitário,
                                    entendido a partir dessa idéia de que “a sociedade sou eu”.
                                      Enquanto isso, no âmbito do sistema democrático, o que na verdade se
                                    opera é uma divisão entre a sociedade civil e o Estado. Uma distinção
                                    entre o poder político – e isso tem uma eficácia simbólica importante –,
                                    que é limitado de direito, não existem governos que sejam donos do po-
                                    der, e o poder administrativo, que tem muito a ver com o crescimento das
                                    burocracias estatais, com a tendência de o Estado, na época moderna,
1. TROTSKI, L. Stalin. São Paulo,
Progresso Editorial, 1947.
                                    no sistema democrático, visar a um controle cada vez maior dos detalhes
2. TELLES, V. S. “Espaço            da vida social. E, na linha de um texto da Vera Silva Telles2, que vai fazer
público e espaço privado na         uma avaliação crítica do pensamento de Hannah Arendt, considero que
constituição do social, notas       nesse caso, ou nesse campo do sistema democrático, a esfera pública e,
sobre o pensamento de               portanto, a relação público–privado têm um papel absolutamente crucial.
Hannah Arendt”. Revista
Tempo Social. São Paulo,              Aliás, diferentemente de algumas referências da teoria de Hannah
Universidade de São Paulo,          Arendt, mas também de Jürgen Habermas sobre a esfera pública, afir-
primeiro semestre de 1990.          ma ela que ações coletivas são vinculadas a interesses em meio a confli-


16                                                                                     PODER LOCAL E SOCIALISMO
tos que atravessam o campo social. Se tais interesses aparecem como
algo mais que a simples defesa corporativa, dependem da articulação de
uma linguagem por meio da qual interesses privados podem ser
desprivatizados e, portanto, reconhecidos publicamente na sua legitimi-
dade. É na linguagem dos direitos que a defesa de interesses se faz
audível e reconhecível na dimensão pública da vida social. Creio que
posta dessa maneira a questão do papel fundamental da esfera pública
no sistema democrático, no âmbito dessa relação público–privado, mas
insistindo no papel da esfera pública como uma referência para conquis-
ta e disputa de novos direitos de cidadania, ela continua a ser uma refe-
rência extremamente importante que, insisto mais uma vez, afirma nova-
mente a distinção que é preciso que nós também afirmemos entre demo-
cracia e sistema capitalista, democracia e economia de mercado, parti-
cularmente a economia de mercado auto-regulada.

  Herança brasileira – Dito isso, gostaria de fazer algumas rápidas
considerações a respeito do Brasil, porque acho difícil falarmos de de-
senvolvimento local de maneira abstrata, e se queremos começar a falar
com base em referências que temos construído a partir da nossa prática
concreta, é preciso também que consideremos algumas características
do nosso país. E aqui eu queria apenas, muito sinteticamente, resgatar
algumas dessas referências que me parecem importantes.
  Em primeiro lugar, gostaria de abordar a herança brasileira; em segun-
do lugar, telegraficamente, de falar duas palavras sobre o Brasil hoje,
particularmente na década de 1990; e em terceiro lugar dar algumas
pitadinhas a respeito do Brasil como uma Federação. Acho que isso é
importante não só para entender o Brasil, mas também para localizar de
maneira adequada as possibilidades, os desafios e os limites que se colo-
cam para o desenvolvimento local em nosso país.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                     17
Em termos de herança brasileira, realmente considero que uma carac-
     terística básica é a reposição quase permanente dessa simbiose entre o
     tradicional e o moderno. Essa idéia de superar o arcaico ou o tradicional,
     apresentando uma proposta moderna, pode ser encontrada em vários
     momentos da história do Brasil com muita facilidade, mas na prática, se
     formos ler bem o que está acontecendo, o que está sendo produzido é
     uma nova simbiose entre o tradicional e o moderno, ou seja, a permanên-
     cia na continuidade.
       Refiro-me a isso porque acho fundamental, porque aprendi sobre isso
     mais diretamente na minha vida como prefeito, a partir da primeira ges-
     tão. Muitas vezes, no PT ou no âmbito da esquerda, nós travamos uma
     discussão substantiva, extremamente importante, mas às vezes tão afas-
     tada de questões cruciais que determinam a maneira como as pessoas
     tomam decisões no dia-a-dia, envolvendo às vezes um hiato tão grande,
     que me vi na necessidade de tentar entender um pouco melhor por que
     as coisas aconteciam dessa maneira.
       Então, fundamentalmente, minha preocupação aqui, na linha de muitos
     dos chamados clássicos da historiografia brasileira, é fazer uma reflexão
     a respeito das possibilidades de transformação, que exigem de nós, aqui
     no Brasil também, ter sempre um extremo cuidado com a idéia de que
     estejamos transformando tudo ou quase tudo, quando na verdade, ao
     realizar essas transformações, podemos estar novamente reproduzindo
     a simbiose entre o tradicional e o moderno que estou comentando. Isso é
     muito verdadeiro no que diz respeito, por exemplo, à nossa cultura políti-
     ca clientelista. Nossas formas de agir e o sistema político, e até a própria
     sociedade, funcionam muito com base nessa cultura.
       Então, não podemos subestimar a tendência à reprodução daquilo que
     herdamos quando pensamos em construir algo de novo. É que o Brasil
     tem uma convivência quase atávica de duas coisas muito contraditórias,


18                                                      PODER LOCAL E SOCIALISMO
que não é o caso de desenvolver aqui, essa combinação entre violência e
intimidade. Creio que isso é realmente muito próprio do nosso país. Des-
dobramentos disso são o patrimonialismo e uma – acredito eu – reco-
nhecida atrofia da esfera pública, fundamental para o meu argumento,
porque essa atrofia está vinculada justamente ao fato de que também as
decisões políticas passam principalmente por relações de natureza pes-
soal. E quando as decisões fundamentais passam por relações de natu-
reza pessoal o que acontece, na verdade, é que se está eludindo a possi-
bilidade de que essas grandes discussões sejam feitas na esfera pública,
no espaço público democrático. Esse é, a meu juízo, um problema bas-
tante sério. Nós criamos aqui inúmeras e recorrentes avenidas de com-
pensação social que servem para as pessoas garantirem muitas vezes a
sua sobrevivência, e também para reiterar a profunda desigualdade so-
cial que temos no Brasil e inibir as possibilidades de que estas desigual-
dades e o tema dos direitos sejam expostos da maneira como poderiam
ou deveriam ser debatidos na esfera pública, realmente a partir da ação
coletiva combinada com a linguagem dos direitos.
  Então, isso gera uma série de problemas para o Brasil e para a demo-
cracia no Brasil, por exemplo os reconhecidos erros recorrentes, os pro-
blemas ligados à incompatibilidade entre a dominação burguesa e a de-
mocracia no Brasil, já tematizados por Florestan Fernandes3. José Luís
Fiori, me parece, expressa muito bem no texto que prepara sua tese de
doutorado4 a recorrência das fugas para a frente, no período nacional-
desenvolvimentista, que fazem com que, na verdade, empurremos os             3. FERNANDES, Fernandes. A
problemas com a barriga, resolvendo problemas específicos sem resol-         revolução burguesa no Brasil.
ver o essencial, que Fiori localiza basicamente na incapacidade das elites   Rio de Janeiro, Zahar, 1981.
                                                                             4. FIORI, J. L. “O nó cego do
brasileiras de arbitrar perdas entre os interesses dominantes.               desenvolvimento brasileiro”.
  Então, a agregação de novos interesses, sejam eles arcaicos, sejam         Novos Estudos Cebrap, no 40.
modernos, dentro desse arco de forças e alianças que abarca todo o           São Paulo, 1994.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                                               19
conjunto de setores dominantes, por não conseguir impor perdas faz
                                 com que haja, por um lado, problemas sérios para implantação de um
                                 sistema no qual os direitos possam realmente ser respeitados, e, por
                                 outro, a válvula de escape, o aprofundamento recorrente da dependên-
                                 cia, tanto a tecnológica como, mais recentemente, a financeira em re-
                                 lação ao exterior.
                                   Esses fatores, embora pareçam estar um pouco distantes do desenvol-
                                 vimento local, na realidade não estão. Não vou fazer todas as mediações
                                 necessárias, mas não é bem assim, eles estão muito presentes no dia-a-
                                 dia da nossa política e da nossa sociedade. Então, isso gera reposição
                                 recorrente do binômio autoritarismo–dependência.
                                   Nesse ponto, recorro também a um texto recente de Guillermo
                                 O’Donnell, em que ele fala a respeito da ineficácia da lei na América
                                 Latina5 . Ele faz uma reflexão que me parece muito interessante, bus-
                                 cando distinguir entre o que se entende como poliarquia e o que pode-
                                 ria ser entendido de verdade como democracia, compreendendo que
                                 democracia tem que ser um sistema em que pelo menos os direitos
                                 estabelecidos devem ser respeitados. Ele afirma que é facilmente re-
                                 conhecível que em casos como o do Brasil os direitos não são respeita-
                                 dos. Então, há uma poliarquia, um conjunto de características – elei-
                                 ções periódicas, partidos políticos livres, imprensa relativamente livre,
                                 liberdade de pensamento –, uma série de coisas que são próprias do
                                 regime democrático mas na verdade não correspondem à implantação
                                 efetiva de uma democracia propriamente dita, com respeito aos direi-
                                 tos e à lei, em países como o nosso. Creio que isso não é outra coisa
5. O’DONNEL, G. “Poliarquias e   senão uma maneira de expressar o fato de que no Brasil não temos
a (in)efetividade da lei na
América Latina”. Novos Estudos
                                 uma democracia propriamente dita. Nos termos que coloquei aqui, a
Cebrap, São Paulo, no 51,        partir do ponto de vista de O’Donnell, temos uma poliarquia, mas não
1998, p. 37-62.                  uma democracia.


20                                                                                PODER LOCAL E SOCIALISMO
Apenas quero insistir no seguinte: não vivemos numa ditadura nesse
momento. A meu ver, não vivemos numa sociedade totalitária, mas tam-
bém não vivemos numa democracia propriamente dita, o que coloca di-
ficuldades mais profundas à discussão do socialismo, particularmente se
a nossa reflexão sobre socialismo passa também pela democracia. Se
não chegamos nem sequer a condições básicas para afirmar direitos que
possam valer de fato na nossa sociedade, o problema é mais complexo,
e as nossas dificuldades, portanto, mais profundas ainda.
  O que vemos no Brasil recente não é nada alentador, muito pelo
contrário, porque uma análise sóbria mostra que, durante a década de
1990, os governos brasileiros buscaram fazer sua inserção no sistema
econômico e político internacional de um modo que reproduziu esse
misto de tendências ao autoritarismo, à falta de democracia e ao
aprofundamento da dependência. Nós sabemos que, se tínhamos o pro-
blema grave da dívida externa, que se expressou com muita clareza
durante a década de 1980, e se a partir de um certo momento esse
problema mudou de qualidade, durante a década de 1990, a linha polí-
tica adotada particularmente pelos dois últimos governos federais
aprofundou nossa dependência financeira externa. Isso cria problemas
muito sérios em torno de um projeto nacional alternativo.
  Do ponto de vista das próprias relações democráticas, outras referên-
cias que pude obter vieram a partir de alguns textos de Francisco de
Oliveira e de Maria Célia Paoli6, que levantam alguns pontos importan-
tes. Particularmente, me causou bastante impacto a afirmação de que       6. OLIVEIRA, Francisco.
aqui no Brasil, sobretudo durante a década de 1990, a exclusão é até      “Privatização do público,
mesmo semântica, porque quando, no campo da linguagem, é negada           destituição da fala e anulação
                                                                          da política”. In: OLIVEIRA,
aos setores dominados sua própria condição de afirmar os seus direitos,   Francisco e PAOLI, Maria Célia.
quando o que era entendido até então como direitos dos dominados, dos     Os sentidos da democracia.
trabalhadores, dos setores dominados é condenado pela mídia, pelo go-     Petrópolis, Vozes, 1999.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                                              21
verno federal, como interesses meramente corporativos, o que se está
                                  querendo é deslegitimar essas lutas por direitos que, com todas as difi-
                                  culdades, os dominados têm levado a efeito no Brasil, ao longo das últi-
                                  mas décadas.

                                    Poder local – Gostaria de fazer algumas ponderações sobre o poder
                                  local e a Federação. A primeira delas é a seguinte: acho que, embora
                                  todos tenhamos consciência disso, é preciso reafirmar que, no âmbito
                                  local, temos uma convivência de práticas, vivências e ações completa-
                                  mente contraditórias, que se expressam, talvez pela primeira vez, por
                                  meio de iniciativas inovadoras que poderemos considerar até mesmo
                                  revolucionárias, em termos de auto-organização da população, mas não
                                  só disso. Estou me referindo particularmente a iniciativas de gestões de
                                  esquerda relativas à prioridade nos investimentos sociais, à participação
                                  da população, ao orçamento participativo, por exemplo. São, acredito,
                                  ações importantes e que têm sido valorizadas cada vez mais no Brasil e
                                  em outros lugares. Mas, ao mesmo tempo que isso acontece, é evidente
                                  que não faria o menor sentido fechar os olhos para o fato de que numa
                                  grande maioria dos espaços locais, desses núcleos de decisão descen-
                                  tralizados, em nível municipal e regional, o que impera, na verdade, é a
7. Advogado, é autor do livro     reprodução ou a reiteração daquilo que existe de mais arcaico do ponto
Coronelismo, enxada e voto
                                  de vista da política brasileira, das relações estabelecidas no poder local,
(Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 3a edição, 1997),      entre governo local, comunidade local e assim por diante. Em outras
considerado um clássico da        palavras, o mandonismo local – não acho que seja possível falar ainda
literatura política brasileira.   em coronelismo, no sentido empregado por Vítor Nunes Leal7; estamos
Foi também chefe do               vivendo um outro momento. Mas aqui, sem dúvida nenhuma, é muito
Gabinete Civil no governo
                                  fácil perceber como, apesar das mudanças ao longo de décadas e déca-
de Juscelino Kubitschek e
ministro do Supremo               das, o que vemos é a reprodução do arcaico com o moderno. Eventual-
Tribunal Federal.                 mente aqui, muito mais arcaico do que moderno.


22                                                                                  PODER LOCAL E SOCIALISMO
Então, essa convivência contraditória do que existe de mais inovador,
até mesmo revolucionário, no campo da política, da esquerda, com práti-
cas as mais atrasadas, as mais arcaicas, as mais tradicionais possíveis,
faz parte da nossa Federação. Estou fazendo uma constatação para não
esquecer que eventualmente as pessoas mais pessimistas vão sempre
enxergar a esfera local como “o atraso do atraso”, e as pessoas mais
otimistas vão enxergá-la como ponto de partida graças ao qual é possível
fazer todo um conjunto de outras transformações radicais e tudo mais.
  Acho que a realidade é mais complexa que isso. Na realidade, convi-
vemos com situações muito contraditórias; isso faz parte, portanto, do
nosso ponto de partida, para pensar as potencialidades, mas também os
limites do desenvolvimento local.
  E acredito que o Brasil funciona como uma Federação mesmo, em-
bora muito peculiar. A partir de um certo momento comecei a me
surpreender com a quantidade de pessoas que foram pegas de sur-
presa com o fato de que o processo de redemocratização trouxe de
volta, como uma avalanche, a multiplicação das relações clientelistas
do país. Eu poderia desenvolver essa idéia um pouco mais, porque,
afinal de contas, isso acontece por causa das características próprias
de funcionamento da sociedade brasileira, combinando o arcaico com
o moderno; quando se restauram relações formalmente democráti-
cas, são restauradas, ao mesmo tempo, as condições para que o
clientelismo volte a florescer de maneira muito mais intensa do que
acontecia durante a ditadura militar. E a primeira grande manifesta-
ção disso não se dá na esfera local. A primeira grande manifestação
do reaparecimento do clientelismo, dos grandes acordos que acabam
em pizza etc., foi exatamente, como produto do Colégio Eleitoral, a
composição do governo Tancredo-Sarney, em 1985. Há expressão
mais clara e acabada de um novo acordo daquilo que poderíamos


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                    23
chamar “oligarquias regionais” do que a forma como foi montado o
     governo Tancredo-Sarney?
       Estou fazendo essa ponderação também para deixar claro que acho
     muito equivocadas as análises que consideram que o clientelismo é
     mais forte ou está mais arraigado no espaço local. Nossa cultura, nos-
     sa herança, a respeito da qual falei rapidamente antes, que se expressa
     nessa cultura que estou chamando de patrimonialista, clientelista, re-
     corta o Brasil de cima a baixo e está no topo, como mostra a própria
     composição do governo Tancredo-Sarney, que estou comentando ago-
     ra. Não é casual que a recomposição de forças hegemônicas aqui no
     Brasil, que se deu durante a década de 1990, particularmente em torno
     do governo FHC, tenha reincorporado, a partir de uma nova tentativa
     de busca de hegemonia, o conjunto desses setores em muitas relações
     estabelecidas entre os poderes econômicos regional e local, entre os
     poderes políticos local e regional.
       O Brasil funciona como uma Federação. Se prestarmos atenção na
     maneira como os deputados federais se articulam com as suas bases
     locais, teremos um bom exemplo dessa articulação que mencionei entre
     local e regional, e veremos como a própria reeleição desses políticos
     depende dessa vinculação. O que estou dizendo é que não é possível
     pensar que o Congresso Nacional é uma coisa e o que acontece no
     espaço local é outra. Nós vivemos no mesmo país. Claro que o que
     acontece no Congresso não é uma expressão mecânica do que acontece
     no espaço local, mas é uma expressão mediada por uma série de outros
     elementos que não tenho tempo de desenvolver aqui.
       E, ao lado disso, o Brasil é uma Federação, o que significa que para
     pensar um projeto nacional, a meu juízo, é preciso pensar também uma
     reformulação da Federação como parte desse novo projeto, porque, caso
     contrário, estaremos pensando um projeto nacional que significa um con-


24                                                   PODER LOCAL E SOCIALISMO
junto de mudanças a partir de Brasília, sem levar em conta que o Brasil
não funciona desse jeito, que seu real funcionamento é o de uma Federa-
ção. Isso é algo que, insisto, não pode ser esquecido.

  Socialismo e radicalização da democracia – Gostaria de fazer al-
gumas ponderações a respeito do socialismo, referências que já me per-
mitem estabelecer alguns pontos de contato mais diretos com a questão
do desenvolvimento local.
  Acredito, como Habermas, que ainda vivemos o tempo moderno, ou
seja, que não se esgotaram as energias utópicas. Ele diz, “a consciência
do tempo inaugura um horizonte em que o pensamento utópico se funde
ao pensamento histórico”. Na seqüência, afirma que “o que se esgotou
na verdade foi uma utopia ligada à sociedade do trabalho”. Nesse ponto,
não concordo com ele, acredito que é um equívoco seu e de vários ou-
tros autores que pensam a crise no nosso tempo. Acredito, sim, que
houve mudanças, transformações profundas na nossa estrutura de clas-
ses, de grupos sociais, nas estruturas econômicas que estamos vivenciando
recentemente, mas não acredito que tenha acontecido uma superação
ou a impossibilidade de se pensar a utopia a partir de uma sociedade do
trabalho. A necessidade de repensar uma utopia baseada na sociedade
do trabalho é uma coisa absolutamente fundamental, seja em razão da
queda do muro de Berlim, seja em razão de transformações muito im-
portantes que ocorreram no Brasil e no mundo.
  Mas é verdade, por outro lado, que a derrocada do socialismo real nos
colocou diante de sérios problemas. Certos ou errados, tínhamos algu-
mas certezas, que de repente foram colocadas em xeque. Não tenho
nenhuma condição de falar sobre novas certezas porque não as tenho.
Mas acredito que seja possível ter alguns pontos de partida, nesse mo-
mento. Ter algumas referências sobre socialismo, sem abrir mão da idéia


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                     25
de socialismo. Isso significa a constatação, ou o ponto de partida, de que
     precisamos reconstruir essas referências e, portanto, formular uma nova
     idéia de sociedade a partir da nossa realidade, da crítica do passado e do
     potencial que o presente abre para o nosso futuro.
       Estou tomando aqui algumas referências de um autor chamado Grahame
     Thompson, num texto pequeno chamado Flexible Specialization, in-
     dustrial districts, regional economies: strategies for socialists?. Ele
     trabalha compromissado com a propriedade comum e a organização
     cooperativa, com a promoção de decisões democráticas em todas as
     dimensões da vida, com a supressão e/ou controle dos mecanismos de
     mercado em alocação e distribuição. Compromisso com igualdade de
     oportunidades e, em certos casos, com igualdade de resultados. Genera-
     lização do emprego e competências culturais para viabilizar o
     autodesenvolvimento e a autonomia no trabalho e no lazer etc.
       Acho que precisamos trabalhar com algumas referências. A referên-
     cia que tomo como ponto de partida é a da construção de uma sociedade
     socialista a partir da idéia de radicalização da democracia, tentando res-
     taurar o elo com as observações iniciais que eu havia feito.
       Quero integrar também algumas referências que partem da chamada
     escola da regulação. Não que eu tenha integral concordância com ela,
     muito menos qualquer ilusão a respeito da idéia de que um modelo de
     desenvolvimento fordista tivesse sido aplicado em países como o nosso,
     sei que isso não aconteceu. Considero apenas de passagem essa afirma-
     ção. O momento que vivemos me leva a pensar que é preciso considerar
     que, além das conjunturas, são forjados também modelos de desenvolvi-
     mento de largo prazo, que são longos períodos no capitalismo em que um
     determinado regime de acumulação é o resultado macroeconômico do
     funcionamento de um modo de regulação com base no modelo de orga-
     nização do trabalho. Este, por sua vez, é alicerçado numa tecnologia.


26                                                     PODER LOCAL E SOCIALISMO
Acho que são elementos importantes porque, na verdade, embutem a
idéia de que por trás disso está uma visão de mundo a respeito do que é
bom, do que é ruim, fundado num grande compromisso que pode e cos-
tuma ser defendido por famílias políticas distintas, da esquerda à direita.
   É possível extrair de alguns textos uma síntese sobre a escola da
regulação – tomei como base particularmente um livro de Lipietz cha-
mado Audácia: uma alternativa para o século XXI –, porque eles per-
mitem que entendamos, por exemplo, qual foi o papel do governo
Mitterrand na França, como última tentativa de reafirmação de um mo-
delo de desenvolvimento fordista, num momento em que já não havia
mais condições objetivas para que isso acontecesse. Permitem também
fazer uma análise a respeito da terceira via na Europa, nesse caso como
parte de uma tentativa de construção do modelo de desenvolvimento
neoliberal, do mercado auto-regulador no período atual, desse grande
modelo de desenvolvimento que, na verdade, não deixa de ser neoliberal.
   Acho que essas são referências importantes, porque a idéia de um
modo de regulação nos permite reatar a noção de regulação dos merca-
dos e a idéia de grande compromisso, de visão de mundo que torna pos-
sível trazer referências também relativas à questão da hegemonia, da
disputa da hegemonia a partir do pensamento de Gramsci. Particular-
mente, considero isso importante porque acredito que no Brasil nos fal-
tam condições objetivas e reflexões nesse momento para a construção
imediata de uma sociedade socialista, mas, mantendo referenciais socia-
listas, tendo como ponto de partida princípios socialistas, devemos consi-
derar um modelo de desenvolvimento que corresponda a um projeto de
nação orientado por referências socialistas.
                                                                              8. OLIVEIRA, F. de. Os direitos do
   Sobre uma visão mais crítica a respeito do socialismo real, eu me per-     antivalor: a economia política da
mitiria pensar a partir da reflexão de Francisco de Oliveira, em seus         hegemonia imperfeita.
textos sobre o antivalor8, em que ele discorre rapidamente sobre o que        Petrópolis, Vozes, 1997.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                                                    27
considera que seria o pós-Estado de bem-estar social, o alargamento ou a
     radicalização da democracia. Em primeiro lugar, essa própria referência
     ao antivalor – não tenho condições de desenvolver as idéias dele –, a idéia
     de que teria estado em curso na gestação mesmo dos Estados de bem-estar
     social a partir da criação de um fundo público, com o antivalor, o alargamen-
     to das esferas públicas democráticas e as condições para o estabelecimento
     de uma economia de mercado socialmente regulado. Ou seja, uma econo-
     mia de mercado muito distinta daquela que foi a utopia analisada por Polanyi,
     a utopia do mercado auto-regulador. Esta última retorna aos nossos tem-
     pos, na cena pública, a partir principalmente da década de 1980, como a
     idéia da construção ou a utopia de direita da construção do mercado auto-
     regulador. O contraponto a essa utopia é justamente a construção de uma
     economia de mercado socialmente regulado, vinculada à construção, à
     criação de um fundo público. Mas um fundo público, por sua vez, é levado
     a efeito por intermédio da esfera pública, da interação de diferentes gru-
     pos, classes sociais, atores econômicos e políticos na esfera pública, mais
     particularmente na esfera pública e democrática.
        Diz Chico de Oliveira sobre essa forma de produção e distribuição de
     excedente que não se trata de resgatar a idéia de Estado de bem-estar,
     mas sim de pensar num pós-Estado de bem-estar, e a partir daí as refe-
     rências relativas ao antivalor podem ser importantes, porque nesse cam-
     po, que não é meramente o da lógica da reprodução do valor, da lógica
     da reprodução do capital, a forma de produção e de distribuição de exce-
     dentes não tem o valor-trabalho como estruturante, mas os valores de
     cada grupo social dialogando na esfera pública, na linguagem dos direi-
     tos. Creio que para pensar o socialismo hoje, as referências socialistas
     ou um pós-Estado de bem-estar social é preciso também fazer uma ava-
     liação crítica a respeito do Estado de bem-estar social – mesmo sabendo
     que muitas vezes a direita tem se apropriado dessa avaliação.


28                                                       PODER LOCAL E SOCIALISMO
Ocorre, porém, que eu acredito que isso seja um ponto obrigatório
também para o pensamento de esquerda, a necessidade de superar o
formalismo burocrático castrador de iniciativas do próprio Estado de bem-
estar social, que é um produto da expansão do poder administrativo, que
vem em conjunto com o alargamento da própria democracia, o
produtivismo, a desconsideração das questões ligadas ao meio ambiente,
dos direitos contra a discriminação e também o autoritarismo na esfera
da produção. A teoria da regulação é algo que faz parte do chamado
compromisso fordista.
   Não vou resgatar aqui todas as idéias da Comuna de Paris, evidente-
mente, porque isso não seria compatível com muito do que estou desen-
volvendo aqui. Mas queria lembrar que Marx, ao fazer a análise da
Comuna de Paris em A guerra civil na França, entre várias outras
coisas diz se tratar de um governo flexível, um governo barato para a
viabilização das condições para a democracia direta. No nosso caso, eu
diria, na esfera local, trata-se das condições para viabilização do encon-
tro entre democracia direta e democracia representativa. Ao falar que a
Comuna – muito além do debate que se travava sobre a necessidade de
fazer uma descentralização do Estado francês, muito além disso – era a
expressão da possibilidade de extinção dos fundamentos econômicos,
das classes sociais (o que para nós, acredito, significaria a possibilidade
concreta de emergência de novas formas de produção e mesmo de no-
vas relações capital–trabalho), falava também no novo Estado, no socia-
lismo ou comunismo, neste caso, como novo Estado. Ele considerava
organizar a unidade nacional mediante um regime comunal. É claro que
Marx está fazendo a análise da Comuna de Paris, que se deu numa
cidade específica. Estou querendo dizer apenas que ele, ao analisar aquilo
que poderia ser a prefiguração do comunismo na França, o faz a partir
do regime comunal, ou seja, a partir das comunas, da realidade local.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                       29
Creio que isso tem passado despercebido por praticamente todo o deba-
     te que se travou a partir daí, particularmente porque quem se apropriou
     de todo o referencial da Comuna de Paris e de outras discussões anterio-
     res de Marx e de Engels foi principalmente a vertente leninista inspirada
     em Estado e revolução, de Lenin. E em Estado e revolução isso desa-
     parece completamente.
       Estou querendo meramente resgatar essa idéia, porque acho que ela
     cria condições para pensar, nas características de hoje, na importância
     de considerar o desenvolvimento local como parte da construção de um
     Estado nacional democrático, no novo modelo de desenvolvimento nacio-
     nal, num projeto nacional orientado pela idéia do alargamento da demo-
     cracia. Organizar, portanto, a unidade nacional de outra maneira. Acho
     que isso casa perfeitamente com o fato de o Brasil ser uma Federação.
     E é preciso pensá-lo dessa maneira e considerar a esfera local a partir
     desse ponto de vista, dessas considerações.
       Resgato aqui também algumas idéias de um livro – organizado por
     Alain Lipietz e Georges Benko – chamado As regiões ganhadoras,
     em que os autores, ao concluírem a reflexão crítica a partir de uma
     série de textos sobre o tema do desenvolvimento regional, propõem a
     criação de blocos sociais territoriais. Eles mesmos ressaltam que
     esta é uma idéia com clara inspiração gramsciana, no quadro do mo-
     delo de desenvolvimento nacional. E aqui algumas referências que
     dão peso próprio à esfera local são apresentadas. Por exemplo, no
     campo da produção, a proposta de estabelecimento de novas rela-
     ções entre o movimento sindical e a estrutura produtiva – na medida
     em que não existe mais algo semelhante a um compromisso fordista
     mesmo nos países desenvolvidos, ou, pelo menos, as condições não
     são as mesmas – com vistas à democratização ainda dentro dos mar-
     cos do sistema capitalista.


30                                                    PODER LOCAL E SOCIALISMO
Por outro lado, é clara a possibilidade que se tem também de experiên-
cia de novas formas de organização a partir do que temos chamado de
economia solidária, envolvendo estímulo a cooperativas; mas também há
ênfase no pequeno empreendimento de forma geral, no microcrédito e
em outras iniciativas desse porte que podem perfeitamente fazer parte
de um modelo de desenvolvimento local sustentado num bloco social
territorial, à maneira de Lipietz e Benko. Por outro lado, há também a
idéia de Lipietz da superação do Estado-providência, com implementação
no nível local do que ele denomina comunidade-providência, ou seja, algo
baseado em recursos nacionais, uma distribuição de excedentes a partir
da nação, mas com operação local a partir da reafirmação da sociedade
do trabalho. Sua proposta tem a ver com o terceiro setor, de utilidade
social, mas não apenas isso; também por intermédio de outro conjunto de
iniciativas que garantissem a prioridade do emprego, a geração de traba-
lho e renda a partir de uma operação descentralizada.

  Desenvolvimento local e socialismo – Para concluir, busco fortale-
cer essa relação entre desenvolvimento local e socialismo no Brasil, consi-
derando, a meu juízo, que ela deve se traduzir para nós em dois níveis
diferenciados. O primeiro diz respeito às próprias referências de gestão
local, que podem ser entendidas como tradução concreta de princípios
socialistas. Não se trata, evidentemente, de fazer socialismo em nível lo-
cal, independente de todo o resto. Estou falando de experiências práticas
que expressam, que concretizam princípios socialistas e, portanto, prefiguram
referências de socialismo que prezamos e queremos ver implementadas.
  Mas, por outro lado, acredito que a outra forma pela qual essa rela-
ção entre desenvolvimento local e socialismo deve ser pensada aqui é
a construção prática das bases para um novo federalismo como parte
de outro projeto nacional.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                         31
Do ponto de vista das referências da gestão local, parto da idéia de que
                              o que está colocado diante da gestão local são diferentes alternativas,
                              por exemplo do desenvolvimento local, da distribuição de renda, da par-
                              ticipação da comunidade e assim por diante. E estou tomando como
                              base uma contraposição que acredito que devemos fazer, no nível local,
                              com as idéias neoliberais e com toda a herança de autoritarismo e de-
                              pendência que temos no Brasil – além de um poder administrativo com-
                              binado com clientelismo que é muito sólido no Estado brasileiro.
                                 Acho que essa nova agenda local, que para mim se traduz em várias
                              dimensões, conforme busquei desenvolver num texto que escrevi para a
                              Fundação Perseu Abramo9, precisa ter uma tradução própria a partir de
                              uma alternativa que pense a questão da gestão local com base no princí-
                              pio da radicalização da democracia, com os princípios socialistas.
                                 Existem dois blocos importantes, a meu juízo: por um lado, a idéia de
                              um Estado local forte e democrático, condição para se pensar um blo-
                              co social territorial e, portanto, uma regulação social dos mercados em
                              nível local, o que envolve pelo menos três pontos. Em primeiro lugar,
                              uma vontade política, ou seja, um compromisso de superação dessas
                              características sempre recorrentes nas fugas para a frente que tam-
                              bém se expressam num nível local, seja em relação ao poder econômi-
                              co, seja nas práticas clientelistas. Em segundo lugar, um fundo público
                              compatível com as condições para o alargamento da esfera pública no
9. DANIEL, Celso. “A gestão   nível local. E aqui, evidentemente, vou contra a corrente da maior par-
local no limiar do novo       te do pensamento no Brasil, reafirmando a necessidade de uma carga
milênio”. In: BARRETO, L.,    tributária alta, porque sem uma carga que possa servir de suporte para
MAGALHÃES, I. e TREVAS, V.    um fundo público voltado ao social não há como efetivamente alargar
Governo e cidadania. São
                              os direitos no país. E, se estou comentando que isso é necessário no
Paulo, Editora Fundação
Perseu Abramo, 1999,          quadro de uma nova Federação com ênfase no espaço local, estou
p. 182-242.                   automaticamente dizendo que, na verdade, algo que tem sido deixado


32                                                                              PODER LOCAL E SOCIALISMO
completamente de lado, por exemplo no debate sobre a reforma tribu-
tária, teria de ser reposto aqui, que é justamente o fortalecimento das
esferas local e regional.
  Por outro lado, precisamos de um outro Estado. Não podemos conti-
nuar reafirmando o Estado herdado, porque não é o que queremos e
temos a necessidade de reconstruí-lo por dentro, quebrando as caixas-
pretas do que corresponde ao que é o Estado hoje no Brasil a partir da
esfera local, com processos que garantam a prestação de serviços públi-
cos de qualidade e a baixo custo. Isso não é outra coisa senão o governo
barato de que fala Marx na Comuna, e isso não é apenas fazer o comba-
te à corrupção, é muito mais complicado do que isso. Exige conhecimen-
tos que muitas vezes não temos e não trabalhamos de maneira adequa-
da, inclusive nas nossas experiências de gestão local.
  O desenvolvimento local inclusivo não é um desenvolvimento local
qualquer. Desenvolvimento local a qualquer custo não nos interessa, que-
remos um desenvolvimento local com inclusão social, em que haja coo-
peração, criação e alargamento de esferas públicas, em que diferentes
atores políticos, econômicos, sociais dialoguem de maneira transparente
a partir dos seus próprios interesses e conflitos, mas buscando construir
um novo desenvolvimento local em conjunto. Nesse ponto, não posso
deixar de mencionar nossa experiência de desenvolvimento regional do
Grande ABC por meio da Câmara Regional, da Agência de Desenvolvi-
mento Econômico, do Consórcio Intermunicipal etc.
  Outra questão que nos interessa tremendamente como elemento fun-
damental do desenvolvimento econômico local são as idéias básicas da
economia solidária, sem perder de vista que o desenvolvimento local
também tem de ser baseado numa vinculação com segmentos mais di-
nâmicos da nossa economia. Essa vinculação me parece absolutamente
essencial, e aqui entra com todo peso o movimento sindical, não apenas


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                     33
como a CUT [Central Única dos Trabalhadores] vem fazendo, estimulan-
     do a economia solidária, mas na construção de novos referenciais do
     movimento sindical e da própria relação capital–trabalho. Temos que
     trabalhar muito mais com referências voltadas à idéia de construir bene-
     fícios locais e regionais do que fazer cair custos, porque a idéia do custo
     regional não é apenas o Custo Brasil. Essa é uma idéia neoliberal. A
     idéia de Custo Brasil é tipicamente vinculada ou herdada, ou um desdo-
     bramento, do pensamento neoliberal no Brasil.
       Então, quando consideramos o desenvolvimento local, evidentemente
     não podemos pensar a partir desse referencial, temos que adotar outro.
     O outro referencial é criar benefícios de tal maneira que uma região não
     precise ficar competindo com outras, porque competição entre regiões
     significa guerra. É daí que vem a guerra fiscal. Então, o combate à guer-
     ra fiscal e à competição com outras regiões tem de partir da idéia de que
     é possível, por meio de um desenvolvimento endógeno, construir o de-
     senvolvimento com a agregação de benefícios, de vantagens locais ba-
     seadas na qualidade de vida, na garantia dos direitos sociais e trabalhis-
     tas – que eles existam ou devam existir no nível local.
       Creio que é perfeitamente possível pensar em outros modos, em ou-
     tras bases na questão do desenvolvimento local.
       Para terminar, abordarei rapidamente a questão da inclusão social. Creio
     que houve, no Brasil, um aprofundamento dos processos de exclusão
     não apenas pelo fato de termos aqui uma herança de exclusão social
     profunda, mas também pela forma como o processo de globalização se
     combinou e se perpetrou a partir de referenciais neoliberais. Aqui, pen-
     sar o desenvolvimento local significa, necessariamente, a meu ver, pensá-
     lo também a partir de iniciativas, de ações voltadas à inclusão social.
     Não fazer apenas políticas compensatórias, mas superá-las,
     implementando políticas de inclusão social. Pensar políticas de inclusão


34                                                     PODER LOCAL E SOCIALISMO
social significa, claro, fazer vinculações com o próprio desenvolvimento
econômico, com a economia solidária, com o conjunto de programas
sociais que têm sido experimentados por governos de esquerda, e até ir
um pouco mais além disso. Significa pensar na idéia de garantir os cha-
mados mínimos sociais de maneira universal no espaço local, com base
na implementação de políticas multidimensionais, que rompam, portanto,
a setorização característica das políticas públicas, ou seja, política de
saúde, de um lado; política de educação, de outro; política de ação social,
de outro, e assim por diante. A idéia de pensar um indivíduo como tota-
lidade e sua condição de incluído socialmente, portanto com direito à
cidade de maneira integral, envolve a implementação de propostas muito
mais integradas, abrangentes, intersetoriais, para com isso criarmos con-
dições para que as pessoas excluídas possam efetuar o trânsito dessa
situação para uma situação de inclusão plena, que envolva aspectos, por
exemplo, ligados à violência urbana, às questões sociais de educação,
saúde, cultura, e também a criação de condições para que as pessoas
possam se inserir ou se reinserir na economia por meio de pequenos
negócios, de cooperativas de trabalhadores, de sua reinserção no mer-
cado de trabalho, e assim por diante.
  Creio que há aqui também uma reconceituação, na questão das políti-
cas sociais, do que chamávamos de inversão de prioridades. Ela é fun-
damental e está hoje colocada na ordem do dia pelo fato de que políticas
compensatórias também são preconizadas pelos neoliberais, e quem pensa
que a ação a partir da esfera local pode ser transformadora tem de
pensar não apenas em programas diferenciados, mas em programas que
em última instância tenham realmente como referência idéias
transformadoras que, no meu entender, ainda continuam a ser, de verda-
de, idéias socialistas.
  Muito obrigado.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                       35
36   PODER LOCAL E SOCIALISMO
Perspectivas que o desenvolvimento
local e a distribuição de renda
abrem à construção do socialismo*
Celso Daniel
 1) DUAS DINÂMICAS CONTRADITÓRIAS: SISTEMA DEMO-
CRÁTICO X MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA

  • fim do século XVIII: 2 acontecimentos simultâneos:
        • constituição do Estado-nação moderno          sistema democráti-
co (muito mais que um regime político)
        • constituição do modo de produção capitalista (que se nutre do
Estado-nação, sob diferentes regimes políticos: democracia, ditadura).
  • a democracia não é obra burguesa; a luta de classes tem sido luta
pela conquista de direitos, instituída por vias selvagens, indomesticáveis   * Este texto foi apresentado por
                                                                             Celso Daniel aos organizadores
    necessidade de ir além de Marx (em particular, de sua crítica aos        do seminário Socialismo e
Direitos do Homem; o problema não é o que ele lê nos direitos do             Democracia como texto-base
Homem (seu uso pela burguesia), mas o que ele é impotente para neles         da sua exposição. Como se
descobrir (suas funções positivas)       os direitos aparecem como mera      pode notar, trata-se de um
ilusão (cf. O Capital, livro I, cap. IV, p. 145, Ed. Nova Cultural: “a       roteiro para a sua exposição. O
                                                                             texto está reproduzido seguindo
esfera da circulação [...] era de fato um verdadeiro Éden dos direitos       fielmente o original apresentado
naturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igual-           por Celso Daniel, apenas com
dade, Propriedade e Bentham”. É ao sair da esfera da circulação,             algumas correções ortográficas.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                                                 37
adentrando a da produção, que se descobre o segredo da troca desigual
     [da mais-valia]).
        • O totalitarismo – fascista ou soviético – se ergue sobre as ruínas dos
     direitos do homem. (cf. Stalin, de Trotski: “L’Etat c’est moi! é quase
     uma fórmula liberal em comparação com as realidades do regime totali-
     tário de Stalin. Luís XIV identificava-se apenas com o Estado. Os papas
     de Roma identificavam-se ao mesmo tempo com o Estado e com a Igre-
     ja, mas unicamente durante as épocas do poder temporal. O Estado tota-
     litário vai muito além do césaro-papismo, pois abarca toda a economia do
     país. Diferentemente do Rei-Sol, Stalin pode dizer a justo título: La societé
     c’est moi!”).
        • sistema democrático (cf. Lefort)       divisão entre sociedade civil e
     Estado; distinção entre o poder político (limitado de direito) e o poder
     administrativo (fundado na burocracia do Estado, que tende a submeter
     cada vez mais o detalhe da vida social).
        Papel da esfera pública (relação: público x privado) (cf. Vera S. Telles,
     ao criticar H. Arendt): ações coletivas são vinculadas a interesses, em
     meio a conflitos que atravessam o campo social; se tais interesses apare-
     cem como algo mais que a simples defesa corporativa, depende da arti-
     culação de uma linguagem por meio da qual interesses privados podem
     ser desprivatizados e, portanto, reconhecidos publicamente na sua legiti-
     midade; é na linguagem dos direitos que a defesa de interesses se faz
     audível e reconhecível na dimensão pública da vida social.
        • K. Polanyi (A grande transformação)           a utopia irrealizável do
     mercado auto-regulador (pelo qual as relações sociais se vêem
     encapsuladas no interior do sistema econômico), no século XIX e início do
     XX, levou a sociedade a adotar medidas para se autoproteger             com-
     prometimento da auto-regulação do mercado           desorganização da vida
     industrial      origem dos totalitarismos e guerras mundiais; as origens do


38                                                      PODER LOCAL E SOCIALISMO
cataclismo cujo auge foi a Segunda Guerra residem no projeto do libera-
lismo econômico, visando criar um sistema de mercado auto-regulador.

  2) SOCIALISMO
  • Habermas        vivemos ainda o tempo moderno (não se esgotaram as
energias utópicas): a consciência do tempo inaugura um horizonte em
que o pensamento utópico se funde ao pensamento histórico (mas, con-
tra Habermas: não vivemos também o fim das utopias vinculadas a uma
sociedade do trabalho).
  • derrocada do socialismo real, ao lado de profundas transformações
econômicas, sociais e políticas recentes       perda de referências antes
“seguras” sobre o socialismo.
  • ponto de partida       socialismo com a radicalização da democracia
(nos vários âmbitos da vida humana). Em meio a conjunto de princípios
gerais, nem todos compatíveis entre si (cf. Grahame Thompson – Flexible
Specialization, industrial districts, regional economies: strategies for
socialists? – compromisso com a propriedade comum e a organização
cooperativa, promoção de decisões democráticas em todas as dimensões
da vida, supressão e controle dos mecanismos de mercado em alocação e
distribuição, compromisso com igualdade de oportunidades (e, em certos
casos, de resultados), generalização do emprego e competências culturais
para viabilizar o autodesenvolvimento e a autonomia no trabalho e no lazer).
  • referências a partir da Escola da Regulação (cf. Lipietz – Audácia).
    modelo de desenvolvimento: longo período, no capitalismo, em que o
regime de acumulação é o resultado macroeconômico do funcionamento
do modo de regulação, com base num modelo de organização do traba-
lho (alicerçado numa visão de mundo, fundando um grande compromis-
so, que pode e costuma ser defendido por famílias políticas, da esquerda
à direita; exs.: fordismo, neoliberalismo).


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                        39
• na ordem do dia         proposta de um modelo de desenvolvimento
     (projeto de nação) orientado por referências socialistas:
       • (cf. Francisco de Oliveira: O antivalor) alargamento da esfera públi-
     ca (vinculada à instituição de um fundo público, como pressuposto do
     capital)     economia de mercado socialmente regulado          reconheci-
     mento da alteridade, do outro, do terreno indevassável de seus direitos
     (donde se estruturam as relações sociais); o pós-Estado de bem-estar:
     demarcar, de modo cada vez mais claro, os lugares de utilização e distri-
     buição da riqueza pública, tornada possível pelo próprio desenvolvimento
     do capitalismo sob uma forma transformada de luta de classes. Quando
     todas as formas de utilização do fundo público estiverem demarcadas e
     submetidas a controles institucionais, então o Estado se transformará no
     Estado mínimo (forma de produção do excedente que não tem mais o
     valor como estruturante, mas sim os valores de cada grupo social dialo-
     gando soberanamente).
       • sistema produtivo: vinculação entre eixos dinâmicos da economia e
     noção de economia solidária (cooperativas de autogestão, microcrédito,
     ênfase na pequena produção); regulação social calcada nos valores da
     cooperação, da solidariedade, da participação nos temas de interesse
     público (a comunidade cívica de que fala R. Putnam); implicação do
     movimento sindical nas formas de organização do trabalho.
       • novamente o pós-Estado de bem-estar; a necessidade de superar o
     autoritarismo na unidade de produção (fordismo), o produtivismo (não-
     respeito ao meio ambiente e às várias formas de discriminação social) e
     o formalismo burocrático, castrador de iniciativas, da repartição de be-
     nefícios do Estado de bem-estar (relacionado ao alargamento do poder
     administrativo).
       • o Estado: pistas a partir da Comuna de Paris (cf. Marx, Guerra Civil
     na França): alavanca para extinguir os fundamentos econômicos das


40                                                    PODER LOCAL E SOCIALISMO
classes sociais, com a emancipação do trabalho (fórmula aparentemente
excessiva, para hoje); governo barato; forma política flexível; modelo
para a França: deputados demissíveis e com mandato imperativo para as
poucas mas importantes funções que restariam a um governo central, ou
seja, organizar a unidade nacional mediante um regime comunal (isto é:
modelo radicalmente “descentralizado”, referência para o controle do
poder político e do poder administrativo, abrindo espaço para o desenvol-
vimento local com autonomia relativa).
  • pontos de contato com Lipietz e Benko (As regiões que ganham)
    no quadro de um modelo nacional de desenvolvimento: formação de
blocos sociais territoriais (inspiração gramsciana) coordenando “modelos
de desenvolvimento locais”, dotados de autonomia relativa (“endógenos”),
inspirados nas noções de radicalização democrática.

  3) O BRASIL E SUAS ESPECIFICIDADES
  • O Brasil como uma Federação (multiplicidade de núcleos de poder
institucionalizada).
      • convivência, no âmbito local, de inovações transformadoras, re-
volucionárias (ex.: co-gestão pública do OP [Orçamento Participativo]),
ao lado do que existe de mais arcaico como prática e cultura política
(mandonismo local);
      • o Brasil “funciona” como uma Federação peculiar: as “oligarquias
regionais” no governo Tancredo/Sarney, a articulação estreita entre os
parlamentares nacionais e suas bases locais (o poder municipal).
  • Categorias sociológicas sempre repostas: a simbiose do arcaico e do
moderno, a permanência na transformação; convivência (atávica) de
violência com intimidade       o patrimonialismo estatal e a atrofia da es-
fera pública; a tese da incompatibilidade entre dominação burguesa e
democracia no Brasil (recorrentes “fugas para a frente”, produto da


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                       41
incapacidade de arbitrar perdas aos vários grupos dominantes)       a
     reposição do binômio autoritarismo (em diferentes roupagens) e depen-
     dência (tecnológica e financeira) (cf. Caio Prado, Sérgio Buarque de
     Holanda, Gilberto Freyre, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Roberto
     DaMatta, José Luís Fiori etc.).
       A partir das especificidades    todo cuidado com as forças de con-
     tinuidade que, com freqüência, conduzem, ocultas, linhas de ruptura/
     transformação.

       4) DESENVOLVIMENTO LOCAL E SOCIALISMO NO BRASIL
       • A relação entre desenvolvimento local e socialismo se traduz em dois
     níveis:
           • referências de gestão local que significam tradução concreta de
     princípios socialistas.
           • construção prática de bases para um projeto nacional (constituído
     por um novo pacto federativo)       blocos sociais territoriais buscando a
     conquista da hegemonia regional.
       • A agenda local comporta, em cada caso, diferentes alternativas
     de gestão pública, inspiradas em distintos valores e visões de mun-
     do. Para a constituição de um modelo de desenvolvimento local pau-
     tado pelos valores socialistas da radicalização democrática, pode-
     se destacar:
           • Estado local forte e democrático (condição para a regulação so-
     cial dos mercados locais), envolvendo:
             • fundo público (suposto: carga tributária compatível) que susten-
     te o alargamento das esferas públicas democráticas – inclusive as de
     novo tipo, inspiradas na partilha de poder (democracia representativa –
     democracia direta): OP, planejamento participativo do futuro, gestão de
     políticas e equipamentos.


42                                                     PODER LOCAL E SOCIALISMO
• outro Estado local (democracia e eficiência)           prestação
de serviços públicos com qualidade e baixo custo, criando condições
(via indicadores e metas) para o controle público. (Isto é, combate
em várias frentes ao poder administrativo: pela descentralização lo-
cal, pela modernização administrativa e pelos canais de controle pú-
blico sobre o Estado.)
   • desenvolvimento local inclusivo (expresso em diferentes dimensões:
econômica, social, urbana, ambiental, cultural).
   • desenvolvimento econômico        ação nas esferas da produção e da dis-
tribuição; regulação pública dos mercados locais; ênfase na criação de be-
nefícios regionais (que agregam qualidade de vida e convidam à participa-
ção plural, em contraste com a alternativa de redução de custos regionais);
prioridade para geração de trabalho e renda, para a cooperação entre os
agentes, formas alternativas de produção (cooperativas), microcrédito, for-
talecimento da pequena produção, defesa dos direitos trabalhistas.
   • desenvolvimento urbano e ambiental         regulação social do merca-
do imobiliário, com a superação da dicotomia entre cidade legal/cidade
ilegal e a apropriação pública de parcela da valorização imobiliária; cons-
trução e apropriação de espaços públicos urbanos de qualidade (cidades
policêntricas), preservação e conservação do meio ambiente.
   • inclusão social    para além de políticas compensatórias e da inversão
de prioridades: política integrada e multidimensional de inclusão social (ga-
rantia de mínimos sociais como direitos); afirmação dos direitos contra
discriminação (gênero, raça, portadores de deficiências, faixas etárias etc).
   • identidade cultural regida pelo princípio da cidadania (pertencimento
vinculado à afirmação de uma comunidade cívica).
   • Em suma: Estado local forte, condutor de um modelo de desen-
volvimento local inclusivo guiado pela referência do direito à cida-
de, combinando:


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                         43
• democracia procedimental (alargamento das esferas públicas demo-
     cráticas pela via de co-gestão/partilha de poder/controle público do poder
     administrativo/articulação entre democracia representativa e direta).
       • democracia substantiva (desenvolvimento inclusivo nos vários níveis:
     econômico, social, urbano, ambiental, cultural).




     Bibliografia
     (Elaborada por Ivone de Santana)

     ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense, 1981.
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46                                                  PODER LOCAL E SOCIALISMO
Comentários
Marina Silva

  O caboclo, o pesquisador e a canoa – Boa tarde a todos. Eu já
sabia que o primeiro ciclo de debates10 havia sido bastante participativo,
mas estou surpresa de ver o quanto estamos vivos para um debate dessa
natureza. Gostaria de agradecer pelo convite e dizer que me sinto honra-
da em integrar esta mesa. Não pretendo fazer aqui nenhuma reflexão
teórica. Acredito que posso contribuir mais como um “objeto de estudo”,
pois o Acre é uma experiência bem localizada e eu sou fruto de uma
experiência local, especificamente com os seringueiros do estado do Acre.
Lá estamos construindo uma alternativa fraterna, justa, solidária a partir
de referenciais locais. Nesse sentido, o Acre tem uma grande contribui-
ção a oferecer a partir desses referenciais.
  Enquanto o prefeito Celso Daniel falava, eu pensava: por que o con-
ceito de reserva extrativista surgiu da cabeça dos seringueiros do Acre,     10. Este seminário faz parte do
quando havia tantos estudiosos pensando saídas e alternativas para a         segundo ciclo de debates
                                                                             “Socialismo e democracia”
Amazônia que compatibilizassem desenvolvimento econômico, justiça
                                                                             (ver página 119). Marina Silva
social e preservação dos valores culturais e ambientais daquela região?      faz referência ao primeiro ciclo,
Por que algumas críticas, tão em voga atualmente, dirigidas ao modelo        que aconteceu entre 10 de abril
de desenvolvimento baseado numa visão industrial e num processo bas-         e 19 de junho de 2000.



SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                                                  47
tante atrasado de formação de riqueza, vão surgir justamente em comu-
     nidades aparentemente “primitivas” ou completamente apartadas do de-
     senvolvimento que se processa no mundo?
       A crítica a esse modelo, partindo exatamente daqueles setores e de
     forma tão localizada, nos leva a pensar que qualquer iniciativa é sempre
     uma experiência localizada, na medida em que tem um ponto de partida
     em algum lugar, a partir do qual ela é apropriada, generalizada e muitas
     vezes banalizada, até que surja uma outra alternativa para dar início a
     um novo processo.
       Celso Daniel foi muito feliz quando disse que não gosta de falar em
     desenvolvimento local de forma genérica, é preciso que isso seja trazido
     para um espaço determinado. Só podemos entender as coisas em seu
     contexto, porque todas as alternativas são localizadas, ou seja, têm de
     dar uma resposta para o problema que se coloca naquele ponto.

       Chico Mendes e as reservas – Nossa experiência, durante muito
     tempo, foi marginal também dentro do próprio PT. Lembro que, quando
     Chico Mendes começou a falar de reserva extrativista, de certa forma
     se contrapunha ao modelo de reforma agrária que o PT construíra até
     então (muito baseado nas Ligas Camponesas). Chico propunha uma re-
     forma agrária diferenciada na Amazônia. Quando Chico Mendes foi aos
     Estados Unidos, questionando o Banco Interamericano de Desenvolvi-
     mento sobre a abertura de uma estrada que passaria por seringais, por
     dentro das comunidades indígenas, causando um prejuízo ambiental, cul-
     tural, social irreparável, muitos dos nossos companheiros do movimento
     sindical e do PT reagiram a esse ato com um certo estranhamento: por
     que reclamar lá fora daquilo que era um problema nosso, aqui dentro?
       Mas foi exatamente a partir da capacidade de fazer essa interação
     entre a tradição e a modernidade que conseguimos gestar talvez uma


48                                                   PODER LOCAL E SOCIALISMO
das experiências mais ricas que temos na Amazônia hoje. Nem sempre
o que é moderno é o melhor. Como também nem sempre o tradicional é
o melhor. Vivemos exatamente na busca dessa mediação entre a tradi-
ção e a modernidade para que se chegue a um determinado ponto e, num
movimento espiral, possamos partir para experiências inovadoras.
  As inovações que estamos gestando são o inverso de tudo o que vem
acontecendo no país: nós tivemos uma organização sindical que foi da
floresta para a cidade, enquanto nas demais regiões do nosso país havia
um modelo que fazia o movimento inverso – da cidade para o campo.
Por exemplo, o movimento com Lula organizando os trabalhadores na
década de 1970 no ABC. No Acre, os seringueiros diziam para os bancá-
rios, para os funcionários públicos que eles tinham de fazer sindicatos e
se organizar também. Era surpreendente, porque os mais “primitivos” é
que falavam para os mais “modernos” acreditarem no seu próprio po-
tencial e que com organização se poderia gerar algum benefício.
  Então, desde o início, essas peculiaridades já nos colocaram numa situa-
ção de trabalho sempre em âmbito local. Nas demais regiões era possí-
vel fazer um questionamento mais político-ideológico sobre as propostas
de modelo econômico que estavam em disputa. No Acre isso era quase
impossível. Se eu fosse disputar a eleição para o Senado dizendo que
eram os neoliberais que faziam estradas de qualquer jeito, pecuária de
qualquer jeito, exploração madeireira de qualquer jeito, eu não teria con-
seguido nenhum voto. Eu tinha de falar exatamente numa linguagem que
abordasse a especificidade local; a disputa nos últimos 20 anos tem-se
dado de forma muito particularizada. Isso não significa que não exista
uma formulação teórica, uma reflexão acumulada sobre a prática, mas o
discurso teve de ser realista e original.
  E aí começamos a questionar o modelo, dando nome, endereço e tele-
fone: “Esse negócio de progresso e modernidade de que se fala por aí


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                      49
nada mais é do que derrubar florestas para plantar capim e criar boi. Um
     hectare de floresta vale mais do que um hectare de capim”. Buscamos
     meios, técnicas e formuladores para provar que era possível ter mais
     lucro num hectare de floresta do que num hectare de capim. Hoje todas
     as pessoas sabem que o capim que substitui um hectare de floresta ama-
     zônica não dá para engordar mais que uma vaca e meia. Parece loucura,
     mas esse modelo já chegou à Amazônia completamente falido, apesar
     de sua aparente modernidade.
        Vendiam-nos a idéia de que a Amazônia era uma floresta homogênea,
     quando convivíamos com uma floresta altamente diversificada. Diziam-
     nos também que era um vazio demográfico, quando éramos 20 milhões
     de pessoas habitando no interior da floresta e nas cidades. E só com os
     índices demográficos que temos é possível a Amazônia ser uma floresta
     altamente diversificada.
        Aquelas idéias que nos foram impostas acompanhavam modelos de
     desenvolvimento baseados nos grandes projetos para exploração de ga-
     rimpo, de madeira, de pecuária extensiva e muitos outros. Há até mesmo
     quem acredite ser possível espalhar a soja na Amazônia. Quando essa
     discussão foi feita localmente, adquiriu uma outra dimensão, que era a
     da disputa local lá em Xapuri, em Sena Madureira – tudo tem local,
     nome, pessoas. Só que a isso hoje, sofisticadamente, nós chamamos de
     “modelo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia”. E leva tam-
     bém outro nome: “economia solidária” – uma economia socialista em
     que o desenvolvimento das comunidades apóia-se em cooperativas, em
     associações, numa tessitura social admirável que começa com o índio
     ainda nem sequer contatado.
        Aliás, nós temos ainda, graças a Deus, mais de 500 pessoas que nunca
     tiveram contato com a nossa cultura, e o Acre se orgulha muito disso. É uma
     demonstração de que naquele cantinho ainda é possível saltar do modelo


50                                                     PODER LOCAL E SOCIALISMO
fordista diretamente para a era do conhecimento. E nós somos ousados para
fazer isso. Não queremos as inúteis quinquilharias que a indústria esparrama
pelo mundo de hoje. O que queremos hoje é conhecimento e tecnologia para
que possamos apreender da nossa realidade e com a natureza que nos aco-
lhe o necessário para crescermos social e economicamente de forma justa.
É claro que tudo isso, como disse Celso Daniel, não pode ser desarticulado
de uma perspectiva econômica, social e cultural mais ampla.

  As seis sustentabilidades – Acredito que é possível generalizar para
o país e para o planeta a sustentabilidade que defendemos para o nosso
desenvolvimento. É um modelo baseado em seis pontos, sem hierarquia
entre eles: um modelo de desenvolvimento tem de ser sustentável eco-
nomicamente, socialmente, ambientalmente, politicamente, culturalmen-
te e eticamente.
  Sem essas seis sustentabilidades, não estamos construindo uma econo-
mia solidária ou socialista. O socialismo errou ao considerar que poderíamos
negligenciar a natureza. Como resultado, testemunhamos toda sorte de da-
nos ambientais somarem-se aos desastres que ocorreram no Leste Euro-
peu. Como a nossa utopia foi capaz de apartar o bem-estar da humanidade
da integridade da natureza? Não queremos mais reeditar esse erro, e nossa
nova forma de ver o mundo vai ter de incorporar todas essas sustentabilidades.
  Quero concluir enfatizando a sustentabilidade cultural – reivindicando e
legislando em causa própria. Muitas vezes a nossa forma de pensar o desen-
volvimento é preconceituosa. Como diz Caetano Veloso, “Narciso acha feio
o que não é espelho”. Mas apenas diante do diferente é possível realizar a
troca. E foi como Narciso que se tentou transformar a Amazônia em São
Paulo, Minas, Rio de Janeiro. Sofremos inúmeras conseqüências do modelo
de desenvolvimento que foi implantado. Tínhamos até receio de falar em
desenvolvimento regional, chegamos a acreditar que tinha de ser um desen-


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                          51
volvimento nacional ou internacional. Hoje o desenvolvimento regional e o
     desenvolvimento local começam a dar as bases para o que estamos propon-
     do como modelo de desenvolvimento para o nosso país. Embora seja pon-
     tual, a experiência do orçamento participativo do Rio Grande do Sul é
     belíssima. Em outros pontos do país devem existir outras tantas experiências
     que podem ser muito positivas sob uma visão sistêmica. E o Acre quer
     contribuir com um modelo que pense a sustentabilidade nas seis dimensões
     que acabei de mencionar. Acredito que, se estivermos concatenados com
     todas essas teorias e esses formuladores que Celso Daniel citou, podere-
     mos, sim, criar nova motivação para a nossa ação política dentro do nosso
     partido e das entidades com as quais nos relacionamos.

       Ser o arco e a flecha – É necessário que tenhamos uma motivação
     viva, que represente o sonho de cada um. O sonho de cada um não é
     algo homogêneo, mas cada um há de se mobilizar, claro, a partir de prin-
     cípios universais. Estamos todos no mesmo barco, embora cada um te-
     nha uma motivação diferente.
       Eu, por exemplo, tenho uma motivação muito grande com relação ao
     tema de direitos humanos e meio ambiente. No entanto, não vou pegar
     as ferramentas para trabalhar temas em que já existem milhares de pes-
     soas que podem fazer mais do que eu. Aprendi com os índios que nós
     temos de ser arco e ser flecha ao mesmo tempo. Se na questão ligada à
     defesa da Amazônia sou o arco que impulsiona, na questão da mulher e
     do negro sou a flecha que é impulsionada. Temos de aprender a fazer
     isso de uma forma fraterna, respeitando as diferenças, brigando quando
     for necessário mas estando juntos, agindo em rede de forma a diluir um
     pouco as nossas ânsias de autoria.
       Acredito que o conjunto das belíssimas experiências locais que estamos
     gestando em todo o país poderá integrar as bases de um modelo capaz


52                                                      PODER LOCAL E SOCIALISMO
de transferir para a realidade o que temos ainda apenas em sonhos.
Termino com uma história para os que não conhecem o meu estado.
  Dizem que havia um pesquisador que queria conhecer um pouco o
desenvolvimento local na Amazônia e subiu numa canoa com um cabo-
clo. Cansado de tanto anotar e visitar as comunidades, já não agüentan-
do mais picada de carapanã (pernilongo, como se diz no Sul), ele resol-
veu puxar um papo com o caboclo:
  – Caboclo, você sabe geografia?
   O caboclo disse:
  – Sei não, senhor doutor – e continuou calado.
  O pesquisador, mais à frente, resolveu tentar de novo:
  – Sabe história, caboclo?
  – Não, senhor.
  – Então você já perdeu metade da vida. Não sabe geografia, não sabe
história... História e geografia são fundamentais para fazermos as cone-
xões com o mundo. Sabe matemática?
  – Sei não, senhor doutor.
  – Então, caboclo, você está frito. Como você vai vender esse seu
peixe? Vai ser enganado pelo patrão...
  E foi perguntando e o caboclo só sabia dizer que não sabia. Lá pelas
tantas, bate a proa da canoa numa samaúma que vinha de bubuia. A
canoa afunda, e eis que o pesquisador começa a afundar e gritar:
  – Caboclo, socorro! Caboclo, socorro!
   O caboclo, nadando, olha para trás e diz o seguinte:
  – O senhor sabe nadar, doutor?
  – Sei não, caboclo. Socorro!
  – Então, doutor, perdeu sua vida toda, porque aqui quem não sabe
nadar morre.
  A meu ver, desenvolvimento local é um pouco isso.


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54   PODER LOCAL E SOCIALISMO
Comentários
Miguel Rossetto

  Projeto local e projeto nacional – Boa tarde a todos. Quero registrar
um elogio à iniciativa do seminário. Creio ser importante – e isso não é
protocolar – registrar a qualidade da iniciativa. Penso que tantas vezes
quantas nos colocamos o desafio de compartilhar e refletir nossas expe-
riências, idéias e referências teóricas, de tal forma a compreender melhor
a nossa ação e iluminar o nosso comportamento, tanto mais conseguimos
estabelecer relações entre tática e estratégia e cotejar as nossas experiên-
cias com as nossas plataformas. E, quanto mais conseguimos realizar esse
processo, mais crescemos.
  Seminários como estes se realizam num momento muito importante
para o nosso partido. Acumulamos um enorme espaço político no país,
no último período. Conquistamos espaços importantes em prefeituras e
em estados. Acumulamos parcelas significativas de poder em várias di-
mensões institucionais e, portanto, pensar ou articular essas experiên-
cias a partir da visão estratégica que temos do mundo e da sociedade
que queremos construir guarda necessariamente um valor singular. To-
das as vezes que de alguma forma recusamos esta relação entre prática
e teoria e entre tática e estratégia, quando de alguma forma aderimos ao


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                        55
pragmatismo muitas vezes desqualificado – e a experiência da es-
     querda está recheada de situações como essas –, sofremos derrotas
     políticas enormes.
       Portanto, diante da responsabilidade que o nosso partido acumu-
     lou no último período, e diante da agenda política colocada para
     todos nós, é evidente que temas como esse guardam uma enorme
     atualidade. Fiz uma opção, diante de um tema dessa envergadura, e
     vou procurar trabalhar com algumas idéias para colaborar com este
     debate: vou procurar manter uma dupla fidelidade aqui, a fidelidade
     ao tema proposto pelos organizadores e a fidelidade à minha condi-
     ção de debatedor.
        A idéia básica é compreender um pouco o período que estamos vi-
     vendo, os desafios em relação ao tema do poder local, das nossas ex-
     periências, e a relação desse processo com uma dinâmica política na-
     cional e internacional capaz de sustentar uma estratégia de transfor-
     mação revolucionária.

       Enterrar o ciclo neoliberal – Estamos fazendo este debate em
     uma conjuntura política de crescimento importante, com a possibilida-
     de de acumulação das nossas experiências num espaço enorme e lar-
     go em escala nacional. Estamos diante de um cenário de grandes pos-
     sibilidades marcado pela disputa eleitoral de 2002. Este cenário que
     estamos vivendo encerra um ciclo de hegemonia neoliberal em nosso
     país, marcado pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que vai exi-
     gir da nossa parte não só uma política contundente do ponto de vista da
     radicalidade, da denúncia desse modelo, mas, evidentemente, uma enor-
     me capacidade de anunciarmos ao povo brasileiro um desenho estraté-
     gico do modelo de sociedade que nos propomos a construir junto com o
     nosso povo. Um desenho estratégico, com as mediações necessárias,


56                                                   PODER LOCAL E SOCIALISMO
que se constitua em referência de construção dessa nova sociedade
democrática e popular e que deverá guardar, na sua dinâmica política,
uma relação com a visão do futuro que nós queremos, da sociedade
socialista que almejamos.
  Celso Daniel já abordou rapidamente algumas características sobre o
período que estamos enfrentando e sobre em que momento realizamos
as nossas experiências locais, municipais e estaduais de construção de
um projeto democrático e popular. Isso é fundamental porque de alguma
forma organiza a noção de possibilidades e de limites. A noção de possi-
bilidades e contradições.
  É importante registrar a dimensão, a envergadura estrutural do projeto
neoliberal que Fernando Henrique Cardoso construiu, ou destruiu, em
escala nacional. Projeto que aparece anunciando a idéia de fim da histó-
ria, anuncia a criação de um novo e potente ciclo de desenvolvimento
capaz de gerar riquezas e distribuí-las. Após dez anos da vitória desse
projeto em escala continental e mundial, agora nos cabe realizar um ba-
lanço rigoroso do fracasso de suas promessas. O custo do processo de
venda selvagem do patrimônio público, que não gerou um Estado equili-
brado e apto a investir em políticas sociais, como se anunciava, e resul-
tou num Estado ainda mais endividado, com menor capacidade de inci-
dência nas políticas econômicas. A idéia de um processo de retirada de
direitos trabalhistas não ampliou a capacidade de geração de emprego,
mas ampliou, sim, o próprio desemprego e a precarização das relações
de trabalho. A idéia de uma abertura comercial indiscriminada não gerou
um círculo virtuoso de crescimento e de novos investimentos, mas uma
brutal desnacionalização da economia, uma quebra de cadeias produti-
vas importantes no nosso país.
  Uma questão que considero desafiadora para todos nós, do ponto de
vista da política, é trabalharmos com a contundência, com a capacidade,


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                     57
com a energia necessária a idéia de que o neoliberalismo encerra um
     ciclo e fracassou em todos os propósitos anunciados que buscavam lhe
     aferir legitimidade política e social. Um fracasso econômico, um fracas-
     so social e um fracasso ético.
       Temos a tarefa de enterrar – e esse me parece que é o sentido, enter-
     rar por inteiro – esse ciclo neoliberal no nosso país. Não se trata portanto
     de derrotar Fernando Henrique e ACM [Antônio Carlos Magalhães] como
     símbolos, mas de derrotar os valores constitutivos desse modelo, os valo-
     res culturais, ideológicos, que foram incorporados ao projeto.
       É nossa tarefa constituir um grande marco de derrota política e ideoló-
     gica desse ciclo neoliberal.
       Esse ciclo neoliberal traz elementos novos, de qualidades novas para
     as políticas regionais. Vou ser telegráfico aqui, talvez possamos
     aprofundar mais tarde. Basicamente esse ciclo de desconstituição das
     estruturas estatais oferece como elemento de política de desenvolvi-
     mento regional, desde o ponto de vista econômico, apenas a idéia da
     renúncia fiscal e tributária; o espaço de gestão particular de estados e
     municípios para sustentar um ciclo de desenvolvimento econômico era
     reduzido. E o que acompanhamos, portanto, foi um crescimento brutal
     da chamada guerra fiscal e uma ampliação enorme de uma disputa
     intra-regional. O “desfinanciamento” dos estados já empobrecidos pela
     ausência de crescimento econômico e, ao mesmo tempo, um processo
     de sustentação dessa atração de grandes investimentos econômicos
     por meio de uma transferência direta da renda pública a esses empreen-
     dimentos. Renda pública basicamente financiada por meio da
     privatização do patrimônio público ou das empresas estatais.
       Esse era o ciclo permitido de políticas regionais ou sub-regionais por
     esse modelo. Uma falência de políticas regionais, um abandono da idéia
     de política de desenvolvimento nacional; estados e municípios libera-


58                                                      PODER LOCAL E SOCIALISMO
dos para uma brutal, ampla e selvagem disputa entre regiões, entre              11. Em 1997 a Ford e o
municípios e entre estados. Via de regra, uma ampliação de políticas            governador do Rio Grande do
                                                                                Sul, Antônio Britto, anunciam
fiscais e outras de transferências ampliadas da renda destinada aos             a instalação de uma nova
mais pobres nas regiões mais desenvolvidas para os mais ricos nas               unidade da fábrica no estado.
regiões menos desenvolvidas. Quer dizer, esse é um ciclo que acompa-            O contrato incluía um repasse
nhamos com conseqüências enormes no ambiente federalista, com                   de 210 milhões de reais para
concentração ou reconcentração do poder de uma forma muito pesada               a Ford a título de benefício
                                                                                fiscal. Em março de 1998,
em escala nacional.                                                             42 milhões de reais foram
                                                                                antecipados pelo estado à
   Políticas regionais e guerra fiscal – Ao fracasso dessas políticas –         montadora. Quando Olívio
e penso que esse é um balanço ainda a ser realizado com profundidade            Dutra assumiu o governo do
                                                                                Estado, em 1999,
no âmbito partidário – corresponde também uma série de importantes
                                                                                começaram as negociações
contradições que vivenciamos por conta da política patrocinada por esse         para rever os termos do
modelo. Não é menor a contradição de que espaços municipais e regio-            contrato, até então
nais, governados pelo PT, em vários momentos praticam ou articulam              desconhecidos dos gaúchos.
políticas dessa natureza, de atração de capitais a partir de políticas forte-   Depois de muitas reuniões, a
                                                                                Ford anunciou em 28 de abril
mente carregadas na renúncia fiscal. Renúncia fiscal como elemento de           daquele ano que estava se
transferência de renda no sentido inverso, de uma reconcentração de             retirando da mesa de
renda. De alguma forma também é importante avaliarmos com profun-               negociações. Ocorre que desde
didade um conceito de desenvolvimento que foi brutalmente impregnado            março a Ford vinha
em todos nós, a idéia de que uma grande fábrica – Marina Silva traz             negociando paralela e
                                                                                sigilosamente com o então
elementos importantes para o diálogo, para o debate –, de que uma gran-         senador Antônio Carlos
de empresa multinacional, via de regra, é sinônimo de desenvolvimento,          Magalhães, que numa
ou pelo menos sinônimo de vitória eleitoral, na medida em que ela cons-         manobra política junto ao
titui uma capacidade de adesão política importante do modelo. Eu penso          Congresso Nacional destinou
que o caso Ford é exemplar. Eu sei que vários de vocês acompanharam             uma fabulosa soma de
                                                                                recursos públicos federais
o tema Ford/Rio Grande do Sul, Ford/FHC, Ford/Bahia11.                          para levar a montadora
   Esta mitologia que sustenta esse tipo de modelo precisa ser desmentida       para a Bahia, onde está
com fatos e dados. Quando assumimos o governo do estado do Rio Grande           hoje instalada.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                                                 59
do Sul, em 1999, e por conta da nossa denúncia do contrato com a Ford,
     que representava a transferência na época de 250 milhões de dólares
     para esta empresa, a idéia que estava generalizada era que o processo
     de desenvolvimento industrial do Rio Grande do Sul havia terminado e
     que a partir dali iríamos viver um longo e doloroso ciclo de declínio da
     produção industrial. E, portanto, perderíamos, definitivamente, a possibi-
     lidade de preservar uma estrutura industrial capaz de produzir, gerar
     emprego e, de alguma forma, se relacionar com o novo cenário interna-
     cional. Dois anos depois, esta economia gaúcha, sem a Ford, encerra o
     seu segundo ano, no nosso governo, sendo o setor industrial mais dinâmi-
     co ou com maior índice de crescimento entre todos os estados da Fede-
     ração. E, em geral, os estados que mais apostaram na política de renún-
     cia fiscal, como é o caso da Bahia e do Paraná, seguem, de uma forma
     sólida, crescendo para baixo, em termos de desempenho industrial.
       Portanto, é evidente que ao contrário dessa política quase mitológica
     que entusiasma, que anima, que produz uma brutal pressão política, te-
     mos de construir referências de desenvolvimento de uma forma distinta.
       É importante salientar o seguinte: há um fracasso nessas políticas.
     Temos de realizar um balanço sobre o que aconteceu na década de 1990,
     nos espaços subnacionais, de uma forma mais sólida, na medida em que
     é evidente que o programa do nosso partido, que um programa da es-
     querda, deve construir diálogos com o conjunto das experiências regio-
     nais existentes no país.
       Há um balanço rigoroso a ser feito. Parto da idéia do evidente fracasso
     também em escala municipal e regional do modelo anunciado e produzido.

       Radicalização da democracia – Faço agora algumas referências rá-
     pidas à experiência do nosso estado e parto depois para apresentar o que
     considero possa ser uma colaboração para um referencial estratégico


60                                                     PODER LOCAL E SOCIALISMO
que possa melhor permitir uma articulação entre a idéia do poder local e
a idéia de uma estratégia de transformação socialista.
  A primeira delas é a possibilidade real que estamos vivenciando no
estado do Rio Grande do Sul de pensar uma estratégia de desenvolvi-
mento que obviamente não guarda só uma dimensão econômica, mas
dialoga diretamente com a qualidade de vida de um povo. Tem como
base a idéia de uma profunda radicalização da democracia. Essa idéia
parte da consideração de que, se é verdade que temos de recuperar
um Estado forte, temos também de, no processo de reconstrução do
espaço estatal, das estruturas estatais, ampliar desde já o processo
de controle social, o processo de democratização e a idéia fundante
da participação popular como elemento organizador de um projeto de
desenvolvimento. A idéia de que um programa como o nosso, ou a
idéia de sustentar um programa de transformações como o nosso, só
tem possibilidades políticas de sustentação na medida em que altera-
mos as relações políticas ou as relações de poder na sociedade; e
que a estrutura estabelecida em todos os níveis da institucionalidade
produz tamanhas contradições nos nossos governos, invertendo pau-
tas e agendas que só se sustentam e se desenvolvem com uma forte
e permanente mobilização e participação popular. Participação popu-
lar, portanto, como instrumento de incorporação na política real, na
definição das políticas reais, das grandes maiorias excluídas. E, por-
tanto, o conceito de democracia participativa, direta, associada a um
conceito de democracia representativa, guarda não uma neutralidade
em si, mas uma relação de diálogo direto com uma estratégia de cons-
trução de um novo padrão de poder, capaz de viabilizar e capaz de
sustentar um programa de transformações, especialmente diante de
um quadro político que herdamos, de uma estrutura institucional, de
uma estrutura estatal que herdamos.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                    61
Constituímos experiências importantes, portanto, a partir dessa refe-
     rência estratégica, a participação popular como instrumento de organi-
     zação, de controle de um projeto de desenvolvimento, rompendo com
     uma visão tecnocrática, burocrática de desenvolvimento. Mais do que
     isso, é evidente que este valor se traduz num valor real de democratiza-
     ção do poder político, e a democratização do poder político com a incor-
     poração das maiorias excluídas por essa mesma estrutura representa-
     tiva guarda, eu penso, uma relação estratégica fundamental com a cons-
     trução da nova sociedade. A idéia de construirmos de fato uma verda-
     deira democratização do poder político na nossa sociedade.

       Recuperação do Estado – Associada a isso, a idéia da possibili-
     dade de recuperação do Estado na sua capacidade de financiamento,
     de uma rede de proteção social importante, que traduza e dê
     materialidade a uma carta de direitos sociais que compõe uma visão
     de cidadania nesse início de século e, portanto, combate ideologica-
     mente a idéia do mercado como provedor de saúde, educação, cultu-
     ra e tantos outros valores.
       A idéia, portanto, de um Estado capaz de adquirir capacidade de
     financiamento e sustentar e financiar redes de proteção social, redes
     públicas que tenham a capacidade de oferecer escola pública de qua-
     lidade, rede de saúde pública de qualidade e, em conseqüência, de criar
     as condições reais numa disputa política ideológica de continuar afir-
     mando que um modelo de sociedade como o nosso, se é um modelo
     que comporta o mercado, não é uma sociedade de mercado, e que nós
     temos condições de oferecer aos filhos e filhas do povo trabalhador
     escola pública de qualidade, posto de saúde etc. etc.
       Este é um movimento importante que estamos produzindo apesar da
     brutal crise fiscal que vivemos, mas penso que é uma tarefa central do


62                                                   PODER LOCAL E SOCIALISMO
ponto de vista programático, que guarda uma grande capacidade de alte-
rar concretamente a vida das pessoas e, ao mesmo tempo, constituir um
sentido estratégico importante.
   A idéia de que o processo de modernização capitalista não é capaz de,
por si só, absorver um contingente enorme de excluídos; a idéia de esta-
belecer um conjunto de estratégias que tenham capacidade de geração
de trabalho, de emprego, de renda para os setores excluídos dessa fase
ou desse processo de modernização.
   Talvez aí entre um elemento importante do debate, que é mais ou me-
nos o seguinte: se é uma verdade que o nosso programa não se articula
em torno do grande capital, temos de ter capacidade de nos relacionar
com o capital. E que relação é esta? Não é possível imaginar uma rela-
ção de governo e de poder que recusa esta relação e se satisfaz com
uma relação marginal, no sentido de periferia da economia. Nós, numa
escala estadual, trabalhamos no sentido de construir uma referência de
desenvolvimento endógeno. O estado do Rio Grande do Sul é detentor
do segundo parque industrial do país. Valorizar, estimular as estruturas
de produção industrial, basicamente pequenas e médias empresas, cons-
tituir redes de cooperação, proteger e dinamizar os nossos sistemas lo-
cais de produção, tudo isso vem constituindo uma estratégia econômica
importante que nos permite estabelecer um diálogo claro, aberto, trans-
parente com esses setores e guardar maior eficiência naqueles que são
os elementos organizadores de uma estratégia econômica. Gerar em-
prego, gerar trabalho, democratizar renda. Esses são os valores que de-
vem organizar uma estratégia de desenvolvimento econômico e, portan-
to, guardados os limites que nós temos do poder ou de poder real, traba-
lhamos nessa perspectiva, que ao fim e ao cabo é uma perspectiva de
democratização da riqueza e da renda. É evidente que associamos isso a
uma política forte de qualificação do modelo de desenvolvimento agríco-


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                    63
la, procurando fugir de um padrão exportador agrícola, incorporando um
     conjunto de outros valores da agroecologia, que dialogam com os temas
     de preservação e ao mesmo tempo com sustentação e renda. E obvia-
     mente avançarmos no tema da reforma agrária numa perspectiva de
     democratização da propriedade.
        O que quero enfatizar é que as experiências que estamos construindo
     – que muitas vezes têm representado derrotas importantes, mas também
     com muitas experiências positivas – precisam ser cuidadosamente ana-
     lisadas e aprofundadas, porque todas elas, penso eu, guardam referên-
     cias muito importantes.

       O local e o nacional – Eu encerro, portanto, com duas hipóteses de
     discussão para o nosso seminário. A primeira delas – que nos tensiona
     permanentemente como companheiros que receberam um mandato do
     partido para representar este programa numa experiência de gestão, como
     é o meu caso como vice-governador, o caso do Celso Daniel como pre-
     feito etc. – é que temos que recusar peremptoriamente a idéia de que só
     é possível implementar com consistência e efetividade uma política de
     desenvolvimento no terreno nacional. Ou seja, rejeitar a idéia da recusa
     dos espaços municipais e regionais como produtores de um projeto alter-
     nativo. Via de regra essa é uma tese que embasa uma política ultra-
     esquerdista ou uma política de um pragmatismo enorme. As duas nos
     levam sistematicamente à derrota. Ou seja, esta idéia de que enquanto
     não conquistarmos o poder nacional – e me parece que muitas vezes a
     idéia de um poder nacional é uma eleição presidencial – não há nada o
     que fazer – e este “não há nada o que fazer”, via de regra, nos leva para
     aqueles dois cenários, ou o ultra-esquerdismo ou o pragmatismo, e a
     conseqüência é a derrota. Nossa experiência – e quando digo nossa
     experiência me refiro às várias experiências que temos produzido no


64                                                    PODER LOCAL E SOCIALISMO
país, pautadas por essa relação programática, orientadas pela relação
estratégica de transformação – mostra que temos um grande espaço de
intervenção política, cultural, ideológica, de afirmação de valores que
constituem elementos de transição sólidos para uma sociedade distinta.
Capaz mesmo de desconstituir a hegemonia dominante e de alicerçar os
valores da solidariedade, do espaço público; e, mais do que isso, espaços
significativos de qualificação real da vida das pessoas.
  A segunda idéia que quero apresentar é que tão nocivo quanto a
idéia de que não é possível fazer nada sem uma grande ruptura em
caráter nacional é afirmar ou supervalorizar a possibilidade das expe-
riências do poder local.
  Essa idéia, muitas vezes alimentada e sustentada de uma forma incor-
reta, assume um superdimensionamento das possibilidades locais ou re-
gionais, de tal forma que acaba diluindo a capacidade de enxergar a idéia
de um modelo nacional ou de uma agenda nacional. O Banco Mundial é
mestre em fazer isso. Ou seja, desse modo é possível sustentar o modelo
atual a partir de políticas setoriais, a partir do apoio a programas munici-
pais aqui ou acolá, de tal forma que criem um ambiente de sustentação
desse modelo, de possibilidades diante desse modelo.
  Então, essa idéia de que é possível construir um novo padrão de desen-
volvimento a partir tão-somente de projetos regionais, ou de projetos
locais, via de regra associados a essa dimensão hiperatrofiada do tercei-
ro setor, precisa ser enfrentada.
  Quero dizer que um projeto regional de desenvolvimento pode, sim,
conter em potência, ou com potência, o modelo de uma nova sociedade.
Mas só se realiza a partir de mudanças que se localizam no terreno
nacional e se estendem no terreno internacional. A idéia básica é que no
terreno nacional se encontram os grandes mecanismos de poder capa-
zes de incidir de uma forma mais concreta e real sobre a vida real das


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                        65
regiões, dos locais e das pessoas. Câmbio, juros, legislação trabalhista,
     regulação de direito de propriedade etc. Ou seja, penso que a idéia fun-
     damental deva ser nossa capacidade de pensar uma relação entre um
     poder local e as diversas experiências de gestão que estamos produzin-
     do; elas guardam potência real, dialogam com o sentido estratégico de
     sociedade que queremos construir, tanto mais elas estiverem relaciona-
     das com a capacidade de compartilharmos, de uma forma paralela no
     tempo, as diversas agendas. Agenda municipal, agenda estadual, agenda
     nacional e agenda internacional constituem, em conjunto, uma estratégia
     política, e tanto mais se conseguimos enxergar a relação do município no
     estado, a relação do estado para baixo e para cima, tanto mais se conse-
     guimos enxergar as nossas políticas nos espaços internacionais, tanto
     mais se conseguimos dar potência às nossas experiências e uma refe-
     rência estratégica mais geral.
       Este é o sentido maior da minha colaboração. Quanto mais formos
     capazes de articular nossa estratégia política, de uma forma simultâ-
     nea, com o conjunto das agendas políticas, e de compreender o caráter
     simultâneo dessas agendas, mais transformaremos nossas experiên-
     cias reais de gestão em experiências potencializadoras da construção
     de uma nova sociedade.
       A idéia, portanto, é de que não estamos administrando uma cidade,
     construindo nessa cidade ou a partir dessa cidade um programa e um
     projeto democrático popular; que não administramos um estado, mas
     temos a tarefa de construir a partir desse estado um projeto democrático
     e popular que guarde relação direta com as transformações nacionais.
       E, tanto mais a agenda internacional chega até nós, mais fácil é com-
     preender isso. Por exemplo, o tema da Área de Livre Comércio das
     Américas (ALCA). É evidente que um projeto dessa envergadura, que
     significa tarifa zero comercial, renúncia da capacidade de autonomia de


66                                                    PODER LOCAL E SOCIALISMO
construção de políticas econômicas, de política industrial, de política
tecnológica, retira literalmente a capacidade de produção de políticas
nacionais, de políticas regionais e de políticas municipais.
  Não é possível imaginarmos espaços de construção de políticas autô-
nomas com um país aprisionado numa estrutura institucional internacio-
nal, em que se delega a esse tratado internacional toda a capacidade de
produção de política industrial, tecnológica, comercial etc.
  Encerro com esse exemplo, dando a dimensão de como as nossas agen-
das são rigorosamente interligadas. Uma estratégia forte exige uma ca-
pacidade de articularmos em conjunto essas agendas, ou então estare-
mos despontencializando a nossa capacidade de produção de uma outra
hegemonia política na sociedade.
  Muito obrigado.




SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                   67
68   PODER LOCAL E SOCIALISMO
Comentários
Ladislau Dowbor

  Urbanização e gestão social – Acho muito importante cruzarmos os
conceitos de marxismo e socialismo e o de local. O conceito de espaço
praticamente não existe na obra de Marx. É interessante uma questão que
discutimos bastante com Milton Santos: as dinâmicas espaciais são pode-
rosas na organização econômica. Nós nos referimos em particular ao es-
paço local, que apesar de pequeno constitui um espaço político essencial.
Na realidade, não estamos falando do local em abstrato, mas do espaço no
qual a comunidade pode se articular. Aquele em que a educação, a saúde,
a produção, as pequenas empresas podem se transformar em um espaço
integrado de construção social e econômica, porque, de outra forma, de-
pendemos de setores, de ministros, de coisas que vêm de cima. Estamos
articulando gente, estamos administrando o espaço. Considero isso muito
importante. É o primeiro debate de que participo que faz de fato uma
discussão teórica entre as dimensões políticas, no sentido amplo dos nos-
sos grandes ideais, e o espaço local. Isso é extremamente poderoso.
  Não temos nenhuma desculpa a pedir quanto aos nossos ideais. Os
ideais do socialismo, de uma sociedade mais humana, estão aí, e continua-
mos a batalhar por eles.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                     69
Mas, numa sociedade que mudou radicalmente, temos de passar a
     construir esses ideais de uma maneira diferente. Como esquerda, fo-
     mos sempre acuados a um tipo de estatismo, e vestimos essa carapu-
     ça. O estatismo é problemático – acho que Celso Daniel fez muito bem
     ao levantar essa questão –, e não é central ao marxismo. Ele é central
     na medida em que, numa visão de estratégia de luta bem leninista, se
     conquista o Estado para se contrapor ao poder da burguesia, ao poder
     econômico. É uma alavanca para derrubar o poder do capital sobre a
     sociedade, para numa segunda etapa evoluir para a redução e o fim do
     Estado. O objetivo é um espaço democrático – para Marx, é óbvio. De
     tanto querer construir o socialismo, acabamos por caminhar num sen-
     tido profundamente inverso, e é complicado e interessante como essas
     coisas se deram.
       Trabalhei na Polônia, na Argélia, na Nicarágua, em uma série de paí-
     ses socialistas. Com esse tipo de experiência, acabamos por sentir o
     peso desses sistemas de organização, nos quais o poder formal capitalis-
     ta é extinto ou reduzido muito fortemente e não é substituído por um
     sistema democrático de gestão. O resultado é uma máquina burocrática,
     em que constatei, por exemplo, que o poder de um grande empresário
     privado e o de uma grande empresa estatal na Polônia podiam ser rigo-
     rosamente semelhantes. Tal como no caso do proprietário de meios de
     produção, vemos uma pirâmide de poder que vai se construindo. São
     aspectos que devemos repensar; felicito a organização desse trabalho
     por cruzar os temas socialismo e poder local.
       Venho há muitos anos brigando pelos espaços descentralizados. Cansei de
     gente que me explicava: “Mas isso é pequenininho, isso não é política...”.
       Imaginamos sempre que a política é algo que conquistamos. Está lá
     em cima, em algum lugar há um bolo. Então, quando chegamos lá, pega-
     mos o bolo. É nosso.


70                                                     PODER LOCAL E SOCIALISMO
Lembro-me de conversas do nosso grupo com Salvador Allende, no
Chile, e ele dizia: “Olha, eu estou aqui no Palácio. No meu Palácio.
Ponto. Eu tenho dois oficiais do Exército que me apóiam”. Ocupar o
Palácio resolve?
  Tomo o exemplo inverso do Irã, sem fazer nenhum julgamento de valor
ou coisa semelhante sobre os aiatolás etc., mas o imenso poder do xá não
foi derrubado com um grande exército, com um grande movimento ar-
mado, com tiros e canhões. Vejam que o exército do xá do Irã não era
brincadeira, mas caiu com um peteleco, com as gravações, as fitas cas-
setes que o aiatolá Khomeini distribuía com sua pregação. A cultura
adquiriu pesos radicalmente diferentes, e conquistar a população pode
ser muito mais importante do que conquistar a máquina do Estado.
  Isso representa deslocamentos profundos para nós. É curioso, temos
dificuldade de deslocar a visão das coisas e, ao mesmo tempo, é bonita
a nossa caminhada para deslocar as coisas, porque quando falamos
com liberais ou neoliberais eles continuam a repetir rigorosamente o
mesmo discurso do século XIX, ou seja, “mão invisível”, laissez-faire,
enquanto a esquerda está realmente construindo alternativas. Não, a
meu ver, por inteligência própria, mas porque a cacetada que levamos
foi tão grande, com a queda do muro de Berlim e de todos esses sonhos
de um macropoder, arbitrário, vindo de cima, que começamos a repen-
sar tudo. Isso está surgindo com toda a força no Brasil, porque é o
espaço que nos resta.
  Quem manda neste país? Na década de 1950, era a UDN [União Demo-
crática Nacional], depois a Arena [Aliança Renovadora Nacional], no tempo
dos militares, que depois virou PDS [Partido Democrático Social], e depois
o PFL [Partido da Frente Liberal]... É o mesmo bando, são as mesmas
famílias, inclusive. Um ACM [Antônio Carlos Magalhães] pertenceu a cada
uma destas agremiações, sucessivamente, nunca saiu do poder.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                      71
E curiosamente, pelo fato de que a construção de alternativas de ges-
     tão só tinha espaço, no Brasil, nas prefeituras, pois mais acima o controle
     continuava a ser das oligarquias tradicionais, passamos a administrar o
     cotidiano político das populações, a entender melhor o que é uma favela,
     o que é custo burocrático, o que é organizar uma licitação, o que é o
     enfrentamento com a mídia, o que são as práticas reais do convívio polí-
     tico; creio que é um capital acumulado absolutamente gigantesco.

       O capitalismo produz, mas não distribui: é estruturalmente in-
     completo – Temos uma conjuntura particular hoje. Por haver trabalha-
     do muitos anos nas Nações Unidas, recebo as publicações do Fundo
     Monetário Internacional [FMI], do Banco Mundial, essas coisas. Recebi
     uma publicação que me tocou muito, do FMI, que traz na capa uma foto-
     grafia de um menino negro com a camisa rasgada. E o que vem na capa
     realmente nos comove: “Como podemos ajudar os pobres?”. Trata-se
     da principal publicação do Fundo Monetário! Pensei em várias respostas
     de diversos níveis, enfim, de educação...
       Mas o fato é que não é só cinismo o Fundo Monetário Internacional
     colocar isso na capa de sua publicação no mesmo ano em que a capa do
     Relatório do Banco Mundial é um outro menino negro, esse mais estilizado,
     uma pintura artística, com o título “Atacando a pobreza”. Também no
     mesmo ano, o relatório das Nações Unidas vem com o título “Enfrentan-
     do a pobreza”. A situação é simples: esse sistema capitalista é um bom
     produtor, um bom organizador de produção.
       É possível juntar 200 pessoas e determinar um objetivo, por exemplo:
     “Vamos produzir bem um tipo de sapato”. Concentrar de maneira orga-
     nizada um conjunto de esforços em torno de um objetivo funciona.
       Mas isso não resolve o problema da distribuição. O sistema não é um
     bom distribuidor, porque, quanto mais poder econômico a empresa acu-


72                                                     PODER LOCAL E SOCIALISMO
mula, mais ela transforma isso em poder político, mais desequilibra as
relações sociais e gera as tragédias que conhecemos. Ou seja, é um
sistema que vai além da questão de gostarmos ou não do neoliberalismo,
essas coisas. Como sistema, essa é uma questão de bom senso, não é
mais discurso de esquerda ou direita, ele só funciona com metade da
roda, porque o sistema econômico tem de produzir e distribuir, fazer cir-
cular. Ele não distribui. Conclusão do Banco Mundial, deste ano: 2,8
bilhões de pessoas vivem com menos de 2 dólares por dia – não é uma
média, é de 2 dólares para baixo – e 1,2 bilhão vive com menos de 1
dólar por dia. Essas pessoas não navegam na internet, não usam aquele
sabonete... É um sistema que gerou uma fratura social como a humani-
dade jamais conheceu, além de gerar destruição ambiental, tragédias.
Ou seja, o liberalismo está à procura de caminhos, e quando considera-
mos que nós os temos, porque aprendemos a trazer respostas na área do
social, e aprendemos inclusive a articulá-las, como diz Marina Silva, com
a dimensão ambiental, com a dimensão econômica, com as outras di-
mensões da sociedade, temos um momento historicamente privilegiado,
historicamente poderoso.
  As grandes simplificações do século XIX, que foram tentadas no sécu-
lo XX, a meu ver, se foram. De um lado, o proletariado administrando o
Estado e utilizando o planejamento, e, de outro, a burguesia, a empresa e
o mercado como mecanismo regulador. Tínhamos a nossa classe reden-
tora, o proletariado; o capitalismo tinha a sua classe redentora, a burgue-
sia. Esses dois modelos simplificadores não estão respondendo aos de-
safios que precisamos enfrentar.

  Urbanização – Eu trabalharia o poder local, Celso, com dois eixos
que transformam o processo em profundidade. Primeiro, a urbaniza-
ção. Nós ainda não pensamos o gigantesco impacto de termos passado


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                       73
de uma situação, na década de 1950, em que dois terços da população
     viviam no campo, para outra situação, hoje, em que 80% das pessoas
     vivem na cidade. O poder se gere hoje por meio das cidades. Só que o
     município está na linha de frente dos problemas e é o último escalão da
     estrutura pública. Os problemas de saúde, segurança etc. se avolumam
     em torno da cidade, das periferias urbanas explosivas, mas as decisões
     continuam em Brasília.
       Se compararmos o Brasil com países de urbanização mais antiga, dos
     quais um exemplo forte é a Suécia, veremos que lá 72% de todo o bolo
     dos recursos públicos são gastos localmente, com os conselhos, com as
     populações participando etc. No Brasil, esse índice é apenas da ordem
     de 15%. Uma coisa é saber o tamanho do Estado, outra é saber onde
     está o Estado. Quanto mais se aproxima o Estado da população, mais se
     gera capacidade de articular essa população em torno do uso dos recur-
     sos públicos, e isso é poder. Esse é um eixo extremamente importante.
     Avançamos um pouco com a Constituição de 1988, houve uma leve
     descentralização de recursos. Temos um imenso eixo de transformação
     pela frente nesse espaço.
       Outro ponto fundamental é a importância da área social. Há um con-
     ceito chamado “serviços” que eu já parei de utilizar, por ser vago demais
     e confundir os problemas. Na definição atual, que é residual, quem não
     trabalha a terra (agricultura) e não trabalha na máquina (indústria) está
     na área de serviços, ou seja, faz parte de “outros”. Esse “outros” se
     chama serviços, e é um imenso saco de gatos. Por exemplo, na agricul-
     tura, nos Estados Unidos, diz-se que só se empregam 2,5% da popula-
     ção, o que é uma imensa bobagem. Realmente, lavrando a terra são só
     2,5%, mas nesse processo se usa também inseminação artificial, que é
     um serviço prestado por uma empresa, assim como análise de solo, ser-
     viços meteorológicos, serviços de comercialização primária e por aí vai.


74                                                    PODER LOCAL E SOCIALISMO
Com todas essas coisas eleva-se o nível da agricultura, intensifica-se a
dimensão dos conhecimentos envolvidos, mas não é outro “setor”. É
uma forma moderna de fazer agricultura. Continua a ser produção.
   Se pensamos o conjunto das modernizações ligadas diretamente aos
segmentos da indústria e da agricultura, os dois grandes pilares produti-
vos, o que fica na área não-produtiva diretamente, o grande eixo, é o
social. Consideremos os Estados Unidos: 14% do PIB [Produto Interno
Bruto] norte-americano é saúde, hoje o maior setor econômico do país.
Acrescente-se educação, tanto a formal como a formação nas empre-
sas (hoje só as corporate universities são mais de 2.000), e chegamos
a outros 15%. Acrescente-se a cultura, que eles chamam indústria do
entretenimento: seguimos tranqüilamente para a faixa dos 40% do PIB.
   O ponto de interrogação é o seguinte: como se regula essa área?
Porque a área industrial eu entendo, o capitalista é proprietário da fá-
brica, o trabalhador trabalha e recebe um salário, há a portaria, o reló-
gio de ponto etc.
   E no social? Marx, há mais de um século, viu o surgimento da indústria,
e disse que a indústria não é só o que as fábricas criam, ela muda as
relações de produção. Desenvolveu a teoria do capital, do assalariado,
da mais-valia. E quais são as relações de produção implícitas na área
social? Isso é interessante. Quando olhamos para a saúde, por exemplo,
vemos que ela não funciona bem com grandes máquinas estatais. Já
funcionou. Costumamos dizer: “Como era boa a educação estadual no
Brasil!”. Era para meia dúzia, gente! Como proporcionar saúde para 170
milhões de habitantes, sendo que a saúde é capilar, tem de chegar a cada
habitante, a cada criança, por meio de uma gigantesca máquina centra-
lizada em que há tantas hierarquias, patamares intermediários? Trabalho
com essas coisas de administração e costumamos brincar que a partir de
quatro níveis hierárquicos quem está lá em cima vive na ilusão de que


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                      75
alguém lá embaixo obedece, e quem está lá embaixo vive na ilusão de
     que alguém lá em cima comanda. Não funciona.
       E não é a questão de privatizar, porque se tem aí uma situação pior,
     absolutamente caótica. Fizemos um levantamento sobre vitamina C, do
     tipo efervescente. Um tubinho desse custa 6 reais. Vocês sabem quanto
     tem de vitamina C, de ácido ascórbico, lá dentro? Três centavos. Claro,
     você paga a substância que faz borbulhas, a tampinha que faz “ploc”,
     aquela publicidade com a madame segurando aquela criança loirinha,
     com o marido – na publicidade o marido está ali... Vejam bem, com um
     processo desses, multiplicamos por 200 o custo de um produto simples, e
     excluímos dois terços da população brasileira de um medicamento abso-
     lutamente essencial.
       Diz-se na economia que se trata de uma demanda inelástica: você tem
     um filho, precisa comprar um remédio. Se o remédio dobra de preço,
     você continua a comprar o remédio, porque é para o seu filho. Que outra
     opção você tem? Mercado nesta área simplesmente não funciona, a doen-
     ça da criança não é uma mercadoria.
       Nos Estados Unidos, não entendiam por que numa cidade se hospita-
     lizava tanta gente. Verificaram o hospital e viram que ele dava 100
     dólares para o médico que encaminhasse alguém para lá. Claro, um
     médico norte-americano não vai se vender por 100 dólares, mas enfim,
     o casamento da filha, 100 dólares daqui, 100 dólares dali... O fato é que
     se verificou uma taxa de hospitalização fenomenal, e os proprietários
     estão sendo processados. Um médico meu amigo diz que não há clien-
     te saudável, há diagnóstico incompleto. Não estou brincando! No esta-
     do de São Paulo temos 52% dos partos feitos por cesariana. Segundo o
     Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância], esse procedimen-
     to multiplica por quatro os riscos para a mãe e para o filho. Uma carni-
     ficina. Por quê? Porque rende.


76                                                    PODER LOCAL E SOCIALISMO
O que estou tentando mostrar é que esse gigante econômico que
constitui a área social, que não aprendemos ainda a analisar do ponto
de vista das relações de produção que gera, não é bem administrado
pelo sistema estatal, centralizado, tradicional, e é muito mais mal admi-
nistrado pelo sistema privado. É um eixo que está buscando os seus
paradigmas de gestão.

  Descentralização e participação – E aos trancos e barrancos,
inventando, começamos a verificar que as atividades ligadas ao so-
cial funcionam simplesmente de maneira descentralizada e
participativa. Por quê? É muito simples. Se consideramos um con-
selho de pais numa escola, o maior interesse é que não se brinque
com o futuro dos filhos. Os pais não precisam ter ações da escola,
do sistema privatizado ou coisa do gênero... Cada um está interes-
sado em seu filho. Então, ao organizar a participação comunitária,
levamos a que as coisas se racionalizem.
  Na saúde é a mesma coisa. E na cultura, outro setor que Celso Daniel
citou. Na realidade, os setores citados por Celso são essencialmente
sociais. E os setores sociais são o grande eixo. Para mim, a grande
preocupação com a tal da Lei de Responsabilidade Fiscal é que o que
é limitado é a contratação de funcionários, e os setores sociais emer-
gentes são justamente intensivos em mão-de-obra.
  O que estou tentando trazer como idéia é que, com a urbanização,
somos levados a um aumento brutal do consumo coletivo. Para a popu-
lação dispersa no campo, o lixo é jogado na valeta ou pela janela, o
transporte é o jegue ou o caminhãozinho; a água é do poço... As solu-
ções são individuais, familiares. Quando se está na cidade, construir a
casa é o de menos, é preciso se conectar com as redes de água, de
esgoto e de eletricidade, com o transporte público, com as linhas tele-


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                     77
fônicas. É um sistema de redes interdependentes. Eu trabalhei na Guiné
     Equatorial e não havia sistema público de eletricidade decente. As pes-
     soas tinham aqueles geradores Honda, soluções individuais. Era uma
     barulheira tremenda, ninguém dormia na cidade. Com um custo que
     vocês imaginam... um gerador individual implica gigantescos desperdí-
     cios. Um sistema que deveria ser de consumo coletivo foi privatizado,
     individualizado, deixando a Honda muito contente, está lá vendendo as
     maquininhas dela.
       As pessoas aqui sorriem com um absurdo desses, dizem: isso é na
     África. No entanto, chegamos aqui e vemos que cada um é obrigado a
     comprar, por 20 mil reais, um carro, e estamos andando, em média, a 14
     quilômetros por hora, porque não há transporte público. Nesse plano
     estamos em plena África.
       Se começarmos a pensar a gestão do social, o tipo de impacto que
     a urbanização tem, por um lado, e, por outro, o impacto social em
     termos de relação de produção que tem a emergência desse imenso
     setor do social, acho que temos um eixo extremamente interessante
     de análise sobre como o poder local é um reconstrutor social de
     longo prazo.
       Como o social exige que a população se articule, e exige a expan-
     são do consumo coletivo e público, torna-se um construtor natural
     de uma rearticulação comunitária extremamente poderosa. E sabe-
     mos que talvez o impacto mais trágico do conjunto desse sistema
     capitalista moderno seja a desarticulação social, a atomização. Quan-
     do se reconstrói o tecido social, não acho que seja suficiente para
     reconstruir a política, mas creio que é uma condição necessária no
     plano dos dilemas que estávamos levantando. Acho que pensarmos
     que só é possível resolver os problemas com o local é uma ilusão.
     Mas, se não há uma população organizada, articulada pela base,


78                                                   PODER LOCAL E SOCIALISMO
pode-se chegar a Brasília com a pasta, com a faixa e tudo, e se fará
muito pouco.
  Só mais uma informação: há um pequeno texto meu que apresenta
de forma mais organizada estas idéias, e que eu gostaria que vocês
consultassem. Chama-se “Gestão social e transformação da socie-
dade”. Está na internet, na página http://www.ppbr.com/ld. Vejam
em “artigos online”.
  Muito obrigado.




SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                79
80   PODER LOCAL E SOCIALISMO
Debate com o público

  Max Altmann                           aparato partidário que levou à es-
  Minha intervenção está ligada à       tagnação e à corrupção, ao defi-
discussão dominante neste ciclo de      nhamento político e ideológico e,
debates, e também hoje, quando a        finalmente, à derrocada. O PT ne-
mídia bate insistentemente na tecla     gou esses aspectos, e sua prática
de que o PT abandonou o socialis-       e sua pregação são contrárias a
mo em favor de outras bandeiras.        tudo isso, mas não negamos o que
  No entanto o PT nasceu negan-         a Revolução de Outubro represen-
do alguns dos aspectos identifi-        tou para as conquistas da classe
cadores do socialismo real: parti-      trabalhadora em todos os recan-
do único e monolítico, ditadura do      tos do mundo, nem o papel históri-
proletariado, falta de democracia       co do socialismo, ao derrotar no
interna – o que eliminava a discus-     campo de batalha o nazi-fascismo,
são ampla dos problemas em to-          nem as proezas do socialismo no
dos os escalões –, burocratização       campo econômico – ao contrário
do aparelho estatal e partidário, su-   do que prega o atual pensamento
bordinação do aparelho de Estado        único –, que levou, em poucas dé-
e da sociedade como um todo ao          cadas, um país atrasado à condi-


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                      81
ção de superpotência, rivalizando         há socialismo, tampouco a demo-
     com os Estados Unidos. Nem                cracia plena e consolidada sem o
     mesmo a importância geoestraté-           socialismo, ou seja, a superação da
     gica da bipolaridade que propi-           sociedade de classes fundada na
     ciou, por exemplo, o fim do colo-         exploração e na alienação.
     nialismo e cuja ausência, hoje,             O socialismo não é um abstrato
     permite aos Estados Unidos po-            conjunto de valores que orientará
     rem e disporem ao seu talante.            a utópica tarefa de melhorar o ca-
       Para um segmento de personali-          pitalismo, compatibilizar o reino do
     dades nada insignificantes da es-         mercado com a justiça social. O so-
     querda brasileira, já não se trata        cialismo é uma nova e inédita or-
     de articular socialismo e democra-        dem social, na qual, no lugar da
     cia, mas simplesmente de afirmar          velha sociedade burguesa, com
     que o socialismo se tornou peça           suas classes e seus antagonismos
     de museu a ser enterrada junto            de classes, surge uma associação
     com o muro de Berlim, não res-            em que o livre desenvolvimento de
     tando assim à esquerda outra ta-          cada um é pressuposto para o livre
     refa além daquela de compa-               desenvolvimento de todos.
     tibilizar capitalismo e justiça social.     Sabemos que existem no PT cor-
     O alvo polêmico dos textos de             rentes que negam explicitamente o
     Carlos Nelson Coutinho – e esses          socialismo em nome de uma nebu-
     textos dizem respeito exatamente          losa democracia republicana, que
     ao PT – já não é constituído ape-         quando falam em socialismo é para
     nas pelos que negam ou subesti-           prestar homenagem, mas de modo
     mam o valor universal da demo-            meramente verbal; outras identifi-
     cracia, que ainda ocupa algum es-         cam-se com a proposta de uma
     paço na nossa esquerda, mas tam-          suposta terceira via; outras ainda
     bém por aqueles que parecem ago-          com a social-democracia, mais à
     ra ignorar que sem democracia não         esquerda ou à direita. Esse emba-


82                                                        PODER LOCAL E SOCIALISMO
te é real e é natural dentro do PT.           econômica é condição ne-
  Mas, se o partido se define como            cessária mas não suficiente
socialista, então as definições ideo-         para a realização integral das
lógicas devem ser esclarecidas.               potencialidades abertas pela
Isto nada tem a ver com modelos               crescente socialização do
anteriores ou atuais, com a veloci-           homem. Essa realização im-
dade ou a condução tática do pro-             plica também o fim da alie-
cesso; já há um consenso generali-            nação política”.
zado e implícito de que o caminho
brasileiro para o socialismo obede-       Gostaria de mencionar muito ra-
cerá à história, à índole do povo       pidamente uma questão que tam-
brasileiro, à sua cultura, ao seu       bém vem sendo muito batida, a crí-
acúmulo de lutas, à sua realidade       tica que a social-democracia e o li-
social e econômica, e por aí afora.     beralismo fazem ao socialismo, que
  Nessa marcha, a democracia não        preserva os direitos humanos eco-
é um caminho para o socialismo e        nômicos, salienta os direitos huma-
sim o caminho do socialismo.            nos econômicos, sociais e culturais
  Volto a Carlos Nelson Coutinho:       e despreza os direitos políticos e
                                        civis. Nós consideramos que am-
      “A plena realização socialis-     bos devem ter o mesmo peso. Mas
      ta do homem não requer            que ocorre nos países do Terceiro
      apenas a supressão da apro-       Mundo? Os primeiros, os direitos
      priação privada dos meios de      econômicos, sociais e culturais, são
      produção, que são frutos do       extremamente precários. Salários
      trabalho coletivo. Requer         baixos, desemprego, saúde precá-
      também a eliminação da            ria, educação de baixo nível, anal-
      apropriação não-social,           fabetismo, analfabetismo funcional;
      privatista das alavancas de       e os segundos são meramente for-
      poder. Superar a alienação        mais, comparecer de quatro em


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                        83
quatro anos ou de dois em dois anos       Esses são alguns temas que eu
     ao posto eleitoral, e participação na   proponho para nossa apreciação
     atividade política muito reduzida.      e discussão.
       Quando os Estados Unidos se
     opõem ao protocolo de Kioto, eles         Inácio Teixeira Neto
     se opõem ao primeiro dos direitos         Boa tarde à mesa e aos senho-
     humanos, a vida, sem a qual os de-      res participantes. Meu nome é
     mais simplesmente não existem.          Inácio Teixeira Neto e hoje tra-
     Essa é uma violação aos direitos        balho em uma assessoria da Se-
     humanos fundamentais, e muitos          cretaria de Negócios Jurídicos e
     dizem que não querem nenhum re-         de Cidadania, de Campinas, em-
     gime que, por exemplo, não preser-      bora minha trajetória tenha sido
     ve a liberdade de imprensa. No          toda feita aqui em São Paulo. A
     entanto, nos países capitalistas        razão da minha pergunta foram as
     existem fortes limitações de ordem      opiniões de alguém que aprendi
     econômica à liberdade de impren-        a admirar muito, o professor La-
     sa. Se nós quisermos fundar nesse       dislau Dawbor.
     país um jornal diário de circulação       Meu único objetivo em intervir é
     nacional, teremos de desembolsar,       retomar a questão da figura da cri-
     paulatinamente, 500 milhões de          ança negra usada pelo FMI em seu
     reais, sem o que não conseguire-        relatório, e também sabemos que o
     mos levar às massas diariamente         Banco Mundial usou figura seme-
     algo que se oponha à mídia que de-      lhante. Em Campinas temos a Se-
     fende a ideologia do neoliberalismo     cretaria de Cidadania, que acabou
     – não vamos poder nos contrapor.        de criar uma Coordenadoria da Co-
     Essa é uma limitação muito severa       munidade Negra. Temos uma preo-
     a um direito humano fundamental,        cupação fundamental que é a de
     que é o da liberdade de imprensa        saber, dirigindo-me à mesa, quais
     ou da liberdade de expressão.           as iniciativas que a esquerda, so-


84                                                      PODER LOCAL E SOCIALISMO
bretudo o PT, está tomando nesse         vas surgidas ao capitalismo naquele
sentido. E para o professor Ladislau     período dos anos 30 seriam ambas
Dowbor: qual a alternativa de ba-        de natureza totalitária. Você falou
talha que nós, negros, temos de          em totalitarismo soviético e totalita-
encetar aqui no Brasil?                  rismo fascista. Só para efeito polê-
                                         mico, quero registrar que considero
   Alencar                               isso uma agressão, não pessoal, cla-
   Boa tarde a todos os presentes,       ro, mas a toda uma história que deve
meu nome é Alencar, sou do PT de         ser levada em conta; também deve
Guarulhos. Gostaria de fazer uma         ser considerado o comportamento
pergunta ao prefeito Celso Daniel        efetivo dos capitalistas alemães e
e, se possível, gostaria de ouvir tam-   italianos em relação ao partido na-
bém um comentário do vice-gover-         zista e ao partido fascista.
nador do Rio Grande do Sul. O se-           Creio que mesmo a referência a
nhor propõe que se rediscuta a Fe-       Trotski está deslocada, porque
deração, dando maior ênfase ao           Trotski, que usa o termo “totalitá-
poder local. Não seria necessária        rio” no texto que você leu, fazia
também a criação de mais um ente         uma defesa da União Soviética, di-
federado de nível regional, ou seja,     zia que era preciso uma revolução
não só município, estado e União,        política. Ou seja, “totalitário”, para
mas um ente que representasse as         ele, se referia a um regime político,
nossas regiões, como Sul, Centro-        e não a um sistema social e, como
Oeste e as demais?                       sistema social, ele afirma que o na-
                                         zismo e o fascismo são um prolon-
  Valter Pomar                           gamento do capitalismo num deter-
  Minha primeira pergunta é para         minado momento.
Celso Daniel. Gostaria que ele ex-          Apesar de o tema não ser esse,
plicasse por que adota e como en-        queria entender melhor se você
tende essa idéia de que as alternati-    usou totalitário só no sentido polê-


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                           85
mico ou se é essa mesma a visão           Marx ironiza, em A guerra civil
     que você tem sobre a experiência       na França, quando diz que a Co-
     socialista do século XX.               muna de Paris realizou o sonho de
       Ainda para Celso Daniel: achei       um setor da burguesia que clamava
     bastante interessantes algumas ad-     por um governo barato. Os nossos
     vertências que você fez em rela-       governos são eficientes, são hones-
     ção a tomarmos cuidado com a idéia     tos, são preocupados com o desen-
     de que podemos estar mudando           volvimento econômico, em certo sen-
     tudo e, na verdade, podemos estar      tido não se preocupam em servir a
     dando, sob nova forma, continuida-     um setor da classe burguesa ou a
     de ao velho. E, ao mesmo tempo,        uma fração, mas pensam o desen-
     tanto Rossetto como Celso chama-       volvimento econômico como um todo.
     ram a atenção para a necessidade,         Gostaria de ouvir de vocês um
     em escala local, que pode ser mu-      pouco sobre esse outro lado do pro-
     nicipal ou estadual, de manter a li-   blema. Em que medida os gover-
     gação com os setores dinâmicos da      nos de esquerda podem ser absor-
     economia. Falando em português         vidos pela dinâmica real do capita-
     mais claro, com o grande capital,      lismo existente no Brasil? Pode
     ou pelo menos com setores do gran-     acontecer, não pode?
     de capital. Não estou entrando no         Por último, nessa mesma linha,
     mérito, isso é inevitável. Mas a mi-   eu perguntaria a Ladislau e a
     nha pergunta a partir desses dois      Marina, respectivamente, como as
     pontos é: qual a possibilidade de      instituições financeiras, multilate-
     uma gestão de esquerda, petista, ser   rais, o Banco Mundial, o Fundo
     funcional, ser útil para o grande      Monetário Internacional, vêem as
     capital? Ou seja, para os partidos     questões do poder local e do de-
     de direita, uma gestão de esquerda     senvolvimento sustentável?
     é ruim, isso nós sabemos. Mas e           Tive, nos últimos dois anos, con-
     para o grande capital?                 tato com diversas ONGs e com vá-


86                                                     PODER LOCAL E SOCIALISMO
rios representantes desses organis-    ou seja, fazer as coisas em nível
mos multilaterais, e a minha impres-   local”. Essa simetria, ao menos
são é a de que eles incorporaram       para mim, não parece convincen-
esses dois conceitos, trabalham e      te. Sou entusiasticamente a favor
manipulam esses conceitos. Então,      da primeira hipótese e tenho gran-
minha pergunta não é sobre como        des dúvidas sobre a segunda.
eles vêem essas questões, mas so-        Ou seja, qual é o limite do que se
bre que diferença existe entre o que   pode fazer em plano local? O que
eles dizem e o que nós defende-        impede de fato: o câmbio, a política
mos? Quando o Banco Mundial faz        de juros ou a legislação do traba-
loas ao poder local e uma outra ins-   lho? Claro, a grande limitação do
tituição fala de desenvolvimento       poder local é o limite de localidade.
sustentável, qual a diferença que há   As possibilidades em São Paulo,
nisso conceitualmente, não na prá-     uma área superdesenvolvida e com
tica. Que diferença existe?            problemas próprios das suas con-
                                       tradições, e no Acre – e em outras
  Paul Singer                          áreas do Brasil – são diametral-
  Coincidentemente, minhas preo-       mente diferentes, mas não têm
cupações são muito semelhantes às      nada a ver com o governo federal.
do Valter, acho que minhas pergun-     Acho importante aprofundar essa
tas vão coincidir em grande medi-      questão, que está ligada umbilical-
da com algumas que ele fez.            mente a outra questão que o Valter
  Quero voltar ao dilema que o         propôs, mas que eu quero levantar
companheiro Rossetto apresentou        nos meus termos, que podem até
no fim de sua exposição entre di-      ser idênticos, não sei se são. É pos-
zer “recuso a hipótese de que nada     sível desenvolver uma economia,
pode ser feito a não ser quando ti-    em qualquer dimensão geográfica,
vermos o governo federal” e “re-       num bairro, numa grande cidade,
cuso também a hipótese contrária,      num estado, num país, sem contar


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                        87
com o grande capital? Não a ex-            Coordenador da mesa
     pulsar ou provocar uma fuga de             Há algumas perguntas dirigidas
     capitais, isso seria meio suicida, mas   diretamente aos debatedores e há
     simplesmente sem estar nos preo-         outras mais gerais. Vou lê-las:
     cupando em atraí-lo, em ganhar ou
     manter a sua confiança? É possí-           José Carlos pergunta, especial-
     vel criar uma alternativa, que pode      mente para Ladislau Dowbor,
     ser chamada popular, socialista,         sobre a ALCA , que foi elaborada
     solidária, pouco importa, sem limi-      na gestão George Bush pai e
     tações? Eu estou expondo essa            agora está proposta novamente
     questão com toda a ênfase possí-         por George Bush filho, que com-
     vel. Há um consenso, que não com-        promete a soberania da Améri-
     partilho, de que isso é coisa peque-     ca Latina. Que significa, de fato,
     na, complementar, uma forma po-          esse projeto?
     pular de ajudar os pobres a serem
     um pouco menos pobres. Mas exis-           Joaquim, do Núcleo de Base do
     te também uma possibilidade de di-       PT do Centro [São Paulo, Capi-
     zer que essa é uma forma rival de        tal], pergunta para Marina Silva
     desenvolvimento alternativo, e que       como o mandato de senadora
     depende basicamente daquilo que          pode contribuir para a geração
     Ladislau Dowbor sublinhou, e nada        de renda e empregos no estado
     mais. Não depende de ter a prefei-       do Acre.
     tura ou o governo regional, mas de
     organizar a sociedade. Essas di-           O vereador Geraldo Gouveia, do
     mensões, integrando um pouco             município de Rio Grande da Serra,
     aquilo que foi, de uma forma muito       pergunta para Celso Daniel sobre
     interessante, exposto por vocês, da-     uma questão tão maléfica para uma
     riam uma linda discussão.                cidade como Rio Grande da Serra,
       Obrigado.                              o caso do “corredor polonês”.


88                                                       PODER LOCAL E SOCIALISMO
Antônio da Silva pergunta sobre      za no momento de sua geração,
a atrofia da esfera pública. Na opi-   sob a forma de Fundo de Garantia
nião dos debatedores, levando em       individual de 20%, que beneficia-
conta o desenvolvimento local e o      rá do presidente da República ao
socialismo, que impacto e efeito a     mais humilde dos brasileiros, inclu-
Lei de Responsabilidade Fiscal es-     sive os aposentados.
taria causando nos caminhos da de-
mocracia e do socialismo pelo fato     Para todos os debatedores, per-
de controlar os gastos?              gunta de Roberto. No socialismo
                                     somos todos iguais? Como encarar
  Pergunta de Alípio da Silva: a a diferença de vários níveis que te-
distribuição de renda ou do lucro, mos no Brasil?
diretamente da fonte geradora,
se já não é, será um dos maiores       Cesário, do Movimento Evangé-
agentes da concentração de ren- lico Progressista (MEP), para Celso
da no Brasil. Exemplo, a indús- Daniel: para onde estamos cami-
tria automobilística produzia aqui nhando se vivemos com as contra-
há apenas 15 anos cerca de 12 dições do arcaico com o moderno?
carros por homem e hoje produz Qual o meio-termo, se é que exis-
cerca de 42, gerando um grande te, desse processo?
lucro, beneficiando e privilegian-
do um grupo cada vez menor de          Celso Daniel
pessoas. Quem deve, portanto,          Eu tenho um conjunto bastante
participar da renda ou do lucro é diversificado de questões. Francis-
o governo, para depois distribuí- co da Costa Silva, da Capela do So-
lo de diversas formas.               corro, pergunta “quais as dificulda-
  O que devemos pretender para des de governar com os desmandos
a construção do socialismo e da do governo federal impostos aos
cidadania é a distribuição da rique- governos do PT”.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                       89
As dificuldades são inúmeras. Por     jogar contra a atrofia da esfera
     exemplo, no governo federal, tive-       pública significa valorizar também
     mos um processo de fragilização da       o fundo público, voltado justamen-
     Federação, não só em relação à           te aos direitos das pessoas e, por-
     reconcentração de receitas e à dis-      tanto, à área social. E o que a Lei
     tribuição de atribuições novas, mas      de Responsabilidade Fiscal faz é,
     também às questões relativas à guer-     por um lado, levar a efeito um con-
     ra fiscal, a respeito das quais Miguel   trole sobre os gastos públicos, de
     Rossetto falou bastante aqui. Pro-       uma maneira que em grande me-
     blemas ligados, por exemplo, à es-       dida é positiva, mas, por outro, res-
     tagnação econômica e ao desem-           tringe dramaticamente a possibili-
     prego. Não há apenas queda dos re-       dade de elevação dos gastos per-
     cursos fiscais em nível local, mas       manentes e, portanto, dos gastos
     também aumento das demandas              sociais, enquanto libera completa-
     sociais. A questão é a seguinte: ape-    mente, e até obriga, os gastos re-
     sar dessas dificuldades de gover-        lativos à dívida, ao endividamento.
     nar impostas em função da política       É algo que tem muito a ver com a
     do governo federal, temos conse-         própria orientação do FMI e, por
     guido governar de maneira positi-        tabela, prejudica, sim, a possibili-
     va e apresentar resultados positi-       dade de que tenhamos de garantir
     vos. Creio que nós nos movemos           um fundo público de qualidade e,
     exatamente nessas contradições.          portanto, o combate à atrofia da
        Antônio Nobre da Silva pergun-        esfera pública.
     ta: em função da questão da atrofia         Pergunta de Alencar, do PT de
     da esfera pública, qual o impacto        Guarulhos a respeito da Federa-
     da Lei de Responsabilidade Fiscal        ção brasileira. Alencar, você tem
     sobre ela?                               toda razão, além da maior ênfase
        É um impacto concreto. Concre-        ao poder local, é fundamental que
     to em que sentido? Na verdade,           na rediscussão a respeito da Fe-


90                                                        PODER LOCAL E SOCIALISMO
deração levemos em consideração        Brasil, é muito menos um contras-
pelo menos dois outros níveis ab-      te entre o urbano e o rural, e muito
solutamente fundamentais para a        mais o contraste entre regiões, Sul
vida cotidiana das pessoas, embo-      e Sudeste por um lado e Norte e
ra sejam intermediários. Um dos        Nordeste e, eventualmente, Centro-
níveis é o que você citou, das ma-     Oeste, por outro.
crorregiões aqui no Brasil. Podem         Há um outro nível, ao qual você
ser outras regiões diferentes des-     não se referiu, mas que eu gosta-
sas que temos instituídas, mas Nor-    ria de mencionar aqui, que é um
deste, Centro-Oeste, Norte, Su-        nível supramunicipal ou subesta-
deste, Sul têm problemáticas es-       dual, tanto no nível das regiões no
pecíficas. Isso está completamen-      interior de um determinado esta-
te largado às traças. Já existiu a     do, sejam elas rurais ou urbanas,
Sudene [Superintendência de De-        como no nível da gestão metropo-
senvolvimento do Nordeste] como        litana. Isso está completamente
uma referência. Temos de repen-        sem equacionamento, de tal ma-
sar uma outra maneira de organi-       neira que para repensar a questão
zar essas macrorregiões, partindo      federativa é necessário considerar,
fundamentalmente dos estados e         a meu juízo, pelo menos cinco ní-
não tanto ou não apenas do gover-      veis diferentes: união, estados, mu-
no federal, como foi a nossa ex-       nicípios; no meio da união e dos
periência anterior do nacional-        estados, as grandes regiões; no
desenvolvimentismo.                    meio dos estados e municípios, as
  Imagino que até agora pouca coi-     regiões que aí se colocam. Mas
sa tenha sido feita a esse respeito,   não considerar esses dois outros
e acho que estamos muito atrasa-       níveis como níveis que tenham de
dos nesse aspecto. Porque sabemos      exigir, por exemplo, eleições, cons-
muito bem, por exemplo, que o con-     tituir um governo. Isso não faz
traste riqueza–pobreza, aqui no        parte da nossa história da Federa-


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                       91
ção e não seria razoável propor-        Quero dizer o seguinte, Valter:
     mos nesse momento. Acho que faz       você tem razão em relação à mi-
     sentido, sim, repensarmos a ques-     nha citação de Trotski, é uma cita-
     tão da gestão metropolitana a par-    ção deslocada do conjunto do pen-
     tir de baixo, não a partir de cima,   samento de Trotski sobre a União
     como na época da ditadura mili-       Soviética, que vai no caminho a que
     tar, e como ainda ela está propos-    você mesmo se referiu, a história
     ta em função da Constituição de       da revolução política etc.
     1988. A mesma coisa é verdadei-         Você tem razão em relação à
     ra em relação às macrorregiões.       maneira como me coloquei aqui,
        Deixei para o fim as questões      dá a entender que eu estava fa-
     mais espinhosas. Em primeiro          zendo uma identificação entre o to-
     lugar, sobre as questões mais         talitarismo soviético e o totalitaris-
     complicadas, de Valter Pomar e        mo fascista ou nazista, e me
     do professor Paul Singer, queria      penitencio porque não tive tempo
     dizer que eu sabia que, ao fazer      para poder discriminar um pouco
     uma exposição que começou do          melhor esses conceitos. Efetiva-
     mais global, do mais abstrato em      mente, acho que seria uma violên-
     termos do socialismo, para o mais     cia da minha parte fazer uma afir-
     específico, estava por um lado        mação que coloque tudo isso no
     perdendo a oportunidade de falar      mesmo saco, porque relações his-
     mais concretamente sobre desen-       tóricas, que foram inclusive co-
     volvimento local – provavelmen-       mentadas aqui por Max Altman,
     te não aproveitei a oportunidade      são completamente diferentes em
     para falar mais sobre experiên-       um caso e no outro; relações con-
     cias concretas de desenvolvimen-      cretas construídas na sociedade
     to local –, e por outro lado estava   são completamente diferentes em
     abrindo um flanco para ser dura-      cada caso. Seria realmente uma
     mente criticado.                      agressão, uma violência fazer uma


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pura identificação entre totalitaris-   respeito provém exatamente do
mos, como se eles fossem absolu-        fato de que me senti extremamen-
tamente indiferenciados.                te agredido por práticas ditas de
  Só que nesse ponto queria res-        esquerda dentro do PT que car-
guardar algo para mim, o que sig-       regavam com todas as suas con-
nifica, portanto, que eu preciso        figurações esse gérmen de totali-
manter o que havia comentado ini-       tarismo de esquerda, que esteve
cialmente porque essa é a minha         presente nas experiências do so-
convicção. A despeito dessas dis-       cialismo real, e me sinto mais do
tinções todas e das razões que          que tranqüilo, mais do que segu-
você tenha sobre o que ponderou,        ro, em fazer as minhas pondera-
continuo a manter minha conside-        ções a respeito do fato de que,
ração a respeito do socialismo          como eu havia comentado, a de-
real essencialmente como uma            mocracia, os direitos, a cidadania
forma de sistema totalitário, em-       têm de ser valorizados acima de
bora bastante distinta das formas       tudo. E só é possível pensar num
fascista e nazista. Continuo a sus-     sistema socialista, numa socieda-
tentar essa idéia aqui porque, em-      de socialista a partir dos referen-
bora isso possa parecer para mui-       ciais de alargamento da radicali-
tos que se afirmam da tradição so-      zação da democracia. O sistema
cialista um tipo de agressão, o que     totalitário, inclusive o sistema so-
acontece, na verdade, é que fiz a       viético, se erige, insisto, a partir das
menção a propósito do fato de que       ruínas da idéia de direitos do ho-
essa reflexão está muito ligada à       mem, da idéia de democracia.
minha prática concreta, não no PT          Por isso, pessoalmente, acredito
no nível mais geral, mas no PT de       que buscar uma alternativa socia-
Santo André. E quero dizer para         lista significa, sim, resgatar toda a
os companheiros e companheiras          tradição socialista, todo o pensa-
que a minha consideração a esse         mento socialista, particularmente


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                            93
dos séculos XIX e XX, tendo em          concordo, porque acho que ela está
     conta também os males e proble-         sintonizada com essa questão da
     mas que foram causados por um           valorização e do alargamento da de-
     certo tipo de socialismo, em espe-      mocracia, era exatamente a de su-
     cial aquele que foi implementado de     perarmos uma análise que faz par-
     maneira concreta.                       te da tradição da análise marxista:
       Sei que isso me põe diante de um      se estamos dentro do sistema ca-
     problema seriíssimo: o que colocar      pitalista, então tudo o que se fizer
     no lugar? Estava tentando desen-        no interior do sistema capitalista é
     volver alguns argumentos e algu-        funcional ao capital. A menos que
     mas referências para poder colo-        sejam ações políticas que visam or-
     car algo no lugar que, resgatando       ganizar a população para golpear
     ideais e referências socialistas, não   esse sistema no seu centro, e por-
     tenha que cair, se espelhar e bus-      tanto colocar um outro Estado, o
     car práticas e elementos que eu         Estado socialista no seu lugar.
     creio que podem, na verdade, nos           O que Francisco de Oliveira ten-
     colocar numa situação muito com-        ta fazer – e acho isso muito produ-
     plicada, que é reproduzir erros que,    tivo, muito positivo – é demonstrar
     a meu ver, a história já demonstrou     que no interior do sistema capita-
     que foram importantes do ponto de       lista existem linhas de força, inicia-
     vista da esquerda.                      tivas que têm sido tomadas ao lon-
       Por isso é que, por exemplo, ao       go de várias décadas e não apenas
     falar em algumas referências de so-     por meio das nossas experiências
     cialismo e buscar vinculá-las à         de governo local, que implicam uma
     questão do desenvolvimento local,       contradição não excludente, mas
     fiz menção a algumas idéias traba-      dialética, como movimento do ca-
     lhadas por Francisco de Oliveira em     pital. Não que elas não possam ser
     seu livro Os direitos do antivalor.     apropriadas pelo movimento do ca-
     A preocupação dele, com a qual          pital, isso aconteceu no período de


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auge da social-democracia, eviden-     é o mercado que dita as regras –,
temente. Mas reduzir o que acon-       se qualquer ação nesse campo for
teceu apenas à mera apropriação        considerada funcional ao movimen-
pelo capital do que foi inaugurado,    to do capital, então toda e qualquer
nos termos de Francisco de Olivei-     administração petista ou não petista
ra, a partir da criação desse fundo    será funcional de alguma maneira.
público e desse alargamento da es-       Funcional ao capital de que ma-
fera pública, creio que é uma for-     neira? Não precisa dar dinheiro
ma de teorizar que não cabe a nós,     para o capital privado, por meio da
a menos que sejamos obrigados a        guerra fiscal, da renúncia fiscal etc.
resgatar, em termos bastante tradi-    Pode ser funcional ao capital na
cionais, a tradição socialista.        medida em que essa administração
  Digo isso também porque tem a        garantir, nos termos marxistas, con-
ver com a outra questão que Valter     dições mais adequadas de reprodu-
Pomar apresenta. Não acho que          ção da força de trabalho. Se ficar-
seja exatamente a mesma questão        mos presos a essa forma de teori-
apresentada pelo professor Paul        zar, qualquer gestão nossa sempre
Singer, pelo menos não de acordo       vai ser funcional ao capital. Não
com o meu entendimento. Então,         vou responder à questão partindo
tento responder à questão do Valter:   desse ponto de vista, porque senão
qual a possibilidade de uma gestão     ficamos num círculo fechado, em
petista ser funcional ao grande ca-    que não há saída a não ser a revo-
pital? Isso pode acontecer ou não?     lução por excelência. Mas acho que
  Respondo a você o seguinte: de-      uma gestão petista, uma gestão
pende. Se o referencial for o de que   pretensamente de esquerda pode
qualquer coisa que se faça do pon-     ser funcional ao grande capital, dei-
to de vista econômico, no sistema      xando de lado essa outra formula-
em que nós vivemos – por estar-        ção teórica, digamos assim. Ela
mos imersos num sistema em que         pode ser funcional ao grande capi-


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                         95
tal, sim, se for capturada. Miguel        Creio que é possível, se trabalha-
     Rossetto estava falando, se enten-      mos com referências que já foram
     di bem, sobre experiências nossas       discutidas aqui. Eu falei bem rapi-
     que têm sido sensíveis, por exem-       damente sobre isso, mas Marina
     plo, à questão da guerra fiscal, ou à   Silva citou uma série de exemplos
     da renúncia fiscal, ou a outros pro-    concretos, Rossetto também falou
     gramas, no final das contas, que        a respeito, e a mesma coisa fez
     podem ser entendidos, na linha do       Ladislau Dowbor. Quando fazemos
     Banco Mundial etc., como tipica-        o que eles expuseram aqui, não
     mente compensatórios, de comba-         acho que corremos qualquer tipo de
     te à pobreza. Acho que pode, e nós      risco de ter uma gestão local fun-
     precisamos estar atentos para exa-      cional ao grande capital, nesse sen-
     tamente esse risco.                     tido que estamos colocando agora,
       O que fazer para nos afastar des-     ou seja, toda ela voltada, indepen-
     se risco? Não estaremos expostos        dentemente da nossa visão ou in-
     a ele se tivermos um modelo de ges-     tenção a respeito, para a valoriza-
     tão e desenvolvimento local basea-      ção, o movimento, a acumulação do
     do em outros princípios, diferentes     capital. Acho que estamos cons-
     daqueles que movem pura e sim-          truindo exatamente o oposto: as ba-
     plesmente o mercado, particular-        ses para criar condições para com-
     mente o auto-regulador; e aquilo        bater a economia de mercado
     que estimula o funcionamento do         como tal; um outro sistema, um sis-
     mercado auto-regulador, na práti-       tema socialista com outros refe-
     ca, por exemplo, é o que tem acon-      renciais a partir de baixo, de expe-
     tecido aqui no Brasil com a guerra      riências concretas.
     fiscal, a renúncia fiscal, coisas do      Valter Pomar não fez a pergunta
     gênero. Isso joga mais água no          para mim, mas para Ladislau e
     moinho da idéia do mercado auto-        Marina, mas gostaria de falar so-
     regulador, do paradigma neoliberal.     bre essa questão do Banco Mun-


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dial, do FMI etc., o que diferencia a   do à maneira liberal, ou seja, go-
nossa prática da deles e o que dife-    vernança entendida como o gover-
rencia nossos discursos.                no não sendo o governo eleito e
  Não sou especialista nesses re-       tudo mais, mas o conjunto de ou-
latórios, Ladislau os conhece muito     tros setores da sociedade; no caso
mais. Não me debruço para ficar         de boa parte delas, e em textos con-
lendo esses relatórios, mas há mui-     cretos, com certeza isso significa
ta diferença entre o nosso discurso     privatização. E significa também as
e o deles. Eles tecem loas, por         empresas privatizadas, afinal de
exemplo, à questão da participação.     contas, serem também importantes
Agora, a maneira como colocam o         tomadoras de decisão, assim como
tema da participação é extrema-         o governo local. Descentralização
mente genérico. Cabe tudo. E cabe       entendida como privatização.
particularmente, por exemplo, en-         Isso é algo concreto, que está em
tender participação comunitária         textos desses organismos mundiais.
como participação de ONGs, muitas       Inclusive a forma como eles abor-
vezes financiadas pelo próprio Ban-     dam a questão da pobreza. Tudo
co Mundial ou pelos organismos in-      bem que a pobreza está colocada
ternacionais que eles travestem de      nos textos deles, eu tenho dúvida
participação comunitária. Cabe, por     de que eles consigam sair dos tex-
exemplo, também um conceito com         tos para uma coisa um pouco mais
o qual eles trabalham, muito caro a     concreta, para além dos textos, mas
eles: o de governança. É uma idéia      eles trabalham com a pobreza...
– não exatamente um conceito.             Creio que é fundamental traba-
Haja possibilidades de diferentes in-   lharmos com outro registro con-
terpretações a respeito desse con-      ceitual, que na verdade é político,
ceito de governança... Não tenho        porque é outro registro ideológico,
dúvida de que uma boa parte delas       o da inclusão social, e não o da po-
trabalha com esse conceito pensan-      breza. O necessário não é comba-


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                        97
ter a pobreza com políticas com-       cado e uma determinada socieda-
     pensatórias, mas garantir a inclu-     de. Possível é, particularmente se
     são social.                            nós, em vez de trabalharmos com
       Então, acho que mesmo no nível       a idéia de pura e simplesmente ri-
     do discurso nós temos diferenças       far o grande capital, tivermos con-
     que são importantes, que podem e       dições de estabelecer uma relação
     devem ser trabalhadas por nós. O       com o grande capital que interesse
     que não significa que não haja es-     ao território – muito na linha da preo-
     paços, como foi exposto muito bem      cupação que Rossetto levantou no
     pela senadora Marina, espaços de       final da sua exposição –, se conse-
     contradições que podem perfeita-       guirmos apropriar aquilo que é pos-
     mente ser apropriados por nós,         sível na relação com o grande ca-
     mesmo que respondam, neste ou          pital para benefício da preservação,
     naquele caso, a interesses das gran-   da recuperação do nosso território
     des multinacionais ou desses orga-     e das relações sociais do nosso ter-
     nismos internacionais.                 ritório. Mas é possível, particular-
       Pegando por um lado um pou-          mente, se trabalharmos com uma
     quinho diferente, para terminar        outra orientação que, sem abrir mão
     essa questão, é possível desenvol-     do que existe ou pode existir de di-
     ver uma economia, na cidade, no        nâmico em termos da economia, dê
     estado, no país, sem contar com o      ênfase e prioridade ao pequeno em-
     grande capital, ou seja, sem nos       preendimento e a formas alternati-
     preocupar em atraí-lo? Eu acho que     vas de produção.
     é possível, mas não acho que seja         Isso é muito genérico, mas que-
     viável em todos os casos, porque       ria dizer, pelo menos até o ponto
     quando administramos localidades       em que tenho experiência, conhe-
     o fazemos com uma certa história,      cimento, que há experiências con-
     uma estrutura já adquirida, uma        cretas de desenvolvimento local
     configuração de seu próprio mer-       baseado na pequena produção em


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alguns outros lugares do mundo,              Exponho ao senhor, professor
particularmente no Norte da Itália,       Paul Singer, minha avaliação a res-
e que são experiências extrema-           peito da questão da região do Gran-
mente dinâmicas. Quando falamos           de ABC nesse momento. Essa re-
em dinamismo, não estamos falan-          gião sempre foi, principalmente a
do em ter de estabelecer em cada          partir das últimas quatro, cinco dé-
localidade um pólo de indústria de        cadas, extremamente dependente
informática ou algo do gênero. É          da grande empresa multinacional,
outra coisa. Indústrias tidas como        particularmente do setor automoti-
tradicionais podem e costumam             vo. Continua a ser; tanto isso é ver-
ser extremamente dinâmicas. Por           dade que, em função de uma ligei-
exemplo, a indústria do vestuário,        ra retomada do crescimento eco-
ou outras indústrias, na região italia-   nômico, a região assiste a uma re-
na da Emilia Romagna, baseadas            dução do desemprego e a uma li-
todas elas efetivamente em peque-         geira retomada do emprego indus-
na produção, por meio de uma con-         trial e também nos outros setores.
figuração de desenvolvimento local        Não dá para rifar o grande capital
muito baseada em cooperativas,            e a relação com o grande capital.
mas também na cooperação entre            Não dá. Mas se eu pensar em pers-
os pequenos empreendimentos, na           pectiva o que está na minha preo-
criação de agências de desenvolvi-        cupação como prefeito de Santo
mento que passam a prestar servi-         André e como pessoa que está aqui
ços aos pequenos empreendimen-            discutindo com vocês essas ques-
tos, que são equivalentes àquilo que      tões sobre a relação entre desen-
só uma grande empresa tem con-            volvimento local e socialismo, não
dição de prestar. Se as coisas fo-        dá meramente para repetirmos a
rem deixadas apenas à livre força         mesma relação que foi estabeleci-
do mercado auto-regulador, é per-         da no passado, de grande depen-
feitamente possível.                      dência da região em relação ao


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                           99
grande capital. O que precisamos       do, pensando que a cada ação que
      é trabalhar ao mesmo tempo a cria-     estamos levando a termo estamos
      ção de um outro tecido econômico,      ou aproveitando uma oportunidade,
      baseado sobretudo no pequeno em-       ou deixando de aproveitar uma
      preendimento, na criação de redes      oportunidade, para concretizar de
      horizontais de relação entre peque-    verdade princípios transformado-
      nos empreendimentos que possam         res, de radicalização da democra-
      fazer com que, em perspectiva, te-     cia, princípios socialistas. Dessa for-
      nhamos condição de ter no futuro       ma, acho que estamos dando uma
      uma outra região do grande ABC,        pequena contribuição dentro desse
      não mais tão dependente do gran-       conjunto de coisas que foram ex-
      de capital, e eventualmente até, no    postas aqui pela mesa.
      futuro, sem nenhuma dependência,
      em função de iniciativas que par-        Marina Silva
      tam exatamente da esfera local.          Vou começar pela pergunta do
      Acho que isso será perfeitamente       Valter Pomar, sobre a diferença
      possível – mais do que possível,       entre nossa percepção e a do Ban-
      acho necessário –, sem abrirmos        co Mundial quanto ao desenvol-
      mão dos nossos valores, dos nos-       vimento sustentável e às questões
      sos princípios. Se trabalharmos ima-   sociais. Considero que essa é uma
      ginando que não estamos fazendo        questão de fundo. Primeiro, nós
      gestões locais apenas para melho-      temos um ideal, um propósito de
      rar a qualidade de vida da popula-     vida associado a todos esses va-
      ção ou apenas para pragmaticamen-      lores mencionados aqui. Não que-
      te ter governos bem avaliados do       ro emitir um juízo de valor com
      ponto de vista da população e da       relação aos técnicos do Banco
      opinião pública.                       Mundial, que são pessoas como
        Se trabalharmos pensando tam-        nós, que têm um emprego e que
      bém nessas coisas, mas, sobretu-       vão para a África, para o Brasil,


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para a Amazônia, se sensibilizam      Era do Saber, que é a que estamos
e até lutam para que o Banco te-      vivenciando. No entanto, os que
nha políticas sociais. Refiro-me      detêm a informação, a técnica,
aqui, então, ao Banco como insti-     não produziram a devida ética
tuição. E a instituição Banco Mun-    para alavancar os 80% que estão
dial entrou nessa discussão por       ficando para trás. Se alguma uto-
outros motivos. Seu objetivo é a      pia há, é lutar por essa inclusão,
sustentação, a manutenção do sis-     para que não aconteça aquilo que
tema. Ela tem medo da ruptura,        Cristóvam Buarque chama de bi-
dessa exclusão global, de mais de     furcação da raça humana, quan-
2 bilhões de seres humanos viven-     do teremos seres humanos de pri-
do com menos de 2 dólares por         meira e de segunda classe – tal-
dia. No Brasil, essa é a realidade    vez isso já esteja acontecendo.
de 78 milhões de pessoas. Viver         Então, o Banco Mundial, quan-
com menos de 1 dólar é a reali-       do examina o processo com rela-
dade de 43 milhões de brasileiros.    ção aos problemas sociais e ao
O analfabetismo, no Brasil, atin-     próprio desenvolvimento sustentá-
ge 15 milhões de jovens.              vel, ele tem uma visão centraliza-
  Quando pensamos nessa situa-        dora, voltada para as empresas. E
ção, o fazemos pelo viés da in-       nós temos uma visão descentra-
clusão social, pensando no futu-      lizadora, uma visão política que
ro. Sebastião Salgado, entrevista-    considera o processo uma cons-
do pela TV Cultura, dizia que en-     trução coletiva. Nesse ponto, te-
tre 15% e 20% da humanidade           mos de ter em mente que nada é
criou uma fuga para o futuro dei-     tão hermeticamente fechado que
xando para trás 80%. Esses 20%        não admita contradição. Entendo
dos seres humanos sobre o pla-        que, na dialética que Marx nos
neta, social, cultural, emocional e   ensinou, não há como criar um sis-
espiritualmente, construíram a        tema que não contenha a sua pró-


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                    101
pria destruição como vetor inter-      pobres não são formadores de
      no. Creio que o Banco Mundial          opinião, mas a classe média é, e
      vive essa contradição. Nós tam-        ela também está empobrecendo,
      bém vivemos. Quando pensamos           e isso é um perigo muito grande.
      a inclusão, dentro do sistema a que    Por quê? Se os formadores de opi-
      estamos submetidos, com certeza        nião se juntarem com os que “não
      existe todo esse processo do sis-      são, não sabem, não têm”, como
      tema maior, capitalista, que se mis-   diz dom Mauro Morelli, pode-se
      tura com os nossos ideais e as nos-    criar um problema grave para o
      sas utopias. Mas estamos em uma        sistema. O Banco Mundial segue
      briga que, a meu ver, é muito me-      essa perspectiva.
      nos de estrutura e mais de consciên-     A nossa perspectiva é a de uma
      cia. Refiro-me a uma afirmação         sociedade sustentável, de acordo
      de Ladislau Dowbor de que talvez       com aquela sustentabilidade que
      mais importante do que ganhar as       mencionei – enfatizo que é uma
      estruturas e chegar em Brasília        sustentabilidade cultural.
      com a faixa seja ganhar o cora-          Vivemos hoje a idéia do global,
      ção e as mentes das pessoas para       da diluição generalizada, enfim,
      um projeto que não é só econômi-       de tudo que é possível imaginar
      co, mas também cultural, social, de    com a comunicação em tempo
      satisfação, de valores, de propósi-    real, graças à qual as índias do
      tos – de novos propósitos.             meu estado podem ver a garota
        Então, a motivação do Banco          de Ipanema. Mas a garota de
      Mundial é o medo. Participei de        Ipanema não vê as índias. Então,
      um seminário em Washington no          uma cultura é diluída e dissemina-
      qual eles diziam clara e textual-      da, mas outras culturas não são
      mente que era necessário fazer         repassadas para que sejam pen-
      alguma coisa em relação aos po-        sadas por outros segmentos. É isso
      bres e à classe média, porque os       que está faltando nessa relação,


102                                                     PODER LOCAL E SOCIALISMO
que não é mais interdisciplinar, mas   contribuir para a geração de ren-
transdisciplinar, porque “trans”       da e empregos no estado do Acre,
passa todos os sentidos da reali-      gostaria de dizer o seguinte: creio
dade. Enquanto tivermos uma vi-        que não o mandato diretamente,
são fragmentária da realidade, tudo    mas ele juntamente com o gover-
irá continuar como está. E creio       no do estado pode fazer algo pela
que as agências multilaterais têm      distribuição de renda e pela gera-
essa perspectiva.                      ção de emprego no Acre. Quando
  No Acre, há a possibilidade de       cheguei a Brasília, um quilo de
termos disponível um empréstimo,       borracha custava 30 centavos, o
que vai ser discutido pelo Senado,     que gerava uma renda anual de 600
de 250 milhões de dólares. Não sei     reais para uma família de serin-
como o Banco Interamericano, nes-      gueiros. O que salva esse serin-
se caso, está pensando isso essen-     gueiro é que ele tem como criar
cialmente, mas nós pensamos em         galinhas, porcos, caçar e pescar
realizar o sonho de Chico Mendes:      para viver. De outro modo ele não
as estradas com estudo de impacto      teria como sobreviver com 600
ambiental e a demarcação das áreas     reais por ano, porque os artigos
indígenas – e isso já está aconte-     que ele não tem condições de pro-
cendo. É uma proposta de desen-        duzir (óleo, sal etc.) custam uma
volvimento local. É ridículo imagi-    fortuna no seringal.
nar que podemos destinar milhões         Hoje o seringueiro do Acre rece-
de reais para uma multinacional al-    be 1 real e 30 centavos por um qui-
tamente lucrativa e não somos ca-      lo de borracha. Isso significa muito
pazes de colocar esse dinheiro nas     na vida daquelas pessoas. Quando
mãos das comunidades, para refor-      eu assumi o mandato de senadora
ma agrária, agricultura etc.           em 1995, havia 1.500 famílias vi-
  Ao companheiro que perguntou         vendo do extrativismo no Acre.
como o mandato de senadora pode        Este ano, a projeção é de 6.500 fa-


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                       103
mílias. Uma lata de castanha, que       nho de poder, que permite algumas
      custava 1 real e 50 centavos, este      conquistas. Certo dia fomos ao
      ano custa 4 reais. Isso altera signi-   Banco de Desenvolvimento da
      ficativamente a renda para essas        Amazônia, o Basa, que financia
      pessoas. Nos outros governos, elas      grandes projetos para o desenvol-
      não tinham barco para escoar a          vimento da Amazônia. Ora, os se-
      produção, escolas, postos de saú-       ringueiros movimentaram aquela
      de. Hoje nosso governo, junto com       economia durante cem anos, che-
      sindicatos, ONGs, associações e co-     gando a representar 40% das ex-
      operativas, está trabalhando com        portações do país; eram os mais
      tudo isso.                              pobres, nunca haviam entrado em
        Animados com esses resultados,        um banco para conseguir crédito.
      ousamos, inclusive, um neologismo:      Entramos no banco – o governa-
      quando pessoas que moram em             dor do Acre, Jorge Viana, o re-
      uma cidade têm acesso a bens,           presentante do governador do
      serviços e condições para desen-        Amapá, João Capiberibe, e eu – e
      volver suas potencialidades, nós as     ficamos das 9 horas até às 16 ho-
      consideramos cidadãos no feliz          ras e 30 minutos discutindo uma
      exercício da cidadania. No Acre,        proposta chamada Prodex, a pri-
      chamamos essa cidadania de              meira linha de crédito para os
      florestania, porque, na verdade,        extrativistas da Amazônia. Hoje,
      somos um povo que mora dentro           são milhares e milhares de pes-
      de uma floresta.                        soas que podem comprar uma
        Queremos criar um novo concei-        tarrafa, uma canoa, um motor de
      to em relação ao que é qualidade        popa, qualquer coisa para melho-
      de vida, de seres humanos que vi-       rar o seu sistema de produção e
      vem numa certa harmonia com o           a sua vida.
      seu hábitat. O trabalho como se-          Quando estive na Itália, em 1986,
      nadora representa ter um pouqui-        me perguntaram que agenda eu


104                                                      PODER LOCAL E SOCIALISMO
queria que preparassem. Respon-         treinamento para os seringueiros –
di: “Quero falar com a direção da       por enquanto do Acre, embora a
Pirelli, porque tenho algumas idéias    idéia seja ampliar esse processo.
para apresentar a eles”. O padre          Naquela mesma viagem à Itália,
que estava me ajudando achou um         fomos a uma reunião com os fa-
tanto esquisito: “Esse pessoal do       bricantes de móveis da cidade de
mato é meio doido”. Fizemos a           Como, que são os melhores do
reunião, apresentamos a idéia do        mundo – uma peça feita por eles
“pneu verde”: a Pirelli, multinacio-    custa não sei quantos mil dólares.
nal européia, italiana, criaria uma     Eles montaram um auditório com
linha de pneus com 100% de bor-         vários empresários e operários das
racha natural, comprando a maté-        fábricas. Foi muito interessante,
ria-prima dos seringueiros da Ama-      eles fizeram uma obra de arte
zônia. Tínhamos por justificativa o     belíssima. Era um tronco enorme,
fato de que eles nos cobravam pre-      todo sapecado, escrito “Salvem a
servar a Amazônia, mas não fixa-        Amazônia”. Eu me senti a própria
vam um preço para a borracha e a        queimadora de floresta. Entrei já
compravam da Malásia. Fiz uma           de cabeça baixa, humilhada. Aí
exposição sobre essa idéia, os di-      pensei: “Engraçado, ‘salvem a
retores da Pirelli me recomendaram      Amazônia’ para cima de nós, ja-
conversar com o presidente da           caré? Deixa eu conversar um pou-
Pirelli no Brasil. Eu o convidei a ir   co com esse povo”. Propus o se-
ao Acre, ele conversou com os se-       guinte raciocínio: se eles queriam
ringueiros e há mais de três anos a     nos ajudar a salvar a Amazônia,
Pirelli compra nossa borracha. Já       então deviam parar de comprar a
está no mercado o pneu Xapuri, o        nossa madeira em toras, porque
“pneu verde” feito de borracha          uma árvore de mogno, lá no serin-
100% nacional, e a Pirelli ainda tra-   gal, custa 20 reais. Uma árvore de
balha no projeto de qualificação e      mogno rende de seis a oito metros


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                      105
cúbicos de madeira. Cada metro          processar sua própria matéria-pri-
      cúbico de madeira chega ao porto        ma do que vendê-la a preço de
      de Paranaguá a 800 reais e, na          banana para depois comprá-la a
      Europa, é transformado em camas         preço de ouro. Quando nós com-
      belíssimas; cada metro cúbico dá        preendermos o valor de nossa
      pelo menos oito a dez camas de          biodiversidade... se o suor do nos-
      mogno, cada uma a 3 mil dólares.        so sapo está rendendo 30 milhões
      Se essa cama fosse produzida no         de dólares para uma empresa
      Brasil, o seringueiro não teria ne-     multinacional, imaginem quanto
      cessidade de derrubar não sei           pode render o nosso próprio suor!
      quantas árvores para comprar um            Precisamos aprender a identifi-
      quilo de sal, uma lata de leite e al-   car os espaços que nos cabem e
      gumas espoletas para caçar. Eles        criar meios de ocupá-los. Acho
      se sensibilizaram e nos doaram          que é isso que a nossa experiên-
      uma fábrica em Xapuri, levaram          cia local está fazendo, e qualquer
      pessoas para serem treinadas na         projeto nacional que não conside-
      cidade de Como, ainda estão man-        re essas experiências locais será
      dando aposentados para treinar          incompleto. Isso não significa
      mais pessoas, e nós criamos um          mitificar tais experiências em de-
      pólo moveleiro que está sendo           trimento do conhecimento, da sis-
      inaugurado não apenas com essa          tematização, da contribuição que
      fábrica, mas com outras pessoas         os pesquisadores e os cientistas
      e investidores, inclusive aqui de       têm a oferecer a esse processo.
      São Paulo.                              Trata-se apenas de tentar demons-
        Acho que existem elementos            trar que de situações muito sim-
      desse desenvolvimento local que         ples, às vezes, podem sair respos-
      podemos explorar. Porque o ve-          tas muito complexas, até porque,
      lho modelo se rompe quando as           com certeza, a simplicidade e a
      pessoas percebem que é melhor           obviedade são o disfarce da sabe-


106                                                      PODER LOCAL E SOCIALISMO
doria. Isso aprendi com os índios       Miguel Rossetto
e com os seringueiros, que não pa-      Primeiro, o tema da Federação.
ram de nos ensinar, inclusive no      Nossa experiência tem mostrado
governo do estado do Acre.            que há uma exigência muito gran-
  Tiro o chapéu para o Rio Gran-      de de aprofundar esse debate so-
de do Sul, nossa referência em or-    bre a Federação. Penso hoje que
çamento participativo. Propus ao      esse tema deve ser identificado
nosso governador, Jorge Viana,        como elemento democratizador do
fazer o orçamento social. Ele con-    Estado brasileiro, diante da dimen-
cordou. Temos um núcleo duro de       são e da natureza do Brasil. Vive-
pobreza com 30 mil famílias que       mos um processo brutal de
vivem com menos de 1 dólar por        desconstituição da Federação as-
dia. Com nosso programa social,       sociado a um processo de centra-
nosso orçamento social, pretende-     lização nacional, do ponto de vista
mos atender 18 mil famílias este      financeiro e, obviamente, político.
ano. E queremos chegar até o fi-      Há uma reversão no último perío-
nal do governo, em 2002, com as       do em relação ao movimento da
30 mil famílias sendo atendidas       Constituição de 1988, que descen-
com bolsa-escola, bolsa-primeiro      tralizou recursos e, portanto, foi um
emprego, bolsa-trabalho, renda        movimento democrático que des-
mínima, bolsa-primeira infância. É    centralizou as estruturas de poder,
um programa estrutural, que não       repartindo ou compartilhando esse
é assistencialismo, mas transferên-   poder de uma forma mais equili-
cia de renda associada à educa-       brada nas suas obrigações e com-
ção e a um projeto de desenvolvi-     petências. E há um movimento pe-
mento que possa realizar, mesmo       sado de retirada desses poderes,
que de forma apressada, um pe-        por exemplo, no que se refere à
dacinho dessa utopia que nós con-     competência dos estados quanto à
tinuamos a projetar no futuro.        tributação. Tirar, hoje, competên-


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                       107
cia de tributação, ou o espaço de      mara revisional do que deveria ser
      autonomia de tributação dos esta-      uma Assembléia do Povo, que é a
      dos e transferir para a esfera da      Câmara Federal. E nós também
      União, não há dúvida, representa       temos brutais distorções no que
      uma diminuição brutal de poder po-     deveria ser a nossa Assembléia
      lítico real dos estados. E, conse-     Popular Nacional, por conta das
      qüentemente, um processo enor-         diversas distorções na represen-
      me de centralização de poder po-       tação parlamentar.
      lítico, com gravíssimas conse-           Penso que cada vez mais deve-
      qüências para um país com as di-       mos aprofundar o tema da Federa-
      mensões do nosso.                      ção, compartilhar, constituir opiniões
         Então, pensar o tema da Fede-       sobre ele. Um tema que o nosso
      ração como elemento de democra-        partido tem pautado de uma forma
      tização do país, pensar melhores       positiva. Creio que a idéia da Fe-
      relações entre o que chamamos de       deração como fragmentação de
      entes federados – municípios, es-      poder – fragmentação no sentido
      tados, União –, nos abrir para pen-    de repartição de poder – é um ele-
      sar como aquilo que tu propões,        mento democrático importante a
      que alguns espaços já fazem par-       ser perseguido. Evidentemente, não
      te de uma dinâmica política real.      se trata aqui de recompor as ve-
      Por exemplo a região Sul e a re-       lhas políticas regionais.
      gião Nordeste.                           Quanto à questão do grande ca-
         Mas é óbvio que há uma grande       pital, Valter, já que o próprio Lenin
      distorção institucional na represen-   dizia em vida que tínhamos de nos
      tação nacional. Por exemplo, só        relacionar com o grande capital, e
      existe uma razão de ser do Sena-       com o grande capital internacio-
      do, que é a competência para li-       nal, falo um pouco inclusive de uma
      dar com os temas específicos da        relação não só estratégica ou teó-
      Federação, e não como uma câ-          rica, mas bem concreta, da vida.


108                                                      PODER LOCAL E SOCIALISMO
É evidente que não temos um pro-      mente prejudicial aos interesses
grama que se organiza para aten-      do Estado.
der a interesses do grande capital.     Mas não há quase preconceito
Nosso programa estratégico não        ideológico. Dou alguns exemplos
se organiza a partir dessa referên-   que muitas vezes nos surpreendem,
cia, e sim a partir da democratiza-   como a questão tecnológica.
ção de um processo de constitui-      Estamos, no Rio Grande do Sul, num
ção de riqueza e, portanto, guarda    processo de negociação com uma
relação com a visão antimonopo-       empresa que não é pequena, cha-
lista da economia. E procuramos       mada Motorola. E a negociação que
potencializar, estimular na relação   estamos produzindo com essa em-
concreta, relações privilegiadas      presa é um processo de transferên-
com esses setores.                    cia de tecnologia. Estamos consti-
   A relação que nós temos, e pen-    tuindo um centro de microeletrônica,
so que é uma relação estratégica      de prototipagem de chips etc. com
que dá algum conforto, embora não     a Motorola. Estamos num proces-
resolva todas as questões, é de na-   so intenso de discussão e negocia-
tureza muito pragmática. Caso a       ção. É uma discusão ampla, que
caso, uma equação econômica,          envolve as esferas estadual, muni-
tecnológica, ambiental, social.       cipal e as universidades públicas.
   Quando, por exemplo, não con-      Ou seja, é um centro da Motorola,
cordamos com o padrão Ford,           mas um centro em que a empresa
essa discordância não foi media-      assume compromissos e tem seus
da pelo elemento ideológico. Em       objetivos. A Motorola quer formar
nenhum momento recusamos a            mão-de-obra porque ela pensa, em
presença da empresa Ford no es-       algum momento, em produzir no
tado do Rio Grande do Sul. Rom-       Brasil e na América do Sul, em ins-
pemos com aquilo que entendía-        talar uma fábrica, e não dispõe de
mos ser uma relação rigorosa-         mão-de-obra qualificada.


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                      109
Então, temos uma equação de          co de relações interessante do pon-
      construção. Obviamente recusa-         to de vista do controle social e do
      mos toda relação de transferên-        aprendizado, do lado social da
      cia de recursos públicos. Quere-       tecnologia, dos processos de con-
      mos interromper essa orgia escan-      trole tecnológico etc., que me pa-
      dalosa de transferência de recur-      rece o elemento mais importante.
      sos públicos para o grande capi-         Por fim, acho importante traba-
      tal, esse processo de transferên-      lhar com o conceito que Marina
      cia direta e indireta, via benefício   Silva e Celso Daniel trazem para
      fiscal, e buscar uma relação mui-      nós: a meu ver, o tema da preser-
      to pragmática, uma equação eco-        vação do território, para nós, deve
      nômica, fiscal, ambiental e social.    ser compreendido cada vez mais
        Algo curioso que aconteceu em        como tarefa popular. Essa noção
      nosso estado, e vem acontecendo,       serve para o Acre, serve para o
      é que a primeira empresa que se        município, serve para a região, ser-
      dispôs a submeter o seu planeja-       ve para um estado, serve para um
      mento estratégico ao povo gaúcho       país. Ou seja, a tarefa interessa a
      foi uma empresa de telefonia. Essa     um povo, a preservação – não só
      empresa, a Italian Telecom, com-       ambiental – do seu território. As
      prou a CRT [Companhia Riogran-         elites cada vez mais enxergam o
      dense de Telecomunicações]. O          território como um elemento rigo-
      que eles estão fazendo? Eles sub-      rosamente de contingência, quer
      metem o seu planejamento estra-        dizer, vão embora a qualquer mo-
      tégico, no estado do Rio Grande do     mento etc., e eu acho que é um con-
      Sul, às deliberações do orçamento      ceito forte que ajuda inclusive a
      participativo municipal e regional,    compreender as nossas políticas.
      uma vez que eles têm o compro-           Como trabalhar com essa estra-
      misso de atender os municípios com     tégia e recusar a idéia de que há
      telefones públicos etc. É um mar-      um ambiente econômico rigorosa-


110                                                     PODER LOCAL E SOCIALISMO
mente determinado na sua quali-       tência de um tratado internacional
dade pelo câmbio, pela taxa de ju-    como vem sendo pretendido, pen-
ros? Como desprezar – daí a mi-       so que adotá-la significa rigorosa-
nha idéia de equilíbrio – uma polí-   mente abrir de mão de espaços de
tica econômica nacional e seu im-     soberania para um país, para uma
pacto direto sobre todos, especial-   região que é um continente.
mente as pequenas e microempre-
sas, as cooperativas etc.? Como         Ladislau Dowbor
operar um sistema bancário, nós         Em relação ao problema do ne-
que dispomos de uma estrutura         gro, na administração da prefeita
estatal e governamos dois bancos?     Luiza Erundina eu coordenava o
Os dois bancos estatais que, na       Conselho Municipal encarregado
verdade, são governados por um        dessa questão, cuidando de suas
sistema privado determinado pelo      relações com a Prefeitura de São
Banco Central, e que tenta nos        Paulo, e tínhamos imensos proble-
impedir de emprestar, democrati-      mas por causa das divisões inter-
zar o crédito no volume que que-      nas do movimento. Era realmente
remos, devido a um rígido enqua-      trágico, só conseguimos unificá-lo
dramento do Banco Central.            porque tivemos um programa bom,
  Então a idéia é combinar ou com-    que era trazer o Nelson Mandela.
preender o que são as possibilida-    Conseguimos trazê-lo aqui e foi
des nas quais devemos apostar ri-     algo apoteótico.
gorosamente, extrair a maior qua-       Acho que esse tema é de imensa
lidade possível dos espaços de po-    importância. É fantástico que um
der que conquistamos, sem recu-       país que tem 44% da população di-
sar uma grande agenda nacional e      retamente ligada a uma origem afri-
internacional que é determinante      cana não conheça nada de África.
dessas experiências. Quando men-      É trágico que o brasileiro tenha uma
cionei a experiência da ALCA, a po-   visão “tarzânica” da África. Ou


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                      111
seja, é uma população que não co-        sa bobagem, qualquer jornalista
      nhece suas raízes. Não temos um          sabe que se fizer uma matéria um
      livro decente de história das relações   pouco delicada politicamente a
      Brasil–África. Já propus a vários        resposta vem lá de cima: “Caiu a
      historiadores a criação de pelo me-      pauta”. “Caiu a pauta” é o nome
      nos um bom manual para introduzir        moderno da tesoura. É censura
      esse tema nas escolas e coisas do        privada, sim. Oito famílias contro-
      gênero. Isso é uma batalha...            lam a mídia neste país. Não temos
         E vai ser assim enquanto os pró-      estudos sobre estruturas de poder
      prios grupos do movimento não se         da mídia.
      juntarem para empurrar essas               Por que isso se relaciona direta-
      ações. Meu convite continua de pé        mente com o negro? Porque o de-
      para montarmos um estudo desse           senvolvimento das televisões comu-
      tipo, como tem acontecido nos Es-        nitárias, das rádios comunitárias,
      tados Unidos e em outras partes.         que exigem investimentos extrema-
      Conversei com a Fundação Ford e          mente pequenos, permite que as di-
      ela está interessada em financiar        ferentes comunidades, os diversos
      um projeto desse tipo, mas o es-         movimentos, tenham voz, possam
      sencial é conhecer. Vivi sete anos       se articular. Se o movimento negro
      na África, o que me deu uma visão        esperar para “se ver na Globo” vai
      da riqueza cultural dessas origens...    ficar esperando o Carnaval. De-
      isso é fantástico.                       vemos criar a capacidade de co-
         Temos uma grande batalha pela         municação correspondente aos nos-
      frente, que é a da comunicação lo-       sos objetivos políticos. Acho isso su-
      cal. É curioso que o monopólio da        mamente importante.
      mídia não figure na linha de frente        Valter Pomar tem toda razão em
      das nossas agendas políticas.            enfatizar que o Banco Mundial, as
      Achamos que se o governo não             Nações Unidas e diversas organi-
      corta não há censura. É uma imen-        zações multilaterais compraram


112                                                        PODER LOCAL E SOCIALISMO
radicalmente o discurso da parti-     tipo de perversidade maligna, diga-
cipação. Olha, tenho tirado trechos   mos, do símbolo do mal. Realmen-
de publicações do Banco Mundial       te há uma preocupação em fazer
que todo mundo pensa que é cita-      as coisas funcionarem, eles estão
ção de um documento do PT . É         constatando que as coisas funcio-
radical. Outra coisa é dizer que      nam com sistemas descentralizados
isso é mau.                           participativos, e não só no Canadá,
  No Banco Mundial há uma dire-       país rico, por exemplo. Veja a pro-
ção política, óbvio, predominante-    víncia de Kerala, na Índia. É im-
mente norte-americana. Mas os         pressionante, eles têm uma morta-
técnicos que produzem esses re-       lidade infantil de 17 por 1.000, a
latórios vêem com imensa preocu-      metade da mortalidade infantil do
pação o tipo de ruptura social, que   Brasil, com uma renda per capita
eles chamam de fratura social, que    de 300 dólares por ano. Se o Ban-
está se gerando no planeta, por-      co Mundial acha bom, ótimo.
que simplesmente olham para a           Quanto ao comentário de Paul
frente. São dezenas de milhões        Singer, acho que deveríamos pro-
que estão morrendo com Aids, são      por à mesa claramente o seguinte
guerras que estão pipocando por       tema: vamos pensar a cidade não
todos os lados, a situação é abso-    como segmento, mas como unida-
lutamente dramática. Ninguém          de de acumulação na qual temos
controla a venda de armas no mun-     de construir a relação cidade–cam-
do (48% das exportações de ar-        po, e não só fazer a reforma agrá-
mas são feitas pelos Estados Uni-     ria, porque a dominância das deci-
dos)... Temos de ser realistas e      sões está nas cidades. Temos de
saber utilizar as contradições que    pensar as pequenas e médias em-
existem nesses sistemas.              presas articuladas com políticas de
  Então, ao retomar o ciclo políti-   emprego, políticas sociais etc. Basta
co, não dá para ver tudo como um      considerar, por exemplo, Belo Ho-


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                       113
rizonte, onde o programa de com-        de banco privado, pagando taxas
      pra da merenda escolar foi articu-      inimagináveis, que eu não enten-
      lado com a pequena produção de          do. É claro que se amanhã houver
      agricultores no cinturão verde.         a possibilidade de eu colocar essa
        Acho que temos a missão de pen-       poupança num sistema alternativo
      sar um planejamento integrado, lo-      vou fazê-lo, e há espaço para isso.
      cal, e vejo a cidade como uma uni-      E essa situação não é específica
      dade equilibrada de acumulação a        de países pobres, Bangladesh etc.
      ser construída a partir da própria      Também acontece na França, as
      população. Essa linha, na qual já de-   pessoas estão cansadas. Isso me
      veríamos estar trabalhando, tem um      leva a outra dimensão: há uma
      potencial gigantesco. Foi feita uma     imensa diferença qualitativa entre
      pesquisa tempos atrás em Bertioga       a pequena e a média empresas e
      (SP), e descobriu-se que de cada        a grande empresa. Para nós, são
      100 reais que o cidadão de Bertioga     todas capitalistas. Não são. A gran-
      deposita nos bancos locais 92 reais     de empresa é uma estrutura políti-
      são aplicados fora da cidade. Em        co-cultural de dominação mundial.
      vez de a poupança da população          Afinal, quem sustenta a mídia no
      servir para financiar investimentos     mundo? Os gastos anuais são de
      locais, geração de empregos e de        435 bilhões de dólares.
      riqueza, é investida na ciranda fi-       Há o exemplo da revista Esquire,
      nanceira pelos bancos.                  que publicou uma pesquisa sobre
        O que se está fazendo com             sexualidade americana que não foi
      microcrédito, com crédito solidá-       muito generosa para com o poten-
      rio etc.? O controle sobre a pró-       cial norte-americano – dos homens,
      pria poupança está sendo recupe-        pelo menos. Foram questionados
      rado pela população. Este é um          pelas empresas de publicidade e
      grande eixo de batalha. Estou can-      responderam: “Vocês fazem publi-
      sado de ter minha conta num gran-       cidade, linha editorial é conosco...”.


114                                                       PODER LOCAL E SOCIALISMO
Visão americana, liberdade de im-     nós, é perniciosa. A União Euro-
prensa. Chegaram a um acordo, a       péia criou sua moeda, houve várias
revista tem a liberdade de publicar   tentativas para desestabilizá-la, mas
o que quer e as empresas de publi-    existe hoje o euro, pela primeira vez
cidade têm a liberdade de anunciar    um contrapeso ao dólar. Existe tam-
onde querem. Essa é a liberdade       bém uma fortíssima progressão da
de imprensa.                          China, uma rearticulação asiática.
  Creio que as grandes multina-       Os Estados Unidos diante disso
cionais, o grupo de 500 ou 600        querem assegurar um quintal.
transnacionais que são as gran-         Para nós, é óbvio que o que inte-
des galáxias de poder, merecem        ressa, quando há economias ou blo-
um estudo particular de nossa         cos muito mais fortes do que nós, é
parte, porque elas estão se arti-     sorrir um pouco para um, um pou-
culando como poder político. Um       co para outro e manter nessa
presidente da Coca-Cola declarou      eqüidistância um mínimo de equilí-
que elas constituem os novos          brio, porque é o único meio de ne-
articuladores mundiais e ponto.       gociação que temos. Entrar na
Elas, as empresas transnacionais.     ALCA e virar um quintal norte-ame-
E é completamente diferente a         ricano é perder toda capacidade de
forma como são socializados ou        negociação do nosso espaço.
não os meios de produção da ofi-        Foi mencionada aqui a atrofia da
cina da esquina, da padaria, da       esfera pública. Gostaria de lem-
pequena e média empresa em            brar o seguinte: o último relatório
geral. Houve uma ruptura, a meu       do Banco Mundial traz bons da-
ver, em dois universos nesse pro-     dos. Segundo o relatório de 1997,
cesso, e temos de trabalhar de        nos países desenvolvidos o Esta-
maneira diferenciada.                 do gera em média 50% do PIB, e
  Vou falar rapidamente sobre a       nos países subdesenvolvidos, 25%.
ALCA. Considero que a ALCA, para      Além de termos um PIB proporcio-


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                       115
nalmente menor, nossos Estados       tais níveis de controle que é me-
      administram partes menores do PIB    lhor evitar.
      do que os Estados de países de-        Mas há um ponto interessante:
      senvolvidos. Nós temos Estados       nenhuma pessoa precisa, individual-
      muito pequenos.                      mente, de uma fortuna de mais de
        Além disso, em nenhum lugar o      50 milhões de dólares. Se cortásse-
      Estado está diminuindo, não dimi-    mos esse tipo de fortuna, cortaría-
      nuiu durante as administrações de    mos a base do poder político, por-
      Margaret Thatcher, na Inglater-      que aí já não se trata mais de capa-
      ra, e nem de Ronald Reagan, nos      cidade de consumo, mas de capaci-
      Estados Unidos. O Estado norte-      dade de manipulação política da so-
      americano não diminuiu com o pri-    ciedade. Quer dizer, tanto a extre-
      meiro Bush e não vai diminuir        ma riqueza como a extrema pobre-
      com o segundo simplesmente por-      za são patológicas para qualquer so-
      que na sociedade o consumo pú-       ciedade. E é perfeitamente viável
      blico está aumentando. O anti-Es-    sugerirmos propostas para uma e
      tado vende bem. A revista The        para a outra, tanto uma renda míni-
      Economist fez recentemente um        ma como uma renda máxima. A
      comentário simpático, dizendo que    fortuna pessoal do Bill Gates está
      as críticas ao governo vão muito     atingindo o nível do PIB da Inglater-
      bem, e o Estado também vai mui-      ra. Isso é patológico. Uma publica-
      to bem, obrigado.                    ção das Nações Unidas, comentan-
        Essa idéia de que no socialismo    do a situação de cerca de 400 pes-
      seremos todos iguais é um equí-      soas que têm uma riqueza pessoal
      voco. Eu espero que sejamos me-      maior do que a renda da metade
      nos desiguais. Para sermos com-      mais pobre da população mundial,
      pletamente iguais, teríamos de ter   diz que esta situação é obscena.




116                                                    PODER LOCAL E SOCIALISMO
Sobre os autores

   CELSO DANIEL nasceu em Santo André em 1951. Era engenheiro civil, mestre
em administração e doutorando em ciência política e cumpria seu terceiro manda-
to como prefeito de Santo André (1989–1992, 1997–2000, 2001–2004). Durante o
período de 1994 a 1996 exerceu mandato de deputado federal, atuando na Comis-
são de Reforma Tributária e Fiscal. Era o coordenador-geral do Programa de Go-
verno do Partido dos Trabalhadores para a Presidência da República.
   Foi professor de administração pública na Fundação Getulio Vargas, e de eco-
nomia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Teve papel ativo na
fundação do Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto Tamanduateí e Billings
(1990), da Câmara Regional do Grande ABC (1997) e da Agência de Desenvolvi-
mento Econômico do ABC (1998), no qual cumpria a função de diretor-geral.
   Recebeu, como prefeito de Santo André, as seguintes premiações: “Prefeito
Criança” da Fundação Abrinq pelo trabalho Andrezinho Cidadão em 1999
(finalista); pela Fundação Getulio Vargas/Fundação Ford os prêmios Gestão Pú-
blica e Cidadania, em 1999, pelo Programa de Modernização Administrativa, e em
2000 pelo Programa Integrado de Inclusão Social (destaque) e pelo trabalho de
Coleta Seletiva (finalista).
   Foi assassinado em janeiro de 2002, em São Paulo.
  MARINA SILVA nasceu em Seringal Bagaço em 1958. É historiadora e senadora
do Acre pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Foi secretária nacional de Meio


SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                           117
Ambiente e Desenvolvimento do PT (1995-1997), membro titular da Comissão de
      Assuntos Sociais e da Comissão de Educação do Senado Federal, membro do
      Centro de Trabalhadores da Amazônia (CTA) e vice-coordenadora da Central Única
      dos Trabalhadores (CUT) no Acre (1984-1986), a qual fundou juntamente com
      Chico Mendes. É co-autora e co-organizadora do livro O desafio da
      sustentabilidade – Um debate socioambiental no Brasil, publicado pela Editora
      Fundação Perseu Abramo em 2001.
         MIGUEL ROSSETTO nasceu em São Leopoldo (RS) em 1960. É técnico em
      mecânica e cientista social. Iniciou sua militância política no final da década de
      1970 na organização da oposição ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Leopoldo,
      concorrendo como primeiro candidato a presidente numa chapa de oposição.
      Participou do movimento de fundação do Partido dos Trabalhadores desde 1979 e
      integrou a primeira executiva nacional do partido. Foi presidente do Sindicato dos
      Trabalhadores nas Indústrias do Pólo Petroquímico por duas gestões, entre 1986
      e 1992. Foi secretário de Formação Política e secretário de Política Sindical da
      Central Única dos Trabalhadores (CUT) de 1992 a 1994. Elegeu-se deputado federal
      em 1996 e vice-governador do Rio Grande do Sul em 1998.
         LADISLAU DOWBOR nasceu na França em 1941 e vive no Brasil desde 1951. É
      formado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suíça e doutor em
      ciências econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia,
      Polônia (1976). Foi consultor do Secretário Geral da ONU na área de Assuntos Políti-
      cos Especiais (1980-81). Dirigiu vários projetos de organização de sistemas de ges-
      tão econômica, na qualidade de assessor técnico principal das Nações Unidas. No
      período 1989-92 foi secretário de Negócios Extraordinários da Prefeitura de São
      Paulo, respondendo em particular pelas áreas de meio ambiente e de relações inter-
      nacionais. Atualmente é professor titular no departamento de pós-graduação da
      Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade Metodista de São
      Paulo. É autor de mais de uma dezena de livros, entre os quais A Reprodução Social,
      estudo de sistemas de gestão descentralizada; O Mosaico Partido: a economia
      além das equações; Tecnologias do conhecimento: os desafios da
      educação, pela editora Vozes. Textos disponíveis na home-page http://ppbr.com/ld.


118                                                           PODER LOCAL E SOCIALISMO
Programa do segundo ciclo de seminários
          Socialismo e Democracia realizado no primeiro semestre de 2001
   Os seminários foram promovidos pelo Instituto Cidadania, pela Fundação Perseu Abramo
           e pela Secretaria Nacional de Formação do Diretório Nacional do PT



   26 de março – Perspectivas que a vitória das es-        Expositor: Fernando Haddad – professor da USP
querdas nas eleições municipais de 2000 abre à cons-       Comentadores: Gilmar Mauro (dirigente nacional do
trução do socialismo.                                    MST ), João Felício (presidente nacional da CUT ) e
   Expositor: Luiz Inácio Lula da Silva (Presidente de   Ricardo Antunes (professor da Unicamp)
Honra do PT)
   Comentadores: Marta Suplicy (prefeita de São Pau-       21 de maio – A luta pela terra e a organização dos
lo), Raul Pont (ex-prefeito de Porto Alegre) e Luiz      assentamentos como contribuição para a construção
Dulci (presidente da Fundação Perseu Abramo)             do socialismo.
                                                           Expositor: Plínio de Arruda Sampaio – ex-deputado
   9 de abril – Perspectivas que o desenvolvimento       federal e consultor da ONU
local e a distribuição de renda abrem à construção do      Comentador: José Graziano da Silva (professor da
socialismo.                                              Unicamp)
   Expositor: Celso Daniel – prefeito de Santo André
   Comentadores: Ladislau Dowbor (professor da PUC-         4 de junho – Perspectivas que a revolução microele-
SP ), Marina da Silva (senadora pelo Acre) e Miguel      trônica e a internet abrem à luta pelo socialismo.
Rossetto (vice-governador do Rio Grande do Sul)             Expositor: Laymert Garcia – professor da Unicamp
                                                            Comentadores: Bernardo Kucinski (professor da
  23 de abril – O orçamento participativo como um dos    USP), Maria Rita Kehl (psicanalista) e Walter Pinheiro
pressupostos políticos da construção do socialismo.      (líder do PT na Câmara dos Deputados)
  Expositor: Olívio Dutra – governador do Rio Gran-
de do Sul                                                  18 de junho – Alternativa socialista ante a globali-
  Comentadora: Maria Victoria Benevides (professora      zação financeira.
da USP e da Escola de Governo)                             Expositor: Reinaldo Gonçalves – professor da UFRJ
                                                           Comentadores: João Sayad (secretário de Finan-
  7 de maio – Papel dos sindicatos e cooperativas        ças de São Paulo), Ronald Rocha (dirigente nacional
ante as mudanças nas classes sociais e suas lutas, na    do PT) e Tânia Bacelar (secretária de Planejamento
perspectiva do socialismo.                               de Recife)



SOCIALISMO EM DISCUSSÃO                                                                                   119
Leia também da coleção

          Socialismo em discussão

              Orçamento participativo e socialismo
              Olívio Dutra e Maria Victoria Benevides

                   Globalização e socialismo
      Maria da Conceição Tavares, Emir Sader e Eduardo Jorge

      Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismo
      Francisco de Oliveira, João Pedro Stedile e José Genoino

                      Economia socialista
                   Paul Singer e João Machado

                   O indivíduo no socialismo
                   Leandro Konder e Frei Betto

               Instituições políticas no socialismo
          Tarso Genro, Edmílson Rodrigues e José Dirceu




120                                                     PODER LOCAL E SOCIALISMO

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Resposta ao requerimento que solicita informações à Companhia Paulista de Tre...
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Poder local e_socialismo

  • 4. Fundação Perseu Abramo Instituída pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996 Diretoria Luiz Dulci – presidente Zilah Abramo – vice-presidente Hamilton Pereira – diretor Ricardo de Azevedo – diretor Editora Fundação Perseu Abramo Coordenação Editorial Flamarion Maués Assistentes Editoriais Candice Quinelato Baptista Viviane Akemi Uemura Revisão Maurício Balthazar Leal Márcio Guimarães de Araújo Capa e Projeto Gráfico Gilberto Maringoni Ilustração da Capa Paulo França Lopes Editoração Eletrônica Enrique Pablo Grande Impressão Gráfica OESP 1a edição: abril de 2002 – Tiragem: 4 mil exemplares Todos os direitos reservados à Editora Fundação Perseu Abramo Rua Francisco Cruz, 234 – CEP 04117-091 – São Paulo – SP – Brasil Telefone: (11) 5571-4299 – Fax: (11) 5571-0910 Na Internet: http://www.fpabramo.org.br – Correio eletrônico: editora@fpabramo.org.br Copyright © 2002 by Editora Fundação Perseu Abramo — ISBN 85-86469-69-6
  • 5. Socialismo em discussão PODER LOCAL E SOCIALISMO Celso Daniel Marina Silva, Miguel Rossetto e Ladislau Dowbor EDITORA FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO
  • 6. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Desenvolvimento local e socialismo / Celso Daniel... [et al.]. — São Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2002. — (Coleção Socialismo em Discussão) Outros autores: Marina Silva, Miguel Rossetto, Ladislau Dowbor Bibliografia. ISBN 85-86469-69-6 1. Democracia 2. Desenvolvimento econômico 3. Governo local 4. Socialismo I. Daniel, Celso. II. Silva, Marina. III. Rossetto, Miguel. IV. Dowbor, Ladislau. V. Série 02-1513 CDD-320.531 Índices para catálogo sistemático: 1. Socialismo e democracia : Ciência política 320.531
  • 7. Apresentação Francisco de Oliveira ..................................................................... 7 Nota do editor ................................................................................. 9 Perspectivas que o desenvolvimento local e a distribuição de renda abrem à construção do socialismo Celso Daniel .................................................................................. 11 Perspectivas que o desenvolvimento local ... – Roteiro Celso Daniel .................................................................................. 37 Comentários O caboclo, o pesquisador e a canoa Marina Silva ................................................................................. 47
  • 8. Projeto local e projeto nacional Miguel Rossetto ........................................................................ 55 Urbanização e gestão social Ladislau Dowbor ..................................................................... 69 Debate com o público Max Altmann ............................................................................................... 81 Inácio Teixeira Neto ...................................................................................... 84 Alencar ........................................................................................................ 85 Valter Pomar ................................................................................................. 85 Paul Singer ................................................................................................... 87 Coordenador da mesa .................................................................................. 88 Celso Daniel ................................................................................................ 89 Marina Silva ............................................................................................. 100 Miguel Rossetto ......................................................................................... 107 Ladislau Dowbor ....................................................................................... 111 Sobre os autores ................................................................... 117 6 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 9. Apresentação Francisco de Oliveira O segundo ciclo do seminário Socialismo e Democracia – reproduzido na coleção Socialismo em Discussão –, que o Instituto Cidadania, a Fundação Perseu Abramo e a Secretaria de Formação Política do Partido dos Traba- lhadores realizaram no primeiro semestre de 2001, dedicou-se, desta vez, ao exame de questões concretas que estão sendo postas para o movimento das esquerdas no Brasil com urgência, particularmente a partir das expressi- vas vitórias nas eleições municipais de outubro de 2000. O Partido dos Tra- balhadores, para não usurparmos a fala das outras formações da esquerda brasileira, foi chamado a dar soluções concretas aos já dramáticos proble- mas das cidades, herança de um longo ciclo histórico, agravados pelas polí- ticas ou antipolíticas neoliberais dos últimos dez anos. Entendeu-se que a votação cidadã optou pelo PT não apenas pela ur- gência da conjuntura, mas como uma orientação de outra perspectiva de desenvolvimento econômico, social, político e cultural, caucionada pela trajetória do partido desde sua criação e pela exemplaridade das admi- nistrações petistas ali onde a cidadania lhe tem entregue a gestão do Estado, em municípios e estados. A abordagem das questões concretas juntou as urgências de curto pra- zo com a perspectiva histórica mais ampla do futuro. Por isso os vários SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 7
  • 10. temas foram trabalhados, sempre, perguntando-se quais são suas interações com o socialismo. De modo que as gestões da esquerda não devem ser apenas o breve ciclo de uma administração, mas precisam também realizar concretamente, na vida cotidiana das cidades, das cida- dãs e cidadãos, uma mudança cujo nome histórico é socialismo. Não para um dia qualquer posterior à revolução, mas diuturnamente. Desse modo, a perspectiva histórica do socialismo ajuda, orienta e valoriza me- didas simples, ao alcance da cidadania, sem a grandiloqüência dos gran- des eventos, mas preparando-a para seu autogoverno. Foram abordados o recado das urnas de 2000, a rica experiência, que a vários títulos representa uma enorme inovação política, do orçamento participativo, o planejamento urbano, a reforma agrária e o movimento dos trabalhadores sem-terra, as formas contemporâneas da luta social, a decisiva revolução molecular-digital e a virada da informação, e, por último, as complexas relações econômicas internacionais na era da cha- mada globalização. O exame travejou, sempre, a experiência das lutas com a reflexão que procurava projetá-las e entendê-las no quadro da transformação urgente e radical. Destacados militantes do Partido dos Trabalhadores, desde seu presidente de honra, novos dirigentes munici- pais, calejados quadros políticos, governadores e prefeitos, especialistas, reputados professores universitários, apoiados, discutidos e contestados por um público sempre numeroso e participante, dedicaram o tempo ne- cessário para arejar o pensamento, desafiando o entendimento da nova complexidade. Assim, o PT busca juntar ação e reflexão, não apenas para preparar quadros, mas para assumir o mandato da transformação – como disse uma já clássica canção petista – “sem medo de ser feliz”. Em nome da Comissão Organizadora, Francisco de Oliveira 8 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 11. Nota do editor Pela primeira vez a coleção Socialismo em Discussão publica um texto sem que ele tenha sido revisto e corrigido pelo autor. Em função do brutal assassinato do prefeito Celso Daniel em janeiro de 2002, so- mos obrigados a isso. Por esse motivo, optamos por publicar também, logo após o texto transcrito da palestra, o roteiro preparado pelo então prefeito de Santo André para esta exposição, tal e qual ele o entregou aos organizadores do evento. Agradecemos a Ivone de Santana e a Gilberto Carvalho por terem lido e feito correções e observações no texto transcrito da palestra, proferida no seminário Socialismo e Democracia, na sessão realizada em abril de 2001. Tais sugestões foram incorporadas à versão final. Ressalte-se que os demais textos, de Marina Silva, Miguel Rossetto e Ladislau Dowbor, foram revistos e corrigidos pelos autores. Ditas estas palavras necessárias sobre os textos de Celso Daniel publi- cados neste volume, resta-nos registrar nossa profunda indignação em relação ao modo como fomos privados de sua convivência. Um ato de violência e de covardia que nos deixa perplexos e é um retrato sem retoques de nosso país nos dias de hoje. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 9
  • 12. Esperamos que esta publicação, assim como outras que venham a ser feitas, ao nos colocar novamente em contato com o pensamento de Celso Daniel, seja uma forma, mesmo que insuficiente e incompleta, de tê-lo ainda conosco. 10 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 13. Perspectivas que o desenvolvimento local e a distribuição de renda abrem à construção do socialismo Celso Daniel Antes de mais nada, quero agradecer o convite da Fundação Perseu Abramo, do Instituto Cidadania e da Secretaria de Formação Política do PT para fazer essa exposição. Começo também dizendo que para mim é uma responsabilidade, até um pouco complicada, fazer uma apre- sentação vinculando as experiências de desenvolvimento local à pro- posta de socialismo. Mais complicado ainda, levando em consideração as pessoas que têm participado destes seminários e as pessoas que estão hoje aqui presentes. E sei, desde logo, que a abordagem da qual vai partir minha exposição significa estabelecer certas referências que estão longe de ser consensuais, digamos assim, dentro do Partido dos Trabalhadores ou da esquerda. Mas prefiro partir disso, mesmo correndo o risco de criar mais proble- mas e mais divergências, a fazer uma exposição que partisse já direta- mente da questão do desenvolvimento local. Por isso dividirei minha exposição em quatro pontos. O primeiro deles chamo de duas dinâmicas contraditórias – sistema democrático e modo de produção capitalista; no segundo ponto, abordarei rapidamente o que SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 11
  • 14. considero alguns importantes traços da herança da formação social bra- sileira e as transformações recentes pelas quais o Brasil tem passado. Um terceiro ponto, com algumas referências sobre socialismo, que já começam a criar condições para realizar um contato mais direto com o tema do desenvolvimento local; e uma conclusão sobre desenvolvimento local e sua vinculação com socialismo. Sistema democrático e modo de produção capitalista – Sobre o primeiro ponto, trabalho a partir da idéia de que, na verdade, particular- mente a partir do final do século XVIII, duas dinâmicas distintas, contradi- tórias, com muitos pontos de contato, se estabelecem no mundo ociden- tal. Elas são, por um lado, a constituição do modo de produção capitalista e, por outro, a constituição do Estado-nação moderno, que abre espaço para a emergência do próprio sistema democrático, entendido aqui, evi- dentemente, não como regime político, mas como sistema social. Já a constituição do modo de produção capitalista, como todos sabe- mos, se nutre do Estado-nação sob diferentes regimes políticos, seja di- tatorial, seja democrático. Queria também lembrar que muito do que discutimos hoje a respeito de globalização e neoliberalismo creio que não é, ou pelo menos não deveria ser, tão novo assim, como muitas vezes imaginamos. Considero que, a esse respeito, a obra de Karl Polanyi A grande transformação é uma referência muito interessante, pois, ao buscar entender as origens dos grandes problemas que a humanidade viveu na década de 1930 e que tiveram seu ápice na Segunda Guerra Mundial, o autor conclui que eles tinham a ver com a tentativa de implementação do que ele conside- rava uma utopia irrealizável: o mercado auto-regulador, a idéia de que seria possível pela primeira vez na história fazer com que as próprias relações sociais ficassem submetidas às relações econômicas. Diz Polanyi 12 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 15. que as relações econômicas, evidentemente, sempre existiram na histó- ria da humanidade, mas isso é muito diferente de uma etapa em que as relações sociais têm de se ajustar ao figurino de uma economia de mer- cado auto-regulada, às relações econômicas assim constituídas. E afir- ma que essa é uma utopia irrealizável. Nem bem essa idéia evoluiu para a prática – a partir da Grã-Bretanha, que foi a nação hegemônica no século XIX e no início do século XX –, com a criação do mercado de trabalho livre, automaticamente a sociedade começou a reagir a essa tentativa de imposição, criando seus próprios mecanismos de autodefe- sa, sobretudo a criação de alternativas de organização social ao sistema capitalista, que foram basicamente as alternativas soviética, por um lado, e fascista ou nazista, por outro. Em poucas palavras, Polanyi afirma que o que criou condições históricas para a emergência dessas outras alternativas de organização da sociedade foi a tentativa fracassada de implantação de um mercado auto-regulador. Faço essa referência porque busco meu contraponto à idéia de merca- do auto-regulador, em primeira instância, em alguns textos de Francisco de Oliveira, que falam do mercado socialmente regulado, do antivalor, como ele chama [ver bibliografia, p. 44]. Mas também porque, digamos, a reposição, principalmente a partir da década de 1980, dessa idéia de economia auto-regulada, mercado auto-regulador, não é uma coisa nova na humanidade, como eventualmente pode parecer a partir das discus- sões que vemos estampadas nos jornais, ou mesmo por acadêmicos etc. O que me preocupa nessas questões todas é que, considerando que meu ponto de vista foi sempre elaborado ainda durante a década de 1980, com minha militância no PT, comecei a ficar muito impactado com a maneira como determinados grupos no partido se moviam – isso em Santo André, sem generalizar –, e a partir daí comecei a desenvolver um conjunto de reflexões críticas a propósito do chamado socialismo real, SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 13
  • 16. antes da queda do muro de Berlim. Isso tem muito a ver com minha vivência prática no PT – insisto, não é apenas uma reflexão teórica – e me aponta uma questão, a meu ver fundamental, que diz respeito exata- mente ao fato de que essas dinâmicas são contraditórias. Parto da noção de que a democracia não é efetivamente uma obra burguesa. Sei que o sistema democrático tem sido utilizado pelo capital, pelo movimento do capital, para sua reprodução ao longo de todos esses séculos. Mas não acho que isso nos autoriza a dizer que a democracia é uma obra burguesa. Creio que a luta de classes tem sido expressa sobre- tudo pela luta por direitos. Luta que é dotada de imprevisibilidade, algo que não pode ser domesticado por nenhum grupo social, nenhum gover- no, nenhum partido político. E, nesse sentido, considero correta a idéia de que é necessário fazer uma reflexão crítica a respeito do socialismo real que vá até a raiz de seus problemas. Ir até a raiz dos problemas do socialismo real significa, assim, a meu juízo, criticá-lo de maneira enfática, considerando que ele é uma versão de esquerda do sistema totalitário. Ir até a raiz dessas questões significa também fazer uma reflexão crítica a respeito do próprio Marx, não, no caso de Marx especificamente, no sentido de negar a obra marxista, mas no de, digamos assim, superar a ordem marxista a partir dela mes- ma, o que evidentemente não é uma coisa fácil de fazer. Queria mencionar aqui que a crítica que Marx faz a propósito da ques- tão dos direitos e, por tabela, à questão da democracia é pertinente, sem dúvida nenhuma, mas insuficiente. Porque ela na verdade esconde refe- rências ou questões que têm muito a ver exatamente com o papel positi- vo que o sistema democrático tem condição de desempenhar e tem con- cretamente desempenhado nas nossas sociedades. Ou pelo menos em algumas das nossas sociedades. 14 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 17. Os direitos do homem aparecem para Marx como mera ilusão. Lembro que participei de um debate com João Machado – professor de economia da PUC-SP e dirigente do PT –, que está presente aqui, e ele me disse que isso não é bem verdade, que é um pouco complicado afirmar que os direi- tos do homem ou a democracia para Marx são mera ilusão. Ele argumen- tava que, se a igualdade ou a liberdade são formas de aparecer das coisas, elas encobrem um conteúdo, e para Marx forma e conteúdo estão ligados. A forma não é nunca apenas aparência, nunca apenas ilusão. Pode ser que sim, mas ainda acredito no que eu havia dito inclusive em relação àquela passagem no próprio O capital em que Marx se refere ao fato de que a esfera da circulação era de fato o verdadeiro Éden dos direitos naturais do homem. O que aqui reina é unicamente liberdade, igualdade, propriedade... Bom, depois ele vai explicar que as pessoas são livres porque podem ir ao mercado e estão livres dos seus meios de produção, dos seus meios de subsistência e são livres também no sentido de que poderiam optar, no caso da força de trabalho, pelo emprego que melhor lhes conviesse; que reina a igualdade no mercado porque as mercadorias se trocam pelos seus valores – na idéia do valor-trabalho. Ou seja, essas idéias de que liberdade e igualdade aparecem fundamen- talmente como ilusão não estão apenas numa obra anterior do jovem Marx, mas no próprio O capital. Acredito que isso fez com que historicamente na tradição marxista dominante houvesse uma profunda falta de preocupação ou de cuidado com a democracia, particularmente com a democracia como sistema. Insisto: a democracia não pode ser considerada meramente uma obra burguesa. E, mais do que isso, essa afirmação [sobre a preocupação com a democracia] é verdadeira para o totalitarismo fascista, mas tam- bém acho que é verdadeira para o totalitarismo soviético – ele se ergue sobre a queda e a ruína da própria idéia dos direitos do homem. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 15
  • 18. Trotski, em seu livro sobre Stalin1, diz: “L´Etat c’est moi! é quase uma forma liberal em comparação com as realidades do regime totalitário de Stalin. Luís XIV identi- ficava-se apenas com o Estado. Os papas de Roma identifica- vam-se, ao mesmo tempo, com o Estado e com a Igreja, mas unicamente durante as épocas do poder temporal. O Estado to- talitário vai muito além do césaro-papismo, pois abarca toda a economia do país. Diferentemente do Rei-Sol, Stalin pode dizer a justo título: La societé c’est moi! O que é evidentemente uma outra coisa”. Ou seja, no fundo, é o início de uma elaboração a respeito da idéia de que na verdade o socialismo real era na prática um sistema totalitário, entendido a partir dessa idéia de que “a sociedade sou eu”. Enquanto isso, no âmbito do sistema democrático, o que na verdade se opera é uma divisão entre a sociedade civil e o Estado. Uma distinção entre o poder político – e isso tem uma eficácia simbólica importante –, que é limitado de direito, não existem governos que sejam donos do po- der, e o poder administrativo, que tem muito a ver com o crescimento das burocracias estatais, com a tendência de o Estado, na época moderna, 1. TROTSKI, L. Stalin. São Paulo, Progresso Editorial, 1947. no sistema democrático, visar a um controle cada vez maior dos detalhes 2. TELLES, V. S. “Espaço da vida social. E, na linha de um texto da Vera Silva Telles2, que vai fazer público e espaço privado na uma avaliação crítica do pensamento de Hannah Arendt, considero que constituição do social, notas nesse caso, ou nesse campo do sistema democrático, a esfera pública e, sobre o pensamento de portanto, a relação público–privado têm um papel absolutamente crucial. Hannah Arendt”. Revista Tempo Social. São Paulo, Aliás, diferentemente de algumas referências da teoria de Hannah Universidade de São Paulo, Arendt, mas também de Jürgen Habermas sobre a esfera pública, afir- primeiro semestre de 1990. ma ela que ações coletivas são vinculadas a interesses em meio a confli- 16 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 19. tos que atravessam o campo social. Se tais interesses aparecem como algo mais que a simples defesa corporativa, dependem da articulação de uma linguagem por meio da qual interesses privados podem ser desprivatizados e, portanto, reconhecidos publicamente na sua legitimi- dade. É na linguagem dos direitos que a defesa de interesses se faz audível e reconhecível na dimensão pública da vida social. Creio que posta dessa maneira a questão do papel fundamental da esfera pública no sistema democrático, no âmbito dessa relação público–privado, mas insistindo no papel da esfera pública como uma referência para conquis- ta e disputa de novos direitos de cidadania, ela continua a ser uma refe- rência extremamente importante que, insisto mais uma vez, afirma nova- mente a distinção que é preciso que nós também afirmemos entre demo- cracia e sistema capitalista, democracia e economia de mercado, parti- cularmente a economia de mercado auto-regulada. Herança brasileira – Dito isso, gostaria de fazer algumas rápidas considerações a respeito do Brasil, porque acho difícil falarmos de de- senvolvimento local de maneira abstrata, e se queremos começar a falar com base em referências que temos construído a partir da nossa prática concreta, é preciso também que consideremos algumas características do nosso país. E aqui eu queria apenas, muito sinteticamente, resgatar algumas dessas referências que me parecem importantes. Em primeiro lugar, gostaria de abordar a herança brasileira; em segun- do lugar, telegraficamente, de falar duas palavras sobre o Brasil hoje, particularmente na década de 1990; e em terceiro lugar dar algumas pitadinhas a respeito do Brasil como uma Federação. Acho que isso é importante não só para entender o Brasil, mas também para localizar de maneira adequada as possibilidades, os desafios e os limites que se colo- cam para o desenvolvimento local em nosso país. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 17
  • 20. Em termos de herança brasileira, realmente considero que uma carac- terística básica é a reposição quase permanente dessa simbiose entre o tradicional e o moderno. Essa idéia de superar o arcaico ou o tradicional, apresentando uma proposta moderna, pode ser encontrada em vários momentos da história do Brasil com muita facilidade, mas na prática, se formos ler bem o que está acontecendo, o que está sendo produzido é uma nova simbiose entre o tradicional e o moderno, ou seja, a permanên- cia na continuidade. Refiro-me a isso porque acho fundamental, porque aprendi sobre isso mais diretamente na minha vida como prefeito, a partir da primeira ges- tão. Muitas vezes, no PT ou no âmbito da esquerda, nós travamos uma discussão substantiva, extremamente importante, mas às vezes tão afas- tada de questões cruciais que determinam a maneira como as pessoas tomam decisões no dia-a-dia, envolvendo às vezes um hiato tão grande, que me vi na necessidade de tentar entender um pouco melhor por que as coisas aconteciam dessa maneira. Então, fundamentalmente, minha preocupação aqui, na linha de muitos dos chamados clássicos da historiografia brasileira, é fazer uma reflexão a respeito das possibilidades de transformação, que exigem de nós, aqui no Brasil também, ter sempre um extremo cuidado com a idéia de que estejamos transformando tudo ou quase tudo, quando na verdade, ao realizar essas transformações, podemos estar novamente reproduzindo a simbiose entre o tradicional e o moderno que estou comentando. Isso é muito verdadeiro no que diz respeito, por exemplo, à nossa cultura políti- ca clientelista. Nossas formas de agir e o sistema político, e até a própria sociedade, funcionam muito com base nessa cultura. Então, não podemos subestimar a tendência à reprodução daquilo que herdamos quando pensamos em construir algo de novo. É que o Brasil tem uma convivência quase atávica de duas coisas muito contraditórias, 18 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 21. que não é o caso de desenvolver aqui, essa combinação entre violência e intimidade. Creio que isso é realmente muito próprio do nosso país. Des- dobramentos disso são o patrimonialismo e uma – acredito eu – reco- nhecida atrofia da esfera pública, fundamental para o meu argumento, porque essa atrofia está vinculada justamente ao fato de que também as decisões políticas passam principalmente por relações de natureza pes- soal. E quando as decisões fundamentais passam por relações de natu- reza pessoal o que acontece, na verdade, é que se está eludindo a possi- bilidade de que essas grandes discussões sejam feitas na esfera pública, no espaço público democrático. Esse é, a meu juízo, um problema bas- tante sério. Nós criamos aqui inúmeras e recorrentes avenidas de com- pensação social que servem para as pessoas garantirem muitas vezes a sua sobrevivência, e também para reiterar a profunda desigualdade so- cial que temos no Brasil e inibir as possibilidades de que estas desigual- dades e o tema dos direitos sejam expostos da maneira como poderiam ou deveriam ser debatidos na esfera pública, realmente a partir da ação coletiva combinada com a linguagem dos direitos. Então, isso gera uma série de problemas para o Brasil e para a demo- cracia no Brasil, por exemplo os reconhecidos erros recorrentes, os pro- blemas ligados à incompatibilidade entre a dominação burguesa e a de- mocracia no Brasil, já tematizados por Florestan Fernandes3. José Luís Fiori, me parece, expressa muito bem no texto que prepara sua tese de doutorado4 a recorrência das fugas para a frente, no período nacional- desenvolvimentista, que fazem com que, na verdade, empurremos os 3. FERNANDES, Fernandes. A problemas com a barriga, resolvendo problemas específicos sem resol- revolução burguesa no Brasil. ver o essencial, que Fiori localiza basicamente na incapacidade das elites Rio de Janeiro, Zahar, 1981. 4. FIORI, J. L. “O nó cego do brasileiras de arbitrar perdas entre os interesses dominantes. desenvolvimento brasileiro”. Então, a agregação de novos interesses, sejam eles arcaicos, sejam Novos Estudos Cebrap, no 40. modernos, dentro desse arco de forças e alianças que abarca todo o São Paulo, 1994. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 19
  • 22. conjunto de setores dominantes, por não conseguir impor perdas faz com que haja, por um lado, problemas sérios para implantação de um sistema no qual os direitos possam realmente ser respeitados, e, por outro, a válvula de escape, o aprofundamento recorrente da dependên- cia, tanto a tecnológica como, mais recentemente, a financeira em re- lação ao exterior. Esses fatores, embora pareçam estar um pouco distantes do desenvol- vimento local, na realidade não estão. Não vou fazer todas as mediações necessárias, mas não é bem assim, eles estão muito presentes no dia-a- dia da nossa política e da nossa sociedade. Então, isso gera reposição recorrente do binômio autoritarismo–dependência. Nesse ponto, recorro também a um texto recente de Guillermo O’Donnell, em que ele fala a respeito da ineficácia da lei na América Latina5 . Ele faz uma reflexão que me parece muito interessante, bus- cando distinguir entre o que se entende como poliarquia e o que pode- ria ser entendido de verdade como democracia, compreendendo que democracia tem que ser um sistema em que pelo menos os direitos estabelecidos devem ser respeitados. Ele afirma que é facilmente re- conhecível que em casos como o do Brasil os direitos não são respeita- dos. Então, há uma poliarquia, um conjunto de características – elei- ções periódicas, partidos políticos livres, imprensa relativamente livre, liberdade de pensamento –, uma série de coisas que são próprias do regime democrático mas na verdade não correspondem à implantação efetiva de uma democracia propriamente dita, com respeito aos direi- tos e à lei, em países como o nosso. Creio que isso não é outra coisa 5. O’DONNEL, G. “Poliarquias e senão uma maneira de expressar o fato de que no Brasil não temos a (in)efetividade da lei na América Latina”. Novos Estudos uma democracia propriamente dita. Nos termos que coloquei aqui, a Cebrap, São Paulo, no 51, partir do ponto de vista de O’Donnell, temos uma poliarquia, mas não 1998, p. 37-62. uma democracia. 20 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 23. Apenas quero insistir no seguinte: não vivemos numa ditadura nesse momento. A meu ver, não vivemos numa sociedade totalitária, mas tam- bém não vivemos numa democracia propriamente dita, o que coloca di- ficuldades mais profundas à discussão do socialismo, particularmente se a nossa reflexão sobre socialismo passa também pela democracia. Se não chegamos nem sequer a condições básicas para afirmar direitos que possam valer de fato na nossa sociedade, o problema é mais complexo, e as nossas dificuldades, portanto, mais profundas ainda. O que vemos no Brasil recente não é nada alentador, muito pelo contrário, porque uma análise sóbria mostra que, durante a década de 1990, os governos brasileiros buscaram fazer sua inserção no sistema econômico e político internacional de um modo que reproduziu esse misto de tendências ao autoritarismo, à falta de democracia e ao aprofundamento da dependência. Nós sabemos que, se tínhamos o pro- blema grave da dívida externa, que se expressou com muita clareza durante a década de 1980, e se a partir de um certo momento esse problema mudou de qualidade, durante a década de 1990, a linha polí- tica adotada particularmente pelos dois últimos governos federais aprofundou nossa dependência financeira externa. Isso cria problemas muito sérios em torno de um projeto nacional alternativo. Do ponto de vista das próprias relações democráticas, outras referên- cias que pude obter vieram a partir de alguns textos de Francisco de Oliveira e de Maria Célia Paoli6, que levantam alguns pontos importan- tes. Particularmente, me causou bastante impacto a afirmação de que 6. OLIVEIRA, Francisco. aqui no Brasil, sobretudo durante a década de 1990, a exclusão é até “Privatização do público, mesmo semântica, porque quando, no campo da linguagem, é negada destituição da fala e anulação da política”. In: OLIVEIRA, aos setores dominados sua própria condição de afirmar os seus direitos, Francisco e PAOLI, Maria Célia. quando o que era entendido até então como direitos dos dominados, dos Os sentidos da democracia. trabalhadores, dos setores dominados é condenado pela mídia, pelo go- Petrópolis, Vozes, 1999. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 21
  • 24. verno federal, como interesses meramente corporativos, o que se está querendo é deslegitimar essas lutas por direitos que, com todas as difi- culdades, os dominados têm levado a efeito no Brasil, ao longo das últi- mas décadas. Poder local – Gostaria de fazer algumas ponderações sobre o poder local e a Federação. A primeira delas é a seguinte: acho que, embora todos tenhamos consciência disso, é preciso reafirmar que, no âmbito local, temos uma convivência de práticas, vivências e ações completa- mente contraditórias, que se expressam, talvez pela primeira vez, por meio de iniciativas inovadoras que poderemos considerar até mesmo revolucionárias, em termos de auto-organização da população, mas não só disso. Estou me referindo particularmente a iniciativas de gestões de esquerda relativas à prioridade nos investimentos sociais, à participação da população, ao orçamento participativo, por exemplo. São, acredito, ações importantes e que têm sido valorizadas cada vez mais no Brasil e em outros lugares. Mas, ao mesmo tempo que isso acontece, é evidente que não faria o menor sentido fechar os olhos para o fato de que numa grande maioria dos espaços locais, desses núcleos de decisão descen- tralizados, em nível municipal e regional, o que impera, na verdade, é a 7. Advogado, é autor do livro reprodução ou a reiteração daquilo que existe de mais arcaico do ponto Coronelismo, enxada e voto de vista da política brasileira, das relações estabelecidas no poder local, (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 3a edição, 1997), entre governo local, comunidade local e assim por diante. Em outras considerado um clássico da palavras, o mandonismo local – não acho que seja possível falar ainda literatura política brasileira. em coronelismo, no sentido empregado por Vítor Nunes Leal7; estamos Foi também chefe do vivendo um outro momento. Mas aqui, sem dúvida nenhuma, é muito Gabinete Civil no governo fácil perceber como, apesar das mudanças ao longo de décadas e déca- de Juscelino Kubitschek e ministro do Supremo das, o que vemos é a reprodução do arcaico com o moderno. Eventual- Tribunal Federal. mente aqui, muito mais arcaico do que moderno. 22 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 25. Então, essa convivência contraditória do que existe de mais inovador, até mesmo revolucionário, no campo da política, da esquerda, com práti- cas as mais atrasadas, as mais arcaicas, as mais tradicionais possíveis, faz parte da nossa Federação. Estou fazendo uma constatação para não esquecer que eventualmente as pessoas mais pessimistas vão sempre enxergar a esfera local como “o atraso do atraso”, e as pessoas mais otimistas vão enxergá-la como ponto de partida graças ao qual é possível fazer todo um conjunto de outras transformações radicais e tudo mais. Acho que a realidade é mais complexa que isso. Na realidade, convi- vemos com situações muito contraditórias; isso faz parte, portanto, do nosso ponto de partida, para pensar as potencialidades, mas também os limites do desenvolvimento local. E acredito que o Brasil funciona como uma Federação mesmo, em- bora muito peculiar. A partir de um certo momento comecei a me surpreender com a quantidade de pessoas que foram pegas de sur- presa com o fato de que o processo de redemocratização trouxe de volta, como uma avalanche, a multiplicação das relações clientelistas do país. Eu poderia desenvolver essa idéia um pouco mais, porque, afinal de contas, isso acontece por causa das características próprias de funcionamento da sociedade brasileira, combinando o arcaico com o moderno; quando se restauram relações formalmente democráti- cas, são restauradas, ao mesmo tempo, as condições para que o clientelismo volte a florescer de maneira muito mais intensa do que acontecia durante a ditadura militar. E a primeira grande manifesta- ção disso não se dá na esfera local. A primeira grande manifestação do reaparecimento do clientelismo, dos grandes acordos que acabam em pizza etc., foi exatamente, como produto do Colégio Eleitoral, a composição do governo Tancredo-Sarney, em 1985. Há expressão mais clara e acabada de um novo acordo daquilo que poderíamos SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 23
  • 26. chamar “oligarquias regionais” do que a forma como foi montado o governo Tancredo-Sarney? Estou fazendo essa ponderação também para deixar claro que acho muito equivocadas as análises que consideram que o clientelismo é mais forte ou está mais arraigado no espaço local. Nossa cultura, nos- sa herança, a respeito da qual falei rapidamente antes, que se expressa nessa cultura que estou chamando de patrimonialista, clientelista, re- corta o Brasil de cima a baixo e está no topo, como mostra a própria composição do governo Tancredo-Sarney, que estou comentando ago- ra. Não é casual que a recomposição de forças hegemônicas aqui no Brasil, que se deu durante a década de 1990, particularmente em torno do governo FHC, tenha reincorporado, a partir de uma nova tentativa de busca de hegemonia, o conjunto desses setores em muitas relações estabelecidas entre os poderes econômicos regional e local, entre os poderes políticos local e regional. O Brasil funciona como uma Federação. Se prestarmos atenção na maneira como os deputados federais se articulam com as suas bases locais, teremos um bom exemplo dessa articulação que mencionei entre local e regional, e veremos como a própria reeleição desses políticos depende dessa vinculação. O que estou dizendo é que não é possível pensar que o Congresso Nacional é uma coisa e o que acontece no espaço local é outra. Nós vivemos no mesmo país. Claro que o que acontece no Congresso não é uma expressão mecânica do que acontece no espaço local, mas é uma expressão mediada por uma série de outros elementos que não tenho tempo de desenvolver aqui. E, ao lado disso, o Brasil é uma Federação, o que significa que para pensar um projeto nacional, a meu juízo, é preciso pensar também uma reformulação da Federação como parte desse novo projeto, porque, caso contrário, estaremos pensando um projeto nacional que significa um con- 24 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 27. junto de mudanças a partir de Brasília, sem levar em conta que o Brasil não funciona desse jeito, que seu real funcionamento é o de uma Federa- ção. Isso é algo que, insisto, não pode ser esquecido. Socialismo e radicalização da democracia – Gostaria de fazer al- gumas ponderações a respeito do socialismo, referências que já me per- mitem estabelecer alguns pontos de contato mais diretos com a questão do desenvolvimento local. Acredito, como Habermas, que ainda vivemos o tempo moderno, ou seja, que não se esgotaram as energias utópicas. Ele diz, “a consciência do tempo inaugura um horizonte em que o pensamento utópico se funde ao pensamento histórico”. Na seqüência, afirma que “o que se esgotou na verdade foi uma utopia ligada à sociedade do trabalho”. Nesse ponto, não concordo com ele, acredito que é um equívoco seu e de vários ou- tros autores que pensam a crise no nosso tempo. Acredito, sim, que houve mudanças, transformações profundas na nossa estrutura de clas- ses, de grupos sociais, nas estruturas econômicas que estamos vivenciando recentemente, mas não acredito que tenha acontecido uma superação ou a impossibilidade de se pensar a utopia a partir de uma sociedade do trabalho. A necessidade de repensar uma utopia baseada na sociedade do trabalho é uma coisa absolutamente fundamental, seja em razão da queda do muro de Berlim, seja em razão de transformações muito im- portantes que ocorreram no Brasil e no mundo. Mas é verdade, por outro lado, que a derrocada do socialismo real nos colocou diante de sérios problemas. Certos ou errados, tínhamos algu- mas certezas, que de repente foram colocadas em xeque. Não tenho nenhuma condição de falar sobre novas certezas porque não as tenho. Mas acredito que seja possível ter alguns pontos de partida, nesse mo- mento. Ter algumas referências sobre socialismo, sem abrir mão da idéia SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 25
  • 28. de socialismo. Isso significa a constatação, ou o ponto de partida, de que precisamos reconstruir essas referências e, portanto, formular uma nova idéia de sociedade a partir da nossa realidade, da crítica do passado e do potencial que o presente abre para o nosso futuro. Estou tomando aqui algumas referências de um autor chamado Grahame Thompson, num texto pequeno chamado Flexible Specialization, in- dustrial districts, regional economies: strategies for socialists?. Ele trabalha compromissado com a propriedade comum e a organização cooperativa, com a promoção de decisões democráticas em todas as dimensões da vida, com a supressão e/ou controle dos mecanismos de mercado em alocação e distribuição. Compromisso com igualdade de oportunidades e, em certos casos, com igualdade de resultados. Genera- lização do emprego e competências culturais para viabilizar o autodesenvolvimento e a autonomia no trabalho e no lazer etc. Acho que precisamos trabalhar com algumas referências. A referên- cia que tomo como ponto de partida é a da construção de uma sociedade socialista a partir da idéia de radicalização da democracia, tentando res- taurar o elo com as observações iniciais que eu havia feito. Quero integrar também algumas referências que partem da chamada escola da regulação. Não que eu tenha integral concordância com ela, muito menos qualquer ilusão a respeito da idéia de que um modelo de desenvolvimento fordista tivesse sido aplicado em países como o nosso, sei que isso não aconteceu. Considero apenas de passagem essa afirma- ção. O momento que vivemos me leva a pensar que é preciso considerar que, além das conjunturas, são forjados também modelos de desenvolvi- mento de largo prazo, que são longos períodos no capitalismo em que um determinado regime de acumulação é o resultado macroeconômico do funcionamento de um modo de regulação com base no modelo de orga- nização do trabalho. Este, por sua vez, é alicerçado numa tecnologia. 26 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 29. Acho que são elementos importantes porque, na verdade, embutem a idéia de que por trás disso está uma visão de mundo a respeito do que é bom, do que é ruim, fundado num grande compromisso que pode e cos- tuma ser defendido por famílias políticas distintas, da esquerda à direita. É possível extrair de alguns textos uma síntese sobre a escola da regulação – tomei como base particularmente um livro de Lipietz cha- mado Audácia: uma alternativa para o século XXI –, porque eles per- mitem que entendamos, por exemplo, qual foi o papel do governo Mitterrand na França, como última tentativa de reafirmação de um mo- delo de desenvolvimento fordista, num momento em que já não havia mais condições objetivas para que isso acontecesse. Permitem também fazer uma análise a respeito da terceira via na Europa, nesse caso como parte de uma tentativa de construção do modelo de desenvolvimento neoliberal, do mercado auto-regulador no período atual, desse grande modelo de desenvolvimento que, na verdade, não deixa de ser neoliberal. Acho que essas são referências importantes, porque a idéia de um modo de regulação nos permite reatar a noção de regulação dos merca- dos e a idéia de grande compromisso, de visão de mundo que torna pos- sível trazer referências também relativas à questão da hegemonia, da disputa da hegemonia a partir do pensamento de Gramsci. Particular- mente, considero isso importante porque acredito que no Brasil nos fal- tam condições objetivas e reflexões nesse momento para a construção imediata de uma sociedade socialista, mas, mantendo referenciais socia- listas, tendo como ponto de partida princípios socialistas, devemos consi- derar um modelo de desenvolvimento que corresponda a um projeto de nação orientado por referências socialistas. 8. OLIVEIRA, F. de. Os direitos do Sobre uma visão mais crítica a respeito do socialismo real, eu me per- antivalor: a economia política da mitiria pensar a partir da reflexão de Francisco de Oliveira, em seus hegemonia imperfeita. textos sobre o antivalor8, em que ele discorre rapidamente sobre o que Petrópolis, Vozes, 1997. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 27
  • 30. considera que seria o pós-Estado de bem-estar social, o alargamento ou a radicalização da democracia. Em primeiro lugar, essa própria referência ao antivalor – não tenho condições de desenvolver as idéias dele –, a idéia de que teria estado em curso na gestação mesmo dos Estados de bem-estar social a partir da criação de um fundo público, com o antivalor, o alargamen- to das esferas públicas democráticas e as condições para o estabelecimento de uma economia de mercado socialmente regulado. Ou seja, uma econo- mia de mercado muito distinta daquela que foi a utopia analisada por Polanyi, a utopia do mercado auto-regulador. Esta última retorna aos nossos tem- pos, na cena pública, a partir principalmente da década de 1980, como a idéia da construção ou a utopia de direita da construção do mercado auto- regulador. O contraponto a essa utopia é justamente a construção de uma economia de mercado socialmente regulado, vinculada à construção, à criação de um fundo público. Mas um fundo público, por sua vez, é levado a efeito por intermédio da esfera pública, da interação de diferentes gru- pos, classes sociais, atores econômicos e políticos na esfera pública, mais particularmente na esfera pública e democrática. Diz Chico de Oliveira sobre essa forma de produção e distribuição de excedente que não se trata de resgatar a idéia de Estado de bem-estar, mas sim de pensar num pós-Estado de bem-estar, e a partir daí as refe- rências relativas ao antivalor podem ser importantes, porque nesse cam- po, que não é meramente o da lógica da reprodução do valor, da lógica da reprodução do capital, a forma de produção e de distribuição de exce- dentes não tem o valor-trabalho como estruturante, mas os valores de cada grupo social dialogando na esfera pública, na linguagem dos direi- tos. Creio que para pensar o socialismo hoje, as referências socialistas ou um pós-Estado de bem-estar social é preciso também fazer uma ava- liação crítica a respeito do Estado de bem-estar social – mesmo sabendo que muitas vezes a direita tem se apropriado dessa avaliação. 28 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 31. Ocorre, porém, que eu acredito que isso seja um ponto obrigatório também para o pensamento de esquerda, a necessidade de superar o formalismo burocrático castrador de iniciativas do próprio Estado de bem- estar social, que é um produto da expansão do poder administrativo, que vem em conjunto com o alargamento da própria democracia, o produtivismo, a desconsideração das questões ligadas ao meio ambiente, dos direitos contra a discriminação e também o autoritarismo na esfera da produção. A teoria da regulação é algo que faz parte do chamado compromisso fordista. Não vou resgatar aqui todas as idéias da Comuna de Paris, evidente- mente, porque isso não seria compatível com muito do que estou desen- volvendo aqui. Mas queria lembrar que Marx, ao fazer a análise da Comuna de Paris em A guerra civil na França, entre várias outras coisas diz se tratar de um governo flexível, um governo barato para a viabilização das condições para a democracia direta. No nosso caso, eu diria, na esfera local, trata-se das condições para viabilização do encon- tro entre democracia direta e democracia representativa. Ao falar que a Comuna – muito além do debate que se travava sobre a necessidade de fazer uma descentralização do Estado francês, muito além disso – era a expressão da possibilidade de extinção dos fundamentos econômicos, das classes sociais (o que para nós, acredito, significaria a possibilidade concreta de emergência de novas formas de produção e mesmo de no- vas relações capital–trabalho), falava também no novo Estado, no socia- lismo ou comunismo, neste caso, como novo Estado. Ele considerava organizar a unidade nacional mediante um regime comunal. É claro que Marx está fazendo a análise da Comuna de Paris, que se deu numa cidade específica. Estou querendo dizer apenas que ele, ao analisar aquilo que poderia ser a prefiguração do comunismo na França, o faz a partir do regime comunal, ou seja, a partir das comunas, da realidade local. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 29
  • 32. Creio que isso tem passado despercebido por praticamente todo o deba- te que se travou a partir daí, particularmente porque quem se apropriou de todo o referencial da Comuna de Paris e de outras discussões anterio- res de Marx e de Engels foi principalmente a vertente leninista inspirada em Estado e revolução, de Lenin. E em Estado e revolução isso desa- parece completamente. Estou querendo meramente resgatar essa idéia, porque acho que ela cria condições para pensar, nas características de hoje, na importância de considerar o desenvolvimento local como parte da construção de um Estado nacional democrático, no novo modelo de desenvolvimento nacio- nal, num projeto nacional orientado pela idéia do alargamento da demo- cracia. Organizar, portanto, a unidade nacional de outra maneira. Acho que isso casa perfeitamente com o fato de o Brasil ser uma Federação. E é preciso pensá-lo dessa maneira e considerar a esfera local a partir desse ponto de vista, dessas considerações. Resgato aqui também algumas idéias de um livro – organizado por Alain Lipietz e Georges Benko – chamado As regiões ganhadoras, em que os autores, ao concluírem a reflexão crítica a partir de uma série de textos sobre o tema do desenvolvimento regional, propõem a criação de blocos sociais territoriais. Eles mesmos ressaltam que esta é uma idéia com clara inspiração gramsciana, no quadro do mo- delo de desenvolvimento nacional. E aqui algumas referências que dão peso próprio à esfera local são apresentadas. Por exemplo, no campo da produção, a proposta de estabelecimento de novas rela- ções entre o movimento sindical e a estrutura produtiva – na medida em que não existe mais algo semelhante a um compromisso fordista mesmo nos países desenvolvidos, ou, pelo menos, as condições não são as mesmas – com vistas à democratização ainda dentro dos mar- cos do sistema capitalista. 30 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 33. Por outro lado, é clara a possibilidade que se tem também de experiên- cia de novas formas de organização a partir do que temos chamado de economia solidária, envolvendo estímulo a cooperativas; mas também há ênfase no pequeno empreendimento de forma geral, no microcrédito e em outras iniciativas desse porte que podem perfeitamente fazer parte de um modelo de desenvolvimento local sustentado num bloco social territorial, à maneira de Lipietz e Benko. Por outro lado, há também a idéia de Lipietz da superação do Estado-providência, com implementação no nível local do que ele denomina comunidade-providência, ou seja, algo baseado em recursos nacionais, uma distribuição de excedentes a partir da nação, mas com operação local a partir da reafirmação da sociedade do trabalho. Sua proposta tem a ver com o terceiro setor, de utilidade social, mas não apenas isso; também por intermédio de outro conjunto de iniciativas que garantissem a prioridade do emprego, a geração de traba- lho e renda a partir de uma operação descentralizada. Desenvolvimento local e socialismo – Para concluir, busco fortale- cer essa relação entre desenvolvimento local e socialismo no Brasil, consi- derando, a meu juízo, que ela deve se traduzir para nós em dois níveis diferenciados. O primeiro diz respeito às próprias referências de gestão local, que podem ser entendidas como tradução concreta de princípios socialistas. Não se trata, evidentemente, de fazer socialismo em nível lo- cal, independente de todo o resto. Estou falando de experiências práticas que expressam, que concretizam princípios socialistas e, portanto, prefiguram referências de socialismo que prezamos e queremos ver implementadas. Mas, por outro lado, acredito que a outra forma pela qual essa rela- ção entre desenvolvimento local e socialismo deve ser pensada aqui é a construção prática das bases para um novo federalismo como parte de outro projeto nacional. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 31
  • 34. Do ponto de vista das referências da gestão local, parto da idéia de que o que está colocado diante da gestão local são diferentes alternativas, por exemplo do desenvolvimento local, da distribuição de renda, da par- ticipação da comunidade e assim por diante. E estou tomando como base uma contraposição que acredito que devemos fazer, no nível local, com as idéias neoliberais e com toda a herança de autoritarismo e de- pendência que temos no Brasil – além de um poder administrativo com- binado com clientelismo que é muito sólido no Estado brasileiro. Acho que essa nova agenda local, que para mim se traduz em várias dimensões, conforme busquei desenvolver num texto que escrevi para a Fundação Perseu Abramo9, precisa ter uma tradução própria a partir de uma alternativa que pense a questão da gestão local com base no princí- pio da radicalização da democracia, com os princípios socialistas. Existem dois blocos importantes, a meu juízo: por um lado, a idéia de um Estado local forte e democrático, condição para se pensar um blo- co social territorial e, portanto, uma regulação social dos mercados em nível local, o que envolve pelo menos três pontos. Em primeiro lugar, uma vontade política, ou seja, um compromisso de superação dessas características sempre recorrentes nas fugas para a frente que tam- bém se expressam num nível local, seja em relação ao poder econômi- co, seja nas práticas clientelistas. Em segundo lugar, um fundo público compatível com as condições para o alargamento da esfera pública no 9. DANIEL, Celso. “A gestão nível local. E aqui, evidentemente, vou contra a corrente da maior par- local no limiar do novo te do pensamento no Brasil, reafirmando a necessidade de uma carga milênio”. In: BARRETO, L., tributária alta, porque sem uma carga que possa servir de suporte para MAGALHÃES, I. e TREVAS, V. um fundo público voltado ao social não há como efetivamente alargar Governo e cidadania. São os direitos no país. E, se estou comentando que isso é necessário no Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1999, quadro de uma nova Federação com ênfase no espaço local, estou p. 182-242. automaticamente dizendo que, na verdade, algo que tem sido deixado 32 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 35. completamente de lado, por exemplo no debate sobre a reforma tribu- tária, teria de ser reposto aqui, que é justamente o fortalecimento das esferas local e regional. Por outro lado, precisamos de um outro Estado. Não podemos conti- nuar reafirmando o Estado herdado, porque não é o que queremos e temos a necessidade de reconstruí-lo por dentro, quebrando as caixas- pretas do que corresponde ao que é o Estado hoje no Brasil a partir da esfera local, com processos que garantam a prestação de serviços públi- cos de qualidade e a baixo custo. Isso não é outra coisa senão o governo barato de que fala Marx na Comuna, e isso não é apenas fazer o comba- te à corrupção, é muito mais complicado do que isso. Exige conhecimen- tos que muitas vezes não temos e não trabalhamos de maneira adequa- da, inclusive nas nossas experiências de gestão local. O desenvolvimento local inclusivo não é um desenvolvimento local qualquer. Desenvolvimento local a qualquer custo não nos interessa, que- remos um desenvolvimento local com inclusão social, em que haja coo- peração, criação e alargamento de esferas públicas, em que diferentes atores políticos, econômicos, sociais dialoguem de maneira transparente a partir dos seus próprios interesses e conflitos, mas buscando construir um novo desenvolvimento local em conjunto. Nesse ponto, não posso deixar de mencionar nossa experiência de desenvolvimento regional do Grande ABC por meio da Câmara Regional, da Agência de Desenvolvi- mento Econômico, do Consórcio Intermunicipal etc. Outra questão que nos interessa tremendamente como elemento fun- damental do desenvolvimento econômico local são as idéias básicas da economia solidária, sem perder de vista que o desenvolvimento local também tem de ser baseado numa vinculação com segmentos mais di- nâmicos da nossa economia. Essa vinculação me parece absolutamente essencial, e aqui entra com todo peso o movimento sindical, não apenas SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 33
  • 36. como a CUT [Central Única dos Trabalhadores] vem fazendo, estimulan- do a economia solidária, mas na construção de novos referenciais do movimento sindical e da própria relação capital–trabalho. Temos que trabalhar muito mais com referências voltadas à idéia de construir bene- fícios locais e regionais do que fazer cair custos, porque a idéia do custo regional não é apenas o Custo Brasil. Essa é uma idéia neoliberal. A idéia de Custo Brasil é tipicamente vinculada ou herdada, ou um desdo- bramento, do pensamento neoliberal no Brasil. Então, quando consideramos o desenvolvimento local, evidentemente não podemos pensar a partir desse referencial, temos que adotar outro. O outro referencial é criar benefícios de tal maneira que uma região não precise ficar competindo com outras, porque competição entre regiões significa guerra. É daí que vem a guerra fiscal. Então, o combate à guer- ra fiscal e à competição com outras regiões tem de partir da idéia de que é possível, por meio de um desenvolvimento endógeno, construir o de- senvolvimento com a agregação de benefícios, de vantagens locais ba- seadas na qualidade de vida, na garantia dos direitos sociais e trabalhis- tas – que eles existam ou devam existir no nível local. Creio que é perfeitamente possível pensar em outros modos, em ou- tras bases na questão do desenvolvimento local. Para terminar, abordarei rapidamente a questão da inclusão social. Creio que houve, no Brasil, um aprofundamento dos processos de exclusão não apenas pelo fato de termos aqui uma herança de exclusão social profunda, mas também pela forma como o processo de globalização se combinou e se perpetrou a partir de referenciais neoliberais. Aqui, pen- sar o desenvolvimento local significa, necessariamente, a meu ver, pensá- lo também a partir de iniciativas, de ações voltadas à inclusão social. Não fazer apenas políticas compensatórias, mas superá-las, implementando políticas de inclusão social. Pensar políticas de inclusão 34 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 37. social significa, claro, fazer vinculações com o próprio desenvolvimento econômico, com a economia solidária, com o conjunto de programas sociais que têm sido experimentados por governos de esquerda, e até ir um pouco mais além disso. Significa pensar na idéia de garantir os cha- mados mínimos sociais de maneira universal no espaço local, com base na implementação de políticas multidimensionais, que rompam, portanto, a setorização característica das políticas públicas, ou seja, política de saúde, de um lado; política de educação, de outro; política de ação social, de outro, e assim por diante. A idéia de pensar um indivíduo como tota- lidade e sua condição de incluído socialmente, portanto com direito à cidade de maneira integral, envolve a implementação de propostas muito mais integradas, abrangentes, intersetoriais, para com isso criarmos con- dições para que as pessoas excluídas possam efetuar o trânsito dessa situação para uma situação de inclusão plena, que envolva aspectos, por exemplo, ligados à violência urbana, às questões sociais de educação, saúde, cultura, e também a criação de condições para que as pessoas possam se inserir ou se reinserir na economia por meio de pequenos negócios, de cooperativas de trabalhadores, de sua reinserção no mer- cado de trabalho, e assim por diante. Creio que há aqui também uma reconceituação, na questão das políti- cas sociais, do que chamávamos de inversão de prioridades. Ela é fun- damental e está hoje colocada na ordem do dia pelo fato de que políticas compensatórias também são preconizadas pelos neoliberais, e quem pensa que a ação a partir da esfera local pode ser transformadora tem de pensar não apenas em programas diferenciados, mas em programas que em última instância tenham realmente como referência idéias transformadoras que, no meu entender, ainda continuam a ser, de verda- de, idéias socialistas. Muito obrigado. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 35
  • 38. 36 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 39. Perspectivas que o desenvolvimento local e a distribuição de renda abrem à construção do socialismo* Celso Daniel 1) DUAS DINÂMICAS CONTRADITÓRIAS: SISTEMA DEMO- CRÁTICO X MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA • fim do século XVIII: 2 acontecimentos simultâneos: • constituição do Estado-nação moderno sistema democráti- co (muito mais que um regime político) • constituição do modo de produção capitalista (que se nutre do Estado-nação, sob diferentes regimes políticos: democracia, ditadura). • a democracia não é obra burguesa; a luta de classes tem sido luta pela conquista de direitos, instituída por vias selvagens, indomesticáveis * Este texto foi apresentado por Celso Daniel aos organizadores necessidade de ir além de Marx (em particular, de sua crítica aos do seminário Socialismo e Direitos do Homem; o problema não é o que ele lê nos direitos do Democracia como texto-base Homem (seu uso pela burguesia), mas o que ele é impotente para neles da sua exposição. Como se descobrir (suas funções positivas) os direitos aparecem como mera pode notar, trata-se de um ilusão (cf. O Capital, livro I, cap. IV, p. 145, Ed. Nova Cultural: “a roteiro para a sua exposição. O texto está reproduzido seguindo esfera da circulação [...] era de fato um verdadeiro Éden dos direitos fielmente o original apresentado naturais do homem. O que aqui reina é unicamente Liberdade, Igual- por Celso Daniel, apenas com dade, Propriedade e Bentham”. É ao sair da esfera da circulação, algumas correções ortográficas. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 37
  • 40. adentrando a da produção, que se descobre o segredo da troca desigual [da mais-valia]). • O totalitarismo – fascista ou soviético – se ergue sobre as ruínas dos direitos do homem. (cf. Stalin, de Trotski: “L’Etat c’est moi! é quase uma fórmula liberal em comparação com as realidades do regime totali- tário de Stalin. Luís XIV identificava-se apenas com o Estado. Os papas de Roma identificavam-se ao mesmo tempo com o Estado e com a Igre- ja, mas unicamente durante as épocas do poder temporal. O Estado tota- litário vai muito além do césaro-papismo, pois abarca toda a economia do país. Diferentemente do Rei-Sol, Stalin pode dizer a justo título: La societé c’est moi!”). • sistema democrático (cf. Lefort) divisão entre sociedade civil e Estado; distinção entre o poder político (limitado de direito) e o poder administrativo (fundado na burocracia do Estado, que tende a submeter cada vez mais o detalhe da vida social). Papel da esfera pública (relação: público x privado) (cf. Vera S. Telles, ao criticar H. Arendt): ações coletivas são vinculadas a interesses, em meio a conflitos que atravessam o campo social; se tais interesses apare- cem como algo mais que a simples defesa corporativa, depende da arti- culação de uma linguagem por meio da qual interesses privados podem ser desprivatizados e, portanto, reconhecidos publicamente na sua legiti- midade; é na linguagem dos direitos que a defesa de interesses se faz audível e reconhecível na dimensão pública da vida social. • K. Polanyi (A grande transformação) a utopia irrealizável do mercado auto-regulador (pelo qual as relações sociais se vêem encapsuladas no interior do sistema econômico), no século XIX e início do XX, levou a sociedade a adotar medidas para se autoproteger com- prometimento da auto-regulação do mercado desorganização da vida industrial origem dos totalitarismos e guerras mundiais; as origens do 38 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 41. cataclismo cujo auge foi a Segunda Guerra residem no projeto do libera- lismo econômico, visando criar um sistema de mercado auto-regulador. 2) SOCIALISMO • Habermas vivemos ainda o tempo moderno (não se esgotaram as energias utópicas): a consciência do tempo inaugura um horizonte em que o pensamento utópico se funde ao pensamento histórico (mas, con- tra Habermas: não vivemos também o fim das utopias vinculadas a uma sociedade do trabalho). • derrocada do socialismo real, ao lado de profundas transformações econômicas, sociais e políticas recentes perda de referências antes “seguras” sobre o socialismo. • ponto de partida socialismo com a radicalização da democracia (nos vários âmbitos da vida humana). Em meio a conjunto de princípios gerais, nem todos compatíveis entre si (cf. Grahame Thompson – Flexible Specialization, industrial districts, regional economies: strategies for socialists? – compromisso com a propriedade comum e a organização cooperativa, promoção de decisões democráticas em todas as dimensões da vida, supressão e controle dos mecanismos de mercado em alocação e distribuição, compromisso com igualdade de oportunidades (e, em certos casos, de resultados), generalização do emprego e competências culturais para viabilizar o autodesenvolvimento e a autonomia no trabalho e no lazer). • referências a partir da Escola da Regulação (cf. Lipietz – Audácia). modelo de desenvolvimento: longo período, no capitalismo, em que o regime de acumulação é o resultado macroeconômico do funcionamento do modo de regulação, com base num modelo de organização do traba- lho (alicerçado numa visão de mundo, fundando um grande compromis- so, que pode e costuma ser defendido por famílias políticas, da esquerda à direita; exs.: fordismo, neoliberalismo). SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 39
  • 42. • na ordem do dia proposta de um modelo de desenvolvimento (projeto de nação) orientado por referências socialistas: • (cf. Francisco de Oliveira: O antivalor) alargamento da esfera públi- ca (vinculada à instituição de um fundo público, como pressuposto do capital) economia de mercado socialmente regulado reconheci- mento da alteridade, do outro, do terreno indevassável de seus direitos (donde se estruturam as relações sociais); o pós-Estado de bem-estar: demarcar, de modo cada vez mais claro, os lugares de utilização e distri- buição da riqueza pública, tornada possível pelo próprio desenvolvimento do capitalismo sob uma forma transformada de luta de classes. Quando todas as formas de utilização do fundo público estiverem demarcadas e submetidas a controles institucionais, então o Estado se transformará no Estado mínimo (forma de produção do excedente que não tem mais o valor como estruturante, mas sim os valores de cada grupo social dialo- gando soberanamente). • sistema produtivo: vinculação entre eixos dinâmicos da economia e noção de economia solidária (cooperativas de autogestão, microcrédito, ênfase na pequena produção); regulação social calcada nos valores da cooperação, da solidariedade, da participação nos temas de interesse público (a comunidade cívica de que fala R. Putnam); implicação do movimento sindical nas formas de organização do trabalho. • novamente o pós-Estado de bem-estar; a necessidade de superar o autoritarismo na unidade de produção (fordismo), o produtivismo (não- respeito ao meio ambiente e às várias formas de discriminação social) e o formalismo burocrático, castrador de iniciativas, da repartição de be- nefícios do Estado de bem-estar (relacionado ao alargamento do poder administrativo). • o Estado: pistas a partir da Comuna de Paris (cf. Marx, Guerra Civil na França): alavanca para extinguir os fundamentos econômicos das 40 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 43. classes sociais, com a emancipação do trabalho (fórmula aparentemente excessiva, para hoje); governo barato; forma política flexível; modelo para a França: deputados demissíveis e com mandato imperativo para as poucas mas importantes funções que restariam a um governo central, ou seja, organizar a unidade nacional mediante um regime comunal (isto é: modelo radicalmente “descentralizado”, referência para o controle do poder político e do poder administrativo, abrindo espaço para o desenvol- vimento local com autonomia relativa). • pontos de contato com Lipietz e Benko (As regiões que ganham) no quadro de um modelo nacional de desenvolvimento: formação de blocos sociais territoriais (inspiração gramsciana) coordenando “modelos de desenvolvimento locais”, dotados de autonomia relativa (“endógenos”), inspirados nas noções de radicalização democrática. 3) O BRASIL E SUAS ESPECIFICIDADES • O Brasil como uma Federação (multiplicidade de núcleos de poder institucionalizada). • convivência, no âmbito local, de inovações transformadoras, re- volucionárias (ex.: co-gestão pública do OP [Orçamento Participativo]), ao lado do que existe de mais arcaico como prática e cultura política (mandonismo local); • o Brasil “funciona” como uma Federação peculiar: as “oligarquias regionais” no governo Tancredo/Sarney, a articulação estreita entre os parlamentares nacionais e suas bases locais (o poder municipal). • Categorias sociológicas sempre repostas: a simbiose do arcaico e do moderno, a permanência na transformação; convivência (atávica) de violência com intimidade o patrimonialismo estatal e a atrofia da es- fera pública; a tese da incompatibilidade entre dominação burguesa e democracia no Brasil (recorrentes “fugas para a frente”, produto da SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 41
  • 44. incapacidade de arbitrar perdas aos vários grupos dominantes) a reposição do binômio autoritarismo (em diferentes roupagens) e depen- dência (tecnológica e financeira) (cf. Caio Prado, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Celso Furtado, Florestan Fernandes, Roberto DaMatta, José Luís Fiori etc.). A partir das especificidades todo cuidado com as forças de con- tinuidade que, com freqüência, conduzem, ocultas, linhas de ruptura/ transformação. 4) DESENVOLVIMENTO LOCAL E SOCIALISMO NO BRASIL • A relação entre desenvolvimento local e socialismo se traduz em dois níveis: • referências de gestão local que significam tradução concreta de princípios socialistas. • construção prática de bases para um projeto nacional (constituído por um novo pacto federativo) blocos sociais territoriais buscando a conquista da hegemonia regional. • A agenda local comporta, em cada caso, diferentes alternativas de gestão pública, inspiradas em distintos valores e visões de mun- do. Para a constituição de um modelo de desenvolvimento local pau- tado pelos valores socialistas da radicalização democrática, pode- se destacar: • Estado local forte e democrático (condição para a regulação so- cial dos mercados locais), envolvendo: • fundo público (suposto: carga tributária compatível) que susten- te o alargamento das esferas públicas democráticas – inclusive as de novo tipo, inspiradas na partilha de poder (democracia representativa – democracia direta): OP, planejamento participativo do futuro, gestão de políticas e equipamentos. 42 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 45. • outro Estado local (democracia e eficiência) prestação de serviços públicos com qualidade e baixo custo, criando condições (via indicadores e metas) para o controle público. (Isto é, combate em várias frentes ao poder administrativo: pela descentralização lo- cal, pela modernização administrativa e pelos canais de controle pú- blico sobre o Estado.) • desenvolvimento local inclusivo (expresso em diferentes dimensões: econômica, social, urbana, ambiental, cultural). • desenvolvimento econômico ação nas esferas da produção e da dis- tribuição; regulação pública dos mercados locais; ênfase na criação de be- nefícios regionais (que agregam qualidade de vida e convidam à participa- ção plural, em contraste com a alternativa de redução de custos regionais); prioridade para geração de trabalho e renda, para a cooperação entre os agentes, formas alternativas de produção (cooperativas), microcrédito, for- talecimento da pequena produção, defesa dos direitos trabalhistas. • desenvolvimento urbano e ambiental regulação social do merca- do imobiliário, com a superação da dicotomia entre cidade legal/cidade ilegal e a apropriação pública de parcela da valorização imobiliária; cons- trução e apropriação de espaços públicos urbanos de qualidade (cidades policêntricas), preservação e conservação do meio ambiente. • inclusão social para além de políticas compensatórias e da inversão de prioridades: política integrada e multidimensional de inclusão social (ga- rantia de mínimos sociais como direitos); afirmação dos direitos contra discriminação (gênero, raça, portadores de deficiências, faixas etárias etc). • identidade cultural regida pelo princípio da cidadania (pertencimento vinculado à afirmação de uma comunidade cívica). • Em suma: Estado local forte, condutor de um modelo de desen- volvimento local inclusivo guiado pela referência do direito à cida- de, combinando: SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 43
  • 46. • democracia procedimental (alargamento das esferas públicas demo- cráticas pela via de co-gestão/partilha de poder/controle público do poder administrativo/articulação entre democracia representativa e direta). • democracia substantiva (desenvolvimento inclusivo nos vários níveis: econômico, social, urbano, ambiental, cultural). Bibliografia (Elaborada por Ivone de Santana) ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense, 1981. BENKO, G. e LIPIETZ, A. As regiões ganhadoras. Distritos e redes – os novos paradigmas da geografia econômica. Oeiras, Celta Editora, 1994. DA MATTA, R. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro, Rocco, 1987. DANIEL, C. A. “Internacionalização, integração e o papel das cida- des”. Cidade, cidadania e integração. Comissão Parlamentar Conjunta do Mercosul e Instituto Friedrich Naumann, 1997, p. 75-85. _________. Poder estatal local – um quadro teórico e uma análise dos governos locais com participação popular no Brasil recen- te. Dissertação de mestrado apresentada à Escola de Administração de Empresas de São Paulo/Fundação Getúlio Vargas. São Paulo, EAESP/FGV, 1992. _________. “As administrações democráticas e populares em ques- tão”. Espaço e Debates, no 30 (Revista de Estudos Regionais e Urbanos), p. 11-27. 44 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 47. _________. “A gestão local no limiar do novo milênio”. In: BARRETO, L., MAGALHÃES, I. e TREVAS, V. Governo e cidadania, balan- ço e reflexões. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1999. FIORI, J. L. “O nó cego do desenvolvimento brasileiro”. Novos Estu- dos Cebrap, no 40. Cebrap, São Paulo, 1994, p. 125-144. _________. Os moedeiros falsos. Petrópolis, Vozes, 1997. _________. “Globalização, hegemonia e império”. In: Poder e dinhei- ro. Uma economia política da globalização. Petrópolis, Vozes, 1997. HABERMAS, J. A crise da legitimação no capitalismo tardio. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1980. _________. “O Estado-Nação europeu frente aos desafios da globalização”. Novos Estudos Cebrap, no 18. Cebrap, São Paulo. HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. LEFORT, C. A invenção democrática – os limites do totalitarismo. São Paulo, Brasiliense, 1983. LIPIETZ, A. Audácia: uma alternativa para o século XXI. São Pau- lo, Nobel, 1991. MARX, K. O capital, vol. 1. São Paulo, Nova Cultural, 1982. MARX, K e ENGELS, F. “A Guerra Civil na França”. Textos, vol. 1. São Paulo, Edições Sociais, 1977, p. 155-219. O’DONNELL, G. “Poliarquia e a (in)efetividade da lei na América Latina”. Novos Estudos Cebrap, no 51. Cebrap, São Paulo, 1998, p. 37-62. OLIVEIRA, F. de. Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita. Petrópolis, Vozes, 1997. _________. O elo perdido – Classe e identidade de classe. São Paulo, Brasiliense, 1987. _________. “Além da transição, aquém da imaginação”. Novos Estu- dos Cebrap, no 12. Cebrap, São Paulo, 1985, p. 2-15. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 45
  • 48. _________. “Privatização do público, destituição da fala e anulação da política: o totalitarismo neoliberal”. In: OLIVEIRA, F. de e PAOLI, M. C. (orgs.) Os sentidos da democracia. Petrópolis, Vozes, 1999. POLANYI, K. La Gran Transformación – Crítica del liberalismo económico. Madrid, Ediciones de La Piqueta, s/d. REIS, J. C. As identidades do Brasil – de Varnhagen a FHC. São Paulo, FGV, 2000. SADER, E. Quando novos personagens entraram em cena: experiên- cias, falas e lutas dos trabalhadores da Grande São Paulo, 1970- 1980. São Paulo, Paz e Terra, 1988. TELLES, V. S. “Espaço público e espaço privado na constituição do social: notas sobre o pensamento de Hannah Arendt”. Revista Tem- po Social. São Paulo, Universidade de São Paulo, primeiro semestre de 1990. _________. “No fio da navalha: entre carências e direitos – notas a propósito dos Programas de Renda Mínima no Brasil”. In: “Progra- ma de renda mínima no Brasil: impactos e potencialidades”. Pólis, no 30, São Paulo, 1998. _________. Pobreza e cidadania. São Paulo, Editora 34/USP, 2001. THOMPSON, G. “Flexible specialization, industrial districts, regional economies, strategies for socialists?”. Economy and Society, vol. 18, no 4, 1989. 46 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 49. Comentários Marina Silva O caboclo, o pesquisador e a canoa – Boa tarde a todos. Eu já sabia que o primeiro ciclo de debates10 havia sido bastante participativo, mas estou surpresa de ver o quanto estamos vivos para um debate dessa natureza. Gostaria de agradecer pelo convite e dizer que me sinto honra- da em integrar esta mesa. Não pretendo fazer aqui nenhuma reflexão teórica. Acredito que posso contribuir mais como um “objeto de estudo”, pois o Acre é uma experiência bem localizada e eu sou fruto de uma experiência local, especificamente com os seringueiros do estado do Acre. Lá estamos construindo uma alternativa fraterna, justa, solidária a partir de referenciais locais. Nesse sentido, o Acre tem uma grande contribui- ção a oferecer a partir desses referenciais. Enquanto o prefeito Celso Daniel falava, eu pensava: por que o con- ceito de reserva extrativista surgiu da cabeça dos seringueiros do Acre, 10. Este seminário faz parte do quando havia tantos estudiosos pensando saídas e alternativas para a segundo ciclo de debates “Socialismo e democracia” Amazônia que compatibilizassem desenvolvimento econômico, justiça (ver página 119). Marina Silva social e preservação dos valores culturais e ambientais daquela região? faz referência ao primeiro ciclo, Por que algumas críticas, tão em voga atualmente, dirigidas ao modelo que aconteceu entre 10 de abril de desenvolvimento baseado numa visão industrial e num processo bas- e 19 de junho de 2000. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 47
  • 50. tante atrasado de formação de riqueza, vão surgir justamente em comu- nidades aparentemente “primitivas” ou completamente apartadas do de- senvolvimento que se processa no mundo? A crítica a esse modelo, partindo exatamente daqueles setores e de forma tão localizada, nos leva a pensar que qualquer iniciativa é sempre uma experiência localizada, na medida em que tem um ponto de partida em algum lugar, a partir do qual ela é apropriada, generalizada e muitas vezes banalizada, até que surja uma outra alternativa para dar início a um novo processo. Celso Daniel foi muito feliz quando disse que não gosta de falar em desenvolvimento local de forma genérica, é preciso que isso seja trazido para um espaço determinado. Só podemos entender as coisas em seu contexto, porque todas as alternativas são localizadas, ou seja, têm de dar uma resposta para o problema que se coloca naquele ponto. Chico Mendes e as reservas – Nossa experiência, durante muito tempo, foi marginal também dentro do próprio PT. Lembro que, quando Chico Mendes começou a falar de reserva extrativista, de certa forma se contrapunha ao modelo de reforma agrária que o PT construíra até então (muito baseado nas Ligas Camponesas). Chico propunha uma re- forma agrária diferenciada na Amazônia. Quando Chico Mendes foi aos Estados Unidos, questionando o Banco Interamericano de Desenvolvi- mento sobre a abertura de uma estrada que passaria por seringais, por dentro das comunidades indígenas, causando um prejuízo ambiental, cul- tural, social irreparável, muitos dos nossos companheiros do movimento sindical e do PT reagiram a esse ato com um certo estranhamento: por que reclamar lá fora daquilo que era um problema nosso, aqui dentro? Mas foi exatamente a partir da capacidade de fazer essa interação entre a tradição e a modernidade que conseguimos gestar talvez uma 48 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 51. das experiências mais ricas que temos na Amazônia hoje. Nem sempre o que é moderno é o melhor. Como também nem sempre o tradicional é o melhor. Vivemos exatamente na busca dessa mediação entre a tradi- ção e a modernidade para que se chegue a um determinado ponto e, num movimento espiral, possamos partir para experiências inovadoras. As inovações que estamos gestando são o inverso de tudo o que vem acontecendo no país: nós tivemos uma organização sindical que foi da floresta para a cidade, enquanto nas demais regiões do nosso país havia um modelo que fazia o movimento inverso – da cidade para o campo. Por exemplo, o movimento com Lula organizando os trabalhadores na década de 1970 no ABC. No Acre, os seringueiros diziam para os bancá- rios, para os funcionários públicos que eles tinham de fazer sindicatos e se organizar também. Era surpreendente, porque os mais “primitivos” é que falavam para os mais “modernos” acreditarem no seu próprio po- tencial e que com organização se poderia gerar algum benefício. Então, desde o início, essas peculiaridades já nos colocaram numa situa- ção de trabalho sempre em âmbito local. Nas demais regiões era possí- vel fazer um questionamento mais político-ideológico sobre as propostas de modelo econômico que estavam em disputa. No Acre isso era quase impossível. Se eu fosse disputar a eleição para o Senado dizendo que eram os neoliberais que faziam estradas de qualquer jeito, pecuária de qualquer jeito, exploração madeireira de qualquer jeito, eu não teria con- seguido nenhum voto. Eu tinha de falar exatamente numa linguagem que abordasse a especificidade local; a disputa nos últimos 20 anos tem-se dado de forma muito particularizada. Isso não significa que não exista uma formulação teórica, uma reflexão acumulada sobre a prática, mas o discurso teve de ser realista e original. E aí começamos a questionar o modelo, dando nome, endereço e tele- fone: “Esse negócio de progresso e modernidade de que se fala por aí SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 49
  • 52. nada mais é do que derrubar florestas para plantar capim e criar boi. Um hectare de floresta vale mais do que um hectare de capim”. Buscamos meios, técnicas e formuladores para provar que era possível ter mais lucro num hectare de floresta do que num hectare de capim. Hoje todas as pessoas sabem que o capim que substitui um hectare de floresta ama- zônica não dá para engordar mais que uma vaca e meia. Parece loucura, mas esse modelo já chegou à Amazônia completamente falido, apesar de sua aparente modernidade. Vendiam-nos a idéia de que a Amazônia era uma floresta homogênea, quando convivíamos com uma floresta altamente diversificada. Diziam- nos também que era um vazio demográfico, quando éramos 20 milhões de pessoas habitando no interior da floresta e nas cidades. E só com os índices demográficos que temos é possível a Amazônia ser uma floresta altamente diversificada. Aquelas idéias que nos foram impostas acompanhavam modelos de desenvolvimento baseados nos grandes projetos para exploração de ga- rimpo, de madeira, de pecuária extensiva e muitos outros. Há até mesmo quem acredite ser possível espalhar a soja na Amazônia. Quando essa discussão foi feita localmente, adquiriu uma outra dimensão, que era a da disputa local lá em Xapuri, em Sena Madureira – tudo tem local, nome, pessoas. Só que a isso hoje, sofisticadamente, nós chamamos de “modelo de desenvolvimento sustentável para a Amazônia”. E leva tam- bém outro nome: “economia solidária” – uma economia socialista em que o desenvolvimento das comunidades apóia-se em cooperativas, em associações, numa tessitura social admirável que começa com o índio ainda nem sequer contatado. Aliás, nós temos ainda, graças a Deus, mais de 500 pessoas que nunca tiveram contato com a nossa cultura, e o Acre se orgulha muito disso. É uma demonstração de que naquele cantinho ainda é possível saltar do modelo 50 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 53. fordista diretamente para a era do conhecimento. E nós somos ousados para fazer isso. Não queremos as inúteis quinquilharias que a indústria esparrama pelo mundo de hoje. O que queremos hoje é conhecimento e tecnologia para que possamos apreender da nossa realidade e com a natureza que nos aco- lhe o necessário para crescermos social e economicamente de forma justa. É claro que tudo isso, como disse Celso Daniel, não pode ser desarticulado de uma perspectiva econômica, social e cultural mais ampla. As seis sustentabilidades – Acredito que é possível generalizar para o país e para o planeta a sustentabilidade que defendemos para o nosso desenvolvimento. É um modelo baseado em seis pontos, sem hierarquia entre eles: um modelo de desenvolvimento tem de ser sustentável eco- nomicamente, socialmente, ambientalmente, politicamente, culturalmen- te e eticamente. Sem essas seis sustentabilidades, não estamos construindo uma econo- mia solidária ou socialista. O socialismo errou ao considerar que poderíamos negligenciar a natureza. Como resultado, testemunhamos toda sorte de da- nos ambientais somarem-se aos desastres que ocorreram no Leste Euro- peu. Como a nossa utopia foi capaz de apartar o bem-estar da humanidade da integridade da natureza? Não queremos mais reeditar esse erro, e nossa nova forma de ver o mundo vai ter de incorporar todas essas sustentabilidades. Quero concluir enfatizando a sustentabilidade cultural – reivindicando e legislando em causa própria. Muitas vezes a nossa forma de pensar o desen- volvimento é preconceituosa. Como diz Caetano Veloso, “Narciso acha feio o que não é espelho”. Mas apenas diante do diferente é possível realizar a troca. E foi como Narciso que se tentou transformar a Amazônia em São Paulo, Minas, Rio de Janeiro. Sofremos inúmeras conseqüências do modelo de desenvolvimento que foi implantado. Tínhamos até receio de falar em desenvolvimento regional, chegamos a acreditar que tinha de ser um desen- SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 51
  • 54. volvimento nacional ou internacional. Hoje o desenvolvimento regional e o desenvolvimento local começam a dar as bases para o que estamos propon- do como modelo de desenvolvimento para o nosso país. Embora seja pon- tual, a experiência do orçamento participativo do Rio Grande do Sul é belíssima. Em outros pontos do país devem existir outras tantas experiências que podem ser muito positivas sob uma visão sistêmica. E o Acre quer contribuir com um modelo que pense a sustentabilidade nas seis dimensões que acabei de mencionar. Acredito que, se estivermos concatenados com todas essas teorias e esses formuladores que Celso Daniel citou, podere- mos, sim, criar nova motivação para a nossa ação política dentro do nosso partido e das entidades com as quais nos relacionamos. Ser o arco e a flecha – É necessário que tenhamos uma motivação viva, que represente o sonho de cada um. O sonho de cada um não é algo homogêneo, mas cada um há de se mobilizar, claro, a partir de prin- cípios universais. Estamos todos no mesmo barco, embora cada um te- nha uma motivação diferente. Eu, por exemplo, tenho uma motivação muito grande com relação ao tema de direitos humanos e meio ambiente. No entanto, não vou pegar as ferramentas para trabalhar temas em que já existem milhares de pes- soas que podem fazer mais do que eu. Aprendi com os índios que nós temos de ser arco e ser flecha ao mesmo tempo. Se na questão ligada à defesa da Amazônia sou o arco que impulsiona, na questão da mulher e do negro sou a flecha que é impulsionada. Temos de aprender a fazer isso de uma forma fraterna, respeitando as diferenças, brigando quando for necessário mas estando juntos, agindo em rede de forma a diluir um pouco as nossas ânsias de autoria. Acredito que o conjunto das belíssimas experiências locais que estamos gestando em todo o país poderá integrar as bases de um modelo capaz 52 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 55. de transferir para a realidade o que temos ainda apenas em sonhos. Termino com uma história para os que não conhecem o meu estado. Dizem que havia um pesquisador que queria conhecer um pouco o desenvolvimento local na Amazônia e subiu numa canoa com um cabo- clo. Cansado de tanto anotar e visitar as comunidades, já não agüentan- do mais picada de carapanã (pernilongo, como se diz no Sul), ele resol- veu puxar um papo com o caboclo: – Caboclo, você sabe geografia? O caboclo disse: – Sei não, senhor doutor – e continuou calado. O pesquisador, mais à frente, resolveu tentar de novo: – Sabe história, caboclo? – Não, senhor. – Então você já perdeu metade da vida. Não sabe geografia, não sabe história... História e geografia são fundamentais para fazermos as cone- xões com o mundo. Sabe matemática? – Sei não, senhor doutor. – Então, caboclo, você está frito. Como você vai vender esse seu peixe? Vai ser enganado pelo patrão... E foi perguntando e o caboclo só sabia dizer que não sabia. Lá pelas tantas, bate a proa da canoa numa samaúma que vinha de bubuia. A canoa afunda, e eis que o pesquisador começa a afundar e gritar: – Caboclo, socorro! Caboclo, socorro! O caboclo, nadando, olha para trás e diz o seguinte: – O senhor sabe nadar, doutor? – Sei não, caboclo. Socorro! – Então, doutor, perdeu sua vida toda, porque aqui quem não sabe nadar morre. A meu ver, desenvolvimento local é um pouco isso. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 53
  • 56. 54 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 57. Comentários Miguel Rossetto Projeto local e projeto nacional – Boa tarde a todos. Quero registrar um elogio à iniciativa do seminário. Creio ser importante – e isso não é protocolar – registrar a qualidade da iniciativa. Penso que tantas vezes quantas nos colocamos o desafio de compartilhar e refletir nossas expe- riências, idéias e referências teóricas, de tal forma a compreender melhor a nossa ação e iluminar o nosso comportamento, tanto mais conseguimos estabelecer relações entre tática e estratégia e cotejar as nossas experiên- cias com as nossas plataformas. E, quanto mais conseguimos realizar esse processo, mais crescemos. Seminários como estes se realizam num momento muito importante para o nosso partido. Acumulamos um enorme espaço político no país, no último período. Conquistamos espaços importantes em prefeituras e em estados. Acumulamos parcelas significativas de poder em várias di- mensões institucionais e, portanto, pensar ou articular essas experiên- cias a partir da visão estratégica que temos do mundo e da sociedade que queremos construir guarda necessariamente um valor singular. To- das as vezes que de alguma forma recusamos esta relação entre prática e teoria e entre tática e estratégia, quando de alguma forma aderimos ao SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 55
  • 58. pragmatismo muitas vezes desqualificado – e a experiência da es- querda está recheada de situações como essas –, sofremos derrotas políticas enormes. Portanto, diante da responsabilidade que o nosso partido acumu- lou no último período, e diante da agenda política colocada para todos nós, é evidente que temas como esse guardam uma enorme atualidade. Fiz uma opção, diante de um tema dessa envergadura, e vou procurar trabalhar com algumas idéias para colaborar com este debate: vou procurar manter uma dupla fidelidade aqui, a fidelidade ao tema proposto pelos organizadores e a fidelidade à minha condi- ção de debatedor. A idéia básica é compreender um pouco o período que estamos vi- vendo, os desafios em relação ao tema do poder local, das nossas ex- periências, e a relação desse processo com uma dinâmica política na- cional e internacional capaz de sustentar uma estratégia de transfor- mação revolucionária. Enterrar o ciclo neoliberal – Estamos fazendo este debate em uma conjuntura política de crescimento importante, com a possibilida- de de acumulação das nossas experiências num espaço enorme e lar- go em escala nacional. Estamos diante de um cenário de grandes pos- sibilidades marcado pela disputa eleitoral de 2002. Este cenário que estamos vivendo encerra um ciclo de hegemonia neoliberal em nosso país, marcado pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que vai exi- gir da nossa parte não só uma política contundente do ponto de vista da radicalidade, da denúncia desse modelo, mas, evidentemente, uma enor- me capacidade de anunciarmos ao povo brasileiro um desenho estraté- gico do modelo de sociedade que nos propomos a construir junto com o nosso povo. Um desenho estratégico, com as mediações necessárias, 56 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 59. que se constitua em referência de construção dessa nova sociedade democrática e popular e que deverá guardar, na sua dinâmica política, uma relação com a visão do futuro que nós queremos, da sociedade socialista que almejamos. Celso Daniel já abordou rapidamente algumas características sobre o período que estamos enfrentando e sobre em que momento realizamos as nossas experiências locais, municipais e estaduais de construção de um projeto democrático e popular. Isso é fundamental porque de alguma forma organiza a noção de possibilidades e de limites. A noção de possi- bilidades e contradições. É importante registrar a dimensão, a envergadura estrutural do projeto neoliberal que Fernando Henrique Cardoso construiu, ou destruiu, em escala nacional. Projeto que aparece anunciando a idéia de fim da histó- ria, anuncia a criação de um novo e potente ciclo de desenvolvimento capaz de gerar riquezas e distribuí-las. Após dez anos da vitória desse projeto em escala continental e mundial, agora nos cabe realizar um ba- lanço rigoroso do fracasso de suas promessas. O custo do processo de venda selvagem do patrimônio público, que não gerou um Estado equili- brado e apto a investir em políticas sociais, como se anunciava, e resul- tou num Estado ainda mais endividado, com menor capacidade de inci- dência nas políticas econômicas. A idéia de um processo de retirada de direitos trabalhistas não ampliou a capacidade de geração de emprego, mas ampliou, sim, o próprio desemprego e a precarização das relações de trabalho. A idéia de uma abertura comercial indiscriminada não gerou um círculo virtuoso de crescimento e de novos investimentos, mas uma brutal desnacionalização da economia, uma quebra de cadeias produti- vas importantes no nosso país. Uma questão que considero desafiadora para todos nós, do ponto de vista da política, é trabalharmos com a contundência, com a capacidade, SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 57
  • 60. com a energia necessária a idéia de que o neoliberalismo encerra um ciclo e fracassou em todos os propósitos anunciados que buscavam lhe aferir legitimidade política e social. Um fracasso econômico, um fracas- so social e um fracasso ético. Temos a tarefa de enterrar – e esse me parece que é o sentido, enter- rar por inteiro – esse ciclo neoliberal no nosso país. Não se trata portanto de derrotar Fernando Henrique e ACM [Antônio Carlos Magalhães] como símbolos, mas de derrotar os valores constitutivos desse modelo, os valo- res culturais, ideológicos, que foram incorporados ao projeto. É nossa tarefa constituir um grande marco de derrota política e ideoló- gica desse ciclo neoliberal. Esse ciclo neoliberal traz elementos novos, de qualidades novas para as políticas regionais. Vou ser telegráfico aqui, talvez possamos aprofundar mais tarde. Basicamente esse ciclo de desconstituição das estruturas estatais oferece como elemento de política de desenvolvi- mento regional, desde o ponto de vista econômico, apenas a idéia da renúncia fiscal e tributária; o espaço de gestão particular de estados e municípios para sustentar um ciclo de desenvolvimento econômico era reduzido. E o que acompanhamos, portanto, foi um crescimento brutal da chamada guerra fiscal e uma ampliação enorme de uma disputa intra-regional. O “desfinanciamento” dos estados já empobrecidos pela ausência de crescimento econômico e, ao mesmo tempo, um processo de sustentação dessa atração de grandes investimentos econômicos por meio de uma transferência direta da renda pública a esses empreen- dimentos. Renda pública basicamente financiada por meio da privatização do patrimônio público ou das empresas estatais. Esse era o ciclo permitido de políticas regionais ou sub-regionais por esse modelo. Uma falência de políticas regionais, um abandono da idéia de política de desenvolvimento nacional; estados e municípios libera- 58 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 61. dos para uma brutal, ampla e selvagem disputa entre regiões, entre 11. Em 1997 a Ford e o municípios e entre estados. Via de regra, uma ampliação de políticas governador do Rio Grande do Sul, Antônio Britto, anunciam fiscais e outras de transferências ampliadas da renda destinada aos a instalação de uma nova mais pobres nas regiões mais desenvolvidas para os mais ricos nas unidade da fábrica no estado. regiões menos desenvolvidas. Quer dizer, esse é um ciclo que acompa- O contrato incluía um repasse nhamos com conseqüências enormes no ambiente federalista, com de 210 milhões de reais para concentração ou reconcentração do poder de uma forma muito pesada a Ford a título de benefício fiscal. Em março de 1998, em escala nacional. 42 milhões de reais foram antecipados pelo estado à Políticas regionais e guerra fiscal – Ao fracasso dessas políticas – montadora. Quando Olívio e penso que esse é um balanço ainda a ser realizado com profundidade Dutra assumiu o governo do Estado, em 1999, no âmbito partidário – corresponde também uma série de importantes começaram as negociações contradições que vivenciamos por conta da política patrocinada por esse para rever os termos do modelo. Não é menor a contradição de que espaços municipais e regio- contrato, até então nais, governados pelo PT, em vários momentos praticam ou articulam desconhecidos dos gaúchos. políticas dessa natureza, de atração de capitais a partir de políticas forte- Depois de muitas reuniões, a Ford anunciou em 28 de abril mente carregadas na renúncia fiscal. Renúncia fiscal como elemento de daquele ano que estava se transferência de renda no sentido inverso, de uma reconcentração de retirando da mesa de renda. De alguma forma também é importante avaliarmos com profun- negociações. Ocorre que desde didade um conceito de desenvolvimento que foi brutalmente impregnado março a Ford vinha em todos nós, a idéia de que uma grande fábrica – Marina Silva traz negociando paralela e sigilosamente com o então elementos importantes para o diálogo, para o debate –, de que uma gran- senador Antônio Carlos de empresa multinacional, via de regra, é sinônimo de desenvolvimento, Magalhães, que numa ou pelo menos sinônimo de vitória eleitoral, na medida em que ela cons- manobra política junto ao titui uma capacidade de adesão política importante do modelo. Eu penso Congresso Nacional destinou que o caso Ford é exemplar. Eu sei que vários de vocês acompanharam uma fabulosa soma de recursos públicos federais o tema Ford/Rio Grande do Sul, Ford/FHC, Ford/Bahia11. para levar a montadora Esta mitologia que sustenta esse tipo de modelo precisa ser desmentida para a Bahia, onde está com fatos e dados. Quando assumimos o governo do estado do Rio Grande hoje instalada. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 59
  • 62. do Sul, em 1999, e por conta da nossa denúncia do contrato com a Ford, que representava a transferência na época de 250 milhões de dólares para esta empresa, a idéia que estava generalizada era que o processo de desenvolvimento industrial do Rio Grande do Sul havia terminado e que a partir dali iríamos viver um longo e doloroso ciclo de declínio da produção industrial. E, portanto, perderíamos, definitivamente, a possibi- lidade de preservar uma estrutura industrial capaz de produzir, gerar emprego e, de alguma forma, se relacionar com o novo cenário interna- cional. Dois anos depois, esta economia gaúcha, sem a Ford, encerra o seu segundo ano, no nosso governo, sendo o setor industrial mais dinâmi- co ou com maior índice de crescimento entre todos os estados da Fede- ração. E, em geral, os estados que mais apostaram na política de renún- cia fiscal, como é o caso da Bahia e do Paraná, seguem, de uma forma sólida, crescendo para baixo, em termos de desempenho industrial. Portanto, é evidente que ao contrário dessa política quase mitológica que entusiasma, que anima, que produz uma brutal pressão política, te- mos de construir referências de desenvolvimento de uma forma distinta. É importante salientar o seguinte: há um fracasso nessas políticas. Temos de realizar um balanço sobre o que aconteceu na década de 1990, nos espaços subnacionais, de uma forma mais sólida, na medida em que é evidente que o programa do nosso partido, que um programa da es- querda, deve construir diálogos com o conjunto das experiências regio- nais existentes no país. Há um balanço rigoroso a ser feito. Parto da idéia do evidente fracasso também em escala municipal e regional do modelo anunciado e produzido. Radicalização da democracia – Faço agora algumas referências rá- pidas à experiência do nosso estado e parto depois para apresentar o que considero possa ser uma colaboração para um referencial estratégico 60 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 63. que possa melhor permitir uma articulação entre a idéia do poder local e a idéia de uma estratégia de transformação socialista. A primeira delas é a possibilidade real que estamos vivenciando no estado do Rio Grande do Sul de pensar uma estratégia de desenvolvi- mento que obviamente não guarda só uma dimensão econômica, mas dialoga diretamente com a qualidade de vida de um povo. Tem como base a idéia de uma profunda radicalização da democracia. Essa idéia parte da consideração de que, se é verdade que temos de recuperar um Estado forte, temos também de, no processo de reconstrução do espaço estatal, das estruturas estatais, ampliar desde já o processo de controle social, o processo de democratização e a idéia fundante da participação popular como elemento organizador de um projeto de desenvolvimento. A idéia de que um programa como o nosso, ou a idéia de sustentar um programa de transformações como o nosso, só tem possibilidades políticas de sustentação na medida em que altera- mos as relações políticas ou as relações de poder na sociedade; e que a estrutura estabelecida em todos os níveis da institucionalidade produz tamanhas contradições nos nossos governos, invertendo pau- tas e agendas que só se sustentam e se desenvolvem com uma forte e permanente mobilização e participação popular. Participação popu- lar, portanto, como instrumento de incorporação na política real, na definição das políticas reais, das grandes maiorias excluídas. E, por- tanto, o conceito de democracia participativa, direta, associada a um conceito de democracia representativa, guarda não uma neutralidade em si, mas uma relação de diálogo direto com uma estratégia de cons- trução de um novo padrão de poder, capaz de viabilizar e capaz de sustentar um programa de transformações, especialmente diante de um quadro político que herdamos, de uma estrutura institucional, de uma estrutura estatal que herdamos. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 61
  • 64. Constituímos experiências importantes, portanto, a partir dessa refe- rência estratégica, a participação popular como instrumento de organi- zação, de controle de um projeto de desenvolvimento, rompendo com uma visão tecnocrática, burocrática de desenvolvimento. Mais do que isso, é evidente que este valor se traduz num valor real de democratiza- ção do poder político, e a democratização do poder político com a incor- poração das maiorias excluídas por essa mesma estrutura representa- tiva guarda, eu penso, uma relação estratégica fundamental com a cons- trução da nova sociedade. A idéia de construirmos de fato uma verda- deira democratização do poder político na nossa sociedade. Recuperação do Estado – Associada a isso, a idéia da possibili- dade de recuperação do Estado na sua capacidade de financiamento, de uma rede de proteção social importante, que traduza e dê materialidade a uma carta de direitos sociais que compõe uma visão de cidadania nesse início de século e, portanto, combate ideologica- mente a idéia do mercado como provedor de saúde, educação, cultu- ra e tantos outros valores. A idéia, portanto, de um Estado capaz de adquirir capacidade de financiamento e sustentar e financiar redes de proteção social, redes públicas que tenham a capacidade de oferecer escola pública de qua- lidade, rede de saúde pública de qualidade e, em conseqüência, de criar as condições reais numa disputa política ideológica de continuar afir- mando que um modelo de sociedade como o nosso, se é um modelo que comporta o mercado, não é uma sociedade de mercado, e que nós temos condições de oferecer aos filhos e filhas do povo trabalhador escola pública de qualidade, posto de saúde etc. etc. Este é um movimento importante que estamos produzindo apesar da brutal crise fiscal que vivemos, mas penso que é uma tarefa central do 62 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 65. ponto de vista programático, que guarda uma grande capacidade de alte- rar concretamente a vida das pessoas e, ao mesmo tempo, constituir um sentido estratégico importante. A idéia de que o processo de modernização capitalista não é capaz de, por si só, absorver um contingente enorme de excluídos; a idéia de esta- belecer um conjunto de estratégias que tenham capacidade de geração de trabalho, de emprego, de renda para os setores excluídos dessa fase ou desse processo de modernização. Talvez aí entre um elemento importante do debate, que é mais ou me- nos o seguinte: se é uma verdade que o nosso programa não se articula em torno do grande capital, temos de ter capacidade de nos relacionar com o capital. E que relação é esta? Não é possível imaginar uma rela- ção de governo e de poder que recusa esta relação e se satisfaz com uma relação marginal, no sentido de periferia da economia. Nós, numa escala estadual, trabalhamos no sentido de construir uma referência de desenvolvimento endógeno. O estado do Rio Grande do Sul é detentor do segundo parque industrial do país. Valorizar, estimular as estruturas de produção industrial, basicamente pequenas e médias empresas, cons- tituir redes de cooperação, proteger e dinamizar os nossos sistemas lo- cais de produção, tudo isso vem constituindo uma estratégia econômica importante que nos permite estabelecer um diálogo claro, aberto, trans- parente com esses setores e guardar maior eficiência naqueles que são os elementos organizadores de uma estratégia econômica. Gerar em- prego, gerar trabalho, democratizar renda. Esses são os valores que de- vem organizar uma estratégia de desenvolvimento econômico e, portan- to, guardados os limites que nós temos do poder ou de poder real, traba- lhamos nessa perspectiva, que ao fim e ao cabo é uma perspectiva de democratização da riqueza e da renda. É evidente que associamos isso a uma política forte de qualificação do modelo de desenvolvimento agríco- SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 63
  • 66. la, procurando fugir de um padrão exportador agrícola, incorporando um conjunto de outros valores da agroecologia, que dialogam com os temas de preservação e ao mesmo tempo com sustentação e renda. E obvia- mente avançarmos no tema da reforma agrária numa perspectiva de democratização da propriedade. O que quero enfatizar é que as experiências que estamos construindo – que muitas vezes têm representado derrotas importantes, mas também com muitas experiências positivas – precisam ser cuidadosamente ana- lisadas e aprofundadas, porque todas elas, penso eu, guardam referên- cias muito importantes. O local e o nacional – Eu encerro, portanto, com duas hipóteses de discussão para o nosso seminário. A primeira delas – que nos tensiona permanentemente como companheiros que receberam um mandato do partido para representar este programa numa experiência de gestão, como é o meu caso como vice-governador, o caso do Celso Daniel como pre- feito etc. – é que temos que recusar peremptoriamente a idéia de que só é possível implementar com consistência e efetividade uma política de desenvolvimento no terreno nacional. Ou seja, rejeitar a idéia da recusa dos espaços municipais e regionais como produtores de um projeto alter- nativo. Via de regra essa é uma tese que embasa uma política ultra- esquerdista ou uma política de um pragmatismo enorme. As duas nos levam sistematicamente à derrota. Ou seja, esta idéia de que enquanto não conquistarmos o poder nacional – e me parece que muitas vezes a idéia de um poder nacional é uma eleição presidencial – não há nada o que fazer – e este “não há nada o que fazer”, via de regra, nos leva para aqueles dois cenários, ou o ultra-esquerdismo ou o pragmatismo, e a conseqüência é a derrota. Nossa experiência – e quando digo nossa experiência me refiro às várias experiências que temos produzido no 64 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 67. país, pautadas por essa relação programática, orientadas pela relação estratégica de transformação – mostra que temos um grande espaço de intervenção política, cultural, ideológica, de afirmação de valores que constituem elementos de transição sólidos para uma sociedade distinta. Capaz mesmo de desconstituir a hegemonia dominante e de alicerçar os valores da solidariedade, do espaço público; e, mais do que isso, espaços significativos de qualificação real da vida das pessoas. A segunda idéia que quero apresentar é que tão nocivo quanto a idéia de que não é possível fazer nada sem uma grande ruptura em caráter nacional é afirmar ou supervalorizar a possibilidade das expe- riências do poder local. Essa idéia, muitas vezes alimentada e sustentada de uma forma incor- reta, assume um superdimensionamento das possibilidades locais ou re- gionais, de tal forma que acaba diluindo a capacidade de enxergar a idéia de um modelo nacional ou de uma agenda nacional. O Banco Mundial é mestre em fazer isso. Ou seja, desse modo é possível sustentar o modelo atual a partir de políticas setoriais, a partir do apoio a programas munici- pais aqui ou acolá, de tal forma que criem um ambiente de sustentação desse modelo, de possibilidades diante desse modelo. Então, essa idéia de que é possível construir um novo padrão de desen- volvimento a partir tão-somente de projetos regionais, ou de projetos locais, via de regra associados a essa dimensão hiperatrofiada do tercei- ro setor, precisa ser enfrentada. Quero dizer que um projeto regional de desenvolvimento pode, sim, conter em potência, ou com potência, o modelo de uma nova sociedade. Mas só se realiza a partir de mudanças que se localizam no terreno nacional e se estendem no terreno internacional. A idéia básica é que no terreno nacional se encontram os grandes mecanismos de poder capa- zes de incidir de uma forma mais concreta e real sobre a vida real das SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 65
  • 68. regiões, dos locais e das pessoas. Câmbio, juros, legislação trabalhista, regulação de direito de propriedade etc. Ou seja, penso que a idéia fun- damental deva ser nossa capacidade de pensar uma relação entre um poder local e as diversas experiências de gestão que estamos produzin- do; elas guardam potência real, dialogam com o sentido estratégico de sociedade que queremos construir, tanto mais elas estiverem relaciona- das com a capacidade de compartilharmos, de uma forma paralela no tempo, as diversas agendas. Agenda municipal, agenda estadual, agenda nacional e agenda internacional constituem, em conjunto, uma estratégia política, e tanto mais se conseguimos enxergar a relação do município no estado, a relação do estado para baixo e para cima, tanto mais se conse- guimos enxergar as nossas políticas nos espaços internacionais, tanto mais se conseguimos dar potência às nossas experiências e uma refe- rência estratégica mais geral. Este é o sentido maior da minha colaboração. Quanto mais formos capazes de articular nossa estratégia política, de uma forma simultâ- nea, com o conjunto das agendas políticas, e de compreender o caráter simultâneo dessas agendas, mais transformaremos nossas experiên- cias reais de gestão em experiências potencializadoras da construção de uma nova sociedade. A idéia, portanto, é de que não estamos administrando uma cidade, construindo nessa cidade ou a partir dessa cidade um programa e um projeto democrático popular; que não administramos um estado, mas temos a tarefa de construir a partir desse estado um projeto democrático e popular que guarde relação direta com as transformações nacionais. E, tanto mais a agenda internacional chega até nós, mais fácil é com- preender isso. Por exemplo, o tema da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). É evidente que um projeto dessa envergadura, que significa tarifa zero comercial, renúncia da capacidade de autonomia de 66 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 69. construção de políticas econômicas, de política industrial, de política tecnológica, retira literalmente a capacidade de produção de políticas nacionais, de políticas regionais e de políticas municipais. Não é possível imaginarmos espaços de construção de políticas autô- nomas com um país aprisionado numa estrutura institucional internacio- nal, em que se delega a esse tratado internacional toda a capacidade de produção de política industrial, tecnológica, comercial etc. Encerro com esse exemplo, dando a dimensão de como as nossas agen- das são rigorosamente interligadas. Uma estratégia forte exige uma ca- pacidade de articularmos em conjunto essas agendas, ou então estare- mos despontencializando a nossa capacidade de produção de uma outra hegemonia política na sociedade. Muito obrigado. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 67
  • 70. 68 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 71. Comentários Ladislau Dowbor Urbanização e gestão social – Acho muito importante cruzarmos os conceitos de marxismo e socialismo e o de local. O conceito de espaço praticamente não existe na obra de Marx. É interessante uma questão que discutimos bastante com Milton Santos: as dinâmicas espaciais são pode- rosas na organização econômica. Nós nos referimos em particular ao es- paço local, que apesar de pequeno constitui um espaço político essencial. Na realidade, não estamos falando do local em abstrato, mas do espaço no qual a comunidade pode se articular. Aquele em que a educação, a saúde, a produção, as pequenas empresas podem se transformar em um espaço integrado de construção social e econômica, porque, de outra forma, de- pendemos de setores, de ministros, de coisas que vêm de cima. Estamos articulando gente, estamos administrando o espaço. Considero isso muito importante. É o primeiro debate de que participo que faz de fato uma discussão teórica entre as dimensões políticas, no sentido amplo dos nos- sos grandes ideais, e o espaço local. Isso é extremamente poderoso. Não temos nenhuma desculpa a pedir quanto aos nossos ideais. Os ideais do socialismo, de uma sociedade mais humana, estão aí, e continua- mos a batalhar por eles. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 69
  • 72. Mas, numa sociedade que mudou radicalmente, temos de passar a construir esses ideais de uma maneira diferente. Como esquerda, fo- mos sempre acuados a um tipo de estatismo, e vestimos essa carapu- ça. O estatismo é problemático – acho que Celso Daniel fez muito bem ao levantar essa questão –, e não é central ao marxismo. Ele é central na medida em que, numa visão de estratégia de luta bem leninista, se conquista o Estado para se contrapor ao poder da burguesia, ao poder econômico. É uma alavanca para derrubar o poder do capital sobre a sociedade, para numa segunda etapa evoluir para a redução e o fim do Estado. O objetivo é um espaço democrático – para Marx, é óbvio. De tanto querer construir o socialismo, acabamos por caminhar num sen- tido profundamente inverso, e é complicado e interessante como essas coisas se deram. Trabalhei na Polônia, na Argélia, na Nicarágua, em uma série de paí- ses socialistas. Com esse tipo de experiência, acabamos por sentir o peso desses sistemas de organização, nos quais o poder formal capitalis- ta é extinto ou reduzido muito fortemente e não é substituído por um sistema democrático de gestão. O resultado é uma máquina burocrática, em que constatei, por exemplo, que o poder de um grande empresário privado e o de uma grande empresa estatal na Polônia podiam ser rigo- rosamente semelhantes. Tal como no caso do proprietário de meios de produção, vemos uma pirâmide de poder que vai se construindo. São aspectos que devemos repensar; felicito a organização desse trabalho por cruzar os temas socialismo e poder local. Venho há muitos anos brigando pelos espaços descentralizados. Cansei de gente que me explicava: “Mas isso é pequenininho, isso não é política...”. Imaginamos sempre que a política é algo que conquistamos. Está lá em cima, em algum lugar há um bolo. Então, quando chegamos lá, pega- mos o bolo. É nosso. 70 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 73. Lembro-me de conversas do nosso grupo com Salvador Allende, no Chile, e ele dizia: “Olha, eu estou aqui no Palácio. No meu Palácio. Ponto. Eu tenho dois oficiais do Exército que me apóiam”. Ocupar o Palácio resolve? Tomo o exemplo inverso do Irã, sem fazer nenhum julgamento de valor ou coisa semelhante sobre os aiatolás etc., mas o imenso poder do xá não foi derrubado com um grande exército, com um grande movimento ar- mado, com tiros e canhões. Vejam que o exército do xá do Irã não era brincadeira, mas caiu com um peteleco, com as gravações, as fitas cas- setes que o aiatolá Khomeini distribuía com sua pregação. A cultura adquiriu pesos radicalmente diferentes, e conquistar a população pode ser muito mais importante do que conquistar a máquina do Estado. Isso representa deslocamentos profundos para nós. É curioso, temos dificuldade de deslocar a visão das coisas e, ao mesmo tempo, é bonita a nossa caminhada para deslocar as coisas, porque quando falamos com liberais ou neoliberais eles continuam a repetir rigorosamente o mesmo discurso do século XIX, ou seja, “mão invisível”, laissez-faire, enquanto a esquerda está realmente construindo alternativas. Não, a meu ver, por inteligência própria, mas porque a cacetada que levamos foi tão grande, com a queda do muro de Berlim e de todos esses sonhos de um macropoder, arbitrário, vindo de cima, que começamos a repen- sar tudo. Isso está surgindo com toda a força no Brasil, porque é o espaço que nos resta. Quem manda neste país? Na década de 1950, era a UDN [União Demo- crática Nacional], depois a Arena [Aliança Renovadora Nacional], no tempo dos militares, que depois virou PDS [Partido Democrático Social], e depois o PFL [Partido da Frente Liberal]... É o mesmo bando, são as mesmas famílias, inclusive. Um ACM [Antônio Carlos Magalhães] pertenceu a cada uma destas agremiações, sucessivamente, nunca saiu do poder. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 71
  • 74. E curiosamente, pelo fato de que a construção de alternativas de ges- tão só tinha espaço, no Brasil, nas prefeituras, pois mais acima o controle continuava a ser das oligarquias tradicionais, passamos a administrar o cotidiano político das populações, a entender melhor o que é uma favela, o que é custo burocrático, o que é organizar uma licitação, o que é o enfrentamento com a mídia, o que são as práticas reais do convívio polí- tico; creio que é um capital acumulado absolutamente gigantesco. O capitalismo produz, mas não distribui: é estruturalmente in- completo – Temos uma conjuntura particular hoje. Por haver trabalha- do muitos anos nas Nações Unidas, recebo as publicações do Fundo Monetário Internacional [FMI], do Banco Mundial, essas coisas. Recebi uma publicação que me tocou muito, do FMI, que traz na capa uma foto- grafia de um menino negro com a camisa rasgada. E o que vem na capa realmente nos comove: “Como podemos ajudar os pobres?”. Trata-se da principal publicação do Fundo Monetário! Pensei em várias respostas de diversos níveis, enfim, de educação... Mas o fato é que não é só cinismo o Fundo Monetário Internacional colocar isso na capa de sua publicação no mesmo ano em que a capa do Relatório do Banco Mundial é um outro menino negro, esse mais estilizado, uma pintura artística, com o título “Atacando a pobreza”. Também no mesmo ano, o relatório das Nações Unidas vem com o título “Enfrentan- do a pobreza”. A situação é simples: esse sistema capitalista é um bom produtor, um bom organizador de produção. É possível juntar 200 pessoas e determinar um objetivo, por exemplo: “Vamos produzir bem um tipo de sapato”. Concentrar de maneira orga- nizada um conjunto de esforços em torno de um objetivo funciona. Mas isso não resolve o problema da distribuição. O sistema não é um bom distribuidor, porque, quanto mais poder econômico a empresa acu- 72 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 75. mula, mais ela transforma isso em poder político, mais desequilibra as relações sociais e gera as tragédias que conhecemos. Ou seja, é um sistema que vai além da questão de gostarmos ou não do neoliberalismo, essas coisas. Como sistema, essa é uma questão de bom senso, não é mais discurso de esquerda ou direita, ele só funciona com metade da roda, porque o sistema econômico tem de produzir e distribuir, fazer cir- cular. Ele não distribui. Conclusão do Banco Mundial, deste ano: 2,8 bilhões de pessoas vivem com menos de 2 dólares por dia – não é uma média, é de 2 dólares para baixo – e 1,2 bilhão vive com menos de 1 dólar por dia. Essas pessoas não navegam na internet, não usam aquele sabonete... É um sistema que gerou uma fratura social como a humani- dade jamais conheceu, além de gerar destruição ambiental, tragédias. Ou seja, o liberalismo está à procura de caminhos, e quando considera- mos que nós os temos, porque aprendemos a trazer respostas na área do social, e aprendemos inclusive a articulá-las, como diz Marina Silva, com a dimensão ambiental, com a dimensão econômica, com as outras di- mensões da sociedade, temos um momento historicamente privilegiado, historicamente poderoso. As grandes simplificações do século XIX, que foram tentadas no sécu- lo XX, a meu ver, se foram. De um lado, o proletariado administrando o Estado e utilizando o planejamento, e, de outro, a burguesia, a empresa e o mercado como mecanismo regulador. Tínhamos a nossa classe reden- tora, o proletariado; o capitalismo tinha a sua classe redentora, a burgue- sia. Esses dois modelos simplificadores não estão respondendo aos de- safios que precisamos enfrentar. Urbanização – Eu trabalharia o poder local, Celso, com dois eixos que transformam o processo em profundidade. Primeiro, a urbaniza- ção. Nós ainda não pensamos o gigantesco impacto de termos passado SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 73
  • 76. de uma situação, na década de 1950, em que dois terços da população viviam no campo, para outra situação, hoje, em que 80% das pessoas vivem na cidade. O poder se gere hoje por meio das cidades. Só que o município está na linha de frente dos problemas e é o último escalão da estrutura pública. Os problemas de saúde, segurança etc. se avolumam em torno da cidade, das periferias urbanas explosivas, mas as decisões continuam em Brasília. Se compararmos o Brasil com países de urbanização mais antiga, dos quais um exemplo forte é a Suécia, veremos que lá 72% de todo o bolo dos recursos públicos são gastos localmente, com os conselhos, com as populações participando etc. No Brasil, esse índice é apenas da ordem de 15%. Uma coisa é saber o tamanho do Estado, outra é saber onde está o Estado. Quanto mais se aproxima o Estado da população, mais se gera capacidade de articular essa população em torno do uso dos recur- sos públicos, e isso é poder. Esse é um eixo extremamente importante. Avançamos um pouco com a Constituição de 1988, houve uma leve descentralização de recursos. Temos um imenso eixo de transformação pela frente nesse espaço. Outro ponto fundamental é a importância da área social. Há um con- ceito chamado “serviços” que eu já parei de utilizar, por ser vago demais e confundir os problemas. Na definição atual, que é residual, quem não trabalha a terra (agricultura) e não trabalha na máquina (indústria) está na área de serviços, ou seja, faz parte de “outros”. Esse “outros” se chama serviços, e é um imenso saco de gatos. Por exemplo, na agricul- tura, nos Estados Unidos, diz-se que só se empregam 2,5% da popula- ção, o que é uma imensa bobagem. Realmente, lavrando a terra são só 2,5%, mas nesse processo se usa também inseminação artificial, que é um serviço prestado por uma empresa, assim como análise de solo, ser- viços meteorológicos, serviços de comercialização primária e por aí vai. 74 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 77. Com todas essas coisas eleva-se o nível da agricultura, intensifica-se a dimensão dos conhecimentos envolvidos, mas não é outro “setor”. É uma forma moderna de fazer agricultura. Continua a ser produção. Se pensamos o conjunto das modernizações ligadas diretamente aos segmentos da indústria e da agricultura, os dois grandes pilares produti- vos, o que fica na área não-produtiva diretamente, o grande eixo, é o social. Consideremos os Estados Unidos: 14% do PIB [Produto Interno Bruto] norte-americano é saúde, hoje o maior setor econômico do país. Acrescente-se educação, tanto a formal como a formação nas empre- sas (hoje só as corporate universities são mais de 2.000), e chegamos a outros 15%. Acrescente-se a cultura, que eles chamam indústria do entretenimento: seguimos tranqüilamente para a faixa dos 40% do PIB. O ponto de interrogação é o seguinte: como se regula essa área? Porque a área industrial eu entendo, o capitalista é proprietário da fá- brica, o trabalhador trabalha e recebe um salário, há a portaria, o reló- gio de ponto etc. E no social? Marx, há mais de um século, viu o surgimento da indústria, e disse que a indústria não é só o que as fábricas criam, ela muda as relações de produção. Desenvolveu a teoria do capital, do assalariado, da mais-valia. E quais são as relações de produção implícitas na área social? Isso é interessante. Quando olhamos para a saúde, por exemplo, vemos que ela não funciona bem com grandes máquinas estatais. Já funcionou. Costumamos dizer: “Como era boa a educação estadual no Brasil!”. Era para meia dúzia, gente! Como proporcionar saúde para 170 milhões de habitantes, sendo que a saúde é capilar, tem de chegar a cada habitante, a cada criança, por meio de uma gigantesca máquina centra- lizada em que há tantas hierarquias, patamares intermediários? Trabalho com essas coisas de administração e costumamos brincar que a partir de quatro níveis hierárquicos quem está lá em cima vive na ilusão de que SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 75
  • 78. alguém lá embaixo obedece, e quem está lá embaixo vive na ilusão de que alguém lá em cima comanda. Não funciona. E não é a questão de privatizar, porque se tem aí uma situação pior, absolutamente caótica. Fizemos um levantamento sobre vitamina C, do tipo efervescente. Um tubinho desse custa 6 reais. Vocês sabem quanto tem de vitamina C, de ácido ascórbico, lá dentro? Três centavos. Claro, você paga a substância que faz borbulhas, a tampinha que faz “ploc”, aquela publicidade com a madame segurando aquela criança loirinha, com o marido – na publicidade o marido está ali... Vejam bem, com um processo desses, multiplicamos por 200 o custo de um produto simples, e excluímos dois terços da população brasileira de um medicamento abso- lutamente essencial. Diz-se na economia que se trata de uma demanda inelástica: você tem um filho, precisa comprar um remédio. Se o remédio dobra de preço, você continua a comprar o remédio, porque é para o seu filho. Que outra opção você tem? Mercado nesta área simplesmente não funciona, a doen- ça da criança não é uma mercadoria. Nos Estados Unidos, não entendiam por que numa cidade se hospita- lizava tanta gente. Verificaram o hospital e viram que ele dava 100 dólares para o médico que encaminhasse alguém para lá. Claro, um médico norte-americano não vai se vender por 100 dólares, mas enfim, o casamento da filha, 100 dólares daqui, 100 dólares dali... O fato é que se verificou uma taxa de hospitalização fenomenal, e os proprietários estão sendo processados. Um médico meu amigo diz que não há clien- te saudável, há diagnóstico incompleto. Não estou brincando! No esta- do de São Paulo temos 52% dos partos feitos por cesariana. Segundo o Unicef [Fundo das Nações Unidas para a Infância], esse procedimen- to multiplica por quatro os riscos para a mãe e para o filho. Uma carni- ficina. Por quê? Porque rende. 76 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 79. O que estou tentando mostrar é que esse gigante econômico que constitui a área social, que não aprendemos ainda a analisar do ponto de vista das relações de produção que gera, não é bem administrado pelo sistema estatal, centralizado, tradicional, e é muito mais mal admi- nistrado pelo sistema privado. É um eixo que está buscando os seus paradigmas de gestão. Descentralização e participação – E aos trancos e barrancos, inventando, começamos a verificar que as atividades ligadas ao so- cial funcionam simplesmente de maneira descentralizada e participativa. Por quê? É muito simples. Se consideramos um con- selho de pais numa escola, o maior interesse é que não se brinque com o futuro dos filhos. Os pais não precisam ter ações da escola, do sistema privatizado ou coisa do gênero... Cada um está interes- sado em seu filho. Então, ao organizar a participação comunitária, levamos a que as coisas se racionalizem. Na saúde é a mesma coisa. E na cultura, outro setor que Celso Daniel citou. Na realidade, os setores citados por Celso são essencialmente sociais. E os setores sociais são o grande eixo. Para mim, a grande preocupação com a tal da Lei de Responsabilidade Fiscal é que o que é limitado é a contratação de funcionários, e os setores sociais emer- gentes são justamente intensivos em mão-de-obra. O que estou tentando trazer como idéia é que, com a urbanização, somos levados a um aumento brutal do consumo coletivo. Para a popu- lação dispersa no campo, o lixo é jogado na valeta ou pela janela, o transporte é o jegue ou o caminhãozinho; a água é do poço... As solu- ções são individuais, familiares. Quando se está na cidade, construir a casa é o de menos, é preciso se conectar com as redes de água, de esgoto e de eletricidade, com o transporte público, com as linhas tele- SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 77
  • 80. fônicas. É um sistema de redes interdependentes. Eu trabalhei na Guiné Equatorial e não havia sistema público de eletricidade decente. As pes- soas tinham aqueles geradores Honda, soluções individuais. Era uma barulheira tremenda, ninguém dormia na cidade. Com um custo que vocês imaginam... um gerador individual implica gigantescos desperdí- cios. Um sistema que deveria ser de consumo coletivo foi privatizado, individualizado, deixando a Honda muito contente, está lá vendendo as maquininhas dela. As pessoas aqui sorriem com um absurdo desses, dizem: isso é na África. No entanto, chegamos aqui e vemos que cada um é obrigado a comprar, por 20 mil reais, um carro, e estamos andando, em média, a 14 quilômetros por hora, porque não há transporte público. Nesse plano estamos em plena África. Se começarmos a pensar a gestão do social, o tipo de impacto que a urbanização tem, por um lado, e, por outro, o impacto social em termos de relação de produção que tem a emergência desse imenso setor do social, acho que temos um eixo extremamente interessante de análise sobre como o poder local é um reconstrutor social de longo prazo. Como o social exige que a população se articule, e exige a expan- são do consumo coletivo e público, torna-se um construtor natural de uma rearticulação comunitária extremamente poderosa. E sabe- mos que talvez o impacto mais trágico do conjunto desse sistema capitalista moderno seja a desarticulação social, a atomização. Quan- do se reconstrói o tecido social, não acho que seja suficiente para reconstruir a política, mas creio que é uma condição necessária no plano dos dilemas que estávamos levantando. Acho que pensarmos que só é possível resolver os problemas com o local é uma ilusão. Mas, se não há uma população organizada, articulada pela base, 78 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 81. pode-se chegar a Brasília com a pasta, com a faixa e tudo, e se fará muito pouco. Só mais uma informação: há um pequeno texto meu que apresenta de forma mais organizada estas idéias, e que eu gostaria que vocês consultassem. Chama-se “Gestão social e transformação da socie- dade”. Está na internet, na página http://www.ppbr.com/ld. Vejam em “artigos online”. Muito obrigado. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 79
  • 82. 80 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 83. Debate com o público Max Altmann aparato partidário que levou à es- Minha intervenção está ligada à tagnação e à corrupção, ao defi- discussão dominante neste ciclo de nhamento político e ideológico e, debates, e também hoje, quando a finalmente, à derrocada. O PT ne- mídia bate insistentemente na tecla gou esses aspectos, e sua prática de que o PT abandonou o socialis- e sua pregação são contrárias a mo em favor de outras bandeiras. tudo isso, mas não negamos o que No entanto o PT nasceu negan- a Revolução de Outubro represen- do alguns dos aspectos identifi- tou para as conquistas da classe cadores do socialismo real: parti- trabalhadora em todos os recan- do único e monolítico, ditadura do tos do mundo, nem o papel históri- proletariado, falta de democracia co do socialismo, ao derrotar no interna – o que eliminava a discus- campo de batalha o nazi-fascismo, são ampla dos problemas em to- nem as proezas do socialismo no dos os escalões –, burocratização campo econômico – ao contrário do aparelho estatal e partidário, su- do que prega o atual pensamento bordinação do aparelho de Estado único –, que levou, em poucas dé- e da sociedade como um todo ao cadas, um país atrasado à condi- SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 81
  • 84. ção de superpotência, rivalizando há socialismo, tampouco a demo- com os Estados Unidos. Nem cracia plena e consolidada sem o mesmo a importância geoestraté- socialismo, ou seja, a superação da gica da bipolaridade que propi- sociedade de classes fundada na ciou, por exemplo, o fim do colo- exploração e na alienação. nialismo e cuja ausência, hoje, O socialismo não é um abstrato permite aos Estados Unidos po- conjunto de valores que orientará rem e disporem ao seu talante. a utópica tarefa de melhorar o ca- Para um segmento de personali- pitalismo, compatibilizar o reino do dades nada insignificantes da es- mercado com a justiça social. O so- querda brasileira, já não se trata cialismo é uma nova e inédita or- de articular socialismo e democra- dem social, na qual, no lugar da cia, mas simplesmente de afirmar velha sociedade burguesa, com que o socialismo se tornou peça suas classes e seus antagonismos de museu a ser enterrada junto de classes, surge uma associação com o muro de Berlim, não res- em que o livre desenvolvimento de tando assim à esquerda outra ta- cada um é pressuposto para o livre refa além daquela de compa- desenvolvimento de todos. tibilizar capitalismo e justiça social. Sabemos que existem no PT cor- O alvo polêmico dos textos de rentes que negam explicitamente o Carlos Nelson Coutinho – e esses socialismo em nome de uma nebu- textos dizem respeito exatamente losa democracia republicana, que ao PT – já não é constituído ape- quando falam em socialismo é para nas pelos que negam ou subesti- prestar homenagem, mas de modo mam o valor universal da demo- meramente verbal; outras identifi- cracia, que ainda ocupa algum es- cam-se com a proposta de uma paço na nossa esquerda, mas tam- suposta terceira via; outras ainda bém por aqueles que parecem ago- com a social-democracia, mais à ra ignorar que sem democracia não esquerda ou à direita. Esse emba- 82 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 85. te é real e é natural dentro do PT. econômica é condição ne- Mas, se o partido se define como cessária mas não suficiente socialista, então as definições ideo- para a realização integral das lógicas devem ser esclarecidas. potencialidades abertas pela Isto nada tem a ver com modelos crescente socialização do anteriores ou atuais, com a veloci- homem. Essa realização im- dade ou a condução tática do pro- plica também o fim da alie- cesso; já há um consenso generali- nação política”. zado e implícito de que o caminho brasileiro para o socialismo obede- Gostaria de mencionar muito ra- cerá à história, à índole do povo pidamente uma questão que tam- brasileiro, à sua cultura, ao seu bém vem sendo muito batida, a crí- acúmulo de lutas, à sua realidade tica que a social-democracia e o li- social e econômica, e por aí afora. beralismo fazem ao socialismo, que Nessa marcha, a democracia não preserva os direitos humanos eco- é um caminho para o socialismo e nômicos, salienta os direitos huma- sim o caminho do socialismo. nos econômicos, sociais e culturais Volto a Carlos Nelson Coutinho: e despreza os direitos políticos e civis. Nós consideramos que am- “A plena realização socialis- bos devem ter o mesmo peso. Mas ta do homem não requer que ocorre nos países do Terceiro apenas a supressão da apro- Mundo? Os primeiros, os direitos priação privada dos meios de econômicos, sociais e culturais, são produção, que são frutos do extremamente precários. Salários trabalho coletivo. Requer baixos, desemprego, saúde precá- também a eliminação da ria, educação de baixo nível, anal- apropriação não-social, fabetismo, analfabetismo funcional; privatista das alavancas de e os segundos são meramente for- poder. Superar a alienação mais, comparecer de quatro em SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 83
  • 86. quatro anos ou de dois em dois anos Esses são alguns temas que eu ao posto eleitoral, e participação na proponho para nossa apreciação atividade política muito reduzida. e discussão. Quando os Estados Unidos se opõem ao protocolo de Kioto, eles Inácio Teixeira Neto se opõem ao primeiro dos direitos Boa tarde à mesa e aos senho- humanos, a vida, sem a qual os de- res participantes. Meu nome é mais simplesmente não existem. Inácio Teixeira Neto e hoje tra- Essa é uma violação aos direitos balho em uma assessoria da Se- humanos fundamentais, e muitos cretaria de Negócios Jurídicos e dizem que não querem nenhum re- de Cidadania, de Campinas, em- gime que, por exemplo, não preser- bora minha trajetória tenha sido ve a liberdade de imprensa. No toda feita aqui em São Paulo. A entanto, nos países capitalistas razão da minha pergunta foram as existem fortes limitações de ordem opiniões de alguém que aprendi econômica à liberdade de impren- a admirar muito, o professor La- sa. Se nós quisermos fundar nesse dislau Dawbor. país um jornal diário de circulação Meu único objetivo em intervir é nacional, teremos de desembolsar, retomar a questão da figura da cri- paulatinamente, 500 milhões de ança negra usada pelo FMI em seu reais, sem o que não conseguire- relatório, e também sabemos que o mos levar às massas diariamente Banco Mundial usou figura seme- algo que se oponha à mídia que de- lhante. Em Campinas temos a Se- fende a ideologia do neoliberalismo cretaria de Cidadania, que acabou – não vamos poder nos contrapor. de criar uma Coordenadoria da Co- Essa é uma limitação muito severa munidade Negra. Temos uma preo- a um direito humano fundamental, cupação fundamental que é a de que é o da liberdade de imprensa saber, dirigindo-me à mesa, quais ou da liberdade de expressão. as iniciativas que a esquerda, so- 84 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 87. bretudo o PT, está tomando nesse vas surgidas ao capitalismo naquele sentido. E para o professor Ladislau período dos anos 30 seriam ambas Dowbor: qual a alternativa de ba- de natureza totalitária. Você falou talha que nós, negros, temos de em totalitarismo soviético e totalita- encetar aqui no Brasil? rismo fascista. Só para efeito polê- mico, quero registrar que considero Alencar isso uma agressão, não pessoal, cla- Boa tarde a todos os presentes, ro, mas a toda uma história que deve meu nome é Alencar, sou do PT de ser levada em conta; também deve Guarulhos. Gostaria de fazer uma ser considerado o comportamento pergunta ao prefeito Celso Daniel efetivo dos capitalistas alemães e e, se possível, gostaria de ouvir tam- italianos em relação ao partido na- bém um comentário do vice-gover- zista e ao partido fascista. nador do Rio Grande do Sul. O se- Creio que mesmo a referência a nhor propõe que se rediscuta a Fe- Trotski está deslocada, porque deração, dando maior ênfase ao Trotski, que usa o termo “totalitá- poder local. Não seria necessária rio” no texto que você leu, fazia também a criação de mais um ente uma defesa da União Soviética, di- federado de nível regional, ou seja, zia que era preciso uma revolução não só município, estado e União, política. Ou seja, “totalitário”, para mas um ente que representasse as ele, se referia a um regime político, nossas regiões, como Sul, Centro- e não a um sistema social e, como Oeste e as demais? sistema social, ele afirma que o na- zismo e o fascismo são um prolon- Valter Pomar gamento do capitalismo num deter- Minha primeira pergunta é para minado momento. Celso Daniel. Gostaria que ele ex- Apesar de o tema não ser esse, plicasse por que adota e como en- queria entender melhor se você tende essa idéia de que as alternati- usou totalitário só no sentido polê- SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 85
  • 88. mico ou se é essa mesma a visão Marx ironiza, em A guerra civil que você tem sobre a experiência na França, quando diz que a Co- socialista do século XX. muna de Paris realizou o sonho de Ainda para Celso Daniel: achei um setor da burguesia que clamava bastante interessantes algumas ad- por um governo barato. Os nossos vertências que você fez em rela- governos são eficientes, são hones- ção a tomarmos cuidado com a idéia tos, são preocupados com o desen- de que podemos estar mudando volvimento econômico, em certo sen- tudo e, na verdade, podemos estar tido não se preocupam em servir a dando, sob nova forma, continuida- um setor da classe burguesa ou a de ao velho. E, ao mesmo tempo, uma fração, mas pensam o desen- tanto Rossetto como Celso chama- volvimento econômico como um todo. ram a atenção para a necessidade, Gostaria de ouvir de vocês um em escala local, que pode ser mu- pouco sobre esse outro lado do pro- nicipal ou estadual, de manter a li- blema. Em que medida os gover- gação com os setores dinâmicos da nos de esquerda podem ser absor- economia. Falando em português vidos pela dinâmica real do capita- mais claro, com o grande capital, lismo existente no Brasil? Pode ou pelo menos com setores do gran- acontecer, não pode? de capital. Não estou entrando no Por último, nessa mesma linha, mérito, isso é inevitável. Mas a mi- eu perguntaria a Ladislau e a nha pergunta a partir desses dois Marina, respectivamente, como as pontos é: qual a possibilidade de instituições financeiras, multilate- uma gestão de esquerda, petista, ser rais, o Banco Mundial, o Fundo funcional, ser útil para o grande Monetário Internacional, vêem as capital? Ou seja, para os partidos questões do poder local e do de- de direita, uma gestão de esquerda senvolvimento sustentável? é ruim, isso nós sabemos. Mas e Tive, nos últimos dois anos, con- para o grande capital? tato com diversas ONGs e com vá- 86 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 89. rios representantes desses organis- ou seja, fazer as coisas em nível mos multilaterais, e a minha impres- local”. Essa simetria, ao menos são é a de que eles incorporaram para mim, não parece convincen- esses dois conceitos, trabalham e te. Sou entusiasticamente a favor manipulam esses conceitos. Então, da primeira hipótese e tenho gran- minha pergunta não é sobre como des dúvidas sobre a segunda. eles vêem essas questões, mas so- Ou seja, qual é o limite do que se bre que diferença existe entre o que pode fazer em plano local? O que eles dizem e o que nós defende- impede de fato: o câmbio, a política mos? Quando o Banco Mundial faz de juros ou a legislação do traba- loas ao poder local e uma outra ins- lho? Claro, a grande limitação do tituição fala de desenvolvimento poder local é o limite de localidade. sustentável, qual a diferença que há As possibilidades em São Paulo, nisso conceitualmente, não na prá- uma área superdesenvolvida e com tica. Que diferença existe? problemas próprios das suas con- tradições, e no Acre – e em outras Paul Singer áreas do Brasil – são diametral- Coincidentemente, minhas preo- mente diferentes, mas não têm cupações são muito semelhantes às nada a ver com o governo federal. do Valter, acho que minhas pergun- Acho importante aprofundar essa tas vão coincidir em grande medi- questão, que está ligada umbilical- da com algumas que ele fez. mente a outra questão que o Valter Quero voltar ao dilema que o propôs, mas que eu quero levantar companheiro Rossetto apresentou nos meus termos, que podem até no fim de sua exposição entre di- ser idênticos, não sei se são. É pos- zer “recuso a hipótese de que nada sível desenvolver uma economia, pode ser feito a não ser quando ti- em qualquer dimensão geográfica, vermos o governo federal” e “re- num bairro, numa grande cidade, cuso também a hipótese contrária, num estado, num país, sem contar SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 87
  • 90. com o grande capital? Não a ex- Coordenador da mesa pulsar ou provocar uma fuga de Há algumas perguntas dirigidas capitais, isso seria meio suicida, mas diretamente aos debatedores e há simplesmente sem estar nos preo- outras mais gerais. Vou lê-las: cupando em atraí-lo, em ganhar ou manter a sua confiança? É possí- José Carlos pergunta, especial- vel criar uma alternativa, que pode mente para Ladislau Dowbor, ser chamada popular, socialista, sobre a ALCA , que foi elaborada solidária, pouco importa, sem limi- na gestão George Bush pai e tações? Eu estou expondo essa agora está proposta novamente questão com toda a ênfase possí- por George Bush filho, que com- vel. Há um consenso, que não com- promete a soberania da Améri- partilho, de que isso é coisa peque- ca Latina. Que significa, de fato, na, complementar, uma forma po- esse projeto? pular de ajudar os pobres a serem um pouco menos pobres. Mas exis- Joaquim, do Núcleo de Base do te também uma possibilidade de di- PT do Centro [São Paulo, Capi- zer que essa é uma forma rival de tal], pergunta para Marina Silva desenvolvimento alternativo, e que como o mandato de senadora depende basicamente daquilo que pode contribuir para a geração Ladislau Dowbor sublinhou, e nada de renda e empregos no estado mais. Não depende de ter a prefei- do Acre. tura ou o governo regional, mas de organizar a sociedade. Essas di- O vereador Geraldo Gouveia, do mensões, integrando um pouco município de Rio Grande da Serra, aquilo que foi, de uma forma muito pergunta para Celso Daniel sobre interessante, exposto por vocês, da- uma questão tão maléfica para uma riam uma linda discussão. cidade como Rio Grande da Serra, Obrigado. o caso do “corredor polonês”. 88 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 91. Antônio da Silva pergunta sobre za no momento de sua geração, a atrofia da esfera pública. Na opi- sob a forma de Fundo de Garantia nião dos debatedores, levando em individual de 20%, que beneficia- conta o desenvolvimento local e o rá do presidente da República ao socialismo, que impacto e efeito a mais humilde dos brasileiros, inclu- Lei de Responsabilidade Fiscal es- sive os aposentados. taria causando nos caminhos da de- mocracia e do socialismo pelo fato Para todos os debatedores, per- de controlar os gastos? gunta de Roberto. No socialismo somos todos iguais? Como encarar Pergunta de Alípio da Silva: a a diferença de vários níveis que te- distribuição de renda ou do lucro, mos no Brasil? diretamente da fonte geradora, se já não é, será um dos maiores Cesário, do Movimento Evangé- agentes da concentração de ren- lico Progressista (MEP), para Celso da no Brasil. Exemplo, a indús- Daniel: para onde estamos cami- tria automobilística produzia aqui nhando se vivemos com as contra- há apenas 15 anos cerca de 12 dições do arcaico com o moderno? carros por homem e hoje produz Qual o meio-termo, se é que exis- cerca de 42, gerando um grande te, desse processo? lucro, beneficiando e privilegian- do um grupo cada vez menor de Celso Daniel pessoas. Quem deve, portanto, Eu tenho um conjunto bastante participar da renda ou do lucro é diversificado de questões. Francis- o governo, para depois distribuí- co da Costa Silva, da Capela do So- lo de diversas formas. corro, pergunta “quais as dificulda- O que devemos pretender para des de governar com os desmandos a construção do socialismo e da do governo federal impostos aos cidadania é a distribuição da rique- governos do PT”. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 89
  • 92. As dificuldades são inúmeras. Por jogar contra a atrofia da esfera exemplo, no governo federal, tive- pública significa valorizar também mos um processo de fragilização da o fundo público, voltado justamen- Federação, não só em relação à te aos direitos das pessoas e, por- reconcentração de receitas e à dis- tanto, à área social. E o que a Lei tribuição de atribuições novas, mas de Responsabilidade Fiscal faz é, também às questões relativas à guer- por um lado, levar a efeito um con- ra fiscal, a respeito das quais Miguel trole sobre os gastos públicos, de Rossetto falou bastante aqui. Pro- uma maneira que em grande me- blemas ligados, por exemplo, à es- dida é positiva, mas, por outro, res- tagnação econômica e ao desem- tringe dramaticamente a possibili- prego. Não há apenas queda dos re- dade de elevação dos gastos per- cursos fiscais em nível local, mas manentes e, portanto, dos gastos também aumento das demandas sociais, enquanto libera completa- sociais. A questão é a seguinte: ape- mente, e até obriga, os gastos re- sar dessas dificuldades de gover- lativos à dívida, ao endividamento. nar impostas em função da política É algo que tem muito a ver com a do governo federal, temos conse- própria orientação do FMI e, por guido governar de maneira positi- tabela, prejudica, sim, a possibili- va e apresentar resultados positi- dade de que tenhamos de garantir vos. Creio que nós nos movemos um fundo público de qualidade e, exatamente nessas contradições. portanto, o combate à atrofia da Antônio Nobre da Silva pergun- esfera pública. ta: em função da questão da atrofia Pergunta de Alencar, do PT de da esfera pública, qual o impacto Guarulhos a respeito da Federa- da Lei de Responsabilidade Fiscal ção brasileira. Alencar, você tem sobre ela? toda razão, além da maior ênfase É um impacto concreto. Concre- ao poder local, é fundamental que to em que sentido? Na verdade, na rediscussão a respeito da Fe- 90 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 93. deração levemos em consideração Brasil, é muito menos um contras- pelo menos dois outros níveis ab- te entre o urbano e o rural, e muito solutamente fundamentais para a mais o contraste entre regiões, Sul vida cotidiana das pessoas, embo- e Sudeste por um lado e Norte e ra sejam intermediários. Um dos Nordeste e, eventualmente, Centro- níveis é o que você citou, das ma- Oeste, por outro. crorregiões aqui no Brasil. Podem Há um outro nível, ao qual você ser outras regiões diferentes des- não se referiu, mas que eu gosta- sas que temos instituídas, mas Nor- ria de mencionar aqui, que é um deste, Centro-Oeste, Norte, Su- nível supramunicipal ou subesta- deste, Sul têm problemáticas es- dual, tanto no nível das regiões no pecíficas. Isso está completamen- interior de um determinado esta- te largado às traças. Já existiu a do, sejam elas rurais ou urbanas, Sudene [Superintendência de De- como no nível da gestão metropo- senvolvimento do Nordeste] como litana. Isso está completamente uma referência. Temos de repen- sem equacionamento, de tal ma- sar uma outra maneira de organi- neira que para repensar a questão zar essas macrorregiões, partindo federativa é necessário considerar, fundamentalmente dos estados e a meu juízo, pelo menos cinco ní- não tanto ou não apenas do gover- veis diferentes: união, estados, mu- no federal, como foi a nossa ex- nicípios; no meio da união e dos periência anterior do nacional- estados, as grandes regiões; no desenvolvimentismo. meio dos estados e municípios, as Imagino que até agora pouca coi- regiões que aí se colocam. Mas sa tenha sido feita a esse respeito, não considerar esses dois outros e acho que estamos muito atrasa- níveis como níveis que tenham de dos nesse aspecto. Porque sabemos exigir, por exemplo, eleições, cons- muito bem, por exemplo, que o con- tituir um governo. Isso não faz traste riqueza–pobreza, aqui no parte da nossa história da Federa- SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 91
  • 94. ção e não seria razoável propor- Quero dizer o seguinte, Valter: mos nesse momento. Acho que faz você tem razão em relação à mi- sentido, sim, repensarmos a ques- nha citação de Trotski, é uma cita- tão da gestão metropolitana a par- ção deslocada do conjunto do pen- tir de baixo, não a partir de cima, samento de Trotski sobre a União como na época da ditadura mili- Soviética, que vai no caminho a que tar, e como ainda ela está propos- você mesmo se referiu, a história ta em função da Constituição de da revolução política etc. 1988. A mesma coisa é verdadei- Você tem razão em relação à ra em relação às macrorregiões. maneira como me coloquei aqui, Deixei para o fim as questões dá a entender que eu estava fa- mais espinhosas. Em primeiro zendo uma identificação entre o to- lugar, sobre as questões mais talitarismo soviético e o totalitaris- complicadas, de Valter Pomar e mo fascista ou nazista, e me do professor Paul Singer, queria penitencio porque não tive tempo dizer que eu sabia que, ao fazer para poder discriminar um pouco uma exposição que começou do melhor esses conceitos. Efetiva- mais global, do mais abstrato em mente, acho que seria uma violên- termos do socialismo, para o mais cia da minha parte fazer uma afir- específico, estava por um lado mação que coloque tudo isso no perdendo a oportunidade de falar mesmo saco, porque relações his- mais concretamente sobre desen- tóricas, que foram inclusive co- volvimento local – provavelmen- mentadas aqui por Max Altman, te não aproveitei a oportunidade são completamente diferentes em para falar mais sobre experiên- um caso e no outro; relações con- cias concretas de desenvolvimen- cretas construídas na sociedade to local –, e por outro lado estava são completamente diferentes em abrindo um flanco para ser dura- cada caso. Seria realmente uma mente criticado. agressão, uma violência fazer uma 92 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 95. pura identificação entre totalitaris- respeito provém exatamente do mos, como se eles fossem absolu- fato de que me senti extremamen- tamente indiferenciados. te agredido por práticas ditas de Só que nesse ponto queria res- esquerda dentro do PT que car- guardar algo para mim, o que sig- regavam com todas as suas con- nifica, portanto, que eu preciso figurações esse gérmen de totali- manter o que havia comentado ini- tarismo de esquerda, que esteve cialmente porque essa é a minha presente nas experiências do so- convicção. A despeito dessas dis- cialismo real, e me sinto mais do tinções todas e das razões que que tranqüilo, mais do que segu- você tenha sobre o que ponderou, ro, em fazer as minhas pondera- continuo a manter minha conside- ções a respeito do fato de que, ração a respeito do socialismo como eu havia comentado, a de- real essencialmente como uma mocracia, os direitos, a cidadania forma de sistema totalitário, em- têm de ser valorizados acima de bora bastante distinta das formas tudo. E só é possível pensar num fascista e nazista. Continuo a sus- sistema socialista, numa socieda- tentar essa idéia aqui porque, em- de socialista a partir dos referen- bora isso possa parecer para mui- ciais de alargamento da radicali- tos que se afirmam da tradição so- zação da democracia. O sistema cialista um tipo de agressão, o que totalitário, inclusive o sistema so- acontece, na verdade, é que fiz a viético, se erige, insisto, a partir das menção a propósito do fato de que ruínas da idéia de direitos do ho- essa reflexão está muito ligada à mem, da idéia de democracia. minha prática concreta, não no PT Por isso, pessoalmente, acredito no nível mais geral, mas no PT de que buscar uma alternativa socia- Santo André. E quero dizer para lista significa, sim, resgatar toda a os companheiros e companheiras tradição socialista, todo o pensa- que a minha consideração a esse mento socialista, particularmente SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 93
  • 96. dos séculos XIX e XX, tendo em concordo, porque acho que ela está conta também os males e proble- sintonizada com essa questão da mas que foram causados por um valorização e do alargamento da de- certo tipo de socialismo, em espe- mocracia, era exatamente a de su- cial aquele que foi implementado de perarmos uma análise que faz par- maneira concreta. te da tradição da análise marxista: Sei que isso me põe diante de um se estamos dentro do sistema ca- problema seriíssimo: o que colocar pitalista, então tudo o que se fizer no lugar? Estava tentando desen- no interior do sistema capitalista é volver alguns argumentos e algu- funcional ao capital. A menos que mas referências para poder colo- sejam ações políticas que visam or- car algo no lugar que, resgatando ganizar a população para golpear ideais e referências socialistas, não esse sistema no seu centro, e por- tenha que cair, se espelhar e bus- tanto colocar um outro Estado, o car práticas e elementos que eu Estado socialista no seu lugar. creio que podem, na verdade, nos O que Francisco de Oliveira ten- colocar numa situação muito com- ta fazer – e acho isso muito produ- plicada, que é reproduzir erros que, tivo, muito positivo – é demonstrar a meu ver, a história já demonstrou que no interior do sistema capita- que foram importantes do ponto de lista existem linhas de força, inicia- vista da esquerda. tivas que têm sido tomadas ao lon- Por isso é que, por exemplo, ao go de várias décadas e não apenas falar em algumas referências de so- por meio das nossas experiências cialismo e buscar vinculá-las à de governo local, que implicam uma questão do desenvolvimento local, contradição não excludente, mas fiz menção a algumas idéias traba- dialética, como movimento do ca- lhadas por Francisco de Oliveira em pital. Não que elas não possam ser seu livro Os direitos do antivalor. apropriadas pelo movimento do ca- A preocupação dele, com a qual pital, isso aconteceu no período de 94 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 97. auge da social-democracia, eviden- é o mercado que dita as regras –, temente. Mas reduzir o que acon- se qualquer ação nesse campo for teceu apenas à mera apropriação considerada funcional ao movimen- pelo capital do que foi inaugurado, to do capital, então toda e qualquer nos termos de Francisco de Olivei- administração petista ou não petista ra, a partir da criação desse fundo será funcional de alguma maneira. público e desse alargamento da es- Funcional ao capital de que ma- fera pública, creio que é uma for- neira? Não precisa dar dinheiro ma de teorizar que não cabe a nós, para o capital privado, por meio da a menos que sejamos obrigados a guerra fiscal, da renúncia fiscal etc. resgatar, em termos bastante tradi- Pode ser funcional ao capital na cionais, a tradição socialista. medida em que essa administração Digo isso também porque tem a garantir, nos termos marxistas, con- ver com a outra questão que Valter dições mais adequadas de reprodu- Pomar apresenta. Não acho que ção da força de trabalho. Se ficar- seja exatamente a mesma questão mos presos a essa forma de teori- apresentada pelo professor Paul zar, qualquer gestão nossa sempre Singer, pelo menos não de acordo vai ser funcional ao capital. Não com o meu entendimento. Então, vou responder à questão partindo tento responder à questão do Valter: desse ponto de vista, porque senão qual a possibilidade de uma gestão ficamos num círculo fechado, em petista ser funcional ao grande ca- que não há saída a não ser a revo- pital? Isso pode acontecer ou não? lução por excelência. Mas acho que Respondo a você o seguinte: de- uma gestão petista, uma gestão pende. Se o referencial for o de que pretensamente de esquerda pode qualquer coisa que se faça do pon- ser funcional ao grande capital, dei- to de vista econômico, no sistema xando de lado essa outra formula- em que nós vivemos – por estar- ção teórica, digamos assim. Ela mos imersos num sistema em que pode ser funcional ao grande capi- SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 95
  • 98. tal, sim, se for capturada. Miguel Creio que é possível, se trabalha- Rossetto estava falando, se enten- mos com referências que já foram di bem, sobre experiências nossas discutidas aqui. Eu falei bem rapi- que têm sido sensíveis, por exem- damente sobre isso, mas Marina plo, à questão da guerra fiscal, ou à Silva citou uma série de exemplos da renúncia fiscal, ou a outros pro- concretos, Rossetto também falou gramas, no final das contas, que a respeito, e a mesma coisa fez podem ser entendidos, na linha do Ladislau Dowbor. Quando fazemos Banco Mundial etc., como tipica- o que eles expuseram aqui, não mente compensatórios, de comba- acho que corremos qualquer tipo de te à pobreza. Acho que pode, e nós risco de ter uma gestão local fun- precisamos estar atentos para exa- cional ao grande capital, nesse sen- tamente esse risco. tido que estamos colocando agora, O que fazer para nos afastar des- ou seja, toda ela voltada, indepen- se risco? Não estaremos expostos dentemente da nossa visão ou in- a ele se tivermos um modelo de ges- tenção a respeito, para a valoriza- tão e desenvolvimento local basea- ção, o movimento, a acumulação do do em outros princípios, diferentes capital. Acho que estamos cons- daqueles que movem pura e sim- truindo exatamente o oposto: as ba- plesmente o mercado, particular- ses para criar condições para com- mente o auto-regulador; e aquilo bater a economia de mercado que estimula o funcionamento do como tal; um outro sistema, um sis- mercado auto-regulador, na práti- tema socialista com outros refe- ca, por exemplo, é o que tem acon- renciais a partir de baixo, de expe- tecido aqui no Brasil com a guerra riências concretas. fiscal, a renúncia fiscal, coisas do Valter Pomar não fez a pergunta gênero. Isso joga mais água no para mim, mas para Ladislau e moinho da idéia do mercado auto- Marina, mas gostaria de falar so- regulador, do paradigma neoliberal. bre essa questão do Banco Mun- 96 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 99. dial, do FMI etc., o que diferencia a do à maneira liberal, ou seja, go- nossa prática da deles e o que dife- vernança entendida como o gover- rencia nossos discursos. no não sendo o governo eleito e Não sou especialista nesses re- tudo mais, mas o conjunto de ou- latórios, Ladislau os conhece muito tros setores da sociedade; no caso mais. Não me debruço para ficar de boa parte delas, e em textos con- lendo esses relatórios, mas há mui- cretos, com certeza isso significa ta diferença entre o nosso discurso privatização. E significa também as e o deles. Eles tecem loas, por empresas privatizadas, afinal de exemplo, à questão da participação. contas, serem também importantes Agora, a maneira como colocam o tomadoras de decisão, assim como tema da participação é extrema- o governo local. Descentralização mente genérico. Cabe tudo. E cabe entendida como privatização. particularmente, por exemplo, en- Isso é algo concreto, que está em tender participação comunitária textos desses organismos mundiais. como participação de ONGs, muitas Inclusive a forma como eles abor- vezes financiadas pelo próprio Ban- dam a questão da pobreza. Tudo co Mundial ou pelos organismos in- bem que a pobreza está colocada ternacionais que eles travestem de nos textos deles, eu tenho dúvida participação comunitária. Cabe, por de que eles consigam sair dos tex- exemplo, também um conceito com tos para uma coisa um pouco mais o qual eles trabalham, muito caro a concreta, para além dos textos, mas eles: o de governança. É uma idéia eles trabalham com a pobreza... – não exatamente um conceito. Creio que é fundamental traba- Haja possibilidades de diferentes in- lharmos com outro registro con- terpretações a respeito desse con- ceitual, que na verdade é político, ceito de governança... Não tenho porque é outro registro ideológico, dúvida de que uma boa parte delas o da inclusão social, e não o da po- trabalha com esse conceito pensan- breza. O necessário não é comba- SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 97
  • 100. ter a pobreza com políticas com- cado e uma determinada socieda- pensatórias, mas garantir a inclu- de. Possível é, particularmente se são social. nós, em vez de trabalharmos com Então, acho que mesmo no nível a idéia de pura e simplesmente ri- do discurso nós temos diferenças far o grande capital, tivermos con- que são importantes, que podem e dições de estabelecer uma relação devem ser trabalhadas por nós. O com o grande capital que interesse que não significa que não haja es- ao território – muito na linha da preo- paços, como foi exposto muito bem cupação que Rossetto levantou no pela senadora Marina, espaços de final da sua exposição –, se conse- contradições que podem perfeita- guirmos apropriar aquilo que é pos- mente ser apropriados por nós, sível na relação com o grande ca- mesmo que respondam, neste ou pital para benefício da preservação, naquele caso, a interesses das gran- da recuperação do nosso território des multinacionais ou desses orga- e das relações sociais do nosso ter- nismos internacionais. ritório. Mas é possível, particular- Pegando por um lado um pou- mente, se trabalharmos com uma quinho diferente, para terminar outra orientação que, sem abrir mão essa questão, é possível desenvol- do que existe ou pode existir de di- ver uma economia, na cidade, no nâmico em termos da economia, dê estado, no país, sem contar com o ênfase e prioridade ao pequeno em- grande capital, ou seja, sem nos preendimento e a formas alternati- preocupar em atraí-lo? Eu acho que vas de produção. é possível, mas não acho que seja Isso é muito genérico, mas que- viável em todos os casos, porque ria dizer, pelo menos até o ponto quando administramos localidades em que tenho experiência, conhe- o fazemos com uma certa história, cimento, que há experiências con- uma estrutura já adquirida, uma cretas de desenvolvimento local configuração de seu próprio mer- baseado na pequena produção em 98 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 101. alguns outros lugares do mundo, Exponho ao senhor, professor particularmente no Norte da Itália, Paul Singer, minha avaliação a res- e que são experiências extrema- peito da questão da região do Gran- mente dinâmicas. Quando falamos de ABC nesse momento. Essa re- em dinamismo, não estamos falan- gião sempre foi, principalmente a do em ter de estabelecer em cada partir das últimas quatro, cinco dé- localidade um pólo de indústria de cadas, extremamente dependente informática ou algo do gênero. É da grande empresa multinacional, outra coisa. Indústrias tidas como particularmente do setor automoti- tradicionais podem e costumam vo. Continua a ser; tanto isso é ver- ser extremamente dinâmicas. Por dade que, em função de uma ligei- exemplo, a indústria do vestuário, ra retomada do crescimento eco- ou outras indústrias, na região italia- nômico, a região assiste a uma re- na da Emilia Romagna, baseadas dução do desemprego e a uma li- todas elas efetivamente em peque- geira retomada do emprego indus- na produção, por meio de uma con- trial e também nos outros setores. figuração de desenvolvimento local Não dá para rifar o grande capital muito baseada em cooperativas, e a relação com o grande capital. mas também na cooperação entre Não dá. Mas se eu pensar em pers- os pequenos empreendimentos, na pectiva o que está na minha preo- criação de agências de desenvolvi- cupação como prefeito de Santo mento que passam a prestar servi- André e como pessoa que está aqui ços aos pequenos empreendimen- discutindo com vocês essas ques- tos, que são equivalentes àquilo que tões sobre a relação entre desen- só uma grande empresa tem con- volvimento local e socialismo, não dição de prestar. Se as coisas fo- dá meramente para repetirmos a rem deixadas apenas à livre força mesma relação que foi estabeleci- do mercado auto-regulador, é per- da no passado, de grande depen- feitamente possível. dência da região em relação ao SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 99
  • 102. grande capital. O que precisamos do, pensando que a cada ação que é trabalhar ao mesmo tempo a cria- estamos levando a termo estamos ção de um outro tecido econômico, ou aproveitando uma oportunidade, baseado sobretudo no pequeno em- ou deixando de aproveitar uma preendimento, na criação de redes oportunidade, para concretizar de horizontais de relação entre peque- verdade princípios transformado- nos empreendimentos que possam res, de radicalização da democra- fazer com que, em perspectiva, te- cia, princípios socialistas. Dessa for- nhamos condição de ter no futuro ma, acho que estamos dando uma uma outra região do grande ABC, pequena contribuição dentro desse não mais tão dependente do gran- conjunto de coisas que foram ex- de capital, e eventualmente até, no postas aqui pela mesa. futuro, sem nenhuma dependência, em função de iniciativas que par- Marina Silva tam exatamente da esfera local. Vou começar pela pergunta do Acho que isso será perfeitamente Valter Pomar, sobre a diferença possível – mais do que possível, entre nossa percepção e a do Ban- acho necessário –, sem abrirmos co Mundial quanto ao desenvol- mão dos nossos valores, dos nos- vimento sustentável e às questões sos princípios. Se trabalharmos ima- sociais. Considero que essa é uma ginando que não estamos fazendo questão de fundo. Primeiro, nós gestões locais apenas para melho- temos um ideal, um propósito de rar a qualidade de vida da popula- vida associado a todos esses va- ção ou apenas para pragmaticamen- lores mencionados aqui. Não que- te ter governos bem avaliados do ro emitir um juízo de valor com ponto de vista da população e da relação aos técnicos do Banco opinião pública. Mundial, que são pessoas como Se trabalharmos pensando tam- nós, que têm um emprego e que bém nessas coisas, mas, sobretu- vão para a África, para o Brasil, 100 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 103. para a Amazônia, se sensibilizam Era do Saber, que é a que estamos e até lutam para que o Banco te- vivenciando. No entanto, os que nha políticas sociais. Refiro-me detêm a informação, a técnica, aqui, então, ao Banco como insti- não produziram a devida ética tuição. E a instituição Banco Mun- para alavancar os 80% que estão dial entrou nessa discussão por ficando para trás. Se alguma uto- outros motivos. Seu objetivo é a pia há, é lutar por essa inclusão, sustentação, a manutenção do sis- para que não aconteça aquilo que tema. Ela tem medo da ruptura, Cristóvam Buarque chama de bi- dessa exclusão global, de mais de furcação da raça humana, quan- 2 bilhões de seres humanos viven- do teremos seres humanos de pri- do com menos de 2 dólares por meira e de segunda classe – tal- dia. No Brasil, essa é a realidade vez isso já esteja acontecendo. de 78 milhões de pessoas. Viver Então, o Banco Mundial, quan- com menos de 1 dólar é a reali- do examina o processo com rela- dade de 43 milhões de brasileiros. ção aos problemas sociais e ao O analfabetismo, no Brasil, atin- próprio desenvolvimento sustentá- ge 15 milhões de jovens. vel, ele tem uma visão centraliza- Quando pensamos nessa situa- dora, voltada para as empresas. E ção, o fazemos pelo viés da in- nós temos uma visão descentra- clusão social, pensando no futu- lizadora, uma visão política que ro. Sebastião Salgado, entrevista- considera o processo uma cons- do pela TV Cultura, dizia que en- trução coletiva. Nesse ponto, te- tre 15% e 20% da humanidade mos de ter em mente que nada é criou uma fuga para o futuro dei- tão hermeticamente fechado que xando para trás 80%. Esses 20% não admita contradição. Entendo dos seres humanos sobre o pla- que, na dialética que Marx nos neta, social, cultural, emocional e ensinou, não há como criar um sis- espiritualmente, construíram a tema que não contenha a sua pró- SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 101
  • 104. pria destruição como vetor inter- pobres não são formadores de no. Creio que o Banco Mundial opinião, mas a classe média é, e vive essa contradição. Nós tam- ela também está empobrecendo, bém vivemos. Quando pensamos e isso é um perigo muito grande. a inclusão, dentro do sistema a que Por quê? Se os formadores de opi- estamos submetidos, com certeza nião se juntarem com os que “não existe todo esse processo do sis- são, não sabem, não têm”, como tema maior, capitalista, que se mis- diz dom Mauro Morelli, pode-se tura com os nossos ideais e as nos- criar um problema grave para o sas utopias. Mas estamos em uma sistema. O Banco Mundial segue briga que, a meu ver, é muito me- essa perspectiva. nos de estrutura e mais de consciên- A nossa perspectiva é a de uma cia. Refiro-me a uma afirmação sociedade sustentável, de acordo de Ladislau Dowbor de que talvez com aquela sustentabilidade que mais importante do que ganhar as mencionei – enfatizo que é uma estruturas e chegar em Brasília sustentabilidade cultural. com a faixa seja ganhar o cora- Vivemos hoje a idéia do global, ção e as mentes das pessoas para da diluição generalizada, enfim, um projeto que não é só econômi- de tudo que é possível imaginar co, mas também cultural, social, de com a comunicação em tempo satisfação, de valores, de propósi- real, graças à qual as índias do tos – de novos propósitos. meu estado podem ver a garota Então, a motivação do Banco de Ipanema. Mas a garota de Mundial é o medo. Participei de Ipanema não vê as índias. Então, um seminário em Washington no uma cultura é diluída e dissemina- qual eles diziam clara e textual- da, mas outras culturas não são mente que era necessário fazer repassadas para que sejam pen- alguma coisa em relação aos po- sadas por outros segmentos. É isso bres e à classe média, porque os que está faltando nessa relação, 102 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 105. que não é mais interdisciplinar, mas contribuir para a geração de ren- transdisciplinar, porque “trans” da e empregos no estado do Acre, passa todos os sentidos da reali- gostaria de dizer o seguinte: creio dade. Enquanto tivermos uma vi- que não o mandato diretamente, são fragmentária da realidade, tudo mas ele juntamente com o gover- irá continuar como está. E creio no do estado pode fazer algo pela que as agências multilaterais têm distribuição de renda e pela gera- essa perspectiva. ção de emprego no Acre. Quando No Acre, há a possibilidade de cheguei a Brasília, um quilo de termos disponível um empréstimo, borracha custava 30 centavos, o que vai ser discutido pelo Senado, que gerava uma renda anual de 600 de 250 milhões de dólares. Não sei reais para uma família de serin- como o Banco Interamericano, nes- gueiros. O que salva esse serin- se caso, está pensando isso essen- gueiro é que ele tem como criar cialmente, mas nós pensamos em galinhas, porcos, caçar e pescar realizar o sonho de Chico Mendes: para viver. De outro modo ele não as estradas com estudo de impacto teria como sobreviver com 600 ambiental e a demarcação das áreas reais por ano, porque os artigos indígenas – e isso já está aconte- que ele não tem condições de pro- cendo. É uma proposta de desen- duzir (óleo, sal etc.) custam uma volvimento local. É ridículo imagi- fortuna no seringal. nar que podemos destinar milhões Hoje o seringueiro do Acre rece- de reais para uma multinacional al- be 1 real e 30 centavos por um qui- tamente lucrativa e não somos ca- lo de borracha. Isso significa muito pazes de colocar esse dinheiro nas na vida daquelas pessoas. Quando mãos das comunidades, para refor- eu assumi o mandato de senadora ma agrária, agricultura etc. em 1995, havia 1.500 famílias vi- Ao companheiro que perguntou vendo do extrativismo no Acre. como o mandato de senadora pode Este ano, a projeção é de 6.500 fa- SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 103
  • 106. mílias. Uma lata de castanha, que nho de poder, que permite algumas custava 1 real e 50 centavos, este conquistas. Certo dia fomos ao ano custa 4 reais. Isso altera signi- Banco de Desenvolvimento da ficativamente a renda para essas Amazônia, o Basa, que financia pessoas. Nos outros governos, elas grandes projetos para o desenvol- não tinham barco para escoar a vimento da Amazônia. Ora, os se- produção, escolas, postos de saú- ringueiros movimentaram aquela de. Hoje nosso governo, junto com economia durante cem anos, che- sindicatos, ONGs, associações e co- gando a representar 40% das ex- operativas, está trabalhando com portações do país; eram os mais tudo isso. pobres, nunca haviam entrado em Animados com esses resultados, um banco para conseguir crédito. ousamos, inclusive, um neologismo: Entramos no banco – o governa- quando pessoas que moram em dor do Acre, Jorge Viana, o re- uma cidade têm acesso a bens, presentante do governador do serviços e condições para desen- Amapá, João Capiberibe, e eu – e volver suas potencialidades, nós as ficamos das 9 horas até às 16 ho- consideramos cidadãos no feliz ras e 30 minutos discutindo uma exercício da cidadania. No Acre, proposta chamada Prodex, a pri- chamamos essa cidadania de meira linha de crédito para os florestania, porque, na verdade, extrativistas da Amazônia. Hoje, somos um povo que mora dentro são milhares e milhares de pes- de uma floresta. soas que podem comprar uma Queremos criar um novo concei- tarrafa, uma canoa, um motor de to em relação ao que é qualidade popa, qualquer coisa para melho- de vida, de seres humanos que vi- rar o seu sistema de produção e vem numa certa harmonia com o a sua vida. seu hábitat. O trabalho como se- Quando estive na Itália, em 1986, nadora representa ter um pouqui- me perguntaram que agenda eu 104 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 107. queria que preparassem. Respon- treinamento para os seringueiros – di: “Quero falar com a direção da por enquanto do Acre, embora a Pirelli, porque tenho algumas idéias idéia seja ampliar esse processo. para apresentar a eles”. O padre Naquela mesma viagem à Itália, que estava me ajudando achou um fomos a uma reunião com os fa- tanto esquisito: “Esse pessoal do bricantes de móveis da cidade de mato é meio doido”. Fizemos a Como, que são os melhores do reunião, apresentamos a idéia do mundo – uma peça feita por eles “pneu verde”: a Pirelli, multinacio- custa não sei quantos mil dólares. nal européia, italiana, criaria uma Eles montaram um auditório com linha de pneus com 100% de bor- vários empresários e operários das racha natural, comprando a maté- fábricas. Foi muito interessante, ria-prima dos seringueiros da Ama- eles fizeram uma obra de arte zônia. Tínhamos por justificativa o belíssima. Era um tronco enorme, fato de que eles nos cobravam pre- todo sapecado, escrito “Salvem a servar a Amazônia, mas não fixa- Amazônia”. Eu me senti a própria vam um preço para a borracha e a queimadora de floresta. Entrei já compravam da Malásia. Fiz uma de cabeça baixa, humilhada. Aí exposição sobre essa idéia, os di- pensei: “Engraçado, ‘salvem a retores da Pirelli me recomendaram Amazônia’ para cima de nós, ja- conversar com o presidente da caré? Deixa eu conversar um pou- Pirelli no Brasil. Eu o convidei a ir co com esse povo”. Propus o se- ao Acre, ele conversou com os se- guinte raciocínio: se eles queriam ringueiros e há mais de três anos a nos ajudar a salvar a Amazônia, Pirelli compra nossa borracha. Já então deviam parar de comprar a está no mercado o pneu Xapuri, o nossa madeira em toras, porque “pneu verde” feito de borracha uma árvore de mogno, lá no serin- 100% nacional, e a Pirelli ainda tra- gal, custa 20 reais. Uma árvore de balha no projeto de qualificação e mogno rende de seis a oito metros SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 105
  • 108. cúbicos de madeira. Cada metro processar sua própria matéria-pri- cúbico de madeira chega ao porto ma do que vendê-la a preço de de Paranaguá a 800 reais e, na banana para depois comprá-la a Europa, é transformado em camas preço de ouro. Quando nós com- belíssimas; cada metro cúbico dá preendermos o valor de nossa pelo menos oito a dez camas de biodiversidade... se o suor do nos- mogno, cada uma a 3 mil dólares. so sapo está rendendo 30 milhões Se essa cama fosse produzida no de dólares para uma empresa Brasil, o seringueiro não teria ne- multinacional, imaginem quanto cessidade de derrubar não sei pode render o nosso próprio suor! quantas árvores para comprar um Precisamos aprender a identifi- quilo de sal, uma lata de leite e al- car os espaços que nos cabem e gumas espoletas para caçar. Eles criar meios de ocupá-los. Acho se sensibilizaram e nos doaram que é isso que a nossa experiên- uma fábrica em Xapuri, levaram cia local está fazendo, e qualquer pessoas para serem treinadas na projeto nacional que não conside- cidade de Como, ainda estão man- re essas experiências locais será dando aposentados para treinar incompleto. Isso não significa mais pessoas, e nós criamos um mitificar tais experiências em de- pólo moveleiro que está sendo trimento do conhecimento, da sis- inaugurado não apenas com essa tematização, da contribuição que fábrica, mas com outras pessoas os pesquisadores e os cientistas e investidores, inclusive aqui de têm a oferecer a esse processo. São Paulo. Trata-se apenas de tentar demons- Acho que existem elementos trar que de situações muito sim- desse desenvolvimento local que ples, às vezes, podem sair respos- podemos explorar. Porque o ve- tas muito complexas, até porque, lho modelo se rompe quando as com certeza, a simplicidade e a pessoas percebem que é melhor obviedade são o disfarce da sabe- 106 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 109. doria. Isso aprendi com os índios Miguel Rossetto e com os seringueiros, que não pa- Primeiro, o tema da Federação. ram de nos ensinar, inclusive no Nossa experiência tem mostrado governo do estado do Acre. que há uma exigência muito gran- Tiro o chapéu para o Rio Gran- de de aprofundar esse debate so- de do Sul, nossa referência em or- bre a Federação. Penso hoje que çamento participativo. Propus ao esse tema deve ser identificado nosso governador, Jorge Viana, como elemento democratizador do fazer o orçamento social. Ele con- Estado brasileiro, diante da dimen- cordou. Temos um núcleo duro de são e da natureza do Brasil. Vive- pobreza com 30 mil famílias que mos um processo brutal de vivem com menos de 1 dólar por desconstituição da Federação as- dia. Com nosso programa social, sociado a um processo de centra- nosso orçamento social, pretende- lização nacional, do ponto de vista mos atender 18 mil famílias este financeiro e, obviamente, político. ano. E queremos chegar até o fi- Há uma reversão no último perío- nal do governo, em 2002, com as do em relação ao movimento da 30 mil famílias sendo atendidas Constituição de 1988, que descen- com bolsa-escola, bolsa-primeiro tralizou recursos e, portanto, foi um emprego, bolsa-trabalho, renda movimento democrático que des- mínima, bolsa-primeira infância. É centralizou as estruturas de poder, um programa estrutural, que não repartindo ou compartilhando esse é assistencialismo, mas transferên- poder de uma forma mais equili- cia de renda associada à educa- brada nas suas obrigações e com- ção e a um projeto de desenvolvi- petências. E há um movimento pe- mento que possa realizar, mesmo sado de retirada desses poderes, que de forma apressada, um pe- por exemplo, no que se refere à dacinho dessa utopia que nós con- competência dos estados quanto à tinuamos a projetar no futuro. tributação. Tirar, hoje, competên- SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 107
  • 110. cia de tributação, ou o espaço de mara revisional do que deveria ser autonomia de tributação dos esta- uma Assembléia do Povo, que é a dos e transferir para a esfera da Câmara Federal. E nós também União, não há dúvida, representa temos brutais distorções no que uma diminuição brutal de poder po- deveria ser a nossa Assembléia lítico real dos estados. E, conse- Popular Nacional, por conta das qüentemente, um processo enor- diversas distorções na represen- me de centralização de poder po- tação parlamentar. lítico, com gravíssimas conse- Penso que cada vez mais deve- qüências para um país com as di- mos aprofundar o tema da Federa- mensões do nosso. ção, compartilhar, constituir opiniões Então, pensar o tema da Fede- sobre ele. Um tema que o nosso ração como elemento de democra- partido tem pautado de uma forma tização do país, pensar melhores positiva. Creio que a idéia da Fe- relações entre o que chamamos de deração como fragmentação de entes federados – municípios, es- poder – fragmentação no sentido tados, União –, nos abrir para pen- de repartição de poder – é um ele- sar como aquilo que tu propões, mento democrático importante a que alguns espaços já fazem par- ser perseguido. Evidentemente, não te de uma dinâmica política real. se trata aqui de recompor as ve- Por exemplo a região Sul e a re- lhas políticas regionais. gião Nordeste. Quanto à questão do grande ca- Mas é óbvio que há uma grande pital, Valter, já que o próprio Lenin distorção institucional na represen- dizia em vida que tínhamos de nos tação nacional. Por exemplo, só relacionar com o grande capital, e existe uma razão de ser do Sena- com o grande capital internacio- do, que é a competência para li- nal, falo um pouco inclusive de uma dar com os temas específicos da relação não só estratégica ou teó- Federação, e não como uma câ- rica, mas bem concreta, da vida. 108 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 111. É evidente que não temos um pro- mente prejudicial aos interesses grama que se organiza para aten- do Estado. der a interesses do grande capital. Mas não há quase preconceito Nosso programa estratégico não ideológico. Dou alguns exemplos se organiza a partir dessa referên- que muitas vezes nos surpreendem, cia, e sim a partir da democratiza- como a questão tecnológica. ção de um processo de constitui- Estamos, no Rio Grande do Sul, num ção de riqueza e, portanto, guarda processo de negociação com uma relação com a visão antimonopo- empresa que não é pequena, cha- lista da economia. E procuramos mada Motorola. E a negociação que potencializar, estimular na relação estamos produzindo com essa em- concreta, relações privilegiadas presa é um processo de transferên- com esses setores. cia de tecnologia. Estamos consti- A relação que nós temos, e pen- tuindo um centro de microeletrônica, so que é uma relação estratégica de prototipagem de chips etc. com que dá algum conforto, embora não a Motorola. Estamos num proces- resolva todas as questões, é de na- so intenso de discussão e negocia- tureza muito pragmática. Caso a ção. É uma discusão ampla, que caso, uma equação econômica, envolve as esferas estadual, muni- tecnológica, ambiental, social. cipal e as universidades públicas. Quando, por exemplo, não con- Ou seja, é um centro da Motorola, cordamos com o padrão Ford, mas um centro em que a empresa essa discordância não foi media- assume compromissos e tem seus da pelo elemento ideológico. Em objetivos. A Motorola quer formar nenhum momento recusamos a mão-de-obra porque ela pensa, em presença da empresa Ford no es- algum momento, em produzir no tado do Rio Grande do Sul. Rom- Brasil e na América do Sul, em ins- pemos com aquilo que entendía- talar uma fábrica, e não dispõe de mos ser uma relação rigorosa- mão-de-obra qualificada. SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 109
  • 112. Então, temos uma equação de co de relações interessante do pon- construção. Obviamente recusa- to de vista do controle social e do mos toda relação de transferên- aprendizado, do lado social da cia de recursos públicos. Quere- tecnologia, dos processos de con- mos interromper essa orgia escan- trole tecnológico etc., que me pa- dalosa de transferência de recur- rece o elemento mais importante. sos públicos para o grande capi- Por fim, acho importante traba- tal, esse processo de transferên- lhar com o conceito que Marina cia direta e indireta, via benefício Silva e Celso Daniel trazem para fiscal, e buscar uma relação mui- nós: a meu ver, o tema da preser- to pragmática, uma equação eco- vação do território, para nós, deve nômica, fiscal, ambiental e social. ser compreendido cada vez mais Algo curioso que aconteceu em como tarefa popular. Essa noção nosso estado, e vem acontecendo, serve para o Acre, serve para o é que a primeira empresa que se município, serve para a região, ser- dispôs a submeter o seu planeja- ve para um estado, serve para um mento estratégico ao povo gaúcho país. Ou seja, a tarefa interessa a foi uma empresa de telefonia. Essa um povo, a preservação – não só empresa, a Italian Telecom, com- ambiental – do seu território. As prou a CRT [Companhia Riogran- elites cada vez mais enxergam o dense de Telecomunicações]. O território como um elemento rigo- que eles estão fazendo? Eles sub- rosamente de contingência, quer metem o seu planejamento estra- dizer, vão embora a qualquer mo- tégico, no estado do Rio Grande do mento etc., e eu acho que é um con- Sul, às deliberações do orçamento ceito forte que ajuda inclusive a participativo municipal e regional, compreender as nossas políticas. uma vez que eles têm o compro- Como trabalhar com essa estra- misso de atender os municípios com tégia e recusar a idéia de que há telefones públicos etc. É um mar- um ambiente econômico rigorosa- 110 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 113. mente determinado na sua quali- tência de um tratado internacional dade pelo câmbio, pela taxa de ju- como vem sendo pretendido, pen- ros? Como desprezar – daí a mi- so que adotá-la significa rigorosa- nha idéia de equilíbrio – uma polí- mente abrir de mão de espaços de tica econômica nacional e seu im- soberania para um país, para uma pacto direto sobre todos, especial- região que é um continente. mente as pequenas e microempre- sas, as cooperativas etc.? Como Ladislau Dowbor operar um sistema bancário, nós Em relação ao problema do ne- que dispomos de uma estrutura gro, na administração da prefeita estatal e governamos dois bancos? Luiza Erundina eu coordenava o Os dois bancos estatais que, na Conselho Municipal encarregado verdade, são governados por um dessa questão, cuidando de suas sistema privado determinado pelo relações com a Prefeitura de São Banco Central, e que tenta nos Paulo, e tínhamos imensos proble- impedir de emprestar, democrati- mas por causa das divisões inter- zar o crédito no volume que que- nas do movimento. Era realmente remos, devido a um rígido enqua- trágico, só conseguimos unificá-lo dramento do Banco Central. porque tivemos um programa bom, Então a idéia é combinar ou com- que era trazer o Nelson Mandela. preender o que são as possibilida- Conseguimos trazê-lo aqui e foi des nas quais devemos apostar ri- algo apoteótico. gorosamente, extrair a maior qua- Acho que esse tema é de imensa lidade possível dos espaços de po- importância. É fantástico que um der que conquistamos, sem recu- país que tem 44% da população di- sar uma grande agenda nacional e retamente ligada a uma origem afri- internacional que é determinante cana não conheça nada de África. dessas experiências. Quando men- É trágico que o brasileiro tenha uma cionei a experiência da ALCA, a po- visão “tarzânica” da África. Ou SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 111
  • 114. seja, é uma população que não co- sa bobagem, qualquer jornalista nhece suas raízes. Não temos um sabe que se fizer uma matéria um livro decente de história das relações pouco delicada politicamente a Brasil–África. Já propus a vários resposta vem lá de cima: “Caiu a historiadores a criação de pelo me- pauta”. “Caiu a pauta” é o nome nos um bom manual para introduzir moderno da tesoura. É censura esse tema nas escolas e coisas do privada, sim. Oito famílias contro- gênero. Isso é uma batalha... lam a mídia neste país. Não temos E vai ser assim enquanto os pró- estudos sobre estruturas de poder prios grupos do movimento não se da mídia. juntarem para empurrar essas Por que isso se relaciona direta- ações. Meu convite continua de pé mente com o negro? Porque o de- para montarmos um estudo desse senvolvimento das televisões comu- tipo, como tem acontecido nos Es- nitárias, das rádios comunitárias, tados Unidos e em outras partes. que exigem investimentos extrema- Conversei com a Fundação Ford e mente pequenos, permite que as di- ela está interessada em financiar ferentes comunidades, os diversos um projeto desse tipo, mas o es- movimentos, tenham voz, possam sencial é conhecer. Vivi sete anos se articular. Se o movimento negro na África, o que me deu uma visão esperar para “se ver na Globo” vai da riqueza cultural dessas origens... ficar esperando o Carnaval. De- isso é fantástico. vemos criar a capacidade de co- Temos uma grande batalha pela municação correspondente aos nos- frente, que é a da comunicação lo- sos objetivos políticos. Acho isso su- cal. É curioso que o monopólio da mamente importante. mídia não figure na linha de frente Valter Pomar tem toda razão em das nossas agendas políticas. enfatizar que o Banco Mundial, as Achamos que se o governo não Nações Unidas e diversas organi- corta não há censura. É uma imen- zações multilaterais compraram 112 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 115. radicalmente o discurso da parti- tipo de perversidade maligna, diga- cipação. Olha, tenho tirado trechos mos, do símbolo do mal. Realmen- de publicações do Banco Mundial te há uma preocupação em fazer que todo mundo pensa que é cita- as coisas funcionarem, eles estão ção de um documento do PT . É constatando que as coisas funcio- radical. Outra coisa é dizer que nam com sistemas descentralizados isso é mau. participativos, e não só no Canadá, No Banco Mundial há uma dire- país rico, por exemplo. Veja a pro- ção política, óbvio, predominante- víncia de Kerala, na Índia. É im- mente norte-americana. Mas os pressionante, eles têm uma morta- técnicos que produzem esses re- lidade infantil de 17 por 1.000, a latórios vêem com imensa preocu- metade da mortalidade infantil do pação o tipo de ruptura social, que Brasil, com uma renda per capita eles chamam de fratura social, que de 300 dólares por ano. Se o Ban- está se gerando no planeta, por- co Mundial acha bom, ótimo. que simplesmente olham para a Quanto ao comentário de Paul frente. São dezenas de milhões Singer, acho que deveríamos pro- que estão morrendo com Aids, são por à mesa claramente o seguinte guerras que estão pipocando por tema: vamos pensar a cidade não todos os lados, a situação é abso- como segmento, mas como unida- lutamente dramática. Ninguém de de acumulação na qual temos controla a venda de armas no mun- de construir a relação cidade–cam- do (48% das exportações de ar- po, e não só fazer a reforma agrá- mas são feitas pelos Estados Uni- ria, porque a dominância das deci- dos)... Temos de ser realistas e sões está nas cidades. Temos de saber utilizar as contradições que pensar as pequenas e médias em- existem nesses sistemas. presas articuladas com políticas de Então, ao retomar o ciclo políti- emprego, políticas sociais etc. Basta co, não dá para ver tudo como um considerar, por exemplo, Belo Ho- SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 113
  • 116. rizonte, onde o programa de com- de banco privado, pagando taxas pra da merenda escolar foi articu- inimagináveis, que eu não enten- lado com a pequena produção de do. É claro que se amanhã houver agricultores no cinturão verde. a possibilidade de eu colocar essa Acho que temos a missão de pen- poupança num sistema alternativo sar um planejamento integrado, lo- vou fazê-lo, e há espaço para isso. cal, e vejo a cidade como uma uni- E essa situação não é específica dade equilibrada de acumulação a de países pobres, Bangladesh etc. ser construída a partir da própria Também acontece na França, as população. Essa linha, na qual já de- pessoas estão cansadas. Isso me veríamos estar trabalhando, tem um leva a outra dimensão: há uma potencial gigantesco. Foi feita uma imensa diferença qualitativa entre pesquisa tempos atrás em Bertioga a pequena e a média empresas e (SP), e descobriu-se que de cada a grande empresa. Para nós, são 100 reais que o cidadão de Bertioga todas capitalistas. Não são. A gran- deposita nos bancos locais 92 reais de empresa é uma estrutura políti- são aplicados fora da cidade. Em co-cultural de dominação mundial. vez de a poupança da população Afinal, quem sustenta a mídia no servir para financiar investimentos mundo? Os gastos anuais são de locais, geração de empregos e de 435 bilhões de dólares. riqueza, é investida na ciranda fi- Há o exemplo da revista Esquire, nanceira pelos bancos. que publicou uma pesquisa sobre O que se está fazendo com sexualidade americana que não foi microcrédito, com crédito solidá- muito generosa para com o poten- rio etc.? O controle sobre a pró- cial norte-americano – dos homens, pria poupança está sendo recupe- pelo menos. Foram questionados rado pela população. Este é um pelas empresas de publicidade e grande eixo de batalha. Estou can- responderam: “Vocês fazem publi- sado de ter minha conta num gran- cidade, linha editorial é conosco...”. 114 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 117. Visão americana, liberdade de im- nós, é perniciosa. A União Euro- prensa. Chegaram a um acordo, a péia criou sua moeda, houve várias revista tem a liberdade de publicar tentativas para desestabilizá-la, mas o que quer e as empresas de publi- existe hoje o euro, pela primeira vez cidade têm a liberdade de anunciar um contrapeso ao dólar. Existe tam- onde querem. Essa é a liberdade bém uma fortíssima progressão da de imprensa. China, uma rearticulação asiática. Creio que as grandes multina- Os Estados Unidos diante disso cionais, o grupo de 500 ou 600 querem assegurar um quintal. transnacionais que são as gran- Para nós, é óbvio que o que inte- des galáxias de poder, merecem ressa, quando há economias ou blo- um estudo particular de nossa cos muito mais fortes do que nós, é parte, porque elas estão se arti- sorrir um pouco para um, um pou- culando como poder político. Um co para outro e manter nessa presidente da Coca-Cola declarou eqüidistância um mínimo de equilí- que elas constituem os novos brio, porque é o único meio de ne- articuladores mundiais e ponto. gociação que temos. Entrar na Elas, as empresas transnacionais. ALCA e virar um quintal norte-ame- E é completamente diferente a ricano é perder toda capacidade de forma como são socializados ou negociação do nosso espaço. não os meios de produção da ofi- Foi mencionada aqui a atrofia da cina da esquina, da padaria, da esfera pública. Gostaria de lem- pequena e média empresa em brar o seguinte: o último relatório geral. Houve uma ruptura, a meu do Banco Mundial traz bons da- ver, em dois universos nesse pro- dos. Segundo o relatório de 1997, cesso, e temos de trabalhar de nos países desenvolvidos o Esta- maneira diferenciada. do gera em média 50% do PIB, e Vou falar rapidamente sobre a nos países subdesenvolvidos, 25%. ALCA. Considero que a ALCA, para Além de termos um PIB proporcio- SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 115
  • 118. nalmente menor, nossos Estados tais níveis de controle que é me- administram partes menores do PIB lhor evitar. do que os Estados de países de- Mas há um ponto interessante: senvolvidos. Nós temos Estados nenhuma pessoa precisa, individual- muito pequenos. mente, de uma fortuna de mais de Além disso, em nenhum lugar o 50 milhões de dólares. Se cortásse- Estado está diminuindo, não dimi- mos esse tipo de fortuna, cortaría- nuiu durante as administrações de mos a base do poder político, por- Margaret Thatcher, na Inglater- que aí já não se trata mais de capa- ra, e nem de Ronald Reagan, nos cidade de consumo, mas de capaci- Estados Unidos. O Estado norte- dade de manipulação política da so- americano não diminuiu com o pri- ciedade. Quer dizer, tanto a extre- meiro Bush e não vai diminuir ma riqueza como a extrema pobre- com o segundo simplesmente por- za são patológicas para qualquer so- que na sociedade o consumo pú- ciedade. E é perfeitamente viável blico está aumentando. O anti-Es- sugerirmos propostas para uma e tado vende bem. A revista The para a outra, tanto uma renda míni- Economist fez recentemente um ma como uma renda máxima. A comentário simpático, dizendo que fortuna pessoal do Bill Gates está as críticas ao governo vão muito atingindo o nível do PIB da Inglater- bem, e o Estado também vai mui- ra. Isso é patológico. Uma publica- to bem, obrigado. ção das Nações Unidas, comentan- Essa idéia de que no socialismo do a situação de cerca de 400 pes- seremos todos iguais é um equí- soas que têm uma riqueza pessoal voco. Eu espero que sejamos me- maior do que a renda da metade nos desiguais. Para sermos com- mais pobre da população mundial, pletamente iguais, teríamos de ter diz que esta situação é obscena. 116 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 119. Sobre os autores CELSO DANIEL nasceu em Santo André em 1951. Era engenheiro civil, mestre em administração e doutorando em ciência política e cumpria seu terceiro manda- to como prefeito de Santo André (1989–1992, 1997–2000, 2001–2004). Durante o período de 1994 a 1996 exerceu mandato de deputado federal, atuando na Comis- são de Reforma Tributária e Fiscal. Era o coordenador-geral do Programa de Go- verno do Partido dos Trabalhadores para a Presidência da República. Foi professor de administração pública na Fundação Getulio Vargas, e de eco- nomia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Teve papel ativo na fundação do Consórcio Intermunicipal das Bacias do Alto Tamanduateí e Billings (1990), da Câmara Regional do Grande ABC (1997) e da Agência de Desenvolvi- mento Econômico do ABC (1998), no qual cumpria a função de diretor-geral. Recebeu, como prefeito de Santo André, as seguintes premiações: “Prefeito Criança” da Fundação Abrinq pelo trabalho Andrezinho Cidadão em 1999 (finalista); pela Fundação Getulio Vargas/Fundação Ford os prêmios Gestão Pú- blica e Cidadania, em 1999, pelo Programa de Modernização Administrativa, e em 2000 pelo Programa Integrado de Inclusão Social (destaque) e pelo trabalho de Coleta Seletiva (finalista). Foi assassinado em janeiro de 2002, em São Paulo. MARINA SILVA nasceu em Seringal Bagaço em 1958. É historiadora e senadora do Acre pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Foi secretária nacional de Meio SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 117
  • 120. Ambiente e Desenvolvimento do PT (1995-1997), membro titular da Comissão de Assuntos Sociais e da Comissão de Educação do Senado Federal, membro do Centro de Trabalhadores da Amazônia (CTA) e vice-coordenadora da Central Única dos Trabalhadores (CUT) no Acre (1984-1986), a qual fundou juntamente com Chico Mendes. É co-autora e co-organizadora do livro O desafio da sustentabilidade – Um debate socioambiental no Brasil, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo em 2001. MIGUEL ROSSETTO nasceu em São Leopoldo (RS) em 1960. É técnico em mecânica e cientista social. Iniciou sua militância política no final da década de 1970 na organização da oposição ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Leopoldo, concorrendo como primeiro candidato a presidente numa chapa de oposição. Participou do movimento de fundação do Partido dos Trabalhadores desde 1979 e integrou a primeira executiva nacional do partido. Foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias do Pólo Petroquímico por duas gestões, entre 1986 e 1992. Foi secretário de Formação Política e secretário de Política Sindical da Central Única dos Trabalhadores (CUT) de 1992 a 1994. Elegeu-se deputado federal em 1996 e vice-governador do Rio Grande do Sul em 1998. LADISLAU DOWBOR nasceu na França em 1941 e vive no Brasil desde 1951. É formado em economia política pela Universidade de Lausanne, Suíça e doutor em ciências econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia (1976). Foi consultor do Secretário Geral da ONU na área de Assuntos Políti- cos Especiais (1980-81). Dirigiu vários projetos de organização de sistemas de ges- tão econômica, na qualidade de assessor técnico principal das Nações Unidas. No período 1989-92 foi secretário de Negócios Extraordinários da Prefeitura de São Paulo, respondendo em particular pelas áreas de meio ambiente e de relações inter- nacionais. Atualmente é professor titular no departamento de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Universidade Metodista de São Paulo. É autor de mais de uma dezena de livros, entre os quais A Reprodução Social, estudo de sistemas de gestão descentralizada; O Mosaico Partido: a economia além das equações; Tecnologias do conhecimento: os desafios da educação, pela editora Vozes. Textos disponíveis na home-page http://ppbr.com/ld. 118 PODER LOCAL E SOCIALISMO
  • 121. Programa do segundo ciclo de seminários Socialismo e Democracia realizado no primeiro semestre de 2001 Os seminários foram promovidos pelo Instituto Cidadania, pela Fundação Perseu Abramo e pela Secretaria Nacional de Formação do Diretório Nacional do PT 26 de março – Perspectivas que a vitória das es- Expositor: Fernando Haddad – professor da USP querdas nas eleições municipais de 2000 abre à cons- Comentadores: Gilmar Mauro (dirigente nacional do trução do socialismo. MST ), João Felício (presidente nacional da CUT ) e Expositor: Luiz Inácio Lula da Silva (Presidente de Ricardo Antunes (professor da Unicamp) Honra do PT) Comentadores: Marta Suplicy (prefeita de São Pau- 21 de maio – A luta pela terra e a organização dos lo), Raul Pont (ex-prefeito de Porto Alegre) e Luiz assentamentos como contribuição para a construção Dulci (presidente da Fundação Perseu Abramo) do socialismo. Expositor: Plínio de Arruda Sampaio – ex-deputado 9 de abril – Perspectivas que o desenvolvimento federal e consultor da ONU local e a distribuição de renda abrem à construção do Comentador: José Graziano da Silva (professor da socialismo. Unicamp) Expositor: Celso Daniel – prefeito de Santo André Comentadores: Ladislau Dowbor (professor da PUC- 4 de junho – Perspectivas que a revolução microele- SP ), Marina da Silva (senadora pelo Acre) e Miguel trônica e a internet abrem à luta pelo socialismo. Rossetto (vice-governador do Rio Grande do Sul) Expositor: Laymert Garcia – professor da Unicamp Comentadores: Bernardo Kucinski (professor da 23 de abril – O orçamento participativo como um dos USP), Maria Rita Kehl (psicanalista) e Walter Pinheiro pressupostos políticos da construção do socialismo. (líder do PT na Câmara dos Deputados) Expositor: Olívio Dutra – governador do Rio Gran- de do Sul 18 de junho – Alternativa socialista ante a globali- Comentadora: Maria Victoria Benevides (professora zação financeira. da USP e da Escola de Governo) Expositor: Reinaldo Gonçalves – professor da UFRJ Comentadores: João Sayad (secretário de Finan- 7 de maio – Papel dos sindicatos e cooperativas ças de São Paulo), Ronald Rocha (dirigente nacional ante as mudanças nas classes sociais e suas lutas, na do PT) e Tânia Bacelar (secretária de Planejamento perspectiva do socialismo. de Recife) SOCIALISMO EM DISCUSSÃO 119
  • 122. Leia também da coleção Socialismo em discussão Orçamento participativo e socialismo Olívio Dutra e Maria Victoria Benevides Globalização e socialismo Maria da Conceição Tavares, Emir Sader e Eduardo Jorge Classes sociais em mudança e a luta pelo socialismo Francisco de Oliveira, João Pedro Stedile e José Genoino Economia socialista Paul Singer e João Machado O indivíduo no socialismo Leandro Konder e Frei Betto Instituições políticas no socialismo Tarso Genro, Edmílson Rodrigues e José Dirceu 120 PODER LOCAL E SOCIALISMO