14
                        JUNHO /JULHO
                        2010

                        DISTRIBUIÇÃO
                        GRATUITA




FESTFOTOPOA

A expansão do
alcance da fotografia


DANÇA
Coreografias
de Eva Schul em
retrospectiva

CASO KLIEMANN
Livro amplia
entendimento
sobre o crime

FILOSOFIA
Entrevista com
José Arthur
Giannotti

FICÇÃO
Conto inédito
de Antônio
Xerxenesky
17
editorial                                                                            sumário



Mais leitores                                                                        curtas            .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 4

                                                                                     soBrescritos
Uma mudança significativa ocorre com NORTE a partir desta                            Cada geração com seu estilo
edição. Adotando uma prática comum na Europa e nos Es-                               Sérgio Rodrigues  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 6
tados Unidos e que, aos poucos, ganha adesões no Brasil, a
                                                                                     dança
Arquipélago Editorial resolveu eliminar o valor de capa da re-
                                                                                     Para dar carne à memória
vista. Isso significa que o leitor passa a contar gratuitamente
                                                                                     Mônica Dantas  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 8
com uma publicação que se destina a pensar e divulgar cultu-
ra de forma consistente, mirando além do óbvio. A novidade                           FotoGraFia

também representa um investimento da revista em seu leitor e                         A construção de um museu imaginário
na necessidade de se fomentar o debate cultural.                                     Carolina Marquis .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 12
                                                                                     Viva Thomaz Farkas!
Os atuais assinantes não terão prejuízo com a medida. Eles                           Fernando Schmitt  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 14
poderão optar por continuar recebendo a revista no endereço
                                                                                     A poética da relação com o outro
indicado. Para os leitores em geral, vamos divulgar no site da
                                                                                     Fernando Schmitt  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 16
revista a relação dos locais onde a NORTE estará disponível.
                                                                                     livros • em primeira mão
A nova configuração reconhece que o debate e a divulgação                            Os aforismos de Karl Kraus  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 18
em torno dos processos culturais precisam ser ampliados e
                                                                                     Ficção
qualificados. Para tanto, nossa aposta é que NORTE circule                           O escritor no castelo alto
mais e tenha mais leitores. Sim, o pleito é pretensioso, talvez                      Antônio Xerxenesky  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 20
ousado, mas a ele nos lançamos.
                                                                                     livros • resenhas
                                                       Vitor Necchi                  Quem escreverá nossa história, Samuel D. Kassow
                                   vitor@arquipelagoeditorial.com.br                 Felipe Pimentel  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 22

                                                                                     hq
                                                                                     Contos de Urbânia
                                                                                     Carlos André Moreira e Gilmar Fraga  .  .  .  .  .  .  .  .  . 25

                                                                                     livros • resenhas
                                                                                     Binladenistão, Luiz Antônio Araujo
                                                                                     Gabriel Pozzobom  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 26
é uma publicação da                                                                  Salas e abismos, Waltercio Caldas
ARQUIPÉLAGO EDITORIAL                                                                Eduardo Veras  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 28
Avenida Getúlio Vargas, 901/506
90150-003 — Porto Alegre — RS
                                                                                     Alguma poesia, Carlos Drummond de Andrade
Telefone: (51) 3012-6975                                                             Vitor Necchi  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 30
www.arquipelagoeditorial.com.br
www.revistanorte.com.br                                                              jornalismo
                                                                                     Um crime que diagnostica a sociedade
Conselho editorial
Cristiano Ferrazzo, Fernanda Nunes Barbosa e Tito Montenegro                         Antonio Hohlfeldt  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 32
Editor                                                                               cartum
Vitor Necchi                                                                         O juízo final
Colaboraram nesta edição: Antonio Hohlfeldt, Antônio Xerxenesky, Carlos              Moa  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 35
André Moreira, Carolina Marquis, Eduardo Veras, Eduardo Wolf, Felipe Pimentel,
Fernando Schmitt, Gabriel Pozzobom, Gilmar Fraga, Moa, Mônica Dantas,                páGinas FilosóFicas • entrevista
Rodrigo Breunig, Sérgio Rodrigues e Tomás Adam.                                      José Arthur Giannotti
Impressão: Edelbra                                                                   Eduardo Wolf  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 36
Imagem da capa: Fernando Schmitt                                                     escritório GráFico
ISSN: 1982-212X                                                                      Mallarmé por Gilmar Fraga  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  .  . 42


                                                                                 3
curtas
                                                                                                 O movimento de vanguarda foi am-
                                                                                            plamente explorado na Europa desde as
                                                                                            décadas de 1920 e 1930, mas seu impacto
                                                                                            na produção artística na América do Sul
                                                                                            só foi sentido anos mais tardes, atingindo
                                                                                            seu ápice entre as décadas de 1940 e 1970.
                                                                                            Depois de despertar o interesse de impor-
                                                                                            tantes artistas latino-americanos, acabou
                                                                                            gerando uma ruptura com a antiga arte
                                                                                            figurativa que vigorava na produção ar-
                                                                                            tística dos dois países, instaurando o iní-
                                                                                            cio de inéditas formas de expressão. Com
                                                                                            isso, surgiram novos limites para a rela-
                                                                                            ção espectador e obra, transformando-se
                                                                                            em ponto de partida para o início da era
Lygia Clark, Máquina, 1962                                                                  pós-moderna na arte latina.



Fundação Iberê Camargo                                                                      Serviço
                                                                                            O quê: Desenhar no espaço — Artistas abs-


expõe abstracionistas
                                                                                            tratos do Brasil e da Venezuela na Coleção
                                                                                            Patricia Phelps de Cisneros.
                                                                                            Artistas venezuelanos: Gego, Alejandro
                                                                                            Otero, Jesus Soto, Carlos Cruz-Diez.
Uma rara seleção de abstracionistas bra-       nez, propõe um diálogo entre o percurso      Artistas brasileiros: Willys de Castro, Ly-
sileiros e venezuelanos compõe a expo-         abstracionista no Brasil e na Venezuela      gia Clark, Mira Schendel, Hélio Oiticica,
sição Desenhar no espaço que a Funda-          da década de 1940 até meados dos anos        Hércules Barsotti e Judith Lauand.
ção Iberê Camargo apresenta em Porto           1970. Concebidos por dez nomes expo-         Quando: de 30 de julho a 31 de outubro. De
Alegre de 30 de julho a 31 de outubro.         nenciais do movimento, o significado dos     terça a domingo, das 12h às 19h. Quintas-
No total, são 88 obras do acervo da Co-        trabalhos vai além do diálogo sugerido e     -feiras, das 12h às 21h.
leção Patricia Phelps de Cisneros, uma         traça um panorama da formação das van-       Onde: Fundação Iberê Camargo — Ave-
das maiores da América Latina em arte          guardas e de uma era pós-moderna na          nida Padre Cacique, 2000 — Porto Alegre
contemporânea. O curador, Ariel Jimé-          arte sul-americana.                          (RS). Entrada franca.



Uma reportagem sobre o mundo da corrida
Diretor de redação das revistas Placar e       Desde aquele momento, Portuga se tornou      sos sociais e deixam de lado muitas horas de
Runner’s World, o jornalista Sérgio Xa-        o homem a ser batido. Marcelo Apovian        descanso ou de convívio familiar. Também
vier Filho faz sua estreia em livro com        (o Lelo), José Augusto Urquiza (o Guto) e    deixam para trás, como no caso do Lelo,
uma grande reportagem sobre o universo         Tomás Awad são os mais fortes candidatos     as sequelas de um acidente que quase lhe
da corrida. Embora tendo o esporte como        a derrotar Amílcar no que ficou conhecido    custou a perna. A marca mítica não sai da
pano de fundo, não é voltado apenas aos        como o “Desafio do Portuga”.                 cabeça deles, o Portuga precisa ser derru-
adeptos. É “um livro sobre gente, com his-         Para alcançar o objetivo, eles driblam   bado. O circuito das maiores maratonas do
tórias de competição, superação e camara-      agendas apertadas, desviam de compromis-     mundo — Berlim, Boston, Chicago, Nova
dagem”, como diz o autor. O relato começa                                                   York e Paris — é o cenário para a busca pelo
em outubro de 2006, quando o empresário                                                     recorde. Lelo, Guto e Tomás correm o mun-
Amílcar Lopes Jr., o Portuga, realizou um                                                   do, literalmente, para derrubar o Portuga. A
feito memorável ao completar a Maratona                                                     esse grupo junta-se mais tarde Felipe Wri-
                                                                OPERAÇÃO PORTUGA
de Chicago em 2 horas 43 minutos e 50 se-                                                   ght e sua obsessão em terminar uma mara-
                                                                Sérgio Xavier Filho
gundos. A marca, extraordinária para um                         Arquipélago Editorial       tona abaixo de 3 horas. E ele chegou lá, com
amador, fez dele uma espécie de lenda no                        176 páginas                 a ajuda de um amigo capaz de um gesto de
circuito dos corredores de rua de São Paulo.                    R$ 32                       pura e comovedora nobreza.

                                                                   4
Confronto de
                                                                                                          escritores
                                                                                                          Está em andamento, desde o dia 10 de
                                                                                                          junho, a primeira edição do Campeo-
                                                                                                          nato Gaúcho de Literatura. O certame é
                                                                                                          inspirado na Copa de Literatura, criada
                                                                                                          no Rio de Janeiro por Lucas Murtinho e
                                                                                                          realizada desde 2007. Na versão gaúcha,
                                                                                                          são 27 livros concorrentes, todos de con-
                                                                                                          tos, publicados em 2008 e 2009. Os títulos
                                                                                                          foram divididos, por sorteio, em nove gru-
                                                                                                          pos de três. Em cada partida, um árbitro
LUCIANO LANES




                                                                                                          é convocado para escrever uma resenha
                                                                                                          comparando duas obras — e, claro, deve
                                                                                                          dar o resultado final do jogo, com placar
                                                                                                          e tudo. O campeonato segue até dezembro

                Norte conquista                                                                           deste ano e pode ser acompanhado pelo
                                                                                                          site http://gauchaodeliteratura.wordpress.


                mais um prêmio
                                                                                                          com. As partidas são publicadas sempre às
                                                                                                          segundas e quintas-feiras.
                                                                                                              A intenção dos organizadores é des-
                                                                                                          tacar um gênero literário a cada ano. No
                A revista NORTE recebeu, no dia 13 de             A escolha dos vencedores é feita por    ano que vem, a disputa se dará em torno
                abril, mais uma distinção: o 4º Prêmio        um conselho composto pelos coordenado-      dos romances. A comissão organizadora
                Joaquim Felizardo, categoria Mídia – Es-      res das diversas áreas da SMC, assim como   do Gauchão de Literatura é composta por
                pecial, promovido pela Secretaria Muni-       o secretário Sergius Gonzaga e a secretá-   Ana Mello, Carlos André Moreira, Daniel
                cipal da Cultura (SMC) de Porto Alegre        ria-adjunta Ana Fagundes. A designação      Weller, Fernando Ramos, Luciana Thomé,
                para homenagear artistas e intelectuais de    de Joaquim Felizardo para o nome do prê-    Marcelo Spalding e Rodrigo Rosp.
                diversas áreas da cultura da Capital e des-   mio reconhece os valores humanistas que
                tacar iniciativas de mídia e patrocinado-     nortearam a atuação do historiador e pro-
                res. Nesta edição, relativa ao ano de 2009,   fessor que encabeçou o movimento pela
                foram entregues 19 troféus. A premiação       criação da SMC, da qual foi o primeiro
                ocorreu no Teatro Renascença, noite em        secretário, em 1986.
                que Nico Nicolaiewsky interpretou ao pia-         O ano passado foi pródigo para a NOR-
                no algumas de suas composições. O co-         TE. Além do Joaquim Felizardo, a revista
                ordenador de comunicação da secretaria,       já havia conquistado o Prêmio Açorianos
                Marcelo Oliveira da Silva, entregou o tro-    de Literatura – destaque Mídia Impressa.
                féu para o editor de NORTE, Vitor Necchi.     A entrega ocorreu no dia 14 de dezembro.




                                                                                        LIVRARIA BAMBOLETRAS
                                                                                      CENTRO COMERCIAL NOVA OLARIA
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                                                                                     Fones: (51) 3221-8764 / 3227-9930



                                                                                 5
soBrescritos • por sérGio rodriGues

                                                                                         — Quem se recusou a crescer foi você, você é que se recusou

Cada geração                                                                             a ir além daquela lengalenga submautneriana de marginais he-
                                                                                         róis e nonsense que eu li quando tinha quinze anos, como era
                                                                                         mesmo o nome, Minhocas do asfalto? Não, agora lembrei: A ci-

com seu estilo                                                                           dade e os cupins. Li com quinze, achei razoável, com dezesseis já
                                                                                         achava um lixo. Foi você que não cresceu, você que fracassou.
                                                                                         Tudo bem, pode ser que eu não dê em nada também, é altamente
                                                                                         provável, aliás. Mas tenha pelo menos a decência de esperar isso
— Crítica construtiva, tudo bem, mas eu gosto mesmo é de elo-
                                                                                         acontecer antes de me atirar na cara o seu fracasso.
gio, disse o jovem escritor do momento.

                                                                                         Seguiu-se um silêncio de cristal. O auditório estalava de tensão.
A plateia riu.
                                                                                         Ninguém respirava. Até que o escritor de meia-idade redarguiu:
— A boutade é boa, retrucou da poltrona ao lado o escritor de
                                                                                         — Viadinho!
meia-idade, seu momento perdido em algum ponto remoto dos
anos 80, mas eu sempre achei que elogio é que nem doce. Uma
                                                                                         E se atracaram. Os dois tiveram chance de encaixar uns tantos
delícia, e te enche de energia. Mas não faz crescer. Críticas têm
                                                                                         cruzados, e o escritor mais velho se distinguiu pelos potentes
proteína, elogios têm açúcar. O escritor jovem que se esbalda nos
                                                                                         cotovelaços, enquanto o mais moço manejava com perícia um
primeiros elogios, se lambuza neles, principalmente acredita ne-
                                                                                         estilete, tingindo o palco de sangue, antes que entrassem para
les, está se recusando a crescer.
                                                                                         separá-los. Caiu o pano.
O jovem escritor do momento ficou lívido. As juntas de seus de-
                                                                                         A plateia explodiu num aplauso de puro êxtase.
dos descoloriram em torno do microfone.

— Quem se recusou a crescer foi você, cara.

— Como disse?




Sobrescritos em livro
O jornalista e escritor Sérgio Rodrigues começou a publicar os
contos a que deu o nome de “Sobrescritos” no seu blog Todoprosa
(www.todoprosa.com.br). Na NORTE, aparecem desde a primei-
ra edição da revista, em novembro de 2007. Histórias do univer-
                                                                                                                              SOBRESCRITOS
so literário repletas de ironia, elas agora foram reunidas no livro
                                                                                                                              Sérgio Rodrigues
                                                                          MARIA MENDES




Sobrescritos — 40 histórias de escritores, excretores e outros                                                                Arquipélago Editorial
insensatos, com ilustrações de Gilmar Fraga, que a Arquipélago                                                                152 páginas
Editorial, que edita a NORTE, acaba de lançar.                                                                                R$ 25


                                                                      6
                                                                      6
curtas

 Formação em revista
                                                                                                            de Virginia. Com uma particularidade: a
                                                                                                            aversão aos academicismos.
                                                                                                                 Serrote trata o ensaio como um gêne-
                                                                                                            ro que não depende de pompa e lingua-
 Diante da atual aridez existente no jorna-       sobre o tema “O novo ensaísmo brasilei-                   gem excessivamente técnica. Sem ofender
 lismo cultural brasileiro, algumas inicia-       ro”. O encontro gaúcho, realizado no dia                  a inteligência alheia, fala sobre sambas de
 tivas apresentam-se como oásis de ideias         29 de março, foi capitaneado pelo editor                  Nelson Cavaquinho, hipergrafia, boxe e
 e provocações. Na maioria das vezes,             Matinas Suzuki e contou com a presença                    Prince of Persia com idêntica leveza tex-
 contudo, a fonte não passa de uma mi-            do tradutor Samuel Titan Jr. e do escritor                tual. Tal característica pode explicar, em
 ragem. Motivos não faltam: insustenta-           Daniel Galera.                                            parte, o sucesso comercial da revista: os
 bilidade financeira, panelinhas literárias            Apesar de eventuais comparações                      dois primeiros números já se esgotaram
 autorreferentes e — elementar, meu caro          com a imprensa norte-americana (leia-se                   e, a partir de agora, a tiragem passa de 3
 editor — pobreza de conteúdo. São cada           New Yorker), Serrote segue uma tradição                   mil para 4 mil exemplares.
 vez mais raras as publicações que sobre-         distinta. Publicada pelo Instituto Moreira                     Neste primeiro ano de vida, o saldo da
 vivem no Brasil sem cometer pelo menos           Salles, sua maior influência são os jour-                 Serrote foi duplamente positivo. Positivo
 um desses deslizes.                              nals de ensaios editados por organizações                 para o mercado editorial brasileiro, que
     É o caso da revista Serrote, notável         culturais e acadêmicas. O próprio Suzuki,                 provou ainda ter um restante de fertilida-
 milagre editorial dedicado a um gênero           durante palestra em setembro de 2009 no                   de em meio a suas areias desérticas. E po-
 pouco valorizado em terras tropicais: o          22º SET Universitário, evento realizado                   sitivo para o público leitor, que vê na re-
 ensaio. Aproveitando o lançamento de             pela Faculdade de Comunicação Social                      vista — tanto na produção própria quanto
 sua quarta edição, a quadrimensal orga-          (Famecos) da PUCRS, confessou que a                       no conteúdo traduzido — um raro instru-
 nizou um périplo por cinco capitais, entre       maior inspiração da revista é a The Vir-                  mento de formação intelectual.
 elas Porto Alegre, promovendo debates
Revista_Norte.pdf  25/9/2009   15:54:38           ginia Quarterly Review, da Universidade                                                  Tomás Adam




                 Racionalize Custos,                                                                Aumente a sua Receita,
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dança




      Para dar carne à memória




                                                                                                                                         LU MENNA BARRETO
                Projeto recupera quase 40 anos de produção coreográfica
              de Eva Schul, nome seminal da dança contemporânea no Brasil

                                                      MÔNICA DANTAS

A partir dos anos 1920, a dança cênica começa a se estruturar        Meyer e Petzhold realizaram montagens de coreografias de
no Brasil, seja por meio de brasileiros que foram estudar na         repertório do balé, mas também coreografaram obras com
Europa ou de europeus que decidiram residir no país. Em Porto        nítida influência da dança expressionista.
Alegre, a comunidade alemã desempenhou um importante
papel no desenvolvimento da dança como atividade artística,          Naquele período, essa dança que germinava no Brasil e que
a partir da criação do Instituto de Cultura Física por Mina          parecia moderna não se apresentava como uma ruptura em
Black e Nenê Dreher Bercht, em 1937. Mina havia estudado no          relação ao balé, como foi o caso da Europa e mesmo dos Estados
Instituto do Ritmo Aplicado, de Jacques Dalcroze, em Hellerau,       Unidos. Lya Bastian Meyer e Tony Petzhold eram modernas na
Alemanha. De lá, trouxe os princípios de trabalho da eurritmia       medida em que apresentavam algo novo. A maior novidade
— sistema de treinamento da sensibilidade musical, através           consistia em mostrar a dança de um modo diferente, como uma
do qual o ritmo é transformado em movimentos corporais,              prática que solicitava o status de arte. No entanto, suas escolas
que influenciou fortemente a dança moderna. Do Instituto de          se afirmavam tendo como base o ensino do balé, sublinhando a
Cultura Física saíram, para estudos na Alemanha, Lya Bastian         primazia desta técnica para a formação de bailarinos.
Meyer e Tony Petzhold.
                                                                     Até meados dos anos 1970, predominavam em Porto Alegre
Na Alemanha, em períodos diferentes, elas estudaram balé             as escolas de balé e seus espetáculos de fim de ano. Em 1974
com professoras russas e conheceram a dança expressionista           foi fundado o Grupo Experimental de Dança (GEDA), com
de Mary Wigman. De volta a Porto Alegre, abriram suas                a finalidade de reunir os melhores alunos dessas escolas para
escolas de dança. Com seus alunos ou em trabalhos solos,             promover espetáculos e proporcionar maior experiência


                                                                 8
aos bailarinos. Embora as coreografias tivessem inspiração           em colaboração com outros artistas como os músicos Toneco
moderna, os bailarinos eram formados e exercitavam-se                e Carlinhos Hartlieb, além de Nico Nicolaiewsky, que também
em aulas de balé. Foi somente a partir da criação do Espaço          atuava como dançarino, que Eva criou Um berro gaúcho. A
e do Grupo Mudança por Eva Schul, em 1974, que se pôde               coreografia partia do mito de Sepé Tiaraju para falar de uma
identificar uma preocupação em ensinar dança a partir de             identidade regional vinculada a uma perspectiva urbana, pop,
outras matrizes técnicas, que resultaram numa abordagem              com ecos da contracultura.
mais contemporânea do corpo e da dança.
                                                                     Em 1975, Alwin Nikolaïs convidou Eva para trabalhar em Nova
Nascida num campo de refugiados no pós-guerra, na Itália, Eva        York. Durante sete anos, estudou com Nikolaïs, e principalmente
chegou ao Brasil em 1956, onde fez sua formação em balé. Após        com Hanya Holm, os princípios que embasaram boa parte da
um estágio de um ano no New York City Ballet e uma formação          dança moderna e pós-moderna. Holm tinha sido assistente de
em artes plásticas, Eva participou do 1° Congresso Nacional de       Mary Wigman na Alemanha e estruturou uma técnica em que
Dança em Curitiba, onde descobriu a dança moderna. Decidida          a descentralização e a ausência de hierarquia entre o corpo e
a compreender essa nova forma de dançar, foi estudar no              suas partes resultam na premissa de que o fluxo do movimento
Uruguai e na Argentina os princípios de análise do movimento         coordena-se com o fluxo da vida.
desenvolvidos por Rudolf Laban e a técnica de Martha Graham.
                                                                     Essas experiências marcaram profundamente o trabalho de
De volta a Porto Alegre no início dos anos 1970, Eva criou           Eva Schul. Coreografias como Ecos do silêncio, Reflexos, Jungle,
o Espaço MuDança. Dizendo-se insatisfeita com as práticas            Limites da ilusão e Hall of mirrors, criadas nos anos 1980,
coreográficas que não permitiam o desenvolvimento de                 referenciam-se diretamente nesses princípios e procedimentos.
uma expressão própria e de um diálogo direto com a                   Essas coreografias foram produzidas em Curitiba, onde Eva deu
plateia, desenvolveu estratégias para permitir que o corpo           aulas e coreografou para a Companhia de Ballet do Teatro Guaíra
protagonizasse livremente esse diálogo. Foi nesse ambiente,          e participou da elaboração dos cursos superiores de Teatro e




                                                                 9
dança

                                                                         e Catch ou como segurar um instante (2003). O elenco deste
                                                                         espetáculo é composto por jovens bailarinos, selecionados
                                                                         através de audição, pois a ideia era experimentar com pessoas
                                                                         detentoras de formações diversas e corpos talvez tão distintos
                                                                         daqueles dos anos 1970 e 1980. Houve, portanto, diferenças
                                                                         nos procedimentos de remontagem de cada obra. Catch ou
                                                                         como segurar um instante e Hall of mirrors possuíam registro
                                                                         em vídeo, que serviu como ponto de partida para sua recriação.
                                                                         Orientados pela coreógrafa e por duas assistentes — Viviane
                                                                         Lencina para Catch e Sofia Schul para Hall of mirrors —, os
                                                                         bailarinos apropriaram-se destas coreografias e as fizeram suas.
                                                                         Catch tem trilha sonora especialmente composta por Celau
                                                                         Moreira, e Hall of mirrors utiliza música do grupo alemão
                                                                         Kraftwerk. Um berro gaúcho foi completamente recriada a
Eva Schul ministrando oficina no Espaço MuDança, nos anos 1970           partir de improvisações baseadas no roteiro original e na
                                                                         música composta especialmente para a coreografia por Toneco
de Dança (Fundação Teatro Guaíra/Pontifícia Universidade                 e Carlinhos Hartlieb nos anos 1970.
Católica do Paraná), ministrando diferentes disciplinas, além de
dirigir e coreografar o Grupo de Dança FTG/PUC. Foi quando               Em junho estreou o espetáculo dar carne à memória II,
a necessidade de aplicação de seus conhecimentos fez com que a           formado por solos e duos recriados por intérpretes-criadores
coreógrafa ajustasse o trabalho desenvolvido em Nova York aos            que participaram da elaboração dessas obras como integrantes
seus alunos no sul do Brasil. Aos poucos, a dança de Eva Schul se        da Ânima Companhia de Dança, nos anos 1990. Em cena,
tornou cada vez mais sul-brasileira e sua.                               Eduardo Severino em Ser animal; Cibele Sastre em O fio
                                                                         partido; Mônica Dantas em Caixa de ilusões; Tatiana Rosa em
No início dos anos 1990, Eva retornou a Porto Alegre, onde               Tons; Luciana Paludo em Solitude, Luciano Tavares e Viviane
criou a Ânima Companhia de Dança e montou obras como O                   Lencina em De um a cinco. A metodologia de recriação dessas
convidado, Caixa de ilusões, Tons, A dança da dúvida, De um a            obras foi desenvolvida pelos próprios bailarinos, auxiliados
cinco, Catch ou como segurar um instante. Em Porto Alegre, Eva           por Eva Schul e por Suzane Weber, que estiveram à disposição
continuou seu trabalho como formadora e afirmou sua prática              dos artistas para viabilizar seus experimentos de recriação.
como pesquisadora, no melhor sentido que esse termo possa                Assim, cada intérprete-criador, utilizando os recursos que
ter para a dança: fazendo do seu corpo e do corpo das pessoas            achou necessário, foi recriando sua coreografia. Não havia
que estudam com ela território de investigação para a criação            um compromisso com a fidedignidade à obra original, ela
coreográfica, por meio de um estudo minucioso do corpo                   poderia somente servir de referência para um novo trabalho
em movimento e da disseminação da improvisação como                      composicional. No entanto, alguns optaram por refazer suas
ferramenta de composição coreográfica e/ou como modo de se               coreografias bem próximas à sua matriz original.
levar a dança para a cena. Orientando, formando e fomentando
novos criadores, Eva Schul e a Ânima Companhia de Dança                  Apesar do aperfeiçoamento nas formas de registro e veiculação
engendraram um ambiente que tem permitido o surgimento e                 dos produtos coreográficos em diferentes mídias e das
o amadurecimento de artistas cujas obras, ações e projetos vêm           possibilidades de se fazer dança em outros suportes para além
se constituindo em referenciais para a dança contemporânea.              do corpo em movimento, dançar é uma das melhores maneiras
                                                                         de celebrar a dança e sua história. Dançar, para se constituir
Desde janeiro deste ano, o projeto dar carne à memória,                  memórias da dança, tentando reencontrar no movimento
contemplado com o Prêmio Funarte Klauss Vianna de                        algo do sentido e da intenção com que ele foi criado. E assim,
Dança/2009, vem celebrando a obra de Eva Schul com a                     dar carne à memória, revisitando as produções coreográficas
recriação das suas principais coreografias, realizando, em               de décadas anteriores como forma de alimentar a criação
paralelo, ações de mapeamento da sua trajetória.                         coreográfica atual e de revigorar nossos entendimentos sobre a
                                                                         cena contemporânea. E nada mais exemplar, para tanto, do que
Em maio foi apresentado o espetáculo dar carne à memória                 a obra de Eva Schul. §
I, que compreendeu a recriação de três obras de períodos
distintos: Um berro gaúcho (1977), Hall of mirrors (1986)                  Mônica Dantas é bailarina, pesquisadora e professora da UFRGS.



                                                                    10
11
FotoGraFia
DENISE HELFENSTEIN




                                                                                                                                                                GUSTAVO DIEHL
                                       A construção de um
                                        museu imaginário
                                     O FestFotoPoA propõe, há quatro anos, expandir a fotografia
                                             a ponto de ela virar uma expressão filosófica
                                                                           CAROLINA MARqUIS


                     Quanto tempo dura um instante? O que é o tempo e quais são               Bastava subir as escadarias do antigo prédio da Avenida Sete de
                     os tempos de uma fotografia? O que se enxerga em uma foto é              Setembro, onde funciona o Santander Cultural, e ultrapassar
                     um tempo que não muda. Por isso mesmo ele está em constante              as moças que vestiam camisetas cor de laranja com símbolos
                     transformação.                                                           que indicavam 4° FestFotoPoA para chegar ao amplo salão.
                                                                                              Quando se olhava para os lados, nas paredes do imponente
                     Algumas destas questões eram despertadas no público que                  salão se fazia presente o legado visual de Farkas, responsável
                     compareceu ao 4° Festival Internacional de Fotografia de Porto           pelo início da fotografia moderna no Brasil.
                     Alegre (FestFotoPoA), evento que vem colocando a capital gaúcha
                     no roteiro dos movimentos que mostram e pensam fotografia.               O tema de reflexão deste encontro foi A terceira margem
                     Na mais recente edição, realizada entre 7 de abril e 2 de maio, o        do tempo fotográfico... o território da fotografia. O fotógrafo
                     homenageado foi o húngaro-brasileiro Thomas Farkas.                      Carlos Carvalho, curador e idealizador do evento, justifica


                                                                                         12
FERNANDO SCHMITT
TIAGO COELHO




               que o festival surgiu para atender a uma demanda local                   Expandir a fotografia a ponto de ela virar uma expressão filosófica
               de eventos de fotografia. “O FestFoto não é feito apenas                 é a intenção do FestFoto. “Queremos o diálogo, que o público
               para profissionais da fotografia. A ideia é fazer projeções              tenha acesso a discussões que não teria em qualquer lugar”, propõe
               multimídia que deem lugar à fotografia contemporânea”,                   Carvalho. “O festival tem a fórmula aberta. O único conceito
               explica. Nesta edição, 52 fotógrafos tiveram seus trabalhos              que temos é de ser um festival de projeções.” O 4º FestFotoPoA,
               projetados no festival. “Caso quiséssemos colocar cada                   patrocinado pelo Santander Cultural e pela Funarte, apresentou,
               uma destas fotos enquadradas e penduradas nas paredes,                   além dos trabalhos de Farkas, obras de Henri Cartier-Bresson,
               precisaríamos de um evento da dimensão de uma Bienal”,                   Hélio Oiticica, Martin Chambi, Alexandre Sequeira e Jacqueline
               compara Carvalho. O festival surgiu para democratizar a arte             Joner, as exposições individuais de Fernando Schmitt (17
               do “momento decisivo” — conceito do francês Henri Cartier-               dinheiros), Júlio Appel (3 mulheres), Larissa Madssen (Relógios
               Bresson evocado na idealização do evento.                                de Sol), Gustavo Diehl (Re)tratos) e Tiago Coelho (D’Ana.)
                                                                                        e instalações, como a de Denise Helfenstein (A captura da
               E se são três as margens da fotografia, como sugere a temática do        paisagem). Ainda havia vídeos, exibições, projetos coletivos e os
               festival, a primeira é justamente o “momento decisivo” descrito          trabalhos selecionados no Fotograma Livre 2010.
               por Bresson. “O tempo alongado” da experiência construtivista
               tardia da modernidade brasileira é a segunda das margens. A              A fotografia permite que sejam mais abertos e estejam
               terceira é o tempo, palavra tão difícil de conceituar. “O tempo          disponíveis para perceber o mundo aqueles que trabalhem com
               é a metáfora. O tempo que passa e nos tira ou o tempo que                ela. “O prosaico do cotidiano passa a ser mais interessante, e os
               não passa”, conta Jacqueline Joner, expositora e co-curadora             caminhos que percorremos tornam-se mais lúdicos quando a
               do Festival. Em A casa vazia: fotografias do inapreensível, sua          fotografia faz parte da vida”, acredita Sinara Sandri, que coordena
               instalação, Jacqueline lançou diversos olhares sobre a perda e           o festival ao lado de Carlos Carvalho. “A fotografia conta do
               mostrou a assimilação dela a partir do tempo.                            estranhamento do fotógrafo com o mundo. Ela não se cala.” §


                                                                                   13
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Dia da inauguração de Brasília (presidente Juscelino Kubitschek), 1960




                  Viva Thomaz Farkas!
               A obra do artista húngaro radicado no Brasil é um marco da
           fotografia moderna e compõe um acervo de mais de 34 mil imagens

                                                            FERNANDO SCHMITT

A voz não tinha potência, mas claramente tratava-se de um                     de fatos importantes e conhecidos. Farkas assinou o livro de
brado, de uma palavra de ordem. Surgiu ao final de uma palestra               fundação do Masp e foi dele a primeira exposição de fotografia
do 6º Paraty em Foco, a FLIP dos fotógrafos, como alguns                      no museu, em 1949. Fotografou a construção e a inauguração
moradores da cidade fluminense gostam de chamar. “Viva a                      de Brasília. Foi produtor e diretor de cinema, financiando
fotografia!” As pessoas próximas imediatamente replicaram,                    do próprio bolso a realização de uma série de documentários
aumentando o volume e o entusiasmo do manifesto. O autor                      sobre o Brasil, iniciativa que ficou conhecida como “Caravana
do primeiro grito chama-se Thomaz Farkas, húngaro nascido                     Farkas”. É membro vitalício do conselho da Fundação Bienal de
em 1924 que se naturalizou brasileiro e se tornou um dos                      São Paulo, conselheiro da Cinemateca Brasileira e faz parte do
personagens fundamentais da fotografia moderna no Brasil.                     conselho curador da Coleção Pirelli/Masp.

Em uma pesquisa rápida fica fácil descobrir porque o FestFotoPoA              Mas bastaria para justificar a homenagem o fato de Farkas ser
decidiu homenageá-lo em sua quarta edição. Há uma série                       um grande fotógrafo, fundamental para o desenvolvimento da


                                                                         14
fotografia no Brasil. Nos anos 1940, frequentava o Foto Clube
                                                         Bandeirantes, que se reunia no mesmo prédio da Fotoptica,
                                                         empresa de seu pai, na Rua São Bento, centro de São Paulo. Não
                                                         raro as imagens mais abstratas, fortemente geométricas, eram
                                                         desdenhadas pelos outros fotógrafos. Uma de suas fotografias
                                                         mais conhecidas, precursora da arte construtivista, um grafismo
                                                         fortemente contrastado obtido a partir de um agrupamento de
                                                         telhas, foi apelidada “costelas de minhoca”. Hoje guardada pelo
                                                         Instituto Moreira Salles (IMS), a coleção de Farkas tem mais de
                                                         34 mil imagens.

                                                         A fotografia nunca foi exclusiva na vida de Farkas, e ele nunca
                                                         se considerou um profissional. Tampouco era um amador;                   Imagem obtida durante a filmagem do documentário Subterrâneos do
                                                                                                                                  futebol, do qual Farkas foi o fotógrafo. São Paulo, 1964.
FOTOS: THOMAZ FARKAS / ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES




                                                         amante, talvez. Teve participação ativa na empresa da família, e
                                                         as duas atividades complementavam-se. A Fotoptica publicou               Se ainda faltassem argumentos que sustentassem a homenagem,
                                                         uma revista especializada em fotografia, que começou como                bastaria retomar o depoimento do amigo Cristiano Mascaro no
                                                         um tabloide ainda na década de 1950, e manteve uma galeria,              livro Thomaz Farkas publicado pela Edusp em 2002 e dizer que
                                                         inaugurada no fim dos anos 1970, onde gerações de fotógrafos             este homem, cujo apelido é Macaco Chico, aprendeu uma receita
                                                         brasileiros puderam conviver e dar visibilidade a seus trabalhos.        de dry martini com Luis Buñuel, gosta de rabanetes com mel no
                                                         E a loja da Rua Conselheiro Crispiniano tornou-se referência             café da manhã e tem um gosto impecável para gravatas. §
                                                         como fornecedora de material e equipamento fotográficos e
                                                         pela qualidade de seu laboratório.                                                                            Fernando Schmitt é fotógrafo.




                                                         Núcleo Bandeirante, 1957-1960



                                                                                                                             15
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                 A poética da relação
                     com o outro
              Na instalação Nazaré do Mocajuba, Alexandre Sequeira estampa
                retratos em tecidos impregnados pelas vidas de seus donos

                                                        FERNANDO SCHMITT


Quando se percorre a instalação Nazaré do Mocajuba,                         As imagens encomendadas eram entregues em um varal, assim
deparamos frontalmente com as imagens dos habitantes de                     o fotógrafo podia ficar por perto e acompanhar o encontro das
um vilarejo de pescadores do Pará impressas em tamanho real                 pessoas com suas fotografias. Ele conta que “no caso de Nazaré
sobre tecidos. A força visual e poética das imagens apresentadas            do Mocajuba, a fotografia não se tratava exatamente de uma




                                                                                                                                               FERNANDO SCHMITT
no 4º FestFotoPoA é suficiente para comover, mas, para                      novidade, mas, com certeza, um recurso raramente utilizado
compreender a densidade da obra, faz toda a diferença ouvir                 por qualquer uma daquelas pessoas”, e por isso chamava
Alexandre Sequeira falar de seu processo criativo.                          a atenção a relação de profundo respeito dos fotografados
                                                                            com o ato fotográfico. Na maioria dos casos, a pose ofertada
Alexandre é um sujeito bom de conversa. Fala mansa,                         era absolutamente frontal, o olhar encarando diretamente a
plena de gentileza e um ritmo tranquilo de quem acredita                    câmera. É com esse olhar que o espectador deparava quando
que o interlocutor tem algo que vale a pena ouvir. Nas suas                 circulava pela instalação montada no Santander Cultural.
apresentações, o público vai sendo contaminado, pouco a
pouco, pela história de seu envolvimento com a comunidade                   Os pedidos de fotografias levaram aos poucos o fotógrafo
de Nazaré do Mocajuba e, não raro, a emoção transborda em                   para dentro das casas de seus modelos. Ali se encontrava o
lágrimas.                                                                   suporte que ajudaria a dar sentido ao trabalho artístico: panos
                                                                            estampados, já puídos, que faziam as vezes de porta, lençóis,
Ele foi levado ao vilarejo pela primeira vez na década de 1990.             redes, mosquiteiros, toalhas de mesa — tecidos impregnados
“Ali já me senti envolvido pela paisagem e pelo carinho dos                 pelas vidas de seus donos, passariam a carregar também suas
moradores”, recorda. Mais tarde, quando recebeu uma bolsa                   imagens. Alexandre passou a propor uma troca: o tecido velho
de pesquisa em arte do Instituto de Artes do Pará, escolheu                 por um novo. Então ele fotografava a peça a ser trocada e ia a
desenvolver um trabalho que tratasse desse envolvimento,                    Belém procurar por outra de cor e estampa semelhantes.
dessa paixão por aquele lugar e pelas pessoas que ali viviam.
                                                                            O processo de impressão das imagens usou a técnica da serigrafia
O trabalho começou com uma documentação quase corriqueira                   e, para garantir que a altura das imagens correspondesse à das
de cotidiano e paisagem, até que um dia uma senhora o procurou              pessoas fotografadas, Alexandre desenvolveu uma técnica sutil e
pedindo que fizesse umas fotografias 3x4 para um documento.                 afetuosa. Um abraço permitia usar o próprio corpo como régua
Em seguida outras solicitações foram aparecendo e ali se deu                e referência. Os tecidos impressos retornaram ao vilarejo na
uma mudança importante no rumo que o projeto tomava:                        forma de uma exposição ao ar livre com as imagens penduradas
Alexandre colocou-se como retratista da comunidade, criando                 nas árvores, e cada um dos modelos pode levar sua imagem e
uma interação com a vila por meio da fotografia, mas não a                  pendurá-la em sua casa por um dia. As fotografias dos tecidos
fotografia que ele vinha fazendo até então, e sim a que passava a           reposicionados e ressignificados nas casas de seus modelos —
ser demandada pelos moradores de Nazaré. “Percebi que queria                que também estavam expostas, completando a instalação — são
falar, através da fotografia, de uma relação construída com o lugar,        comercializadas por galerias de arte, e os recursos advindos são
e aquilo era exatamente o que estava acontecendo”, reconhece.               divididos meio a meio entre o artista e a vila.


                                                                       16
Sequeira estampou em cortinas e mosquiteiros os retratos de moradores de Nazaré do Mocajuba (abaixo). O trabalho foi exposto no Santander Cultural.
FOTOS: ALEXANDRE SEqUEIRA




                            “Percebo que, cada vez mais, o que importa para mim não é
                            fazer fotos de pessoas, mas trabalhar com elas a fotografia. A
                            fotografia torna-se um pretexto para constituir uma história
                            com essas pessoas”, explica Alexandre. Em seu trabalho, o
                            processo artístico é tão belo quanto o resultado final exposto.
                            Mais que na linguagem fotográfica, é no aspecto relacional, no
                            encontro propiciado pela fotografia, que se funda a potência da
                            poética visual de Nazaré do Mocajuba. §

                                                                                                    17
livros • em primeira mão




    Os aforismos de Karl Kraus
Considerado um dos maiores satiristas de todos os tempos, Karl           Maldita lei! A maioria de meus próximos é a triste consequência
Kraus (1874-1936) deixou uma obra vasta, mas ainda larga-                de um aborto não feito.
mente ignorada no Brasil. São ensaios, poemas, peças teatrais e,
sobretudo, aforismos, as frases certeiras que fizeram sua fama. A        Nada é mais tacanho do que o chauvinismo ou o ódio racial.
maior parte desse material apareceu nas páginas da revista Die           Para mim todos os seres humanos são iguais; há idiotas em
Fackel (A Tocha), que ele fundou em 1899. Os aforismos foram             toda parte e tenho o mesmo desprezo por todos. Nada de
publicados em três volumes: Ditos e contraditos, em 1909, Pro            preconceitos mesquinhos!
domo et mundo, em 1912, e De noite, em 1916. Para reapre-
sentar o polemista ao leitor brasileiro, a Arquipélago Editorial,        Se alguém quer me dirigir a palavra, ainda espero até o último
que edita a NORTE, lança na segunda quinzena de julho uma                momento que o medo de se comprometer o impeça de fazê-lo.
seleção dos aforismos de Kraus, com organização e tradução (di-          Mas as pessoas são corajosas.
reta do alemão) de Renato Zwick. A seguir, trechos do novo livro.
                                                                         Muitos têm o desejo de me matar. Muitos, o desejo de ter dois
                              ***                                        dedos de prosa comigo. Contra aqueles a lei me protege.

Quão pouca confiança merece uma mulher que se deixa                      O mundo é uma prisão em que é preferível a solitária.
apanhar numa fidelidade! Hoje ela é fiel a ti, amanhã a outro.
                                                                         Quando o madeirame do telhado pega fogo não adianta rezar
Ela disse a si mesma: “Dormir com ele, tudo bem – mas nada               nem esfregar o assoalho. Em todo caso, rezar é mais prático.
de intimidades!”
                                                                         A democracia divide os homens em trabalhadores e
Faltava-lhe apenas um defeito para ser perfeita.                         preguiçosos. Ela não está preparada para aqueles que não têm
                                                                         tempo para trabalhar.
Em relação às mulheres, a ordem social nos deixa apenas a
alternativa de sermos mendigos ou ladrões.                               Numa cabeça oca cabe muito conhecimento.

A única coisa que importa no amor é não parecermos mais                  Devemos ler todos os escritores duas vezes, os bons e os ruins.
bobos do que nos fazem.                                                  Uns serão reconhecidos, e outros, desmascarados.

A abstinência sempre se vinga. Num produz pústulas; noutro,              Há escritores que já conseguem dizer em vinte páginas aquilo
códigos sexuais.                                                         para o que às vezes preciso de até duas linhas.

As penas servem para intimidar aqueles que não querem                    De onde tiro tanto tempo para não ler tanta coisa?
cometer crimes.

O escândalo começa quando a polícia lhe dá um fim.

O cristianismo enriqueceu o banquete erótico com o
antepasto da curiosidade e o arruinou com a sobremesa do
arrependimento.                                                                                   AFORISMOS
                                                                                                  Karl Kraus
                                                                                                  Org. e trad.: Renato Zwick
O cão é fiel, não há dúvida. Mas será por isso que devemos tomá-                                  208 páginas
lo como exemplo? Afinal, ele é fiel ao homem e não ao cão.                                        R$ 39




                                                                    18
Kraus fotografado por
                                                                      Trude Fleischmann,
                                                                      em 1928, e a primeira
                                                                      edição da revista Die
                                                                      Fackel, de 1899



Por que muitos escrevem? Porque não têm caráter suficiente            Muitas vezes, a filosofia não é mais do que a coragem de entrar
para não escrever.                                                    num labirinto. E quem se esquecer do portão de entrada, pode
                                                                      facilmente adquirir a reputação de pensador independente.
Certo sujeito disse que tentei colocá-lo contra a parede. Isso
não é verdade. Eu simplesmente consegui.                              A carreira é um cavalo que chega sem cavaleiro diante dos
                                                                      portões da eternidade.
A boca transborda daquilo que o coração está vazio.
                                                                      Um lobo em pele de lobo. Um patife sob o pretexto de sê-lo.
A medicina: passe o dinheiro e a vida!
                                                                      O ódio deve se tornar produtivo. Caso contrário, é mais sensato
Símbolo moderno: a morte com a buzina.                                amar logo de uma vez.

O aforismo jamais coincide com a verdade; ou é uma meia               Muitos têm a megalomania de ser loucos e são apenas cabeças-
verdade ou uma verdade e meia.                                        tontas.

Eu e meu público nos entendemos muito bem: ele não ouve o             Não tenho mais colaboradores. Eu tinha inveja deles. Eles
que digo e eu não digo o que ele gostaria de ouvir.                   afastam os leitores que eu mesmo quero perder.

Por que tantos me criticam? Porque me elogiam e apesar disso          A sátira está longe de toda hostilidade e significa um benefício
os critico.                                                           para uma coletividade ideal, rumo à qual ela avança não contra,
                                                                      mas através dos indivíduos reais.
Não se vive uma vida sequer uma vez.
                                                                      Ainda não tentei, mas acho que para ler um romance eu
O rufião é o órgão executivo da imoralidade. O órgão executivo        precisaria primeiro me encorajar e então fechar bem os olhos.
da moralidade é o chantagista.
                                                                      Como o mundo é governado e conduzido à guerra? Os
Os jornalistas escrevem porque não têm nada a dizer, e têm            diplomatas mentem aos jornalistas e acreditam na mentira
algo a dizer porque escrevem.                                         quando a leem. §


                                                                 19
Ficção




 O escritor no
 castelo alto
                  ANTÔNIO XERXENESKY


NORTE publica este conto inédito de Antônio Xerxenesky, autor
do romance Areia nos dentes (Não Editora, 2008; Rocco, 2010)
e um dos criadores da Não Editora. “O escritor no castelo alto”
faz parte do livro de contos que o autor lançará em 2011 pela
Editora Rocco.

                              ***
                                                       Para R. B.

Para esconder o nervosismo, eu abria o livro, escancarava a
brochura e enfiava o meu nariz entre as páginas. O cheiro de
papel invadia meu sistema e me recordava de todas as horas
prazerosas que passei jogado na poltrona lendo. É um pouco
similar à culinária, quando passeando pela rua sentimos um
cheiro de curry e nos lembramos de um almoço em um restau-
rante indiano sem igual.

Naquela época, quando era mesmo, 2005? Eu não sabia que,
embora no futuro fosse migrar com rapidez para o universo do
livro digital, sentiria falta para sempre do cheiro único que cada
livro tem. Eu tentaria, na década seguinte, colocar até um es-
guicho de perfume com cheiro de papel no leitor de e-books,
apenas para me frustrar com o fato de que todos os livros, a
partir de então, passariam a ter o mesmo cheiro. Que crime! Em
que universo doente Thomas Pynchon teria o mesmo odor que
Jane Austen?

Mas claro, eu não sabia nada disso na época. Era 2005 e eu con-
gelava do lado de fora do prédio de Juan Rodriguez, em Buenos
Aires. Rodriguez era meu escritor favorito nessa idade. Eu con-
tava 21 anos, tinha breves entradas no cabelo e recém estava no
segundo ano de jornalismo, quando resolvi aproveitar aquela
viagem a Buenos Aires com meus pais para tentar conseguir
uma entrevista com ele. Após um telefonema difícil, durante o
qual suei de vergonha pelo meu espanhol rudimentar, marquei
um encontro na sua casa. E lá estava eu, no gelo das calles do            livros. Juan diz que prefere não autografar. Eu peço por favor.
                   bairro Retiro, com os ombros encarangados, esperando o por-               Ele diz que eu sou jovem, e por isso ainda me emociono com
                   teiro aparecer para me abrir a porta.                                     esse tipo de bobagem. Ele, Juan Rodriguez, autor conhecido,
                                                                                             despreza autógrafos, despreza lançamento de livros. Parece, no
                   A arquitetura da cidade, repleta de estátuas de anjos dourados,           fundo, também detestar escrever.
                   assombrava. Um ônibus fantasma, de estado precário, vazio de
                   almas, passava na ocasião. O frio invadia as frestas do casaco, e         O elevador passou pelo oitavo andar. Enfiei a cara no livro de
                   eu me perguntava se Buenos Aires era mesmo mais segura do                 Rodriguez para sentir o cheiro. Era inebriante.
                   que Porto Alegre. Um catador de lixo amassou umas latinhas na
                   esquina. O único café aberto empilhava as cadeiras de madeira             Juan Rodriguez abre a porta. Depois de conversar amenidades,
                   para sinalizar o fechamento das atividades. Mais adiante, na ave-         sento no seu sofá, e ele pergunta, num repente, se eu escrevo. Eu
                   nida 9 de Julio, tinha bares abertos. Onde eu estava, porém, a au-        tiro da minha mochila estropiada um exemplar do meu livro de
                   sência noturna imperava. Um anjo de falso ouro poderia descer             contos, um fino volume com uma horrível capa roxa. No instan-
                   do alto dos prédios decadentes, que algum dia foram chiques, e            te em que puxo o livro, já me arrependo de mostrá-lo. Sei que,
                   abrir uma bocarra lotada de dentes e me engolir. Ninguém veria            mesmo estando em português, ele vai querer dar uma olhada, e
                   nada. Não fazia ideia do motivo que levou Rodriguez a marcar o            eu vou me envergonhar para sempre de ter mostrado para um
                   nosso encontro para as 23 horas; ou ele queria posar de excêntri-         gênio aquele amontoado de textos juvenis e mal trabalhados. Ele
                   co, ou fazia parte de seus hábitos desregrados de escrita.                olha a capa, o título, e sorri com o canto da boca. O clássico sor-
                                                                                             riso amarelo daquele que, por dentro, gargalha de desprezo.
                   Após uma eternidade, o porteiro me deixou entrar no prédio,
                   e eu disse, não sem certa pompa, que o señor Rodriguez me                 O elevador passou pelo décimo segundo andar.
                   aguardava. O porteiro respondeu: 21º andar. Já na entrada, a ca-
                   lefação mostrava força, contrastando com o frio da rua, e eu tirei        Eu toco na campainha e Juan Rodriguez não abre a porta. Será
                   o casaco às pressas, para não subir com o rosto avermelhado.              que ele tinha se esquecido da entrevista?

                   Quando pisei no elevador, descobri que o 21º era o último an-             O elevador passou pelo décimo quinto andar.
                   dar do prédio. O elevador à moda antiga, de madeira, fechava
                   manualmente com uma grade de ferro. Apertei o botão e ob-                 Juan Rodriguez abre a porta, e junto com ele estão Rodrigo
                   servei a lentidão com que se movia.                                       Fresán e Alan Pauls, dois dos melhores escritores argentinos
                                                                                             contemporâneos. Eles me convidam para entrar e viramos a
                   Juan Rodriguez abre a porta e eu sinto vinho em seu hálito. Ele           noite bebendo tequila e discutindo se Bartleby é melhor do
                   contorce o rosto, como se passasse por uma dor excruciante na             que Moby Dick ou não. Monto uma amalucada entrevista com
                   tentativa de me reconhecer, e então pergunta quem diabos sou              os três e pego seus endereços. Fico de enviar para todos uma
                   eu. Respondo meu nome, digo que sou estudante de jornalis-                cópia, assim que for publicado, do romance que eu estava es-
                   mo e que tinha marcado uma entrevista com ele. Rodriguez                  crevendo, uma história bizarra cheia de metalinguagem que se
                   resmunga: “no me acuerdo” — e bate a porta na minha cara.                 passa no velho oeste e que, no fundo, era sobre meu pai.

                   O elevador recém passou pelo terceiro andar e eu já sinto mi-             O elevador passou pelo décimo oitavo andar, décimo nono,
                   nhas mãos tremerem. Minha imaginação se tumultuava com a                  vigésimo, vigésimo primeiro. Saí dele e fiquei um tempo em
                   possibilidade de um encontro horrível. Ela era tão vívida que             silêncio no corredor escuro e vazio. Acendi a luz. O aparta-
                   pude sentir o cheiro de álcool.                                           mento 214 ficava à direita. Toquei a campainha e enfiei as mãos
                                                                                             no bolso para fingir que a tremedeira era frio, e não nervosis-
CAMILA DOMINGUES




                   Juan Rodriguez abre a porta. Ele me convida para entrar. Está             mo. Juan Rodriguez abre a porta. Ele diz: “Buenas noches”. Seu
                   bem barbeado e parece recém saído do banho. Eu sento no seu               rosto é um pouco diferente das fotos que coloca nas orelhas de
                   sofá verde desbotado e ele me oferece café. Antes de começar a            seus livros. As bochechas mais gordas, a calvície mais avança-
                   entrevista, eu decido pedir um autógrafo em cada um dos seus              da, os cabelos mais grisalhos. Eu respondo: “Buenas noches”. §


                                                                                        21
livros • resenhas



Quem escreverá                                                             com maior ou menor aceitação (inclusive naqueles sobre os
                                                                           quais pouco se fala, como a França e mesmo a Inglaterra);
nossa história?                                                            5. Reducionismo etiológico: as tentativas de explicação do an-
Samuel D. Kassow                                                           tissemitismo nazista do Reich do entreguerras que o reduzem
                                                                           a determinado traço do judaísmo devem ser descartadas, vis-
                                                                           to que a literatura e o jornalismo da época demonstram como
                                                                           mais de um ponto do judaísmo era repudiado (veja-se o caso
                                                                           de Nietzsche, profundamente antissemita e antigermânico);

                 Companhia das Letras                                      6. O desconhecimento de época: já passou o tempo (pelo me-
                 632 páginas                                               nos entre as pessoas razoáveis) em que se argumentava que os
                 R$ 62,50
                                                                           crimes do Reich eram desconhecidos pela população, já que mi-
                                                                           lhares de evidências provam o contrário, desde as informações
FELIPE PIMENTEL                                                            liberadas pela BBC ainda em 1943, o lançamento de O grande
                                                                           ditador (1940), de Charles Chaplin, as fugas em massa dos ju-
Algumas vezes, ao ver um lançamento, livro ou filme, sobre                 deus mais abastados ainda na década de 1930 ou mesmo inúme-
o nazismo, me dá certo cansaço. Dois motivos: primeiro, tem                ros relatos de época colhidos posteriormente e hoje disponíveis;
dias que desejo fingir que a vida é bela e não quero topar com
isso; segundo, há muita leviandade no trato com o tema.                    7. O endeusamento estadístico do nazismo: se nos damos o
                                                                           trabalho de ler o Mein Kampf, poderemos ver como Hitler
O primeiro motivo, de foro íntimo, não merece dissertação, ao              acreditava ser o Estado o maior inimigo do homem, e aí dei-
passo que o segundo deve ser explicado. Após 65 anos do fim                xaríamos de atrelar excesso de Estado com fascismo, visto que
da Segunda Guerra Mundial e de estudos sobre tal, qualquer                 sua proposta central era construir um povo eticamente perfei-
estudioso minimamente sério do nazismo precisa ter claros os               to (segundo seus próprios parâmetros, razoavelmente compar-
seguintes parâmetros:                                                      tilhados com uma parcela do povo alemão — aquela que lhe
                                                                           apoiou) que, por conseguinte, não precisaria de um Estado,
1. Fracasso das teses personalistas: nenhuma loucura indivi-               mas a única forma de fazê-lo seria por meio do Estado;
dual dos líderes da Alemanha é capaz de ser a mola propulsora
do evento, muito menos da manipulação de toda uma nação,                   8. O darwinismo grotesco do nazismo: ainda no Mein Kampf,
pois nem as massas são um objeto amorfo, nem aquela massa                  podemos ver como a derrota na guerra (ou mesmo episódios
deixou de desejar o fascismo (Reich foi o primeiro a dizê-lo);             famosos como a vitória dos atletas negros nas Olimpíadas de
                                                                           1936, em Munique) não representaria para os nazistas a ratifi-
2. Espetacularização do evento: tomado como evento extraordi-              cação de uma espécie de “inferioridade” do seu povo, visto que
nário, o nazismo é pouco compreendido e também pouco com-                  a ideia de superioridade da raça ariana está sempre atrelada às
batido, visto que seu modo de funcionamento — a suposição de               capacidades intelectuais;
que o outro deve ser eliminado, tanto física quanto subjetivamen-
te — é um mecanismo corriqueiro (e o fato de existirem estra-              9. O ponto central do Mein kampf: a sedução que provoca em
tégias industriais e instituições para tal é mais cotidiano ainda);        muitas pessoas esse livro, supondo-se que nele há coisas extraor-
                                                                           dinariamente bizarras, deve ser descartada, pois sua ideia central é
3. Revisionismo: qualquer interpretação que procure mitigar                a proposta de construção de uma nação ordenada, composta por
os efeitos do desastre ou reescrever o nazismo deve ser despre-            cidadãos respeitadores das leis e trabalhadores em prol da nação,
zada, porque está posto que os ataques às etnias perseguidas,              todos absolutos exemplos morais. No estágio inicial, as institui-
iniciados em 1935 (Leis de Nuremberg), estenderam-se até a                 ções de vigilância, legislação e aplicação de pena seriam necessá-
Endschloss (solução final), tomada no inverno de 1942 e regis-             rias, mas, ao longo do tempo, seriam dissolvidas. Ou seja, a ideia é
trada no Protocolo de Wannsee;                                             simples e, pode-se dizer, comum, o difícil é a responsabilização de
                                                                           determinado grupo e a resolução com os supostos “não exemplos”.
4. Nazismo às avessas: a análise que atrela nazismo e germanis-
mo repete o funcionamento básico do próprio nazismo, sobre-                Estes são parâmetros mínimos de debate sobre o nazismo. Sem
tudo porque o fascismo ocorreu em muitos países da Europa,                 eles, rumamos para o lado errado na interpretação. Com eles,

                                                                      22
Destruição do Gueto
          de Varsóvia (1943)


podemos, acima de tudo, direcionar nossa atenção, nosso es-                que seu povo passava, agregando intelectuais para discutirem o
tudo e nossa pesquisa sobre o tema. Mas então, o que restou?               evento e jornalistas para entrevistarem as pessoas comuns, com
                                                                           o intento de postergar à humanidade o terror que passavam.
Restou pouca interpretação e muito arquivamento. O nazismo e               Os documentos foram enterrados em doze caixas de ferro no
suas bases estão suficientemente explicados. Do ponto de vista dos         gueto. Ringelblum acabou morto no levante.
seus fundamentos, devemos estar preocupados com os neonazis-
mos. O que nos deve motivar a ler e pesquisar agora são os relatos,        Hersch Wasser, economista de formação, sobreviveu às mais in-
os documentos e os arquivos que poderão devolver às vítimas do             tensas perseguições: quando da invasão do Reich, fugiu de Lodz,
nazismo — que sofreram a perversidade de se verem despidas de              no centro da Polônia, em um trem em que soldados alemães
sua humanidade inclusive na hora da morte — a sua subjetivida-             espancavam os passageiros, e chegou a Varsóvia, de onde foi
de e sua singularidade no mundo. Os documentos que poderão                 enviado ao gueto. Posteriormente, quando do levante do gueto,
descrever a luta, muitas vezes inglória, daqueles que combateram           acabou preso e mandado para Treblinka, quando saltou do trem
o nazismo até o último minuto e que servirão de exemplo e polí-            que o levava para a morte. Conseguiu retornar para Varsóvia,
tica para seus descendentes, reais ou simbólicos. Os arquivos que          tendo seu esconderijo descoberto pelos alemães, e salvou-se de
darão um nome para o corpo da vala coletiva, os arquivos que               uma chacina. Wasser sobreviveu à guerra, retornou em 1946 e
denunciarão os criminosos, os arquivos que mostrarão a desuma-             comunicou onde estavam as caixas com o arquivo.
nidade. Os arquivos — que dão vida àquelas retiradas.
                                                                           Rachel Auerbach, judia de participação política ativa no
É nesse quadro que tomo com satisfação a obra Quem escreverá               pré-guerra, escrevia críticas literárias em revistas iídiches.
nossa história?, de Samuel D. Kassow, professor de História no             Durante a guerra, após escapar dezenas de vezes da morte,
Trinity College, em Connecticut (EUA). A história do livro é               conseguiu fugir para o lado ariano, onde clandestinamente,
mágica.                                                                    carregando dinheiro e documentos dentro de uma cesta de
                                                                           frutas, registrou os horrores nazistas. Sobrevivente à guerra,
Emanuel Ringelblum, historiador de origem judia e polonês de               dedicou-se à defesa do patrimônio histórico judaico.
nascimento, esteve envolvido com todas as querelas políticas
do judaísmo do início do século 20, participou do Poalei Sion              Eles são três dos milhares de atores dessa história. Não pode-
de esquerda (partido sionista polaco) e do Alleynhilf (a orga-             mos dizer “os mais importantes”, “os mais ativistas”. Outros
nização de auxílio aos judeus no gueto de Varsóvia), foi preso             lutaram, outros fugiram. Alguns cuidaram de crianças, alguns
quando da invasão da Polônia pelo Reich em setembro de 1939                doaram dinheiro. Vários serviram comida para os pobres, vá-
e enviado para o Gueto de Varsóvia. Ele organizou a forma-                 rios morreram. A história do arquivo, o Oyneg Shabes, é a his-
ção de um arquivo (o Oyneg Shabes) para documentar tudo o                  tória de todos esses.


                                                                      23
livros • resenhas

                                                                          gueto, em um alto cargo no Aleynhilf. E é durante o gueto que
                                                                          Ringelblum organiza o Oyneg Shabes, reunindo dezenas de pes-
                                                                          soas para documentar os horrores que passavam. Neste ponto,
                                                                          o livro (por conta da própria situação histórica) torna-se mais
                                                                          denso afetivamente, pois passamos a ver o esforço sobre-huma-
                                                                          no de um povo: são milhares de pequenas ações, desde doações
                                                                          em dinheiro e facilitações de fuga até a organização de uma sopa
                                                                          comunitária para alimentar os famintos. O Judenrat, organismo
                                                                          nazista responsável pela questão judaica, iniciou as parówki (de-
                                                                          sinfecções), as deportações, os extermínios. Aí, milhares de rela-
                                                                          tos de época, absolutamente terríveis, ganham corpo. São relatos
                                                                          de ex-operários, de intelectuais, de mães de família:

                                                                                 (falando sobre seu estômago) ele não pensa. Ele grita, é de
                                                                                matar! Ele exige, ele me provoca. Por que você está gritando
                                                                                assim? Porque eu quero. Porque eu, seu estômago, estou com
                                                                                fome. Você entende isso agora? Quem está falando com você
                                                                                assim? Você é dois. Arke. É uma mentira. Uma pose. Não seja
                                                                                convencido. Esse tipo de divisão valia quando a pessoa estava
                                                                                saciada. Aí sim, era possível dizer: duas pessoas estão lutando
                                                                                dentro de mim, e podia se fazer uma cara dramática e marti-
                                                                                rizada. É, esse tipo de coisa se encontra muito na literatura.
Samuel D. Kassow                                                                Mas hoje? Não diga bobagem — é você e seu estômago. É seu
                                                                                estômago e você. É noventa por cento do seu estômago e um
O livro de Kassow é praticamente uma micro-história (no sen-                    pouquinho você. Um pequeno resto, um resto insignificante
tido teórico da escola historiográfica). A partir da trajetória de              de Arke que existia antes (182).
Emanuel Ringelblum, idealizador do arquivo, podemos acom-
panhar toda a história dos judeus do leste europeu (majorita-             Daí em diante, o livro praticamente deixa de ser o que pare-
riamente da Polônia) desde o fim do século 19 até a Segunda               cia, um romance, um livro histórico, para assumir a dimensão
Guerra Mundial. Podemos acompanhar as querelas teóricas                   de documento, de arquivo. É como se fosse o próprio Oyneg
que o movimento sionista encontrou, os debates entre secu-                Shabes: relatos e mais relatos, entrevistas, crônicas, diários e
larização e sacralização da luta do povo judaico contra a Di-             biografias de pessoas fadadas ao martírio que, através de Rin-
áspora, a formação dos partidos políticos no tenso período do             gelblum, e de Kassow, adquirem humanidade e a única eterni-
entreguerras, a discussão sobre os traços culturais judaicos e a          dade possível, um alívio a seu temor maior, não mais a morte,
adaptação ou não às nações pertencentes, a defesa do iídiche              visto que certa, mas um temor outro, que este texto de Lewin,
ou do hebraico frente às línguas nacionais, a literatura e a arte         preso no gueto, apresenta:
judaica, os pogroms, as mortes.
                                                                                Como é terrível que uma geração inteira — milhões de judeus
No decorrer desses impasses, Ringelblum trabalhou ativamen-                     — tenha de súbito se transformado numa comunidade de
te pela causa judaica: aliou-se ao Poalei Sion de esquerda, par-                ‘mártires’, que têm de morrer de maneira tão cruel, degradante
tido sionista cujo grande líder Ber Borochov defendia o atre-                   e dolorosa e passar pelos tormentos do inferno antes de ir para
lamento de marxismo e sionismo; participou da fundação do                       o cadafalso. Terra, terra, não recubra nosso sangue e não silen-
Instituto Científico Iídiche (o Yivo); escreveu em dezenas de                   cie, para que nosso sangue grite até o final dos tempos e clame
revistas iídiches; organizou congressos sobre sionismo. Mas foi                 por vingança por este crime sem paralelo na nossa história e
a guerra que lhe exigiu mais.                                                   em toda a história da humanidade (218).


Quando da invasão do Reich, Ringelblum não abandonou Var-                 Cumpre dizer, refutando Adorno e seu dito “não se faz poe-
sóvia, tampouco o gueto, e iniciou o seu trabalho de assistente           sia depois de Auschwitz”, que a própria não deixou de ser uma
social: primeiramente, no Joint Distribution Committee (JDC),             arma, ainda que solitária e ineficaz no plano efetivo, de luta. Ao
a principal entidade assistencial judaica na Polônia, e depois no         menos de luta contra a finitude e contra o corpo que agoniza. §


                                                                     24
Por 10 anos, Louis
                             Beegles manteve o
                             hábito de passear no
                             Parque Municipal de
                             Urbânia, olhando a esmo
                             os mendigos-poetas de
                             chapéu coco no chão
       O VIAJANTE            com uma única nota
                             de dinheiro dentro,
                             as suaves ciclistas
                             de shorts minúsculos
                             e os namorados que
                             exibiam os vários
                             estágios do romantismo.




                              Um dia, Beegles cruzou com um estranho
                              na avenida central do parque e, ao passar
                              por ele, estava enxergando pelos olhos
                              do desconhecido. Assustado, viu que
                              agora vestia outras roupas, segurava
                              uma pasta que antes não possuía e sentia
                              dor nos pés pelos sapatos apertados.




  Duas horas depois,
     ainda atônito,         Por meses,
 descobriu-se em seu     Beegles voltava
próprio corpo, jogado     ao parque aos
 sobre o cascalho no      domingos, e em
  outro extremo do       todos eles, sem
 parque. Suas pernas      explicação ou                                    Assustado um dia decidiu
 haviam se deslocado     lógica, passava                                   não ir ao parque, como
   sem ele e caíra.       duas horas no                                    sempre, e sim a uma praça
                         corpo de outra                                    à beira do rio Fluvium.
                        pessoa. Em todas                                   Toda a tarde, foi assaltado
                         essas ocasiões,                                   pela impressão angustiada
                             acordava                                      de que estava perdendo
                        machucado pelos                                    algo, ou que precisava
                          acidentes que                                    desesperadamente
                            seu corpo                                      estar em outra parte.
                         sofria sem ele.


                                               Até que aconteceu.




                                               Piscou os olhos andando
                                               e, ao abri-los outra vez,
                                               estava sentado em um
                                               ônibus em direção à zona
                                               Leste de Urbânia.
                                               Ao olhar seu relógio,
                                               notou, abismado, que duas
                                               horas de sua vida haviam
                                               se passado sem que ele
                                               tivesse percebido.




                                                   25
livros • resenhas



Binladenistão                                                            A segunda razão, que torna o livro mais interessante, é a questão
                                                                         da educação. Binladenistão analisa como uma grande quanti-
Luiz Antônio Araujo                                                      dade de jovens rebeldes do norte do Paquistão e do Afeganistão
                                                                         vem sendo produzida pelas milhares de madrassas espalhadas
                                                                         pelo território e como elas acabam funcionando como unida-
                                                                         des de propaganda e de ensino da pedagogia Talibã. Araujo,
                                                                         em sua permanência no Paquistão, conversa com alunos e pro-
                                                                         fessores dessas instituições para explicitar o que pensam esses
                                                                         adolescentes (o professor da escola que o jornalista visita tem
                 Iluminuras
                 304 páginas                                             apenas 19 anos). Ele encontra a perpetuação do antiamerica-
                 R$ 47                                                   nismo e do ensino altamente religioso e o forjamento de pe-
                                                                         quenos radicais que, por vezes, são dispensados das aulas para
                                                                         participar de manifestações e, não raramente, são enviados à
GABRIEL POZZOBOM                                                         frente de combate para lutar ao lado dos Talibãs.

Há que se defender Binladenistão de seu próprio título. O                Nas universidades, Araujo ainda verifica, mesmo nas inter-
nome do livro ilude-nos. A palavra “Binladenistão”, que para             pretações literárias de um estudante de uma universidade lo-
o autor denomina a região que compreende partes do Afe-                  cal, os resultados dessa pedagogia. Diz o aluno: “Deus criou-
ganistão, do Paquistão e de outros países asiáticos e africa-            -nos com um objetivo particular. O principal é que o homem
nos onde constantemente a reputação de Bin Laden é vista de              deve lutar contra o mal que existe em sua própria consciência.
modo positivo, causa uma má primeira impressão e soa car-                Esse é o sentido de Hamlet, de Shakespeare. Há duas coisas
regada de preconceitos generalistas ocidentais. Seu peso ne-             diferentes no homem, e ele se divide entre o que deve fazer e
gativo contrasta intensamente com a análise de Luiz Antônio              o que não deve fazer. A luta interior para permanecer no ca-
Araujo, autor do título lançado pela Iluminuras — um ótimo               minho correto é a jihad akbar (grande esforço, literalmente)”.
exame de um repórter brasileiro sobre os conflitos na região
do Afeganistão, do Paquistão e de seus estados fronteiriços.             Para muitos grupos, sejam eles universitários ou populares,
                                                                         o modelo exemplar da jihad acaba concentrando-se na figura
O ponto de partida da obra se dá quando o autor viaja a Isla-            de Osama Bin Laden. Araujo apresenta um cenário em que
mabad a serviço do jornal Zero Hora e permanece 29 dias em               o líder da Al Qaeda assume o papel de herói refugiado, oni-
território árabe. Porém, Araujo não se dedica inteiramente a             presente na região, uma espécie de Che Guevara das Arábias
relatar sua experiência; opta por um caminho mais analítico,             cujas imagens e mensagens são vendidas nas ruas em formato
extraindo de suas observações os temas sobre os quais discor-            de livros, camisetas, fitas cassete e pôsteres, ao lado de outros
re nas 264 páginas do volume. E apresenta teses relativamente            ídolos como David Beckham e as estrelas de Bollywood.
novas aos leitores brasileiros, indicando ao menos duas razões
essenciais para a insurgência radical.                                   Em contrapartida, o autor também apresenta Osama como
                                                                         uma espécie de gerente com amplos recursos financeiros, mas
A primeira é bastante óbvia e decorre dos ataques pesados (e             sem força retórica ou grande espírito de liderança: “Jovem e
muitas vezes às cegas) das forças norte-americanas. Em uma               tímido, Bin Laden (...) mal conseguia se expressar em público.
das cenas da obra, o repórter brasileiro visita alguns hospitais         Certa vez, incentivado a se dirigir aos hóspedes de um alber-
na fronteira com o Afeganistão, onde um médico afirma: “Nas              gue, falou em cavalos”. O texto é incisivo em desmistificar a fi-
questões de política interna, as opiniões sempre variam. Alguns          gura do líder da Al Qaeda e apresentá-la como a de um títere de
apoiam o Talibã, outros querem democracia. Mas, depois do                mestres como Abdullah Yusuf Azzam (seu professor e mentor)
início dos bombardeios, 100% estão contra os Estados Unidos”.            e Ayman al-Zawahiri (o número 2 da Al Qaeda).
Um jovem afegão internado no mesmo hospital, perguntado
sobre o que faria ao sair dali, responde que quer “voltar ao Afe-        Nesse sentido, Binladenistão é, de certa forma, como que um
ganistão e lutar contra a América”. Outro, mais jovem, deitado           irmão mais novo de O vulto das torres: a Al Qaeda e o caminho
em uma cama entre homens, mulheres e crianças com queima-                até o 11/9, de Lawrence Wright, vencedor nos Estados Unidos
duras e fraturas pelo corpo, revela que só deseja retornar a sua         do Pulitzer de não ficção em 2007. Ambos os títulos perfilam
madrassa (modelo de escola religiosa não raramente mantida               Osama de uma forma bastante semelhante. Além disso, carac-
por líderes das alas mais radicais do Islã) para estudar o Corão.        terizam os outros protagonistas de maneira clara e educativa,

                                                                    26
FOTOS: LUIZ ANTÔNIO ARAUJO




                             identificando sua posição dentro do cenário político regional
                             e atribuindo sua importância no quadro geral. O resultado
                             não é de todo desequilibrado, dado que Binladenistão é consi-
                             deravelmente mais breve do que o trabalho premiado.

                             Por ser mais recente, o livro de Araujo tenta explicar os moti-
                             vos pelos quais a guerra do Afeganistão não se esgotou e difi-
                             cilmente se esgotará na era Obama. Sejam os reflexos da inca-
                             pacidade de Bush em administrar a guerra, a política externa e
                             a imagem dos Estados Unidos, seja o atoleiro de corrupção que
                             assola o governo do Afeganistão, sejam os atritos e a falta de
                             apoio dos países da Ásia Central aos ocupantes, Araujo elen-
                             ca uma sucessão de razões para se desiludir, mesmo em longo
                             prazo, de qualquer perspectiva de fim para a guerra, ainda que
                             tenham se passado quase nove anos de invasão e que o atual
                             governo tenha feito grandes promessas de mudanças.

                             Na narrativa de Binladenistão, o início transcorre na fronteira en-
                             tre Afeganistão e Paquistão, mesmo local onde O vulto das torres se
                             encerra, numa cena em que alguém que se parece muito com Za-
                             wahiri atravessa a cavalo com seus homens um vilarejo e desapa-
                             rece nas montanhas. Quatro anos mais tarde, o retrato é o mesmo.
                             O que Araujo relata é que não houve final nessa história — no fim
                             das contas, durante todo esse tempo, Zawahiri, Bin Laden e seus
                             homens apenas andaram em voltas pelo deserto em seus cavalos. §


                                                                                                   27
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                                                                            detalhe a delicada combinação de elementos das suas Frases só-

Salas e abismos                                                             lidas: uma mesa larga que corta pelo meio a verticalidade do es-
                                                                            paço; sobre a mesa, um maço de folhas de papel muito branco;
Waltercio Caldas                                                            sobre o papel, taças de cristal e alfinetes; carimbados, entre as
                                                                            taças e os alfinetes, termos como “sublime” e “súbito”, ou afo-
                                                                            rismos como “Ver não é. Ver é onde”. Terminada a projeção,
                                                                            Waltercio abre sua palestra com uma nota de desaprovação. Ele
                                                                            nunca assistira ao vídeo e parece incomodado — não com o
                                                                            curta em si ou com a ideia de uma homenagem. O que ele con-
                                                                            dena é a forma como a instalação, criada por ele com tanto zelo,
                      Cosac Naify                                           ousa traí-lo tão despudoradamente: “As imagens se entregam à
                      240 páginas
                                                                            câmera de forma muito fácil”.
                      R$ 120

                                                                            A bronca do artista, à primeira vista entre o agressivo e o mal-
EDUARDO VERAS                                                               -humorado, diz respeito, antes, ao entendimento que ele tem
                                                                            sobre a apresentação de obras de arte e a nossa percepção sobre
Em visita a Porto Alegre, palestrante em um seminário sobre o               elas. Para determinados artistas e pesquisadores, será sempre
tema sempre desconcertante do tempo e nossa relação com ele,                problemática (por vezes, saborosamente problemática) a dife-
o carioca Waltercio Caldas (1946) tem sua fala precedida pela               rença entre o objeto artístico, ele próprio, e as reproduções que
exibição de um vídeo – é uma homenagem ao artista plástico,                 a gente faz dele, sejam elas em vídeos, fotografias ou catálogos.
providenciada pelos organizadores do evento. Trata-se da do-                Esse preâmbulo todo vem a propósito de Salas e abismos, ca-
cumentação de uma exposição que Waltercio realizara pouco                   tálogo de dimensões literalmente vastas (28,5 por 37 centíme-
antes, no Torreão, na capital gaúcha. A câmera acompanha no                 tros), que acaba de ser lançado pela Cosac Naify.




Ping-ping, Mostra do Redescobrimento, Fundação Bienal de São Paulo (2000)



                                                                      28
Uma sala para Velázques (2000)



Caprichada edição bilíngue, com capa dura e fotografias colori-
das de página inteira, o livro documenta a exposição que Wal-
tercio apresentou entre outubro de 2009 e janeiro de 2010 no
Museu Vale, em Vila Velha, Espírito Santo. A mostra combina-
va, em uma sucessão de salas, dez diferentes instalações de Wal-
tercio, algumas já exibidas em outras circunstâncias, sendo duas
delas até então inéditas no Brasil e uma terceira inédita em qual-
quer canto, criada especialmente para o museu capixaba (im-
portante empreitada cultural da mineradora Vale do Rio Doce).

Não é, portanto, um livro de artista este Salas e abismos — ao
menos, não no sentido corrente de “livro de artista”, aquele que
constitui um gênero específico e que, inclusive, é caríssimo a
Waltercio (em 2002, em Porto Alegre, na mesma época das
Frases sólidas do Torreão, ele trouxe a mostra Livros ao Margs,             Quarto amarelo, Centro Galego de Arte Contemporânea, Espanha (2008)

em uma espécie de retrospectiva de suas inventivas concepções
para o suporte “livro”). Salas e abismos é, de fato e antes de tudo,        em Waltercio um corte seco, preciso, afiado. Ele é o antibarroco
um catálogo, uma evocação de uma exposição já encerrada.                    por excelência. Quase tudo na sua produção tende ao controle,
                                                                            à depuração, sobretudo à elegância. Em pequenos desenhos,
Reproduz uma a uma as instalações concebidas pelo artista.                  em grandes esculturas ou na sucessão de salas abismais, o ri-
Talvez fique devendo a sensação de “vertigem” que o crítico                 gor se presta tanto a investigações formais quanto conceituais.
Paulo Venâncio Filho refere no texto de abertura. Conta ele                 Waltercio formula jogos para o olhar, propõe enigmas neces-
que, no Museu Vale, no deslocamento de uma sala para a outra,               sariamente insolúveis, incompletos. Quando a gente acredita
o visitante experimentava, além de uma rara sintonia entre re-              que matou a charada, quando descobre que ela é sobre isso,
flexão e percepção, uma espécie de estranhamento de contato.                percebe-se um aquilo.
Uma sala, antes de preparar o olhar para a seguinte, tratava de
oferecer uma surpresa: “a cada umbral um abismo”. No livro,                 Claro que esses mistérios são muito mais vivos quando esta-
que começa com o texto de Paulo Venâncio, avança com dois                   mos, de fato, diante deles. O catálogo, por mais interessantes
ensaios de Paulo Sérgio Duarte (ensaios já antigos que ele fez              que sejam os textos, por mais fiéis que sejam as reproduções
questão de revisar e prefaciar para a ocasião) e se encerra com             fotográficas, por mais bem acabadas que elas nos pareçam, se-
um estudo crítico de Sônia Salzstein, o leitor depara, se não               rão sempre leituras parciais e provisórias, evocações de uma
com a tontura, ao menos com uma dimensão enigmática.                        possibilidade real. O curioso é que, no caso, isso talvez só ve-
                                                                            nha sublinhar uma dimensão que já estava na obra. Se a obra
Há alguns elogios indissociáveis dessa obra. Poucos artistas                é sobre os enganos, os fracassos e as surpresas do olhar, o livro
contemporâneos terão um trabalho tão rigoroso. Há sempre                    (mesmo nos devendo a vertigem) só confirma tudo isso. §


                                                                       29
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Alguma poesia                                                          Uma letra que foi impressa no lugar errado, uma palavra re-
                                                                       petida, um arrependimento — tudo está lá, denunciado pela

O livro em seu tempo                                                   caneta do escritor.

                                                                       Os herdeiros há tempos pretendiam lançar uma edição fac-
Carlos Drummond de Andrade                                             -similar deste volume, e o intento se concretizou a partir do
                                                                       professor de Literatura Eucanaã Ferraz, que planejava come-
Organização de Eucanaã Ferraz                                          morar os 80 anos da obra com alguma atividade no Instituto
                                                                       Moreira Salles (IMS), onde organiza a agenda literária. O re-
                                                                       sultado dessa combinação de intenções é um belíssimo volume
                                                                       que, no presente, preserva o passado e projeta para o futuro o
                                                                       legado de Drummond.


                    Instituto Moreira Salles
                                                                       Alguma poesia — O livro em seu tempo, lançamento do IMS,
                    392 páginas                                        apresenta um fac-símile do exemplar que Drummond guarda-
                    R$ 50                                              va. Além disso, inclui cartas de amigos e críticos por ocasião do
                                                                       recebimento do livro e uma compilação de resenhas e artigos
                                                                       publicados pelos jornais entre 1930 e 1931. Antecede a repro-
VITOR NECCHI
                                                                       dução do original um texto assinado por Eucanaã, que traça
                                                                       o percurso de Drummond de 1924 até maio de 1930. Alguma
Os netos de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Pe-                poesia — dedicado “a Mario de Andrade, meu amigo” — já nas
dro Augusto e Luís Maurício, preservam com alento o exem-              primeiras semanas de circulação revelou-se peça central da po-
plar que o avô mantinha do primeiro livro que lançou, Alguma           esia brasileira, objeto de polêmicas, elogios e críticas severas.
poesia, em maio de 1930. As páginas amareladas guardam na
superfície, além das nódoas impressas pelo tempo, as anota-            As primeiras obras de um autor por vezes podem expressar
ções que o poeta fez para guiar futuras edições da sua estreia.        imaturidade e acabam deixadas de lado, como a sublimar um




                                                                  30
arroubo literário. Não é o caso de Drummond. O poema abre-
  -alas de Alguma poesia já serve para evidenciar o quanto esse
  livro mantém o vigor no conjunto dos títulos do poeta. Está
  lá, na página 9, o Poema de sete faces: “Quando nasci, um anjo
  torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! Ser gau-
  che na vida”. Mais adiante, na 59, surge o mais do que famoso
  No meio do caminho, que durante décadas, desde o lançamen-
  to, atiçou conservadores: “No meio do caminho tinha uma pe-
  dra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/
  no meio do caminho tinha uma pedra”.

  O organizador lembra que esses versos, de maneira simultânea,
  cutucaram os beletristas e foram tomados “como divisa pelos
  defensores da ousadia modernista”. E o tempo se encarregou de
  elucidar quem estava certo, “já que o poema se sustenta ínte-
  gro, perturbador, belo e rigoroso”.

  Por ser novo, muito novo, o lançamento do IMS ainda não tem
  o odor das páginas antigas que evoca. Mas enquanto a poste-
  ridade lentamente age, pode-se enveredar no passado por ata-
  lhos revelados pelas fotos, pelas reproduções ou ainda pelas
  duas fitas de cetim laranja que, tal qual no original, estão perfi-
  ladas à espera dos leitores. §




O SEGREDO É
                                                            Valorize sua imagem. Divulgue ou
                                                            documente seu trabalho com uma
                                                            empresa profissional, formada por fo-

MOSTRAR-SE
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                               31
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jornalismo




                                                                                                                  Celito De Grandi
                                                                                                                  transformou em
                                                                                                                  livro um dos mais
                                                                                                                  rumorosos casos
                                                                                                                  da crônica policial




                Um crime que
           diagnostica a sociedade
        Livro inédito de Celito De Grandi recupera o Caso Kliemann e elabora
       conclusões que a polícia não obteve por causa da política dos anos 1960

                                                    ANTONIO HOHLFELDT


O Rio Grande do Sul, durante muito tempo, teve a pretensão de           Nos últimos anos, como que a mostrar que não somos assim
que seus políticos eram homens sérios e que muitos dos escân-           tão “certinhos”, têm ocorrido escândalos na Assembleia Legis-
dalos denunciados no centro do país jamais aconteceriam no              lativa; acusações contra os Executivos estadual e da Capital e
estado. Evidentemente, isso nada tinha a ver com a realidade.           alguns assassinatos misteriosos, o mais recente o de Eliseu San-
Basta revisar a história. A gente não precisa nem relembrar as          tos, ex-secretário de Saúde de Porto Alegre, crime ocorrido em
degolas da Revolução de 1893. Basta recordar a política de Bor-         fevereiro deste ano e que a polícia esforçou-se por dizer que era
ges de Medeiros, a figura do senador Pinheiro Machado (que              apenas uma tentativa de assalto, mas que o Ministério Público
terminaria assassinado) e, mais recentemente, é claro, as acusa-        acabou evidenciando ser vingança e execução.
ções que cercaram Getúlio Vargas, sobretudo no seu segundo
mandato, e que culminariam com seu suicídio em 1954.                    Novidade no nosso front político? De forma alguma. Nem no
                                                                        front político nem na realidade sul-riograndense. Em dezem-
Mas os gaúchos gostam de esquecer tudo isso para altear a voz           bro de 2008, tivemos o assassinato do presidente do Sindicato
e dizer que os políticos sul-riograndenses são diferentes dos           Médico, Marco Antonio Becker, e anteriormente, em junho de
demais. Aliás, não apenas em relação à política adoramos dizer          1988, outro envolvendo o radialista e então deputado estadual
que somos diferentes — o que nada tem a ver com a realidade.            José Antonio Daudt e seu colega de Legislativo Antônio De-

                                                                   32
xheimer, cuja esposa teria um “caso” com o radialista. Uma             Na ocasião, Celito acompanhou o caso enquanto jornalista. Fi-
leitura mais atenta dos autos do processo pode indicar outros          cou, ao longo desses anos todos, ruminando a história, insatis-
fatores, entre eles a condição homossexual de Daudt. Certa-            feito com o encaminhamento dos acontecimentos. O resultado
mente, o machismo sul-riograndense ainda vai demorar para              de um trabalho minucioso, paciencioso, responsável e abso-
retomar e elucidar o caso.                                             lutamente inovador, no que se refere às conclusões e a alguns
                                                                       dados apresentados, chegará nas próximas semanas aos balcões
Apesar de tudo, ao menos um desses episódios, lá da década de          das livrarias de todo o país.
1960, parece estar chegando ao fim. Trata-se do chamado Caso
Kliemann, que envolveu o então deputado estadual Euclydes              O trabalho de Celito De Grandi é o de um verdadeiro repórter
Kliemann, que representava a comunidade de Santa Cruz do               vinculado ao jornalismo investigativo. Ele refaz todo o con-
Sul, e sua esposa, Margit, brutalmente assassinada em 20 de            junto de episódios, preocupa-se com a contextualização da
junho de 1962. O jornal Última Hora, muito especialmente,              época, especialmente a política, e, por isso mesmo, mais do
esbanjou páginas e manchetes, ao longo de praticamente um              que recuperar os dados do processo, reúne material suficien-
ano, sempre buscando responsabilizar o deputado pelo crime.            te que lhe permite passar a interpretar o que descobre, che-
Quase um ano depois, Kliemann não apenas havia se reelegido            gando a resultados que, muito provavelmente, todo o aparato
deputado quanto gradualmente buscava reequilibrar sua vida,            policial na época poderia também ter atingido, não fosse a
sem que nenhuma acusação fosse comprovada, apesar de todos             interferência político-partidária que acabou por atrapalhar as
os esforços do delegado de polícia que então comandava o caso          investigações, proteger o criminoso e, de certo modo, causar a
e que teimava na culpabilidade do político.                            morte do próprio deputado que, ainda hoje, para aqueles que
                                                                       viveram os episódios, continua sendo provavelmente o prin-
Foi então que outra desgraça se abateu sobre a família: Klie-          cipal suspeito.
mann, depois de um pronunciamento numa emissora de rádio
da comunidade de Santa Cruz do Sul, mal deixara o microfone            Muitos jornalistas travestiram-se de investigadores policiais.
quando passou a ser atacado por um desafeto político local, ve-        Outros criaram, literalmente, personagens e hipóteses variadas
reador de partido de oposição. Verbalizada a acusação do assas-        e contraditórias para explicar o crime. Celito chegou a entrevis-
sinato contra o deputado, ele retorna ao estúdio da emissora,          tar o delegado responsável pelo caso na época, Júlio de Souza
onde se encontrava o acusador, e invade o estúdio. O outro saca        Moraes. E cobriu, em nome do jornal em que trabalhava, o jul-
de um revólver e com tiro certeiro mata o deputado, fugindo            gamento do assassino do deputado, ocorrido em Santa Cruz do
imediatamente para escapar ao linchamento provável e à prisão.         Sul, com enorme comoção pública.

Tudo isso relembrado, para quem esteja distante temporal               Por tudo isso, Celito continuava incomodado com o caso. A
e espacialmente dos acontecimentos, pode parecer um bom                partir do início de 2006, resolveu tomar iniciativas, visando es-
enredo de romance policial, mas, na verdade, não o é. E quem           crever um livro a respeito. O maior desafio, contudo, não era
retomou este caso, ocorrido exatamente a 20 de junho de                apenas buscar — e encontrar — alguma outra perspectiva que
1962, foi um jornalista experimentado, que dirigiu um peri-            explicasse o que ocorrera naquele distante 1962. Era conseguir
ódico como o Diário de Notícias e, mais recentemente, res-             falar com aquelas que, na ocasião, mais sofreram com a suces-
pondeu pela articulação da Comunicação Social do Palácio               são de episódios trágicos e que, por suas próprias condições,
Piratini, durante mandato do ex-governador Germano Rigot-              haviam se distanciado do assunto e jamais se manifestado so-
to. Trata-se de Celito De Grandi, que traz a experiência do            bre ele: as três filhas do casal, que, além de perderem a mãe e se
profissional da informação desde muito jovem e que também              verem envolvidas no noticiário escandaloso da época, tiveram
atuou no jornal A Razão, de Santa Maria, um dos mais conhe-            de enfrentar as acusações contra o pai e, mais tarde, o próprio
cidos no interior do estado.                                           assassinato do segundo membro da família.




                                                                  33
jornalismo

Repórter, costuma-se dizer, precisa ter “faro” para a notícia, ter        motivos que levaram a seu acobertamento, resultando, de certo
sorte de estar onde vai acontecer alguma coisa, mas também                modo, na própria morte do deputado. Está tudo ali, com cuida-
precisa de bons relacionamentos. Celito De Grandi não apenas              do, equilíbrio, documentação.
tinha “faro” como também persistência. E relações. Foi assim
que, graças a um amigo comum, chegou à primeira das três ir-              O mais importante de todo o livro é o que nele se encontra vir-
mãs. Contatos cuidadosos, esboço de ações, recepção de alguns             tualmente disposto: o quanto a política partidária e os aconteci-
primeiros documentos, um manuscrito do pai com “aponta-                   mentos de março de 1964 colaboraram para que não se chegasse
mentos” sobre as horas que antecederam a morte de Margit. O               a nenhum desfecho efetivo e, na verdade, nunca se alcançasse o
caderno fora redigido sob a orientação do pai, João Nicolau, para         assassino e, por consequência, nunca se tivesse concluído efeti-
facilitar a apresentação de álibi do deputado Euclydes Kliemann.          vamente o caso. O golpe de 1964 radicalizou a situação político-
Celito De Grandi começou, então, a parte exaustiva: consultas             -partidária do estado e, por isso, ganha relevância o fato de que
aos arquivos do Museu de Comunicação Social Hipólito José da              foi alguém da oposição ao regime militar então recém-implan-
Costa; viagens a Santa Cruz do Sul para consultar o jornal Gaze-          tado, Pedro Simon, quem aceitou a defesa de Karan Menezes, o
ta do Sul, conversar com gente do lugar e, sobretudo — o mais             assassino de Kliemann, alcançando que o tribunal do júri o con-
difícil —, tentar juntar as diferentes pontas de toda a história.         denasse a um ano e seis meses de detenção, pena por ele então já
                                                                          cumprida, para comoção de toda a comunidade: os familiares e
        O livro é o relato do caso,                                       partidários de Karan entendiam ter sido feita a justiça; quanto aos
                                                                          familiares e partidários de Kliemann, entendia-se que o assassino
     recuperado minuciosamente,                                           havia sido inocentado. Assim, não causou espanto que houvesse
                                                                          novo julgamento. O juiz de ambos os julgamentos foi Nathaniel
     mas também uma espécie de                                            Marques Guimarães, que, mais tarde, aposentado, tornar-se-ia
                                                                          um dos principais aquarelistas do Rio Grande do Sul, com obras
  hiperescrita, em que o repórter                                         de rara sensibilidade no registro da paisagem natural e do patri-
 revela os próprios procedimentos                                         mônio histórico. Irmão do escritor e jornalista Josué Guimarães,
                                                                          depois do caso foi transferido para Porto Alegre, promovido a
           e métodos de trabalho                                          desembargador e, em seguida, aposentou-se. Para o segundo jul-
                                                                          gamento, chamaram Clóvis Stenzel, professor de Direito, psicólo-
Bom que, em todo esse período, aquela primeira filha contata-             go e político, que ocuparia o espaço da acusação. Karan Menezes
da, Cristina, apoiou-o e o acompanhou em boa parte das pes-               terminaria condenado a pouco mais de seis anos de detenção,
quisas. Depois foi a vez de Virgínia, que vive na cidade francesa         vindo depois de libertado a mudar-se da cidade.
de Montpellier e que foi buscada por e-mail. Suzana, a irmã
mais velha, já havia sido entrevistada com a ajuda de Cristina.           Hoje, o que remanesce de tudo isso? Celito De Grandi mostra
                                                                          que, já em 1976, era um desordenado rol de depoimentos, cartas
O que o leitor vai encontrar no livro de Celito De Grandi é, em           anônimas, fotografias, envelopes dispersos, anotações esparsas...
primeiro lugar, uma bela lição de jornalismo. E, por consequên-           enfim, um amontoado de papéis, segundo o jornalista André Pe-
cia, de responsabilidade ética e de respeito moral pelas pessoas          reira. Mas o livro de Celito De Grandi, na verdade, volta a movi-
envolvidas. Tudo foi checado cuidadosamente. Cada palavra foi             mentar os indícios da dupla morte e da tragédia familiar.
medida e ponderada, no sentido de não ser apenas fiel ao acon-
tecimento, mas de respeitar a memória dos envolvidos e o pre-             O jornalista avança com cuidado em todos os seus movimen-
sente dos remanescentes, especialmente as três irmãs. Por isso            tos. Sobretudo, não deixa nenhum dado esparso, nenhuma
mesmo, o livro é o relato do caso, recuperado minuciosamente,             fonte encoberta. O leitor deste livro vai sair, neste sentido, satis-
mas também uma espécie de hiperescrita, em que o repórter re-             feito. Não terá uma obra de escândalos ou de sensacionalismo,
vela os próprios procedimentos e métodos de trabalho.                     mas vai deparar, sobretudo, com um trabalho que, ao recuperar
                                                                          os acontecimentos em torno de um assassinato, constrói com
Mais que tudo isso, o bom é que Celito De Grandi sabe escre-              maestria um retrato de época, um diagnóstico de uma socieda-
ver. Está consciente de que tem um grande tema em mãos. De                de e, sobretudo, uma interpretação cultural de certos aconteci-
posse dos dados, arma o quebra-cabeça e começa a desenvolvê-              mentos. Um retrato de nós mesmos, se o leitor me permitir. §
-lo, em longo flashback que chega até o presente. Cuidadoso,
não afirma nada, mas o bom leitor saberá entender o que está                   Antonio Hohlfeldt é jornalista, doutor em Letras e professor da
sendo sugerido, inclusive sobre a identidade do assassino e os                                                             Famecos/PUCRS.



                                                                     34
cartum • “o juízo Final” por moa




                                   35
páGinas FilosóFicas • entrevista




JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI:


“Não se pede a uma geração
que faça o trabalho de duas”
EDUARDO WOLF

Que a filosofia tenha se especializado e se profissionalizado em           os temas culturais mais relevantes do momento com equilíbrio
alto nível no Brasil é um fato. É inegável igualmente, entretanto,         e profundidade, seja trazendo à discussão política dos jornais o
que essa especialização cobrou seu preço: o afastamento do de-             refinamento da filosofia.
bate público. Se a regra é essa — parece ser —, então a exceção
tem nome: José Arthur Giannotti. Aos 80 anos, 60 de filosofia,             A soma disso tudo é uma vida filosófica no sentido mais pleno da
Giannotti ajudou a escrever não apenas a história da filosofia             expressão. Se Sócrates tinha razão ao afirmar que uma vida sem
brasileira, mas a própria história do país.                                exame não vale a pena ser vivida, Giannotti parece ter levado
                                                                           essa lição a sério: do mergulho na política à paixão pela arte, do
Senão, vejamos: Giannotti fez parte, junto com Fernando Hen-               interesse pela vida pública ao gosto pela análise filosófica mais
rique e Ruth Cardoso, do célebre Seminário Marx, grupo que                 detida, nenhum aspecto da vida parece escapar ao seu podero-
pautou todo um novo modo de encarar o estudo de Marx e que                 so escrutínio da razão. E foi um pouco dessa vida filosófica que
ajudou a modernizar os estudos acadêmicos brasileiros. Com o               Giannotti compartilhou nessa conversa com a NORTE.
mesmo Fernando Henrique, fundou (e dirigiu por 11 anos) o
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que abri-            O senhor não parece ter ficado refém de um certo modo de
gou alguns dos principais nomes da vida intelectual brasileira             fazer filosofia corrente no Brasil, nos últimos 20 ou 30 anos,
durante a ditadura militar, como Francisco Oliveira e José Serra,          que é cada vez mais intramuros, com a universidade se fe-
Fernando Novais e Roberto Schwarz, influenciando decisiva-                 chando. As publicações são quase exclusivamente de papers,
mente o modo de se fazer política e vida intelectual no país nos           por exemplo. O senhor, pelo contrário, seguiu intervindo em
últimos 40 anos — sem falar no óbvio fato de que elegeram um               jornais, na imprensa em geral, e publicando livros.
presidente da República e talvez elejam um segundo.                        É, mas cada vez menos lidos...

Nosso entrevistado teve vida universitária intensa, ainda que              Como o senhor avalia a situação da disciplina desde a reaber-
curta, pela cassação, sendo reconhecido como uma referência por            tura, 25 anos atrás?
diferentes gerações de ex-alunos, hoje professores do primeiro es-         Primeiro, houve um crescimento absolutamente inesperado da
calão da filosofia nacional. Publicou obras especializadas sobre           filosofia. Vamos pegar os últimos 50, 60 anos. Quando entrei na
um amplo repertório de autores, passando por Stuart Mill, Marx,            Faculdade de Filosofia, em 1950, a nossa turma tinha 10, 12 pes-
Wittgenstein, com destaque para Trabalho e reflexão (Brasilien-            soas; a biblioteca do departamento não tinha 300 livros. Agora,
se, 1983) e Apresentação do mundo — considerações sobre o                  na última reunião da Anpof (Associação Nacional de Pós-Gra-
pensamento de Ludwig Wittgenstein (Companhia das Letras,                   duação em Filosofia) que eu fui, havia mais de 1200 participan-
1995). Seu mais recente trabalho, O jogo do belo e do feio (Com-           tes; as bibliotecas estão muito bem estruturadas, o ensino se de-
panhia das Letras, 2005), mobiliza esse conhecimento filosófico            senvolveu. Não desenvolveu o diálogo: esse é que é o problema.
para tratar de um tema que sempre lhe foi caro: as artes plásticas.        A universidade se enclausurou, os próprios departamentos se en-
E durante toda essa trajetória — e isso é o mais notável, porque           clausuraram. A preocupação hoje não é propriamente discutir as
contraria a lógica de atuação dos filósofos pátrios — foi atuante          questões filosóficas, mas ter um bom currículo Lattes. Além dis-
na vida pública, via imprensa, por exemplo, seja acompanhando              so, houve uma enorme disputa pelos cargos, gerando toda sorte

                                                                      36
Justamente, eu queria contrastar a situação de partida com a
                                                                                                    de chegada. O senhor fez parte de uma geração que estudou
                                                                                                    Marx de forma profunda e sistemática. Entretanto, o que pa-
                                                                                                    rece ter vingado, seja na universidade, seja na política, foi um
                                                                                                    marxismo vulgar, mistura de panfleto com programa de ação.
                                                                                                    Foi uma derrota da sua geração?
                                                                                                    Não acho que foi uma derrota da minha geração, foi uma derro-
                                                                                                    ta de um pensamento mais radical que não soube levar adiante
                                                                                                    as consequências de uma herança marxista. O capital é um livro
                                                                                                    indispensável para entender as relações econômicas contemporâ-
                                                                                                    neas. Um livro que dependia, segundo o próprio Marx, de uma
                                                                                                    inversão da lógica hegeliana, que ele um dia prometeu fazer, mas
                                                                                                    não fez. Quem fez alguma coisa foi o Engels, mas de maneira ex-
                                                                                                    tremamente elementar, criando, com isso, o marxismo. Marxis-
                                                                                                    mo que foi, segundo a definição de [Raymond] Aron, o “ópio dos
                                                                                                    intelectuais”. Eu tenho a impressão de que, depois da queda da
BEL PEDROSA / DIVULGAÇÃO




                                                                                                    União Soviética e do fracasso das revoluções socialistas, o ópio
                                                                                                    simplesmente foi substituído por uma enorme bebedeira, e que
                                                                                                    está todo mundo andando trôpego por aí... Não é à toa que no
                                                                                                    Brasil a Teoria Crítica avança a passos largos. Mas o que é a Teoria
                                                                                                    Crítica se não um recuo — não em relação a Heidegger ou a Witt-
                                                                                                    genstein — mas um recuo a Kant, porque eles voltam a Kant, mas
                           de processos não republicanos de preenchimento desses cargos,            com uma problemática pré-crítica? Quer dizer, pensar o esquema
                           e o resultado, a meu ver, é que essa geração que nos sucedeu não         do trabalho tal como ele é pensado pelos frankfurtianos, num es-
                           teve uma produção muito importante. Dizem — eu tenho pouco               quema de finalidade técnica, é uma estupidez monumental.
                           contato — que a nova geração é muito boa, mas tenho medo que
                           a estrutura fossilizada da universidade seja capaz de matá-la.           Isso me leva de volta ao seu livro Apresentação do mundo.
                                                                                                    Passados 15 anos da publicação, em que o senhor formulava,
                           Mas do ponto de vista dos efeitos da especialização, o senhor            a partir de conceitos do pensamento de Wittgenstein, uma
                           acredita que isso foi positivo?                                          interpretação forte para problemas de linhagem marxista,
                           Ah, sim, é um grande progresso! Você toma, por exemplo, o                notadamente para sua preocupação com aquilo que chamou
                           trabalho que o [Marco] Zingano está fazendo no Departamen-               de “ontologia social”, como avalia aquelas formulações? O se-
                           to de Filosofia da USP, na área de filosofia antiga. É extraordi-        nhor acha que encontrou respostas satisfatórias?
                           nário, é algo que coloca o Brasil no nível do debate internacio-         Veja bem, não podemos esquecer o seguinte: como eu fui muito
                           nal. Outro dia eu participei de uma banca do Luiz Marques,               influenciado pelo Quine, e como o meu conhecimento de Wit-
                           sobre história da arte, na Unicamp, e é absolutamente extra-             tgenstein naquela época era bastante dominado pela visão do
                           ordinária a maneira pela qual ele trata o Renascimento. É algo           [Gilles Gaston] Granger (que considerava as Investigações filosó-
                           para discutir diretamente com os grandes autores italianos. O            ficas como um livro sem interesse), o que me interessava lá na
                           problema, a meu ver, é que a universidade, seguindo um movi-             origem era encontrar esquemas práticos significativos. Ora, isso
                           mento geral, se fechou. E essa abertura para a política e para a         já aparece no primeiro capítulo de Trabalho e reflexão. Portanto,
                           vida cotidiana ela está perdendo. Então, cabe a vocês, da nova           o encontro com o segundo Wittgenstein não foi, como querem
                           geração, encontrar seus próprios caminhos. Eu sempre digo:               os meus detratores e alguns amigos maldosos, uma “iluminação”,
                           não se pede a uma geração que ela faça o trabalho de duas.               mas sim a continuidade de um trabalho que precisava ser feito.
                                                                                                    Um trabalho, aliás, no qual o Balthazar [Barbosa Filho] estava
                           Gostaria de falar de Marx, que de alguma maneira é um pon-               profundamente engajado quando fez sua tese de doutorado sobre
                           to de partida...                                                         o segundo Wittgenstein, ainda nos anos 70. Quer dizer, nós está-
                           ...e de chegada!                                                         vamos com as chaves para fazer esse trabalho. O que aconteceu

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páGinas FilosóFicas • entrevista




é que a filosofia acadêmica se ensimesmou nos casamentos com               ele queria? Eu tenho a impressão de que ele chegou a um impas-
os filósofos individuais. Então, hoje nós temos grandes especia-           se entre o projeto político e o projeto teórico da análise econômi-
listas em Aristóteles, em Kant, em Husserl, mas de tal maneira             ca. Isso é uma questão a ser investigada. Só que essa ideia deixa
que esses conhecimentos particulares dos filósofos não se comu-            os meus colegas marxistas — que, diga-se de passagem, viraram
nicam. Pior, virou capital: o sujeito é especialista em Kant, capaz        todos social-democratas — absolutamente fora de si.
de profundas análises a respeito de tais e tais problemas, além de
ser capaz de citar corretamente, o que permite a esse sujeito ser          Essa separação entre o Marx teórico da economia, reconheci-
convidado para um grupo de pesquisa no exterior, o pesquisador             do por suas análises até por liberais, e o Marx político, espécie
estrangeiro fica extremamente contente de saber que há alguém              de profeta do “novo homem” e do “novo mundo”, é uma sepa-
capaz de dialogar com ele, alguém capaz de citar Kant direitinho.          ração real na obra dele?
E fica contente porque aí ele convida o pesquisador brasileiro             Isso está dado! E mais: isso está colocado na política interna-
para ir à Alemanha, sabendo que será convidado para vir ao Bra-            cional e nacional através do problema da social-democracia.
sil apresentar um trabalho num congresso, em geral, financiado             Por mais que a crise atual tenha sido “debelada”, e que a questão
pela Capes... e depois os alemães vão à praia! (Risos...)                  passe a ser, agora, se a crise será em “V” ou em “W”, o que fica
                                                                           é que o capitalismo precisa de órgãos reguladores, e que, por-
Uma crítica do capitalismo que aponte para a sua superação                 tanto, a democracia, ou melhor, a democratização desses órgãos
é ainda possível? Que papel Marx — ou sua herança — pode                   reguladores se tornou crucial. E se tornou crucial, igualmente,
desempenhar hoje?                                                          uma análise de como funcionam essas leis reiteradas do processo
Eu acabei de reeditar aquele livrinho sobre Marx que tinha sido            capitalista. Esses processos do capitalismo são discursivos não
lançado na coleção coordenada pelo Denis (Rosenfeld), que o                verbais, como eu vou buscar analisar a partir de Wittgenstein. Só
editor da L&PM, o Ivan Pinheiro Machado, teve a coragem de                 que como essas questões são pensadas, hoje, em termos de “mo-
reeditar agora. E a reação tem sido extraordinária. Outro dia eu           delos”, e não de jogos de linguagem, você pensa em termos de
li uma crítica, uma resenha que saiu no Departamento de Filo-              uma racionalidade em vez de pensar como essas racionalidades
sofia que era incrível. Eu mudei o título do livro e coloquei Marx         têm indefinições intrínsecas que precisam ser elaboradas.
além do marxismo (L&PM, 2009), o que não significa Marx além
de Marx. E eis que o resenhista, um bom marxista do velho tipo,            Mas essa crítica parece se dirigir tanto ao velho marxismo como
mostra que não foi capaz de ler o livro: ele simplesmente fica             à ortodoxia liberal, que é bastante apegada à noção de modelo.
caçoando das minhas torções conceituais, sobre como é que os               Claro, eu estou criticando tanto a modelagem como o marxis-
Manuscritos [Econômico-Filosóficos] não têm a mesma estrutu-               mo tradicional que arrota contradições por toda parte...
ração dos escritos posteriores e assim por diante. Quer dizer, um
sujeito continua a ser um velho marxista. E a coesão entre eles            O senhor foi uma das figuras mais atuantes do Cebrap, que
se tornou absolutamente extraordinária! Às vezes, uma mesma                completou 40 anos em 2009. Pensando no que era o projeto de
universidade tem dois ou três grupos de marxistas — e um não               vocês no início, como encara os resultados dessa empreitada?
frequenta o outro, dado o projeto de “paz celestial” que eles têm.         Quanto aos resultados, o Cebrap teve a enorme virtude de con-
E eu coloco questões que, para serem resolvidas, requerem um               jugar trabalhos teóricos com política. Não é simples um grupo
retorno ao jovem Marx, dos Manuscritos. Eu me coloco a seguin-             ter um presidente da República, menos simples ainda é ter as
te questão: por que Marx não publicou os outros dois volumes?              chances reais de vir a ter um segundo presidente da República.
                                                                           Não é pouca coisa! Agora, o Cebrap atual é da nova geração,
Sim, o senhor sugere que a obra é aberta em um sentido mui-                uma geração que se internacionaliza, que se torna prática e que
to mais forte...                                                           não tem necessariamente compromisso político.
Claro, porque se você lê o livro, o que é que ele está procurando?
Uma tendência na queda do lucro que fosse sempre contínua.                 Isso é bom?
Você lê o capítulo e não tem como não pensar o seguinte: ora,              Não, eu vejo como uma questão a ser resolvida. Cabe perguntar
isso não vai acontecer nunca! Porque são tantos fatores que estão          agora: para que o Cebrap?
permanentemente se alterando que não dá para tirar aquela con-
clusão — tanto é que ela não aconteceu. Mas, se é assim, então             O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse, em entre-
qual é o sentido de uma revolução proletária totalizante como              vista sobre os 40 anos do Cebrap, que “onde tem Giannotti


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imprescindível


  tanto quanto
               R$ 60,00
        (assinatura anual)
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   o jornal de literatura do Brasil
páGinas FilosóFicas • entrevista




tem briga intelectual no bom sentido (...)”. Todos ali, em seus           E esse “tudo é permitido” não é uma vitória do espírito de 68?
depoimentos, parecem unânimes em recordar esse clima                      A vitória de 68 implicava que tudo era permitido desde que hou-
“quente” dos debates.                                                     vesse uma participação política intensa. Hoje temos o contrário:
Eram tão quentes, tão calorosos que podiam meter medo nas                 tudo é permitido desde que a gente não precise participar da
novas gerações. Porque eu podia xingar o Fernando Henrique                política. Então, acho que é algo bem distante daquele ideal.
de todos os nomes, mas depois a gente esquecia e ia tomar cho-
pe! Os novos não estão acostumados com esse tratamento...                 O fenômeno da massificação do ensino superior é comum
                                                                          também nos países europeus e nos Estados Unidos. O Brasil,
Mas como vocês conseguiram o equilíbrio entre o calor da                  entretanto, não parece ter seguido a receita desses países de
discussão e o rigor intelectual?                                          preservar centros de excelência, como as écoles francesas e os
Em primeiro lugar, eu acho que a preocupação com o método,                centros americanos como o MIT. Por que isso?
que era comum a todos nós. Não só a adoção de novos méto-                 Em primeiro lugar porque “elite”, “excelência” são hoje pala-
dos, mas uma vigilância quanto aos usos políticos desses novos            vrões no Brasil. Aliás, já de alguns anos o são. Aí você não pode
métodos. É interessante ver, por exemplo, que a minha geração             sequer pensar que a democratização e a massificação do ensino
toda ignorou a Teoria Crítica, por exemplo.                               — que é desejada e é bem-vinda — pudesse ser compensada
                                                                          por linhas de pesquisa e formação voltadas à preparação de
                                                                          quadros de ponta, de excelência. O resultado é que nós estamos
      A sociedade está mais do                                            numa situação hoje em que, por exemplo, o nosso desenvol-
      que anestesiada, ela está                                           vimento econômico depende de quadros que nós não temos.


     extremamente permissiva,                                             O que faltou para evitar isso, uma vez que tanto o governo
                                                                          FHC como o governo Lula viram a universidade como uma
     perdeu sua normatividade                                             espécie de instituição social de caridade, abrindo suas portas
                                                                          tendo em vista quase que exclusivamente uma pauta social?
No ano passado, o senhor protagonizou uma das cenas mais la-              A caridade social é traço do governo Lula. O que o governo do
mentáveis da história da educação nesse país, quando alunos da            Fernando Henrique fez, e que a meu ver foi muito positivo, foi
USP, em greve, impediram que o senhor desse sua aula. Como                desviar a linha tradicional de financiamento concentrada no En-
o senhor disse em texto publicado à época, em 1969 foram                  sino Superior para o Ensino Fundamental, o que foi uma coisa
os militares que lhe cassaram a palavra, agora, em 2009, “um              muito importante. Por outro lado, deixou a expansão do ensino
bando de alunos exaltados”. O mesmo aconteceu com outros                  privado em nível superior sem nenhum controle, além de não
professores. Entretanto, essa violência é restrita a um ou dois           ter investido de maneira sistemática nas universidades federais.
institutos da universidade. Como se chegou a esse isolamento?             Com o Lula, o Ensino Fundamental ficou como estava, no En-
Por que a sociedade parece não se importar com essas atitudes             sino Médio ninguém tinha mexido até agora, e no Ensino Supe-
dentro de suas principais universidades? Ela está anestesiada?            rior ele faz um programa muito positivo, que é o ProUni, mas ao
Ora, como os estudantes deixam de fazer política e saem do es-            mesmo tempo expande de tal modo as vagas nas universidades
paço público, grupelhos assumem essa posição, exercendo uma               federais que hoje, em certos cursos de algumas universidades,
violência que não é contestada. O problema é saber até quando             há mais vagas que candidatos, sem falar no alto índice de evasão.
os estudantes vão ser dominados por esses tipos que dominam               E o pior desse processo é a questão da qualidade. Isso eu tes-
a política universitária. Agora, de outro lado, o fato é que a so-        temunhei fazendo a seleção para os bolsistas pesquisadores do
ciedade está mais do que anestesiada, ela está extremamente               Cebrap: nós recebíamos mais de 40 projetos para quatro vagas e
permissiva. Eu tenho insistido muito nesse aspecto: a socieda-            era difícil preenchê-las. Quer dizer, o número de alunos aumen-
de brasileira perdeu sua normatividade. Tudo parece permiti-              ta, mas e a qualidade?
do. E isso está ligado à permissividade dos líderes, que acaba
se refletindo no quadro social. E isso é um fenômeno absolu-              Já que as questões sobre o Cebrap nos trouxeram para a po-
tamente universal, quer dizer, não é só o Lula que é multado              lítica, eu queria fazer algumas perguntas mais diretas sobre
duas vezes por infração eleitoral — e caçoa da Justiça —, mas             alguns temas da área, a começar pelo seu texto “O dedo em
também o papa que chora ao lado das vítimas pedofilizadas...              riste do jornalismo moral” (Folha de S. Paulo, 17/5/2001).


                                                                     40
Nele, o senhor defende a existência de zonas cinzentas para                    Do ponto de vista da democracia liberal em sua forma con-
a atividade política, zonas de indefinição moral, digamos as-                  temporânea, parece estar posto um dilema: tendo em sua
sim. Naquele contexto, seu artigo foi interpretado como uma                    essência a defesa das liberdades individuais, particularmen-
justificativa de casos de corrupção no governo federal...                      te a ideia de liberdade da expressão, a democracia parece es-
E hoje alguns petistas querem citar meu texto para defender a                  tender seus benefícios precisamente àqueles que pretendem
corrupção no governo Lula...                                                   destruí-la: aqueles que a veem como mera ideologia burguesa
                                                                               ou como invenção do Ocidente opressor, beneficiam-se dela
   O político é aquele que perde                                               para atacá-la. Como o senhor encara esse paradoxo?
                                                                               A liberdade é de opinião e de expressão das opiniões: não é
    a alma para salvar o Estado,                                               liberdade de transgressão das leis. Não é liberdade de invasão
                                                                               de terras, por exemplo. Esse é o limite. A liberdade é de opi-
   como dizia Maquiavel. Agora,                                                nião, não de ação. Você não pode admitir transgressão siste-
                                                                               mática das leis. E veja bem, a política nunca é simplesmente
       que ele perca a alma!                                                   obediente às leis. Faz parte da política forçar a interpretação
                                                                               da lei para este ou para aquele lado. Agora, quando você, além
O fato é que o senhor estava interessado na distinção entre a                  de forçar, transgride o tempo todo, aí você tem uma ameaça à
moralidade pública e a moralidade privada, sobre a qual che-                   democracia. Porque aí o resultado é uma reação da direita na
gou a escrever depois. Como encara essa distinção?                             base da violência.
Não se constrói um programa político, como a esquerda queria
fazer à época, baseado somente na moralidade, porque isso leva                 À época do lançamento de O jogo do belo e do feio, tanto Ro-
à hipocrisia. Porque o exercício do poder tem zonas cinzentas.                 berto Schwarz como Bento Prado Jr. assinalaram, em meio aos
Portanto, uma crítica feita a um governo atual — seja o de Fer-                elogios ao livro, que o senhor não fazia justiça a Benjamin, por
nando Henrique, seja o de Lula — tem que levar em considera-                   exemplo, principalmente por conta da sua crítica à noção ben-
ção não só o problema moral, mas todos os problemas políticos                  jaminiana de “aura” da obra de arte e do consequente ataque
que disso resultam. Quer dizer, antes de ficar de dedo em riste,               dele à reprodução da arte. Como o senhor encara essa crítica
vamos entender como funciona a política brasileira — e de lá                   e, em geral, como vê hoje a recepção que esse seu livro teve? O
pra cá ela só se atrasou. O meu problema era o seguinte — e                    senhor disse há pouco que as pessoas não pareceram entender.
não era nada de estranho para qualquer pessoa que entenda a                    O pessoal não entendeu, em primeiro lugar, por uma diferença
política com um mínimo de realismo, desde Maquiavel e Hob-                     de formação deles. Em segundo lugar, por conta de uma prá-
bes: o político é aquele que perde a alma para salvar o Estado,                tica artística hoje cada vez mais conceitual. Quer dizer, o que
como dizia Maquiavel. Agora, que ele perca a alma!                             caracteriza uma instalação em geral? O fato de que ela quase
                                                                               não tem uma estrutura gramatical interna, quer dizer, quanto
E que salve o Estado...                                                        tempo você fica numa instalação? Pouco tempo! Agora, se eu
Sim, e não que não faça nem uma coisa nem outra. Então, o                      vou a Paris, eu vou ter que ir ao Louvre umas três, quatro vezes,
que eu estava dizendo é que era anterior a preocupação de pen-                 quero ver várias vezes o mesmo quadro, em alguns casos. Eu
sar uma política moderna. Porque uma política moralista, você                  não vou deixar de ver As quatro estações do Poussin. Trata-se
sabe no que é que dá: uma política de direita.                                 de uma estruturação interna que nos fascina permanentemente.
                                                                               Com a arte contemporânea, ocorre o contrário: ela é cada vez
Mas nesse jogo de perder a alma para salvar o Estado, qual é a                 mais passageira. Isso leva o artista e o crítico à necessidade de
diferença para um argumento de mera eficiência ou de força?                    ter que falar cada vez mais sobre a obra de arte não como uma
Um raciocínio como esse não justifica uma ditadura eficiente?                  invenção, mas como uma limitação. Ontem mesmo eu fui ver a
Não, porque na medida em que você trata do bem comum, esse                     exposição do Oiticica, e ele dizia, em um dos vídeos, que sentia
bem comum tem que aparecer normativamente. Quando você faz                     mais e mais a necessidade de colocar junto com a obra algumas
alianças até com o Judas, você tirou da política essa normativida-             palavras. Quer dizer, é uma tendência da arte contemporânea
de, caiu em puro pragmatismo. Só que a política não é só querer                conceitual diminuir a gramática interna do objeto, fazendo com
o poder; é também determinar o tipo de sociedade que queremos                  que a gramática seja espacial, de tal modo que você vai ao lugar,
ser. E se ela não discutir isso, ela se torna, aí sim, uma politicalha.        mas tem pouca coisa a dizer. §


                                                                          41
escritório GráFico • mallarmé por Gilmar FraGa




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  • 1. 14 JUNHO /JULHO 2010 DISTRIBUIÇÃO GRATUITA FESTFOTOPOA A expansão do alcance da fotografia DANÇA Coreografias de Eva Schul em retrospectiva CASO KLIEMANN Livro amplia entendimento sobre o crime FILOSOFIA Entrevista com José Arthur Giannotti FICÇÃO Conto inédito de Antônio Xerxenesky
  • 3. editorial sumário Mais leitores curtas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4 soBrescritos Uma mudança significativa ocorre com NORTE a partir desta Cada geração com seu estilo edição. Adotando uma prática comum na Europa e nos Es- Sérgio Rodrigues . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6 tados Unidos e que, aos poucos, ganha adesões no Brasil, a dança Arquipélago Editorial resolveu eliminar o valor de capa da re- Para dar carne à memória vista. Isso significa que o leitor passa a contar gratuitamente Mônica Dantas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8 com uma publicação que se destina a pensar e divulgar cultu- ra de forma consistente, mirando além do óbvio. A novidade FotoGraFia também representa um investimento da revista em seu leitor e A construção de um museu imaginário na necessidade de se fomentar o debate cultural. Carolina Marquis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12 Viva Thomaz Farkas! Os atuais assinantes não terão prejuízo com a medida. Eles Fernando Schmitt . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14 poderão optar por continuar recebendo a revista no endereço A poética da relação com o outro indicado. Para os leitores em geral, vamos divulgar no site da Fernando Schmitt . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16 revista a relação dos locais onde a NORTE estará disponível. livros • em primeira mão A nova configuração reconhece que o debate e a divulgação Os aforismos de Karl Kraus . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 em torno dos processos culturais precisam ser ampliados e Ficção qualificados. Para tanto, nossa aposta é que NORTE circule O escritor no castelo alto mais e tenha mais leitores. Sim, o pleito é pretensioso, talvez Antônio Xerxenesky . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 ousado, mas a ele nos lançamos. livros • resenhas Vitor Necchi Quem escreverá nossa história, Samuel D. Kassow vitor@arquipelagoeditorial.com.br Felipe Pimentel . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22 hq Contos de Urbânia Carlos André Moreira e Gilmar Fraga . . . . . . . . . 25 livros • resenhas Binladenistão, Luiz Antônio Araujo Gabriel Pozzobom . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26 é uma publicação da Salas e abismos, Waltercio Caldas ARQUIPÉLAGO EDITORIAL Eduardo Veras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 Avenida Getúlio Vargas, 901/506 90150-003 — Porto Alegre — RS Alguma poesia, Carlos Drummond de Andrade Telefone: (51) 3012-6975 Vitor Necchi . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 www.arquipelagoeditorial.com.br www.revistanorte.com.br jornalismo Um crime que diagnostica a sociedade Conselho editorial Cristiano Ferrazzo, Fernanda Nunes Barbosa e Tito Montenegro Antonio Hohlfeldt . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 Editor cartum Vitor Necchi O juízo final Colaboraram nesta edição: Antonio Hohlfeldt, Antônio Xerxenesky, Carlos Moa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35 André Moreira, Carolina Marquis, Eduardo Veras, Eduardo Wolf, Felipe Pimentel, Fernando Schmitt, Gabriel Pozzobom, Gilmar Fraga, Moa, Mônica Dantas, páGinas FilosóFicas • entrevista Rodrigo Breunig, Sérgio Rodrigues e Tomás Adam. José Arthur Giannotti Impressão: Edelbra Eduardo Wolf . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36 Imagem da capa: Fernando Schmitt escritório GráFico ISSN: 1982-212X Mallarmé por Gilmar Fraga . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 3
  • 4. curtas O movimento de vanguarda foi am- plamente explorado na Europa desde as décadas de 1920 e 1930, mas seu impacto na produção artística na América do Sul só foi sentido anos mais tardes, atingindo seu ápice entre as décadas de 1940 e 1970. Depois de despertar o interesse de impor- tantes artistas latino-americanos, acabou gerando uma ruptura com a antiga arte figurativa que vigorava na produção ar- tística dos dois países, instaurando o iní- cio de inéditas formas de expressão. Com isso, surgiram novos limites para a rela- ção espectador e obra, transformando-se em ponto de partida para o início da era Lygia Clark, Máquina, 1962 pós-moderna na arte latina. Fundação Iberê Camargo Serviço O quê: Desenhar no espaço — Artistas abs- expõe abstracionistas tratos do Brasil e da Venezuela na Coleção Patricia Phelps de Cisneros. Artistas venezuelanos: Gego, Alejandro Otero, Jesus Soto, Carlos Cruz-Diez. Uma rara seleção de abstracionistas bra- nez, propõe um diálogo entre o percurso Artistas brasileiros: Willys de Castro, Ly- sileiros e venezuelanos compõe a expo- abstracionista no Brasil e na Venezuela gia Clark, Mira Schendel, Hélio Oiticica, sição Desenhar no espaço que a Funda- da década de 1940 até meados dos anos Hércules Barsotti e Judith Lauand. ção Iberê Camargo apresenta em Porto 1970. Concebidos por dez nomes expo- Quando: de 30 de julho a 31 de outubro. De Alegre de 30 de julho a 31 de outubro. nenciais do movimento, o significado dos terça a domingo, das 12h às 19h. Quintas- No total, são 88 obras do acervo da Co- trabalhos vai além do diálogo sugerido e -feiras, das 12h às 21h. leção Patricia Phelps de Cisneros, uma traça um panorama da formação das van- Onde: Fundação Iberê Camargo — Ave- das maiores da América Latina em arte guardas e de uma era pós-moderna na nida Padre Cacique, 2000 — Porto Alegre contemporânea. O curador, Ariel Jimé- arte sul-americana. (RS). Entrada franca. Uma reportagem sobre o mundo da corrida Diretor de redação das revistas Placar e Desde aquele momento, Portuga se tornou sos sociais e deixam de lado muitas horas de Runner’s World, o jornalista Sérgio Xa- o homem a ser batido. Marcelo Apovian descanso ou de convívio familiar. Também vier Filho faz sua estreia em livro com (o Lelo), José Augusto Urquiza (o Guto) e deixam para trás, como no caso do Lelo, uma grande reportagem sobre o universo Tomás Awad são os mais fortes candidatos as sequelas de um acidente que quase lhe da corrida. Embora tendo o esporte como a derrotar Amílcar no que ficou conhecido custou a perna. A marca mítica não sai da pano de fundo, não é voltado apenas aos como o “Desafio do Portuga”. cabeça deles, o Portuga precisa ser derru- adeptos. É “um livro sobre gente, com his- Para alcançar o objetivo, eles driblam bado. O circuito das maiores maratonas do tórias de competição, superação e camara- agendas apertadas, desviam de compromis- mundo — Berlim, Boston, Chicago, Nova dagem”, como diz o autor. O relato começa York e Paris — é o cenário para a busca pelo em outubro de 2006, quando o empresário recorde. Lelo, Guto e Tomás correm o mun- Amílcar Lopes Jr., o Portuga, realizou um do, literalmente, para derrubar o Portuga. A feito memorável ao completar a Maratona esse grupo junta-se mais tarde Felipe Wri- OPERAÇÃO PORTUGA de Chicago em 2 horas 43 minutos e 50 se- ght e sua obsessão em terminar uma mara- Sérgio Xavier Filho gundos. A marca, extraordinária para um Arquipélago Editorial tona abaixo de 3 horas. E ele chegou lá, com amador, fez dele uma espécie de lenda no 176 páginas a ajuda de um amigo capaz de um gesto de circuito dos corredores de rua de São Paulo. R$ 32 pura e comovedora nobreza. 4
  • 5. Confronto de escritores Está em andamento, desde o dia 10 de junho, a primeira edição do Campeo- nato Gaúcho de Literatura. O certame é inspirado na Copa de Literatura, criada no Rio de Janeiro por Lucas Murtinho e realizada desde 2007. Na versão gaúcha, são 27 livros concorrentes, todos de con- tos, publicados em 2008 e 2009. Os títulos foram divididos, por sorteio, em nove gru- pos de três. Em cada partida, um árbitro LUCIANO LANES é convocado para escrever uma resenha comparando duas obras — e, claro, deve dar o resultado final do jogo, com placar e tudo. O campeonato segue até dezembro Norte conquista deste ano e pode ser acompanhado pelo site http://gauchaodeliteratura.wordpress. mais um prêmio com. As partidas são publicadas sempre às segundas e quintas-feiras. A intenção dos organizadores é des- tacar um gênero literário a cada ano. No A revista NORTE recebeu, no dia 13 de A escolha dos vencedores é feita por ano que vem, a disputa se dará em torno abril, mais uma distinção: o 4º Prêmio um conselho composto pelos coordenado- dos romances. A comissão organizadora Joaquim Felizardo, categoria Mídia – Es- res das diversas áreas da SMC, assim como do Gauchão de Literatura é composta por pecial, promovido pela Secretaria Muni- o secretário Sergius Gonzaga e a secretá- Ana Mello, Carlos André Moreira, Daniel cipal da Cultura (SMC) de Porto Alegre ria-adjunta Ana Fagundes. A designação Weller, Fernando Ramos, Luciana Thomé, para homenagear artistas e intelectuais de de Joaquim Felizardo para o nome do prê- Marcelo Spalding e Rodrigo Rosp. diversas áreas da cultura da Capital e des- mio reconhece os valores humanistas que tacar iniciativas de mídia e patrocinado- nortearam a atuação do historiador e pro- res. Nesta edição, relativa ao ano de 2009, fessor que encabeçou o movimento pela foram entregues 19 troféus. A premiação criação da SMC, da qual foi o primeiro ocorreu no Teatro Renascença, noite em secretário, em 1986. que Nico Nicolaiewsky interpretou ao pia- O ano passado foi pródigo para a NOR- no algumas de suas composições. O co- TE. Além do Joaquim Felizardo, a revista ordenador de comunicação da secretaria, já havia conquistado o Prêmio Açorianos Marcelo Oliveira da Silva, entregou o tro- de Literatura – destaque Mídia Impressa. féu para o editor de NORTE, Vitor Necchi. A entrega ocorreu no dia 14 de dezembro. LIVRARIA BAMBOLETRAS CENTRO COMERCIAL NOVA OLARIA Rua Lima e Silva, 776 - Loja 3 - Porto Alegre (RS) Fones: (51) 3221-8764 / 3227-9930 5
  • 6. soBrescritos • por sérGio rodriGues — Quem se recusou a crescer foi você, você é que se recusou Cada geração a ir além daquela lengalenga submautneriana de marginais he- róis e nonsense que eu li quando tinha quinze anos, como era mesmo o nome, Minhocas do asfalto? Não, agora lembrei: A ci- com seu estilo dade e os cupins. Li com quinze, achei razoável, com dezesseis já achava um lixo. Foi você que não cresceu, você que fracassou. Tudo bem, pode ser que eu não dê em nada também, é altamente provável, aliás. Mas tenha pelo menos a decência de esperar isso — Crítica construtiva, tudo bem, mas eu gosto mesmo é de elo- acontecer antes de me atirar na cara o seu fracasso. gio, disse o jovem escritor do momento. Seguiu-se um silêncio de cristal. O auditório estalava de tensão. A plateia riu. Ninguém respirava. Até que o escritor de meia-idade redarguiu: — A boutade é boa, retrucou da poltrona ao lado o escritor de — Viadinho! meia-idade, seu momento perdido em algum ponto remoto dos anos 80, mas eu sempre achei que elogio é que nem doce. Uma E se atracaram. Os dois tiveram chance de encaixar uns tantos delícia, e te enche de energia. Mas não faz crescer. Críticas têm cruzados, e o escritor mais velho se distinguiu pelos potentes proteína, elogios têm açúcar. O escritor jovem que se esbalda nos cotovelaços, enquanto o mais moço manejava com perícia um primeiros elogios, se lambuza neles, principalmente acredita ne- estilete, tingindo o palco de sangue, antes que entrassem para les, está se recusando a crescer. separá-los. Caiu o pano. O jovem escritor do momento ficou lívido. As juntas de seus de- A plateia explodiu num aplauso de puro êxtase. dos descoloriram em torno do microfone. — Quem se recusou a crescer foi você, cara. — Como disse? Sobrescritos em livro O jornalista e escritor Sérgio Rodrigues começou a publicar os contos a que deu o nome de “Sobrescritos” no seu blog Todoprosa (www.todoprosa.com.br). Na NORTE, aparecem desde a primei- ra edição da revista, em novembro de 2007. Histórias do univer- SOBRESCRITOS so literário repletas de ironia, elas agora foram reunidas no livro Sérgio Rodrigues MARIA MENDES Sobrescritos — 40 histórias de escritores, excretores e outros Arquipélago Editorial insensatos, com ilustrações de Gilmar Fraga, que a Arquipélago 152 páginas Editorial, que edita a NORTE, acaba de lançar. R$ 25 6 6
  • 7. curtas Formação em revista de Virginia. Com uma particularidade: a aversão aos academicismos. Serrote trata o ensaio como um gêne- ro que não depende de pompa e lingua- Diante da atual aridez existente no jorna- sobre o tema “O novo ensaísmo brasilei- gem excessivamente técnica. Sem ofender lismo cultural brasileiro, algumas inicia- ro”. O encontro gaúcho, realizado no dia a inteligência alheia, fala sobre sambas de tivas apresentam-se como oásis de ideias 29 de março, foi capitaneado pelo editor Nelson Cavaquinho, hipergrafia, boxe e e provocações. Na maioria das vezes, Matinas Suzuki e contou com a presença Prince of Persia com idêntica leveza tex- contudo, a fonte não passa de uma mi- do tradutor Samuel Titan Jr. e do escritor tual. Tal característica pode explicar, em ragem. Motivos não faltam: insustenta- Daniel Galera. parte, o sucesso comercial da revista: os bilidade financeira, panelinhas literárias Apesar de eventuais comparações dois primeiros números já se esgotaram autorreferentes e — elementar, meu caro com a imprensa norte-americana (leia-se e, a partir de agora, a tiragem passa de 3 editor — pobreza de conteúdo. São cada New Yorker), Serrote segue uma tradição mil para 4 mil exemplares. vez mais raras as publicações que sobre- distinta. Publicada pelo Instituto Moreira Neste primeiro ano de vida, o saldo da vivem no Brasil sem cometer pelo menos Salles, sua maior influência são os jour- Serrote foi duplamente positivo. Positivo um desses deslizes. nals de ensaios editados por organizações para o mercado editorial brasileiro, que É o caso da revista Serrote, notável culturais e acadêmicas. O próprio Suzuki, provou ainda ter um restante de fertilida- milagre editorial dedicado a um gênero durante palestra em setembro de 2009 no de em meio a suas areias desérticas. E po- pouco valorizado em terras tropicais: o 22º SET Universitário, evento realizado sitivo para o público leitor, que vê na re- ensaio. Aproveitando o lançamento de pela Faculdade de Comunicação Social vista — tanto na produção própria quanto sua quarta edição, a quadrimensal orga- (Famecos) da PUCRS, confessou que a no conteúdo traduzido — um raro instru- nizou um périplo por cinco capitais, entre maior inspiração da revista é a The Vir- mento de formação intelectual. elas Porto Alegre, promovendo debates Revista_Norte.pdf 25/9/2009 15:54:38 ginia Quarterly Review, da Universidade Tomás Adam Racionalize Custos, Aumente a sua Receita, Automatize seus Gerencie a Venda Pontos de Venda dos Eventos GATEWAY TKTS Sistema de Impressão e Gerenciamento de Venda de Ingressos Sistema de Impressão e Gerenciamento de Venda de Ingressos TKTS, corações e mentes trabalhando por você Conheça a nova linha de pulseiras e ingressos da TKTS do Brasil Conheça Não corra riscos. Compre seus ingressos somente em postos autorizados para a venda 7 Rua Prof. Ivo Corseuil, 385 | Porto Alegre-RS | Bairro Petrópolis | CEP 90690-410 | tel (51) 2131-5821 tkts@tkts.com.br | www.tkts.com.br
  • 8. dança Para dar carne à memória LU MENNA BARRETO Projeto recupera quase 40 anos de produção coreográfica de Eva Schul, nome seminal da dança contemporânea no Brasil MÔNICA DANTAS A partir dos anos 1920, a dança cênica começa a se estruturar Meyer e Petzhold realizaram montagens de coreografias de no Brasil, seja por meio de brasileiros que foram estudar na repertório do balé, mas também coreografaram obras com Europa ou de europeus que decidiram residir no país. Em Porto nítida influência da dança expressionista. Alegre, a comunidade alemã desempenhou um importante papel no desenvolvimento da dança como atividade artística, Naquele período, essa dança que germinava no Brasil e que a partir da criação do Instituto de Cultura Física por Mina parecia moderna não se apresentava como uma ruptura em Black e Nenê Dreher Bercht, em 1937. Mina havia estudado no relação ao balé, como foi o caso da Europa e mesmo dos Estados Instituto do Ritmo Aplicado, de Jacques Dalcroze, em Hellerau, Unidos. Lya Bastian Meyer e Tony Petzhold eram modernas na Alemanha. De lá, trouxe os princípios de trabalho da eurritmia medida em que apresentavam algo novo. A maior novidade — sistema de treinamento da sensibilidade musical, através consistia em mostrar a dança de um modo diferente, como uma do qual o ritmo é transformado em movimentos corporais, prática que solicitava o status de arte. No entanto, suas escolas que influenciou fortemente a dança moderna. Do Instituto de se afirmavam tendo como base o ensino do balé, sublinhando a Cultura Física saíram, para estudos na Alemanha, Lya Bastian primazia desta técnica para a formação de bailarinos. Meyer e Tony Petzhold. Até meados dos anos 1970, predominavam em Porto Alegre Na Alemanha, em períodos diferentes, elas estudaram balé as escolas de balé e seus espetáculos de fim de ano. Em 1974 com professoras russas e conheceram a dança expressionista foi fundado o Grupo Experimental de Dança (GEDA), com de Mary Wigman. De volta a Porto Alegre, abriram suas a finalidade de reunir os melhores alunos dessas escolas para escolas de dança. Com seus alunos ou em trabalhos solos, promover espetáculos e proporcionar maior experiência 8
  • 9. aos bailarinos. Embora as coreografias tivessem inspiração em colaboração com outros artistas como os músicos Toneco moderna, os bailarinos eram formados e exercitavam-se e Carlinhos Hartlieb, além de Nico Nicolaiewsky, que também em aulas de balé. Foi somente a partir da criação do Espaço atuava como dançarino, que Eva criou Um berro gaúcho. A e do Grupo Mudança por Eva Schul, em 1974, que se pôde coreografia partia do mito de Sepé Tiaraju para falar de uma identificar uma preocupação em ensinar dança a partir de identidade regional vinculada a uma perspectiva urbana, pop, outras matrizes técnicas, que resultaram numa abordagem com ecos da contracultura. mais contemporânea do corpo e da dança. Em 1975, Alwin Nikolaïs convidou Eva para trabalhar em Nova Nascida num campo de refugiados no pós-guerra, na Itália, Eva York. Durante sete anos, estudou com Nikolaïs, e principalmente chegou ao Brasil em 1956, onde fez sua formação em balé. Após com Hanya Holm, os princípios que embasaram boa parte da um estágio de um ano no New York City Ballet e uma formação dança moderna e pós-moderna. Holm tinha sido assistente de em artes plásticas, Eva participou do 1° Congresso Nacional de Mary Wigman na Alemanha e estruturou uma técnica em que Dança em Curitiba, onde descobriu a dança moderna. Decidida a descentralização e a ausência de hierarquia entre o corpo e a compreender essa nova forma de dançar, foi estudar no suas partes resultam na premissa de que o fluxo do movimento Uruguai e na Argentina os princípios de análise do movimento coordena-se com o fluxo da vida. desenvolvidos por Rudolf Laban e a técnica de Martha Graham. Essas experiências marcaram profundamente o trabalho de De volta a Porto Alegre no início dos anos 1970, Eva criou Eva Schul. Coreografias como Ecos do silêncio, Reflexos, Jungle, o Espaço MuDança. Dizendo-se insatisfeita com as práticas Limites da ilusão e Hall of mirrors, criadas nos anos 1980, coreográficas que não permitiam o desenvolvimento de referenciam-se diretamente nesses princípios e procedimentos. uma expressão própria e de um diálogo direto com a Essas coreografias foram produzidas em Curitiba, onde Eva deu plateia, desenvolveu estratégias para permitir que o corpo aulas e coreografou para a Companhia de Ballet do Teatro Guaíra protagonizasse livremente esse diálogo. Foi nesse ambiente, e participou da elaboração dos cursos superiores de Teatro e 9
  • 10. dança e Catch ou como segurar um instante (2003). O elenco deste espetáculo é composto por jovens bailarinos, selecionados através de audição, pois a ideia era experimentar com pessoas detentoras de formações diversas e corpos talvez tão distintos daqueles dos anos 1970 e 1980. Houve, portanto, diferenças nos procedimentos de remontagem de cada obra. Catch ou como segurar um instante e Hall of mirrors possuíam registro em vídeo, que serviu como ponto de partida para sua recriação. Orientados pela coreógrafa e por duas assistentes — Viviane Lencina para Catch e Sofia Schul para Hall of mirrors —, os bailarinos apropriaram-se destas coreografias e as fizeram suas. Catch tem trilha sonora especialmente composta por Celau Moreira, e Hall of mirrors utiliza música do grupo alemão Kraftwerk. Um berro gaúcho foi completamente recriada a Eva Schul ministrando oficina no Espaço MuDança, nos anos 1970 partir de improvisações baseadas no roteiro original e na música composta especialmente para a coreografia por Toneco de Dança (Fundação Teatro Guaíra/Pontifícia Universidade e Carlinhos Hartlieb nos anos 1970. Católica do Paraná), ministrando diferentes disciplinas, além de dirigir e coreografar o Grupo de Dança FTG/PUC. Foi quando Em junho estreou o espetáculo dar carne à memória II, a necessidade de aplicação de seus conhecimentos fez com que a formado por solos e duos recriados por intérpretes-criadores coreógrafa ajustasse o trabalho desenvolvido em Nova York aos que participaram da elaboração dessas obras como integrantes seus alunos no sul do Brasil. Aos poucos, a dança de Eva Schul se da Ânima Companhia de Dança, nos anos 1990. Em cena, tornou cada vez mais sul-brasileira e sua. Eduardo Severino em Ser animal; Cibele Sastre em O fio partido; Mônica Dantas em Caixa de ilusões; Tatiana Rosa em No início dos anos 1990, Eva retornou a Porto Alegre, onde Tons; Luciana Paludo em Solitude, Luciano Tavares e Viviane criou a Ânima Companhia de Dança e montou obras como O Lencina em De um a cinco. A metodologia de recriação dessas convidado, Caixa de ilusões, Tons, A dança da dúvida, De um a obras foi desenvolvida pelos próprios bailarinos, auxiliados cinco, Catch ou como segurar um instante. Em Porto Alegre, Eva por Eva Schul e por Suzane Weber, que estiveram à disposição continuou seu trabalho como formadora e afirmou sua prática dos artistas para viabilizar seus experimentos de recriação. como pesquisadora, no melhor sentido que esse termo possa Assim, cada intérprete-criador, utilizando os recursos que ter para a dança: fazendo do seu corpo e do corpo das pessoas achou necessário, foi recriando sua coreografia. Não havia que estudam com ela território de investigação para a criação um compromisso com a fidedignidade à obra original, ela coreográfica, por meio de um estudo minucioso do corpo poderia somente servir de referência para um novo trabalho em movimento e da disseminação da improvisação como composicional. No entanto, alguns optaram por refazer suas ferramenta de composição coreográfica e/ou como modo de se coreografias bem próximas à sua matriz original. levar a dança para a cena. Orientando, formando e fomentando novos criadores, Eva Schul e a Ânima Companhia de Dança Apesar do aperfeiçoamento nas formas de registro e veiculação engendraram um ambiente que tem permitido o surgimento e dos produtos coreográficos em diferentes mídias e das o amadurecimento de artistas cujas obras, ações e projetos vêm possibilidades de se fazer dança em outros suportes para além se constituindo em referenciais para a dança contemporânea. do corpo em movimento, dançar é uma das melhores maneiras de celebrar a dança e sua história. Dançar, para se constituir Desde janeiro deste ano, o projeto dar carne à memória, memórias da dança, tentando reencontrar no movimento contemplado com o Prêmio Funarte Klauss Vianna de algo do sentido e da intenção com que ele foi criado. E assim, Dança/2009, vem celebrando a obra de Eva Schul com a dar carne à memória, revisitando as produções coreográficas recriação das suas principais coreografias, realizando, em de décadas anteriores como forma de alimentar a criação paralelo, ações de mapeamento da sua trajetória. coreográfica atual e de revigorar nossos entendimentos sobre a cena contemporânea. E nada mais exemplar, para tanto, do que Em maio foi apresentado o espetáculo dar carne à memória a obra de Eva Schul. § I, que compreendeu a recriação de três obras de períodos distintos: Um berro gaúcho (1977), Hall of mirrors (1986) Mônica Dantas é bailarina, pesquisadora e professora da UFRGS. 10
  • 11. 11
  • 12. FotoGraFia DENISE HELFENSTEIN GUSTAVO DIEHL A construção de um museu imaginário O FestFotoPoA propõe, há quatro anos, expandir a fotografia a ponto de ela virar uma expressão filosófica CAROLINA MARqUIS Quanto tempo dura um instante? O que é o tempo e quais são Bastava subir as escadarias do antigo prédio da Avenida Sete de os tempos de uma fotografia? O que se enxerga em uma foto é Setembro, onde funciona o Santander Cultural, e ultrapassar um tempo que não muda. Por isso mesmo ele está em constante as moças que vestiam camisetas cor de laranja com símbolos transformação. que indicavam 4° FestFotoPoA para chegar ao amplo salão. Quando se olhava para os lados, nas paredes do imponente Algumas destas questões eram despertadas no público que salão se fazia presente o legado visual de Farkas, responsável compareceu ao 4° Festival Internacional de Fotografia de Porto pelo início da fotografia moderna no Brasil. Alegre (FestFotoPoA), evento que vem colocando a capital gaúcha no roteiro dos movimentos que mostram e pensam fotografia. O tema de reflexão deste encontro foi A terceira margem Na mais recente edição, realizada entre 7 de abril e 2 de maio, o do tempo fotográfico... o território da fotografia. O fotógrafo homenageado foi o húngaro-brasileiro Thomas Farkas. Carlos Carvalho, curador e idealizador do evento, justifica 12
  • 13. FERNANDO SCHMITT TIAGO COELHO que o festival surgiu para atender a uma demanda local Expandir a fotografia a ponto de ela virar uma expressão filosófica de eventos de fotografia. “O FestFoto não é feito apenas é a intenção do FestFoto. “Queremos o diálogo, que o público para profissionais da fotografia. A ideia é fazer projeções tenha acesso a discussões que não teria em qualquer lugar”, propõe multimídia que deem lugar à fotografia contemporânea”, Carvalho. “O festival tem a fórmula aberta. O único conceito explica. Nesta edição, 52 fotógrafos tiveram seus trabalhos que temos é de ser um festival de projeções.” O 4º FestFotoPoA, projetados no festival. “Caso quiséssemos colocar cada patrocinado pelo Santander Cultural e pela Funarte, apresentou, uma destas fotos enquadradas e penduradas nas paredes, além dos trabalhos de Farkas, obras de Henri Cartier-Bresson, precisaríamos de um evento da dimensão de uma Bienal”, Hélio Oiticica, Martin Chambi, Alexandre Sequeira e Jacqueline compara Carvalho. O festival surgiu para democratizar a arte Joner, as exposições individuais de Fernando Schmitt (17 do “momento decisivo” — conceito do francês Henri Cartier- dinheiros), Júlio Appel (3 mulheres), Larissa Madssen (Relógios Bresson evocado na idealização do evento. de Sol), Gustavo Diehl (Re)tratos) e Tiago Coelho (D’Ana.) e instalações, como a de Denise Helfenstein (A captura da E se são três as margens da fotografia, como sugere a temática do paisagem). Ainda havia vídeos, exibições, projetos coletivos e os festival, a primeira é justamente o “momento decisivo” descrito trabalhos selecionados no Fotograma Livre 2010. por Bresson. “O tempo alongado” da experiência construtivista tardia da modernidade brasileira é a segunda das margens. A A fotografia permite que sejam mais abertos e estejam terceira é o tempo, palavra tão difícil de conceituar. “O tempo disponíveis para perceber o mundo aqueles que trabalhem com é a metáfora. O tempo que passa e nos tira ou o tempo que ela. “O prosaico do cotidiano passa a ser mais interessante, e os não passa”, conta Jacqueline Joner, expositora e co-curadora caminhos que percorremos tornam-se mais lúdicos quando a do Festival. Em A casa vazia: fotografias do inapreensível, sua fotografia faz parte da vida”, acredita Sinara Sandri, que coordena instalação, Jacqueline lançou diversos olhares sobre a perda e o festival ao lado de Carlos Carvalho. “A fotografia conta do mostrou a assimilação dela a partir do tempo. estranhamento do fotógrafo com o mundo. Ela não se cala.” § 13
  • 14. FotoGraFia Dia da inauguração de Brasília (presidente Juscelino Kubitschek), 1960 Viva Thomaz Farkas! A obra do artista húngaro radicado no Brasil é um marco da fotografia moderna e compõe um acervo de mais de 34 mil imagens FERNANDO SCHMITT A voz não tinha potência, mas claramente tratava-se de um de fatos importantes e conhecidos. Farkas assinou o livro de brado, de uma palavra de ordem. Surgiu ao final de uma palestra fundação do Masp e foi dele a primeira exposição de fotografia do 6º Paraty em Foco, a FLIP dos fotógrafos, como alguns no museu, em 1949. Fotografou a construção e a inauguração moradores da cidade fluminense gostam de chamar. “Viva a de Brasília. Foi produtor e diretor de cinema, financiando fotografia!” As pessoas próximas imediatamente replicaram, do próprio bolso a realização de uma série de documentários aumentando o volume e o entusiasmo do manifesto. O autor sobre o Brasil, iniciativa que ficou conhecida como “Caravana do primeiro grito chama-se Thomaz Farkas, húngaro nascido Farkas”. É membro vitalício do conselho da Fundação Bienal de em 1924 que se naturalizou brasileiro e se tornou um dos São Paulo, conselheiro da Cinemateca Brasileira e faz parte do personagens fundamentais da fotografia moderna no Brasil. conselho curador da Coleção Pirelli/Masp. Em uma pesquisa rápida fica fácil descobrir porque o FestFotoPoA Mas bastaria para justificar a homenagem o fato de Farkas ser decidiu homenageá-lo em sua quarta edição. Há uma série um grande fotógrafo, fundamental para o desenvolvimento da 14
  • 15. fotografia no Brasil. Nos anos 1940, frequentava o Foto Clube Bandeirantes, que se reunia no mesmo prédio da Fotoptica, empresa de seu pai, na Rua São Bento, centro de São Paulo. Não raro as imagens mais abstratas, fortemente geométricas, eram desdenhadas pelos outros fotógrafos. Uma de suas fotografias mais conhecidas, precursora da arte construtivista, um grafismo fortemente contrastado obtido a partir de um agrupamento de telhas, foi apelidada “costelas de minhoca”. Hoje guardada pelo Instituto Moreira Salles (IMS), a coleção de Farkas tem mais de 34 mil imagens. A fotografia nunca foi exclusiva na vida de Farkas, e ele nunca se considerou um profissional. Tampouco era um amador; Imagem obtida durante a filmagem do documentário Subterrâneos do futebol, do qual Farkas foi o fotógrafo. São Paulo, 1964. FOTOS: THOMAZ FARKAS / ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES amante, talvez. Teve participação ativa na empresa da família, e as duas atividades complementavam-se. A Fotoptica publicou Se ainda faltassem argumentos que sustentassem a homenagem, uma revista especializada em fotografia, que começou como bastaria retomar o depoimento do amigo Cristiano Mascaro no um tabloide ainda na década de 1950, e manteve uma galeria, livro Thomaz Farkas publicado pela Edusp em 2002 e dizer que inaugurada no fim dos anos 1970, onde gerações de fotógrafos este homem, cujo apelido é Macaco Chico, aprendeu uma receita brasileiros puderam conviver e dar visibilidade a seus trabalhos. de dry martini com Luis Buñuel, gosta de rabanetes com mel no E a loja da Rua Conselheiro Crispiniano tornou-se referência café da manhã e tem um gosto impecável para gravatas. § como fornecedora de material e equipamento fotográficos e pela qualidade de seu laboratório. Fernando Schmitt é fotógrafo. Núcleo Bandeirante, 1957-1960 15
  • 16. FotoGraFia A poética da relação com o outro Na instalação Nazaré do Mocajuba, Alexandre Sequeira estampa retratos em tecidos impregnados pelas vidas de seus donos FERNANDO SCHMITT Quando se percorre a instalação Nazaré do Mocajuba, As imagens encomendadas eram entregues em um varal, assim deparamos frontalmente com as imagens dos habitantes de o fotógrafo podia ficar por perto e acompanhar o encontro das um vilarejo de pescadores do Pará impressas em tamanho real pessoas com suas fotografias. Ele conta que “no caso de Nazaré sobre tecidos. A força visual e poética das imagens apresentadas do Mocajuba, a fotografia não se tratava exatamente de uma FERNANDO SCHMITT no 4º FestFotoPoA é suficiente para comover, mas, para novidade, mas, com certeza, um recurso raramente utilizado compreender a densidade da obra, faz toda a diferença ouvir por qualquer uma daquelas pessoas”, e por isso chamava Alexandre Sequeira falar de seu processo criativo. a atenção a relação de profundo respeito dos fotografados com o ato fotográfico. Na maioria dos casos, a pose ofertada Alexandre é um sujeito bom de conversa. Fala mansa, era absolutamente frontal, o olhar encarando diretamente a plena de gentileza e um ritmo tranquilo de quem acredita câmera. É com esse olhar que o espectador deparava quando que o interlocutor tem algo que vale a pena ouvir. Nas suas circulava pela instalação montada no Santander Cultural. apresentações, o público vai sendo contaminado, pouco a pouco, pela história de seu envolvimento com a comunidade Os pedidos de fotografias levaram aos poucos o fotógrafo de Nazaré do Mocajuba e, não raro, a emoção transborda em para dentro das casas de seus modelos. Ali se encontrava o lágrimas. suporte que ajudaria a dar sentido ao trabalho artístico: panos estampados, já puídos, que faziam as vezes de porta, lençóis, Ele foi levado ao vilarejo pela primeira vez na década de 1990. redes, mosquiteiros, toalhas de mesa — tecidos impregnados “Ali já me senti envolvido pela paisagem e pelo carinho dos pelas vidas de seus donos, passariam a carregar também suas moradores”, recorda. Mais tarde, quando recebeu uma bolsa imagens. Alexandre passou a propor uma troca: o tecido velho de pesquisa em arte do Instituto de Artes do Pará, escolheu por um novo. Então ele fotografava a peça a ser trocada e ia a desenvolver um trabalho que tratasse desse envolvimento, Belém procurar por outra de cor e estampa semelhantes. dessa paixão por aquele lugar e pelas pessoas que ali viviam. O processo de impressão das imagens usou a técnica da serigrafia O trabalho começou com uma documentação quase corriqueira e, para garantir que a altura das imagens correspondesse à das de cotidiano e paisagem, até que um dia uma senhora o procurou pessoas fotografadas, Alexandre desenvolveu uma técnica sutil e pedindo que fizesse umas fotografias 3x4 para um documento. afetuosa. Um abraço permitia usar o próprio corpo como régua Em seguida outras solicitações foram aparecendo e ali se deu e referência. Os tecidos impressos retornaram ao vilarejo na uma mudança importante no rumo que o projeto tomava: forma de uma exposição ao ar livre com as imagens penduradas Alexandre colocou-se como retratista da comunidade, criando nas árvores, e cada um dos modelos pode levar sua imagem e uma interação com a vila por meio da fotografia, mas não a pendurá-la em sua casa por um dia. As fotografias dos tecidos fotografia que ele vinha fazendo até então, e sim a que passava a reposicionados e ressignificados nas casas de seus modelos — ser demandada pelos moradores de Nazaré. “Percebi que queria que também estavam expostas, completando a instalação — são falar, através da fotografia, de uma relação construída com o lugar, comercializadas por galerias de arte, e os recursos advindos são e aquilo era exatamente o que estava acontecendo”, reconhece. divididos meio a meio entre o artista e a vila. 16
  • 17. Sequeira estampou em cortinas e mosquiteiros os retratos de moradores de Nazaré do Mocajuba (abaixo). O trabalho foi exposto no Santander Cultural. FOTOS: ALEXANDRE SEqUEIRA “Percebo que, cada vez mais, o que importa para mim não é fazer fotos de pessoas, mas trabalhar com elas a fotografia. A fotografia torna-se um pretexto para constituir uma história com essas pessoas”, explica Alexandre. Em seu trabalho, o processo artístico é tão belo quanto o resultado final exposto. Mais que na linguagem fotográfica, é no aspecto relacional, no encontro propiciado pela fotografia, que se funda a potência da poética visual de Nazaré do Mocajuba. § 17
  • 18. livros • em primeira mão Os aforismos de Karl Kraus Considerado um dos maiores satiristas de todos os tempos, Karl Maldita lei! A maioria de meus próximos é a triste consequência Kraus (1874-1936) deixou uma obra vasta, mas ainda larga- de um aborto não feito. mente ignorada no Brasil. São ensaios, poemas, peças teatrais e, sobretudo, aforismos, as frases certeiras que fizeram sua fama. A Nada é mais tacanho do que o chauvinismo ou o ódio racial. maior parte desse material apareceu nas páginas da revista Die Para mim todos os seres humanos são iguais; há idiotas em Fackel (A Tocha), que ele fundou em 1899. Os aforismos foram toda parte e tenho o mesmo desprezo por todos. Nada de publicados em três volumes: Ditos e contraditos, em 1909, Pro preconceitos mesquinhos! domo et mundo, em 1912, e De noite, em 1916. Para reapre- sentar o polemista ao leitor brasileiro, a Arquipélago Editorial, Se alguém quer me dirigir a palavra, ainda espero até o último que edita a NORTE, lança na segunda quinzena de julho uma momento que o medo de se comprometer o impeça de fazê-lo. seleção dos aforismos de Kraus, com organização e tradução (di- Mas as pessoas são corajosas. reta do alemão) de Renato Zwick. A seguir, trechos do novo livro. Muitos têm o desejo de me matar. Muitos, o desejo de ter dois *** dedos de prosa comigo. Contra aqueles a lei me protege. Quão pouca confiança merece uma mulher que se deixa O mundo é uma prisão em que é preferível a solitária. apanhar numa fidelidade! Hoje ela é fiel a ti, amanhã a outro. Quando o madeirame do telhado pega fogo não adianta rezar Ela disse a si mesma: “Dormir com ele, tudo bem – mas nada nem esfregar o assoalho. Em todo caso, rezar é mais prático. de intimidades!” A democracia divide os homens em trabalhadores e Faltava-lhe apenas um defeito para ser perfeita. preguiçosos. Ela não está preparada para aqueles que não têm tempo para trabalhar. Em relação às mulheres, a ordem social nos deixa apenas a alternativa de sermos mendigos ou ladrões. Numa cabeça oca cabe muito conhecimento. A única coisa que importa no amor é não parecermos mais Devemos ler todos os escritores duas vezes, os bons e os ruins. bobos do que nos fazem. Uns serão reconhecidos, e outros, desmascarados. A abstinência sempre se vinga. Num produz pústulas; noutro, Há escritores que já conseguem dizer em vinte páginas aquilo códigos sexuais. para o que às vezes preciso de até duas linhas. As penas servem para intimidar aqueles que não querem De onde tiro tanto tempo para não ler tanta coisa? cometer crimes. O escândalo começa quando a polícia lhe dá um fim. O cristianismo enriqueceu o banquete erótico com o antepasto da curiosidade e o arruinou com a sobremesa do arrependimento. AFORISMOS Karl Kraus Org. e trad.: Renato Zwick O cão é fiel, não há dúvida. Mas será por isso que devemos tomá- 208 páginas lo como exemplo? Afinal, ele é fiel ao homem e não ao cão. R$ 39 18
  • 19. Kraus fotografado por Trude Fleischmann, em 1928, e a primeira edição da revista Die Fackel, de 1899 Por que muitos escrevem? Porque não têm caráter suficiente Muitas vezes, a filosofia não é mais do que a coragem de entrar para não escrever. num labirinto. E quem se esquecer do portão de entrada, pode facilmente adquirir a reputação de pensador independente. Certo sujeito disse que tentei colocá-lo contra a parede. Isso não é verdade. Eu simplesmente consegui. A carreira é um cavalo que chega sem cavaleiro diante dos portões da eternidade. A boca transborda daquilo que o coração está vazio. Um lobo em pele de lobo. Um patife sob o pretexto de sê-lo. A medicina: passe o dinheiro e a vida! O ódio deve se tornar produtivo. Caso contrário, é mais sensato Símbolo moderno: a morte com a buzina. amar logo de uma vez. O aforismo jamais coincide com a verdade; ou é uma meia Muitos têm a megalomania de ser loucos e são apenas cabeças- verdade ou uma verdade e meia. tontas. Eu e meu público nos entendemos muito bem: ele não ouve o Não tenho mais colaboradores. Eu tinha inveja deles. Eles que digo e eu não digo o que ele gostaria de ouvir. afastam os leitores que eu mesmo quero perder. Por que tantos me criticam? Porque me elogiam e apesar disso A sátira está longe de toda hostilidade e significa um benefício os critico. para uma coletividade ideal, rumo à qual ela avança não contra, mas através dos indivíduos reais. Não se vive uma vida sequer uma vez. Ainda não tentei, mas acho que para ler um romance eu O rufião é o órgão executivo da imoralidade. O órgão executivo precisaria primeiro me encorajar e então fechar bem os olhos. da moralidade é o chantagista. Como o mundo é governado e conduzido à guerra? Os Os jornalistas escrevem porque não têm nada a dizer, e têm diplomatas mentem aos jornalistas e acreditam na mentira algo a dizer porque escrevem. quando a leem. § 19
  • 20. Ficção O escritor no castelo alto ANTÔNIO XERXENESKY NORTE publica este conto inédito de Antônio Xerxenesky, autor do romance Areia nos dentes (Não Editora, 2008; Rocco, 2010) e um dos criadores da Não Editora. “O escritor no castelo alto” faz parte do livro de contos que o autor lançará em 2011 pela Editora Rocco. *** Para R. B. Para esconder o nervosismo, eu abria o livro, escancarava a brochura e enfiava o meu nariz entre as páginas. O cheiro de papel invadia meu sistema e me recordava de todas as horas prazerosas que passei jogado na poltrona lendo. É um pouco similar à culinária, quando passeando pela rua sentimos um cheiro de curry e nos lembramos de um almoço em um restau- rante indiano sem igual. Naquela época, quando era mesmo, 2005? Eu não sabia que, embora no futuro fosse migrar com rapidez para o universo do livro digital, sentiria falta para sempre do cheiro único que cada livro tem. Eu tentaria, na década seguinte, colocar até um es- guicho de perfume com cheiro de papel no leitor de e-books, apenas para me frustrar com o fato de que todos os livros, a partir de então, passariam a ter o mesmo cheiro. Que crime! Em que universo doente Thomas Pynchon teria o mesmo odor que Jane Austen? Mas claro, eu não sabia nada disso na época. Era 2005 e eu con- gelava do lado de fora do prédio de Juan Rodriguez, em Buenos Aires. Rodriguez era meu escritor favorito nessa idade. Eu con- tava 21 anos, tinha breves entradas no cabelo e recém estava no segundo ano de jornalismo, quando resolvi aproveitar aquela viagem a Buenos Aires com meus pais para tentar conseguir uma entrevista com ele. Após um telefonema difícil, durante o qual suei de vergonha pelo meu espanhol rudimentar, marquei
  • 21. um encontro na sua casa. E lá estava eu, no gelo das calles do livros. Juan diz que prefere não autografar. Eu peço por favor. bairro Retiro, com os ombros encarangados, esperando o por- Ele diz que eu sou jovem, e por isso ainda me emociono com teiro aparecer para me abrir a porta. esse tipo de bobagem. Ele, Juan Rodriguez, autor conhecido, despreza autógrafos, despreza lançamento de livros. Parece, no A arquitetura da cidade, repleta de estátuas de anjos dourados, fundo, também detestar escrever. assombrava. Um ônibus fantasma, de estado precário, vazio de almas, passava na ocasião. O frio invadia as frestas do casaco, e O elevador passou pelo oitavo andar. Enfiei a cara no livro de eu me perguntava se Buenos Aires era mesmo mais segura do Rodriguez para sentir o cheiro. Era inebriante. que Porto Alegre. Um catador de lixo amassou umas latinhas na esquina. O único café aberto empilhava as cadeiras de madeira Juan Rodriguez abre a porta. Depois de conversar amenidades, para sinalizar o fechamento das atividades. Mais adiante, na ave- sento no seu sofá, e ele pergunta, num repente, se eu escrevo. Eu nida 9 de Julio, tinha bares abertos. Onde eu estava, porém, a au- tiro da minha mochila estropiada um exemplar do meu livro de sência noturna imperava. Um anjo de falso ouro poderia descer contos, um fino volume com uma horrível capa roxa. No instan- do alto dos prédios decadentes, que algum dia foram chiques, e te em que puxo o livro, já me arrependo de mostrá-lo. Sei que, abrir uma bocarra lotada de dentes e me engolir. Ninguém veria mesmo estando em português, ele vai querer dar uma olhada, e nada. Não fazia ideia do motivo que levou Rodriguez a marcar o eu vou me envergonhar para sempre de ter mostrado para um nosso encontro para as 23 horas; ou ele queria posar de excêntri- gênio aquele amontoado de textos juvenis e mal trabalhados. Ele co, ou fazia parte de seus hábitos desregrados de escrita. olha a capa, o título, e sorri com o canto da boca. O clássico sor- riso amarelo daquele que, por dentro, gargalha de desprezo. Após uma eternidade, o porteiro me deixou entrar no prédio, e eu disse, não sem certa pompa, que o señor Rodriguez me O elevador passou pelo décimo segundo andar. aguardava. O porteiro respondeu: 21º andar. Já na entrada, a ca- lefação mostrava força, contrastando com o frio da rua, e eu tirei Eu toco na campainha e Juan Rodriguez não abre a porta. Será o casaco às pressas, para não subir com o rosto avermelhado. que ele tinha se esquecido da entrevista? Quando pisei no elevador, descobri que o 21º era o último an- O elevador passou pelo décimo quinto andar. dar do prédio. O elevador à moda antiga, de madeira, fechava manualmente com uma grade de ferro. Apertei o botão e ob- Juan Rodriguez abre a porta, e junto com ele estão Rodrigo servei a lentidão com que se movia. Fresán e Alan Pauls, dois dos melhores escritores argentinos contemporâneos. Eles me convidam para entrar e viramos a Juan Rodriguez abre a porta e eu sinto vinho em seu hálito. Ele noite bebendo tequila e discutindo se Bartleby é melhor do contorce o rosto, como se passasse por uma dor excruciante na que Moby Dick ou não. Monto uma amalucada entrevista com tentativa de me reconhecer, e então pergunta quem diabos sou os três e pego seus endereços. Fico de enviar para todos uma eu. Respondo meu nome, digo que sou estudante de jornalis- cópia, assim que for publicado, do romance que eu estava es- mo e que tinha marcado uma entrevista com ele. Rodriguez crevendo, uma história bizarra cheia de metalinguagem que se resmunga: “no me acuerdo” — e bate a porta na minha cara. passa no velho oeste e que, no fundo, era sobre meu pai. O elevador recém passou pelo terceiro andar e eu já sinto mi- O elevador passou pelo décimo oitavo andar, décimo nono, nhas mãos tremerem. Minha imaginação se tumultuava com a vigésimo, vigésimo primeiro. Saí dele e fiquei um tempo em possibilidade de um encontro horrível. Ela era tão vívida que silêncio no corredor escuro e vazio. Acendi a luz. O aparta- pude sentir o cheiro de álcool. mento 214 ficava à direita. Toquei a campainha e enfiei as mãos no bolso para fingir que a tremedeira era frio, e não nervosis- CAMILA DOMINGUES Juan Rodriguez abre a porta. Ele me convida para entrar. Está mo. Juan Rodriguez abre a porta. Ele diz: “Buenas noches”. Seu bem barbeado e parece recém saído do banho. Eu sento no seu rosto é um pouco diferente das fotos que coloca nas orelhas de sofá verde desbotado e ele me oferece café. Antes de começar a seus livros. As bochechas mais gordas, a calvície mais avança- entrevista, eu decido pedir um autógrafo em cada um dos seus da, os cabelos mais grisalhos. Eu respondo: “Buenas noches”. § 21
  • 22. livros • resenhas Quem escreverá com maior ou menor aceitação (inclusive naqueles sobre os quais pouco se fala, como a França e mesmo a Inglaterra); nossa história? 5. Reducionismo etiológico: as tentativas de explicação do an- Samuel D. Kassow tissemitismo nazista do Reich do entreguerras que o reduzem a determinado traço do judaísmo devem ser descartadas, vis- to que a literatura e o jornalismo da época demonstram como mais de um ponto do judaísmo era repudiado (veja-se o caso de Nietzsche, profundamente antissemita e antigermânico); Companhia das Letras 6. O desconhecimento de época: já passou o tempo (pelo me- 632 páginas nos entre as pessoas razoáveis) em que se argumentava que os R$ 62,50 crimes do Reich eram desconhecidos pela população, já que mi- lhares de evidências provam o contrário, desde as informações FELIPE PIMENTEL liberadas pela BBC ainda em 1943, o lançamento de O grande ditador (1940), de Charles Chaplin, as fugas em massa dos ju- Algumas vezes, ao ver um lançamento, livro ou filme, sobre deus mais abastados ainda na década de 1930 ou mesmo inúme- o nazismo, me dá certo cansaço. Dois motivos: primeiro, tem ros relatos de época colhidos posteriormente e hoje disponíveis; dias que desejo fingir que a vida é bela e não quero topar com isso; segundo, há muita leviandade no trato com o tema. 7. O endeusamento estadístico do nazismo: se nos damos o trabalho de ler o Mein Kampf, poderemos ver como Hitler O primeiro motivo, de foro íntimo, não merece dissertação, ao acreditava ser o Estado o maior inimigo do homem, e aí dei- passo que o segundo deve ser explicado. Após 65 anos do fim xaríamos de atrelar excesso de Estado com fascismo, visto que da Segunda Guerra Mundial e de estudos sobre tal, qualquer sua proposta central era construir um povo eticamente perfei- estudioso minimamente sério do nazismo precisa ter claros os to (segundo seus próprios parâmetros, razoavelmente compar- seguintes parâmetros: tilhados com uma parcela do povo alemão — aquela que lhe apoiou) que, por conseguinte, não precisaria de um Estado, 1. Fracasso das teses personalistas: nenhuma loucura indivi- mas a única forma de fazê-lo seria por meio do Estado; dual dos líderes da Alemanha é capaz de ser a mola propulsora do evento, muito menos da manipulação de toda uma nação, 8. O darwinismo grotesco do nazismo: ainda no Mein Kampf, pois nem as massas são um objeto amorfo, nem aquela massa podemos ver como a derrota na guerra (ou mesmo episódios deixou de desejar o fascismo (Reich foi o primeiro a dizê-lo); famosos como a vitória dos atletas negros nas Olimpíadas de 1936, em Munique) não representaria para os nazistas a ratifi- 2. Espetacularização do evento: tomado como evento extraordi- cação de uma espécie de “inferioridade” do seu povo, visto que nário, o nazismo é pouco compreendido e também pouco com- a ideia de superioridade da raça ariana está sempre atrelada às batido, visto que seu modo de funcionamento — a suposição de capacidades intelectuais; que o outro deve ser eliminado, tanto física quanto subjetivamen- te — é um mecanismo corriqueiro (e o fato de existirem estra- 9. O ponto central do Mein kampf: a sedução que provoca em tégias industriais e instituições para tal é mais cotidiano ainda); muitas pessoas esse livro, supondo-se que nele há coisas extraor- dinariamente bizarras, deve ser descartada, pois sua ideia central é 3. Revisionismo: qualquer interpretação que procure mitigar a proposta de construção de uma nação ordenada, composta por os efeitos do desastre ou reescrever o nazismo deve ser despre- cidadãos respeitadores das leis e trabalhadores em prol da nação, zada, porque está posto que os ataques às etnias perseguidas, todos absolutos exemplos morais. No estágio inicial, as institui- iniciados em 1935 (Leis de Nuremberg), estenderam-se até a ções de vigilância, legislação e aplicação de pena seriam necessá- Endschloss (solução final), tomada no inverno de 1942 e regis- rias, mas, ao longo do tempo, seriam dissolvidas. Ou seja, a ideia é trada no Protocolo de Wannsee; simples e, pode-se dizer, comum, o difícil é a responsabilização de determinado grupo e a resolução com os supostos “não exemplos”. 4. Nazismo às avessas: a análise que atrela nazismo e germanis- mo repete o funcionamento básico do próprio nazismo, sobre- Estes são parâmetros mínimos de debate sobre o nazismo. Sem tudo porque o fascismo ocorreu em muitos países da Europa, eles, rumamos para o lado errado na interpretação. Com eles, 22
  • 23. Destruição do Gueto de Varsóvia (1943) podemos, acima de tudo, direcionar nossa atenção, nosso es- que seu povo passava, agregando intelectuais para discutirem o tudo e nossa pesquisa sobre o tema. Mas então, o que restou? evento e jornalistas para entrevistarem as pessoas comuns, com o intento de postergar à humanidade o terror que passavam. Restou pouca interpretação e muito arquivamento. O nazismo e Os documentos foram enterrados em doze caixas de ferro no suas bases estão suficientemente explicados. Do ponto de vista dos gueto. Ringelblum acabou morto no levante. seus fundamentos, devemos estar preocupados com os neonazis- mos. O que nos deve motivar a ler e pesquisar agora são os relatos, Hersch Wasser, economista de formação, sobreviveu às mais in- os documentos e os arquivos que poderão devolver às vítimas do tensas perseguições: quando da invasão do Reich, fugiu de Lodz, nazismo — que sofreram a perversidade de se verem despidas de no centro da Polônia, em um trem em que soldados alemães sua humanidade inclusive na hora da morte — a sua subjetivida- espancavam os passageiros, e chegou a Varsóvia, de onde foi de e sua singularidade no mundo. Os documentos que poderão enviado ao gueto. Posteriormente, quando do levante do gueto, descrever a luta, muitas vezes inglória, daqueles que combateram acabou preso e mandado para Treblinka, quando saltou do trem o nazismo até o último minuto e que servirão de exemplo e polí- que o levava para a morte. Conseguiu retornar para Varsóvia, tica para seus descendentes, reais ou simbólicos. Os arquivos que tendo seu esconderijo descoberto pelos alemães, e salvou-se de darão um nome para o corpo da vala coletiva, os arquivos que uma chacina. Wasser sobreviveu à guerra, retornou em 1946 e denunciarão os criminosos, os arquivos que mostrarão a desuma- comunicou onde estavam as caixas com o arquivo. nidade. Os arquivos — que dão vida àquelas retiradas. Rachel Auerbach, judia de participação política ativa no É nesse quadro que tomo com satisfação a obra Quem escreverá pré-guerra, escrevia críticas literárias em revistas iídiches. nossa história?, de Samuel D. Kassow, professor de História no Durante a guerra, após escapar dezenas de vezes da morte, Trinity College, em Connecticut (EUA). A história do livro é conseguiu fugir para o lado ariano, onde clandestinamente, mágica. carregando dinheiro e documentos dentro de uma cesta de frutas, registrou os horrores nazistas. Sobrevivente à guerra, Emanuel Ringelblum, historiador de origem judia e polonês de dedicou-se à defesa do patrimônio histórico judaico. nascimento, esteve envolvido com todas as querelas políticas do judaísmo do início do século 20, participou do Poalei Sion Eles são três dos milhares de atores dessa história. Não pode- de esquerda (partido sionista polaco) e do Alleynhilf (a orga- mos dizer “os mais importantes”, “os mais ativistas”. Outros nização de auxílio aos judeus no gueto de Varsóvia), foi preso lutaram, outros fugiram. Alguns cuidaram de crianças, alguns quando da invasão da Polônia pelo Reich em setembro de 1939 doaram dinheiro. Vários serviram comida para os pobres, vá- e enviado para o Gueto de Varsóvia. Ele organizou a forma- rios morreram. A história do arquivo, o Oyneg Shabes, é a his- ção de um arquivo (o Oyneg Shabes) para documentar tudo o tória de todos esses. 23
  • 24. livros • resenhas gueto, em um alto cargo no Aleynhilf. E é durante o gueto que Ringelblum organiza o Oyneg Shabes, reunindo dezenas de pes- soas para documentar os horrores que passavam. Neste ponto, o livro (por conta da própria situação histórica) torna-se mais denso afetivamente, pois passamos a ver o esforço sobre-huma- no de um povo: são milhares de pequenas ações, desde doações em dinheiro e facilitações de fuga até a organização de uma sopa comunitária para alimentar os famintos. O Judenrat, organismo nazista responsável pela questão judaica, iniciou as parówki (de- sinfecções), as deportações, os extermínios. Aí, milhares de rela- tos de época, absolutamente terríveis, ganham corpo. São relatos de ex-operários, de intelectuais, de mães de família: (falando sobre seu estômago) ele não pensa. Ele grita, é de matar! Ele exige, ele me provoca. Por que você está gritando assim? Porque eu quero. Porque eu, seu estômago, estou com fome. Você entende isso agora? Quem está falando com você assim? Você é dois. Arke. É uma mentira. Uma pose. Não seja convencido. Esse tipo de divisão valia quando a pessoa estava saciada. Aí sim, era possível dizer: duas pessoas estão lutando dentro de mim, e podia se fazer uma cara dramática e marti- rizada. É, esse tipo de coisa se encontra muito na literatura. Samuel D. Kassow Mas hoje? Não diga bobagem — é você e seu estômago. É seu estômago e você. É noventa por cento do seu estômago e um O livro de Kassow é praticamente uma micro-história (no sen- pouquinho você. Um pequeno resto, um resto insignificante tido teórico da escola historiográfica). A partir da trajetória de de Arke que existia antes (182). Emanuel Ringelblum, idealizador do arquivo, podemos acom- panhar toda a história dos judeus do leste europeu (majorita- Daí em diante, o livro praticamente deixa de ser o que pare- riamente da Polônia) desde o fim do século 19 até a Segunda cia, um romance, um livro histórico, para assumir a dimensão Guerra Mundial. Podemos acompanhar as querelas teóricas de documento, de arquivo. É como se fosse o próprio Oyneg que o movimento sionista encontrou, os debates entre secu- Shabes: relatos e mais relatos, entrevistas, crônicas, diários e larização e sacralização da luta do povo judaico contra a Di- biografias de pessoas fadadas ao martírio que, através de Rin- áspora, a formação dos partidos políticos no tenso período do gelblum, e de Kassow, adquirem humanidade e a única eterni- entreguerras, a discussão sobre os traços culturais judaicos e a dade possível, um alívio a seu temor maior, não mais a morte, adaptação ou não às nações pertencentes, a defesa do iídiche visto que certa, mas um temor outro, que este texto de Lewin, ou do hebraico frente às línguas nacionais, a literatura e a arte preso no gueto, apresenta: judaica, os pogroms, as mortes. Como é terrível que uma geração inteira — milhões de judeus No decorrer desses impasses, Ringelblum trabalhou ativamen- — tenha de súbito se transformado numa comunidade de te pela causa judaica: aliou-se ao Poalei Sion de esquerda, par- ‘mártires’, que têm de morrer de maneira tão cruel, degradante tido sionista cujo grande líder Ber Borochov defendia o atre- e dolorosa e passar pelos tormentos do inferno antes de ir para lamento de marxismo e sionismo; participou da fundação do o cadafalso. Terra, terra, não recubra nosso sangue e não silen- Instituto Científico Iídiche (o Yivo); escreveu em dezenas de cie, para que nosso sangue grite até o final dos tempos e clame revistas iídiches; organizou congressos sobre sionismo. Mas foi por vingança por este crime sem paralelo na nossa história e a guerra que lhe exigiu mais. em toda a história da humanidade (218). Quando da invasão do Reich, Ringelblum não abandonou Var- Cumpre dizer, refutando Adorno e seu dito “não se faz poe- sóvia, tampouco o gueto, e iniciou o seu trabalho de assistente sia depois de Auschwitz”, que a própria não deixou de ser uma social: primeiramente, no Joint Distribution Committee (JDC), arma, ainda que solitária e ineficaz no plano efetivo, de luta. Ao a principal entidade assistencial judaica na Polônia, e depois no menos de luta contra a finitude e contra o corpo que agoniza. § 24
  • 25. Por 10 anos, Louis Beegles manteve o hábito de passear no Parque Municipal de Urbânia, olhando a esmo os mendigos-poetas de chapéu coco no chão O VIAJANTE com uma única nota de dinheiro dentro, as suaves ciclistas de shorts minúsculos e os namorados que exibiam os vários estágios do romantismo. Um dia, Beegles cruzou com um estranho na avenida central do parque e, ao passar por ele, estava enxergando pelos olhos do desconhecido. Assustado, viu que agora vestia outras roupas, segurava uma pasta que antes não possuía e sentia dor nos pés pelos sapatos apertados. Duas horas depois, ainda atônito, Por meses, descobriu-se em seu Beegles voltava próprio corpo, jogado ao parque aos sobre o cascalho no domingos, e em outro extremo do todos eles, sem parque. Suas pernas explicação ou Assustado um dia decidiu haviam se deslocado lógica, passava não ir ao parque, como sem ele e caíra. duas horas no sempre, e sim a uma praça corpo de outra à beira do rio Fluvium. pessoa. Em todas Toda a tarde, foi assaltado essas ocasiões, pela impressão angustiada acordava de que estava perdendo machucado pelos algo, ou que precisava acidentes que desesperadamente seu corpo estar em outra parte. sofria sem ele. Até que aconteceu. Piscou os olhos andando e, ao abri-los outra vez, estava sentado em um ônibus em direção à zona Leste de Urbânia. Ao olhar seu relógio, notou, abismado, que duas horas de sua vida haviam se passado sem que ele tivesse percebido. 25
  • 26. livros • resenhas Binladenistão A segunda razão, que torna o livro mais interessante, é a questão da educação. Binladenistão analisa como uma grande quanti- Luiz Antônio Araujo dade de jovens rebeldes do norte do Paquistão e do Afeganistão vem sendo produzida pelas milhares de madrassas espalhadas pelo território e como elas acabam funcionando como unida- des de propaganda e de ensino da pedagogia Talibã. Araujo, em sua permanência no Paquistão, conversa com alunos e pro- fessores dessas instituições para explicitar o que pensam esses adolescentes (o professor da escola que o jornalista visita tem Iluminuras 304 páginas apenas 19 anos). Ele encontra a perpetuação do antiamerica- R$ 47 nismo e do ensino altamente religioso e o forjamento de pe- quenos radicais que, por vezes, são dispensados das aulas para participar de manifestações e, não raramente, são enviados à GABRIEL POZZOBOM frente de combate para lutar ao lado dos Talibãs. Há que se defender Binladenistão de seu próprio título. O Nas universidades, Araujo ainda verifica, mesmo nas inter- nome do livro ilude-nos. A palavra “Binladenistão”, que para pretações literárias de um estudante de uma universidade lo- o autor denomina a região que compreende partes do Afe- cal, os resultados dessa pedagogia. Diz o aluno: “Deus criou- ganistão, do Paquistão e de outros países asiáticos e africa- -nos com um objetivo particular. O principal é que o homem nos onde constantemente a reputação de Bin Laden é vista de deve lutar contra o mal que existe em sua própria consciência. modo positivo, causa uma má primeira impressão e soa car- Esse é o sentido de Hamlet, de Shakespeare. Há duas coisas regada de preconceitos generalistas ocidentais. Seu peso ne- diferentes no homem, e ele se divide entre o que deve fazer e gativo contrasta intensamente com a análise de Luiz Antônio o que não deve fazer. A luta interior para permanecer no ca- Araujo, autor do título lançado pela Iluminuras — um ótimo minho correto é a jihad akbar (grande esforço, literalmente)”. exame de um repórter brasileiro sobre os conflitos na região do Afeganistão, do Paquistão e de seus estados fronteiriços. Para muitos grupos, sejam eles universitários ou populares, o modelo exemplar da jihad acaba concentrando-se na figura O ponto de partida da obra se dá quando o autor viaja a Isla- de Osama Bin Laden. Araujo apresenta um cenário em que mabad a serviço do jornal Zero Hora e permanece 29 dias em o líder da Al Qaeda assume o papel de herói refugiado, oni- território árabe. Porém, Araujo não se dedica inteiramente a presente na região, uma espécie de Che Guevara das Arábias relatar sua experiência; opta por um caminho mais analítico, cujas imagens e mensagens são vendidas nas ruas em formato extraindo de suas observações os temas sobre os quais discor- de livros, camisetas, fitas cassete e pôsteres, ao lado de outros re nas 264 páginas do volume. E apresenta teses relativamente ídolos como David Beckham e as estrelas de Bollywood. novas aos leitores brasileiros, indicando ao menos duas razões essenciais para a insurgência radical. Em contrapartida, o autor também apresenta Osama como uma espécie de gerente com amplos recursos financeiros, mas A primeira é bastante óbvia e decorre dos ataques pesados (e sem força retórica ou grande espírito de liderança: “Jovem e muitas vezes às cegas) das forças norte-americanas. Em uma tímido, Bin Laden (...) mal conseguia se expressar em público. das cenas da obra, o repórter brasileiro visita alguns hospitais Certa vez, incentivado a se dirigir aos hóspedes de um alber- na fronteira com o Afeganistão, onde um médico afirma: “Nas gue, falou em cavalos”. O texto é incisivo em desmistificar a fi- questões de política interna, as opiniões sempre variam. Alguns gura do líder da Al Qaeda e apresentá-la como a de um títere de apoiam o Talibã, outros querem democracia. Mas, depois do mestres como Abdullah Yusuf Azzam (seu professor e mentor) início dos bombardeios, 100% estão contra os Estados Unidos”. e Ayman al-Zawahiri (o número 2 da Al Qaeda). Um jovem afegão internado no mesmo hospital, perguntado sobre o que faria ao sair dali, responde que quer “voltar ao Afe- Nesse sentido, Binladenistão é, de certa forma, como que um ganistão e lutar contra a América”. Outro, mais jovem, deitado irmão mais novo de O vulto das torres: a Al Qaeda e o caminho em uma cama entre homens, mulheres e crianças com queima- até o 11/9, de Lawrence Wright, vencedor nos Estados Unidos duras e fraturas pelo corpo, revela que só deseja retornar a sua do Pulitzer de não ficção em 2007. Ambos os títulos perfilam madrassa (modelo de escola religiosa não raramente mantida Osama de uma forma bastante semelhante. Além disso, carac- por líderes das alas mais radicais do Islã) para estudar o Corão. terizam os outros protagonistas de maneira clara e educativa, 26
  • 27. FOTOS: LUIZ ANTÔNIO ARAUJO identificando sua posição dentro do cenário político regional e atribuindo sua importância no quadro geral. O resultado não é de todo desequilibrado, dado que Binladenistão é consi- deravelmente mais breve do que o trabalho premiado. Por ser mais recente, o livro de Araujo tenta explicar os moti- vos pelos quais a guerra do Afeganistão não se esgotou e difi- cilmente se esgotará na era Obama. Sejam os reflexos da inca- pacidade de Bush em administrar a guerra, a política externa e a imagem dos Estados Unidos, seja o atoleiro de corrupção que assola o governo do Afeganistão, sejam os atritos e a falta de apoio dos países da Ásia Central aos ocupantes, Araujo elen- ca uma sucessão de razões para se desiludir, mesmo em longo prazo, de qualquer perspectiva de fim para a guerra, ainda que tenham se passado quase nove anos de invasão e que o atual governo tenha feito grandes promessas de mudanças. Na narrativa de Binladenistão, o início transcorre na fronteira en- tre Afeganistão e Paquistão, mesmo local onde O vulto das torres se encerra, numa cena em que alguém que se parece muito com Za- wahiri atravessa a cavalo com seus homens um vilarejo e desapa- rece nas montanhas. Quatro anos mais tarde, o retrato é o mesmo. O que Araujo relata é que não houve final nessa história — no fim das contas, durante todo esse tempo, Zawahiri, Bin Laden e seus homens apenas andaram em voltas pelo deserto em seus cavalos. § 27
  • 28. livros • resenhas detalhe a delicada combinação de elementos das suas Frases só- Salas e abismos lidas: uma mesa larga que corta pelo meio a verticalidade do es- paço; sobre a mesa, um maço de folhas de papel muito branco; Waltercio Caldas sobre o papel, taças de cristal e alfinetes; carimbados, entre as taças e os alfinetes, termos como “sublime” e “súbito”, ou afo- rismos como “Ver não é. Ver é onde”. Terminada a projeção, Waltercio abre sua palestra com uma nota de desaprovação. Ele nunca assistira ao vídeo e parece incomodado — não com o curta em si ou com a ideia de uma homenagem. O que ele con- dena é a forma como a instalação, criada por ele com tanto zelo, Cosac Naify ousa traí-lo tão despudoradamente: “As imagens se entregam à 240 páginas câmera de forma muito fácil”. R$ 120 A bronca do artista, à primeira vista entre o agressivo e o mal- EDUARDO VERAS -humorado, diz respeito, antes, ao entendimento que ele tem sobre a apresentação de obras de arte e a nossa percepção sobre Em visita a Porto Alegre, palestrante em um seminário sobre o elas. Para determinados artistas e pesquisadores, será sempre tema sempre desconcertante do tempo e nossa relação com ele, problemática (por vezes, saborosamente problemática) a dife- o carioca Waltercio Caldas (1946) tem sua fala precedida pela rença entre o objeto artístico, ele próprio, e as reproduções que exibição de um vídeo – é uma homenagem ao artista plástico, a gente faz dele, sejam elas em vídeos, fotografias ou catálogos. providenciada pelos organizadores do evento. Trata-se da do- Esse preâmbulo todo vem a propósito de Salas e abismos, ca- cumentação de uma exposição que Waltercio realizara pouco tálogo de dimensões literalmente vastas (28,5 por 37 centíme- antes, no Torreão, na capital gaúcha. A câmera acompanha no tros), que acaba de ser lançado pela Cosac Naify. Ping-ping, Mostra do Redescobrimento, Fundação Bienal de São Paulo (2000) 28
  • 29. Uma sala para Velázques (2000) Caprichada edição bilíngue, com capa dura e fotografias colori- das de página inteira, o livro documenta a exposição que Wal- tercio apresentou entre outubro de 2009 e janeiro de 2010 no Museu Vale, em Vila Velha, Espírito Santo. A mostra combina- va, em uma sucessão de salas, dez diferentes instalações de Wal- tercio, algumas já exibidas em outras circunstâncias, sendo duas delas até então inéditas no Brasil e uma terceira inédita em qual- quer canto, criada especialmente para o museu capixaba (im- portante empreitada cultural da mineradora Vale do Rio Doce). Não é, portanto, um livro de artista este Salas e abismos — ao menos, não no sentido corrente de “livro de artista”, aquele que constitui um gênero específico e que, inclusive, é caríssimo a Waltercio (em 2002, em Porto Alegre, na mesma época das Frases sólidas do Torreão, ele trouxe a mostra Livros ao Margs, Quarto amarelo, Centro Galego de Arte Contemporânea, Espanha (2008) em uma espécie de retrospectiva de suas inventivas concepções para o suporte “livro”). Salas e abismos é, de fato e antes de tudo, em Waltercio um corte seco, preciso, afiado. Ele é o antibarroco um catálogo, uma evocação de uma exposição já encerrada. por excelência. Quase tudo na sua produção tende ao controle, à depuração, sobretudo à elegância. Em pequenos desenhos, Reproduz uma a uma as instalações concebidas pelo artista. em grandes esculturas ou na sucessão de salas abismais, o ri- Talvez fique devendo a sensação de “vertigem” que o crítico gor se presta tanto a investigações formais quanto conceituais. Paulo Venâncio Filho refere no texto de abertura. Conta ele Waltercio formula jogos para o olhar, propõe enigmas neces- que, no Museu Vale, no deslocamento de uma sala para a outra, sariamente insolúveis, incompletos. Quando a gente acredita o visitante experimentava, além de uma rara sintonia entre re- que matou a charada, quando descobre que ela é sobre isso, flexão e percepção, uma espécie de estranhamento de contato. percebe-se um aquilo. Uma sala, antes de preparar o olhar para a seguinte, tratava de oferecer uma surpresa: “a cada umbral um abismo”. No livro, Claro que esses mistérios são muito mais vivos quando esta- que começa com o texto de Paulo Venâncio, avança com dois mos, de fato, diante deles. O catálogo, por mais interessantes ensaios de Paulo Sérgio Duarte (ensaios já antigos que ele fez que sejam os textos, por mais fiéis que sejam as reproduções questão de revisar e prefaciar para a ocasião) e se encerra com fotográficas, por mais bem acabadas que elas nos pareçam, se- um estudo crítico de Sônia Salzstein, o leitor depara, se não rão sempre leituras parciais e provisórias, evocações de uma com a tontura, ao menos com uma dimensão enigmática. possibilidade real. O curioso é que, no caso, isso talvez só ve- nha sublinhar uma dimensão que já estava na obra. Se a obra Há alguns elogios indissociáveis dessa obra. Poucos artistas é sobre os enganos, os fracassos e as surpresas do olhar, o livro contemporâneos terão um trabalho tão rigoroso. Há sempre (mesmo nos devendo a vertigem) só confirma tudo isso. § 29
  • 30. livros • resenhas Alguma poesia Uma letra que foi impressa no lugar errado, uma palavra re- petida, um arrependimento — tudo está lá, denunciado pela O livro em seu tempo caneta do escritor. Os herdeiros há tempos pretendiam lançar uma edição fac- Carlos Drummond de Andrade -similar deste volume, e o intento se concretizou a partir do professor de Literatura Eucanaã Ferraz, que planejava come- Organização de Eucanaã Ferraz morar os 80 anos da obra com alguma atividade no Instituto Moreira Salles (IMS), onde organiza a agenda literária. O re- sultado dessa combinação de intenções é um belíssimo volume que, no presente, preserva o passado e projeta para o futuro o legado de Drummond. Instituto Moreira Salles Alguma poesia — O livro em seu tempo, lançamento do IMS, 392 páginas apresenta um fac-símile do exemplar que Drummond guarda- R$ 50 va. Além disso, inclui cartas de amigos e críticos por ocasião do recebimento do livro e uma compilação de resenhas e artigos publicados pelos jornais entre 1930 e 1931. Antecede a repro- VITOR NECCHI dução do original um texto assinado por Eucanaã, que traça o percurso de Drummond de 1924 até maio de 1930. Alguma Os netos de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), Pe- poesia — dedicado “a Mario de Andrade, meu amigo” — já nas dro Augusto e Luís Maurício, preservam com alento o exem- primeiras semanas de circulação revelou-se peça central da po- plar que o avô mantinha do primeiro livro que lançou, Alguma esia brasileira, objeto de polêmicas, elogios e críticas severas. poesia, em maio de 1930. As páginas amareladas guardam na superfície, além das nódoas impressas pelo tempo, as anota- As primeiras obras de um autor por vezes podem expressar ções que o poeta fez para guiar futuras edições da sua estreia. imaturidade e acabam deixadas de lado, como a sublimar um 30
  • 31. arroubo literário. Não é o caso de Drummond. O poema abre- -alas de Alguma poesia já serve para evidenciar o quanto esse livro mantém o vigor no conjunto dos títulos do poeta. Está lá, na página 9, o Poema de sete faces: “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! Ser gau- che na vida”. Mais adiante, na 59, surge o mais do que famoso No meio do caminho, que durante décadas, desde o lançamen- to, atiçou conservadores: “No meio do caminho tinha uma pe- dra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra”. O organizador lembra que esses versos, de maneira simultânea, cutucaram os beletristas e foram tomados “como divisa pelos defensores da ousadia modernista”. E o tempo se encarregou de elucidar quem estava certo, “já que o poema se sustenta ínte- gro, perturbador, belo e rigoroso”. Por ser novo, muito novo, o lançamento do IMS ainda não tem o odor das páginas antigas que evoca. Mas enquanto a poste- ridade lentamente age, pode-se enveredar no passado por ata- lhos revelados pelas fotos, pelas reproduções ou ainda pelas duas fitas de cetim laranja que, tal qual no original, estão perfi- ladas à espera dos leitores. § O SEGREDO É Valorize sua imagem. Divulgue ou documente seu trabalho com uma empresa profissional, formada por fo- MOSTRAR-SE Valorize sua imagem tógrafos especializados no registro de eventos empresariais e sociais. www.factualfotos.com (51) 9284-2469 / (51) 9994-7411 31 Contrate profissionais especializados para registrar seu evento
  • 32. jornalismo Celito De Grandi transformou em livro um dos mais rumorosos casos da crônica policial Um crime que diagnostica a sociedade Livro inédito de Celito De Grandi recupera o Caso Kliemann e elabora conclusões que a polícia não obteve por causa da política dos anos 1960 ANTONIO HOHLFELDT O Rio Grande do Sul, durante muito tempo, teve a pretensão de Nos últimos anos, como que a mostrar que não somos assim que seus políticos eram homens sérios e que muitos dos escân- tão “certinhos”, têm ocorrido escândalos na Assembleia Legis- dalos denunciados no centro do país jamais aconteceriam no lativa; acusações contra os Executivos estadual e da Capital e estado. Evidentemente, isso nada tinha a ver com a realidade. alguns assassinatos misteriosos, o mais recente o de Eliseu San- Basta revisar a história. A gente não precisa nem relembrar as tos, ex-secretário de Saúde de Porto Alegre, crime ocorrido em degolas da Revolução de 1893. Basta recordar a política de Bor- fevereiro deste ano e que a polícia esforçou-se por dizer que era ges de Medeiros, a figura do senador Pinheiro Machado (que apenas uma tentativa de assalto, mas que o Ministério Público terminaria assassinado) e, mais recentemente, é claro, as acusa- acabou evidenciando ser vingança e execução. ções que cercaram Getúlio Vargas, sobretudo no seu segundo mandato, e que culminariam com seu suicídio em 1954. Novidade no nosso front político? De forma alguma. Nem no front político nem na realidade sul-riograndense. Em dezem- Mas os gaúchos gostam de esquecer tudo isso para altear a voz bro de 2008, tivemos o assassinato do presidente do Sindicato e dizer que os políticos sul-riograndenses são diferentes dos Médico, Marco Antonio Becker, e anteriormente, em junho de demais. Aliás, não apenas em relação à política adoramos dizer 1988, outro envolvendo o radialista e então deputado estadual que somos diferentes — o que nada tem a ver com a realidade. José Antonio Daudt e seu colega de Legislativo Antônio De- 32
  • 33. xheimer, cuja esposa teria um “caso” com o radialista. Uma Na ocasião, Celito acompanhou o caso enquanto jornalista. Fi- leitura mais atenta dos autos do processo pode indicar outros cou, ao longo desses anos todos, ruminando a história, insatis- fatores, entre eles a condição homossexual de Daudt. Certa- feito com o encaminhamento dos acontecimentos. O resultado mente, o machismo sul-riograndense ainda vai demorar para de um trabalho minucioso, paciencioso, responsável e abso- retomar e elucidar o caso. lutamente inovador, no que se refere às conclusões e a alguns dados apresentados, chegará nas próximas semanas aos balcões Apesar de tudo, ao menos um desses episódios, lá da década de das livrarias de todo o país. 1960, parece estar chegando ao fim. Trata-se do chamado Caso Kliemann, que envolveu o então deputado estadual Euclydes O trabalho de Celito De Grandi é o de um verdadeiro repórter Kliemann, que representava a comunidade de Santa Cruz do vinculado ao jornalismo investigativo. Ele refaz todo o con- Sul, e sua esposa, Margit, brutalmente assassinada em 20 de junto de episódios, preocupa-se com a contextualização da junho de 1962. O jornal Última Hora, muito especialmente, época, especialmente a política, e, por isso mesmo, mais do esbanjou páginas e manchetes, ao longo de praticamente um que recuperar os dados do processo, reúne material suficien- ano, sempre buscando responsabilizar o deputado pelo crime. te que lhe permite passar a interpretar o que descobre, che- Quase um ano depois, Kliemann não apenas havia se reelegido gando a resultados que, muito provavelmente, todo o aparato deputado quanto gradualmente buscava reequilibrar sua vida, policial na época poderia também ter atingido, não fosse a sem que nenhuma acusação fosse comprovada, apesar de todos interferência político-partidária que acabou por atrapalhar as os esforços do delegado de polícia que então comandava o caso investigações, proteger o criminoso e, de certo modo, causar a e que teimava na culpabilidade do político. morte do próprio deputado que, ainda hoje, para aqueles que viveram os episódios, continua sendo provavelmente o prin- Foi então que outra desgraça se abateu sobre a família: Klie- cipal suspeito. mann, depois de um pronunciamento numa emissora de rádio da comunidade de Santa Cruz do Sul, mal deixara o microfone Muitos jornalistas travestiram-se de investigadores policiais. quando passou a ser atacado por um desafeto político local, ve- Outros criaram, literalmente, personagens e hipóteses variadas reador de partido de oposição. Verbalizada a acusação do assas- e contraditórias para explicar o crime. Celito chegou a entrevis- sinato contra o deputado, ele retorna ao estúdio da emissora, tar o delegado responsável pelo caso na época, Júlio de Souza onde se encontrava o acusador, e invade o estúdio. O outro saca Moraes. E cobriu, em nome do jornal em que trabalhava, o jul- de um revólver e com tiro certeiro mata o deputado, fugindo gamento do assassino do deputado, ocorrido em Santa Cruz do imediatamente para escapar ao linchamento provável e à prisão. Sul, com enorme comoção pública. Tudo isso relembrado, para quem esteja distante temporal Por tudo isso, Celito continuava incomodado com o caso. A e espacialmente dos acontecimentos, pode parecer um bom partir do início de 2006, resolveu tomar iniciativas, visando es- enredo de romance policial, mas, na verdade, não o é. E quem crever um livro a respeito. O maior desafio, contudo, não era retomou este caso, ocorrido exatamente a 20 de junho de apenas buscar — e encontrar — alguma outra perspectiva que 1962, foi um jornalista experimentado, que dirigiu um peri- explicasse o que ocorrera naquele distante 1962. Era conseguir ódico como o Diário de Notícias e, mais recentemente, res- falar com aquelas que, na ocasião, mais sofreram com a suces- pondeu pela articulação da Comunicação Social do Palácio são de episódios trágicos e que, por suas próprias condições, Piratini, durante mandato do ex-governador Germano Rigot- haviam se distanciado do assunto e jamais se manifestado so- to. Trata-se de Celito De Grandi, que traz a experiência do bre ele: as três filhas do casal, que, além de perderem a mãe e se profissional da informação desde muito jovem e que também verem envolvidas no noticiário escandaloso da época, tiveram atuou no jornal A Razão, de Santa Maria, um dos mais conhe- de enfrentar as acusações contra o pai e, mais tarde, o próprio cidos no interior do estado. assassinato do segundo membro da família. 33
  • 34. jornalismo Repórter, costuma-se dizer, precisa ter “faro” para a notícia, ter motivos que levaram a seu acobertamento, resultando, de certo sorte de estar onde vai acontecer alguma coisa, mas também modo, na própria morte do deputado. Está tudo ali, com cuida- precisa de bons relacionamentos. Celito De Grandi não apenas do, equilíbrio, documentação. tinha “faro” como também persistência. E relações. Foi assim que, graças a um amigo comum, chegou à primeira das três ir- O mais importante de todo o livro é o que nele se encontra vir- mãs. Contatos cuidadosos, esboço de ações, recepção de alguns tualmente disposto: o quanto a política partidária e os aconteci- primeiros documentos, um manuscrito do pai com “aponta- mentos de março de 1964 colaboraram para que não se chegasse mentos” sobre as horas que antecederam a morte de Margit. O a nenhum desfecho efetivo e, na verdade, nunca se alcançasse o caderno fora redigido sob a orientação do pai, João Nicolau, para assassino e, por consequência, nunca se tivesse concluído efeti- facilitar a apresentação de álibi do deputado Euclydes Kliemann. vamente o caso. O golpe de 1964 radicalizou a situação político- Celito De Grandi começou, então, a parte exaustiva: consultas -partidária do estado e, por isso, ganha relevância o fato de que aos arquivos do Museu de Comunicação Social Hipólito José da foi alguém da oposição ao regime militar então recém-implan- Costa; viagens a Santa Cruz do Sul para consultar o jornal Gaze- tado, Pedro Simon, quem aceitou a defesa de Karan Menezes, o ta do Sul, conversar com gente do lugar e, sobretudo — o mais assassino de Kliemann, alcançando que o tribunal do júri o con- difícil —, tentar juntar as diferentes pontas de toda a história. denasse a um ano e seis meses de detenção, pena por ele então já cumprida, para comoção de toda a comunidade: os familiares e O livro é o relato do caso, partidários de Karan entendiam ter sido feita a justiça; quanto aos familiares e partidários de Kliemann, entendia-se que o assassino recuperado minuciosamente, havia sido inocentado. Assim, não causou espanto que houvesse novo julgamento. O juiz de ambos os julgamentos foi Nathaniel mas também uma espécie de Marques Guimarães, que, mais tarde, aposentado, tornar-se-ia um dos principais aquarelistas do Rio Grande do Sul, com obras hiperescrita, em que o repórter de rara sensibilidade no registro da paisagem natural e do patri- revela os próprios procedimentos mônio histórico. Irmão do escritor e jornalista Josué Guimarães, depois do caso foi transferido para Porto Alegre, promovido a e métodos de trabalho desembargador e, em seguida, aposentou-se. Para o segundo jul- gamento, chamaram Clóvis Stenzel, professor de Direito, psicólo- Bom que, em todo esse período, aquela primeira filha contata- go e político, que ocuparia o espaço da acusação. Karan Menezes da, Cristina, apoiou-o e o acompanhou em boa parte das pes- terminaria condenado a pouco mais de seis anos de detenção, quisas. Depois foi a vez de Virgínia, que vive na cidade francesa vindo depois de libertado a mudar-se da cidade. de Montpellier e que foi buscada por e-mail. Suzana, a irmã mais velha, já havia sido entrevistada com a ajuda de Cristina. Hoje, o que remanesce de tudo isso? Celito De Grandi mostra que, já em 1976, era um desordenado rol de depoimentos, cartas O que o leitor vai encontrar no livro de Celito De Grandi é, em anônimas, fotografias, envelopes dispersos, anotações esparsas... primeiro lugar, uma bela lição de jornalismo. E, por consequên- enfim, um amontoado de papéis, segundo o jornalista André Pe- cia, de responsabilidade ética e de respeito moral pelas pessoas reira. Mas o livro de Celito De Grandi, na verdade, volta a movi- envolvidas. Tudo foi checado cuidadosamente. Cada palavra foi mentar os indícios da dupla morte e da tragédia familiar. medida e ponderada, no sentido de não ser apenas fiel ao acon- tecimento, mas de respeitar a memória dos envolvidos e o pre- O jornalista avança com cuidado em todos os seus movimen- sente dos remanescentes, especialmente as três irmãs. Por isso tos. Sobretudo, não deixa nenhum dado esparso, nenhuma mesmo, o livro é o relato do caso, recuperado minuciosamente, fonte encoberta. O leitor deste livro vai sair, neste sentido, satis- mas também uma espécie de hiperescrita, em que o repórter re- feito. Não terá uma obra de escândalos ou de sensacionalismo, vela os próprios procedimentos e métodos de trabalho. mas vai deparar, sobretudo, com um trabalho que, ao recuperar os acontecimentos em torno de um assassinato, constrói com Mais que tudo isso, o bom é que Celito De Grandi sabe escre- maestria um retrato de época, um diagnóstico de uma socieda- ver. Está consciente de que tem um grande tema em mãos. De de e, sobretudo, uma interpretação cultural de certos aconteci- posse dos dados, arma o quebra-cabeça e começa a desenvolvê- mentos. Um retrato de nós mesmos, se o leitor me permitir. § -lo, em longo flashback que chega até o presente. Cuidadoso, não afirma nada, mas o bom leitor saberá entender o que está Antonio Hohlfeldt é jornalista, doutor em Letras e professor da sendo sugerido, inclusive sobre a identidade do assassino e os Famecos/PUCRS. 34
  • 35. cartum • “o juízo Final” por moa 35
  • 36. páGinas FilosóFicas • entrevista JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI: “Não se pede a uma geração que faça o trabalho de duas” EDUARDO WOLF Que a filosofia tenha se especializado e se profissionalizado em os temas culturais mais relevantes do momento com equilíbrio alto nível no Brasil é um fato. É inegável igualmente, entretanto, e profundidade, seja trazendo à discussão política dos jornais o que essa especialização cobrou seu preço: o afastamento do de- refinamento da filosofia. bate público. Se a regra é essa — parece ser —, então a exceção tem nome: José Arthur Giannotti. Aos 80 anos, 60 de filosofia, A soma disso tudo é uma vida filosófica no sentido mais pleno da Giannotti ajudou a escrever não apenas a história da filosofia expressão. Se Sócrates tinha razão ao afirmar que uma vida sem brasileira, mas a própria história do país. exame não vale a pena ser vivida, Giannotti parece ter levado essa lição a sério: do mergulho na política à paixão pela arte, do Senão, vejamos: Giannotti fez parte, junto com Fernando Hen- interesse pela vida pública ao gosto pela análise filosófica mais rique e Ruth Cardoso, do célebre Seminário Marx, grupo que detida, nenhum aspecto da vida parece escapar ao seu podero- pautou todo um novo modo de encarar o estudo de Marx e que so escrutínio da razão. E foi um pouco dessa vida filosófica que ajudou a modernizar os estudos acadêmicos brasileiros. Com o Giannotti compartilhou nessa conversa com a NORTE. mesmo Fernando Henrique, fundou (e dirigiu por 11 anos) o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que abri- O senhor não parece ter ficado refém de um certo modo de gou alguns dos principais nomes da vida intelectual brasileira fazer filosofia corrente no Brasil, nos últimos 20 ou 30 anos, durante a ditadura militar, como Francisco Oliveira e José Serra, que é cada vez mais intramuros, com a universidade se fe- Fernando Novais e Roberto Schwarz, influenciando decisiva- chando. As publicações são quase exclusivamente de papers, mente o modo de se fazer política e vida intelectual no país nos por exemplo. O senhor, pelo contrário, seguiu intervindo em últimos 40 anos — sem falar no óbvio fato de que elegeram um jornais, na imprensa em geral, e publicando livros. presidente da República e talvez elejam um segundo. É, mas cada vez menos lidos... Nosso entrevistado teve vida universitária intensa, ainda que Como o senhor avalia a situação da disciplina desde a reaber- curta, pela cassação, sendo reconhecido como uma referência por tura, 25 anos atrás? diferentes gerações de ex-alunos, hoje professores do primeiro es- Primeiro, houve um crescimento absolutamente inesperado da calão da filosofia nacional. Publicou obras especializadas sobre filosofia. Vamos pegar os últimos 50, 60 anos. Quando entrei na um amplo repertório de autores, passando por Stuart Mill, Marx, Faculdade de Filosofia, em 1950, a nossa turma tinha 10, 12 pes- Wittgenstein, com destaque para Trabalho e reflexão (Brasilien- soas; a biblioteca do departamento não tinha 300 livros. Agora, se, 1983) e Apresentação do mundo — considerações sobre o na última reunião da Anpof (Associação Nacional de Pós-Gra- pensamento de Ludwig Wittgenstein (Companhia das Letras, duação em Filosofia) que eu fui, havia mais de 1200 participan- 1995). Seu mais recente trabalho, O jogo do belo e do feio (Com- tes; as bibliotecas estão muito bem estruturadas, o ensino se de- panhia das Letras, 2005), mobiliza esse conhecimento filosófico senvolveu. Não desenvolveu o diálogo: esse é que é o problema. para tratar de um tema que sempre lhe foi caro: as artes plásticas. A universidade se enclausurou, os próprios departamentos se en- E durante toda essa trajetória — e isso é o mais notável, porque clausuraram. A preocupação hoje não é propriamente discutir as contraria a lógica de atuação dos filósofos pátrios — foi atuante questões filosóficas, mas ter um bom currículo Lattes. Além dis- na vida pública, via imprensa, por exemplo, seja acompanhando so, houve uma enorme disputa pelos cargos, gerando toda sorte 36
  • 37. Justamente, eu queria contrastar a situação de partida com a de chegada. O senhor fez parte de uma geração que estudou Marx de forma profunda e sistemática. Entretanto, o que pa- rece ter vingado, seja na universidade, seja na política, foi um marxismo vulgar, mistura de panfleto com programa de ação. Foi uma derrota da sua geração? Não acho que foi uma derrota da minha geração, foi uma derro- ta de um pensamento mais radical que não soube levar adiante as consequências de uma herança marxista. O capital é um livro indispensável para entender as relações econômicas contemporâ- neas. Um livro que dependia, segundo o próprio Marx, de uma inversão da lógica hegeliana, que ele um dia prometeu fazer, mas não fez. Quem fez alguma coisa foi o Engels, mas de maneira ex- tremamente elementar, criando, com isso, o marxismo. Marxis- mo que foi, segundo a definição de [Raymond] Aron, o “ópio dos intelectuais”. Eu tenho a impressão de que, depois da queda da BEL PEDROSA / DIVULGAÇÃO União Soviética e do fracasso das revoluções socialistas, o ópio simplesmente foi substituído por uma enorme bebedeira, e que está todo mundo andando trôpego por aí... Não é à toa que no Brasil a Teoria Crítica avança a passos largos. Mas o que é a Teoria Crítica se não um recuo — não em relação a Heidegger ou a Witt- genstein — mas um recuo a Kant, porque eles voltam a Kant, mas de processos não republicanos de preenchimento desses cargos, com uma problemática pré-crítica? Quer dizer, pensar o esquema e o resultado, a meu ver, é que essa geração que nos sucedeu não do trabalho tal como ele é pensado pelos frankfurtianos, num es- teve uma produção muito importante. Dizem — eu tenho pouco quema de finalidade técnica, é uma estupidez monumental. contato — que a nova geração é muito boa, mas tenho medo que a estrutura fossilizada da universidade seja capaz de matá-la. Isso me leva de volta ao seu livro Apresentação do mundo. Passados 15 anos da publicação, em que o senhor formulava, Mas do ponto de vista dos efeitos da especialização, o senhor a partir de conceitos do pensamento de Wittgenstein, uma acredita que isso foi positivo? interpretação forte para problemas de linhagem marxista, Ah, sim, é um grande progresso! Você toma, por exemplo, o notadamente para sua preocupação com aquilo que chamou trabalho que o [Marco] Zingano está fazendo no Departamen- de “ontologia social”, como avalia aquelas formulações? O se- to de Filosofia da USP, na área de filosofia antiga. É extraordi- nhor acha que encontrou respostas satisfatórias? nário, é algo que coloca o Brasil no nível do debate internacio- Veja bem, não podemos esquecer o seguinte: como eu fui muito nal. Outro dia eu participei de uma banca do Luiz Marques, influenciado pelo Quine, e como o meu conhecimento de Wit- sobre história da arte, na Unicamp, e é absolutamente extra- tgenstein naquela época era bastante dominado pela visão do ordinária a maneira pela qual ele trata o Renascimento. É algo [Gilles Gaston] Granger (que considerava as Investigações filosó- para discutir diretamente com os grandes autores italianos. O ficas como um livro sem interesse), o que me interessava lá na problema, a meu ver, é que a universidade, seguindo um movi- origem era encontrar esquemas práticos significativos. Ora, isso mento geral, se fechou. E essa abertura para a política e para a já aparece no primeiro capítulo de Trabalho e reflexão. Portanto, vida cotidiana ela está perdendo. Então, cabe a vocês, da nova o encontro com o segundo Wittgenstein não foi, como querem geração, encontrar seus próprios caminhos. Eu sempre digo: os meus detratores e alguns amigos maldosos, uma “iluminação”, não se pede a uma geração que ela faça o trabalho de duas. mas sim a continuidade de um trabalho que precisava ser feito. Um trabalho, aliás, no qual o Balthazar [Barbosa Filho] estava Gostaria de falar de Marx, que de alguma maneira é um pon- profundamente engajado quando fez sua tese de doutorado sobre to de partida... o segundo Wittgenstein, ainda nos anos 70. Quer dizer, nós está- ...e de chegada! vamos com as chaves para fazer esse trabalho. O que aconteceu 37
  • 38. páGinas FilosóFicas • entrevista é que a filosofia acadêmica se ensimesmou nos casamentos com ele queria? Eu tenho a impressão de que ele chegou a um impas- os filósofos individuais. Então, hoje nós temos grandes especia- se entre o projeto político e o projeto teórico da análise econômi- listas em Aristóteles, em Kant, em Husserl, mas de tal maneira ca. Isso é uma questão a ser investigada. Só que essa ideia deixa que esses conhecimentos particulares dos filósofos não se comu- os meus colegas marxistas — que, diga-se de passagem, viraram nicam. Pior, virou capital: o sujeito é especialista em Kant, capaz todos social-democratas — absolutamente fora de si. de profundas análises a respeito de tais e tais problemas, além de ser capaz de citar corretamente, o que permite a esse sujeito ser Essa separação entre o Marx teórico da economia, reconheci- convidado para um grupo de pesquisa no exterior, o pesquisador do por suas análises até por liberais, e o Marx político, espécie estrangeiro fica extremamente contente de saber que há alguém de profeta do “novo homem” e do “novo mundo”, é uma sepa- capaz de dialogar com ele, alguém capaz de citar Kant direitinho. ração real na obra dele? E fica contente porque aí ele convida o pesquisador brasileiro Isso está dado! E mais: isso está colocado na política interna- para ir à Alemanha, sabendo que será convidado para vir ao Bra- cional e nacional através do problema da social-democracia. sil apresentar um trabalho num congresso, em geral, financiado Por mais que a crise atual tenha sido “debelada”, e que a questão pela Capes... e depois os alemães vão à praia! (Risos...) passe a ser, agora, se a crise será em “V” ou em “W”, o que fica é que o capitalismo precisa de órgãos reguladores, e que, por- Uma crítica do capitalismo que aponte para a sua superação tanto, a democracia, ou melhor, a democratização desses órgãos é ainda possível? Que papel Marx — ou sua herança — pode reguladores se tornou crucial. E se tornou crucial, igualmente, desempenhar hoje? uma análise de como funcionam essas leis reiteradas do processo Eu acabei de reeditar aquele livrinho sobre Marx que tinha sido capitalista. Esses processos do capitalismo são discursivos não lançado na coleção coordenada pelo Denis (Rosenfeld), que o verbais, como eu vou buscar analisar a partir de Wittgenstein. Só editor da L&PM, o Ivan Pinheiro Machado, teve a coragem de que como essas questões são pensadas, hoje, em termos de “mo- reeditar agora. E a reação tem sido extraordinária. Outro dia eu delos”, e não de jogos de linguagem, você pensa em termos de li uma crítica, uma resenha que saiu no Departamento de Filo- uma racionalidade em vez de pensar como essas racionalidades sofia que era incrível. Eu mudei o título do livro e coloquei Marx têm indefinições intrínsecas que precisam ser elaboradas. além do marxismo (L&PM, 2009), o que não significa Marx além de Marx. E eis que o resenhista, um bom marxista do velho tipo, Mas essa crítica parece se dirigir tanto ao velho marxismo como mostra que não foi capaz de ler o livro: ele simplesmente fica à ortodoxia liberal, que é bastante apegada à noção de modelo. caçoando das minhas torções conceituais, sobre como é que os Claro, eu estou criticando tanto a modelagem como o marxis- Manuscritos [Econômico-Filosóficos] não têm a mesma estrutu- mo tradicional que arrota contradições por toda parte... ração dos escritos posteriores e assim por diante. Quer dizer, um sujeito continua a ser um velho marxista. E a coesão entre eles O senhor foi uma das figuras mais atuantes do Cebrap, que se tornou absolutamente extraordinária! Às vezes, uma mesma completou 40 anos em 2009. Pensando no que era o projeto de universidade tem dois ou três grupos de marxistas — e um não vocês no início, como encara os resultados dessa empreitada? frequenta o outro, dado o projeto de “paz celestial” que eles têm. Quanto aos resultados, o Cebrap teve a enorme virtude de con- E eu coloco questões que, para serem resolvidas, requerem um jugar trabalhos teóricos com política. Não é simples um grupo retorno ao jovem Marx, dos Manuscritos. Eu me coloco a seguin- ter um presidente da República, menos simples ainda é ter as te questão: por que Marx não publicou os outros dois volumes? chances reais de vir a ter um segundo presidente da República. Não é pouca coisa! Agora, o Cebrap atual é da nova geração, Sim, o senhor sugere que a obra é aberta em um sentido mui- uma geração que se internacionaliza, que se torna prática e que to mais forte... não tem necessariamente compromisso político. Claro, porque se você lê o livro, o que é que ele está procurando? Uma tendência na queda do lucro que fosse sempre contínua. Isso é bom? Você lê o capítulo e não tem como não pensar o seguinte: ora, Não, eu vejo como uma questão a ser resolvida. Cabe perguntar isso não vai acontecer nunca! Porque são tantos fatores que estão agora: para que o Cebrap? permanentemente se alterando que não dá para tirar aquela con- clusão — tanto é que ela não aconteceu. Mas, se é assim, então O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso disse, em entre- qual é o sentido de uma revolução proletária totalizante como vista sobre os 40 anos do Cebrap, que “onde tem Giannotti 38
  • 39. imprescindível tanto quanto R$ 60,00 (assinatura anual) (41) 3019-0498 rascunho@gmail.com www.rascunho.com.br 39 o jornal de literatura do Brasil
  • 40. páGinas FilosóFicas • entrevista tem briga intelectual no bom sentido (...)”. Todos ali, em seus E esse “tudo é permitido” não é uma vitória do espírito de 68? depoimentos, parecem unânimes em recordar esse clima A vitória de 68 implicava que tudo era permitido desde que hou- “quente” dos debates. vesse uma participação política intensa. Hoje temos o contrário: Eram tão quentes, tão calorosos que podiam meter medo nas tudo é permitido desde que a gente não precise participar da novas gerações. Porque eu podia xingar o Fernando Henrique política. Então, acho que é algo bem distante daquele ideal. de todos os nomes, mas depois a gente esquecia e ia tomar cho- pe! Os novos não estão acostumados com esse tratamento... O fenômeno da massificação do ensino superior é comum também nos países europeus e nos Estados Unidos. O Brasil, Mas como vocês conseguiram o equilíbrio entre o calor da entretanto, não parece ter seguido a receita desses países de discussão e o rigor intelectual? preservar centros de excelência, como as écoles francesas e os Em primeiro lugar, eu acho que a preocupação com o método, centros americanos como o MIT. Por que isso? que era comum a todos nós. Não só a adoção de novos méto- Em primeiro lugar porque “elite”, “excelência” são hoje pala- dos, mas uma vigilância quanto aos usos políticos desses novos vrões no Brasil. Aliás, já de alguns anos o são. Aí você não pode métodos. É interessante ver, por exemplo, que a minha geração sequer pensar que a democratização e a massificação do ensino toda ignorou a Teoria Crítica, por exemplo. — que é desejada e é bem-vinda — pudesse ser compensada por linhas de pesquisa e formação voltadas à preparação de quadros de ponta, de excelência. O resultado é que nós estamos A sociedade está mais do numa situação hoje em que, por exemplo, o nosso desenvol- que anestesiada, ela está vimento econômico depende de quadros que nós não temos. extremamente permissiva, O que faltou para evitar isso, uma vez que tanto o governo FHC como o governo Lula viram a universidade como uma perdeu sua normatividade espécie de instituição social de caridade, abrindo suas portas tendo em vista quase que exclusivamente uma pauta social? No ano passado, o senhor protagonizou uma das cenas mais la- A caridade social é traço do governo Lula. O que o governo do mentáveis da história da educação nesse país, quando alunos da Fernando Henrique fez, e que a meu ver foi muito positivo, foi USP, em greve, impediram que o senhor desse sua aula. Como desviar a linha tradicional de financiamento concentrada no En- o senhor disse em texto publicado à época, em 1969 foram sino Superior para o Ensino Fundamental, o que foi uma coisa os militares que lhe cassaram a palavra, agora, em 2009, “um muito importante. Por outro lado, deixou a expansão do ensino bando de alunos exaltados”. O mesmo aconteceu com outros privado em nível superior sem nenhum controle, além de não professores. Entretanto, essa violência é restrita a um ou dois ter investido de maneira sistemática nas universidades federais. institutos da universidade. Como se chegou a esse isolamento? Com o Lula, o Ensino Fundamental ficou como estava, no En- Por que a sociedade parece não se importar com essas atitudes sino Médio ninguém tinha mexido até agora, e no Ensino Supe- dentro de suas principais universidades? Ela está anestesiada? rior ele faz um programa muito positivo, que é o ProUni, mas ao Ora, como os estudantes deixam de fazer política e saem do es- mesmo tempo expande de tal modo as vagas nas universidades paço público, grupelhos assumem essa posição, exercendo uma federais que hoje, em certos cursos de algumas universidades, violência que não é contestada. O problema é saber até quando há mais vagas que candidatos, sem falar no alto índice de evasão. os estudantes vão ser dominados por esses tipos que dominam E o pior desse processo é a questão da qualidade. Isso eu tes- a política universitária. Agora, de outro lado, o fato é que a so- temunhei fazendo a seleção para os bolsistas pesquisadores do ciedade está mais do que anestesiada, ela está extremamente Cebrap: nós recebíamos mais de 40 projetos para quatro vagas e permissiva. Eu tenho insistido muito nesse aspecto: a socieda- era difícil preenchê-las. Quer dizer, o número de alunos aumen- de brasileira perdeu sua normatividade. Tudo parece permiti- ta, mas e a qualidade? do. E isso está ligado à permissividade dos líderes, que acaba se refletindo no quadro social. E isso é um fenômeno absolu- Já que as questões sobre o Cebrap nos trouxeram para a po- tamente universal, quer dizer, não é só o Lula que é multado lítica, eu queria fazer algumas perguntas mais diretas sobre duas vezes por infração eleitoral — e caçoa da Justiça —, mas alguns temas da área, a começar pelo seu texto “O dedo em também o papa que chora ao lado das vítimas pedofilizadas... riste do jornalismo moral” (Folha de S. Paulo, 17/5/2001). 40
  • 41. Nele, o senhor defende a existência de zonas cinzentas para Do ponto de vista da democracia liberal em sua forma con- a atividade política, zonas de indefinição moral, digamos as- temporânea, parece estar posto um dilema: tendo em sua sim. Naquele contexto, seu artigo foi interpretado como uma essência a defesa das liberdades individuais, particularmen- justificativa de casos de corrupção no governo federal... te a ideia de liberdade da expressão, a democracia parece es- E hoje alguns petistas querem citar meu texto para defender a tender seus benefícios precisamente àqueles que pretendem corrupção no governo Lula... destruí-la: aqueles que a veem como mera ideologia burguesa ou como invenção do Ocidente opressor, beneficiam-se dela O político é aquele que perde para atacá-la. Como o senhor encara esse paradoxo? A liberdade é de opinião e de expressão das opiniões: não é a alma para salvar o Estado, liberdade de transgressão das leis. Não é liberdade de invasão de terras, por exemplo. Esse é o limite. A liberdade é de opi- como dizia Maquiavel. Agora, nião, não de ação. Você não pode admitir transgressão siste- mática das leis. E veja bem, a política nunca é simplesmente que ele perca a alma! obediente às leis. Faz parte da política forçar a interpretação da lei para este ou para aquele lado. Agora, quando você, além O fato é que o senhor estava interessado na distinção entre a de forçar, transgride o tempo todo, aí você tem uma ameaça à moralidade pública e a moralidade privada, sobre a qual che- democracia. Porque aí o resultado é uma reação da direita na gou a escrever depois. Como encara essa distinção? base da violência. Não se constrói um programa político, como a esquerda queria fazer à época, baseado somente na moralidade, porque isso leva À época do lançamento de O jogo do belo e do feio, tanto Ro- à hipocrisia. Porque o exercício do poder tem zonas cinzentas. berto Schwarz como Bento Prado Jr. assinalaram, em meio aos Portanto, uma crítica feita a um governo atual — seja o de Fer- elogios ao livro, que o senhor não fazia justiça a Benjamin, por nando Henrique, seja o de Lula — tem que levar em considera- exemplo, principalmente por conta da sua crítica à noção ben- ção não só o problema moral, mas todos os problemas políticos jaminiana de “aura” da obra de arte e do consequente ataque que disso resultam. Quer dizer, antes de ficar de dedo em riste, dele à reprodução da arte. Como o senhor encara essa crítica vamos entender como funciona a política brasileira — e de lá e, em geral, como vê hoje a recepção que esse seu livro teve? O pra cá ela só se atrasou. O meu problema era o seguinte — e senhor disse há pouco que as pessoas não pareceram entender. não era nada de estranho para qualquer pessoa que entenda a O pessoal não entendeu, em primeiro lugar, por uma diferença política com um mínimo de realismo, desde Maquiavel e Hob- de formação deles. Em segundo lugar, por conta de uma prá- bes: o político é aquele que perde a alma para salvar o Estado, tica artística hoje cada vez mais conceitual. Quer dizer, o que como dizia Maquiavel. Agora, que ele perca a alma! caracteriza uma instalação em geral? O fato de que ela quase não tem uma estrutura gramatical interna, quer dizer, quanto E que salve o Estado... tempo você fica numa instalação? Pouco tempo! Agora, se eu Sim, e não que não faça nem uma coisa nem outra. Então, o vou a Paris, eu vou ter que ir ao Louvre umas três, quatro vezes, que eu estava dizendo é que era anterior a preocupação de pen- quero ver várias vezes o mesmo quadro, em alguns casos. Eu sar uma política moderna. Porque uma política moralista, você não vou deixar de ver As quatro estações do Poussin. Trata-se sabe no que é que dá: uma política de direita. de uma estruturação interna que nos fascina permanentemente. Com a arte contemporânea, ocorre o contrário: ela é cada vez Mas nesse jogo de perder a alma para salvar o Estado, qual é a mais passageira. Isso leva o artista e o crítico à necessidade de diferença para um argumento de mera eficiência ou de força? ter que falar cada vez mais sobre a obra de arte não como uma Um raciocínio como esse não justifica uma ditadura eficiente? invenção, mas como uma limitação. Ontem mesmo eu fui ver a Não, porque na medida em que você trata do bem comum, esse exposição do Oiticica, e ele dizia, em um dos vídeos, que sentia bem comum tem que aparecer normativamente. Quando você faz mais e mais a necessidade de colocar junto com a obra algumas alianças até com o Judas, você tirou da política essa normativida- palavras. Quer dizer, é uma tendência da arte contemporânea de, caiu em puro pragmatismo. Só que a política não é só querer conceitual diminuir a gramática interna do objeto, fazendo com o poder; é também determinar o tipo de sociedade que queremos que a gramática seja espacial, de tal modo que você vai ao lugar, ser. E se ela não discutir isso, ela se torna, aí sim, uma politicalha. mas tem pouca coisa a dizer. § 41
  • 42. escritório GráFico • mallarmé por Gilmar FraGa 42