A ética da nulificação e a contranulificação
A ética da nulificação e a contranulificação
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Patricia BiegingEditora executiva
AutoresRevisão
Frederico Osanam Amorim Lima
Idelmar Gomes Cavalcante Júnior
Autores
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
________________________________________________________________________
L732a Lima, Frederico Osanam Amorim -
A ética da nulificação e a contranulificação. Frederico
Osanam Amorim Lima, Idelmar Gomes Cavalcante
Júnior. São Paulo: Pimenta Cultural, 2019. 111p..
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-7221-050-8 (eBook)
	 978-85-7221-049-2 (brochura)
1. História social. 2. Sociologia. 3. Ética. 4. Ser humano.
5. Assujeitamento. I. Lima, Frederico Osanam Amorim.
II. Cavalcante Júnior, Idelmar Gomes. III. Título.
CDU: 316.7
CDD: 300
DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.508
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SUMÁRIO
PREFÁCIO
O desejo de não ser.........................................................................7
PARTE 1
NULIFICAÇÃO
A ética da nulificação......................................................................13
Porque o homem é uma confusão de sentimentos.......................16
Aniki-Bóbó: um filme que fala de solidariedade
e do tropeço do poder no fazer diário da vida...............................19
A dor como ofício............................................................................22
A obediência como ética................................................................25
El empleo........................................................................................27
Alphaville: a utopia da cidade sem dor..........................................29
Ser fraterno na indiferença: Mersault e o mundo...........................32
O que nos oprime?.........................................................................36
Questões contemporâneas, primeiro capítulo: a arrogância.........40
Questões contemporâneas, segundo capítulo: a liberdade..........43
PARTE 2
CONTRANULIFICAÇÃO
Prolegômenos da Contranulificação I:
o uivo de um corpo saliente e delirante .........................................47
Prolegômenos da Contranulificação II:
o lado infame da contracultura em on the road .............................51
Prolegômenos da Contranulificação III:
movimentos de esquerda e a Contranulificação............................57
O androide que não queria morrer.................................................62
Sem black-tie, sem paraíso: a história de um
adão duplamente decaído..............................................................67
O tempo da Contranulificação........................................................75
As jornadas de 2013: o sucesso de uma revolução perdida ........85
Diário de bordo: apontamentos para uma narrativa......................99
Sobre os autores...........................................................................107
Índice remissivo............................................................................108
7s u m á r i o
PREFÁCIO1
O desejo de não ser
Para Martin Heidegger os humanos só não são responsáveis
por dois momentos em suas vidas: o momento do nascimento e o
momento da morte, se esta não é suicida. O ser requer investimento
e responsabilidade, cuidado e persistência.
O ser acontece no tempo, é existencialmente construído. Não
há ser que preexista as ações e representações que o dão forma
e conteúdo. O ser é uma démarche e um vir a ser constantes, que
exigem vontade e afirmação. Lançado no mundo pelo nascimento,
o ente deve dar a si mesmo um ser, na relação com os outros e
consigo mesmo. Na relação com a cultura e na relação com a
linguagem o ser se faz e se diz. O ser se diz e se faz ver de múltiplas
maneiras. Não há ser humano essencial, permanente, universal,
que se decline sempre da mesma maneira.
O livro que vocês têm em mãos e que logo começarão a ler,
aborda de maneira profunda e multifacetada um fenômeno contem-
porâneo, mas também um fenômeno presente em muitas outras
épocas: o desejo de não ser, o desejo que assalta a muitos seres
humanos, em dados momentos de suas existências e da existência
coletiva, de deixarem de ser. Ser é uma condição e um manda-
mento. Muitas vezes é difícil cumprir com essa ordem de ser. O
ser humano é fundamentalmente ser na angústia, na incerteza, na
precariedade do próprio ser. Por ser solitário, consciente e lançado
no tempo, o ser humano é muitas vezes uma tarefa quase insupor-
tável. O ser humano é sempre habitado pelo não ser, pelo deixar
de ser, pela ameaça de morte e desaparecimento. O ser humano é
1. DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.508.7-11.
8s u m á r i o
um ser mortal e tem consciência disso, daí, porque, muitas vezes,
se pergunte se viver tem sentido ou vale a pena, a medida que a
existência só existe para deixar de existir.
Frederico Osanan e Idelmar Cavalcante, dois belos seres
humanos, nos oferecem um conjunto de texto que refletem sobre o
desejo de não ser que nos assalta muitas vezes, desejo que eles
nomeiam de desejo de nulificação. Muitas vezes queremos nos
anular, deixar de ser o que somos, deixar a nossa condição e a
nossa situação, desejamos desaparecer, fugir, evaporar, deixar de
ser. Quando o estar sendo pesa, quando o perseverar no ser traz
uma dor insuportável, quando o perseguir o ser se mostra impossível,
indesejável, inalcançável, muitos adotam o que os autores desse livro
criativo e inspirador chamam de ética da nulificação. Como sabemos,
a ética implica a relação que o ser mantém consigo mesmo, implica o
trabalho de produção de si, de escrita de si, de formação de si mesmo.
A ética nasce dos limites e do desenho que damos ao nosso próprio
ser. Ser é se fazer sujeito, é se fazer agente, é se fazer a origem de
seu próprio ser. Mas, na própria língua portuguesa a palavra sujeito
traz uma ambiguidade de sentido, que define e invade o próprio ser
dos homens e mulheres. Ser sujeito tanto implica dar início a uma
ação, como implica sofrê-la, ser dela paciente, tanto quanto agente.
Quando você se assujeita, tanto você se faz e se torna sujeito, como
se faz e se torna sujeitado. Como não há sujeito humano fora das
relações com os outros, para nos tornamos sujeitos sempre é preciso
nos assujeitarmos aos outros e nos outros.
Como alertava Merleau Ponty, eu preciso do olhar do outro
para me ver, para me enxergar, para saber quem sou, para saber
qual o meu ser, mas também é o olhar do outro que me limita, que
me controla, que me vigia, que me pune, que me amedronta e me
subordina. Não é possível dizer sim para a vida sem que o não esteja
presente e habitando essa afirmação. A ética da nulificação, presente
nas obas de arte, nos livros, filmes, autores que são tematizados nos
9s u m á r i o
escritos presentes nesse livro, não deixa de ser uma forma possível,
talvez derradeira, desesperada, desesperançada de se afirmar o ser,
mesmo que seja pelo nada, tese central do existencialismo sartriano.
Para Sartre o nada, o vazio, o oco, o vórtice é a única essência do ser,
pois esse tende para sua nadificação, sua nulificação. A nulificação,
seria para Sartre, a própria definição da vida humana, pois, a medida
que é vivida o que se dá é a sua progressiva nulificação. Vivemos
para a morte e, portanto, vivemos destinados ao nada.
A tese central do livro que vos apresento é a de que o desejo
de nada ser, a ética da nulificação, habita e explicita o niilismo contem-
porâneo, previsto e denunciado por Nietzsche, ainda no século XIX.
A consciência crescente de nosso caráter temporal e passageiro, do
caráter finito de todas as coisas; a emergência de uma sociedade de
seres cada vez mais solitários, individualistas, egóicos e narcisistas;
uma sociedade onde as técnicas de assujeitamento, de dominação,
de disciplinarização se intensificaram; em que a sensação de se fazer
parte de uma engrenagem da qual não se tem o mínimo controle,
tornou o desejo de morte, fonte de todo desejo de ser nada, de
se anular, de deixar de ser, central em nossa sociedade. A medida
que vivemos uma vida que se mecaniza, que se tecnifica, onde os
corpos se tornam maquínicos, autômatos, onde somos governados
por forças que em muito transcendem nossa vontade e nosso poder,
parece que também cresce o desânimo, o cansaço, a recusa a
resistir a tudo isso. No lugar de resistir considera-se preferível desistir.
Desistir de resistir, de lutar, de perseverar no ser.
O inicio do século XX, de onde vem alguns autores e textos
comentados nesse livro, ficou marcado pelo crescente número de
suicídios, uma forma extrema de nulificação. Não podemos deixar
de aventar a hipótese de que as multidões que se lançaram nas
guerras e revoluções do século XX, muitas de maneira entusiasta,
buscavam uma forma de mortificação coletiva, de nadificação, de
nulificação em massa. Os extermínios e genocídios, marcas dos
10s u m á r i o
dois últimos séculos da história humana, podem ser a expressão
desse desejo coletivo de desistir da vida, do abrir mão do ser, do
desejo de descansar do ser. Descansar sim, pois ser é cansativo,
exige trabalho constante, investimento constante, cuidado perma-
nente consigo e com as relações com outros, pessoas e coisas,
instituições e linguagens, que nos constituem. O tédio, a melancolia,
a angústia, a afasia, o fastio, nascem da preguiça de ser. O ser não
nos permite ter paz, ele nos aguilhoa, ele nos acicata, ele nos cutuca,
ele nos cobra, ele nos perturba todo o tempo. A preocupação pelo
ser nunca nos abandona. Daí porque muitos desejam e preferem se
entregar a um outro, a alguém que o domine, que o diga como ser,
como deve ser, como pode ser, como dá para ser. Muitos acham
preferível, para evitar o conflito, a luta, a tensão, a discordância, que
ser sempre implica, se anular, se deixar levar, se deixar governar,
mandar, pelo outro. Para evitar o incômodo de ser, o comodista se
anula, se torna uma nulidade. Muitos procuram não ser visíveis, nem
dizíveis, buscam o anonimato e o desaparecimento, assim acham
que se protegem de ser. Cansados de tentar dar a si um ser, muitos
preferem copiar os modelitos de ser que outros os oferecem muito
baratinho e bem baratinado. Muitos adotam e adoram próteses de
ser, até mesmo desejam ser uma espécie de implante, de prótese
na vida do outro, vivendo por osmose e por cissiparidade.
Na segunda parte do livro nos são apresentadas estratégias
e propostas de contranulificação, estratégias e práticas visando sair
da nulidade, deixar de ser uma nulidade, para ser a negação do nulo,
negação da negação. Como deixar de ser nulo? Veja que mesmo a
nulidade é um ser que se diz pela negativa. Talvez o pulo do gato
seja sempre ser pela afirmação, ser afirmando, ser dizendo sim ao ser,
mesmo com todas as suas precariedades, carências, incertezas, fragi-
lidades, ambivalências. Deixar-se ser sendo, se colocando, se posicio-
nando, se mostrando, se dizendo presente, se dizendo senhor de seu
ser em todas as situações. Se não podemos escapar do assujeita-
mento, pois o ser sujeito o implica, ser assujeitado é imanente do ser
11s u m á r i o
sujeito, pois sempre estamos no interior de uma ordem social, cultural
e simbólica e só nelas podemos ser sujeitos, façamos do assujeita-
mente apenas uma face de nosso modo de ser, de ser sujeito.
O uso da razão, da crítica, do riso, da ironia, da poesia, ainda
são indispensáveis para afirmar um ser que não apenas se assujeita
mas que se subjetiva, que fabrica a si mesmo. Pensar o ser humano
como uma fabricação, como uma obra de arte, elaborando um estilo
de existência, um modo de viver em que não prevaleçam os desejos
de outrem, as imposições sociais, os costumes, as tradições, os
hábitos, as regras de moralidade. Se somos obrigados a ser, que
o sejamos da melhor maneira possível, nos rebelando e transgre-
dindo tudo aquilo que nos adestra e dociliza no sentido de sermos
como todo mundo diz que é preciso ser. Sejamos afirmativos, não
nos deixemos anular pelo outro, sejamos diferentes e respeitosos
da diferença, pois se não há modelo para o ser humano, tudo ainda
está sempre por criar e por inventar. Não se anular requer coragem,
requer disposição para sair do imobilismo, para abandonar as solu-
ções mais fáceis, requer ter destemor na hora de desafiar o coro
dos contentes.
Recomendo esse livro, pois ele dá muito o que pensar. Ele
vem na hora certa, no momento em que vemos, no país e no mundo,
tantas pessoas entregues ao desejo de morte, à ética do rebanho,
em que tanta gente quer anular os outros para autoritariamente
prevalecerem como a nulidade que são. Num país governado por
nulidades, por um grupo que chegou ao poder negando a inteli-
gência, odiando o conhecimento, fazendo do mito e da mistificação,
da mentira e da calunia um evangelho, esse livro que nos alerta para
o perigo da ética da nulificação, para a ética do quanto pior melhor,
para a arrogância dos nulos, se torna leitura obrigatória. A vida não
é dos nulos e dos que se fazem presentes.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior
João Pessoa, 18 de fevereiro de 2019
PARTE 1
NULIFICAÇÃO
Frederico Osanam Amorim Lima
Parte
1
NULIFICAÇÃO
FredericoOsanamAmorimLima
13s u m á r i o
A ÉTICA DA NULIFICAÇÃO
Josef K. foi nulificado! Seu processo se entranhou em seu
corpo, consumiu suas vísceras e alterou sua moral. K., num dado
momento, deixou de falar por si. Primeiro falou pelos outros, por
aqueles surrupiados pela justiça e açoitados pelo opressor. Depois,
ao se declarar inocente de um processo que ele sequer soube do
que se tratava, Josef se anulou. Apagou-se! Foi tomado pelo medo
de ser punido por um crime de que ele sequer foi acusado formal-
mente. K. sumiu... Foi a-sujeitado. Perdeu a fala, depois esvaeceu.
O Processo, do escritor tcheco Franz Kafka em que Josef é
personagem é, antes de tudo, um tratado de nulificação. Um tratado
na forma de um romance. O romance que trata de uma vida imersa
num cenário que mistura sonho e realidade. Uma vida, por sua vez,
que se anula diariamente, que se apaga constantemente com a
tensão criada à espera das consequências do que se falou.
Josef K., uma espécie de pseudo-sujeito deste romance,
se constitui num arquétipo de não-alguém semelhante a todos os
não-alguém da vida real que se empalidecem com o que falam. Que
preveem consequências nocivas com palavras ditas sem pensar.
Que, enfim, se anulam para serem aceitos num grupo, numa enti-
dade, num emprego, por fim, para cumprirem um padrão e se arti-
cularem à norma. Josef K. é todo aquele ou aquela que renunciou
ser para poder ter.
O Romance surreal de Kafka acaba por falar dos meca-
nismos de internalização do poder. Dos poderes que são relacio-
nais em nossas vidas. Dos poderes que nos rodeiam, que cindem
nossos corpos às estruturas, que fundem nossas subjetividades à
cordialidade, às pequenas obediências, às nossas sensibilidades
de cordeiros. O processo é a obra que desnuda os micro poderes
14s u m á r i o
que nos tornam outros para além daquilo que desejamos ser. É o
livro que diz que mesmo se declarando inocente, mesmo rebelan-
do-se ou se mantendo calado, o processo foi o encarregado de
urdir esse nosso comportamento.
Josef K., um funcionário bem conceituado de um banco,
um dia qualquer acordou e sentiu falta do seu desjejum. Em vez
da cozinheira, que pontualmente trazia seu café da manhã, quem
bateu a porta do seu quarto foi um homem de “tipo esbelto, porém
de aspecto sólido, que vestia um traje negro e justo”. Josef hesita
em recebê-lo. Questiona a presença do homem em seu quarto, faz
perguntas, mas é sempre ignorado. O máximo que consegue é
saber que estava detido! Que respondia, a partir daquele momento,
a um processo. Mas, o que K. havia feito de tão grave?
K. – assim como muitos daqueles que transitam entre nós,
também pseudos-personagens de um romance ambientado num
cenário que beira a loucura – não se da conta de que o crime que
ele cometeu é o que menos importa. O crime, na verdade, nem
existe! Josef não cometeu nada que implique a sua detenção. K. foi
detido, assim como muitos outros também são, no momento em que
replicou, contrariou, questionou a norma. No momento em que acre-
ditava gritar por liberdade, ele começava a ser anulado. O guarda que
o deteve bem que avisou: “você logo sentirá o efeito dessa lei”.
Como tratado de nulificação, o processo descreve o percurso
diário do a-sujeitamento. Ele começa no comportamento ordeiro,
na cordialidade abusiva, na docilidade e submissão à norma.
Inversamente ele também se produz. O processo que constrói o
dócil, também macula o revoltado, o revolucionário, o que fala em
nome de vários, o que fala em defesa de um bem comum, o que
tenta falar por mim, por você ou por qualquer outro que fuja à regra.
Com Kafka – o mesmo Franz da visão onírica de um homem
que acorda metamorfoseado no corpo de uma barata – aprendi que
15s u m á r i o
o peso da lei esta para além dos tribunais e suas sentenças. Aprendi
que há uma lei que prescinde o crime. Uma lei que sentencia nossas
vidas a constantes obrigações. Uma lei que nos pune diariamente, que
nos sutura ao padrão, que faz dos olhares de reprovação de muitos,
verdadeiros tribunais em defesa de uma moral, de uma ética da nulifi-
cação. Mas com Kafka aprendi, também, que o exercício de libertação
deve ser constante e fundamentalmente marcado pela dúvida, pela
suspeita, pelo questionamento e pela insurreição à docilidade.
Kafka nos ensina que nulificar-se pode ser algo que inde-
penda de nossa vontade. Algo que esta acima e além de nossa força.
Algo que pode até nos unir! Kafka, se fosse um cientista social que
quisesse projetar nosso futuro e nele encontrar uma massa unida
para a luta, bem que poderia ter encerrado seu tratado de nulificação
com uma frase de efeito ao modo de Marx. Marx, que conclamou
apenas uma fração da humanidade à luta, talvez sentisse inveja de
um brando tão mais convincente e universal. Kafka não encerrou,
mas bem que poderia ter terminado o processo com uma sonora e
reverberante conclamação: “nulificados no mundo, uni-vos!”.
16s u m á r i o
PORQUE O HOMEM É UMA CONFUSÃO DE SENTIMENTOS
E fez descer o povo às águas. Então o Senhor
disse a Gideão: Qualquer que lamber as
águas com a sua língua, como as lambe o
cão, esse porás à parte; como também a todo
aquele que se abaixar de joelhos a beber.
Juízes 7:5
Um a-sujeitado. Jeremias desperta numa cela escura e úmida.
Chão batido, sem ventilação, sem luz, quase sem ar. Um homem e
sua cela. Um corpo e a solidão exasperante do lugar.
Do lado de fora um pátio. A cela e o pátio. Não entre a Cela
e o Pátio, mas, simplesmente, a cela e o pátio, constituindo a força
repressiva da ausência de interditos. Não há fronteiras, entremeios.
Ou se está num lugar, ou no outro.
A força e o vigor simbólicos da cela em nossa mente articulam
nossas sensibilidades a um desarranjo subjetivo e um desconforto
emocional. O alento causado pela imagem do pátio reintegra os
sentidos e alivia a dor do isolamento. Cela e pátio, entretanto, são
partes integrantes de um mesmo ritual de tortura psicológica. São
cruéis demais para produzir histórias felizes. São signos de uma
história da violência que está para além das prisões, das leis, das
normas e dos poderes institucionalizados. A cela e o pátio são
imagens/discursos de um poder que extrapola os limites dos muros
e das grades. Não há nada entre a cela e o pátio! Há, verdadeira-
mente, uma cela que produz, contraditoriamente, a sensação de
proteção; e o pátio, espaço de encontros controlados por monossí-
labas berradas por agentes da lei.
A cela. Espaço monolítico, denso, colérico, sem precisão de
palavrapradescrevê-lo.Escuro,frio,cinza,comparedesgrossasque
abafam o grito. O pátio. Um pátio fechado. Um pátio que converte
17s u m á r i o
o tempo em silhuetas artificiais. Liberdades artificiais; luz artificial;
água artificialmente modificada para produzir entorpecimento.
Tudo no livro produz calafrios... as mãos de Jeremias acorren-
tadas para trás sempre que estava na cela, os ratos remexendo sua
comida, a sensação inquietante do descompasso temporal, o hiato
entre a refeição, o banho e o grito... tudo beira um cenário de angústia
e imersão. Cada palavra revela um cheiro, uma sensação, um sabor...
Cada palavra enunciada, cada gesto aprendido, cada sentido atribuído
ao mundo é produto de uma angústia desmesurada. É quase possível
produzir um texto sobre cada palavra enunciada no livro.
- Quem são os que bebem como os cães? Como bebem
os cães?
- São todos aqueles que se embrutecem, Jeremias, que se
entorpecem, que se dopam com medo da vida... São os que se
ajoelham, que tremem diante de uma voz autoritária, que sucumbem
sob qualquer suspeita de sua inocência. São os que se calam, os
que aceitam o óbvio das coisas, os que têm o comportamento
dócil, disciplinado, ordeiro... que agradecem demasiadamente...
são, ainda, aqueles nulificados prisioneiros de si e de suas cara-
paças individuais, que não conseguem olhar para o lado, para o
outro, para o seu próprio passado. São aqueles que, como cães, se
agacham para beber...
Jeremias estava certo o tempo quase todo. Há algo que o
entorpece. Há algo que tira sua sanidade, sua capacidade de cons-
truir sonhos, de articular pensamentos e ordenar ações. Há, ainda,
algo que marca com violência sua carne, atravessa suas entranhas
e caotiza seus sentidos. Jeremias, como todo a-sujeitado, um dia
lembra que sua liberdade é produto da vontade alheia. Lembra do
que tinha sido forçado a esquecer. Lembra que lembrar é perigoso.
E lembra que esquecer é negar ser homem.
18s u m á r i o
Assis Brasil, autor dessa distopia angustiante, aponta os
começos caóticos dos a-sujeitamentos. Dos corpos sendo ener-
vados, ortopedicamente construídos, disciplinados, castrados e
anulados. Dos sentidos sendo treinados, orquestrados, manipu-
lados e docilizados. “A voz não tinha cor, mas penetrava na carne
e feria”. Primeiro a voz, o açoite e o empurrão. Depois a simples
presença, o olhar de pedra dos guardas, a ameaça sem palavras
e gestos. Enfim, a simples ideia de que alguém pode estar vendo:
o corpo se blinda de medo e o poder se entranha em suas carnes.
O poder consumiu sua carne e ele se esvaiu em sangue como a
querer burlar a norma.
- Quem são os que bebem como os cães? Como bebem os
cães?
- São os que preferem a rotina, Jeremias, além da inércia e da
lassidão abjeta. São os que possuem fronteiras demarcadas para
sentimentos, para ações, para contatos. São, por fim, os que se
calam diante da militarização do cotidiano, do controle de nossos
comportamentos, do nosso tempo e dos nossos desejos. Contra a
opressão diária, Jeremias, é necessário continuar gritando.
19s u m á r i o
ANIKI-BÓBÓ: UM FILME QUE FALA DE SOLIDARIEDADE E DO
TROPEÇO DO PODER NO FAZER DIÁRIO DA VIDA
Aniki-Bebé/Aniki-Bóbó
passarinho totó berimbau,
cavaquinho Salomão
sacristão tu és polícia,
tu és ladrão
Aniki-Bóbó, 1942.
A narrativa é relativamente simples e fácil. Algumas crianças,
pobres, ribeirinhas, descobrem, em terna idade, a paixão. Duas
delas, Carlitos e Eduardo, disputam, a exemplo do que, provavel-
mente, fizeram/farão/fazem (muitos) (d)os adultos, a atenção de
uma jovem e bonita garota.
De início, um empurrão, insultos e algumas brigas. Eduardo,
forte e vivaz, derruba, humilha, bate e grita em Carlitos, tentando
afastá-lo de Teresinha. Carlitos – nome que insinua certo apreço por
outro Carlitos, personagem de Charles Chaplin – franzino e meigo,
reage tocando na sensibilidade da garota. Ela, delicada, venera
uma boneca na vitrine de uma loja. Carlitos, astutamente, rouba a
boneca para Teresinha... Num desses infortúnios vida é, injustamente,
acusado de ter empurrado Eduardo de uma ladeira que dava para os
trilhos do trem. Cai em desgraça! Roubo e tentativa de homicídio. No
fim, a generosidade do vilão da história é que redime Carlitos.
Aniki-Bóbó, filme do português Manoel de Oliveira, filmado
e exibido pela primeira vez em 1941/1942, é um desses filmes
que causa arrepio quando se assiste. Simples, terno, mas profun-
damente perturbador. Rechaçado quando foi lançado, o filme só
ganhou reconhecimento e notoriedade muitos anos depois. Hoje
é um clássico do cinema português e ganha, com frequência,
notas em jornais, publicações em livros e artigos. Fato que sugere,
a despeito do esquecimento no passado, uma pergunta: em que
20s u m á r i o
reside a atual aderência ao filme pelos críticos e estudiosos do
cinema português? Para muitos, Aniki-Bóbó antecede aquilo que
seria chamado, na Itália, de neo-realismo. Por este feito, Manoel de
Oliveira acabou sendo alçado à condição de precursor de um movi-
mento que ele próprio se diz avesso.
O filme, entretanto, para além de uma discussão estética ou
de pertença a um movimento cinematográfico, é potencialmente rico
em questões políticas, notadamente aquelas que sugestionam uma
prisão dos indivíduos às estruturas de pensamento e comportamento
por intermédio da força. O poder, em Aniki-Bóbó, se escancara por
todos os lados. Ele não é escamoteado, necessariamente, por signos
alusivos a um ditador ou uma instituição. Ele é pulverizado na socie-
dade, nas pequenas autoridades que circulam o universo infanto-ju-
venil do filme; no dia-a-dia de crianças que estão se formando, mas
que já percebem o peso e as limitações de seus desejos.
Aniki-Bóbó, brincadeira de rua de garotos ribeirinhos que se
dividem entre bandidos e policiais... que se dividem entre os que
serão perseguidos e os que perseguirão. Brincadeira que desvela
os meandros do poder no cotidiano. Que fala sobre quem persegue,
quem é perseguido, mas, também, quem se sente perseguido e
quem, mesmo sem ser perseguido, sente que pode, um dia, ser
perseguido... ainda que injustamente.
A mãe, o policial, o professor, o dono da loja... São todos
figurantes de um poder que se desdobra em gestos e olhares. São
arquétipos de um poder que se traduz nos encantamentos diários
pelo “fazer o correto”, pelo “fazer o certo”, “o honesto”, “o justo”.
Por trás de um poder que se localiza na autoridade de todos esses
personagens com prerrogativas de família, lei, educação e proprie-
dade privada, existem outros se imiscuindo no interior da socie-
dade. Estes, de difícil compreensão, só são desvelados em filmes
como Aniki-Bóbó. Eles estão no olhar de reprovação das próprias
21s u m á r i o
crianças; está na frase pseudo-moral e imperiosa que Carlitos
carrega na sua bolsa – “segue sempre por bom caminho”; está no
modo de se sentar, na capacidade de não reconhecer outro caminho
para a conquista do amor que não seja pelo apelo material... está,
inclusive, na meiga e indecisa Teresinha quando, por acreditar que
Carlitos tinha motivo para fazê-lo, aceita, por força das circunstância
e do poder que diz o que é legitimo numa situação dessas, que
Carlitos empurrou Eduardo ladeira abaixo.
Aniki-Bóbó... um filme de 1942 que é tão atual quanto são
atuais e necessárias as dúvidas que colocamos (ou devemos
colocar) sobre a nossa condição de homens livres no mundo. Aniki
bem que poderei ser, como seu diretor desejou que fosse, só um
filme para passar “uma mensagem de amor e compreensão do
semelhante”. Mas, é um filme que revela o quanto as prisões diárias
castram, nulificam e produzem, com bastante frequência, o medo.
Viva Aniki-Bóbó, mais de 70 anos depois! Não pelo que ele foi, mas,
antes de tudo, pelos meandros do poder que ele pôde revelar.
22s u m á r i o
A DOR COMO OFÍCIO
Era um verdadeiro artista. Capaz de passar dias a fio sem
comer, ele entretinha multidões e despertava náuseas em antipati-
zantes. Não lhe coube, no livro, um nome próprio que o interpelasse.
Sob o ofício e o título de sua profissão, recaia toda sorte de signifi-
cados e valores estigmatizados. Ele despertava sentimentos ambi-
valentes. Assombrava, era admirado, causava repulsa, era acusado
de charlatão e tinha numa jaula seu palco diário de suntuoso encan-
tamento. Num passado glorioso, acordava e dormia sob o olhar
atento de incrédulos. Era vigiado, agraciado quando finalizava o
trabalho e sempre arrebatado pelo desejo de que era possível ir
mais longe. Não desejava parar. Não queria parar! Levou tão a sério
seu ofício que morreu no palco em meio a palhas, confundido com
elas. Desapareceu sem ser notado. Não houve plateia para ovacio-
ná-lo. Foi substituído por um bicho. Ele era o jejuador.
Um artista da fome, conto do escritor Franz Kafka publi-
cado em 1922, é um desconcertante prelúdio ao nosso tempo. Um
romance endereçado à nossa condição histórica que causa emba-
raço e aversão. Um romance que tem no trabalho de um artista,
de um homem que tinha como ofício passar dias sem comida, seu
argumento principal. Do corpo deste artista de rua, que passa fome
para servir de atração, Kafka, sem querer, lança duas perguntas
inquietantes sobre nossa ética: por que aceitamos a dor no intuito
de agradar os outros? Por que aceitamos a dor para ter o reconhe-
cimento dos outros?
Arrodeado de grades e olhos, o jejuador é, metaforicamente,
o presidiário dos valores alheios; dos valores que imprimem nos
corpos verdadeiras armaduras comportamentais. Ele encara o
mundo pela satisfação alheia. Transforma a praça ou o circo onde
atua numa atmosfera passiva de curtição. Ainda que ele retruque,
23s u m á r i o
que replique dizendo que passa fome porque nada lhe agrada o
paladar, seu corpo é refém da vontade da plateia, das crianças que
sorriem, dos adultos que o acusam de trapaceiro, do empresário
que estabelece o limite para o seu jejum. Ele é um artista porque
agrada. Ele é artista enquanto agrada.
Alguém, atônito e aflito, se pergunta: Por que um homem
passaria fome para agradar os outros? Seria possível existir alguém
que passaria fome para se encaixar num padrão, num modelo,
numa forma pré-fabricada de composição físico-corporal? Por que
o jejuador aceita a vida como um espetáculo de farta admiração
sobre sua fome?
Outro, meticuloso leitor do conto de Kafka e signatário das
palavras, responde usando o texto: Porque ele não pôde “encontrar
comida que [lhe] agradasse”.
O jejuador, a despeito da fome que passa por que nada lhe
agrada, é todo aquele e aquela que na dor encontra o seu conforto.
Que na carência exagerada, nos excessivos pedidos de desculpa,
na demasiada fome de cuidado, clama por olhares e gestos de apro-
vação. É aquele e aquela que presenteia com frequência esperando
ser mais amado, mais lembrado, mais querido. É o que se priva da
diversão, da noite de sono, do estudo, do trabalho em nome de uma
suposta maior atenção do outro. O jejuador encerra seus argumentos
em prantos e com uma senha lamuriante: “eu faço tudo por você”.
Num universo de jejuadores inconscientes, os que comem
e encarram a vida sem a prescrição alheia, são gordos, obesos,
fora de forma, depositários de gordura, feios e, em alguns casos,
nojentos. Jejuar, no conto de Kafka, era atributo de um artista de rua
muito especial. Jejuar, na contemporaneidade, de exceção passou
a regra. Ele se espalhou pelas fábricas, escolas, parques, univer-
sidades... Ele não é mais reconhecido dentro de uma jaula, nem
24s u m á r i o
com um corpo esguio e franzino. Há jejuadores fortes e esbeltos; há
jejuadores pobres e outros tantos ricos; há quem jejue por missão,
prazer ou ofício. Jejuar deixou de ser verbo alusivo a privação. A
(des)arte do jejuar contemporâneo está no oferecer sem limites, no
ajudar à espera de retribuição afetiva, no presentear e na recom-
pensa. O artista da fome de antes, substituído por uma pantera
quando sua fome já não agradava mais ninguém, é hoje o necessi-
tado do olhar e afeto alheio para sobreviver. Ele nos espreita virtu-
almente a todo instante. Ele vive entre nós. Ele até retribui nossa
curtida. Saudemos o virtual artista da fome pós-moderno.
25s u m á r i o
A OBEDIÊNCIA COMO ÉTICA
Quando Étienne de La Boétie nasceu, a Europa vivia um
processo de intensas e profundas mudanças políticas e culturais.	
La Boétie, filho de uma época ofuscada pelo brilho de Maquiavel,
Hobbes e Shakespeare, morreu menor em importância até que seu
amigo e admirador Montaigne. Como produto de uma época em
que “criticar” justificava uma condenação à morte, Étinne lança mão
do artifício do silêncio. Morreu novo e sem que tenha visto sua prin-
cipal obra publicada. Morreu sendo funcionário da instituição que
é a base de suas mais contundentes críticas. Em silêncio, saiu de
cena encurvado pelo medo das punições. Voltou, anos mais tarde,
como arauto da liberdade.
O Discurso sobre a servidão voluntária, sua principal obra,
incomoda menos pelo que foi e mais pelo que é. Sua importância
segue o movimento do requinte das tecnologias do poder. Quanto
mais se investe nas minúcias do controle, mais o Discurso aborrece.
Quanto mais o poder se esconde em vantagens, em camaradagens,
na cumplicidade e nas levezas gestuais de um dedo apontado ou
de um olhar de reprovação, tanto mais a obra de La Boétie se faz
necessária. Étienne pensou o texto como uma reflexão sobre o seu
tempo; eu penso o tempo como moldura rizomática para sua obra:
a cada novo fazer político, o Discurso, como um rizoma, se trans-
forma, ganha potência, se adapta, cria e permite novos sentidos.
Ele não faz concessões ao tempo nem ao lugar. Em qual-
quer época, em toda vila, casa, família, empresa, cidade, Estado, o
Discurso inquire quem o lê: Porque homens se tornam fracos? Porque
as pessoas se anulam? Porque escolhem/aceitam opressores?
Porque submetem sua vida, seu gozo, seu prazer ao julgamento e
aprovação dos outros? Porque encaram suas vontades como ameaça
à estabilidade do reino, da família, do trabalho e do relacionamento?
26s u m á r i o
O Discurso, lido a contrapelo, descreve o percurso da obedi-
ência diária. De uma ética da obediência e de uma obediência
camuflada em ética. De uma obediência que carrega um lastro de
felicidade endêmica, entorpecida, viciada. Felicidade que precisa
de uma rotina de castigo: uma dose errada de maus-tratos no
obediente é pior do que o mau-trato diário. De uma obediência que
aceita o silêncio em troca de um gozo rápido; que respira aliviada
quando encontra reciprocidade na conversa, no olhar, na cama e
na mesa do jantar. O obediente, embrutecido por sua ética servil/
voluntária, aceita a chacota diária como elogio; se acostuma com o
descaso e a tirania alheia. Fica feliz quando presenteia e se contenta
em nunca receber um pedido sincero de agradecimento. Obedece,
muitas das vezes, a quem não tem experiência alguma.
A quem, enfim, o obediente teme? Ao rei, ao policial, ao
“chefe” da família, ao gerente da empresa, ao marido ou à esposa,
ao pai, a mãe, ao “doutor” e ao professor. “O Homem escolhe seu
próprio opressor”. Em que reside a força do tirano, do macho, da
feminista, dos totalitários, conservadores e fascistas de plantão? No
definhamento diário do obediente. A força do tirano está na obedi-
ência dos que se vendem em troca de um cargo, de uma promoção,
de mais dinheiro e de, supostamente, mais poder.
Lição de La Boétie depois de diagnosticar um universo social
voluntariamente servil: O não servir é a arma contra a obediência e
a opressão.
27s u m á r i o
EL EMPLEO
El empleo (O emprego, 2008), do diretor argentino Santiago
Grasso, é uma dessas animações que deixa a gente atônito. Da
primeira à última imagem, o filme entorna angústia, aflição, anulação
e mais outros tantos vômitos adjetivais sinônimos de prostração e
desalento. Dá um verdadeiro embrulho no estômago! Um curta que
fala da inércia a que somos submetidos diariamente, mas também
das marcas que o trabalho e o sistema operam em nós e das “coer-
ções silenciosas das relações econômicas”.
O enredo é relativamente simples: trata-se de descrever a
monótona – e aparentemente repetitiva – vida de um “trabalhador”
do momento em que ele acorda até sua chegada ao trabalho. O que
assombra não é essa constatação de monotonia e sisifismo já tão
evidente na nossa existência laboral. O que espanta, primeiramente, é
o próprio enervamento das pessoas. Há uma espécie de dopamento
coletivo, um apequenamento dos sujeitos que acabam se transfor-
mando numa coletividade amorfa, sem brilho e reação. Pessoas se
cruzam sem se olharem; pessoas se olham sem se enxergarem.
Num cenário desprovido de som e com poucas cores, humanos,
demasiados humanos, estão alienados, transvestidos de gente e
transformados em objetos. Isso não só assombra, mas deixa a gente
extasiado: humanos, demasiados humanos, servem para pendurar,
segurar lustres, roupas, servem de cadeira, mesa e para se pisar.
Há um Nietzsche trágico por todos os lados. Mas, há um Marx
cínico por trás de tudo. A força de sua imagem/teoria aparece nas
cenas inicias do curta quando o relógio mensura o “direito” ao sono
e descanso do trabalhador; ela se insinua com veemência, também,
no rosto embrutecido dos trabalhadores. Um Marx metafórico
aparece diluído nos fetiches das mercadorias utilizadas: cadeiras e
mesas que são gentes, carros e semáforos, abajur, cabide, porta e
28s u m á r i o
até um tapete... são mercadorias/gentes. Não são pessoas produ-
toras de mercadoria que se anulam nas relações de troca. Não são
pessoas esquecidas, apagadas nas relações de troca para dar
lugar e endeusar o dinheiro. São gentes transformadas em merca-
dorias para se anularem enquanto pessoas.
Personagens que não sorriem lembram a robustez do
emprego. Personagens ofegantes entoam suspiros de desespe-
rança. A sintonia dessas respirações profundas, produz uma sinfonia
de fadiga mútua. Numa extenuante lassidão coletiva, personagens
fazem “papeis” de assento, de transporte, de lustre, num continum
de cansaço e desânimo. Na quase ausência de som, o barulho do
relógio logo no início da animação, marca cadente os passos do
dia e do sofrimento que o homem carrega. E o tempo do relógio
adverte: o trabalho dignifica; o trabalho mortifica.
***
É do homem signado no corpo de um abajur que nasce um
gesto de revolta. Metaforicamente expressando a luz num cenário
sombrio e escuro, ele rompe os grilhões de sua condição de objeto:
retira do rosto a cúpula do abajur que lhe cobria a fronte como se
fosse uma venda; encarra, desafia, afronta sem medo o que lhe
oprimia. Num único suspiro, de nulificado o homem se torna arauto
da revolução.
29s u m á r i o
ALPHAVILLE: A UTOPIA DA CIDADE SEM DOR
A cidade era um imenso empório monolítico em preto e
branco. Circulando por entre ruas sem cor e cheiro, homens e
mulheres de expressões embrutecidas, silenciados pela máquina
e contaminados pelo totalitarismo do Estado. Num cenário onde se
misturam o sombrio e o sublime, uma voz roca sutura os estran-
geiros ao sistema, costura seus desvios ao padrão, disciplina sua
fala tosando a linguagem e instaura uma nova forma de viver que
suprime toda manifestação de ação sentimental.
Na sua parte sombria e triste, extensos corredores com muitas
portas e pouca luz preenchem o desenho de monumentais prédios
urbanos; na sua face sublime e glamorosa, móveis, roupas, tecno-
logia e grandes construções compõem o caldo simbólico daquilo
que é considerado “novo”, “moderno”. As imagens, as falas e a ação
indicam a existência de um viver desprovido de sentimentos; com
sujeitos presos no tempo e no espaço a uma experiência racionalista,
todos estão – caso contrário são sumariamente eliminados – presos
às formas dominantes de pensamentos e aos seus mecanismos de
disciplinamento. Num cenário onde as roupas, o comportamento e
as falas denunciam uma aversão à indisciplina, são poucos os que
ousam enfrentar a apatia sentimental e com gestos “escandalosos”
acusam o sistema de repressivo e cego; esses poucos morrem
levantando uma bandeira em defesa da liberdade, denunciando as
armadilhas do viver circunscrito no sistema e rebatendo a sua insen-
sibilidade com lagrimas e um discurso de morte.
O som de suspensa constante; a reiterada fala de presenti-
ficação dos personagens – “na vida só existe o presente”. “Karl”,
o motorista silencioso que carrega um suposto jornalista do “figa-
ro-pravda”. Um universo onde as “coisas mais estranhas são
normais nessa droga de cidade”; de uma cidade onde um bêbado
30s u m á r i o
é que diagnostica o grande mal de se viver nessa sociedade,
“uma sociedade técnica, como a dos cupins ou das formigas”.
São todos signos de uma condição histórica onde as contradi-
ções denunciam a pertinência do cinema como uma linguagem do
tempo e contra a História.
As imagens de que se está falando dizem respeito ao filme
Alphaville, de Jean Luc Godard, lançado em 1965. Um filme secun-
dário na produção de Godard e pouco expressivo enquanto mate-
rial de vanguarda. Apontado como filme policial, desconectado das
vanguardas europeias, Alphaville é, entretanto, entre suas muitas
facetas, a contra-história sensitiva dos anos 1960. Uma contra-his-
tória que tenta romper com certa tradição historiográfica sobre a
década de 1960. Uma contra-história que rompe com a narrativa
de uma época com suas marcas identitárias produto de uma força
historiográfica renitente.
Em linhas gerais, enquanto na década de 1960 os corpos e
comportamentos afloravam, na literatura, nos filmes e na historio-
grafia, em gestos escandalosos e deselegantes com o mínimo de
pudor e o máximo de exotismo, Jean-Luc Godard constrói para o
cinema uma narrativa com corpos acuados, desprovidos de senti-
mentos, fechados e castrados de sensibilidades. Numa cidade
onde os homens expressam uma anti-metáfora da vida, em vez de
complexa e multifacetada, ela é reduzida há um punhado de ações,
a comportamentos já pré-concebidos e valores determinados e
controlados por aquela que viria a se tornar no cinema e em grande
parte da literatura recente a grande vilã da nossa era: a tecnologia e
o seu desmembramento mais fascinante, o computador.
Maior que um filme policial – categoria em que, geralmente,
é inserido –, Godard e Alphaville, sub-repticiamente, incisivamente
lançam questionamentos para o nosso tempo: o que é a normali-
dade? O que é e em que medida se processa a liberdade? O que
31s u m á r i o
é e o que torna uma cidade feliz? Não há resposta possível. O que
o filme faz, entretanto, é um convite a pensar e a agir, a reconhecer
as amarras que nos engendram a determinados comportamentos
e nos fazem agrupar pensamentos que se coadunam com os inte-
resses do poder. Alphaville é a metáfora de uma cidade sem dor,
onde o que há de maior limitação do sofrimento, é a incapacidade
de encontrar o significado das palavras que deem sentido as subje-
tividades dos homens. Alphaville é a nulificação expressa numa
cidade castrada de linguagem. E se a linguagem significa o mundo,
o que se perde com a extinção de palavras é a própria capacidade
de se dizer sujeito no mundo. Alphaville descreve uma cidade sem
dor, ao mesmo tempo em que se compraz com ela.
32s u m á r i o
SER FRATERNO NA INDIFERENÇA: MERSAULT E O MUNDO
Compreendi, então, que um homem que
houvesse vivido um único dia poderia sem difi-
culdade passar cem anos numa prisão. Teria
recordações suficientes para não se entediar.
Mersault, O Estrangeiro.
Sem forçar muito a barra, Mersault é um nulificado. Não como
Josef K., o funcionário público do Processo que se deixa levar pela
coação de um crime que sequer soube cometer, ou por Carlitos, o
jovem de Aniki-bóbó aprisionado pela moral e bons costumes da
sociedade portuense na primeira metade do século 20. Mersault é
um tipo de nulificado diferente. Sofisticado, eu diria. Ele até compre-
ende o crime que cometeu, sabe as consequências do seu ato, iden-
tifica com clareza os personagens que lhe julgam, percebe de onde
aparecem as forças e os meandros do poder que definem os seus
rumos e, em certo sentido, comunga até com a sentença que recebe.
Mersault, figura central do romance O Estrangeiro, de Albert
Camus, foi apontado por Roland Barthes como “o primeiro romance
clássico do pós-guerra”. É em torno da afirmação de Barthes que se
sustentam argumentos de que o livro é resultado de um momento de
espanto, sobressalto, susto, pavor com os resultados da Segunda
Guerra; esta situação/cenário, notadamente europeia, teria sido
traduzida, no livro, numa expressão de vazio, de estranheza com
as relações familiares, com as leis e com a sociedade. No limite,
Mersault traduziria em lacuna a existência do homem pós-guerra;
de um homem que se reconhece mais apequenado, insignificante,
imerso numa crise existencial que lhe desprende das normas, das
regras, das convenções e da própria sociedade em que vive. Foi
assim que O Estrangeiro foi lido e apresentado de 1942 para cá.
Proponho olhar para o livro de uma forma um pouco diferente.
Primeiro ressaltar que há algo recorrente na literatura da nulificação
33s u m á r i o
e que permite olhar para o romance de Camus como, também, um
arauto das representações do a-sujeitamento. Há, neste tipo de
literatura, sempre um chefe, um escritório, um trabalho maçante,
uma rotina, além de cenários sem brilho, personagens arrodeados
de insensibilidade, arroubos de tristeza e intensa melancolia. Há
vingança, castigo, preponderância do papel masculino, domínio
do homem sobre a mulher e, em alguns casos, até misoginia. O
Estrangeiro carrega muitas destas características. Algo animalesco,
além disso, exaspera neste tipo de romance: um homem no corpo
de uma barata, em A metamorfose, ou um cão que se parece com o
dono, como o cocker spaniel do velho Salamano D’Estrangeiro. Um
jogo de alteridade para dizer quem sou a partir de um corpo animal
ou o drama de não se reconhecer humano por se viver num universo
mediando pela insensibilidade?
Para o nulificado-sofisticado Mersault tanto faz! A indiferença
com/no trabalho, a indiferença com a morte da mãe, a apatia diante
do que pode ou não acontecer com o seu destino, no seu relaciona-
mento com Marie, com a proposta de ir morar em Paris... Mersault
responde indiferente a um universo marcado pela impassibilidade. Ao
seu redor, personagens de um romance ora dramático, ora irônico,
que manifestam suas ações em comportamentos quase previsíveis.
A vizinhança com seus problemas diários, o homem sustentado
pela mulher, Marie, a doce Marie que suplica o amor de Mersault,
o velho que bate diária e rotineiramente no cão, mas sente imensa
falta quando o animal some (a presença – do cão – que incomoda;
a ausência dele que destrói. Quando é possível se acostumar com
uma ausência?); Camus concebe Mersault como um arquétipo de
nulificado encetado por um grupo de sujeitos e cenários previsíveis.
O tédio, não o arrependimento. O enfado, a preguiça, a falta
de ânimo em argumentar, em se declarar apenas envolvido num
crime por força do acaso, do destino. Mersault não é do tipo de
nulificado que tenta falar, mas é coagido, impedido, sancionado
34s u m á r i o
pelo Estado, pela lei, pela força de uma autoridade policial, pelo pai
ou pela moral. Mersault é um tipo de nulificado que é aprisionado
pela apatia, pelo marasmo, pela sonolência (“posso dizer que nos
últimos meses dormia dezesseis a dezoito horas por dia”).
A indiferença que une a todos. A certa altura, parece que o
maior crime não foi Mersault ter matado alguém. Não foi o tiro que
matou o árabe, nem os outros quatro que revelariam certo despren-
dimento de apreço pelo morto. Mas, a certa altura, seu crime parece
ser muito mais a indiferença com que tratou a mãe ao mandá-la para
o asilo e, sobretudo, no seu velório e enterro. Essa indiferença torna
Mersault integrado a um sistema social de indiferenças, a uma comu-
nhão de valores e comportamentos que não se comprazem com as
dores e os sofrimentos alheios. Numa fraternidade marcada pela
indiferença, o bode expiatório, o indesejado e nulificado Mersault, só
consegue pensar que no seu julgamento o afastavam cada vez “mais
do caso, reduzí[ndo-o] a zero e, de certa forma, substituí[ndo-o]”.
A espera, a angústia de se esperar a morte quando se tem
certeza que ela virá não de acidente, de doença ou morte natural,
mas da decisão de homens comuns, normais iguais a ele, por
“homens que trocam de roupas”, que são lascivos nas suas deci-
sões, que são levados pela ardilosidade do promotor ou inefici-
ência do advogado; por homens que não julgam crimes, mas quais
narrativas sobre esses crimes são mais válidas, mais eficientes – no
limite, quem mente melhor. No final, diante de um cenário angus-
tiante, isolado, encarcerado numa cela esperando o barulho da
sirene e os guardas que o conduziria ao patíbulo, o que Mersault
deseja é transformar em razão o que é delírio, o que é insensível às
palavras, ao próprio vocabulário.
Por fim, a história de Mersault é a narrativa dos possíveis.
Dos possíveis enredos, das possíveis formas de se contar algo ou o
que houve; da inexistência de uma verdade, de um discurso asser-
35s u m á r i o
tivo e definitivo sobre algo. Mersault, o funcionário que recebeu nas
primeiras horas de um dia modorrento a notícia de que sua mãe
havia falecido, participou discreta e apaticamente do seu velório,
contou, no curso do livro, sua história de envolvimento com Marie
e a furtiva amizade com Raymond. No final, descreveu a situação
que o levou a disparar contra o árabe na praia. Da narrativa que o
próprio Mersault contou, pouca coisa se aproveitou em seu julga-
mento. O que sobrou de um enredo em que o seu sujeito principal
é amordaçado pela narrativa que os outros contaram sobre ele, é a
lição de que a História é uma narrativa dos possíveis.
36s u m á r i o
O QUE NOS OPRIME?
Cada um tem seu opressor! O funcionário de um chefe auto-
ritário, que é assediado e maltratado em troca da manutenção do
emprego; o homem casado, servil, que se desdobra em gentilezas
e presentes para não contrariar a amante e ver seu casamento
arruinado; o guarda, vigilante da propriedade alheia que sucumbe
à tentação de uma propina e passa a ser refém de possíveis denún-
cias; o filho, herdeiro de uma educação de maus-tratos e vilipên-
dios, que nunca denunciou o pai, ironicamente, com medo de sua
ausência. Num universo social sustentado em prêmios e hierar-
quias, o homem escolhe seu próprio opressor, já dizia La Boétie.
Em Diante da Lei, parábola do final do século XIX do escritor
tcheco Franz Kafka, a opressão se configura numa dinâmica um
pouco diferente. Ela não é medo nem receio de punição; não é
produto de um poder discricionário, de um rei ou ditador. Ela é se
configura como algo burocrático, que se faz na inoperância das
coisas, na dificuldade, na languidez da resolução dos problemas,
na leniência e inacessibilidade ao que é garantido como direito.
Trata-se de uma opressão que anula o indivíduo, que fragiliza sua
condição de ação, afirmando sua insignificância diante de um
sistema que se mobiliza para fazer não funcionar nossas garantias.
A opressão burocrática pioneira e literariamente apresentada
por Kafka, ganha contornos pós-moderno num dos episódios do
longa argentino Relatos Selvagens do diretor Damián Szifron. Nele,
Simon Fisher, um engenheiro especialista em explosivos, tem seu
carro rebocado por uma empresa que presta serviços ao sistema de
trânsito argentino. Uma sinfonia de injustiças se segue. Empresas
que roubam para governos, governos comprometidos com o mal
serviço, funcionários mal preparados, arrogantes, atendendo
“clientes” pela proteção (?) de um vidro. Do outro lado, no polo
37s u m á r i o
passivo e frágil dessa relação flagrantemente desproporcional de
forças, um sujeito que assiste impávido o Estado lhe extorquindo. E
não se trata de ter um Estado só ineficiente, que não cumpre com
seu dever, mas se trata de ter um sistema estatal que funciona para
manter injustiça. Dos enormes engarrafamentos, dos péssimos de
serviços de telefonia móvel – resultado da vagareza como que se
fiscaliza seu funcionamento –, do sistema corrupto das repartições
governamentais, tudo opera no homem uma indignação que beira
a loucura. Simon Fisher, o engenheiro especialista em explosivos
imerso num cenário pós-moderno de opressão, inventa uma forma
pós-moderna de lidar com as injustiças do sistema. Coloca uma
bomba no pátio da empresa subsidiária do governo que rebocou,
injusta e desonestamente, seu carro. “Se não dá pra fazer nada,
a gente avacalha”, já dizia o Bandido da Luz Vermelha, no final
dos anos 1960, num país vizinho dos Hermanos, numa espécie
de prenúncio a essa situação de total desamparo e impossibi-
lidade de ação. Simon, de engenheiro demitido, pai desleixado e
marido ausente, se tornou um herói. A nulificação, no caso dele, fez
repercutir um brando, em alto e bom som, de seu hermano pobre,
marginalizado pelo sistema social e econômico brasileiro de cinco
décadas atrás: “se não dá pra fazer nada, a gente avacalha”.
Com Kakfa o desdobramento das cenas de investida do
Estado no enervamento do indivíduo é bem diferente. Diante da
Lei é uma dessas pequenas narrativas sobre o a-sujeitamento que
assusta pela brutalidade com que escancara a maledicência do
poder a nossa frente. Estar Diante da Lei é, em primeiro lugar, um
gesto metafórico da impossibilidade de estar na lei, de ser abra-
çado por ela, de ser assistido pela sua eficiência, sua proteção ou
amparo. Se colocar Diante da Lei é saber-se prostrado, é saber da
dificuldade de se chegar até ela, do seu acesso e das várias mano-
bras que fazem agi-la em nosso desfavor. Viver Diante da Lei, anos
a fio, como o camponês da parábola de Kafka, é se a-sujeitar diante
38s u m á r i o
de uma situação de completo aniquilamento pelas instituições, pela
burocracia, pela inoperância do Direito ou das repartições públicas.
Diante da Lei não é só um “conto” para falar sobre como o
acesso à justiça dinamita nossas pretensões judiciais. Mas, é um conto
que coloca em suspeição os interesses que existem por trás da própria
inoperância do sistema. Não só do sistema de justiça, mas do sistema
burocrático, do sistema de saúde que faz o indivíduo desistir do trata-
mento pela demora; da ineficiência do transporte público que te faz
comprar um carro, entupindo mais as cidades e gerando um nó de opri-
midos nulificados que xingam a todo instante o outro no trânsito, quando
deveria gritar um sonoro e reverberante “vá se lascar” ao sistema.
Na figura do camponês Kafka construiu essa narrativa de
embrutecimento diário diante da impossibilidade de reagir. De um
embrutecimento que vai calando nossa indignação, nossa capaci-
dade de reagir, de encontrar saídas e pensar em outras possibili-
dades de ação. “Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto
e bom som e depois, ao envelhecer, limita-se a resmungar entre
dentes. Torna-se infantil e como, ao fim de tanto examinar o guarda
durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste,
pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda. Por fim,
enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu
redor ou se os olhos o enganam”.
Na figura do camponês, alguém desprovido de status social
ou bens materiais, ressoa um espectro da dignidade. De alguém
que só quer ter suas mínimas garantias asseguradas, seu nome
zelado, sua família protegida e sua vida livre de infortúnios documen-
tais, rotinas e aborrecimentos burocráticos. Na figura do guarda que
impede o acesso à lei, ressoa o espectro da proibição, da impossibi-
lidade de se afrontar aquele que é maior em tamanho, em redes de
proteção, em poder. Sob os corpos e imagens do camponês e do
guarda operam valores ambivalentes e conflitantes. Sob os rastros
39s u m á r i o
de suas imagens, se viu nasceu um universo, de um lado, de ordeiros
e passivos cumpridores da lei e, do outro, de ordeiros e passivos
seguidores da lei. Fazer cumprir a lei foi a pedra de toque para a
construção de um cenário de autoritarismos e opressões, de um
corpo burocrático, policialesco, de funções confusas e confusamente
organizado em hierarquias para geram medo e insegurança. Seguir a
lei foi a hermenêutica jurídica criada para disfarçar a opressão e fazer
crer na existência de um direito universal, que atinge a todos e que é
uma garantia, inclusive, natural. Fazer cumprir a lei e segui-la estão em
lados opostos no conto de Kafka. Elas exprimem com requintes de
crueldade as malícias do que faz o cumpridor da lei e, por outro lado,
o anulamento até a morte mental e física do seguidor da lei.
“– Se todos aspiram a Lei”, disse o homem. – “Como é que,
durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para
entrar?”. O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem
estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: – “Aqui ninguém
mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta.
Agora vou-me embora e fecho-a”. Através da parábola de Kafka, La
Boéttie grita: cada um tem seu próprio opressor.
40s u m á r i o
QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS, PRIMEIRO CAPÍTULO:
A ARROGÂNCIA
Luigi Zoja, psicólogo italiano de viés analista e autor de
“História da Arrogância: psicologia e limites do desenvolvimento
humano”, utiliza as figuras da mitologia grega para explicar como os
homens mataram os deuses e se tornaram senhores e soberanos
de sua própria vontade. Ele explica que da “Ilíada” a “Édipo, Rei”,
parte substancial das narrativas gregas expõem um universo onde
homens desafiam seus superiores – seja um Deus ou um pai – para
se arrogar o direito de saber mais, de conhecer mais, de ser dono e
senhor do seu destino, de ser opressor porque se julgam maiores,
melhores, mais capazes ou fortes. Segundo Zoja, a “História da
Arrogância” começa quando o homem, que inventou e criou os
deuses para ser um limite às suas próprias ações, desafia suas
próprias divindades para se colocar no lugar delas, para se colocar
como um mito, um herói, uma figura de superioridade física e mental
em relação aos deuses e, por extensão, a seus semelhantes.
A modernidade, entendida como algo que surge com o advento
da cientificidade, com todo seu discurso em defesa da razão, ciência,
tecnologia e progresso, acabou por enterrar os deuses e projetou a
figura do homem como algo tão cheio de si que não necessita de fé
e espiritualidade, que dissocia mente, espírito e corpo, dando vazão
ao “cogito” cartesiano de que pensamento e existência são coisas
distintas, isoladas, desvinculados um do outro. E mais, fez parece
que cada homem é senhor de si próprio, que personificou a exis-
tência, customizou os valores, individualizou tanto os preceitos éticos
e morais, que fez cada um construir uma teoria sobre si e sobre os
outros onde não há lugar para o debate nem para a conciliação.
Nietsche percebeu o nascimento deste mundo. Freud diagnosticou
o mal no nascimento deste mundo. Foucault falou das feridas narcí-
sicas deste mundo. E a gente continua afundado num universo de
41s u m á r i o
tragédias anunciadas, de egos que não dialogam e de gente que só
consegue enxergar sua própria face no espelho.
Recentemente assisti Bohemian Rhapsody, filme/biografia de
Freddie Mercury, vocalista, letrista e artífice de uma gama de movi-
mentos vanguardistas que tomaram grande proporção com a banda
Queen. A despeito de toda carga emotiva que o filme desperta – e
falo isso generalizando porque tive o prazer de assistir ao filme com
vários amigos e todos concordamos com isso – trata-se de um filme
que conta a história de destruição e redenção de um “mito” a partir
da arrogância. Freddie, que nasceu na Tanzânia, estudou na Índia
e migrou com a família para a Inglaterra, herdou toda aquela carga
simbólica de imigrantes que precisavam romper com barreiras morais,
culturais e, inclusive, sexuais, para se firmar num cenário europeu de
muitas transformações em plena década de 1970. Sobreviveu ao
preconceito de origem e de lugar, aos preceitos conservadores e
tradicionais do pai, à desconfiança dos primeiros amigos de banda
e firmou-se como um dos maiores ícones do rock e de suas muitas
metamorfoses nos anos 1970/1980. Nada convencional, vendeu-se e
vendeu sua banda como algo que não se encaixava, que se refazia
a cada novo álbum, que abria novas sonoridades, novas percepções
de sons e imagens sonoras. Morreu com 45 anos, vitimado pela AIDS,
tendo vivido as várias facetas da sexualidade numa época em que se
dizia que a SIDA era uma doença de homossexuais.
Porém, mesmo com a leveza de músicas como a própria
Bohemian Rhapsody, que dá nome ao filme, não retiram do vocalista
do Queen a presunção e arrogância que a modernidade tratou de
nomear como genialidade. Desprezou amigos, rompeu um relacio-
namento que lhe dava segurança, afastou-se da família e se arrogou
o dono de uma verdade que era construída em meio a um cenário
de relações interesseiras, fluidas, vazias e sem apreço pela história
que lhe produziu/projetou com mito. Freddie transformou-se numa
metáfora narcísica freudiana. E enquanto metáfora do nosso tempo,
42s u m á r i o
passou a representar toda aquele e aquela que coloca o seu “Ego”
acima do interesse coletivo, de ajuda ao próximo, de conciliação, de
busca de um diálogo que favoreça a produção de um sentimento
de união. Ele passou a ser aquele que só conseguia enxergar sua
imagem no espelho, que precisou matar o pai, que precisou aniquilar
aqueles que lhes davam sentido de existência, aqueles que lhe davam
alguma segurava para, só assim, se reconhecer grande.
Na tragédia grega, Édipo furou os olhos ao ver tanta desgraça
com as consequências da morte de seu pai; Narciso, de tão admi-
rado pela sua beleza, ficou aprisionado no reflexo de sua própria
imagem no espelho. Na arrogante tragédia contemporânea em que
Freddie Mercury é um personagem quase mítico de uma geração,
onde heróis morrem de overdose e os inimigos assumem o poder,
é preciso não desejar furar os próprios olhos nem matar alguma voz
de sanidade que ambiciona ser apenas alento diante da surdez nas
relações. “Is this the real life? Is this just fantasy?”
Exultemos a redenção de Freddie Mercury.
43s u m á r i o
QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS, SEGUNDO CAPÍTULO: A
LIBERDADE
“Eu quero ser livre”, disse a(o) filha(o), a(o) namorada(o),
a(o) ativista(o), a(o) religiosa(o)... ouço e leio com frequência essa
afirmação; percebo e sinto com frequência o desejo de pessoas
se sentirem livres, de pessoas que se dizem presas, amordaçadas
nas relações, anuladas pelo que consideram uma opressão diária
à sua liberdade. É claro que não só reconheço a existência de rela-
ções abusivas como condeno qualquer tipo de privação de vontade
em função da sustentação de uma convivência harmoniosa. Longe
de defender a manutenção de situações desse tipo! O que me
parece e soa estranho, isso sim, é uma fala recorrente em defesa
de uma liberdade sem objetivo algum, sem fundamento ou, pelo
menos, questionamento sobre o que significa ser livre. Isso me leva,
também com recorrência, a uma pergunta meio tautológica: o que
há de errado com a liberdade?
A pergunta parece estranha porque pressupõe a existência
de algo inconcebível. Sendo a liberdade um ato que exprime a
vontade individual e as marcas do desejo de alguém por trás de uma
necessidade, perguntar o que há de errado com ela seria o mesmo
que perguntar o há de errado com o calor do fogo. A pergunta,
no entanto, me inquieta por duas razões, em especial. Primeiro
porque reconheço certa frustração na “conquista” dessa liberdade;
segundo porque “ser livre” não me parece propriamente um estado,
mas uma percepção diferente sobre a realidade. Explico:
1) Cornelius Castoriadis, filósofo francês, dizia que nossa
sociedade não se deseja como sociedade, ela apenas se suporta. É
claro que a imagem de Castoriadis pode nos conduzir a uma visão
fatalista do processo histórico, sobretudo do nosso futuro. Se não nos
desejamos, vivemos no limite entre reconhecer nossa existência meio
44s u m á r i o
medíocre e/ou tocar fogo no circo mandando todo mundo se lascar
(a pretexto disso, ouço, com relativa frequência nos bares que ando,
uma música em que uma voz suave, feminina, doce e melosa pede,
encarecidamente pro seu parceiro, em alto e bom som, que ele “vá
tomar no c...”... nada estranho num mundo que não mais se suporta e
nem tolera o que era chamado antes de identidade). O problema, na
minha humilde opinião, é que desejar ser livre escapando de rótulos,
identidades, padrões, esquemas sociais pré-definidos ou o que
quer que seja, pode gerar um sentimento de frustração que, se não
cuidado, carrega o germe da depressão, da angústia, do vazio e da
ausência de sentido sobre a vida. Sendo o menos prolixo possível: o
desejo de ser livre, de se assumir como dono e senhor do seu destino,
carrega a expectativa de algo; mas uma expectativa que, na grande
maioria das vezes, não se concretiza por existir apenas no plano das
ideias; e se ela existe apenas no plano das ideias, a possibilidade de
frustração com o não cumprimento da expectativa é, senão certo,
pelo menos muito grande. Perde-se a identidade em nome de uma
certa liberdade e ganha-se a depressão...
2) Quando ouço alguém dizer “quero ser livre”, parto do pres-
suposto de que a liberdade é, para essa pessoa, uma conquista,
resultado de um esforço e compreensão de si, que permite avançar
para uma condição melhor de existência. Porém, na prática, os
comportamentos se expressam, na maioria das vezes, de forma um
pouco diferente... Novamente, de um ponto de vista muito particular,
não consigo conceber liberdade como um estado acabado, algo
que se conquista plena e definitivamente num dado momento e se
desfruta dele para o resto da vida. Sou foucaultiano (vê o rótulo e
a falta de liberdade que eu nem faço questão de perder...), e essa
condição me coloca numa situação ambígua diante da liberdade.
Primeiro porque reconheço que é fundamental desejar ser livre, mas
o próprio sentimento de desejo é, ele próprio, a maior prisão que o
homem carrega. Segundo porque não existe comportamento, fala,
45s u m á r i o
gesto, ação, palavra, olhar, etc, etc, etc, que seja completamente
desprovido de algum tipo de poder que o manipule. É impossível,
portanto, se pensar numa liberdade totalmente livre, quando até os
gestos em defesa da emancipação são, também, resultados de
ações políticas sobre o corpo dos indivíduos.
Onde estaria e se “conquistaria”, então, essa tal liberdade?
A melhor resposta para isso eu, também de forma muito particular,
encontro na filosofia oriental... seja no taoísmo, budismo, no yoga
ou qualquer outra de suas manifestações espirituais ou corporais.
Nelas, a liberdade se trata de um gesto, de um gesto que envolve,
principalmente, a forma como olhamos para o que está ao nosso
redor. Ser livre não significa fazer o que se quer ou poder expressar
opiniões à vontade, mas significa ter a capacidade de escolher
como se olha para o mundo, significa ter a capacidade de escolher
com quais sentimentos se vai produzir a realidade ao nosso redor.
Ser livre é um comprometimento consigo mesmo, um comprometi-
mento com a minha/sua percepção de tudo que me/te rodeia. Com
a filosofia oriental (e sua acepção mais ocidental no âmbito das ciên-
cias chamada de física quântica), aprendi que nada é absoluto, que
tudo resulta da maneira como se constrói, através da percepção,
a realidade. Enfim, antes de dizer “eu quero ser livre”, acho funda-
mental se perguntar: “eu tenho a capacidade de enxergar as coisas
de uma forma diferente da que as vejo?”. Isso é, na minha opinião,
a liberdade de forma clara e simples.
PARTE 2
CONTRANULIFICAÇÃO
Idelmar Gomes Cavalcante Júnior
Parte
2
CONTRANULIFICAÇÃO
IdelmarGomesCavalcanteJúnior
47s u m á r i o
PROLEGÔMENOS DA CONTRANULIFICAÇÃO I: O UIVO DE
UM CORPO SALIENTE E DELIRANTE
Nulificar-se é se submeter ao outro. É tomar como sua, a
verdade do outro. Não como tática, não para se defender, ao contrário,
o sujeito que se nulifica faz isso acreditando estar pensando, sentindo
e agindo de acordo com a sua própria vontade, quando na verdade
pensa, sente e age conforme uma vontade que lhe é estranha.
Josef K. foi nulificado. Foi assujeitado porque não via nenhuma
alternativa a um sistema que existe aniquilando os homens ordiná-
rios. Diógenes, o antigo grego, diante do poder encarnado na figura
de Alexandre, o Grande, preferiu debochar. O grande imperador,
postando-se diante dele e no auge de sua vaidade e auto-sufici-
ência diz: “Eu sou Alexandre. Há algo que possa fazer por você?”. E
tudo o que Diógenes fala é: “Sim. Saia da frente de minha luz”, para
continuar o seu banho de sol, tranquilamente2
.
Poucos agiriam com essa impertinência diante de um poder
tão encarnado. Essa atitude é alheia ao homem unidimensional de
Herbert Marcuse. Esse homem é tão bem integrado à sociedade
industrial, que acredita ser a lógica que a sustenta a única viável
de um ponto de vista racional. Também é alheia a um sistema que
passou a fabricar subjetividades como se fossem mercadorias,
como nos disse Félix Guattari. Num mundo disputado pelo desejo
de se alcançar um fim da história possível e triunfante, acabou brin-
cando de vencedor o sarcasmo capitalista de Francis Fukuyama.
Enreda-se, entre tudo isso, que a nulificação é filha dileta
das técnicas sofisticadas de disciplinamento reveladas por Michel
Foucault, em Vigiar e Punir. Mas seria possível pensar na sua antí-
2. Esse pequeno diálogo foi retirado do livro Contracultura através dos tempos, de Ken Goffman
e Dan Joy.
48s u m á r i o
tese? Em uma sociedade disciplinar, é possível pensar numa contra-
nulificação, como uma atitude que permita a uma subjetividade não
apenas desejar estar a todo momento fugindo das capturas sociais,
como também afrontar a ordem estabelecida?
Nos anos de 1950, nos Estados Unidos, um país então
marcado pelo otimismo e consumismo do pós-guerra e pelo macar-
thismo, todo inconformismo era visto com suspeita, mas nessa
época surgiram hipsters, jovens que, desencantados com a socie-
dade normativa em que viviam, passaram a desprezar toda e qual-
quer autoridade. Ávidos por liberdade, decidiram sair pelas estradas
do país em busca dos limites possíveis da liberdade. Contra eles,
além do escárnio dos homens unidimensionais, muitas vezes aplica-
ram-se prisões ou tratamentos em clínicas psiquiátricas, num tempo
em que os médicos acreditavam que sessões de eletrochoque ou
a lobotomia poderiam salvar o mundo dos não-ajustados em geral.
Uivo, de Allen Ginsberg, é uma delirante síntese desta vida.
Dedicado aos “fodidos anônimos e miseráveis sofredores e hipsters
de cabeça feita de todos os lugares”, este poema narra as experiên-
cias daqueles que viviam às margens de qualquer disciplina.
Não há final feliz ou prêmio por viverem assim, ao contrário,
viver em desarmonia com a grande máquina tecnocrática que tomou
conta das grandes cidades ocidentais não oferece caminhos fáceis.
Sem dinheiro, apoio institucional de qualquer tipo, os personagens
de Uivo vivem como escolheram viver, livres de qualquer constran-
gimento social. Mas pagam um alto preço. Vivem sem endereço
ou alimento certo; fixam-se constantemente em lugares deplorá-
veis, muitas vezes curando ressacas sucessivas; são expulsos das
academias; vigiados; investigados; presos e cortejam a morte com
atitudes suicidas.
Só a loucura justificaria uma vida assim. Uma loucura “santa”,
49s u m á r i o
como diriam os beats, à prova de eletrochoques. Uma loucura que
é nada mais do que a vida dos que decidiram viver, dos que viraram
as costas para o culto ao deus Capitalismo com todos os seus
demônios, para o culto ao Moloch de Ginsberg... Mas seja como
for, uma loucura que afinal cobra um alto preço... “Eu vi as melhores
cabeças da minha geração destruídas pela loucura...”.
Mas assim, numa atitude de autodestruição de um eu cheio
de doutrinas, dogmas e disciplinas, foi possível aos hipsters fugirem
do secular tabu sobre o corpo, aproveitarem o sexo sem culpa, esca-
parem da tirania do relógio, flutuarem ouvindo jazz, verem anjos e
seguirem livres pelo país (ou pelo mundo), cruzando estradas, sem
preocupações outras que não a de sentirem que o próprio corpo
está vivo.
Apesar disso, nem todos os personagens de Uivo se contra-
nulificam, afinal, existem outras formas de dependência e aniqui-
lação, para além daquelas sancionadas pelo Estado. Difícil dizer
que os “famélicos histéricos nus, arrastando-se pelas ruas do bairro
negro ao amanhecer na fissura de um pico” têm consciência do que
são e porque evitar as capturas sociais. Eles podem até afrontar a
ordem estabelecida, mas não passam de corpos à deriva sujeitos
inclusive às maquinações das instituições disciplinares, com suas
piedades e maldades.
Já Ginsberg, ao escrever Uivo, assumiu riscos. “Estou com
você [Carl Solomon] em Rockland onde despertamos do coma pelos
aviões de nossas próprias almas rugindo sobre o telhado”. Ele sabia
que desafiaria valores e os bons costumes da “puritana” sociedade
norte-americana. E por pouco o livro não foi proibido de circular, pois
chegou a ser apreendido pelo tribunal de justiça da Califórnia.
Uivo não foi subversivo apenas porque utilizava uma
linguagem “suja” com palavrões e gírias malvistas, ou porque
50s u m á r i o
apresentava o underground de uma sociedade rica e deslumbrada
consigo mesma, com o seu jeito higienizado e disciplinado de ser;
mas porque representava o corpo-oblíquo de Ginsberg. Uivo é
Ginsberg, um texto-corpo-testemunho de alguém que não aceitava
ser enquadrado, ser nomeado à sua revelia. Ginsberg foi um animal
que recusava taxinomia. Hétero, gay, louco, erudito, profeta ou um
drogado, fosse o que fosse, ele não o “seria” para os outros; ele
“seria” para si. E “seria” sob os seus próprios conceitos. Ginsberg
se contranulificava constantemente. Entrava em todas as estruturas
e sabia sair de todas elas.
E se não há final feliz em Uivo, há pelo menos afeto e carinho
pelos mais fracos, pelos esquecidos, e a promessa de que um
amigo fragilizado e exilado de si e de todos sempre terá abrigo. Eis
uma grande lição em tempos de tanto cinismo.
51s u m á r i o
PROLEGÔMENOS DA CONTRANULIFICAÇÃO II: O LADO
INFAME DA CONTRACULTURA EM ON THE ROAD
Hippies em trânsito e em transe, cabelos ao vento, harley
Davidsons cortando estradas, mochila nas costas, amor livre.
Acostumamo-nos a pensar nestes signos toda vez que encontramos
pela frente a palavra “contracultura”, que nos remete a uma raciona-
lidade contrária a uma cultura que possa se caracterizar como domi-
nante. Para Ken Goffman e Dan Joy, em seu livro Contracultura Através
dos tempos, seriam os princípios fundamentais da Contracultura:
a defesa por uma expressão pessoal, livre e não-egocêntrica, que
as pessoas deveriam gozar para, por exemplo, acreditarem no que
quisessem ou cultivarem a aparência que desejassem; a negação ao
autoritarismo e o estímulo às mudanças pessoais e sociais.
Ken Goffman e Dan Joy entendem que a contracultura existe
desde a Antiguidade. Contracultura através dos tempos apresenta,
assim, um longo recorte temporal que se inicia com o mito de
Prometeu e a trajetória de Abraão e se alonga até a cultura digital de
nossos dias. Mas acredito que o que entendemos por contracultura
não seria possível sem a valorização da natureza; a sedução que
a cultura oriental exerceu sobre a juventude ocidental; o pacifismo
e o desencanto com o modelo civilizatório do Ocidente, surgidos
após o fim da Segunda Guerra; a luta pelos direitos das minorias e
a revolução sexual. E tudo isso só começa a ser observado entre os
anos cinquenta e setenta do século XX.
Portanto, entendo que foram os hipsters que se autodenomi-
naram “beats”, aqueles que deram o passo decisivo para a emer-
gência daquilo que nomeamos “contracultura”, embora reconheça
que algumas manifestações anteriores, que Ken Goffman e Dan Joy
apresentam, tenham de uma forma ou de outra contribuído para o
seu começo, disperso como todos os começos são.
52s u m á r i o
E On the road, livro escrito por Jack Kerouac, foi certamente
a obra do universo beat de maior repercussão. Mais amplo e literal
que Uivo, a obra pode ser considerada uma síntese do estilo de vida
contracultural de Kerouac, Ginsberg e seus companheiros. Poucos
anos após a sua publicação, nos anos 1960, seria difícil encontrar
entre as diversas culturas juvenis simpáticas à contracultura, alguma
que não tenha de alguma forma sido influenciada pelos beats,
tornando, assim, On the road uma espécie de cânone do universo
contracultural, um livro de referência. Neste sentido, a obra pode
ser considerada precursora de uma revolução comportamental que
marcou fundamentalmente a noção de juventude, que se consagrou
no século XX. Os mochileiros de hoje são apenas o aspecto mais
visível de uma determinada cultura juvenil que pretende negar-se
à integração com qualquer sistema social hegemônico tido como
injusto e ultrapassado.
Em On the road, estão representados não apenas o próprio
Jack Kerouac, encarnado na figura carismática de Sal Paradise, mas
também outros ícones da geração beat, tais como Neal Cassady,
Allen Ginsberg e William Burroughs. O livro descreve as aventuras
de Paradise atravessando os Estados Unidos de costa à costa, em
estórias narradas em primeira pessoa. Ao que tudo indica, Kerouac
teria vivido boa parte das experiências que narra e as transforma
numa viagem épica ao coração de uma nação pretérita idealizada.
Os Estados Unidos desejados por Kerouac são aqueles dos
pioneiros, um lugar vasto, menos vigiado e pouco disciplinado.
Tentar experimentá-lo é, para o autor de On the road, a proclamação
de uma liberdade quase ilimitada. Mas esta não é a estória feliz de
um jovem em busca de diversão e que acaba encontrando-a em
profusão. Não é uma aventura juvenil. É um drama sobre alguém
que procura se perder na vastidão de um país com dimensões
continentais, em estradas e outros não-lugares onde possa
53s u m á r i o
exercitar mais facilmente o seu descompromisso com todos que
circunstancialmente lhe cercarem, para, quem sabe, poder se auto
descobrir até o final da viagem.
Nesta trajetória, os protagonistas da obra não se furtaram
aos excessos com drogas lícitas e ilícitas, contravenções, boemia e
sexo. E desta forma, On the road, expressão privilegiada da indoci-
lidade beat, tornou-se um dos principais símbolos da contracultura.
Mas como pensar a obra se levarmos em conta a contranulificação?
Se a contracultura compreende, de modo geral, sujeitos e
práticas que criam espaços próprios à margem daquilo que se
entende por establishment, a contranulificação teria um significado
mais restrito. Ela deve ser entendida como uma afronta consciente
a técnicas de disciplinamento próprias de um establishment e
é norteada por um desejo de estar sempre fugindo das capturas
sociais, mesmo que se esteja no espaço do outro e não nas suas
“margens”, e mesmo diante da consciência de que é impossível
fugir de todo tipo de captura. Ela, enfim, deve ser pensada como
uma prática, uma atitude pontual e não uma condição permanente
ou um estilo de vida. Quem se contranulifica, o faz diante de um
caso específico. Contranulifica-se quem, por exemplo, pratica uma
desobediência civil ou deixa o cabelo crescer numa sociedade fran-
camente contrária a este tipo de escolha.
Por essa razão, o conceito de contranulificação pode eviden-
ciar possíveis contradições em vivências contraculturais. Pode, por
exemplo, evidenciar que On the road possui uma fratura exposta, já
que ao mesmo tempo em que se tornou um importante símbolo de
liberdade e auto-conhecimento para jovens espalhados pelo mundo,
adota uma posição eminentemente sexista contra as mulheres.
Os homens em On the road são livres, as mulheres, nem
tanto. A elas, ou estão reservados os espaços privados, mais estri-
54s u m á r i o
tamente aqueles ligados às esposas, ou os espaços boêmios, mas,
nesses últimos, elas deveriam estar à disposição dos homens.
Marylou, a principal personagem feminina, por exemplo, logo
no início da obra é apresentada como a esposa de Dean Moriarty e
tratada como uma “gatinha” que era “terrivelmente estúpida e capaz
de coisas horríveis”. Essa adjetivação nos remete a uma concepção
antiga, segundo a qual aos homens está destinada a capacidade
de agir segundo a razão, enquanto as mulheres seriam mais sensí-
veis à emoção e outras características menos racionais. Além disso,
depois de uma noite de bebedeira na “espelunca” onde Dean e
Marylou estavam hospedados, ele “decidiu que a melhor coisa a
fazer era mandar Marylou preparar o café e varrer o chão”.
Em outro momento, a capacidade intelectual de duas garotas
também é menosprezada e elas são rebaixadas a um nível infe-
rior: “Elas eram burras e chatas”. O que realmente importava à Sal
Paradise, neste caso, era consumar um ato sexual, realizar-se sexu-
almente, sem qualquer afeto e sem se importar com o outro. E como
não foi concretizada a vontade do narrador, vieram a frustração e
o inconformismo que os levaram a tratar uma das garotas como
“estúpida” quando ela simplesmente exercia a sua própria vontade.
Terry, outra personagem feminina marcante na obra, foi
confundida com uma prostituta que teria o hábito de ganhar
dinheiro de homens que cruzassem o seu caminho em viagens
dentro de ônibus, exatamente como havia acontecido com o
próprio Sal Paradise. Em sua primeira descrição sobre Terry
podemos perceber como o corpo dela se torna objeto do desejo
do narrador: “Vi a mais deliciosa garota mexicana [...] Os seios
apontavam em frente, empinados e indiscutíveis, seus quadris
estreitos pareciam deliciosos, seu cabelo era longo, lustroso e
negro, seus olhos eram duas coisas azuis imensas, com certa
timidez lá dentro”. Mas ao chegarem a um Hotel, uma confusão se
55s u m á r i o
arma e Terry, coincidentemente, pensa que Sal é um gigolô e logo
os dois discutem. Ele, então, demonstra mais uma atitude sexista ao
conceber Terry como “uma putinha burra mexicana”.
Uma mulher, para os protagonistas de On the road, de prefe-
rência, deve ser uma “gata mansa e linda com aquele lugar delicioso
entre as pernas”. O termo “mansa” utilizado por Dean Moriarty, faz
menção àquela mulher que não “dá trabalho”, que não questiona o
seu papel nas relações de gênero, aquela que é obrigada a aceitar
todos os tipos de violência moral, psicológica, sexual, física e dife-
rentes tipos de grosserias masculinas.
Desta forma, os papéis sociais que foram tradicionalmente
designados aos diferentes gêneros em nossa cultura ocidental,
hegemonicamente branca, heterossexual e machista, não foram
colocados em questão em On the road. Ao contrário, a obra de
Kerouac, consagrada como uma negação aos padrões da sociabi-
lidade burguesa norte-americana, acaba reafirmando certos estere-
ótipos que a sociedade criou para tornar a mulher dócil e submissa.
Historicamente as mulheres são vistas como frágeis, inde-
fesas e seus comportamentos foram impostos ou influenciados
decisivamente pela Família, Religião e Estado, que incutiam
no pensamento feminino, como sendo necessária, a figura do
homem ao seu lado, seja como pai, irmão ou marido, já que eram
vistas como incapazes de se equipararem a eles. On the road não
parece romper com esta lógica, mas mesmo assim tem por mais
de meio século sido considerado um dos principais símbolos da
contracultura. E quantos outros abusos não foram cometidos, no
âmbito da contracultura, contra as mulheres, sob o pretexto de
uma liberdade que, tal como nas sociedades burguesas, só privi-
legiaria os homens?
56s u m á r i o
Por essa razão, se levarmos em conta a contranulificação,
On the road precisa ser questionado. A contranulificação é uma
prática, não uma condição. Um sujeito pode contranulificar-se num
instante e no instante seguinte nulificar-se ou o que é pior, nulificar
o outro. On the road, neste sentido, criou um devir possível para a
liberdade, mas também apresentou traços de um mundo não tão
vasto quanto as estradas que inspiraram os beats, traços de um
mundo pequeno e triste onde as mulheres também não são livres
para serem para si mesmas.
57s u m á r i o
PROLEGÔMENOS DA CONTRANULIFICAÇÃO III:
MOVIMENTOS DE ESQUERDA E A CONTRANULIFICAÇÃO
Final dos anos sessenta. A repressão promovida pelo governo
militar se torna mais vigorosa com a decretação do Ato Institucional
nº 5. Como descreve um famoso jornalista, autor de livros sobre
o assunto, a ditadura afinal escancarava-se. Tornaram-se pratica-
mente inexistentes as possibilidades de grandes manifestações
tomarem os espaços públicos, como as que foram possíveis nos
anos sessenta.
Saíamdecenaosjovensestudantesquecostumavamavançar
em passeatas, deslocando-se pela contramão das avenidas. Mais
do que uma metáfora, seguir na “contramão” era uma tática com a
qual pretendiam atrapalhar o trânsito para desnortear as forças da
repressão. Quando isso acontecia, poucos instantes depois, os mili-
tares ruidosamente passavam também a compor aquele cenário,
atacando impiedosamente os manifestantes com cassetetes, gás
lacrimogênio e até armas de fogo. Uma estratégia violenta e quase
sempre eficaz para dispersar a multidão. Mas nem toda resistência
se dispersava tão fácil.
Demonstrando uma surpreendente hostilidade, os manifes-
tantes algumas vezes respondiam à agressão policial com paus,
pedras e bolinhas de gude utilizadas para derrubar os cavalos em
caso de aparecimento de batalhões montados. Nos rostos, lenços
embebidos em amônia trazidos especialmente para neutralizar os
efeitos do gás lacrimogênio. Na garganta, palavras de ordem contra
o governo. No pensamento, uma revolução desejada.
Após o AI-5, parte desses estudantes foram para as orga-
nizações clandestinas de esquerda. Não era uma decisão fácil
assumir a vida na clandestinidade. Implicava correr riscos de toda
natureza. Risco de ser ferido, de ser preso, torturado ou mesmo
58s u m á r i o
morto. Formava-se, na época, uma geração de brasileiros que cedo
deveriam aprender que expressar opiniões contrárias ao governo
era crime e, portanto, perigoso.
Com o AI-5 houve a banalização da violência como instru-
mento para a garantia da ordem social. É certo que os piores
crimes contra seres humanos foram cometidos longe dos olhos dos
homens ordinários, nos porões; mas como ignorar, diante de tantos
indícios e mesmo enquanto simples possibilidade, que existiam
torturas e execuções? Longe de significar “inocência”, a ignorância,
simulada ou não, garantia neste caso consciências pacificadas.
Era essa a relação da sociedade com a violência institucionalizada
daqueles tempos, que se reproduzia no dia-a-dia pela constituição
constante de novos homens e mulheres dóceis ou de homens e
mulheres violentos dispostos a agirem em apoio ao regime.
Diante desse perigo crescente, a clandestinidade permitiria
algum tipo de segurança. Se nos anos sessenta os jovens e, parti-
cularmente, as principais lideranças estudantis ainda contavam com
alguma cobertura positiva de certos jornais mais liberais, a luta pela via
da clandestinidade não apenas acontecia no anonimato, mas neces-
sitava desse silêncio. Ninguém sabia quem eram aqueles militantes
anônimos, nem o que faziam ou pelo que lutavam. Pelo menos não
dito por eles mesmos. A verdade era mais do que nunca controlada
pelo poder vigente e pelos canais de comunicação à sua disposição.
Negar-se a aceitar essa ordem era contranulificar-se. Era
negar uma vida dirigida pelo autoritarismo e moldada pela violência
que impunha o silêncio como virtude. Mas como manter essa
contranulificação frente a uma necessidade tão grande de disci-
plina, como aquela que era imposta aos militantes clandestinos?
Fernando Gabeira nos permite pensar esta disciplina em seu
livro O que é isso companheiro?, no qual narra a sua experiência
59s u m á r i o
com a luta armada no final dos anos sessenta. Ele foi membro de
uma organização leninista que surgiu de uma ruptura no Partido
Comunista, ocorrida nos anos sessenta.
Diz Gabeira sobre o seu ingresso: “O companheiro encarre-
gado de comunicar que tinha sido aceito fez uma ligeira preleção
sobre minhas qualidades, meus defeitos e as novas tarefas que me
esperavam. De agora em diante, como no poema de Lorca, meu
nome não era mais meu nome, nem minha casa era mais minha
casa.” Na organização, a Dissidência Comunista, os novos mili-
tantes eram desafiados a abandonar suas antigas identidades,
o que implicava em deixar para trás amizades e antigos hábitos.
Deveriam renascer em corpo novo, um corpo militante disciplinado,
disposto a dar sua vida por seus ideais.
Gabeira demonstra, em sua obra, preocupação com essa
conduta rigorosa imposta pela vida militante. Em dado momento,
demonstrou não compreender como militantes mais jovens abdi-
cavam de coisas próprias de sua idade em nome de uma opção
política tão ascética: “Dominguinho, por que é que você não compra
um álbum e não vai colecionar figurinhas? Por que você não arranja
uma namoradinha e vai acariciá-la num banco de jardim? ”
Além disso, o seu próprio corpo impunha a Gabeira dúvidas
mais íntimas. Obrigado a acordar bem cedo para manter-se em
contato com os operários em suas fábricas, nem sempre ele conse-
guia. “Todos os dias, o despertador tocava à mesma hora, nem sempre
o corpo se movia”. Quando isso acontecia, algum membro da orga-
nização já ia logo dizendo que se tratava de “problema ideológico”.
Haveria uma psicologia marxista para preparar os militantes
para a disciplina imposta aos seus corpos? – questiona Gabeira.
“Tudo é política, tinham razão. Mas as verdadeiras dimensões da
política do corpo não podiam captá-las. Assim como nossas tias
60s u m á r i o
achavam que a civilização ocidental e cristã cairia por terra se
continuássemos mexendo nossas bundas e pernas ao som do
rock-and-roll, muitos acreditavam, solenemente, que o edifício
marxista-leninista iria ruir se, de repente, começássemos a esfregar
os clitóris das mulheres.”
Para enfrentar os militares, Gabeira e seus companheiros
deveriam se sujeitar a uma disciplina rigorosa. Era preciso ser disci-
plinado para lutar e para evitar erros que colocassem em risco o
grupo. E neste caso, os critérios de competência eram os mesmos
da tradicional sociedade burguesa contra a qual os comunistas se
insurgiam. Por isso, entre o desejo e o sacrifício, razão e a sensibili-
dade ou entre a virilidade e a feminilidade, o corpo-militante deveria
se pautar sempre pelo sacrifício, razão e a virilidade.
Esse corpo deveria ser, então, “másculo”, convicto e concen-
trado. A adaptação cinematográfica do livro de Gabeira representou
bem este perfil. Na cena em que o protagonista surpreende uma
colega militante ao lhe dar um beijo, rapidamente a garota se afasta
e com uma postura mais varonil possível, questiona: “o que é isso
companheiro?” Sua atitude lembra ao colega que os dois estavam
ali por um motivo e que não caberia nenhum tipo de afeto ou desejo.
Se o discurso da violência gerou corpos violentos para
defender o regime, criou também o seu “outro”, um corpo também
violento disposto a agir contra esse mesmo regime3
. O corpo mili-
tante aqui se desnuda como um reflexo do militar, ambos influen-
ciados e impulsionados pela lógica da violência. Ambos, corpos
decisivamente marcados por uma determinada disciplina.
Vivendo em um contexto assim, não era difícil pensar em
saídas dicotômicas para a sociedade brasileira. Ou você estava de
3. Com a discussão proposta em Lugares para a História, de Arlette Farge, nos sentimos estimulados
a perguntar “como o discurso sobre a violência fabrica sujeitos resistentes ou consencientes”?
61s u m á r i o
um lado ou do outro. Quem ficasse numa condição intervalar era
mal visto tanto pelos militares quanto pelos militantes de esquerda.
Sobre os hippies, Gabeira descreve a ironia com que eram tratados
pelos militantes: “Era ainda 69 e quem virava hippie e puxava fumo
era um pouco assim como quem virava protestante de repente.”
A contranulificação, portanto, não pode ser um movimento de
massa ou de coletivos. Embora um militante de esquerda possa se
contranulificar, apenas o indivíduo pode assumir os seus sabores e
riscos. Impor normas de conduta, segredos e cumplicidades, mesmo
que seja em nome da subversão de uma ordem constituída, como
propunham os movimentos de luta armada no Brasil dos anos
sessenta e setenta, é impor limites à subjetividade. É tornar cada vez
mais potente o homem político e impor restrições ao homem sensível.
Onde a violência se estabelece reproduzindo o homem
violento ou dócil, a contranulificação não pode existir. Um homem
que se contranulifica é pacífico, livre e corajoso. Ele é adepto da
não-violência, é livre porque sabe permanentemente lutar pela
liberdade e corajoso, porque contrariar toda e qualquer ordem do
discurso sempre oferece seus riscos.
62s u m á r i o
O ANDROIDE QUE NÃO QUERIA MORRER
Pensemos no futuro de Blade Runner. Ele não é asséptico,
iluminado e brilhante como antigamente se pensava que seria o
futuro. No ano de 1982, o filme retratou a cidade de Los Angeles, em
um possível 2019, como uma gigantesca, escura, suja e triste metró-
pole, onde androides perfeitos, criados à imagem e semelhança dos
seres humanos, circulam entre pessoas tidas como normais.
Chamados de “replicantes” estes androides foram criados
para servir ao Homem na difícil jornada de colonização de outros
planetas. Como escravos, realizavam serviços específicos estabe-
lecidos de acordo com a sua programação individual. Poderiam
ser tarefas ordinárias, como oferecer prazeres sexuais, ou mais
complexas, como participar de esquadrões armados extraterrestres.
A trama do filme inicia-se com a fuga de quatro replicantes
que, insubmissos, decidem se libertar e voltar para a Terra. Além
de liberdade, o grupo também desejava prolongar a sua existência,
pois como medida de segurança, os replicantes foram criados com
uma previsão de apenas quatro anos de vida. Roy, o líder, toma a
decisão de encontrar o seu criador para tentar convencê-lo a lhes
dar mais tempo.
Para caçá-los, uma vez que os replicantes, por lei, haviam
sido banidos da Terra, foi escalado Deckard, um ex-agente de
uma força policial especial de “caçadores de androides”. Uma vez
descobertos a ordem era “proceder a retirada”, termo técnico utili-
zado como eufemismo para “exterminar”.
Mas não era fácil identificá-los. Muito parecidos com homens
e mulheres, era preciso um teste sofisticado para reconhecê-los.
Um teste que explorava o aspecto emocional do investigado, com a
expectativa de que os replicantes não estariam aptos a desenvolverem
63s u m á r i o
reações emocionais, ou seja, os replicantes não conseguiriam
expressar de forma coerente sentimentos como amor, ódio ou medo.
Mas além dos androides parecerem humanos, os humanos
desta realidade também têm dificuldades para expressar suas
emoções. Na imensa Babel representada na narrativa, não há espaço
para leveza ou alegria; os homens e mulheres que habitam a sombria
Los Angeles aparecem sempre tristes e conformados diante de um
planeta que parece quase exaurido. E diante desse quadro desalen-
tador, grandes corporações anunciam seus serviços: “Uma nova vida
espera por você nas colônias extraterrestres. A chance de começar
de novo, numa terra dourada de oportunidades e aventuras”.
O replicante Roy chega a esboçar mais humanidade do
que o centrado Deckard. Suas respostas emocionais são bem
mais convincentes e é possível sentir empatia pela sua causa.
Seria o caçador de androides um replicante? O que significa ser
humano nesse futuro distópico, no qual a principal fabricante
de replicantes adota como estratégia de mercado o tema “mais
humano que um humano”?
E enquanto tentam passar despercebidos pelo seu algoz,
os replicantes cometem erros. Há sempre um diante da perícia do
caçador. Todos, exceto Roy, acabam mortos por Deckard ou por
causa dele. Mas este é um mundo paralelo que a sociedade prefere
não conhecer. Ignorando a luta pela sobrevivência de androides
desesperados, os homens e mulheres aptos para a vida social
fingem serem normais e inocentes de todos os pecados cometidos
nas ruas escuras da perversa Los Angeles. Eles têm uma vaga
noção do que ou de quem querem ser salvos e desejam o fim do
que genericamente entendem por “mal”.
Acuado e sozinho, só restaria a Roy a vingança contra o seu
perseguidor. E o encontro final ocorre em um prédio vazio. Deckard
tenta surpreender Roy, mas este, com força e agilidade superiores,
64s u m á r i o
consegue reverter a situação e, de repente, é o próprio caçador de
androides quem se vê perseguido. Deckard inicia uma fuga deses-
perada, pois sabe que não tem chances contra o seu oponente que,
de tão à vontade, começa a brincar com a situação.
Desarmado e machucado, Deckard se vê quase sem opções
quando então decide pular do topo do edifício onde se encontrava
para outro. Mas o movimento é mal executado e ele acaba pendu-
rado, sem forças para se erguer. O agente fica extremamente vulne-
rável. Roy não precisaria fazer nada para provocar a morte do caçador
caso desejasse esse fim. Se preferisse, bastaria observar e esperar
a sua queda. E por alguns instantes, parece que é isso que vai acon-
tecer, pois, parado diante de um Deckard em estado agônico, em luta
pela sua sobrevivência, ele só observa o que deveriam ser os últimos
segundos de vida desse ser “fraco e desengonçado”.
Mas naquele momento, o replicante já sentia a própria morte
se manifestar e algo surpreendente acontece. Na hora fatal, quando
tudo parecia estar perdido, quando Deckard, não conseguindo mais
se segurar, se desprende, Roy, demonstrando um reflexo incomum,
segura o caçador e o ergue triunfante com um só braço. O caçador
de androides está salvo.
Roy revela afinal suas intenções. Algo havia mudado. Depois
de descobrir que sua causa era perdida, que não conseguiria
prolongar sua existência, o replicante adotou uma atitude diferente.
Mesmo demonstrando um certo sadismo ao perseguir e machucar
Deckard como se estivesse no meio de uma brincadeira infantil, Roy
não queria matar. Queria que o caçador sentisse empatia. O repli-
cante esperava que o caçador se colocasse em seu lugar: “Viver
com medo é uma experiência e tanto, não é? É o mesmo que ser
escravo”. Por isso sua atitude hostil de minutos antes se relativiza
e prevalece, agora, paz e serenidade, bem representados pela
pomba branca que ele mantém em suas mãos.
65s u m á r i o
Deckard, em silêncio, olha demoradamente para o replicante,
como quem busca respostas para o ocorrido. No momento de sua
morte, Roy teria descoberto um sentido para a vida. Teria percebido
que, diante da finitude, o que valoriza a existência é a trajetória que se
constrói. Roy pensa em tudo que viveu e compreende afinal o seu valor,
a sua importância. Mas quem mais poderia perceber essa importância,
senão um desesperado caçador de androides prestes a morrer?
Salvá-lo foi um gesto que valorizou ainda mais a existência
de Roy, pois só vivo Deckard poderia autenticar esse valor. Em seus
mais íntimos pensamentos, ele entendeu aquilo que confere valor a
uma vida diante da finitude. Entendeu que só um outro ser vivo pode
reconhecê-lo. Essa teria sido a grande lição de Roy em seus minutos
finais, implícita em suas últimas palavras: “Vi coisas nas quais vocês
nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da borda
de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro no Portal de Tannhaüser.
Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na
chuva. Hora de morrer”. O gesto final de Roy pode ser assim consi-
derado uma excelente metáfora para se pensar a contranulificação.
Depois que decidiu se insurgir contra os homens, o repli-
cante se tornou uma grande ameaça. Descontrolado e vingativo,
ele matou, intimidou e manipulou quem não o ajudasse. Como um
Frankenstein pós-moderno em busca de um sentido para a sua
existência e assaltado pela rejeição das pessoas e de seu insensível
criador, Roy demonstrou que poderia ir até as últimas consequên-
cias para alcançar os seus objetivos.
Mas quando decidiu salvar Deckard, Roy se libertou. Seus
fantasmas não mais o assombravam. Nem a morte. E sem medo,
desapareceu também o ódio que o fazia debochar da fragilidade dos
homens e considerá-los descartáveis. Ele tornou-se aquilo que sentiu,
foi aquilo em que passou a acreditar. Se valorizou a vida, valorizou a
sua e a de qualquer outro ser vivente, como Deckard ou uma pomba.
66s u m á r i o
Não havia lei, promessas, laços de coletividade, nenhuma
influência externa para influenciar Roy em sua decisão. A sua atitude
de salvar alguém ocorreu de acordo com a sua própria vontade. Ele
não precisaria fazer o que fez e nem tampouco existiria um benefício
caso fizesse. Ali ocorreu a metáfora de um corpo contranulificado
que afrontou a lógica de uma sociedade violenta que nos ensina a
tratar com violência aquele que não é como eu sou ou não pensa
como penso; que nos ensina, enfim, a nulificar o outro pelo simples
fato de ser diferente.
Roy poderia ter mantido esta máquina ligada, sobretudo por
vingança, uma vez que, ao se rebelar, já se encontrava em rota de
colisão contra uma ordem social que lhe impunha a submissão ou a
morte como destino certo. Mas preferiu interromper o seu funciona-
mento. Preferiu conectar a sua vida à de Deckard.
Roy era um androide vivendo num mundo em que os de sua
espécie se confundem com seres humanos e deseja ser valorizado
como um ser vivo. Mas naquela Los Angeles possível de 2019, o
maior problema talvez nem seja o fato de seres artificiais serem
construídos idênticos aos homens, mas que os homens percam
sua sensibilidade e se aproximem de seres artificiais. Homens que
esquecem o valor da vida. O replicante faz um caminho inverso,
está na contramão. Ele se humaniza. Enquanto Deckard mata seus
companheiros e sua parceira, inclusive atirando pelas costas. Roy
salvou Deckard de uma morte certa.
67s u m á r i o
SEM BLACK-TIE, SEM PARAÍSO: A HISTÓRIA DE UM ADÃO
DUPLAMENTE DECAÍDO
Otávio é certamente um dos personagens mais politizados
(à esquerda) de nossa dramaturgia. Um corpo indócil, esperne-
ando constantemente dentro do sistema capitalista. Esse sindica-
lista veterano, defensor de sua classe, tem a convicção de que não
se pode confiar nos patrões burgueses, pois existiria sempre uma
estratégia para aumentar a exploração do trabalhador em nome
do lucro, e por isso permanece atento e sempre disposto à luta.
Trata-se de um homem que pensa e vive o mundo de forma coletiva,
não apenas como o operário que é, mas também como morador de
uma comunidade de morro, numa favela carioca.
Essa é uma caracterização genérica do protagonista da peça
Eles não usam black-tie, escrita por Gianfrancesco Guarnieri, em
1955 e levada ao palco pela primeira vez em 1958, pelo Teatro de
Arena. Trata-se de uma obra “engajada”, ainda que o termo tenha se
popularizado apenas nos anos sessenta. Ela representa para o teatro
nacional o que Para não dizer que não falei das flores representa para
a música popular brasileira, em termos de engajamento político.
Foi diretamente influenciada pelas teorias do Instituto
Superior de Estudos Brasileiros, o ISEB, também criado na década
de cinquenta, reunindo uma intelectualidade progressista que acre-
ditava ser a missão dos intelectuais brasileiros, a criação de projetos
de desenvolvimento nacional. Neste caso, a cultura nacional e o
“povo brasileiro”, que surgiu como uma categoria sociológica nos
anos de 1950,4
deveriam constituir um núcleo a partir do qual seriam
pensados os programas desenvolvimentistas desejados pelos
isebianos. Por isso a presença do “povo” (os moradores da favela
e os operários) é tão importante para a peça de Guarnieri. Ela é
4. Sobre esse “advento do povo no Brasil”, ler Cultura brasileira e identidade nacional, de Renato Ortiz.
68s u m á r i o
praticamente a porta de entrada na dramaturgia brasileira para essa
nova categoria.
Eles não usam black-tie é a narrativa dos acontecimentos
que envolvem a família de Otávio às vésperas de mais uma greve
na fábrica onde ele trabalha. Outros dois importantes personagens
são Romana, a esposa de Otávio, caracterizada como uma dona
de casa calejada pela pobreza que, entre a rigidez e a ternura,
cuida de sua família com coragem e determinação, e Tião, o filho
mais velho. Apesar da importância simbólica de Otávio, é Tião o
personagem mais denso da trama, pois são os seus dilemas que
acompanhamos mais detalhadamente desde o início da narrativa,
quando ele descobre que a sua namorada está grávida e inicia seu
noivado para esconder a impertinência do casal diante das tradi-
ções da comunidade do morro em que vivem.
Tião não foi criado pelos pais, no morro, mas na casa de seus
padrinhos, “na cidade”. Lá, foi tratado como um pajem e, provavel-
mente, por isso, aprendeu a dar tanto valor a um padrão de vida
mais elevado que o seu na comunidade onde mora. Por isso ele não
consegue experimentar e avaliar positivamente a solidariedade que
seu pai tanto valoriza. Ao contrário, Tião é retratado como alguém
individualista, que vê no tipo de vida comunitária que se leva no
morro, algo que atrasa os seus sonhos de se tornar um pequeno
burguês, com dinheiro suficiente para consumir aquilo que deseja.
Tião quer melhorar de vida, mas não como seu pai.
Trabalhando na mesma fábrica que Otávio, ele quer resolver seus
problemas sem compartilhar ganhos ou perdas. É egoísta demais
para isso e por essa razão logo percebemos que Tião e Otávio estão
em rota de colisão um contra o outro, e a greve que se aproxima
acaba se tornando o catalisador de um conflito iminente.
69s u m á r i o
Enquanto Otávio confia na greve como instrumento de luta,
Tião entende que ela só traz problemas para o trabalhador porque
o indispõe com o patrão. Para ele, grevistas não progridem e ainda
correm sério risco de perderem o emprego. Falta a Tião consciência
de classe, portanto. Ele se submete ao sistema da fábrica por medo
das punições que tal estrutura pode lhe impor, e para justificar o seu
individualismo, alega que logo terá uma família para cuidar e não
pode correr riscos.
Ao contrário do pai, um militante que se contranulifica cons-
tantemente com grande generosidade para com seus companheiros,
Tião se nulifica. Ele se vê diante de duas opções: aderir à greve ou fugir
dela e acaba assumindo a posição mais dócil aos donos da fábrica.
No entanto, Guarnieri faz questão de destacar que ele não é
um covarde, embora tenha tanto medo das limitações próprias de sua
condição social. Tião faz escolhas e as assume com coragem, mesmo
sentindo que contrariar o próprio pai lhe traz algum tipo de descon-
forto. Constrangido, na manhã em que deveria se iniciar a greve, ele
chega a sair de casa mais cedo para não ter que encarar Otávio.
Mas ao transitar pela rede de micropoderes que entrelaça o
espaço da fábrica, se por um lado ele foi dócil diante do patrão,
por outro, ele foi combativo o suficiente para enfrentar os líderes da
greve, que queriam impedir que os operários entrassem na fábrica
para trabalhar. Ele “furou” a greve e proclamou publicamente que
não era obrigado a aderir ao movimento.
Foi muito decepcionante para Otávio e para a noiva de
Tião descobrirem o que ele havia feito, sobretudo porque no meio
da manifestação daquela manhã, Otávio foi detido à mando dos
homens para quem Tião obedientemente foi trabalhar. E enquanto o
filho, constrangido e hostilizado pelos demais trabalhadores, voltava
para casa perturbado, Romana, ao saber do ocorrido, foi ao D.O.P.S
70s u m á r i o
protestar em favor do marido. De um lado, a solidariedade comba-
tente de sua família e de alguns companheiros de trabalho, do outro,
o individualismo de um sujeito isolado e desmoralizado.
Mas haveria mais um duro golpe contra Tião. Quando Otávio
chega em casa, ele renega o filho. “Me desculpe, mas seu pai
ainda não chegou. Ele deixou um recado comigo, mandou dizê pra
você que ficou muito admirado, que se enganou. E pediu pra você
tomá outro rumo, porque essa não é casa de fura-greve!”. Além
disso, a noiva também o abandona por causa de sua deslealdade
com os companheiros.
Embora reconheça que Tião não foi criado como achava que
deveria ter sido, que o filho é um “outro” relativo a si mesmo, Otávio
manteve a sua punição:
Seu pai tem outro recado pra você. Seu pai acha que a culpa de
pensá desse jeito não é sua só. Seu pai acha que tem culpa...
[...]
Se eu te tivesse educado mais firme, se te tivesse mostrado melhor
o que é a vida, tu não pensaria em não ter confiança na tua gente...
[...]
Seu pai acha que ele tem culpa!
[...]
E deixa ele acreditá nisso, se não, ele vai sofrê muito mais. Vai achar
que o filho dele caiu na merda sozinho. Vai achar que o filho dele é
safado de nascença. Seu pai manda mais um recado. Diz que você
não precisa aparecê mais. E deseja boa sorte pra você.
Otávio se compromete com o que acredita serem os signifi-
cados e valores de seu grupo. Sua honra, enquanto pai e líder sindi-
calista, foi afrontada e ele tratou o filho com a severidade que todos
esperavam. A convicção cobra o seu preço, Otávio deve negar ao
71s u m á r i o
filho o seu nome e o seu legado de honra. E uma vez desonrado,
Tião é expulso do morro que, na peça, torna-se um lugar edenizado.
Na visão idealizada que a narrativa oferece, o morro, apesar
de ser um espaço de pobreza, parece estar acima do bem e do
mal. É visto de forma romantizada como um lugar de comunhão
entre os “verdadeiros moradores” e onde se cultivaria naturalmente
uma “verdadeira fraternidade” entre iguais, em meio a uma socie-
dade desigual que coisifica constantemente o ser humano. Enfim,
descontando o exagero da afirmação, a obra tem um certo sabor
naturalista. O morro seria um espaço harmônico e seletivo. O verda-
deiro morador é aquele que aceita a sua natureza, e quem não for
assim, torna-se um elemento indesejado que, para o bem de todos,
deveria ser expulso.
Otávio não admitiu que o seu filho fosse um “outro” e assumiu
uma atitude diferente daquela do replicante Roy5
. Este, perseguido,
condenado à morte e moribundo, não teria razão nenhuma para
salvar o seu algoz, pelo contrário. Sobretudo por vingança, poderia
realmente querer vê-lo morrer por ter matado seus companheiros.
Mas livre de qualquer condicionamento psicológico ou social, Roy
decidiu desafiar o senso comum de uma sociedade disciplinar e
salvou o seu perseguidor.
O pai de Tião assume e defende a identidade de um sujeito
sociológico. Esta identidade “é formada na ‘interação’ entre o eu e a
sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é
o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo
com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses
mundos oferecem”6
. Segundo Stuart Hall, um sujeito na condição
de Otávio se identificaria plenamente com uma identidade cultural
5. Citado no texto O androide que não queria morrer.
6. Fonte: A identidade cultural na pós-modernidade, de Stuart Hall.
72s u m á r i o
maior, tomando para si seus significados e valores. Sua subjetivi-
dade acaba, então, alinhada com o lugar objetivo que ele ocupa no
mundo social e cultural.
Neste sentido, o personagem Otávio foi criado para repre-
sentar um ideal de “povo brasileiro”, num momento em que inte-
lectuais e artistas de esquerda sacralizavam esse povo como um
sujeito universal que teria a missão histórica de emancipar a nação.
Trata-se, portanto, de uma noção diferente daquela retratada no
filme Terra em transe, lançado por Glauber Rocha em 1967. Para
esse cineasta, era preciso dessacralizar o povo, redimensionar o
seu protagonismo político, pois ele ainda não teria as condições
necessárias para fazer a revolução social esperada. Ele seria alie-
nado e vacilante demais.
Tião, portanto, foi duplamente excluído, da cidade e do
morro. Foi duplamente nulificado. Ele não desejava para si a iden-
tidade de um sujeito coletivo, seja a do morro, seja a da fábrica.
Ao seu modo, tal como o sistema fabril, o morro e o proletariado
também desejam impor uma disciplina. Maria e Otávio exigem de
Tião que ele se comporte de uma maneira “correta”. Para a noiva,
Tião perdeu a confiança de sua gente e terá que deixar o morro. E
segundo ela, vivendo nessa condição, ele jamais seria feliz. O morro
era a sua natureza e sozinho ele tornar-se-ia impotente.
Haveria redenção para o jovem? Sim, desde que ele passasse
a acreditar no morro, naquela que seria a sua gente. Desde que se
nulificasse em favor daquela que seria a sua natureza. Diz a noiva
Maria na despedida: “Então, vai embora... Eu fico. Eu fico com
Otavinho... Crescendo aqui ele não vai tê medo... E quando tu acre-
ditá na gente... por favor... volta!”. A existência dessa verdade reden-
tora também é confirmada por Otávio: “Enxergando melhó a vida, ele
volta”. Aqui, o sindicalista deixa de ser aquele sujeito que contranuli-
fica-se constantemente e assume o exercício da nulificação do outro.
73s u m á r i o
Na prática, o que ele deseja é nulificar o filho. Espera que
ele tome como sua, a verdade do morro, uma verdade que não
admite reinterpretação. E tal como no Éden, o pecado é punido
com a expulsão. Com esse argumento, afirmamos mais uma vez
que a contranulificação não pode mobilizar movimentos coletivos
(de massa ou não). Nesses, haverá sempre a tentativa de alinhar
subjetividades ou pelo menos a expectativa de que isso ocorra.
E certamente Gianfrancesco Guarnieri se identificava com
Otávio. Seu esforço para criar um personagem tão corajoso, justo e
coerente denuncia a sua intenção de definir a mensagem principal de
sua obra. Da forma como o experiente sindicalista foi caracterizado,
ele seria a própria encarnação daquilo que estamos chamando de
“contranulificação”, se isso fosse possível: um homem que não se
dobra, que está sempre na contramão de um sistema opressor. Mas
essa idealização não condiz com a realidade material da contranuli-
ficação. Ela não pode ser percebida como um estado permanente,
na medida em que existe sempre o inconfessável que há em nós.
Para além de toda ilusão biográfica7
, que nos faz acreditar que
nossa vida é um todo coerente e orientado que realizaria um projeto
desejado intencionalmente, existe sempre uma trajetória sinuosa e
nas suas tantas curvas, nem sempre mantemos a coerência daquilo
que esperamos e pensamos ser. E é nesses “deslizes” que o mais
aguerrido defensor da liberdade pode revelar, por exemplo, um
microfascista escondido em si.
Por essa razão, sem dúvida, é Tião o personagem mais
profundo da estória. Ele é aquilo que a ilusão biográfica esconde. É
aquele que se revela em dilemas. Suas atitudes são plausíveis, bem
mais do que a coerência inquebrável de Otávio.
7. Tomamos como referência o conceito de Pierre Bourdieu.
74s u m á r i o
E pela coragem de dizer “não” à greve, Tião não teria se
contranulificado? Não, por conta do medo e da subserviência à
disciplina do patrão. Ele fez o que fez não por um gesto pleno de
convicção. No fundo, algo o incomodava, ele sentia que estava
errado, tanto que procurou se esconder do pai, de saída para o
trabalho na manhã da greve. E quando a sua mãe perguntou se
o que fez valera à pena, ele foi lacônico: “O que tá feito, tá feito,
mãe!”. Ele se sujeitou ao sistema e sabia, embora tenha demons-
trado coragem, que aquilo era um sinal de subserviência.
Esse tipo de sujeito, na comunidade criada por Guarnieri, foi
punido de forma “exemplar” e ganhou tempo para pensar no que fez
de errado. Tião precisará entender que errou por ser individualista e
trair a sua classe social, para finalmente se tornar alguém conscien-
tizado e, por consequência, um militante em favor da transformação
social. A peça, nesse sentido, é didaticamente marxista e oferece a
mesma reflexão oferecida para Tião, a todos que a ela assistirem.
Mas os mesmos desvios cometidos pelo filho de Otávio na
ficção, fora do palco, nunca são assim tão óbvios como Guarnieri
caracterizou. Em nosso cotidiano, muitas vezes, quem assume as
atitudes de Tião não é punido, ao contrário, é normalmente contem-
plado com pequenas compensações do sistema que o explora, o
que torna a nulificação suportável, inviabilizando, com um efeito
analgésico, qualquer prática de contranulificação.
E com seus pequenos prazeres concedidos diariamente, os
“Tiões” da vida real não apenas se calam diante das mazelas, como
se colocam também à disposição para a defesa do sistema social que
os exploram e/ou excluem. Muitos deles, efetivamente, vão praticar os
microfascismos do cotidiano, exigindo de todos um comportamento
ordeiro e disciplinado. Peças-chave de uma sociedade disciplinar.
75s u m á r i o
O TEMPO DA CONTRANULIFICAÇÃO
Havia um casal hippie circulando pela cidade. Todos os dias,
podia ser visto numa das avenidas mais movimentadas. E dormia
lá mesmo. Certa vez, um homem ordinário, orgulhoso de sua disci-
plina e de seus tantos boletos para pagar, comentou: “como se
pode viver dessa forma?”.
Para aquele que fez a pergunta, um sujeito padrão, tipo
pequeno burguês, é impensável viver como um hippie. Mas ele não
percebia que estava julgando aquela experiência desconcertante a
partir de sua própria racionalidade, provavelmente a única possível
para ele. Um hippie, no entanto, vê o mundo de uma outra maneira.
Ele não possui as mesmas experiências e o mesmo horizonte de
expectativa típico da classe média brasileira. Provavelmente, para o
hippie, difícil é viver como a maioria de nós, correndo em círculos,
sem tempo para nada.
Com alguma boa vontade, admitiríamos que a forma como
conduzimos a nossa vida cotidianamente não seria assim tão
saudável. Tornamo-nos cada vez mais obcecados pelo relógio e por
isso, em vão, estamos sempre aprendendo ou tentando aprender
a organizar nossas tarefas, de modo que as 24 horas do dia sejam
suficientes para o trabalho, família, atividades físicas e descanso.
Mas o que é o tempo? Para Paul Ricoeur8
, “a especulação
sobre o tempo é uma ruminação inconclusiva cuja única réplica é
a atividade narrativa”. Com isso, o pensador quer dizer que seria
difícil, senão impossível, pensar o tempo, pelo menos no que diz
respeito a “experiência humana do tempo”, sem uma narrativa para
lhe dar sentido.
8. Fonte: Tempo e Narrativa.
76s u m á r i o
O texto narrativo seria responsável pelas várias operações
interpretativas que o sujeito faz a respeito do tempo. É com esse
repertório que o ser humano aprenderia a lidar com as sensações
que lhe informam a passagem temporal. E nesta perspectiva, vigora
a importância dos tempos verbais. Eles não apenas descreveriam
a experiência temporal, mas seriam fundantes para tal experiência.
De uma forma mais complexa, poderíamos pensar o tempo
da cristandade medieval, decisivamente instituído pelos textos
sagrados. Não por acaso consta no evangelho de João a seguinte
afirmação “No princípio era o verbo”. Desta forma, pelas escrituras,
o tempo teria três marcos fundamentais: a Criação, o Nascimento
de Cristo e o Juízo Final.
Mas na Idade Média, se cada um desses marcos era seria-
mente considerado, o mesmo não se pode dizer do intervalo entre
o nascimento de Cristo e o juízo Final. Diz Jacques Le Goff9
, sobre
os homens e mulheres desse período, que “em nível de mentali-
dade coletiva, passado, devir e futuro encontravam-se fundamental-
mente mesclados numa confusão temporal”. É certo que a noção
de tempo era contínua e linear para os cristãos do medievo, tanto é
que aguardavam o fim dos tempos; mas enquanto esse momento
não se manifestasse, o que existia era uma indiferença em relação à
passagem do tempo. Os dias se sucediam, mas sem que os homens
e mulheres vislumbrassem algum horizonte de expectativa diferente
de seu espaço de experiência. Os dias pareciam ser todos iguais.
Um tempo novo, nesta perspectiva, se daria apenas com o
próprio fim dos tempos, que foi objeto de inúmeras previsões na
época. Nesta condição, os cristãos não eram protagonistas de seu
tempo, mas apenas aguardavam os desígnios de Deus. Já a cons-
ciência da modernidade, que despontou no final do século XVII e
9. Fonte: A civilização do ocidente medieval.
77s u m á r i o
início do XVIII, permitiu a criação de uma noção nova de futuro. Ele
não se confundiria mais com o fim dos tempos, mas passaria a ser
percebido como um horizonte para o qual o homem deveria estar
preparado. Este novo regime de historicidade que se anuncia vai
se relacionar cada vez mais com os interesses da burguesia, de tal
forma que o tempo, que antes pertencia ao Criador, iria se converter
no próprio objeto do desejo burguês, como atesta a famosa
expressão “tempo é dinheiro”.
Mas voltemos para o caso do hippie e o seu pouco apreço
pelo relógio. Se ele dormir no relento, ao despertar, como ele inicial-
mente poderia se situar temporalmente? Certamente observando
se ainda estaria escuro ou se já estaria claro. Se estivesse claro, a
intensidade da luz do sol poderia ser um elemento importante. E,
finalmente, a posição do sol poderia dar uma ideia relativamente
precisa do horário em questão.
E ao se deparar com um casarão abandonado de uma
cidade que ele não conhece, como poderia ter alguma noção sobre
a sua idade? Neste caso, por meio da arquitetura, das paredes
manchadas e das eventuais plantas nascendo por onde o cimento
vacila. Com essas imagens, o nosso personagem teria uma ideia da
passagem do tempo.
Por fim, um exemplo mais clássico: como os cientistas calculam
a idade dos fósseis? Pela quantidade restante de Carbono. E o que
todos esses procedimentos têm em comum? Estimulado pela afir-
mação de Reinhart Koselleck, segundo a qual o tempo não pode ser
expresso a não ser em metáforas espaciais, diria que, para o homem
ordinário, o tempo só pode ser expresso através da matéria. É ela
que deve ser considerada em todos os procedimentos citados acima.
No primeiro caso, um corpo celeste movimenta-se e permite
a passagem do tempo, nos oferecendo a sucessão entre os dias
78s u m á r i o
e as noites. No segundo caso, tal como identificamos os sinais de
velhice por meio das rugas no corpo de uma pessoa, percebemos
os efeitos do tempo sobre o casarão pela sua aparência física. E no
terceiro caso, a importância do corpo é ainda mais óbvia. Podemos
afirmar, portanto, que para o homem ordinário o tempo não é nada
sem a matéria, melhor dizendo, sem o seu movimento ou sem que
ela se transforme física ou quimicamente. Sem a matéria para servir
como parâmetro, o tempo não teria nenhuma materialidade para o
nosso hippie.
Quando Paul Ricoeur considera a existência de um “terceiro
tempo”, algo que seria uma ponte entre o tempo vivido e o tempo
cósmico, diz que esse terceiro tempo seria o tempo do calendário, o
qual seria constituído por regras. Uma delas mencionaria “um reper-
tório de unidades de medidas que servem para denominar os inter-
valos constantes entre as recorrências de fenômenos cósmicos”. O
que é a passagem de um ano para outro senão um giro completo
da Terra ao redor do sol, ou seja, o movimento de um corpo celeste?
Sobre isso os cientistas refletem criando soluções matemá-
ticas para converter movimento em tempo, ou melhor, em números.
É exatamente isso o que chamamos de “tempo” desde o advento
das civilizações humanas: operações matemáticas. Essas opera-
ções, por sua vez, como foi dito, precisam que a matéria se trans-
forme (perca carbono, por exemplo) ou se movimente.
Um tempo sem corpos, portanto, é uma abstração tão grande
como os infinitos números racionais que existem entre o 0 e o 1.
Basta observar a existência do dia 29 de fevereiro em nosso calen-
dário. Ninguém que nasça neste dia registra-se como nascido no
próprio dia 29 porque, neste caso, só completaria uma nova idade
de quatro em quatro anos. Mas o que isso representaria para o
corpo de um ser humano? Seu corpo envelheceria da mesma forma
que alguém nascido no dia 28 ou no dia primeiro de março.
79s u m á r i o
E o tempo tornou-se um dos princípios básicos do controle
social sobre os corpos. Assim, como poderíamos compreender o
tempo cristão e o tempo moderno do capitalismo? O tempo para
o cristianismo medieval era uma entidade demarcada pela criação
do mundo, pelo momento em que Jesus Cristo se fez homem e
pelo Fim dos Tempos. Já o tempo moderno é determinado pela
produção e circulação de mercadorias, o que envolve uma infini-
dade de fatores como, por exemplo, o trabalho do corpo humano.
E uma vez estabelecida uma concepção temporal hegemônica, o
tempo se torna decisivo nas relações de poder de uma sociedade.
Charles Chaplin foi muito habilidoso em seu filme Tempos
Modernos ao mostrar de que forma o tempo mediado pelos inte-
resses dos patrões controla o corpo dos operários. Quando deseja-se
aumentar a produção, acelera-se a atividade das máquinas que, por
sua vez, vai determinar o ritmo do trabalho físico dos trabalhadores.
O tempo cristão medieval também atendia a uma disciplina.
Diante da iminência do Juízo Final (porque o fim era uma certeza
escatológica) todo católico procurava ficar mais próximo de sua Igreja
para tentar ser digno da salvação, ou seja, os cristãos procuravam
ficar mais atentos às prescrições do clero. Mas quem controlava o
relógio que determinaria a proximidade do fim? A Igreja. Era exata-
mente o clero que informava as profecias sobre o fim dos tempos.
Tais profecias se tornaram cada vez mais comuns após o ano 1000.
Atualmente as sociedades modernas giram em torno de
compromissos diários regidos pelo tempo-relógio. São tantas horas
de trabalho, com outras tantas de estudo, somadas a algumas
horas de descanso, além dos sempre bem-vindos finais de semana.
Calcula-se até quantas horas de sono alguém precisa ter para
poder se recuperar de forma adequada depois de um dia normal
de trabalho e com que frequência precisamos nos alimentar para
manter a vitalidade do corpo.
80s u m á r i o
Mas a despeito das várias prescrições que existem, a
percepção geralmente é a de que não temos tempo para nada, exceto
para sermos produtivos. E para isso, devemos sempre ser vigilantes
ou vigiados. É assim que o tempo nos nulifica. Seria possível pensar,
então, um tempo libertador, um tempo da contranulificação?
Neste caso, se nos convencermos de que o tempo só pode
ser expresso através da matéria, um tempo para a contranulificação
dependeria da valorização do corpo. Enquanto o tempo do Capital
nos afasta dos nossos afetos, muitas vezes com o comprometi-
mento de nossa saúde física e mental; um tempo libertador, no qual
poderíamos nos contranulificar, seria um tempo em que o corpo
estaria no foco de nossa atenção. Neste sentido, “ganhar tempo”
significaria cuidar do corpo e não desgastá-lo em busca de uma
meta. Um tempo para a contranulificação, enfim, significaria um
tempo para o cuidado de si10
.
No pensamento grego da antiguidade, para o qual a socie-
dade deveria ser o lugar de realização do sujeito, o cuidado de si era
importante. Mas ele foi sendo abandonado diante do fortalecimento
da moral cristã. Baseada na noção do “não-egoísmo”, a moral cristã
desqualificou a epiméleia heautoû (cuidado de si) na medida em
que, para ser um bom cristão, um sujeito deveria renunciar a si
mesmo e voltar sua dedicação e preocupação para a sociedade,
a pátria, a classe, caso contrário seria considerado um “egoísta”.
A filosofia cartesiana também foi implacável com o cuidado de
si. Segundo Michel Foucault, René Descartes contribuiu não apenas
para a valorização do gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo), mas
também para a desqualificação da epiméleia heautoû. O “momento
cartesiano”, como denomina Foucault, seria o responsável por inverter
10. Toda a discussão sobre o cuidado de si que consta neste texto, está baseada nas obras A
hermenêutica do sujeito, de Michel Foucault e o texto de Salma Muchail intitulado Cuidado de si
e coragem de verdade (Ver o livro Foucault: a coragem da verdade).
81s u m á r i o
a primazia do cuidado de si sobre o conhecimento de si, que existia
na Grécia Antiga. Esta inversão ocorreu a partir do momento em que
Descartes convenceu o mundo ocidental de que o acesso à verdade
só seria possível através do conhecimento objetivo da realidade.
No mundo moderno, portanto, consagrou-se um pensamento
que se interroga sobre as condições e os limites do acesso do sujeito
à verdade em desfavor de uma reflexão sobre o que custaria ao
sujeito ter acesso a essa verdade. Separa-se, desta forma, o conhe-
cimento do cuidado. Essa distinção não existia na Antiguidade. Nos
tempos antigos, filosofia e espiritualidade estavam unidas e repre-
sentavam o cuidado de si na sua dimensão integral.
Um sujeito teria acesso à verdade em razão de sua própria
condição de ser um “sujeito cognoscente”. Assim, para conhecer a
verdade, ninguém precisaria se transformar. Bastaria apenas que a
estrutura ontológica do sujeito ficasse assegurada. Mas se levarmos
em consideração o cuidado, a verdade não dependeria do simples
ato de conhecer. Exigiria que o sujeito olhasse para si mesmo, que
se modificasse, alterando o seu próprio ser. Vejamos o que diz
Foucault na obra História da sexualidade (O uso dos prazeres):
[...] de que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas
a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto
quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem
momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar dife-
rentemente do que se pensa e perceber diferentemente do que se vê
é indispensável para continuar a olhar ou a refletir.
Sem o cuidado de si, aquele que conhece poderia usar seu
conhecimento de forma destrutiva ou autoritária com prejuízos para
si mesmo ou para os outros. A razão poderia ser usada não para a
emancipação da humanidade, mas para a exploração do homem
pelo homem, desenvolvendo técnicas de nulificação.
82s u m á r i o
Na recente greve dos caminhoneiros que houve no Brasil11
,
por exemplo, a classe média ficou atordoada. Sentiu medo do
desabastecimento, mas também medo de ficar sem seus meios de
transporte por falta de combustíveis. Revela-se, neste caso, uma
enorme dependência em relação à máquina. Mesmo para distân-
cias relativamente pequenas, poucos cogitaram a possibilidade de
arrumar outras formas de deslocamento, como por exemplo, a bici-
cleta ou andar a pé.
Alega-se, neste caso, o cansaço físico e também a neces-
sidade de se cumprir horários. Então, acabamos priorizando os
compromissos e pouco nos preocupamos, por exemplo, com o
problema do sedentarismo. Oferecemos tempo para o trabalho,
mas somos incapazes de perceber as necessidades de nosso
próprio corpo. Quanta saúde seu corpo perde para que o sistema
funcione? Nesta perspectiva, chegar no horário certo em todos os
compromissos, não representa que um sujeito ganhou tempo. Ele
perdeu, porque seu corpo certamente estará se desgastando. Seria
a matéria se transformando negativamente.
Esperamos, enfim, poder fazer o corpo descansar apenas
na velhice, quando o sistema reconhecer a nossa aposentadoria.
Mas por que não pensar em uma nova organização do trabalho?
Uma organização que não violente o corpo dos trabalhadores no
presente sob a promessa de benefícios futuros. Uma organização
que busque o equilíbrio, oferecendo trabalho, lazer e descanso
ao longo de toda uma vida humana, levando em consideração o
cuidado com os corpos. Essa seria a lógica de um corpo contranu-
lificado vivendo no tempo.
Também seria importante adotar uma posição crítica com
relação aos atuais meios de comunicação. A internet e suas redes
11. Este texto foi escrito entre maio e junho de 2018.
83s u m á r i o
sociais estão aniquilando a noção de espaço e sem ele os corpos
estão ficando comprometidos. Existem hoje acontecimentos
virtuais, encontros virtuais, engajamento virtual, sexo virtual, amizade
virtual... Nas redes, tudo é possível, mas cadê o corpo, o cuidado
com o corpo ou a relação entre corpos que torna possível o amor, a
política, a própria cidade?
Mas este tempo sem espaço que reina na internet não deve ser
ignorado. Trata-se de uma revolução cultural importante que oferece
inúmeras possibilidades de contranulificação também. Para além do
tempo produtivo ou daquele meramente narcisístico, que se investe
diante de um computador, é preciso usar a rede mundial objetivando
um aprendizado ético que possa nos libertar dos grandes meios que
monopolizam a informação no Brasil e nos tornar corpos contranuli-
ficados à serviço de uma prática refletida de liberdade. Mas a reali-
zação desses projetos só pode se dar fora das redes, no espaço
onde efetivamente o corpo é atravessado pelo tempo.
Por isso é preciso também retornar à natureza. Não necessa-
riamente para um tempo da natureza. Ser capaz de se compreender
como um animal novamente, sentindo cheiros; frio, quando fizer frio;
calor quando fizer calor. Reconhecer instintos. Conectar-se nova-
mente com o meio ambiente e assim dar um giro completo sobre
o próprio cuidado de si. Atualmente, sejamos francos, não damos
importância para o meio ambiente, o que compromete seriamente a
nossa existência neste planeta.
Somos até capazes, eventualmente, de emitir opiniões a
respeito da necessidade de se preservar a natureza ou de perceber
a relevância de tais opiniões, mas na prática, continuamos insistindo
em hábitos que de alguma forma ou de outra causam desequilíbrio
ecológico no solo, na água ou no ar. E por uma razão bem simples:
não nos sentimos conectados ao meio ambiente e por isso não nos
importamos que alguém o torne inviável.
84s u m á r i o
Se alguém suja os rios, por exemplo, não ligamos verda-
deiramente, afinal, em nossa ilusão diária, associamos a água
que utilizamos não a esses mesmos rios, mas às companhias que
gerenciam nossas águas e esgotos; da mesma forma que para
conseguir um peixe nos dirigimos para um mercado.
E se o tempo da contranulificação implicaria um reencontro
com a natureza, ele se contrapõe às soluções ultra-cientificistas do
trans-humanismo, com sua busca pela evolução biológica, psico-
lógica e intelectual do homem pela ciência. Os trans-humanistas
querem que seres humanos modificados vivam mais. Seria mais
uma importante etapa da ilusória conquista da natureza e conse-
quentemente, do tempo humano. Mas para que esse tempo? Para
levar ao infinito nossos preconceitos, nosso ódio e nossa violência?
Trans-humanos? Como, se nunca chegamos a ser humanos?
85s u m á r i o
AS JORNADAS DE 2013: O SUCESSO DE UMA REVOLUÇÃO
PERDIDA
Não se vive a cidade sem o corpo. Cada habitante, em condi-
ções normais, vivencia sua cidade por meio de experiências visuais,
táteis, olfativas, auditivas e, por que não dizer, gustativas. Sabemos
que a cidade existe porque podemos senti-la. Percebemos a cidade
a partir de lugares conhecidos, como o bairro onde vivemos, e daí
vamos descobrindo novos ao longo do tempo. No caso do bairro,
ele não é só conhecido pelo sujeito. É tão relevante a familiaridade
com que todos se tratam, que se pode dizer que o bairro também
“conhece” seus sujeitos. Como diz Antoine Prost12
, há nessa relação,
além do conhecimento mútuo, um contato social: cada morador
do bairro ou da vila tira proveito de sua vizinhança, desde que se
entregue a ela com sorrisos, saudações, cumprimentos e troca de
palavras. Se o fizer, existirá, será reconhecido.
Mas para isso o corpo tem que transitar e estar disponível a
contatos que devem acontecer, necessariamente, com certa regula-
ridade, pois existir, segundo David Le Breton13
, implica, inicialmente,
mover-se em determinado espaço e tempo, alterar o meio com
gestos eficazes, “escolher e atribuir significado e valor aos inúmeros
estímulos do meio graças à atividades perceptivas, comunicar aos
outros a palavra, assim como um repertório de gestos e mímicas,
um conjunto de rituais corporais implicando a adesão dos outros”.
As representações de uma nação ou de uma região podem
prescindir de corpos e se for preciso, criam corpos, mas serão
estes, sempre, corpos idealizados como o de Marianne, a famosa
alegoria que representa a República Francesa. Mas uma cidade não
12. Fonte: Transições e interferências.
13. Fonte: A sociologia do corpo.
86s u m á r i o
existe sem corpos. Ela existe e se transforma sempre em detrimento
da acomodação dos corpos de seus habitantes. Na obra Carne e
Pedra, de Richard Sennett, a modernização que agiu sobre Paris na
época da Belle Èpoque, sob o pretexto de oferecer conforto e espe-
táculo para o homem moderno, acabou imobilizando corpos, fazen-
do-os se contentarem com uma contemplação passiva da cidade,
o que contribuiu de forma decisiva para a criação daquilo que ele
chama de “corpo passivo”, um corpo desconectado do espaço, que
não se deixa excitar por ele. Um corpo passivo “vivencia o mundo
como uma experiência narcótica; o corpo se move de maneira
passiva, anestesiado no espaço, para destinos estabelecidos em
uma geografia urbana fragmentada e descontínua”.
É mais fácil nulificar um corpo passivo. Já um corpo que busca
a contranulificação é aquele que se entrega ao contato com os dife-
rentes estímulos urbanos, que vive à vontade em sua cidade, sem
pudores ou náuseas fáceis. Enquanto muitos preferem transitar em
espaços assépticos, como os shopping centers, para evitar o calor,
sujeiras, odores e a aglomeração de pessoas nas ruas, a prática
da contranulificação impulsiona o sujeito a descobrir a cidade: o
seu centro, seus bares de esquina, suas ruas na madrugada, seus
riscos, suas feiras populares e a sensualidade de outros corpos. A
contranulificação inspira a relação entre a carne e a pedra.
Segundo Sennett, na Grécia Antiga, a nudez poderia indicar
um povo à vontade na sua cidade: “Péricles celebrava uma Atenas
em que reinava a harmonia entre carne e pedra”. O cidadão
ateniense, portanto, se orgulhava de sua nudez. O homem contra-
nulificado, que não pode estar nu, se orgulha por ter a coragem de
ver a cidade com os seus próprios olhos, por senti-la com a sua
pele, por assimilar seus cheiros e odores ali onde eles são produ-
zidos, por ouvi-la porque está perto demais para não escutar o que
ela diz e, finalmente, por sentir os seus sabores, que não podem ser
87s u m á r i o
enlatados ou aprendidos em cursos de culinária. O homem contra-
nulificado não vivencia a cidade por uma experiência narcótica,
como por exemplo, a que a Televisão proporciona. Ele, portanto, já
se sente orgulhoso pelo simples fato de não ser um corpo passivo.
Contranulificar-se na condição de habitante da cidade, é
também aprender a lidar com os seus personagens: os fiéis que
gritam nas praças, artistas, flanelinhas, policiais, bêbados, comer-
ciantes, prostitutas, operários, contraventores. É um aventurar-se
por sua política e seu underground. É saber lidar com os “homens
de bem”, divididos entres suas verdades e hipocrisias, e com os
personagens menos afortunados das sociedades capitalistas. É
conhecer o “povo” nas ruas e não apenas um conceito idealizado por
folcloristas. É, enfim, saber relacionar-se com os homens do espaço
urbano em sua mundanidade, marginalidade e promiscuidade.
A contranulificação, para que tudo isso seja possível, requer
o direito à cidade: é preciso transitar e conhecer a cidade. Quem se
contranulifica deseja ir muito além dos caminhos que levem da casa
ao trabalho e que garantam um bom retorno de volta ao lar, no fim
do dia. Como proclamavam os Titãs: “A gente não quer só comida/
A gente quer comida/ Diversão e arte/ A gente não quer só comida/
A gente quer saída/ Para qualquer parte”.
Mas esse direito no Brasil está permanentemente ameaçado
por causa da má qualidade dos serviços de transportes públicos
oferecidos na maioria das cidades e por conta do valor de suas
tarifas, que está sempre tencionando a capacidade de pagamento
de seus usuários. Diante dessa ameaça permanente, que inibe a
liberdade de circulação dos habitantes da cidade, a contranuli-
ficação estimula a impertinência, sobretudo dos jovens, o grupo
social mais atingido pelas constantes crises no transporte público.
Com pouco ou nenhuma renda e mais excitáveis com os infinitos
estímulos que a cidade tem para oferecer, são eles que sentem
88s u m á r i o
de forma mais dura as contradições advindas do choque entre o
desejo de transitar pela cidade e a falta de recursos.
Por isso, nas últimas décadas, jovens de várias cidades
brasileiras empreenderam importantes movimentos contra abusivos
aumentos de tarifas e, em alguns casos, chegaram a construir
uma demanda particular: o passe livre. Muitos desses jovens, que
cobraram dos poderes públicos um serviço de qualidade e aces-
sível a todos os habitantes da cidade, estavam contranulificando-se
nessas manifestações. Mas nem todos.
Foi o que aconteceu em junho de 2013. Refiro-me às grandes
manifestações que ocorreram naquele mês, por todo o país, na
esteira do que aconteceu, inicialmente, na cidade de São Paulo,
quando uma juventude aguerrida irrompeu contra o aumento de
vinte centavos nas passagens dos transportes públicos.
***
As jornadas de junho de 2013 foram tão irresistíveis e caris-
máticas que poucos tiveram a ousadia de criticá-lo. Jornalistas
poderiam perder a simpatia da “opinião pública”, políticos pode-
riam perder votos, professores poderiam ficar mal com seus alunos,
cientistas políticos poderiam constranger-se diante de uma previsão
equivocada. Até a grande mídia, de repente, se viu cheia de recal-
ques para tratar do assunto. Esforçando-se numa quase simpatia,
repetiu à exaustão que as jornadas de junho eram democráticas
e bem-vindas, apesar de uma insistente “minoria baderneira” que
estaria teimando em querer desvirtuar tudo.
É fácil perceber que as jornadas de 2013 tiveram as caracte-
rísticas necessárias para se fixarem na memória coletiva do brasi-
leiro ao lado de outras grandes mobilizações, como a passeata
dos Cem Mil, de 1968; o movimento das Diretas Já, no início dos
anos 1980 e as manifestações dos caras pintadas, em 1992. Difícil
89s u m á r i o
mesmo é entender qual o seu significado político. Junho de 2013
poderia representar o ensaio para a realização dos desejos dos
movimentos sociais mais progressistas da política brasileira, uma
revolução perdida ou ainda a porta de entrada para uma grande
investida da extrema-direita em nosso país.
Tudo começou ainda na primeira semana de junho e os
primeiros impulsos foram anticapitalistas, com um certo viés anar-
quista, contra o aumento das passagens de ônibus e metrô em
São Paulo. O detonador foi o Movimento Passe Livre, o “MPL”, um
movimento social horizontal, autônomo e apartidário que luta pelo
transporte público e pelo direito das pessoas à cidade. No início a
pauta era bem específica e era possível perceber algum espaço
para partidos de esquerda. Daí o movimento foi se multiplicando
pelo país afora.
Em São Paulo, após as primeiras prisões e interdições de
vias públicas pela polícia, o processo se radicalizou, sobretudo com
a presença dos black blocs. Como consequência, a repressão poli-
cial aumentou de tal forma que na segunda semana de junho as
passeatas foram praticamente proibidas. Mas elas não pararam.
Cresceram por todo o país até chegarem ao seu clímax no dia 17 de
junho, quando centenas (ou milhares?) de manifestantes invadiram
a cobertura do Congresso Nacional em meio a um entusiasmo deli-
rante equivalente à singularidade do ato. Pisaram no poder. Mas o
que significaria isso?
Não havia um centro, um comando específico. Por algumas
horas, o sonho da revolução brasileira parecia estar se realizando
em meio a presença festiva de tantos corpos. Muitos sonhos de
engajamento transitaram livres naquela noite sobre o teto de nosso
Legislativo Federal. O poder ali se dobrou diante da subversão. Os
políticos de Brasília ficaram acuados. Não seria possível aniquilar
aquela massa ou nulificá-la. Tropas de choque correriam o risco
90s u m á r i o
de um fracasso retumbante, mesmo se cumprissem uma possível
missão temerária de dispersar aquela multidão, pois isso deixaria
ainda mais fraturada a democracia brasileira.
E se a contranulificação estava presente naquelas jornadas e
particularmente na cobertura do Congresso, não era pela presença
da massa ampla e irresistível ali presente, mas engendrada por
corpos singulares que ao longo daquele mês de junho assumiram
os sabores e os riscos de subverter a ordem e os comandos do
poder. A contranulificação não pode constituir um movimento de
massa ou de coletivos; sua atuação deve ser percebida micrologi-
camente, insinuando-se em alguns pontos da gigantesca rede que
deu forma e conteúdo ao Junho de 2013.
No limite, haveria pelo menos um manifestante procurando
fugir das capturas sociais, afrontando a ordem estabelecida, preo-
cupando-se não apenas com a sua liberdade mas também com a
do outro, sem dogmatismo e com a capacidade de pensar critica-
mente as disputas e o teatro político existente naquele momento no
país. No entanto, até o final daquelas jornadas, as manifestações de
junho ficaram cada vez mais incompatíveis com a contranulificação,
pois apesar de tudo o que foi feito de subversivo e libertário, Junho
de 2013, afinal, acabou representando a porta de entrada para uma
grande investida da extrema-direita brasileira.
***
Nos primeiros dias daquele mês de junho, a grande mídia,
desconfiada, tentou se comportar como a grande mídia sempre se
comportou no Brasil e se esforçou para criminalizar as manifesta-
ções, mas diante de um surpreendente apoio da “opinião pública”,
ela voltou atrás. O repórter Datena e Arnaldo Jabor, notórios comu-
nicadores de dois grandes canais de televisão, representaram bem
91s u m á r i o
esse ponto de inflexão. Os dois tiveram que desfazer suas críticas,
diante das câmeras, em rede nacional14
.
Passado o susto, as grandes emissoras começaram a tratar
as manifestações de uma forma positiva. Era preciso acompanhar
a simpatia da classe média e dizer aquilo que ela queria ouvir, obje-
tivando uma interlocução que lhe permitisse recobrir as manifesta-
ções com novos significados. Era preciso dar aos manifestantes
uma disciplina e, por isso, um trabalho sub-reptício, mas muito
eficiente, começou a ser executado.
Os protestos passaram a ser criticados apenas quando
cometiam excessos, ou seja, quando, de alguma forma, amea-
çavam a ordem burguesa com suas proclamações revolucioná-
rias e sua resistência perante a atitude repressiva da polícia, que
buscava restringir cada vez mais o fluxo do movimento. Mas o ato de
protestar nas ruas ganhou grande publicidade, algo raro na grande
mídia brasileira que, via de regra, costuma dar pouco ou nenhum
espaço para movimentos sociais nas ruas. Mas ela deu essa publi-
cidade porque o seu conteúdo revolucionário estava sendo substi-
tuído por uma “atitude cívica”.
Desta forma, Junho de 2013 se transformou em um fenô-
meno midiático. O tema invadiu as residências das famílias brasi-
leiras despertando grande comoção em uma configuração histórica
marcada pela desqualificação da política tradicional, outro tema
muito caro à grande mídia. Esta foi a sua grande descoberta durante
aqueles anos: “a classe política brasileira é pouco qualificada”.
Finalmente, com décadas de atraso, a grande mídia parecia
ter descoberto que existiam problemas na política nacional. E quem
fez essa “brilhante descoberta”, também teria encontrado um marco
14. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=7cxOK7SOI2k, https://www.youtube.com/watch?v=�-
tOQkke7fzpA e https://www.youtube.com/watch?v=P8j_2Hb9FrM
92s u m á r i o
para essa desqualificação: o início dos governos petistas. O Partido
dos Trabalhadores teria inventado a corrupção no país. Mas se isso
não pode ser levado a sério, como entender essa atitude dos meios
de comunicação de massa? Que cinismo se escondia por trás
dessa nova postura moralista?
Levando-se em consideração as sucessivas vitórias eleitorais
do PT (entre 2002 e 2014), o que aconteceu foi a constatação de
que a oposição partidária aos governos petistas estava esvaziada.
PSDB e PFL (hoje, DEM) estavam sem uma plataforma firme para
enfrentar os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff . O ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso teve que amargar um ostracismo provo-
cado pelo seu próprio partido, que não tinha coragem de defender o
legado de uma de suas mais influentes lideranças. Neste sentido, o
que incomodou a grande mídia e seus patrocinadores não foi a falta
de qualidade na política brasileira (que é um dado histórico e inequí-
voco), e sim a baixa qualidade de seus representantes políticos no
Congresso Nacional.
Assim, a desqualificação da política que foi impulsionada nos
últimos anos está ligada a essa constatação, de que politicamente
a oposição teria pouca força para enfrentar os sucessivos governos
petistas de uma forma mais enérgica. Desta forma, se os partidos
políticos de oposição eram fracos, era preciso criar novas estraté-
gias para desestabilizar os governos de Lula e Dilma. E para isso a
grande mídia se encarregou de rebaixar maximamente os políticos e
os seus partidos como nunca antes teve o interesse de fazer, numa
estratégia que, em alguns anos, assumiu ares de uma (seletiva)
“Cruzada” contra a corrupção.
Isso explica porque na última década se deu tanta ênfase a
juízes, procuradores, delegados da Polícia Federal... nos noticiários.
São os “novos protagonistas” do cenário político brasileiro. Nunca
aprendemos tantos nomes de agentes do judiciário como nos
93s u m á r i o
últimos anos fomos levados a aprender. Eles estão diariamente em
nossos televisores, potentes, heroicos e salvadores. Uma alternativa
perfeita para uma oposição parlamentar sem carisma e impotente,
que nem sequer conseguia arranhar a imagem dos governos do PT.
Com esses novos protagonistas, a política poderia ser desqualifica
sem constrangimentos, já que nenhum deles era político de carreira
ou por formação. Estariam acima de qualquer suspeita.
Tornou-se, então, uma questão de tempo relacionar as
jornadas de junho à desqualificação dos políticos brasileiros. Para
isso era preciso apropriar-se das manifestações, retirá-las de seu
contexto inicial e imprimir nelas um novo sentido. Aquelas mani-
festações precisariam perder seu caráter anticapitalista para se
tornarem um grande movimento cívico e familiar, pois disso depen-
deria o futuro do país.
Foi para atender a esse chamado que a classe média foi para
as ruas com as suas camisas verde-amarelas. Não foi pelo MPL e
muito menos pelos black blocs. Foi pelo “desencanto com a classe
política”, para salvar o país. Foi assim que Junho de 2013 foi deixando
de ser um gesto de rebeldia juvenil, para tonar-se um evento missio-
nário e potencialmente redentor; para tornar-se, enfim, a “Grande
Marcha da Família com Deus pela Liberdade” de nossa época. Era
o momento de “resgatar” antigos valores nacionais ou, como foi dito
exaustivamente nos últimos anos, “passar o país à limpo”.
Para Stuart Hall, uma nação só existe na medida em que ela
pode ser representada e uma das formas privilegiadas pelas quais
isso se torna possível é a partir daquilo que ele chama de a narrativa
da nação. Por meio dela, a mídia pode fornecer “uma série de estó-
rias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos
e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências
partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à
94s u m á r i o
nação”. Ainda segundo Hall, os homens e mulheres que compõem
a nação podem compartilhar dessa narrativa, e a partir dela atribuir
significado e importância para a sua monótona existência, conec-
tando suas vidas cotidianas com o destino nacional.
De certa forma, foi assim que as manifestações foram apre-
sentadas para a “tradicional família brasileira”. “O gigante acordou!”,
anunciava a grande mídia e isso tornou-se irresistível. Como não querer
se envolver com esse grande acontecimento? Participar daquelas
grandes manifestações de rua significava fugir de uma existência ordi-
nária e se sentir responsável pelo destino da nação brasileira.
Foi assim que a classe média, representando a família tradi-
cional brasileira, ocupou as ruas, disputando espaço com os corpos
rebeldes dos primeiros dias e com militantes partidários de bandeiras
em punho que buscavam seu espaço naquele grande acontecimento.
O sentido inicial das manifestações, portanto, começou a se
perder. Os movimentos sociais que desencadearam as jornadas de
junho não estavam preparados, nem teórica nem metodologica-
mente, para lidar com um acontecimento tão rico em possibilidades
e entre os dias 17 e 19 tudo já parecia diferente. Muitas pautas
surgiram, muitas das quais, confusas e contraditórias entre si.
No dia 19 de junho, o governador do Estado de São
Paulo, Geraldo Alckmin, e o prefeito Fernando Haddad voltaram
atrás e anunciaram que não haveria mais o aumento no preço
das passagens. Em determinado momento, o MPL declara que
não vai mais fazer novas convocações, mas as manifestações
não param. O movimento torna-se uma espécie de “patrimônio
da sociedade brasileira” e não de grupos políticos. Essa é uma
qualificação vaga que a grande mídia triunfante ostenta como um
troféu. As novas e confusas pautas diferem completamente da
questão do direito à cidade, consubstanciada na questão dos
95s u m á r i o
preços e qualidade dos transportes públicos no país. Surgem
novas demandas, cada vez mais alheias aos movimentos sociais
que deram início àquelas jornadas.
A evidente demanda anticapitalista do começo, foi
perdendo espaço para um movimento cívico que lembrava o
tacanho nacionalismo cultivado no Brasil do final do século
XIX, quando ser um bom cidadão era não ver contradições
na sociedade brasileira, desde que todas as normatividades
fossem respeitadas, em benefício, é claro, do homem branco,
cristão, heterossexual e burguês. Foi o estopim para um verde-
amarelismo disposto a ir até as últimas consequências para
forçar uma alternância de poder. Era o começo do processo que
desencadeou a queda de Dilma Rousseff.
O poder, portanto, se revelou em junho de 2013 menos pela
sua capacidade de coerção do que pela sua criatividade. Depois
de condenar e tentar jogar a “opinião pública” contra as manifes-
tações, a grande mídia triunfante passou a noticiar manifestações
cada vez mais parecidas com aquilo que desejavam seus patro-
cinadores: uma legião cada vez maior de sujeitos com formação
política duvidosa, que se colocavam contra os partidos políticos e
contra a esquerda e, o que era mais importante, que estavam abso-
lutamente pautados pelos grandes veículos de comunicação.
As diversas pautas que passaram a estar presentes nas mani-
festações haviam sido debatidas exaustivamente pelos maiores
jornais diários do país nos meses que antecederam as jornadas de
junho, algumas chegando a ser tratadas em reportagens tidas como
especiais, dessas que são divididas em partes durante mais de um
dia. O próprio Arnaldo Jabor15
, que se tornou, nos primeiros dias,
uma persona non grata ao dizer que os manifestantes “não valiam
15. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=nhtBbN9an2o
96s u m á r i o
nem vinte centavos”, acabou sugerindo que a revolta se voltasse
também contra a PEC-37, o que acabou acontecendo.
A quem interessava esta pauta naquelas manifestações? O
que era a PEC 37? Muitos manifestantes bradavam palavras de
ordem contra a proposta sem ter a menor ideia sobre o seu conteúdo
ou o seu significado político naquele momento. Houve, portanto,
uma gradativa apropriação daquelas manifestações em favor de
uma agenda política de direita. Nesse caso, combater a PEC 37 era
ser contra a tentativa de tornar privativo das polícias civil e federal
o poder de investigação criminal, retirando essa prerrogativa de
órgãos como o Ministério Público. Combater a PEC 37, portanto,
significava apoiar, ainda em 2013, a formação de um aparato jurídi-
co-policial que, algum tempo depois, acabou “supliciando em praça
pública” o Partido dos Trabalhadores e praticamente só ele, pois a
exemplo do que fez a operação Lava Jato, quando outros partidos
eram envolvidos nas suas investigações, os mesmos não recebiam
a mesma exposição midiática que o PT.
***
Surgiram assim as condições apropriadas para o surgimento
de slogans como “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, que
fez parte da campanha vitoriosa do presidente Jair Bolsonaro, pois as
jornadas de junho, com o surgimento do verde-amarelismo, conver-
tido numa espécie de “onda conservadora”, passaram a proclamar o
apartidarismo como princípio fundamental e a bandeira nacional como
único símbolo permitido (“Nossa bandeira jamais será vermelha!”).
Numa conjuntura como essa, sempre mais expansiva, foi a
esquerda que acabou perdendo espaço nas ruas. Como ela carrega
bandeiras e grita suas proclamações orgulhosamente, os seus
partidos e coletivos foram logo identificados e interditados. Muitos
militantes foram obrigados a baixar suas bandeiras ou tiveram suas
97s u m á r i o
bandeiras rasgadas. Por outro lado, mais dissimulada, ninguém
conseguia identificar com a mesma facilidade a agenda política da
direita, ou mesmo da extrema-direita, presente nas grandes mani-
festações daquela época.
É certo que houve disputas nas ruas pelo significado do
movimento. Se de um lado bradavam “SEM PARTIDO!”, do outro,
ouvia-se uma acusação como resposta: “FASCISTAS!”. Corpos
rebeldes ainda tentaram recuperar o sentido libertário dos primeiros
dias, mas não havia o que recuperar. As manifestações das últimas
semanas já pertenciam a um outro movimento. A própria tentativa
de interdição contra os corpos-militantes-partidários nas ruas seria
uma explícita demonstração de que o caráter rebelde, libertário e
altruísta do Junho de 2013 durou, talvez, menos que duas semanas.
A direita brasileira, afinal, se apropriou daquelas jornadas. Se
passou a existir um acontecimento novo na política brasileira após
2013 foi o retorno da direita às ruas. Pelo menos desde as Grandes
Marchas da Família com Deus pela Liberdade, em 1964, ela não se
sentia tão à vontade e triunfante nos espaços públicos, bradando
suas palavras de ordem. Foi assim que ela foi construindo em 2014,
2015 e 2016, a queda da ex-presidenta Dilma Rousseff. Enquanto
isso, a esquerda brasileira ficava acuada, com pouca capacidade
de mobilização.
E agora, depois do governo de Michel Temer e da eleição
de Jair Bolsonaro, podemos perceber a ascensão de uma extrema
direita ao poder, com sua agenda neoliberal nada generosa, prome-
tendo a nulificação de minorias e agir com força contra a esquerda.
O legado do movimento de junho de 2013 para movimentos progres-
sistas foi, portanto, mínimo. Para além do exemplo que nos permite
acreditar que um grande movimento de massa ainda é possível no
país e que diante dele é possível envergar o poder, poucas contri-
buições suas jornadas nos deixaram, quase nada.
98s u m á r i o
E como já foi dito, outro movimento como esse de 2013 não
pode ser engendrado pela contranulificação. Ela não pode ser
massificada. Mas ela pode dar uma importante contribuição para
qualquer esforço libertário. Como ela não se compromete com
projetos de tomada de poder, ela pode ser encarada como um exer-
cício de reflexão permanente que aponte para os riscos não apenas
do poder constituído e institucionalizado, mas também os riscos de
qualquer estratégia que se coloque contra o establishment, riscos
não devidamente reconhecidos.
Neste sentido, a contranulificação não acompanha a contra-
cultura quando esta se ausenta dos debates públicos. Ela não
estimula o desejo de se viver em “comunidades alternativas”. A
contranulificação é atrevida e combativa. Ela procura desnatura-
lizar a sociedade disciplinar, sobretudo a sua classe média, com os
seus preconceitos e microfascismos. Aproxima-se dos movimentos
da esquerda e de seus militantes, mas ainda assim uma aproxi-
mação cautelosa por conta de suas visões, às vezes, excessiva-
mente esquemáticas.
99s u m á r i o
DIÁRIO DE BORDO: APONTAMENTOS PARA UMA NARRATIVA
A primeira vez em que pensei na contranulificação como um
conceito possível foi em 2014, quando li A ética da nulificação, um
texto de Frederico Osanan. O texto atraiu por me fazer pensar a
respeito dos limites e possibilidades para a liberdade. Até onde se
pode ir diante de questões morais, religiosas e políticas? Essas e
outras reflexões há muito ocupam meu pensamento, não apenas
para produzir academicamente, mas como um dilema fundamental
de minha existência, talvez como resultado de uma formação cheia
de desvios e contradições, que se inicia com uma forte influência do
catolicismo, que vinha de minha avó; do sindicalismo de esquerda,
de meu pai e dos ídolos roqueiros de minha adolescência.
Na época em que descobri “A ética...”escrevia para o jornal
O Bembém (em Parnaíba-PI), onde até recentemente mantinha uma
coluna chamada Saliências e fiquei tão sensibilizado pela leitura que
resolvi mudar meus planos. Minha coluna não se chamaria mais
Saliências e nem escreveria o tipo de crônica que nela publicava.
Criei a coluna Contranulificação, onde por alguns meses procurei
escrever sobre temas desconcertantes, como o massacre na sede
do jornal Charlie Hebdo, a realidade política no Brasil que ante-
cedeu o impeachment de 2016 e o que eu chamei de “fordismo
acadêmico”. Para isso, procurei utilizar uma escrita diferente, na
qual tentava reunir o formalismo de um texto dissertativo, com a
liberdade da linguagem poética. Minha inspiração imediata eram
os textos que o tropicalista Torquato Neto escrevia. Sua escrita era
subversiva não apenas por denunciar a caretice e o autoritarismo
da sociedade, mas também por provocar a gramática e os bons
costumes, utilizando apenas letras minúsculas e uma série de gírias.
Não gostei do resultado e logo abandonei o projeto. Mas qual
seria a minha motivação para pensar essa tal contranulificação?
100s u m á r i o
Teria alguma ambição acadêmica? Penso que sim. No fundo queria
encontrar uma alternativa para contracultura, tentando resolver, com
isso, alguns problemas conceituais, políticos e comportamentais
que, na minha opinião, estavam relacionados a esse conceito.
Desde cedo, a ideia de uma cultura juvenil que desafiasse as
ordens de uma sociedade disciplinar me interessou. Lembro, por
exemplo, que assisti ao filme Hair antes de meus dez anos de idade
e me senti bastante seduzido pelo estilo de vida do hippie Berger,
representado pelo ator Treat Williams, e seus amigos. Lembro inclu-
sive de meu sofrimento silencioso depois que Berger morreu. Mas não
lamentei a morte de um personagem, como qualquer aficionado por
cinema faria, me entristeci porque realmente acreditei que um sujeito
cativante, alegre e corajoso havia perdido a sua vida, tamanha era a
ingenuidade que me fazia confundir um ator com o seu personagem.
Passei quase vinte anos com a lembrança desse filme, sem
lembrar o seu nome ou qualquer informação a seu respeito, até que
um dia, numa locadora, vi por acaso a caixa de uma fita de VHS
na prateleira. Quando olhei para as cores, roupas e a postura dos
personagens minha memória foi estimulada e de súbito soube que
havia reencontrado aquele filme.
Então, apenas alguns anos depois de meus primeiros e mal
compreendidos contatos com a contracultura, quando a descoberta
se dava de forma dispersa, por acompanhar algumas bandas de
rock ou assistir a filmes, fui entender o que significava esse universo;
sobretudo na época em que era um mestrando, estudando os movi-
mentos juvenis dos anos de 1960. Nessa época, comecei a entender
e a me interessar ainda mais pela história e significados da contracul-
tura. Mas passados alguns anos e com um pouco mais de leitura a
respeito do tema, identifiquei alguns aspectos problemáticos.
Em primeiro lugar, poderia citar a imprecisão do conceito
“contracultura”, que permite, por exemplo, que se inclua num
101s u m á r i o
mesmo universo, personagens tão diversos quanto o filósofo
Sócrates, Jack Kerouac e Mick Jagger16
. Segundo, que a recusa tipi-
camente contracultural contra as estruturas da sociedade burguesa,
naquilo que ela cultiva como tradição ou deseja como progresso,
muitas vezes serviu de pretexto para atitudes meramente egoístas
e escapistas por parte da juventude. E terceiro, que a contracultura,
de forma recorrente, ensejou excessos que resultaram na morte
ou debilitação física de muitos jovens, incluindo nesta contagem,
inúmeros ídolos juvenis bastante conhecidos.
No entanto, não conseguia fazer uma crítica adequada e logo
percebi que ao usar o conceito de contranulificação eu ainda estava
preso ao de contracultura, alimentando o engano de que a novidade
compensaria os incômodos indicados. Mas estava longe de ser
capaz de apresentar um argumento satisfatório. Usava apenas um
novo nome para um objeto velho, na esperança de que isso, por si
só, exorcizasse os equívocos cometidos em nome da contracultura.
Então abandonei a contranulificação por um tempo.
E o que se entende por contracultura? Genericamente, ela
seria um tipo de racionalidade libertária contrária a qualquer ordem
social que se baseasse no controle e na exploração do homem pelo
homem. Segundo Ken Goffman e Dan Joy, um homem pela contra-
cultura deveria ser livre para se transformar e se expressar da forma
que melhor lhe conviesse. Não haveria, assim, regras ou programas
para seguir. No âmbito da Contracultura, poderíamos, então, incluir
os beatniks, os hippies, Charles Bukowski, Caetano veloso (dos
anos de 1960 e 1970), Cazuza, Raul Seixas...
Mas algum tempo depois de ter abandonado a ideia da
“contranulificação”, em 2016, comecei a orientar um trabalho
de conclusão de curso que me daria importantes insights. Minha
16. A exemplo do que faz o livro Contracultura através dos tempos, de Ken Goffman e Dan Joy.
102s u m á r i o
orientanda queria falar sobre a violência contra as mulheres na
cidade de Parnaíba-PI. E para isso, queria investigar os boletins de
ocorrência arquivados na Delegacia da Mulher daquele município.
Seu interesse era investigar casos de agressões domésticas.
Mas era uma pesquisa que iria praticamente repetir os passos
de outras que já haviam sido realizadas na cidade e então sugeri
que ela procurasse agressões contra as mulheres em espaços onde
menos se imagina que elas pudessem ocorrer e indiquei a leitura do
livro On the road, de Jack Kerouac. Queria que ela pensasse dife-
rentes tipos de violência em lugares menos prováveis. E o que seria
mais improvável do que atitudes sexistas e misóginas em um dos
principais símbolos da contracultura mundial?
De repente, eu havia encontrado uma oportunidade para
colocar em questão uma contradição que há muito me incomodava
em On the road. A despeito da obra ter despertado o desejo por
liberdade em jovens espalhados pelo mundo todo, oferecendo a
imagem clássica do viajante com uma mochila surrada nas costas,
se deslocando sem muito planejamento ou condições financeiras,
as suas personagens mulheres são limitadas psicologicamente e
espacialmente. Elas não apenas são coadjuvantes na obra, como
suas participações são valorizadas na medida em que elas aten-
diam aos desejos dos homens.
Enfim, com a conclusão da monografia Ainda somos os
mesmos e vivemos como os nossos pais?, voltei minha atenção
para a ideia da contranulificação, agora com um ponto de partida
para as minhas reflexões anteriores, um argumento para criticar
a contracultura. A partir da constatação de que ela seria uma
expressão eminentemente masculina, que pouco espaço oferece
para a manifestação das mulheres em primeira pessoa, perpetu-
ando, assim, a mesma lógica das sociedades burguesas que tanto
procurava afrontar, eu poderia afinal começar a questionar o seu
103s u m á r i o
caráter libertário. Do ponto de vista metodológico, portanto, eu teria
a partir de então uma problemática. Como situar a contranulificação
em relação à contracultura e à nulificação?
E se por um lado Michel Foucault nos permite pensar a nulifi-
cação como uma filha dileta das técnicas sofisticadas de disciplina-
mento reveladas por ele em Vigiar e punir, por outro, o seu conceito
de liberdade me parece muito atraente.
Em A ética do cuidado de si como prática da liberdade,
Foucault nos fala da impossibilidade de uma liberdade completa.
Defende essa tese por entender que o poder não se manifesta
em nossa sociedade a partir de um centro, mas dentro de uma
complexa rede de micropoderes. E nos diferentes pontos desta
rede, um sujeito poderia ocupar posições diferentes, dependendo
do tipo de relação que ele estabelece. Sua condição, por exemplo,
poderia ser desfavorável diante de uma autoridade judicial ou de
seu patrão, mas em sua casa já poderia se tornar alguém auto-
ritário diante da esposa e dos filhos. Os micropoderes, portanto,
em determinado momento, podem se manifestar numa condição
desfavorável, em outro, já poderiam permitir vantagens ao sujeito.
Assim, nós nunca nos libertaríamos totalmente, na medida
em que novas relações de poder, nesta complexa rede, estariam
sempre sendo criadas ao lado de novas relações de sujeição. A
liberdade, então, estaria em um exercício ininterrupto de resistência.
Foucault fala em “práticas de liberdade” que seriam importantes
para que aquele que pretende se libertar possa não apenas romper
com um grilhão imediato, mas estar sempre atualizando formas
aceitáveis e satisfatórias para a sua própria existência. Seriam elas
que poderiam controlar as novas relações de poder que surgiriam
ininterruptamente. Liberdade para Foucault, portanto, não seria um
estado, mas uma ética, o que exigiria uma prática refletida dessa
liberdade, ou seja, exigiria um ocupar-se de si mesmo, tendo em
104s u m á r i o
mente que a sujeição não vem apenas de fora do sujeito, mas
também de dentro, por meio dos apetites que podem arrebatá-lo.
Por isso ele afirma que “ser livre significa não ser escravo de
si mesmo nem dos seus apetites, o que implica estabelecer consigo
mesmo uma certa relação de domínio, de controle, chamada de
arché ­– ­poder, comando”. Mas Foucault afirma que, neste caso, o
homem livre deveria não apenas ocupar-se de si mesmo, mas que
também deveria ser capaz de se conduzir de forma adequada em
relação ao outro. Nem ser escravo de si mesmo, nem escravizar
aqueles que estão à sua volta.
Essa ideia foi decisiva para as minhas reflexões, porque agora
teria como pensar em que medida o conceito de contranulificação
poderia dar respostas satisfatórias aos problemas relacionados à
contracultura. Esta compreende, de modo geral, sujeitos e práticas
que criam espaços próprios, à margem daquilo que se entende por
establishment e nesses espaços alternativos espera-se criar um
reflexo invertido das sociedades burguesas: se nestas existe o ódio,
naqueles espaços existiria o amor; se existisse a guerra, a alterna-
tiva a isso seria a paz; se existisse a prisão; seria interessante criar
a liberdade, e assim por diante.
O problema que procuro apontar é que a contracultura, neste
sentido, foi preguiçosa. Nos espaços alternativos criados por ela,
não houve uma prática refletida de liberdade, houve acomodação,
e por consequência disso surgiram velhas e novas formas de nuli-
ficação. E o mais contraditório é que essas práticas de nulificação
realizadas dentro desses espaços alternativos, ao invés de serem
denunciadas, são normalmente acolhidas e celebradas como se
devessem fazer parte de um inventário de atitudes juvenis valori-
zadas como subversivas e não convencionais; valorizadas, enfim,
como uma afronta às subjetividades mais tradicionais.
105s u m á r i o
É o caso do comportamento de Sal Paradise e Dean Moriarty,
os personagens de On the road. Raramente o tratamento gros-
seiro que dispensam às mulheres desperta críticas que abalassem
a condição deles como símbolos da contracultura. Ao contrário,
suas atitudes há muito se consolidaram como uma espécie de
comportamento apropriado para alguém disposto a romper com
as normas sociais tradicionais; alguém que não aceita disciplinas,
um corpo indócil num mundo de gente obediente. Se eles agridem
suas mulheres é porque elas seriam lentas, “burras” e tradicionais,
e esse comportamento, que em outros espaços certamente seria
definido como “machista”, de forma tácita tem sido aceito no âmbito
da contracultura por mais de meio século.
Para citar outro exemplo, poderíamos lembrar que o cantor
Raul Seixas definhou seu corpo por causa dos seus excessos com
o álcool. Seus últimos shows foram apresentados por um simulacro
malfeito, por alguém com o pensamento e movimentos bastante
comprometidos. Muitos fãs, nestes shows, cultuavam um espectro.
Os discursos e práticas libertários dos primeiros anos de sua carreira
foram projetados em uma forma oca, enquanto o seu alcoolismo
se tornava apenas mais um capítulo de uma mitificação. Não era
percebido como um sério problema de saúde, seria simplesmente
mais uma das “maluquices” do “Maluco Beleza”.
E isso não configura uma exceção. Romantizar atitudes auto-
destrutivas de ídolos contraculturais já se tornou comum. Diante da
constatação de que Janis Joplin, Jimi Hendrix e Jim Morrison morreram
aos vinte e sete anos de idade, pensa-se, antes de mais nada, na coin-
cidência do fato, como se isso fosse um elemento de alguma deslum-
brante cosmologia ou o capítulo de uma hagiografia underground, e
não uma tragédia pessoal que se abateu sobre esses jovens.
106s u m á r i o
A banda paulista Ira! criticou esse comportamento autodes-
trutivo que, de forma perigosa, muitas vezes é associado às noções
de liberdade, coragem e subversão. Diz a música Flerte Fatal:
Tanta gente hoje descansa em paz/ Um rock star agora é lenda/
esse flerte é um flerte fatal/ Esse flerte é um flerte fatal/ Que vai te
consumir/ Em busca de um prazer individual/ Esse flerte é um flerte
fatal/ É sempre gente muito especial/ Quanta gente já ultrapassou/ A
linha entre o prazer e a dependência/ E a loucura que faz/ O cara dar
um tiro na cabeça/ Quando chega o além/ E os pés não tocam mais
no chão/ Esse flerte é um flerte fatal [...].
Já a contranulificação poderia ser entendida com um sentido
mais restrito. Ela não cria um lugar próprio para si, sujeito à códigos
e valores particulares, como o que acontece com a contracultura.
Enquanto uma afronta consciente a técnicas de disciplinamento
próprias de um establishment, ela atua sempre no lugar do outro,
como a tática na perspectiva de Michel de Certeau, outro conceito
do qual a contranulificação é tributária.
A contranulificação, portanto, representa o desejo de fugir das
capturas sociais, mesmo diante da impossibilidade da fuga total e
deve ser pensada como uma prática pontual e não uma condição
permanente. Desta forma, um sujeito pode contranulificar-se num
instante e no instante seguinte, nulificar-se ou o que é pior, nulificar
o outro, como no drama pessoal de Raul Seixas ou no exemplo de
Sal Paradise e Dean Moriarty.
Além disso, diferente da contracultura, que normalmente é
vivenciada por um grupo muito particular de pessoas, a contranuli-
ficação poderia representar o comportamento libertário de qualquer
sujeito, independentemente de suas opções políticas ou compor-
tamentais, pois sendo uma prática e não uma condição, não impli-
caria numa inscrição definitiva no corpo de ninguém. O hippie pode
praticar a contranulificação tanto quanto o militante de esquerda
que acredita na revolução comunista.
107s u m á r i o
SOBRE OS AUTORES
Frederico Osanam Amorim Lima
Historiador. Especialista e Mestre em História do Brasil pela
Universidade Federal do Piauí (UFPI). Doutor em História Social
pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pós-doutor em
Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto/
Portugal (FLUP). Professor do Programa de Pós-Graduação em
História do Brasil da Universidade Federal do Piauí. Autor de “Uma
câmera na mão e uma ideia na cabeça: Glauber Rocha e a invenção
do cinema brasileiro moderno” (Editora Prismas, 2015).
Idelmar Gomes Cavalcante Júnior
Doutor em História Social. Coordenador do grupo de pesquisa
“Juventude Cultura e Identidade” – JUCI (Lattes/ CNPQ), há mais de
uma década vem se dedicando a estudar os movimentos juvenis
brasileiros, com especial interesse naqueles que ocorreram nos anos
sessenta e setenta do século passado. Tal interesse se revela nos
vários trabalhos que realizou nos últimos anos como orientador de
trabalhos acadêmicos (trabalhos de conclusão de curso, iniciação
científica e projetos de extensão universitária) e como pesquisador.
Suas pesquisas mais relevantes foram dedicadas ao estudo do
movimento estudantil brasileiro de 1968 e do teatro pernambucano
dos anos sessenta. E nos últimos dois anos vem trabalhando na
elaboração do conceito de “Contranulificação
108s u m á r i o
A
adolescência 99
agressão 57
amedronta 8
androides 62, 63, 64, 65
anticapitalista 93, 95
anulam 13, 25, 28
artista 22, 23, 24
assujeita 8, 11
assujeitamento 9, 10
a-sujeitado 13, 16, 17
atitude 47, 48, 49, 53, 55, 60, 64, 66,
71, 91, 92
autodestruição 49
B
banalização 58
burgueses 67
C
capitalista 47, 67
catolicismo 99
cidade 25, 29, 30, 31, 62, 68, 72, 75,
77, 83, 85, 86, 87, 88, 89, 94,
102
cinismo 50, 92
clandestinos 58
classe 67, 69, 74, 75, 80, 82, 91, 93,
94, 98
condicionamento 71
contracultura 51, 52, 53, 55, 98, 100,
101, 102, 103, 104, 105, 106
Contracultura 47, 51, 101
contranulificação 10, 48, 53, 56, 58,
61, 65, 73, 74, 80, 83, 84, 86,
87, 90, 98, 99, 101, 102, 103,
104, 106
controla 8, 79
controle 9, 18, 25, 79, 101, 104
corpo 13, 14, 16, 18, 22, 23, 24, 28,
33, 39, 40, 45, 49, 50, 54, 59,
60, 66, 67, 77, 78, 79, 80, 82,
83, 85, 86, 87, 105, 106
corpos 9, 13, 18, 22, 30, 38, 49, 59,
60, 78, 79, 82, 83, 85, 86, 89,
90, 94, 97
crime 13, 14, 15, 32, 33, 34, 58
cristão 79, 80, 95
cultura 7, 51, 52, 55, 67, 100
cultural 10, 71, 72, 83
D
democracia 90
denunciar 99
depressão 44
desejo 7, 8, 9, 10, 11, 22, 43, 44, 47,
53, 54, 60, 77, 88, 98, 102, 106
desenvolvimento 40, 67
Deus 40, 76, 93, 96, 97
direita 89, 90, 96, 97
direito 27, 36, 39, 40, 87, 89, 94
disciplina 29, 48, 58, 59, 60, 72, 74,
75, 79, 91
discurso 29, 34, 40, 60, 61
Discurso 25, 26
ditador 20, 36
dor 8, 16, 22, 23, 31
E
Édipo 40, 42
emancipação 45, 81
esquerda 57, 61, 67, 72, 89, 95, 96,
97, 98, 99, 106
ética 8, 9, 11, 15, 22, 26, 99, 103
existência 7, 8, 11, 27, 29, 32, 39, 40,
42, 43, 44, 62, 64, 65, 72, 78,
83, 94, 99, 103
ÍNDICE REMISSIVO
109s u m á r i o
experiência 26, 29, 58, 64, 75, 76, 86,
87
exploração 67, 81, 101
expressão 9, 32, 51, 53, 77, 102
F
filosofia 45, 80, 81
fome 22, 23, 24
força 15, 16, 20, 21, 26, 27, 30, 33,
34, 62, 63, 92, 97
fracos 25, 50, 92
frustação 43, 44
frustração 44, 54
G
gênero 55
governo 37, 57, 58, 97
greve 68, 69, 70, 74, 82
H
hippie 61, 75, 77, 78, 100, 106
história 9, 16, 19, 30, 34, 35, 41, 47,
100
história humana 9
homem 14, 16, 17, 22, 23, 28, 32, 33,
36, 37, 39, 40, 44, 47, 55, 61,
67, 73, 75, 77, 78, 79, 81, 84,
86, 87, 95, 101, 104
homens 8, 21, 25, 29, 30, 31, 34, 40,
47, 48, 53, 54, 55, 58, 62, 63,
65, 66, 69, 76, 87, 94, 102
hostilidade 57
humanidade 15, 63, 81
humano 7, 8, 11, 33, 40, 63, 71, 76,
78, 79, 84
humanos 7, 8, 27, 58, 62, 63, 66, 84
I
ideais 59
identidade 44, 67, 71, 72
identidade cultural 71
imobilismo 11
indiferença 33, 34, 76
indignação 37, 38
influência 66, 99
instituição 20, 25
intelectualidade 67
J
jornadas 88, 90, 93, 94, 95, 96, 97
jovens 48, 53, 57, 58, 59, 87, 88, 101,
102, 105
julgamento 25, 34, 35
justiça 13, 38, 49
L
lei 14, 15, 16, 20, 34, 37, 38, 39, 62,
66
liberdade 14, 17, 25, 29, 30, 43, 44,
45, 48, 52, 53, 55, 56, 61, 62,
73, 83, 87, 90, 99, 102, 103,
104, 106
libertário 90, 97, 98, 103, 106
livre 38, 43, 44, 45, 51, 61, 71, 88,
101, 104
loucura 14, 37, 48, 49, 106
luta 10, 15, 51, 58, 59, 61, 63, 64, 67,
69, 89
M
manifestações 45, 51, 57, 88, 90, 91,
93, 94, 95, 96, 97
maquínicos 9
massa 9, 15, 61, 73, 89, 90, 92, 97
massacre 99
medo 13, 17, 18, 21, 25, 28, 36, 39,
63, 64, 65, 69, 72, 74, 82
metáfora 30, 31, 41, 57, 65, 66
microfascismos 74, 98
micropoderes 69, 103
mídia 88, 90, 91, 92, 93, 94, 95
militante 59, 60, 61, 69, 74, 106
110s u m á r i o
militantes 58, 59, 61, 94, 96, 97, 98
misóginas 102
mito 11, 40, 41, 51
modernidade 40, 41, 71, 76
moral 13, 15, 21, 32, 34, 55, 80
morro 67, 68, 71, 72, 73
morte 7, 9, 11, 25, 29, 33, 34, 39, 42,
48, 64, 65, 66, 71, 100, 101
movimento 20, 25, 61, 64, 69, 78, 88,
89, 90, 91, 93, 94, 95, 97, 98,
107
mudanças 25, 51
mulher 33, 55
N
nada 9, 14, 16, 23, 37, 44, 45, 49, 64,
75, 78, 80, 97, 105
nadificação 9
narrativa 19, 30, 34, 35, 38, 63, 68, 71,
75, 93, 94
natureza 51, 57, 71, 72, 83, 84
niilismo 9
nulificação 8, 9, 11, 13, 14, 15, 31,
32, 37, 47, 72, 74, 81, 97, 99,
103, 104
nulificado 13, 28, 32, 33, 34, 47, 72
nulificar 15, 56, 66, 73, 86, 106
O
obediência 26
ódio 63, 65, 84, 104
opressão 18, 26, 36, 37, 39, 43
opressor 13, 26, 36, 39, 40, 73
ordem 7, 10, 48, 49, 57, 58, 61, 62,
66, 90, 91, 96, 97, 101
ordem social 10, 58, 66, 101
P
pacifismo 51
padrão 13, 15, 23, 29, 68, 75
pai 26, 34, 36, 37, 40, 41, 42, 55, 68,
69, 70, 71, 74, 99
paz 10, 64, 104, 106
personagem 13, 19, 42, 54, 68, 72, 73,
77, 100
pobres 19, 24
poder 9, 11, 13, 16, 18, 20, 21, 25, 26,
31, 32, 36, 37, 38, 42, 45, 47,
53, 58, 79, 82, 89, 90, 95, 96,
97, 98, 103, 104
política 59, 83, 87, 89, 91, 92, 93, 95,
96, 97, 99
políticos 88, 89, 92, 93, 94, 95, 100
progresso 40, 101
protestos 91
psicologia 40, 59
pune 8, 15
puritana 49
R
racionalidade 51, 75, 101
reagir 38
realidade 13, 43, 45, 63, 73, 81, 99
recursos 88
regra 14, 23, 91
relações de poder 79, 103
repressão 57, 89
resistência 57, 91, 103
revolução 28, 51, 52, 57, 72, 83, 89,
106
ricos 24
roqueiros 99
S
sentido 8, 11, 17, 31, 32, 42, 44, 52,
56, 65, 72, 74, 75, 80, 92, 93,
94, 97, 98, 104, 106
sentimental 29
sentimento 42, 44
ser 7, 8, 9, 10, 11, 13, 14, 15, 17, 20,
21, 22, 23, 24, 34, 36, 37, 40,
42, 43, 44, 45, 47, 49, 50, 51,
52, 53, 55, 56, 57, 60, 61, 62,
111s u m á r i o
63, 64, 65, 66, 67, 71, 72, 73,
74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81,
83, 84, 86, 87, 90, 91, 92, 93,
95, 96, 98, 101, 103, 104, 106
ser humano 7, 11, 63, 71, 76, 78
sexistas 102
silêncio 25, 26, 58, 65
símbolos 53, 55, 93, 102, 105
sindicalismo 99
sistema 27, 29, 34, 36, 37, 38, 47, 52,
67, 69, 72, 73, 74, 82
social 10, 15, 26, 34, 36, 37, 38, 48,
52, 58, 63, 66, 69, 71, 72, 74,
79, 85, 87, 89, 101
sociedade 9, 20, 30, 32, 43, 47, 48,
49, 50, 53, 55, 58, 60, 63, 66,
71, 74, 79, 80, 94, 95, 98, 99,
100, 101, 103
sofrimento 28, 31, 100
subjetividades 13, 31, 47, 73, 104
subordina 8
subversão 61, 89, 106
subversiva 99
suicidas 48
sujeitado 8, 13, 16, 17
T
tabu 49
tédio 10, 33
tempo 7, 10, 17, 18, 22, 25, 28, 29,
30, 31, 41, 48, 53, 62, 65, 74,
75, 76, 77, 78, 79, 80, 82, 83,
84, 85, 93, 96, 101
totalitarismo 29
trabalho 8, 10, 22, 23, 25, 27, 28, 33,
55, 70, 74, 75, 79, 82, 87, 91,
101
tradição 30, 101
tragédia grega 42
tropicalista 99
U
universo 20, 23, 26, 29, 33, 36, 39, 40,
52, 100, 101
V
vazio 9, 32, 44, 63
verdade 14, 34, 41, 47, 58, 72, 73,
80, 81
vida 8, 9, 10, 11, 13, 17, 19, 23, 25,
27, 29, 30, 38, 44, 48, 49, 52,
53, 57, 58, 59, 62, 63, 64, 65,
66, 68, 70, 72, 73, 74, 75, 81,
82, 100
vigia 8
violência 16, 17, 55, 58, 60, 61, 66,
84, 102
A ética da nulificação e a contranulificação

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A ética da nulificação e a contranulificação

  • 3. Copyright © Pimenta Cultural, alguns direitos reservados Copyright do texto © 2019 os autores Copyright da edição © 2019 Pimenta Cultural Esta obra é licenciada por uma Licença Creative Commons: by-nc-nd. Direitos para esta edição cedidos à Pimenta Cultural pelo autor para esta obra. Qualquer parte ou a totalidade do conteúdo desta publicação pode ser reproduzida ou compartilhada. O conteúdo publicado é de inteira responsabilidade do autor, não representando a posição oficial da Pimenta Cultural. Comissão Editorial Científica Alaim Souza Neto, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Alexandre Antonio Timbane, Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira, Brasil Alexandre Silva Santos Filho, Universidade Federal do Pará, Brasil Aline Corso, Faculdade Cenecista de Bento Gonçalves, Brasil André Gobbo, Universidade Federal de Santa Catarina e Faculdade Avantis, Brasil Andressa Wiebusch, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil Andreza Regina Lopes da Silva, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Angela Maria Farah, Centro Universitário de União da Vitória, Brasil Anísio Batista Pereira, Universidade Federal de Uberlândia, Brasil Arthur Vianna Ferreira, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Beatriz Braga Bezerra, Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil Bernadétte Beber, Faculdade Avantis, Brasil Bruna Carolina de Lima Siqueira dos Santos, Universidade do Vale do Itajaí, Brasil Bruno Rafael Silva Nogueira Barbosa, Universidade Federal da Paraíba, Brasil Cleonice de Fátima Martins, Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil Daniele Cristine Rodrigues, Universidade de São Paulo, Brasil Dayse Sampaio Lopes Borges, Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Brasil Delton Aparecido Felipe, Universidade Estadual do Paraná, Brasil Dorama de Miranda Carvalho, Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil Elena Maria Mallmann, Universidade Federal de Santa Maria, Brasil Elisiene Borges leal, Universidade Federal do Piauí, Brasil Elizabete de Paula Pacheco, Instituto Federal de Goiás, Brasil Emanoel Cesar Pires Assis, Universidade Estadual do Maranhão. Brasil Francisca de Assiz Carvalho, Universidade Cruzeiro do Sul, Brasil Gracy Cristina Astolpho Duarte, Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil Handherson Leyltton Costa Damasceno, Universidade Federal da Bahia, Brasil Heloisa Candello, IBM Research Brazil, IBM BRASIL, Brasil Inara Antunes Vieira Willerding, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Jacqueline de Castro Rimá, Universidade Federal da Paraíba, Brasil
  • 4. Jeane Carla Oliveira de Melo, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão, Brasil Jeronimo Becker Flores, Pontifício Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil Joelson Alves Onofre, Universidade Estadual de Feira de Santana, Brasil Joselia Maria Neves, Portugal, Instituto Politécnico de Leiria, Portugal Júlia Carolina da Costa Santos, Universidade Estadual do Maro Grosso do Sul, Brasil Juliana da Silva Paiva, Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia da Paraíba, Brasil Kamil Giglio, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Laionel Vieira da Silva, Universidade Federal da Paraíba, Brasil Lidia Oliveira, Universidade de Aveiro, Portugal Ligia Stella Baptista Correia, Escola Superior de Propaganda e Marketing, Brasil Luan Gomes dos Santos de Oliveira, Universidade Federal de Campina Grande, Brasil Lucas Rodrigues Lopes, Faculdade de Tecnologia de Mogi Mirim, Brasil Luciene Correia Santos de Oliveira Luz, Universidade Federal de Goiás; Instituto Federal de Goiás., Brasil Lucimara Rett, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil Marcio Bernardino Sirino, Universidade Castelo Branco, Brasil Marcio Duarte, Faculdades FACCAT, Brasil Marcos dos Reis Batista, Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará, Brasil Maria Edith Maroca de Avelar Rivelli de Oliveira, Universidade Federal de Ouro Preto, Brasil Maribel Santos Miranda-Pinto, Instituto de Educação da Universidade do Minho, Portugal Marília Matos Gonçalves, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Marina A. E. Negri, Universidade de São Paulo, Brasil Marta Cristina Goulart Braga, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Michele Marcelo Silva Bortolai, Universidade de São Paulo, Brasil Midierson Maia, Universidade de São Paulo, Brasil Patricia Bieging, Universidade de São Paulo, Brasil Patricia Flavia Mota, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Brasil Patricia Mara de Carvalho Costa Leite, Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil Patrícia Oliveira, Universidade de Aveiro, Portugal Ramofly Ramofly Bicalho, Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Brasil Rarielle Rodrigues Lima, Universidade Federal do Maranhão, Brasil Raul Inácio Busarello, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Ricardo Luiz de Bittencourt, Universidade do Extremo Sul Catarinense, Brasil Rita Oliveira, Universidade de Aveiro, Portugal Rosane de Fatima Antunes Obregon, Universidade Federal do Maranhão, Brasil Samuel Pompeo, Universidade Estadual Paulista, Brasil Tadeu João Ribeiro Baptista, Universidade Federal de Goiás, Brasil Tarcísio Vanzin, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Thais Karina Souza do Nascimento, Universidade Federal Do Pará, Brasil Thiago Barbosa Soares, Instituto Federal Fluminense, Brasil Valdemar Valente Júnior, Universidade Castelo Branco, Brasil Vania Ribas Ulbricht, Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Wellton da Silva de Fátima, Universidade Federal Fluminense, Brasil Wilder Kleber Fernandes de Santana, Universidade Federal da Paraíba, Brasil
  • 5. Patricia Bieging Raul Inácio Busarello Direção Editorial Marcelo EyngDiretor de sistemas Raul Inácio BusarelloDiretor de criação Ligia Andrade MachadoEditoração eletrônica Designed by FreepikImagens da capa Patricia BiegingEditora executiva AutoresRevisão Frederico Osanam Amorim Lima Idelmar Gomes Cavalcante Júnior Autores Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) ________________________________________________________________________ L732a Lima, Frederico Osanam Amorim - A ética da nulificação e a contranulificação. Frederico Osanam Amorim Lima, Idelmar Gomes Cavalcante Júnior. São Paulo: Pimenta Cultural, 2019. 111p.. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-7221-050-8 (eBook) 978-85-7221-049-2 (brochura) 1. História social. 2. Sociologia. 3. Ética. 4. Ser humano. 5. Assujeitamento. I. Lima, Frederico Osanam Amorim. II. Cavalcante Júnior, Idelmar Gomes. III. Título. CDU: 316.7 CDD: 300 DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.508 ________________________________________________________________________ PIMENTA CULTURAL São Paulo - SP Telefone: +55 (11) 96766-2200 livro@pimentacultural.com www.pimentacultural.com 2019
  • 6. SUMÁRIO PREFÁCIO O desejo de não ser.........................................................................7 PARTE 1 NULIFICAÇÃO A ética da nulificação......................................................................13 Porque o homem é uma confusão de sentimentos.......................16 Aniki-Bóbó: um filme que fala de solidariedade e do tropeço do poder no fazer diário da vida...............................19 A dor como ofício............................................................................22 A obediência como ética................................................................25 El empleo........................................................................................27 Alphaville: a utopia da cidade sem dor..........................................29 Ser fraterno na indiferença: Mersault e o mundo...........................32 O que nos oprime?.........................................................................36 Questões contemporâneas, primeiro capítulo: a arrogância.........40 Questões contemporâneas, segundo capítulo: a liberdade..........43
  • 7. PARTE 2 CONTRANULIFICAÇÃO Prolegômenos da Contranulificação I: o uivo de um corpo saliente e delirante .........................................47 Prolegômenos da Contranulificação II: o lado infame da contracultura em on the road .............................51 Prolegômenos da Contranulificação III: movimentos de esquerda e a Contranulificação............................57 O androide que não queria morrer.................................................62 Sem black-tie, sem paraíso: a história de um adão duplamente decaído..............................................................67 O tempo da Contranulificação........................................................75 As jornadas de 2013: o sucesso de uma revolução perdida ........85 Diário de bordo: apontamentos para uma narrativa......................99 Sobre os autores...........................................................................107 Índice remissivo............................................................................108
  • 8. 7s u m á r i o PREFÁCIO1 O desejo de não ser Para Martin Heidegger os humanos só não são responsáveis por dois momentos em suas vidas: o momento do nascimento e o momento da morte, se esta não é suicida. O ser requer investimento e responsabilidade, cuidado e persistência. O ser acontece no tempo, é existencialmente construído. Não há ser que preexista as ações e representações que o dão forma e conteúdo. O ser é uma démarche e um vir a ser constantes, que exigem vontade e afirmação. Lançado no mundo pelo nascimento, o ente deve dar a si mesmo um ser, na relação com os outros e consigo mesmo. Na relação com a cultura e na relação com a linguagem o ser se faz e se diz. O ser se diz e se faz ver de múltiplas maneiras. Não há ser humano essencial, permanente, universal, que se decline sempre da mesma maneira. O livro que vocês têm em mãos e que logo começarão a ler, aborda de maneira profunda e multifacetada um fenômeno contem- porâneo, mas também um fenômeno presente em muitas outras épocas: o desejo de não ser, o desejo que assalta a muitos seres humanos, em dados momentos de suas existências e da existência coletiva, de deixarem de ser. Ser é uma condição e um manda- mento. Muitas vezes é difícil cumprir com essa ordem de ser. O ser humano é fundamentalmente ser na angústia, na incerteza, na precariedade do próprio ser. Por ser solitário, consciente e lançado no tempo, o ser humano é muitas vezes uma tarefa quase insupor- tável. O ser humano é sempre habitado pelo não ser, pelo deixar de ser, pela ameaça de morte e desaparecimento. O ser humano é 1. DOI: 10.31560/pimentacultural/2019.508.7-11.
  • 9. 8s u m á r i o um ser mortal e tem consciência disso, daí, porque, muitas vezes, se pergunte se viver tem sentido ou vale a pena, a medida que a existência só existe para deixar de existir. Frederico Osanan e Idelmar Cavalcante, dois belos seres humanos, nos oferecem um conjunto de texto que refletem sobre o desejo de não ser que nos assalta muitas vezes, desejo que eles nomeiam de desejo de nulificação. Muitas vezes queremos nos anular, deixar de ser o que somos, deixar a nossa condição e a nossa situação, desejamos desaparecer, fugir, evaporar, deixar de ser. Quando o estar sendo pesa, quando o perseverar no ser traz uma dor insuportável, quando o perseguir o ser se mostra impossível, indesejável, inalcançável, muitos adotam o que os autores desse livro criativo e inspirador chamam de ética da nulificação. Como sabemos, a ética implica a relação que o ser mantém consigo mesmo, implica o trabalho de produção de si, de escrita de si, de formação de si mesmo. A ética nasce dos limites e do desenho que damos ao nosso próprio ser. Ser é se fazer sujeito, é se fazer agente, é se fazer a origem de seu próprio ser. Mas, na própria língua portuguesa a palavra sujeito traz uma ambiguidade de sentido, que define e invade o próprio ser dos homens e mulheres. Ser sujeito tanto implica dar início a uma ação, como implica sofrê-la, ser dela paciente, tanto quanto agente. Quando você se assujeita, tanto você se faz e se torna sujeito, como se faz e se torna sujeitado. Como não há sujeito humano fora das relações com os outros, para nos tornamos sujeitos sempre é preciso nos assujeitarmos aos outros e nos outros. Como alertava Merleau Ponty, eu preciso do olhar do outro para me ver, para me enxergar, para saber quem sou, para saber qual o meu ser, mas também é o olhar do outro que me limita, que me controla, que me vigia, que me pune, que me amedronta e me subordina. Não é possível dizer sim para a vida sem que o não esteja presente e habitando essa afirmação. A ética da nulificação, presente nas obas de arte, nos livros, filmes, autores que são tematizados nos
  • 10. 9s u m á r i o escritos presentes nesse livro, não deixa de ser uma forma possível, talvez derradeira, desesperada, desesperançada de se afirmar o ser, mesmo que seja pelo nada, tese central do existencialismo sartriano. Para Sartre o nada, o vazio, o oco, o vórtice é a única essência do ser, pois esse tende para sua nadificação, sua nulificação. A nulificação, seria para Sartre, a própria definição da vida humana, pois, a medida que é vivida o que se dá é a sua progressiva nulificação. Vivemos para a morte e, portanto, vivemos destinados ao nada. A tese central do livro que vos apresento é a de que o desejo de nada ser, a ética da nulificação, habita e explicita o niilismo contem- porâneo, previsto e denunciado por Nietzsche, ainda no século XIX. A consciência crescente de nosso caráter temporal e passageiro, do caráter finito de todas as coisas; a emergência de uma sociedade de seres cada vez mais solitários, individualistas, egóicos e narcisistas; uma sociedade onde as técnicas de assujeitamento, de dominação, de disciplinarização se intensificaram; em que a sensação de se fazer parte de uma engrenagem da qual não se tem o mínimo controle, tornou o desejo de morte, fonte de todo desejo de ser nada, de se anular, de deixar de ser, central em nossa sociedade. A medida que vivemos uma vida que se mecaniza, que se tecnifica, onde os corpos se tornam maquínicos, autômatos, onde somos governados por forças que em muito transcendem nossa vontade e nosso poder, parece que também cresce o desânimo, o cansaço, a recusa a resistir a tudo isso. No lugar de resistir considera-se preferível desistir. Desistir de resistir, de lutar, de perseverar no ser. O inicio do século XX, de onde vem alguns autores e textos comentados nesse livro, ficou marcado pelo crescente número de suicídios, uma forma extrema de nulificação. Não podemos deixar de aventar a hipótese de que as multidões que se lançaram nas guerras e revoluções do século XX, muitas de maneira entusiasta, buscavam uma forma de mortificação coletiva, de nadificação, de nulificação em massa. Os extermínios e genocídios, marcas dos
  • 11. 10s u m á r i o dois últimos séculos da história humana, podem ser a expressão desse desejo coletivo de desistir da vida, do abrir mão do ser, do desejo de descansar do ser. Descansar sim, pois ser é cansativo, exige trabalho constante, investimento constante, cuidado perma- nente consigo e com as relações com outros, pessoas e coisas, instituições e linguagens, que nos constituem. O tédio, a melancolia, a angústia, a afasia, o fastio, nascem da preguiça de ser. O ser não nos permite ter paz, ele nos aguilhoa, ele nos acicata, ele nos cutuca, ele nos cobra, ele nos perturba todo o tempo. A preocupação pelo ser nunca nos abandona. Daí porque muitos desejam e preferem se entregar a um outro, a alguém que o domine, que o diga como ser, como deve ser, como pode ser, como dá para ser. Muitos acham preferível, para evitar o conflito, a luta, a tensão, a discordância, que ser sempre implica, se anular, se deixar levar, se deixar governar, mandar, pelo outro. Para evitar o incômodo de ser, o comodista se anula, se torna uma nulidade. Muitos procuram não ser visíveis, nem dizíveis, buscam o anonimato e o desaparecimento, assim acham que se protegem de ser. Cansados de tentar dar a si um ser, muitos preferem copiar os modelitos de ser que outros os oferecem muito baratinho e bem baratinado. Muitos adotam e adoram próteses de ser, até mesmo desejam ser uma espécie de implante, de prótese na vida do outro, vivendo por osmose e por cissiparidade. Na segunda parte do livro nos são apresentadas estratégias e propostas de contranulificação, estratégias e práticas visando sair da nulidade, deixar de ser uma nulidade, para ser a negação do nulo, negação da negação. Como deixar de ser nulo? Veja que mesmo a nulidade é um ser que se diz pela negativa. Talvez o pulo do gato seja sempre ser pela afirmação, ser afirmando, ser dizendo sim ao ser, mesmo com todas as suas precariedades, carências, incertezas, fragi- lidades, ambivalências. Deixar-se ser sendo, se colocando, se posicio- nando, se mostrando, se dizendo presente, se dizendo senhor de seu ser em todas as situações. Se não podemos escapar do assujeita- mento, pois o ser sujeito o implica, ser assujeitado é imanente do ser
  • 12. 11s u m á r i o sujeito, pois sempre estamos no interior de uma ordem social, cultural e simbólica e só nelas podemos ser sujeitos, façamos do assujeita- mente apenas uma face de nosso modo de ser, de ser sujeito. O uso da razão, da crítica, do riso, da ironia, da poesia, ainda são indispensáveis para afirmar um ser que não apenas se assujeita mas que se subjetiva, que fabrica a si mesmo. Pensar o ser humano como uma fabricação, como uma obra de arte, elaborando um estilo de existência, um modo de viver em que não prevaleçam os desejos de outrem, as imposições sociais, os costumes, as tradições, os hábitos, as regras de moralidade. Se somos obrigados a ser, que o sejamos da melhor maneira possível, nos rebelando e transgre- dindo tudo aquilo que nos adestra e dociliza no sentido de sermos como todo mundo diz que é preciso ser. Sejamos afirmativos, não nos deixemos anular pelo outro, sejamos diferentes e respeitosos da diferença, pois se não há modelo para o ser humano, tudo ainda está sempre por criar e por inventar. Não se anular requer coragem, requer disposição para sair do imobilismo, para abandonar as solu- ções mais fáceis, requer ter destemor na hora de desafiar o coro dos contentes. Recomendo esse livro, pois ele dá muito o que pensar. Ele vem na hora certa, no momento em que vemos, no país e no mundo, tantas pessoas entregues ao desejo de morte, à ética do rebanho, em que tanta gente quer anular os outros para autoritariamente prevalecerem como a nulidade que são. Num país governado por nulidades, por um grupo que chegou ao poder negando a inteli- gência, odiando o conhecimento, fazendo do mito e da mistificação, da mentira e da calunia um evangelho, esse livro que nos alerta para o perigo da ética da nulificação, para a ética do quanto pior melhor, para a arrogância dos nulos, se torna leitura obrigatória. A vida não é dos nulos e dos que se fazem presentes. Durval Muniz de Albuquerque Júnior João Pessoa, 18 de fevereiro de 2019
  • 13. PARTE 1 NULIFICAÇÃO Frederico Osanam Amorim Lima Parte 1 NULIFICAÇÃO FredericoOsanamAmorimLima
  • 14. 13s u m á r i o A ÉTICA DA NULIFICAÇÃO Josef K. foi nulificado! Seu processo se entranhou em seu corpo, consumiu suas vísceras e alterou sua moral. K., num dado momento, deixou de falar por si. Primeiro falou pelos outros, por aqueles surrupiados pela justiça e açoitados pelo opressor. Depois, ao se declarar inocente de um processo que ele sequer soube do que se tratava, Josef se anulou. Apagou-se! Foi tomado pelo medo de ser punido por um crime de que ele sequer foi acusado formal- mente. K. sumiu... Foi a-sujeitado. Perdeu a fala, depois esvaeceu. O Processo, do escritor tcheco Franz Kafka em que Josef é personagem é, antes de tudo, um tratado de nulificação. Um tratado na forma de um romance. O romance que trata de uma vida imersa num cenário que mistura sonho e realidade. Uma vida, por sua vez, que se anula diariamente, que se apaga constantemente com a tensão criada à espera das consequências do que se falou. Josef K., uma espécie de pseudo-sujeito deste romance, se constitui num arquétipo de não-alguém semelhante a todos os não-alguém da vida real que se empalidecem com o que falam. Que preveem consequências nocivas com palavras ditas sem pensar. Que, enfim, se anulam para serem aceitos num grupo, numa enti- dade, num emprego, por fim, para cumprirem um padrão e se arti- cularem à norma. Josef K. é todo aquele ou aquela que renunciou ser para poder ter. O Romance surreal de Kafka acaba por falar dos meca- nismos de internalização do poder. Dos poderes que são relacio- nais em nossas vidas. Dos poderes que nos rodeiam, que cindem nossos corpos às estruturas, que fundem nossas subjetividades à cordialidade, às pequenas obediências, às nossas sensibilidades de cordeiros. O processo é a obra que desnuda os micro poderes
  • 15. 14s u m á r i o que nos tornam outros para além daquilo que desejamos ser. É o livro que diz que mesmo se declarando inocente, mesmo rebelan- do-se ou se mantendo calado, o processo foi o encarregado de urdir esse nosso comportamento. Josef K., um funcionário bem conceituado de um banco, um dia qualquer acordou e sentiu falta do seu desjejum. Em vez da cozinheira, que pontualmente trazia seu café da manhã, quem bateu a porta do seu quarto foi um homem de “tipo esbelto, porém de aspecto sólido, que vestia um traje negro e justo”. Josef hesita em recebê-lo. Questiona a presença do homem em seu quarto, faz perguntas, mas é sempre ignorado. O máximo que consegue é saber que estava detido! Que respondia, a partir daquele momento, a um processo. Mas, o que K. havia feito de tão grave? K. – assim como muitos daqueles que transitam entre nós, também pseudos-personagens de um romance ambientado num cenário que beira a loucura – não se da conta de que o crime que ele cometeu é o que menos importa. O crime, na verdade, nem existe! Josef não cometeu nada que implique a sua detenção. K. foi detido, assim como muitos outros também são, no momento em que replicou, contrariou, questionou a norma. No momento em que acre- ditava gritar por liberdade, ele começava a ser anulado. O guarda que o deteve bem que avisou: “você logo sentirá o efeito dessa lei”. Como tratado de nulificação, o processo descreve o percurso diário do a-sujeitamento. Ele começa no comportamento ordeiro, na cordialidade abusiva, na docilidade e submissão à norma. Inversamente ele também se produz. O processo que constrói o dócil, também macula o revoltado, o revolucionário, o que fala em nome de vários, o que fala em defesa de um bem comum, o que tenta falar por mim, por você ou por qualquer outro que fuja à regra. Com Kafka – o mesmo Franz da visão onírica de um homem que acorda metamorfoseado no corpo de uma barata – aprendi que
  • 16. 15s u m á r i o o peso da lei esta para além dos tribunais e suas sentenças. Aprendi que há uma lei que prescinde o crime. Uma lei que sentencia nossas vidas a constantes obrigações. Uma lei que nos pune diariamente, que nos sutura ao padrão, que faz dos olhares de reprovação de muitos, verdadeiros tribunais em defesa de uma moral, de uma ética da nulifi- cação. Mas com Kafka aprendi, também, que o exercício de libertação deve ser constante e fundamentalmente marcado pela dúvida, pela suspeita, pelo questionamento e pela insurreição à docilidade. Kafka nos ensina que nulificar-se pode ser algo que inde- penda de nossa vontade. Algo que esta acima e além de nossa força. Algo que pode até nos unir! Kafka, se fosse um cientista social que quisesse projetar nosso futuro e nele encontrar uma massa unida para a luta, bem que poderia ter encerrado seu tratado de nulificação com uma frase de efeito ao modo de Marx. Marx, que conclamou apenas uma fração da humanidade à luta, talvez sentisse inveja de um brando tão mais convincente e universal. Kafka não encerrou, mas bem que poderia ter terminado o processo com uma sonora e reverberante conclamação: “nulificados no mundo, uni-vos!”.
  • 17. 16s u m á r i o PORQUE O HOMEM É UMA CONFUSÃO DE SENTIMENTOS E fez descer o povo às águas. Então o Senhor disse a Gideão: Qualquer que lamber as águas com a sua língua, como as lambe o cão, esse porás à parte; como também a todo aquele que se abaixar de joelhos a beber. Juízes 7:5 Um a-sujeitado. Jeremias desperta numa cela escura e úmida. Chão batido, sem ventilação, sem luz, quase sem ar. Um homem e sua cela. Um corpo e a solidão exasperante do lugar. Do lado de fora um pátio. A cela e o pátio. Não entre a Cela e o Pátio, mas, simplesmente, a cela e o pátio, constituindo a força repressiva da ausência de interditos. Não há fronteiras, entremeios. Ou se está num lugar, ou no outro. A força e o vigor simbólicos da cela em nossa mente articulam nossas sensibilidades a um desarranjo subjetivo e um desconforto emocional. O alento causado pela imagem do pátio reintegra os sentidos e alivia a dor do isolamento. Cela e pátio, entretanto, são partes integrantes de um mesmo ritual de tortura psicológica. São cruéis demais para produzir histórias felizes. São signos de uma história da violência que está para além das prisões, das leis, das normas e dos poderes institucionalizados. A cela e o pátio são imagens/discursos de um poder que extrapola os limites dos muros e das grades. Não há nada entre a cela e o pátio! Há, verdadeira- mente, uma cela que produz, contraditoriamente, a sensação de proteção; e o pátio, espaço de encontros controlados por monossí- labas berradas por agentes da lei. A cela. Espaço monolítico, denso, colérico, sem precisão de palavrapradescrevê-lo.Escuro,frio,cinza,comparedesgrossasque abafam o grito. O pátio. Um pátio fechado. Um pátio que converte
  • 18. 17s u m á r i o o tempo em silhuetas artificiais. Liberdades artificiais; luz artificial; água artificialmente modificada para produzir entorpecimento. Tudo no livro produz calafrios... as mãos de Jeremias acorren- tadas para trás sempre que estava na cela, os ratos remexendo sua comida, a sensação inquietante do descompasso temporal, o hiato entre a refeição, o banho e o grito... tudo beira um cenário de angústia e imersão. Cada palavra revela um cheiro, uma sensação, um sabor... Cada palavra enunciada, cada gesto aprendido, cada sentido atribuído ao mundo é produto de uma angústia desmesurada. É quase possível produzir um texto sobre cada palavra enunciada no livro. - Quem são os que bebem como os cães? Como bebem os cães? - São todos aqueles que se embrutecem, Jeremias, que se entorpecem, que se dopam com medo da vida... São os que se ajoelham, que tremem diante de uma voz autoritária, que sucumbem sob qualquer suspeita de sua inocência. São os que se calam, os que aceitam o óbvio das coisas, os que têm o comportamento dócil, disciplinado, ordeiro... que agradecem demasiadamente... são, ainda, aqueles nulificados prisioneiros de si e de suas cara- paças individuais, que não conseguem olhar para o lado, para o outro, para o seu próprio passado. São aqueles que, como cães, se agacham para beber... Jeremias estava certo o tempo quase todo. Há algo que o entorpece. Há algo que tira sua sanidade, sua capacidade de cons- truir sonhos, de articular pensamentos e ordenar ações. Há, ainda, algo que marca com violência sua carne, atravessa suas entranhas e caotiza seus sentidos. Jeremias, como todo a-sujeitado, um dia lembra que sua liberdade é produto da vontade alheia. Lembra do que tinha sido forçado a esquecer. Lembra que lembrar é perigoso. E lembra que esquecer é negar ser homem.
  • 19. 18s u m á r i o Assis Brasil, autor dessa distopia angustiante, aponta os começos caóticos dos a-sujeitamentos. Dos corpos sendo ener- vados, ortopedicamente construídos, disciplinados, castrados e anulados. Dos sentidos sendo treinados, orquestrados, manipu- lados e docilizados. “A voz não tinha cor, mas penetrava na carne e feria”. Primeiro a voz, o açoite e o empurrão. Depois a simples presença, o olhar de pedra dos guardas, a ameaça sem palavras e gestos. Enfim, a simples ideia de que alguém pode estar vendo: o corpo se blinda de medo e o poder se entranha em suas carnes. O poder consumiu sua carne e ele se esvaiu em sangue como a querer burlar a norma. - Quem são os que bebem como os cães? Como bebem os cães? - São os que preferem a rotina, Jeremias, além da inércia e da lassidão abjeta. São os que possuem fronteiras demarcadas para sentimentos, para ações, para contatos. São, por fim, os que se calam diante da militarização do cotidiano, do controle de nossos comportamentos, do nosso tempo e dos nossos desejos. Contra a opressão diária, Jeremias, é necessário continuar gritando.
  • 20. 19s u m á r i o ANIKI-BÓBÓ: UM FILME QUE FALA DE SOLIDARIEDADE E DO TROPEÇO DO PODER NO FAZER DIÁRIO DA VIDA Aniki-Bebé/Aniki-Bóbó passarinho totó berimbau, cavaquinho Salomão sacristão tu és polícia, tu és ladrão Aniki-Bóbó, 1942. A narrativa é relativamente simples e fácil. Algumas crianças, pobres, ribeirinhas, descobrem, em terna idade, a paixão. Duas delas, Carlitos e Eduardo, disputam, a exemplo do que, provavel- mente, fizeram/farão/fazem (muitos) (d)os adultos, a atenção de uma jovem e bonita garota. De início, um empurrão, insultos e algumas brigas. Eduardo, forte e vivaz, derruba, humilha, bate e grita em Carlitos, tentando afastá-lo de Teresinha. Carlitos – nome que insinua certo apreço por outro Carlitos, personagem de Charles Chaplin – franzino e meigo, reage tocando na sensibilidade da garota. Ela, delicada, venera uma boneca na vitrine de uma loja. Carlitos, astutamente, rouba a boneca para Teresinha... Num desses infortúnios vida é, injustamente, acusado de ter empurrado Eduardo de uma ladeira que dava para os trilhos do trem. Cai em desgraça! Roubo e tentativa de homicídio. No fim, a generosidade do vilão da história é que redime Carlitos. Aniki-Bóbó, filme do português Manoel de Oliveira, filmado e exibido pela primeira vez em 1941/1942, é um desses filmes que causa arrepio quando se assiste. Simples, terno, mas profun- damente perturbador. Rechaçado quando foi lançado, o filme só ganhou reconhecimento e notoriedade muitos anos depois. Hoje é um clássico do cinema português e ganha, com frequência, notas em jornais, publicações em livros e artigos. Fato que sugere, a despeito do esquecimento no passado, uma pergunta: em que
  • 21. 20s u m á r i o reside a atual aderência ao filme pelos críticos e estudiosos do cinema português? Para muitos, Aniki-Bóbó antecede aquilo que seria chamado, na Itália, de neo-realismo. Por este feito, Manoel de Oliveira acabou sendo alçado à condição de precursor de um movi- mento que ele próprio se diz avesso. O filme, entretanto, para além de uma discussão estética ou de pertença a um movimento cinematográfico, é potencialmente rico em questões políticas, notadamente aquelas que sugestionam uma prisão dos indivíduos às estruturas de pensamento e comportamento por intermédio da força. O poder, em Aniki-Bóbó, se escancara por todos os lados. Ele não é escamoteado, necessariamente, por signos alusivos a um ditador ou uma instituição. Ele é pulverizado na socie- dade, nas pequenas autoridades que circulam o universo infanto-ju- venil do filme; no dia-a-dia de crianças que estão se formando, mas que já percebem o peso e as limitações de seus desejos. Aniki-Bóbó, brincadeira de rua de garotos ribeirinhos que se dividem entre bandidos e policiais... que se dividem entre os que serão perseguidos e os que perseguirão. Brincadeira que desvela os meandros do poder no cotidiano. Que fala sobre quem persegue, quem é perseguido, mas, também, quem se sente perseguido e quem, mesmo sem ser perseguido, sente que pode, um dia, ser perseguido... ainda que injustamente. A mãe, o policial, o professor, o dono da loja... São todos figurantes de um poder que se desdobra em gestos e olhares. São arquétipos de um poder que se traduz nos encantamentos diários pelo “fazer o correto”, pelo “fazer o certo”, “o honesto”, “o justo”. Por trás de um poder que se localiza na autoridade de todos esses personagens com prerrogativas de família, lei, educação e proprie- dade privada, existem outros se imiscuindo no interior da socie- dade. Estes, de difícil compreensão, só são desvelados em filmes como Aniki-Bóbó. Eles estão no olhar de reprovação das próprias
  • 22. 21s u m á r i o crianças; está na frase pseudo-moral e imperiosa que Carlitos carrega na sua bolsa – “segue sempre por bom caminho”; está no modo de se sentar, na capacidade de não reconhecer outro caminho para a conquista do amor que não seja pelo apelo material... está, inclusive, na meiga e indecisa Teresinha quando, por acreditar que Carlitos tinha motivo para fazê-lo, aceita, por força das circunstância e do poder que diz o que é legitimo numa situação dessas, que Carlitos empurrou Eduardo ladeira abaixo. Aniki-Bóbó... um filme de 1942 que é tão atual quanto são atuais e necessárias as dúvidas que colocamos (ou devemos colocar) sobre a nossa condição de homens livres no mundo. Aniki bem que poderei ser, como seu diretor desejou que fosse, só um filme para passar “uma mensagem de amor e compreensão do semelhante”. Mas, é um filme que revela o quanto as prisões diárias castram, nulificam e produzem, com bastante frequência, o medo. Viva Aniki-Bóbó, mais de 70 anos depois! Não pelo que ele foi, mas, antes de tudo, pelos meandros do poder que ele pôde revelar.
  • 23. 22s u m á r i o A DOR COMO OFÍCIO Era um verdadeiro artista. Capaz de passar dias a fio sem comer, ele entretinha multidões e despertava náuseas em antipati- zantes. Não lhe coube, no livro, um nome próprio que o interpelasse. Sob o ofício e o título de sua profissão, recaia toda sorte de signifi- cados e valores estigmatizados. Ele despertava sentimentos ambi- valentes. Assombrava, era admirado, causava repulsa, era acusado de charlatão e tinha numa jaula seu palco diário de suntuoso encan- tamento. Num passado glorioso, acordava e dormia sob o olhar atento de incrédulos. Era vigiado, agraciado quando finalizava o trabalho e sempre arrebatado pelo desejo de que era possível ir mais longe. Não desejava parar. Não queria parar! Levou tão a sério seu ofício que morreu no palco em meio a palhas, confundido com elas. Desapareceu sem ser notado. Não houve plateia para ovacio- ná-lo. Foi substituído por um bicho. Ele era o jejuador. Um artista da fome, conto do escritor Franz Kafka publi- cado em 1922, é um desconcertante prelúdio ao nosso tempo. Um romance endereçado à nossa condição histórica que causa emba- raço e aversão. Um romance que tem no trabalho de um artista, de um homem que tinha como ofício passar dias sem comida, seu argumento principal. Do corpo deste artista de rua, que passa fome para servir de atração, Kafka, sem querer, lança duas perguntas inquietantes sobre nossa ética: por que aceitamos a dor no intuito de agradar os outros? Por que aceitamos a dor para ter o reconhe- cimento dos outros? Arrodeado de grades e olhos, o jejuador é, metaforicamente, o presidiário dos valores alheios; dos valores que imprimem nos corpos verdadeiras armaduras comportamentais. Ele encara o mundo pela satisfação alheia. Transforma a praça ou o circo onde atua numa atmosfera passiva de curtição. Ainda que ele retruque,
  • 24. 23s u m á r i o que replique dizendo que passa fome porque nada lhe agrada o paladar, seu corpo é refém da vontade da plateia, das crianças que sorriem, dos adultos que o acusam de trapaceiro, do empresário que estabelece o limite para o seu jejum. Ele é um artista porque agrada. Ele é artista enquanto agrada. Alguém, atônito e aflito, se pergunta: Por que um homem passaria fome para agradar os outros? Seria possível existir alguém que passaria fome para se encaixar num padrão, num modelo, numa forma pré-fabricada de composição físico-corporal? Por que o jejuador aceita a vida como um espetáculo de farta admiração sobre sua fome? Outro, meticuloso leitor do conto de Kafka e signatário das palavras, responde usando o texto: Porque ele não pôde “encontrar comida que [lhe] agradasse”. O jejuador, a despeito da fome que passa por que nada lhe agrada, é todo aquele e aquela que na dor encontra o seu conforto. Que na carência exagerada, nos excessivos pedidos de desculpa, na demasiada fome de cuidado, clama por olhares e gestos de apro- vação. É aquele e aquela que presenteia com frequência esperando ser mais amado, mais lembrado, mais querido. É o que se priva da diversão, da noite de sono, do estudo, do trabalho em nome de uma suposta maior atenção do outro. O jejuador encerra seus argumentos em prantos e com uma senha lamuriante: “eu faço tudo por você”. Num universo de jejuadores inconscientes, os que comem e encarram a vida sem a prescrição alheia, são gordos, obesos, fora de forma, depositários de gordura, feios e, em alguns casos, nojentos. Jejuar, no conto de Kafka, era atributo de um artista de rua muito especial. Jejuar, na contemporaneidade, de exceção passou a regra. Ele se espalhou pelas fábricas, escolas, parques, univer- sidades... Ele não é mais reconhecido dentro de uma jaula, nem
  • 25. 24s u m á r i o com um corpo esguio e franzino. Há jejuadores fortes e esbeltos; há jejuadores pobres e outros tantos ricos; há quem jejue por missão, prazer ou ofício. Jejuar deixou de ser verbo alusivo a privação. A (des)arte do jejuar contemporâneo está no oferecer sem limites, no ajudar à espera de retribuição afetiva, no presentear e na recom- pensa. O artista da fome de antes, substituído por uma pantera quando sua fome já não agradava mais ninguém, é hoje o necessi- tado do olhar e afeto alheio para sobreviver. Ele nos espreita virtu- almente a todo instante. Ele vive entre nós. Ele até retribui nossa curtida. Saudemos o virtual artista da fome pós-moderno.
  • 26. 25s u m á r i o A OBEDIÊNCIA COMO ÉTICA Quando Étienne de La Boétie nasceu, a Europa vivia um processo de intensas e profundas mudanças políticas e culturais. La Boétie, filho de uma época ofuscada pelo brilho de Maquiavel, Hobbes e Shakespeare, morreu menor em importância até que seu amigo e admirador Montaigne. Como produto de uma época em que “criticar” justificava uma condenação à morte, Étinne lança mão do artifício do silêncio. Morreu novo e sem que tenha visto sua prin- cipal obra publicada. Morreu sendo funcionário da instituição que é a base de suas mais contundentes críticas. Em silêncio, saiu de cena encurvado pelo medo das punições. Voltou, anos mais tarde, como arauto da liberdade. O Discurso sobre a servidão voluntária, sua principal obra, incomoda menos pelo que foi e mais pelo que é. Sua importância segue o movimento do requinte das tecnologias do poder. Quanto mais se investe nas minúcias do controle, mais o Discurso aborrece. Quanto mais o poder se esconde em vantagens, em camaradagens, na cumplicidade e nas levezas gestuais de um dedo apontado ou de um olhar de reprovação, tanto mais a obra de La Boétie se faz necessária. Étienne pensou o texto como uma reflexão sobre o seu tempo; eu penso o tempo como moldura rizomática para sua obra: a cada novo fazer político, o Discurso, como um rizoma, se trans- forma, ganha potência, se adapta, cria e permite novos sentidos. Ele não faz concessões ao tempo nem ao lugar. Em qual- quer época, em toda vila, casa, família, empresa, cidade, Estado, o Discurso inquire quem o lê: Porque homens se tornam fracos? Porque as pessoas se anulam? Porque escolhem/aceitam opressores? Porque submetem sua vida, seu gozo, seu prazer ao julgamento e aprovação dos outros? Porque encaram suas vontades como ameaça à estabilidade do reino, da família, do trabalho e do relacionamento?
  • 27. 26s u m á r i o O Discurso, lido a contrapelo, descreve o percurso da obedi- ência diária. De uma ética da obediência e de uma obediência camuflada em ética. De uma obediência que carrega um lastro de felicidade endêmica, entorpecida, viciada. Felicidade que precisa de uma rotina de castigo: uma dose errada de maus-tratos no obediente é pior do que o mau-trato diário. De uma obediência que aceita o silêncio em troca de um gozo rápido; que respira aliviada quando encontra reciprocidade na conversa, no olhar, na cama e na mesa do jantar. O obediente, embrutecido por sua ética servil/ voluntária, aceita a chacota diária como elogio; se acostuma com o descaso e a tirania alheia. Fica feliz quando presenteia e se contenta em nunca receber um pedido sincero de agradecimento. Obedece, muitas das vezes, a quem não tem experiência alguma. A quem, enfim, o obediente teme? Ao rei, ao policial, ao “chefe” da família, ao gerente da empresa, ao marido ou à esposa, ao pai, a mãe, ao “doutor” e ao professor. “O Homem escolhe seu próprio opressor”. Em que reside a força do tirano, do macho, da feminista, dos totalitários, conservadores e fascistas de plantão? No definhamento diário do obediente. A força do tirano está na obedi- ência dos que se vendem em troca de um cargo, de uma promoção, de mais dinheiro e de, supostamente, mais poder. Lição de La Boétie depois de diagnosticar um universo social voluntariamente servil: O não servir é a arma contra a obediência e a opressão.
  • 28. 27s u m á r i o EL EMPLEO El empleo (O emprego, 2008), do diretor argentino Santiago Grasso, é uma dessas animações que deixa a gente atônito. Da primeira à última imagem, o filme entorna angústia, aflição, anulação e mais outros tantos vômitos adjetivais sinônimos de prostração e desalento. Dá um verdadeiro embrulho no estômago! Um curta que fala da inércia a que somos submetidos diariamente, mas também das marcas que o trabalho e o sistema operam em nós e das “coer- ções silenciosas das relações econômicas”. O enredo é relativamente simples: trata-se de descrever a monótona – e aparentemente repetitiva – vida de um “trabalhador” do momento em que ele acorda até sua chegada ao trabalho. O que assombra não é essa constatação de monotonia e sisifismo já tão evidente na nossa existência laboral. O que espanta, primeiramente, é o próprio enervamento das pessoas. Há uma espécie de dopamento coletivo, um apequenamento dos sujeitos que acabam se transfor- mando numa coletividade amorfa, sem brilho e reação. Pessoas se cruzam sem se olharem; pessoas se olham sem se enxergarem. Num cenário desprovido de som e com poucas cores, humanos, demasiados humanos, estão alienados, transvestidos de gente e transformados em objetos. Isso não só assombra, mas deixa a gente extasiado: humanos, demasiados humanos, servem para pendurar, segurar lustres, roupas, servem de cadeira, mesa e para se pisar. Há um Nietzsche trágico por todos os lados. Mas, há um Marx cínico por trás de tudo. A força de sua imagem/teoria aparece nas cenas inicias do curta quando o relógio mensura o “direito” ao sono e descanso do trabalhador; ela se insinua com veemência, também, no rosto embrutecido dos trabalhadores. Um Marx metafórico aparece diluído nos fetiches das mercadorias utilizadas: cadeiras e mesas que são gentes, carros e semáforos, abajur, cabide, porta e
  • 29. 28s u m á r i o até um tapete... são mercadorias/gentes. Não são pessoas produ- toras de mercadoria que se anulam nas relações de troca. Não são pessoas esquecidas, apagadas nas relações de troca para dar lugar e endeusar o dinheiro. São gentes transformadas em merca- dorias para se anularem enquanto pessoas. Personagens que não sorriem lembram a robustez do emprego. Personagens ofegantes entoam suspiros de desespe- rança. A sintonia dessas respirações profundas, produz uma sinfonia de fadiga mútua. Numa extenuante lassidão coletiva, personagens fazem “papeis” de assento, de transporte, de lustre, num continum de cansaço e desânimo. Na quase ausência de som, o barulho do relógio logo no início da animação, marca cadente os passos do dia e do sofrimento que o homem carrega. E o tempo do relógio adverte: o trabalho dignifica; o trabalho mortifica. *** É do homem signado no corpo de um abajur que nasce um gesto de revolta. Metaforicamente expressando a luz num cenário sombrio e escuro, ele rompe os grilhões de sua condição de objeto: retira do rosto a cúpula do abajur que lhe cobria a fronte como se fosse uma venda; encarra, desafia, afronta sem medo o que lhe oprimia. Num único suspiro, de nulificado o homem se torna arauto da revolução.
  • 30. 29s u m á r i o ALPHAVILLE: A UTOPIA DA CIDADE SEM DOR A cidade era um imenso empório monolítico em preto e branco. Circulando por entre ruas sem cor e cheiro, homens e mulheres de expressões embrutecidas, silenciados pela máquina e contaminados pelo totalitarismo do Estado. Num cenário onde se misturam o sombrio e o sublime, uma voz roca sutura os estran- geiros ao sistema, costura seus desvios ao padrão, disciplina sua fala tosando a linguagem e instaura uma nova forma de viver que suprime toda manifestação de ação sentimental. Na sua parte sombria e triste, extensos corredores com muitas portas e pouca luz preenchem o desenho de monumentais prédios urbanos; na sua face sublime e glamorosa, móveis, roupas, tecno- logia e grandes construções compõem o caldo simbólico daquilo que é considerado “novo”, “moderno”. As imagens, as falas e a ação indicam a existência de um viver desprovido de sentimentos; com sujeitos presos no tempo e no espaço a uma experiência racionalista, todos estão – caso contrário são sumariamente eliminados – presos às formas dominantes de pensamentos e aos seus mecanismos de disciplinamento. Num cenário onde as roupas, o comportamento e as falas denunciam uma aversão à indisciplina, são poucos os que ousam enfrentar a apatia sentimental e com gestos “escandalosos” acusam o sistema de repressivo e cego; esses poucos morrem levantando uma bandeira em defesa da liberdade, denunciando as armadilhas do viver circunscrito no sistema e rebatendo a sua insen- sibilidade com lagrimas e um discurso de morte. O som de suspensa constante; a reiterada fala de presenti- ficação dos personagens – “na vida só existe o presente”. “Karl”, o motorista silencioso que carrega um suposto jornalista do “figa- ro-pravda”. Um universo onde as “coisas mais estranhas são normais nessa droga de cidade”; de uma cidade onde um bêbado
  • 31. 30s u m á r i o é que diagnostica o grande mal de se viver nessa sociedade, “uma sociedade técnica, como a dos cupins ou das formigas”. São todos signos de uma condição histórica onde as contradi- ções denunciam a pertinência do cinema como uma linguagem do tempo e contra a História. As imagens de que se está falando dizem respeito ao filme Alphaville, de Jean Luc Godard, lançado em 1965. Um filme secun- dário na produção de Godard e pouco expressivo enquanto mate- rial de vanguarda. Apontado como filme policial, desconectado das vanguardas europeias, Alphaville é, entretanto, entre suas muitas facetas, a contra-história sensitiva dos anos 1960. Uma contra-his- tória que tenta romper com certa tradição historiográfica sobre a década de 1960. Uma contra-história que rompe com a narrativa de uma época com suas marcas identitárias produto de uma força historiográfica renitente. Em linhas gerais, enquanto na década de 1960 os corpos e comportamentos afloravam, na literatura, nos filmes e na historio- grafia, em gestos escandalosos e deselegantes com o mínimo de pudor e o máximo de exotismo, Jean-Luc Godard constrói para o cinema uma narrativa com corpos acuados, desprovidos de senti- mentos, fechados e castrados de sensibilidades. Numa cidade onde os homens expressam uma anti-metáfora da vida, em vez de complexa e multifacetada, ela é reduzida há um punhado de ações, a comportamentos já pré-concebidos e valores determinados e controlados por aquela que viria a se tornar no cinema e em grande parte da literatura recente a grande vilã da nossa era: a tecnologia e o seu desmembramento mais fascinante, o computador. Maior que um filme policial – categoria em que, geralmente, é inserido –, Godard e Alphaville, sub-repticiamente, incisivamente lançam questionamentos para o nosso tempo: o que é a normali- dade? O que é e em que medida se processa a liberdade? O que
  • 32. 31s u m á r i o é e o que torna uma cidade feliz? Não há resposta possível. O que o filme faz, entretanto, é um convite a pensar e a agir, a reconhecer as amarras que nos engendram a determinados comportamentos e nos fazem agrupar pensamentos que se coadunam com os inte- resses do poder. Alphaville é a metáfora de uma cidade sem dor, onde o que há de maior limitação do sofrimento, é a incapacidade de encontrar o significado das palavras que deem sentido as subje- tividades dos homens. Alphaville é a nulificação expressa numa cidade castrada de linguagem. E se a linguagem significa o mundo, o que se perde com a extinção de palavras é a própria capacidade de se dizer sujeito no mundo. Alphaville descreve uma cidade sem dor, ao mesmo tempo em que se compraz com ela.
  • 33. 32s u m á r i o SER FRATERNO NA INDIFERENÇA: MERSAULT E O MUNDO Compreendi, então, que um homem que houvesse vivido um único dia poderia sem difi- culdade passar cem anos numa prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar. Mersault, O Estrangeiro. Sem forçar muito a barra, Mersault é um nulificado. Não como Josef K., o funcionário público do Processo que se deixa levar pela coação de um crime que sequer soube cometer, ou por Carlitos, o jovem de Aniki-bóbó aprisionado pela moral e bons costumes da sociedade portuense na primeira metade do século 20. Mersault é um tipo de nulificado diferente. Sofisticado, eu diria. Ele até compre- ende o crime que cometeu, sabe as consequências do seu ato, iden- tifica com clareza os personagens que lhe julgam, percebe de onde aparecem as forças e os meandros do poder que definem os seus rumos e, em certo sentido, comunga até com a sentença que recebe. Mersault, figura central do romance O Estrangeiro, de Albert Camus, foi apontado por Roland Barthes como “o primeiro romance clássico do pós-guerra”. É em torno da afirmação de Barthes que se sustentam argumentos de que o livro é resultado de um momento de espanto, sobressalto, susto, pavor com os resultados da Segunda Guerra; esta situação/cenário, notadamente europeia, teria sido traduzida, no livro, numa expressão de vazio, de estranheza com as relações familiares, com as leis e com a sociedade. No limite, Mersault traduziria em lacuna a existência do homem pós-guerra; de um homem que se reconhece mais apequenado, insignificante, imerso numa crise existencial que lhe desprende das normas, das regras, das convenções e da própria sociedade em que vive. Foi assim que O Estrangeiro foi lido e apresentado de 1942 para cá. Proponho olhar para o livro de uma forma um pouco diferente. Primeiro ressaltar que há algo recorrente na literatura da nulificação
  • 34. 33s u m á r i o e que permite olhar para o romance de Camus como, também, um arauto das representações do a-sujeitamento. Há, neste tipo de literatura, sempre um chefe, um escritório, um trabalho maçante, uma rotina, além de cenários sem brilho, personagens arrodeados de insensibilidade, arroubos de tristeza e intensa melancolia. Há vingança, castigo, preponderância do papel masculino, domínio do homem sobre a mulher e, em alguns casos, até misoginia. O Estrangeiro carrega muitas destas características. Algo animalesco, além disso, exaspera neste tipo de romance: um homem no corpo de uma barata, em A metamorfose, ou um cão que se parece com o dono, como o cocker spaniel do velho Salamano D’Estrangeiro. Um jogo de alteridade para dizer quem sou a partir de um corpo animal ou o drama de não se reconhecer humano por se viver num universo mediando pela insensibilidade? Para o nulificado-sofisticado Mersault tanto faz! A indiferença com/no trabalho, a indiferença com a morte da mãe, a apatia diante do que pode ou não acontecer com o seu destino, no seu relaciona- mento com Marie, com a proposta de ir morar em Paris... Mersault responde indiferente a um universo marcado pela impassibilidade. Ao seu redor, personagens de um romance ora dramático, ora irônico, que manifestam suas ações em comportamentos quase previsíveis. A vizinhança com seus problemas diários, o homem sustentado pela mulher, Marie, a doce Marie que suplica o amor de Mersault, o velho que bate diária e rotineiramente no cão, mas sente imensa falta quando o animal some (a presença – do cão – que incomoda; a ausência dele que destrói. Quando é possível se acostumar com uma ausência?); Camus concebe Mersault como um arquétipo de nulificado encetado por um grupo de sujeitos e cenários previsíveis. O tédio, não o arrependimento. O enfado, a preguiça, a falta de ânimo em argumentar, em se declarar apenas envolvido num crime por força do acaso, do destino. Mersault não é do tipo de nulificado que tenta falar, mas é coagido, impedido, sancionado
  • 35. 34s u m á r i o pelo Estado, pela lei, pela força de uma autoridade policial, pelo pai ou pela moral. Mersault é um tipo de nulificado que é aprisionado pela apatia, pelo marasmo, pela sonolência (“posso dizer que nos últimos meses dormia dezesseis a dezoito horas por dia”). A indiferença que une a todos. A certa altura, parece que o maior crime não foi Mersault ter matado alguém. Não foi o tiro que matou o árabe, nem os outros quatro que revelariam certo despren- dimento de apreço pelo morto. Mas, a certa altura, seu crime parece ser muito mais a indiferença com que tratou a mãe ao mandá-la para o asilo e, sobretudo, no seu velório e enterro. Essa indiferença torna Mersault integrado a um sistema social de indiferenças, a uma comu- nhão de valores e comportamentos que não se comprazem com as dores e os sofrimentos alheios. Numa fraternidade marcada pela indiferença, o bode expiatório, o indesejado e nulificado Mersault, só consegue pensar que no seu julgamento o afastavam cada vez “mais do caso, reduzí[ndo-o] a zero e, de certa forma, substituí[ndo-o]”. A espera, a angústia de se esperar a morte quando se tem certeza que ela virá não de acidente, de doença ou morte natural, mas da decisão de homens comuns, normais iguais a ele, por “homens que trocam de roupas”, que são lascivos nas suas deci- sões, que são levados pela ardilosidade do promotor ou inefici- ência do advogado; por homens que não julgam crimes, mas quais narrativas sobre esses crimes são mais válidas, mais eficientes – no limite, quem mente melhor. No final, diante de um cenário angus- tiante, isolado, encarcerado numa cela esperando o barulho da sirene e os guardas que o conduziria ao patíbulo, o que Mersault deseja é transformar em razão o que é delírio, o que é insensível às palavras, ao próprio vocabulário. Por fim, a história de Mersault é a narrativa dos possíveis. Dos possíveis enredos, das possíveis formas de se contar algo ou o que houve; da inexistência de uma verdade, de um discurso asser-
  • 36. 35s u m á r i o tivo e definitivo sobre algo. Mersault, o funcionário que recebeu nas primeiras horas de um dia modorrento a notícia de que sua mãe havia falecido, participou discreta e apaticamente do seu velório, contou, no curso do livro, sua história de envolvimento com Marie e a furtiva amizade com Raymond. No final, descreveu a situação que o levou a disparar contra o árabe na praia. Da narrativa que o próprio Mersault contou, pouca coisa se aproveitou em seu julga- mento. O que sobrou de um enredo em que o seu sujeito principal é amordaçado pela narrativa que os outros contaram sobre ele, é a lição de que a História é uma narrativa dos possíveis.
  • 37. 36s u m á r i o O QUE NOS OPRIME? Cada um tem seu opressor! O funcionário de um chefe auto- ritário, que é assediado e maltratado em troca da manutenção do emprego; o homem casado, servil, que se desdobra em gentilezas e presentes para não contrariar a amante e ver seu casamento arruinado; o guarda, vigilante da propriedade alheia que sucumbe à tentação de uma propina e passa a ser refém de possíveis denún- cias; o filho, herdeiro de uma educação de maus-tratos e vilipên- dios, que nunca denunciou o pai, ironicamente, com medo de sua ausência. Num universo social sustentado em prêmios e hierar- quias, o homem escolhe seu próprio opressor, já dizia La Boétie. Em Diante da Lei, parábola do final do século XIX do escritor tcheco Franz Kafka, a opressão se configura numa dinâmica um pouco diferente. Ela não é medo nem receio de punição; não é produto de um poder discricionário, de um rei ou ditador. Ela é se configura como algo burocrático, que se faz na inoperância das coisas, na dificuldade, na languidez da resolução dos problemas, na leniência e inacessibilidade ao que é garantido como direito. Trata-se de uma opressão que anula o indivíduo, que fragiliza sua condição de ação, afirmando sua insignificância diante de um sistema que se mobiliza para fazer não funcionar nossas garantias. A opressão burocrática pioneira e literariamente apresentada por Kafka, ganha contornos pós-moderno num dos episódios do longa argentino Relatos Selvagens do diretor Damián Szifron. Nele, Simon Fisher, um engenheiro especialista em explosivos, tem seu carro rebocado por uma empresa que presta serviços ao sistema de trânsito argentino. Uma sinfonia de injustiças se segue. Empresas que roubam para governos, governos comprometidos com o mal serviço, funcionários mal preparados, arrogantes, atendendo “clientes” pela proteção (?) de um vidro. Do outro lado, no polo
  • 38. 37s u m á r i o passivo e frágil dessa relação flagrantemente desproporcional de forças, um sujeito que assiste impávido o Estado lhe extorquindo. E não se trata de ter um Estado só ineficiente, que não cumpre com seu dever, mas se trata de ter um sistema estatal que funciona para manter injustiça. Dos enormes engarrafamentos, dos péssimos de serviços de telefonia móvel – resultado da vagareza como que se fiscaliza seu funcionamento –, do sistema corrupto das repartições governamentais, tudo opera no homem uma indignação que beira a loucura. Simon Fisher, o engenheiro especialista em explosivos imerso num cenário pós-moderno de opressão, inventa uma forma pós-moderna de lidar com as injustiças do sistema. Coloca uma bomba no pátio da empresa subsidiária do governo que rebocou, injusta e desonestamente, seu carro. “Se não dá pra fazer nada, a gente avacalha”, já dizia o Bandido da Luz Vermelha, no final dos anos 1960, num país vizinho dos Hermanos, numa espécie de prenúncio a essa situação de total desamparo e impossibi- lidade de ação. Simon, de engenheiro demitido, pai desleixado e marido ausente, se tornou um herói. A nulificação, no caso dele, fez repercutir um brando, em alto e bom som, de seu hermano pobre, marginalizado pelo sistema social e econômico brasileiro de cinco décadas atrás: “se não dá pra fazer nada, a gente avacalha”. Com Kakfa o desdobramento das cenas de investida do Estado no enervamento do indivíduo é bem diferente. Diante da Lei é uma dessas pequenas narrativas sobre o a-sujeitamento que assusta pela brutalidade com que escancara a maledicência do poder a nossa frente. Estar Diante da Lei é, em primeiro lugar, um gesto metafórico da impossibilidade de estar na lei, de ser abra- çado por ela, de ser assistido pela sua eficiência, sua proteção ou amparo. Se colocar Diante da Lei é saber-se prostrado, é saber da dificuldade de se chegar até ela, do seu acesso e das várias mano- bras que fazem agi-la em nosso desfavor. Viver Diante da Lei, anos a fio, como o camponês da parábola de Kafka, é se a-sujeitar diante
  • 39. 38s u m á r i o de uma situação de completo aniquilamento pelas instituições, pela burocracia, pela inoperância do Direito ou das repartições públicas. Diante da Lei não é só um “conto” para falar sobre como o acesso à justiça dinamita nossas pretensões judiciais. Mas, é um conto que coloca em suspeição os interesses que existem por trás da própria inoperância do sistema. Não só do sistema de justiça, mas do sistema burocrático, do sistema de saúde que faz o indivíduo desistir do trata- mento pela demora; da ineficiência do transporte público que te faz comprar um carro, entupindo mais as cidades e gerando um nó de opri- midos nulificados que xingam a todo instante o outro no trânsito, quando deveria gritar um sonoro e reverberante “vá se lascar” ao sistema. Na figura do camponês Kafka construiu essa narrativa de embrutecimento diário diante da impossibilidade de reagir. De um embrutecimento que vai calando nossa indignação, nossa capaci- dade de reagir, de encontrar saídas e pensar em outras possibili- dades de ação. “Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e depois, ao envelhecer, limita-se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao fim de tanto examinar o guarda durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste, pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda. Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam”. Na figura do camponês, alguém desprovido de status social ou bens materiais, ressoa um espectro da dignidade. De alguém que só quer ter suas mínimas garantias asseguradas, seu nome zelado, sua família protegida e sua vida livre de infortúnios documen- tais, rotinas e aborrecimentos burocráticos. Na figura do guarda que impede o acesso à lei, ressoa o espectro da proibição, da impossibi- lidade de se afrontar aquele que é maior em tamanho, em redes de proteção, em poder. Sob os corpos e imagens do camponês e do guarda operam valores ambivalentes e conflitantes. Sob os rastros
  • 40. 39s u m á r i o de suas imagens, se viu nasceu um universo, de um lado, de ordeiros e passivos cumpridores da lei e, do outro, de ordeiros e passivos seguidores da lei. Fazer cumprir a lei foi a pedra de toque para a construção de um cenário de autoritarismos e opressões, de um corpo burocrático, policialesco, de funções confusas e confusamente organizado em hierarquias para geram medo e insegurança. Seguir a lei foi a hermenêutica jurídica criada para disfarçar a opressão e fazer crer na existência de um direito universal, que atinge a todos e que é uma garantia, inclusive, natural. Fazer cumprir a lei e segui-la estão em lados opostos no conto de Kafka. Elas exprimem com requintes de crueldade as malícias do que faz o cumpridor da lei e, por outro lado, o anulamento até a morte mental e física do seguidor da lei. “– Se todos aspiram a Lei”, disse o homem. – “Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?”. O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: – “Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”. Através da parábola de Kafka, La Boéttie grita: cada um tem seu próprio opressor.
  • 41. 40s u m á r i o QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS, PRIMEIRO CAPÍTULO: A ARROGÂNCIA Luigi Zoja, psicólogo italiano de viés analista e autor de “História da Arrogância: psicologia e limites do desenvolvimento humano”, utiliza as figuras da mitologia grega para explicar como os homens mataram os deuses e se tornaram senhores e soberanos de sua própria vontade. Ele explica que da “Ilíada” a “Édipo, Rei”, parte substancial das narrativas gregas expõem um universo onde homens desafiam seus superiores – seja um Deus ou um pai – para se arrogar o direito de saber mais, de conhecer mais, de ser dono e senhor do seu destino, de ser opressor porque se julgam maiores, melhores, mais capazes ou fortes. Segundo Zoja, a “História da Arrogância” começa quando o homem, que inventou e criou os deuses para ser um limite às suas próprias ações, desafia suas próprias divindades para se colocar no lugar delas, para se colocar como um mito, um herói, uma figura de superioridade física e mental em relação aos deuses e, por extensão, a seus semelhantes. A modernidade, entendida como algo que surge com o advento da cientificidade, com todo seu discurso em defesa da razão, ciência, tecnologia e progresso, acabou por enterrar os deuses e projetou a figura do homem como algo tão cheio de si que não necessita de fé e espiritualidade, que dissocia mente, espírito e corpo, dando vazão ao “cogito” cartesiano de que pensamento e existência são coisas distintas, isoladas, desvinculados um do outro. E mais, fez parece que cada homem é senhor de si próprio, que personificou a exis- tência, customizou os valores, individualizou tanto os preceitos éticos e morais, que fez cada um construir uma teoria sobre si e sobre os outros onde não há lugar para o debate nem para a conciliação. Nietsche percebeu o nascimento deste mundo. Freud diagnosticou o mal no nascimento deste mundo. Foucault falou das feridas narcí- sicas deste mundo. E a gente continua afundado num universo de
  • 42. 41s u m á r i o tragédias anunciadas, de egos que não dialogam e de gente que só consegue enxergar sua própria face no espelho. Recentemente assisti Bohemian Rhapsody, filme/biografia de Freddie Mercury, vocalista, letrista e artífice de uma gama de movi- mentos vanguardistas que tomaram grande proporção com a banda Queen. A despeito de toda carga emotiva que o filme desperta – e falo isso generalizando porque tive o prazer de assistir ao filme com vários amigos e todos concordamos com isso – trata-se de um filme que conta a história de destruição e redenção de um “mito” a partir da arrogância. Freddie, que nasceu na Tanzânia, estudou na Índia e migrou com a família para a Inglaterra, herdou toda aquela carga simbólica de imigrantes que precisavam romper com barreiras morais, culturais e, inclusive, sexuais, para se firmar num cenário europeu de muitas transformações em plena década de 1970. Sobreviveu ao preconceito de origem e de lugar, aos preceitos conservadores e tradicionais do pai, à desconfiança dos primeiros amigos de banda e firmou-se como um dos maiores ícones do rock e de suas muitas metamorfoses nos anos 1970/1980. Nada convencional, vendeu-se e vendeu sua banda como algo que não se encaixava, que se refazia a cada novo álbum, que abria novas sonoridades, novas percepções de sons e imagens sonoras. Morreu com 45 anos, vitimado pela AIDS, tendo vivido as várias facetas da sexualidade numa época em que se dizia que a SIDA era uma doença de homossexuais. Porém, mesmo com a leveza de músicas como a própria Bohemian Rhapsody, que dá nome ao filme, não retiram do vocalista do Queen a presunção e arrogância que a modernidade tratou de nomear como genialidade. Desprezou amigos, rompeu um relacio- namento que lhe dava segurança, afastou-se da família e se arrogou o dono de uma verdade que era construída em meio a um cenário de relações interesseiras, fluidas, vazias e sem apreço pela história que lhe produziu/projetou com mito. Freddie transformou-se numa metáfora narcísica freudiana. E enquanto metáfora do nosso tempo,
  • 43. 42s u m á r i o passou a representar toda aquele e aquela que coloca o seu “Ego” acima do interesse coletivo, de ajuda ao próximo, de conciliação, de busca de um diálogo que favoreça a produção de um sentimento de união. Ele passou a ser aquele que só conseguia enxergar sua imagem no espelho, que precisou matar o pai, que precisou aniquilar aqueles que lhes davam sentido de existência, aqueles que lhe davam alguma segurava para, só assim, se reconhecer grande. Na tragédia grega, Édipo furou os olhos ao ver tanta desgraça com as consequências da morte de seu pai; Narciso, de tão admi- rado pela sua beleza, ficou aprisionado no reflexo de sua própria imagem no espelho. Na arrogante tragédia contemporânea em que Freddie Mercury é um personagem quase mítico de uma geração, onde heróis morrem de overdose e os inimigos assumem o poder, é preciso não desejar furar os próprios olhos nem matar alguma voz de sanidade que ambiciona ser apenas alento diante da surdez nas relações. “Is this the real life? Is this just fantasy?” Exultemos a redenção de Freddie Mercury.
  • 44. 43s u m á r i o QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS, SEGUNDO CAPÍTULO: A LIBERDADE “Eu quero ser livre”, disse a(o) filha(o), a(o) namorada(o), a(o) ativista(o), a(o) religiosa(o)... ouço e leio com frequência essa afirmação; percebo e sinto com frequência o desejo de pessoas se sentirem livres, de pessoas que se dizem presas, amordaçadas nas relações, anuladas pelo que consideram uma opressão diária à sua liberdade. É claro que não só reconheço a existência de rela- ções abusivas como condeno qualquer tipo de privação de vontade em função da sustentação de uma convivência harmoniosa. Longe de defender a manutenção de situações desse tipo! O que me parece e soa estranho, isso sim, é uma fala recorrente em defesa de uma liberdade sem objetivo algum, sem fundamento ou, pelo menos, questionamento sobre o que significa ser livre. Isso me leva, também com recorrência, a uma pergunta meio tautológica: o que há de errado com a liberdade? A pergunta parece estranha porque pressupõe a existência de algo inconcebível. Sendo a liberdade um ato que exprime a vontade individual e as marcas do desejo de alguém por trás de uma necessidade, perguntar o que há de errado com ela seria o mesmo que perguntar o há de errado com o calor do fogo. A pergunta, no entanto, me inquieta por duas razões, em especial. Primeiro porque reconheço certa frustração na “conquista” dessa liberdade; segundo porque “ser livre” não me parece propriamente um estado, mas uma percepção diferente sobre a realidade. Explico: 1) Cornelius Castoriadis, filósofo francês, dizia que nossa sociedade não se deseja como sociedade, ela apenas se suporta. É claro que a imagem de Castoriadis pode nos conduzir a uma visão fatalista do processo histórico, sobretudo do nosso futuro. Se não nos desejamos, vivemos no limite entre reconhecer nossa existência meio
  • 45. 44s u m á r i o medíocre e/ou tocar fogo no circo mandando todo mundo se lascar (a pretexto disso, ouço, com relativa frequência nos bares que ando, uma música em que uma voz suave, feminina, doce e melosa pede, encarecidamente pro seu parceiro, em alto e bom som, que ele “vá tomar no c...”... nada estranho num mundo que não mais se suporta e nem tolera o que era chamado antes de identidade). O problema, na minha humilde opinião, é que desejar ser livre escapando de rótulos, identidades, padrões, esquemas sociais pré-definidos ou o que quer que seja, pode gerar um sentimento de frustração que, se não cuidado, carrega o germe da depressão, da angústia, do vazio e da ausência de sentido sobre a vida. Sendo o menos prolixo possível: o desejo de ser livre, de se assumir como dono e senhor do seu destino, carrega a expectativa de algo; mas uma expectativa que, na grande maioria das vezes, não se concretiza por existir apenas no plano das ideias; e se ela existe apenas no plano das ideias, a possibilidade de frustração com o não cumprimento da expectativa é, senão certo, pelo menos muito grande. Perde-se a identidade em nome de uma certa liberdade e ganha-se a depressão... 2) Quando ouço alguém dizer “quero ser livre”, parto do pres- suposto de que a liberdade é, para essa pessoa, uma conquista, resultado de um esforço e compreensão de si, que permite avançar para uma condição melhor de existência. Porém, na prática, os comportamentos se expressam, na maioria das vezes, de forma um pouco diferente... Novamente, de um ponto de vista muito particular, não consigo conceber liberdade como um estado acabado, algo que se conquista plena e definitivamente num dado momento e se desfruta dele para o resto da vida. Sou foucaultiano (vê o rótulo e a falta de liberdade que eu nem faço questão de perder...), e essa condição me coloca numa situação ambígua diante da liberdade. Primeiro porque reconheço que é fundamental desejar ser livre, mas o próprio sentimento de desejo é, ele próprio, a maior prisão que o homem carrega. Segundo porque não existe comportamento, fala,
  • 46. 45s u m á r i o gesto, ação, palavra, olhar, etc, etc, etc, que seja completamente desprovido de algum tipo de poder que o manipule. É impossível, portanto, se pensar numa liberdade totalmente livre, quando até os gestos em defesa da emancipação são, também, resultados de ações políticas sobre o corpo dos indivíduos. Onde estaria e se “conquistaria”, então, essa tal liberdade? A melhor resposta para isso eu, também de forma muito particular, encontro na filosofia oriental... seja no taoísmo, budismo, no yoga ou qualquer outra de suas manifestações espirituais ou corporais. Nelas, a liberdade se trata de um gesto, de um gesto que envolve, principalmente, a forma como olhamos para o que está ao nosso redor. Ser livre não significa fazer o que se quer ou poder expressar opiniões à vontade, mas significa ter a capacidade de escolher como se olha para o mundo, significa ter a capacidade de escolher com quais sentimentos se vai produzir a realidade ao nosso redor. Ser livre é um comprometimento consigo mesmo, um comprometi- mento com a minha/sua percepção de tudo que me/te rodeia. Com a filosofia oriental (e sua acepção mais ocidental no âmbito das ciên- cias chamada de física quântica), aprendi que nada é absoluto, que tudo resulta da maneira como se constrói, através da percepção, a realidade. Enfim, antes de dizer “eu quero ser livre”, acho funda- mental se perguntar: “eu tenho a capacidade de enxergar as coisas de uma forma diferente da que as vejo?”. Isso é, na minha opinião, a liberdade de forma clara e simples.
  • 47. PARTE 2 CONTRANULIFICAÇÃO Idelmar Gomes Cavalcante Júnior Parte 2 CONTRANULIFICAÇÃO IdelmarGomesCavalcanteJúnior
  • 48. 47s u m á r i o PROLEGÔMENOS DA CONTRANULIFICAÇÃO I: O UIVO DE UM CORPO SALIENTE E DELIRANTE Nulificar-se é se submeter ao outro. É tomar como sua, a verdade do outro. Não como tática, não para se defender, ao contrário, o sujeito que se nulifica faz isso acreditando estar pensando, sentindo e agindo de acordo com a sua própria vontade, quando na verdade pensa, sente e age conforme uma vontade que lhe é estranha. Josef K. foi nulificado. Foi assujeitado porque não via nenhuma alternativa a um sistema que existe aniquilando os homens ordiná- rios. Diógenes, o antigo grego, diante do poder encarnado na figura de Alexandre, o Grande, preferiu debochar. O grande imperador, postando-se diante dele e no auge de sua vaidade e auto-sufici- ência diz: “Eu sou Alexandre. Há algo que possa fazer por você?”. E tudo o que Diógenes fala é: “Sim. Saia da frente de minha luz”, para continuar o seu banho de sol, tranquilamente2 . Poucos agiriam com essa impertinência diante de um poder tão encarnado. Essa atitude é alheia ao homem unidimensional de Herbert Marcuse. Esse homem é tão bem integrado à sociedade industrial, que acredita ser a lógica que a sustenta a única viável de um ponto de vista racional. Também é alheia a um sistema que passou a fabricar subjetividades como se fossem mercadorias, como nos disse Félix Guattari. Num mundo disputado pelo desejo de se alcançar um fim da história possível e triunfante, acabou brin- cando de vencedor o sarcasmo capitalista de Francis Fukuyama. Enreda-se, entre tudo isso, que a nulificação é filha dileta das técnicas sofisticadas de disciplinamento reveladas por Michel Foucault, em Vigiar e Punir. Mas seria possível pensar na sua antí- 2. Esse pequeno diálogo foi retirado do livro Contracultura através dos tempos, de Ken Goffman e Dan Joy.
  • 49. 48s u m á r i o tese? Em uma sociedade disciplinar, é possível pensar numa contra- nulificação, como uma atitude que permita a uma subjetividade não apenas desejar estar a todo momento fugindo das capturas sociais, como também afrontar a ordem estabelecida? Nos anos de 1950, nos Estados Unidos, um país então marcado pelo otimismo e consumismo do pós-guerra e pelo macar- thismo, todo inconformismo era visto com suspeita, mas nessa época surgiram hipsters, jovens que, desencantados com a socie- dade normativa em que viviam, passaram a desprezar toda e qual- quer autoridade. Ávidos por liberdade, decidiram sair pelas estradas do país em busca dos limites possíveis da liberdade. Contra eles, além do escárnio dos homens unidimensionais, muitas vezes aplica- ram-se prisões ou tratamentos em clínicas psiquiátricas, num tempo em que os médicos acreditavam que sessões de eletrochoque ou a lobotomia poderiam salvar o mundo dos não-ajustados em geral. Uivo, de Allen Ginsberg, é uma delirante síntese desta vida. Dedicado aos “fodidos anônimos e miseráveis sofredores e hipsters de cabeça feita de todos os lugares”, este poema narra as experiên- cias daqueles que viviam às margens de qualquer disciplina. Não há final feliz ou prêmio por viverem assim, ao contrário, viver em desarmonia com a grande máquina tecnocrática que tomou conta das grandes cidades ocidentais não oferece caminhos fáceis. Sem dinheiro, apoio institucional de qualquer tipo, os personagens de Uivo vivem como escolheram viver, livres de qualquer constran- gimento social. Mas pagam um alto preço. Vivem sem endereço ou alimento certo; fixam-se constantemente em lugares deplorá- veis, muitas vezes curando ressacas sucessivas; são expulsos das academias; vigiados; investigados; presos e cortejam a morte com atitudes suicidas. Só a loucura justificaria uma vida assim. Uma loucura “santa”,
  • 50. 49s u m á r i o como diriam os beats, à prova de eletrochoques. Uma loucura que é nada mais do que a vida dos que decidiram viver, dos que viraram as costas para o culto ao deus Capitalismo com todos os seus demônios, para o culto ao Moloch de Ginsberg... Mas seja como for, uma loucura que afinal cobra um alto preço... “Eu vi as melhores cabeças da minha geração destruídas pela loucura...”. Mas assim, numa atitude de autodestruição de um eu cheio de doutrinas, dogmas e disciplinas, foi possível aos hipsters fugirem do secular tabu sobre o corpo, aproveitarem o sexo sem culpa, esca- parem da tirania do relógio, flutuarem ouvindo jazz, verem anjos e seguirem livres pelo país (ou pelo mundo), cruzando estradas, sem preocupações outras que não a de sentirem que o próprio corpo está vivo. Apesar disso, nem todos os personagens de Uivo se contra- nulificam, afinal, existem outras formas de dependência e aniqui- lação, para além daquelas sancionadas pelo Estado. Difícil dizer que os “famélicos histéricos nus, arrastando-se pelas ruas do bairro negro ao amanhecer na fissura de um pico” têm consciência do que são e porque evitar as capturas sociais. Eles podem até afrontar a ordem estabelecida, mas não passam de corpos à deriva sujeitos inclusive às maquinações das instituições disciplinares, com suas piedades e maldades. Já Ginsberg, ao escrever Uivo, assumiu riscos. “Estou com você [Carl Solomon] em Rockland onde despertamos do coma pelos aviões de nossas próprias almas rugindo sobre o telhado”. Ele sabia que desafiaria valores e os bons costumes da “puritana” sociedade norte-americana. E por pouco o livro não foi proibido de circular, pois chegou a ser apreendido pelo tribunal de justiça da Califórnia. Uivo não foi subversivo apenas porque utilizava uma linguagem “suja” com palavrões e gírias malvistas, ou porque
  • 51. 50s u m á r i o apresentava o underground de uma sociedade rica e deslumbrada consigo mesma, com o seu jeito higienizado e disciplinado de ser; mas porque representava o corpo-oblíquo de Ginsberg. Uivo é Ginsberg, um texto-corpo-testemunho de alguém que não aceitava ser enquadrado, ser nomeado à sua revelia. Ginsberg foi um animal que recusava taxinomia. Hétero, gay, louco, erudito, profeta ou um drogado, fosse o que fosse, ele não o “seria” para os outros; ele “seria” para si. E “seria” sob os seus próprios conceitos. Ginsberg se contranulificava constantemente. Entrava em todas as estruturas e sabia sair de todas elas. E se não há final feliz em Uivo, há pelo menos afeto e carinho pelos mais fracos, pelos esquecidos, e a promessa de que um amigo fragilizado e exilado de si e de todos sempre terá abrigo. Eis uma grande lição em tempos de tanto cinismo.
  • 52. 51s u m á r i o PROLEGÔMENOS DA CONTRANULIFICAÇÃO II: O LADO INFAME DA CONTRACULTURA EM ON THE ROAD Hippies em trânsito e em transe, cabelos ao vento, harley Davidsons cortando estradas, mochila nas costas, amor livre. Acostumamo-nos a pensar nestes signos toda vez que encontramos pela frente a palavra “contracultura”, que nos remete a uma raciona- lidade contrária a uma cultura que possa se caracterizar como domi- nante. Para Ken Goffman e Dan Joy, em seu livro Contracultura Através dos tempos, seriam os princípios fundamentais da Contracultura: a defesa por uma expressão pessoal, livre e não-egocêntrica, que as pessoas deveriam gozar para, por exemplo, acreditarem no que quisessem ou cultivarem a aparência que desejassem; a negação ao autoritarismo e o estímulo às mudanças pessoais e sociais. Ken Goffman e Dan Joy entendem que a contracultura existe desde a Antiguidade. Contracultura através dos tempos apresenta, assim, um longo recorte temporal que se inicia com o mito de Prometeu e a trajetória de Abraão e se alonga até a cultura digital de nossos dias. Mas acredito que o que entendemos por contracultura não seria possível sem a valorização da natureza; a sedução que a cultura oriental exerceu sobre a juventude ocidental; o pacifismo e o desencanto com o modelo civilizatório do Ocidente, surgidos após o fim da Segunda Guerra; a luta pelos direitos das minorias e a revolução sexual. E tudo isso só começa a ser observado entre os anos cinquenta e setenta do século XX. Portanto, entendo que foram os hipsters que se autodenomi- naram “beats”, aqueles que deram o passo decisivo para a emer- gência daquilo que nomeamos “contracultura”, embora reconheça que algumas manifestações anteriores, que Ken Goffman e Dan Joy apresentam, tenham de uma forma ou de outra contribuído para o seu começo, disperso como todos os começos são.
  • 53. 52s u m á r i o E On the road, livro escrito por Jack Kerouac, foi certamente a obra do universo beat de maior repercussão. Mais amplo e literal que Uivo, a obra pode ser considerada uma síntese do estilo de vida contracultural de Kerouac, Ginsberg e seus companheiros. Poucos anos após a sua publicação, nos anos 1960, seria difícil encontrar entre as diversas culturas juvenis simpáticas à contracultura, alguma que não tenha de alguma forma sido influenciada pelos beats, tornando, assim, On the road uma espécie de cânone do universo contracultural, um livro de referência. Neste sentido, a obra pode ser considerada precursora de uma revolução comportamental que marcou fundamentalmente a noção de juventude, que se consagrou no século XX. Os mochileiros de hoje são apenas o aspecto mais visível de uma determinada cultura juvenil que pretende negar-se à integração com qualquer sistema social hegemônico tido como injusto e ultrapassado. Em On the road, estão representados não apenas o próprio Jack Kerouac, encarnado na figura carismática de Sal Paradise, mas também outros ícones da geração beat, tais como Neal Cassady, Allen Ginsberg e William Burroughs. O livro descreve as aventuras de Paradise atravessando os Estados Unidos de costa à costa, em estórias narradas em primeira pessoa. Ao que tudo indica, Kerouac teria vivido boa parte das experiências que narra e as transforma numa viagem épica ao coração de uma nação pretérita idealizada. Os Estados Unidos desejados por Kerouac são aqueles dos pioneiros, um lugar vasto, menos vigiado e pouco disciplinado. Tentar experimentá-lo é, para o autor de On the road, a proclamação de uma liberdade quase ilimitada. Mas esta não é a estória feliz de um jovem em busca de diversão e que acaba encontrando-a em profusão. Não é uma aventura juvenil. É um drama sobre alguém que procura se perder na vastidão de um país com dimensões continentais, em estradas e outros não-lugares onde possa
  • 54. 53s u m á r i o exercitar mais facilmente o seu descompromisso com todos que circunstancialmente lhe cercarem, para, quem sabe, poder se auto descobrir até o final da viagem. Nesta trajetória, os protagonistas da obra não se furtaram aos excessos com drogas lícitas e ilícitas, contravenções, boemia e sexo. E desta forma, On the road, expressão privilegiada da indoci- lidade beat, tornou-se um dos principais símbolos da contracultura. Mas como pensar a obra se levarmos em conta a contranulificação? Se a contracultura compreende, de modo geral, sujeitos e práticas que criam espaços próprios à margem daquilo que se entende por establishment, a contranulificação teria um significado mais restrito. Ela deve ser entendida como uma afronta consciente a técnicas de disciplinamento próprias de um establishment e é norteada por um desejo de estar sempre fugindo das capturas sociais, mesmo que se esteja no espaço do outro e não nas suas “margens”, e mesmo diante da consciência de que é impossível fugir de todo tipo de captura. Ela, enfim, deve ser pensada como uma prática, uma atitude pontual e não uma condição permanente ou um estilo de vida. Quem se contranulifica, o faz diante de um caso específico. Contranulifica-se quem, por exemplo, pratica uma desobediência civil ou deixa o cabelo crescer numa sociedade fran- camente contrária a este tipo de escolha. Por essa razão, o conceito de contranulificação pode eviden- ciar possíveis contradições em vivências contraculturais. Pode, por exemplo, evidenciar que On the road possui uma fratura exposta, já que ao mesmo tempo em que se tornou um importante símbolo de liberdade e auto-conhecimento para jovens espalhados pelo mundo, adota uma posição eminentemente sexista contra as mulheres. Os homens em On the road são livres, as mulheres, nem tanto. A elas, ou estão reservados os espaços privados, mais estri-
  • 55. 54s u m á r i o tamente aqueles ligados às esposas, ou os espaços boêmios, mas, nesses últimos, elas deveriam estar à disposição dos homens. Marylou, a principal personagem feminina, por exemplo, logo no início da obra é apresentada como a esposa de Dean Moriarty e tratada como uma “gatinha” que era “terrivelmente estúpida e capaz de coisas horríveis”. Essa adjetivação nos remete a uma concepção antiga, segundo a qual aos homens está destinada a capacidade de agir segundo a razão, enquanto as mulheres seriam mais sensí- veis à emoção e outras características menos racionais. Além disso, depois de uma noite de bebedeira na “espelunca” onde Dean e Marylou estavam hospedados, ele “decidiu que a melhor coisa a fazer era mandar Marylou preparar o café e varrer o chão”. Em outro momento, a capacidade intelectual de duas garotas também é menosprezada e elas são rebaixadas a um nível infe- rior: “Elas eram burras e chatas”. O que realmente importava à Sal Paradise, neste caso, era consumar um ato sexual, realizar-se sexu- almente, sem qualquer afeto e sem se importar com o outro. E como não foi concretizada a vontade do narrador, vieram a frustração e o inconformismo que os levaram a tratar uma das garotas como “estúpida” quando ela simplesmente exercia a sua própria vontade. Terry, outra personagem feminina marcante na obra, foi confundida com uma prostituta que teria o hábito de ganhar dinheiro de homens que cruzassem o seu caminho em viagens dentro de ônibus, exatamente como havia acontecido com o próprio Sal Paradise. Em sua primeira descrição sobre Terry podemos perceber como o corpo dela se torna objeto do desejo do narrador: “Vi a mais deliciosa garota mexicana [...] Os seios apontavam em frente, empinados e indiscutíveis, seus quadris estreitos pareciam deliciosos, seu cabelo era longo, lustroso e negro, seus olhos eram duas coisas azuis imensas, com certa timidez lá dentro”. Mas ao chegarem a um Hotel, uma confusão se
  • 56. 55s u m á r i o arma e Terry, coincidentemente, pensa que Sal é um gigolô e logo os dois discutem. Ele, então, demonstra mais uma atitude sexista ao conceber Terry como “uma putinha burra mexicana”. Uma mulher, para os protagonistas de On the road, de prefe- rência, deve ser uma “gata mansa e linda com aquele lugar delicioso entre as pernas”. O termo “mansa” utilizado por Dean Moriarty, faz menção àquela mulher que não “dá trabalho”, que não questiona o seu papel nas relações de gênero, aquela que é obrigada a aceitar todos os tipos de violência moral, psicológica, sexual, física e dife- rentes tipos de grosserias masculinas. Desta forma, os papéis sociais que foram tradicionalmente designados aos diferentes gêneros em nossa cultura ocidental, hegemonicamente branca, heterossexual e machista, não foram colocados em questão em On the road. Ao contrário, a obra de Kerouac, consagrada como uma negação aos padrões da sociabi- lidade burguesa norte-americana, acaba reafirmando certos estere- ótipos que a sociedade criou para tornar a mulher dócil e submissa. Historicamente as mulheres são vistas como frágeis, inde- fesas e seus comportamentos foram impostos ou influenciados decisivamente pela Família, Religião e Estado, que incutiam no pensamento feminino, como sendo necessária, a figura do homem ao seu lado, seja como pai, irmão ou marido, já que eram vistas como incapazes de se equipararem a eles. On the road não parece romper com esta lógica, mas mesmo assim tem por mais de meio século sido considerado um dos principais símbolos da contracultura. E quantos outros abusos não foram cometidos, no âmbito da contracultura, contra as mulheres, sob o pretexto de uma liberdade que, tal como nas sociedades burguesas, só privi- legiaria os homens?
  • 57. 56s u m á r i o Por essa razão, se levarmos em conta a contranulificação, On the road precisa ser questionado. A contranulificação é uma prática, não uma condição. Um sujeito pode contranulificar-se num instante e no instante seguinte nulificar-se ou o que é pior, nulificar o outro. On the road, neste sentido, criou um devir possível para a liberdade, mas também apresentou traços de um mundo não tão vasto quanto as estradas que inspiraram os beats, traços de um mundo pequeno e triste onde as mulheres também não são livres para serem para si mesmas.
  • 58. 57s u m á r i o PROLEGÔMENOS DA CONTRANULIFICAÇÃO III: MOVIMENTOS DE ESQUERDA E A CONTRANULIFICAÇÃO Final dos anos sessenta. A repressão promovida pelo governo militar se torna mais vigorosa com a decretação do Ato Institucional nº 5. Como descreve um famoso jornalista, autor de livros sobre o assunto, a ditadura afinal escancarava-se. Tornaram-se pratica- mente inexistentes as possibilidades de grandes manifestações tomarem os espaços públicos, como as que foram possíveis nos anos sessenta. Saíamdecenaosjovensestudantesquecostumavamavançar em passeatas, deslocando-se pela contramão das avenidas. Mais do que uma metáfora, seguir na “contramão” era uma tática com a qual pretendiam atrapalhar o trânsito para desnortear as forças da repressão. Quando isso acontecia, poucos instantes depois, os mili- tares ruidosamente passavam também a compor aquele cenário, atacando impiedosamente os manifestantes com cassetetes, gás lacrimogênio e até armas de fogo. Uma estratégia violenta e quase sempre eficaz para dispersar a multidão. Mas nem toda resistência se dispersava tão fácil. Demonstrando uma surpreendente hostilidade, os manifes- tantes algumas vezes respondiam à agressão policial com paus, pedras e bolinhas de gude utilizadas para derrubar os cavalos em caso de aparecimento de batalhões montados. Nos rostos, lenços embebidos em amônia trazidos especialmente para neutralizar os efeitos do gás lacrimogênio. Na garganta, palavras de ordem contra o governo. No pensamento, uma revolução desejada. Após o AI-5, parte desses estudantes foram para as orga- nizações clandestinas de esquerda. Não era uma decisão fácil assumir a vida na clandestinidade. Implicava correr riscos de toda natureza. Risco de ser ferido, de ser preso, torturado ou mesmo
  • 59. 58s u m á r i o morto. Formava-se, na época, uma geração de brasileiros que cedo deveriam aprender que expressar opiniões contrárias ao governo era crime e, portanto, perigoso. Com o AI-5 houve a banalização da violência como instru- mento para a garantia da ordem social. É certo que os piores crimes contra seres humanos foram cometidos longe dos olhos dos homens ordinários, nos porões; mas como ignorar, diante de tantos indícios e mesmo enquanto simples possibilidade, que existiam torturas e execuções? Longe de significar “inocência”, a ignorância, simulada ou não, garantia neste caso consciências pacificadas. Era essa a relação da sociedade com a violência institucionalizada daqueles tempos, que se reproduzia no dia-a-dia pela constituição constante de novos homens e mulheres dóceis ou de homens e mulheres violentos dispostos a agirem em apoio ao regime. Diante desse perigo crescente, a clandestinidade permitiria algum tipo de segurança. Se nos anos sessenta os jovens e, parti- cularmente, as principais lideranças estudantis ainda contavam com alguma cobertura positiva de certos jornais mais liberais, a luta pela via da clandestinidade não apenas acontecia no anonimato, mas neces- sitava desse silêncio. Ninguém sabia quem eram aqueles militantes anônimos, nem o que faziam ou pelo que lutavam. Pelo menos não dito por eles mesmos. A verdade era mais do que nunca controlada pelo poder vigente e pelos canais de comunicação à sua disposição. Negar-se a aceitar essa ordem era contranulificar-se. Era negar uma vida dirigida pelo autoritarismo e moldada pela violência que impunha o silêncio como virtude. Mas como manter essa contranulificação frente a uma necessidade tão grande de disci- plina, como aquela que era imposta aos militantes clandestinos? Fernando Gabeira nos permite pensar esta disciplina em seu livro O que é isso companheiro?, no qual narra a sua experiência
  • 60. 59s u m á r i o com a luta armada no final dos anos sessenta. Ele foi membro de uma organização leninista que surgiu de uma ruptura no Partido Comunista, ocorrida nos anos sessenta. Diz Gabeira sobre o seu ingresso: “O companheiro encarre- gado de comunicar que tinha sido aceito fez uma ligeira preleção sobre minhas qualidades, meus defeitos e as novas tarefas que me esperavam. De agora em diante, como no poema de Lorca, meu nome não era mais meu nome, nem minha casa era mais minha casa.” Na organização, a Dissidência Comunista, os novos mili- tantes eram desafiados a abandonar suas antigas identidades, o que implicava em deixar para trás amizades e antigos hábitos. Deveriam renascer em corpo novo, um corpo militante disciplinado, disposto a dar sua vida por seus ideais. Gabeira demonstra, em sua obra, preocupação com essa conduta rigorosa imposta pela vida militante. Em dado momento, demonstrou não compreender como militantes mais jovens abdi- cavam de coisas próprias de sua idade em nome de uma opção política tão ascética: “Dominguinho, por que é que você não compra um álbum e não vai colecionar figurinhas? Por que você não arranja uma namoradinha e vai acariciá-la num banco de jardim? ” Além disso, o seu próprio corpo impunha a Gabeira dúvidas mais íntimas. Obrigado a acordar bem cedo para manter-se em contato com os operários em suas fábricas, nem sempre ele conse- guia. “Todos os dias, o despertador tocava à mesma hora, nem sempre o corpo se movia”. Quando isso acontecia, algum membro da orga- nização já ia logo dizendo que se tratava de “problema ideológico”. Haveria uma psicologia marxista para preparar os militantes para a disciplina imposta aos seus corpos? – questiona Gabeira. “Tudo é política, tinham razão. Mas as verdadeiras dimensões da política do corpo não podiam captá-las. Assim como nossas tias
  • 61. 60s u m á r i o achavam que a civilização ocidental e cristã cairia por terra se continuássemos mexendo nossas bundas e pernas ao som do rock-and-roll, muitos acreditavam, solenemente, que o edifício marxista-leninista iria ruir se, de repente, começássemos a esfregar os clitóris das mulheres.” Para enfrentar os militares, Gabeira e seus companheiros deveriam se sujeitar a uma disciplina rigorosa. Era preciso ser disci- plinado para lutar e para evitar erros que colocassem em risco o grupo. E neste caso, os critérios de competência eram os mesmos da tradicional sociedade burguesa contra a qual os comunistas se insurgiam. Por isso, entre o desejo e o sacrifício, razão e a sensibili- dade ou entre a virilidade e a feminilidade, o corpo-militante deveria se pautar sempre pelo sacrifício, razão e a virilidade. Esse corpo deveria ser, então, “másculo”, convicto e concen- trado. A adaptação cinematográfica do livro de Gabeira representou bem este perfil. Na cena em que o protagonista surpreende uma colega militante ao lhe dar um beijo, rapidamente a garota se afasta e com uma postura mais varonil possível, questiona: “o que é isso companheiro?” Sua atitude lembra ao colega que os dois estavam ali por um motivo e que não caberia nenhum tipo de afeto ou desejo. Se o discurso da violência gerou corpos violentos para defender o regime, criou também o seu “outro”, um corpo também violento disposto a agir contra esse mesmo regime3 . O corpo mili- tante aqui se desnuda como um reflexo do militar, ambos influen- ciados e impulsionados pela lógica da violência. Ambos, corpos decisivamente marcados por uma determinada disciplina. Vivendo em um contexto assim, não era difícil pensar em saídas dicotômicas para a sociedade brasileira. Ou você estava de 3. Com a discussão proposta em Lugares para a História, de Arlette Farge, nos sentimos estimulados a perguntar “como o discurso sobre a violência fabrica sujeitos resistentes ou consencientes”?
  • 62. 61s u m á r i o um lado ou do outro. Quem ficasse numa condição intervalar era mal visto tanto pelos militares quanto pelos militantes de esquerda. Sobre os hippies, Gabeira descreve a ironia com que eram tratados pelos militantes: “Era ainda 69 e quem virava hippie e puxava fumo era um pouco assim como quem virava protestante de repente.” A contranulificação, portanto, não pode ser um movimento de massa ou de coletivos. Embora um militante de esquerda possa se contranulificar, apenas o indivíduo pode assumir os seus sabores e riscos. Impor normas de conduta, segredos e cumplicidades, mesmo que seja em nome da subversão de uma ordem constituída, como propunham os movimentos de luta armada no Brasil dos anos sessenta e setenta, é impor limites à subjetividade. É tornar cada vez mais potente o homem político e impor restrições ao homem sensível. Onde a violência se estabelece reproduzindo o homem violento ou dócil, a contranulificação não pode existir. Um homem que se contranulifica é pacífico, livre e corajoso. Ele é adepto da não-violência, é livre porque sabe permanentemente lutar pela liberdade e corajoso, porque contrariar toda e qualquer ordem do discurso sempre oferece seus riscos.
  • 63. 62s u m á r i o O ANDROIDE QUE NÃO QUERIA MORRER Pensemos no futuro de Blade Runner. Ele não é asséptico, iluminado e brilhante como antigamente se pensava que seria o futuro. No ano de 1982, o filme retratou a cidade de Los Angeles, em um possível 2019, como uma gigantesca, escura, suja e triste metró- pole, onde androides perfeitos, criados à imagem e semelhança dos seres humanos, circulam entre pessoas tidas como normais. Chamados de “replicantes” estes androides foram criados para servir ao Homem na difícil jornada de colonização de outros planetas. Como escravos, realizavam serviços específicos estabe- lecidos de acordo com a sua programação individual. Poderiam ser tarefas ordinárias, como oferecer prazeres sexuais, ou mais complexas, como participar de esquadrões armados extraterrestres. A trama do filme inicia-se com a fuga de quatro replicantes que, insubmissos, decidem se libertar e voltar para a Terra. Além de liberdade, o grupo também desejava prolongar a sua existência, pois como medida de segurança, os replicantes foram criados com uma previsão de apenas quatro anos de vida. Roy, o líder, toma a decisão de encontrar o seu criador para tentar convencê-lo a lhes dar mais tempo. Para caçá-los, uma vez que os replicantes, por lei, haviam sido banidos da Terra, foi escalado Deckard, um ex-agente de uma força policial especial de “caçadores de androides”. Uma vez descobertos a ordem era “proceder a retirada”, termo técnico utili- zado como eufemismo para “exterminar”. Mas não era fácil identificá-los. Muito parecidos com homens e mulheres, era preciso um teste sofisticado para reconhecê-los. Um teste que explorava o aspecto emocional do investigado, com a expectativa de que os replicantes não estariam aptos a desenvolverem
  • 64. 63s u m á r i o reações emocionais, ou seja, os replicantes não conseguiriam expressar de forma coerente sentimentos como amor, ódio ou medo. Mas além dos androides parecerem humanos, os humanos desta realidade também têm dificuldades para expressar suas emoções. Na imensa Babel representada na narrativa, não há espaço para leveza ou alegria; os homens e mulheres que habitam a sombria Los Angeles aparecem sempre tristes e conformados diante de um planeta que parece quase exaurido. E diante desse quadro desalen- tador, grandes corporações anunciam seus serviços: “Uma nova vida espera por você nas colônias extraterrestres. A chance de começar de novo, numa terra dourada de oportunidades e aventuras”. O replicante Roy chega a esboçar mais humanidade do que o centrado Deckard. Suas respostas emocionais são bem mais convincentes e é possível sentir empatia pela sua causa. Seria o caçador de androides um replicante? O que significa ser humano nesse futuro distópico, no qual a principal fabricante de replicantes adota como estratégia de mercado o tema “mais humano que um humano”? E enquanto tentam passar despercebidos pelo seu algoz, os replicantes cometem erros. Há sempre um diante da perícia do caçador. Todos, exceto Roy, acabam mortos por Deckard ou por causa dele. Mas este é um mundo paralelo que a sociedade prefere não conhecer. Ignorando a luta pela sobrevivência de androides desesperados, os homens e mulheres aptos para a vida social fingem serem normais e inocentes de todos os pecados cometidos nas ruas escuras da perversa Los Angeles. Eles têm uma vaga noção do que ou de quem querem ser salvos e desejam o fim do que genericamente entendem por “mal”. Acuado e sozinho, só restaria a Roy a vingança contra o seu perseguidor. E o encontro final ocorre em um prédio vazio. Deckard tenta surpreender Roy, mas este, com força e agilidade superiores,
  • 65. 64s u m á r i o consegue reverter a situação e, de repente, é o próprio caçador de androides quem se vê perseguido. Deckard inicia uma fuga deses- perada, pois sabe que não tem chances contra o seu oponente que, de tão à vontade, começa a brincar com a situação. Desarmado e machucado, Deckard se vê quase sem opções quando então decide pular do topo do edifício onde se encontrava para outro. Mas o movimento é mal executado e ele acaba pendu- rado, sem forças para se erguer. O agente fica extremamente vulne- rável. Roy não precisaria fazer nada para provocar a morte do caçador caso desejasse esse fim. Se preferisse, bastaria observar e esperar a sua queda. E por alguns instantes, parece que é isso que vai acon- tecer, pois, parado diante de um Deckard em estado agônico, em luta pela sua sobrevivência, ele só observa o que deveriam ser os últimos segundos de vida desse ser “fraco e desengonçado”. Mas naquele momento, o replicante já sentia a própria morte se manifestar e algo surpreendente acontece. Na hora fatal, quando tudo parecia estar perdido, quando Deckard, não conseguindo mais se segurar, se desprende, Roy, demonstrando um reflexo incomum, segura o caçador e o ergue triunfante com um só braço. O caçador de androides está salvo. Roy revela afinal suas intenções. Algo havia mudado. Depois de descobrir que sua causa era perdida, que não conseguiria prolongar sua existência, o replicante adotou uma atitude diferente. Mesmo demonstrando um certo sadismo ao perseguir e machucar Deckard como se estivesse no meio de uma brincadeira infantil, Roy não queria matar. Queria que o caçador sentisse empatia. O repli- cante esperava que o caçador se colocasse em seu lugar: “Viver com medo é uma experiência e tanto, não é? É o mesmo que ser escravo”. Por isso sua atitude hostil de minutos antes se relativiza e prevalece, agora, paz e serenidade, bem representados pela pomba branca que ele mantém em suas mãos.
  • 66. 65s u m á r i o Deckard, em silêncio, olha demoradamente para o replicante, como quem busca respostas para o ocorrido. No momento de sua morte, Roy teria descoberto um sentido para a vida. Teria percebido que, diante da finitude, o que valoriza a existência é a trajetória que se constrói. Roy pensa em tudo que viveu e compreende afinal o seu valor, a sua importância. Mas quem mais poderia perceber essa importância, senão um desesperado caçador de androides prestes a morrer? Salvá-lo foi um gesto que valorizou ainda mais a existência de Roy, pois só vivo Deckard poderia autenticar esse valor. Em seus mais íntimos pensamentos, ele entendeu aquilo que confere valor a uma vida diante da finitude. Entendeu que só um outro ser vivo pode reconhecê-lo. Essa teria sido a grande lição de Roy em seus minutos finais, implícita em suas últimas palavras: “Vi coisas nas quais vocês nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da borda de Orion. Vi a luz do farol cintilar no escuro no Portal de Tannhaüser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer”. O gesto final de Roy pode ser assim consi- derado uma excelente metáfora para se pensar a contranulificação. Depois que decidiu se insurgir contra os homens, o repli- cante se tornou uma grande ameaça. Descontrolado e vingativo, ele matou, intimidou e manipulou quem não o ajudasse. Como um Frankenstein pós-moderno em busca de um sentido para a sua existência e assaltado pela rejeição das pessoas e de seu insensível criador, Roy demonstrou que poderia ir até as últimas consequên- cias para alcançar os seus objetivos. Mas quando decidiu salvar Deckard, Roy se libertou. Seus fantasmas não mais o assombravam. Nem a morte. E sem medo, desapareceu também o ódio que o fazia debochar da fragilidade dos homens e considerá-los descartáveis. Ele tornou-se aquilo que sentiu, foi aquilo em que passou a acreditar. Se valorizou a vida, valorizou a sua e a de qualquer outro ser vivente, como Deckard ou uma pomba.
  • 67. 66s u m á r i o Não havia lei, promessas, laços de coletividade, nenhuma influência externa para influenciar Roy em sua decisão. A sua atitude de salvar alguém ocorreu de acordo com a sua própria vontade. Ele não precisaria fazer o que fez e nem tampouco existiria um benefício caso fizesse. Ali ocorreu a metáfora de um corpo contranulificado que afrontou a lógica de uma sociedade violenta que nos ensina a tratar com violência aquele que não é como eu sou ou não pensa como penso; que nos ensina, enfim, a nulificar o outro pelo simples fato de ser diferente. Roy poderia ter mantido esta máquina ligada, sobretudo por vingança, uma vez que, ao se rebelar, já se encontrava em rota de colisão contra uma ordem social que lhe impunha a submissão ou a morte como destino certo. Mas preferiu interromper o seu funciona- mento. Preferiu conectar a sua vida à de Deckard. Roy era um androide vivendo num mundo em que os de sua espécie se confundem com seres humanos e deseja ser valorizado como um ser vivo. Mas naquela Los Angeles possível de 2019, o maior problema talvez nem seja o fato de seres artificiais serem construídos idênticos aos homens, mas que os homens percam sua sensibilidade e se aproximem de seres artificiais. Homens que esquecem o valor da vida. O replicante faz um caminho inverso, está na contramão. Ele se humaniza. Enquanto Deckard mata seus companheiros e sua parceira, inclusive atirando pelas costas. Roy salvou Deckard de uma morte certa.
  • 68. 67s u m á r i o SEM BLACK-TIE, SEM PARAÍSO: A HISTÓRIA DE UM ADÃO DUPLAMENTE DECAÍDO Otávio é certamente um dos personagens mais politizados (à esquerda) de nossa dramaturgia. Um corpo indócil, esperne- ando constantemente dentro do sistema capitalista. Esse sindica- lista veterano, defensor de sua classe, tem a convicção de que não se pode confiar nos patrões burgueses, pois existiria sempre uma estratégia para aumentar a exploração do trabalhador em nome do lucro, e por isso permanece atento e sempre disposto à luta. Trata-se de um homem que pensa e vive o mundo de forma coletiva, não apenas como o operário que é, mas também como morador de uma comunidade de morro, numa favela carioca. Essa é uma caracterização genérica do protagonista da peça Eles não usam black-tie, escrita por Gianfrancesco Guarnieri, em 1955 e levada ao palco pela primeira vez em 1958, pelo Teatro de Arena. Trata-se de uma obra “engajada”, ainda que o termo tenha se popularizado apenas nos anos sessenta. Ela representa para o teatro nacional o que Para não dizer que não falei das flores representa para a música popular brasileira, em termos de engajamento político. Foi diretamente influenciada pelas teorias do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o ISEB, também criado na década de cinquenta, reunindo uma intelectualidade progressista que acre- ditava ser a missão dos intelectuais brasileiros, a criação de projetos de desenvolvimento nacional. Neste caso, a cultura nacional e o “povo brasileiro”, que surgiu como uma categoria sociológica nos anos de 1950,4 deveriam constituir um núcleo a partir do qual seriam pensados os programas desenvolvimentistas desejados pelos isebianos. Por isso a presença do “povo” (os moradores da favela e os operários) é tão importante para a peça de Guarnieri. Ela é 4. Sobre esse “advento do povo no Brasil”, ler Cultura brasileira e identidade nacional, de Renato Ortiz.
  • 69. 68s u m á r i o praticamente a porta de entrada na dramaturgia brasileira para essa nova categoria. Eles não usam black-tie é a narrativa dos acontecimentos que envolvem a família de Otávio às vésperas de mais uma greve na fábrica onde ele trabalha. Outros dois importantes personagens são Romana, a esposa de Otávio, caracterizada como uma dona de casa calejada pela pobreza que, entre a rigidez e a ternura, cuida de sua família com coragem e determinação, e Tião, o filho mais velho. Apesar da importância simbólica de Otávio, é Tião o personagem mais denso da trama, pois são os seus dilemas que acompanhamos mais detalhadamente desde o início da narrativa, quando ele descobre que a sua namorada está grávida e inicia seu noivado para esconder a impertinência do casal diante das tradi- ções da comunidade do morro em que vivem. Tião não foi criado pelos pais, no morro, mas na casa de seus padrinhos, “na cidade”. Lá, foi tratado como um pajem e, provavel- mente, por isso, aprendeu a dar tanto valor a um padrão de vida mais elevado que o seu na comunidade onde mora. Por isso ele não consegue experimentar e avaliar positivamente a solidariedade que seu pai tanto valoriza. Ao contrário, Tião é retratado como alguém individualista, que vê no tipo de vida comunitária que se leva no morro, algo que atrasa os seus sonhos de se tornar um pequeno burguês, com dinheiro suficiente para consumir aquilo que deseja. Tião quer melhorar de vida, mas não como seu pai. Trabalhando na mesma fábrica que Otávio, ele quer resolver seus problemas sem compartilhar ganhos ou perdas. É egoísta demais para isso e por essa razão logo percebemos que Tião e Otávio estão em rota de colisão um contra o outro, e a greve que se aproxima acaba se tornando o catalisador de um conflito iminente.
  • 70. 69s u m á r i o Enquanto Otávio confia na greve como instrumento de luta, Tião entende que ela só traz problemas para o trabalhador porque o indispõe com o patrão. Para ele, grevistas não progridem e ainda correm sério risco de perderem o emprego. Falta a Tião consciência de classe, portanto. Ele se submete ao sistema da fábrica por medo das punições que tal estrutura pode lhe impor, e para justificar o seu individualismo, alega que logo terá uma família para cuidar e não pode correr riscos. Ao contrário do pai, um militante que se contranulifica cons- tantemente com grande generosidade para com seus companheiros, Tião se nulifica. Ele se vê diante de duas opções: aderir à greve ou fugir dela e acaba assumindo a posição mais dócil aos donos da fábrica. No entanto, Guarnieri faz questão de destacar que ele não é um covarde, embora tenha tanto medo das limitações próprias de sua condição social. Tião faz escolhas e as assume com coragem, mesmo sentindo que contrariar o próprio pai lhe traz algum tipo de descon- forto. Constrangido, na manhã em que deveria se iniciar a greve, ele chega a sair de casa mais cedo para não ter que encarar Otávio. Mas ao transitar pela rede de micropoderes que entrelaça o espaço da fábrica, se por um lado ele foi dócil diante do patrão, por outro, ele foi combativo o suficiente para enfrentar os líderes da greve, que queriam impedir que os operários entrassem na fábrica para trabalhar. Ele “furou” a greve e proclamou publicamente que não era obrigado a aderir ao movimento. Foi muito decepcionante para Otávio e para a noiva de Tião descobrirem o que ele havia feito, sobretudo porque no meio da manifestação daquela manhã, Otávio foi detido à mando dos homens para quem Tião obedientemente foi trabalhar. E enquanto o filho, constrangido e hostilizado pelos demais trabalhadores, voltava para casa perturbado, Romana, ao saber do ocorrido, foi ao D.O.P.S
  • 71. 70s u m á r i o protestar em favor do marido. De um lado, a solidariedade comba- tente de sua família e de alguns companheiros de trabalho, do outro, o individualismo de um sujeito isolado e desmoralizado. Mas haveria mais um duro golpe contra Tião. Quando Otávio chega em casa, ele renega o filho. “Me desculpe, mas seu pai ainda não chegou. Ele deixou um recado comigo, mandou dizê pra você que ficou muito admirado, que se enganou. E pediu pra você tomá outro rumo, porque essa não é casa de fura-greve!”. Além disso, a noiva também o abandona por causa de sua deslealdade com os companheiros. Embora reconheça que Tião não foi criado como achava que deveria ter sido, que o filho é um “outro” relativo a si mesmo, Otávio manteve a sua punição: Seu pai tem outro recado pra você. Seu pai acha que a culpa de pensá desse jeito não é sua só. Seu pai acha que tem culpa... [...] Se eu te tivesse educado mais firme, se te tivesse mostrado melhor o que é a vida, tu não pensaria em não ter confiança na tua gente... [...] Seu pai acha que ele tem culpa! [...] E deixa ele acreditá nisso, se não, ele vai sofrê muito mais. Vai achar que o filho dele caiu na merda sozinho. Vai achar que o filho dele é safado de nascença. Seu pai manda mais um recado. Diz que você não precisa aparecê mais. E deseja boa sorte pra você. Otávio se compromete com o que acredita serem os signifi- cados e valores de seu grupo. Sua honra, enquanto pai e líder sindi- calista, foi afrontada e ele tratou o filho com a severidade que todos esperavam. A convicção cobra o seu preço, Otávio deve negar ao
  • 72. 71s u m á r i o filho o seu nome e o seu legado de honra. E uma vez desonrado, Tião é expulso do morro que, na peça, torna-se um lugar edenizado. Na visão idealizada que a narrativa oferece, o morro, apesar de ser um espaço de pobreza, parece estar acima do bem e do mal. É visto de forma romantizada como um lugar de comunhão entre os “verdadeiros moradores” e onde se cultivaria naturalmente uma “verdadeira fraternidade” entre iguais, em meio a uma socie- dade desigual que coisifica constantemente o ser humano. Enfim, descontando o exagero da afirmação, a obra tem um certo sabor naturalista. O morro seria um espaço harmônico e seletivo. O verda- deiro morador é aquele que aceita a sua natureza, e quem não for assim, torna-se um elemento indesejado que, para o bem de todos, deveria ser expulso. Otávio não admitiu que o seu filho fosse um “outro” e assumiu uma atitude diferente daquela do replicante Roy5 . Este, perseguido, condenado à morte e moribundo, não teria razão nenhuma para salvar o seu algoz, pelo contrário. Sobretudo por vingança, poderia realmente querer vê-lo morrer por ter matado seus companheiros. Mas livre de qualquer condicionamento psicológico ou social, Roy decidiu desafiar o senso comum de uma sociedade disciplinar e salvou o seu perseguidor. O pai de Tião assume e defende a identidade de um sujeito sociológico. Esta identidade “é formada na ‘interação’ entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem”6 . Segundo Stuart Hall, um sujeito na condição de Otávio se identificaria plenamente com uma identidade cultural 5. Citado no texto O androide que não queria morrer. 6. Fonte: A identidade cultural na pós-modernidade, de Stuart Hall.
  • 73. 72s u m á r i o maior, tomando para si seus significados e valores. Sua subjetivi- dade acaba, então, alinhada com o lugar objetivo que ele ocupa no mundo social e cultural. Neste sentido, o personagem Otávio foi criado para repre- sentar um ideal de “povo brasileiro”, num momento em que inte- lectuais e artistas de esquerda sacralizavam esse povo como um sujeito universal que teria a missão histórica de emancipar a nação. Trata-se, portanto, de uma noção diferente daquela retratada no filme Terra em transe, lançado por Glauber Rocha em 1967. Para esse cineasta, era preciso dessacralizar o povo, redimensionar o seu protagonismo político, pois ele ainda não teria as condições necessárias para fazer a revolução social esperada. Ele seria alie- nado e vacilante demais. Tião, portanto, foi duplamente excluído, da cidade e do morro. Foi duplamente nulificado. Ele não desejava para si a iden- tidade de um sujeito coletivo, seja a do morro, seja a da fábrica. Ao seu modo, tal como o sistema fabril, o morro e o proletariado também desejam impor uma disciplina. Maria e Otávio exigem de Tião que ele se comporte de uma maneira “correta”. Para a noiva, Tião perdeu a confiança de sua gente e terá que deixar o morro. E segundo ela, vivendo nessa condição, ele jamais seria feliz. O morro era a sua natureza e sozinho ele tornar-se-ia impotente. Haveria redenção para o jovem? Sim, desde que ele passasse a acreditar no morro, naquela que seria a sua gente. Desde que se nulificasse em favor daquela que seria a sua natureza. Diz a noiva Maria na despedida: “Então, vai embora... Eu fico. Eu fico com Otavinho... Crescendo aqui ele não vai tê medo... E quando tu acre- ditá na gente... por favor... volta!”. A existência dessa verdade reden- tora também é confirmada por Otávio: “Enxergando melhó a vida, ele volta”. Aqui, o sindicalista deixa de ser aquele sujeito que contranuli- fica-se constantemente e assume o exercício da nulificação do outro.
  • 74. 73s u m á r i o Na prática, o que ele deseja é nulificar o filho. Espera que ele tome como sua, a verdade do morro, uma verdade que não admite reinterpretação. E tal como no Éden, o pecado é punido com a expulsão. Com esse argumento, afirmamos mais uma vez que a contranulificação não pode mobilizar movimentos coletivos (de massa ou não). Nesses, haverá sempre a tentativa de alinhar subjetividades ou pelo menos a expectativa de que isso ocorra. E certamente Gianfrancesco Guarnieri se identificava com Otávio. Seu esforço para criar um personagem tão corajoso, justo e coerente denuncia a sua intenção de definir a mensagem principal de sua obra. Da forma como o experiente sindicalista foi caracterizado, ele seria a própria encarnação daquilo que estamos chamando de “contranulificação”, se isso fosse possível: um homem que não se dobra, que está sempre na contramão de um sistema opressor. Mas essa idealização não condiz com a realidade material da contranuli- ficação. Ela não pode ser percebida como um estado permanente, na medida em que existe sempre o inconfessável que há em nós. Para além de toda ilusão biográfica7 , que nos faz acreditar que nossa vida é um todo coerente e orientado que realizaria um projeto desejado intencionalmente, existe sempre uma trajetória sinuosa e nas suas tantas curvas, nem sempre mantemos a coerência daquilo que esperamos e pensamos ser. E é nesses “deslizes” que o mais aguerrido defensor da liberdade pode revelar, por exemplo, um microfascista escondido em si. Por essa razão, sem dúvida, é Tião o personagem mais profundo da estória. Ele é aquilo que a ilusão biográfica esconde. É aquele que se revela em dilemas. Suas atitudes são plausíveis, bem mais do que a coerência inquebrável de Otávio. 7. Tomamos como referência o conceito de Pierre Bourdieu.
  • 75. 74s u m á r i o E pela coragem de dizer “não” à greve, Tião não teria se contranulificado? Não, por conta do medo e da subserviência à disciplina do patrão. Ele fez o que fez não por um gesto pleno de convicção. No fundo, algo o incomodava, ele sentia que estava errado, tanto que procurou se esconder do pai, de saída para o trabalho na manhã da greve. E quando a sua mãe perguntou se o que fez valera à pena, ele foi lacônico: “O que tá feito, tá feito, mãe!”. Ele se sujeitou ao sistema e sabia, embora tenha demons- trado coragem, que aquilo era um sinal de subserviência. Esse tipo de sujeito, na comunidade criada por Guarnieri, foi punido de forma “exemplar” e ganhou tempo para pensar no que fez de errado. Tião precisará entender que errou por ser individualista e trair a sua classe social, para finalmente se tornar alguém conscien- tizado e, por consequência, um militante em favor da transformação social. A peça, nesse sentido, é didaticamente marxista e oferece a mesma reflexão oferecida para Tião, a todos que a ela assistirem. Mas os mesmos desvios cometidos pelo filho de Otávio na ficção, fora do palco, nunca são assim tão óbvios como Guarnieri caracterizou. Em nosso cotidiano, muitas vezes, quem assume as atitudes de Tião não é punido, ao contrário, é normalmente contem- plado com pequenas compensações do sistema que o explora, o que torna a nulificação suportável, inviabilizando, com um efeito analgésico, qualquer prática de contranulificação. E com seus pequenos prazeres concedidos diariamente, os “Tiões” da vida real não apenas se calam diante das mazelas, como se colocam também à disposição para a defesa do sistema social que os exploram e/ou excluem. Muitos deles, efetivamente, vão praticar os microfascismos do cotidiano, exigindo de todos um comportamento ordeiro e disciplinado. Peças-chave de uma sociedade disciplinar.
  • 76. 75s u m á r i o O TEMPO DA CONTRANULIFICAÇÃO Havia um casal hippie circulando pela cidade. Todos os dias, podia ser visto numa das avenidas mais movimentadas. E dormia lá mesmo. Certa vez, um homem ordinário, orgulhoso de sua disci- plina e de seus tantos boletos para pagar, comentou: “como se pode viver dessa forma?”. Para aquele que fez a pergunta, um sujeito padrão, tipo pequeno burguês, é impensável viver como um hippie. Mas ele não percebia que estava julgando aquela experiência desconcertante a partir de sua própria racionalidade, provavelmente a única possível para ele. Um hippie, no entanto, vê o mundo de uma outra maneira. Ele não possui as mesmas experiências e o mesmo horizonte de expectativa típico da classe média brasileira. Provavelmente, para o hippie, difícil é viver como a maioria de nós, correndo em círculos, sem tempo para nada. Com alguma boa vontade, admitiríamos que a forma como conduzimos a nossa vida cotidianamente não seria assim tão saudável. Tornamo-nos cada vez mais obcecados pelo relógio e por isso, em vão, estamos sempre aprendendo ou tentando aprender a organizar nossas tarefas, de modo que as 24 horas do dia sejam suficientes para o trabalho, família, atividades físicas e descanso. Mas o que é o tempo? Para Paul Ricoeur8 , “a especulação sobre o tempo é uma ruminação inconclusiva cuja única réplica é a atividade narrativa”. Com isso, o pensador quer dizer que seria difícil, senão impossível, pensar o tempo, pelo menos no que diz respeito a “experiência humana do tempo”, sem uma narrativa para lhe dar sentido. 8. Fonte: Tempo e Narrativa.
  • 77. 76s u m á r i o O texto narrativo seria responsável pelas várias operações interpretativas que o sujeito faz a respeito do tempo. É com esse repertório que o ser humano aprenderia a lidar com as sensações que lhe informam a passagem temporal. E nesta perspectiva, vigora a importância dos tempos verbais. Eles não apenas descreveriam a experiência temporal, mas seriam fundantes para tal experiência. De uma forma mais complexa, poderíamos pensar o tempo da cristandade medieval, decisivamente instituído pelos textos sagrados. Não por acaso consta no evangelho de João a seguinte afirmação “No princípio era o verbo”. Desta forma, pelas escrituras, o tempo teria três marcos fundamentais: a Criação, o Nascimento de Cristo e o Juízo Final. Mas na Idade Média, se cada um desses marcos era seria- mente considerado, o mesmo não se pode dizer do intervalo entre o nascimento de Cristo e o juízo Final. Diz Jacques Le Goff9 , sobre os homens e mulheres desse período, que “em nível de mentali- dade coletiva, passado, devir e futuro encontravam-se fundamental- mente mesclados numa confusão temporal”. É certo que a noção de tempo era contínua e linear para os cristãos do medievo, tanto é que aguardavam o fim dos tempos; mas enquanto esse momento não se manifestasse, o que existia era uma indiferença em relação à passagem do tempo. Os dias se sucediam, mas sem que os homens e mulheres vislumbrassem algum horizonte de expectativa diferente de seu espaço de experiência. Os dias pareciam ser todos iguais. Um tempo novo, nesta perspectiva, se daria apenas com o próprio fim dos tempos, que foi objeto de inúmeras previsões na época. Nesta condição, os cristãos não eram protagonistas de seu tempo, mas apenas aguardavam os desígnios de Deus. Já a cons- ciência da modernidade, que despontou no final do século XVII e 9. Fonte: A civilização do ocidente medieval.
  • 78. 77s u m á r i o início do XVIII, permitiu a criação de uma noção nova de futuro. Ele não se confundiria mais com o fim dos tempos, mas passaria a ser percebido como um horizonte para o qual o homem deveria estar preparado. Este novo regime de historicidade que se anuncia vai se relacionar cada vez mais com os interesses da burguesia, de tal forma que o tempo, que antes pertencia ao Criador, iria se converter no próprio objeto do desejo burguês, como atesta a famosa expressão “tempo é dinheiro”. Mas voltemos para o caso do hippie e o seu pouco apreço pelo relógio. Se ele dormir no relento, ao despertar, como ele inicial- mente poderia se situar temporalmente? Certamente observando se ainda estaria escuro ou se já estaria claro. Se estivesse claro, a intensidade da luz do sol poderia ser um elemento importante. E, finalmente, a posição do sol poderia dar uma ideia relativamente precisa do horário em questão. E ao se deparar com um casarão abandonado de uma cidade que ele não conhece, como poderia ter alguma noção sobre a sua idade? Neste caso, por meio da arquitetura, das paredes manchadas e das eventuais plantas nascendo por onde o cimento vacila. Com essas imagens, o nosso personagem teria uma ideia da passagem do tempo. Por fim, um exemplo mais clássico: como os cientistas calculam a idade dos fósseis? Pela quantidade restante de Carbono. E o que todos esses procedimentos têm em comum? Estimulado pela afir- mação de Reinhart Koselleck, segundo a qual o tempo não pode ser expresso a não ser em metáforas espaciais, diria que, para o homem ordinário, o tempo só pode ser expresso através da matéria. É ela que deve ser considerada em todos os procedimentos citados acima. No primeiro caso, um corpo celeste movimenta-se e permite a passagem do tempo, nos oferecendo a sucessão entre os dias
  • 79. 78s u m á r i o e as noites. No segundo caso, tal como identificamos os sinais de velhice por meio das rugas no corpo de uma pessoa, percebemos os efeitos do tempo sobre o casarão pela sua aparência física. E no terceiro caso, a importância do corpo é ainda mais óbvia. Podemos afirmar, portanto, que para o homem ordinário o tempo não é nada sem a matéria, melhor dizendo, sem o seu movimento ou sem que ela se transforme física ou quimicamente. Sem a matéria para servir como parâmetro, o tempo não teria nenhuma materialidade para o nosso hippie. Quando Paul Ricoeur considera a existência de um “terceiro tempo”, algo que seria uma ponte entre o tempo vivido e o tempo cósmico, diz que esse terceiro tempo seria o tempo do calendário, o qual seria constituído por regras. Uma delas mencionaria “um reper- tório de unidades de medidas que servem para denominar os inter- valos constantes entre as recorrências de fenômenos cósmicos”. O que é a passagem de um ano para outro senão um giro completo da Terra ao redor do sol, ou seja, o movimento de um corpo celeste? Sobre isso os cientistas refletem criando soluções matemá- ticas para converter movimento em tempo, ou melhor, em números. É exatamente isso o que chamamos de “tempo” desde o advento das civilizações humanas: operações matemáticas. Essas opera- ções, por sua vez, como foi dito, precisam que a matéria se trans- forme (perca carbono, por exemplo) ou se movimente. Um tempo sem corpos, portanto, é uma abstração tão grande como os infinitos números racionais que existem entre o 0 e o 1. Basta observar a existência do dia 29 de fevereiro em nosso calen- dário. Ninguém que nasça neste dia registra-se como nascido no próprio dia 29 porque, neste caso, só completaria uma nova idade de quatro em quatro anos. Mas o que isso representaria para o corpo de um ser humano? Seu corpo envelheceria da mesma forma que alguém nascido no dia 28 ou no dia primeiro de março.
  • 80. 79s u m á r i o E o tempo tornou-se um dos princípios básicos do controle social sobre os corpos. Assim, como poderíamos compreender o tempo cristão e o tempo moderno do capitalismo? O tempo para o cristianismo medieval era uma entidade demarcada pela criação do mundo, pelo momento em que Jesus Cristo se fez homem e pelo Fim dos Tempos. Já o tempo moderno é determinado pela produção e circulação de mercadorias, o que envolve uma infini- dade de fatores como, por exemplo, o trabalho do corpo humano. E uma vez estabelecida uma concepção temporal hegemônica, o tempo se torna decisivo nas relações de poder de uma sociedade. Charles Chaplin foi muito habilidoso em seu filme Tempos Modernos ao mostrar de que forma o tempo mediado pelos inte- resses dos patrões controla o corpo dos operários. Quando deseja-se aumentar a produção, acelera-se a atividade das máquinas que, por sua vez, vai determinar o ritmo do trabalho físico dos trabalhadores. O tempo cristão medieval também atendia a uma disciplina. Diante da iminência do Juízo Final (porque o fim era uma certeza escatológica) todo católico procurava ficar mais próximo de sua Igreja para tentar ser digno da salvação, ou seja, os cristãos procuravam ficar mais atentos às prescrições do clero. Mas quem controlava o relógio que determinaria a proximidade do fim? A Igreja. Era exata- mente o clero que informava as profecias sobre o fim dos tempos. Tais profecias se tornaram cada vez mais comuns após o ano 1000. Atualmente as sociedades modernas giram em torno de compromissos diários regidos pelo tempo-relógio. São tantas horas de trabalho, com outras tantas de estudo, somadas a algumas horas de descanso, além dos sempre bem-vindos finais de semana. Calcula-se até quantas horas de sono alguém precisa ter para poder se recuperar de forma adequada depois de um dia normal de trabalho e com que frequência precisamos nos alimentar para manter a vitalidade do corpo.
  • 81. 80s u m á r i o Mas a despeito das várias prescrições que existem, a percepção geralmente é a de que não temos tempo para nada, exceto para sermos produtivos. E para isso, devemos sempre ser vigilantes ou vigiados. É assim que o tempo nos nulifica. Seria possível pensar, então, um tempo libertador, um tempo da contranulificação? Neste caso, se nos convencermos de que o tempo só pode ser expresso através da matéria, um tempo para a contranulificação dependeria da valorização do corpo. Enquanto o tempo do Capital nos afasta dos nossos afetos, muitas vezes com o comprometi- mento de nossa saúde física e mental; um tempo libertador, no qual poderíamos nos contranulificar, seria um tempo em que o corpo estaria no foco de nossa atenção. Neste sentido, “ganhar tempo” significaria cuidar do corpo e não desgastá-lo em busca de uma meta. Um tempo para a contranulificação, enfim, significaria um tempo para o cuidado de si10 . No pensamento grego da antiguidade, para o qual a socie- dade deveria ser o lugar de realização do sujeito, o cuidado de si era importante. Mas ele foi sendo abandonado diante do fortalecimento da moral cristã. Baseada na noção do “não-egoísmo”, a moral cristã desqualificou a epiméleia heautoû (cuidado de si) na medida em que, para ser um bom cristão, um sujeito deveria renunciar a si mesmo e voltar sua dedicação e preocupação para a sociedade, a pátria, a classe, caso contrário seria considerado um “egoísta”. A filosofia cartesiana também foi implacável com o cuidado de si. Segundo Michel Foucault, René Descartes contribuiu não apenas para a valorização do gnôthi seautón (conhece-te a ti mesmo), mas também para a desqualificação da epiméleia heautoû. O “momento cartesiano”, como denomina Foucault, seria o responsável por inverter 10. Toda a discussão sobre o cuidado de si que consta neste texto, está baseada nas obras A hermenêutica do sujeito, de Michel Foucault e o texto de Salma Muchail intitulado Cuidado de si e coragem de verdade (Ver o livro Foucault: a coragem da verdade).
  • 82. 81s u m á r i o a primazia do cuidado de si sobre o conhecimento de si, que existia na Grécia Antiga. Esta inversão ocorreu a partir do momento em que Descartes convenceu o mundo ocidental de que o acesso à verdade só seria possível através do conhecimento objetivo da realidade. No mundo moderno, portanto, consagrou-se um pensamento que se interroga sobre as condições e os limites do acesso do sujeito à verdade em desfavor de uma reflexão sobre o que custaria ao sujeito ter acesso a essa verdade. Separa-se, desta forma, o conhe- cimento do cuidado. Essa distinção não existia na Antiguidade. Nos tempos antigos, filosofia e espiritualidade estavam unidas e repre- sentavam o cuidado de si na sua dimensão integral. Um sujeito teria acesso à verdade em razão de sua própria condição de ser um “sujeito cognoscente”. Assim, para conhecer a verdade, ninguém precisaria se transformar. Bastaria apenas que a estrutura ontológica do sujeito ficasse assegurada. Mas se levarmos em consideração o cuidado, a verdade não dependeria do simples ato de conhecer. Exigiria que o sujeito olhasse para si mesmo, que se modificasse, alterando o seu próprio ser. Vejamos o que diz Foucault na obra História da sexualidade (O uso dos prazeres): [...] de que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar dife- rentemente do que se pensa e perceber diferentemente do que se vê é indispensável para continuar a olhar ou a refletir. Sem o cuidado de si, aquele que conhece poderia usar seu conhecimento de forma destrutiva ou autoritária com prejuízos para si mesmo ou para os outros. A razão poderia ser usada não para a emancipação da humanidade, mas para a exploração do homem pelo homem, desenvolvendo técnicas de nulificação.
  • 83. 82s u m á r i o Na recente greve dos caminhoneiros que houve no Brasil11 , por exemplo, a classe média ficou atordoada. Sentiu medo do desabastecimento, mas também medo de ficar sem seus meios de transporte por falta de combustíveis. Revela-se, neste caso, uma enorme dependência em relação à máquina. Mesmo para distân- cias relativamente pequenas, poucos cogitaram a possibilidade de arrumar outras formas de deslocamento, como por exemplo, a bici- cleta ou andar a pé. Alega-se, neste caso, o cansaço físico e também a neces- sidade de se cumprir horários. Então, acabamos priorizando os compromissos e pouco nos preocupamos, por exemplo, com o problema do sedentarismo. Oferecemos tempo para o trabalho, mas somos incapazes de perceber as necessidades de nosso próprio corpo. Quanta saúde seu corpo perde para que o sistema funcione? Nesta perspectiva, chegar no horário certo em todos os compromissos, não representa que um sujeito ganhou tempo. Ele perdeu, porque seu corpo certamente estará se desgastando. Seria a matéria se transformando negativamente. Esperamos, enfim, poder fazer o corpo descansar apenas na velhice, quando o sistema reconhecer a nossa aposentadoria. Mas por que não pensar em uma nova organização do trabalho? Uma organização que não violente o corpo dos trabalhadores no presente sob a promessa de benefícios futuros. Uma organização que busque o equilíbrio, oferecendo trabalho, lazer e descanso ao longo de toda uma vida humana, levando em consideração o cuidado com os corpos. Essa seria a lógica de um corpo contranu- lificado vivendo no tempo. Também seria importante adotar uma posição crítica com relação aos atuais meios de comunicação. A internet e suas redes 11. Este texto foi escrito entre maio e junho de 2018.
  • 84. 83s u m á r i o sociais estão aniquilando a noção de espaço e sem ele os corpos estão ficando comprometidos. Existem hoje acontecimentos virtuais, encontros virtuais, engajamento virtual, sexo virtual, amizade virtual... Nas redes, tudo é possível, mas cadê o corpo, o cuidado com o corpo ou a relação entre corpos que torna possível o amor, a política, a própria cidade? Mas este tempo sem espaço que reina na internet não deve ser ignorado. Trata-se de uma revolução cultural importante que oferece inúmeras possibilidades de contranulificação também. Para além do tempo produtivo ou daquele meramente narcisístico, que se investe diante de um computador, é preciso usar a rede mundial objetivando um aprendizado ético que possa nos libertar dos grandes meios que monopolizam a informação no Brasil e nos tornar corpos contranuli- ficados à serviço de uma prática refletida de liberdade. Mas a reali- zação desses projetos só pode se dar fora das redes, no espaço onde efetivamente o corpo é atravessado pelo tempo. Por isso é preciso também retornar à natureza. Não necessa- riamente para um tempo da natureza. Ser capaz de se compreender como um animal novamente, sentindo cheiros; frio, quando fizer frio; calor quando fizer calor. Reconhecer instintos. Conectar-se nova- mente com o meio ambiente e assim dar um giro completo sobre o próprio cuidado de si. Atualmente, sejamos francos, não damos importância para o meio ambiente, o que compromete seriamente a nossa existência neste planeta. Somos até capazes, eventualmente, de emitir opiniões a respeito da necessidade de se preservar a natureza ou de perceber a relevância de tais opiniões, mas na prática, continuamos insistindo em hábitos que de alguma forma ou de outra causam desequilíbrio ecológico no solo, na água ou no ar. E por uma razão bem simples: não nos sentimos conectados ao meio ambiente e por isso não nos importamos que alguém o torne inviável.
  • 85. 84s u m á r i o Se alguém suja os rios, por exemplo, não ligamos verda- deiramente, afinal, em nossa ilusão diária, associamos a água que utilizamos não a esses mesmos rios, mas às companhias que gerenciam nossas águas e esgotos; da mesma forma que para conseguir um peixe nos dirigimos para um mercado. E se o tempo da contranulificação implicaria um reencontro com a natureza, ele se contrapõe às soluções ultra-cientificistas do trans-humanismo, com sua busca pela evolução biológica, psico- lógica e intelectual do homem pela ciência. Os trans-humanistas querem que seres humanos modificados vivam mais. Seria mais uma importante etapa da ilusória conquista da natureza e conse- quentemente, do tempo humano. Mas para que esse tempo? Para levar ao infinito nossos preconceitos, nosso ódio e nossa violência? Trans-humanos? Como, se nunca chegamos a ser humanos?
  • 86. 85s u m á r i o AS JORNADAS DE 2013: O SUCESSO DE UMA REVOLUÇÃO PERDIDA Não se vive a cidade sem o corpo. Cada habitante, em condi- ções normais, vivencia sua cidade por meio de experiências visuais, táteis, olfativas, auditivas e, por que não dizer, gustativas. Sabemos que a cidade existe porque podemos senti-la. Percebemos a cidade a partir de lugares conhecidos, como o bairro onde vivemos, e daí vamos descobrindo novos ao longo do tempo. No caso do bairro, ele não é só conhecido pelo sujeito. É tão relevante a familiaridade com que todos se tratam, que se pode dizer que o bairro também “conhece” seus sujeitos. Como diz Antoine Prost12 , há nessa relação, além do conhecimento mútuo, um contato social: cada morador do bairro ou da vila tira proveito de sua vizinhança, desde que se entregue a ela com sorrisos, saudações, cumprimentos e troca de palavras. Se o fizer, existirá, será reconhecido. Mas para isso o corpo tem que transitar e estar disponível a contatos que devem acontecer, necessariamente, com certa regula- ridade, pois existir, segundo David Le Breton13 , implica, inicialmente, mover-se em determinado espaço e tempo, alterar o meio com gestos eficazes, “escolher e atribuir significado e valor aos inúmeros estímulos do meio graças à atividades perceptivas, comunicar aos outros a palavra, assim como um repertório de gestos e mímicas, um conjunto de rituais corporais implicando a adesão dos outros”. As representações de uma nação ou de uma região podem prescindir de corpos e se for preciso, criam corpos, mas serão estes, sempre, corpos idealizados como o de Marianne, a famosa alegoria que representa a República Francesa. Mas uma cidade não 12. Fonte: Transições e interferências. 13. Fonte: A sociologia do corpo.
  • 87. 86s u m á r i o existe sem corpos. Ela existe e se transforma sempre em detrimento da acomodação dos corpos de seus habitantes. Na obra Carne e Pedra, de Richard Sennett, a modernização que agiu sobre Paris na época da Belle Èpoque, sob o pretexto de oferecer conforto e espe- táculo para o homem moderno, acabou imobilizando corpos, fazen- do-os se contentarem com uma contemplação passiva da cidade, o que contribuiu de forma decisiva para a criação daquilo que ele chama de “corpo passivo”, um corpo desconectado do espaço, que não se deixa excitar por ele. Um corpo passivo “vivencia o mundo como uma experiência narcótica; o corpo se move de maneira passiva, anestesiado no espaço, para destinos estabelecidos em uma geografia urbana fragmentada e descontínua”. É mais fácil nulificar um corpo passivo. Já um corpo que busca a contranulificação é aquele que se entrega ao contato com os dife- rentes estímulos urbanos, que vive à vontade em sua cidade, sem pudores ou náuseas fáceis. Enquanto muitos preferem transitar em espaços assépticos, como os shopping centers, para evitar o calor, sujeiras, odores e a aglomeração de pessoas nas ruas, a prática da contranulificação impulsiona o sujeito a descobrir a cidade: o seu centro, seus bares de esquina, suas ruas na madrugada, seus riscos, suas feiras populares e a sensualidade de outros corpos. A contranulificação inspira a relação entre a carne e a pedra. Segundo Sennett, na Grécia Antiga, a nudez poderia indicar um povo à vontade na sua cidade: “Péricles celebrava uma Atenas em que reinava a harmonia entre carne e pedra”. O cidadão ateniense, portanto, se orgulhava de sua nudez. O homem contra- nulificado, que não pode estar nu, se orgulha por ter a coragem de ver a cidade com os seus próprios olhos, por senti-la com a sua pele, por assimilar seus cheiros e odores ali onde eles são produ- zidos, por ouvi-la porque está perto demais para não escutar o que ela diz e, finalmente, por sentir os seus sabores, que não podem ser
  • 88. 87s u m á r i o enlatados ou aprendidos em cursos de culinária. O homem contra- nulificado não vivencia a cidade por uma experiência narcótica, como por exemplo, a que a Televisão proporciona. Ele, portanto, já se sente orgulhoso pelo simples fato de não ser um corpo passivo. Contranulificar-se na condição de habitante da cidade, é também aprender a lidar com os seus personagens: os fiéis que gritam nas praças, artistas, flanelinhas, policiais, bêbados, comer- ciantes, prostitutas, operários, contraventores. É um aventurar-se por sua política e seu underground. É saber lidar com os “homens de bem”, divididos entres suas verdades e hipocrisias, e com os personagens menos afortunados das sociedades capitalistas. É conhecer o “povo” nas ruas e não apenas um conceito idealizado por folcloristas. É, enfim, saber relacionar-se com os homens do espaço urbano em sua mundanidade, marginalidade e promiscuidade. A contranulificação, para que tudo isso seja possível, requer o direito à cidade: é preciso transitar e conhecer a cidade. Quem se contranulifica deseja ir muito além dos caminhos que levem da casa ao trabalho e que garantam um bom retorno de volta ao lar, no fim do dia. Como proclamavam os Titãs: “A gente não quer só comida/ A gente quer comida/ Diversão e arte/ A gente não quer só comida/ A gente quer saída/ Para qualquer parte”. Mas esse direito no Brasil está permanentemente ameaçado por causa da má qualidade dos serviços de transportes públicos oferecidos na maioria das cidades e por conta do valor de suas tarifas, que está sempre tencionando a capacidade de pagamento de seus usuários. Diante dessa ameaça permanente, que inibe a liberdade de circulação dos habitantes da cidade, a contranuli- ficação estimula a impertinência, sobretudo dos jovens, o grupo social mais atingido pelas constantes crises no transporte público. Com pouco ou nenhuma renda e mais excitáveis com os infinitos estímulos que a cidade tem para oferecer, são eles que sentem
  • 89. 88s u m á r i o de forma mais dura as contradições advindas do choque entre o desejo de transitar pela cidade e a falta de recursos. Por isso, nas últimas décadas, jovens de várias cidades brasileiras empreenderam importantes movimentos contra abusivos aumentos de tarifas e, em alguns casos, chegaram a construir uma demanda particular: o passe livre. Muitos desses jovens, que cobraram dos poderes públicos um serviço de qualidade e aces- sível a todos os habitantes da cidade, estavam contranulificando-se nessas manifestações. Mas nem todos. Foi o que aconteceu em junho de 2013. Refiro-me às grandes manifestações que ocorreram naquele mês, por todo o país, na esteira do que aconteceu, inicialmente, na cidade de São Paulo, quando uma juventude aguerrida irrompeu contra o aumento de vinte centavos nas passagens dos transportes públicos. *** As jornadas de junho de 2013 foram tão irresistíveis e caris- máticas que poucos tiveram a ousadia de criticá-lo. Jornalistas poderiam perder a simpatia da “opinião pública”, políticos pode- riam perder votos, professores poderiam ficar mal com seus alunos, cientistas políticos poderiam constranger-se diante de uma previsão equivocada. Até a grande mídia, de repente, se viu cheia de recal- ques para tratar do assunto. Esforçando-se numa quase simpatia, repetiu à exaustão que as jornadas de junho eram democráticas e bem-vindas, apesar de uma insistente “minoria baderneira” que estaria teimando em querer desvirtuar tudo. É fácil perceber que as jornadas de 2013 tiveram as caracte- rísticas necessárias para se fixarem na memória coletiva do brasi- leiro ao lado de outras grandes mobilizações, como a passeata dos Cem Mil, de 1968; o movimento das Diretas Já, no início dos anos 1980 e as manifestações dos caras pintadas, em 1992. Difícil
  • 90. 89s u m á r i o mesmo é entender qual o seu significado político. Junho de 2013 poderia representar o ensaio para a realização dos desejos dos movimentos sociais mais progressistas da política brasileira, uma revolução perdida ou ainda a porta de entrada para uma grande investida da extrema-direita em nosso país. Tudo começou ainda na primeira semana de junho e os primeiros impulsos foram anticapitalistas, com um certo viés anar- quista, contra o aumento das passagens de ônibus e metrô em São Paulo. O detonador foi o Movimento Passe Livre, o “MPL”, um movimento social horizontal, autônomo e apartidário que luta pelo transporte público e pelo direito das pessoas à cidade. No início a pauta era bem específica e era possível perceber algum espaço para partidos de esquerda. Daí o movimento foi se multiplicando pelo país afora. Em São Paulo, após as primeiras prisões e interdições de vias públicas pela polícia, o processo se radicalizou, sobretudo com a presença dos black blocs. Como consequência, a repressão poli- cial aumentou de tal forma que na segunda semana de junho as passeatas foram praticamente proibidas. Mas elas não pararam. Cresceram por todo o país até chegarem ao seu clímax no dia 17 de junho, quando centenas (ou milhares?) de manifestantes invadiram a cobertura do Congresso Nacional em meio a um entusiasmo deli- rante equivalente à singularidade do ato. Pisaram no poder. Mas o que significaria isso? Não havia um centro, um comando específico. Por algumas horas, o sonho da revolução brasileira parecia estar se realizando em meio a presença festiva de tantos corpos. Muitos sonhos de engajamento transitaram livres naquela noite sobre o teto de nosso Legislativo Federal. O poder ali se dobrou diante da subversão. Os políticos de Brasília ficaram acuados. Não seria possível aniquilar aquela massa ou nulificá-la. Tropas de choque correriam o risco
  • 91. 90s u m á r i o de um fracasso retumbante, mesmo se cumprissem uma possível missão temerária de dispersar aquela multidão, pois isso deixaria ainda mais fraturada a democracia brasileira. E se a contranulificação estava presente naquelas jornadas e particularmente na cobertura do Congresso, não era pela presença da massa ampla e irresistível ali presente, mas engendrada por corpos singulares que ao longo daquele mês de junho assumiram os sabores e os riscos de subverter a ordem e os comandos do poder. A contranulificação não pode constituir um movimento de massa ou de coletivos; sua atuação deve ser percebida micrologi- camente, insinuando-se em alguns pontos da gigantesca rede que deu forma e conteúdo ao Junho de 2013. No limite, haveria pelo menos um manifestante procurando fugir das capturas sociais, afrontando a ordem estabelecida, preo- cupando-se não apenas com a sua liberdade mas também com a do outro, sem dogmatismo e com a capacidade de pensar critica- mente as disputas e o teatro político existente naquele momento no país. No entanto, até o final daquelas jornadas, as manifestações de junho ficaram cada vez mais incompatíveis com a contranulificação, pois apesar de tudo o que foi feito de subversivo e libertário, Junho de 2013, afinal, acabou representando a porta de entrada para uma grande investida da extrema-direita brasileira. *** Nos primeiros dias daquele mês de junho, a grande mídia, desconfiada, tentou se comportar como a grande mídia sempre se comportou no Brasil e se esforçou para criminalizar as manifesta- ções, mas diante de um surpreendente apoio da “opinião pública”, ela voltou atrás. O repórter Datena e Arnaldo Jabor, notórios comu- nicadores de dois grandes canais de televisão, representaram bem
  • 92. 91s u m á r i o esse ponto de inflexão. Os dois tiveram que desfazer suas críticas, diante das câmeras, em rede nacional14 . Passado o susto, as grandes emissoras começaram a tratar as manifestações de uma forma positiva. Era preciso acompanhar a simpatia da classe média e dizer aquilo que ela queria ouvir, obje- tivando uma interlocução que lhe permitisse recobrir as manifesta- ções com novos significados. Era preciso dar aos manifestantes uma disciplina e, por isso, um trabalho sub-reptício, mas muito eficiente, começou a ser executado. Os protestos passaram a ser criticados apenas quando cometiam excessos, ou seja, quando, de alguma forma, amea- çavam a ordem burguesa com suas proclamações revolucioná- rias e sua resistência perante a atitude repressiva da polícia, que buscava restringir cada vez mais o fluxo do movimento. Mas o ato de protestar nas ruas ganhou grande publicidade, algo raro na grande mídia brasileira que, via de regra, costuma dar pouco ou nenhum espaço para movimentos sociais nas ruas. Mas ela deu essa publi- cidade porque o seu conteúdo revolucionário estava sendo substi- tuído por uma “atitude cívica”. Desta forma, Junho de 2013 se transformou em um fenô- meno midiático. O tema invadiu as residências das famílias brasi- leiras despertando grande comoção em uma configuração histórica marcada pela desqualificação da política tradicional, outro tema muito caro à grande mídia. Esta foi a sua grande descoberta durante aqueles anos: “a classe política brasileira é pouco qualificada”. Finalmente, com décadas de atraso, a grande mídia parecia ter descoberto que existiam problemas na política nacional. E quem fez essa “brilhante descoberta”, também teria encontrado um marco 14. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=7cxOK7SOI2k, https://www.youtube.com/watch?v=�- tOQkke7fzpA e https://www.youtube.com/watch?v=P8j_2Hb9FrM
  • 93. 92s u m á r i o para essa desqualificação: o início dos governos petistas. O Partido dos Trabalhadores teria inventado a corrupção no país. Mas se isso não pode ser levado a sério, como entender essa atitude dos meios de comunicação de massa? Que cinismo se escondia por trás dessa nova postura moralista? Levando-se em consideração as sucessivas vitórias eleitorais do PT (entre 2002 e 2014), o que aconteceu foi a constatação de que a oposição partidária aos governos petistas estava esvaziada. PSDB e PFL (hoje, DEM) estavam sem uma plataforma firme para enfrentar os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff . O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso teve que amargar um ostracismo provo- cado pelo seu próprio partido, que não tinha coragem de defender o legado de uma de suas mais influentes lideranças. Neste sentido, o que incomodou a grande mídia e seus patrocinadores não foi a falta de qualidade na política brasileira (que é um dado histórico e inequí- voco), e sim a baixa qualidade de seus representantes políticos no Congresso Nacional. Assim, a desqualificação da política que foi impulsionada nos últimos anos está ligada a essa constatação, de que politicamente a oposição teria pouca força para enfrentar os sucessivos governos petistas de uma forma mais enérgica. Desta forma, se os partidos políticos de oposição eram fracos, era preciso criar novas estraté- gias para desestabilizar os governos de Lula e Dilma. E para isso a grande mídia se encarregou de rebaixar maximamente os políticos e os seus partidos como nunca antes teve o interesse de fazer, numa estratégia que, em alguns anos, assumiu ares de uma (seletiva) “Cruzada” contra a corrupção. Isso explica porque na última década se deu tanta ênfase a juízes, procuradores, delegados da Polícia Federal... nos noticiários. São os “novos protagonistas” do cenário político brasileiro. Nunca aprendemos tantos nomes de agentes do judiciário como nos
  • 94. 93s u m á r i o últimos anos fomos levados a aprender. Eles estão diariamente em nossos televisores, potentes, heroicos e salvadores. Uma alternativa perfeita para uma oposição parlamentar sem carisma e impotente, que nem sequer conseguia arranhar a imagem dos governos do PT. Com esses novos protagonistas, a política poderia ser desqualifica sem constrangimentos, já que nenhum deles era político de carreira ou por formação. Estariam acima de qualquer suspeita. Tornou-se, então, uma questão de tempo relacionar as jornadas de junho à desqualificação dos políticos brasileiros. Para isso era preciso apropriar-se das manifestações, retirá-las de seu contexto inicial e imprimir nelas um novo sentido. Aquelas mani- festações precisariam perder seu caráter anticapitalista para se tornarem um grande movimento cívico e familiar, pois disso depen- deria o futuro do país. Foi para atender a esse chamado que a classe média foi para as ruas com as suas camisas verde-amarelas. Não foi pelo MPL e muito menos pelos black blocs. Foi pelo “desencanto com a classe política”, para salvar o país. Foi assim que Junho de 2013 foi deixando de ser um gesto de rebeldia juvenil, para tonar-se um evento missio- nário e potencialmente redentor; para tornar-se, enfim, a “Grande Marcha da Família com Deus pela Liberdade” de nossa época. Era o momento de “resgatar” antigos valores nacionais ou, como foi dito exaustivamente nos últimos anos, “passar o país à limpo”. Para Stuart Hall, uma nação só existe na medida em que ela pode ser representada e uma das formas privilegiadas pelas quais isso se torna possível é a partir daquilo que ele chama de a narrativa da nação. Por meio dela, a mídia pode fornecer “uma série de estó- rias, imagens, panoramas, cenários, eventos históricos, símbolos e rituais nacionais que simbolizam ou representam as experiências partilhadas, as perdas, os triunfos e os desastres que dão sentido à
  • 95. 94s u m á r i o nação”. Ainda segundo Hall, os homens e mulheres que compõem a nação podem compartilhar dessa narrativa, e a partir dela atribuir significado e importância para a sua monótona existência, conec- tando suas vidas cotidianas com o destino nacional. De certa forma, foi assim que as manifestações foram apre- sentadas para a “tradicional família brasileira”. “O gigante acordou!”, anunciava a grande mídia e isso tornou-se irresistível. Como não querer se envolver com esse grande acontecimento? Participar daquelas grandes manifestações de rua significava fugir de uma existência ordi- nária e se sentir responsável pelo destino da nação brasileira. Foi assim que a classe média, representando a família tradi- cional brasileira, ocupou as ruas, disputando espaço com os corpos rebeldes dos primeiros dias e com militantes partidários de bandeiras em punho que buscavam seu espaço naquele grande acontecimento. O sentido inicial das manifestações, portanto, começou a se perder. Os movimentos sociais que desencadearam as jornadas de junho não estavam preparados, nem teórica nem metodologica- mente, para lidar com um acontecimento tão rico em possibilidades e entre os dias 17 e 19 tudo já parecia diferente. Muitas pautas surgiram, muitas das quais, confusas e contraditórias entre si. No dia 19 de junho, o governador do Estado de São Paulo, Geraldo Alckmin, e o prefeito Fernando Haddad voltaram atrás e anunciaram que não haveria mais o aumento no preço das passagens. Em determinado momento, o MPL declara que não vai mais fazer novas convocações, mas as manifestações não param. O movimento torna-se uma espécie de “patrimônio da sociedade brasileira” e não de grupos políticos. Essa é uma qualificação vaga que a grande mídia triunfante ostenta como um troféu. As novas e confusas pautas diferem completamente da questão do direito à cidade, consubstanciada na questão dos
  • 96. 95s u m á r i o preços e qualidade dos transportes públicos no país. Surgem novas demandas, cada vez mais alheias aos movimentos sociais que deram início àquelas jornadas. A evidente demanda anticapitalista do começo, foi perdendo espaço para um movimento cívico que lembrava o tacanho nacionalismo cultivado no Brasil do final do século XIX, quando ser um bom cidadão era não ver contradições na sociedade brasileira, desde que todas as normatividades fossem respeitadas, em benefício, é claro, do homem branco, cristão, heterossexual e burguês. Foi o estopim para um verde- amarelismo disposto a ir até as últimas consequências para forçar uma alternância de poder. Era o começo do processo que desencadeou a queda de Dilma Rousseff. O poder, portanto, se revelou em junho de 2013 menos pela sua capacidade de coerção do que pela sua criatividade. Depois de condenar e tentar jogar a “opinião pública” contra as manifes- tações, a grande mídia triunfante passou a noticiar manifestações cada vez mais parecidas com aquilo que desejavam seus patro- cinadores: uma legião cada vez maior de sujeitos com formação política duvidosa, que se colocavam contra os partidos políticos e contra a esquerda e, o que era mais importante, que estavam abso- lutamente pautados pelos grandes veículos de comunicação. As diversas pautas que passaram a estar presentes nas mani- festações haviam sido debatidas exaustivamente pelos maiores jornais diários do país nos meses que antecederam as jornadas de junho, algumas chegando a ser tratadas em reportagens tidas como especiais, dessas que são divididas em partes durante mais de um dia. O próprio Arnaldo Jabor15 , que se tornou, nos primeiros dias, uma persona non grata ao dizer que os manifestantes “não valiam 15. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=nhtBbN9an2o
  • 97. 96s u m á r i o nem vinte centavos”, acabou sugerindo que a revolta se voltasse também contra a PEC-37, o que acabou acontecendo. A quem interessava esta pauta naquelas manifestações? O que era a PEC 37? Muitos manifestantes bradavam palavras de ordem contra a proposta sem ter a menor ideia sobre o seu conteúdo ou o seu significado político naquele momento. Houve, portanto, uma gradativa apropriação daquelas manifestações em favor de uma agenda política de direita. Nesse caso, combater a PEC 37 era ser contra a tentativa de tornar privativo das polícias civil e federal o poder de investigação criminal, retirando essa prerrogativa de órgãos como o Ministério Público. Combater a PEC 37, portanto, significava apoiar, ainda em 2013, a formação de um aparato jurídi- co-policial que, algum tempo depois, acabou “supliciando em praça pública” o Partido dos Trabalhadores e praticamente só ele, pois a exemplo do que fez a operação Lava Jato, quando outros partidos eram envolvidos nas suas investigações, os mesmos não recebiam a mesma exposição midiática que o PT. *** Surgiram assim as condições apropriadas para o surgimento de slogans como “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, que fez parte da campanha vitoriosa do presidente Jair Bolsonaro, pois as jornadas de junho, com o surgimento do verde-amarelismo, conver- tido numa espécie de “onda conservadora”, passaram a proclamar o apartidarismo como princípio fundamental e a bandeira nacional como único símbolo permitido (“Nossa bandeira jamais será vermelha!”). Numa conjuntura como essa, sempre mais expansiva, foi a esquerda que acabou perdendo espaço nas ruas. Como ela carrega bandeiras e grita suas proclamações orgulhosamente, os seus partidos e coletivos foram logo identificados e interditados. Muitos militantes foram obrigados a baixar suas bandeiras ou tiveram suas
  • 98. 97s u m á r i o bandeiras rasgadas. Por outro lado, mais dissimulada, ninguém conseguia identificar com a mesma facilidade a agenda política da direita, ou mesmo da extrema-direita, presente nas grandes mani- festações daquela época. É certo que houve disputas nas ruas pelo significado do movimento. Se de um lado bradavam “SEM PARTIDO!”, do outro, ouvia-se uma acusação como resposta: “FASCISTAS!”. Corpos rebeldes ainda tentaram recuperar o sentido libertário dos primeiros dias, mas não havia o que recuperar. As manifestações das últimas semanas já pertenciam a um outro movimento. A própria tentativa de interdição contra os corpos-militantes-partidários nas ruas seria uma explícita demonstração de que o caráter rebelde, libertário e altruísta do Junho de 2013 durou, talvez, menos que duas semanas. A direita brasileira, afinal, se apropriou daquelas jornadas. Se passou a existir um acontecimento novo na política brasileira após 2013 foi o retorno da direita às ruas. Pelo menos desde as Grandes Marchas da Família com Deus pela Liberdade, em 1964, ela não se sentia tão à vontade e triunfante nos espaços públicos, bradando suas palavras de ordem. Foi assim que ela foi construindo em 2014, 2015 e 2016, a queda da ex-presidenta Dilma Rousseff. Enquanto isso, a esquerda brasileira ficava acuada, com pouca capacidade de mobilização. E agora, depois do governo de Michel Temer e da eleição de Jair Bolsonaro, podemos perceber a ascensão de uma extrema direita ao poder, com sua agenda neoliberal nada generosa, prome- tendo a nulificação de minorias e agir com força contra a esquerda. O legado do movimento de junho de 2013 para movimentos progres- sistas foi, portanto, mínimo. Para além do exemplo que nos permite acreditar que um grande movimento de massa ainda é possível no país e que diante dele é possível envergar o poder, poucas contri- buições suas jornadas nos deixaram, quase nada.
  • 99. 98s u m á r i o E como já foi dito, outro movimento como esse de 2013 não pode ser engendrado pela contranulificação. Ela não pode ser massificada. Mas ela pode dar uma importante contribuição para qualquer esforço libertário. Como ela não se compromete com projetos de tomada de poder, ela pode ser encarada como um exer- cício de reflexão permanente que aponte para os riscos não apenas do poder constituído e institucionalizado, mas também os riscos de qualquer estratégia que se coloque contra o establishment, riscos não devidamente reconhecidos. Neste sentido, a contranulificação não acompanha a contra- cultura quando esta se ausenta dos debates públicos. Ela não estimula o desejo de se viver em “comunidades alternativas”. A contranulificação é atrevida e combativa. Ela procura desnatura- lizar a sociedade disciplinar, sobretudo a sua classe média, com os seus preconceitos e microfascismos. Aproxima-se dos movimentos da esquerda e de seus militantes, mas ainda assim uma aproxi- mação cautelosa por conta de suas visões, às vezes, excessiva- mente esquemáticas.
  • 100. 99s u m á r i o DIÁRIO DE BORDO: APONTAMENTOS PARA UMA NARRATIVA A primeira vez em que pensei na contranulificação como um conceito possível foi em 2014, quando li A ética da nulificação, um texto de Frederico Osanan. O texto atraiu por me fazer pensar a respeito dos limites e possibilidades para a liberdade. Até onde se pode ir diante de questões morais, religiosas e políticas? Essas e outras reflexões há muito ocupam meu pensamento, não apenas para produzir academicamente, mas como um dilema fundamental de minha existência, talvez como resultado de uma formação cheia de desvios e contradições, que se inicia com uma forte influência do catolicismo, que vinha de minha avó; do sindicalismo de esquerda, de meu pai e dos ídolos roqueiros de minha adolescência. Na época em que descobri “A ética...”escrevia para o jornal O Bembém (em Parnaíba-PI), onde até recentemente mantinha uma coluna chamada Saliências e fiquei tão sensibilizado pela leitura que resolvi mudar meus planos. Minha coluna não se chamaria mais Saliências e nem escreveria o tipo de crônica que nela publicava. Criei a coluna Contranulificação, onde por alguns meses procurei escrever sobre temas desconcertantes, como o massacre na sede do jornal Charlie Hebdo, a realidade política no Brasil que ante- cedeu o impeachment de 2016 e o que eu chamei de “fordismo acadêmico”. Para isso, procurei utilizar uma escrita diferente, na qual tentava reunir o formalismo de um texto dissertativo, com a liberdade da linguagem poética. Minha inspiração imediata eram os textos que o tropicalista Torquato Neto escrevia. Sua escrita era subversiva não apenas por denunciar a caretice e o autoritarismo da sociedade, mas também por provocar a gramática e os bons costumes, utilizando apenas letras minúsculas e uma série de gírias. Não gostei do resultado e logo abandonei o projeto. Mas qual seria a minha motivação para pensar essa tal contranulificação?
  • 101. 100s u m á r i o Teria alguma ambição acadêmica? Penso que sim. No fundo queria encontrar uma alternativa para contracultura, tentando resolver, com isso, alguns problemas conceituais, políticos e comportamentais que, na minha opinião, estavam relacionados a esse conceito. Desde cedo, a ideia de uma cultura juvenil que desafiasse as ordens de uma sociedade disciplinar me interessou. Lembro, por exemplo, que assisti ao filme Hair antes de meus dez anos de idade e me senti bastante seduzido pelo estilo de vida do hippie Berger, representado pelo ator Treat Williams, e seus amigos. Lembro inclu- sive de meu sofrimento silencioso depois que Berger morreu. Mas não lamentei a morte de um personagem, como qualquer aficionado por cinema faria, me entristeci porque realmente acreditei que um sujeito cativante, alegre e corajoso havia perdido a sua vida, tamanha era a ingenuidade que me fazia confundir um ator com o seu personagem. Passei quase vinte anos com a lembrança desse filme, sem lembrar o seu nome ou qualquer informação a seu respeito, até que um dia, numa locadora, vi por acaso a caixa de uma fita de VHS na prateleira. Quando olhei para as cores, roupas e a postura dos personagens minha memória foi estimulada e de súbito soube que havia reencontrado aquele filme. Então, apenas alguns anos depois de meus primeiros e mal compreendidos contatos com a contracultura, quando a descoberta se dava de forma dispersa, por acompanhar algumas bandas de rock ou assistir a filmes, fui entender o que significava esse universo; sobretudo na época em que era um mestrando, estudando os movi- mentos juvenis dos anos de 1960. Nessa época, comecei a entender e a me interessar ainda mais pela história e significados da contracul- tura. Mas passados alguns anos e com um pouco mais de leitura a respeito do tema, identifiquei alguns aspectos problemáticos. Em primeiro lugar, poderia citar a imprecisão do conceito “contracultura”, que permite, por exemplo, que se inclua num
  • 102. 101s u m á r i o mesmo universo, personagens tão diversos quanto o filósofo Sócrates, Jack Kerouac e Mick Jagger16 . Segundo, que a recusa tipi- camente contracultural contra as estruturas da sociedade burguesa, naquilo que ela cultiva como tradição ou deseja como progresso, muitas vezes serviu de pretexto para atitudes meramente egoístas e escapistas por parte da juventude. E terceiro, que a contracultura, de forma recorrente, ensejou excessos que resultaram na morte ou debilitação física de muitos jovens, incluindo nesta contagem, inúmeros ídolos juvenis bastante conhecidos. No entanto, não conseguia fazer uma crítica adequada e logo percebi que ao usar o conceito de contranulificação eu ainda estava preso ao de contracultura, alimentando o engano de que a novidade compensaria os incômodos indicados. Mas estava longe de ser capaz de apresentar um argumento satisfatório. Usava apenas um novo nome para um objeto velho, na esperança de que isso, por si só, exorcizasse os equívocos cometidos em nome da contracultura. Então abandonei a contranulificação por um tempo. E o que se entende por contracultura? Genericamente, ela seria um tipo de racionalidade libertária contrária a qualquer ordem social que se baseasse no controle e na exploração do homem pelo homem. Segundo Ken Goffman e Dan Joy, um homem pela contra- cultura deveria ser livre para se transformar e se expressar da forma que melhor lhe conviesse. Não haveria, assim, regras ou programas para seguir. No âmbito da Contracultura, poderíamos, então, incluir os beatniks, os hippies, Charles Bukowski, Caetano veloso (dos anos de 1960 e 1970), Cazuza, Raul Seixas... Mas algum tempo depois de ter abandonado a ideia da “contranulificação”, em 2016, comecei a orientar um trabalho de conclusão de curso que me daria importantes insights. Minha 16. A exemplo do que faz o livro Contracultura através dos tempos, de Ken Goffman e Dan Joy.
  • 103. 102s u m á r i o orientanda queria falar sobre a violência contra as mulheres na cidade de Parnaíba-PI. E para isso, queria investigar os boletins de ocorrência arquivados na Delegacia da Mulher daquele município. Seu interesse era investigar casos de agressões domésticas. Mas era uma pesquisa que iria praticamente repetir os passos de outras que já haviam sido realizadas na cidade e então sugeri que ela procurasse agressões contra as mulheres em espaços onde menos se imagina que elas pudessem ocorrer e indiquei a leitura do livro On the road, de Jack Kerouac. Queria que ela pensasse dife- rentes tipos de violência em lugares menos prováveis. E o que seria mais improvável do que atitudes sexistas e misóginas em um dos principais símbolos da contracultura mundial? De repente, eu havia encontrado uma oportunidade para colocar em questão uma contradição que há muito me incomodava em On the road. A despeito da obra ter despertado o desejo por liberdade em jovens espalhados pelo mundo todo, oferecendo a imagem clássica do viajante com uma mochila surrada nas costas, se deslocando sem muito planejamento ou condições financeiras, as suas personagens mulheres são limitadas psicologicamente e espacialmente. Elas não apenas são coadjuvantes na obra, como suas participações são valorizadas na medida em que elas aten- diam aos desejos dos homens. Enfim, com a conclusão da monografia Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais?, voltei minha atenção para a ideia da contranulificação, agora com um ponto de partida para as minhas reflexões anteriores, um argumento para criticar a contracultura. A partir da constatação de que ela seria uma expressão eminentemente masculina, que pouco espaço oferece para a manifestação das mulheres em primeira pessoa, perpetu- ando, assim, a mesma lógica das sociedades burguesas que tanto procurava afrontar, eu poderia afinal começar a questionar o seu
  • 104. 103s u m á r i o caráter libertário. Do ponto de vista metodológico, portanto, eu teria a partir de então uma problemática. Como situar a contranulificação em relação à contracultura e à nulificação? E se por um lado Michel Foucault nos permite pensar a nulifi- cação como uma filha dileta das técnicas sofisticadas de disciplina- mento reveladas por ele em Vigiar e punir, por outro, o seu conceito de liberdade me parece muito atraente. Em A ética do cuidado de si como prática da liberdade, Foucault nos fala da impossibilidade de uma liberdade completa. Defende essa tese por entender que o poder não se manifesta em nossa sociedade a partir de um centro, mas dentro de uma complexa rede de micropoderes. E nos diferentes pontos desta rede, um sujeito poderia ocupar posições diferentes, dependendo do tipo de relação que ele estabelece. Sua condição, por exemplo, poderia ser desfavorável diante de uma autoridade judicial ou de seu patrão, mas em sua casa já poderia se tornar alguém auto- ritário diante da esposa e dos filhos. Os micropoderes, portanto, em determinado momento, podem se manifestar numa condição desfavorável, em outro, já poderiam permitir vantagens ao sujeito. Assim, nós nunca nos libertaríamos totalmente, na medida em que novas relações de poder, nesta complexa rede, estariam sempre sendo criadas ao lado de novas relações de sujeição. A liberdade, então, estaria em um exercício ininterrupto de resistência. Foucault fala em “práticas de liberdade” que seriam importantes para que aquele que pretende se libertar possa não apenas romper com um grilhão imediato, mas estar sempre atualizando formas aceitáveis e satisfatórias para a sua própria existência. Seriam elas que poderiam controlar as novas relações de poder que surgiriam ininterruptamente. Liberdade para Foucault, portanto, não seria um estado, mas uma ética, o que exigiria uma prática refletida dessa liberdade, ou seja, exigiria um ocupar-se de si mesmo, tendo em
  • 105. 104s u m á r i o mente que a sujeição não vem apenas de fora do sujeito, mas também de dentro, por meio dos apetites que podem arrebatá-lo. Por isso ele afirma que “ser livre significa não ser escravo de si mesmo nem dos seus apetites, o que implica estabelecer consigo mesmo uma certa relação de domínio, de controle, chamada de arché ­– ­poder, comando”. Mas Foucault afirma que, neste caso, o homem livre deveria não apenas ocupar-se de si mesmo, mas que também deveria ser capaz de se conduzir de forma adequada em relação ao outro. Nem ser escravo de si mesmo, nem escravizar aqueles que estão à sua volta. Essa ideia foi decisiva para as minhas reflexões, porque agora teria como pensar em que medida o conceito de contranulificação poderia dar respostas satisfatórias aos problemas relacionados à contracultura. Esta compreende, de modo geral, sujeitos e práticas que criam espaços próprios, à margem daquilo que se entende por establishment e nesses espaços alternativos espera-se criar um reflexo invertido das sociedades burguesas: se nestas existe o ódio, naqueles espaços existiria o amor; se existisse a guerra, a alterna- tiva a isso seria a paz; se existisse a prisão; seria interessante criar a liberdade, e assim por diante. O problema que procuro apontar é que a contracultura, neste sentido, foi preguiçosa. Nos espaços alternativos criados por ela, não houve uma prática refletida de liberdade, houve acomodação, e por consequência disso surgiram velhas e novas formas de nuli- ficação. E o mais contraditório é que essas práticas de nulificação realizadas dentro desses espaços alternativos, ao invés de serem denunciadas, são normalmente acolhidas e celebradas como se devessem fazer parte de um inventário de atitudes juvenis valori- zadas como subversivas e não convencionais; valorizadas, enfim, como uma afronta às subjetividades mais tradicionais.
  • 106. 105s u m á r i o É o caso do comportamento de Sal Paradise e Dean Moriarty, os personagens de On the road. Raramente o tratamento gros- seiro que dispensam às mulheres desperta críticas que abalassem a condição deles como símbolos da contracultura. Ao contrário, suas atitudes há muito se consolidaram como uma espécie de comportamento apropriado para alguém disposto a romper com as normas sociais tradicionais; alguém que não aceita disciplinas, um corpo indócil num mundo de gente obediente. Se eles agridem suas mulheres é porque elas seriam lentas, “burras” e tradicionais, e esse comportamento, que em outros espaços certamente seria definido como “machista”, de forma tácita tem sido aceito no âmbito da contracultura por mais de meio século. Para citar outro exemplo, poderíamos lembrar que o cantor Raul Seixas definhou seu corpo por causa dos seus excessos com o álcool. Seus últimos shows foram apresentados por um simulacro malfeito, por alguém com o pensamento e movimentos bastante comprometidos. Muitos fãs, nestes shows, cultuavam um espectro. Os discursos e práticas libertários dos primeiros anos de sua carreira foram projetados em uma forma oca, enquanto o seu alcoolismo se tornava apenas mais um capítulo de uma mitificação. Não era percebido como um sério problema de saúde, seria simplesmente mais uma das “maluquices” do “Maluco Beleza”. E isso não configura uma exceção. Romantizar atitudes auto- destrutivas de ídolos contraculturais já se tornou comum. Diante da constatação de que Janis Joplin, Jimi Hendrix e Jim Morrison morreram aos vinte e sete anos de idade, pensa-se, antes de mais nada, na coin- cidência do fato, como se isso fosse um elemento de alguma deslum- brante cosmologia ou o capítulo de uma hagiografia underground, e não uma tragédia pessoal que se abateu sobre esses jovens.
  • 107. 106s u m á r i o A banda paulista Ira! criticou esse comportamento autodes- trutivo que, de forma perigosa, muitas vezes é associado às noções de liberdade, coragem e subversão. Diz a música Flerte Fatal: Tanta gente hoje descansa em paz/ Um rock star agora é lenda/ esse flerte é um flerte fatal/ Esse flerte é um flerte fatal/ Que vai te consumir/ Em busca de um prazer individual/ Esse flerte é um flerte fatal/ É sempre gente muito especial/ Quanta gente já ultrapassou/ A linha entre o prazer e a dependência/ E a loucura que faz/ O cara dar um tiro na cabeça/ Quando chega o além/ E os pés não tocam mais no chão/ Esse flerte é um flerte fatal [...]. Já a contranulificação poderia ser entendida com um sentido mais restrito. Ela não cria um lugar próprio para si, sujeito à códigos e valores particulares, como o que acontece com a contracultura. Enquanto uma afronta consciente a técnicas de disciplinamento próprias de um establishment, ela atua sempre no lugar do outro, como a tática na perspectiva de Michel de Certeau, outro conceito do qual a contranulificação é tributária. A contranulificação, portanto, representa o desejo de fugir das capturas sociais, mesmo diante da impossibilidade da fuga total e deve ser pensada como uma prática pontual e não uma condição permanente. Desta forma, um sujeito pode contranulificar-se num instante e no instante seguinte, nulificar-se ou o que é pior, nulificar o outro, como no drama pessoal de Raul Seixas ou no exemplo de Sal Paradise e Dean Moriarty. Além disso, diferente da contracultura, que normalmente é vivenciada por um grupo muito particular de pessoas, a contranuli- ficação poderia representar o comportamento libertário de qualquer sujeito, independentemente de suas opções políticas ou compor- tamentais, pois sendo uma prática e não uma condição, não impli- caria numa inscrição definitiva no corpo de ninguém. O hippie pode praticar a contranulificação tanto quanto o militante de esquerda que acredita na revolução comunista.
  • 108. 107s u m á r i o SOBRE OS AUTORES Frederico Osanam Amorim Lima Historiador. Especialista e Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Doutor em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Pós-doutor em Sociologia pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto/ Portugal (FLUP). Professor do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da Universidade Federal do Piauí. Autor de “Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça: Glauber Rocha e a invenção do cinema brasileiro moderno” (Editora Prismas, 2015). Idelmar Gomes Cavalcante Júnior Doutor em História Social. Coordenador do grupo de pesquisa “Juventude Cultura e Identidade” – JUCI (Lattes/ CNPQ), há mais de uma década vem se dedicando a estudar os movimentos juvenis brasileiros, com especial interesse naqueles que ocorreram nos anos sessenta e setenta do século passado. Tal interesse se revela nos vários trabalhos que realizou nos últimos anos como orientador de trabalhos acadêmicos (trabalhos de conclusão de curso, iniciação científica e projetos de extensão universitária) e como pesquisador. Suas pesquisas mais relevantes foram dedicadas ao estudo do movimento estudantil brasileiro de 1968 e do teatro pernambucano dos anos sessenta. E nos últimos dois anos vem trabalhando na elaboração do conceito de “Contranulificação
  • 109. 108s u m á r i o A adolescência 99 agressão 57 amedronta 8 androides 62, 63, 64, 65 anticapitalista 93, 95 anulam 13, 25, 28 artista 22, 23, 24 assujeita 8, 11 assujeitamento 9, 10 a-sujeitado 13, 16, 17 atitude 47, 48, 49, 53, 55, 60, 64, 66, 71, 91, 92 autodestruição 49 B banalização 58 burgueses 67 C capitalista 47, 67 catolicismo 99 cidade 25, 29, 30, 31, 62, 68, 72, 75, 77, 83, 85, 86, 87, 88, 89, 94, 102 cinismo 50, 92 clandestinos 58 classe 67, 69, 74, 75, 80, 82, 91, 93, 94, 98 condicionamento 71 contracultura 51, 52, 53, 55, 98, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106 Contracultura 47, 51, 101 contranulificação 10, 48, 53, 56, 58, 61, 65, 73, 74, 80, 83, 84, 86, 87, 90, 98, 99, 101, 102, 103, 104, 106 controla 8, 79 controle 9, 18, 25, 79, 101, 104 corpo 13, 14, 16, 18, 22, 23, 24, 28, 33, 39, 40, 45, 49, 50, 54, 59, 60, 66, 67, 77, 78, 79, 80, 82, 83, 85, 86, 87, 105, 106 corpos 9, 13, 18, 22, 30, 38, 49, 59, 60, 78, 79, 82, 83, 85, 86, 89, 90, 94, 97 crime 13, 14, 15, 32, 33, 34, 58 cristão 79, 80, 95 cultura 7, 51, 52, 55, 67, 100 cultural 10, 71, 72, 83 D democracia 90 denunciar 99 depressão 44 desejo 7, 8, 9, 10, 11, 22, 43, 44, 47, 53, 54, 60, 77, 88, 98, 102, 106 desenvolvimento 40, 67 Deus 40, 76, 93, 96, 97 direita 89, 90, 96, 97 direito 27, 36, 39, 40, 87, 89, 94 disciplina 29, 48, 58, 59, 60, 72, 74, 75, 79, 91 discurso 29, 34, 40, 60, 61 Discurso 25, 26 ditador 20, 36 dor 8, 16, 22, 23, 31 E Édipo 40, 42 emancipação 45, 81 esquerda 57, 61, 67, 72, 89, 95, 96, 97, 98, 99, 106 ética 8, 9, 11, 15, 22, 26, 99, 103 existência 7, 8, 11, 27, 29, 32, 39, 40, 42, 43, 44, 62, 64, 65, 72, 78, 83, 94, 99, 103 ÍNDICE REMISSIVO
  • 110. 109s u m á r i o experiência 26, 29, 58, 64, 75, 76, 86, 87 exploração 67, 81, 101 expressão 9, 32, 51, 53, 77, 102 F filosofia 45, 80, 81 fome 22, 23, 24 força 15, 16, 20, 21, 26, 27, 30, 33, 34, 62, 63, 92, 97 fracos 25, 50, 92 frustação 43, 44 frustração 44, 54 G gênero 55 governo 37, 57, 58, 97 greve 68, 69, 70, 74, 82 H hippie 61, 75, 77, 78, 100, 106 história 9, 16, 19, 30, 34, 35, 41, 47, 100 história humana 9 homem 14, 16, 17, 22, 23, 28, 32, 33, 36, 37, 39, 40, 44, 47, 55, 61, 67, 73, 75, 77, 78, 79, 81, 84, 86, 87, 95, 101, 104 homens 8, 21, 25, 29, 30, 31, 34, 40, 47, 48, 53, 54, 55, 58, 62, 63, 65, 66, 69, 76, 87, 94, 102 hostilidade 57 humanidade 15, 63, 81 humano 7, 8, 11, 33, 40, 63, 71, 76, 78, 79, 84 humanos 7, 8, 27, 58, 62, 63, 66, 84 I ideais 59 identidade 44, 67, 71, 72 identidade cultural 71 imobilismo 11 indiferença 33, 34, 76 indignação 37, 38 influência 66, 99 instituição 20, 25 intelectualidade 67 J jornadas 88, 90, 93, 94, 95, 96, 97 jovens 48, 53, 57, 58, 59, 87, 88, 101, 102, 105 julgamento 25, 34, 35 justiça 13, 38, 49 L lei 14, 15, 16, 20, 34, 37, 38, 39, 62, 66 liberdade 14, 17, 25, 29, 30, 43, 44, 45, 48, 52, 53, 55, 56, 61, 62, 73, 83, 87, 90, 99, 102, 103, 104, 106 libertário 90, 97, 98, 103, 106 livre 38, 43, 44, 45, 51, 61, 71, 88, 101, 104 loucura 14, 37, 48, 49, 106 luta 10, 15, 51, 58, 59, 61, 63, 64, 67, 69, 89 M manifestações 45, 51, 57, 88, 90, 91, 93, 94, 95, 96, 97 maquínicos 9 massa 9, 15, 61, 73, 89, 90, 92, 97 massacre 99 medo 13, 17, 18, 21, 25, 28, 36, 39, 63, 64, 65, 69, 72, 74, 82 metáfora 30, 31, 41, 57, 65, 66 microfascismos 74, 98 micropoderes 69, 103 mídia 88, 90, 91, 92, 93, 94, 95 militante 59, 60, 61, 69, 74, 106
  • 111. 110s u m á r i o militantes 58, 59, 61, 94, 96, 97, 98 misóginas 102 mito 11, 40, 41, 51 modernidade 40, 41, 71, 76 moral 13, 15, 21, 32, 34, 55, 80 morro 67, 68, 71, 72, 73 morte 7, 9, 11, 25, 29, 33, 34, 39, 42, 48, 64, 65, 66, 71, 100, 101 movimento 20, 25, 61, 64, 69, 78, 88, 89, 90, 91, 93, 94, 95, 97, 98, 107 mudanças 25, 51 mulher 33, 55 N nada 9, 14, 16, 23, 37, 44, 45, 49, 64, 75, 78, 80, 97, 105 nadificação 9 narrativa 19, 30, 34, 35, 38, 63, 68, 71, 75, 93, 94 natureza 51, 57, 71, 72, 83, 84 niilismo 9 nulificação 8, 9, 11, 13, 14, 15, 31, 32, 37, 47, 72, 74, 81, 97, 99, 103, 104 nulificado 13, 28, 32, 33, 34, 47, 72 nulificar 15, 56, 66, 73, 86, 106 O obediência 26 ódio 63, 65, 84, 104 opressão 18, 26, 36, 37, 39, 43 opressor 13, 26, 36, 39, 40, 73 ordem 7, 10, 48, 49, 57, 58, 61, 62, 66, 90, 91, 96, 97, 101 ordem social 10, 58, 66, 101 P pacifismo 51 padrão 13, 15, 23, 29, 68, 75 pai 26, 34, 36, 37, 40, 41, 42, 55, 68, 69, 70, 71, 74, 99 paz 10, 64, 104, 106 personagem 13, 19, 42, 54, 68, 72, 73, 77, 100 pobres 19, 24 poder 9, 11, 13, 16, 18, 20, 21, 25, 26, 31, 32, 36, 37, 38, 42, 45, 47, 53, 58, 79, 82, 89, 90, 95, 96, 97, 98, 103, 104 política 59, 83, 87, 89, 91, 92, 93, 95, 96, 97, 99 políticos 88, 89, 92, 93, 94, 95, 100 progresso 40, 101 protestos 91 psicologia 40, 59 pune 8, 15 puritana 49 R racionalidade 51, 75, 101 reagir 38 realidade 13, 43, 45, 63, 73, 81, 99 recursos 88 regra 14, 23, 91 relações de poder 79, 103 repressão 57, 89 resistência 57, 91, 103 revolução 28, 51, 52, 57, 72, 83, 89, 106 ricos 24 roqueiros 99 S sentido 8, 11, 17, 31, 32, 42, 44, 52, 56, 65, 72, 74, 75, 80, 92, 93, 94, 97, 98, 104, 106 sentimental 29 sentimento 42, 44 ser 7, 8, 9, 10, 11, 13, 14, 15, 17, 20, 21, 22, 23, 24, 34, 36, 37, 40, 42, 43, 44, 45, 47, 49, 50, 51, 52, 53, 55, 56, 57, 60, 61, 62,
  • 112. 111s u m á r i o 63, 64, 65, 66, 67, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 83, 84, 86, 87, 90, 91, 92, 93, 95, 96, 98, 101, 103, 104, 106 ser humano 7, 11, 63, 71, 76, 78 sexistas 102 silêncio 25, 26, 58, 65 símbolos 53, 55, 93, 102, 105 sindicalismo 99 sistema 27, 29, 34, 36, 37, 38, 47, 52, 67, 69, 72, 73, 74, 82 social 10, 15, 26, 34, 36, 37, 38, 48, 52, 58, 63, 66, 69, 71, 72, 74, 79, 85, 87, 89, 101 sociedade 9, 20, 30, 32, 43, 47, 48, 49, 50, 53, 55, 58, 60, 63, 66, 71, 74, 79, 80, 94, 95, 98, 99, 100, 101, 103 sofrimento 28, 31, 100 subjetividades 13, 31, 47, 73, 104 subordina 8 subversão 61, 89, 106 subversiva 99 suicidas 48 sujeitado 8, 13, 16, 17 T tabu 49 tédio 10, 33 tempo 7, 10, 17, 18, 22, 25, 28, 29, 30, 31, 41, 48, 53, 62, 65, 74, 75, 76, 77, 78, 79, 80, 82, 83, 84, 85, 93, 96, 101 totalitarismo 29 trabalho 8, 10, 22, 23, 25, 27, 28, 33, 55, 70, 74, 75, 79, 82, 87, 91, 101 tradição 30, 101 tragédia grega 42 tropicalista 99 U universo 20, 23, 26, 29, 33, 36, 39, 40, 52, 100, 101 V vazio 9, 32, 44, 63 verdade 14, 34, 41, 47, 58, 72, 73, 80, 81 vida 8, 9, 10, 11, 13, 17, 19, 23, 25, 27, 29, 30, 38, 44, 48, 49, 52, 53, 57, 58, 59, 62, 63, 64, 65, 66, 68, 70, 72, 73, 74, 75, 81, 82, 100 vigia 8 violência 16, 17, 55, 58, 60, 61, 66, 84, 102