Pequeno Tratado das Grandes Virtudes
De André Comte-Sponville
Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1999
Tradução de Eduardo Brandão

3
A prudência
A polidez é a origem das virtudes; a fidelidade, seu princípio; a prudência, sua condição.
Será ela mesma uma virtude? A tradição responde que sim, e é o que cumpre explicar
em primeiro lugar.
A prudência é uma das quatro virtudes cardeais da Antiguidade e da Idade Média. É a
mais esquecida, talvez. Para os modernos pertence menos à moral do que à psicologia,
menos ao dever do que ao cálculo. Kant já não via nela uma virtude: é apenas amor a si
esclarecido ou hábil, explicava, não condenável, decerto, mas sem valor moral e sem
outras prescrições que não sejam hipotéticas. É prudente cuidar da saúde, mas quem
veria nisso um mérito? A prudência é vantajosa demais para ser moral; o dever, absoluto
demais para ser prudente. No entanto, não é seguro que Kant seja aqui o mais moderno,
nem o mais justo. Porque ele concluía que a veracidade é um dever absoluto, em todas
as circunstâncias (inclusive – é o exemplo que dava – quando assassinos perguntam a
você se seu amigo, que eles perseguem, está refugiado em sua casa) e quaisquer que
sejam suas conseqüências: é melhor faltar com a prudência do que faltar com seu dever,
nem que seja para salvar um inocente ou a si mesmo! É o que não podemos mais
aceitar, parece-me, por não acreditarmos muito nesse absoluto para sacrificar a ele
nossa vida, nossos amigos ou nossos semelhantes. Essa ética da convicção, como dirá
Max Weber, até nos apavoraria: o que vale o caráter absoluto dos princípios, se é em
detrimento da simples humanidade, do bom senso, da doçura, da compaixão?
Aprendemos a desconfiar também da moral, tanto mais quanto ela se crê mais absoluta.
À ética da convicção, preferiremos o que Max Weber chama de ética da responsabilidade,
a qual, sem renunciar aos princípios (como poderia?) também se preocupa com as
conseqüências previsíveis da ação. Uma boa intenção pode levar a catástrofes, e a
pureza dos móbeis, ainda que confirmada, nunca bastou para impedir o pior; portanto
seria condenável contentar-se com ela. A ética da responsabilidade quer que
respondamos não apenas por nossas intenções ou nossos princípios, mas também pelas
conseqüências de nossos atos, tanto quanto possamos prevê-las. É uma ética da
prudência, e a única ética válida. Melhor é mentir à Gestapo do que lhe entregar um
judeu ou um resistente. Em nome de quê? Em nome da prudência, que é a justa
determinação (para o homem, pelo homem) desse melhor. É a moral aplicada, e o que
seria uma moral que não se aplicasse? As outras virtudes, sem a prudência, não
poderiam mais que revestir o Inferno com suas boas intenções.
Mas eu estava falando dos antigos. É que a palavra prudência é demasiado carregada de
história para não estar sujeita a equívocos; e, de resto, ela quase desapareceu do
vocabulário moral contemporâneo. O que não significa que não precisemos mais da
coisa.
Examinemos com maior cuidado o problema. Sabemos que os latinos traduziram por
prudentia a phronésis dos gregos e, especialmente, de Aristóteles ou dos estóicos. De
que se trata? De uma virtude intelectual, explicava Aristóteles, pelo fato de haver-se com
o verdadeiro, com o conhecimento, com a razão: a prudência é a disposição que permite
deliberar corretamente sobre o que é bom ou mau para o homem (não em si, mas no
mundo tal como é, não em geral, mas em determinada situação) e agir em
conseqüência, como convier. É o que poderíamos chamar de bom senso, mas que estaria
a serviço de uma boa vontade. Ou de inteligência, mas que seria virtuosa. É nisso que a
prudência condiciona todas as outras virtudes; nenhuma, sem ela, saberia o que se deve
fazer, nem como chegar ao fim (o bem) que ela visa. Santo Tomás bem mostrou que,
das quatro virtudes cardeais, a prudência é a que deve reger as outras três: a
temperança, a coragem e a justiça, sem ela, não saberiam o que se deve fazer, nem
como; seriam virtudes cegas ou indeterminadas (o justo amaria a justiça sem saber
como, na prática, realizá-la, o corajoso não saberia o que fazer de sua coragem, etc.),
assim como a prudência, sem elas, seria vazia ou não seria mais que habilidade. A
prudência tem algo de modesto ou de instrumental; ela se põe a serviço de fins que não
são os seus e só se ocupa com a escolha dos meios. Mas é isso que a torna
insubstituível: nenhuma ação, nenhuma virtude – em todo caso, nenhuma virtude em
ato – poderia prescindir dela. A prudência não reina (mais vale a justiça, mais vale o
amor), mas governa. Ora, que seria um reino sem governo? Não basta amar a justiça
para ser justo, nem amar a paz para ser pacífico; é preciso, além disso, a boa
deliberação, a boa decisão, a boa ação. A prudência decide e a coragem provê.
Os estóicos consideravam a prudência uma ciência (“a ciência das coisas a fazer e a não
fazer”, diziam eles), o que Aristóteles recusara legitimamente, pois só há ciência do
necessário e prudência do contingente. A prudência supõe a incerteza, o risco, o acaso, o
desconhecido. Um deus não a necessitaria; mas como um homem poderia prescindir
dela? A prudência não é uma ciência; ela é o que faz as suas vezes quando a ciência
falta. Só se delibera quando se tem escolha, em outras palavras, quando nenhuma
demonstração é possível ou suficiente. É então que é necessário querer não apenas o
bom fim, mas os bons meios que conduzem a ele! Não basta amar os filhos para ser bom
pai, nem querer o bem deles para fazê-lo. Amar, diria o humorista, não dispensa
ninguém de ser inteligente. Os gregos o sabiam, e talvez melhor do que nós. A phronésis
é como que uma sabedoria prática, sabedoria da ação, para a ação, na ação. No entanto,
ela não faz as vezes de sabedoria (de verdadeira sabedoria: Sophia), porque tampouco
basta agir bem para viver bem, ou ser virtuoso para ser feliz. Aristóteles tem razão, aqui,
contra quase todos os antigos: a virtude não basta mais à felicidade do que a felicidade à
virtude. A prudência é, porém, necessária a uma e à outra, e a própria sabedoria não
poderia prescindir dela. Sabedoria sem prudência seria sabedoria louca, e não seria
sabedoria.
Epicuro talvez diga o essencial: a prudência, que escolhe (pela “comparação e pelo
exame das vantagens e desvantagens”) os desejos que convém satisfazer e os meios
para satisfazê-los, é “mais preciosa até que a filosofia” e é dela que “provêm todas as
outras virtudes”. Que importa o verdadeiro, se não sabemos viver? Que importa a
justiça, se somos incapazes de agir justamente? E por que iríamos querê-la, se ela não
nos trouxesse nada? A prudência é como um saber-viver real (e não simplesmente
aparente, como a polidez), que também seria uma arte de desfrutar. Ocorre-nos recusar
numerosos prazeres, explica Epicuro, quando devem acarretar maior desprazer, ou
buscar determinada dor, se ela permitir evitar dores piores ou obter um prazer mais vivo
ou mais duradouro. Assim, é sempre pelo prazer que vamos, por exemplo, ao dentista ou
ao trabalho, mas por um prazer no mais das vezes posterior ou indireto (pela evitação ou
pela supressão de uma dor), que a prudência prevê ou calcula. Virtude temporal,
sempre, e temporizadora, às vezes. É que a prudência leva em conta o futuro, na medida
em que depende de nós encará-lo (nisso ela pertence não à esperança, mas à vontade).
Virtude presente, pois, como toda virtude, mas previsora ou antecipadora. O homem
prudente é atento, não apenas ao que acontece, mas ao que pode acontecer; é atento, e
presta atenção. Prudentia, observava Cícero, vem de providere, que significa tanto
prever como prover. Virtude da duração, do futuro incerto, do momento favorável (o
kairós dos gregos), virtude de paciência e de antecipação. Não se pode viver no instante.
Não se pode chegar sempre ao prazer pelo caminho mais curto. O real impõe sua lei,
seus obstáculos, seus desvios. A prudência é a arte de levar isso tudo em conta, é o
desejo lúcido e razoável. Os românticos, por preferirem os sonhos, torcerão o nariz. Os
homens de ação sabem, ao contrário, que não há outro caminho, mesmo para realizar o
improvável ou o excepcional. A prudência é o que separa a ação do impulso, o herói do
desmiolado. No fundo, é o que Freud chamará de princípio da realidade, ou pelo menos a
virtude que lhe corresponde: trata-se de desfrutar o mais possível, de sofrer o menos
possível, mas levando em conta as imposições e incertezas do real, em outras palavras
(tornamos a encontrar a virtude intelectual de Aristóteles), inteligentemente. Assim, no
homem, a prudência faz as vezes do que é, nos animais, o instinto – e, dizia Cícero, do
que é, nos deuses, a providência.
A prudência dos antigos (phronésis, prudentia) vai, portanto, bem além da simples
evitação dos perigos, a que a nossa praticamente se reduz. As duas, no entanto, estão
ligadas, e esta, de fato, aos olhos de Aristóteles ou de Epicuro, pertenceria ao domínio
daquela. A prudência determina o que é necessário escolher e o que é necessário evitar.
Ora, o perigo pertence, na maioria dos casos, a esta última categoria; daí a prudência,
no sentido moderno do termo (a prudência como precaução). Todavia, há riscos que é
necessário correr, perigos que é preciso enfrentar; daí a prudência, no sentido antigo (a
prudência como “virtude do risco e da decisão”). A primeira, longe de abolir a segunda,
depende dela. A prudência não é nem o medo nem a covardia. Sem a coragem, ela seria
apenas pusilânime, assim como a coragem, sem ela, seria apenas temeridade ou
loucura.
Cumpre observar, aliás, que, mesmo em seu sentido restrito e moderno, a prudência
continua a condicionar a virtude. Somente os vivos são virtuosos ou podem sê-lo (os
mortos, no máximo, podem ter sido); somente os prudentes são vivos, ou o
permanecem. Uma imprudência absoluta seria mortal, sempre, em prazos brevíssimos.
Que restaria da virtude? E como ela poderia advir? Eu notava, a propósito da polidez,
que a criança a princípio não diferencia o que é mau (o erro) do que faz mal (a dor, o
perigo). Por isso ela não distingue a moral da prudência, ambas aliás submetidas, no
essencial e por muito tempo, à palavra ou ao poder dos pais. Mas já crescemos (graças à
prudência de nossos pais, depois à nossa); agora, essa distinção se impõe a nós, de
modo que moral e prudência se constituem diferenciando-se. Confundi-las de maneira
absoluta seria um erro; mas sempre as opor seria outro. A prudência aconselha, notava
Kant, a moral comanda. Portanto, precisamos de uma e de outra, solidariamente. A
prudência só é uma virtude quando a serviço de um fim estimável (de outro modo, não
seria mais que habilidade), assim como esse fim só é completamente virtuoso quando
servido por meios adequados (de outro modo, não seria mais que bons sentimentos). Por
isso, dizia Aristóteles, “não é possível ser homem de bem sem prudência, nem prudente
sem virtude moral”. A prudência não basta à virtude (pois ela só delibera sobre os meios,
quando a virtude também se prende à consideração dos fins), mas nenhuma virtude
poderia prescindir da prudência. O motorista imprudente não é apenas perigoso, também
é – pelo pouco caso que faz da vida alheia – moralmente condenável. Inversamente,
quem não vê que o sexo seguro, que nada mais é que uma sexualidade prudente,
também pode ser uma disposição moral (pela atenção que um manifesta, mesmo que já
esteja doente, pela saúde do outro)? Entre adultos que consentem, a sexualidade mais
livre não é um erro. Mas a imprudência é. Nesses tempos de AIDS, comportamentos que,
em si, não seriam em nada condenáveis podem vir a sê-lo, não pelos prazeres que
proporcionam, e que são inocentes, mas pelos riscos que ocasionam ou fazem o outro
correr. Sexualidade sem prudência é sexualidade sem virtude, ou cuja virtude, em todo
caso, é deficiente. Isso pode ser encontrado em todos os domínios. O pai imprudente,
diante de seus filhos, pode muito bem amá-los e querer sua felicidade. No entanto, falta
alguma coisa à sua virtude de pai e, sem dúvida, a seu amor. Se ocorrer um drama, que
ele poderia ter evitado, ele saberá que, sem ser absolutamente responsável pelo
ocorrido, também não é de todo inocente. Primeiro, não prejudicar. Depois, proteger. É a
própria prudência, sem a qual qualquer virtude seria impotente ou nefasta.
Eu já disse que a prudência não impede o risco e nem sempre evita o perigo. Veja o
alpinista ou o navegador: a prudência faz parte de seu ofício. Que risco? Que perigo? Em
que limites? Com que fim? O princípio de prazer o determina, e é isso que chamamos de
desejo ou amor. Como? Por que meios? Com que precauções? O princípio de realidade o
decide e – quando decide da melhor maneira possível – é o que chamamos prudência.
“A prudência”, dizia santo Agostinho, “é um amor que escolhe com sagacidade.” Mas o
que ela escolhe? Não, decerto, seu objeto (o desejo se encarrega disso), mas os meios
de alcançá-lo ou protegê-lo. Sagacidade das mães e das amantes, sabedoria do amor
louco. Elas fazem o que se deve, como se deve, pelo menos o que elas julgam como tal
(quem diz virtude intelectual diz risco de erro), e dessa preocupação nasceu a
humanidade – a delas, a nossa. O amor as guia; a prudência as ilumina.
Que ela possa iluminar também a própria humanidade! Vimos que a prudência levava em
conta o futuro: é que seria perigoso e imoral esquecê-lo. A prudência é essa paradoxal
memória do futuro ou, para dizer melhor (pois que a memória, enquanto tal, não é uma
virtude), essa paradoxal e necessária fidelidade ao futuro. Os pais sabem disso e querem
preservar o futuro de seus filhos – não para escrevê-lo no lugar deles, mas para deixar-
lhes o direito e, se possível, dar-lhes os meios de eles próprios o escreverem. A
humanidade também deverá compreendê-lo, se quiser preservar os direitos e as
oportunidades de uma humanidade futura. Mais poder, maiores responsabilidades. A
nossa nunca foi tão pesada; ela põe em jogo não apenas nossa existência ou a de nossos
filhos, mas (devido aos progressos técnicos e seu temível alcance) a da humanidade
inteira, e pelos séculos dos séculos… A ecologia, por exemplo, está ligada à prudência, e
é por isso que tem pontos de contato com a moral. Enganar-se-ia quem acreditasse a
prudência superada; ela é a mais moderna de nossas virtudes, ou antes aquela de
nossas virtudes que a modernidade torna mais necessária.
Moral aplicada, dizia eu, e nos dois sentidos do termo: é o contrário de uma moral
abstrata ou teórica, mas o contrário também de uma moral negligente. O fato de esta
última noção ser contraditória deixa claro quanto a prudência é necessária, inclusive para
proteger a moral do fanatismo (sempre imprudente, de tanto entusiasmo) e de si
mesma. Quantos horrores consumados em nome do Bem? Quantos crimes, em nome da
virtude? Era pecar contra a tolerância, quase sempre, mas também contra a prudência,
na maioria das vezes. Desconfiemos desses Savonarola* que o Bem cega. Demasiado
apegados aos princípios para considerar os indivíduos, demasiado seguros de suas
intenções para se preocuparem com as conseqüências…
Moral sem prudência é moral vã ou perigosa. “Caute”, dizia Spinoza: “Cuidado.” É a
máxima da prudência, e é preciso ter cuidado também com a moral, quando ela despreza
seus limites ou suas incertezas. A boa vontade não é uma garantia, nem a boa
consciência uma desculpa. Em suma, a moral não basta à virtude; são necessárias
também a inteligência e a lucidez. É o que o humor recorda e a prudência prescreve.
É imprudente ouvir apenas a moral, e é imoral ser imprudente.

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  • 1. Pequeno Tratado das Grandes Virtudes De André Comte-Sponville Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1999 Tradução de Eduardo Brandão 3 A prudência A polidez é a origem das virtudes; a fidelidade, seu princípio; a prudência, sua condição. Será ela mesma uma virtude? A tradição responde que sim, e é o que cumpre explicar em primeiro lugar. A prudência é uma das quatro virtudes cardeais da Antiguidade e da Idade Média. É a mais esquecida, talvez. Para os modernos pertence menos à moral do que à psicologia, menos ao dever do que ao cálculo. Kant já não via nela uma virtude: é apenas amor a si esclarecido ou hábil, explicava, não condenável, decerto, mas sem valor moral e sem outras prescrições que não sejam hipotéticas. É prudente cuidar da saúde, mas quem veria nisso um mérito? A prudência é vantajosa demais para ser moral; o dever, absoluto demais para ser prudente. No entanto, não é seguro que Kant seja aqui o mais moderno, nem o mais justo. Porque ele concluía que a veracidade é um dever absoluto, em todas as circunstâncias (inclusive – é o exemplo que dava – quando assassinos perguntam a você se seu amigo, que eles perseguem, está refugiado em sua casa) e quaisquer que sejam suas conseqüências: é melhor faltar com a prudência do que faltar com seu dever, nem que seja para salvar um inocente ou a si mesmo! É o que não podemos mais aceitar, parece-me, por não acreditarmos muito nesse absoluto para sacrificar a ele nossa vida, nossos amigos ou nossos semelhantes. Essa ética da convicção, como dirá Max Weber, até nos apavoraria: o que vale o caráter absoluto dos princípios, se é em detrimento da simples humanidade, do bom senso, da doçura, da compaixão? Aprendemos a desconfiar também da moral, tanto mais quanto ela se crê mais absoluta. À ética da convicção, preferiremos o que Max Weber chama de ética da responsabilidade, a qual, sem renunciar aos princípios (como poderia?) também se preocupa com as conseqüências previsíveis da ação. Uma boa intenção pode levar a catástrofes, e a pureza dos móbeis, ainda que confirmada, nunca bastou para impedir o pior; portanto seria condenável contentar-se com ela. A ética da responsabilidade quer que respondamos não apenas por nossas intenções ou nossos princípios, mas também pelas conseqüências de nossos atos, tanto quanto possamos prevê-las. É uma ética da prudência, e a única ética válida. Melhor é mentir à Gestapo do que lhe entregar um judeu ou um resistente. Em nome de quê? Em nome da prudência, que é a justa determinação (para o homem, pelo homem) desse melhor. É a moral aplicada, e o que seria uma moral que não se aplicasse? As outras virtudes, sem a prudência, não poderiam mais que revestir o Inferno com suas boas intenções. Mas eu estava falando dos antigos. É que a palavra prudência é demasiado carregada de história para não estar sujeita a equívocos; e, de resto, ela quase desapareceu do vocabulário moral contemporâneo. O que não significa que não precisemos mais da coisa. Examinemos com maior cuidado o problema. Sabemos que os latinos traduziram por prudentia a phronésis dos gregos e, especialmente, de Aristóteles ou dos estóicos. De que se trata? De uma virtude intelectual, explicava Aristóteles, pelo fato de haver-se com o verdadeiro, com o conhecimento, com a razão: a prudência é a disposição que permite deliberar corretamente sobre o que é bom ou mau para o homem (não em si, mas no mundo tal como é, não em geral, mas em determinada situação) e agir em conseqüência, como convier. É o que poderíamos chamar de bom senso, mas que estaria a serviço de uma boa vontade. Ou de inteligência, mas que seria virtuosa. É nisso que a prudência condiciona todas as outras virtudes; nenhuma, sem ela, saberia o que se deve fazer, nem como chegar ao fim (o bem) que ela visa. Santo Tomás bem mostrou que, das quatro virtudes cardeais, a prudência é a que deve reger as outras três: a
  • 2. temperança, a coragem e a justiça, sem ela, não saberiam o que se deve fazer, nem como; seriam virtudes cegas ou indeterminadas (o justo amaria a justiça sem saber como, na prática, realizá-la, o corajoso não saberia o que fazer de sua coragem, etc.), assim como a prudência, sem elas, seria vazia ou não seria mais que habilidade. A prudência tem algo de modesto ou de instrumental; ela se põe a serviço de fins que não são os seus e só se ocupa com a escolha dos meios. Mas é isso que a torna insubstituível: nenhuma ação, nenhuma virtude – em todo caso, nenhuma virtude em ato – poderia prescindir dela. A prudência não reina (mais vale a justiça, mais vale o amor), mas governa. Ora, que seria um reino sem governo? Não basta amar a justiça para ser justo, nem amar a paz para ser pacífico; é preciso, além disso, a boa deliberação, a boa decisão, a boa ação. A prudência decide e a coragem provê. Os estóicos consideravam a prudência uma ciência (“a ciência das coisas a fazer e a não fazer”, diziam eles), o que Aristóteles recusara legitimamente, pois só há ciência do necessário e prudência do contingente. A prudência supõe a incerteza, o risco, o acaso, o desconhecido. Um deus não a necessitaria; mas como um homem poderia prescindir dela? A prudência não é uma ciência; ela é o que faz as suas vezes quando a ciência falta. Só se delibera quando se tem escolha, em outras palavras, quando nenhuma demonstração é possível ou suficiente. É então que é necessário querer não apenas o bom fim, mas os bons meios que conduzem a ele! Não basta amar os filhos para ser bom pai, nem querer o bem deles para fazê-lo. Amar, diria o humorista, não dispensa ninguém de ser inteligente. Os gregos o sabiam, e talvez melhor do que nós. A phronésis é como que uma sabedoria prática, sabedoria da ação, para a ação, na ação. No entanto, ela não faz as vezes de sabedoria (de verdadeira sabedoria: Sophia), porque tampouco basta agir bem para viver bem, ou ser virtuoso para ser feliz. Aristóteles tem razão, aqui, contra quase todos os antigos: a virtude não basta mais à felicidade do que a felicidade à virtude. A prudência é, porém, necessária a uma e à outra, e a própria sabedoria não poderia prescindir dela. Sabedoria sem prudência seria sabedoria louca, e não seria sabedoria. Epicuro talvez diga o essencial: a prudência, que escolhe (pela “comparação e pelo exame das vantagens e desvantagens”) os desejos que convém satisfazer e os meios para satisfazê-los, é “mais preciosa até que a filosofia” e é dela que “provêm todas as outras virtudes”. Que importa o verdadeiro, se não sabemos viver? Que importa a justiça, se somos incapazes de agir justamente? E por que iríamos querê-la, se ela não nos trouxesse nada? A prudência é como um saber-viver real (e não simplesmente aparente, como a polidez), que também seria uma arte de desfrutar. Ocorre-nos recusar numerosos prazeres, explica Epicuro, quando devem acarretar maior desprazer, ou buscar determinada dor, se ela permitir evitar dores piores ou obter um prazer mais vivo ou mais duradouro. Assim, é sempre pelo prazer que vamos, por exemplo, ao dentista ou ao trabalho, mas por um prazer no mais das vezes posterior ou indireto (pela evitação ou pela supressão de uma dor), que a prudência prevê ou calcula. Virtude temporal, sempre, e temporizadora, às vezes. É que a prudência leva em conta o futuro, na medida em que depende de nós encará-lo (nisso ela pertence não à esperança, mas à vontade). Virtude presente, pois, como toda virtude, mas previsora ou antecipadora. O homem prudente é atento, não apenas ao que acontece, mas ao que pode acontecer; é atento, e presta atenção. Prudentia, observava Cícero, vem de providere, que significa tanto prever como prover. Virtude da duração, do futuro incerto, do momento favorável (o kairós dos gregos), virtude de paciência e de antecipação. Não se pode viver no instante. Não se pode chegar sempre ao prazer pelo caminho mais curto. O real impõe sua lei, seus obstáculos, seus desvios. A prudência é a arte de levar isso tudo em conta, é o desejo lúcido e razoável. Os românticos, por preferirem os sonhos, torcerão o nariz. Os homens de ação sabem, ao contrário, que não há outro caminho, mesmo para realizar o improvável ou o excepcional. A prudência é o que separa a ação do impulso, o herói do desmiolado. No fundo, é o que Freud chamará de princípio da realidade, ou pelo menos a virtude que lhe corresponde: trata-se de desfrutar o mais possível, de sofrer o menos possível, mas levando em conta as imposições e incertezas do real, em outras palavras (tornamos a encontrar a virtude intelectual de Aristóteles), inteligentemente. Assim, no
  • 3. homem, a prudência faz as vezes do que é, nos animais, o instinto – e, dizia Cícero, do que é, nos deuses, a providência. A prudência dos antigos (phronésis, prudentia) vai, portanto, bem além da simples evitação dos perigos, a que a nossa praticamente se reduz. As duas, no entanto, estão ligadas, e esta, de fato, aos olhos de Aristóteles ou de Epicuro, pertenceria ao domínio daquela. A prudência determina o que é necessário escolher e o que é necessário evitar. Ora, o perigo pertence, na maioria dos casos, a esta última categoria; daí a prudência, no sentido moderno do termo (a prudência como precaução). Todavia, há riscos que é necessário correr, perigos que é preciso enfrentar; daí a prudência, no sentido antigo (a prudência como “virtude do risco e da decisão”). A primeira, longe de abolir a segunda, depende dela. A prudência não é nem o medo nem a covardia. Sem a coragem, ela seria apenas pusilânime, assim como a coragem, sem ela, seria apenas temeridade ou loucura. Cumpre observar, aliás, que, mesmo em seu sentido restrito e moderno, a prudência continua a condicionar a virtude. Somente os vivos são virtuosos ou podem sê-lo (os mortos, no máximo, podem ter sido); somente os prudentes são vivos, ou o permanecem. Uma imprudência absoluta seria mortal, sempre, em prazos brevíssimos. Que restaria da virtude? E como ela poderia advir? Eu notava, a propósito da polidez, que a criança a princípio não diferencia o que é mau (o erro) do que faz mal (a dor, o perigo). Por isso ela não distingue a moral da prudência, ambas aliás submetidas, no essencial e por muito tempo, à palavra ou ao poder dos pais. Mas já crescemos (graças à prudência de nossos pais, depois à nossa); agora, essa distinção se impõe a nós, de modo que moral e prudência se constituem diferenciando-se. Confundi-las de maneira absoluta seria um erro; mas sempre as opor seria outro. A prudência aconselha, notava Kant, a moral comanda. Portanto, precisamos de uma e de outra, solidariamente. A prudência só é uma virtude quando a serviço de um fim estimável (de outro modo, não seria mais que habilidade), assim como esse fim só é completamente virtuoso quando servido por meios adequados (de outro modo, não seria mais que bons sentimentos). Por isso, dizia Aristóteles, “não é possível ser homem de bem sem prudência, nem prudente sem virtude moral”. A prudência não basta à virtude (pois ela só delibera sobre os meios, quando a virtude também se prende à consideração dos fins), mas nenhuma virtude poderia prescindir da prudência. O motorista imprudente não é apenas perigoso, também é – pelo pouco caso que faz da vida alheia – moralmente condenável. Inversamente, quem não vê que o sexo seguro, que nada mais é que uma sexualidade prudente, também pode ser uma disposição moral (pela atenção que um manifesta, mesmo que já esteja doente, pela saúde do outro)? Entre adultos que consentem, a sexualidade mais livre não é um erro. Mas a imprudência é. Nesses tempos de AIDS, comportamentos que, em si, não seriam em nada condenáveis podem vir a sê-lo, não pelos prazeres que proporcionam, e que são inocentes, mas pelos riscos que ocasionam ou fazem o outro correr. Sexualidade sem prudência é sexualidade sem virtude, ou cuja virtude, em todo caso, é deficiente. Isso pode ser encontrado em todos os domínios. O pai imprudente, diante de seus filhos, pode muito bem amá-los e querer sua felicidade. No entanto, falta alguma coisa à sua virtude de pai e, sem dúvida, a seu amor. Se ocorrer um drama, que ele poderia ter evitado, ele saberá que, sem ser absolutamente responsável pelo ocorrido, também não é de todo inocente. Primeiro, não prejudicar. Depois, proteger. É a própria prudência, sem a qual qualquer virtude seria impotente ou nefasta. Eu já disse que a prudência não impede o risco e nem sempre evita o perigo. Veja o alpinista ou o navegador: a prudência faz parte de seu ofício. Que risco? Que perigo? Em que limites? Com que fim? O princípio de prazer o determina, e é isso que chamamos de desejo ou amor. Como? Por que meios? Com que precauções? O princípio de realidade o decide e – quando decide da melhor maneira possível – é o que chamamos prudência. “A prudência”, dizia santo Agostinho, “é um amor que escolhe com sagacidade.” Mas o que ela escolhe? Não, decerto, seu objeto (o desejo se encarrega disso), mas os meios de alcançá-lo ou protegê-lo. Sagacidade das mães e das amantes, sabedoria do amor louco. Elas fazem o que se deve, como se deve, pelo menos o que elas julgam como tal
  • 4. (quem diz virtude intelectual diz risco de erro), e dessa preocupação nasceu a humanidade – a delas, a nossa. O amor as guia; a prudência as ilumina. Que ela possa iluminar também a própria humanidade! Vimos que a prudência levava em conta o futuro: é que seria perigoso e imoral esquecê-lo. A prudência é essa paradoxal memória do futuro ou, para dizer melhor (pois que a memória, enquanto tal, não é uma virtude), essa paradoxal e necessária fidelidade ao futuro. Os pais sabem disso e querem preservar o futuro de seus filhos – não para escrevê-lo no lugar deles, mas para deixar- lhes o direito e, se possível, dar-lhes os meios de eles próprios o escreverem. A humanidade também deverá compreendê-lo, se quiser preservar os direitos e as oportunidades de uma humanidade futura. Mais poder, maiores responsabilidades. A nossa nunca foi tão pesada; ela põe em jogo não apenas nossa existência ou a de nossos filhos, mas (devido aos progressos técnicos e seu temível alcance) a da humanidade inteira, e pelos séculos dos séculos… A ecologia, por exemplo, está ligada à prudência, e é por isso que tem pontos de contato com a moral. Enganar-se-ia quem acreditasse a prudência superada; ela é a mais moderna de nossas virtudes, ou antes aquela de nossas virtudes que a modernidade torna mais necessária. Moral aplicada, dizia eu, e nos dois sentidos do termo: é o contrário de uma moral abstrata ou teórica, mas o contrário também de uma moral negligente. O fato de esta última noção ser contraditória deixa claro quanto a prudência é necessária, inclusive para proteger a moral do fanatismo (sempre imprudente, de tanto entusiasmo) e de si mesma. Quantos horrores consumados em nome do Bem? Quantos crimes, em nome da virtude? Era pecar contra a tolerância, quase sempre, mas também contra a prudência, na maioria das vezes. Desconfiemos desses Savonarola* que o Bem cega. Demasiado apegados aos princípios para considerar os indivíduos, demasiado seguros de suas intenções para se preocuparem com as conseqüências… Moral sem prudência é moral vã ou perigosa. “Caute”, dizia Spinoza: “Cuidado.” É a máxima da prudência, e é preciso ter cuidado também com a moral, quando ela despreza seus limites ou suas incertezas. A boa vontade não é uma garantia, nem a boa consciência uma desculpa. Em suma, a moral não basta à virtude; são necessárias também a inteligência e a lucidez. É o que o humor recorda e a prudência prescreve. É imprudente ouvir apenas a moral, e é imoral ser imprudente.