2. As Modalidades da Atividade Racional
A filosofia distingue duas grandes modalidades
da atividade racional, realizadas pelo sujeito do
conhecimento:
1. Raciocínio (Razão Discursiva)
É um processo gradual e sucessivo. O sujeito
percorre etapas sucessivas de aproximação até
alcançar o conceito ou a definição do objeto.
2. Intuição (Razão Intuitiva)
Consiste em um único ato do espírito que
apreende de forma completa e imediata o objeto
do conhecimento.
3. A Intuição
•A intuição é a compreensão imediata e
completa de um objeto ou fato.
•Nela, a razão capta todas as relações
constitutivas da realidade e da verdade do
que é intuído.
•Não exige provas ou demonstrações.
Exemplo: Intuição Médica
Um médico experiente, ao ver um paciente,
identifica instantaneamente a doença, sua causa
e o tratamento — tudo num só ato de
compreensão.
4. Características da Intuição
Pode depender de
conhecimentos anteriores
Pode ser:
•Final de um processo de
conhecimento
•Ponto de partida para um
novo processo racional
5. Tipos de Intuição
1. Intuição Sensível ou Empírica
Conhecimento direto, imediato das qualidades sensíveis: cor,
sabor, cheiro, textura, forma, som.
Exemplo: ao ver um gato, percebemos sua aparência, som,
textura, cheiro — tudo de uma só vez.
Singularidade:
• Do objeto (isto é esta maçã, este gato)
• Do sujeito (minhas sensações, minha percepção)
Empírica: do grego empeiría, que significa experiência (sensorial
ou prática) Características:
• Psicológica: depende dos estados corporais e psíquicos do
sujeito
• Não universal: não se aplica de forma geral a todos os
objetos similares
• Intransferível: não se aplica a outros objetos ou pessoas de
forma exata
6. 2. Intuição Intelectual
Conhecimento direto e imediato de princípios da
razão:
•Identidade
•Contradição
•Terceiro excluído
•Razão suficiente
Universal e necessária:
Exemplo: “O todo é maior que as partes” — uma
verdade compreendida sem demonstração
Ideias Simples e Complexas:
•Algumas ideias são apreendidas
diretamente (ideias simples)
•Outras são intuições alcançadas após um
processo racional (ideias complexas)
7. Exemplos Filosóficos de Intuição
Intelectual
1. Platão – O Mito da Caverna
O prisioneiro liberto intui as ideias
verdadeiras ao sair da caverna.
Dois tipos de intuição:
Prisioneiro: intuição sensível
Filósofo: intuição intelectual
Ambos têm conhecimento intuitivo: direto e
imediato, sem provas ou demonstrações.
2. Descartes – O Cogito Cartesiano
“Cogito, ergo sum” – “Penso, logo existo”
Quando penso, sei que estou existindo, sem
necessidade de demonstração.
A intuição intelectual capta essa verdade
imediatamente, por meio da razão, e não dos
sentidos.
8. A Razão Discursiva: Dedução, Indução
e Abdução
1. Intuição e Raciocínio
A intuição pode ser tanto ponto de partida
quanto ponto de chegada no processo de
conhecimento.
Já o raciocínio (ou razão discursiva) é um
processo cognitivo que exige provas e
demonstrações.
Ele envolve vários atos intelectuais
conectados, formando um encadeamento
lógico de ideias.
9. 2. Exemplo Prático: O Caçador e a Onça
Um caçador observa indícios no
ambiente (pegadas, galhos quebrados,
carcaça, silêncio na mata).
A partir desses sinais empíricos, ele
infere a possível presença de uma onça.
Esse é um exemplo de raciocínio
empírico e prático, baseado na
experiência sensorial e voltado para a
ação.
Trata-se de um processo de inferência,
típico da razão discursiva.
10. Quando o Raciocínio Busca
Universalidade
Quando o raciocínio deixa de
se basear na singularidade do
sujeito e do objeto, e adota
critérios universais e gerais,
ele se realiza por meio de:
Dedução
Indução
Abdução
11. A Dedução
Definição
•Parte-se de uma verdade geral já
conhecida para aplicá-la a casos
particulares.
•Vai do geral ao particular.
Objetivo
•Demonstrar que uma verdade se aplica a
todos os casos semelhantes.
•Permite inferir novas conclusões
verdadeiras a partir de princípios ou teorias
conhecidas.
Exemplo Geométrico:
Definindo o triângulo como figura com ângulos
internos somando dois ângulos retos,
deduzimos:
Os tipos de triângulo
12. Exemplo Científico:
Com a teoria da gravitação
universal de Newton, podemos
prever e explicar fenômenos
físicos particulares, aplicando
leis gerais.
Fórmula da Dedução
Todos os Y são X (teoria geral)
A é Y (caso particular)
Logo, A é X (conclusão)
13. A Indução
Definição
•Parte de casos particulares para chegar a uma
conclusão geral.
•Vai do particular ao geral.
Exemplo: Calor e Ebulição
Observamos diversos líquidos fervendo ao serem
aquecidos → concluímos que o calor causa evaporação.
Comparamos tempos de ebulição → entendemos que
cada líquido possui propriedades específicas.
Usamos a água como padrão → ela ferve a 100°C e
congela a 0°C.
Assim, chegamos a uma teoria dos estados da matéria em
função da temperatura.
14. AAbdução
Definição por Peirce
•Tipo de inferência não demonstrativa,
baseada na interpretação de sinais e
indícios.
•Semelhante à intuição, mas se constrói
passo a passo.
Exemplo Clássico: O Detetive
•Coleta pistas, elabora hipóteses e
constrói uma teoria para o caso
investigado.
•Muito usada em descobertas científicas
iniciais e trabalhos históricos.
Função
•Inicia o estudo de novos campos
15. Tipo de
Raciocínio
Caminho Finalidade Exemplo
Dedução
Geral →
Particular
Verificar uma verdade
já conhecida
Aplicação da física
newtoniana
Indução
Particular →
Geral
Construir teorias a
partir da experiência
Teoria do calor e da
evaporação
Abdução
Sinais →
Hipótese
Formular suposições
iniciais
Detetives, historiadores,
cientistas iniciando um campo
Resumo Comparativo:
16. Peirce e os Procedimentos Racionais
Charles Sanders Peirce exemplificou as três formas clássicas de raciocínio —
dedução, indução e abdução — com uma analogia simples:
•Dedução: Todos os feijões desta saca são brancos. Estes feijões eram desta saca.
Logo, estes feijões são brancos.
•Indução: Estes feijões eram desta saca. Estes feijões são brancos. Logo, todos os
feijões desta saca são brancos.
•Abdução: Todos os feijões desta saca são brancos. Estes feijões são brancos.
Logo, estes feijões eram desta saca.
Peirce também ilustra a abdução com o exemplo do astrônomo Johannes Kepler
(1571–1630), que, ao observar que Marte não seguia uma órbita circular, supôs que a
órbita era elíptica. Essa hipótese foi posteriormente confirmada por cálculos mais
precisos. Trata-se de um caso clássico de abdução científica, em que uma hipótese
explicativa é sugerida para dar conta de uma anomalia observada.
17. Realismo e Idealismo
Razão objetiva e razão subjetiva
Muitos filósofos distinguem entre dois tipos de
razão: razão objetiva e razão subjetiva.
Razão objetiva é a ideia de que a realidade externa
ao nosso pensamento obedece a princípios
racionais como identidade, não contradição,
terceiro excluído e razão suficiente.
Isso significa que a realidade é racional em si
mesma e, por isso, é possível conhecê-la tal como
ela é.
Exemplo: espaço e tempo existem por si mesmos;
relações matemáticas e de causa e efeito estão nos
próprios objetos.
A posição filosófica que afirma a existência da
razão objetiva é chamada de realismo.
18. Idealismo: o papel das ideias na construção do
conhecimento
Alguns filósofos, no entanto, afirmam que há uma diferença
entre a realidade e o nosso conhecimento racional sobre ela.
•Segundo essa perspectiva, embora a realidade exista em si
e por si mesma, só podemos conhecê-la como nossas
ideias a formulam e organizam. Ou seja, não é possível
garantir que o conhecimento humano alcance a realidade
como ela é em si.
•Assim, não podemos saber se a realidade é racional em si,
apenas que ela é racional para nós, ou seja, mediada por
nossas ideias. Essa posição é conhecida como idealismo e
afirma apenas a existência da razão subjetiva, que opera
com princípios universais e necessários válidos para todos
os seres humanos.
•Para o idealismo, a realidade é aquilo que podemos
19. Uma síntese nas ciências contemporâneas
A ciência contemporânea tende a combinar elementos do
realismo e do idealismo. Vejamos alguns exemplos:
Química Orgânica:
Por um lado, realiza experimentos e medições de massa, o que
pressupõe a existência de realidades externas acessíveis pela
experiência (realismo).
Por outro, desenvolve teorias baseadas em hipóteses e constrói
modelos teóricos de objetos que nem sempre podem ser
diretamente observados (idealismo).
Física:
Admite a existência dos átomos como entidades reais.
No entanto, só recentemente foi possível ter uma experiência
direta deles por meio de instrumentos como o microscópio
eletrônico — e ainda assim de forma limitada.
Antes disso, os átomos eram explicados por modelos teóricos
elaborados pelo sujeito do conhecimento.
20. Razão na Filosofia Contemporânea: Continuidade ou Descontinuidade?
1. A Perspectiva da Continuidade (Teoria Crítica)
Nos anos 1950 e 1960, os filósofos da Escola de Frankfurt — como Theodor Adorno,
Max Horkheimer e Herbert Marcuse — afirmaram que existem duas modalidades da
razão:
• Razão instrumental ou técnico-científica: voltada para a eficiência, controle e
domínio técnico da realidade. Foi essa forma de razão que justificou, por exemplo,
o uso da tecnologia tanto pelo nazismo quanto pelas Forças Armadas dos EUA
(bombas atômicas).
• Razão crítica ou filosófica: voltada para a reflexão sobre os conflitos e
contradições sociais e políticas, com potencial emancipador. Segundo essa escola, a
razão se desenvolve por continuidade histórica. Cada forma de racionalidade nasce
da resolução dos conflitos da forma anterior, sem ruptura. A razão muda porque a
sociedade muda, e essas transformações são históricas e encadeadas.
21. 2. Diferença entre Teorias: Tradicional vs.
Crítica
Max Horkheimer distingue duas concepções de
teoria:
• Teoria tradicional (cartesiana): organiza a
experiência com base na reprodução das
condições da sociedade existente. Os
problemas científicos são considerados neutros
e objetivos.
• Teoria crítica: entende o ser humano como
produtor de suas próprias formas históricas de
vida. A ciência é vista como uma prática social,
e não neutra. A teoria crítica considera o
22. 3. A Perspectiva da Descontinuidade (Estruturalismo
e Pós-estruturalismo)
A partir dos anos 1960, filósofos franceses
influenciados pelo estruturalismo, como Michel
Foucault, Jacques Derrida e Gilles Deleuze,
propuseram uma nova visão:
• A história da razão não é contínua nem
progressiva.
• A razão se manifesta em formas descontínuas, com
rupturas profundas.
• Cada nova estrutura de racionalidade é tão
diferente das anteriores que não se pode falar em
evolução, mas em diferença radical.
Nesse sentido, não há como julgar teorias passadas
como erradas ou ultrapassadas — elas são apenas
diferentes, pois se baseiam em outros princípios e
23. O Valor da Razão
Apesar das diferenças entre continuístas e
descontinuístas, há um ponto de concordância:
A razão busca compreender o sentido do mundo e
da vida humana. A atitude racional envolve:
• Compreender e interpretar o sentido das
coisas;
• Buscar a coerência interna dos pensamentos e
teorias;
• Avaliar se uma teoria ou ideia contribui para
entender, criticar ou transformar a realidade.
Assim, a razão é tanto:
• Um critério de avaliação dos conhecimentos
(coerência, clareza, consistência),
• Quanto um instrumento transformador das
condições de vida humanas.