E book-argumentacao-e-linguagem
Argumentação e Linguagem
Atena Editora
2019
Solange Aparecida de Souza Monteiro
(Organizadora)
 
 
 
2019 by Atena Editora
Copyright © Atena Editora
Copyright do Texto © 2019 Os Autores
Copyright da Edição © 2019 Atena Editora
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(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
A694 Argumentação e linguagem [recurso eletrônico] / Organizadora
Solange Aparecida de Souza Monteiro. – Ponta Grossa, PR: Atena
Editora, 2019.
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7247-530-3
DOI 10.22533/at.ed.303191408
1. Língua portuguesa – Composição e exercícios. 2.Linguística.
I.Monteiro, Solange Aparecida de Souza.
CDD 469.8
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422
Atena Editora
Ponta Grossa – Paraná - Brasil
www.atenaeditora.com.br
contato@atenaeditora.com.br 
APRESENTAÇÃO
Ai Palavras! ... Todo o sentido da vida principia à vossa porta; o mel do amor
cristaliza seu perfume em vossa rosa; sois o sonho e sois audácia, calúnia, fúria,
derrota… A liberdade das almas, ai! com letras se elabora… E dos venenos humanos
sois a mais fina retorta: frágil como o vidro e mais que o são poderosa! Reis, impérios,
povos, tempos, pelo vosso impulso rodam… Cecília Meireles ...
Porque a verdadeira caverna, aquela que nos proíbe a relação com a realidade,
aquela que nos obriga a viver no meio das sombras, é, para mim, a linguagem. Oswald
Ducrot. Não há como pensar a argumentação na linguagem sem que se façam referências
à retórica clássica, principalmente se o ato de argumentar for entendido como uma
forma de gerenciar o discurso, de modo a se obterem resultados efetivos sobre as
práticas sociais humanas. É justamente o funcionamento pragmático dos textos/
discursos que nos permitem dizer, hoje, que os mesmos se nos apresentam revestidos
de caráter ideológico, somente para citar um dos efeitos das ações das práticas
linguísticas sobre as sociais. Nesse sentido, presume-se que a instrumentalidade do
discurso argumentativo retrata-se nas formas como os argumentos são apresentados
nos textos, de modo a criar um sentido de identidade entre falante/escritor e ouvinte/leitor.
As atividades cognitivas da leitura e da compreensão estão inter-relacionadas, ainda que
não se tenha como garantia indicativos de entendimento textual, afirmam Löbler e Flôres
(2010, p. 181). Flôres e Gabriel (2012) defendem que a leitura pode ser estudada a partir
de diferentes perspectivas, sejam elas: com foco no autor, no texto ou no leitor. Abraça-
se, então, neste trabalho, a pesquisa sobre a leitura e foco no texto de diferentes formas.
Coscarelli (2002, p. 01) afirma que a leitura pode ser vista como um todo sem
divisões, uma visão genérica e compactada que dificulta o trabalho do professor em
ajudar os alunos em desenvolver o processo de leitura. Segundo a autora: A leitura pode
ser dividida em duas grandes partes, uma que lida com a forma linguística e outra que se
relaciona com o significado. Essas partes, por sua vez, podem ser ainda subdivididas. O
processamento da forma, também tratado como decodificação, será aqui subdividido em
processamentolexicaleprocessamentosintático.Fazpartedaatividadeleitoraapresentar
sentidos para a informação ali exposta, buscando a reflexão, os questionamentos e
os possíveis diálogos entre ela e o leitor. Para tal, essa prática envolve o aspecto de
reconhecer o código linguístico, assim como depreender os sentidos que esse código
desenvolve a partir das relações semânticas, Löbler e Flôres (2010, p. 188).
O leitor tem a função de decodificar o texto e identificar as pistas que o autor vai
deixando ao longo desse texto, além de formular representações mentais sobre as
informações contidas ali, Lôbler e Flôres (2010, 192). Ele suscita hipóteses, realiza
inferências, ativa o seu conhecimento prévio, tudo isso objetivando compreendê-lo.
Löbler e Flores explicam assim o processo de compreensão: A compreensão da língua
escrita é uma atividade complexa e onerosa do ponto de vista cognitivo, pois consiste em
relacionar, concomitantemente, o que é lido a conhecimentos preexistentes. Para fazer
tal síntese, o cérebro do leitor mobiliza os conhecimentos que já possui, relacionando-os
ao processamento em realização, ou seja, fazendo a articulação paralela entre o sabido
e o desconhecido, no decorrer da própria leitura.
Nesse processo de diálogo com o texto, o leitor tenta identificar as intenções do
autor por este ou aquele vocabulário, as intenções de formalidades ou informalidades,
ou ainda, identificar quem está falando naquele texto. Ducrot (1990, p.15) defende que
o enunciado é polifônico e que, portanto, existem algumas pessoas envolvidas em sua
existência. Dentre elas, declara a existência do locutor, sujeito discursivo responsável
discurso, e enunciadores, responsáveis pelos pontos de vista ao longo do discurso.
O enunciado, assim como o discurso, é único e sempre terá um autor, denominado
sujeito empírico, Ducrot (1990) Os jornalistas, por exemplo, ao noticiarem ou reportarem
determinada informação, fazem-na através das argumentações, que são entendidas por
Ducrot como uma sequência de dois segmentos que compõem um discurso relacionados
por um conector.
Argumentar é apresentar um ponto de vista. Entretanto, cabe ao leitor, durante a
atividade leitora, apreender os diferentes sentidos que vão sendo desenvolvidos ao longo
do discurso destes profissionais.
Acredita-se que, ao se analisar as palavras envolvidas nesses discursos
jornalísticos, pode-se facilitar a compreensão dos sentidos ali inscritos. Diante disso,
apresenta-se, como objetivo geral deste trabalho, a análise do papel que o léxico
desempenha (palavras plenas e palavras instrumentais) na construção do sentido dos
discursos desdobraram-se em múltiplas linguagens. A construção de sentidos nos
diferentes e múltiplos discursos não é realizada da mesma maneira, não segue uma
regra que se comportam diferentemente no momento de construção desses sentidos.
Um conjunto de considerações pragmático-discursivas constitui o cerne da
história da retórica. O retorno à retórica faz sentir que muitas das preocupações atuais
dos estudiosos da linguagem, no que concerne à eficácia da palavra, assentam-se
em preceitos advindos dos clássicos e dos teóricos contemporâneos da argumentação.
Avulta das considerações tecidas um aspecto particular caracterizador do
dinamismo da linguagem, que é o lugar ocupado pelos sujeitos que lançam mão de
argumentos relativos aos seus objetivos comunicativos e objetos de discurso. Nesse
sentido, defrontamo-nos com uma subjetividade enunciativa que extrapola os limites de
uma consciência empírica do sujeito. Pela enunciação que o constitui, ele mobiliza um
ou mais coenunciadores, fazendo-os aderir ou refutar o universo de significações
ou sentidos atribuídos histórica e culturalmente aos objetos de predicação. O
enunciador é, para mim, o grande tecelão do mundo representado nos eventos
comunicativos de que participa.Nessesentidoéquecabenosestudos daargumentação,
ou da construção argumentativa dos textos, aproximar teorias de textos e discursos das
teorias sociológicas, assumindo, portanto, um posicionamento multidisciplinar perante a
investigação dos fenômenos linguísticos.
SUMÁRIO
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1.................................................................................................................1
A LITERATURA SOBRE O SEXO E A SEXUALIDADE NO BRASIL NO PERIODO DA DITADURA
MILITAR
Solange Aparecida de Souza Monteiro
Paulo Rennes Marçal Ribeiro
DOI 10.22533/at.ed.3031914081
CAPÍTULO 2...............................................................................................................13
A FALA DE ULYSSES GUIMARÃES NA PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988:
UMA ANÁLISE BAKHTINIANA
Tayson Ribeiro Teles
DOI 10.22533/at.ed.3031914082
CAPÍTULO 3...............................................................................................................24
A ARGUMENTAÇÃO E A RETÓRICA NO SERMÃO DA SEXAGÉSIMA, DE PADRE ANTÔNIO VIEIRA:
UMA ABORDAGEM PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO
Gabriela Lages Veloso
Letícia Rodrigues da Silva
DOI 10.22533/at.ed.3031914083
CAPÍTULO 4...............................................................................................................35
ARQUITETURA DA ARTE DE CONTAR: A NATUREZA SOCIOLÓGICA E A COMUNICAÇÃO
ESTÉTICA NO CONTO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Márcia Adriana Dias Kraemer
Alba Maria Perfeito
DOI 10.22533/at.ed.3031914084
CAPÍTULO 5...............................................................................................................55
COMO TRABALHAR A LITERATURA SOB REGIMES AUTORITÁRIOS EM SALA DE AULA
Cícera Tayana Francelino Fernandes
DOI 10.22533/at.ed.3031914085
CAPÍTULO 6...............................................................................................................66
A INTENCIONALIDADE MARCADA NOS TEXTOS INSTRUCIONAIS: O QUE HÁ DE NOVO NISSO?
Hilma Ribeiro de Mendonça Ferreira
Silvia Adélia Henrique Guimarães
DOI 10.22533/at.ed.3031914086
CAPÍTULO 7...............................................................................................................85
DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS NO ENSINO DE PORTUGUÊS
Maria Auxiliadora Bezerra
DOI 10.22533/at.ed.3031914087
CAPÍTULO 8.............................................................................................................103
IGREJA” E “SENHOR”: A CRÍTICA À RELIGIÃO NAS LETRAS DE MÚSICA DA BANDA TITÃS À LUZ
DAS REFLEXÕES BAKHTINIANAS
Claudia de Fátima Oliveira
Camila de Araújo Beraldo Ludovice
DOI 10.22533/at.ed.3031914088
SUMÁRIO
CAPÍTULO 9............................................................................................................. 114
FICÇÃO E MEMÓRIA EM SIMÁ: ROMANCE HISTÓRICO DO ALTO AMAZONAS, DE LOURENÇO DA
SILVA ARAÚJO
Daniel Padilha Pacheco da Costa
DOI 10.22533/at.ed.3031914089
CAPÍTULO 10...........................................................................................................133
PRESENÇA E USO DOS MARCADORES DISCURSIVOS EM ESTUDANTES BRASILEIROS DE
ESPANHOL COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA
Cristina Corral Esteve
DOI 10.22533/at.ed.30319140810
CAPÍTULO 11...........................................................................................................146
VARIAÇÃO FONÉTICA NO POVOADO ONÇA DO MARANHÃO: ANÁLISE DOS FENÔMENOS DE
REDUÇÃO DO DITONGO “OU” EM “O” E REDUÇÃO DO DITONGO “EI” EM “E”.
Shayra Brunna Silva Marques
Ana Claudia Menezes Araujo
DOI 10.22533/at.ed.30319140811
CAPÍTULO 12...........................................................................................................157
PLE + ELO: UMA EXPERIÊNCIA VIRTUAL NO ENSINO DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA
ESTRANGEIRA NA UFLA
Débora Racy Soares
DOI 10.22533/at.ed.30319140812
CAPÍTULO 13...........................................................................................................164
MOBILED-ASSISTED LANGUAGE LEARNING: QUESTÕES ACERCA DO USO DE SMARTPHONES
EM SALA DE AULA DE LÍNGUA INGLESA
Luana de França Perondi Khatchadourian
DOI 10.22533/at.ed.30319140813
CAPÍTULO 14...........................................................................................................175
MATERIAL DIDÁTICO PARA O ENSINO DE INGLÊS: UMA PROPOSTA POR MEIO DA PEDAGOGIA
DE MULTILETRAMENTOS
Patrícia Helena da Silva Costa
DOI 10.22533/at.ed.30319140814
CAPÍTULO 15...........................................................................................................189
ORIGENS E FRONTEIRAS DO COSMOS: O PODER DA PALAVRA
Márcio Moreira Costa
DOI 10.22533/at.ed.30319140815
CAPÍTULO 16...........................................................................................................199
MULTILETRAMENTOS NA FORMAÇÃO INICIAL DOCENTE: APROXIMAÇÕES ENTRE REFLEXÃO
E AÇÃO
Maria de Lourdes Rossi Remenche
Ana Paula Pinheiro da Silveira
DOI 10.22533/at.ed.30319140816
SUMÁRIO
CAPÍTULO 17........................................................................................................... 211
O MÉTODO FÔNICO E A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO
Alice Santos Pimentel Nunes
Terezinha de Jesus Dias Pacheco
DOI 10.22533/at.ed.30319140817
CAPÍTULO 18...........................................................................................................223
NARRATIVAS COERENTES E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE EM GRUPOS VULNERÁVEIS
Dóris Cristina Gedrat
André Guirland Vieira
Gehysa Guimarães Alves
Cláudio Schubert
DOI 10.22533/at.ed.30319140818
CAPÍTULO 19...........................................................................................................235
BEM-ME-QUERO, BEM-TE-QUERO: UM PROJETO DE PSICOLOGIA EDUCACIONAL SOBRE
CORPOREIDADE E GESTÃO DO CUIDADO
Roselaine Vieira Sônego
Allan Henrique Gomes
DOI 10.22533/at.ed.30319140819
CAPÍTULO 20...........................................................................................................248
MASCULINIDADE NA LITERATURA: UMA HISTÓRIA HERDADA SOCIALMENTE
Francisco Heitor Pimenta Patrício
Cícero Hériclis Ângelo Pereira
Josilene Marcelino Ferreira
DOI 10.22533/at.ed.30319140820
CAPÍTULO 21...........................................................................................................260
ENSINANDO PLE NA UFLA ATRAVÉS DO AVA - AVANÇAR
Débora Racy Soares
DOI 10.22533/at.ed.30319140821
CAPÍTULO 22...........................................................................................................267
MARCAS DOS PAISES IMPERIALISTAS NA CONSTITUIÇÃO E REORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO
BRASILEIRA
Rosa Maria Silva Braga
Lucia Torres de Oliveira
DOI 10.22533/at.ed.30319140822
SOBRE A ORGANIZADORA....................................................................................277
ÍNDICE REMISSIVO.................................................................................................278
Capítulo 1 1Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 1
A LITERATURA SOBRE O SEXO E A SEXUALIDADE
NO BRASIL NO PERIODO DA DITADURA MILITAR
Solange Aparecida de Souza Monteiro
Paulo Rennes Marçal Ribeiro
Poderia dizer que a vida é bela, e
muito, que a revolução caminha com
pés de flor... mas não. O poeta mente.
A vida nós amassamos em sangue e
samba enquanto gira inteira a noite
sobre a pátria desigual. (Ferreira
Gullar)
PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Sexo.
Sexualidade. Ditadura Militar.
No Brasil, a educação sexual – bem como
suas práticas contemporâneas – sempre foi
tratada como a deflagradora de uma série de
mudanças radicais. Por isso, para compreendê-
la na atualidade, os historiadores consideram o
período iniciado em 1964 como um marco para
a disciplina, sobretudo a repressão advinda do
golpe militar ocorrido neste ano.
É importante ressaltar o fundamentalismo
pós-2012, que culminou na eleição de Jair
Bolsonaro em 2018, com formação militar, e
por isso é válido resgatar o período proposto
como uma valiosa fonte de conhecimento de
nossos traços identitários, culturais e hodiernos,
mesmo que a tarefa seja proposta por aqueles
que não atuaram em tal contexto, como é o
caso de minha geração, que nasceu em meio
a esse processo e “aprendeu”, nas décadas de
70 e na primeira metade da década seguinte, a
negar o passado recente, a silenciar/apagar as
torturas, as reivindicações, as movimentações
inflamadas e engajadas dos que esperavam “a
volta do irmão do Henfil”.
Foi na década de 1960 que as
transformações sociais e culturais, advindas
das lutas de grupos que buscavam sua
autoafirmação na trama social, como negros
e mulheres, começaram a ter visibilidade
e, consequentemente, passaram a ter mais
espaço na academia. A sexualidade se tornou
visível a partir de fins da década de 1970,
capitalizada e apropriada por vários meios de
comunicação de massa, sobretudo a televisão.
A criação dos anticoncepcionais consegue
separar a procriação do prazer sexual, com
isso, enfim, este poderia ser vivido com toda
a liberdade. Essa nova liberdade sexual e seu
novo foco, ainda assim, vem acompanhada de
uma mentalidade individualista, hedonista, em
um mundo marcado pela ideologia neoliberal.
A apropriação dessa nova visão do sexual
também chega ao mercado e ao marketing,
marcando o início de uma nova era em que a
publicidade começa a notar que mercadorias
associadas ao sexo vendiam melhor. Com isso
Argumentação e Linguagem Capítulo 1 2
surge toda uma indústria, muito além do mercado pornográfico e o mercado sexual
propriamente dito (prostituição, tráfico de mulheres, prostituição infantil, etc.), que
trouxe consigo uma nova imagem de produtos e uma nova forma de marketing, a
propaganda oriunda desse processo se torna um mediador fundamental entre cultura
e economia.
Nos anos 80 surgem novas expectativas para que as discussões sobre as
diferenças entre homens e mulheres e as atribuições de gênero se ampliem. À medida
que movimento feminista conquista algumas de suas reivindicações e sua visibilidade
e atuação se tornam mais evidentemente públicas, ele busca algo além de apenas a
igualdade de direitos entre homens e mulheres, também ampliando o debate para a
necessidade de se conquistar e/ou preservar o direito às diferenças, contribuindo para
novos desenvolvimentos no cenário da cultura moderna.
Os pioneiros sexólogos trazem do período entre guerras um princípio de
formação de mentalidade favorável à educação sexual, o que possibilitaria as primeiras
experiências efetivas da implantação da educação sexual nas escolas brasileiras na
década de 1960. Em 1968, a revista Veja traz um artigo que mostra a presença do
tema, intitulado “Sexo na sala de aula”: o artigo discorre sobre se deve-se estabelecer
um discurso sobre sexo com o aluno.Ainda assim, as divisões políticas da época viriam
a marcar com duras barreiras o desenvolvimento de projetos que regulamentassem a
obrigatoriedade do ensino de educação sexual nas salas de aula. Isso é exemplificado
pelo esforço empreendido pelo padre Arruda Câmara, apoiado por seu partido, o
ARENA, para barrar o projeto de lei da deputada do MDB, Júlia Steinbruch, que tratava
dessa obrigatoriedade.
Congressos Nacionais sobre Educação Sexual nas escolas de iniciativa
privada ocorreram entre 1978 e 1979. O risco de infecção pelo HIV e o aumento
nos casos de gravidez não planejada em adolescente fazem com que debates sobre
a inclusão da orientação sexual no currículo das escolas se intensifiquem (BRASIL,
2001), chegando, no ano de 1983, ao 1º Encontro Nacional de Sexologia, organizado
pela Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, que tinha o objetivo de debater
o controle preventivo de Doenças Sexualmente Transmissíveis e a gravidez indesejada
entre adolescentes e jovens (GUIMARÃES, 1995).
Um retrocesso nesta caminhada, que obteve sucesso em implantar alguns
programas de educação sexual em cidades importantes do país na década de 1960,
vem com o Golpe de Estado de 1964, cujo governo, quatro anos depois, baixou o Ato
Institucional nº 5, que suspendeu várias garantias constitucionais, inclusive fechando
o Congresso Nacional por quase um ano. A educação sexual não é bem vista pela
moral conservadora. De acordo com César (2009), somente a partir dos anos finais da
década de 70 e dos anos 80, com a reabertura política, abre-se novamente o espaço
para a discussão da sexualidade e da Educação Sexual.
Portanto, na maior parte das décadas de 60/70, período de constituição e
desenvolvimento do Projeto da Educação Moral e Cívica na Educação Brasileira, os
Argumentação e Linguagem Capítulo 1 3
militares estão no comando dos rumos do país, e a igreja católica detém o domínio do
sistema educacional, atuando como ideologia dominante junto ao discurso jurídico, o
que resultou em severa repressão à Educação Sexual neste período. Apesar disso,
alguns livros referentes à sexualidade foram publicados, mas todos com o intuito de
responder questões relacionadas à sexualidade em seu caráter biológico e produtivista.
O processo de implantação oficial da educação sexual nas escolas brasileiras
sofreu muita repressão, legal e ideológica. No período, em conexão com movimentos
sociais de minorias, escolas do Rio de Janeiro e Belo Horizonte organizaram programas
de educação sexual. Segundo Guimarães (1995), em São Paulo, tentativas de se
incorporar a educação sexual aos currículos de algumas escolas públicas deram
origem a um projeto com intuito de prevenção e informação, que foi implantado em
algumas instituições escolares.
Com isso, os elementos das conquistas dos movimentos e lutas do período – a
pílula, escolher ou não casar, ter ou não filhos, trabalhar fora, etc. – que chegaram a
público podem ter sido apresentados de maneira deturpada ou ainda ofuscados por
discursos que eram, e ainda são, muito controversos: o divórcio e o aborto.
Tais questões, na verdade, mais contribuíam para desviar o foco político e social
do movimento que, aos poucos e com dificuldade, vinha ganhando maior força ao longo
dos anos 70. Esse desfoque contribuiu para uma incorporação do mundo masculino
ao feminino de forma deturpada: a noção de igualdade trazida pelos ideais liberais
consistia em ignorar diferenças de gênero, ou a negá-las completamente.
Já na última década do século XX, a mídia começa a dar cada vez mais destaque
ao comportamento sexual, e com isso surgem várias obras que tem a sexualidade
como objeto de investigação (HITE, 1978, 1983; GOLDBERG, 1981; CHAUÍ, 1982;
SUPLICY, 1983; MURARO, 1983; RIBEIRO, 1990; GUIMARÃES, 1995). Por um lado,
atitudes e comportamentos sexuais se tornam mais flexíveis; por outro, o discurso de
contensão e repressão, arraigado na sociedade desde o século XIX, contesta essas
liberdades sexuais emergentes.
Com relação à historicidade das construções discursivas em torno da sexualidade
das novas gerações, corrobora-se com a ideia de que
no olhar sobre a história, o importante é perceber que existe uma relação direta entre
a forma como certa identidade e certo sujeito são representados e o movimento
cultural, social e político da construção dos saberes de sua(s) representação(ões).
Todo saber é construção (FURLANI, 2008, p. 308).
ALiteratura Brasileira é muito discutida nas escolas, vista e analisada apenas pelo
lado das escolas e períodos literários. Porém poucas pessoas sabem da importância e
contribuições que ela teve no período da Ditadura. Assim, pretendemos mostrar, além
da sua forte relevância no período histórico, como os professores podem incluir na
disciplina de História dentro da sala de aula, diante desse contexto.
Além disso, é importante considerar que a educação sexual formal é sempre
instituída ou autorizada pelos poderes públicos. A História desta educação mostra que
Argumentação e Linguagem Capítulo 1 4
ela foi reclamada, proibida ou implantada em várias épocas diferentes de diferentes
sociedades, visando a resolver problemas, de certa forma, alheios aos interesses e
necessidades da criança e do jovem. Mesmo em nossos dias, ela é muitas vezes aceita
como um “mal necessário”, e não se deve esquecer que ela pode ser até antissexual e
servir como álibi para reprimir os comportamentos que certos grupos políticos, sociais
e religiosos condenam.
Para Werebe (1998, p. 204), não se pode, nos debate com os jovens em geral,
escamotear a verdade, a realidade dos fatos e os fatores que explicam os diferentes
aspectos afetivos da sexualidade; em particular amor e noção de prazer sexual devem
ocupar um lugar importante na educação sexual das crianças e jovens.
A Educação Sexual foi proposta para resolver vários problemas ligados, direta ou
indiretamente, à sexualidade. Ao contrário do que os discursos conservadores pregam,
esta disciplina não seria uma iniciação ao ato sexual, mas sim uma necessidade, tanto
de jovens quanto de crianças estudarem, observarem e entenderem este processo
de construção acerca da sua própria sexualidade, assim como a do outro. Observa-
se que, no período ditatorial, não existia educação sexual como disciplina escolar
obrigatória e pouco faziam os pais e mães a esse respeito, dentro dos lares. Essa
carência de informações foi refletida em maneiras de agir e discursos retrógrados, que
resultaram na presença de constantes violências e abusos sexuais.
Sendo assim minhas pesquisas, leituras e interesse na temática se justifica
pela necessidade educacional de provar/demonstrar o quanto é importante tratar da
tensão entre as relações políticas e as movimentações sociais, para que existam
possibilidades reais de transformações na realidade brasileira de ensino. Além disso,
também é relevante tratar da forma como a disciplina ainda é vista nos dias atuais,
trazendo consigo uma parte do discurso que era debatido nos anos de 1964-1985, não
demonstrando de fato uma evolução na forma como é vista ou tratada.
E ainda refletir como os impactos da ditadura sobre a cultura brasileira,
especialmente a cultura de ensino, tais como a memória das práticas socioculturais de
resistência à ditadura, como legado da nação brasileira e as formas de organização
coletiva como criação de espaços humanizadores.
A LITERATURA SOB A LENTE PEDAGÓGICA
Freire (2005) aborda que seja formar um leitor crítico. A criticidade está na
percepção do educando e sobre como este observa, interpreta e age sobre o contexto
social em que se insere. Freire afirma, “O ato de ler não se esgota na decodificação
pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas se antecipa e se alonga na
inteligência do mundo
Pode-se observar que logo de início, que a Literatura dentro de uma lente mais
pedagógica é trabalhada de diversos modos quando comparamos a escola pública e
Argumentação e Linguagem Capítulo 1 5
privada. Na maior parte das escolas particulares a literatura é vista de forma separada,
o seu enfoque está incluído nas disciplinas de Português e redação. No entanto, em
algumas escolas públicas ela nem é valorizada, vista de forma muito superficial e
especificamente no ensino médio.
Os referenciais teóricos presentes na obra do linguista russo Michael Bakhtin
(2003) mostram que todos os campos das atividades desenvolvidas pelo ser humano
estão ligados ao uso da linguagem e que esse uso é tão variado quanto os campos da
atividade humana.
Para Zilberman, colocar livros nas mãos das camadas populares significa
quebrar a tradição das camadas burguesas em permanecer no poder por séculos.
Leitura é conhecimento, para além de informar, coloca o sujeito frente a novas
perspectivas e realiza o processo de empoderamento social tão sonhado como
concretização de uma escola pública de qualidade.
A SITUAÇÃO DA LITERATURA NO PERÍODO DA DITADURA MILITAR
A Literatura passou por uma sucessão de censuras, por ser um instrumento de
denúncias sobre a situação que o Brasil estava presenciando. Além das poesias e
canções, abarcou todo o espaço da imprensa, como a televisão, teatro e cinema.
Eram destacados os principais autores para assim, manifestar-se mostrando o quadro
dos acontecimentos. Ocorreram vários níveis de expressão artística para assim, existir
um controle sendo trabalhada até com a Literatura infantil.
A Ditadura Militar Brasileira ocorreu entre os anos de 1964 e 1985. Várias
obras foram rejeitadas pelo estado. Um dos primeiros atos durante esse processo
foi proibir as pessoas de expressarem sua opinião e o fechamento da editorial Vitória
(editora brasileira ligada ao Partido Comunista Brasileiro, especializada em literatura
marxista). Tudo isso fazia parte de um ‘jogo’ para mantê-los no comando. Em 1970 foi
decretada uma lei que impedia essa liberdade (lei decreto n.1077/70), tratava-se de
censurar livros, revistas para que o povo não tivesse acesso aos mesmos. Stephanou
relata muito bem como eram feitas as apreensões. “As ações confiscatórias ocorriam
de forma primária, improvisadas, efetuadas por pessoas mal treinadas” (STEPHANOU,
2001, p.215).
OS PRINCIPAIS AUTORES QUE PARTICIPARAM DO PERÍODO DITATORIAL
O Brasil vivenciou duas décadas de repreensão. Dentro desse acontecimento
Histórico podemos destacar alguns autores, que representaram de maneira singular
as manifestações artísticas desse período. Foram muitos, na qual podem ser
apresentados alguns autores principais que utilizaram a liberdade de expressão para
superar a censura. Através dos romances foram descobertos os ataques que ocorriam,
Argumentação e Linguagem Capítulo 1 6
sendo muito doloroso para a família das vítimas, que tomavam conhecimento por meio
de livros.
A Literatura infantil foi o principal alvo dos escritores, por não ser supervisionada
pelos generais. A escritora Ana Maria Machado consegue mostrar através de sua
narrativa, os acontecimentos da época. Nas suas obras estão: “Tropical Sol da
Liberdade”, e as infantis, “Bento-que-Bento-é-o-Frade”, “Era Uma Vez Um Tirano”, e
“Raul Ferrugem Azul”.
De acordo com Zilberman (1991, p.127)
Em Ana Maria Machado, a proposta explicita de uma história de fadas invertida,
onde o príncipe casa com a pastora e a princesa vai cuidar de sua vida, pode ser
considerado o emblemado que pretende essa narrativa infantil moderna.
Além da escritora Ana Maria Machado, há outros autores, como: Nelson
Rodrigues, Caio Prado Junior, Rubem Fonseca, Cassandra Rios, entre outros, que
buscaram mostrar através de Literatura os fatos ocorridos no país, exatamente no
regime ditatorial por meio de romances.
De acordo com Dalcastagnè (1996, p.130). “É o romance que mais se preocupa
em contar detalhes do período, fornecendo informações [...] sobre o comportamento
da classe média sobre a situação das entidades estudantis do clero, dos jornalistas”.
Porém, Ana Maria Machado em uma entrevista realizada no programa “entrelinhas”,
revelou sua verdadeira intenção quando escreveu “Tropical Sol da Liberdade”. Ela
relata:
Não era uma decisão prévia, não era uma história política, não havia um projeto
ideológico. Quis falar da amendoeira, das formigas, do mar, da onda batendo.
Aí começam as lembranças da casa e aí entra tudo. Acho que o ser humano,
vivendo na sociedade, é político. Como eu vivi um momento de ditadura havia uma
preeminência de se falar em liberdade. (MACHADO, 2010,).
Contudo, ela não teve a intenção de sua obra ser interpretada de tal maneira.
Porém o público analisou de maneira ‘errônea’, como se a mesma fosse voltada para
a época em questão.
Cândido ainda manifesta sua opinião acerca do assunto.
[...] a posição do escritor depende do conceito social que os grupos elaboram em
relação a ele, e não corresponde necessariamente ao seu próprio [...] se a obra é
mediadora entre o autor entre o autor e o público, este é mediador entre o autor e
a obra na medida em que o autor só adquire plena consciência da obra quando
ela lhe é mostrada através da reação de terceiros. Isto quer dizer que o público
é condição do autor conhecer a si próprio, pois esta revelação da obra é a sua
revelação.
Tanto a posição de Ana Maria Machado quanto à de Antônio Cândido estão se
referindo ao fato de o autor não ter controle total no entendimento a respeito de sua
obra, pois quando os leitores entram em contato com a mesma formará sua opinião,
sendo escolhido o que é mais propicio para o momento. É exposto também, que a
partir dessa condição que o leitor tem será revelado o conhecimento acerca do autor.
Argumentação e Linguagem Capítulo 1 7
A CAMPEÃ DOS VETOS
Falecida em 2002, Cassandra Rios é a escritora mais censurada do Brasil. Em
1976, ela teve 33 de seus 36 livros proibidos pela ditadura. Os censores alegavam
“temas atentatórios à moralidade pública” para vetar livros apimentados, como O
Prazer de Pecar. Homossexual, Cassandra chegou a ser condenada à prisão.
Reimão (2009) aponta que a censura a livros durante a Ditadura Militar teve
uma atuação mais forte não nos chamados Anos de Chumbro (1968-1972), mas sim
durante o Governo Geisel (março de 1974 a março de 1979), e especialmente no final
desse governo. Sendo que o Governo Geisel, apesar dos momentos de retrocessos, foi
aquele em que se iniciou o processo de abertura política lenta e gradativa. A censura a
livros por parte do Departamento de Censura de Diversões Públicas foi maior quando
a maioria dos jornais e revistas estava sendo liberada da presença da censura prévia
nas redações.
Para Paulo Netto, (2005, p. 50-51) a ditadura civil-militar necessitava assim da
edificação de um consenso propício para a manutenção da ordem capitalista, embora
mantivesse o controle policial militar pronto para assegurar a ordem pela força. Dessa
forma, a política cultural da ditadura, na sua implementação diferenciada ao longo
do desenvolvimento do processo autocrático burguês, realizou-se a partir de um
duplo e simultâneo movimento, o de repressão e o de transformação; pois ao mesmo
tempo que buscou uma orientação que reprimisse as tendências culturais de fundo
crítico ou que se direcionavam para a perspectiva nacional-popular procurou também
investir na criação de um bloco cultural coadunável com a sua projeção histórico-social
“modernizadora”, ou seja, objetivou induzir e promover a emergência de vertentes
culturais funcionais ao seu projeto “modernizador”, que lhe assegurassem tanto uma
efetiva legitimação ideal quanto a ausência de contestação concreta.
Dessa forma, podemos dizer que a política cultural do regime ditatorial teria
de conduzir duas frentes: reprimir as vertentes da intelectualidade ligada ao povo, a
produção cultural comprometida com a conscientização das parcelas da população
menos favorecidas economicamente, principalmente o operariado urbano e os
camponeses; e induzir e promover a emergência de tendências culturais funcionais ao
projeto ‘modernizador’, além da retomada do conservadorismo e o aprofundamento do
individualismo e do consumismo no âmbito da cultura.
De acordo com Paulo Netto (2015), da mesma forma que não podemos
compreender o golpe de 1964 sem relacioná-lo ao panorama mundial que o
contextualiza, não podemos compreender a contestação de que o regime ditatorial foi
alvo, em 1968, sem considerar o que estava ocorrendo fora das fronteiras brasileiras.
Nos países capitalistas centrais, em 1968, com o protagonismo primordial de uma
juventude universitária, entrecruzaram-se e confluiram, numa intricada explosão
contestatória, tendências artísticas, transformações culturais, posturas filosóficas,
lutas sociais e posições políticas muito diversas.
Argumentação e Linguagem Capítulo 1 8
LIVROS ERÓTICOS/PORNOGRÁFICOS
Os romancistas da época, começando a citar uma pessoa que escreveu muito
bem a situação do Brasil, o escrito Baiano JorgeAmado, com o livro ‘Capitães deAreia’,
‘O Porto dos Milagres’, e ‘vidas Secas’ de Graciliano Ramos, e romances de Rachel de
Queiroz. São obras que ajudam a entender o golpe pré militar. Após o golpe, devemos
frisar que houve um cerceamento, sementes de liberdade que chegou à Literatura,
que foram queimadas e proibidas de circular sendo suprimidas pelo autoritarismo do
governo.
De acordo com a pesquisadora Reimão (2009), os livros eróticos/pornográficos
nos arquivos do DCDP do Departamento de Censura de Diversões Públicas DCDP
encontram-se indicações de 70 livros eróticos/pornográficos de autores brasileiros
vetados; o livro de Deonísio da Silva (1989), Nos bastidores da censura, apresenta
69 títulos com esse perfil; comparando-se as duas listagens e excluindo-se as
repetições, resulta que cerca de 100 livros eróticos/pornográficos de autor nacional
foram censurados no período da ditadura militar.
Entre esses, 18 são de autoria de Cassandra Rios; 13, de Adelaide Carraro; 22
são assinados como Dr. G. Pop; 17, como Brigitte Bijou; e seis, como Márcia Fagundes
Varella.
Adelaide Carraro e Cassandra Rios foram, nos anos 1960 e 1970, campeãs de
vendagem. Seus livros, considerados eróticos ou francamente pornográficos, eram
lidos às escondidas por adolescentes e adultos. Eram livros “fortes” que misturavam
política, “negociatas” e sexo, muito sexo. E como tais eram lidos.
Os livros de Adelaide Carraro proibidos pela censura foram: Carniça; O castrado;
O Comitê; De prostituta a primeira dama; Escuridão; Falência das elites; Os padres
também amam; Podridão; Sexo em troca de fama;Submundo da sociedade; A
verdadeira história de um assassino; Mulher livre e Os amantes.
Os livros de Cassandra Rios censurados foram: A borboleta branca; Breve
história de Fábia; Copacabana Posto Seis; Georgette; Maçaria; Marcella; Uma mulher
diferente; Nicoleta Ninfeta; A sarjeta; As serpentes e a flor; Tara;Tessa, a gata; As
traças; Veneno; Volúpia do pecado; A paranoia; O prazer de pecar e Tentação sexual.
Os livros de G. Pop, Brigitte Bijou e Márcia Fagundes Varella censurados
ostentavam títulos como: Astúcia sexual; Cidinha a insaciável; Graziela amava e
...matava; Clube dos prazeres; O padre fogoso de Boulange ou Noviça erótica.
Não nos esqueçamos de que parte dos militares via a sexualidade podendo ser
utilizada como ferramenta do “expansionismo comunista”. Exemplos dessa postura
foram coletados por Paolo Marconi (1980) em Acensura política na imprensa brasileira;
citemos um, nas palavras do tenente-coronel Carlos de Oliveira:
O sexo é um instrumento usado pelos psicopolíticos para perverter e alienar a
personalidade dos indivíduos, partem para o descrédito das famílias, dos governos,
e passam à degradação da nação, bem como intensificam a divulgação da literatura
Argumentação e Linguagem Capítulo 1 9
erótica e da promiscuidade sexual.
Há quem diga que eu dormi de touca
Que eu perdi a boca, que eu fugi da briga
Que eu caí do galho e que não vi saída
Que eu morri de medo quando o pau quebrou
Há quem diga que eu não sei de nada
Que eu não sou de nada e não peço desculpas
Que eu não tenho culpa, mas que eu dei bobeira
E que Durango Kid quase me pegou
Eu quero é botar meu bloco na rua Brincar, botar pra gemer
Eu quero é botar meu bloco na rua Gingar, pra dar e vender
Eu, por mim, queria isso e aquilo
Um quilo mais daquilo, um grilo menos disso
É disso que eu preciso ou não é nada disso
Eu quero é todo mundo nesse carnaval
Eu quero é botar meu bloco na rua Brincar, botar pra gemer
Eu quero é botar meu bloco na rua Gingar, pra dar e vender
Ainda quando era professora, ouvi de um aluno sobre a tão-lida Capitães da
Areia. Um aluno do 1º ano do ensino médio me afirmou: “Professora, Capitães da
Areia é o melhor livro do Brasil”. Uma outra aluna do 9º ano disse: “eu pensei que ia
ser cansativa e chata, mas a leitura está tranquila e me surpreendi. Gostei do capítulo
do carrossel”. E outra aluna, ainda, do 9º ano: “ao ler e refletir acabei sentindo na
pele do que aconteceu com a Dora, eu não parei de chorar”. Além da escola formal,
eis o relato de uma senhora aluna de um projeto, que parecia distante desse trem de
literatura: “Esse Capitães da Areia é muito lindo, fala da realidade do povo” – ao que
segue um acabamento: “estou lendo em voz alta para o meu marido que não sabe
ler”. Se é que o imprevisto faz uma surpresa, talvez não imaginássemos que fossem
tantas.
A pergunta recorrente é o que há, nesse Capitães da Areia? Dentro de uma
obra-prima como esta, o leitor, primeiro, percebe uma linguagem direta e sem
tantas embromações, já com intenção de “falar da realidade”: realidade de crianças
abandonadas na Bahia de 1937. Jovens com quem o próprio Jorge Amado conviveu
por um período em que dormiu no trapiche abandonado para escrever o livro. Com
humanidade, com tudo.
Capitães da Areia foi queimada em 1937 pelo governo Vargas, por ser
considerada de “propaganda comunista”.
Lá se vão 80 anos e a obra é condenada aqui emAraraquara. Pois uma professora
foi denunciada na Diretoria de Ensino, por uma mãe de aluno alegando que a obra
Capitães da Areia continha “pornografia”. Mas Araraquara não deixou por menos:
Argumentação e Linguagem Capítulo 1 10
houve protesto na Unesp, houve menção na audiência pública contra o Escola “Sem
Partido” que quer punir conteúdos transmitidos há anos.
O tema central da obra no início da obra há uma série de reportagens fictícias
que explicam a existência de um grupo de menores abandonados e marginalizados
que aterrorizam a cidade de Salvador e é conhecido por Capitães da Areia.  A obra
Capitães de Areia do autor Jorge Amado, foi caracterizada pela sexualidade das
personagens. Qualificada pelo protagonista Pedro Bala que em uma das cenas,
estupra uma adolescente nos areais de Salvador.
A Ditadura Militar deixou marcas negativas e traumáticas no país. A Literatura,
porém, teve sua participação em romances escritos, que de certa forma conseguiu
expressar e repassar através de palavras esse regime. A análise que será feita a
seguir, foram publicadas entre os anos de 1970 e 1978.
O primeiro poema é do escritor Nicolas Behr, chamado “Receita”, publicado em
Caroço de goiaba (1978):
Ingredientes:
2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos Beatles
Modo de preparar:
dissolva os sonhos eróticos
nos dois litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração
corte tudo em pedacinhos
e repita com as canções dos beatles
o mesmo processo usado com os sonhos eróticos
mas desta vez deixe ferver um
pouco mais e mexa até dissolver
parte do sangue pode ser substituído por suco de groselha
mas os resultados não serão os mesmos
sirva o poema simples ou com ilusões
(BEHR, 1978)
O poema “Receita” faz uma referência aos impactos causados pela Ditadura
para a juventude. Através de uma receita pôde ser mostrado que com a mudança de
apenas um ingrediente poderia mudar o rumo dos acontecimentos. No primeiro verso,
é feita uma análise, fechada somente para o contexto dos acontecimentos recentes, e
em todo o poema relata marcas de autoritarismo. Contudo, o autor procurou mostrar
Argumentação e Linguagem Capítulo 1 11
como uma geração inteira foi atingida, trazendo no último verso as maneiras que leitor
pode interpretá-lo, (“o poema simples”), ou (“ou com ilusões “).
Odeio os indiferentes. Creio [...] que “viver é tomar partido”. [...]. Quem vive
verdadeiramente não pode deixar de ser cidadão e de tomar partido. Indiferença
é abulia, é parasitismo, é covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes. A
indiferença é peso morto da história. [...]. A indiferença atua poderosamente na
história. Atua passivamente, mas atua. [...]. Odeio os indiferentes também porque
me dão tédio suas lamúrias de eternos inocentes. [...]. Vivo, tomo partido. Por isso,
odeio quem não se compromete, odeio os indiferentes. (GRAMSCI, 1982, pp. 84-
87).
Diante de tudo, afirmamos que o propósito desse trabalho foi de mostrar a
relevância da Literatura no período da Ditadura Militar, e como ela pode ajudar o
professor quando se olha para lado mais específico do contexto. A partir de várias
pesquisas, reencontros com as minhas histórias enquanto professora, conseguimos
penetrar no sentimento e sentido da literatura neste período de forte repressão e
obscurantismo político, ético e cultural. Concluir que esse assunto não é algo novo, e
é muito mais importante do que se pensa. Vendo pelo lado pedagógico, nem todos os
professores enxergam e utilizam a literatura como desvelamento de um passado forte
que por meio do sofrimento e a dor, incidem marcas ainda tão presente por todos os
lugares perpassando todos os meios, ou seja familiar, acadêmico, social e cultural.
A literatura na formação das novas gerações necessita ser trabalhada na
perspectiva contrária à do ajustamento à da sociabilidade da cotidianidade capitalista
contemporânea. É preciso fazer da socialização do grande romance a produção da
percepção das relações entre a vida individual e o processo histórico de luta pela
emancipação humana, tanto no sentido da crítica aleijar e alijar ser humano, como no
sentido da atrair possibilidades de superação desse completo esvaziamento.
Entrar no universo literário e histórico, buscando na aproximação dos estudantes
em meio ao universo tecnológico do século XXI é uma possibilidade que precisa ser
considerada. Buscar, ideias, estratégias, exemplos de obras a serem trabalhadas,
entre outros elementos, que a maioria dos nossos alunos não tiveram contato e acesso,
podendo unir os gosto, perfumes e sabores dos mesmos a seu cotidiano.
Além disso, compreendemos que a obra literária deve ter presença marcante
em todo o processo escolar de um aluno; mas, nessa relação entre a leitura de obras
literárias e o desenvolvimento do aluno, a função do professor é fundamental, pois ao
docente cabe a seleção das obras adequadas ao nível de desenvolvimento intelectual
dos alunos. Em outras palavras, se o professor orientar o adolescente na leitura de
uma obra literária em que a complexidade vá além do seu desenvolvimento cognitivo,
a leitura fracassará, pois, o aluno ainda é incapaz de incorporar à sua subjetividade a
conhecimento humanizadora artisticamente resumida naquela obra; e, se orientá-lo
na leitura de uma obra pouco ou nada complexa para o seu nível de desenvolvimento,
a leitura também fracassará, uma vez que não lhe proporcionará nada qualitativamente
novo.
Argumentação e Linguagem Capítulo 1 12
Devemos, nesse momento, novamente assinalar que a literatura, forma de
expressão artística, não impede o fenômeno da alienação na sociedade capitalista,
mas pode exercer um papel libertador na formação humana.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: Editora
UnB, 1996.
FREIRE, Paulo. A Importância do ato de ler. 4ª ed. São Paulo: Cortez. 2005.
MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira (1968-1978). São Paulo: Global, 1980.
PAULO NETTO, José. Pequena história da ditadura brasileira (1964-1985). São Paulo: Cortez, 2014.
STEPHANOU, Alexandre Ayub. Censura no Regime Militar e Militarização das Artes. Porto Alegre
:Edipucrs, P. 215, 2001.
REIMÃO, Sandra. Mercado editorial brasileiro. São Paulo: ComArte, FAPESP, 1996.
ZILBERMAN, Regina. O estatuto da literatura infantil. In;
ZILBERMAN, Regina, MAGALHÃES, Ligia Cadermatori. Literatura infantil: autoritarismo e
emancipação. São Paulo; Ática, 1982. p.3-24. (Ensaios, 82.) ZILBERMAN, Regina, LAJOLO, Marisa.
Um Brasil para crianças-, para conhecer a literatura infantil brasileira; história, autores e textos. São
Paulo; Global, 1986. 364p.
Capítulo 2 13Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 2
A FALA DE ULYSSES GUIMARÃES NA
PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE
1988: UMA ANÁLISE BAKHTINIANA
Tayson Ribeiro Teles
Docente do Magistério Federal - EBTT de
Economia e Gestão de Finanças e Comércio do
Instituto Federal do Acre – IFAC. Tarauacá – Acre.
E-mail: tayson.teles@ifac.edu.br.
RESUMO: este capítulo de livro abriga uma
síntese de pesquisa engendrada no Mestrado
em Linguagem e Identidade (Cultura e
Sociedade) da Universidade Federal do Acre –
UFAC, concluída em 2016. Analisamos a fala do
Deputado Federal Ulysses Guimarães quando
ele, na condição de presidente da Assembleia
Nacional Constituinte de 1987-88, promulgou a
atual Constituição Federal do Brasil, de 1988,
em 5 de outubro daquele ano. Pela metodologia
da revisão bibliográfica, com supedâneo nas
ideias do filósofo e linguista russo Mikhail
Bakhtin, analisamos esse discurso político a
partir do que cremos serem as suas principais
partes/significantes. O tema é atual, porquanto
em 2018 a Constituição de 1988 completou 30
anos.
PALAVRAS-CHAVE: Promulgação da
ConstituiçãoFederalde1988.Falapromulgadora.
Análise. Mikhail Bakhtin.
ABSTRACT: this book chapter contains a
synthesis of research engendered in the
Master’s Degree in Language and Identity
(Culture and Society) of the Federal University of
Acre - UFAC, completed in 2016. We analyze the
speech of Federal Deputy Ulysses Guimarães
when he, as president of the Assembly National
Constitution of 1987-88, promulgated the
current Federal Constitution of Brazil, of 1988,
on october 5 of that year. By the methodology of
the bibliographical revision, based on the ideas
of the russian philosopher and linguist Mikhail
Bakhtin, we analyze this political discourse from
what we believe are its main parts/signifiers.
The theme is current, because in 2018 the
Constitution of 1988 completed 30 years.
KEYWORDS: Promulgation of the Federal
Constitution of Brazil, of 1988. Speaking
enactment. Analyze. Mikhail Bakhtin.
1 | 	INTRODUÇÃO
Este capítulo de livro constitui-se como
uma análise da fala do Deputado Federal
Constituinte Ulysses Guimarães no dia da
promulgação da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 (doravante
CRFB/88), a quarta-feira de 5 de outubro de
1988, sendo tal análise feita com fulcro nas
teorias, ideias e pensamentos do filósofo,
historiador e filólogo russo Mikhail Bakhtin
(1895-1975).
A metodologia de pesquisa foi a
Argumentação e Linguagem Capítulo 2 14
exploração bibliográfica qualitativa/revisional, a qual foi aplicada no plasma dos
métodos dialético e dedutivo. Ulysses Guimarães foi o presidente da Assembleia/
comissão responsável por fazer nossa atual Constituição. Por isso, no dia da
promulgação dela coube a ele a tarefa de dizer que estava promulgada a Constituição,
ou seja, que a partir dali ela passaria a valer e que a Constituição de 1967 (quase toda
alterada pela Emenda n.º 1/1969) estava revogada, o que o Deputado fez em uma
histórica fala/discurso de pouco mais de dez minutos. É esta fala de Ulysses, chamada
por nós de “fala Ulyssiana” ou “fala promulgadora”, que analisamos com base em
Bakhtin.
Os resultados demonstram que a fala Ulyssiana, imergida na teoria bakhtiniana,
é um signo ideológico que reflete, com levada capacidade de síntese, os principais
acontecimentos havidos antes da feitura da CRFB/88, bem como demonstra, também,
boa parte das contradições, lutas e entraves sociais e políticos acontecidos para que
fosse elabora essa norma.
Em Bakhtin compreendemos que a fala de Ulysses não foi um ato discursivo
particular, individual, interno ou interior, mas um meio para divulgação de variadas
perspectivas existentes naquele momento. Não foi a fala Ulyssiana um “discurso”
em si mesma, mas um instrumento dissipador de uma espécie de “discurso social”
existente no Brasil desde o movimento “Diretas Já”.
2 | 	A PALAVRA EM BAKHTIN
Em Bakhtin relevância premente tem a palavra. Para o autor, esta é líquida, se
amolda a qualquer contexto, possui verdadeira “ubiquidade social”.
Frisou o russo:
[...] a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas
relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida
cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de
uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais
em todos os domínios. É, portanto, claro que a palavra será sempre o indicador
mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas
despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para
sistemas ideológicos estruturados e bem-formados. A palavra constitui o meio no
qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não
tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram
tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de
registrar as faces transitórias mais íntimas, mas efêmeras das mudanças sociais
(BAKHTIN, 2014, p.42).
Em Bakhtin a palavra é tão relevante que, com relação às nossas mentes, ao
nosso psiquismo, afirma ele: “a exclusão da palavra reduziria o psiquismo a quase
nada, que a exclusão de todos os outros movimentos expressivos a diminuiriam muito
pouco” (BAKHTIN, 2014, p. 53). De fato, a palavra é relevantíssima ao ser humano,
basta lembrarmos que quase todos os nossos pensamentos, como atos internos,
ocorrem em espécie de fala conosco mesmos. Ao leitor, agora, certamente estas
Argumentação e Linguagem Capítulo 2 15
palavras penetram, pela visão, inexplicavelmente, na mente, onde são refratadas.
Bakhtin percebeu o poder da palavra. Para ele o homem nasce vivo, imerso
na vida material, na história, mergulhado, de forma inescapável, na prática, nas
perspectivas deste mundo, e, por meio de palavras, inventadas por ele mesmo, cria
formas de dominação sobre si mesmo. Cria deuses, rituais, mitos, verdades, mentiras
e, principalmente, formas e métodos de encobrir a realidade, o real, a vida que se
passa aí nas ruas, no fôlego das pessoas, na chuva, no sertão, nas tundras, nos
igarapés.
Bakhtin (2014) notou que a palavra cria a realidade. A partir desse ponto sua
contribuição é incomparável para percebemos que sim pode o homem mudar sua
realidade reinterpretar, (re)significar, mudar a história. Não que a ideologia seja criada
por mentes (palavras) individuais, não. A ideologia é social, material, grupal. Ocorre
que a ideologia não é o real, ela apenas é um elemento usado pelos poderosos, na
verdade os que têm mais poder – pois todos temos certo quantum de poder -, para
encobrir o real, que é produzido pelas palavras individuais, que se somam a todo o
momento.
O autor acreditava que a palavra dita é o signo ideológico primordial de um
sistema linguístico, pois esta é a ponte entre o mim/eu e o outro. Para o filósofo é como
se a língua – e por conseguinte a linguagem, fosse em si mesma a expressão das
relações e lutas sociais, que, como quis Marx, nada mais são do que lutas de classes.
Nesse sentido, nos utilizamos da base teórica de Bakhtin para analisar a essência
da fala de promulgação da Constituição Federal de 1988, por meio da análise suas
principais palavras e expressões de efeito.
3 | 	A “FALA ULYSSIANA” EM BAKHTIN
A primeira coisa que nos chama atenção na fala Ulyssiana é sua técnica. Ulysses
escreveu muito bem sua fala. Logo nas primeiras frases que disse, cumprimentando as
autoridades presentes, exclamou: “[...] prestigiosos Srs. Presidentes de confederações
[...]”. Vejamos que ele não disse o usual “prestigiados(as)” que muitas pessoas usam
na linguagem coloquial1
.
Dizem os dicionários2
que prestigioso é aquele que tem prestígio, respeito social,
fama etc. ao passo que sabemos ser prestigiado um particípio passado do verbo
prestigiar, que, por óbvio, significa dar prestígio. Logo, já no início da fala Ulyssiana,
podemos verificar a técnica de Ulysses, ou possivelmente de seus assessores – para
aqueles que creem não ter sido Ulysses o autor de sua fala.
1	 Citamos, apenas para exemplificar, um discurso presente na internet, de 2003, proferido por Francisco
Banha, presidente de uma empresa do mercado de capitais chamada Gesventure. Disse ele: “[...] Uma palavra de
apreço aos ‘prestigiados’ oradores convidados [...]”. Disponível em: <http://www.gesventure.pt/5encontro/apresen-
tacoes/5enc_apres.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2019.
2	 Por exemplo em: <http://www.dicio.com.br/prestigioso/>. Acesso em: 12 abr. 2019.
Argumentação e Linguagem Capítulo 2 16
Ulysses, ainda no começo, diz: “Chegamos! Esperamos a Constituição [...]. Bem-
aventurados os que chegam [...]”. Percebamos que neste fragmento o vocábulo “Bem-
aventurado” foi utilizado em sua acepção normal, pois dizem os dicionários3
que este
significa muito feliz, eternamente feliz, totalmente feliz etc.
Pensamos ter Ulysses possivelmente o utilizado, em face de alguns de seus
sinônimos, para entronar a ideia de que fazer a Constituição foi uma “aventura
dificultosa”. Dizemos isso, porquanto aventura também tem um significado que
contextualiza isso: façanha ou proeza; ato ou ação perigosa, arrojada.4
Além disso,
podemos ainda pensar haver alguma pretensão de “sacralizar” o momento na medida
em que essa lexia é integrante de várias expressões da Bíblia Cristã Sagrada ocidental.
Ulysses diz, ainda, em certo ponto: “[...] garrotear a liberdade [...]”. Nesta
passagem o presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 (ANC) fez
referência ao comportamento dos militares no governo do país, os quais, para ele,
quando estiveram no poder garrotearam a liberdade do povo. “Garrotear”, dizem os
dicionários de maneira comum5
, é esganar ou estrangular utilizando um garrote, uma
espécie de fio, corda ou arame, o que se faz geralmente com animais.
Aqui cremos que Ulysses possivelmente optou por usar este vocábulo, pois quis
(tentar) exprimir a força da opressão física erigida pela ditadura militar que “governou”
a nação entre 1964-1985. Dizemos isso, pois ele tinha à sua disposição alguns
sinônimos mais tênues e não usou, como eliminar, destruir, cessar etc.
Em certo momento Ulysses consignou também se referindo à Constituição que
estava sendo promulgada: “[...] bradamos por imposição de sua honra: temos ódio
à ditadura. Ódio e nojo”. “Bradar”, consignam os dicionários significa clamar, gritar,
vozear aos céus. Aqui pensamos que Ulysses factivelmente apoderou-se deste termo
em sua fala para dar a ela um sentido solene e sagrado.
Como estava ele promulgando a Constituição do Brasil pareceu-lhe de bom tom
exaltar esta norma, bem como o laboro que fora dispendido para fazê-la, além do que
também era interessante conclamar o povo a perceber que aquela norma era melhor
se comparada às do passado ditatorial. Além disso, podemos ainda fazer uma relação
ao contexto do hino nacional que carreia em si trechos como “brado retumbante”
etc., momento em que podemos cogitar que o uso da lexia bradar pode ter tido certa
conformação nacionalista.
Também foi dito pelo presidente da ANC o seguinte fragmento: “A Assembleia
Nacional Constituinte rompeu contra o establishment, investiu contra a inércia, desafiou
tabus”. O vocábulo “establishment” é uma palavra inglesa que foi incorporada à língua
portuguesa sem a realização de aportuguesamento, pois quando traduzida não têm o
sentido de “estabelecimento”. Em seu sentido original, nos mais diversos dicionários6
,
3	 Por exemplo, em: <http://www.lexico.pt/bem-aventuranca/>. Acesso em: 12 abr. 2019.
4	 Disponível em: <http://www.lexico.pt/aventura/>. Acesso em: 12 abr. 2019.
5	 Por exemplo, em: <http://www.lexico.pt/garrotear/>. Acesso em: 12 abr. 2019.
6	 Disponível por exemplo em: <http://www.teclasap.com.br/o-que-establishment-significa/>. Acesso em: 12
abr. 2019.
Argumentação e Linguagem Capítulo 2 17
significa: “a elite social, econômica e política de um país” e “grupo de indivíduos com
poder e influência em determinada organização ou campo de atividade”.
Nessa perspectiva, com base em Correia e Almeida (2012), podemos dizer
que essa palavra é um estrangeirismo, isso na medida em que, dentro do estudo da
neologia e dos neologismos (basicamente o estudo da renovação do léxico de uma
língua pelo surgimento7 ou incorporação de novas palavras), este ocorre quando uma
palavra estrangeira ingressar em nosso sistema linguístico e “permanecer inalterada,
isto é, conservar as características fonológicas e ortográficas do seu sistema de
origem. Exemplos: software, boom, shopping center” (CORREIA; ALMEIDA, 2012, p.
71).
Quanto à razão para Ulysses ter incutido essa palavra em sua fala cremos ter
sido primeiramente para resumir todo o plexo de informações que ela significa, pois
ao usá-la Ulysses somente teve de oralizar um significante e teve como consequência
a promanação de vários significados. Entretanto, não podemos afirmar que tal atitude
fora feliz, porque certamente houve alguém que não entendeu o significado desta
expressão, seja pelo contexto ou porque de fato não conhecia o vocábulo.
Emsegundolócus,pensamosquetalvezUlysseslançoumãodesteestrangeirismo,
pois na época de sua fala promulgadora, início da década de 1990, o inglês estava em
crescente uso no mundo, principalmente dada a dissipação da internet. Assim, como
o brasileiro tem certa tendência a se apoderar do que está na “moda”, Ulysses usou o
termo para ressaltar um possível caráter globalizado da elite parlamentar pátria.
Ulysses oralizou também: “Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte
[...]”. Neste fragmento, percebemos que o uso da lexia arquitetura teve possivelmente
o desiderato de considerar a Constituinte como uma construção, uma analogia mesmo
a construções de concreto onde o trabalho de erguer paredes é bem difícil, demorado
e cansativo, sendo preciso muita força e técnica.
Além disso, também podemos inferir uma remissão à sutileza do delineio dos
sensíveis desenhos levados a efeito na arquitetura quando se pretende dar formas
estéticas a prédios etc. Dizemos isso, pois Ulysses poderia ter usado sinônimos menos
simbólicos como organização, estrutura etc.
Já entrando na segunda metade de sua fala, disse Ulysses: “Há, portanto,
representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica,
de trabalhadores, de estudantes, de cozinheiros, de menores carentes, de índios,
de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis
e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora
passa a vigorar”. Nessa passagem, afigura-se patente a volição de Ulysses ao escolher
a expressão “representativo e oxigenado sopro”.
O presidente da ANC primeiro disse que a participação de pessoas do povo na
7	 Por exemplo, o termo “fala Ulyssiana” cunhado aqui por nós, é um neologismo, o qual somente foi criado,
pois a língua permite tal adaptação com nomes próprios (Exs.: Foucaultiano, Bakhtiniano, Gregoriano, Bejaminiano
etc.)
Argumentação e Linguagem Capítulo 2 18
feitura da Constituição foi representativa, ou seja, vários setores sociais participaram,
foram representados. Em seguida disse Ulysses que tal representatividade era
visível por meio de um sopro oxigenado, ou seja, vivo, respirante, em movimento,
consciente. O emprego dessas lexias possivelmente teve o objetivo de enaltecer e
até engrandecer a participação popular na feitura do texto constitucional.
Ainda neste trecho, em relação ao fragmento “atestando a contemporaneidade
e autenticidade social do texto”, podemos perceber que a dupla de lexias
contemporaneidade e autenticidade possuem certa relação analógica entre si. Isso
na medida em que aquilo que é contemporâneo é atual, é do hoje, do presente, bem
como algo autêntico é algo “verdadeiro”, legítimo, pertencente a determinado contexto,
empregável no presente - por exemplo, nós somos pessoas autênticas do século XXI,
não nos configurando como autênticos do século XIX -.
Cremos ser factível abstrair tal relação analógica entre estas duas lexias,
porquanto “as palavras são organizadas em um campo com mútua dependência,
adquirindo uma determinação conceitual a partir da estrutura do todo. O significado
de cada palavra vai depender do significado de suas vizinhas conceituais” (ABBADE,
2011, p. 1332).
Noutro trecho de sua fala aduz Ulysses que a Constituição: “Introduziu o
homem no Estado, o fazendo credor de direitos e serviços [...]”. Percebamos que a
utilização da lexia credor teve como possível motivação o fato de que quando somos
credores de algo é porque alguém nos deve certo objeto, coisa ou valor. Assim, quis
factivelmente Ulysses não apenas dizer que o Estado poderia (teria a faculdade de)
oferecer direitos ao povo, mas que teria de ali em diante o dever de fornecer os direitos
que a Constituição estampa. Dizemos isso na medida em que Ulysses poderia ter feito
o uso de outras expressões como: “o fazendo possível beneficiado de direitos [...]”, “o
fazendo reivindicador de direitos [...]” etc.
Outrossim, a observação do conjunto das unidades lexicais que integram a fala
Ulyssiana permite que cheguemos a algumas conclusões, notadamente no que se
refere ao processo de construção de significado levado a efeito por Ulysses em sua
fala. Em primeiro lugar é possível notar que Ulysses fala muito na terceira pessoa do
plural, às vezes se referindo apenas a ele e seus colegas constituintes e às vezes se
referindo ao “nós” povo brasileiro.
Outro aspecto é o fato de que Ulysses utiliza muito o recurso da formação de
prosopopeias/personificações, comparações, subjetivações, metáforas, eufemismos
e outras estruturas. Tais aspectos não são propriamente integrantes dos estudos da
Lexicologia, mas as lexias usadas em tais construções também merecem análise dado
que foram escolhidas a dedo para revelarem exatamente os significados simbólicos
que constituem.
Para verificar tais elementos, voltemos ao início da fala Ulyssiana. Disse
Ulysses: “Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou”.
Observando tal expressão, cumpre perguntarmos: no que não tange à Constituição, a
Argumentação e Linguagem Capítulo 2 19
nação mudou (?). Mas, mudou apenas nisso? Ou seja, a Constituição após terminada
não mudou nada na sociedade, apenas ela mesma, seu texto escrito, representava
mudança naquele momento? Durante os 20 meses de feitura da Constituição, mesmo
ainda valendo a Constituição da época do regime militar, a nação não tinha mudado
em nada?
Prosseguiu Ulysses: “A Constituição mudou na sua elaboração [...]”. O que
quer dizer isso? A Constituição mudou na sua elaboração porque ela se fez a si
mesma? Na sua elaboração ela mudou? Não foi mudada por ninguém? Por que essa
personificação da Constituição? Seria uma forma de os constituintes distanciarem-se
da responsabilidade pelo texto? Não foram os Deputados e Senadores que mudaram
o clima jurídico do país fazendo uma nova (outra) Constituição? Foi a Constituição
antiga (de 1969) que mudou? Apenas mudou?
Continuou Ulysses: “[...] só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e
escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa”. De fato, o conceito de
cidadão implica que uma pessoa tenha condições dignas de vida, um trabalho, uma
renda, um lar, algum tipo de lazer, oportunidade de ir à escola etc.
Porém, será mesmo que quem não tem tudo isso não é cidadão? É preciso
ler e escrever para ser cidadão? E os saberes culturais? Indígenas que não falam
“português” moradores do interior da Amazônia não são cidadãos deste país? Claro
que devemos relevar a época da fala de Ulysses, o final da década de 1980, bem como
os ideais deste político que dentro de seu progressismo almejava oferecer educação
para todo o Brasil. Mas, atualmente cremos não caber mais tal esteriotipização acerca
do conceito de cidadão.
Aduziu Ulysses: “Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a
aurora”. Qual a intensão de Ulysses nesta comparação? Quais os sentimentos de
um vigia que espera a aurora? Sabemos que um vigia, seja um trabalhador vigilador
de algum local/instituição ou apenas uma pessoa vigiadora da madrugada, que tem
insônia ou ama observar o passar do tempo durante o pré-nascer do dia, precisam
esperar sofrivelmente pela aurora, que na mitologia romana é o fenômeno óptico do
“nascer” do sol.
Então, cabe percebermos que Ulysses nesta expressão possivelmente teve
a intensão de demonstrar que a espera pela Constituição foi um plexo de tensões,
ansiedades, angústias e sofrimentos diversos. Grosso modo, a aurora é bonita, boa,
agradável, mas esperar por ela é cansativo, sofrível etc.
Exclamou também Ulysses: “[...] não caímos no caminho. Alguns a fatalidade
derrubou [...] conhecemos o caminho maldito: [...] mandar os patriotas para a cadeia,
o exílio, o cemitério”. Percebamos as lexias fatalidade e cemitério. Ambas foram
empregadas para constituírem-se como eufemismos, ou seja, atenuações de contextos
fortes, negativos e polêmicos. Isso na medida em que substituem morte natural e
morte por tortura ou assassinato respectivamente.
Ulysses disse que alguns de seus colegas parlamentares morreram, de morte
Argumentação e Linguagem Capítulo 2 20
natural, durante a ANC e referiu-se ao caminho erigido pelo regime militar que mandou
muitos para o cemitério. Por que não disse coisas do tipo matou, torturou, pôs no
pau de arara, afogou etc.? Certamente, pois estavam presentes na cerimônia de
promulgação várias autoridades militares e seria um pouco tenso falar assim. Aqui
percebemos como Ulysses escolheu detidamente seu léxico.
Ulysses propalou ainda: “Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte
[...]”. Percebamos que a dupla de lexias audácia e inovadora possuem uma relação de
sentido bem semelhante. Aquela, dizem os dicionários de maneira comum8
, significa a
coragem, bravura ou habilidade para realizar tarefas difíceis e esta remete à inovação
ou novidade, a qual geralmente precisa do trabalho, ideia ou esforço de alguém para
existir. Portanto, percebemos que Ulysses utilizou tais lexias em conjunto possivelmente
para realçar mais ainda a perspectiva de que a labuta do fazer a Constituição de 1988
foi bem “sofrida”, corajosa e perspicaz.
Disse também o presidente da ANC se referindo à Constituição: “Como o
caramujo guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e
reivindicação de onde proveio”. O que quis ele ao fazer esta comparação entre a
Constituição e um caramujo? Sabemos que caramujo é um molusco marinho e que,
portanto, vive no mar em meio a ondas e marés tanto pequenas como grandes, bem
como bramido significa forte barulho ou estrondo9
.
Logo, somos levados a crer que deve ser uma situação agoniante um caramujo
enfrentar uma onda tão alta ou forte que chegue a produzir barulhos elevados. Cremos
que Ulysses factivelmente fez tal comparação para dar ênfase ao sofrimento vivido
pelo povo pátrio durante o regime militar.
Asseverou Ulysses: “A Federação é a governabilidade”. O que quis ele ao
usar esta metáfora? Dizemos isso, pois sabemos que uma federação não significa
governabilidade. Federação é uma coisa e governabilidade é outra. Aquela lexia
remete à forma de organização territorial de uma nação e esta refere-se àquilo que
é governável, pois tem condições para tal. Cremos que possivelmente Ulysses quis
entronar a forma federativa de organização do Estado brasileiro dizendo que esta
seria imprescindível para que o país pudesse ser governado de forma exequível.
Ulysses afirmou: “A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da pátria”. O
que quis ele novamente ao usar estas duas metáforas? Bem, sabemos que corrupção
é o ato de desviar ou malversar dinheiro público ou receber dinheiro privado para
favorecer alguém em algum tipo de negócio público/estatal, bem como pátria é uma
nação.
Quanto às outras lexias usadas nestas duas expressões elas têm as seguintes
significações: moral geralmente significa aquilo que está de acordo com os bons
costumes ou de acordo com as regras10
; cerne significa centro ou essência de algo11
;
8	 Por exemplo, em: <http://www.lexico.pt/audacia/>. Acesso em: 12 abr. 2019.
9	 Disponível em: <http://www.lexico.pt/bramido/>. Acesso em: 12 abr. 2019.
10	 Disponível em: <http://www.lexico.pt/moral/>. Acesso em: 12 abr. 2019.
11	 Disponível em: <http://www.lexico.pt/cerne/.>. Acesso em: 12 abr. 2019.
Argumentação e Linguagem Capítulo 2 21
cupim significa um pequeno artrópode (“inseto”) que corrói madeira para se alimentar12
.
Logo, percebemos que Ulysses quis possivelmente evidenciar em sua fala que
a moral a partir daquele dia deveria ser o centro da pátria brasileira, bem como a
corrupção não deveria ocorrer sob o perigo de ser destruidora da nação. É um pouco
óbvio, mas a retórica de Ulysses é deveras “bonita”.
Saiu também da boca de Ulysses a seguinte construção vocabular: “Não é a
Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora, será luz, ainda que de
lamparina, na noite dos desgraçados”. Qual a intensão de Ulysses ao dizer isso,
especificamente os trechos “ainda que de lamparina” e “desgraçados”?
Bem, cremos que Ulysses quis possivelmente neste momento por um pouco o pé
no chão e ressaltar o realismo imanente ao fato de que a Constituição não vinha para
resolver todos os problemas do povo, seja porque era incapaz disso ou seja porque
tais problemas jamais poderão ser resolvidos em sua inteireza por diversos motivos.
Assim, optou por dizer que a Constituição seria uma luz, uma luz fraca, como a de uma
lamparina, mas uma luz.
Além disso, cremos que a lexia desgraçados não foi empregada no sentido
negativo que conhecemos popularmente como referindo-se a alguém que “não vale
nada”. Desgraçado foi empregado como imputável a alguém desprovido de graça,
sendo esta graça um significante multifacetado que, neste contexto, pode representar
o conjunto de saúde, educação, segurança, transporte, moradia etc.
Já caminhando para o final de sua fala consubstanciou Ulysses:
Quanto a mim, cumpriu-se o magistério do filósofo: o segredo da felicidade é
fazer do seu dever o seu prazer. Todos os dias, meus amigos constituintes [...] na
chegada ao Congresso [...] a alegria inundava meu coração. Ver o congresso era
como ver a aurora, o mar, o canto do rio, ouvir os passarinhos [...]. Político, sou
caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades. Uma delas, benfazeja, me
colocou no topo desta montanha de sonho e de glória. [...] Adeus, meus irmãos. É
despedida definitiva, sem o desejo de retorno (GUIMARÃES, 1988).
Que análises podemos erigir deste trecho? Bem, ao se despedir Ulysses mais
uma vez levou a efeito o uso de metáforas, frases de efeito e certa linguagem figurada.
Disse que trabalhou muito, muito mesmo, mas que tal laboro foi prazeroso. Narrou
metaforicamente que sempre que chegava ao Congresso Nacional era como se a
alegria enchesse tanto seu coração que este ficasse inundado.
Disse que ver o Congresso era como ver a aurora, o mar, o canto de pássaros.
Decerto, vemos que nesse trecho final quis Ulysses exalar que gostou de ter atuado
como presidente da ANC. Não sabemos se ele efetivamente gostou ou não do produto
final desta – cremos que não -, mas do trabalho gostou. Por fim, disse que era caçador
de nuvens, uma expressão que teve possivelmente o objetivo de dizer que ele era um
alcançador de feitos altos, difíceis.
No final, afirmou Ulysses: “A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que
o mataram. [...] Que a promulgação seja nosso grito! – Mudar para vencer! Muda,
12	 Disponível em: <http://www.lexico.pt/cupim/>. Acesso em: 12 abr. 2019.
Argumentação e Linguagem Capítulo 2 22
Brasil!”. O quis ele dizer? Bem, na metáfora “A sociedade foi Rubens Paiva”, Ulysses
se referiu ao Deputado Federal Rubens Paiva, que na época do regime militar fazia
ferrenha oposição ao governo, o qual desapareceu em 1971 e depois soube-se que
fora morto por militares e seu corpo jogado ao mar.
Dessa forma, cremos que simbolicamente quis Ulysses possivelmente dizer que
a sociedade que sobreviveu ao regime militar foi como Rubens que resistiu até onde
pôde ou que a sociedade foi morta como Rubens durante o governo de exceção e que
por meio da Constituição de 1988 estava ressuscitando.
Já quanto à expressão “Que a promulgação seja nosso grito! – Mudar para
vencer! Muda, Brasil!”, cremos que tal conjunto de lexias seja um pedido ou vontade
pessoal de Ulysses para que a promulgação da CRFB/88 fosse o grito dele, de seus
colegas constituintes e do povo brasileiro, grito este que deveria ser um impulsionador
do Brasil rumo à mudança e à vitória. Assim, como a promulgação representava a
própria Constituição, também pensamos que se referia ele à própria Constituição,
clamando (e torcendo para) que ela fosse a mudança, o grito.
4 | 	CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em conclusão, cremos também ser possível identificar algumas fraseologias na
fala Ulyssiana. Estas, como lembra Maingueneau (2015), são expressões corriqueiras
em certos contextos, áreas, setores sociais, expressões tais que em formato de
mini textos têm significado autônomo (“todo mundo sabe o que significam”, mesmo
isoladamente). Assim, ainda que devamos ressaltar que a fala Ulyssiana não é uma
fala política (nem parlamentar nem eleitoral), mas sim uma fala constituinte/fundante,
cremos que podemos forçosamente identificar algumas fraseologias nesta fala, ou
seja, frases que os políticos “sempre usam”. Estas são:
a.	 Traidor da Constituição é traidor da pátria;
b.	 O inimigo mortal do homem é a miséria;
c.	 O Estado de direito não pode conviver com a miséria;
d.	 Democracia é a vontade da lei;
e.	 A sociedade sempre acaba vencendo;
f.	 A nação deve mudar;
Além disso, há algumas palavras de efeito que aparecem mais de duas vezes na
fala Ulyssiana e que, portanto, visivelmente têm o escopo de dar ênfase ao contexto
de produção da Constituição, de sua fala e do conteúdo destas. São lexias como:
coragem, mudança, sociedade, Estado, Democracia, República, Direito etc.
Acreditamos que além da fala Ulyssiana integrar uma realidade, qual seja: o
evento de promulgação da CRFB/88; ela também refletiu e refratou outra realidade:
o contexto histórico que levou à instalação da Constituinte de 1987-88 e à produção
Argumentação e Linguagem Capítulo 2 23
da Constituição. Sendo que, com efeito, entre distorcer tal realidade, ser-lhe fiel ou
interpretá-la de modo específico, cremos ter Ulysses Guimarães escolhido a ultima
possibilidade.
Acreditamos ter Ulysses conseguido erigir sua fala de um modo peculiar, uma
especificidade tal que o permitiu dizer coisas importantes e esconder outras. Não
conseguimos apreender a fala Ulyssiana como verdadeira, falsa, correta ou incorreta,
mas cremos ter sido efetivamente uma fala justa. Ideológica, por óbvio – tudo é
ideológico, nada é neutro -, mas justa. Justa, pois justificável(ada) por seu contexto,
como ensina Bakhtin (2014) sobre todos dos atos humanos.
Achamos por bem, também, enxergar a fala Ulyssiana como sendo um elemento
material, e não apenas formal, do evento de promulgação da CRFB/88, bem como
do processo de elaboração desta norma. Não podemos lançar sobre a fala uma
classificação que a reduza a mero texto formal de apresentação/promulgação da
Constituição. “Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da
realidade, mas também um fragmento material dessa realidade” (BAKHTIN, 2014, p.
33), ou seja, sempre que um fenômeno ou evento funcionar como elemento carregado
de carga ideológica, este possuirá uma encarnação material (fala física, som, cor,
movimento corporal etc.).
Desse modo, é a fala Ulyssiana um integrante material, vivo, da dialética do
contexto de produção da CRFB/88, do evento físico (dia) de promulgação desta
norma e, por que não, da história do Brasil. Este é um aspecto relevantíssimo, pois, ao
apreendermos esta fala como viva socialmente, não poderemos jamais dizer que foi
apenas uma fala única e singular de uma pessoa também única e exclusiva (Ulysses).
As ideias esposadas na fala de Ulysses, ou por meio dela, não eram ideias
exclusivas de Ulysses. Enquanto autor-narrador daquele enredo, Ulysses apenas serviu
de meio para a oralização de um signo que estava já se irradiando por praticamente
todo o corpo social brasileiro naquela época, desde o movimento “Diretas Já”.
REFERÊNCIAS
ABBADE, Celina Márcia de Souza. A Lexicologia e a teoria dos campos lexicais. Cadernos do CNLF, v.
XV, n. 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011, pp. 1332-1343. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/
xv_cnlf/tomo_2/105.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2019.
BAKHTIN, Mikhail (V. N. VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel
Lahud e Yara Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2014.
CORREIA, M.; ALMEIDA, G. M. de B. Neologia em português. São Paulo: Parábola Editorial, 2012.
GUIMARÃES, Ulysses. Fala de promulgação da Constituição da República Federativa do
Brasil de 1988. Brasília: Congresso Nacional/ANC, 1988. Disponível em:<http://www2.camara.
leg.br/atividadelegislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25anos-da-constituicao-de-1988/
constituinte-1987-1988/pdf/Ulysses%20Guimaraes%20.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2019.
MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso. Tradução de Sírio Possenti. São Paulo:
Parábola Editorial, 2015.
Capítulo 3 24Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 3
A ARGUMENTAÇÃO E A RETÓRICA NO SERMÃO DA
SEXAGÉSIMA, DE PADRE ANTÔNIO VIEIRA: UMA
ABORDAGEM PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO
Gabriela Lages Veloso
Universidade Estadual do Maranhão,
Departamento de Letras
São Luís – Maranhão
Letícia Rodrigues da Silva
Universidade Estadual do Maranhão,
Departamento de Letras
São Luís – Maranhão
RESUMO: Na última etapa do Ensino Médio
os alunos do 3º ano precisam desenvolver
sua competência na produção de textos
argumentativos, visando alcançar aprovação
nos vestibulares. Essa tarefa, por vezes,
tem sido um grande desafio para o aluno e
para o professor, isso porque ao longo da
escolarização, o alunado, em geral, tem pouco
contato com a leitura do texto dissertativo,
o que acarreta ao final do Ensino Médio uma
série de dificuldades, dentre elas, a falta
de competência para construir argumentos.
Diante dessa realidade, este estudo adentrou
no universo literário de Padre Antônio Vieira,
encontrando no Sermão da Sexagésima
um excelente material para ser trabalhado
em sala de aula, com vistas a desenvolver a
competência discursiva na produção textual
do aluno/vestibulando, e consequentemente
favorecer seu letramento, já que o texto literário,
conforme Vera Teixeira de Aguiar (2006) é
capaz de ampliar os horizontes de expectativa
do leitor, bem como a sua percepção de mundo.
Na análise dos elementos argumentativos e da
retórica do referido Sermão, utilizou-se como
aporte teórico os estudos de Magda Soares
(1999); Ângela Kleiman (1995); Rildo Cosson
(2006), dentre outros, pelos conceitos sobre
letramento literário e os métodos de abordagem
deste texto em sala de aula.
PALAVRAS-CHAVE: Argumentação. Retórica.
Letramento literário.
THE ARGUMENTATION AND RHETORIC
IN THE SERMON OF THE SIXTIETH, BY
FATHER ANTÔNIO VIEIRA: AN APPROACH
TO LITERARY LITERACY
ABSTRACT: In the last stage of High School,
the students of third grade need to develop their
competence in the production of argumentative
texts, aiming to achieve approval in the entrance
exams. This task sometimes has been a great
challenge for student and teacher, this because
throughout schooling, students, in general, have
little contact with the argumentative text reading,
which carries to the end of high school a series
of difficulties among them, the lack of ability to
write arguments. Facing this reality, this study
entered the literary universe of Father Antônio
Vieira, finding in the Sermon of the Sixtieth, an
Argumentação e Linguagem Capítulo 3 25
excellent material to be worked in the classroom, in order to develop the students’
discourse competence in text writing, and consequently facilitate one’s literacy, since
the literary text, in accordance to Vera Teixeira de Aguiar (2006) is able to expand
the horizons of reader’s expectation, as well as his/her perception of the world. On
the analysis of argumentative and rhetoric in the referred Sermon, it was used as a
theoretical contribution to this paper, the studies of Magda Soares (1999); Ângela
Kleiman (1995); Rildo Cosson (2006), among others, through the concepts on literary
literacy and the approach methods from this text in the classroom.
KEYWORDS: Argumentation. Rhetoric. Literary literacy.
1 | 	INTRODUÇÃO
Ao iniciar os estudos sobre argumentação e retórica verificou-se uma lacuna
no que se refere à utilização desses recursos estilísticos em sala de aula, fato esse
comprovado no pequeno número de investigações acadêmicas acerca do tema,
sobretudo no âmbito do letramento literário. Dentre os estudos verificados destaca-se
o da pesquisadora Noemi Lemes que desenvolveu uma pesquisa pela Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, em 2013, na qual
examinou os livros didáticos e o desempenho em textos dissertativo-argumentativos
de estudantes do terceiro ano do Ensino Médio provenientes de escolas públicas da
cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo.
Lemes (2013) chegou à conclusão que dos quatro livros analisados, três não
faziam nenhuma menção a teorias acerca de argumentação, pelo contrário, traziam
unicamente, como exemplos, textos jornalísticos. O que foi criticado pela pesquisadora,
pois assim, os estudantes não estavam sendo instruídos e incentivados a sustentar seus
pontos de vista, mas somente a reproduzir as convicções da mídia. Outra contestação
de Noemi trata-se do modo como os discentes são subestimados ao terem contato
com a argumentação, e explorá-la, somente no Ensino Médio.
Segundo os seus resultados, Noemi Lemes (2013) constatou que a escola não
tem instruído seus alunos a respeito da argumentação:
Podemos dizer, então, que a escola, embora seja tida como o lugar designado
para a circulação dos conhecimentos teóricos - incluindo o da argumentação - e do
discurso polêmico, não tem promovido a propagação desse saber e nem mesmo
vem cumprindo seu papel de instaurar discussões e reflexões sobre as diversas
temáticas (LEMES, 2013, p. 109).
Nesse contexto, no presente artigo apresenta-se uma breve pesquisa realizada
na escola C.E. José Justino Pereira com alunos do 3º ano do Ensino Médio,
com objetivo de, a partir desse campo amostral, analisar e discutir os elementos
argumentativos e da retórica contidos no Sermão da Sexagésima, de Padre Antônio
Vieira, que poderiam ser explorados em sala de aula com base numa proposta
significativa capaz de promover o letramento literário, e, assim contribuir para o
desenvolvimento da competência discursiva nos textos dissertativo-argumentativos
Argumentação e Linguagem Capítulo 3 26
dos estudantes do terceiro ano do Ensino Médio.
2 | 	LETRAMENTO LITERÁRIO: CONCEITUAÇÃO
A fim de compreender o que é letramento literário, faz-se necessário,
primordialmente, entender o conceito de letramento - que é um termo relativamente
recente e ainda não consolidado no Brasil. Se por um lado, Ângela Kleiman compreende
que letramento é “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto
sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos
específicos” (KLEIMAN, 1995, p.19). Por outro, Magda Soares afirma que “Letramento
é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado
ou a condição que adquire um grupo ou um indivíduo como consequência de ter-se
apropriado da escrita» (SOARES, 1998, p. 18).
É importante ressaltar ainda que, segundo Madga Soares (1998), o termo
Letramento deriva de literacy:
Etimologicamente, a palavra literacy vem do latim littera (letra), com o sufixo -cy,
que denota qualidade, condição, estado, fato de ser (como, por exemplo, em
innocency, a qualidade ou condição de ser inocente). [...] Ou seja: literacy é o
estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escrever. Implícita
nesse conceito está a idéia de que a escrita traz consequências sociais, culturais,
políticas, econômicas, cognitivas, lingüisticas, quer para o grupo social em que
seja introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la. (SOARES, 1998, p.19)
Por conseguinte, segundo Street (2014), atualmente, a compreensão de
letramento tem sido mais abrangente, equivalendo à “uma prática social”, mas também
sob uma visão “transcultural”. Nessa perspectiva, o letramento literário “compreende
não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas também, e
sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio” (COSSON, 2006, p.12).
Assim, o saber literário tanto viabiliza o entendimento “da vida” por intermédio “da
experiência do outro”, quanto permite “vivenciar essa experiência” (COSSON, 2006).
Formar leitores literários quer dizer preparar leitores capazes de selecionar
que textos irão ler, que estimem as composições “verbais” de natureza artística, que
dediquem-se à leitura como algo prazeroso. Leitores assim necessitam fazer uso
de “estratégias de leitura” propícias às obras literárias, seguindo “o pacto ficcional
proposto”, com a verificação de “marcas linguísticas” que remetem ao subjetivo,
aos intertextos e interdiscursos, deste modo, é resgatada “a criação de linguagem”
executada fonologicamente, sintaticamente, semanticamente e a obra é situada
corretamente na época em que foi produzida (PAULINO, 1998).
3 | 	ARGUMENTAÇÃO E RETÓRICA: UM BREVE PANORAMA
A priori é importante ressaltar que, mediante Aristóteles,  a argumentação
é somente  “uma modalidade retórica entre outras”. Se por um lado a retórica
Argumentação e Linguagem Capítulo 3 27
consiste antes de mais nada em “um ajuste de distância entre os indivíduos”, por outro
a argumentação, que tem o intento de persuadir, “insiste na identidade entre o orador
e o auditório” (ARISTÓTELES, 2000).
Na Sicília, segundo Aristóteles, a retórica:
[...]teve a sua origem como metalinguagem do discurso oratório. Por volta de 485
a.C., dois tiranos sicilianos, Gélon e Hierão, povoaram Siracusa e distribuíram
terras pelos mercenários à custa de deportações, transferências de população
e expropriações. Quando foram destronados por efeito de uma sublevação
democrática, a reposição da ordem levou o povo à instauração de inúmeros
processos que mobilizaram grandes júris populares e obrigaram os intervenientes
a socorrerem-se das suas faculdades orais de comunicação. Tal necessidade
rapidamente inspirou a criação de uma arte que pudesse ser ensinada nas escolas
e habilitasse os cidadãos a defenderem as suas causas e lutarem pelos seus
direitos. E foi assim que surgiram os primeiros professores da que mais tarde se
viria a chamar retórica. (ARISTÓTELES, 2005, p.15)
É indispensável observar ainda que a retórica é uma arte que demanda que o
retor possua conhecimentos, mas também seja criativo, uma vez que não deve,
meramente, fazer cópias ou memorizar “fórmulas”, já que a vida traz consigo mistérios
e situações imprevisíveis; devido a estes elementos que não deve-se, simplesmente,
reproduzir “um modelo de discurso”. Porquanto, segundo a retórica proposta por
Aristóteles, aquele que profere o discurso procura “persuadir o ouvinte”, o que não
implica, obrigatoriamente, uma cópia. (LIMA, 2011).
Consoante Weston (1996), a argumentação, por sua vez, não deve ser
confundida com a discussão, que é considerada um tipo de “luta verbal”. Assim sendo,
argumentar tem sentido de um agrupamento de premissas ou “dados favoráveis” a
uma “conclusão”. Dessa maneira:
[...] argumentar não é apenas a afirmação de um determinado ponto de vista
nem uma discussão. Os argumentos são tentativas de sustentar certos pontos de
vista com razões. Neste sentido, os argumentos não são inúteis; na verdade, são
essenciais[...]. (WESTON, 1996, p. 5)
Em função disso, é necessário apontar argumentos que sustentem determinadas
ideias e, posteriormente, verificar a firmeza e veracidade deles; já que a argumentação
é um modo de “investigação”. Finalmente:
[...]Uma vez chegados a uma conclusão baseada em boas razões, os argumentos
são a forma pela qual a explicamos e defendemos. Um bom argumento não se
limita a repetir as conclusões. Em vez disso, oferece razões e dados suficientes
para que as outras pessoas possam formar sua própria opinião. [...] Ter opiniões
fortes não é um erro. O erro é não ter mais nada. (WESTON, 1996, p. 5)
Perelman reitera que “toda a argumentação visa à adesão dos espíritos e, por
isso mesmo, pressupõe a existência de um contato intelectual” (1996, p. 379). Nessa
perspectiva, “o ato de argumentar”, tal qual propõe Koch (2002), é entendido como “o
ato de persuadir” que visa alcançar “a vontade”, isto é, abrangendo o subjetivismo,
o sentimentalismo, procurando “adesão e não criando certezas”. Logo, “o ato de
argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões,
Argumentação e Linguagem Capítulo 3 28
constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma
ideologia”. (KOCH, 2002, p.19)
4 | 	ARGUMENTAÇÃO E RETÓRICA NO SERMÃO DA SEXAGÉSIMA
É indubitável que um dos legados deixados pelo Padre Antônio Vieira foram os
seus sermões, nos quais expunha “[...] seus preceitos morais por meio de sua retórica
eloquente [...]” (PERES, 2014, p. 14). Um que merece destaque, por se tratar de uma
“leitura obrigatória”, conforme Alfredo Bosi (1994), é o Sermão da Sexagésima, em
que “[...] o orador expõe a sua arte de pregar [...]” (BOSI, 1994, p. 45).
A retórica vieiriana corresponde à visão aristotélica, pois também:
[...] constitui-se pelo mundo das opiniões, do verossímil, do provável, cuja
função não é somente persuadir, mas ver os meios de persuadir em cada caso,
reconhecendo o que é, ou não, persuasivo em cada situação. Sua utilidade é
facultar que os pleitantes de uma discussão não sejam vencidos por quem está em
erro. [...] (ROHDEN, 1995, pág. 515).
Os discursos de Vieira se fundamentavam em textos bíblicos, e são:
Exemplo de sedução e argumentação, de um árduo e incessante trabalho com a
linguagem, o sermão - veículo dotado de regras próprias, com reconhecida tradição
- dirige-se a um auditório particular, numa circunstância conjuntural precisa, em
determinada situação. (ALMEIDA, 2009, p.9).
Uma característica marcante do “discurso sermonístico” trata-se do “poder da
palavra”, no qual “a palavra já está ligada à visão de linguagem como ação inscrita no
próprio ato de fala.” (MELO, 2005, p.28) porém vale enfatizar que “o representante,
aquele que fala no lugar de Deus, transmite as palavras de Deus, mas não se confunde
com Ele.” (MELO, 2005, p. 28). Como se evidencia em:
[...] A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho
não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo:
saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui
seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma
coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o
que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia;
uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o
que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador.
Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a
vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O melhor conceito que
o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? -- o conceito que de sua vida têm
os ouvintes. [...] (VIEIRA, 1655)
Do decorrer do Sermão da Sexagésima, bem como em outros sermões vieirianos,
conforme Pires (2011), pode-se notar a “estrutura da argumentação formal”, constituída
essencialmente por quatro componentes: “preposição”, “análise da preposição”,
“formulação dos argumentos” (isto é, “evidência”) e “conclusão”:
[...] Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três
princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus.
Argumentação e Linguagem Capítulo 3 29
Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos:
há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte
com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando.
Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e
luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e
olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister
espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um
homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é
necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que
é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os
olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio
da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte,
por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do
pregador, ou por parte de Deus? [...] suposto que o fruto e efeitos da palavra de
Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por
consequência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos,
porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis,
pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? --Por culpa nossa. (VIEIRA,
1655)
Apresença dessa estrutura faz-se necessária em todos os textos argumentativos,
até mesmo nas redações dos alunos, nas quais, frequentemente, não a empregam
de forma adequada, possivelmente por não terem se familiarizado com ela. (PIRES,
2011). Nessa perspectiva, a argumentação:
[...] engloba a demonstração, mas não se restringe a ela, pois trabalha não só
com o que é necessariamente verdadeiro, o que é logicamente demonstrável, mas
também com aquilo que é plausível, possível, provável. Argumentar, em sentido
lato, é fornecer razões em favor de determinada tese. Enquanto a demonstração
lógica implica que, se duas ideias forem contraditórias, será verdadeira e a outra
falsa, a argumentação em sentido lato mostra que uma idéia pode ser mais válida
que outra (SAVIOLI & FIORIN, 2001, p. 191)
5 | 	SERMÃO DA SEXAGÉSIMA : UMA ABORDAGEM PARA O LETRAMENTO
LITERÁRIO
De acordo com Aguiar (2011), a faixa etária é um fator preponderante no que diz
respeito aos “interesses” do leitor. Entretanto,
[...] não podemos nos ater à satisfação das preferências de leitura. Precisamos,
sobretudo, provocar novos interesses, de modo a multiplicar as práticas leitoras
e diversificar os materiais à disposição do público. O ato de ler significa diálogo
com o texto, descoberta de sentidos não-ditos e alargamentos dos horizontes do
leitor para realidades ainda não visitadas. Por isso, quanto mais contato com a
literatura e com o universo dos livros tanto maior a chance de formarmos leitores
competentes. [...] (AGUIAR, 2011, p.114)
É essencial, conforme Guaranha (2003), ter em vista que as leituras sugeridas
em classe devem proporcionar, aos alunos, o ensejo de “criar”, isto é, “dialogar com o
autor”. Além disso, é ideal que:
[...] todo exercício de leitura seja direcionado para o ato criador. Quando o aluno
descobre que é capaz de interagir com alguém que viveu séculos antes dele,
quando percebe que é possível vincular a realidade da obra com a sua realidade,
Argumentação e Linguagem Capítulo 3 30
então ele se interessa pelo texto. Para isso, é necessário que o professor trabalhe
variedade e qualidade, propiciando o acesso a um repertório tão vasto quanto
possível. (GUARANHA, 2003, p.20)
À vista disso, faz-se oportuna a leitura dos clássicos que, de acordo com
Ana Maria Machado (2002), são uma “herança”, um “imenso patrimônio”, “obras
valiosíssimas que vêm se acumulando pelos séculos afora”. Ademais, seria uma “pena
e desperdício” deixar de conhecê-las; visto que, ler os clássicos desde cedo viabiliza
“uma melhor qualidade de leitura - a leitura crítica”. Leitura esta que oportuniza
“comparar”, “argumentar” e “refutar”.
Assim sendo, o Sermão da Sexagésima, de Padre Antônio Vieira é, decerto, um
clássico da literatura. Esse sermão traz consigo
[...]a regra da unidade do discurso persuasivo, presente em todo texto argumentativo
eficaz. Ao fazermos com que nosso aluno perceba que também o texto dele deve
versar um só assunto, o qual deve ser fundamentado em argumentos consistentes,
a coerência de sua redação teria uma considerável melhora (PIRES, 2011, p. 141)
6 | 	RESULTADOS E DISCUSSÃO
Com a finalidade de analisar o tema proposto, na escola em que se desenvolveu
a presente pesquisa, foi aplicado um questionário constituído de 12 perguntas, dentre
as quais foram selecionadas 6 para análise crítica quanto ao perfil dos alunos e de suas
habilidades com relação ao desenvolvimento de textos dissertativos/argumentativos
em sala de aula.
Ao todo foram entrevistados 26 alunos, destes 38,5% pertencem ao sexo
masculino, 57,7% ao sexo feminino e 3,8% não se identificaram; é importante ressaltar
ainda que a maioria dos estudantes têm entre 17 e 18 anos.
Na oitava questão, foi perguntado se os alunos conheciam os Sermões do
Padre Antônio Vieira e 100% dos alunos confirmaram nunca terem tido contato com
o Sermão da Sexagésima, nem com nenhum outro sermão vieiriano, dado este
surpreendente, visto que este grupo de alunos já cursa o terceiro. Isso confirma a tese
levantada por Noemi Lemes (2013) de que a escola não ensina seus alunos sobre a
argumentação, deixando de trabalhar diversas possibilidades de leitura, que como os
sermões, poderiam fomentar o desenvolvimento da prática argumentativa e promover
o desempenho do aluno na produção textual.
Numa breve análise do livro didático utilizado pela escola, verificou-se que os
sermões do Padre Antônio Vieira não estão incluídos, há apenas pequena nota no
LD do 1ª ano do Ensino Médio, na qual ele é apontado como um dos escritores do
Barroco Brasileiro. Tal realidade leva a suposição de que a maioria dos professores se
apropriam apenas dos textos que são incluídos no livro didático, no qual as obras são
tratadas como mera exemplificação das escolas literárias.
Ao constatar que 100% dos alunos nunca tiveram acesso à leitura dos Sermões,
Argumentação e Linguagem Capítulo 3 31
algumas questões sobre os Sermões foram desconsideradas, visto que as mesmas
buscavam verificar o nível de compreensão dos alunos acerca dos textos de Vieira.
Dentre as perguntas estavam por exemplo:
Leia os trechos e responda as questões propostas.
10) “Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de
vontades endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode-se ferir
pelos mesmos fios e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades
endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quando
as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus
nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras.” (Sermão da
Sexagésima, de Pe. Antônio Vieira.)
No trecho acima fica evidente que Vieira usa argumentos para:
a ( ) fazer uma crítica aos maus ouvintes, pois não dão valor à Palavra de Deus
b ( ) fazer uma crítica ao estilo de outros religiosos que, segundo ele, não sabiam
pregar: falavam de vários assuntos, sendo alguns ineficazes em suas palavras ou
tentanto agradar as vontades dos homens, e não a de Deus. Ele coloca a culpa nos
pregadores e analisa a sua própria pregação
c ( ) fazer uma crítica a Deus
d ( ) fazer um elogio aos pregadores
Em outra questão perguntou-se a visão dos alunos sobre seus próprios
argumentos. Como fica evidente no Gráfico 1:
Tendo em conta que a Retórica consiste na arte da palavra, da eloquência e
de bem argumentar; perguntou-se aos discentes: o que é Retórica e apenas 31%
responderam corretamente, dos outros 69%, 58% marcaram as outras alternativas e
11% não responderam. Tal como fica visível no Gráfico 2:
Argumentação e Linguagem Capítulo 3 32
Por fim, após a leitura de alguns trechos do Sermão da Sexagésima, os educandos
foram questionados se consideravam, ou não, o Padre Antônio Vieira um pregador
de bons argumentos; e prontamente, a grande maioria (90%) respondeu que sim e
apenas 10% afirmaram que não. Assim como fica explícito no Gráfico 3:
7 | CONSIDERAÇÕES FINAIS
No processo de letramento considera-se que o gosto pela leitura e o incentivo
à produção textual podem partir de qualquer gênero textual e literário. Desse modo,
quanto mais diversificada for o acesso dos alunos/leitores ao universo dos gêneros
literários, mais ampla será sua visão de mundo.
Os Sermões do Padre Antônio Vieira configuram-se como recurso linguístico e
literário de expressivo valor, sendo capaz de exemplificar a construção estilística da
argumentação e da retórica, o que para o aluno do terceiro ano do Ensino Médio é de
Argumentação e Linguagem Capítulo 3 33
grande valia, visto que precisa deter a competência textual para desenvolver redações
dissertativo/argumentativas nos testes do vestibular.
No entanto, conforme foi constatado neste estudo, os alunos, do 3º ano do
Ensino Médio, da escola C.E. José Justino Pereira, não tiveram acesso aos sermões
do Padre Antônio Vieira, fato esse que revela as escolhas do professor, uma vez que
como mediador e formador desses leitores, é quem pesquisa, seleciona e possibilita
aos alunos o contato com os mais diversos materiais para a leitura.
O presente estudo, portanto, comprovou que os Sermões do Padre Antônio
Vieira, mesmo sendo um material de leitura capaz de fomentar a prática discursiva,
não tem sido utilizado para a ampliação do repertório de leitura dos alunos, visto não
estarem presentes no livro didático, recurso que segundo Cosson (2006) ainda é o
material de leitura primordial das salas de aula.
Outrossim, como foi constatado no estudo da pesquisadora Noemi Lemes,
e corroborado na breve pesquisa do presente artigo, a argumentação e a retórica
devem ser ensinadas nas escolas, não só para garantir o ingresso dos alunos em uma
Universidade, mas também a fim de que se tornem cidadãos críticos, preparados para
o mercado de trabalho e para a vida.
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WESTON, Anthony. A arte de argumentar. Tradução e apêndice de Desidério Murcho. Lisboa:
Gradiva, 1996.
Capítulo 4 35Argumentação e Linguagem
ARQUITETURA DA ARTE DE CONTAR: A NATUREZA
SOCIOLÓGICA E A COMUNICAÇÃO ESTÉTICA NO
CONTO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
CAPÍTULO 4
Márcia Adriana Dias Kraemer
Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS
Realeza, Paraná
Alba Maria Perfeito
Universidade Estadual de Londrina – UEL
Londrina, Paraná
RESUMO: Este artigo apresenta reflexões
acercadoestudodeenunciadosconcretossobre
ogênerocontobrasileirocontemporâneoemsua
natureza sociológica e estética. Para desvelar
o caminho da investigação, empreendemos
a análise do processo de produção do texto
literário, focalizando o conto, ao perpassar
aspectos preponderantes do contexto de
criação,daabordagemtemática,daconstrução
composicional e do estilo do gênero estudado.
Na perspectiva materialista e dialética,
acreditamos que o gênero discursivo conto
constitui-se, segundo uma visão bakhtiniana,
uma atividade de leitura e de escrita concreta
e histórica; com características relativamente
estáveis, vinculada a uma situação típica da
comunicação social; com traços temáticos,
estilísticos e composicionais concernentes a
enunciados individuais, dessa forma, ligados
à atividade humana. Os aspectos literários
do gênero em foco, sob a ótica da Linguística
Aplicada e da Análise Dialógica do Discurso,
revelam os vários movimentos na dinâmica
da interação verbal. Assim, ao refletirmos
acerca do conto brasileiro contemporâneo,
podemos dimencionar a importância de seu
reconhecimento para a leitura como construção
dos sentidos. Trata-se de uma pesquisa teórica,
com caráter qualitativo de análise da geração
dos dados, fins explicativos e método de
abordagem dialético.
PALAVRAS-CHAVE: Dialogismo; Gênero do
Discurso; Conto.
THE ARCHITECTURE OF THE
STORYTELLING ART: THE SOCIOLOGICAL
NATURE AND THE AESTHETIC
COMMUNICATION IN THE BRAZILIAN
CONTEMPORARY SHORT STORY
ABSTRACT: This article presents reflections
about studies of real texts belonging to the
genre Brazilian contemporary short stories in
its sociological and aesthetic nature. To unveil
the path of research, we analyzed the production
process of literary texts, focusing on the short
story. We assessed predominant aspects of
the creative context, the thematic approach,
the compositional construction, and style of this
genre. Under a materialist and dialectics view,
we believe that the discursive genre short story
constitutes, according to Bakhtin, a historical
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 36
and real activity of reading and writing; with relatively stable characteristics, it is linked
to a typical state of social communication; with its thematic, stylistic, and compositional
traits related to individual statements, linked to human activity. The literary aspects of
this genre, under the perspective ofApplied Linguistics and Dialogic DiscourseAnalysis,
reveal the various movements in the dynamics of verbal interaction. Therefore, when we
reflect on the contemporary Brazilian short story, we may measure the importance of its
recognition for reading as construction of meanings. This is a theoretical research, with
qualitative analysis of data generation, explanatory purposes and dialectical approach
method.
KEYWORDS: Dialogism, Address Gender Tale.
1 | 	ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DA LINGUAGEM E O GÊNERO CONTO
As discussões na contemporaneidade sobre gêneros privilegiam a relação entre
texto e contexto, uma vez que as ações sociais são mediadas pela linguagem. Sob esse
prisma, os elementos textuais decorrem da interação social, necessitando explicações
centradas no contexto. Quando nos propomos a estudar gêneros, é preciso refletir
acerca da metodologia de análise, pensando no objeto de estudo e nos procedimentos
necessários.
No intuito de conduzirmos adequadamente o processo de pesquisa do gênero
focalizado, partimos de questões norteadoras, inseridas no contexto de investigação
de nossa tese de doutorado, Reflexão sobre o Trabalho Docente: o conhecimento
construído na formação continuada e a transposição didática, defendida em 2013, no
Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de
Londrina – UEL.
O intuito da pesquisa foi apresentar uma análise relativa à contribuição das ações
contempladas na pesquisa em formação contínua para a reflexão da práxis docente,
pesquisando o processo de ensino-aprendizagem de língua portuguesa nas aulas do
Ensino Médio que privilegiem o estudo de gêneros discursivos literários, em específico
o conto brasileiro contemporâneo.
A esfera na qual o gênero está inserido deve ser ponto de partida para a sua
análise, implicando as condições de produção, de circulação e de recepção (BRAIT,
2003). Neste artigo, apresentamos, em princípio, o que a teoria define como contexto
da produção literária; em seguida, aspectos concernentes à relação entre os temas da
literatura na história da cultura; posteriormente, o impacto da criação literária do conto
brasileiro contemporâneo; e, por fim, a natureza sociológica e estética desse gênero
do discurso.
2 | 	O CONTEXTO DIALÉTICO DA PRODUÇÃO ARTÍSTICA
O conto pertence à esfera literária e a literatura representa, em seu “fazer
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 37
artístico”, uma dimensão prática dessa imaginação inferida por Bojunga (1998), um
aspecto da faculdade de raciocínio. Falando no interdito da linguagem, ela permite
ao leitor extrair suas próprias conclusões no processo de leitura, ao se defrontar, por
exemplo, com problemas de situações cotidianas que lhe causam perplexidades: o
indivíduo é estimulado, no processo do aprender, a compreender o como e o porquê
dessas situações e é impulsionado a buscar soluções para elas
No momento em que a leitura causa essa introjeção, o sujeito necessita entender
o que se passa dentro de si, não por meio da compreensão racional da natureza e
do conteúdo de seu inconsciente, mas por meio de divagações com o pensamento,
de cogitações em que organiza os elementos adequados da história em resposta às
pressões inconscientes. É nesse aspecto que reside o valor inestimável da literatura,
ao oferecer novas dimensões à imaginação humana, àquilo que talvez ela não poderia
descobrir verdadeiramente por si só.
Condicionada à produção escrita desde a sua origem, a literatura pressupõe um
documento destinado à leitura, o que implica a ideia de um conhecimento específico,
justamente pelo tipo de signo empregado. No entanto, pelo fato de vivermos em um
mundo de constantes mudanças, de novas cosmovisões e mundividências, também o
ato de narrar redimensiona-se.
No decorrer da história, provavelmente persista o fato de que os acontecimentos
de uma narrativa geralmente são mais atraentes do que a própria realidade. Dessa
maneira, o que nos leva à leitura de um texto artístico é aquilo de interessante que ele
nos tem a dizer. As personagens imaginárias preenchem vazios da realidade. Assim,
tanto a leitura quanto a criação de um texto narrativo é uma forma de sonhar acordado.
Ao produzirmos essa espécie de mascaramento da verdade, criamos uma
falsidade necessária ao disfarce do real, causando prazer pelo jogo de palavras que
se descentram ao imprevisível. Para Barthes, “[...] esta trapaça salutar, esta esquiva,
esse jogo magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma
revolução permanente da linguagem eu a chamo, quanto a mim, literatura.” (BARTHES,
2007, p. 16).
Percebendo que o espaço de criação do texto literário é a liberdade, que dá
autoridade ao autor para aderir ou transgredir padrões linguísticos, temáticos e
estilísticos da tradição literária, é interessante salientar a maneira como as estratégias
do dizer se constituem na seleção de palavras, na construção dos temas e no modo
de organização narrativa utilizados pelo escritor para exteriorizar os fatos cotidianos e
exprimir os pensamentos da humanidade a quem for ler.
Para Barthes (1999), a escritura ou o modo de escrever é o que desencadeia
a fruição da linguagem. O texto, em sua produção, encontra-se, segundo o autor,
inserido em um sistema desconexo, que espera para ser organizado pelo escritor e,
posteriormente, pelas inferências do leitor.
Logo, não existe uma linguagem específica, mas a linguagem do próprio texto
arranjada por quem escreve. Conforme Sartre (1993), um dos principais motivos da
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 38
criação artística é a necessidade que o escritor tem de se sentir peça essencial em
relação ao mundo. Ele pode introduzir ordem onde não havia e atribuir unidade à
diversidade, formulando os seus próprios critérios para a produção.
O que está sendo criado pelo autor parece estar sempre pendente, nunca
encerrado ou em definitivo: “[...] o objeto literário [...] só existe em movimento. Para
fazê-lo surgir é necessário um ato concreto que se chama leitura, e ele só dura
enquanto essa leitura durar.” (SARTRE, 1993, p. 35).
Podemos afirmar, então, que escrever implica ler. Ao construir o texto, o autor
somente guia o leitor e abre caminhos para que este possa ir além do que está visível.
O ato de escrever significa levar o leitor a desvendar o que o escritor empreendeu.
Sendo o sentido da obra a sua totalidade: “[...] o ato criador é apenas um momento
incompleto e abstrato da produção de uma obra; se o escritor existisse sozinho, poderia
escrever quanto quisesse, e a obra enquanto objeto jamais viria à luz.” (SARTRE,
1993, p. 37).
Nessa perspectiva, o escritor apela à liberdade do leitor para que este compartilhe
da produção de sua obra. À semelhança de ler, escrever é revelar e desvendar o
mundo, uma vez que o escritor procura dar aos leitores o prazer estético ou, conforme
Sartre, a alegria estética. Para Barthes, o texto literário corresponde a um tecido em
que o leitor se perde “[...] como uma aranha que se dissolve ela mesma nas secreções
construtivas de sua teia [...]” (BARTHES, 1999, p. 83), ou seja, o texto se produz em
um entrelaçamento contínuo e o leitor constrói a sua percepção de mundo por meio
dessa interação dialógica com o escrito (BRÉMOND, 2008).
Logo, a sensação de plenitude causada por uma obra de arte, como a literatura,
pode ser decorrente do fato de o diálogo entre texto e leitor permanecer por muito tempo,
uma vez que se transpõe uma linguagem multifacetada na busca pela apreensão do
ser humano e do mundo em profundidade:
A literatura é um lugar estratégico, ainda que não seja o único, para a observação
das relações entre linguagem cotidiana e criatividade. Ela constitui uma das
possibilidades de exploração da língua, como forma criativa e atuante de
mobilização de palavras e estrutura linguísticas, apontando para inúmeros fins,
para diferentes propósitos. (BRAIT, 2010, p. 41).
Conforme Brait (2010), em seu percurso proposto para refletir a respeito da
parceria entre língua e literatura, em se tratando de Análise Dialógica do Discurso, é
imprescindível conversar sobre as contribuições de pensamento do Círculo bakhtiniano,
sob a perspectiva de Volochínov e do próprio Bakhtin.
A pesquisadora expõe que a literatura, para os pensadores do Círculo, é
essencial ao entendimento da sociedade e dos momentos históricos, porque “Eles
articulam língua e literatura para arquitetar a percepção dialógica da linguagem e os
pilares de seus estudos.” (BRAIT, 2010, p. 19). Para Bakhtin, o mundo da visão artística
é organizado por uma orientação axiológica, criando para o homem uma realidade
estética diferente da cognitiva e ética, sem ser indiferente a estas. (BAKHTIN, 2003,
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 39
p. 173).1
O autor também pontua que, desde os tempos clássicos até o presente, os
gêneros literários não são estudados como determinados tipos de enunciados, que
são diferentes de outros, porém, com natureza linguística comum. Quase não se leva
em conta a questão linguística geral do enunciado e dos seus tipos. (BAKHTIN, 2003,
p. 262-263).
3 | 	O TEMA E A HISTÓRIA DO TEMPO
Bakhtin (2003), no ensaio Os estudos literários hoje (p. 359-366), expõe que o
papel de análise dos gêneros dessa esfera é o de estabelecer aproximação inconteste
com a história da cultura:
A literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser entendida fora do contexto
pleno de toda a cultura de uma época. É inaceitável separá-la do restante da cultura
e, como se faz constantemente, ligá-la imediatamente a fatores socieconômicos, por
assim dizer, passando por cima da cultura. Esses fatores agem sobre a cultura no
seu todo e só através dela e juntamente com ela influenciam a literatura. (BAKHTIN,
2003, p. 360-361).
O autor explica que, pelo fato de ser multifacetado, o gênero da esfera literária
deve ser estudado sobre variados enfoques, levando-se em conta, inclusive, as
influências do seu passado cultural, pois uma obra é resultado complexo das vozes
que ecoam por entre os diferentes momentos históricos: “As obras dissolvem as
fronteiras da sua época, vivem nos séculos, isto é, no grande tempo, e além disso
levam frequentemente (as grandes obras sempre) uma vida mais intensiva e plena
que em sua atualidade.” (BAKHTIN, 2003, p. 363).
O filósofo discorre a respeito do fato de os gêneros terem um significado
particularmente importante na história:
Ao longo de séculos de sua vida, os gêneros (da literatura e do discurso) acumulam
formas de visão e assimilação de determinados aspectos do mundo. Para o
escritor-artesão, os gêneros servem como chavão externo, já o grande artista
desperta neles as potencialidades de sentido jacentes [...] O próprio autor e os
seus contemporâneos vêem, conscientizam e avaliam antes de tudo aquilo que
está mais próximo do seu dia de hoje. O autor é um prisioneiro de sua época,
de sua atualidade. Os tempos posteriores o libertam dessa prisão, e os estudos
literários têm a incumbência de ajudá-lo nessa libertação. (BAKHTIN, 2003, p.364).
Aponta para a questão de que um texto-enunciado da esfera literária não se
reduz à sua contemporaneidade e, portanto, também não permite uma leitura fechada,
sem a devida mediação do contexto cultural e temporal. É preciso vê-lo interagindo
com seu passado, seu presente e seu futuro, de forma exotópica. Nesse sentido, nega
o modelo de análise centrado na tendência de caracterizar a cultura artística como um
sistema estável de códigos, sem considerar a relação dialógica e, portanto, dialética
da qual emergem os textos literários.
1	 O problema do autor, Capítulo V (p. 173-191).
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 40
Para Bakhtin (2003),2
em todas formas estéticas, o outro é fundamento axiológico
organizador. A obra de arte não é um construto teórico, mas um acontecimento artístico
vivo em que o autor é o sujeito do existir: a ele é dado o benefício da visão e da criação,
sendo a sua obra o lugar desse acontecimento. De acordo com o autor,
Integram o objeto estético todos os valores do mundo, mas com um determinado
coeficiente estético; a posição do autor e seu desígnio artístico devem ser
compreendidos no mundo em relação a todos esses valores. O que se conclui não
são palavras, nem o material, mas o conjunto amplamente vivenciado do existir; o
desígnio artístico constrói o mundo concreto: o espacial com seu centro axiológico
– o corpo vivo-, o temporal com o seu centro – a alma – e, por último, o semântico,
na unidade concreta mutuamente penetrante de todos. (BAKHTIN, 2003, p. 176).
A contemporaneidade literária no Brasil, momento também conhecido como
Pós-Modernidade ou Tendências Contemporâneas, compreende, aproximadamente,
as mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde
1945 até os dias de hoje (MOISÉS, 2001). Segundo Proença Filho (1988), alguns
teóricos não aceitam essa denominação, afirmando que ainda não saímos da Terceira
Geração Modernista. No entanto, adotamos, neste estudo, a primeira denominação.
De acordo com Bosi (1987), a divisão dos momentos internos do período
literário que vem depois de 1930 até os dias atuais é pouco clara, principalmente
porque muitos escritores da primeira metade do século permanecem produzindo na
contemporaneidade, com evidente capacidade de renovação. Todavia, para o crítico
literário, a partir de 1950, somos dominados pelo tema e a ideologia desenvolvimentista.
Embora se renove o gosto romântico e modernista pela arte regional e popular, em
virtude do contexto sócio-político, voltam-se os olhos e os pensamentos ao potencial
revolucionário da cultura nacional (MORELLI, 2007). Delineia-se, portanto, um
panorama em que
[...] a literatura escrita de 1930 para cá forme um todo cultural vivo e interligado,
não obstante as fraturas de poética ocorridas depois da II Guerra. Daí ser precoce
dar como passados e ultrapassados o romance social e o intimista dos anos de 30
e de 40; de resto, ambos têm sabido refazer-se paralelamente às experiências de
vanguarda. (BOSI, 1987, p. 445).
Na mesma linha, Moisés (2001) defende que o fato de vivenciarmos este tempo
dificulta a nossa visão em relação aos seus contornos, mas é possível estabelecer
uma divisão em três períodos: o primeiro, de 1945 a 1960, quando aparecem as
vanguardas; o segundo, de 1960 até 1973, com Avalovara, de Osman Lins; e o terceiro,
compreendendo desde 1973 até o momento. O Pós-Modernismo é considerado
um fenômeno social, econômico e cultural, concomitante à chamada III Revolução
2	 O problema do autor, Capítulo V (p. 173-191). Também em Discurso na Vida e Discurso na Arte (VO-
LOSHINOV; BAKHTIN, 1926), os autores ressaltam a importância fundamental do papel do outro como um ator
social que direciona os discursos, tanto nas esferas ideologicamente mais complexas quanto às do cotidiano: “A
interrelação de autor e herói, afinal, nunca é realmente uma relação íntima de dois; todo o tempo a forma leva em
conta o terceiro participante – o ouvinte – que exerce influência crucial em todos os outros fatores da obra.” (Ibid.,
p. 14).
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 41
Industrial, a biotecnológica, em que os modelos redimensionam-se da produção para
o consumo e o capital é potencializado.
Os sujeitos, inseridos nesse contexto, demonstram um perfil comportamental
voltado para as questões individuais e não coletivas: “A mão que afaga é a mesma
que fere. Talvez esse provérbio possa ilustrar as consequências produzidas pela
objetivação da nossa racionalidade – espelhada na técnica – que encontra seu apogeu
na sociedade capitalista contemporânea.” (ZUIN et al., 2001, p. 45).
Conforme Hall (1997), instaura-se uma maneira diferente de mudança
estrutural que transforma as sociedades modernas no final do século XX. O efeito
é a fragmentação do cenário cultural de classe, de gênero, de sexualidade, de etnia,
de raça e de nacionalidade. Para o autor, no passado, tínhamos uma noção mais
definida de indivíduo social. Hoje, perdemos nossa identidade pessoal, desacreditando
que sejamos sujeitos integrados ao meio. Essa sensação de perda é geralmente
denominada de deslocamento ou descentração do sujeito: “Esse duplo deslocamento
– descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de
si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo.” (HALL, 1997, p. 9).
Na sociedade, percebemos, recuperando o pensamento de Adorno (1996),
a cultura convertendo-se, satisfeita de si, em um valor comercial, de acordo com o
pensamento capitalista, resultando na superficialidade das relações humanas. Nasce
com o pensamento moderno, segundo Santos, o individualismo, mas a exacerbação
narcísica é um acréscimo pós-moderno: “Um, filho da civilização industrial, mobilizava
as massas para a luta política; o outro, florescente na sociedade pós-industrial, dedica-
se às minorias — sexuais, raciais, culturais —, atuando na micrologia do cotidiano.”
(SANTOS, 2004, p. 18).
Essa fragmentação dos diferentes âmbitos do homem contemporâneo
universaliza-se na literatura, aparecendo no entrecruzar de tendências e de estilos,
dialogando permanentemente com o passado, geralmente de forma anárquica e
paródica. Entretanto, talvez o que mais impacta é a popularização da arte, subvertendo
o tom intelectual preconizado até o modernismo (SANTOS, 2004).
Para alguns filósofos da educação, como Adorno (2002), nessa expressão da
indústria cultural, fruto da contemporaneidade, há o mascaramento tanto da crítica
quanto do respeito, porque a primeira cede ao conhecimento mecânico e a segunda
ao culto ao efêmero da celebridade. De acordo com o filósofo, a cultura mercadológica
é alienante, porque os que dela dispõem reprimem tudo o que possa fazer com que
ela fuja à imanência total da sociedade vigente, permitindo apenas o que serve aos
seus propósitos.
Nesse contexto, refletindo o momento contemporâneo, dialético, em que vida e
arte interagem, contradizem-se, aproximam-se e mudam, pelo movimento ininterrupto
do devir, é que o gênero conto, inserido no contexto nacional pelo Romantismo, ganha
progressiva aceitação, adquirindo, consoante Moisés (2001), expansão e prestígio,
até então pouco comuns:
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 42
Contemporâneo da voga da literatura-americana (Borges, Cortázar, etc.), a
hegemonia do conto talvez correspondesse a um sintoma de revolução numa área
onde a modernidade demorara a instalar-se. As gerações de 20 e 30 concentraram o
seu ímpeto renovador no romance, eventualmente movimentadas pelo preconceito
segundo o qual o conto, além de ser tudo quanto o autor assim o desejasse, seria
produto secundário, irrelevante. Com o pós-guerra, e a rapidez das transformações
culturais, o conto – cada vez mais compacto – passou a ser signo da modernidade
apressada, vindo assim a preencher tardiamente o seu espaço, como todo o
exagero do anacronismo ou das falsas soluções. (MOISÉS, 2001, p.372).
De acordo com Bosi (2006), o conto cumpre seu papel na escrita contemporânea
pela versatilidade decorrente da narração realista, da busca do fantasioso e do estilo
no jogo verbal. Para o crítico, a narrativa breve, paradoxalmente, “[...] condensa e
potencia no seu espaço todas as possibilidades de ficção.” (BOSI, 2006, p. 7).
O conto brasileiro contemporâneo mostra-se diversificado, aliando-se às
temáticas do romance e buscando o texto sintético, repleto de nuanças de estilo (BOSI,
2006). À semelhança do restante das obras literárias do momento, coexistem o antigo
e o moderno, bem como o experimentalismo e a tradição. As principais características
semântico-ideológicas são: intensificação do ludismo, exposição da autoconsciência
e da autorreflexão, radicalização de posições antirracionalistas e antiburguesas
(PROENÇA FILHO,1988).
Na perspectiva apontada, a prosa contemporânea, (BOSI, 1987; MOISÉS,
2001), diferentemente da poesia produzida no pós-guerra, é influenciada por várias
tendências, refletindo o apego à tradição, em alguns casos, bem como a busca pelo
novo, em outros, embora, neste último pressuposto, seu delineamento seja pouco
marcado e seus autores não se destaquem pelo dogmatismo.
Em nosso estudo, focalizamos a análise teórica do conto na contemporaneidade,
na vertente da narrativa de enigma e do insólito na literatura, considerado “[...] um
conjunto de narrativas que se marcam distintivamente pela presença de eventos
insólitos não ocasionais, servindo-lhes de móvel.” (GARCÍA, 2007, p. 18). Para
Todorov (2007), o estudo do insólito pressupõe a observação, principalmente pelo
leitor, da hesitação impactante da personagem, condicionada às leis naturais, diante
de um acontecimento inusitado, sobrenatural. Essa reação é efeito da construção
composicional narrativa, do estilo e do tema.
O insólito é visto como uma situação pouco frequente, rara, incomum ou anormal.
O evento contraria, conforme García (2007), o usualmente conhecido, os hábitos,
os costumes, as normas, as tradições. O insólito, como fenômeno, surpreende ou
decepciona as expectativas comuns de determinada cultura.
Por ser uma visão cultural, analisar a perspectiva do insólito é olhar a produção
literária historicamente situada, porque há nela possivelmente a crítica do pensamento
representado pelo momento em que se insere, exigindo o entendimento significativo
do seu contexto de produção:
[...] a percepção do elemento insólito se constrói no leitor não como um contraste,
uma oposição à realidade – plano de fundo externo que determina, no jogo de
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 43
concessões e aproximações, a rede de referências do indivíduo – mas sim como
um contraste a uma “realidade” comunicativa. Ou seja, um elemento no linguagir
que acontece a despeito das expectativas construídas graças a um conjunto
de articulações envolvidas na experiência literária (as experiências passadas, o
repertório de contato com o que ele identifica como pertencente ao sistema literário,
a percepção da estruturação narratológica que dialoga com as expectativas das
ordens simbólicas e sociais, e os contratos recepcionais por ele assinado no
contexto da experiência). (PINTO, 2008, p.3).
Cabe ressaltar que, na concepção de insólito, para Todorov (2007), transitam o
fantástico, o estranho e o maravilhoso. O autor entende fantástico como a percepção
do leitor e das personagens acerca de acontecimentos estranhos na diegese, mas com
referências ao mundo real e referências geográficas identificáveis que possibilitam
crer que os fatos narrados ocorrem em um plano da realidade.
O estranho vai mais além. A situação narrativa apresenta-se de forma que o
real é colocado sobre um espectro que provoca uma reação de estranhamento ou de
repugnância tanto aos personagens quanto aos leitores: “O estranho realiza [...] uma
só das condições do fantástico: a descrição de certas reações, em particular o medo;
está ligado unicamente aos sentimentos das personagens e não a um acontecimento
material que desafie a razão.” (TODOROV, 2007, p. 53).
O maravilhoso na narrativa caracteriza os eventos insólitos sem explicitação
plausível para a causa. Os fatos maravilhosos são vistos como algo do cotidiano
representado no universo diegético. A ocorrência do insólito na narrativa maravilhosa
não provoca estranheza nem questionamento por parte do leitor, bem como não há
hesitação nas personagens diante do fato inusitado.
Se na era medieval, as narrativas vinham do conflito entre o sagrado e o profano,
um embate que até hoje marca presença no realismo fantástico, hoje, essa fuga da
realidade, considerando um contexto de produção da década de 1930 em diante,
reflete o confronto ideológico mais fluido que cedeu lugar ao ideológico político,
mesmo que sem a panfletagem da geração literária de 30, mas que revela uma marca
de propósitos comuns: recorrer ao inquietante na busca de representações imagéticas
e discursivas da realidade verossímil.
O modo discursivo é proveniente da já poética épica da Era Clássica com Homero,
por exemplo, e carrega consigo alto valor estético e ideológico se pensarmos pelo viés
literário como arte e pelo viés discursivo como veículo significativo de construção de
sentidos marcados pela bivocalidade que constitui o gênero.
Se tratar do fantástico é tratar de duas realidades possíveis e paralelas, logo,
é colocar dois planos verossimilhantes enfrentando-se e dialogando. A literatura
possibilita que isso aconteça por meio do seu discurso-arte ou discurso-de-saber que
se evidencia com suas marcas linguísticas características e passíveis de categorização
como qualquer outro gênero. Em se tratando de uma abordagem prática de leitura
e de análise textual, esse sistema literário do real-naturalista vincula-se em dois
planos: o real e o fantástico questionável, por meio dos quais se engendra a teia da
verossimilhança.
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 44
Suas abordagens temáticas fogem do tradicional engajamento observado em
outros textos do Realismo ou mesmo do Modernismo, porque não há preocupação em
comprometer-se com a realidade estética real. Esses textos se pautam pelo lúdico,
pelo irreal, por manterem contato com o plano ontológico em que sólito e insólito se
fundem. Por isso, observamos referências a lendas, a mitos, a criaturas fantásticas, a
universos paralelos e a outras vertentes que seguem a linha do “estranho” de Freud e
do imaginário cultural.
4 | 	O ENCANTAMENTO E O IMPACTO DA CRIAÇÃO
Pelo fato de o conceito de conto ainda ser controverso entre os críticos literários,
revisitaremos, aqui, algumas conceituações do gênero. Para Reis (1984), os juízos de
valor que se cristalizam em cada época, caracterizando a tradição artística vigente,
mostram-se dogmáticos para com o tratamento dos gêneros literários. O conto,
como manifestação artística, também vivencia esse processo pelo qual, hoje, pode
distanciar-se em alguns aspectos de sua herança cultural.
Jolles (1976) expõe que o conto, em sua essência primeira, é uma criação
espontânea com tendência ao plano do maravilhoso. É uma maneira peculiar de
representar os eventos, tendo sentido somente no plano da narrativa: “Numa palavra:
pode aplicar-se o universo ao conto e não o conto ao universo.” (JOLLES, 1976,
p.193). Para o autor, as leis de formação do conto estão relacionadas ao princípio que
o determina no plano da narrativa, a disposição mental: “[...] no Conto, que enfrenta
abertamente o universo e o absorve, o universo conserva, pelo contrário, apesar dessa
transformação, sua mobilidade, sua generalidade e – o que lhe dá a característica de
ser novo de cada vez – sua pluralidade.” (JOLLES, 1976, p.193).
Jolles (1976) explica que o princípio da disposição mental no conto, em sua
origem, corresponde à ideia de que os eventos devem encaminhar-se na direção de
um juízo axiológico orientado para o acontecimento. É um julgamento da ética do
conhecimento ou moral ingênua, de ordem afetiva. Nesse aspecto, o conto distancia-
se significativamente do comprometimento com um acontecimento real, tomando duas
direções: “[...] por uma parte, toma e compreende o universo como uma realidade
que ela recusa e que não corresponde à sua ética do acontecimento; por outra parte,
propõe e adota um outro universo que satisfaz a todas as exigências da moral ingênua.”
(JOLLES, 1976, p. 200).
Por outro lado, de acordo com Reis (1984), é peculiar à arte rechaçar ligações
que procuram enquadrá-la em compartimentos estanques. Dessa forma, para estudá-
la, precisamos observar a sua dinamicidade:
Se o valor do artístico reside naquilo que traz de novo, de inaugural, tal como o
fósforo que, riscado, perde a serventia, qualquer juízo acerca da arte, mesmo
se descritivo, para se manter atualizável, tem que caracterizar-se por uma certa
“abertura”, ou seja, todo cuidado é pouco no sentido de evitar transformar-se em
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 45
fórmula reducionista. (REIS, 1984, p. 23).
Bosi (2006) explicita que o conto cumpre com seu papel de narrativa ficcional
na contemporaneidade, dada a sua variedade ao atender os padrões da tendência
realista, fantástica e de estilo variado. Conforme o autor, “[...] ora é o quase documento-
folclórico, ora a quase-crônica da vida urbana, ora o quase-drama do cotidiano burguês,
ora o quase-poema do imaginário às soltas, ora, enfim, grafia brilhante e preciosa
votada às festas da linguagem.” (BOSI, 2006, p. 7).
Procurando defini-lo, Gotlib apresenta três acepções da palavra conto: “1. relato
de um acontecimento; 2. narração oral ou escrita de um acontecimento falso; 3.
fábula que se conta às crianças para diverti-las.” (GOTLIB, 1999, p. 08) Embora com
nuanças, todas as acepções têm um ponto comum: são modos de se contar algo e,
como tal, são narrativas, correspondendo a um discurso integrado em uma sucessão
de acontecimentos de interesse humano, na unidade de uma mesma ação.
O conto é também visto, em sua construção composicional, como tendo uma
estrutura linear, que não se aprofunda no estudo da psicologia das personagens nem
das motivações de suas ações. Ao contrário, procura explicar, em poucas palavras,
a essência das personas e o que as move, pela sua própria conduta (MAGALHÃES
JUNIOR, 1972).
Para Reis (1984), o conto não é só um texto em prosa que dá o seu recado em
reduzido número de páginas ou linhas, considerando essa uma visão muito simplista da
arquitetura do gênero. Para a autora, a questão primeira é que a sua maior qualidade
está nos fatores concisão e brevidade, sendo o caráter quantitativo decorrente do
qualitativo: Curto porque denso.
Bosi (2006) defende que, em relação à invenção temática, o conto contemporâneo
produz situações cotidianas do homem e de seu entorno, diferentemente do romance
que é construído em eventos, o que produz sua brevidade. Friedman (2004), em
relação à brevidade do gênero, conclui que a narrativa é curta, porque centrada em
um única célula dramática também curta.
Mesmo que o evento seja estendido, o conto é breve pela característica inerente
da sua essência que é a condensação dos recursos narrativos. Isso não significa que
é curto apenas por ter uma quantidade específica de palavras:
Tudo o que podemos fazer, além de reconhecer sua brevidade, é perguntar como
e por quê, mantendo simultaneamente equilibradas em nossas mentes as maneiras
alternativas de responder a essas questões e suas possíveis combinações.
Desse modo, podemos ganhar uma compreensão ampliada e, por conseqüência,
apreciação das qualidades artísticas específicas dessa curiosa e esplêndida,
apesar de excessivamente subestimada, arte. (FRIEDMAN, 2004, p. 230).
Reis (1984) ressalta: seja por meio de um recorte da realidade, de um incidente
corriqueiro, de um evento notável ou de fato algum - um conto parece ser “[...] a
construção de um sentido que produza no leitor algo como uma explosão, levando
as comportas mentais a expandirem-se, projetando a sensibilidade e a inteligência a
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 46
dimensões que ultrapassem infinitamente o espaço e o tempo da leitura.” (REIS, 1984,
p. 24).
O impacto produzido por essa explosão pode advir do caráter incomum do que
foi contado, da organização inesperada do evento, do estilo escolhido para narrar, da
apreciação valorativa do contista que, por meio de sua engenhosidade, transveste o
limite do óbvio, subvertendo originalmente o já dito.
Apesar de o conto na contemporaneidade ter sucumbido em sua temática aos
apelos do seu contexto sócio-histórico-cultural, sua estrutura monódica, fundamentada
em uma única célula dramática, procura resistir às mudanças que possam comprometer
sua característica fundamental. Contudo, para Moisés (2001), embora haja certa
impermeabilidade à tentativa de deslocar a tradicional construção do conto, não
significa que se mantenha inflexível, sedimentada. Só que tais mudanças consideram
o delineamento do conto, porque
[...] tudo se passa como se o conto, originária e matricialmente vinculado à
fábula, pretendesse em nossos dias, a despeito ou em razão dos experimentos
mais ousados, retomar a primitiva essência, - uma “história exemplar”, em cujo
microcosmo o leitor se mira, em busca dos reflexos de sua identidade estilhaçada,
ou dum momento de exorcismo dos demônios interiores. (MOISÉS, 2001, p.372-
373).
Para os estudiosos do momento literário contemporâneo, como Fábio Lucas
(1989), o conto, nas décadas do final do milênio, segue as tendências do romance:
discurso fragmentado, as técnicas de montagem inspiradas no cinema, a visão
surreal, a intromissão do grotesco como fator de crítica ao poder, a tendência ao
estilo coloquial. Para Moisés (2001), “[...] é inegável que o boom aguçou a mestria
dos criadores autênticos e aperfeiçoou o espírito analítico dos leitores [...]” (MOISÉS,
2001, p. 373).
Existem vários modos de se construir esta unidade de uma mesma ação, pois é um
projeto humano e depende, portanto, das peculiaridades da face e da fase do contista.
Para Reis (1984), o conto, como modalidade narrativa, tem dois modos de formulação.
Embora, em sua materialização literária, seja uma extensão das longevas narrativas
da tradição oral, assimila tantas representações artísticas que, contemporaneamente,
possui configuração própria, sendo reconhecido psicossocialmente como o gênero
que é. Conforme o autor:
Tempos houve em que um bom conto era a narração de um episódio com princípio,
meio e fim, passado naturalmente num mesmo espaço físico, dentro de um limite
razoável de tempo e constituído de uma única ação, ou, em linguagem um pouco
mais formalizada, uma narrativa que apresentasse unidade de espaço, unidade de
tempo e unidade de ação. Mas não posso olhar o que se faz hoje, em matéria de
contos, com óculos embaçados por teias de aranha do passado. Correria o risco
de começar a cortar: “isto não é conto”, “isto não é conto”, “também isto não é
conto”, etc..., etc..., E claro que estaria incorrendo naquele mesmo “autoritarismo”
lá do século XVII. (REIS, 1984, p. 25).
Como construção artística, na modernidade, ao ser criado subjetivamente, pode
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 47
diferir-se de sua origem, cujo cerne está na produção e na reprodução oral coletiva.
A tendência do conto, quando passa a ser reproduzida na escrita, é de ser um
gênero sujeito “[...] a experimentalismos e inovações, ganhando sempre como arte e
esgueirando-se, cada vez mais, de concepções fechadas, normativas e estanques.”
(REIS, 1984, p. 18).
Diante dessas acepções, podemos perceber o conto na contemporaneidade,
em seu aspecto formal, mantendo sua brevidade (desenrolar da ação em apenas
um episódio), ainda envolvendo poucas personagens, pelo espaço físico diminuto
(lugar único), e pelo tempo marcado por um período muito curto. Entretanto, parece
evidente existirem vários modos de se construir a unidade da ação, por ser um projeto
humano, com cronotopo específico e dependendo das peculiaridades da expressão e
do momento do contista.
5 | 	A NATUREZA SOCIOLÓGICA DA ARTE E A COMUNICAÇÃO ESTÉTICA
Em Discurso na vida e discurso na arte, Voloshinov e Bakhtin (1976)3
iniciam o
texto discutindo a questão dos estudos literários que se tem proposto à abordagem
do texto, centrando-se quase que exclusivamente no aspecto histórico e deixando
praticamente esquecida a área de enunciados que envolve a forma artística e seus
vários fatores como, por exemplo, o estilo.
De acordo com os autores, há um equívoco no estudo moderno da arte que,
mesmo adotando o método sociológico,4
ainda persiste em dissociar forma e conteúdo,
bem como teoria e história, pois pressupõe que o processo artístico “[...] adquire
complexidade através do fator ideológico (o conteúdo) e começa a se desenvolver
historicamente nas condições da realidade social externa.” (VOLOSHINOV; BAKHTIN,
1976, p.1).
Eles consideram que essa perspectiva é paradoxal aos fundamentos basais
do método marxista: seu monismo e sua historicidade. Isso porque, na visão dos
pensadores, a arte é analisada como se não fosse de natureza sociológica, quando o
é por condição primeira. Os autores afirmam que
A arte, também, é imanentemente social; o meio social extra-artístico afetando
de fora a arte, encontra resposta direta e intrínseca dentro dela. Não se trata de
um elemento estranho afetando outro, mas de uma formação social, o estético, tal
como o jurídico ou o cognitivo, é apenas uma variedade do social. A teoria da arte,
conseqüentemente, só pode ser uma sociologia da arte. (VOLOSHINOV; BAKHTIN,
3	 Manteremos a diferença de grafia entre o sobrenome Volochínov e Voloshinov, conforme a obra consul-
tada referenciá-lo.
4	 O método sociológico usado pelo Círculo, à época, tem forte vínculo com o conceito de que o domínio
da criação ideológica só pode ser encontrado pela perspectiva da sociologia ligada à concepção marxista, porque
“Todos os outros métodos ‘imanentes’ estão pesadamente envolvidos em subjetivismo e têm sido incapazes, até
hoje, de se libertarem da infrutífera controvérsia de opiniões e pontos de vista [...].” (VOLOSHINOV; BAKHTIN,
1976, p. 2). Para os membros Círculo, a arte, como todos os produtos da criatividade humana, nasce na e para a
sociedade, sendo afetada por esta. Consequentemente, a teoria da arte, para eles, só pode ser uma sociologia da
arte.
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 48
1976, p. 2-3).
Considerando que o estudo sociológico precisa incidir sobre a teoria da arte, é
preciso repensar, primeiro, como defendem os autores, a investigação que se restringe
à obra, sem contemplar o processo de criação nem o de recepção; segundo, rever
também aquela que fundamenta sua análise basicamente nas experiências do criador
e do contemplador.
No proposto, percebemos a crítica às duas orientações que têm como objetivo
isolar e delimitar a linguagem, neste caso a artística, como um objeto de estudo
específico: a que se refere ao objetivismo abstrato, em que o cerne da investigação é a
estrutura da obra, vista como artefato físico; e a que remete ao subjetivismo idealista,
em que apenas a psiquê individual do produtor ou do contemplador é relevante.
Podemos entender, por meio dos preceitos apresentados, que a arte é vista pelos
pensadores como uma forma social, semelhante a outras em suas generalidades, mas
singular em suas especificidades, sendo tarefa da poética sociológica compreender
seu jeito peculiar no processo de alteridade entre a obra, o criador e o contemplador.
Conforme o seu entendimento,
Qualquer coisa no material de uma obra de arte que não pode participar da
comunicação entre criador e contemplador, que não pode se tornar o “médium”, o
meio de sua comunicação, não pode igualmente ser o recipiente de valor artístico.
Os métodos que ignoram a essência social da arte e tentam encontrar sua natureza
e distinguir características apenas na organização do artefato, são obrigados
realmente a projetar a interrelação social do criador e do contemplador em vários
aspectos do material e em vários procedimentos para estruturar o material.
Exatamente do mesmo modo, a estética psicológica projeta as mesmas relações
sociais na psique individual do contemplador. Esta projeção distorce a integridade
dessas interrelações e dá um falso quadro tanto do material quanto da psique.
(VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 4).
A comunicação estética, nessa premissa, é totalmente absorvida tanto na criação
artística quanto na sua constante recriação, por intermédio de seus contempladores, os
quais podem tornar-se cocriadores. Para Voloshinov e Bakhtin (1976), ela não carece
de qualquer outro tipo de objetivação, sendo uma maneira genuína de linguagem
que não existe fora do contexto social, refletindo-o e interagindo com outras formas
comunicativas.
Ao longo do texto, ressalta-se uma perspectiva estilística que nega, de forma
original, o que se postula até então sobre estilo. A questão deixa de ser tratada na
sua individualidade e passa a implicar interação. Para os autores, a manifestação
de um texto enunciado, efetivado pela existência normativa - ou construção sócio-
histórica - de um dado gênero, em determinada esfera comunicativa, une os parceiros
comunicativos em uma atitude responsiva, como copartícipes, os quais conhecem,
compreendem e avaliam equitativamente a situação de produção. Os pensadores
explicitam que
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 49
[...] a situação extraverbal está longe de ser meramente a causa externa de um
enunciado – ela não age sobre o enunciado de fora, como se fosse uma força
mecânica. Melhor dizendo, a situação se integra ao enunciado como uma parte
constitutiva essencial da estrutura de sua significação. Conseqüentemente, um
enunciado concreto como um todo significativo compreende duas partes: (l) a
parte percebida ou realizada em palavras e (2) a parte presumida. (VOLOSHINOV;
BAKHTIN, 1976, p. 06).
Os autores defendem, portanto, que o traço distintivo dos enunciados concretos
está no fato de eles estabelecerem a ligação entre o verbal, posto na materialização
da linguagem, e o extraverbal, decorrente da vivência social em que os interactantes
estão inseridos. Fora do contexto pragmático imediato, perdem significação e não
produzem sentidos. Além disso, todo enunciado permite criar várias representações,
porém a representação de cada sujeito tende a ser una:
Todos os fenômenos que nos cercam estão do mesmo modo fundidos com
julgamentos de valor. Se um julgamento de valor é de fato condicionado pela
existência de uma dada comunidade, ele se torna uma matéria de crença
dogmática, alguma coisa tida como certa e não submetida à discussão. Ao
contrário, sempre que um julgamento básico de valor é verbalizado e justificado,
nós podemos estar certos de que ele já se tornou duvidoso, separou-se de seu
referente, deixou de organizar a vida e, conseqüentemente, perdeu sua conexão
com as condições existenciais do grupo dado. (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p.
07).
Os membros do Círculo afirmam que o juízo de valor não só é inerente ao
conteúdo do discurso como conduz “[...] a própria seleção do material verbal e a
forma do todo verbal” (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 7), encontrando a sua
expressividade na entoação. Para eles, a entoação é a ligação entre o discurso verbal
e o contexto extraverbal, “[...] a entoação genuína, viva, transporta o discurso verbal
para além das fronteiras do verbal [...]”(VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 7).
Entretanto, conforme a linha de pensamento proposta, a entoação só tem seu
entendimento pleno na interação verbal, quando estabelecemos contato com os
julgamentos de valor presumidos por um dado grupo social. Ela está na fronteira
limítrofe entre o verbal e o não-verbal,
[...] do dito com o não-dito. Na entoação, o discurso entra diretamente em
contato com a vida. E é na entoação sobretudo que o falante entra em contato
com o interlocutor ou interlocutores – a entoação é social por excelência. Ela é
especialmente sensível a todas as vibrações da atmosfera social que envolve o
falante. (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 07).
Outro aspecto ressaltado pelos autores é o de que a entoação, no enunciado
concreto, é mais metafórica do que a própria seleção lexical, porque a tendência do
homem para criar mitos é imanente nela. Além disso, cada instância da entoação é
orientada em duas direções: a do interlocutor, tendo-o como aliado ou testemunha; e a
do objeto do enunciado, como um terceiro participante, a quem a entoação repreende
ou agrada, denigre ou engrandece:
Esta orientação social dupla é o que determina todos os aspectos da entoação e a
torna inteligível. E a mesmíssima coisa é verdadeira para todos os outros fatores
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 50
dos enunciados verbais: eles são todos organizados e tomam forma, sob todos os
aspectos, no mesmo processo da dupla orientação do falante; esta origem social
só é mais facilmente detectável na entoação porque ela é o fator verbal de maior
sensibilidade, elasticidade e liberdade. (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 09,
ênfase do autor).
Em virtude disso, o enunciado concreto, na perspectiva dos autores nasce, vive
e morre no processo da interação social entre os participantes da enunciação. Eles
têm sua forma e significado determinados basicamente pela natureza da interação.
Se retirados do contexto, perdem significado tanto na forma quanto no conteúdo,
restando apenas uma casca linguística abstrata ou um “[...] esquema semântico
igualmente abstrato (a banal “ideia da obra”, com a qual lidaram os primeiros teóricos
e historiadores da literatura) – duas abstrações que não são passíveis de união mútua
porque não há chão concreto para sua síntese orgânica.” (VOLOSHINOV; BAKHTIN,
1976, p. 10).
Nos pressupostos em Discurso na vida e discurso na arte, a obra poética segue
a mesma articulação de outros gêneros de esferas distintas. Ela pode ser considerada
“[...] um poderoso condensador de avaliações sociais não articuladas – cada palavra
está saturada delas. São essas avaliações sociais que organizam a forma como sua
expressão direta.” (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p.11).
A valoração apreciativa do autor e o horizonte de expectativa dos interlocutores
imediatos da situação de produção determinam a escolha lexical do escritor. As
palavras são extraídas do contexto da vida em que estão imersas e impregnadas
de juízos de valor, buscando a simpatia, a concordância e a discordância de seus
ouvintes. Também a escolha do herói é recoberta de subjetividade, de avaliação ativa:
“Ouvinte e herói são participantes constantes do evento criativo, o qual não deixa de
ser nem por um instante um evento de comunicação viva envolvendo todos os três.”
(VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p.11). Assim, os autores salientam que:
O estilo do poeta é engendrado do estilo de sua fala interior, a qual não se submete
a controle, e sua fala interior é ela mesma o produto de sua vida social inteira.
‘O estilo é o homem’, dizem; mas poderíamos dizer: o estilo é pelo menos duas
pessoas ou, mais precisamente, uma pessoa mais seu grupo social na forma do
seu representante autorizado, o ouvinte - o participante constante na fala interior e
exterior de uma pessoa. (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 16).
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Volochínov (2006) apresentam
um estudo do estilo, de maneira detalhada, das formas de citação da palavra de outrem
(discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre), aspecto a ser destacado
em nossa análise. Os autores focalizam a importância dos discursos alheios para a
constituição dos discursos próprios, “[...] como uma unidade integral da construção.”
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 144). Na obra, observamos alguns dos aspectos
do conceito de estilo na concepção bakhtiniana.
De acordo com os autores, o estilo possui uma ordenação própria, isto é, organiza
a sua maneira os discursos do outro e os elementos da língua, não negando, dessa
forma, o caráter individual do autor. No entanto, o estilo nunca deixa de ser visto como
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 51
um fenômeno social, uma vez que ele sempre se relaciona com os enunciados alheios.
Bakhtin (2003) declara que, na literatura de ficção, o estilo integra-se ao
próprio enunciado, pois “[...] os diferentes gêneros são diferentes possibilidades
para a expressão da individualidade da linguagem através de diferentes aspectos da
individualidade.” (BAKHTIN, 2003, p. 265). De acordo com o pensador, na maioria dos
gêneros discursivos (com exceção dos artístico-literários), o estilo individual não faz
parte do plano do enunciado, mas é seu produto complementar:
O discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao
mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação.
(BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2006, p.150).
Em Estética da Criação Verbal (BAKHTIN, 2003), o autor postula que o estilo só
pode ser compreendido em sua relação com o gênero no qual se concretiza. Nessa
perspectiva, ele afirma que, na literatura de ficção, o estilo individual integra-se ao
próprio enunciado, pois “[...] os diferentes gêneros são diferentes possibilidades
para a expressão da individualidade da linguagem através de diferentes aspectos da
individualidade.” (BAKHTIN, 2003, p. 265).
Também as mudanças históricas dos estilos da linguagem estão relacionadas
intrinsecamente às mudanças dos gêneros do discurso, porque a linguagem literária
é um sistema dinâmico e complexo de estilos de linguagem, em transformação
permanente. Os gêneros discursivos são correias de transmissão entre a história
da sociedade e a história da linguagem: “Nenhum fenômeno novo (fonético, léxico,
gramatical) pode integrar o sistema da língua sem ter percorrido um complexo e longo
caminho de experimentação e elaboração de gêneros e estilos.” (BAKHTIN, 2003,
p.267-268). Consoante Brait (2003), no que concerne ao estilo,
Ainda que o termo não se restrinja necessariamente às artes, ele sempre diz
respeito às idiossincrasias, a maneira de se expressar de uma determinada pessoa,
sugerindo uma estreita e exclusiva relação entre estilo e personalidade, estilo e
individualidade. Na melhor das hipóteses, e de um ponto de vista dos estudos
lingüísticos mais recentes, o estilo pode estar pensado em função do texto e de
suas formas de organização em relação às possibilidades oferecidas pela língua,
estendendo-se a textos não necessariamente literários ou poéticos. (BRAIT, 2003,
p. 1).
Dessa forma, não há estilo sem gênero, o que observamos quando o autor
analisa a questão sob a ótica da funcionalidade do enunciado real em que cada esfera
da atividade e da comunicação humana tem seu estilo próprio:
No fundo, os estilos de linguagem ou funcionais não são outra coisa senão estilos
de gênero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicação. Em
cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições
específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados
estilos. Uma determinada função (científica, técnica, publicitária, oficial, cotidiana) e
determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo,
geram determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos,
temáticos e composicionais relativamente estáveis. (BAKHTIN, 2003, p. 266).
Assim, entendemos que o estilo é indissociável do gênero no qual se realiza e
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 52
que, em seu contexto de construção, não há separação entre forma e conteúdo, entre
teoria e história, porque o processo artístico pressupõe a apropriação da cronologia e
das ideologias humanas, nas condições da realidade social externa.
Logo, a arte é imanentemente social e o estético uma de suas variedades. Com
efeito,teorizaraarteésociologizaraarte.Nesseprisma,aanáliseliteráriadeveprivilegiar
o processo de alteridade entre criador, obra e contemplador. A comunicação estética,
portanto, é criação artística e, ao mesmo tempo, recriação, porque é contemplação.
Logo, os leitores tornam-se cocriadores. Dessa forma, deve ser entendida como um
tipo de linguagem original, inserida em um contexto social, refletindo e refratando o
mundo circundante.
6 | 	CONSIDERAÇÕES FINAIS
Por meio da análise dos procedimentos investigativos orientados para o contexto,
entendemos a relevância do estudo de textos-enunciados do gênero conto como
expoentes literários, porque, do ponto de vista discursivo, constitui-se uma prática
de leitura e de escrita concreta e histórica; uma composição com características
relativamente estáveis, vinculada a uma situação típica da comunicação social; uma
construção escrita com traços temáticos, estilísticos e composicionais concernentes
a enunciados individuais, dessa forma, ligados à atividade humana. Em vista disso,
torna-se um material profícuo para a análise das marcas linguístico-enunciativas, por
meio das vozes que perpassam a comunicação verbal. Além, o conto demonstra ser
um enunciado com temática relacionada à história humana e, portanto, vivenciada
socialmente.
Compreendemos, também, que, em cada momento histórico, em cada situação
social, em cada interação, os enunciados que denotam autoridade, como o texto
literário, é que dão o tom em qualquer esfera comunicativa, propiciando aos sujeitos
fundamentar seu discurso, citando, parafraseando, estilizando, parodiando. É nesse
movimento dialógico que a experiência discursiva própria do indivíduo desenvolve-se
em uma interação constante e contínua com os enunciados dos outros.
Asequência dos elos que motivam a ocorrência de um texto literário, de um conto,
também tende ao desdobramento, em uma relação dialógica de movimentos, tanto de
assimilação quanto de distanciamento das vozes que configuram a natureza do próprio
discurso. O conto é um gênero discursivo, um elo na cadeia da comunicação discursiva
do campo literário. Os seus limites são orquestrados pela alternância dos sujeitos do
discurso, em sua natureza sociológica e arquitetura estética. Ele é impregnado de
vozes, não bastando em si mesmo, refletindo e refratando outros discursos da mesma
esfera ou de esferas diferentes. Isso lhe molda o caráter e, portanto, é repleto de
atitudes responsivas a outros enunciados de campos de atividade humana variados.
Argumentação e Linguagem Capítulo 4 53
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Capítulo 5 55Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 5
COMO TRABALHAR A LITERATURA SOB REGIMES
AUTORITÁRIOS EM SALA DE AULA
Cícera Tayana Francelino Fernandes
Universidade Regional do Cariri –URCA, Missão
Velha-CE
1 | 	INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como objetivo
compreender o desenvolvimento da história da
literatura educacional no período da Ditadura
Militar, de 1970 a 1978, nos poemas de Behr,
Antônio Carlos de Brito e uma canção de
Chico Buarque, mostrando como ela pode ser
trabalhada em outras áreas do conhecimento,
através da interdisciplinaridade, que beneficiará
tanto o professor quanto o aluno, tornando a
aula mais diferente, prática e dinâmica.
A Literatura Brasileira é muito discutida
nas escolas, vista e analisada apenas pelo
lado das escolas e períodos literários. Porém
poucas pessoas sabem da importância e
contribuições que ela teve no período da
Ditadura. Assim, pretendemos mostrar, além da
sua forte relevância no período histórico, como
os professores podem incluir na disciplina de
História dentro da sala de aula, diante desse
contexto.
A metodologia utilizada neste trabalho
baseia-se em pesquisa bibliográfica com revisão
de Literatura. Para a coleta de dados serão feitos
análiseemrecursos,taiscomo:Livros(poemas),
elementos históricos e literários exclusivamente
no período da Ditadura, e internet (Vídeos
e documentários). Esses elementos serão
analisados e comparados, tendo em vista à
sua utilização em salas de aulas do ensino
fundamental e médio. A pesquisa ainda conta
de uma entrevista realizada com um professor
da disciplina de História.
2 | 	A DITADURA MILITAR DENTRO DE UM
CONTEXTO HISTÓRICO
Para a Ditadura Militar ser entendida da
melhor maneira possível, iniciaremos falando a
partir de 1961, que começaram as intervenções
no país, a partir da renúncia do presidente
Jânio Quadros, tendo como substituto o vice
João Goulart. Por sua vez, quando Jango
(como era popularmente conhecido), começou
a modificar as leis que traziam benefícios para
os trabalhadores tanto urbanos, quanto rurais.
Diante desses e de outros acontecimentos,
Jango foi acusado de ser comunista e ameaçado
pelos militares. Os principais fatores que
ajudaram no golpe militar foram a instabilidade
política e financeira, a situação que a população
estava vivenciando e o apoio que os militares
receberam tanto da igreja católica, como da
Argumentação e Linguagem Capítulo 5 56
classe média.
O golpe começou a ser realmente formado quando os generais Olímpio Mourão
Filho e Odílio Denys, se reuniram com Magalhães Pinto que era o governador de
Minas Gerais, para imobilizar os militares e então ficar com o poder. João Goulart
recebeu ordens para prender Castelo Branco (nomeado chefe do Estado-Maior do
Exército pelo então presidente da República João Goulart e foi o principal líder militar
do Golpe Militar de 1964, que o deporia em 31 de março daquele ano.), porém, ele não
poderia aceitar, pois iria começar uma guerra. Decidiu então, refugiar-se no Paraguai
e deixando a presidência, depois que encontrou as tropas. Logo depois da ausência
de Jango do poder, Castelo Branco é nomeado presidente. O Golpe, finalmente teve
fim com a chegada de Tancredo Neves, o primeiro presidente civil desde o início da
revolta.
2.1	A Literatura Sob a Óptica Pedagógica
Podemos notar de início, que a Literatura dentro de uma visão mais pedagógica
é trabalhada de maneiras diferentes quando comparamos a escola pública e privada. A
maioria das escolas particulares (privadas) é trabalhada separadamente, ou seja, não
conta incluídas com Português e redação, o enfoque é bem maior. Porém, em algumas
escolas públicas ela não é tão valorizada assim. Não de uma forma generalizada, mas
de uma visão bem superficial, é isso que ocorre na maioria das vezes, no ensino
médio.
Gabriela Rodella, especialista e doutora em Literatura, participou de um fórum,
e durante uma entrevista, explicou sobre as diferentes realidades em que a Literatura
pode atingir, e como ela pode ser levada às escolas planejando uma forma de ensiná-
la. Ao ser inserida na escola, deve ser mostrado diante de textos Literários, e que,
segundo ela “não é perca de tempo, ao contrário, isso é ganho de tempo”. Ela ainda
ressalta uma pesquisa que fez, para saber o que os alunos gostavam de ler, e obteve
o resultado que são livros não trabalhados na escola, chegando a conclusão que é
um erro muito grave, pois o professor trabalha apenas com um cânone, considerado
difícil. Claúdia Mesquita que trabalha com edição de livros infantis, também participou
dessa entrevista, e fala: “o papel do professor, é conseguir atrair o seu aluno pra esse
universo tão rico que a literatura propicia”. Em síntese, o que elas quiseram mostrar foi
a dificuldade que os alunos têm sobre os livros trabalhados, e que o professor sendo
mediador do conhecimento, deveria construir um elo, em que poderiam trabalhar tanto
os clássicos, quanto os best-seller, por exemplo. Pois os estudantes tanto gostam
como já sabem do que se trata.
2.2	A Situação da Literatura no Período da Ditadura Militar
A Literatura passou por uma sucessão de censuras, por ser um instrumento de
denúncias sobre a situação que o Brasil estava presenciando. Além das poesias e
Argumentação e Linguagem Capítulo 5 57
canções, abarcou todo o espaço da imprensa, como a televisão, teatro e cinema.
Eram destacados os principais autores para assim, manifestar-se mostrando o quadro
dos acontecimentos. Ocorreram vários níveis de expressão artística para assim, existir
um controle sendo trabalhada até com a Literatura infantil.
A Ditadura Militar Brasileira ocorreu entre os anos de 1964 e 1985. Várias obras
foram rejeitadas pelo estado. Um dos primeiros atos durante esse processo foi proibir
as pessoas de expressarem sua opinião e o fechamento da editorial Vitória (editora
brasileira ligada ao Partido Comunista Brasileiro, especializada em literatura marxista).
Tudo isso fazia parte de um ‘jogo’ para mantê-los no comando. Em 1970 foi decretada
uma lei que impedia essa liberdade (lei decreto n.1077/70), tratava-se de censurar
livros, revistas para que o povo não tivesse acesso aos mesmos. Stephanou relata
muito bem como eram feitas as apreensões. “As ações confiscatórias ocorriam de
forma primária, improvisadas, efetuadas por pessoas mal treinadas” (STEPHANOU,
2001, p.215).
2.3	Os Principais Autores Que Participaram do Período Ditatorial
O Brasil vivenciou duas décadas de repreensão. Dentro desse acontecimento
Histórico podemos destacar alguns autores, que representaram de maneira singular
as manifestações artísticas desse período. Foram muitos, na qual podem ser
apresentados alguns autores principais que utilizaram a liberdade de expressão para
superar a censura. Através dos romances foram descobertos os ataques que ocorriam,
sendo muito doloroso para a família das vítimas, que tomavam conhecimento por meio
de livros.
A Literatura infantil foi o principal alvo dos escritores, por não ser supervisionada
pelos generais. A escritora Ana Maria Machado consegue mostrar através de sua
narrativa, os acontecimentos da época. Nas suas obras estão: “Tropical Sol da
Liberdade”, e as infantis, “Bento-que-Bento-é-o-Frade”, “Era Uma Vez Um Tirano”, e
“Raul Ferrugem Azul”.
De acordo com Zilberman (1991, p.127)
Em Ana Maria Machado, a proposta explicita de uma história de fadas invertida,
onde o príncipe casa com a pastora e a princesa vai cuidar de sua vida, pode ser
considerado o emblemado que pretende essa narrativa infantil moderna.
Além da escritora Ana Maria Machado, há outros autores, como: Nelson
Rodrigues, Caio Prado Junior, Rubem Fonseca, Cassandra Rios, entre outros, que
buscaram mostrar através de Literatura os fatos ocorridos no país, exatamente no
regime ditatorial por meio de romances.
Segundo Dalcastagnè (1996, p.130). “É o romance que mais se preocupa em
contar detalhes do período, fornecendo informações [...] sobre o comportamento da
classe média sobre a situação das entidades estudantis do clero, dos jornalistas”.
Porém, Ana Maria Machado em uma entrevista realizada no programa “entrelinhas”,
Argumentação e Linguagem Capítulo 5 58
revelou sua verdadeira intenção quando escreveu “Tropical Sol da Liberdade”. Ela
relata:
Não era uma decisão prévia, não era uma história política, não havia um projeto
ideológico. Quis falar da amendoeira, das formigas, do mar, da onda batendo.
Aí começam as lembranças da casa e aí entra tudo. Acho que o ser humano,
vivendo na sociedade, é político. Como eu vivi um momento de ditadura havia uma
preeminência de se falar em liberdade. (MACHADO, 2010,).
Contudo, ela não teve a intenção de sua obra ser interpretada de tal maneira.
Porém o público analisou de maneira ‘errônea’, como se a mesma fosse voltada para
a época em questão.
Cândido ainda manifesta sua opinião acerca do assunto.
[...] a posição do escritor depende do conceito social que os grupos elaboram em
relação a ele, e não corresponde necessariamente ao seu próprio [...] se a obra é
mediadora entre o autor entre o autor e o público, este é mediador entre o autor e
a obra na medida em que o autor só adquire plena consciência da obra quando
ela lhe é mostrada através da reação de terceiros. Isto quer dizer que o público
é condição do autor conhecer a si próprio, pois esta revelação da obra é a sua
revelação.
Tanto a posição de Ana Maria Machado quanto à de Antônio Cândido estão se
referindo ao fato de o autor não ter controle total no entendimento a respeito de sua
obra, pois quando os leitores entram em contato com a mesma formará sua opinião,
sendo escolhido o que é mais propicio para o momento. É exposto também, que a
partir dessa condição que o leitor tem será revelado o conhecimento acerca do autor.
3 | 	A LITERATURA COMO CONHECIMENTO INTERDISCIPLINAR
A Literatura aborda um imenso valor cultural, sendo comumente perpassado pela
oralidade ou escrita. Entretanto, em sua pluridisciplinaridade ainda é pouco trabalhada.
Pode ser pensada como uma forma pluridisciplinar. Considerada forma de sondagem,
podendo até despertar o interesse dos alunos. Já foi comprovado a partir de estudos
científicos (foram realizados na Universidade de Nice, em 1970, no primeiro seminário
de Nice). Esses estudos puderam mostrar que a interdisciplinaridade faz parte de uma
estratégia para beneficiar tanto o aluno quanto o professor. Está claro que os alunos
não considera uma das disciplinas mais fáceis, e é pensando nisso que os professores
estão buscando novas formas de atrair sua atenção, tornando-a mais acessível.
É sabido que a História está ligada diretamente com a Literatura, porém pode ser
relacionada com as demais. A Literatura pode ser considerada a área que mais tem
afinidade com as outras, por ser algo que registra a cultura. Ela é dividida em vários
períodos, que podemos destacar em cada um deles aspectos que cria vínculos com
outras áreas do conhecimento.
O primeiro exemplo será analisado a partir do Quinhetismo, este, porém, está
vinculado inteiramente a História por ser abordados datas e dados históricos. O
Argumentação e Linguagem Capítulo 5 59
Realismo é correspondente à Biologia, pois podemos ver em um exemplo claro que o
escritor Aluísio de Azevedo traz em ‘O Cortiço’, em que o meio provocou uma alteração
em alguns personagens. O Pré-Modernismo tem como característica principal a
sociabilidade existente, e a obra ‘Os Sertões’ será relacionada à Geografia por se
tratar de uma descrição geográfica entre a terra, o homem, e a luta.
Podemos notar que a Literatura pode ser abordada em vários campos do
saber, e trazendo para o lado da História, especificamente no período da ditadura,
os alunos poderão enxergar de um outro ângulo sendo aprofundado a parte literária,
e sobressaindo um pouco do rotineiro, e ao mesmo tempo mostrando algo além do
que está nos livros didáticos. Os principais benefícios para os estudantes serão:
Compreender o contexto cultural, na ocasião do golpe militar, a relação com a política
nacional, aprender sobre os principais movimentos que ocorreram na época, entre
outros. E acima de tudo, mostrar que a Literatura nem sempre foi aceita totalmente.
3.1	Análise Literária de Algumas Obras de Resistência
A Ditadura Militar deixou rastros negativos para o país. A Literatura, porém, teve
sua participação em romances escritos, que de certa forma conseguiu expressar e
repassar através de palavras esse regime. A análise que será feita a seguir, foram
publicadas entre os anos de 1970 e 1978.
O primeiro poema é do escritor Nicolas Behr, chamado “Receita”, publicado em
Caroço de goiaba (1978):
Ingredientes:
2 conflitos de gerações
4 esperanças perdidas
3 litros de sangue fervido
5 sonhos eróticos
2 canções dos Beatles
Modo de preparar:
dissolva os sonhos eróticos
nos dois litros de sangue fervido
e deixe gelar seu coração
corte tudo em pedacinhos
e repita com as canções dos beatles
o mesmo processo usado com os sonhos eróticos
mas desta vez deixe ferver um
pouco mais e mexa até dissolver
parte do sangue pode ser substituído por suco de groselha
mas os resultados não serão os mesmos
sirva o poema simples ou com ilusões
(BEHR, 1978)
Argumentação e Linguagem Capítulo 5 60
O poema “Receita” faz uma referência aos impactos causados pela Ditadura
para a juventude. Através de uma receita pôde ser mostrado que com a mudança de
apenas um ingrediente poderia mudar o rumo dos acontecimentos. No primeiro verso,
é feita uma análise, fechada somente para o contexto dos acontecimentos recentes, e
em todo o poema relata marcas de autoritarismo. Contudo, o autor procurou mostrar
como uma geração inteira foi atingida, trazendo no último verso as maneiras que leitor
pode interpretá-lo, (“o poema simples”), ou (“ou com ilusões “).
O próximo poema a ser analisado é do escritor Antônio Carlos de Brito, conhecido
como Cacaso, chamado Jogos Florais, há duas versões:
Jogos florais I
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.
Na primeira é uma versão da “canção do Exílio” de Gonçalves Dias sendo
investidas. Abordará de forma crítica, trocando alguns elementos, por exemplo, troca o
sabiá pelo tico-tico, referindo-se que a população era submetida ao governo sofrendo
exploração.
Jogos florais II
Minha terra tem Palmares
memória cala-te já.
Peço licença poética
Belém capital Pará.
Bem, meus prezados senhores
dado o avançado da hora
errata e efeitos do vinho
o poeta sai de fininho.
(será mesmo com dois esses
que se escreve paçarinho?)
No poema “Jogos Florais II” o poeta utiliza o poema de Oswald de Andrade,
“Minha terra tem Palmares”, na qual faz uma crítica quanto a escravidão no Brasil, e
da má distribuição de verbas, e por último mostra como tem habilidade para a escrita
mas não está inserido no Cânone Literário, mostrado na grafia da palavra ‘passarinho’.
Podemos notar que o autor fez uso de sua criatividade, usando poemas já conhecidos,
transformando-os em críticas ao governo, para chamar a atenção das pessoas, para
o momento em que passavam.
Argumentação e Linguagem Capítulo 5 61
3.2	A Relação da Música com a Ditadura
Como já foi mencionado, a censura não foi apenas em romances, mas em
todas as expressões artísticas, como por exemplo a música. Uma das canções mais
influentes é “cálice” do cantor e compositor Chico Buarque.
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Argumentação e Linguagem Capítulo 5 62
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
(Chico Buarque, Gilberto Gil, 1978).
Essa música foi uma composição de Chico Buarque e Gilberto Gil, que buscou
retratar a censura. Nesta canção a palavra “Cálice” não será no sentido religioso,
mas sim um trocadilho com do verbo ‘calar-se’. Além dessa ideia, ainda expressava o
sofrimento físico e a tortura, e a melodia também faz relação com o sofrimento tendo
um ar melancólico. Essa canção foi censurada, e não pôde ser apresentada em um
festival, que ocorreu no Estado de São Paulo em 1973. Gilberto Gil explica em uma
entrevista que foi pensada justamente para expressar a dor, o tormento e repreensão.
4 | 	RESULTADOS E DISCUSSÃO
Para ajudar nesse trabalho, fomos à procura do professor Glauber Robson
Oliveira Lima, Professor de História na Escola Estadual Padre Coriolano, e professor
na Universidade Karius, que nos concedeu uma entrevista para ajudar nos resultados.
O motivo da escolha foi baseado no conhecimento que já tínhamos de seu trabalho,
e pelo fato de ele já está trabalhando com a Literatura nas suas aulas de História.
Foram feitas algumas perguntas, as quais foram respondidas em forma de texto,
englobando todo o assunto. Nosso objetivo central com essa entrevista foi traçar um
perfil da relação entre o uso da Literatura no ensino de História. Dentre as perguntas
apresentadas, podem ser destacadas: ‘como se encontra a disciplina de História nas
Argumentação e Linguagem Capítulo 5 63
últimas décadas’, ‘como ocorreu o cerceamento da supressão das ciências humanas’,
‘como os professores abordam esse assunto na atualidade’, ‘quais os principais
desafios para o professor ‘e ‘os resultados obtidos’. Os quatro parágrafos a seguir
envolve todas essas perguntas e mais outros questionamentos que o próprio professor
quis indagar relativo à temática.
A disciplina de História, nas últimas décadas, tem contado com o apoio de
importantes fontes, além dos documentos tradicionais, conhecidos como documentos
oficiais, são utilizados também imagens como fontes históricas e textos também.
Desde textos jornalísticos, como também textos literários. Esse material tem sido de
muita importância para auxiliar o trabalho do professor em sala de aula. Por essa
disciplina tratar do passado, é sempre muito complexo fazer o processo de abstração
com os alunos. Fazer com que eles possam compreender de uma forma mais direta
os conteúdos aplicados. Além da literatura brasileira tradicional também temos nos
apoiado em músicas, essas músicas têm sido de suma importância para o trabalho do
licenciado de História, para facilitar fazendo com que os alunos compreendam melhor
o conteúdo. No que tange ao período específico da Ditadura Militar será dividido em
duas formas: como era o ensino de História naquele período, e como abordamos esse
período no século XXI.
Após o golpe de 1964, tivemos então o cerceamento da liberdade e com o ato
institucional chamado AI-5, (foi a expressão mais acabada da ditadura militar brasileira)
ocorreu a supressão dos conteúdos da área de ciências humanas, então o conteúdo
crítico-reflexivo que as Universidades Brasileiras vinham buscando tratar ao longo
das últimas décadas ou seja, final dos anos quarenta e começo dos anos cinquenta,
até fina de 1964, esses conteúdos foram escolhidos, ou seja, o direito de refletir foi
cerceado , inclusive dentro das universidades, e aqueles professores que teimavam
em desenvolver seus conteúdos foram considerados como professores subversivos,
que acabavam sendo presos. Então o conteúdo de História em si, na Ditadura Militar,
foi suprimido, onde houve a substituição das ciências humanas, de forma geral, como
a sociologia e a filosofia, por duas disciplinas do regime militar, que foram a OSPB
(Organização Social Política Brasileira) e a disciplinas de moral e cívica. Essas duas
disciplinas tinham como fundamental importância suprimir a criticidade dos alunos e
criar uma aparência de regime democrático, pois os militares nunca usaram o termo
‘golpe’, posicionavam-se como revolucionários, então as disciplinas eram para manter
a ordem e o civismo.
Já na atualidade, os professores abordam o conteúdo de História diante de um
posicionamento denominado crítico-reflexivo. No final dos anos oitenta para o início
dos anos noventa, o marxismo predominou nas universidades, e no Brasil não foi
diferente, então começaram as abordagens de uma forma crítica, contando não mais
somente a história positivista, a história dos grandes heróis e das grandes datas, mas
também abordando de uma forma crítica-reflexiva, ou seja, não só criticando, mas
refletindo também dentro desse posicionamento. Hoje no que se refere a trabalhar o
Argumentação e Linguagem Capítulo 5 64
tema da ditadura militar no ensino médio, inicia-se pelo processo de apanhado gera e
de situação dos alunos, que para falar desse período, começa a abordar o período da
‘Era Vargas’, que culminava com o suicídio dele, pois na verdade o golpe civil militar
começa a ser preparado em 1954, portanto, dez aos antes do suicídio de Vargas em
agosto de 1954, acabou adiando o golpe. Primeiramente ocorre a demonstração das
forças conservadoras do Brasil, que culmina com o golpe dentre outros aspectos.
Quando começa essa abordagem, utilizamos os romancistas da época, começando
a citar uma pessoa que escreveu muito bem a situação do Brasil, o escrito Baiano
Jorge Amado, com o livro ‘Capitães de Areia’, ‘O Porto dos Milagres’, e ‘vidas Secas’
de Graciliano Ramos, e romances de Rachel de Queiroz. São obras que ajudam a
entender o golpe pré-militar.
Após o golpe, devemos frisar que houve um cerceamento, sementes de liberdade
que chegou à Literatura, que foram queimadas e proibidas de circular sendo suprimidas
pelo autoritarismo do governo. As principais obras que são utilizadas em sala de aula,
são livros biográficos como, por exemplo, ‘Combate nas trevas’ do escritor Jacob
Gorender, que conta a própria história. Outro livro nesse mesmo nicho é ‘O que é isso
companheiro?’ do escritor Fernando Gabeira. O professor Glauber conta que gosta
de trabalhar por ser os autores eu vivenciam e depois contam, entre muitos outros.
A música e os filmes são elementos muito bons. Além dos clássicos como o ‘Cálice’,
canção de Chico Buarque, temos outros estilos como o Hip Hop que também trabalha
acerca do assunto. Filmes como ‘Hércules 56’, ‘Lamarca’, ajudam também a entender
melhor esse assunto.
O principal desafio é a tecnologia, pois fazer com que os alunos leiam é difícil.
Um recurso que o professor usa são as plataformas digitais. Um exemplo que ele cita,
é quando indica algum livro, ele verifica se existe em PDF para assim despertar o
interesse dos alunos. Outro exemplo é fazer com que o celular se torne um aliado em
sala de aula, incentivando-os a fazerem pesquisas através desses parelhos.
Os resultados, o professor explica, que divide em dois pontos: O primeiro ponto
são os resultados gerais, quando ele consegue fazer com que os alunos leiam os
livros da biblioteca, ou lido nas plataformas, ou até mesmo emprestados por ele,
é perceptível que a aprendizagem desse aluno se consolide, ou seja, o aluno que
ler e que busca escutar as músicas, quando ocorre o diálogo com o professor, ou a
realização de atividades é visível o melhoramento da aprendizagem
5 | 	CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de tudo, afirmamos que o propósito desse trabalho foi de mostrar a
relevância da Literatura na sua interdisplinaridade, e como ela pode ajudar o professor
de História vendo pelo lado mais específico do contexto. A partir de várias análises,
e com a ajuda da entrevista realizada com o professor, conseguimos obter o número
Argumentação e Linguagem Capítulo 5 65
suficiente de informações para assim, concluir que esse assunto não é algo novo, e é
muito mais importante do que se pensa. Vendo pelo lado pedagógico, nem todos os
professores enxergam e utilizam esse método, utilizado com o propósito de atrair a
atenção dos alunos.
O uso da tecnologia é um aliado para a concretização disso, pois ajuda bastante
a entrar no universo literário e histórico, tendo como base e objetivo a aproximação
dos estudantes em meio a esse universo tecnológico do século XXI. Conseguimos
apresentar também, ideias, estratégias, exemplos de obras a serem trabalhadas, entre
outros elementos, que a maioria dos discentes não tiveram contato, podendo unir
os gostos dos mesmos a seus gostos do cotidiano, podendo assim obter resultados
tanto para a escola obtendo resultados, quanto para eles mesmo, como, por exemplo,
ajudar no vestibular, com o conhecimento adquirido.
REFERÊNCIAS
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STEPHANOU, Alexandre Ayub. Censura no Regime Militar e Militarização das Artes. Porto Alegre :
Edipucrs, P. 215, 2001.
ZILBERMAN, Regina. Marisa Literária Infantil - Histórias e Histórias.Lajolo. Disponível em :
https://pt.slideshare.net/daniellemorais528/marisalajoloreginazilbermanliteraturainfantilbrasileirahistoria
ehistoriasdocrev. 1991.Acesso em 24 dez de 2017.
Capítulo 6 66Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 6
A INTENCIONALIDADE MARCADA NOS TEXTOS
INSTRUCIONAIS: O QUE HÁ DE NOVO NISSO?
Hilma Ribeiro de Mendonça Ferreira
Cap/UERJ
Rio de Janeiro
Silvia Adélia Henrique Guimarães
SME/RJ
Rio de Janeiro.
RESUMO: Os textos instrucionais têm por
finalidade designar procedimentos para os
leitores que precisam desempenhar tarefas
de diferentes naturezas. Entretanto, apesar
de uma similaridade enunciativa pressuposta,
encontramos formas de enunciação discursiva
discrepantes, dependendo do gênero
textual. Partindo desse achado, e baseada
no paradigma interpretativista, a presente
pesquisa analisa textos instrucionais de três
diferentes gêneros, com vistas a observar as
intenções que permeiam o tipo textual injuntivo.
Mas também reflete sobre como a escola pode
valer-se desses mecanismos linguísticos para
potencializar a leitura dos alunos. Baseado nos
Atos de Fala (AUSTIN 1962; SEARLE 1969;
1981; 2002), que possibilitaram observar os
comandos expostos nos textos, o resultado
das análises sugerem que as estruturas
frasais usadas para instruir pressupõem níveis
impositivos diferentes com que os locutores
enunciam os procedimentos. Mostram também
que o componente ilocucionário e a natureza do
gênero em que as frases são usadas constituem
os balizadores dessas instruções. Apesar de
algumas limitações, como a comparação entre
apenas quatro gêneros, quando há vários
outros gêneros pertencentes ao tipo injuntivo,
os resultados possibilitam uma reflexão
crítica sobre a reprodução do pressuposto,
principalmente nas escolas básicas, de que a
injunção oferece apenas ordens ou comandos.
PALAVRAS-CHAVE: Atos de Fala; Textos
instrucionais; Leitura na escola.
THE INTENTIONALITY MARKED IN
INSTRUCTIONAL TEXTS: WHAT’S NEW IN
IT?
ABSTRACT: The instructional texts are
intended to designate procedures for readers
who need to perform tasks of different natures.
However, despite an assumed expository
similarity, we find forms of disparate discursive
enunciation, depending on the genre. Based
on this finding, and based on the interpretive
paradigm, this research analyzes instructional
texts from three different genres, in order to
observe the intentions that underlie the injunctive
textual type. But also reflects on how school can
draw on these linguistic mechanisms to enhance
the students’ reading. Based on Speech Acts
(AUSTIN 1962; SEARLE 1969; 1981; 2002),
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 67
which made it possible to observe the commands exposed in the texts, the test results
suggest that the phrasal structures used to instruct assume different imposition levels
with which the speakers set out the procedures. They also show that the illocutionary
component and the nature of the genre in which phrases are used are the benchmarks
of these instructions. Despite some limitations, such as the comparison of only four
genres, when there are several other genres of the injunctive type, the results allow a
critical reflection on the reproduction of assumption, particularly in primary schools, that
the injunction only offers orders or commands.
KEYWORDS: Speech Acts; Instructional texts; Reading at school.
1 | 	INTRODUÇÃO
O presente estudo parte de dois objetivos centrais: estudar quatro gêneros
instrucionais, considerando os aspectos linguísticos mobilizadores da leitura de textos
injuntivos; e refletir em como a escola pode trabalhar a leitura de textos injuntivos,
mobilizando nos alunos a conscientização dos procedimentos linguísticos adequados
para a compreensão do texto injuntivo.
Se entendemos a escola como um lugar facilitador para o ensino da leitura
eficiente e eficaz; se a vemos como um espaço formal para a construção de um cidadão
no mundo – o mundo contemporâneo dialógico –, questionamos: quais oportunidades
reais de contato com a leitura os professores têm dado aos alunos? Essas práticas
têm de fato propiciado a esses sujeitos os sentidos possíveis do texto, com interação,
discussão e apresentação dos elementos linguísticos como pistas concretas para
a compreensão textual; ou têm, apenas, reproduzido a metodologia limitadora e
memorizadora da Idade Média?
Com vistas a refletir sobre as perguntas elencadas, concentramo-nos na
percepção de que os textos instrucionais, embora apresentem finalidade de uso
correspondente – a instrução por meio de frases indicativas de procedimentos –
pressupõem uma predisposição das instruções de formas diferenciadas. A partir dessa
primeira noção, constatamos que essas formas de instruir estarão sempre de acordo
com as forças ilocutórias relacionadas ao ato diretivo como preconizado por Searle
(2002). Entretanto, as frases indicativas de procedimentos também podem mostrar
outros atos de fala, se analisados à luz dos atos locucionário e perlocucionário, para
além do nível intencional, intrínseco ao ilocucionário.
Para atingirmos nosso objetivo, analisamos as instruções partindo da
materialidade linguística desses textos. A partir dessa análise linguística,
consideramos as marcas que pudessem sinalizar os atos de fala comuns às frases de
natureza instrucional. Para isso, concentramo-nos nos enunciados instrucionais que
se predispõem a mostrar as intenções do locutor ao estipular procedimentos, já que
essas instruções podem demonstrar como ocorrem as configurações comuns ao texto
classificado como do tipo injuntivo.
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 68
Nos resultados desta análise linguística, percebemos que ocorre uma
sobreposição de fatores textuais: 1) o nível das frases, usadas para instruir na leitura;
e 2) o nível as ações, unidades subjacentes com valores discursivos que indicam as
intenções a serem assumidas a partir das estruturas frasais. Postulamos, portanto,
que o tipo textual injuntivo, elucidado por meio das frases indicativas de instruções
pode ser analisado em decorrência dos atos de fala, não ficando restrito, apenas, às
frases tradicionalmente classificadas como “imperativas”.
Nessa perspectiva analítica, as relações entre a intencionalidade e os
procedimentos denotam perspectivas acionistas importantes, se o processamento
dos sentidos for pensado dessa forma durante a leitura. Com base nesses achados
linguísticos, achamos producente imbricar os resultados das análises e as estratégias
de leitura adotadas na escola, já que entendemos que o professor precisa dispor de
ferramentas teórico-analíticas, para poder provocar a leitura ativa desse aluno.
Para compor o corpus, selecionamos quatro textos instrucionais, sendo um
exemplar do gênero textual receita, um do manual, um da bula e um do contrato.
Os dados, analisados pela teoria dos atos de fala (AUSTIN, 1990, 1962; SEARLE
1969; 1988; 2002) possibilitaram uma discussão sobre sua aplicabilidade nos estudos
voltados para a leitura na escola.
Para promover a organização textual do trabalho, o artigo está dividido em
seções. Em primeiro momento, traremos um embasamento teórico que a) abrange
os principais conceitos dos Atos de Fala; b) retoma e distingue os conceitos de tipo
e gênero textual; e b) resume os conceitos básicos de leitura aplicada ao ensino.
Em segundo momento, contextualizamos o trabalho metodologicamente para,
finalmente, apresentarmos e discutirmos os dados. Para encerrar, traremos algumas
considerações, optando por não denominá-las como “conclusão”, principalmente pelo
caráter promissor de continuidade deste estudo.
2 | 	FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Sendo a natureza acionista da linguagem o eixo central para o entendimento
dos usos linguísticos, Austin (1962) e Searle (1969) debruçam-se sobre a questão da
performatividade a partir da produção verbal dos indivíduos. Dessa forma, ressaltam-
se aspectos importantes nas contribuições dos dois autores, nas subseções a seguir.
2.1	Austin e os ilocucionários e a natureza performativa da linguagem.
John Austin (1962), o principal idealizador do que constitui atualmente a vertente
pragmática intitulada por “teoria dos atos de fala”, concentra seus esforços na
caracterização da ação, evidenciando alguns componentes importantes da produção
verbal dos indivíduos. Desse modo, para além da dicotomia filosófica entre sentido
e realidade, Austin postula a evidenciação de três componentes comunicativos, que
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 69
se tornam fundamentais para a exposição aqui proposta. Para o autor, o ato de fala
composto de três partes, três atos simultâneos
os “locutórios” (atos de “dizer qualquer coisa”) , os “ilocutórios” (atos efetuados
“ao dizer qualquer coisa”) e os “perlocutórios” (atos efetuados “pelo fato de dizer
qualquer coisa”) (CHARAUDEAU e MAINGUENAU, 2006, p. 73)
Esses três níveis de atos de fala são desdobrados em suas atribuições das
possíveis diferenciações de ações e tipos de atos de fala, inerentes às três “esferas
ilocutórias”. Também é mérito de seus estudos uma primeira diferenciação dos tipos de
atos de fala, pois o autor gerou o uma categorização dos subtipos de atos, categorizados
como “vereditivos”, “exercitivos”, “compromissivos”, “expositivos” e “comportativos”.
Contudo, neste artigo, salientamos a dificuldade de caracterização do que
constitui o ilocucionário, com respeito à taxonomia, fator já abordado por Rajagopalan
(2010). Esse autor destaca que a vinculação do ilocucionário ao verbo performativo,
crítica de Searle (2002) é, por outro lado, uma atribuição da qual o próprio Searle não
conseguiu se desvencilhar, como mostrado por Rajagopalan (2010, p. 51).
Por isso, coadunamos nossa visão a de Rajagopalan (1989), que salienta a
vinculação da performatividade à natureza do ato ilocucionário, mencionando o fato de
que Austin (1990/1962) não abandona a designação “performativo” na caracterização
dos enunciados, mesmo depois de desfazer a dicotomia constativo/performativo. Com
isso, pode-se acolher a visão defendida por Rajagopalan (1989), na caracterização do
ato ilocucionário como sendo, incontornavelmente “performativos”.
Para além dessas discussões teóricas, reconhecemos, entretanto, que para
realizar um ato ilocucionário é necessário realizar um ato locucionário – agradecer,
por exemplo, é necessariamente dizer certas palavras. E dizer certas palavras é,
necessariamente, pelo menos em parte, fazer certos movimentos, difíceis de descrever,
com os órgãos vocais. Portanto, o divórcio entre ações físicas e atos de dizer algo não
é de todo completo - há uma vinculação (AUSTIN, 1990, p. 98).
Assim, a teoria dos atos de fala preconiza o fato de que, por meio da palavra
“declaramos”, “solicitamos”, “saudamos’, “coagimos”, “prometemos”, entre outras
ações; e essas falas-ações terão efeitos diferenciados por parte dos interlocutores
a quem essas palavras se direcionam. Existe, portanto, uma relação entre o que é
dito e o que é assumido. Por um lado, evidenciam-se níveis de desenvolvimento das
ações linguísticas, tal qual estipulado por Austin (1962), ao destacar o “locucionário”, o
“ilocucionário” e o “perlocucionário”. Por outro lado, se existem níveis dessas ações, já
que delas emanam “forças ilocutórias”, sendo possível categorizá-las, de acordo com
sua natureza discursiva de um modo mais eficiente, como visto com Searle (2002) na
proposta categorial exposta a seguir.
2.2	As categorias de atos de fala determinadas por Searle (2002)
Os diferentes modos de instruir, afeitos aos textos instrucionais, levam-nos a
utilizar a terminologia proposta por Searle (2002), ao equiparar os diferentes atos de
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 70
fala por suas naturezas e semelhanças. Sobre o agrupamento dessas formas de ação,
o autor diferenciou cinco grandes tipos de atos de fala que podem ser enquadrados,
de acordo com suas características discursivas.
Nesse caso, os atos de fala dividem-se nas seguintes classes, de acordo com as
características de uso, designadas pelo autor como atos/ações “assertivas”, “diretivas”,
“compromissivas”, “expressivas” e “declarações”. São asserções as sentenças que
têm por finalidade predispor um conteúdo proposicional que tenha como característica
a afirmação de algo como sendo verdadeiro ou não; os diretivos são todos os atos
de fala que têm como função promover a tomada de atitudes dos interlocutores a
respeito do que é dito, caso dos textos instrucionais; são compromissivos os conteúdos
indicadores da postura do falante, quando ele se compromete com algo, futuramente;
expressivos são aqueles atos de fala denotadores da emotividade do falante; e, por
fim, as declarações constituem enunciados que promovem uma modificação externa
como o ato de “declarar guerra” ao inimigo, no sentido bélico.
O quadro 1.0 a seguir propõe-se a mostrar essas categorias, a partir das atitudes
do falante e dos possíveis posicionamentos dos interlocutores.
Categorias Posicionamento do falante Posicionamento do interlocutor
Assertivos
Compromete-se em afirmar que algo
seja falso ou verdadeiro.
Assume ou não determinado
conteúdo como sendo falso ou
verdadeiro.
Diretivos
Procura fazer com que o ouvinte realize
determinada tarefa.
Realiza ou não o que o falante
propõe.
Compromissivos Propõe-se a realizar algo.
Acreditar ou não que o falante
realizará algo.
Expressivos
Demonstra a emotividade derivada de
algum fator externo ou interno.
Compartilha ou não dessa
emotividade.
Declarações
Produz um enunciado que modifica uma
situação externa.
Observa essa modificação.
Quadro 1.0: As categorias de atos de fala propostas por Searle (1969)
O quadro 1.0 procurou resumir o esquema categórico de Searle (2002), que é
um importante componente para a análise dos dados a serem apresentados nesse
artigo. Sobre o esquema de caracterização dos atos de fala, o autor identifica suas
características semelhantes a partir de diversos critérios comunicativos, que acolhem
também aspectos de ordem psíquica, discursiva, textual e enunciativa.
A fim de evidenciar o entendimento da natureza das instruções feitas nos gêneros
escolhidos, conclui-se que os“diretivos” tornam-se muito importantes na constituição
dos textos injuntivos, por refletirem as formas de solicitar o acatamento e as atitudes
responsivas dos interlocutores, na elaboração das instruções.
Com respeito à força ilocutória dos atos diretivos, para o autor, existem
intenções dos falantes, ao utilizarem a linguagem para fazerem suas “performances”
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 71
enunciativas. Então, podem-se dimensionar diferentes traços discursivos, de acordo
com os seus posicionamentos, durante a instrução por meio de um diretivo.
O “contexto de uso” de determinado enunciado é o que promove, portanto, a
percepção da sua força ilocutória, bem como dos sentidos possíveis, aferidos a partir
do componente proposicional superficial. Nesse caso, a teoria dos atos de fala revela-
se de grande importância, pois suas perspectivas diferenciam os tipos de esferas de
onde emanam as ações enunciativas, bem como das categorias em que essas ações
se inserem.
2.3	Tipologia e gênero: principais conceitos assumidos
Como nossa pesquisa debruça-se sobre textos instrucionais, que são estruturados
majoritariamente pelo tipo injuntivo, é válido ressaltar a diferença entre as terminologias
“instrucional” e “injuntivo”. Ao mencionarmos o primeiro nome, ressaltamos o caráter
dos enunciados pesquisados, que têm por finalidade “instruir” e, ao denominarmos o
segundo, procuramos evidenciar sua caracterização tipológica, dentro do quadro dos
tipos textuais.
Em se tratando dos conceitos de “tipo” e “gênero”, ambos são indispensáveis,
pois permeiam a produção linguística dos indivíduos, em qualquer troca interlocutiva.
De acordo com a natureza do gênero, a linguagem pode ser contextualizada, a partir
das formas de manifestação comunicativa, usadas para dar conta das diferentes
necessidades de interação discursivas e interpessoais.
Apesar de autores diferentes assumirem nomenclaturas distintas para as
diferentes formas textuais, de acordo com quadros teóricos e correntes linguísticas
distintas (Marcuschi, 2005; Charaudeau, 2008), optamos por acolher a designação
de “tipos textuais”, sendo essa nomenclatura mais afeita à linguística textual, corrente
da linguagem que salienta a esfera de análise da composição material dos textos. A
relação entre a linguística textual e essa nomenclatura é salientada por Silva (1999, p.
100), ao afirmar que “... alguns estudos desenvolvidos no âmbito da linguística textual,
“tipo textual” é uma noção que remete ao funcionamento da constituição estrutural do
texto...”.
Assim, nas palavras de Marcuschi (2005, p. 22):
Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de sequência
teoricamente definida pela natureza linguística de sua composição (aspectos
lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas). Em geral, os tipos textuais
abrangem cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração,
argumentação, exposição, descrição, injunção.
Sobre a abordagem do conceito de gênero, ressaltando os diferentes usos da
linguagem, é fundamental a observação de M. Bakhtin (1997 [1959]), quando cita
as atividades de interação humana. O autor faz uma abordagem importante sobre o
tema, ao especificar que
Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 72
relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os
modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade
humana (...). O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de
cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo temático e por seu estilo
verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais,
fraseológicos e gramaticais – mas também, e, sobretudo, por sua construção
composicional. (BAKHTIN, 1997, p. 280)
O estudo dos gêneros irá inserir, portanto, um escopo analítico mais abrangente,
importante para dimensionar os fatos enunciativos sobre os quais nos referimos no
presente trabalho. Apesar dos variados gêneros predominantemente instrucionais –
edital, provas, receitas médicas, normas de conduta, regras de jogos, orientações
acadêmicas, neste trabalho, debruçamo-nos sobre quatro deles, todos instrucionais:
as receitas, os manuais, as bulas e os contratos, que, embora possuam a mesma
função enunciativa, diferem-se quanto às suas aplicações e funções comunicativas.
As receitas, por suas peculiaridades de uso, possuem um arquétipo estrutural
mais simplificado: ocorre, apenas, uma exposição inicial dos ingredientes que serão
usados na preparação dos pratos.
Já em se tratando das bulas, o fato de instruírem sobre o uso de um medicamento,
geralmente, apropriado para a resolução de um problema físico, esse fator atribui
ao texto elementos compositivos de ordem mais complexa. Fator importante para a
configuração textual de maior complexidade das bulas decorre do fato de esse gênero
ser direcionado a, pelo menos três interlocutores distintos, a saber: o paciente, o médico
e o farmacêutico. As partes textuais são divididas de acordo com esses interlocutores,
informando procedimentos específicos a cada um deles. Dados relativos à composição
química são mais apropriados ao farmacêutico, já quando são explicadas as doses
necessárias às doenças ocorrem instruções ao médico, por fim, procedimentos sobre
o armazenamento e o aspecto físico do medicamento são mais afeitos aos pacientes.
Os manuais, por outro lado, apresentam como fator diferencial a utilização
de algumas remissões a saberes técnicos, na medida em que fazem alusão a
especificidades que podem corroborar dificuldades para o entendimento das instruções.
A leitura do manual pode acarretar, por exemplo, o acionamento de conhecimentos de
diferentes áreas, necessitando do conhecimento dessas informações, a fim de dar
conta dos usos requeridos pelos seus interlocutores. A instalação de um aparelho
eletrodoméstico, por exemplo, estabelece procedimentos que muitas vezes requerem
conhecimentos sobre a eletricidade ou sobre a parte mecânica de equipamentos afins,
fator que exigirá dos interlocutores, atenção na elaboração dos procedimentos.
O último gênero contemplado, o contrato jurídico, possui a mesma finalidade de
uso dos demais enunciados, qual seja a estipulação de procedimentos, mas existem
diferenças entre esse gênero e os demais. A primeira delas decorre do fato de que o
estabelecimento das diretrizes para o atendimento da contratação de ambas as partes
de uma negociação, o que implica na configuração de um texto extenso. Neles as
tarefas precisarão ser expostas, de modo a indicar os direitos e os deveres desses
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 73
dois tipos de alocutários que estarão envolvidos na negociação jurídica/financeira.
Assim, ressalta-se que o aspecto interlocutivo desses quatro gêneros configurará
comandos possuidores de níveis impositivos distintos, de modo a aferir nas instruções
esses posicionamentos dos locutores. Por consequência do posicionamento quanto à
apresentação das instruções, a maior ou a menor precisão quanto ao atendimento dos
comandos, pelos interlocutores, é um indicativo importante que pode ser elucidado
pelo enquadramento teórico escolhido.
Essas diferenças de valores interlocutivos indicam, por outro lado, uma
equalização, pois, como temos enfatizado, os textos selecionados instruem e são
amplamente usados pelos indivíduos, em seu cotidiano. Dada sua relevância
e disponibilidade, a escolha dos corpora foi feita de modo a privilegiar textos cuja
veiculação é comum para pessoas de diferentes grupos sociais ou etários.
A apropriação das peculiaridades interlocutivas desses quatro gêneros está
coadunada, também, com o que fora estipulado por Bakhtin (1997[1959]), ao verificar
que as situações discursivas corroboram enunciados, de modo a atender a essas
demandas, evidenciando a “funcionalidade discursiva” dos gêneros.
Tendo em vista esses principais conceitos e definições, ressaltaremos, na
subseção a seguir, os pressupostos que embasaram nossa metodologia de trabalho.
2.4	A leitura na escola
Mais do que decodificação de símbolos socialmente compartilhados, a leitura
pressupõe atribuição de significados ao que se lê – o que comporá, de fato, a
habilidade leitora. Contudo, nem sempre foi assim. Ao longo da história, a leitura como
propiciação do saber e da compreensão ficava a cargo apenas de alguns literatos,
intelectuais e elites. Para a maioria da população, principalmente no contexto ocidental
dos séculos XVI e XVII, a leitura estava vinculada à religião. Portanto, era aprendida
mecanicamente, de forma apenas a reproduzir os textos litúrgicos – que estavam em
latim.
De forma geral, o processamento da leitura transpôs-se da necessidade do
contato com o sagrado para uma necessidade pragmática – conhecer pontos de vistas
e culturas diferentes, aprender a manusear equipamentos e ferramentas, entrar em
contato com o eu e com a ficção etc. Nessa perspectiva, a linguística textual contribuiu
bastante para o desenvolvimento das pesquisas sobre leitura, nessa mudança
histórica. Primeiro, porque forneceu mecanismos para a acepção de texto: o texto,
que antes recebia tratamento científico em nível de frase, passa a ser visitado como
uma unidade global.
Outra grande contribuição da linguística textual concerne ao foco da leitura:
aquelas que concentram o sentido no autor (língua como representação de
pensamento); as que concentram o sentido no produto, no texto (língua como estrutura);
e as leituras que focalizam o sentido na interação autor, texto e leitor (concepção
dialógica da língua). Esta última é a acepção atualmente assumida pela Linguística
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 74
Textual, possibilitando um salto qualitativo na forma de entender o texto (KOCH &
ELIAS, 2012).
Este breve apontamento histórico contribui para algumas reflexões aqui
levantadas. Se a escola é um lugar facilitador para o ensino da leitura eficiente e
eficaz; se é um espaço formal para a construção de um cidadão no mundo – o mundo
contemporâneo dialógico – que oportunidades de contato com a leitura os professores
têm dado aos alunos? Têm de fato propiciado a esses sujeitos os sentidos possíveis
do texto, com interação, discussão, diálogo com o mesmo; ou apenas reproduzido a
metodologia limitadora e “memorial” da Idade Média?
Tendo em vista as diversas teorias que contribuem para a aplicação de estratégias
linguísticas como procedimento de leitura, apresentamos nesta subseção um breve
apanhado que pode ajudar a coadunar os procedimentos teóricos dos atos de fala e
as teorias voltadas ao ensino da leitura como ato escolar.
Em primeiro lugar, entendemos que como saída para um ensino eficaz, a atuação
do professor pode ocorrer pelo viés interacional, levando o aluno a entrar em contato
(de fato) com a leitura – a leitura dialógica. Exemplo disso é Cademartori (2009), que
defende que quando os leitores que se sentem tocados pelas obras lidas, são levados
a mudanças práticas, ou, ao menos, à aplicação de suas práticas à leitura.
Além dessa possibilidade social, a leitura de outros mundos, de outros modelos,
de outras vozes, pode possibilitar a descoberta da própria voz do sujeito, outorgando-
lhe uma autonomia possível. Portanto, o leitor de livros aprende a ser leitor do Outro
– desenvolve a imagem do outro nele mesmo, o que contribui para sua própria
identificação. Tal imagem, apesar de cindida pela sociedade atual, não poderia estar
assujeitada, mas liberada do Outro Opressor, pelo viés, por exemplo, da literatura
(CADEMARTORI, 2009; PARINI, 2007).
Atualmente, não são apenas os textos literários que compõem as atividades
educacionais de nossos alunos nas atividades com leitura. Textos cotidianos, em
gêneros variados, de acordo com seus propósitos comunicativos, também se inserem
nesta dinâmica. Temos uma gama de textos, em uma literatura multifacetada,
multitextualizada e multimodalizada, representando aquilo em que o mundo atual
tornou-se: híbrido. Por outro lado, essas mudanças propiciam que o leitor vá além de
suas próprias fronteiras, com textos que acompanham e são acompanhados de ritmos
verbais, visuais e de entrosamento entre gêneros distintos.
Com todas essas possibilidades e demandas, a forma de ensinar a leitura sinaliza
muito mais do que métodos, mas modelos constituintes, como marcos teóricos,
percepção do psiquismo humano – como aprende, como funciona intelectualmente,
como podemos, portanto, instrumentalizá-lo. Portanto, ler não é apenas reconhecer
e valorizar os saberes que ele traz consigo, mas possibilitar o desenvolvimento de
habilidades que ele não tem, ou seja, a leitura crítica. Isso demanda um saber teórico
por parte dos professores.
Entendemos que bons professores são aqueles que conduzem seu trabalho de
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 75
forma a contribuir para o desenvolvimento crítico do aluno. Esses, não entendem a
educação pelo viés do desempenho; entretanto, como oportunidade de potencializar
linguisticamente os alunos para o seu desenvolvimento leitor.
Uma atividade com este perfil não se limita a discutir a importância da leitura, ou
a ensinar técnicas de leitura, mas leva o leitor a envolver-se com a leitura. Nesse caso,
a materialidade linguística do texto é assumida como ferramenta para desconstruí-lo e
para reconstruí-lo, como um detetive. Portanto, esse processo pode ser potencializado,
se o próprio professor tiver conhecimento dos fatos linguísticos realizados no texto.
Para esse fim,Abarca e Rico (2003) sugerem que no desenvolvimento do trabalho
com leitura sejam feitas perguntas específicas, mediadoras, que levem o aluno, ainda
em desenvolvimento da identidade leitora, a pensar sistematicamente no “texto” e a
ser direcionado à reflexão. Portanto, perguntas gerais com possibilidade de respostas
genéricas e abrangentes não parecem eficientes para os propósitos da autonomia.
Defendemos, ainda, que não apenas o processamento cognitivo interfere na
formação do leitor, mas também o contexto em que se insere o aluno. Segundo Ferraz
(2007,p18)“olugarondesenasce,osmeiossocialecultural,associadoseventualmente
a fatores econômicos, marcam a diferença do capital linguístico armazenado”, fator
que pode influenciar na habilidade de abstração de um determinado conteúdo textual.
Finalmente, acreditamos que o aluno precisa saber para que está lendo: Para
cumprir uma atividade burocrática? Para responder a uma questão da prova? Para
passar o tempo de aula? E a função essencial do professor, neste sentido, será a de
mostrar ao aluno as tantas possibilidades de uma leitura, principalmente, a de revelar-
se como apontamento para o mundo real.
3 | 	PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS
Para compor os corpora da pesquisa, foram usados quatro textos de caráter
instrucional. Os mesmos foram selecionados para análise das frases e enunciados
realizadores de ações que se prestam aos objetivos dos quatro gêneros. As tarefas
abarcadas por esses textos correspondem às etapas de execução, exigidas para
atingir as finalidades desses enunciados, que objetivam instruir tarefas cotidianas
comuns para solucionar problemas habituais dos indivíduos.
Por ser um trabalho de cunho interpretativo (ALVEZ-MAZZOTTI, 1999), não nos
concentramos em quantificar os achados, mas em tentar detalhar as especificidades
dos textos. Para isso, foram escolhidos exemplares acessíveis, que podem ser
encontrados facilmente em lojas e departamentos comerciais. A seleção foi realizada
entre os anos de 2009 e 2012, por meio da compra dos produtos aos quais eles se
propõem a instruir, tendo sido todos adquiridos na cidade do Rio de Janeiro.
A fim de demonstrar as análises e discutir os resultados, escolhemos
aleatoriamente um texto exemplar de cada gênero, os quais serão usados para
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 76
explicitar alguns aspectos advindos da leitura, a partir dos textos instrucionais.
Os exemplos retirados dos corpora serão vistos de forma a verificar,
primordialmente, o motivo das possíveis diferenças na interpretação de sentidos a partir
das instruções, feitas por meio de frases imperativas e declarativas, prioritariamente.
Essas frases, embora apresentem as mesmas finalidades de interpretação – que é a
estipulação de etapas de procedimentos –, acarretam modos de instruir diferenciados.
A teoria dos Atos de Fala pode oferecer pistas para a leitura dos textos a partir
das frases indicativas de procedimentos, subjacentes à configuração textual de uma
receita, por exemplo. Sobre as formas de análise da linguagem, levantamos nesta
pesquisa aspectos referentes à natureza enunciativa dos gêneros escolhidos que
pudessem vislumbrar a elucidação de elementos comunicativos, focalizando a ação
de instruir e priorizando a forma como os sentidos são assumidos, pelos interlocutores.
Em seguida, debatemos esses achados linguísticos e os procedimentos de leitura
possíveis no âmbito escolar.
4 | ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
Na presente seção, pretendemos ressaltar a ação pela linguagem, tendo como
corpora textos instrucionais retirados de livros de receitas, manuais técnicos, bulas de
medicamentos e contratos jurídicos. Os exemplares foram escolhidos por mediarem
as situações enunciativas contextuais pressupostas pelo tipo injuntivo, cujas análises
vislumbram contribuições com seu estudo.
4.1 Da receita
Nesta subseção, iniciaremos a análise e as interpretações possíveis para os
dados linguísticos, iniciando pelo exemplo 1, a seguir:
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 77
O exemplo 1 refere-se a uma receita regional, explicando o modo de preparação
do frango com quiabo. Neste caso, o que pretendemos ressaltar é que a força ilocutória
de sugestão pode ser configurada, também, a partir da escolha dos indivíduos, sendo
ela reconhecida pelo locutor do texto.
O uso da expressão “a gosto” para demonstrar as quantidades de alguns
elementos como “sal”, o “açúcar” e a “pimenta” é comum na escrita desses textos.
Isso ocorre, por exemplo, no fragmento “Sal e molho de pimenta vermelha a gosto”.
O mesmo ocorre com o uso da expressão “se desejar”. Nesses casos, a instrução
indica, no perlocucionário, a permissividade da influência do gosto dos indivíduos, de
modo a evidenciar a aceitação dos procedimentos, de acordo com a preferência do
interlocutor.
Reiteramos que um macroato1
de sugestão também fica latente quanto
ao reconhecimento do acatamento ou não do que é sugerido, mostrando esse
reconhecimento do locutor, por exemplo, pelo uso da imperativa “se desejar substitua
o molho de pimenta par pimenta dedo-de-moça sem sementes, fatiada”, procedimento
que vem a evidenciar esse caráter permissivo do gênero. Por fim, entendemos ser
importante ressaltar que o caráter sugestivo das instruções parece estar na simplicidade
com que os procedimentos são transmitidos
Antecipamos aqui que nas receitas e contratos o locucionário, com a exposição
de frases declarativas, muitas vezes se presta a estipular procedimentos, acolhidos no
ilocucionário como diretivos. Já nos manuais, as descrições dos produtos, expostas
por meio de atos assertivos, também podem reforçar o emprego dos diretivos.
4.2	Do manual
Com o objetivo de mostrar outras formas de construção do texto instrucional,
visto segundo os seus atos de fala, analisaremos um exemplar do gênero Manual,
conforme exemplo 2 em seguida.
Uma mensagem multimídia pode conter texto, fotos, clipes de som e videoclipes.
Somente dispositivos que possuam funções compatíveis poderão receber e exibir mensagens
multimídia. A aparência de uma mensagem pode variar, dependendo do dispositivo receptor.
Exemplo 2
O exemplo 2 foi retirado do manual de instruções do celular “Nokia”. Nesse
excerto, podemos perceber o emprego de frases que são usadas para descrever
características do artefato, um aparelho de telefonia celular que pode ser usado para
escrever mensagens.
A característica básica das ações comportadas pela categoria assertiva
1	 O termo “macroato” refere-se à abordagem interacionista de Van Dijk (1977) e refere-se à totalidade in-
tencional de determinado texto, deixando de limitar-se à esfera frasal.
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 78
é informar uma propriedade que pode ser avaliada, de acordo com o critério de
“verificabilidade”, tal como evidenciado por Searle (2002) como possuidora de atributos
como plausíveis de serem aceitos como “verdadeiros” ou “falsos”. Nesse caso, o
emprego das declarativas munidas dessa propriedade linguística pode-se prestar à
finalidade de dar credibilidade ao produto adquirido, refletindo um ato de fala indireto
tal qual “você poderá enviar mensagens contendo textos, fotos, etc.,” conferindo ao
produto maior aceitação.
Objetivando dar tal credibilidade ao que foi adquirido, o recurso linguístico
utilizado é,portanto, o emprego de declarativas, como nas sequências “Umamensagem
multimídia pode conter texto, fotos, clipes de som e videoclipes.” e “A aparência de
uma mensagem pode variar, dependendo do dispositivo receptor”. Desse modo, o
que se pode apreender pela leitura dessas frases é que elas podem destacar, no
ilocucionário, a preocupação com a valorização do produto adquirido. Esse traço
interlocutivo pode refletir o desejo do locutor do texto, podendo ser interpretado como
realizando o diretivo indireto “o produto adquirido é bom pois pode ser usado para
escrever mensagem” ou o assertivo “as mensagens ainda podem conter clipes, som,
imagens, etc.”.
As consequências para a leitura dos procedimentos podem acarretar, no
perlocucionário, a aceitação ou a valorização das propriedades do artefato que serão,
portanto, ideais para suas finalidades de uso. Assim, as declarativas nos textos
de manuais também pode denotar a tendência por promover, no ilocucionário, a
evidenciação dos benefícios dos produtos adquiridos, por meio de atos de fala indiretos.
Por outro lado, chamar a atenção dos indivíduos quanto aos riscos envolvidos
no manuseio dos artefatos também é uma tendência observada no gênero manual.
Desse modo, muitas vezes, o emprego de palavras ou sentenças que se prestam a
promover o acatamento imediato de comandos tidos por válidos, no perlocucionário, é
outro aspecto relevante para a percepção dos sentidos.
4.3 Da bula
Nesta subseção, analisaremos um exemplar do gênero bula. O exemplo, retirado
da bula do suplemento vitamínico Cebion C, expõe sobre os benefícios do uso do
medicamento no organismo, conforme exemplo 3 a seguir.
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 79
O exemplo 3 constitui as partes que explicam sobre o funcionamento e as
precauções para a ingestão do “Kalyamon kids”, um suplemento de cálcio bastante
comum, usado pelas crianças na fase de dentição. Revela-se que o emprego de
frases declarativas e imperativas procura assegurar a aplicação do produto e mostrar
os riscos de seu uso, o que insere os atos de fala decorrentes do emprego dessas
frases nas categorias diretiva ou assertiva.
A declaração feita pela frase “Kalyamon® Kids é um suplemento vitamínico-
mineral que possui uma combinação racional de todos os elementos essenciais à
prevenção e combate dos estados de deficiência de cálcio”, pode conferir ao produto
o indicativo de que ele serve para sua finalidade de uso, no caso, o combate à falta de
cálcio no organismo.
A frase em destaque, embora declarativa, também pode indicar, no
perlocucionário, o mesmo objetivo de uso das imperativas. Nesse caso, ela se
presta a instruir o interlocutor do uso da droga, objetivo que pode ser entendido se a
considerarmos como, por exemplo, desencadeadora do ato diretivo indireto “use esse
medicamento para combater as carências de cálcio”.
Já com respeito às sequências imperativas, que, tradicionalmente, se prestam a
instruir os indivíduos, nas bulas, seu emprego reflete a presença de outro interlocutor
que não é o paciente, já que as instruções são passadas para o médico e não
para o paciente em si. Isso pode ser visto ao analisarmos o emprego da imperativa
“Kalyamon® Kids não deve ser utilizado nos seguintes casos: Hipercalcemia (excesso
de cálcio no sangue); Hipercalciúria (excesso de cálcio na urina)”. Esse período, embora
esteja sendo direcionado ao profissional de saúde, pode acarretar, no ilocucionário,
o aviso quanto a não utilização do medicamento por alguns indivíduos. Quando isso
ocorre, demanda-se um ato de fala que se presta a provocar o devido acatamento,
no perlocucionário, do procedimento expresso por essa frase, com força ilocutória de
imposição.
Por conta das diferenças de emprego frasal, as formas de acatamento, à luz dos
efeitos ilocutórios das declarativas e imperativas são diferenciadas no gênero, sempre
dependendo dos riscos envolvidos.
Dirigir-se ao profissional de saúde e não à pessoa que irá manusear o
medicamento pode, por fim, pode provocar uma leitura dos procedimentos, acarretando
outras formas de acatamento dessas instruções, de acordo com as temeridades
envolvidas. Isso pode evidenciar outros posicionamentos do indivíduo que ingerirá a
droga, havendo repercussões na percepção dos sentidos a partir dessas ações e seus
desdobramentos para o entendimento do interlocutor.
4.4	Do contrato de adesão.
Nesta subseção, analisaremos o último exemplar, pertencente ao gênero contrato.
Vejamos o exemplo 4, que segue.
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 80
No exemplo 4, mostram-se algumas cláusulas do contrato da empresa Claro.
Nele, as instruções, muitas vezes, são feitas de modo a eximir os contratados, que
são as empresas responsáveis pelo serviço e as declarativas se prestam a expressar
regras que precisam ser interpretadas de modo a não oferecer riscos jurídicos às
empresas. Essa atribuição interlocutiva pode ser vista na declarativa “O Assinante
reconhece que os serviços poderão eventualmente ser afetados ou interrompidos, não
sendo a Claro responsável por eventuais falhas, atrasos ou interrupções destes”. Essa
frase realiza, indiretamente, a instrução “reconheça que a Claro não será responsável
se houver falhas, atrasos ou interrupções na prestação de serviços”, que é um ato de
fala indireto de natureza diretiva.
Apredisposiçãodeprocedimentospormeiodeatosdefalaindiretos,representados
por declarativas é, portanto, uma marca interlocutiva importante desses textos. Por
outro lado, o oferecimento de benefícios, também é mostrado como decorrente do
emprego desse tipo frasal. Esse emprego pode ser visto como por meio da declarativa
“A Claro obriga-se a prestar o SMP segundo os padrões de qualidade exigidos pela
Anatel” que pode servir para atenuar a imposição feita anteriormente, podendo
desempenhar papel semântico de diminuir o aspecto negativo do serviço oferecido
decorrente da aquisição do celular pelo cliente.
Na continuação da cláusula, a declarativa “O Assinante declara ter ciência das
localidades cobertas pelo SMP, das limitações decorrentes de eventuais áreas com
limitação de sinal e da disponibilidade de rede e, em hipótese alguma o Assinante
se desobrigará do pagamento do serviço sob alegação de não abrangência do SMP
em certa área” volta a impor uma condição ao que foi oferecido anteriormente. Nesse
caso, a declarativa supracitada realiza a instrução: “declaro saber quais localidades
são cobertas pela operadora e não deixarei de fazer os pagamentos ainda que o
serviço não esteja sendo prestado pela Claro”, ato diretivo indireto.
Sobre essa ocorrência, o que se pretende ressaltar na análise das esferas
interlocutivas definidas pelas instruções, é que, tanto na verificação das frases
com natureza declarativa que preconizam procedimentos quanto no entendimento
das informações com vistas a impor as regras contratuais, no perlocucionário, o
acatamento dos comandos é incondicional. Essa força ilocutória impositiva indica que
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 81
o não acatamento do que é instruído poderá refletir em penalidades jurídicas para as
partes envolvidas na contratação.
Assim, ressalta-se que o gênero, embora não possuindo superficialmente
instruções feitas por meio de imperativas, contêm instruções cujo impacto, no
perlocucionário, pretende ser de maior poder impositivo do que nos demais gêneros.
4.5	Gêneros instrucionais e leitura na escola: uma intercessão possível
Defendemos aqui que a teoria dos atos de fala pode acrescentar perspectivas
diferenciadas quanto à leitura dos diferentes textos, já que os níveis ilocutórios
dos atos de fala apontam três patamares de observação da linguagem. Para além
dessas esferas de observação das informações, advindas dos textos, a contribuição
dessa vertente teórica privilegia os interagentes, que são os elementos centrais na
troca interlocutiva. Por isso, o estudo dos diferentes tipos e gêneros à luz das ações
demandadas pelos interlocutores torna-se importante, já que a linguagem passa a
demonstrar não apenas os “sentidos” por ela demandados, mas a intencionalidade
dos indivíduos.
Pelo teor instrucional dos gêneros aqui estudados, a saber: a receita, o manual,
a bula e o contrato, selecionamos para esta análise um exemplar de cada gênero.
Além disso, objetivamos analisar a correlação entre essa análise e a combinação
texto-aluno-professor, visto entendermos que essa interação pode possibilitar que o
processamento da leitura seja efetivo, contextualizado e que, principalmente, parta de
um viés linguístico.
A primeira contextualização a ser feita é que 1) se o professor não tiver acesso
a informações teóricas, como as resumidas neste trabalho; ou 2) se o mesmo não
for confrontado aos variados usos linguísticos possíveis nos gêneros instrucionais
(como no caso das análises linguísticas demonstradas neste trabalho, que mostram
que a injunção, nestes gêneros, não está marcada apenas pelo imperativo), os alunos
tenderão a reproduzir a ideia de que devem concentrar-se nos verbos categorizados
como imperativos.
Nesse sentido, entendemos alguns aspectos como essenciais: a) o ensino da
gramática – modos verbais, pontuação, etc. – não deveria estar estanque do texto, nem
de suas funções expressivas; b) os estudos teóricos sobre os gêneros pertencentes
ao tipo injuntivo deveriam receber mais atenção nos estudos da linguagem, visto que
há um nicho considerável a ser preenchido, nesse sentido.
Entendemos, ainda, que se os estudos dos gêneros aqui citados continuarem
na atual perspectiva da caracterização linguística, haverá uma reprodução desses
gêneros em nível metalinguístico, cuja análise se distanciará do projeto de dizer dos
gêneros em questão, afastando-os de suas possibilidades de interação real – e de
ação.
Defendemos também que: se, ao deparar-se com atividades com esses
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 82
gêneros, o aluno tiver um prévio conhecimento conceitual, mas também prático – das
possibilidades de a língua servir às especificidades e os propósitos comunicativos do
texto/gênero, ele poderá, de fato, realizar leituras autônomas.
Duas considerações podem ser feitas, portanto, a partir dos resultados das
análises linguísticas expostas nas subseções anteriores. A primeira refere-se ao
conhecimento de mundo dos alunos. Expô-los a gêneros textuais do cotidiano dos
cidadãos, mas pouco utilizados por eles como adolescentes – como contratos e
instruções,voltadosparasuasrealidades–podeajudá-losaconstruirsentidospossíveis
para o entendimento dos textos. Além disso, pode aumentar-lhes instrumentalidade
linguística, já que sairão de textos padronizados repetidos em sala de aula.
A segunda consideração refere-se à prática do pensamento crítico. Tomemos
como exemplo o recorte 4 da subseção anterior. Nele, as escolhas lexicogramaticais
podem sugestionar um leitor, sem que o mesmo perceba, negligenciando-lhe a
possibilidade da busca por seus direitos. Na construção linguístico-discursiva do
exemplo em questão, que os sentidos se constroem discursivamente, de forma a
proteger “apenas” a empresa. Assim, o item 3.4, linguisticamente, “anula” 3.3.
3.3 A Claro obriga-se a prestar o SMP segundo os padrões de qualidade exigidos
pela Anatel. 3.4 O Assinante declara ter ciência das localidades cobertas pelo
SMP, das limitações decorrentes de eventuais áreas com limitação de sinal e da
disponibilidade de rede e, em hipótese alguma, o Assinante se desobrigará do
pagamento do serviço sob alegação de não abrangência do SMP em certa área
Sabemos que pensar é uma construção; e que leitura é pensamento; portanto, a
percepção dos sentidos, a partir desse fragmento, subentende que a habilidade ledora
também se dá em um processo. Contudo, com tantas leituras rápidas, com instruções
“dadas” em nosso cotidiano, tanto escolar, quanto social, interpretamos que: mostrar
ao nosso aluno-leitor que ele pode ser influenciado através das várias estratégias
linguísticas nos textos injuntivos, e não apenas através dos comandos, pode contribuir
para sua autonomia e inserção crítica no mundo.
Esse trabalho, em sala de aula, pode ser feito de forma estratégica. Retomando
Abarca e Rico (2003) a necessária pergunta específica pelo viés dos dados encontrados
nos gêneros aqui estudados podem mediar o processo de leitura e levar o aluno, ainda
em desenvolvimento do processamento de leitura autônoma, a pensar no texto de
forma sistemática, utilizando-se das ferramentas linguísticas nele disponíveis, sendo,
portanto, direcionado à reflexão. Assim sendo, as perguntas generalizadoras, com
possibilidades de respostas amplas não ajudariam nesse processo.
Além disso, se o professor reconhecer que o contexto sociocultural desse
aluno contribui para o seu fazer leitor, ele pode selecionar textos pertencentes a
outros gêneros, que abordem o mesmo tema, com vistas a ampliar a discussão do
assunto contido no gênero instrucional, fornecendo, assim, dados do mundo e leituras
possíveis para os mesmos. Desta forma, pensamos, a linguagem será ato não apenas
no “processamento linguístico do gênero”, mas também na “construção do sujeito
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 83
autônomo” para produzir, e não apenas reproduzir.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, propusemos a análise de quatro textos instrucionais, tendo como
base as frases usadas para indicar procedimentos. Cada um dos textos é possuidor
de atributos discursivos diferenciados, ao considerarmos os atos de fala inerentes às
frases. A receita tem como característica discursiva principal a flexibilidade quanto ao
acatamento das instruções, acolhendo um macroato de fala compatível com a ação
de “sugestão”; já o manual, por instruir por meio de procedimentos que se prestam a
mostrar a periculosidade envolvida no manuseio dos produtos, preconiza o macroato
de “advertência”; a bula de medicamentos prioriza a instrução dos indivíduos que irão
ingerir o remédio, idealizando o macroato de “prescrição”; o contrato, por sinalizar
as atitudes que os contratantes terão de efetuar juridicamente na manutenção dos
direitos de uso, acolhe o macroato de “imposição”, tendo como efeito procedimentos
obrigatórios.
Todos esses macroatos podem ser analisados também no cotejo da perspectiva
do produtor dos enunciados com a do leitor. Essa relação pode ser observada
ao observarmos os níveis de atos de fala. O ilocucionário está coadunado à
intencionalidade dos falantes, ao proferirem as instruções, sendo ele importante se
ainda mencionarmos a percepção das forças ilocutórias inerentes a essas ações. Em
contrapartida, o perlocucionário mensura o modo como as instruções são efetuadas
pelos interlocutores, também de acordo com o tipo de força ilocutória que baliza a
natureza dos procedimentos e instruções. Sendo assim, todos os atributos relacionados
ao efetivo cumprimento dos procedimentos são efetuados no perlocucionário e, por
conseguinte, tais efeitos interlocutivos estão subjacentes à leitura e assimilação dos
sentidos dos textos de natureza instrucional.
Reconhecemos que um dos aspectos limitadores deste trabalho reside na seleção
de quatro gêneros, quando muitos outros são também de base instrucional, como a
prova, orientações acadêmicas, regras de jogos... Contudo, entendemos que a leitura
dos enunciados ora selecionados pode dimensionar uma abordagem importante
quanto ao tipo injuntivo, pois essa tipologia, tradicionalmente vista para a elaboração
de atitudes de ordem ou comando, pode ser analisada a partir da gradação impositiva
dos atos diretivos. A tipologia injuntiva acarreta, portanto, níveis das instruções que
vão desde a sugestão à imposição, sempre equiparando essas formas enunciativas
ao gênero em que ela se veicula. Entendemos também que o tipo textual em tela
precisa ser mais pesquisado, no contexto dos estudos linguísticos, já que não existe
uma tradição em sua análise. Essa necessidade decorre das finalidades de aplicação
dessa tipologia, que embora seja imprescindível na configuração de textos que se
prestam à realização de tarefas do cotidiano discursivo dos indivíduos de todas as
Argumentação e Linguagem Capítulo 6 84
esferas sociais, não constitui uma temática ordinária, no seio dos estudos acadêmicos.
Entendemos, por fim, que esse avanço promova inclusive avanços nas atividades com
leitura funcional e autônoma no desenvolvimento do sujeito leitor nas escolas.
REFERÊNCIAS
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a resposta. In: Compreensão de Leitura - a língua como procedimento. Porto Alegre: Artmed, 2003. P.
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2002.
Capítulo 7 85Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 7
DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS
NO ENSINO DE PORTUGUÊS
Maria Auxiliadora Bezerra
Universidade Federal de Campina Grande
Campina Grande - PB
RESUMO: O objetivo deste capítulo é
discorrer sobre os desafios epistemológicos
e metodológicos, enfrentados pelo professor
de Português, considerando as diversas
contribuições teóricas da Linguística
– associadas às teorias de ensino e
aprendizagem de língua/linguagem – para o
ensino de Português e as variadas metodologias
decorrentes da didatização dessas teorias. A
produção bibliográfica analisada (artigos, livros,
dissertações) indica que, nos eixos de ensino de
leitura, escrita e oralidade, são as teorias sociais
e enunciativas que orientam o trabalho didático,
enquanto no eixo da análise linguística há uma
instabilidade teórico-metodológica, remetendo
para um ensino transmissivo, quando o trabalho
se volta para o estudo da gramática tradicional
(conhecimento da nomenclatura e apropriação
dos conhecimentos de análise morfológica e
sintática) e para um ensino reflexivo, quando o
interesse se volta para analisar o funcionamento
das unidades linguísticas no texto. Observamos
também que, mesmo que a gramática tradicional
seja criticada pelo caráter acientífico, ela ainda
constitui uma base para o ensino de língua
materna nas nossas escolas, e diversas obras
propõem um estudo na sala de aula orientado
por esse manual.
PALAVRAS-CHAVE: Leitura – Escrita –
Oralidade – Análise linguística.
EPISTEMOLOGICAL AND
METHODOLOGICAL CHALLENGES IN
TEACHING PORTUGUESE
ABSTRACT: The purpose of this paper is to
discuss the epistemological and methodological
challenges faced by the teacher of Brazilian
Portuguese, considering the different theoretical
contributions of Linguistics - associated to the
teaching and learning theories of language -
for the teaching of Brazilian Portuguese and
the various methodologies arising from these
theories. The theoretical framework analyzed
(articles, books, dissertations) indicates that in
the axes of the teaching of reading, writing and
speaking are the social and enunciative theories
that guide the didactic work, whereas in the axis
of the linguistic analysis there is a theoretical
and methodological instability, referring to a
transmissive teaching, when the work turns to
the study of traditional grammar (knowledge of
nomenclature and appropriation of knowledge
of morphological and syntactic analysis) as well
as to reflexive teaching, when the interest turns
to analyzing the functioning of language units
Argumentação e Linguagem Capítulo 7 86
in the text. Its also observed that, even though traditional grammar is criticized for its
unscientific character, it still forms a basis for teaching Brazilian Portuguese in Brazilian
schools, and several works propose a study in the classroom guided by this handbook.
KEYWORDS: Reading - Writing - Orality - Language analysis.
1 | 	INTRODUÇÃO
Neste texto procuramos discorrer sobre os desafios epistemológicos e
metodológicos, enfrentados pelo professor de Português, considerando as diversas
contribuições teóricas da Linguística – associadas às teorias de ensino e aprendizagem
de língua/linguagem – para o ensino de Português e as variadas metodologias
decorrentes da didatização dessas teorias. Assim, vamos ensinar o quê e como?
Considerando a história mais recente do ensino de Português (a partir da década
de 1980), verificamos que esses desafios epistemológico e metodológico se encontram
nos quatro eixos de seu ensino: leitura, escrita, oralidade e análise linguística/semiótica.
Na década de 1980, começou-se a questionar o ensino de leitura, concebida
como mera atividade de decodificação, e influências de teorias cognitivas de leitura
chegavam à sala de aula, como alternativa (KATO, 1985; KLEIMAN, 1989 a e b).
Questionamentos sobre o ensino da escrita surgiram na década de 1990.
Vista como codificação de mensagens, a escrita era, sobretudo, ensinada para
demonstração de domínio do registro formal da língua escrita (em redações). Sob a
influência de teorias discursivas, o texto escrito começou a ser visto como atividade
interativa, envolvendo interlocutores, e propostas de produção de textos (em oposição
à redação) passaram a ser praticadas (GERALDI ,1991 e 1996; COSTA VAL, 1991;
GARCEZ , 1998).
Na década de 2000, com as teorias sociais e enunciativas influenciando os
estudos de língua/linguagem, os resultados das investigações sobre letramento e
gêneros discursivos/textuais ganharam destaque na orientação do ensino de leitura e
escrita (NASCIMENTO, 2009; DIONISIO, MACHADO e BEZERRA, 2005).
Finalmente, no início da década de 2010, se propôs mais fortemente a análise
linguística nas aulas de português (ANTUNES, 2014; BEZERRA e REINALDO, 2013;
WACHOWICZ, 2010). É importante frisar que a cada década os estudos desses eixos
se acumulam com propostas alternativas de ensino, com base nas teorias existentes,
pois do ponto de vista epistemológico não temos novos conhecimentos sobre o objeto
língua.
Para o desenvolvimento deste texto, destacamos alguns pontos dos eixos da
leitura, da escrita e da oralidade e nos detemos no eixo da análise linguística, que
consideramos menos explorado, visto que entra em jogo, nesse eixo, a proposta
gramatical de tradição greco-latina, que, ao mesmo tempo em que é rejeitada, não
é substituída integralmente por nenhuma outra. Dessa situação de instabilidade
resultam, por vezes, orientações para o ensino que enfatizam, como veremos no
Argumentação e Linguagem Capítulo 7 87
tópico 5, o funcionamento das unidades linguísticas no texto, mas apoiando-se na
metalinguagem da gramática tradicional. E, sem se saber o que fazer, termina-se
deixando de lado o estudo das unidades menores da língua e enfatiza-se o texto e o
discurso.
2 | 	DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS NO EIXO DA LEITURA
O eixo da leitura, por ter sido o primeiro a ser pesquisado no âmbito dos estudos
linguísticos, encontra-se relativamente estabilizado, no sentido de que a formação
inicial e continuada de professores de PLM, os documentos balizadores do ensino
dessa língua e os materiais didáticos apontam para um ensino com base em usos
efetivos da leitura na sociedade letrada em que vivemos.
Nesse eixo, um dos desafios que o professor de PLM enfrenta, a nosso ver,
é ensinar a ler textos reflexivos, do domínio do argumentar (a partir daqui, apenas
‘textos reflexivos’), que, consequentemente, são textos longos. Considerando as
características da pós-modernidade – fragmentação do sujeito, “realidade” entendida
como resultado de um processo discursivo, fugacidade, efemeridade, virtualidade das
relações humanas –, o discurso da escola em defender a necessidade da leitura de
textos densos, que requerem reflexão, posicionamento, encontra menos eco entre
adolescentes e jovens.
Ao mesmo tempo em que vemos rejeição à leitura de textos reflexivos,
identificamos, desde a década de 1990, pesquisas acadêmicas e orientações oficiais
para o ensino (como, à época, Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino
Fundamental e Médio – PCN e PCNEM –, Orientações Curriculares para o Ensino
Médio - OCEM), apontando para estratégias que enfatizam o lúdico, o atraente, a
fim de despertar o gosto pela leitura dos alunos. Assim, vemos livros didáticos cada
vez mais coloridos, ilustrados, atraindo a atenção dos alunos para as multissemioses,
como recurso imprescindível à produção de um texto. Nesse sentido, o Programa
Nacional do Livro Didático (PNLD), através do Guia do Livro Didático, parece reforçar
essa ideia de “ludicizar” a leitura, quando faz referência às coleções que apresentam
textos em sua coletânea que não são do interesse dos adolescentes, como vemos no
excerto de uma resenha publicada no Guia de 2014:
Estão presentes clássicos da literatura nacional e internacional, contemporâneos e
passados. Essa seleção textual pode contribuir para a formação cultural do aluno,
mas alguns dos textos propostos se distanciam da realidade e dos interesses
dos adolescentes a que se destinam, o que pode afastá-los do envolvimento
com as práticas de leitura [grifo nosso]. Apesar dessa possibilidade, a coletânea
textual, com sua diversidade, favorece experiências significativas de leitura,
especialmente no domínio da literatura e das artes, dado o investimento da coleção
no sentido de formar jovens capazes de fruição estética e apreciação crítica. (Guia
de livros didáticos PNLD 2014 – Ensino Fundamental - anos finais)
Trata-se da coleção Perspectiva: língua portuguesa, de Norma Discini e Lúcia
Argumentação e Linguagem Capítulo 7 88
Teixeira, publicada pela Editora do Brasil, sendo sua segunda edição publicada em
2012. De acordo com a resenha da obra, apresentar textos que, em princípio, não são
do interesse dos alunos poderá possibilitar seu afastamento das práticas de leitura.
Vemos aqui um posicionamento que nos leva a crer que a escola não pode propor aos
alunos aquilo que possivelmente contrarie seus interesses ou que exija mais esforço
de sua parte para aprender. Assim, o difícil parece não ser possível de ser apresentado
aos adolescentes, consequentemente, o texto complexo não terá espaço na escola.
No Guia do Livro didático de 2017, também do ensino fundamental - anos finais,
encontramos como ponto negativo a proposta de leitura de textos mais difíceis:
No entanto, a presença de textos que contemplem a heterogeneidade sociocultural
brasileira ou que manifestem a variação linguística do português, nos âmbitos
social e regional, é reduzida. Além disso, há textos cuja complexidade temática e
linguística pode trazer dificuldade ou desinteresse para leitores do 6º ao 9º ano
do Ensino Fundamental. [grifo nosso] (Guia de livros didáticos PNLD 2017 – Ensino
Fundamental - anos finais)
Esses exemplos nos apresentam um desafio metodológico: os textos balizadores
do ensino afirmam que o aluno deve desenvolver seu senso crítico através da leitura,
mas fazê-los ler textos com complexidade temática e linguística pode afastá-los desse
eixo de ensino. Sabemos que textos polêmicos e reflexivos nem sempre são do
interesse dos alunos, justamente porque requerem trabalho árduo para compreensão
e interpretação, e com o incentivo para a leitura do lúdico e prazeroso, esses textos
reflexivos vão se tornando cada vez mais raros na aula.
Ao lado dessas pesquisas, vemos também outras buscando desenvolver o
letramento digital dos alunos: uso de facebook (SILVA, 2016), blogs (ALVES, 2015),
quiz digital (MENEZES, 2015). Esse letramento precisa ser ampliado e ferramentas e
aplicativos digitais podem ser utilizados como recursos para o ensino, mas são textos
curtos de caráter lúdico, alguma crítica (às vezes superficial), ficcional, entre outros.
Parece que, num mundo caracterizado pela pressa e liquidez, não há tempo para
reflexão.
3 | 	DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS NO EIXO DA ESCRITA
Em relação à produção de textos escritos, eixo de ensino também bastante
explorado à luz dos estudos teóricos que se fundamentam em usos efetivos da leitura
e da escrita em situações comunicativas reais, vemos que se apresenta desafiador
como o da leitura. Do ponto de vista teórico, sobressaem-se, como no eixo da leitura,
os aspectos sociais (e/ou discursivos). Do ponto de vista metodológico, há uma
orientação quase prescritiva de que os textos dos alunos devem ter uma função social,
logo não podem se limitar a ter como leitor o professor; não podem ser experiências
de aprendizagem.
Ora, é um processo intrínseco à escola ensinar, criar intencionalmente
Argumentação e Linguagem Capítulo 7 89
oportunidades de aprendizagem, logo há espaço para simulação. Assim, todos os
textos escritos em sala de aula não têm necessariamente um destinatário extra-escola,
porque os alunos estão aprendendo.
Ensinar a escrever é desafiador. Em se tratando do texto reflexivo, os alunos
demonstram mais dificuldades e resistência em escrevê-lo, pois requer mais
conhecimentos temáticos, para embasar seus argumentos, e linguístico-textuais, para
se adequar à língua culta. Nesse contexto, há um fator complicador que é o recurso à
reescrita do texto de modo a torná-lo aceitável, pois os alunos, em geral, rejeitam essa
atividade, com o argumento de que não sabem refazê-lo. Se, por um lado, há o desafio
de o professor conhecer teorias de escrita que descrevem os textos efetivamente
utilizados nos mais diversos âmbitos da sociedade, considerando as condições de
produção e seu funcionamento efetivo, por outro, há a busca de uma metodologia que
favoreça a aprendizagem da escrita, com o intuito de tornar os alunos autores e não
apenas repetidores das ideias de outros.
Observando pesquisas recentes sobre a produção de textos escritos na escola,
vemos um predomínio de textos curtos, sem tanta complexidade na escrita: crônica
(SANTOS, 2008), autobiografia (ROCHA, 2016; GALVÃO, 2016), fábula (SANTOS,
2016), notícia (AGUIAR Neta, 2015). Com maior complexidade, identificamos o
artigo de opinião (NASCIMENTO, 2016; SANTANA, 2016; FRANCO, 2015) e o texto
argumentativo (BARROS, 2016).
Identificamos também trabalhos que descrevem a utilização de aparelhos e
recursos digitais para o ensino de texto, como, por exemplo, o aparelho celular para a
produção de texto multimidiático (ARANTES, 2015). Porém, trata-se de textos que não
necessitam de muito esforço e envolvimento temático e linguístico-textual, visto que o
foco parece estar mais voltado para o letramento digital do que propriamente para o
desenvolvimento da competência escritora dos alunos.
Analisando o Guia do livro didático de Português de 2018, destinado ao ensino
médio, constatamos a presença de propostas de escrita com bastante orientação,
como podemos exemplificar:
Em relação ao desenvolvimento da proficiência em escrita, há, nas propostas
de atividades de produção de textos, orientação para as diferentes etapas do
processo de produção, envolvendo planejamento, escrita, revisão e reescrita,
além do destaque para a adequação da linguagem ao interlocutor. [grifo
nosso] Como as práticas são situadas, a seleção temática é parte do processo de
planejamento, para a qual há orientações claras no texto, principalmente a partir
da leitura de textos do gênero a ser produzido. (Guia do Livro Didático, 2018, ensino
médio).
A avaliação feita da obra Português – contexto, interlocução e sentido, de Maria
Luiza Abaurre, Marcela Pontara e Maria Bernadete Abaurre, publicada em 2016, pela
editora Moderna, demonstra que essa obra contribui para o ensino de textos escritos
com mais especificações. O aluno encontra claramente as etapas a serem cumpridas
na produção de um texto escrito: planeja, escreve, revisa, reescreve, até chegar à
Argumentação e Linguagem Capítulo 7 90
versão considerada final, se atendeu aos requisitos estabelecidos para esse texto. Em
relação ao professor, essa orientação dá-lhe critérios explícitos para acompanhar e
avaliar o texto produzido.
4 | 	DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS NO EIXO DA
ORALIDADE
Em relação ao ensino dos gêneros orais, há mais desafios a enfrentar do que no
ensino dos escritos, visto que compõem um dos últimos eixos a serem considerados
na escola. Como, tradicionalmente, à escola cabia o ensino da escrita e a oralidade
não precisava ser aprendida, pois os alunos sabiam falar, os gêneros orais presentes
em ambientes públicos não constituíam/constituem objeto de ensino/aprendizagem. É
preciso conhecer teoricamente esses gêneros orais e encontrar situações das quais
eles façam parte, para se efetivar um ensino explícito. Pesquisas mostram que o debate
(OLIVEIRA, 2015; BARROS, 2014; FERREIRA, 2014), seminário (RODRIGUES, 2016)
e exposição oral (LOPES, 2011) são os gêneros mais explorados na sala de aula.
O Guia do livro didático de língua portuguesa, de 2018, referente ao ensino
médio, aponta que esse eixo ainda precisa se consolidar. Temos como exemplo:
Existem atividades com orientações em quase toda obra (exceto na parte de
Gramática), como, por exemplo, a sugestão de realização de debate interdisciplinar
no Volume 3. Em raros momentos, entretanto, há, no Livro do Estudante, o
incentivo à utilização de recursos visuais, como slides ou cartazes com a finalidade
de apoiar uma apresentação oral. Além disso, nem sempre as atividades estão
suficientemente estruturadas com orientações específicas para os gêneros e
as práticas de oralidade, como ocorre, por exemplo, na organização de uma
apresentação oral [grifo nosso]. (Guia do livro didático, 2018 – ensino médio)
A coleção em destaque é Novas Palavras, de Emília Amaral, Mauro Ferreira,
Ricardo Leite e Severino Antônio, publicada em 2016, pela editora FTD. Embora haja
propostas de trabalho com língua falada, os autores não dão orientações de como se
constitui o gênero estudado, de modo que os alunos tenham consciência do gênero,
não seja uma ação intuitiva de falante nativo do português.
Mas grande parte das atividades do eixo da oralidade nos livros didáticos se
reduz ao uso espontâneo da língua falada, ou a oralização (que remete à leitura em
voz alta de textos escritos). Dessa forma, cabe ao professor fazer seu planejamento
de ensino, preenchendo as lacunas dos livros.
5 | 	DESAFIO EPISTEMOLÓGICO E METODOLÓGICO PARA O ENSINO DO EIXO
ANÁLISE LINGUÍSTICA (ESTUDOS GRAMATICAIS)
Esse eixo comporta tanto atividades epilinguísticas, quanto metalinguísticas e,
entendido como descrição de aspectos da língua associada ao ensino/aprendizagem,
Argumentação e Linguagem Capítulo 7 91
continua sendo apresentado como alternativa ao ensino da gramática tradicional (GT),
embora ainda não vejamos consolidação dessa alternativa (BEZERRA e REINALDO,
2013).
	Observando o ensino das unidades linguísticas, identificamos que, do ponto
de vista epistemológico, temos um ensino fundamentado no paradigma da tradição
gramatical (não considerado de base científica) – quando se classificam e se analisam
morfossintaticamente essas unidades; e no paradigma linguístico (de onde advém
a legitimidade do saber, pois se trata de conhecimento científico) – quando essas
unidades são analisadas em situações de uso, ou seja, em textos. Podemos ilustrar a
perspectiva gramatical com os exemplos a seguir.
a) Paradigma tradicional
O estudo das classes de palavras
Do ponto de vista dos estudos gramaticais, que têm como objetivo a descrição dos
sistemas linguísticos, é mais adequado falar em classes de palavras, para fazer
referência à divisão das palavras da língua, de acordo com critérios morfológicos
(sua forma e flexão), semânticos (tipos de significação de que são portadores) ou
sintáticos (função que exercem nos enunciados).
A gramática descritiva organiza as palavras da língua em dez classes: substantivos,
adjetivos, artigos, numerais, pronomes, verbos, advérbios, preposições, conjunções
e interjeições. (ABAURRE, ABAURRE & PONTARA. Português: contexto, interlocução e
sentido, 2º volume, ensino médio, 2016, p.164)
Atividades
[...]
3. O publicitário Ciro Pellicano escreveu um livro intitulado Quando o poder
corrompe, corrompe a não mais poder (Global, 2010). Nesse título, o termo poder
aparece duas vezes com significados distintos.
a) Como esse termo deve ser entendido na primeira ocorrência?
b) Na segunda ocorrência, o termo integra a expressão “a não mais poder”. O que
essa expressão significa?
4. As diferentes funções desempenhadas pelo termo poder na estrutura sintática do
enunciado determinam uma classificação gramatical distinta para cada ocorrência.
a) Qual é a classe gramatical do termo poder em cada umas dessas ocorrências?
(ABAURRE, ABAURRE & PONTARA. Português: contexto, interlocução e sentido, 2º volume,
ensino médio, 2016, p.165)
b) Paradigma linguístico
3.Volte à questão 5 da página 67 e releia os títulos indicados [...].
a) Identifique os verbos nesses títulos.
b) Esses verbos estão no presente, no passado ou no futuro?
c) Por que, nos títulos de notícias, o verbo costuma estar no presente, se o fato
relatado já aconteceu?
[...]
Argumentação e Linguagem Capítulo 7 92
7. Tendo em vista o que você estudou até agora sobre a notícia e sobre o modo
indicativo, responda: por que, nas notícias, a maioria dos verbos está no modo
indicativo? (EDIÇÕES SM. Língua portuguesa, 6º volume, ensino fundamental, 2015, p.68-
69)
O exemplo relativo ao paradigma tradicional demonstra que o livro didático
segue a classificação de palavras apresentada pela tradição greco-romana (“A
gramática descritiva organiza as palavras da língua em dez classes: substantivos,
adjetivos, artigos, [...] advérbios, preposições, conjunções e interjeições.”), sem fazer
nenhuma referência aos estudos críticos que há a esse respeito, inclusive a posição de
que o artigo, o numeral e a interjeição não constituem classes de palavras, e repete o
mesmo equívoco da GT de não distinguir “classe” de “função” (“As diferentes funções
desempenhadas pelo termo poder na estrutura sintática do enunciado determinam uma
classificação gramatical distinta para cada ocorrência.”): ora, não é a função exercida
pelo termo em um enunciado que determina sua classe; as palavras são agrupadas
em uma classe, segundo critérios que são comuns a elas, independentemente do
seu funcionamento nos enunciados (nesse caso, poder pertence à classe dos verbos,
podendo exercer a função de substantivo).
O exemplo relativo ao paradigma linguístico, por sua vez, propõe uma análise
sobre o funcionamento dos verbos (em sua flexão de tempo e de modo) em um gênero
textual específico (notícia jornalística), levando o aluno a relacionar flexão verbal com
características composicionais e linguísticas do gênero textual em estudo. Ou seja, o
aluno reflete sobre o uso efetivo da palavra em questão, tirando conclusões cabíveis,
não se restringindo apenas a identificar o tempo e o modo do verbo.
Assim, vemos que os livros didáticos de português ora prescrevem ora
descrevem, seguindo pontos de vista teóricos que não se complementam.
O recurso ao sincretismo teórico é citado por Borges Neto (2011), demonstrando
uma certa perplexidade, quando se refere aos estudos morfológicos realizados no
Brasil:
Minha sensação [...] é que continuam existindo laços muito estreitos entre as teorias
modernas e as teorias antigas – como se as teorias modernas não pudessem se
desvencilhar da carga da tradição – e esses laços tolhem significativamente suas
possibilidades de desenvolvimento. (BORGES Neto, 2011, p.55)
Embora esse autor esteja abordando os estudos morfológicos de um ponto de
vista teórico, suas afirmações se relacionam com as propostas de ensino, pois essas
demonstram uma sobreposição teórica (RAFAEL, 2001) ao utilizar práticas tradicionais
e modernas, como podemos comprovar em Kleiman e Sepulveda (2012):
Nossa opção é pelo ensino da gramática, porém, por uma vertente que assimile o
que há de positivo nas práticas tradicionais e nas modernas, sem nos posicionarmos
radicalmente por uma ou outra. O resultado esperado é o desenvolvimento do
potencial comunicativo do aluno, e o consequente fortalecimento de sua capacidade
cidadã na sociedade moderna, essencialmente letrada. (KLEIMAN e SEPULVEDA,
2012, p.11)
Essa opção, por um lado, evoca a crença que rege o ensino tradicional do
Argumentação e Linguagem Capítulo 7 93
português, qual seja, o domínio da gramática normativa é condição para bem falar e
escrever, quando as autoras afirmam que “o resultado esperado é o desenvolvimento
do potencial comunicativo do aluno e o consequente fortalecimento de sua capacidade
cidadã na sociedade moderna...”. Por outro lado, ecoa, indiretamente, a posição
tomada por Perini (2010) e Neves (2000), em relação à categoria e à terminologia
adotadas em suas gramáticas: a escolha de categorias e termos advindos da GT se
deve ao fato de que são do conhecimento geral e são compreendidos com facilidade.
Perini (2010) afirma:
[...] tentei utilizar um corpo de categorias teóricas de aceitação mais ou menos
geral. Ao contrário de que se possa pensar, esse corpo teórico existe, e não é
nada pequeno: por exemplo, se alguém fala de “verbos”, ou de “concordância”,
ou de “preposição” [...] é imediatamente compreendido; esses termos evocam, se
não definições teóricas, pelo menos grupos de fenômenos bastante bem definidos.
(PERINI, 2010, p.25)
Neves (2000), por sua vez, esclarece que
A Gramática de usos do português parte das tradicionais classes de palavras,
ponto de partida escolhido apenas porque o leitor ou consulente comum, sem ser
conhecedor do assunto, vai poder situar-se na sua busca, para chegar ao que quer
saber. Entretanto, o agrupamento dessas classes pelas quatro partes da obra já
revela que há princípios teóricos dirigindo o tratamento das questões. As partes se
codividem segundo os processos que dirigem a organização dos enunciados para
obtenção do sentido do texto: a predicação, a referenciação, a quantificação e a
indefinição, a junção. (NEVES, 2000, p.13)
Ou seja, essa junção de princípios tradicionais e modernos em prol de um ensino
de língua eficaz leva-nos a crer que as teorias modernas não desenvolveram um estudo
suficientemente amplo sobre essas categorias, de modo que para compreendermos
uma proposta teórica inovadora precisamos do apoio dos conhecimentos da GT.
Podemos constatar essa postura com os exemplos de Pilati (2017).
Pilati (2017) pretende
mostrar de que forma os conhecimentos linguísticos podem ser usados como
fundamentos teóricos norteadores da prática docente e [...] aliar tais conhecimentos
a uma metodologia que se preocupe em promover o aprendizado ativo dos
estudantes.
[...] Sem fugir dos conteúdos gramaticais obrigatórios para os alunos da Educação
Básica, a abordagem que proponho nesta obra tenta articular três aspectos
fundamentais para o ensino de línguas:
i. os avanços alcançados pelas pesquisas linguísticas em relação às propriedades
das línguas humanas;
ii. os conhecimentos sobre as variedades linguísticas da língua portuguesa; e
iii. a metodologia da aprendizagem ativa, capaz de levar os alunos a usar a
gramática com consciência e em benefício de sua produção textual. (PILATI, 2017,
p.16)
Essa autora, ao apresentar suas oficinas de trabalho (capítulo 4, p.113-142),
Argumentação e Linguagem Capítulo 7 94
propõe, como aprendizagem ativa, os itens ‘avaliação do conhecimento prévio dos
alunos’; ‘experiências de descoberta e reflexão linguística’; ‘organização das ideias
encontradas’; apresentação das ideias’; e ‘aplicação dos conhecimentos em textos’,
para os alunos resolverem.
Na oficina 4 – Formando Orações (p.131-134), é solicitado aos alunos que
analisem as orações apresentadas, identifiquem a classe gramatical de uma palavra
criada pela autora e presente nas orações dadas; que façam uma oração com essa
palavra; que criem frases para um conjunto de verbos retirados do texto Poema da
necessidade (Carlos Drummond de Andrade); e que analisem a definição de verbo
contida no Dicionário Houaiss eletrônico (definição idêntica à da GT). Ou seja, para
a aprendizagem ativa, fundamentada nos “avanços alcançados pelas pesquisas
linguísticas em relação às propriedades das línguas humanas” (nesse caso, trata-se
da linguística gerativa), os alunos precisam conhecer os termos oração, classe de
palavras, verbo e frase (conhecimento advindo da tradição gramatical). Mas em que
momento esses conceitos foram ou serão ensinados?
Esse procedimento parece induzir os autores de livros didáticos e,
consequentemente, os professores a recorrerem aos estudos tradicionais, como forma
de garantir o aprendizado de seus alunos.
Em decorrência desse posicionamento epistemológico, verificamos que,
do ponto de vista metodológico, ao menos dois caminhos são seguidos: ensino
transmissivo, no que se refere à classificação dos conhecimentos gramaticais de
origem greco-latina e sua metalinguagem; e ensino reflexivo, quanto ao uso e
funcionamento das unidades linguísticas, com o intuito de fazer o aluno refletir sobre o
papel dessas unidades na construção dos textos e de seus sentidos. Podemos ilustrar
com os exemplos seguintes, retirados da Gramática da língua portuguesa padrão, de
Hauy (2014), e de Texto e gramática, de Neves (2006).
a) Ensino transmissivo:
Adjetivo
I. Conceito
Adjetivo é a palavra que se apõe ao substantivo ou equivalente para lhe atribuir
uma qualidade (inerente ou não), propriedade, condição ou estado.
Exemplo:
Limpos, regulares, modernos como um escritório com “guichets”
[...](Fernando Pessoa)
II. Classificação
À qualidade inerente denominava-se, antes da NGB, adjetivo explicativo: homem
mortal, Deus Todo poderoso; e à não inerente, adjetivo restritivo: homem sábio,
Argumentação e Linguagem Capítulo 7 95
bom conselho [...]
III. Formação
Quanto à formação, o adjetivo classifica-se em: primitivo ou derivado, simples ou
composto. (HAUY, 2014, p.601)
Na apresentação da sua Gramática, a autora esclarece que a obra é “resultado
de décadas de pesquisa, elaboração e experiência de magistério, é uma tentativa de
sistematização da tradicional teoria gramatical do português acadêmico, objetivando
uma reflexão crítica sobre o estado atual da língua portuguesa no que ela tem de
sistemático, gramatical e, sobretudo, sobre a importância da norma padrão no livro
didático, em sua função sociocultural.” (HAUY, 2014, p.33).
Ao frisar “a importância da norma padrão no livro didático”, a autora faz referência
ao ensino do português sob o viés da tradição gramatical, na educação básica. Além
disso, pelo fato de que os conteúdos são apresentados seguindo a organização
“conceito, classificação, formação”, acompanhada de exemplos e alguns comentários,
percebemos a perspectiva transmissiva de seu ensino. Não há reflexão sobre o
assunto.
b) Ensino reflexivo:
Nenhuma forma verbal pode definir-se isolada ou descontextualizadamente. Ainda
permanecendo nos domínios definidos pelas relações estruturais, ou sintáticas (em
que a unidade maior é a frase), teremos de conjugar o complexo funcional de
estatuto mórfico – a forma verbal - ao seu contexto sintático. O verbo pertence à
esfera semântica das relações e processos (Halliday, 1985) (estados / eventos),
sendo responsável, pois, pelo amarramento sintático-semântico dos diferentes
participantes.
[...]
A título de ilustração de um exame textual ligado ao uso de categorias gramaticais
examino a crônica de Luis Fernando Veríssimo “Segurança”, com vista para
a ligação dos tempos verbais com o ‘fazer’ do texto (no caso, essencialmente,
narrativo). (NEVES, 2006, p.68)
A exploração do uso dos verbos na citada crônica vai demonstrando a
progressão da narrativa e a parte que se faz em retrospectiva. Ou seja, não basta
saber de forma isolada os tempos e modos verbais, mas também averiguar seus usos
na construção do texto.
Mesmo tendo verificado exemplos de estudos reflexivos (como o de Neves, 2006),
não identificamos, de forma abrangente, uma proposta que leve o aluno a refletir sobre
o funcionamento da língua e sobre a descrição feita pela GT, com vistas a desenvolver
a sua capacidade investigativa e, assim, reconhecer que nenhum estudo linguístico
descreve, com completude, uma língua e que a GT, por ter realizado seu estudo com
base em um uso da língua não mais idêntico ao de hoje, tem propostas (tanto de
categorias quanto de descrições e de prescrições) que merecem ser revistas.
Argumentação e Linguagem Capítulo 7 96
Em relação ao livro didático de português, ele desenvolve mais atividades
epilinguísticas do que metalinguísticas, mas apoiando-se na terminologia da GT.
Vemos comportamento idêntico em estudos acadêmicos voltados para o ensino do
PLM, principalmente a partir da década de 2010. Já não há um discurso impositivo
por parte da academia de que a GT não deve estar associada ao ensino de português
e, em prefácios ou em apresentações de livros, lemos que seus autores explicitam
o interesse em propor alternativas para o ensino de tópicos da tradição gramatical,
considerando-se necessário seu conhecimento. Vejamos:
Partimos da análise de situações concretas de ensino da língua e buscamos
apresentar possibilidades de encaminhamentos, sugestões de possíveis maneiras
de se trabalhar a gramática que consideramos realizáveis para a maioria dos
professores de língua portuguesa. [...] visamos apenas construir as bases para o
ensino de gramática mostrando como pode ser feita a introdução à metalinguagem,
mirando-se sempre em situações concretas.O objetivo deste livro é apresentar uma
maneira de introduzir noções e categorias gramaticais a alunos do terceiro e quarto
ciclo do Ensino Fundamental e do Ensino Supletivo, para assim construir um alicerce
para estudos gramaticais e linguísticos posteriores. (KLEIMAN e SEPULVEDA, 2012,
p.10-11)
Essa opção explícita pela gramática tradicional traz renovação no procedimento
metodológico, não no conteúdo. Vejamos seu sumário:
A primeira lição: por que estudar gramática?
Palavras e objetos
Nomes e substantivos
Atividades
Verbo, pessoa e tempo
O adjetivo
Sujeitos, predicados e outras considerações
(KLEIMAN e SEPULVEDA, 2012, p.07)
Aqui, vemos que as classes de palavras da GT selecionadas para estudo
são substantivo, verbo e adjetivo e algumas funções da sintaxe oracional (sujeito e
predicado).
Outro exemplo que ilustra essa associação entre teorias tradicionais e modernas
no ensino do português é visto na apresentação do livro Práticas de ensino do
português, organizado por Palomanes e Bravin (2012):
Propusemos aos autores uma reflexão que associasse tradição e ruptura nos
estudos sobre a língua portuguesa, a fim de levarmos ao leitor discussões que lhe
ofereçam novos conhecimentos construídos dentro da ciência linguística que vão
somar-se a sua prática e aos conhecimentos que já domina. [...] Na segunda parte
do livro, serão apresentadas críticas e propostas ao ensino de algumas estruturas
Argumentação e Linguagem Capítulo 7 97
morfológicas e sintáticas, tomando como apoio as teorias linguísticas do século XX:
serão abordadas as relações entre o significado do verbo e a organização estrutural
da oração, mais especificamente dos verbos tradicionalmente classificados como
transitivos diretos, ou seja, aqueles acompanhados de sujeito e objeto direto; [...]
(PALOMANES e BRAVIN, 2012, Apresentação)
As autoras (2012) deixam claro que estudos realizados no âmbito da linguística
se associam aos ensinamentos da GT (“reflexão que associasse tradição e ruptura nos
estudos sobre a língua portuguesa”) com vistas a uma reorientação para o ensino do
português (“serão apresentadas críticas e propostas ao ensino de algumas estruturas
morfológicas e sintáticas, tomando como apoio as teorias linguísticas do século XX”),
sem, contudo, questionar (ou propor alterações) categorias e terminologia da GT
(“serão abordadas as relações entre o significado do verbo e a organização estrutural
da oração, mais especificamente dos verbos tradicionalmente classificados como
transitivos diretos.” – grifo nosso).
Possenti (2011), ainda que com restrições, também participa desse conjunto de
autores que olham para o ensino de gramática. Vejamos:
Assim, quis fazer um trabalho em tudo semelhante ao que tenho feito quando trato
de questões de ensino: não acreditando que estejamos a ponto de fazer uma
revolução na escola – no entanto, absolutamente necessária – quis contribuir para
que se lesse por dentro aquele corpo de doutrinas que funciona, a meu ver, como
o ponto cego da educação: a gramática.
O material foi prioritariamente destinado a estudantes do ensino médio – ou a
seus professores. (POSSENTI, 2011, p.11-12)
Ainda esse autor:
Considere-se, por exemplo, o caso dos chamados adjetivos com função de
advérbio, em exemplos como Ele anda rápido. Em aula, um professor pode querer
convencer o aluno de que ‘rápido’ aqui é um advérbio (com função de adjunto
adverbial, não de predicativo do sujeito), ou que um candidato, em uma prova,
tenha de responder a uma pergunta relativa à função sintática de ‘rápido’. [...] é
perfeitamente possível provar que se trata de um advérbio. Para tanto, basta alterar
uma variável. O procedimento é simples. Se for um predicativo do sujeito, “rápido”
concorda com o sujeito.” (POSSENTI, 2011, p.43)
Possenti (2011) – mesmo reconhecendo que uma mudança é necessária na
escola – em relação à gramática, propõe um ensino reflexivo, com vistas a que o aluno
compreenda os fatos linguísticos e construa seus conhecimentos. Nesse caso, propõe
testes, utilizando variáveis: troca de palavra masculina – “Ele” – por uma feminina
– “Ela”, para verificar a função morfossintática de constituintes da oração (“rápido”
como “adjetivo” ou “advérbio” e, consequentemente, como “predicativo do sujeito”,
caso em que “concorda com o sujeito”). Esse procedimento de utilizar variáveis para
conhecer a língua e seu funcionamento constitui uma demonstração de análise como
os campos científicos o fazem. Essa é uma característica do ensino reflexivo, que leva
em consideração conhecimentos metalinguísticos.
Os exemplos demonstrados referem-se ao estudo de classes de palavras e de
categorias gramaticais e sintáticas, para reconhecimento e análise. Mas encontramos
Argumentação e Linguagem Capítulo 7 98
também essas classes de palavras em estudos que abordam outra unidade de ensino:
gêneros textuais. Nesse caso, o estudo dessas classes está associado à materialização
do gênero. Como exemplo, citamos o trabalho de Angelo & Loregian-Penkal (2010),
sobre análise linguística associada ao gênero “divulgação científica”.
Incluímos, nas atividades de análise e reflexão da língua, os seguintes aspectos:
.o estudo das condições de produção do texto e das características específicas
dos gêneros textuais. (...);
. a reflexão sobre o motivo da escolha de uma forma linguística ou outra. Dessa
maneira, os elementos linguísticos não serão vistos como formas “congeladas”,
mas como recursos que se prestam à eficiência comunicativa;
.o uso de verbos. No estudo das formas verbais, será importante destacar que a
escolha dos termos não é feita por acaso, pois há sempre um interlocutor, alvo das
produções, para quem o texto se destina;
(ANGELO & LOREGIAN-PENKAL, 2010, p.143-144)
Essa citação demonstra a proposta de trabalho prevista para alunos do ensino
fundamental (anos iniciais), incluindo entre outros aspectos o verbo, como unidade
constitutiva do gênero em estudo (divulgação científica).
A operacionalização desse trabalho envolve a reflexão sobre tempos e modos
verbais:
ATIVIDADE 11
11.1. Verifique em que tempo e modo se encontram os verbos do texto.
11.2. Por que os verbos foram utilizados dessa maneira no texto?
11.3. Qual dos verbos sublinhados nas frases a seguir dá ideia de que algo se
repete, é contínuo:
a) “Um louva-a-deus vai chegando perto do vaga-lume (sic) ‘apagado’”.
b) “De repente, o pirilampo pisca e o louva-a-deus desanima”.
(ANGELO & LOREGIAN-PENKAL, 2010, p.155)
Areflexão aqui construída leva o aluno a identificar o uso do presente do indicativo
com outro sentido que não o do momento da enunciação: tratando-se de um texto
de divulgação científica, as constatações científicas são ditas nesse tempo e modo
verbais, que denotam verdades permanentes.
Embora as autoras não focalizem aspecto verbal (“vai chegando”), realizam a
análise dessa unidade linguística (verbo), demonstrando seu papel na construção do
gênero textual. Dito de outro modo, as autoras propõem o novo apoiadas no velho. Eis
o desafio do ensino reflexivo da língua: ora se apoia na perspectiva teórica da tradição
Argumentação e Linguagem Capítulo 7 99
e adota procedimentos metodológicos modernos, ora se apoia em perspectiva teórica
moderna, sem desvencilhar-se dos laços da tradição, como cita Borges Neto (2011).
Consultando a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), identificamos que o
ensino da análise linguística, associado aos gêneros textuais, segue a classificação
e terminologia da GT, para os estudos morfossintáticos (por exemplo, classes de
palavras, funções sintáticas dos termos da oração, concordância verbal e nominal), e
a classificação e terminologia linguística (linguística de texto), para os estudos do texto
(por exemplo, os critérios de textualidade).
6 | 	CONCLUSÃO
Vimos que ensinar português é enfrentar desafios, pois a confluência, na escola,
de tantas teorias que descrevem a língua acaba por provocar um sincretismo que leva
o professor a não distinguir suas bases teóricas nem a metodologia correspondente a
essas bases. Nas obras que citamos, identificamos duas perspectivas metodológicas:
a que leva o aluno à reflexão sobre a língua em seu funcionamento, verificando sua
adequação ao texto (reflexão epilinguística); e a que leva o aluno à observação, à
comparação dos fatos da língua, com vistas a uma categorização e, consequentemente,
a uma apropriação de uma terminologia (reflexão metalinguística).
A produção acadêmica sobre essa última reflexão é bem menos desenvolvida
do que a primeira. O fato de que a GT se fundamenta em critérios variados para a
classificação, categorização e explicação da língua (filosófico, histórico, morfológico,
sintático, semântico) contribui para que críticas sejam feitas e, consequentemente,
seus estudos sejam questionados por pesquisadores que analisam a língua com
critérios mais rigorosos e aceitos pela ciência. Assim, o ensino do português enfrenta
um desafio que – parece – está longe de ser resolvido: que teoria gramatical ensinar
e seguindo que metodologia?
Os autores, embora reconheçam limitações da GT, não descartam completamente
suas propostas. Assim, alguns propõem seu estudo, com alterações, às vezes de
conteúdo, às vezes metodológicas.
O ensino não despreza uma metalinguagem que orienta as atividades do aluno
em busca de entender o funcionamento e a estrutura da língua, mas distancia-se do
comportamento tradicional de apresentar um código de regras a seguir. Essa postura
de observação da língua exige uma abordagem metodológica na sala de aula que
provoca questionamentos, dúvidas e não certezas e dogmas.
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Capítulo 8 103Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 8
IGREJA” E “SENHOR”: A CRÍTICA À RELIGIÃO NAS
LETRAS DE MÚSICA DA BANDA TITÃS À LUZ DAS
REFLEXÕES BAKHTINIANAS
Claudia de Fátima Oliveira
Universidade de Franca
Franca –SP
Camila de Araújo Beraldo Ludovice
Universidade de Franca
Franca-SP
RESUMO: O objetivo deste artigo é promover,
a partir do estudo das letras das canções
“Igreja” e “Senhor”, da banda paulistana Titãs,
uma análise sobre as relações dialógicas entre
as letras que, embora construídas em épocas
distintas e distantes, trazem questionamentos
históricos e sociais, em relação à ideologia
permanente de que a instituição Igreja rege
as relações sociais. Sob o ponto de vista do
filósofo russo Mikhail Bakhtin, serão feitas
análises dialógicas entre as letras e o contexto
histórico à época das composições, a fim de
demonstrar que se vive sob uma opressão
religiosa-social, que se origina da castração e
do imperativo, quer seja em âmbito coletivo,
quer seja individual, enunciando um medo
social que se faz presente até os dias atuais.
PALAVRAS-CHAVE: Letra de música. Titãs.
Relações dialógicas. Bakhtin.
CHURCH “AND” LORD “: THE CRITICISM
TO RELIGION IN THE LETTERS OF MUSIC
OF THE TITÃS BAND IN THE LIGHT OF
BAKHTINIANAS REFLECTIONS
ABSTRACT: The purpose of this article is to
promote a reflection on the dialogue between
the letters that, although built at distinct and
distant times, bring historical questions to the
analysis of the lyrics of the songs “Church” and
“Lord” and social, in relation to the permanent
ideology that the Church institution governs
social relations. From the point of view of the
Russian philosopher Mikhail Bakhtin, dialogical
analyzes will be made between the letters
and the historical context at the time of the
compositions, in order to demonstrate that one
lives under a social-religious oppression, which
originates from the castration and the imperative,
whether in the collective sphere or individual,
enunciating a social fear that is present until the
present day.
KEYWORDS: Song lyrics.Titãs. Dialogic
relations. Bakhtin.
1 | 	INTRODUÇÃO
As letras de música sempre foram objeto
de polêmica em meio ao corpo social. Nesse
sentido, no Brasil, os anos 1980 foram frutíferos,
Argumentação e Linguagem Capítulo 8 104
em função da época por que o país passava: fim da Ditadura Militar e início da Nova
República. Nessa década, surgiu, em São Paulo, a banda Titãs, que, nessa época,
cantava, majoritariamente, letras de música cujo conteúdo era de protesto. Ainda que
em uma época de abertura, os Titãs se consagraram como uma banda respeitada tanto
pelo público, quanto pela crítica. Nesse contexto, Cabeça Dinossauro e Nheengatu são
álbuns que possuem letras que, embora produzidas em tempos distantes e distintos,
trazem para o leitor-ouvinte a realidade histórica do nosso país nos anos 1980 e
2010. Por meio das letras de música “Igreja”, de Cabeça Dinossauro e “Senhor”, de
Nheengatu, tanto as gerações antigas quanto as atuais poderão conhecer muito do
contexto histórico e social do nosso país.
As composições analisadas, dentro do gênero letra de música, foram escolhidas
por abordarem críticas, ora veladas, ora explícitas às instituições religiosas que
tradicionalmente regem o indivíduo e que não eram passíveis de críticas diretas em
anos anteriores, mas, na contemporaneidade, já são alvos de questionamentos diretos
acerca de sua validade.
Assim, nos anos 1980, a banda Titãs trouxe referências explícitas à Igreja,
referências não elogiosas e contundentes às mazelas instauradas dentro das
instituições religiosas. O incômodo gerado pelo teor de algumas letras trouxe à tona
a importância de tratar sobre esse assunto, uma vez que o engajamento da banda se
fez e se faz presente durante a sua trajetória. Dessa forma, analisar como as letras
“Igreja” e “Senhor” são contributivas para o pensar social é de suma importância, já
que, por muitas vezes, as imposições religiosas são vistas como algo já pré-imposto
à sociedade.
Em 1987, foi lançada no álbum Cabeça Dinossauro a música “Igreja”, de
composição do poeta Nando Reis. Conforme declaração do integrante do grupo Titãs
ao site G1, a letra foi uma resposta do autor, ateu declarado, às declarações do cantor
sobre o filme “Je Vous Salue, Marie”, de Jean-Luc Godard, cineasta, representante
da Nouvelle Vague. O filme franco-suiço foi lançado no mesmo ano da música, de
teor polêmico, proibido no Brasil durante o governo do presidente José Sarney. Na
ocasião, Roberto Carlos enviou um telegrama ao então presidente, cumprimentando-o
por impedir a exibição do filme, que, sob os olhos do artista, não seria expressão de
arte que merecesse a liberdade de atingir a tradição religiosa do povo brasileiro. A
época marcou o começo da Nova República, que veio substituir a ditadura.
Nesse contexto, surge a letra de “Igreja”, letra polêmica, que ganhou mais
força polemizante quando um dos integrantes da banda, Arnaldo Antunes, deixou
de participar das apresentações quando a música era tocada, por não ter certezas
religiosas. À época da composição, a banda Titãs passava ao público a imagem de
ter em seu bojo jovens rebeldes e revolucionários, fato confirmado pelo fato de o LP
Cabeça Dinossauro trazer consigo somente letras de cunho crítico ao corpo social e
às imposições estatais, o que o torna referência de protesto e politização.
A letra de “Igreja” é uma crítica à religião, mas, em especial, critica, com
Argumentação e Linguagem Capítulo 8 105
veemência, a Igreja Católica, elemento causador de polêmica na época. Ainda assim,
a letra, embora não tocada nas rádios, fez sucesso nos shows, naquele momento e é
tocada até os dias atuais nos shows da banda.
Em 2015, a banda lança a letra “Senhor”, novamente clara alusão à religião e, em
especial à Igreja Católica, abordando questões como pecado e culpa, e inserindo a letra
da oração católica Pai Nosso, fazendo nela, inclusive, alterações. Além disso, entra
em pauta, na letra em questão, a discussão em relação às religiões neo-pentecostais,
sob o ponto de vista da exploração monetária.
Nesse sentido, as letras de “Igreja” e “Senhor” trazem consigo pontos em comum.
Letras produzidas em tempos distintos, em espaços longínquos, a saber, 1986 e 2015,
historicamente marcados por períodos de repressão e liberdade de expressão social.
Em seu interior, ambas, frente às críticas direcionadas, criticam, de forma direta, a
instituição religiosa Igreja, mas também mostram diferenças, justamente em função
do tempo da produção das letras, vez que o conteúdo de “Igreja” é mais agressivo,
enquanto “Senhor” parece trazer um convite à reflexão. Nesse contexto, ocorrem
relações dialógicas entre as letras das músicas aqui analisadas, em cronótopos
distintos.
O confrontamento entre as letras das músicas “Igreja” e “Senhor” trazem uma
reflexão no sentido de que a imposição marcada pela religiosidade no Brasil, suposto
Estado laico, se fez presente de forma marcante no período ditatorial, mas ainda válida
na democracia, posto que ambas as épocas dialogam com forças religiosas vindas
tanto do poder estatal quanto da sociedade conservadora.
2 | 	O DIALOGISMO BAKHTINIANO
As reflexões bakhtinianas trazem a concepção de que, embora os discursos não
sejam produzidos em um mesmo tempo e espaço, eles podem intercambiar entre si
ideários dialógicos, não inéditos, mas com novas contribuições. Para ele:
Qualquer resenha da história de alguma questão científica (independente ou
incluída no trabalho científico sobre uma determinada questão) realiza confrontos
dialógicos (entre enunciados, opiniões, pontos de vista) entre enunciados de
cientistas que não sabiam nem podiam saber nada uns sobre os outros. (BAKHTIN,
2006, p. 331).
Desse modo, o aspecto em comum dos temas geram questões dialógicas. São,
portanto, os enunciados aquilo que o enunciador produz com consciência, uma vez
que o processo de enunciação se constitui por meio de vozes sociais. Quando um
enunciado se encerra, não há acabamento final, frente à presença de respostas e
réplicas. Nesse ínterim, as letras ora analisadas se fazem constituir por meio de vozes
sociais, produzidas por seus autores e ecoadas quando repetidas e vivenciadas por
seus receptores.
Nesse sentido, para Bakhtin,
Argumentação e Linguagem Capítulo 8 106
Por palavra do outro enunciado, produção de discurso, eu entendo qualquer
palavra de qualquer outra pessoa, dita ou escrita na minha própria língua ou em
qualquer outra língua, ou seja, qualquer outra palavra não minha. Neste sentido,
todas as palavras (enunciados, produções de discurso e literárias), além das
minhas próprias, são palavras do outro. (BAKHTIN, 2006, p. 379).
Para o filósofo russo, é importante que se recolham dados materiais com o objetivo
de reconstituir a história por meio das leis sociológicas, psicológicas e biológicas, em
que a interpretação se faz através do diálogo. Desse modo, ao se analisar enunciados,
há de se buscar nele vozes sociais que se encontram por meio de uma réplica social.
Assim, nos planos do enunciado e do discurso, ocorre o dialogismo bakhtiniano .
(BAKHTIN, 2006, p. 199).
Em toda parte, portanto, há certa intersecção, consonância ou intermitência de
réplicas do diálogo aberto com réplicas do diálogo interior das personagens. Em toda
parte, encontramos ideias, pensamentos e palavras, que se realizam em várias vozes.
Nesse contexto, é importante aqui ressaltar que o dialogismo ocorre em todas as
instâncias comunicacionais e, com as letras de música, não seria diferente.
Sob esse prisma, a banda de rock Titãs, desde os anos 1980, nos traz canções
de cunho ideológico, que levam à reflexão acerca do contexto histórico e social do
Brasil. Para tanto, analisaremos as letras de “Igreja” e “Senhor” sob a ótica dialógica
bakhtiniana.
3 | 	ESTARIA A IGREJA, EM 1986, PRONTA PARA OUVIR ESSA CANÇÃO?
A produção em massa por parte dos componentes dos Titãs, na produção do
LP Cabeça Dinossauro, trouxe à banda Titãs muitas opções de repertório na época,
mas causou problemas para um dos membros do grupo, Nando Reis. Esse estava
cada vez mais distante do processo de produção e, por conseguinte, se afastando
dos integrantes do grupo. Ao observar que Nando não compusera nada ainda para
o novo disco, o titã, hoje falecido, Marcelo Fromer cobrou-lhe, de forma austera mais
participação nas composições.
E assim nasceu “Igreja”. Nando Reis foi para a casa dos pais, no Butantã, e
compôs a letra da música, inspirada a partir da declaração do cantor Roberto Carlos
acerca do filme Je Vous Salue, Marie, de Godard. O baixista juntou a indignação à
posição do cantor, adicionou seu ateísmo e, em uma hora, compôs a letra:
IGREJA
Nando Reis
Eu não gosto de padre
Eu não gosto de madre
Eu não gosto de frei
Eu não gosto de bispo
Argumentação e Linguagem Capítulo 8 107
Eu não gosto de Cristo
Eu não digo amém
Eu não monto presépio
Eu não gosto do vigário
Nem da missa das seis
Eu não gosto do terço
Eu não gosto do berço
De Jesus de Belém
Eu não gosto do Papa
Eu não creio na graça
Do milagre de Deus
Eu não gosto de igreja
Eu não entro na igreja
Não tenho religião
“Igreja” abriu uma polêmica no grupo, em que a música dividiu a banda. A razão
da resistência era de cunho moral. Os versos elencados foram recebidos como
genialidade pela maior parte do grupo, mas Paulo Miklos e Arnaldo Antunes recearam
o conteúdo. Na ocasião, Arnaldo alegou se sentir tão desconfortável em cantar “eu não
gosto de Cristo”, como se sentiria se cantasse o contrário.
O título da letra “Igreja” já faz clara alusão à instituição religiosa, que, a um
primeiro olhar, poderia remeter o interlocutor às igrejas diversas que compõem o corpo
religioso do país. No entanto, os primeiros versos “Eu não gosto de padre/Eu não
gosto de madre/Eu não gosto de frei/Eu não gosto de bispo/Eu não gosto de Cristo/
Eu não digo amém” trazem um dialogismo entre aqueles que conhecem os ideários da
Igreja Católica, maior parte da população brasileira, e o autor da letra da canção, bem
como os que a cantavam.
Em “Eu não monto presépio/Eu não gosto do vigário/Nem da missa das seis/
Não!/Não!”, percebe-se um posicionamento social valorativo do discurso ao atacar um
costume cristão, majoritariamente católico, o presépio, referência cristã, que remete
ao nascimento de Jesus, na companhia de São José e da Virgem Maria. É, portanto, o
presépio, um costume natalino, visto fazer alusão ao nascimento de Cristo.
Assim, percebe-se uma afronta, por parte da letra, às regras impostas pela
tradicional Igreja Católica, por intermédio dos rituais que nela ocorrem.Aletra, composta
no ano de 1985, comprova que nem toda a parcela da população concordava com
os ideários cristãos católicos, mas até então, se calava. Por meio dos versos, que
talvez fizessem parte de solilóquios de outros eus, ocorre a produção desse discurso,
carregado de dialogismo entre locutor e interlocutor, com vozes repletas de valor
ideológico. Isso se confirma em “Eu não gosto do terço/Eu não gosto do berço/De
Jesus de Belém/Eu não gosto do Papa/Eu não creio na graça/Do milagre de Deus/Eu
não gosto da igreja/Eu não entro na igreja/Não tenho religião/Não!/Não!/Não gosto!/Eu
Argumentação e Linguagem Capítulo 8 108
não gosto!/Não!/Não gosto!/Eu não gosto!”
A repetição excessiva da palavra “Não”, em consonância com o sujeito “eu”, bem
como da conjugação dos versos em primeira pessoa trazem à tona a configuração
de que, bem como em “Polícia”, há, novamente um clamor de vozes que gritam pelo
repensar, dessa vez, acerca da imposição religiosa feita por uma instituição.
Tem-se, portanto, em “Igreja”, a leitura crítica de uma realidade, abarcada em
palavras excluídas de ornamentação, que retrata, implícita e explicitamente, uma série
de acontecimentos sociais e históricos que espelham posições ideológicas. Ocorre,
desse modo, uma relação de alteridade, na qual o sujeito se encontra em meio às
divergências sociais, no caso, as imposições religiosas, e a elas responde.
4 | 	“SENHOR” E A CONCEPÇÃO RELIGIOSA DOS ANOS 2010
Trinta anos após a letra de “Igreja”, a banda Titãs compõe “Senhor”,
correlacionando, em seu enunciado o contexto histórico de outra época, mas expondo
valorações que ainda contrapõem o ideário religioso constante nos anos 1980:
SENHOR
Tony Bellotto
Senhor!
Não me livre do pecado
Me livre da culpa
Senhor!
Não me livre do perigo
Me livre da multa
Senhor!
Não me livre do inferno
Me livre do tédio
Senhor!
Não me livre da loucura
Me livre do remédio
Querem meu dinheiro
Querem meu salário
Um santo no espelho
Uma sombra no armário
Senhor!
Não me livre do desejo
Me livre do medo
Senhor!
Não me livre da mentira
Me livre do segredo
Argumentação e Linguagem Capítulo 8 109
Senhor!
Não me livre da revolta
Me livre do castigo
Querem meu dinheiro
Querem meu salário
Um santo no espelho
Uma sombra no armário
O pão nosso de cada dia
Me dê de graça
Assim na terra como no céu
A mesma desgraça
Querem meu dinheiro
Querem meu salário
Um santo no espelho
Uma sombra no armário
Senhor!
Em 2015, a música “Senhor” foi lançada no CD Nheengatu pela banda Titãs.
Composta por Toni Bellotto, na letra, há a crítica direta à exploração de fiéis por parte
de grupos religiosos. A alusão à Igreja Católica, encontrada em “Igreja” se repete
novamente, dessa vez, com referências claras às questões de pecado e culpa impostos
pelo Catolicismo, bem como à oração “Pai Nosso”.
Desse modo, a faixa “Senhor”, em 2015 traz à baila uma repaginação de “Igreja”,
composta em meados dos anos 1980. Nos anos 1980, a Igreja Católica Apostólica
Romana tinha como Papa João Paulo II, Karol Jósef Wojtyla, polonês santificado em
2011, eleito em 1978 e pontificado até o ano de 2005, na ocasião de sua morte. Seu
sucessor, Bento XVI, 265º. Papa, teve seu Papado durante sete anos, até fevereiro
de 2013, quando renunciou. Substituído pelo atual Papa Francisco, primeiro pontífice
não europeu, trouxe ao tradicionalismo da Igreja Católica um impulso modernizador,
inclusive ao gravar um disco com uma banda de rock progressivo, Le Orme, cujo título
é Wake Up. Ainda que suas concepções sejam tradicionalistas por evidência, trouxe
mais abertura aos ideários do Catolicismo.
Nesse âmbito, embora a tradicional instituição da Igreja tenha passado por
alterações, em função da troca de dirigentes e da questão temporal, as imposições
religiosas em relação ao pecado, à culpa, ao inferno e ao castigo continuam as
mesmas. A abordagem da letra de “Senhor” soa diferente da de “Igreja”, no sentido de
que, em Igreja, existem as afirmações do que o “eu” não gosta e não quer (“Eu não
gosto de padre... “Eu não creio na graça do milagre de Deus...”) e, em “Senhor”, ocorre
uma espécie de diálogo com Deus, entre o “eu” e o “tu”,por meio do coletivo, como se
fossem múltiplas vozes convidando a uma reflexão acerca das imposições tratadas
na letra. Ainda que as letras apresentem essas convergências, ambas divergem na
Argumentação e Linguagem Capítulo 8 110
concepção acerca dos imperativos católicos.
As imposições da instituição católica trazem os elementos afins em “Igreja” e
“Polícia”. Em “Senhor”, os versos: “Senhor, Não me livre do pecado, Me livre da culpa”,
mostram uma reação do “eu” ao “outro” de cunho dialógico, inconclusível, visto que
há um clamor do “eu”, mas não se sabe se esse clamor há de ser atendido. Cabe
ressaltar que o “Senhor”, nesse âmbito, seria uma espécie de “ponte” representada
pela Igreja, vez que é a entidade a transmissora dos preceitos acerca do pecado.
Nesse sentido, há de se ressaltar a presença no discurso na letra de música
de vários enunciados, alternados entre réplicas. Isso ocorre especialmente na letra
de “Senhor”, por meio da paródia, em: “O pão nosso de cada dia nos dê de graça/
Assim na terra como no céu a mesma desgraça...”. Há, aqui, portanto, a refração
de comportamentos humanos por meio de uma interação dialógica, já que, além da
descrita do mundo, há a presença dos interesses e valores do “eu”.
Na perspectiva bakhtiniana de que cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias
de outros enunciados, buscamos, na letra de “Senhor”, um potencial significativo para
retratar o campo humano na visão do “eu” em relação à Igreja, aqui tida como coercitiva.
Infere-se, portanto, que o discurso aqui descrito não é vazio de valores ideológicos.
Senhor!
Não me livre do pecado
Me livre da culpa
Senhor!
Não me livre do perigo
Me livre da multa
Senhor!
Não me livre do inferno
Me livre do tédio
Senhor!
Não me livre da loucura
Me livre do remédio
Nas primeiras estrofes que compõem “Senhor”, observam-se, em primeiro plano,
contraposições entre aquilo de que o “eu” precisa se livrar e aquilo que a religião
propõe a ele como libertação. As ideias de pecado, perigo, inferno e loucura são
substituídas pela culpa, pela multa, pelo tédio e pelo remédio. Encontra-se aqui uma
clara descrença no discurso autoritário religioso sobre pecado e perdão.
A formação simbólica de crenças e ideias proposta pela Igreja Católica se desfaz,
nos versos anteriores e a mesma ideia surge nos versos seguintes, trazendo as
angústias, agora sociais, de um indivíduo comum, que se sente usurpado, perseguido
e oprimido:
Argumentação e Linguagem Capítulo 8 111
Querem meu dinheiro
Querem meu salário
Um santo no banheiro
Uma sombra no armário
Querem meu dinheiro
Querem meu salário
Um santo no espelho
Uma sombra no armário
Nos versos acima, ainda que implicitamente, encontramos vozes que abordam
conjuntura entre Estado e Igreja. As questões relacionadas a dinheiro e salário,
questões relativas ao capital privado, se fundem com a presença do santo e da
sombra, elementos religiosos de opressão e repressão. Entende-se, aqui, que a
proteção advinda das forças superiores supostamente oferecidas pelo viés católico
não ocorrerá, pois o “santo” e a “sombra” se fundem àqueles que querem o dinheiro e o
salário do “eu”. Aqui, códigos católicos dialogam com códigos estatais. Cabe ressaltar
que ocorre crítica, nesse ponto, explicitada às religiões neopentecostais, em função do
dinheiro como elemento mediador na relação com o sagrado, cuja função é multiplicar
bênçãos materiais àqueles que o santificam, de acordo com os propósitos da Teologia
da Prosperidade.
Os versos seguintes retomam os iniciais, agora com uma abordagem inerente a
outras considerações tidas como pecaminosas pela instituição religiosa ora analisada:
têm-se aqui os ideários de desejo, mentira, abismo e revolta:
Senhor!
Não me livre do desejo
Me livre do medo
Senhor!
Não me livre da mentira
Me livre do segredo
Senhor!
Não me livre do abismo
Me livre do abrigo
Senhor!
Não me livre da revolta
Me livre do castigo
O avesso da oração aqui pousa, justamente, no sentido de que aquilo que a
Igreja traz como elementos de culpabilidade, desejo, mentira, abismo e revolta não
são vistos como esquerdos, mas o medo, o segredo, o abismo e o castigo, esses, sim,
são temidos pelo cidadão comum, que se vê às voltas do medo dessas punições.
Argumentação e Linguagem Capítulo 8 112
Por fim, a letra de “Senhor” confirma a oração às avessas, por meio do tradicional
“Pai Nosso”, mostra-nos uma voz que se multiplica em vozes sociais, que entendem
que a imposição da corporação religiosa só cumpre fazer sentido caso o pão nosso
de cada dia seja dado de graça, não cotidianamente, em troca do não-pecar e que
a vontade de Deus, assim na terra, como no céu, não se faz presente, visto haver a
mazela da desgraça em ambos:
O pão nosso de cada dia
Me dê de graça
Assim na terra como no céu
A mesma desgraça
Aqui, por meio da voz do autor, os versos de “Senhor” mostram um olhar comum,
que vê as coerções religiosas como a presença de algo que não faz sentido se visto
como punição, através de um órgão detentor do poder, mas que traria efetividade se o
livrasse dos resultados advindos das ações negativas. Do mesmo modo, encontramos
as mesmas constatações em “Senhor”. Assim, compreendemos que entre ambas as
letras há a afinidade de elementos que vigem no catolicismo, mesmo que apartados
em termos cronotópicos, mantendo relações dialógicas. De acordo com o fundamento
católico, não se deve agir contra os preceitos do padre, da madre, do frei, do bispo, do
Cristo, deve-se cultivar o Pai-Nosso, deve-se fugir do pecado e do inferno. No entanto,
a voz presente nas letras nega essas imposições e reza Pai-Nosso de acordo com as
suas necessidades e, assim, entende que o livramento deve ocorrer em relação ao
medo, ao castigo e ao tédio.
5 | 	CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo, tivemos como proposta mostrar como as letras“Senhor” e “Igreja”
trazem, nessa união de vozes algo de aproximação entre homem e Igreja. Nesse
sentido, emanam duas respostas: sim e não. Ainda que existam negações sobre as
ordens religiosas, não há a negação da ideia da presença dos ideários do catolicismo,
visto que a voz do autor pede ao ser supremo que o mantenha sob seus cuidados,
mas mantendo-o longe de outras culpas, não as impostas pelo bispo e pelo Cristo.
Assim, percebe-se que as letras aqui analisadas carregam consigo relações
dialógicas, já que as ideologias religiosas se cumprem presentes, mas também há
diferenças, em função das alterações sociais marcadas pelo tempo-espaço da
produção das composições. Nesse sentido, vivenciam-se situações sociais distintas
em ambas as letras, mas que se unem frente à força da imposição social religiosa.
Portanto, a questão da obediência, do medo e do pecado se fazem presentes em
“Igreja” e “Senhor”, por meio da ideia de que a instituição religiosa traz consigo forças
centrípetas que regulam a obediência através de ideias previamente instauradas no
Argumentação e Linguagem Capítulo 8 113
corpo social.
Daí, a produção do cenário underground paulista evidencia vozes separadas no
tempo e no espaço e trazem questões acerca do temário religioso. Desse modo, torna-
se clara a necessidade da discussão da temática das imposições institucionais sem
que o cidadão tenha direito à defesa sobre a primazia de suas escolhas.
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Capítulo 9 114Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 9
FICÇÃO E MEMÓRIA EM SIMÁ: ROMANCE
HISTÓRICO DO ALTO AMAZONAS, DE LOURENÇO
DA SILVA ARAÚJO
Daniel Padilha Pacheco da Costa
Universidade Federal de Uberlândia, UFU, Brasil.
E-mail: dppcosta@hotmail.com.
Este capítulo é uma versão abreviada do seguinte
artigo: Mito e história no “romance épico” Simá
de Lourenço da Silva Araújo e Amazonas. Esse
foi publicado no dossiê “História e Literatura” da
Revista Diálogos, Maringá, v. 23, n. 2, 2019.
RESUMO: Este artigo propõe caracterizar Simá:
romance histórico do Alto Amazonas (1857), de
Lourenço da Silva Araújo e Amazonas, como
um “romance épico”, entendido como uma
variante do romance histórico distinta da escola
hegemônica representada por José Alencar.
Esse romance, cujos modelos literários são
a Ilíada e a Eneida, elege o rapto da mestiça
Simá, chamada de “Helena do Rio Negro”, como
a causa imediata da Rebelião de Lamalonga
(1757). O romance narra, no plano histórico, o
massacre da nação indígena dos Manau pela
armada portuguesa e, no plano individual, o
destino trágico da heroína, apresentada como
uma vítima inocente do conflito entre Portugal
e Espanha. A forma desse pioneiro romance
do indianismo brasileiro é, paradoxalmente,
inseparável daquela utilizada pelas epopeias
anteriores, ao contrário do que sugere a
definição de romance histórico por Lukács.
PALAVRAS-CHAVE: Romance histórico;
“Romance épico”; Indianismo Romântico; Simá;
Lourenço da Silva Araújo e Amazonas.
O romance histórico: uma forma híbrida
Na teoria literária, há um relativo consenso
sobre a existência de uma forma literária híbrida
que, chamada de romance histórico, mistura
ficção e história. No entanto, esse relativo
consenso se dissolve tão logo se procura
definir essa forma. Como afirma Jameson
(2007) no artigo intitulado O romance histórico
ainda é possível?, essa forma seria, para a
visão popular, a representação de eventos
históricos grandiosos; para a concepção tão
veementemente criticada por Tolstói (2017), a
história privada das grandes figuras históricas;
para Manzoni (1840), a descrição dos costumes
e valores de um povo em um determinado
momento de sua história; para Sartre (1952),
a história das vidas de indivíduos comuns em
situações de crise extrema; e, para o próprio
Jameson (2007, p. 192), “a oposição entre um
plano público ou histórico (definido seja por
costumes, eventos, crises ou líderes) e um
plano existencial ou individual representado por
aquela categoria narrativa que chamamos de
personagens”.
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 115
Em um dos estudos mais exaustivos sobre essa forma literária, O romance
histórico (2011), György Lukács retoma o paralelo entre a epopeia antiga e o romance
moderno, paralelo esse que, desde sua obra de juventude ATeoria do Romance (2000),
definia o romance como uma “epopeia burguesa”. Para o teórico húngaro, ambas as
formas visam a totalidade, mas, no romance, essa totalidade não é mais evidente,
mas se torna problemática, consciente de seu próprio devir. Em O romance histórico,
sua primeira obra importante a promover um tratamento materialista da história da
literatura moderna, Lukács (2011, p. 10) reformula a noção de totalidade, anteriormente
abstrata, como “totalidade concreta em devir”. Nesse sentido, a forma do romance
histórico não é considerada um (sub)gênero funcionalmente distinto do romance, mas
a expressão mesma do sentido de historicidade que, surgido na modernidade, resulta
de um progressivo distanciamento entre experiência e expectativa (KOSELLECK,
2006).
Depois de reconstituir as condições sócio-políticas do surgimento do romance
histórico, o teórico húngaro elege Walter Scott como o grande criador dessa nova
forma, já em seu primeiro romance Waverley (1814). Walter Scott foi um importante
modelo para um grande número de romancistas, como Alessandro Manzoni, Victor
Hugo, Alfred de Vigny, Honoré de Balzac, Alexander Púchkin, Alexandre Herculano e
Almeida Garrett, dentre outros. Depois de citar o crítico russo Vissarion Belinski, que
enfatiza o caráter épico dos romances do escritor escocês, Lukács (2011, p. 52) inclui
dois autores nessa linhagem scottiana: “Em toda a história do romance histórico quase
não existem obras que se aproximem tanto do caráter da antiga epopeia [quanto Scott],
talvez com exceção das de Cooper e Tolstói”. Por mais próximos que sejam da antiga
epopeia, os romances históricos de Scott, Tolstói e Cooper são todos considerados a
expressão desse tempo novo surgido na era moderna.
No Brasil, os primeiros romances históricos são publicados somente na década de
1840, como evidenciam Um Roubo na Pavuna (1843), de Azambuja Suzano, Jerônimo
Barbalho Bezerra (1845) e A Guerra dos Emboabas (1846), ambos de Vicente Pereira
de Carvalho Guimarães, e Gonzaga ou A Conjuração de Tiradentes (1848-1851), de
Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa. Como afirma Antônio Cândido (1975, p. 109), o
romance histórico “só brilhou realmente no Brasil romântico entre as mãos de Alencar,
em O Guarani e As Minas de Prata, misturando-se ao indianismo”. Essa mesma
sobreposição, salientada pelo crítico brasileiro, entre os conceitos historiográficos de
romance histórico e de indianismo romântico seria, então, adotada por uma inteira
geração de escritores brasileiros. Até o final do Segundo Reinado, o indianismo será
um tema revisitado por diversos romancistas históricos, como Alfredo Taunay, Franklin
Távora, Bernardo Guimarães, dentre outros.
Contra os indianistas da primeira fase, que valorizavam particularmente a
dimensão épica (SUSSEKIND, 1994), José de Alencar promove seu programa literário
que, exposto nas Cartas sobre a confederação de Tamoios (1856), é imediatamente
aplicado pela sua trilogia de romances indianistas. Considerando a exaltação do
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 116
heroísmo nacional anacrônico em relação à ideologia conciliatória afirmada no
Segundo Reinado (SOMMER, 2008), ele defende a mestiçagem como a solução para
fundar a unidade nacional sobre o poder exclusivo da elite agrária. Para escrever
aqueles romances, José de Alencar se inspira em modelos anglosaxões, como Walter
Scott e James Cooper, e franceses, como Honoré de Balzac, Alexandre Dumas (pai) e
François-René de Chateaubriand. Sua concepção de romance histórico torna-se a tal
ponto hegemônica na literatura brasileira que a “crítica tem limitado obstinadamente
sua análise do “indianismo” a um único autor”, como afirma Treece (2008, p. 17).
Neste artigo, pretende-se analisar uma obra que, tendo permanecido praticamente
desconhecida até sua reedição em 2003, pode ser considerada o primeiro romance
em português sobre a Amazônia – Simá: romance histórico do Alto Amazonas (1857),
de Lourenço da Silva Araújo e Amazonas. (O primeiro romance sobre a Amazônia e,
até mesmo, sobre o Brasil, intitulado Frey Apollonio – roman aus Brasilien, erlebt und
erzählt von Hartoman: nach der handschriftlichen Urschrift von 1831, foi escrito em
alemão pelo botanista Karl Friedrich Philipp von Martius em 1831). Aquela obra de
Lourenço da Silva Araújo é, juntamente com seu contemporâneo O Guarani (1857), de
José de Alencar, publicado no mesmo ano, o primeiro romance histórico do indianismo
Romântico brasileiro. Pretende-se mostrar que a forma daquele pioneiro romance
do indianismo nacional é, paradoxalmente, inseparável da encontrada nas epopeias
anteriores, ao contrário do que sugere a definição proposta por Lukács (2011) para o
romance histórico europeu e norte-americano.
A obra de Lourenço da Silva Araújo
Lourenço da Silva Araújo (1803-1864) nasceu na Capitania da Bahia, onde fez
seus estudos primários e de humanidades. Em 1815, Araújo se mudou para o Rio de
Janeiro, então a capital do Império português, e se inscreveu no curso da Academia da
Marinha. Durante sua carreira militar, serviu na Guerra do Prata e tornou-se Capitão-
Tenente da Armada. Foi nomeado comandante Militar da Comarca do Alto Amazonas
em meados do século XIX. Participou de comissões na Província do Pará e conduziu
pesquisas pioneiras na Província do Amazonas, tornando-se membro correspondente
do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB). Seu longo período na Amazônia
rendeu dois livros e diversos artigos jornalísticos. Esses artigos foram publicados no
Jornal do Comércio, como os dois números de Navegação do Amazonas (1849) –
nos quais Araújo responde a dois artigos publicados com o mesmo título no Jornal
do Comércio nos dias 10 e 22 de setembro de 1849 – e os diversos números de sua
Memória sobre uma marinhagem de guerra para guarnição da armada imperial (1854).
Obra etnográfica, geográfica e histórica, o primeiro livro escrito por Araújo –
o Diccionario topográfico, histórico e descriptivo da Comarca do Alto-Amazonas
(1852) – foi publicado nos anais do IHGB. Cinco anos mais tarde, Araújo publicou
Simá: romance histórico do Alto Amazonas (1857). Simá não trata da Província do
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 117
Amazonas em meados do século XIX (época em que foi escrito), como o Diccionario,
mas recua um século antes para narrar um episódio militar que, ocorrido naquela
região, opôs a Coroa espanhola e a portuguesa (bem como seus respectivos aliados
indígenas) no período subsequente ao Tratado de Madrid (1750). Também escreveu
um Dicionário Túpico-Português e Português-Túpico, cujo manuscrito, doado pela sua
família ao IHGB, foi submetido ao parecer de Braz da Costa Rubim, que se manifestou
contrariamente à sua publicação. A obra permanece inédita (FREIRE, 2003).
Quando escreveu Simá, Araújo certamente estava familiarizado com a ideologia
da mestiçagem, defendida pela dissertação de Martius sobre Como escrever a história
do Brasil (1847), que venceu o prêmio do IHGB. Apesar do tino demonstrado por
Araújo ao eleger uma heroína mestiça para seu primeiro (e único) romance, Simá não
gozou sequer de uma ínfima parte do sucesso alcançado por O Guarani. O silêncio que
acompanhou a publicação de Simá é tanto mais surpreendente quando se considera o
profundo conhecimento que seu autor tinha da Amazônia e de sua história, resultante
de sua longa experiência como militar e pesquisador na região.
O Guarani foi o primeiro de uma trilogia de romances indianistas, juntamente com
Iracema (1865) e Ubirajara (1874). Essa trilogia é dotada de profunda verossimilhança
histórica, fortalecida pelo uso sistemático de notas de pé de página. Da mesma forma
que Simá, que contém 65 notas, a trilogia de romances indigenistas deAlencar também
fazem amplo uso desse recurso: O Guarani contém 59 notas, Iracema 128 notas e
Ubirajara 67 notas. Baseadas em informações históricas de cronistas, viajantes e
historiadores, as notas de todos esses romances permitem esclarecer, referenciar e
instruir a respeito da história colonial de longínquas Províncias do Império do Brasil
(RAMOS, 2015; MOSCATO, DENIPOTI, 2013).
Iracema é o único romance daquela trilogia cuja protagonista é uma mulher,
caracterizada por meio da notação “a virgem dos lábios de mel” (ALENCAR, 1959,
p. 5). As personagens de Iracema e Simá possuem traços comuns, como a beleza
e a virgindade, e seus nomes próprios significam, respectivamente, “lábios de mel”
(em guarani) e “sol” (na língua da nação Xomana). Ambas participam de um triângulo
amoroso no qual são pretendidas por um índio e por um europeu: a mestiça Simá
pelo guerreiro manau Domingos e pelo explorador português Régis, e a índia tabajara
Iracema pelo guerreiro potiguara Irapuã e pelo explorador português Martim. O tema
da mestiçagem entre uma índia e um branco é retomado pela novela Ierecê, a Guaná
(2000), de Alfredo Taunay. Como se deduz a partir de suas Memórias (s.d.), o Visconde
de Taunay se inspira, nessa novela, em sua própria experiência amorosa com a índia
Antônia, da tribo Guaná, no Mato Grosso em 1866, durante a Guerra do Paraguai.
O Guarani e Simá são ambos concluídos pela representação literária de
conflagrações militares situadas no passado colonial: aquele narra o conflito ocorrido
com a nação indígena dosAimoré em 1604, e esse o massacre pela armada portuguesa
da Rebelião de Lamalonga, em 1757. No entanto, a importância do episódio militar é
muito maior em Simá. Como Araújo deixa claro ao citar, no primeiro capítulo do seu
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 118
romance, duas epopeias antigas, a Ilíada e a Eneida, são seus modelos literários:
“Onde nenhum de seus naturais havia ainda lido nem a Ilíada nem a Eneida, para
saberem, por causa de uma bela se queimara uma cidade, houve um Menelau,
genuinamente Manaus” (ARAÚJO, 1857, p. 6). Com efeito, a própria estrutura do
romance de Araújo é retirada dos enredos da epopeia grega e da romana, já que
o romancista bahiano estabelece uma analogia direta entre as causas imediatas da
Guerra de Troia e da Rebelião de Lamalonga – quais sejam, os raptos de Helena e de
Simá, respectivamente.
À diferença da épica grega Ilíada, de Homero, que é relatada da perspectiva dos
gregos vitoriosos, Araújo narra seu romance da perspectiva da nação dos Manau –
que, massacrada pelos colonizadores, é identificada aos troianos perdedores –, não
da perspectiva dos portugueses, que, vitoriosos, são associados aos gregos. O ponto
de vista dos perdedores também é adotado por obras antigas, como a tragédia Os
Persas (2013), de Ésquilo. Depois do próprio Araújo, Alfredo Taunay e Euclides da
Cunha retomariam o mesmo procedimento em La Retraite de Laguna: récit de la guerre
du Paraguay, 1864-1870 (que foi publicado originalmente em francês em 1871) e Os
Sertões (1902), respectivamente. Para relatar a derrota e retirada do Exército brasileiro
de Laguna, durante a Guerra do Paraguai, Taunay se baseia no relato historiográfico A
retirada dos dez mil (2014), do historiador e militar grego Xenofonte. Da mesma forma,
Euclides da Cunha retoma diversos historiadores antigos e modernos para narrar o
massacre da comunidade bahiana de Canudos pelo exército brasileiro no início da
República Velha (1889-1930).
Embora não se baseie em experiências pessoais, como La Retraite de Laguna
(1871) e Os Sertões (1902), Lourenço da Silva Araújo também foi militar, como os
autores desses dois relatos históricos, e seu relato trata de um conflito armado do
exército brasileiro – não durante o Império nem a República, como cada uma daquelas
duas obras, respectivamente, mas durante a Colônia. Toda a obra de Araújo trata da
história colonial da Comarca do Alto Amazonas. Esse toponímico é, inclusive, utilizado
no título dos dois livros escritos pelo autor, ambos situados no mesmo cenário,
designado atualmente como Médio Solimões. Ao conferir um tratamento literário a
um evento histórico, Araújo mistura mito e história, como é característico do romance
histórico. Para compreender o tratamento literário dado por ele à história, é estudada,
a seguir, a maneira pela qual Simá retoma a história da Comarca do Alto Amazonas,
segundo a exposição dessa história realizada pelo próprio Araújo em seu Diccionario.
As ruínas da História
Por meio da Lei imperial n.º 582, de 5 de setembro de 1852, o imperador D. Pedro
II criou a Província do Amazonas no território onde, então, localizava-se a Comarca do
Alto Amazonas. Nesse mesmo ano, foi publicado o Diccionario topográfico, histórico
e descriptivo da Comarca do Alto-Amazonas, cujo prólogo afirma que, quando a
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 119
Província foi criada, seu livro acabara de ser redigido, mas ainda não fora publicado.
Araújo decide não substituir as menções à Comarca por Província, por mais fácil
que fosse fazê-lo, e isso por dois motivos, ambos de ordem histórica. Em primeiro
lugar, para evitar o anacronismo, já que a menção à recém-criada Província induziria
o leitor ao erro de pensar que a organização política e institucional daquela região já
estava “montada”, quando, na verdade, isso só começaria a ser feito depois de criada
(ARAÚJO, 1852, p. 5). Em segundo lugar, para conferir valor histórico a seu livro, pois
considera que, em meados do século XIX, todos sabiam o que era uma Província, mas
não necessariamente o que era uma Comarca. A manutenção dessa referência chama
a atenção para o fato de que sua descrição da organização política e institucional da
Comarca do Alto Amazonas está interessada em explicar a história daquela região até
o momento presente, a fim de melhor orientar seus futuros desdobramentos.
O Diccionario constitui um inventário ou catálogo das características da Comarca
do Alto Amazonas, descrevendo a hidrografia, as cidades, os minerais, a população,
as línguas, o clima, a orografia, a fitologia, a zoologia, a religião, a agricultura, a
manipulação, o comércio, a divisão civil, a administração, a força e fortificação, etc.
Por um lado, a organização em verbetes permite oferecer uma definição de tudo
o que está contido no interior daquele território. Por outro, a função denotativa da
linguagem cria o próprio território por meio da nomeação de tudo o que o constitui,
segundo a relação metonímica entre continente e conteúdo. O Diccionario descreve
precisamente as diferentes características físicas, botânicas, zoológicas, linguísticas,
políticas, econômicas, técnicas, institucionais, geográficas, geológicas e etnográficas
dessa região estratégica do território jurídico do Estado brasileiro durante os primeiros
anos Segundo Reinado do Império (1840-1889).
Um dos primeiros verbetes do Diccionario oferece não apenas a definição das
especificidades da administração de uma Comarca, como também pretende delimitar
“qual a conveniência da categoria atual” (ARAÚJO, 1852, p. 105), tendo em vista as
necessidades trazidas pelo presente. A visão de Araújo sobre a criação da Província
do Amazonas se situa no interior de um projeto político-ideológico nacionalista que,
formulado pelo principal instituto científico do Segundo Império – o IHGB –, era
definido pela etiqueta “História Nacional”. A reflexão histórica visa oferecer subsídios
para estabelecer os novos contornos que sua administração deverá receber na
recém-criada Província. Um exemplo é a longa descrição feita por Araújo (1852) do
Projeto de regimento para um diretório. O “Regimento do diretório dos índios” foi uma
lei promulgada em 1755 pelo rei de Portugal D. José I para gerir os aldeamentos
indígenas, depois que Pombal expulsou os jesuítas da colônia sul-americana.
Principal instituição política existente em uma “sociedade lassa da administração”,
o diretório foi o instrumento utilizado pela metrópole portuguesa para pacificar e
cristianizar os indígenas, conservando-os “unidos ao resto da sociedade” (ARAÚJO,
1852, p. 105). Segundo Araújo (1852), com a promulgação daquela lei, os jesuítas
se aliaram à Coroa espanhola, valendo-se de sua influência nas antigas missões
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 120
(transformadas em vilas e aldeias pelo diretório) para estimular perturbações nas
tribos indígenas situadas sobre o território nacional, como a retirada dos indígenas
de Mariuá e São Paulo, o levante e deserção da tropa de Mariuá e a rebelião de
Lamalonga, Caboquena e Bararoá. Assim como José Bonifácio (1923), Araújo (1852,
p. 105) lamenta que “essa importante instituição” não tivesse sido unida, desde o início,
às missões, pois a centralização dos regulamentos, dos missionários e do diretor sob
as ordens de um só presidente teria evitado “o malogro de tantos esforços da parte
dos Missionários”.
As mesmas características gerais da Comarca do Alto Amazonas, descritas
em seu Diccionario, permitem situar o cenário em que se desenrola a ação histórica
de Simá. Esse romance ilustra o diagnóstico feito pela obra anterior a respeito dos
conflitos existentes naquela região durante o período colonial, tratando da principal
revolta ocorrida na Comarca do Alto Amazonas durante o século XVIII: a Rebelião
de Lamalonga. Em Simá há um lapso temporal entre o presente e o passado da
narração, já que o tema de seu relato histórico remonta exatamente um século antes.
O Diccionario se volta para a estrutura administrativa e jurídica da Comarca do Alto
Amazonas, que regulamentou o poder da metrópole portuguesa sobre sua colônia. O
cenário de Simá não é apresentado como um território integrado ao nascente Estado
Nacional, como acontece no Diccionario, mas como uma zona de disputas entre os
interesses estratégicos das Coroas portuguesa e espanhola no período anterior à
independência.
Enquanto o Diccionario se concentra na descrição do espaço, o romance situa
esse território no interior de um eixo temporal. Da mesma forma que o Diccionario
pressupõe a história colonial da região narrada pelo romance, Simá o faz com o
território descrito no Diccionario. As duas partes da obra de Araújo, representadas por
esses dois livros, são inteiramente complementares, já que o primeiro visa descrever
a Província do Amazonas como um território político-jurídico do recém-criado Estado
Nacional, enquanto o segundo inclui esse território em um momento histórico preciso.
No romance histórico,Araújo apresenta, assim, uma versão nacionalista da Rebelião de
Lamalonga, na qual os portugueses, anacronicamente identificados aos “brasileiros”,
protegeram a nação contra o estrangeiro e foram os heróicos defensores da unidade
nacional e de sua integridade territorial, segundo o projeto político-ideológico promovido
pelo IHGB, ele mesmo patrocinado pelo poder imperial.
A matéria histórica de Simá
Já na primeira linha de Simá, o narrador se dirige ao leitor para convidá-lo a se
imaginar, a partir do romance, como um viajante pelo rioAmazonas, evocando o gênero
do relato de viagem praticado pelos exploradores europeus: “Suponde-vos de viagem
pelo Amazonas” (ARAÚJO, 1857, p. 3). Situando o presente da enunciação um século
depois do evento tratado no romance, o narrador assume a posição de um historiador,
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 121
como evidencia a utilização da metáfora da tapera para se referir a sua relação com o
tema da obra. No Diccionario, o autor associa a tapera às ruínas: “Tapera: As ruínas
de huma povoação de envolta com o crescente matto, que as invade e substitue”
(ARAÚJO, 1852, p. 340). Em Simá, Araújo (1857, p. 4) elenca três causas possíveis
para o abandono da povoação vista à margem do rio Amazonas: a perseguição aos
Muras, a praga do carapanã e “modernamente, a revolução de 1835” [a Cabanagem].
No Diccionario, os Muras são caracterizados por uma “indiferença pela civilização”
(ARAÚJO, 1852, p. 335). Araújo (1852, p. 207) faz um grande número de referências
e dedica um verbete aos Mura que, “muito tempo infensos [...] submeteram-se em
1785 em Maripi, tratando paz com o seu Director Mathias José Fernandes”. Uma das
principais fontes de Araújo sobre os Mura na segunda metade do século XVIII é o diário
de viagem à Capitania do Rio Negro de seu Intendente Geral, Francisco Xavier Ribeiro
de Sampaio, que os denomina de “gentio de corço” (SAMPAIO, 1825, p. 12), pois
habitavam os densos bosques e grandes lagos do Rio Madeira – e faziam frequentes
emboscadas aos colonos, impedindo seu estabelecimento na região. Metaforizada
pela imagem da tapera, sua visão sobre as diferentes nações indígenas reflete
a concepção “decadentista” sobre os índios que, defendida no IHGB da época por
importantes historiadores, como Martius (1847), por exemplo, considerava-os como
inevitavelmente fadados ao desaparecimento. Era justamente essa concepção que
justificava as pesquisas etnográficas promovidas pelo IHGB, cuja missão era indicar o
lugar dos índios na História Nacional (KODAMA, 2009).
A referência aos Muras é particularmente significativa, pois o cenário de Simá é
exatamente o mesmo que o da epopeia Muhuraida ou Triunfo da fé na bem fundada
Esperança da inteira Conversão, e reconciliação da Grande, e feróz Nação do Gentio
Muhúra (1785), de Henrique João Wilkens. Dedicada ao Governador das capitanias do
Grão-Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas – a quem Wilkens considerava o principal
promotor da rendição dos Mura –, a Muhuraida é a primeira composição poética escrita
sobre o contato entre portugueses e indígenas na Amazônia. O manuscrito dessa
epopeia recebeu sua primeira edição em 1819, a cargo do padre português Cypriano
Pereira Alho. A vida de Wilkens possui diversos pontos em comum com a de Araújo:
Wilkens participou, a serviço da Coroa portuguesa, das comissões de demarcação
nos sertões amazônicos, que, definindo os limites entre os territórios das Coroas
portuguesa e espanhola, redundaram no Tratado de Madrid (1750).
Nessa epopeia, Wilkens (2017) não considera a guerra de extermínio conduzida
pelos portugueses à “abominável, feroz e indomável” nação indígena dos Mura –
habitantes da região próxima à atual cidade de Tefé (AM), no Médio Solimões – apenas
uma guerra por território. Da mesma forma que acontece na epopeia quinhentista
Os Lusíadas (2000), de Luís de Camões, a conquista daquela região pelo império
português é apresentada como o resultado da interferência da graça divina, que leva
a Fé cristã (personificada nas epopeias) às assim chamadas “nações gentias”. Na
Muhuraida, a guerra de extermínio conduzida pela Coroa portuguesa contra a nação
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 122
Mura é, portanto, apresentada sob uma roupagem mítico-religiosa como uma vitória
da Fé cristã, a promotora da conversão religiosa dos Mura ao cristianismo.
A tapera do Remanso é vista pelo historiador que, no presente da narração,
viaja em um barco pelo Rio Negro. Vista pelo narrador (um viajante de passagem),
a tapera de Santa Isabel serve de ponto de partida para a reconstituição histórica da
Rebelião de Lamalonga, que levou à completa destruição das povoações indígenas de
Bararoá, Caboquena e Lamalonga. O narrador faz referência ao episódio tratado no
romance como algo situado no passado, cujo sentido o historiador procura reconstituir
a partir dos elementos de que dispõe no presente. Segundo o topos utilizado desde
os historiadores grecorromanos, esses elementos seriam as ruínas da história. Da
mesma forma que as taperas no Alto Amazonas são as ruínas produzidas pela guerra
de extermínio promovida pela Coroa portuguesa contra os Mura, a tapera do Remanso,
em Santa Isabel (Rio Negro), é apresentada como a ruína da Rebelião de Lamalonga.
A tapera vista pelo narrador no início de Simá desencadeia a reconstituição por
meio da memória de um evento histórico ocorrido um século antes. Assim, o modelo
eleito pelo autor para introduzir sua narração da célebre Rebelião de Lamalonga não
é o relato de viagem, mas o gênero da história. Graças ao trabalho do historiador,
esse evento será retirado da “noite do esquecimento”, segundo o topos utilizado por
Heródoto no início de suas Histórias (2015). Assim, a qualificação “histórico”, que é
apresentada no próprio subtítulo “romance histórico do Alto Amazonas”, não designa
uma nova forma literária – que teria surgido na modernidade em países do hemisfério
Norte (LUKÁCS, 2011) –, mas unicamente a matéria histórica da ação narrada na
obra. Em seguida, pretende-se analisar a unidade de seu enredo, que é inteiramente
estruturado em torno da narração da causa imediata da Rebelião de Lamalonga.
A unidade da ação épica
Ao reivindicar como modelos a Ilíada e a Eneida, o autor de Simá elegeu a
Guerra de Troia, que foi ficcionalmente tratada tanto por Homero quanto por Virgílio,
para estruturar o enredo de seu romance histórico sobre a Rebelião de Lamalonga.
A escolha desses dois modelos se deve não apenas à matéria épica tratada pelo
romance, mas, sobretudo, à causa imediata atribuída à rebelião. A comparação entre
a Guerra de Troia e a Rebelião de Lamalonga se baseia, em particular, no paralelo
traçado no romance entre Helena de Troia e Simá de Dari. Ao longo de todo o romance,
Araújo compara a personagem da mestiça Simá com a de Helena de Troia, ao designar
a primeira pelo epíteto “Helena do Rio Negro” (ARAÚJO, 1857, p. 7). Assim como o
rapto de Helena por Páris levou seu esposo Menelau a reunir os gregos e declarar
guerra aos troianos, a separação de Simá e seu amado Domingos de Dari por um
frade carmelita de Santa Isabel teria sido supostamente a causa imediata da Rebelião
de Lamalonga.
Segundo a série de associações entre o romance brasileiro e a epopeia grega,
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 123
o regatão português Régis é identificado ao príncipe troiano Páris que, recebido no
palácio de Menelau, segundo as regras da hospitalidade, desrespeita seu anfitrião e
termina por sequestrar sua esposa, a princesa Helena. Em Simá, por sua vez, Régis
viola a filha de Severo na casa do pai, graças a um estratagema – o uso de um sonífero
que, misturado a uma garrafa de álcool oferecida a Severo, leva-o a adormecer depois
de bebê-la. No entanto, as duas epopeias antigas citadas porAraújo não se concentram
nos eventos que as precederam, mas se limitam a narrar episódios específicos da
Guerra de Troia – a ira de Aquiles, na Ilíada, ou o retorno de Eneias à Província romana
do Lácio, onde o herói funda a capital do futuro Império Romano depois da guerra, na
Eneida. O romance histórico Simá não apenas narra a Rebelião de Lamalonga, mas
também se propõe elucidar sua causa imediata, enfocando o percurso da heroína.
A ação de Simá se estrutura em torno da biografia da protagonista, desde a
concepção até a morte. O primeiro episódio do romance, no qual é narrado o estupro
de sua mãe, a índia Delfina, pelo português Régis, desencadeia a ação. Em seguida,
Régis foge, depois de deixar um anel de ouro fixado ao cordão de Delfina, além de
moedas de ouro na mesa. No dia seguinte, ao descobrir o sucedido na noite anterior,
Severo decide abandonar o sítio da Tapera, onde vivia com sua tribo, para proteger
sua filha da vergonha pública. Ao chegar ao sítio do Remanso, próximo à missão de
Santa Isabel, passa a cuidar de sua neta, depois da morte de sua mãe por tristeza.
Severo batiza Simá e entrega sua educação aos cuidados do Frei Raimundo Eliseu.
Na missão de Santa Isabel, Simá conhece o líder da nação dos Manau, Domingos de
Dari, que também recebeu a mesma educação cristã oferecida pelo frade carmelita.
Araújo (1857, p. 150) não deixa de chamar a atenção para uma diferença
significativa entre a personagem das epopeias antigas e a heroína do seu romance, ao
chamá-las, respectivamente, de “a adúltera Helena de Menelau e a virgem inocente de
Dari”. Desde a antiguidade, a discussão sobre a culpa ou inocência de Helena de Troia
foi objeto de intensas polêmicas, opondo os defensores e os detratores de Helena.
Houve, inclusive, quem tivesse sustentado as duas posições, como o sofista Górgias,
cujo Elogio de Helena (1980) teria sido precedido por uma obra (hoje perdida) em que
acusa Helena não apenas de adultério, mas também de ser a responsável pela Guerra
de Troia. Araújo reteve essa segunda versão que, dotada de conteúdo moralizante,
considera que Helena, depois de se apaixonar pelo belo príncipe troiano Páris, fugiu
por livre arbítrio com o amante para Troia. Segundo a interpretação cristã do mito por
Araújo, Helena é culpada, pois poderia ter se abstido de seu amor por Páris.
O autor poderia ter conferido a Simá uma parcela de culpa por ter supostamente
desrespeitado as regras do diretório e se tornado amante de Domingos. Essa foi, aliás,
a interpretação assumida pelos cronistas, que explicam que a separação do casal
teria sido obra do frade carmelita, dada a sua responsabilidade como guardião dos
preceitos cristãos de união entre os sexos na povoação (JOBIM, 1957). No entanto,
Araújo não atribui a Simá a mesma responsabilidade que atribuiu a Helena, mas, pelo
contrário, a isenta por completo da culpa de mancebia.
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 124
No romance, Domingos e Simá ficam noivos, segundo as convenções próprias
do casamento cristão. A acusação de mancebia, considerada como um ritual pagão de
união entre os sexos, é uma artimanha utilizada por Régis e seu aliado Loiola (o diretor
dos índios da missão de Lamalonga) para separá-la de seu amado Domingos. Quando
Régis conta que pesa sobre ela essa acusação, a fim de conseguir sequestrá-la, Simá,
que foi educada pelo Frei Eliseu, nega essa acusação enfaticamente, invocando a
proteção de Deus e de seu pai contra a “maldade” de tamanha difamação (ARAÚJO,
1857, p. 207). Essa versão sobre a causa imediata da Rebelião de Lamalonga – a
separação do casal, acusado de mancebia – foi reiterpretada pela imaginação ficcional
de Araújo, que atribui essa acusação à difamação promovida pelo vilão.
Tanto a castidade de Simá quanto a fidelidade de Dari fazem deles personagens
elevados, segundo a convenção para os tipos de caráter representados pelo gênero
épico. Ao contrário do que afirma Queiroz (2009), Araújo (1857) evita conferir ao
romance um conteúdo meramente moralizante e punir os herois por um amor culpado
e contrário aos preceitos cristãos de união entre os sexos. A separação do casal pelo
frade carmelita interrompe um amor casto e fiel, segundo as convenções definidas
pelo amor Romântico da época. Aquelas qualidades cristãs reveladas pelo casal de
protagonistas desempenham um papel importante para produzir a empatia do leitor no
fim do romance, desencadeando a piedade e o terror pela sua morte – os dois afetos
trágicos por excelência desde Aristóteles (2015).
Além do efeito catártico visado pelo romance, a virgindade da heroína também
tem uma razão teórica, ilustrando sua posição no debate existente na época no
IHGB sobre os costumes indígenas. No Diccionario, o amor do casal de indígenas é
descrito segundo o modelo monogâmico da união entre os sexos. A versão oferecida
por Araújo (1852) contraria a opinião em voga na época sobre a indiferença dos
índios pela união dos sexos. Em sua descrição dos costumes dos índios, presente no
Diccionario, Araújo já criticara essa opinião, afirmando que se fundava na autoridade
de Buffon e Montesquieu. Esses autores franceses teriam cometido um erro ao definir
o índio a partir do estado de natureza, excluindo-o do costume monogâmico cristão; a
autoridade desses autores teria, inclusive, influenciado outros que escreveram sobre o
indígena americano, entre os quais é citado o Diário da Viagem (1825), do Intendente
Geral da Capitania do Rio Negro, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio.
No Diccionario, Araújo (1852) atribui aos indígenas da América seja a poligamia,
seja a monogamia, mas, independentemente disso, considera-os zelosos com suas
esposas, razão pela qual condenavam o adultério, embora admitissem o divórcio.
Araújo (1852, p. 150) considera a suposta indiferença dos indígenas pela união entre
os sexos como um “capricho de europeu”. Como exemplo do completo equívoco de
Buffon e Montesquieu, Araújo (1852) cita, em seu Diccionario, justamente o casal
formado pela bela do Rio Negro e por seu amado. Em Simá, Araújo volta a lembrar a
tese sobre a indiferença dos indígenas pela união dos sexos, referindo-se novamente à
autoridade de Montesquieu. No entanto, essa menção serve apenas como um recurso
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 125
retórico para enaltecer por contraste a reação de Dari depois de ter sido privado de
sua amante. Com efeito, afirma que a ira do índio Manau contra o frade carmelita é
uma contraprova eloquente da falsidade da suposta indiferença dos indígenas pela
união os sexos que, defendida por franceses e, até mesmo, brasileiros, seria corrigida
por Araújo.
O desfecho trágico de Simá
A interpretação de Araújo para o evento que teria desencadeado a Rebelião
de Lamalonga não se reduz a um mero artifício ficcional utilizado pelo escritor para
conferir unidade a seu romance. A separação entre dois amantes indígenas por um
missionário do aldeamento de Santa Isabel é efetivamente considerada o pretexto
para a rebelião, como afirma em seu Diccionario: “Em 1757, explodiu uma rebelião
nesta povoação, que justamente com Bararoá e Caboquéna reduziu a cinzas, sendo
seu especioso pretexto o despeito, que concedeu um indígena, por pretender um
missionário separá-lo de sua amada” (ARAÚJO, 1852, p. 150). Essa explicação da
causa imediata da Rebelião de Lamalonga foi retida por cronistas posteriores. Em
O Amazonas, sua história, Anísio Jobim (1957, p. 136), por exemplo, afirma: “O
missionário de Lamalonga, Frei Raimundo Barbosa, carmelita, não se conformando
com a vida de mancebia que levava o índio Domingos com uma jovem tapuia, separou-
os, carregando com a moça para casa”.
Araújo (1852) menciona a mesma causa imediata no verbete sobre os índios, no
qual aponta, pela primeira vez, a semelhança entre as respectivas causas da Rebelião
de Lamalonga e da Guerra de Troia, afirmando que, embora jamais tivesse lido Homero
nem Virgílio, o amado de Simá agiu como Menelau, quando um missionário pretendeu
privá-lo de sua amada, desencadeando a rebelião. No entanto, a causa imediata da
Rebelião não teria passado de um especioso pretexto, como afirma o autor de Simá na
passagem anteriormente citada (cf. supra). Na nota de rodapé utilizada para descrever
a nação dos Manau, Araújo (1857) chama a atenção para a manipulação desses índios
pelos jesuítas. Assim, a intriga jesuítica na região durante o período que sucedeu ao
Tratado de Madrid teria sido a causa verdadeira da Rebelião de Lamalonga.
Em diversas passagens do Diccionario, Araújo (1852, p. 105) denuncia a
“excitação dos indígenas” por parte do que chama de “maquinações dos jesuítas”.
Jobim (1957, p. 136) também menciona a atribuição da rebelião por alguns cronistas
às “maquinações subterrâneas dos jesuítas”. Assim, o próprio Araújo parece ser um
dos cronistas a que Anísio Jobim faz referência em sua explicação da verdadeira
causa da Rebelião de Lamalonga. Isso mostra que Araújo é uma fonte histórica direta
utilizada pelos cronistas que escreveram sobre a colonização daAmazônia brasileira. O
romance pode ser considerado como a ilustração ficcional de um diagnóstico realizado
no Diccionario sobre os conflitos presentes na fronteira situada no Alto Amazonas entre
a Coroa portuguesa e a espanhola, cujas principais instituições políticas e religiosas
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 126
eram, precisamente, as missões carmelitas e jesuíticas, respectivamente.
Na explicação realizada por Araújo a respeito do papel das Coroas espanhola e
portuguesa na Amazônia, não são apenas as maquinações dos jesuítas espanhois que
são denunciadas. Segundo a visão estratégica do autor, é corolário dessa denúncia o
elogio da atuação das missões carmelitas naAmazônia, de “[...] sua dedicação, seu zelo
e desinteresse a par de sua brandura e caridade para com os indígenas em sua triste
situação” (ARAÚJO, 1857, p. 37). No romance, a atuação dos carmelitas na Amazônia
é representada pela personagem do missionário de Santa Isabel. Responsável pela
catequese dos indígenas residentes na Casa das Educandas, o dedicado, zeloso e
desinteressado Frei Raimundo de Santo Eliseu é caracterizado no romance como uma
verdadeira encarnação da fé cristã (ARAÚJO, 1857).
Em Simá, Araújo elege a Rebelião de Lamalonga como um caso exemplar
da rivalidade que atravessou a história da colonização da Amazônia brasileira. No
entanto, o romance produz um deslocamento espacial, já que não se passa no interior
da Província do Amazonas, como o Diccionario, mas na zona de fronteira desse
território com a Coroa espanhola. A divisão existente nessa região de fronteira entre
as Coroas portuguesa e espanhola é reproduzida por Araújo no interior da própria
nação dos Manau. A festa de noivado entre o casal de protagonistas representa essa
divisão: de um lado, os membros da nação dos Manau, como Simá, Dari e Severo,
que são aliados dos missionários carmelitas e da Coroa portuguesa, defendem as leis
da metrópole, que ofereceria liberdade aos indígenas da Amazônia; e, de outro, os
líderes da nação dos Manau, Abbé, Dadari e Bejari, tramam uma rebelião contra os
portugueses para restabelecer sua independência. Esses são acusados de se aliarem
aos jesuítas espanhois, cujo avanço naquela região refletia as ambições territoriais da
Coroa espanhola.
Assim, Araújo (1857) apresenta a Rebelião de Lamalonga como um conflito entre
um grupo da nação dos Manau, manipulado pelos jesuítas espanhois, e a armada
portuguesa, que por sua vez contou com o apoio de outro grupo, que, liderado por
Severo, Caboquena e Domingos de Dari, considerava que, ao avançar sobre aquela
zona fronteiriça do território português, os espanhois os reduziriam novamente à
escravidão. No final do romance, o primeiro grupo acaba prevalecendo, e a rebelião
é desencadeada, com ajuda do rumor a respeito da suposta mancebia do casal de
protagonistas. Essa acusação de mancebia é um falso pretexto, pois é utilizada pelo
líder indígena Mabbé, depois de tê-la escutado de Régis e Loiola, para estimular seu
povo à revolta contra os portugueses, que estariam prestes a punir o casal. Caboquena,
líder da povoação homônima, denuncia a rebelião à autoridade portuguesa na região
– Souza Figueira –, antes de ser morto por Bejari e Dedari. Depois do massacre à
rebelião, as povoações de Caboquena, Bararoá e Lamalonga são inteiramente
destruídas pela armada.
O romance é concluído pela narração do destino do casal de protagonistas, cuja
separação constitui a peripécia que desencadeia a Rebelião de Lamalonga. O enredo
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 127
de Simá é estruturado não por um enredo simples, mas por um enredo particularmente
complexo, já que possui tanto uma peripécia, quanto uma cena de reconhecimento,
segundo a distinção proposta na Poética, de Aristóteles (2015). Na peripécia final do
romance, Régis, com a ajuda de Loiola, consegue, por meio de novas maquinações,
sequestrar sua amada Simá e separá-la de Domingos de Dari. Os amigos do frade
carmelita resgatam-na, enquanto Loiola e Régis são presos. Simá tenta heroicamente
proteger o Frei Raimundo de uma flecha e acaba sendo atingida. O sacrifício da heroína
em prol do missionário carmelita representa seu enorme apreço por quem lhe dedicou
seu serviço catequético. (A docilidade do indígena ao europeu também foi um tema
explorado por José de Alencar (1958), como evidencia o “serviço amoroso” (no sentido
trovadoresco) de Peri a sua venerada Cecília). Seu avô Severo recolhe-a sobre seu
colo, quando Régis descobre que Simá, que está prestes a expirar, é sua filha.
No romance Simá, o reconhecimento se dá por meio de um “signo adquirido”
(ARISTÓTELES, 2015, p. 135) que se encontra fora da personagem: Simá leva no
pescoço o anel deixado por Régis com sua mãe Delfina, depois de violentá-la. Ao
retirar o anel do pescoço de Simá e examiná-lo, Régis se espanta e pede que alguém
lhe explique porque Simá o está portando. Severo – que tinha colocado o cordão sobre
o pescoço de Simá antes de partir para Lamalonga com Domingos, ao saber que o
líder Mabbé estava chegando à povoação para estimular uma rebelião – confirma
que Simá é filha dele (Régis). A heroína, que sempre acreditara que Severo fosse seu
pai, só descobre a verdade antes de morrer. Seu último gesto é perdoar o pai: “Simá,
socorrendo-lhe de supremo esforço, abriu os olhos, que alçou ao céu, e levantando
também as mãos postas, proferiu: ‘Meu pai!!! Eu lhe perdôo’” (ARAÚJO, 1857, p. 349).
Simá teve que resistir às investidas de seu próprio pai que, se tivesse conseguido
realizar seu plano de sequestrá-la, teria cometido incesto. Na cena de reconhecimento,
a associação de Simá à imagem cristã de Jesus é clara. Com efeito, a heroína evoca
as palavras de Jesus na cruz, ao perdoar seu pai antes da morte. O perdão final
reafirma os valores cristãos representados pela heroína, que se reconcilia com seu
progenitor europeu. Seu noivo Domingos de Dari, por sua vez, persegue Loiola para
se vingar e esse último morre ao se atirar no rio. Ao descobrir o destino trágico de sua
amada, Domingos enlouquece, é preso e condenado à morte. No Diccionario, Araújo
(1852, p. 248) registrara seu destino: “Em Junta de Justiça forão condemnados á pena
ultima os Principaes Manaos – Ambrosio, e João Damasceno, e o Indígena Domingos
–, cabeças da rebellião de Lama-Longa de 1757, e a padecèrão em Caboquena”.
O “romance épico”: mito e história
O Guarani, de José de Alencar, é concluído pelo ataque final aos portugueses
pelos índios bravos da nação Aimoré e pela salvação do casal de protagonistas Cecília
e Peri. Esses personagens são apresentados como o núcleo originário de colonização
do Novo Mundo, segundo sua reinterpretação da lenda de Tamandaré – a versão
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 128
indígena do dilúvio bíblico – como mito fundador do Brasil (RIBEIRO, 1998; SOMMER,
2004; CAMILO, 2007). A união entre o indígena e o europeu ilustra a ideologia da
mestiçagem característica do Indianismo Romântico na época. Ao contrário do casal
de protagonistas do célebre romance de José de Alencar, o de Simá não sobrevive
ao massacre da Rebelião de Lamalonga no final do romance. Fruto da união entre
um branco e uma índia, a própria mestiça Simá simboliza a ideologia da mestiçagem,
ainda que seja o fruto da violação perpetrada pelo explorador português.
Relativamente ao enredo, Simá é a inversão completa de O Guarani: a
miscigenação entre brancos e indígenas, que é seu ponto de partida (iniciado com o
estupro de Delfina), é o horizonte do romance de Alencar (concluído com a salvação de
Peri e Cecília). Enquanto esse defende a ideologia da miscigenação, aquele denuncia
a violência que a produziu. Os dois primeiros romances históricos do indianismo
Romântico oferecem, assim, representações complementares das duas alternativas
indigenistas discutidas nos círculos intelectuais e políticos da época (TREECE, 2008)
– a guerra de extermínio promovida pela Coroa portuguesa durante o período colonial
é exposta como solução trágica por Araújo, enquanto o projeto de assimilação da força
de trabalho indígena formulado durante o Segundo Reinado pela ideologia conciliatória
da unidade nacional é apresentado como solução viável por Alencar.
O sacrifício de Simá não deve ser considerado uma punição à heroína por
pertencer ao mundo português, já que, como evidencia o epíteto dado à heroína – “a
virgem inocente de Dari” (ARAÚJO, 1857, p. 150) –, Simá foi uma vítima inocente.
Graças à inocência de Simá, é produzida a empatia do público pela heroína,
necessária à piedade e terror que sua morte deve gerar. No final do romance, sua
morte constitui um “efeito colateral” do massacre dos Manau pela armada portuguesa.
Não apenas o massacre dos revoltosos da nação dos Manau pela armada portuguesa,
mas, sobretudo, o sacrifício dessa personagem inocente para salvar o Frei Raimundo
visam produzir a catarse trágica do romance. Fruto da violência perpetrada pelos
colonizadores portugueses sobre os índios, Simá é a vítima ideal para, sacrificada,
expiar a rebelião dos indomáveis indígenas contra os colonizadores portugueses no
Alto Amazonas.
Presente nos principais escritores do indianismo Romântico – como José de
Alencar, Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias (BOSI, 1992; FERRETI, 2011)
–, o tema sacrificial adquire, em Simá, uma intensidade maximal. Essa intensidade se
deve não apenas à exploração sistemática que o romance promove das convenções
do gênero trágico, mas também ao fato de que, ao contrário de Iracema (cujo filho
Moacir nasce de seus amores com o português Martim), Simá morre virgem e sem
gerar filhos. Como afirma Sommer (2004), a ideologia da miscigenação, ao oferecer
um modelo de família multirracial, ocultou o fato de que, na prática, a miscigenação
não dependeu da estrutura familiar, mas se reproduziu, sobretudo, à sua margem.
Dessa perspectiva, o romance de Araújo explicita a violência implícita nessa ideologia,
enquanto o romance alencariano a oblitera, como demonstra a aparente aceitação, na
Argumentação e Linguagem Capítulo 9 129
família portuguesa, da mestiça Isabel, filha bastarda de D. Antônio de Mariz.
Embora não tenha tido o mesmo sucesso que a obra romanesca do patrono da
literatura brasileira juntamente a um público letrado ávido por novidades, o romance
de Araújo exprime de maneira mais clara do que aquela a dinâmica própria do destino
das personagens, de modo que seus leitores não podem ignorá-la. Isso porque seu
enredo não é alterado pelas forças soberbas da natureza brasileira, como o dilúvio
de O Guarani, mas, retomando de perto um conhecido episódio militar do período
colonial, não gera nenhuma surpresa, como tampouco o faziam as epopeias anteriores.
Apresentado, no Diccionario, como um “castigo exemplar” destinado a dissuadir
futuras insurreições (ARAÚJO, 1852, p. 247), o massacre da Rebelião de Lamalonga
é narrado, em Simá, como o restabelecimento da ordem natural por meio da punição
da sanha de personagens trágicos envolvidos em um destino inexorável. Assim, o
romance não deveria ser qualificado de “histórico”, como ocorre em seu subtítulo, mas
de “épico”.
A estrutura da única obra ficcional de Araújo é a tal ponto coincidente com a das
epopeias anteriores (indianistas ou não), que não constitui senão uma adaptação do
gênero épico à matéria histórica da ação romanesca. Segundo a definição proposta por
Lukács (2011), o romance histórico é uma nova forma literária que, surgida no hemisfério
Norte no início do século XIX, manifesta o novo tempo inaugurado pelas revoluções
modernas. Simá, pelo contrário, exprime na própria forma a completa continuidade
de um processo histórico que desconheceu rupturas: o caráter essencialmente épico
desse que foi o primeiro romance em português sobre aAmazônia pode ser considerado
a manifestação do imobilismo político garantido pelo advento do Segundo Reinado,
no exato momento em que a classe conservadora de fazendeiros escravocratas saiu
vitoriosa dos diversos levantes deflagrados durante o período da Regência, como a
Cabanagem nas Províncias do Norte (SODRÉ, 1969; TREECE, 2008).
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Capítulo 10 133Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 10
PRESENÇA E USO DOS MARCADORES
DISCURSIVOS EM ESTUDANTES BRASILEIROS DE
ESPANHOL COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA
Cristina Corral Esteve
Universidade Federal de Pernambuco,
Departamento de Letras
Recife – Pernambuco
RESUMO: No presente trabalho, o nosso
objetivo é comprovar o uso que os estudantes
brasileiros de nível intermediário e superior (B2,
C2) fazem dos cinco grupos de marcadores
apontados por Martín Zorraquino y Portolés
Lázaro (1999), ou seja, estructuradores de
la información, conectores, reformuladores,
operadores argumentativos e marcadores
conversacionales. A partir de uma análise da
bibliografia disponível a respeito, concluímos
que essa obra apresenta uma visão de
conjunto desses elementos, o que é de vital
importância para nossas necessidades ao nível
didático, além de nos dar as chaves de suas
características e das diferenças entre cada
uma das unidades. Partimos da pergunta se
os marcadores têm presença nas produções
escritas de estudantes brasileiros de espanhol
como língua estrangeira nesses níveis, assim
como se seu uso é o esperado. Para isso,
analisamos quantitativa e qualitativamente um
corpus composto por quatrocentas produções
desses estudantes. Os resultados confirmaram
que seu uso é muito reduzido, pelo que parece
fundamental um trabalho de observação e
reflexão que permita que o aluno esteja ciente
da sua importância, ao mesmo tempo que se
sinta confiante na hora de utilizá-los.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino, Pragmática,
Marcadores discursivos.
PRESENCE AND USE OF DISCOURSE
MARKERS IN BRAZILIAN STUDENTS OF
SPANISH AS A FOREIGN LANGUAGE
ABSTRACT: In this paper, our goal is to check
the use made by intermediate and high level
Brazilian students of Spanish language (B2,
C2) of the five groups of discourse markers
proposed by Martín Zorraquino and Portolés
Lázaro (1999), that is, estructuradores de
la información, conectores, reformuladores,
operadores argumentativos and marcadores
conversacionales. Based on an analysis of the
available bibliography, we conclude that this
work allows us an approach to these elements
as a whole, which is fundamental for our needs
at a teaching level, as well as giving us the keys
of their characteristics and the differences from
each other. Our starting point is the question
of if the discursive markers are present in the
writing performances of intermediate and high
level Brazilian students of Spanish as a foreign
language, and also if their use provides the
intended outcome. To proceed, we analyze
Argumentação e Linguagem Capítulo 10 134
quantitatively and qualitatively a corpus of four hundred productions by these students.
The results confirmed that the use of the said markers is highly reduced and that it is
essential to work on these units with observation and reflection in order to make the
students aware of their importance, as well as confident when using them.
KEYWORDS: Teaching, Pragmatics, Discourse Markers.
1 | 	INTRODUÇÃO
Mais de uma década atrás, Rossari (2006, p. 302) afirmava em relação aos
marcadores do discurso que “[w]e cannot decide what to call them because we do
not know what they are”, o que já apresentava um dos problemas fundamentais que
encontramos na bibliografia a respeito: sua nomenclatura e sua natureza.
Não podemos obviar que seu estudo tem centralizado o interesse de inumeráveis
trabalhos nas últimas décadas. Apesar disso, são muitos os problemas que vamos
enfrentar ao tomar uma produção acadêmica dos estudantes de espanhol como língua
estrangeira. Assim, por mais que tenham sido trabalhadas suas características no
nível teórico e tenham sido descritas suas unidades, ainda muito deve ser feito para
que isso seja traduzido em um uso efetivo por parte dos estudantes.
Como já aponta Fuentes Rodríguez (2010, p. 691), os estudos têm-se centrado
mais em descrevê-los que em sua aplicação e, nesse caso, têm-se desenvolvido nas
seguintes direções: o ensino de espanhol como língua estrangeira; o ensino a falantes
nativos, sobretudo em relação à língua escrita; o contraste de línguas; os transtornos
da linguagem; e a aprendizagem e uso na língua infantil. No nosso caso, o interesse
está focado no primeiro e terceiro ponto, ou seja, no ensino de espanhol como língua
estrangeira e o contraste espanhol e português.
Os diferentes manuais e gramáticas dedicam pouco espaço aos marcadores
discursivos. Normalmente, se apresentam várias unidades de distintos grupos, com as
quais os alunos têm que realizar diversos exercícios de preencher espaços em branco,
geralmente no nível oracional, e com isso é assumido que já conseguem usar essas
unidades tão importantes, tanto para a construção como para a interpretação dos
textos. Como era esperado, e como nos traz Portolés Lázaro (1999, p. 69), os problemas
aparecerão rapidamente, ao encontrarmos determinados marcadores gramaticalmente
corretos, mas pragmaticamente inadequados. Um segundo problema surgirá quando
quisermos corrigir esses exercícios e descubramos que não conseguimos esclarecer
as dúvidas do motivo pelo qual colocamos esse marcador e não outro (por exemplo,
sin embargo e no obstante ou finalmente, en último lugar, por fin ou en fin). Nesse
momento, ainda nos enfrentaremos a uma terceira dificuldade: a falta de materiais
específicos com os quais o docente preocupado por esse assunto se encontra. Muitas
obras de referência teórica existem, mas são poucas as que apresentam uma visão
holística fundamental para o ensino. Por outro lado, é frequente encontrar lacunas
em relação às suas características sintáticas, semânticas e pragmáticas, assim como
Argumentação e Linguagem Capítulo 10 135
falta de clareza sobre as diferenças entre as unidades de um mesmo grupo, o que
dificulta sua prática na sala de aula, e acaba em simplificações que contribuem com a
perpetuação do problema.
Neste trabalho, visamos analisar o uso (ou não uso) que é feito pelos estudantes
brasileiros de nível intermediário (B2) e superior (C2) dos cinco grupos de marcadores
apresentados por Martín Zorraquino e Portolés Lázaro (1999), ou seja, estructuradores
de la información, conectores, reformuladores, operadores argumentativos e
marcadores conversacionales. A despeito de que, como afirmamos no início, seja um
problema evidente nas produções escritas, queremos comprovar se a falta de uso dos
marcadores afeta da mesma forma a todos os grupos e se existem algumas unidades
favoritas ou que registrem uma maior frequência. Para isso, começaremos fazendo
uma breve revisão das perspectivas teóricas sobre o tema para, posteriormente,
analisar as características dessas unidades e, finalmente, apresentar os resultados
obtidos após a análise quantitativa e qualitativa do corpus.
2 | 	OS MARCADORES DISCURSIVOS
Essas unidades têm sido estudadas desde diferentes perspectivas teóricas. De
um lado, a Linguística Textual, com seus conceitos básicos de coerência e coesão,
tem focado nessas unidades a partir de duas linhas fundamentais iniciadas por
Halliday e Hasan (1976) e Van Dijk (1980) respectivamente. Por outro lado, a Teoria da
Argumentação, a partir de sua primeira versão (Ducrot et al., 1980), leva aos chamados
conectores argumentativos, unidades de diferente natureza gramatical, ao centro de
seus estudos. Com o desenvolvimento da Análise da Conversação (Roulet, Auchlin,
Moeschler, Rubattel & Schelling [1985]), são atendidas finalmente as possibilidades
de encadeamento que aparecem na conversa coloquial, ao considerar as teorias
anteriores que as diferenças entre o texto oral e o escrito simplesmente eram de caráter
superficial. Finalmente, a Teoria da Relevância (Sperber & Wilson, 1994) também tem
mostrado bastante interesse nos marcadores discursivos, fundamentalmente a partir
do trabalho pioneiro de Blakemore (1987). Estes teriam como função principal nos
ajudar a conseguir o maior número possível de efeitos cognitivos (reafirmar, modificar
ou criar um determinado conjunto de crenças) com o mínimo esforço, ou seja, se
apresentam como restrições semânticas sobre a relevância.
No atual trabalho, tomamos como base a obra de Martín Zorraquino e Portolés
Lázaro (1999), já que oferece uma aproximação teórica que leva em conta diversas
perspectivas e que, por outro lado, é uma das poucas descrições globais que temos em
relação ao espanhol, o que nos permite obter uma visão de conjunto. Também a obra
nos dá as chaves de suas características e das diferenças entre cada uma das unidades.
Para os autores, os marcadores discursivos são unidades linguísticas invariáveis,
sem função sintática e com o objetivo de guiar as inferências que são realizadas
Argumentação e Linguagem Capítulo 10 136
na comunicação (Martín Zorraquino & Portolés Lázaro, 1999, p. 4057). Distinguem
cinco tipos gerais, subdivididos, por sua vez, em distintos grupos. Em primeiro lugar,
encontramos os estructuradores de la información (así las cosas, en primer lugar, en
segundo lugar, por cierto, etc.) que assinalam a organização informativa dos discursos.
Em segundo lugar, temos os conectores (además, por tanto, en cambio, etc.), que
vinculam semântica e pragmaticamente um membro do discurso com outro anterior,
de forma que o marcador guia as inferências que devem ser realizadas do conjunto
dos dois membros discursivos conectados; seguidos dos reformuladores (o sea, mejor
dicho, en cualquier caso, en suma, etc.), elementos que apresentam o membro do
discurso no qual estão inseridos como uma expressão mais adequada do que foi dito
anteriormente. Por último, os autores destacam os operadores argumentativos (en
realidad, en particular, etc.), os quais condicionam as possibilidades argumentativas
do membro do discurso no qual aparecem, mas sem relacioná-lo com outro membro
anterior; e os marcadores conversacionales (desde luego, bueno, hombre, eh, etc.),
partículas discursivas que aparecem mais frequentemente na conversa.
Como já foi mencionado no início da epígrafe, os autores apresentam a descrição
sistemática dessas unidades, procurando, ainda, encontrar os elementos que
diferenciam aquelas tradicionalmente consideradas como “sinônimos”. No entanto,
eles mesmos alertam que desenvolver essa tarefa de forma exaustiva seria tão
utópico como “ponerle puertas al campo”. Os critérios seguidos na hora de delimitar
as unidades são dois, o que permitiu demarcar
un amplio grupo que a) compartiera propiedades gramaticales homogéneas - los
marcadoresquehemosanalizadoseajustan,engeneral,alascategoríastradicionales
de los adverbios, las locuciones adverbiales y de ciertas interjecciones - y b) cuyas
características semánticas - la forma de significar o de configurar su significado -
fueran las propias de los marcadores discursivos (los cuales son elementos que no
presentan un contenido referencial o denotador sino que muestran un significado de
procesamiento). (Martín Zorraquino y Portolés Lázaro, 1999, p. 4056)
No caso do primeiro critério, os autores apresentam várias características,
como sua gramaticalização (mesmo que em maior ou menor medida); sua posição
sintática que, geralmente permite uma maior mobilidade frente às conjunções; a
entonação que apresentam ao ser marcados como incisos; o fato de eles aparecerem
sem especificadores nem adjacentes, etc. Para o segundo, serão mencionadas três
tipos de instruções podendo primar em alguns casos uma instrução sobre as demais.
De um lado, estariam aquelas que se referem ao significado de conexão, ou seja,
aquelas unidades que relacionam dois ou mais membros do discurso, frente àquelas
que somente afetam um, como é o caso, por exemplo, dos operadores discursivos.
Do outro, estão as argumentativas, as quais nos remetem diretamente à Teoria da
Argumentação e têm relação com as restrições que impõem na dinâmica discursiva.
Finalmente, apresentam as instruções sobre a estrutura informativa, que, como no
caso fundamental dos estructuradores de la información, nos ajudam na distribuição
dos comentários de um texto, entendendo como tais as respostas a uma pergunta
Argumentação e Linguagem Capítulo 10 137
implícita ou explícita que condiciona o avanço de um discurso.
Por último, os autores vão focar nos efeitos de sentido dessas unidades. A partir
da Teoria da Relevância, consideram que a interpretação de um discurso precisa,
além da decodificação da mensagem, de seu enriquecimento pragmático (Sperber &
Wilson, 1994). Portanto, os “efeitos de sentido” serão para esses autores os valores
semânticos que adquirem as unidades linguísticas em seu uso discursivo. Esses
valores nascem da relação entre seu significado próprio e o aporte pragmático do
contexto. Isso permite evitar, segundo os autores, simplificar a descrição para impedir
que existam tantos significados como contextos.
3 | 	AS AMOSTRAS
Partimos da pergunta se os marcadores discursivos têm presença e de qual
forma são usados nas produções escritas de estudantes brasileiros de espanhol como
língua estrangeira. O corpus analisado (Corral Esteve, 2010) consta de quatrocentas
produções procedentes de cursos de preparação para os antigos DELE do nível
intermediário (B2) e superior (C2), ou seja, de cursos nos quais era praticada a estrutura
e as características da prova. Assim, os participantes foram convidados a realizar
a escrita de uma carta e uma redação, segundo os modelos de provas anteriores,
nas quais eram pautadas as seções e os movimentos que deviam apresentar, sem
possibilidade de uso de dicionário e com o tempo real que teriam na prova, sessenta
minutos em ambos os níveis para a produção de dois textos (uma redação e uma
carta) de cento e cinquenta a duzentas palavras.
A carta, da qual obtivemos cento e setenta e três amostras do nível intermediário
e cinquenta e uma do nível superior, era de caráter pessoal no primeiro caso e formal
no segundo. Em ambos os casos, apareciam duas opções de escolha. No caso da
redação, com cento e vinte e sete amostras de nível intermediário e quarenta e nove
do superior, esta deveria apresentar em B2 um tom narrativo, descritivo ou discursivo;
igual ao segundo caso, ampliado também para o argumentativo. Como na prova, os
estudantes podiam escolher entre duas opções para o nível intermediário e três para
o superior. Uma vez obtidas as produções, procedemos com a realização de uma
análise quantitativa e qualitativa da presença dos marcadores, ou seja, as unidades
que apareciam, sua frequência e se seu uso era o adequado.
Devemos lembrar neste ponto, que segundo as guias de obtenção do DELE
nível intermediário (p. 16) os alunos deviam “producir textos claros y coherentes […],
bien articulados con un número reducido de conectores”. No caso do nível superior,
era especificado que devia-se “mostrar gran dominio de los conectores discursivos”.
Passamos a apresentar os resultados encontrados, destacando os elementos mais
relevantes.
Argumentação e Linguagem Capítulo 10 138
3.1	Estructuradores de la Información
Os estructuradores de la información, responsáveis por facilitar a organização de
nosso discurso, são divididos por sua vez em três subgrupos: os comentadores, que
introduzem um novo comentário, sendo o mais frequente pues, sobretudo no discurso
oral; os ordenadores, que apresentam o lugar que tem o membro do discurso no qual
aparecem,comoéocasodeenprimerlugar,porotroladooufinalmente;eosdigresores,
que aparecem como um comentário lateral em relação ao dito anteriormente, como,
por exemplo, por cierto ou a todo esto. Foram encontrados um total de vinte e três
marcadores em B2 e dezesseis em C2, sem a aparição de digresores.
B2 C2
C R C R
Comentadores
Pues 3 0 0 0
Pues bien 1 0 0 0
Ordenadores
De continuidad
Por otro lado 2 4 0 6
Por un lado, por otro lado 0 2 0 0
En primer lugar, en segundo lugar 0 3 0 1
De la misma manera 0 0 0 1
Del mismo modo 0 2 0 0
De apertura
En primer lugar 0 0 0 2
Para empezar 0 1 0 0
De cierre Marcadores de cierre 0 5 3 3
Totales 6 17 3 1
Nas amostras de B2, é feito o uso esperado dos marcadores no contexto no qual
aparecem, mesmo que, como comenta Fernandes (2005: 146), no caso de pues bien
“en portugués existe una preferência por el comentador pois é [...] como variante de
pois bem [...]. Sin embargo, pois é parece poseer un matiz de naturalidad [...] lo que
permite que una eventual equivalencia a pues sí de español”.
Assim, parece que em (1) o esperado em espanhol seria pues sí:
(1) Otro dia he participado de un sorteo de dos viajes hasta Barcelona, en el
supermercado que hay cerca de casa. ¿Imaginas tu que gané?
Pues bie es un viaje para dos personas, para que ellos puedan asistir un partido de
fútbol de Barcelona en copa del Rey. (102 CB2)
Da mesma forma, em C2, todos eles são usados de forma adequada, ou seja,
cumprindo com as funções esperadas de abrir, dar continuidade e fechar o discurso.
No entanto, parece interessante destacar dois elementos. De um lado, é frequente
que o mesmo aluno use diferentes estructuradores e marcadores em geral na mesma
produção. Por outro lado, o uso dos distintos estructuradores para concluir o discurso
(finalmente, para terminar, por fin, para finalizar, por último y para concluir) cria a dúvida
Argumentação e Linguagem Capítulo 10 139
se a unidade que aparece foi eleita pelo aluno de forma consciente frente às outras.
Por exemplo, não sabemos se o aluno está ciente que finalmente nos leva ao último
argumento, enquanto por fin adiciona a essa função a ideia de um desejo conseguido
ou um alivio por terminar (Fuentes Rodríguez, 2010, p. 712).
3.2	Conectores
Os conectores “vinculan semántica y pragmáticamente un miembro del discurso
con otro anterior, de tal forma que el marcador guía las inferencias que se han de
efectuar del conjunto de los dos miembros discursivos conectados” (Martín Zorraquino
& Portolés Lázaro, 1999, p. 4080). Este grupo é subdivido por sua vez em aditivos,
caracterizados por unir membros do discurso com a mesma orientação argumentativa;
consecutivos, que apresentam uma conclusão do que foi dito anteriormente no membro
do discurso no qual estão inseridos; e contraargumentativos, os quais suprimem ou
atenuam alguma conclusão que pudesse ter sido alcançada no membro do discurso
anterior.
B2 C2
C R C R
Aditivos
Además 37 27 20 7
Aparte 1 0 1 1
Incluso 6 0 1 1
Es más 0 0 0 1
Consecutivos
Pues 1 0 0 0
Así pues 0 2 0 0
Por (lo) tanto 5 9 4 5
Consecuentemente 0 0 1 0
Así 25 15 6 4
De este modo 1 1 0 0
Entonces 24 22 6 5
Contraargumentativos
Sin embargo 19 16 8 6
No obstante 0 0 0 1
Totales 119 92 47 31
Como pode ser observado, además é o conector mais utilizado. Com maior
frequência é usado para incluir um sobreargumento que reforça a conclusão buscada
como no caso de (2):
(2) Ustedes publicaron que la ciudad fué colonizada por portugueses. [...] Solamente
en el 1890 los portugueses fundaron Gravataí. Además, en el artigo de la periodista
Marga Varga está escrito que la población actual és de 400 mil personas, pero ya
alcanzamos los 500 mil. (31 CC2)
Temos quatro amostras nas quais esse marcador não é utilizado
Argumentação e Linguagem Capítulo 10 140
adequadamente, quatro em B2 e uma em C2: (a) o uso de “además que”, impróprio da
língua escrita (100CB2); (b) a aparição como inciso para apresentar um elemento que
parece suposto, pelo qual seria esperada sua presença com “de” (20 RB2); (c) o uso
em vez de um contraargumentativo (82CB2); e (d) a utilização para somar uma coisa
positiva (os valores morais) e uma negativa (a dor), o que no parece pragmaticamente
adequado (40RB2). Em relação a C2, o problema é que repete o que foi expresso
no membro do discurso anterior, sem adicionar nada (40CC2). Em relação a incluso
encontramos um caso de mesmo (11CB2) e dois exemplos (132 CB2 e 163 CB2) de
uso de aún onde deveria aparecer.
No caso dos consecutivos, por (lo) tanto apresenta uma consequência à qual
chegamos através de um razoamento, aceitando como verdadeiro o primeiro membro
(Martín Zorraquino y Portolés Lázaro, 1999, p. 4101). No entanto, isso não é o
encontrado na maioria das amostras, nas quais parece que os alunos pretendem dar
“rigor” e autoridade ao que foi dito, como indica Fernandes que prima no uso do
português. Por outro lado, encontramos um uso inadequado em que o aluno o utiliza
para introduzir uma contra-argumentação (28CC2).
No caso de entonces, o caráter de consequência é fraco a partir de seu sentido
temporal inicial. Passamos de um momento ao outro, mas também de uma causa a
um efeito. É esse um marcador cujo uso mais frequente é dado no colóquio, indicando
o avanço da conversa ou em conversas nas quais um dos participantes introduz o que
é deduzido da informação dada pelo outro. Esses dois fatores fazem com que muitas
vezes seja usado como “curinga”, e em contextos onde pareceria mais adequada a
presença de outro marcador. No entanto, o fato de aparecer em onze casos parece
indicar que o aluno de C2 controla seu uso, por ser um marcador esperado geralmente
na língua oral, frente aos resultados encontrados em B2.
Em relação ao único exemplo de pues encontrado como consecutivo, em B2,
este é incorreto, já que vai seguido da conjunção que:
(3) Él deseaba producir una revista en dos idiomas: portugués y español. Pues que
decidimos invertir en eso y ahora adquirimos mucho reconocimiento en nuestro
trabajo. (162 CB2)
Por último, os contraargumentativos apresentam somente duas unidades: sin
embargo, com um total de trinta e cinco casos em B2 e catorze em C2, e no obstante
com somente um caso em C2. No caso de sin embargo, encontramos tanto contra-
argumentações diretas quanto indiretas. Também encontramos um exemplo de uso
incorreto ao aparecer junto à conjunção que (51 RB2), e dois casos nos quais aparece
a forma entretanto (15 RB2 e 124 RB2).
No caso de no obstante, Domínguez García (2007, pp. 110-111) apresenta como
uma das diferenças com sin embargo o fato de este poder aparecer com valor refutativo
em contextos polifônicos e dialógicos, nos quais é refutado o que foi dito pelo locutor,
o que parece acontecer em (4), pelo qual seria esperada a presença de sin embargo.
Argumentação e Linguagem Capítulo 10 141
(4) Podemos analizar sus efectos negativos y positivos. Se dice que antes de la
globalización, la cultura de los pueblos y países eran más preservadas, que no
ocurría tantas interferencias, seguian su camino de una manera menos frenética.
No obstante, cuantas cosas se pueden evitar con el agilidad de las Informaciones.
(37 RC2)
3.3	Reformuladores
Os reformuladores se apresentam como uma ajuda para o ouvinte, que
deve alcançar a intenção de seu interlocutor, podendo ir essa da retificação até a
explicação. De um lado, a presença desses marcadores indica que é essa parte
a que tem uma maior importância na continuação do discurso. Martín Zorraquino y
Portolés Lázaro (1999) distinguem quatro subtipos: explicativos (aclaram ou explicam
o dito anteriormente como o sea ou es decir), rectificativos (corrigem ou melhoram o
dito anteriormente como em mejor dicho ou más bien), de distanciamiento (expressam
que não tem pertinência o dito anteriormente como por exemplo em cualquier caso) e
recapitulativos (apresentam uma conclusão ou recapitulação do anterior como em a
fin de cuentas ou en suma). No nosso caso, somente não encontramos exemplos de
rectificación.
B2 C2
C R C R
Explicativos
O sea 3 3 1 4
En otras palabras 0 2 0 0
Es decir 0 1 0 1
De distanciamiento
De cualquier forma 0 0 0 1
De todas formas 0 4 0 0
Recapitulativos
En fin 0 1 1 4
En conclusión 0 0 0 4
Resumiento 0 1 0 0
Totales 3 12 2 1
O marcador mais usado é o sea, mais próprio da língua falada frente a es decir,
menos coloquial, o que parece não ser apreciado pelos estudantes. Nesse caso,
Fernandes (2005, p. 421) nos da a chave:
Por una parte, los correspondientes quer dizer en portugués / es decir en español,
aunque sean correspondientes literales, pertenecen a modalidades diferentes; el
reformulador en portugués es típico de la oralidad mientras que en español es
habitual en el lenguaje escrito.
Por otra parte, sucede justamente lo contrario con los reformuladores ou seja en
portugués / o sea en español. Ou seja pertenece a lo escrito y o sea a lo oral.
En síntesis, estamos ante falsos cognatos en el sentido enunciativo, dado que la
modalidad donde actúan no corresponde con sus usos típicos.
Argumentação e Linguagem Capítulo 10 142
3.4	Operadores Argumentativos
Essas unidades condicionam as possibilidades argumentativas do membro no
qual estão inseridas. Segundo nossos autores, a diferença com os conectores viria dada
pelo fato de que aqueles focam no que os segue, enquanto que esses, como vimos,
relacionam pragmática e semanticamente o membro que introduzem com o anterior.
Apresentam dois tipos: os de refuerzo argumentativo, ou seja, aqueles que, como
seu nome indica, reforçam o membro do discurso no qual aparecem diante de outros
possíveis aos quais limitam; e os de concreción, que exemplificam ou concretizam
uma expressão mais geral. Encontramos nas amostras os seguintes resultados:
B2 C2
C R C R
De refuerzo
argumentativo
De hecho 2 1 1 2
En realidad 1 2 0 1
De concreción Por ejemplo 2 12 2 5
Totales 5 15 3 8
Na análise das unidades, percebemos que por ejemplo apresenta uma maior
frequência; enquanto os de refuerzo argumentativo estão representados por dois
marcadores, um que apresenta o membro do discurso como “verdade”, e outro que
indica que é uma “realidade”.
3.5	Marcadores Conversacionales
Fernandes (2005, p. 485) afirma em relação a esse grupo que
es previsible que en los marcadores conversacionales encontremos las mayores
dificultades para establecer una correspondencia entre el portugués y el español.
Incluso, en la mayoría de los casos, es imposible hallar equivalentes entre dichos
marcadores en ambos idiomas. Y, aunque los haya, la incorporación de estos en el
uso de los hablantes es especialmente difícil.
Isto explica que em muitos casos sintamos que soam “estranhas” determinadas
unidades em determinados contextos. Além disso, é um dos grupos com maiores
dificuldades de sistematização, dado o número de unidades e a quantidade de
possíveis contextos de uso de cada uma delas. Pensemos, por exemplo, no caso de
bueno que pode aparecer em vários grupos mencionados abaixo.
Os subgrupos apresentados pelos autores são quatro. O primeiro é formado
pelos marcadores de modalidad epistémica, que apresentam como é destacada a
mensagem que o marcador introduz. Assim poderá ser por exemplo “evidente”, como
no caso de desde luego, ou conhecido através de outro, como no caso de por lo visto. O
segundo subgrupo é formado pelos chamados marcadores de modalidad deóntica que
apresentam o grau de vontade em relação ao que foi dito, ou seja, se aceita, admite,
Argumentação e Linguagem Capítulo 10 143
etc. ou não o que infere do discurso. É o caso de bueno ou bien. Os enfocadores de
la alteridad, por sua vez, são caraterizados por apontar ao ouvinte, como no caso de
hombre, bueno, vamos, mira, etc. Por último, os metadiscursivos conversacionales
são usados, como seu nome indica, para construir a conversa, traços que mostrem o
esforço para formular e organizar o discurso. Destacam-se neste grupo ya, sí, bueno
o bien.
Nas amostras os resultados foram os que seguem:
B2 C2
C R C R
Modalidad epistémica
Por supuesto 4 1 0 3
Efectivamente 0 5 0 0
Sin duda 0 5 1 2
Claro 3 2 2 2
Modalidad deóntica
Bien 11 1 0 0
Bueno 34 2 0 0
Enfocadores de la alteridad
¿No?/¿Sí?/¿Vale?/Mira/Mire/
Oye
19 1 0 1
Marcadores metadiscursivos Bueno 0 0 1 0
Totales 71 17 4 8
Em C2, foi reduzido o número de unidades, sobretudo da modalidad deóntica e
dos enfocadores de la realidad, que costumam ser assimilados ao âmbito da oralidade.
Parecequeosparticipantesnestetrabalhoestiveramcientesdequenoformatodaprova
não tinham muito cabimento. Entretanto, sua presença aumenta consideravelmente
nas cartas em B2, o que, por outro lado, seria esperado dado o caráter menos “formal”
da prova, que daria um maior espaço para sua aparição. A pergunta que surge neste
ponto é se esta reflexão realmente se dá entre os alunos ou simplesmente levam na
língua escrita marcadores que conhecem pelo uso na oralidade.
No caso dos enfocadores de alteridad encontramos dois casos de presença do
português certo, ao aparecer a forma cierto em lugar de outras como, por exemplo,
vale (55CB2 e 62CB2).
4 | 	CONCLUSÕES
Ao longo deste trabalho apresentamos os resultados obtidos após a análise de
quatrocentas produções de estudantes de espanhol como língua estrangeira cujo
objetivoeraconseguiracertificaçãodonívelintermediário(B2)esuperior(C2). Ocorpus
analisado mostra um uso muito reduzido dos marcadores discursivos. Encontramos o
maior número de unidades no grupo dos conectores, os mais presentes também nos
manuais (Corral Esteve, 2010). Talvez isto seja devido ao fato de os alunos perceberem
Argumentação e Linguagem Capítulo 10 144
como os mais “necessários” na hora de planificar um texto, sobretudo em casos de
textos expositivos ou argumentativos. Portanto, seriam mais esperados nas redações,
mas os resultados são maiores nas cartas (cento e dezenove em B2 e quarenta e sete
em C2), o que parece confirmar a ideia de que são usados sem muito planejamento.
A unidade mais repetida é además (seguido de así, entonces e sin embargo), unidade
próxima ao português, como acontece na maioria dos marcadores presentes no
estudo, o que pode nos levar a pensar que os alunos não arriscam e preferem ficar
em uma área de relativo conforto. O segundo grupo com mais presença é o dos
marcadores discursivos, concretamente, os da modalidad deóntica e os enfocadores
de la alteridad nas cartas do nível B2, sendo reduzido seu uso no nível C2. No resto dos
grupos, a presença é mais ou menos similar, com maior número nas redações, mas
ainda assim com uma incidência muito restrita, sendo o maior número de casos nos
estructuradores de la información os marcadores de fechamento; nos reformuladores,
o marcador ou seja; e nos operadores argumentativos, o por ejemplo. Concluímos,
portanto, que muito trabalho ainda deve ser feito para conseguir que os alunos usem
de forma consciente e planificada esses elementos. Para isto, deve atender-se de
forma explícita a seu ensino, observando e refletindo sobre sua importância, suas
características, seus usos e suas diferenças, focando não só em suas características
formais, mas também nas semântico-pragmáticas.
REFERÊNCIAS
BLAKEMORE, Diane. Semantics constraints on relevance. Oxford: Blackwell, 1987.
CORRAL ESTEVE, Cristina. Los conectores discursivos de la lengua escrita en la clase de
español como lengua extranjera: una propuesta de trabajo (Tese de doutorado). Universidad de
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Capítulo 11 146Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 11
VARIAÇÃO FONÉTICA NO POVOADO ONÇA DO
MARANHÃO: ANÁLISE DOS FENÔMENOS DE
REDUÇÃO DO DITONGO “OU” EM “O” E REDUÇÃO
DO DITONGO “EI” EM “E”
Shayra Brunna Silva Marques
Graduanda em Letras: Língua Portuguesa, Língua
Inglesa e suas Literaturas pela Universidade
Estadual do Maranhão – UEMA / Campus Santa
Inês. E-mail: shayramarques@gmail.com
Ana Claudia Menezes Araujo
Professora orientadora do Departamento de
Letras e Pedagogia da UEMA / Campus Santa
Inês, mestre em Letras - Estudos de Linguagem
pela Universidade Federal do Piauí – UFPI /
E-mail: claudia-ama@hotmail.com
RESUMO: Este trabalho trata-se de uma
pesquisa sociolinguística sobre os fenômenos
de redução dos ditongos decrescentes “ou” em
“o” e “ei” em “e” presentes na linguagem dos
moradores do povoado Onça, localizado no
município de Santa Inês, Estado do Maranhão.
Apresenta-se como principal objetivo identificar
a presença destes fenômenos fonéticos no
corpus coletado em campo e, dessa forma,
evidenciar essa variação regional e social,
para que fique perceptível que fatores como
cultura e classe social estão ligados a essas
alterações na fala. Assim, estudar a estrutura
linguística e a estrutura social para destacar
e mostrar a relevância da variação linguística
existente entre elas. Segundo Marcos Bagno
(2007), é impossível estudar a língua sem
estudar, ao mesmo tempo, a sociedade em que
essa língua é falada. Nessa pesquisa teremos
como aparato teórico Bagno (2007), Tarallo
(1997), Cristófaro Silva (2009), Mollica (2003) e
Câmara Junior (1978), que deram consistência
a esse trabalho por meio de seus estudos
desenvolvidos na área de Sociolinguística
e/ou Fonética da Língua Portuguesa. Para
a realização da pesquisa, usando um
questionário fonético-fonológico, entrevistamos
habitantes do povoado Onça, em que estes
possuem Ensino Fundamental incompleto,
Ensino Fundamental Completo, Ensino Médio
incompleto e Ensino Médio completo, de ambos
os sexos, enquadrados na faixa etária de 18 a
30 e 60 a 65 anos e totalizando 18 entrevistados,
nascidos e domiciliados no respectivo povoado,
distribuídos em quantidades iguais em cada
faixa etária. A pesquisa leva-nos a concluir que
a variação linguística do povoado onça é de
vital importância nesta região, pois é através
dessa variação que ocorre a comunicação entre
seus indivíduos. Vemos assim a importância da
variação sociolinguística; ciência que têm como
uma de suas finalidades como seu próprio nome
indica estudar a variação linguística regional e
sua importância para a boa comunicação entre
seus pares desfazendo assim preconceitos de
qualquer outra variação linguística que se ache
superior.
PALAVRAS-CHAVE: Sociolinguística. Variação
Linguística. Redução da linguagem
Argumentação e Linguagem Capítulo 11 147
ABSTRACT: This work is about a sociolinguistic research on the phenomena of
reduction of the decreasing diphthongs “or” in “o” and “ei” in “e” present in the language
of the residents of the Onça village, located in the municipality of Santa Inês, in the
state of Mraranhão. The same has a principal objective is to identify the presence
of these phonetic phenomena. In this research we will have as theoretical apparatus
Bagno (2007), Fernando Tarallo (1997), Thais Cristófaro Silva (2009) Cecília Maria
Mollica (2003), Câmara Junior (1978) and Marcuschi (2007), that gave consistency
to this work through studies developed in the area of Sociolinguist and Phonetics.
For the realization of this reaserch, we use the interview adults of the Onça village, of
incomplete primary and secondary education of both sexes, framed in the age group:
18 to 30 and 60 to 65 years old totaling 18 respondents, born and domiciled in their
village, distributed in equal amounts in each age group. By observing corpora collected
through questionnaire phonetic-phonological, identified that speaking of respondentes
occur phenomena above mentioned, characterizing the diversity of portuguese spoke
in Maranhão.
KEYWORDS: Sociolinguistics. Linguistic Variation. Reduction of language.
1 | 	INTRODUÇÃO
Tendo observado os fenômenos de variações linguísticas “ou” e “ei” do povoado
onça pertencente ao município de Santa Inês, verificou-se que tais inconstâncias
possuem uma estrutura linguística e que as mesmas não podem ser explicadas por
regras estruturais do português padrão. A aptidão para ditongos decrescentes está
inteiramente ligada a fatores internos e externos. Essa variabilidade linguística é um
dos impressionantes e impactantes aspectos da nossa língua portuguesa e pode ser
entendido melhor por meio de estudos históricos e regionais sobre a fala.
Em nosso país, por exemplo, com o mesmo idioma oficial, a língua sofre
modificações feitas por seus falantes e isso ocorre porque vivemos na mesma
sociedade que por sua vez é complexa e estão inseridos grupos sociais com etnias,
classes, conceitos, valores, religião entre outros diferentes. Parte desses grupos
tiveram acesso à educação formal, porém outros não tiveram muito contato com o
português padrão ou até mesmo acesso à educação. Algumas dessas variações
linguísticas não mostram a mesma receptividade ao ser ouvida por regiões diferentes
da mesma língua oficial e isso resulta em um fato chamado de preconceito linguístico.
O presente artigo tem como principal objetivo identificar as reduções de ditongos
e suas variações linguísticas do povoado Onça, o qual foi explorado seus aspectos
fonéticos dos corpora coletados. Tivemos como base teórica autores como Carlos
Bagno (2007) e Thaís Cristófaro (2002) que fazem estudos linguísticos, fonológicos,
éticos e sociais sobre este tema. Através dos estudos e pesquisas feitos neste trabalho
sabe-se que é preciso levar em consideração o fator histórico da fala de cada região.
O objetivo desta pesquisa é mostrar claramente ao leitor essa variação regional, social
e histórica para que notem que fatores como: cultura, classe social e outros estão
Argumentação e Linguagem Capítulo 11 148
ligados a essas modificações na construção da fala.
Pretende-se também mostrar a importância das variações linguísticas que
ocorrem em cada região dentro da realidade de onde vivem. A língua é dinâmica, sofre
modificações com o passar dos anos e através de fatores advindos de cada época e
grupo social.
2 | 	A SOCIOLINGUISTICA E A VARIAÇÃO LINGUISTICA
Não dá para estudar a sociedade sem levar em consideração as relações que
os indivíduos estabelecem entre si por meio da linguagem. A Sociolinguística estuda
as conexões entre linguagem e sociedade e o modo como usamos a linguagem em
diferentes situações sociais. Ela geralmente reflete a realidade do discurso humano e
mostra como um dialeto pode descrever a idade, o sexo, e a classe social do falante,
sendo uma codificação da função social da linguagem.
Desse modo, a Sociolinguística abrange desde o estudo comparativo entre a
variedade de dialetos através de uma região até análise entre os modos de falar de
homens e mulheres, jovens, ricos e pobres, letrados e iletrados. Segundo Marcos
Bagno (2007), para o sociolinguista é impossível estudar a língua sem estudar, ao
mesmo tempo, a sociedade em que essa língua é falada.
Para Cecília Maria Mollica (2003, p. 11):
Cabe a Sociolinguística, área interdisciplinar da linguística, “investigar o grau de
estabilidade ou de mutabilidade da variação, diagnosticar as variáveis que tem
efeito positivo ou negativo sobre a emergência dos usos linguísticos alternativos e
prever seu comportamento regular e sistemático”.
Dessa forma, a Sociolinguística parte do princípio de que estudar a estrutura
linguística e a estrutura social para comparar e mostrar a relevância da variação
linguística existente entre elas, vai além das relações singelas entre a língua e o
social. Proporcionando dessa forma a valorização da diversidade, desconstruindo
o preconceito linguístico. Frequentemente, nas comunidades de fala, haverá formas
linguísticas em variação, para o sociolinguista Tarallo (1997, p. 8):
Em toda comunidade de fala são frequentes as formas linguísticas em variação.
A essas formas em variação dá-se o nome de variantes. Variantes linguísticas são
diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto e com o
mesmo valor de verdade. A um conjunto de variantes dá-se o nome de variável
linguística.
Partindo do princípio de que variação linguística é a capacidade que a língua tem
de se transformar e se adaptar de acordo com alguns componentes. De acordo com
Bagno(2007),ossociolinguistasenfatizamsemprequenãoexistefalantedeestiloúnico,
e que todo indivíduo varia a sua maneira de falar. Variações essas que são, histórica,
maneira como a língua evolui de acordo com o tempo, sociocultural, relacionado aos
grupos sociais, geográfica, que representa fatos sociais de uma determinada região
e é interiorizada por todos os falantes e sua aprendizagem ocorre basicamente no
Argumentação e Linguagem Capítulo 11 149
ambiente familiar como marca de identidade do grupo social e estilística que tem a ver
com a situação de uso da língua.
Ainda falando a respeito de variação linguística, Marcos Bagno (2007), em seu
livro “Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia de variação linguística”, vem
dizendo que essa variação pode ser verificada em todos os níveis da língua: fonético-
fonológico, morfológico, sintático, semântico, lexical, estilístico-pragmático. E ainda
acrescenta dizendo que apesar disso, muita coisa da língua não apresenta variação.
2.1	Fatores Extralinguísticos Condicionantes da Variação Linguística
Os sociolinguistas selecionam um conjunto de fatores sociais que podem ajudar
no reconhecimento dos fenômenos de variação linguística. Temos como fatores
extralinguísticos condicionadores da variação linguístistica, origem geográfica, status
socioeconômico, grau de escolarização, idade, sexo, mercado de trabalho e redes
sociais. Marcos Bagno (2007) conceitua todos esses fatores:
Origem geográfica: a língua varia de um lugar para outro;
Status socioeconômico: a língua varia de acordo com o nível de renda;
Grau de escolarização: a língua varia de acordo com o acesso maior ou menor
à educação formal;
Idade: a língua varia de acordo com a faixa etária;
Sexo: homens e mulheres fazem uso diferente dos recursos que a língua oferece;
Mercado de trabalho: a língua varia de acordo com a profissão;
Redes sociais: é quando uma pessoa adota comportamentos iguais aos das
pessoas com quem convivem em suas redes sociais.
Através da seleção dos fatores sociais e linguísticos importantes para o estudo
é que segundo o sociolinguista Marcos Bagno (2007), a pesquisa sociolinguística
permite que os estudiosos descubram a realidade da língua no Brasil.
3 | 	REDUÇÃO DOS DITONGOS
Na gramática tradicional, os ditongos são estudados no campo da fonologia e
são definidos pelo encontro vocálico de duas vogais na mesma sílaba. Quando esse
encontro é de uma vogal e de uma semivogal, o ditongo é classificado por decrescente,
mas se for o contrário, semivogal e vogal, a classificação será crescente.
Segundo Bagno (2007, p. 147), embora a convenção ortográfica direcione
a pronúncias forçadas e artificiais que não correspondem à realidade falada dos
brasileiros, o fenômeno da monotongação tem interferido no processo de alfabetização,
uma vez que a tendência do principiante é escrever a vogal simples e não o ditongo.
A redução, de acordo com Câmara Junior (1978, p. 170), é uma alteração apenas
fonética, ou seja, ela só ocorre na oralidade. Este fenômeno existe desde a passagem
do latim clássico ao latim vulgar. Embora não haja preconceito para a redução de
Argumentação e Linguagem Capítulo 11 150
ditongos decrescentes, é importante ressaltar que mesmo não pronunciando as
duas vogais, na escrita ainda existe o ditongo e, portanto, escrever como se fala é
considerado errado e repelido de acordo com a norma padrão. Marcos Bagno (2007,
p. 48) comenta sobre isso em seu livro Preconceito Linguístico:
Muitas gramáticas e livros didáticos chegam ao cúmulo de aconselhar o professor
a “corrigir” quem fala muleque, bêjo, minino, bisôro, como se isso pudesse anular
o fenômeno da variação, tão natural e tão antigo na história das línguas. Essa
supervalorização da língua escrita combinada com o desprezo da língua falada é
um preconceito que data de antes de Cristo!
Ainda de acordo com Bagno (2007, p. 214), a não redução do ditongo só acontece
quando a fala é monitorada ou quando a pessoa está lendo um texto em voz alta e se
deixa levar pela grafia. Portanto, desde os iletrados até os letrados, de norte a sul do
Brasil, fazem o uso deste fenômeno de redução dos ditongos.
VARIAÇÃO FONÉTICA DO PORTUGUÊS
Muitos acreditam que no Brasil fala-se somente uma língua, sabemos que esta
afirmação não é verdadeira, pois a Língua Portuguesa apresenta grande variação de
região para região, de estado para estado, sem esquecer os fatores extralinguísticos,
tal como afirma Bagno (2008, p. 27), ao lembrar-nos de que o Brasil é um lugar onde:
(...) são faladas mais de dezenas de línguas diferentes, entre línguas indígenas,
línguas trazidas pelos imigrantes europeus e asiáticos, língua surgidas das
situações de contato nas extensas zonas fronteiriças com os países vizinhos, além
de falarem diversas línguas africanas trazidas pelas vítimas do sistema escravista.
Com isso, fica claro que mesmo possuindo variação, uma língua continua
desempenhando seu papel em uma determinada sociedade, o que não a tornará
melhor ou pior que outras. Quando se trata do ser humano, a homogeneidade é quase
inalcançável. Segundo Marcuschi (2007, p. 43):
(...) toda vez que emprego a palavra língua não me refiro a um sistema de regras
determinado, abstrato, regular e homogêneo, nem a relação linguística imanente.
Ao contrário, minha concepção da língua pressupõe um fenômeno heterogêneo
(com múltiplas formas de manifestação), variável (dinâmico, suscetível à mudança),
histórico e social [...]
ALíngua Portuguesa no Brasil apresenta diferentes estilos, a diferença percebível
é a de caráter fonético, ou seja, na maneira de falar. Isso acontece porque usamos na
linguagem oral as palavras sem nos preocuparmos com o formalismo.
4 | 	METODOLOGIA
A Teoria da Variação ou da Sociolinguística Quantitativa surgiu em 1960,
baseada na proposta de Weinreich, Labov e Herzog. Com o objetivo de descrever a
língua e seus determinantes sociais e linguísticos, levando sempre em consideração o
seu uso variável e, por conseguinte, seu aspecto heterogêneo. Nesse caso, a variação
Argumentação e Linguagem Capítulo 11 151
linguística pressupõe a existência da diversidade nos modos de falar. Portanto ela
pode ser sincrônica, pois ambas as formas têm que coexistirem e diacrônica quando
analisada ao longo do tempo.
A variação é inerente a língua e não aleatória, mas ordenada por fatores
linguísticos e extralinguísticos. Segundo Maria Mauro Cesário e Sebastião Votre (2008),
a abordagem Variacionista baseia-se em pressupostos teóricos que permitem ver a
regularidade e sistematicidade mesmo por trás do aparente caos da comunicação do
dia-a-dia. Percebemos, então que essa teoria possui uma metodologia própria, capaz
de fornecer ao pesquisador ferramentas para definir e analisar o fenômeno variável
que se deseja estudar.
Amplamente, podemos descrever as variedades linguísticas a partir de três
pontos básicos: os de natureza diatópica (local, região), os de natureza diastrática
(classe social, idade, contexto social) e os de natureza estilística (maior e menor grau
de formalidade de um enunciado), todos vão condicionar o uso variável de fenômenos
linguísticos, além dos fatores internos ao sistema da língua.
Seguindo essa teoria, a presente pesquisa, é de natureza diatópica, abordando
ainda além do local, o grau de formação, faixa etária idade e sexo, a qual envolveu
uma abordagem quantitativa, pautada no uso do método etnográfico e considerado as
ocorrências dos fenômenos em estudo na fala dos entrevistados do povoado Onça.
A pesquisa dividiu-se em três partes, na qual a primeira, deu-se pelo estudo
teórico dos fenômenos em pauta, a qual serviu de fundamentação teórica da pesquisa.
A segunda parte coube a elaboração e aplicação de questionário para a realização
de entrevistas, entrevistados estes de ambos os sexos, de escolaridade sem nenhum
grau ao de ensino fundamental completo, com o propósito de observar o fenômeno
fonético em estudo para a análise, ou seja, a ocorrência dos fenômenos de redução
dos ditongos ou em /o/ e ei em /e/ na fala dos informantes. A terceira parte e última,
deu-se pela a análise dos dados coletados para a verificação do fenômeno em questão,
tudo em conforme com os estudos Sociolinguístico Variacionista.
Para o nosso campo de pesquisa, utilizamos o povoado Onça, localizado no
município de Santa Inês, no estado do Maranhão. No total de informantes foram 18,
com faixa etária de 18 a 65 anos, distribuídos de acordo com o grau de escolaridade,
sendo que os mesmos ainda assinaram um termo de compromisso dando permissão
para fazermos as perguntas do questionário fonológico, no qual cada um respondeu
oito perguntas, quatro do fenômeno de redução do ditongo OU em O e outras quatros
do fenômeno de redução do ditongo EI em E, todos os entrevistados nascidos e
residentes no povoado Onça, nas faixas etárias determinadas pelo projeto AliB – 18 a
30 e 60 a 65.
As informações foram adquiridas a partir de um questionário fonético-fonológico,
o qual segue o modelo usado pelo Atlas Linguístico do Brasil, e os próprios foram
feitos segundo as ocorrências da monotongação dos ditongos ow em /o/ e ey em /e/.
Argumentação e Linguagem Capítulo 11 152
5 | 	ANÁLISE DOS FENOMENOS DE REDUÇÃO DO DITONGO “OU” EM “O” E DE
“EI” EM “E’.
Retornando o que já tínhamos falado antes, o objetivo deste trabalho é identificar
a ocorrência do fenômeno de monotongação dos ditongos variáveis decrescentes
ou em “o” e ei em “e” no dialeto dos moradores do povoado Onça. As palavras que
utilizamos para identificar a ocorrência do fenômeno em estudo são: de redução do
ditongo ou em o – doutor, touro, pouco e outubro; de redução do ditongo ei em e –
feijão, beijo, peixe e dinheiro.
De acordo com a teoria da variação, sabemos que a escolha entre variantes não
se dá aleatoriamente, mas, sim, relacionada a variáveis linguísticas e extralinguísticas.
Neste artigo, analisamos duas variáveis de caráter linguístico, ou seja, o contexto
fonológico e a estrutura interna da palavra, as quais ficarão mais claras no estudo das
apreciações.
Agora, daremos ênfase a análise, que tem como principal objetivo identificar a
ocorrência do fenômeno de monotongação dos ditongos “ou” em “o” e “ei” em “e”,
no dialeto dos moradores do povoado onça, município de Santa Inês, no estado do
Maranhão. Das quatro variáveis sociais previamente estabelecidas para a presente
análise (sexo, idade, escolaridade e renda) demos ênfase as três primeiras variáveis
do informante para aplicação da regra de monotongação dos ditongos “ou” e “ei”. O
nível escolar foi escolhido por ser de suma importância para a aplicação da regra
de monotongação de ambos os ditongos. Diante das pesquisas efetuadas com
os moradores do povoado Onça, observou-se que quanto menos escolarizado o
informante, mais alto é o índice de aplicação da regra. Portanto, entende-se que: é
necessário compreender que não existe uma distribuição antagônica entre uso do
ditongo conservado x falantes escolarizados e uso do monotongo x falantes não
escolarizados. Diante dos fatos, os entrevistados, independentemente de seu grau de
instrução, usam as formas reduzidas, mas esse uso diminui à medida que aumenta o
nível de escolarização.
De acordo com o nível de escolaridade, os informantes foram separados em três
grupos. No primeiro grupo foram considerados os não escolarizados, quer aqueles
sem escolaridade nenhuma, quer aqueles que, mesmo tendo passado um ou dois
anos pela escola, não chegaram a dominar as técnicas de leitura e escrita; no segundo
grupo foram inseridos os informantes do ensino fundamental incompleto; e no terceiro
grupo, consideramos aqueles com ensino fundamental completo.
No quesito sexo, trabalhamos dois grupos, masculino e feminino, nas faixas
etárias: de 18 aos 30 anos (grupo 1) e 60 aos 65 anos (grupo2), dos quais foram
entrevistados do primeiro grupo nove pessoas de ambos os sexos e mediante o
enredo das entrevistas notou-se que todos os entrevistados realizaram o fenômeno
de monotongação dos ditongos “ou” em “o” e “ei” em “e”. No segundo grupo não foi
diferente, apresar de o mesmo já encontrar-se uma faixa etária avançada, detectou-se
Argumentação e Linguagem Capítulo 11 153
as mesmas dificuldades linguísticas na oralidade.
5.1	Redução do ditongo “ow” em “o”.
A análise do corpus demonstra que os 18 entrevistados de ambos os grupos
e sexos, correspondentes a 100% dos informantes pesquisados, diagnosticou-se
que ao pronunciarem as palavras “doutor”, “touro”, “pouco” e “outubro”, realizaram o
fenômeno de monotongação como veremos nos exemplos a seguir:
Doutor [d’otɔr]
Touro [t’oru]
Pouco [ p’oku]
Outubro [ o’tubru]
A ocorrência deste fenômeno no povoado Onça, se igualiza as variedades
linguísticas espalhadas pelo o Brasil a fora. Podemos observar exemplos de variações
linguísticas dentro dos estados do nosso país. Cada região tem sua peculiaridade
linguística e variações, o que não é diferente do que acontece no povoado Onça.
Infelizmente a maior parte da população brasileira sofre, ou já sofreu preconceito
linguístico ou até mesmo já o praticou consciente e inconscientemente, o que gera
por muitas vezes situações conflitantes e até mesmo em último grau, um maior índice
de analfabetismo. Dentro desse contexto o ditongo “ow” em “o”, faz com que o modo
de falar fique mais fácil e a pronúncia saia mais leve. Isso acontece dentro da escola
literária da vida diária dessas pessoas, onde podemos citar o contexto familiar, como
por exemplo: a fala do pai, da mãe, e do grupo social que o indivíduo está inserido,
assim o indivíduo irá criar o seu conjunto linguístico de vocábulos.
O ditongo “ou” é mais passível de redução, Nessa perspectiva, Bagno (2007,
p.61) diz que “se a língua é entendida como um sistema de sons e significados que
se organizam sintaticamente para permitir a interação humana, toda e qualquer
manifestação linguística cumpre essa função plenamente”.
A variável sexo não foi considerada relevante para a redução do ditongo /ow/,
donde inferimos que as relações sociais de gênero na comunidade alvo da presente
pesquisa não se manifestam na aplicação dessa regra linguística: mulheres e homens
monotongam o ditongo de forma praticamente equivalente.
Percebemos também que o grau de escolaridade, não teve muita influência nas
respostas sobre a ocorrência do fenômeno em estudo. Já que em todas as respostas
encontramos a presença da redução do ditongo ou em o. O que demonstra que no
dialeto das 18 pessoas entrevistadas, na sua oralidade, não existe mais o ditongo ou,
mas, sim a vogal o.
Conforme dito anteriormente, o ditongo [ou] se diferencia dos outros tipos, uma
vez que, em todos os casos, eles são passíveis de redução.
Argumentação e Linguagem Capítulo 11 154
5.2	5.2 Redução do ditongo “ei” em “e”
Seguindo a análise dos ditongos, daremos continuidade com a redução do ditongo
“ei” em “e”. De acordo com as pesquisas feitas no povoado Onça, o corpus mostra
de fato que a realização do fenômeno “ei” em “e” não foi muito diferente do primeiro
grupo analisado, ou seja, redução do ditongo “ou” em “o”. Na presente análise foram
trabalhadas as seguintes palavras com os entrevistados: peixe, feijão, dinheiro e beijo.
No decorrer das análises, foram observados claramente a redução do ditongo “ei” em
“e”, como por exemplo:
Dinheiro [dʒɲ’eɾu]
Peixe [p’eʃi]
Feijão [f’eʒãu]
Beijo [b’eʒu]
Diante da transcrição fonética acima, observamos que 100% dos indivíduos
entrevistados e isto inclui os dois grupos de faixas etárias de 18 a 30 anos e 60 a 65
anos, também realizaram a redução do ditongo “ei” em “e” de forma natural. Percebe-
se que essa redução decorre desde a fase de desenvolvimento da fala deste indivíduo
até a fase adulta, e isto inclui a família e os grupos sociais que o mesmo está inserido.
Dentro deste contexto fricativo palatal é um fator linguístico que influencia a regra
variável de monotongação do “ei”.
Marcos Bagno (2007) afirma que essa redução desses ditongos está tão
disseminada que já se configura como parte do vernáculo mais geral dos brasileiros.
A citação de Marcos Bagno nos leva a compreender como a variação linguística
em torno nosso país e fora dele é uma realidade vigente em todas as regiões. Tornou-se
tão comum e quase que imperceptível essa redução de ditongo na fala dos brasileiros
que muitas das vezes em uma conversa informal usam-se quase que cem por cento
dessas reduções no enredo da conversa. Existe uma preocupação maior dentro do
meio acadêmico e formal em calcular as palavras corretas para que assim não se
acabe caindo dentro dessas reduções. Agora partindo do pressuposto da análise
corpora das palavras trabalhadas com os grupos entrevistados percebemos que a
fonética segue um padrão de melhor articulação, para que a palavra saia mais leve.
De acordo com Thaís Cristófaro Silva (2009), o articulador ativo é o lábio inferior
e como o articulador passivo temos os dentes incisivos superiores. Essa citação faz
com que possamos analisar as palavras “peixe e feijão” como labiodental, uma das
palavras usadas para entrevistar os grupos citados. Já nas palavras “dinheiro” e
“beijo” de acordo com a autora acima citada podemos dizer que são classificadas
como alveolopalatal onde o articulador ativo é a parte anterior da língua e o articulador
passivo é a parte medial do palato duro.
Constatou-se, que em se tratando do ditongo EI observamos uma pequena
diferença, no caso da redução do ditongo ou em o, o que é escrito o é pronunciado o
em todas as situações e contextos. De acordo com Bagno (2007), o que se escreve EI,
Argumentação e Linguagem Capítulo 11 155
só se transforma em E, com o som fechado quando este (i) vim antes das consoantes J,
X e R. Assim a assimilação fará com o que os sons se tornem um só. O que aconteceu
com as palavras Dinheiro [dʒɲ’eɾu] Peixe [p’eʃi] , Feijão [f’eʒãu] e Beijo [b’eʒu], as
quais em todas as pronúncias foi perceptível o apagamento da semivogal ( i).
Em se tratando ainda do ditongo EI, a assimilação aproveita o caráter palatal da
semivogal I e das consoantes J e X para encaixá-las em um único som. Desse modo,
o que acontece não é precisamente a redução do ditongo EI em E, mas a redução de
–IJ- e IX- em –j- e –X-.
Com a palavra Dinheiro [dʒɲ’eɾu] em que acontece é que como o EI precede a
consoante R, que é produzido na parte da boca em que se encontra o palato mole,
por ficar entre os alvéolos e os dentes, na parte mais avançada do céu da boca e por
terem este ponto de articulação comum é que os sons da semivogal I e da consoante
R sofrem os efeitos da assimilação, fazendo com que os sons se tornem um só.
CONCLUSÃO
A conclusão a que chegamos após a análise dos corpora, é que a língua sofre
variação de um lugar para outro. E que os ditongos decrescentes variáveis ou e ei
são suscetíveis ao apagamento das semivogais u e i. De acordo com Marcos Bagno
(2007, p. 214) a não redução do ditongo só acontece quando a fala é monitorada ou
quando está lendo um texto em voz alta e se deixa levar pela grafia. A distribuição da
monotongação dos ditongos, evidencia a riqueza de diversidade do nosso vocábulo
brasileiro.
A intenção primordial do nosso trabalho foi identificar o fenômeno de
monotongação dos ditongos “OU” em “O” e “EI” em “E” na fala dos moradores da
Onça, município de Santa Inês no Maranhão, bem como vimos, tal fenômeno se faz
presente no dialeto dos entrevistados. E pela nossa observação, sobretudo na fala dos
que possuem menos grau de instrução, uma das características latentes para que o
fenômeno em estudo se concretize, obtivemos 100% de realização do fenômeno de
monotongação dos ditongos OU em O e EI em E na pronúncia das palavras “doutor”,
“touro”, “pouco”, “outubro”, “feijão”, “beijo”, ”peixe” e “dinheiro” utilizadas para coleta
de análise dos dados.
A partir desse estudo, foi possível ainda, verificar o quanto a língua se evolui,
enquanto a escrita segue lentamente, o que não é ruim, posto que a mesma é de suma
importância para que entendamos melhor os variados tipos textuais e documentos
antigos fruto da história. O desenvolvimento da língua, no entanto, retrata muitas
vezes a pressa de nosso cotidiano, que faz com que economizemos até nas letras nos
falares sociais do dia-a-dia. Mas, a mesma como pudemos verificar, não é um fator
prejudicial na comunicação entre falantes da nossa língua, nem no local onde fora feito
o trabalho em pauta. Não encontramos ruídos no diálogo dos residentes do campo do
Argumentação e Linguagem Capítulo 11 156
nosso estudo.
Finalizamos, assim, a pesquisa, sobre essa complexa teoria que é a variação
sociolinguística, e as variedades do português brasileiro, os quais, fornece
grandemente uma riqueza de informações da língua e das peculiaridades do dialeto
social não somente no Maranhão mais em toda extensão dos falares no Brasil. Os
mesmos prestam uma enorme ajuda a pesquisadores da área da linguagem, bem
como a conhecerem o real quadro linguístico do nosso país, fornecendo ampla noção
das variedades linguísticas, tentando dessa forma minimizar ou exterminar de vez o
preconceito linguístico, que faz com que tantas pessoas sejam discriminadas pelo seu
modo de falar.
REFERÊNCIAS
BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São
Paulo: São Paulo: Parábola Editorial, 2007.
BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyla, 2007.
BAGNO, Marcos. A língua de Eulália – novela sociolínguista. São Paulo: Contexto, 2012.
CÂMARA JR, J. Mattoso. Dicionário de Linguística e Gramática: Referente à Língua Portuguesa. 8 ed.
Petrópolis: Vozes, 1978.
CRISTÓFARO SILVA, Thais. Fonética e Fonologia do Português: roteiro de estudos e guia de
exercícios. São Paulo: Contexto, 2002.
LABOV, William. Padrões Sociolinguísticos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
MARCUSCHI, Luiz Antônio (2007). Da Fala para a Escrita: atividades de retextualização. São Paulo:
Cortez
MOLLICA, Maria Cecília. Introdução à Sociolinguística: O tratamento da Variação. São Paulo:
Contexto, 2003.
TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolínguista. 8ª ed. São Paulo: Ática, 1994.
Capítulo 12 157Argumentação e Linguagem
PLE + ELO: UMA EXPERIÊNCIA VIRTUAL NO ENSINO
DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA NA
UFLA
CAPÍTULO 12
Débora Racy Soares
Departamento de Estudos da Linguagem,
Universidade Federal de Lavras
Lavras, Minas Gerais
RESUMO: A oferta de cursos de Português
como Língua Estrangeira (PLE), parcialmente
a distância, é uma das recomendações
do Ministério da Educação (MEC) para o
estabelecimento do programa Português
sem Fronteiras nas Instituições de Ensino
Superior brasileiras. Nesse contexto, relata-
se uma proposta pedagógica, realizada na
Universidade Federal de Lavras (UFLA), que
utiliza o ELO (Ensino de Línguas Online) como
suporte pedagógico.
PALAVRAS-CHAVE: PLE; ELO; UFLA.
PFL + ELO: A VIRTUAL EXPERIENCE IN
THE TEACHING OF PORTUGUESE AS A
FOREIGN LANGUAGE AT UFLA
ABSTRACT: The offer of Portuguese as a
Foreign Language courses (PFL), partially at a
distance, is one of the recommendations of the
MinistryofEducation(MEC)fortheestablishment
of the Portuguese without Borders program in
the Brazilian Higher Education Institutions. In
this context, we report a pedagogical proposal,
carried out at Federal University of Lavras
(UFLA), which uses ELO (Online Language
Teaching) as pedagogical support.
KEYWORDS: PFL; ELO, UFLA.
Emdezessetedenovembrode2014,oMEC
(Ministério da Educação) inaugurou o programa
Idiomas sem Fronteiras (IsF), com o objetivo de
potencializar o processo de internacionalização
das universidades brasileiras, através do
ensino de vários idiomas, entre eles o Portuguê
como Língua Estrangeira (PLE). Vinculado ao
Programa Ciências sem Fronteiras, o IsF, além
de consolidar o existente Inglês sem Fronteiras,
tem como objetivo ampliar o leque de idiomas
disponíveis para aprendizagem.
O Português como Língua Estrangeira,
doravante PLE, é um dos idiomas contemplados
pelo IsF. Entre as diversas iniciativas,
propostas pelo MEC dentro do âmbito do IsF,
está o lançamento de algumas diretrizes para
os idiomas recém-contemplados: Francês,
Espanhol, Italiano, Japonês, Português como
Língua Estrangeira. Uma das diretrizes diz
respeito à introdução, paulatina, do ensino
híbrido (blended learning), com foco na
aprendizagem de idiomas, através da utilização
de atividades a distância e presenciais. Nesta
linha, o MEC recomenda, inicialmente, a
adoção das Novas Tecnologias de Informação
Argumentação e Linguagem Capítulo 12 158
e Comunicação (NTICs) como suporte pedagógico às aulas presenciais de idiomas.
Foi importante ter em mente estas recomendações quando da implementação
e consolidação dos cursos de idiomas, em geral, e de PLE, especificamente. As
disciplinas de PLE da Universidade Federal de Lavras (UFLA) foram criadas no
segundo semestre de 2014 já atendendo, desde seu planejamento, as diretrizes
propostas pelo MEC para a área. Assim sendo, por ora refletir-se-á sobre a adoção do
ELO, entre tantas NTICs disponíveis, como suporte pedagógico virtual eficiente para
verificar e também consolidar a aprendizagem de PLE.
O ELO - Ensino de Línguas Online - (http://www.elo.pro.br/) é uma plataforma
de autoria, especialmente desenvolvida para possibilitar a criação de vários tipos de
atividades didáticas, voltadas para o ensino de idiomas. Entre seus recursos destacam-
se feedbacks progressivos para cada resposta do aluno, correta ou incorreta. Este
software gratuito, disponível na internet, é relativamente fácil de utilizar, além de conter
“boias” explicativas, em caso de dúvidas.
O ELO foi utilizado como complementação das aulas presenciais de PLE nível 1
(básico/inicial) e observou-se que a aquisição da língua estrangeira foi potencializada
através de atividades como jogos de memória, reconstrução textual, complete as
lacunas, entre outras. Através de atividades, criadas especialmente para os discentes
do nível básico, falantes de espanhol como língua materna, foi verificada a melhor
compreensão de alguns tópicos como falsos cognatos, cores, gêneros e plurais dos
substantivos em português brasileiro.
Os links para as atividades preparadas no ELO foram disponibilizados no AVA
(Ambiente Virtual de Aprendizagem) da disciplina PLE 1. Enfatiza-se que a carga
horária desta disciplina de pós-graduação é 60 horas (04 créditos). De acordo com
o regulamento da Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPG) da UFLA, 20% da carga
horária da disciplina, ou seja, até 12 horas de atividades podem ser realizadas
virtualmente. Portanto, o ELO foi utilizado como proposta pedagógica-piloto, a fim de
verificar seu impacto no rendimento dos alunos falantes de espanhol como língua
materna em fase inicial de aprendizagem de PLE. Ao longo de um semestre, várias
atividades foram elaboradas pela docente e realizadas pela turma, composta por 15
alunos estrangeiros.
O ELO apresenta nove possibilidades de atividades ou módulos, a saber:
Hipertexto, Vídeo, Eclipse, Cloze, Sequência, Memória, Quiz, Organizador e Composer.
Para elaborar as atividades, o docente deve acessar o sistema com seu login de
professor. Para vê-las, no entanto, pode também acessar o sistema com o perfil de
aluno. A plataforma permite a inserção de imagens, áudios e vídeos, além de fornecer
feedbacks personalizados. Ademais, é possível elaborar várias atividades, dentre as
nove possibilidades disponíveis e, opcionalmente, escolher gamificá-las.
É imprescindível, ao criar cada atividade, escolher título e palavras-chave que
a identifiquem, sinalizar o idioma da atividade, seu grau de dificuldade (fácil, médio,
difícil), assim como a faixa etária contemplada (crianças, jovens, adultos, todas).
Argumentação e Linguagem Capítulo 12 159
Nesse momento, é permitido escolher entre clonar uma atividade já pronta ou criar
outra atividade.
Através do módulo Hipertexto é possível elaborar páginas de hipertexto para as
atividades, inclusive Webquests. Imagens, textos e vídeos podem ser inseridos nesta
atividade.
Na atividade Vídeo, que pode funcionar como módulo inicial ou de apresentação,
é possível introduzir vídeos profissionais ou caseiros. Embora não seja possível integrar
texto e imagens em uma mesma página, a vantagem é a facilidade de inserção de
vídeos no sistema.
O módulo Eclipse permite a criação de atividades de reconstrução textual. À
medida que o aluno tenta descobrir as palavras eclipsadas, o texto vai surgindo. O
professor pode ainda inserir dicas, durante a criação da atividade, com o intuito de
facilitar o trabalho do aluno. Ao mesmo tempo, a não inserção de dicas pode tornar a
atividade mais difícil. Assim, é possível clonar a atividade já elaborada, sem as dicas,
por exemplo, e utilizá-la em turmas mais avançadas de PLE. Esta atividade é ideal para
se trabalhar com letras de música (ditado musical), diálogos, definições, traduções,
resumos, listas, caça-palavras, jogo das diferenças.
Cloze é uma atividade ancorada na criação de lacunas. O aluno deve inferir as
palavras ocultas, digitando as palavras ausentes e pressionando Enter. É possível
trabalhar definições, questões gramaticais (verbos no tempo adequado, preposições,
prefixos, sufixos, palavras homófonas), descrição de pessoas e cenários, diálogos,
palavras-chave de um texto.
O módulo Sequência explora as conexões do texto e é oportuna, por exemplo,
para reconstruir um texto na sequência adequada. O docente pode embaralhar um
texto e pedir para o aluno ordená-lo. Um pequeno trecho de vídeo, uma música, a
declamação de um poema, podem ser anexados à atividade, propondo que o aluno
ordene frases lidas e/ou ouvidas. A reordenação dos segmentos do texto, na ordem
correta, pode ser solicitada em atividades que envolvam instruções (como sacar
dinheiro do caixa eletrônico, comprar uma pizza pelo telefone, trocar a lâmpada,
consertar o chuveiro). Linhas de tempo, com eventos históricos, também podem ser
criadas nesta atividade (história do automóvel, do Brasil, da imigração no país).
Memória, módulo baseado no tradicional jogo homônimo, possibilita que o aluno
utilize sua memória e também jogue com a sorte para encontrar os pares corretos. É
possível combinar textos, imagens e sons, dentro de alguns limites estabelecidos pelo
software, como o tamanho das cartas a serem embaralhadas, automaticamente, pelo
sistema. Atividades que associam figura e texto, som e texto e animação e texto podem
ser elaboradas. No primeiro caso, o aluno deve associar figuras e palavras, dentro de
um determinado campo semântico (frutas, animais, letras, cores). No segundo, pares
mínimos podem ser trabalhados (caça-casa, para falantes de espanhol). Já a junção
da animação e do texto permite trabalhar verbos de ação.
O Quiz possibilita a criação de perguntas de múltipla escolha, com várias opções
Argumentação e Linguagem Capítulo 12 160
de feedback, seja para cada resposta certa ou errada atribuída ou para o exercício
como um todo. Assim, o feedback pode ser dado no final da atividade ou ao longo
dela, a depender do nível de proficiência dos alunos. Compreensão de textos é uma
atividade interessante para ser trabalhada neste módulo. É possível também inserir
gráficos, mapas, dados em uma tabela, planilhas com números e outros tipos de
figuras (tirinhas, objetos, aparência das pessoas, cores, tamanhos, relógios). A partir
das imagens, é possível elaborar perguntas de múltipla escolha que podem ser de
identificação (Quem? Onde? Como? Por quê? O quê?), em níveis iniciais.
No módulo Organizador, o aluno deve relacionar as partes (hipônimos) com o
todo (hiperônimo). O desafio proporcionado por esta atividade é a categorização de
itens (animais, partes do vestuário, ferramentas, esportes, meios de transporte).
Composer permite a prática livre da escrita, através de composições. É possível,
através deste módulo, produzir e armazenar webpages no site do ELO.
Uma das maiores vantagens do ELO é que, ao mesmo tempo em que torna o
aprendizado lúdico para os alunos, mobiliza a criatividade do professor, elaborador
das atividades. Várias possibilidades pedagógicas podem ser criadas e até clonadas.
Como as atividades ficam disponibilizadas na plataforma, é possível clonar atividades
já existentes. A seguir, alguns exemplos das atividades criadas para a turma de PLE 1
ilustram este relato.
Figura 1 – Página inicial do ELO – Acesso como professor
Fonte: http://www.elo.pro.br/
Depois de se cadastrar e acessar o sistema como professor é possível começar
a criar e editar as atividades, criar ou editar um curso e visualizar um relatório com o
Argumentação e Linguagem Capítulo 12 161
acesso dos alunos. O ELO pode ser integrado ao Moodle, embora não seja necessário.
Com as turmas de PLE 1, optou-se pela inserção do link das atividades do ELO dentro
da plataforma Moodle do AVA da disciplina.
Figura 2 – Exemplo de atividades criadas no ELO
Fonte: http://www.elo.pro.br/cloud/professor/minhas-atividades.php
Na figura acima é possível visualizar as atividades criadas no ELO, através de
seus títulos e tipos (Cloze, Eclipse, etc.). É permitido também que o professor busque
uma determinada atividade através de palavras-chave.
Figura 3 – Atividade Jogo da Memória – Frutas e Profissões
Fonte: http://www.elo.pro.br/cloud/professor/minhas-atividades.php
Argumentação e Linguagem Capítulo 12 162
A Figura 3 exemplifica a atividade Memória, criada a partir do universo
semântico das frutas e das profissões. No jogo das frutas, os alunos devem associar
a pronúncia de determinadas frutas e suas imagens. Já nas profissões, devem buscar
correspondências entre escrita (repórter, mecânico) e imagem.
Figura 4 – Atividade Composer – Gostos e Preferências
Fonte: http://www.elo.pro.br/cloud/professor/minhas-atividades.php
Na atividade Composer, os alunos foram convidados a escrever um pequeno
texto, a título de apresentação, sobre seus gostos e preferências, inserindo imagens
ilustrativas.
Figura 5 – Atividades Quiz e Eclipse
Fonte: http://www.elo.pro.br/cloud/professor/minhas-atividades.php
A associação de atividades ou módulos, como ilustrado pela Figura 5, também é
possível. Assim, os alunos devem responder algumas perguntas de múltipla escolha
sobre o jingle “Pipoca com Guaraná”, sucesso no Brasil na década de 1990, e ainda
Argumentação e Linguagem Capítulo 12 163
reconstruir a letra da música (Eclipse).
Figura 6 – Feedback personalizado
Fonte: http://www.elo.pro.br/cloud/professor/minhas-atividades.php
Como visualizado na Figura 6, é possível criar feedbacks personalizados para
cada atividade desenvolvida. Imagens, áudios e pequenos vídeos são aceitos como
feedback, além de mensagens textuais.
Autilização do ELO nas aulas de PLE 1 certamente potencializou a aprendizagem
da língua, além de atender as diretrizes do MEC para a área, através da inserção
de Novas Tecnologias de Informação e Comunicação em sala de aula, presencial e
virtual. Atividades lúdicas e interativas facilitaram o processo de ensino/aprendizagem
e reverberaram na motivação dos alunos, que ganharam mais confiança para se
expressarem oralmente ou por escrito. Assim, como sugere o título desta proposta
pedagógica, PLE e ELO formam uma combinação que tem tudo para dar certo.
REFERÊNCIAS
IDIOMAS SEM FRONTEIRAS. Portaria nº 973, de 14 de novembro de 2014. Portal MEC. Disponível
em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=16618-por973-
idioma-sem&category_slug=novembro-2014-pdf&Itemid=30192>.Acesso em: 19 mai. 2016.
LEFFA, V. J. Quando menos é mais: a autonomia na aprendizagem de línguas. In: Christine
Nicolaides; Isabella Mozzillo; Lia Pachalski; Maristela Machado; Vera Fernandes. (Org.). O
desenvolvimento da autonomia no ambiente de aprendizagem de línguas estrangeiras. Pelotas:
UFPEL, 2003, p. 33-49.
_______. O ensino de línguas estrangeiras nas comunidades virtuais. In: IV SEMINÁRIO DE
LÍNGUAS ESTRANGEIRAS, 2001, Goiânia. Anais do IV Seminário de Línguas Estrangeiras. Goiânia:
UFG, 2002. V. 1, p. 95-108.
Capítulo 13 164Argumentação e Linguagem
MOBILED-ASSISTED LANGUAGE LEARNING:
QUESTÕES ACERCA DO USO DE SMARTPHONES
EM SALA DE AULA DE LÍNGUA INGLESA
CAPÍTULO 13
Luana de França Perondi Khatchadourian
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
São Paulo - SP
O presente trabalho foi realizado com apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de
Financiamento 001.
RESUMO: Pesquisadores e educadores
reconhecem o potencial das tecnologias
móveis como uma ferramenta de aprendizagem
para os alunos e buscam incoroporá-los em
algumas práticas de ensino. No entanto, pouca
pesquisa tem sido realizada para categorizar os
numerosos exemplos de aprendizagem móvel
no contexto da sala de aula de língua inglesa. O
uso de aparelhos móveis é constante e se torna
cada vez mais essencial nos dias de hoje.Apartir
deste cenário de uso constante de smartphones
em sala de aula pelos alunos, realizo um
levantamento bibliográfico sobre aprendizagem
móvel de línguas assistida por dispositivos
móveis e teço alguns comentários sobre a
pesquisa de doutorado por mim realizada.
PALAVRAS-CHAVE: Mobile-Assisted Language
Learning; Ensino-Aprendizagem; Língua Inglesa.
MOBILED-ASSISTED LANGUAGE
LEARNING: ISSUES ABOUT THE USE OF
SMARTPHONES IN AN ENGLISH CLASS
ABSTRACT: Researchers and educators
recognize the potential of mobile technologies
as a learning tool for students and seek to
incorporate them into some teaching practices.
However, little research has been done to
categorize the numerous examples of mobile
learning in the context of the English-speaking
class. The use of mobile devices is constant and
becomes more and more essential these days.
As a teacher, I face its use in the classroom,
spontaneously and as a mean of communication
and internet acess for consulting things. From
this scenario of constant use of smartphone
devices in the classroom by the students, I carry
out a bibliographical survey mobile assisted
language learning, and I comment some data
that is on my doctoral thesis.
KEYWORDS: Mobile-Assisted Language
Learning; Actor-Network Theory; Teaching-
Learning; English language.
1 | 	INTRODUÇÃO
Pensar sobre a permanência e o papel
desempenhado pelo smartphone na sala de
aula é uma maneira de tentar aproximar as
Argumentação e Linguagem Capítulo 13 165
práticas de aprender institucionalizadas e estabilizadas da escola com as formas
de aprendizagem informal e baseada em circulação-cooperação-colaboração
engendradas pela cultura digital.
A experiência de ensino-aprendizagem em sala de aula nas escolas públicas é
hoje – ou deve ser – bastante diversa daquela com que nos acostumamos ao longo
da nossa experiência discente. No que tange ao ensino de língua inglesa, ela muda
significativamente por conta das várias influências culturais e tecnológicas com as
quais hoje os alunos têm muito mais contato do que, há algum tempo, conseguiam
manter.
Assim, a prática de ensino de inglês na escola pode ser descrita como estabilizada
no que se refere ao uso de tecnologias mais antigas como a lousa, a carteira, o livro
didático, ou mesmo o vídeo e o aparelho de áudio, mas o smartphone, ao contrário, a
desestabiliza, pois ainda não se encontrou uma maneira de vinculá-lo sem mudar as
relações entre os outros atores, inclusive professor e aluno.
Ainda que se possa argumentar que o custo de aquisição de um smartphone é alto
com relação às necessidades de subsistência, os smartphones são elementos novos
nessa rede de atores (LATOUR, 2005) que constitui as práticas em sala de aula: mais
do que mero uso para entretenimento, os smartphones passam a compor e a agir no
processo de ensino-aprendizagem. Sua entrada nesse cenário traz necessariamente
uma renegociação dos vínculos entre as entidades envolvidas.
Em um estudo piloto, tive a oportunidade de observar algumas aulas de uma
professora de inglês no ensino médio de uma escola estadual da periferia na cidade
de São Paulo e observei que os alunos usam smartphone em aula para uma série de
coisas que pouco ou nada têm a ver com ensino-aprendizagem de língua estrangeira.
Ações como escutar música com fones de ouvido, tirar foto da lousa em vez de copiar,
conversas por meio de redes sociais, jogos online, afastamento espacial do centro da
aula (sempre nos cantos e nos fundos da sala) demonstram como este artefato afeta
toda a rede.
Durante a observação das aulas, identifiquei o estabelecimento de um padrão
das aulas de inglês na escola: ao chegar, a professora faz a chamada por números, e
não por nomes, passa a atividade na lousa, voltada a questões de cunho gramatical
e cujas propostas são eminentemente para a realização passiva – cujo conteúdo é
disponível em livros didáticos propostos pelo PNLD (Plano Nacional do Livro Didático)
e aos quais a professora tem acesso − copia do livro, pede para que os alunos copiem
o conteúdo passado na lousa, atribui a eles ponto pela atividade copiada e anota tudo
no diário de classe. Ao fim e ao cabo, os alunos que se dignam a prestar atenção
fazem-no por obrigação, e para isso muitas vezes sequer chegam a desligar seus
aparelhos.	
A tradição teórica estabelece que a aprendizagem é um empreendimento social
situado, facilitado e desenvolvido por meio de interações sociais e conversas entre
pessoas (VYGOTSKY, 1978), e mediada através do uso de ferramentas (WERTSCH,
Argumentação e Linguagem Capítulo 13 166
1991); porém, o smartphone não é um artefato comum, e, portanto, há necessidade de
outros enfoques, outras teorias, sobretudo no que se refere à questão da mobilidade,
que seja do ponto de vista da Mobile Assisted Language Learning.
2 | 	Mobile Assisted Language Learning - MALL
Aprendizagem de línguas assistida por dispositivos móveis – (doravante MALL)
descreve uma abordagem para a aprendizagem de línguas, assistida ou melhorada
através do uso de um dispositivo móvel portátil.
MALL tem sido definida como o uso de “tecnologias móveis na aprendizagem
de línguas, especialmente em situações em que a portabilidade do dispositivo
oferece vantagens específicas” (Kukulska-Hulme, 2013, p. 3701). Este modelo de
aprendizagem inclui dispositivos como leitores de MP3 / MP4, smartphones e leitores
de e-book através de computadores portáteis e tablets.
M-Learning para a aprendizagem de línguas ou MALL é um campo relativamente
novo dentro do CALL (Computer-Assisted Language Learning) e dos estudos sobre
e-learning,e,comotal,aindahápoucaspesquisas​​disponíveis (VIBERGeGRÖNLUND,
2012). Segundo esses autores, as teorias e modelos de ensino-aprendizagem
aplicados, na maioria das vezes, originam-se de grandes teorias da aprendizagem,
incluindo o construtivismo, a teoria da atividade e a teoria sociocultural. Ressaltamos
aqui uma das considerações fundamentais da teoria sociocultural: a mente humana é
mediada (VIBERG e GRÖNLUND, 2012). Esta mediação é frequentemente assistida
pelo uso de ferramentas. Daí o uso da tecnologia móvel desempenhar um papel
determinante no processo de construção de significado, dada a natureza mediada da
mente humana.
Stockwell & Hubbard (2013) buscam um esforço para caracterizar MALL
coerentemente, olhando a partir da perspectiva de um quadro que divide as questões
relevantes em três domínios: físico, pedagógico e psicossocial. Segundo os autores,
apesar de existirem pontos que são claramente relevantes para cada questão, estas
categorias “não existem separadamente umas das outras, ao contrário, elas são
necessariamente interligadas e sobrepostas” (STOCKWELL & HUBBARD. 2013, p. 3).
Para os autores, a questão física recai sobre os dispositivos que são relativamente
pequenos. Questões como a capacidade de armazenamento, velocidade do
processador, vida da bateria e compatibilidade de dispositivos, além da transferência
de grandes quantidades de dados podem gerar dúvidas sobre a eficácia da utilização
dos aparelhos para o ensino-aprendizagem de línguas.
Em relação às questões pedagógicas, os autores deixam claro que “um dos
maiores desafios da aprendizagem móvel é garantir que as tarefas sejam adequadas
às capacidades dos dispositivos usados” (STOCKWELL & HUBBARD 2013, p. 5,).
A possibilidade de inúmeras de aplicações pessoais e sociais implica que os alunos
possam não perceber seus dispositivos móveis como veículos apropriados para a
Argumentação e Linguagem Capítulo 13 167
aprendizagem. Importante frisar aqui que os autores não levam em conta a questão
da espacialidade e nem da agência, tudo se passa como se o aparelho celular fosse,
mais uma vez, um artefato relativamente inerte.
Os autores citam pesquisas bem sucedidas sobre MALL, especificamente com
o uso do aparelho celular. Gromik (2012), pesquisou alunos japoneses utilizando a
função de gravação de vídeo de seus telefones celulares para produzir pequenas
conversas em inglês. A pesquisa descobriu que os alunos foram capazes de fazer
vídeos cada vez mais longos com o passar do tempo.
Em outro estudo, Sandberg et al. (2011) realizaram pesquisas com estudantes
holandeses do quinto ano com aparelhos celulares, a fim de ajudá-los a aprender
o vocabulário da língua inglesa. Três grupos participaram desse estudo. O primeiro
grupo teve aulas em inglês sobre animais do zoológico e suas características em sala
de aula. O segundo grupo teve aulas em sala de aula e trabalhou com um aplicativo
no aparelho celular em um zoológico público. O terceiro grupo recebeu a mesma
orientação que o segundo, mas, como extensão, era autorizado a utilizar o aplicativo
em casa. Um teste antes e depois da atividade foi realizado e demonstrou que o grupo
que utilizou o aplicativo em casa aprendeu mais palavras do vocabulário proposto.
Os resultados indicam que os alunos estão mais motivados para usar o aplicativo em
seu tempo livre – ou seja, fora da sala de aula - e isso beneficia seu aprendizado. A
conclusão dos autores é que a aprendizagem formal na escola pode ser melhorada
ou aumentada pela aprendizagem em um contexto informal, isto é, fora da sala de
aula. (SANDBERG et al., 2011 p. 1344). Este estudo demonstra que além da relação
espaço/ambiente (sala de aula, zoológico, casa) um fator importante é que o aluno
parece ver mais sentido no uso do smartphone fora da escola.
Ainda na busca de desenhar alguns princípios emergentes sobre MALL,
Stockwell & Hubbard (2013) acreditam que uma característica importante do MALL é a
possibilidade de troca de experiências com suas disciplinas correlatas. Dito de outra
forma, MALL tem muito em comum com CALL e m-learning (ML) e, portanto, pode
ser melhor compreendido como pertencente a ambas as disciplinas, em vez de ser
separado delas. Para exemplificar melhor esta proposta, os autores sugerem a figura
abaixo
Argumentação e Linguagem Capítulo 13 168
Figura 2: Relação entre Computer-Assisted Language Learning (CALL), Mobile-Assisted
Language Learning (MALL) e Mobile Learning (ML). A àrea sombreada representa a
sobreposição (Stockwell & Hubbard. 2013, p. 5)
Partindo desta discussão, os autores também sugerem dez princípios para MALL,
que foram exemplificados por meio de um estudo com alunos pré-intermediários de
inglês como segunda língua de uma universidade particular japonesa no início de
2013. Estes dez princípios são segundo Stockwell & Hubbard (2013, p.8-10):
•	 Princípio 1. As atividades móveis devem ser pensadas em: 1) as affordan-
ces e limitações do dispositivo móvel e 2) as affordances e limitações do
ambiente em que o dispositivo será usado.
•	 Princípio 2. Limitação das tarefas para possíveis distrações, uma vez que
dispositivos móveis são susceptíveis de ser uma distração.
•	 Princípio 3. O mecanismo de pressão tem o potencial de levar os alunos
para a ação, mas, ao mesmo tempo, os alunos têm ideias de quando e com
que frequência eles gostariam de executá-las. Pressione, mas respeite os
limites!
•	 Princípio 4. Esforço para manutenção da equidade. Em uma sala de aula ou
outro ambiente de aprendizagem, questões importantes a incluir são: a pos-
se pelo aluno de um dispositivo móvel, a compatibilidade e funcionalidade
do dispositivo móvel do aluno, a conectividade do dispositivo e a despesa
para usar esse dispositivo.
•	 Princípio 5. Tal como acontece com outros tipos de implementações de tec-
nologia, importante a consideração acerca de uma série de estilos como a
destreza para utilização de teclados menores e telas sensíveis ao toque.
•	 Princípio 6. Ciência acerca de usos e culturas de uso para os dispositivos
existentes para os estudantes de língua. Estudos têm mostrado que os alu-
nos podem perceber seus dispositivos móveis como sendo para uso pes-
soal e social, e não como ferramentas educacionais.
•	 Princípio 7. Manutenção de curtas e sucintas atividades de aprendizagem
de línguas.
•	 Princípio 8. A tarefa da aprendizagem de línguas deve caber na tecnologia.
Argumentação e Linguagem Capítulo 13 169
•	 Princípio 9. Orientação e formação para utilizar eficazmente os dispositivos
móveis para a aprendizagem de línguas, embora o manuseio dos dispositi-
vos possa ser intuitivo, usá-los para a aprendizagem de línguas não é.
•	 Princípio 10. Na sala de aula de língua, a preparação adequada e o apoio
motivacional para professores e estudantes são primordiais.
Observando esses princípios de MALL, alguns pontos significantes convêm
ressaltar. Ao optarmos olharmos para o uso do smartphone em sala de aula de línguas,
consideramos a limitação das tarefas para evitar possíveis distrações - isto é, o aluno
fazer uso do artefato como ferramenta que desvie a atenção do aprendizado – o que
pode ser evidenciado nas imagens que teremos mais adiante – em que, em muitos
momentos, os alunos fazem uso ou consideram fazer uso de seus smartphones como
sendo para uso pessoal e social, e não como ferramentas educacionais.
3 | 	AS LACUNAS DE PESQUISA SOBRE MALL NO BRASIL
Voltando nossos olhares para estudos de MALL, percebemos que as pesquisas
sobre Mobile-Assisted Language Learning no Brasil são escassas. Após levantamento
bibliográfico das palavras-chave no Google acadêmico e no banco de teses da
Capes: mobile learning, mobile assisted language learning, hand device, cell phones,
smartphones, mobile phone, language learning (tanto em inglês como em português),
observamos que as publicações nacionais tiraram a aprendizagem da escola –
levando-a para o ambiente de casa ou do trabalho - e não buscam trazê-la para dentro
da sala de aula utilizando aparelhos móveis - mais especificamente o aparelho celular
do tipo smartphone.
Como primeiro exemplo temos Vaz (2010), que apesar de não estar na área
de linguagem, mas na área de tecnologias da inteligência e design digital, apontou e
analisou os impactos do uso do aparelho celular na vida em sociedade.
Costa (2013), em sua tese de doutorado, investigou as potencialidades que
emergiramdainteraçãodoalunocomocelularequepotencializaramodesenvolvimento
das cinco habilidades linguísticas no ensino-aprendizagem de Língua Inglesa como
língua estrangeira. A autora levantou a questão de quando usar o celular em sala
de aula de Língua Inglesa. Após atividades com alunos do sétimo e oitavo anos do
Ensino Fundamental, em uma escola pública municipal do estado do Rio de janeiro,
a autora concluiu que o trabalho com aparelho celular ajudou a melhorar a aquisição
de habilidades em uma língua estrangeira, ao colocar os alunos em um contexto real,
tornando este processo mais atraente, motivador e criativo, de modo a proporcionar
aos aprendizes a necessária flexibilidade produtiva para adquirirem conhecimentos
e desenvolverem habilidades e competências, o que, segundo a autora, seria quase
impossível de ocorrer em um ambiente de ensino tradicional.
Argumentação e Linguagem Capítulo 13 170
Salatino (2014) compôs uma interpretação a respeito da forma como os jovens
das classes populares constroem sua experiência escolar em um contexto cotidiano
marcado por grande disseminação de aparelhos tecnológicos. O autor constatou
que, nos espaços escolares, o aparelho celular aparece com múltiplos significados:
socializam, principalmente, de forma paralela à escola, criam e promovem práticas
de distração e diversão. Com os celulares, as dinâmicas escolares constituem um
reforço de suas redes de sociabilidade, compostas tanto por laços fracos como fortes,
presenciais e virtuais. Este estudo mais uma vez demonstra que os alunos usam o
aparelho celular com o intuito de trazer pra dentro da escola as práticas, laços e
espaços sociais de “fora”.
Nagumo (2014) buscou compreender os motivos e desdobramentos do uso dos
aparelhos celulares pelos estudantes na escola, identificar os dados demográficos
dos estudantes que acessam seus aparelhos celulares na escola por meio do Twitter
e levantar dados sobre motivações e consequências do uso dos aparelhos celulares
dos estudantes na escola. Para Nagumo, o uso inteligente da tecnologia na escola
pode propiciar um ambiente de aprendizado mais colaborativo e criativo aos alunos;
portanto, mais atrativo. O autor chega a esta constatação ao observar que a escola
participante da pesquisa negociava com alunos o uso responsável do aparelho celular
no ambiente escolar.
Uma lacuna nítida nos estudos de M-learning e MALL é que, enquanto os
trabalhos focam como o aluno aprende em diversos momentos e espaços por meio
de aparelhos móveis. Encontramos, então, um problema específico: como trazer o
mundo para a sala de aula, via smartphone, e não apenas tirar o aluno da sala de aula
utilizando o aparelho para aprender em outros lugares.
Um dos caminhos a ser pensado é justamente confrontar o postulado de MALL/
m-learning como algo que tira o aluno do lugar fisicamente, mas que não o tira do lugar
institucional ou interacional que tradicionalmente aluno e professor ocupam na sala de
aula, assim também como não traz “outros lugares” para dentro da escola. Existe a
necessidade de, antes de mais nada, assumir que o artefado quando efetivamente
apropriado, transforma o contexto!
4 | 	POR UMA CONTRIBUIÇÃO AO MALL CENTRADO EM SALA DE AULA
Existe a necessidade de uma abordagem do uso do smartphone – já que este
desestabiliza, no sentido de Latour (2005), toda uma cadeia e rede de sentidos ao
entrar em uma sala de aula - lugar onde esse ator cibernético não foi feito para ser
usado.
Por exemplo, nesta escola de periferia que sediou minha pesquisa de doutorado,
o uso do smartphone é permitido. Em minhas observações participantes, registrei
alguns dos usos que os alunos fazem de seus smartphones, mostrados nas Figuras
Argumentação e Linguagem Capítulo 13 171
1, 2, 3 e 4.
Figura 1 - Usando Whatsapp na aula de Inglês
Cadernos fechados, smartphones ligados em conversa do Whatsapp.
Figura 2 - aluno jogando offline no aparelho de smartphone
Figura 3 – Alunos ouvindo músicas e compartilhando vídeos
Argumentação e Linguagem Capítulo 13 172
Em grupos ouvem e compartilham músicas.
Figura 4 – Alunos usando o aparelho celular como espelho
Observei que a professora de inglês que participou da pesquisa, quando tenta
usar o smartphone para fins pedagógicos - que é o que a lei permite - não sabe como
fazer. O alunos narram que na maior parte do tempo é mais fácil tirar fotos da lousa
com a lição que os professores passam.
Aqui uma outra dimensão da pesquisa que não pode ser desconsiderada, a
presença/atuação do professor e do aluno, o que significa que esbarramos em dois
pontos, por um lado, a formação de professor no cenário das tecnologias digitais; uma
vez que o smartphone por si só não realizará as ações se não estiver em “mãos” que
saibam, possam, queiram dispor desse aparato, reconhecendo-o como um ator que
veio e não será tirado.
Por outro lado, a conscientização para a aprendizagem no cenário dinâmico das
plataformas digitais; uma vez que os jovens da geração Z ou geração da internet
(TAPSCOTT, 2010) (entre 17 e 22 anos nos dias de hoje – faixa etária do público que
foi pesquisado) ao mesmo tempo em que desejam a liberação do aparelho o tempo
inteiro, e entendem-se mais inteligentes por terem acesso à informação a qualquer
momento e também esperam por práticas tradicionais em sala de aula, como lousa
com lição e textos.
A geração Z nunca concebeu o planeta sem computadores, chats, smartphones.
Sua maneira de pensar foi influenciada, desde o berço, pelo mundo complexo e
veloz que a tecnologia criou, e seu conceito de mundo é desapegado das fronteiras
geográficas. Para Tapscott (2010, p. 16):
(...) esses jovens emancipados estão começando a transformar todas as instituições
da vida moderna. Desde o local de trabalho até o mercado, desde a política,
passando pela educação, até a unidade básica de qualquer sociedade – a família
-, eles estão substituindo uma cultura de controle por uma cultura de capacitação.
Vale ressaltar neste momento que MALL pressupõe que aprendizagem é mais
Argumentação e Linguagem Capítulo 13 173
do que conteúdo, é um conjunto de “experiências” e, logo, proporciona condições de
pensar como o uso do smartphone pode afetar ou trazer experiências na sala de aula,
em vez de ser usado apenas como uma forma de acesso ao repositório de conteúdos
ou uma forma de registro ou gravação de conteúdos, como demonstrados durante
algumas aulas em que os alunos fotografam a lousa com seu conteúdo apenas para
copiar depois no caderno, num ciclo que vira apenas cópia de cópia.
5 | 	TECENDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Contamos, atualmente, com um modelo de educação muito viciado e, em muitos
aspectos, ultrapassado, porquanto não condiz com a realidade de seus espaços e
contextos e muito menos com a necessidade de seus sujeitos. Por isso, devemos
hoje repensar o formato do ensino em sala de aula e o que objetivamos com as novas
formas e processos de ensino-aprendizagem, conforme nosso contexto de práticas
sociais.
Repensar o modo de lecionar, reformular a pedagogia, propor outra disposição
arquitetônica, outra maneira de lidar com o tempo, outra maneira de estruturar a relação
entre as disciplinas, de agrupamento de sujeitos em torno de questões e afinidades são
necessidades ímpares que se fazem cada vez mais prementes diante dos desafios e
da urgente necessidade de mudança e de melhoria que devemos oferecer à sociedade
(WARSCHAUER, 2008).
Grandes questões decorrem da reflexão apresentada no presente artigo. Dentre
elas, a primeira é pensar em como relacionar estes dois mundos e universos da cultura
digital. Em seguida, é necessário pensar em uma maneira de abranger a quantidade
de esferas que aqui estão envolvidas devido à quantidade de gêneros e linguagens,
quando ainda não existem “receitas” e padrões que sirvam para classificar este novo
modo de produção, compartilhamento e experiência de conteúdo e linguagem na
sociedade diversificada na qual vivemos.
Finalmente, é preciso questionar como um sujeito, protagonista da sua vida
social, deve ser educado e questionado para que possa refletir e entender que,
ao transformar a realidade, ele transforma, com outros de seu grupo, os textos. É
preciso, por fim, entender como o profissional docente pode redesenhar o processo de
produção de ensino-aprendizagem e de transformação da linguagem na construção
do conhecimento, de forma a envolvê-lono design dos materiais que auxiliem na sua
construção de conhecimento, no seu compartilhamento e na efetiva participação social,
almejando por fim o crescimento crítico, consciente e ativo de um sujeito transformador
da sociedade da qual participa.
O objetivo é, sempre, extrair de tais ações experiências inovadoras que possam
ser multiplicadas. Fato é que o cotidiano é profundamente desafiador e que o desafio
coloca-se não como um obstáculo, mas como uma exigência de respostas que nós
Argumentação e Linguagem Capítulo 13 174
professores, como formadores de cidadãos, devemos repensar, recriar e reconstruir
em nossas práticas em sala de aula.
Nessa formação é que, finalmente, envidam os esforços do docente para que,
como recompensa, veja o sujeito aplicar esta formação adequadamente em situações
reais do cotidiano e do próprio trabalho, proporcionando a oportunidade construir um
pensamento crítico, capaz de solucionar problemas e de tomar decisões de forma
responsável e sempre ética.
REFERÊNCIAS
COSTA, Giselda dos Santos Mobile learning: explorando potencialidades com o uso do celular no
ensino - aprendizagem de língua inglesa como língua estrangeira com alunos da escola pública. Tese
de doutorado. 2013
GROMIK, Nicolas A. Cell Phone Video Recording Feature as a Language Learning Tool: A Case Study.
Computers & Education, v58 n1 p223-230 Jan 2012.
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International Research Foundation for English Language Education. 2013. Retrieved from http://www.
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NAGUMO, Estevan. O uso do aparelho celular dos estudantes na escola. Dissertação de Mestrado.
Brasília. 2014
SALATINO, André. T. Entre laços e redes de sociabilidade. Sobre jovens, celulares e escola
contemporânea. Dissertação de Mestrado. São Paulo. 2014
SANDBERG et al., Mobile English learning: An evidence-based study with fifth grades in Computers
and Education vo. 57 nº 1 pp. 1334-1347. 2011. DOI: 10.1016/j.compedu.2011.01.015
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Retrieved from http://www.tirfonline.org/english-in-the-workforce/mobile-assisted-language-learning
TAPSCOTT, D. A hora da geração digital: como os jovens que cresceram usando a internet estão
mudando tudo, das empresas aos governos. Rio de Janeiro: Agir Negócios, 2010.
VAZ, Ana C. R. O celular e os novos modos de socialização. Dissertação de Mestrado. São Paulo.
2010
VIBERG, O; GRÖNLUND, A. Mobile Assisted Language Learning: A Literatura Review. Conference:
11th World Conference on Mobile and Contextual Learning. 2012.
VYGOTSKY, L. S. Mind in society. MIT Press, Cambridge, MA. 1978.
WARSCHAUER, M. Technology and Social Inclusion: Rethinking the Digital Divide. MIT Press. 2004
WERTSCH, J. V. Voices of the mind: a socio-cultural approach to mediated action. Harvard University
Press, Cambridge, MA. 1991.
Capítulo 14 175Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 14
MATERIAL DIDÁTICO PARA O ENSINO DE INGLÊS:
UMA PROPOSTA POR MEIO DA PEDAGOGIA DE
MULTILETRAMENTOS
Patrícia Helena da Silva Costa
Secretaria Municipal de Educação do Rio de
Janeiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro
RESUMO: Este artigo apresenta um recorte
da unidade didática, proposta em minha
pesquisa de doutorado em andamento, para o
ensino de Inglês em uma turma do 5º ano do
ensino fundamental em uma escola da rede
pública municipal do Rio de Janeiro. Sob uma
perspectiva sociointeracional (VYGOTSKY,
1991 [1978]) e crítica (PENNYCOOK, 2004;
TILIO, 2017) de ensino-aprendizagem,
e estruturado por meio da Pedagogia de
Multiletramentos (COPE & KALANTZIS,
2000; KALANTZIS & COPE, 2012), o material
didático em questão objetiva oportunizar
práticas situadas de ensino de Inglês, a
apresentação de aspectos estruturais da
língua com propósito sociointeracional e
crítico e a formação dos alunos como cidadãos
problematizadores e participativos.
PALAVRAS-CHAVE: unidade didática, ensino
de Inglês, Pedagogia de Multiletramentos.
ENGLISH TEACHING MATERIAL:
A PROPOSAL BASED ON THE
MULTILITERACIES PEDAGOGY
ABSTRACT: This article presents an excerpt of
the English teaching material, proposed in my
PhD research in development, for fifth graders
at a public municipal school in Rio de Janeiro.
Based on a sociointeractional (VYGOTSKY,
1991 [1978]) and critical teaching and learning
perspective (PENNYCOOK, 2004; TILIO,
2017), and structured by the Multiliteracies
Pedagogy (COPE & KALANTZIS, 2000;
KALANTZIS & COPE, 2012), this teaching
material aims at providing situated practices
in English teaching, presenting lexicogrammar
aspects in a sociointeractional and critical way
and contributing to students’s development as
participative citizens.
KEYWORDS: teaching material, English
teaching, Multiliteracies Pedagogy
1 | 	INTRODUÇÃO
Com a implementação, em 2010, do
Programa Rio Criança Global (PRCG), todos os
alunos do ensino fundamental da rede pública
municipal de educação do Rio de Janeiro
passam a ter aulas de Inglês a partir do 1º ano,
inclusive os discentes do Programa Acelera
Brasil, cujo objetivo é corrigir o fluxo escolar de
Argumentação e Linguagem Capítulo 14 176
alunos alfabetizados multirrepetentes do 2º ao 4ºanos do ensino fundamental, com
defasagem de idade/ano escolar.
Dentre as características do Programa Acelera Brasil, há a utilização de
materiais didáticos elaborados exclusivamente para o seu público alvo. Diferentemente
desses materiais, temos os livros didáticos de Inglês utilizados nas aulas de Língua
Estrangeira deste mesmo grupo. Baseados no fato de que os alunos do Acelera Brasil
são da mesma faixa etária que os alunos do 5º ano do ensino fundamental, a Secretaria
Municipal de Educação (SME-RJ) determinou que os livros didáticos Zip From Zog 5A
e 5B, utilizados com os alunos do 5º ano do ensino fundamental, também fossem
empregados nas aulas de Inglês do programa de aceleração em questão.
Ainda que o PRCG e o Acelera Brasil pertençam a um mesmo contexto, o das
escolas públicas municipais do RJ, esses dois projetos possuem origens e propósitos
distintos. A partir deste fato, minha pesquisa de mestrado, desenvolvida no Programa
Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (PIPGLA) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), investigou a adequação dos livros didáticos Zip
From Zog 5A e 5B ao Programa Acelera Brasil.
Partindo do princípio de que a análise mostrou que este material didático não
atende ao Programa Acelera Brasil, e consequentemente, deixa a desejar no que
diz respeito ao PRCG como um todo, o objetivo da minha pesquisa doutoral, em
andamento no PIPGLA da UFRJ, é desenvolver e aplicar uma unidade didática para o
ensino de Inglês em uma turma do 5º ano do ensino fundamental em uma escola da
rede pública municipal do RJ. A proposta é que o material desenvolvido por mim seja
utilizado por uma professora regente de Inglês em uma determinada escola da Rede
Municipal.
Neste capítulo, apresento um recorte da unidade didática proposta em minha
pesquisa, cujo objetivo é atender as demandas sinalizadas em minha dissertação de
mestrado, demandas essas que se relacionam a práticas situadas de ensino de Inglês,
a apresentação de aspectos estruturais da língua, com propósito sociointeracional e
crítico, e a formação dos alunos como cidadãos problematizadores e participativos. O
materialdidáticoaquiapresentadoéfundamentadoemumaconcepçãosociointeracional
(VYGOTSKY, 1991 [1978]) e crítica (PENNYCOOK, 2004; TILIO, 2017) de ensino-
aprendizagem, e estruturado por meio da Pedagogia de Multiletramentos (COPE &
KALANTZIS, 2000; KALANTZIS & COPE, 2012).
Antes de apresentar o material didático em si, contextualizo-o dentro do cenário
de ensino de Inglês como língua estrangeira no momento atual e, em seguida, abordo,
ainda que brevemente, a fundamentação teórica que norteia minha pesquisa de
doutorado.
Argumentação e Linguagem Capítulo 14 177
2 | 	O ENSINO DE INGLÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA NA
CONTEMPORANEIDADE
O momento contemporâneo no qual o ensino de Língua Estrangeira (LE) está
inserido demanda uma compreensão de ensino e aprendizagem de Inglês que dialogue
com o papel desempenhado pela linguagem, pois conforme afirma Moita Lopes (2013,
p. 19)
o mundo da compressão do tempo e do espaço, da tecnologia digital, dos choques
e das mudanças socioculturais, das hibridizações de vários tipos (linguísticas,
culturais, discursivas etc.) da hipersemiotização, da superdiversidade, da presença
do chamado terceiro mundo no primeiro mundo e vice-versa, dos fluxos entre
fronteiras físicas e virtuais, entre outros processos, com os quais nos deparamos
continuamente, constituem um mundo no qual a linguagem ocupa um espaço
privilegiado. Este é um mundo no qual nada de relevante se faz sem discurso,
como lucidamente nos alerta o geógrafo Milton Santos (2000). Assim, a linguagem
passa a ocupar um espaço diferenciado em novas vidas sociais.
Dada a fluidez com que as mudanças ocorrem nas esferas culturais,
econômicas, políticas e tecnológicas, concordo com Moita Lopes (2003) quanto ao
fato de que estamos presenciando uma nova ordem mundial, na qual “a multiplicação
de informações, conceitos, descobertas e teorias lançou a vida social em variadas
direções, com consequências inesperadas e não previstas anteriormente” (FRIDMAN,
2000, p. 39).
Diante deste aspecto, faz-se primordial que os professores de línguas entendam
que o trabalho com a linguagem os coloca no centro de questões políticas e sociais,
pois de acordo com Gee (1986, apud BRASIL, 2006, p. 109)
[...] os professores de inglês podem cooperar em sua própria marginalização
imaginando-se como meros “professores de língua” sem conexão alguma com
questões sociais e políticas. Ou então podem aceitar o paradoxo do letramento
como forma de comunicação interétnica que muitas vezes envolve conflitos
de valores e identidades, e aceitar seu papel como pessoas que socializam os
aprendizes numa visão de mundo que, dado seu poder [...] deve ser analisada
criticamente.
Ao propor a elaboração e aplicação de uma unidade didática para o ensino de
Inglês em uma turma do 5º ano do ensino fundamental do PRCG, meu objetivo é
oportunizar um trabalho com a linguagem de forma que as questões políticas e sociais
que emergem dos discursos que nos cercam possam ser analisadas criticamente
pelos alunos.
Sendo assim, este estudo é orientado por uma perspectiva crítica, “uma coalisão
de interesses educacionais comprometidos com o engajamento das possibilidades
que as tecnologias da escrita oferecem para a mudança social, diversidade cultural,
igualdade econômica e emancipação política” (LUKE & FREEBODY, 1997, p. 1). Uma
vez que entendemos a aprendizagem de LE não apenas como o conhecimento de
estruturas linguísticas, mas também como a apropriação de novos olhares sobre
o mundo que nos cerca, é nosso objetivo, portanto, “capacitar o aprendiz a utilizar
Argumentação e Linguagem Capítulo 14 178
a linguagem socialmente de maneira crítica e em diferentes contextos discursivos”
(NICOLAIDES & TILIO, 2011, p. 181). Dialogando com essas concepções, a ideia de
“crítico” aqui defendida se alinha à Linguística Aplicada Crítica (PENNYCOOK, 2004),
no sentido de prática problematizadora, cuja proposta é
manter um maior sentido de humildade e de diferença e levantar questões sobre
os limites do seu próprio saber. Esta posição autorreflexiva também sugere que
a Linguística Aplicada Crítica não está preocupada com a produção de uma
nova ortodoxia, com a prescrição de novos modelos e procedimentos para fazer
Linguística Aplicada. Em ez disso, está preocupada em criar uma serie de novos
e difíceis questionamentos sobre ética, política e conhecimento. (PENNYCOOK,
2004, p. 815)
Neste sentido, a noção de “crítico” “considera também questões de acesso, poder,
diferença, desigualdade e resistência (…) ser crítico, nessa perspectiva, implica em
buscar entender possíveis explicações para as situações que se apresentam” (TILIO,
2017, p. 23 e 24)
Para que essa postura crítica seja viável, faz-se necessário que entendamos
o processo de ensino-aprendizagem como uma prática sociointeracional na qual
“o aprendizado humano pressupõe uma natureza social específica e um processo
através do qual as crianças penetram na vida intelectual daquelas que as cercam”
(VYGOTSKY, 1991 [1978], p. 59).
Ao lançarmos nosso olhar sobre o outro e sobre o mundo que nos cerca, temos a
possibilidade de questionar relações ideológicas e de poder cristalizadas, enfatizando
“as representações e as análises a respeito de diferenças, tais como: raciais, sexuais,
de gênero e as indagações sobre quem ganha ou perde em determinadas relações
sociais” (BRASIL: 2006, p. 116).
Vivemos em um mundo em que se espera (empregadores, professores, cidadãos,
dirigentes) que as pessoas saibam guiar suas próprias aprendizagens na direção
do possível, do necessário e do desejável, que tenham autonomia e saibam buscar
como e o que aprender, que tenham flexibilidade e consigam colaborar com
urbanidade. (ROJO, 2012, p. 27)
Dada as mudanças que ocorrem no mundo ao nosso redor, mundo esse em
que a linguagem possui um papel fundamental, faz-se mais que necessário que
transformemos também a maneira como lidamos com os discursos presentes nas
práticas sociais nas quais nos engajamos diariamente. Ao nos afiliarmos a uma
perspectiva sociointeracional (VYGOTSKY, 1991 [1978]) e crítica (PENNYCOOK,
2004; TILIO, 2017) de ensino-aprendizagem de Inglês, nos situamos no que Kalantzis
& Cope (2012) denominam como novas bases, nas quais o trabalho com a linguagem
não é simplesmente uma questão de uso correto da mesma, mas também é uma
forma mais abrangente de construção de significados.
Argumentação e Linguagem Capítulo 14 179
3 | 	A TEORIA DOS MULTILETRAMENTOS
Os novos ambientes de comunicação trazidos pela contemporaneidade
oferecem desafios às tradicionais abordagens de ensino de LE, de modo que essas
abordagens, muitas vezes focadas na lexicogramática da língua, precisam ser
repensadas e complementadas.
Migração, multiculturalismo e integração econômica global intensificam diariamente
esse processo de mudança. A globalização das comunicações e dos mercados
de trabalho tornam cada vez mais a diversidade linguística uma aspecto crítico.
Lidar com diferenças linguísticas e culturais tornou-se central em nossas vidas
profissionais e privadas. Cidadania efetiva e trabalho produtivo demandam que
interajamos significativamente usando múltiplas linguagens, múltiplos Ingleses,
e padrões de comunicação que frequentemente cruzam fronteiras culturais e
nacionais. Quando a proximidade da diversidade cultural e linguística é um dos
pontos chaves de nossos tempos, a própria natureza do ensino de línguas muda.
(COPE & KALANTZIS, 2000, p. 6)
Diante desses aspectos, somamos à perspectiva sociointeracional
(VYGOTSKY, 1991 [1978]) e crítica (PENNYCOOK, 2004; TILIO, 2017) que embasa
este estudo a teoria dos Multiletramentos (COPE & KALANTZIS, 2000; KALANTZIS
& COPE, 2012). Em setembro de 1994, um grupo de pesquisadores dos letramentos,
o Grupo de Nova Londres, se reuniu por uma semana na pequena cidade de Nova
Londres, com o objetivo de discutir a respeito do futuro do ensino de letramento,
levando-se em consideração as novas ferramentas de acesso à comunicação e à
informação, já existentes em 1994.
Ainda que cada integrante do Grupo de Nova Londres pertencesse a um campo
específico no que se refere ao ensino de letramento, um ponto eles tinham em comum:
o entendimento de que o que os alunos precisavam aprender também estava mudando
e que o principal elemento dessa mudança estava no fato de que não havia uma única
linguagem a ser ensinada. As diferenças culturais e as rápidas transformações nas
mídias de comunicação significavam que a própria natureza do objeto da pedagogia
de letramento estava mudando radicalmente.
Sendo assim, o Grupo decidiu que os resultados de suas discussões poderiam ser
resumidos em uma palavra: Multiletramentos. Este termo, segundo o Grupo, descreve
dois importantes argumentos necessários a emergente ordem cultural, institucional e
global. O primeiro argumento relaciona-se com a multiplicidade de canais e mídias de
comunicação, enquanto que o segundo direciona-se à crescente diversidade cultural
e linguística.
Cope & Kalantzis (2000) explicam que a teoria de Multiletramentos complementa
a pedagogia tradicional de letramento ao apontar para esses dois aspectos da
multiplicidade textual: a diversidade social e a multimodalidade (KALANTZIS &
COPE, 2012). Por diversidade social entende-se a variabilidade de convenções de
significados em diferentes situações culturais, sociais ou domínios específicos (COPE
& KALANTAZIS, 2000). Textos, sejam eles orais ou escritos, variam enormemente
Argumentação e Linguagem Capítulo 14 180
dependendo da experiência de vida, do assunto em questão, do domínio disciplinar,
da área de trabalho, do conhecimento específico, do setor cultural, das identidades
de gênero e etc. Essas variantes têm se tornado cada vez mais significantes para as
formas nas quais interagimos em nossas vidas cotidianas, para as formas nas quais
participamos na construção de significados.
Por essa razão, é importante que hoje em dia o ensino de letramento não foque,
como fez no passado, somente nas regras de uma única forma padrão de
linguagem. Comunicação requer, cada vez mais, que os aprendizes estejam aptos
a compreender as diferenças de significado de um contexto para o outro e a se
comunicar através dessas diferenças. (KALANTZIS & COPE, 2012, p. 13)
No que diz respeito à multimodalidade, Cope & Kalantazis (2000) apontam
para a importância da questão, como resultado das novas mídias de informação e
comunicação. Significado é construído de formas extremamente multimodais, nas
quais os modos escritos de significação se conectam com os modos de significado
oral, visual, auditivo, gestual, tátil e espacial (KALANTAZIS & COPE, 2012). A escrita
já foi considerada a principal forma de construção de significado. Nos dias de hoje,
entretanto, modos escritos de significação podem ser complementados, por exemplo,
por gravações ou transmissões de significados orais, visuais, auditivos, gestuais e
outros. Sendo assim, Cope & Kalantzis (2000) sinalizam para o fato de que precisamos
estender a pedagogia de letramento para além da educação alfabética. Também se faz
necessário que, nos ambientes de aprendizagem atuais, suplementemos habilidades
tradicionais de leitura e escrita com modos de construção de significados multimodais.
Os Multiletramentos sugerem a necessidade de uma gramática flexível que auxilie
os aprendizes a descreverem as diferenças de linguagem (diferenças culturais,
subculturais, regionais, nacionais, e assim por diante) e os canais multimodais de
significados tão importantes para a comunicação.
Ao tocar essas questões, professores e alunos devem ver a si mesmos como
participantes ativos na mudança social, como construtores ativos em sociedade.
(COPE & KALANTZIS, 2000, p. 6)
Ao nos afiliarmos a uma prática de ensino-aprendizagem de LE norteada pelos
Multiletramentos nosso objetivo é expandir o entendimento de letramento e ensino
e aprendizagem de letramento a fim de incluir a negociação da multiplicidade de
discursos. A fim de que possamos abarcar a diversidade de discursos e modos de
construção de significado, devido aos fatores já mencionados anteriormente, iremos, a
partir de agora, utilizar o termo Pedagogia de Multiletramentos (COPE &KALANTIZIS,
2000).
A Pedagogia de Multiletramentos é composta pela integração de quatro fatores:
Prática Situada, Instrução, Postura Crítica e Prática Transformadora. De acordo
com Cope & Kalantzis (2000), o conhecimento humano é primeiramente situado em
contextos socioculturais e intensamente contextualizado em domínios e práticas
específicos. Tal conhecimento está intrinsecamente ligado à habilidade de reconhecer
certos padrões da experiência humana e de agir conforme estes mesmos padrões,
Argumentação e Linguagem Capítulo 14 181
processo este adquirido somente através da experiência, uma vez que os padrões
são fortemente atados e ajustados ao contexto e são, geralmente, sutis e complexos o
bastante a ponto de que ninguém possa descrevê-los ou explicá-los completamente.
Neste sentido, os indivíduos são reconhecedores e atores contextuais e socioculturais
de padrões. Sendo assim, torna-se relevante estruturar o ensino de LE, neste caso
o de Inglês, através de temas, entendidos aqui como a realidade em que se dá o
enunciado, que engloba os sentidos vinculados ao uso da linguagem em situações e
contextos específicos (BAKHTIN: 1997 [1979]). Ao contextualizarmos o ensino através
de temas, ou seja, através de uma Prática Situada, possibilitamos que os alunos se
familiarizem com o momento sociohistórico no qual a linguagem está inserida.
No que diz respeito à Instrução, Cope & Kalantzis (2000) chamam a atenção para
o fato de que esta parte da Pedagogia não implica diretamente em transmissão direta
de conhecimento, repetição e memorização. A Instrução inclui todas as mediações por
parte do professor, que tenham como objetivo auxiliar os alunos durante as atividades,
que direcionem o foco dos alunos para as características de suas experiências e
atividades dentro da comunidade de aprendizes, construindo e recrutando o que o
aprendiz já sabe e consegue realizar.Através do scaffolding (andaimento) (KALANTZIS
&COPE,2012),oprofessororientaasperformancesdosalunosnastarefasqueelesnão
conseguem realizar por conta própria, criando, assim, uma Zona de Desenvolvimento
Proximal (ZDP) (VYGOTSKY 1991, [1978]) definida como a distância entre o nível
de desenvolvimento real, determinado pela resolução independente de problemas, e
o nível potencial, determinado pela resolução de problemas sob a orientação de um
adulto ou em colaboração com outros parceiros mais experientes.
O propósito da Postura Crítica é ajudar os aprendizes a estruturarem o seu
crescente domínio da prática e do entendimento consciente no tocante às relações
históricas, sociais, culturais, políticas, ideológicas e de valor. Neste momento, o
professororientaosaprendizesadesnaturalizareestranharaquiloqueelesaprenderam
e dominaram. Por meio da Postura Crítica, os aprendizes podem obter a distância
necessária, pessoal e teórica, daquilo que eles aprenderam, para, construtivamente,
criticar, expandir e aplicar criativamente esse conhecimento e, eventualmente, inová-
lo de maneira própria. Esta é a base para a Prática Transformadora.
Os quatro componentes da Pedagogia de Multiletramentos proposta por Cope
& Kalantzis (2000) não constituem uma hierarquia linear, muito menos representam
estágios. São, entretanto, elementos relacionados de maneira complexa, de forma que
um ou outro componente predomina, dependendo do momento da prática pedagógica.
Mesmo assim, todos os elementos são repetidamente revisitados em diferentes níveis.
Encontramos aqui um diálogo com as ideias de Vygotsky com relação aos processos
internos de desenvolvimento que ocorrem durante o aprendizado. Ao defender a noção
de que aprendizado não é desenvolvimento, o pensador aponta para o fato de que o
processo de desenvolvimento não progride na mesma velocidade que o processo de
aprendizado, resultando, assim, nas ZDP. Desta forma, o desenvolvimento se dá em
Argumentação e Linguagem Capítulo 14 182
espiral, passando por um mesmo ponto a cada nova revolução, enquanto avança para
um nível superior (VYGOTSKY, 1991 [1978]). É meu objetivo, ao propor uma unidade
didática para o ensino de Inglês em uma turma do 5º ano do ensino fundamental do
PRCG, que os componentes da Pedagogia de Multiletramentos estejam presentes em
diferentes momentos do material e, consequentemente, das aulas.
4 | A UNIDADE DIDÁTICA
Nesta seção do capítulo, apresento algumas atividades que compõem a unidade
didática a ser aplicada nas aulas de Inglês de uma turma de 5º ano do ensino
fundamental em uma escola da rede pública municipal do Rio de Janeiro. Por motivos
de limitação de número de páginas, não será possível apresentar todas as atividades
das quatro lições que compõem a unidade didática. O recorte feito aqui procura
mostrar de que maneira a perspectiva sociointeracional (VYGOTSKY, 1991 [1978]) e
crítica (PENNYCOOK, 2004; TILIO, 2017) de ensino-aprendizagem e a Pedagogia de
Multiletramentos (COPE & KALANTZIS, 2000; KALANTZIS & COPE, 2012) encontram-
se no material didático proposto em minha pesquisa de doutorado.
Figura 1 – Atividade de warm-up
Argumentação e Linguagem Capítulo 14 183
Figura 2 – Lição 1, atividades 1 e 2
A atividade de warm-up (Figura 1) nos apresenta o tema que perpassa toda a
unidade didática: o uso de uniforme escolar. Esse assunto é, portanto, a Prática Situada
(COPE & KALANTZIS, 2000) que contextualiza o material. O objetivo da atividade é
que os alunos discutam com os seus colegas a respeito de duas camisas: a branca,
que compõe, atualmente, o uniforme das escolas do município do RJ, e a laranja,
utilizada entre os anos de 2004 e 2008 por alunos também da Prefeitura do RJ. Ao
utilizar a língua materna durante essa discussão inicial sobre o assunto, é possível que
o aluno fique mais confortável durante o primeiro contato com o material.
Na Figura 2 temos as duas primeiras atividades da Lição. A primeira tarefa
consiste em apresentar alguns itens que compõem o uniforme escolar dos alunos.
Neste momento, é possível introduzir esse vocabulário na língua alvo, além de revisar
noções de cores em Inglês, por exemplo. Ainda que seja uma atividade introdutória,
ao pedir que os alunos correlacionem as figuras com as frases, a atividade se baseia
no que os discentes já sabem. Dessa forma, privilegia-se o que eles possam ter
aprendido em aulas anteriores e o que eles possam ter vivenciado em contato com a
língua estrangeira em situações fora da escola. Palavras como shorts e sneakers, por
exemplo, são palavras que talvez já façam parte do repertório linguístico dos alunos, o
que os ajuda a realizar a tarefa. Já a segunda tarefa trabalha com o desenvolvimento
da Postura Crítica (COPE & KALANTZIS, 2000) dos alunos em relação ao propósito
Argumentação e Linguagem Capítulo 14 184
de se usar uniforme escolar, além de se problematizar a obrigatoriedade de seu uso e
suas possíveis vantagens e desvantagens.
Figura 3 – Lição 2: atividade 4
Figura 4 – Lição 2: atividades 5 e 6
Argumentação e Linguagem Capítulo 14 185
As Figuras 3 e 4 trazem um dos momentos de Instrução (COPE & KALANTZIS,
2000), no qual aspectos gramaticais são sistematizados, de forma que os alunos
possam entendê-los indutivamente, por meio do noticing, isto é, “atividades que
encorajam os alunos a perceberem por eles mesmos regras gramaticais, padrões
lexicais, pragmática (relação entre contexto e significado linguístico) e fonologia”
(MISHAN & TIMMIS, 2015, p. 23).Assim, os alunos têm a oportunidade de compreender
como determinados aspectos gramaticais podem ser utilizados, através da realização
da atividade em si, de forma que eles mesmos cheguem às conclusões a respeito
do que está sendo trabalhado. As tarefas 4 ,5 e 6 (Figuras 3 e 4) são baseadas no
código de vestimenta de uma escola americana, texto esse que foi apresentado em
um momento anterior da unidade didática e, sendo assim, os alunos já estariam
familiarizados com o gênero. Nas tarefas 5 e 6 os alunos trabalham com vocábulos
no singular e no plural e também com uso do artigo “a” ao descrevermos, em Inglês,
o que uma pessoa está vestindo. Assim, há a preocupação em não fornecer regras
gramaticais aos alunos, mas sim, levá-los a construir suas próprias conclusões sobre
os aspectos estruturais apontados.
Figura 5 – Lição 2: atividade 7
Argumentação e Linguagem Capítulo 14 186
Figura 6 – Lição 4
Já a atividade 7 (Figura 5) consiste em uma prática de interação oral no idioma
alvo, na qual os alunos, com base no que viram até este momento, são orientados a
perguntar e responder sobre o que estão vestindo. Essa interação é uma oportunidade
de os discentes se apropriarem dos conhecimentos construídos ao longo das atividades
já realizadas.
A Figura 6 mostra a última atividade do Lição 4. Trata-se de um momento de
Prática Transformadora (COPE & KALANTZIS, 2000) que consolida a unidade didática
em si, já que é apresentado na última lição do material. O objetivo é que os alunos,
com base no que construíram ao longo do material, possam utilizar esse conhecimento
de forma adequada à realidade da escola que frequentam. Ao propor a elaboração de
cartazes com o código de vestimenta da escola, e a distribuição desses cartazes pelas
dependências da instituição, os alunos terão a oportunidade de compartilhar o seu
aprendizado, além de promover a interação com os outros colegas, funcionários e pais
de alunos também.
5 | FUTUROS DESDOBRAMENTOS
Durante o tempo em que pretendo acompanhar as aulas da turma de 5º
ano do ensino fundamental no qual a unidade didática será utilizada acredito que
Argumentação e Linguagem Capítulo 14 187
terei a oportunidade de ver o material ganhar vida e proporcionar interações entre
os participantes, interações essas que serão os caminhos para entender como o
material didático elaborado busca propiciar o ensino do idioma através do uso da
língua em contextos situados sociohistoricamente, compreender como os aspectos
lexicogramaticais trabalhados na unidade didática buscam atingir propósito
socionteracional e crítico e analisar se e como a unidade didática promoveu o
engajamento dos alunos durante a utilização do material, contribuindo para formá-los
como cidadãos críticos e participativos.
	 Cabe ressaltar que o fato de a unidade didática já estar elaborada não
significa que o material é definitivo, e sim que a pesquisa está em progresso e que,
portanto, podem ocorrer mudanças. É necessário que consideremos os micro e macro
contextos que situam a sala de aula, integrando, assim, as futuras interações entre
os participantes. O que se pode afirmar aqui é o compromisso com a possibilidade de
contribuir significativamente para o ensino de Inglês do PRCG.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações Curriculares para o
Ensino Médio – Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, 2006, p.87-156. Disponível em:
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A.; FREEBODY, P. Constructing critical literacies: teaching and learning textual practice.
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inglês no Brasil: a base intelectual para uma ação política. In: BÁRBARA, L.; RAMOS, R. C. G. (Org.)
Reflexões e Ações no Ensino-aprendizagem de Línguas. Campinas: Mercado de Letras, 2003.
MOITA LOPES, L. P. Português no século XXI: cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo:
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TILIO, R. Ensino crítico de língua: afinal, o que é ensinar criticamente? In: JESUS, D.; ZOLIN-VESZ,
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escola. Campinas: Pontes, 2017.
VYGOTSKY, L. S. [1978] A Formação Social da Mente. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
Capítulo 15 189Argumentação e Linguagem
ORIGENS E FRONTEIRAS DO COSMOS: O PODER
DA PALAVRA
CAPÍTULO 15
Márcio Moreira Costa
Líder do Grupo de Pesquisa Nómade, vinculado
à CNPq, que desenvolve pesquisas na linha da
Filosofia, identidade e crítica social.
Instituto Federal de Educação, Ciência e
Tecnologia de Rondônia
Colorado do Oeste – Rondônia
RESUMO: A mitologia grega apresenta as
Musas como filhas de Mnemosyne e Zeus,
portanto, como filhas da Memória tais Musas
personificam a palavra e todo o seu poder. É
este fenômeno que presente trabalho propõe-
se a investigar, valendo-se da obra Teogonia,
de Hesíodo, aproximando-a do texto desana
sobre a origem do mundo, escrito por Umusi
Pãrõkumu e Tõrãmú Kehíri, que contêm as
origens e a efetivação do poder detido pela
palavra nas narrativas míticas desana. Como
suporte teórico acorre-se ao ensaio de Jaa
Torrano, que analisa o texto da narrativa grega,
e os conhecimentos do antropólogo Pedro
de Niemeyer Cesarino, contidos em seu livro
Quando a Terra deixou de falar. Estender-
se-á o diálogo a autores como Ruth Finnegan
e Mineke Schipper, Ernest Cassirer e Jean-
Pierre Vernat. A pesquisa realizada é de cunho
exclusivamente teórico, partindo da análise dos
textos selecionados, e culmina na identificação
da Palavra, herança divina, como causa eficiente
do mundo e pode tanto revelar como ocultar.
PALAVRAS-CHAVE: Narrativa. Musas. Palavra.
Presentificação.
ORIGINS AND BORDERS OF COSMOS: THE
POWER OF THE WORD
ABSTRACT: The Greek mythology shows the
Muses as Mnemosyne and Zeus’s daughter,
therefore, as daughters of Memory these
Muses personify the word and all its power.
It’s this phenomena the purpose of this study,
to investigate, the book Teogonia, by Hesíodo,
relating it to desana text about the orgin of the
world and the efectivation of the power provided
by words in the desana mythical narratives.
As theorical approach it was supported by
studies of Jaa Torrano, that analyses the texts
of greek narrative and the anthropologist,
Pedro de Niemeyer Cesarino’s knowledge in
his manuscript Quando a Terra deixou de falar.
It’s also going to approached dialogs involving
author like Ruth Finnegan and Mineke Schipper,
Ernest Cassirer and Jean-Pierre Vernat. This is a
theorical reaserch, which was done analyses of
the selected texts and results in the identification
of the Word, divine heritage, as efficient cause
of the world and can no only revel but also hide.
KEYWORDS: Narrative. Muses. Word.
Presentitication.
Argumentação e Linguagem Capítulo 15 190
1 | 	INTRODUÇÃO
A tarefa que aqui se propõe é a análise das obras Teogonia: a origem dos
deuses, do poeta grego antigo Hesíodo, e Antes o mundo não existia: mitologia dos
antigos Desana-Kenhirípõrã, escrita, em coautoria, pelos indígenas desana Umusi
Pãrõkumu e Tõrãmú Kehíri, a partir de elementos da abordagem comparatista.
Naturalmente que, para obter-se os resultados esperados, também se recorre a
elementos da hermenêutica e de pressupostos dos Estudos Culturais.
A pesquisa busca seus fundamentos no ensaio do renomado tradutor de grego Jaa
Torrano, O mundo como função de Musas, que apresenta a obra Teogonia, publicada
pela editora Iluminuras, e vale-se também dos estudos de Pedro de Niemeyer
Cesarino, resumido na apresentação de seu livro intitulado Quando a Terra deixou
de falar: cantos da mitologia Marubo. Não se pode omitir algumas incursões nos
textos de Ernst Cassirer, Eliade Mircea, Jean-Pierre Vernant, a título de orientações
teóricas. Finnegan, Schipper e Bicalho, este último com seu trabalho de doutoramento,
contribuíram para a construção dos argumentos que serão apresentados.
É a partir da obra dos escritores desana, acima citada, colacionada com a
narrativa hesiódica, Teogonia: a origem dos deuses, que este trabalho se propõe
demonstrar possíveis evidências do poder da palavra em presentificar, dar existência,
àquilo que evoca – seja pela forma oral, nas tradições antigas, seja pela forma escrita
ou impressa atuais. Recorrendo, para tanto, a elementos da abordagem comparatista,
propõem-se à realização da apreciação de traços estéticos, nas obras escolhidas, a
partir da imagem construída do processo criador do mundo/cosmos, em cada uma das
narrativas, chegando a uma análise teórica e diferencial de elementos literários.
2 | 	O PODER PRESENTIFICADOR DA PALAVRA NA LITERATURA ORAL
“No princípio era o Verbo [...]. Tudo foi feito por meio dele [...]” (JOÃO, 1: 1-3). O
Texto Sagrado dos cristãos atribui à palavra (Verbo) esse poder criador. É mediante o
Faça-se... – expressão que aparece no livro do Gênesis, como fórmula para a criação,
usada pelo Deus judaico-cristão – (a Palavra) que incide a existência do mundo. Todo
o Universo materializa-se e recebe seus contornos específicos pela mediação e poder
da Palavra.
A narrativa cristã possui correspondência na tradição mítica da Grécia Arcaica.
Em sua obra Introdução à história da Filosofia, no primeiro volume, a escritora e filósofa,
Marilena Chaui, fala do costume dos poetas em invocar as musas para guiá-los, pois
que, dessa forma, “Ao falar, fazem que aconteça aquilo que dizem. Sua palavra [...] é
uma ‘palavra eficaz’” (2002, p. 40). E é eficaz por dar causa ao existente, às coisas;
torna real o que é cantado porque ele, o aedo, diz a verdade. Uma linguagem prenhe
para dar à luz ao Universo material, como escreve Jaa Torrano (2014, p. 14): “[...]
veículo de uma concepção do mundo e suporte de uma experiência numinosa”. Não é,
Argumentação e Linguagem Capítulo 15 191
portanto, apenas um criar, fazer nascer, mas também condicionar-lhe uma forma, uma
estrutura, uma identidade... por assim dizer, um destino. Torrano chega ainda a afirmar
que a palavra (Musas) tem “[...] o poder de presentificar o que sem elas é ausente”
(2014, p. 21).
Além das tradições citadas, as narrativas indígenas sobre as origens também
apresentam similitudes com aquelas. Na narrativa desana, por exemplo, esse poder
de presentificação está no “pensar” de Yebá Buró, a Avó da Terra, segundo os autores
indígenas Umusi Pãrõkumu e Tõrãmú Kehíri – em português têm-se: Firmiano Arantes
Lana e Luiz Gomes Lana, respectivamente –, pois, “Enquanto ela estava pensando no
seu Quarto de Quartzo Branco, começou a se levantar algo, como se fosse um balão
[...]. O balão era o mundo” (1995, p. 20). O seu pensamento, ação de ser não criado,
causa de si mesmo – “Sobre estas coisas misteriosas é que ela se transformou por si
mesma” (KEHÍRI; PÃRÕKUMU 1995, p. 19) –, vai, aos poucos, dando materialidade ao
que existe. Falar e pensar, dentro da tradição oral, aflui, rigorosamente, ao um mesmo
ponto fundamental: o fazer memória. Pois a ação, seja da palavra ou do pensamento,
recebe eco no pensar e no falar, do poeta ou do xamã, que mantêm vivo (na memória)
esse ato criador.
Uma afirmação, no entanto, de que toda essa tradição oral constitui-se literatura
parece soar absurda. Mas não se pode ignorar todo um esforço intelectual que vem
sendo feito no sentido de revelar a riqueza dessas narrativas míticas (indígenas). E
para tal tradição – de expressão oral – não seria justo, para a pesquisadora Ruth
Finnegan (2006, p. 64), reservar como legado a condição de indicadora de primitivismo
ou carência de cultura. Ainda sobre o entendimento da antropóloga britânica, Mineke
Schipper escreve que Finnegan, “[...] afirmou, com razão, que, em pesquisas sobre
literatura oral, os pesquisadores têm errado em não formular questões que eles
próprios colocam para a literatura escrita” (SCHIPPER, 2006, p. 10). Isso porque,
para a autora de O significado da literatura em culturas orais, apesar das diferenças
existentes, é possível falar em literatura oral em função das semelhanças com o que
formalmente se chama de literatura (escrita).
Certamente que existe polêmica em torno dessa questão, mesmo quando
se assume definições de Literatura com maior abertura como a dada por Antoine
Compagnon, que considera que “[...] literatura é tudo o que é impresso (ou manuscrito),
são todos os livros que a biblioteca contém (incluindo-se aí o que se chama literatura
oral [...])” (2012, p. 31) e mesmo a que se pode extrair da Aula de Barthes. O linguista
francês define como literatura “[...] não um corpo ou uma sequência de obras, nem
mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de
uma prática: a prática de escrever” (2013, p. 17). E assim o faz por conceber o texto
como um afloramento da língua e a isto se pode entender como a dimensão que
ultrapassa os limites da escrita. E ao indicar Mathesis, Mimesis e Semiosis como forças
literárias, Barthes (2013, p. 18-44), não parece tender a isso, mas permite uma leitura
de abertura à tradição oral, pois esta, também produz saberes diversos, além de seu
Argumentação e Linguagem Capítulo 15 192
potencial representativo e de significação. Para Finnegan, na esteira de Aristóteles, a
literatura “[...] é uma representação da realidade e expressa o que é em sua totalidade”
(2006, p. 71). Desse modo, a oralidade também tem esse poder representativo
e elaboração intelectual sofisticada; toma como exemplo, a autora, os épicos de
Homero, reverenciados como rica fonte de conhecimento sobre a humanidade e que
surgiu dentro da tradição oral. O antropólogo social, Pedro de Niemeyer Cesarino,
ilumina um pouco mais a discussão ao constatar que as traduções tradicionalmente
feitas, das narrativas orais (indígenas), mantinham uma literalidade e linearidade tal
que as reduzia à prosa sequencial impossibilitando que se pudesse identificar, nessas
traduções, “[...] aspectos tais como o paralelismo, o uso de metáforas e léxicos rituais,
as enunciações polifônicas [...]” (CESARINO, 2013, p. 12), entre outras propriedades
presentes nas expressões orais. Não obstante, para o estudioso, atualmente as
pesquisas se sofisticaram tornando-se mais sensíveis a isso e, portanto, têm-se mais
em evidência, na cultura oral indígena, traços percebidos no que, formalmente, se
denomina literatura.
Por outro lado, o modelo literário ocidental-europeu não pode ser absoluto. Desse
modo, são inteiramente possíveis manifestações epistemológicas e artísticas sem,
obrigatoriamente, ser necessário a recorrência à escrita, conclui Finnegan (2006, p.
101). Além do que, trabalhos como os citados por Cesarino – inclusive o seu próprio –
como também as obras constituintes da coleção Narradores Indígenas do Rio Negro,
entre elas Antes o mundo não existia, de Umusi Pãrõkumu e Tõrãmú Kehíri, já inserem
essa literatura oral dentro da cultura ocidental do impresso.
3 | 	NARRATIVAS DOS PRIMÓRDIOS: TEOGONIA E COSMOGONIAS
As narrativas da Antiguidade grega gozam de grande recepção no meio literário.
Talvez isso se deva ao fato que, desde o primeiro contato, o Ocidente Moderno já tenha
encontrado tais expressões na forma escrita. Não ocorre o mesmo com a tradição oral
do ameríndio. As tentativas primeiras, de transferir para a linguagem escrita essas
narrativas, subtraíram-lhe os elementos estéticos e até formais que lhe aproximariam do
que se tem como literatura formalizada. O antropólogo Cesarino, faz essa constatação
ao afirmar que recentemente, alguns trabalhos, como o de “[...] Dennis Tedlock (1983)
aproximou as narrativas da ação da poesia dramática e rompeu com a linearidade da
prosa que dominava os trabalhos de tradução. [...] e ao menosprezo das qualidades
rítmicas e discursivas das expressões orais” (2013, p. 12).
Não obstante, as narrativas da origem do universo, grega – Teogonia: a origem
dos deuses – e desana – Antes o mundo não existia: mitologia dos antigos Desana-
Kehíripõrã – compõe já o universo do impresso. Fato este que, a partir daqui, ao ser
usado o termo narrativas, seja para a grega ou a desana, a intenção clara é referir-se
às obras escritas e impressas citadas previamente.
São duas narrativas míticas que fazem memória das origens do cosmos e
Argumentação e Linguagem Capítulo 15 193
delimitam, em certa medida, suas fronteiras. E, para usar uma definição apresentada
por Ernst Cassirer, em sua obra Linguagem e mito, tomada do filólogo Max Müller, o
mito é
[...] na verdade, o resultado de uma deficiência linguística originária, de uma
debilidade inerente à linguagem. Toda designação linguística é essencialmente
ambígua e, nesta ambiguidade, nesta “paronímia” das palavras, está a fonte
primeva de todos os mitos (CASSIRER, 2013, p. 18).
Esse algo apresentado pela linguagem de Cassirer é o relato sagrado de que
fala Mircea Eliade, sobre o princípio de tudo: “[...] uma realidade passou a existir, seja
uma realidade total, o Cosmo [...]” (1972, p. 9), pela ação (palavra/pensamento) de
“Entes Sobrenaturais”. E nessa relação com a linguagem, o espaço literário é ambiente
propício ao mito que, dando vigor vital à imagem do sobrenatural, do numinoso, forja
os contornos do mundo.
Nesse sentido é que Charles Bicalho, em sua tese intitulada Koxuk, a imagem
do yãmîy na poética maxakali, na esteira de César Guimarães, considera a imagem
literária como a evidenciação de aspectos sensíveis do objeto abordado a partir duma
dinâmica enunciativa na qual os signos linguísticos são articulados e ordenados. E
conclui o pesquisador que “Esta capacidade que a palavra tem de assemelhar-se ao
objeto representado é uma ‘propriedade do signo icônico’” (BICALHO 2010, p. 163).
Por conseguinte, a narrativa possibilita a completude da imagem na literatura, em
função de seu caráter icônico, pondera também Bicalho.
As narrativas hesiódica e desana constituem-se imagens da criação do cosmos.
Muito embora a visão grega de mundo possa dissentir da Desana não se trata aqui
dessa questão. Interessa a esta análise a causa eficiente do cosmos, perpetuada na
imagem literária da narrativa mítica. E aqui imagem e memória se relacionam. Memória
que é presença, mediante “A irrupção da voz [...]” (TORRANO 2014, p. 23), mística que
ressoa na oralidade poética ou xamanística. Bicalho, retomando a referência a César
Guimarães, vai dizer que “[...] a narrativa dispõe ela mesma de recursos capazes de
construir essa textura de imagens de que a memória é formada” (2010, p. 164).
Os mitos gregos são resultados de um movimento cultural que remonta
aos séculos XIV-XII a.C., na Grécia, anterior ao seu período clássico. A Hélade,
marcadas por invasões e migrações ao longo de grande porção do litoral do Mar
Egeu, estrutura sua religiosidade com o objetivo de forjar uma identidade individual
e coletiva (VERNANT, 2006, p. 38-42). Tal realidade deixa marcas profundas e “em
poesia o homem grego canta o declínio das arcaicas formas de viver ou pensar [...]”
(PESSANHA 1996, p. 8).
Hesíodo nasce em Ascra, Beócia, por volta do século VIII a.C. e vive toda a
sua vida aí. Quando da morte do pai e a partilha da herança entra em altercação
com o irmão Perses e sente-se lesado na disputa judicial. Sua poesia, segundo o
pesquisador Wagner Jaeger retrata esse drama, complementando que ao bardo foi
“[...] concedido pelas musas desvendar os valores próprios da vida do campo” (1994,
Argumentação e Linguagem Capítulo 15 194
p. 86). Somente através de tal concessão é que o homem comum era capaz de ir e
enxergar para além de seus limites geográficos, físicos e também temporais. Esse
é “[...] um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosyne) através das
palavras cantadas (Musas)” (TORRANO, 2014, p. 16).
Na tradição indígena, analogamente, esse poder é recebido como dádiva
sagrada e não como conquista bélica. Cesarino constatou, com sua experiência
entre o povo Marubo, que os demais indígenas sentiam-se inaptos a falar sobre
determinados assuntos; “Deixavam, assim, o tratamento de temas relacionados às
narrativas míticas e à cosmologia ao encargo dos xamãs [...]” (2013, p. 438). O que
parece ser aplicável à tradição desana, como se pode extrair do processo de escrita
de seus mitos.
O povo Desana ocupa o noroeste amazônico brasileiro, margeando o Rio
Uaupés, indo além dos limites fronteiriços com a Colômbia. Com uma população de
pouco mais de duas mil pessoas (2015) os Umukomahsã, que significa Gente do
Universo, tem intensa presença no município de São João Batista (AM), etnia a qual
pertencem os autores da narrativa mítica desana sobre a criação do mundo.
Tõrãmu Kehíri (Luiz Gomes Lana), responsável por transpor para a forma escrita,
as narrativas orais míticas de seu povo, foi educado numa escola sob os cuidados
de religiosos salesianos, onde aprendeu a ler e a escrever na língua portuguesa; um
primeiro contato com a cultura e religiosidade não índia. Recebeu as narrativas da
voz digna de seu pai, Umusi Pãrõkumu (Firmiano Arantes Lana); digna por ser a voz
de alguém que possui o poder de narrar tais acontecimentos, segundo a tradição
mítica. Fora “[...] filho de tuxáua, baya (isto é, mestre de cerimônia), kumu e tuxáua
ele mesmo, nunca quis aprender o português e fez questão que seus sete filhos
falassem a língua desana” (PÃRÕKUMU; KEHÍRI, 1995, p. 13).
Transcrita primeiramente para a língua desana, a narrativa da origem do
mundo revela seu grande personagem mítico: Yebá Buró. Na narrativa grega, quatro
personagens distintas estão presentes na constituição do cosmos, a saber: Kháos,
Terra, Tártaro e Eros.
Multiplicidade e univocidade não se opõem aqui, mas afluem e transfundem
numa dialética criadora. Da unicidade primitiva de Kháos surgem Terra, Tártaro e
Eros para enfim, gerar e administrar a constituição do cosmos.
“Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também”
“Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,”
“dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,”
“e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,”
“e Eros: o mais belo entre deuses imortais,”
[...] (HESÍODO, 2014, p. 109).
Argumentação e Linguagem Capítulo 15 195
Os versos acima (116-120) indicam esse movimento da unicidade à multiplicidade
como uma dinâmica cósmica de geração para retomar à unicidade novamente em
Zeus. E mesmo nessa multiplicidade, Jaa Torrano percebe uma unidade e vai titulá-
la “quádrupla e agônica” para em seguida anunciar a tensão simétrica que existe no
núcleo dessa unidade, ponderando que “Dada a diversidade de natureza entre as duas
forças de procriação, há uma prioridade de Kháos sobre Eros, e Hesíodo marca-a
clara e reiteradamente” (TORRANO, 2014, p. 45).
Para entender essa prioridade tem-se, além da temporalidade, expressa pelo
advérbio depois (no original em grego: épeita), também o espaço de dominância de
Kháos que transpõe o espaço de Eros. Por outro lado Terra e Tártaro são contíguos,
desse modo, são ao mesmo tempo, explica Torrano (2014, p. 45-46).
No início do mito desana “Origem do mundo e da humanidade / Primeira parte:
Origem do mundo” esse processo se inverte: tem-se inicialmente uma multiplicidade
que convergirá para a unidade. A narrativa é discretíssima ao construir tal imagem.
Yebá Buró, a divindade “Não Criada”, forja seu próprio ser a partir de seis elementos
misteriosos. O adjetivo “misterioso”, que caracteriza tais elementos indica a qualidade
extranatural destes: “Todas essas coisas eram especiais, não eram feitas como as de
hoje [...]” (PÃRÕKUMU; KEHÍRI, 1995, p. 20); são coisas com aparência comum, mas
com uma essência transcendente.
Haviam coisas misteriosas para ela criar-se por si mesma. Haviam seis coisas
misteriosas: um banco de quartzo branco, uma forquilha para segurar o cigarro,
uma, cuia de ipadu o suporte desta cuia de ipadu, uma cuia de farinha de tapioca
e o suporte desta cuia. Sobre estas coisas misteriosas é que ela se transformou
·por si mesma. Por isso, ela se chama a ‘”Não Criada” (PÃRÕKUMU; KEHÍRI, 1995,
p. 19).
Inicialmente a composição desse trecho da narrativa parece indicar uma
contradição lógica pela presença da expressão “criar-se por si mesma”. Algo
que pode criar, mesmo que a si mesmo, já tem pressuposta uma existência. Uma
hermenêutica rigorosa possibilitaria dar explicações sólidas acerca desse fato,
entretanto, os contornos do presente trabalho não permite tal esforço – a ausência
de uma crítica hermenêutica acerca dos textos desana também limita essa pesquisa.
Não obstante, parte-se da compreensão de que Yebá Buró, a “Avó da Terra”, não se
torna algo a partir dos elementos citados. O que se pode depreender da passagem
é de um momento cerimonial. As peças ritualísticas combinadas – como a uma
evocação – presentificam a divindade criadora; é o seu revelar-se como causa
eficiente do mundo.
E nesse jogo de multiplicidade e unicidade, inversamente à narrativa grega, no
mito ameríndio está presente a dialética criadora como um movimento de oposição:
uno e múltiplo. Um e vários. Caos e ordem. Ser e Não-ser. E como a unidade hesiódica
transporta em si uma multiplicidade e esta, sua porção de unidade, também o mito
do povo Desana apresenta esse movimento dialético. Dos seis elementos para
Argumentação e Linguagem Capítulo 15 196
uma divindade una e desta aos seis trovões (os Avôs do Mundo) (PÃRÕKUMU;
KEHÍRI, 1995, p. 19-21). São tradições míticas distintas, mas que nas diferenças se
assemelham.
4 | 	A DIGNA MEDIAÇÃO: MUSAS E KUMU
E nesse contexto de semelhança e dessemelhança, aprofundando a análise,
descobre-se uma semelhança pujante que é, contiguamente e na mesma intensidade,
uma dessemelhança. A ação hermenêutica possibilita a extração dessa semelhança,
não obstante, do ponto de vista estético-formal resta evidente a dessemelhança. E esta,
no sentido mesmo de heterogeneidade. Trata-se da relação entre dois elementos, um
de cada uma das narrativas. Da Teogonia, toma-se as Musas, filhas de Mnemosyne
(Memória) e Zeus, e de Antes o mundo não existia, tem-se o grande kumu e tuxáua,
Umusi Pãrõkumu. De um lado um personagem da narrativa grega, com um poder de
tornar aquilo que é narrado, através da palavra, real, isto é,
O mundo, os seres, os Deuses (tudo são Deuses) e a vida aos homens surgem
no canto das Musas no Olimpo, canto divino que coincide com o próprio canto
do pastor Hesíodo, a mostrar como surgiu e a fazer surgir o mundo, os seres, os
Deuses e a vida aos homens (TORRANO, 2014, p. 20).
O poder ontofânico, identificado por Jaa Torrano, é o poder de dar presença,
inerente às Musas (à Palavra). E onde não são chamadas – as Musas – nada pode
ser, pois elas são a causa do que é e sua ausência provoca o escondimento, a não
revelação das coisas (2014, p. 24-25). As Musas não eram a guardiã do conhecimento,
mas como filhas da Memória o que queriam revelavam e o que não queriam, mantinham
em ocultação. Administravam assim o conhecimento transmitido aos homens. Esse é o
seu poder, expresso nos versos 27 e 28 da primeira parte do Poema: “sabemos muitas
mentiras dizer símeis aos fatos”/“e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações”
(HESÍODO, 2014, p. 103).
Na narrativa desana, a mediação entre a Memória (tradição antiga) e os homens
é feita por alguém digno. O conhecimento sobre os fatos ocorridos nos primórdios
do mundo é ministrado pelo guardião desse saber registrado na memória. Umusi
Pãrõkumu, co-autor, junto com seu filho, da obra Antes o mundo não existia, tem
essa dignidade, pela sua condição de kumu e configura-se um guardião da memória
ancestral por ser um dos últimos que traz consigo essa relação com a memória de
eras primevas: “[...] meu pai, que é kumu, é dos poucos que ainda se lembram [...]”
(PÃRÕKUMU; KEHÍRI, 1995, p. 14), conforme admite Kehíri1
. Na cultura Desana, “Os
kumua exercem funções destacadas na estrutura social desana” (1995, p. 13). São
revestidos de sacralidade e alguns dons que lhes permite o contato com o mundo além
das fronteiras da realidade física. “Tal como os xamãs, têm profundo conhecimento da
1	 O texto que contem tal afirmação é resultado da pesquisa da antropóloga Berta Ribeiro com os Desana.
Em 1980 o texto, intitulado “Os índios das águas negras” introduziu a publicação da obra Antes o mundo não exis-
tia. Para a edição de 1995 foram compilados trechos para compor a apresentação da obra.
Argumentação e Linguagem Capítulo 15 197
mitologia, dos ritos e costumes tribais” (1995, p. 13).
Detentor da palavra, o kumu desana, também é capaz de simular verdades e,
quando a ele for conveniente, fazer revelações grandiosas: “Mas meu pai não queria
dizer nada, nem para o padre Casemiro, que tentou várias vezes perguntar, mas
ele dizia só umas besteiras assim por alto. Só a mim é que ele ditou essas casas
transformadoras” (PÃRÕKUMU; KEHÍRI, 1995, p. 11). Herdeiro de um poder capaz de
fazer as coisas se tornarem reais – a Palavra – pode ocultar e revelar. Tudo se realiza
mediante sua palavra como mediador de uma memória (conhecimento) antiga.
As Musas são a própria Palavra porquanto filhas de Mnemosyne. Pãrõkumu não
é, exatamente, a palavra, mas dignamente a representa e assim, detêm poder tal quais
as filhas de Zeus. Enquanto o cosmos grego surge mediante o cantar das Musas, o
mundo mítico desano recebe seus contornos mediante o narrar daquele que é digno
de fazê-lo, o mediador que conhece e transita pelo espaço sagrado: o kumu. Um dos
poucos que ainda restaram de uma cultura fértil.
5 | 	CONSIDERAÇÕES FINAIS
A palavra – escrita ou falada – pode presentificar o objeto do seu discurso numa
narrativa. Todas as coisas passam a existir mediante sua ação e são ocultas se assim
lhes for negada a evocação. A palavra, portanto, no espaço mítico, da causa de toda a
existência, inclusive das divindades maiores; como se ela própria – a Palavra – fosse
a deusa maior. Ela, no entanto, descende da linhagem mais nobre dos deuses: como
Musa, como Verbo, como pensamento criador.
A abordagem feita ao longo desta pesquisa ordenou a escrita para algumas
direções e não para outra em função dos contornos próprios do trabalho desenvolvido.
Sabe-se que outras questões, também pertinentes, poderiam e seria interessante
que fossem aprofundadas. Mas a palavra realiza seu poder ontofânico num processo
dialético de ocultação e de trazer à luz. E ao seu arauto cumpre apenas possibilitar sua
execução. Seria a isso que Foucault chamaria de “poder do discurso”?
Não convém, ao momento, tal debate. Não obstante, os elementos de tal poder
é metamorfo chega a todos os tempos fazendo-se necessárias novas alternativas
dialéticas e instrumentais teóricos para a sua abordagem.
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Argumentação e Linguagem Capítulo 15 198
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Capítulo 16 199Argumentação e Linguagem
MULTILETRAMENTOS NA FORMAÇÃO INICIAL
DOCENTE: APROXIMAÇÕES ENTRE REFLEXÃO E
AÇÃO
CAPÍTULO 16
Maria de Lourdes Rossi Remenche
Universidade Tecnológica Federal do Paraná-
UTFPR
Curitba – Paraná
Ana Paula Pinheiro da Silveira
Universidade Tecnológica Federal do Paraná-
UTFPR
Curitba – Paraná
RESUMO: As Tecnologias de Informação
e Comunicação (TDIC) mobilizam novas
concepções dos processos de ensinar
e aprender e, consequentemente,
multiletramentos e novas posturas de
trabalho docente na escola, em virtude da
multiplicidade cultural das populações e da
multiplicidade semiótica de constituição dos
textos (ROJO, 2012). O presente trabalho,
ancorado nos estudos sobre multiletramentos
(COPE; KALANTZIS, 2009); (LEMKE; 2010);
(STREET, 2003; 2013); buscou analisar as
atividades propostas pelos licenciandos nas
disciplinas de estágio de um Curso de Letras
de uma universidade federal do sul do país,
considerando as teorias que embasam as
novas formas de ensinar e aprender mediadas
pela Tecnologia. Este estudo, fundamentado
no quadro teórico-metodológico da Linguística
Aplicada, constitui-se em uma pesquisa
qualitativo-interpretativa e analisou, por meio
das atividades propostas e da observação das
aulas, as ações interventivas dos licenciandos
no que tange ao uso das TDIC. Os resultados
obtidos evidenciam que a tecnologia é
ainda utilizada como um recurso didático e
pouco se consegue explorar a concepção de
multiletramento, a multiplicidade de culturas
e de semioses nas propostas desenvolvidas
pelos alunos, o que aponta para a necessidade
de qualificar as reflexões na formação inicial,
nos Cursos de Letras, sobre as teorias que
embasam a leitura e escrita dos gêneros
multimodais.
PALAVRAS-CHAVE: Multimodalidade;
Multiletramentos; TDIC; Formação Inicial
Docente.
MULTILITERACIES IN INITIAL TEACHER
EDUCATION: APPROACHES BETWEEN
REFLECTION AND ACTION
ABSTRACT: The Information and
Communication Technologies (TDIC)
mobilize new conceptions of the processes
of teaching and learning and, consequently,
multiletramentos and new positions of teaching
work in the school, due to the cultural multiplicity
of the populations and the semiotic multiplicity
of the constitution of the texts (ROJO, 2012).
The present work, anchored in the studies on
Argumentação e Linguagem Capítulo 16 200
multiliteracies (COPE; KALANTZIS, 2009); (LEMKE, 2010); (STREET, 2003; 2013);
sought to analyze the activities proposed by the licenciandos in the course subjects of
a Course of Letters of a federal university in the south of the country, considering the
theories that support the new ways of teaching and learning mediated by Technology.
This study, based on the theoretical-methodological framework of Applied Linguistics,
constitutes a qualitative-interpretative research and analyzed, through the proposed
activities and the observation of the classes, the intervention actions of the licenciandos
regarding the use of the TDIC. The results show that the technology is still used as a
didactic resource and it is not possible to explore the concept of multiletramento, the
multiplicity of cultures and semioses in the proposals developed by the students, which
points to the need to qualify the reflections in the initial formation, in the Courses of
Letters, on theories that support the reading and writing of multimodal genres.
KEYWORDS: Multimodality; Multiliteracies; TDIC; Initial Teacher Education.
1 | 	CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA
A cultura contemporânea, como consequência direta da evolução da cultura
técnica moderna, não é o futuro que vai chegar, mas o presente em que os diferentes
sujeitos vivem (LEMOS, 2003). Nesse contexto, a cibercultura é uma forma
sociocultural que emerge de uma articulação entre a sociedade, a cultura e as
Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação - TDIC. Essa articulação complexa
faz emergir inúmeras demandas para a formação inicial docente, entendida aqui como
“início, institucionalmente enquadrado e formal, de um processo de preparação e
desenvolvimento da pessoa em ordem ao desempenho e realização profissional numa
escola ao serviço de uma sociedade historicamente situada” (ESTRELA, 2002, P. 18).
O trabalho com a formação inicial docente, por tudo isso, precisa de reflexão
crítica sobre o processo de ensino, elaboração de projetos, apropriação das linguagens
e tecnologias, e construção de competências científicas, ancoradas no domínio da
investigação e da indagação, pois esses saberes são imprescindíveis ao processo de
aprender a ensinar (Alves, 2001). Isso ocorre porque, cada vez mais, os licenciandos
precisam atuar em espaços educativos multiculturais, constituídos por crianças e
jovens usuários de TDIC e, consequentemente, sujeitos que navegam no ciberespaço
como leitores, produtores de texto, colaboradores, curadores, entre outros.
No tocante ao processo de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, a
formação inicial docente assume papel preponderante para capacitar os licenciandos
para mobilizar um conjunto de saberes e capacidades imprescindíveis às práticas de
leitura e escrita que fazem parte da vida social contemporânea. Ao discutir o tema,
Xavier (2013) argumenta que
A ocorrência de modificações nos modos de produção, organização e apresentação
das ideias através da linguagem afetam profundamente a maneira como um dado
conjunto de sujeitos adota, administra e consolida suas tradições culturais, regras
sociais e relações político-econômicas (XAVIER, 2013, p. 44 - 45).
Argumentação e Linguagem Capítulo 16 201
Na mesma linha, Street (2019) enfatiza que o processo de ensino-aprendizagem
da leitura e da escrita precisa mobilizar a variedade dos modos de comunicação
existentes, e isso envolve o trabalho com a multimodalidade. Para o pesquisador, o
trabalho com multimodalidade demanda um deslocamento em relação a abordagens
mais tradicionais, pois envolve explorar a forma como professores e estudantes
interagem no contexto pós-moderno da cibercultura.
Ao problematizar o uso das TDIC em contexto escolar, Kenski (2003) argumenta
que o sucesso da inserção da tecnologia demanda uma mudança pedagógico-
organizacional nas práticas de ensino. Para a autora,
Muitasvezesomauusodossuportestecnológicospeloprofessorpõeaperdertodoo
trabalho pedagógico e a própria credibilidade do uso das tecnologias em atividades
educacionais. Os educadores precisam compreender as especificidades desses
equipamentos e suas melhores formas de utilização em projetos educacionais. O
uso inadequado dessas tecnologias compromete o ensino e cria um sentimento
aversivo em relação à sua utilização em outras atividades educacionais, difícil de
ser superado (KENSKI, 2003, p. 50 - 51).
A partir dessa problematização e considerando que o uso das TDIC no contexto
educacional exige domínio das especificidades das tecnologias e dos recursos
mobilizados, intencionalidades pedagógicas e compreensão dos diferentes contextos,
formulamos as seguintes questões de investigação:
a.	 Os professores de Língua Portuguesa, em contexto de estágio, mobilizam
as TDIC como meio para o desenvolvimento de práticas pedagógicas?
b.	 Ao mobilizarem as TIDIC, os licenciandos o fazem com quais objetivos?
Compreendem os conceitos de letramento e mobilizam aspectos da multi-
modalidade em textos verbo-visuais?
Considerando essas questões, este artigo buscou analisar as atividades
propostas por 10 licenciandos nas disciplinas de Estágio Obrigatório de um Curso
de Letras de uma universidade federal do sul do país. Este estudo, fundamentado no
quadro teórico-metodológico da Linguística Aplicada e, a partir de uma abordagem
qualitativo-interpretativa, buscou analisar como esse grupo mobilizou, em contexto
real de ensino – estágio obrigatório –, os conhecimentos sobre práticas multiletradas,
que foram exploradas ao longo do curso de formação inicial, em seu fazer docente.
A geração de dados se deu a partir da análise das atividades propostas, observação
das aulas e das ações interventivas dos licenciandos na regência das aulas práticas
de Estágio , ou seja, percorreu três semestres, na realidade do espaço-tempo escolar
onde os licenciandos realizaram estudos teórico-práticos.
2 | 	OS MULTILETRAMENTOS E A PRÁTICA DOCENTE
Os pesquisadores Bill Cope, Mary Kalantzis, Allan Luke, Carmen Luke e Martin
Nakata, da Austrália; Courtney Cazden, James Gee e Sarah Michaels, dos Estados
Argumentação e Linguagem Capítulo 16 202
Unidos; Norman Fairclough e Gunther Kress, do Reino Unido, reuniram-se em 1994,
em New London , Estados Unidos, para discutir como os diversos grupos socioculturais,
especialmente as crianças em idade escolar, exploram os variados sistemas
semióticos para complementar ou mesmo substituir funções que, originalmente,
estiveram relacionadas à escrita alfabética e, dessa forma, interagir em diferentes
situações sociais de comunicação. Esse grupo de estudiosos ficou conhecido como
New London Group (Grupo de Nova Londres) e cunhou o termo multiletramentos para
nomear novas abordagens pedagógicas para o trabalho com letramentos emergentes
na contemporaneidade, especialmente os relacionados às tecnologias digitais.
Desde então esses estudos se ampliaram e apontam que o uso de diferentes
dispositivos contribui para a integração de diferentes semioses nas práticas interativas,
especialmente no contexto digital (Street, 2006). Nessa linha e em contexto brasileiro,
Rojo (2013) chama a atenção para a duplicidade contida no vocábulo “múltiplos” que
indica que as práticas de letramento contemporâneas dizem respeito não apenas à
multiplicidade de linguagens, semioses e mídias envolvidas na criação de significação
para os textos multimodais, como também à pluralidade e diversidade cultural trazida
pelos sujeitos na produção de sentido.
Esse trabalho, contudo, exige repertório cultural por parte do professor, além da
mobilização de diferentes textos/discursos que favoreçam a ampliação do repertório
cultural dos estudantes e, dessa forma, outros e novos letramentos. Nessa linha, Rojo
(2012) reforça a importância de uma abordagem situada a partir da cultura de referência
dos alunos e da exploração da diversidade de gêneros, mídias e linguagens.
Para isso, o trabalho pedagógico demanda o uso de diferentes modos de
representação para expressar sentidos em textos de gêneros diversificados, incluindo
aí os produzidos na cibercultura (New London Group, 2000). No processo de ensino-
aprendizagem de leitura e escrita, a multimodalidade, capacidade de articular modos
- linguístico, visual, sonoro, gestual, espacial – torna-se cada vez mais necessário.
RemencheeSilveira(2017)argumentamqueaescritaealeituraestãoimbrincadas
na vida social e, nessa perspectiva, a formação inicial não pode deixar de considerar
as mudanças da sociedade, incluindo as trazidas pela tecnologia, visto que essas
tecnologias modificam o modo de representar e comunicar. Nesse sentido, os novos
estudos sobre letramento precisam contemplar a multimodalidade e a hibridização.
Ao discorrer sobre as diferentes semioses e a produção de sentido, Lemke (2010)
defende que:
Houve um tempo, talvez, em que podíamos acreditar que construir significados
com a língua de algum modo era fundamentalmente diferente ou poderia ser tratado
separadamente da produção de significados com recursos visuais ou padrões de
ação corporal e interação social. Hoje, no entanto, nossas tecnologias estão nos
movendo da era da ‘escrita’ para a era da ‘autoria multimidiática’ (LEMKE, 2010,
p.456).
Para o Grupo de Nova Londres, o conceito de multiletramentos percorre a
multiplicidade de linguagens, visto que a produção dos gêneros multimodais aciona
Argumentação e Linguagem Capítulo 16 203
diferentes linguagens, mídias e semioses, assim como a diversidade cultural (COPE;
KALANTZIS, 2009). Isso fica claro no manifesto inaugural do Grupo - A Pedagogy
of Multiliteracies – Designing Social Futures (Uma Pedagogia dos multiletramentos
– desenhando futuros sociais), de 1990, no qual eles defendem a importância de
explorar as novas relações e representações de cidadania, trabalho e vida pessoal no
currículo escolar, isso, em uma sociedade nominada do conhecimento, inclui os novos
modos de produção de textos, a multimodalidade e multiplicidade de culturas.
Nessa proposta pedagógica, o Grupo caracterizou quatro dimensões com
objetivos operacionalizáveis do ponto de vista pedagógico para a formação de: usuário
funcional, criador de sentidos, analista crítico e prática transformadora, em outras
palavras, como experimentar, conceituar, analisar e aplicar (COPE; KALANTZIS,
2009). A partir da análise dessa proposta é possível depreender que o objetivo é formar
um usuário funcional capaz de ler diferentes gêneros discursivos, com competência
técnica, com uma metodologia que lhe garanta capacidades para ler e produzir textos
de modo crítico e, dessa forma, agir no e sobre os diferentes contextos em que estão
inseridos. Para Rojo (2012), uma abordagem pedagógica sustentada na perspectiva
dos multiletramentos:
[...] caracteriza-se como um trabalho que parte das culturas de referência do
alunado (popular, local, de massa) e de gêneros, mídias e linguagens por eles
conhecidos, para buscar um enfoque crítico, pluralista, ético e democrático — que
envolvam agência — de textos/discursos que ampliem o repertório cultural[...].
(ROJO, 2012, p. 8)
Na formação inicial, essa abordagem contribui, na visão de Kalantzis e Cope
(2012), para o desenvolvimento de sujeitos capazes de interpretar o mundo,
considerando as diferentes realidades, além de uma participação mais efetiva em
ambientes sociais e culturais diversificados (KALANTZIS; COPE, 2012). Nessa
perspectiva, esses pesquisadores reforçam a ideia do trabalho em sala de aula com
“projetos (designs) de futuro” a partir de três dimensões da vida em sociedades
globalizadas: a diversidade produtiva; o pluralismo cívico e as identidades
multifacetadas.
Kleiman (2014), ao discutir a formação inicial do professor, enfatiza a necessidade
de os cursos de licenciatura reafirmarem, junto aos licenciandos, a importância de
uma prática autônoma e reflexiva. Para Kleiman (2014, p. 88), existem “[...] conceitos
cristalizados sobre currículos, programas e métodos que, por melhores que sejam,
não dão conta de toda a necessidade do ensino e da aprendizagem, e muitas vezes
deturpam a nossa compreensão da escola e do letramento escolar”. A autora reforça
ainda que as instituições de formação de professores não conseguiram:
“suplantar as práticas escolares de letramento do início do século e parecem
também estar perdendo a batalha hoje, pois as funções sociais da leitura não estão
orientando práticas de ensino, que levem em conta as finalidades do uso da língua
escrita”. (KLEIMAN (2014, p.74)
Argumentação e Linguagem Capítulo 16 204
Pelo exposto até aqui, evidencia-se que não é suficiente ser um usuário de
TDIC e conhecer o modo de uso de um suporte para mobililizar esses dispositivos
tecnológicospedagogicamentenapráticadocente.Nessesentido,estabelecerobjetivos
pedagógicos que acionem o uso de tecnologias é fundamental para construirmos
um percurso de ensino-aprendizagem que dialogue com a cultura contemporânea,
promova diferentes aprendizagens e proporcione a articulação de conhecimentos,
culturas, instituições, mídias para a qualificação do processo de ensino-aprendizagem
nos diferentes espaços, desde a universidade até a educação básica.
3 | 	APROXIMAÇÕES ENTRE REFLEXÃO E AÇÃO DIDÁTICA
A formação inicial de docentes constitui uma etapa acadêmica centrada no
desenvolvimento de competências teórico-práticas que vão sendo desenvolvidas ao
longo do curso de licenciatura. Essa formação dialoga com os saberes dos futuros
professores, afinal o professor vai tecendo seu fazer a partir dos muitos fios que
envolvem experiências de ensino e de aprendizagem oriundas de sua história escolar.
Nessa perspectiva, Geraldi (2010) afirma que:
Nós nos formamos professores ao longo de alguns anos de estudos de certos
conteúdos, que adquirimos, que encorpamos, e que nos remodelam, nos tornam a
pessoa que não éramos. Seguramente, esse tipo de formação é consequência de
um longo processo histórico de construção da identidade profissional do professor,
que se mostra nos nossos cursos de formação. Certamente reconhecemos que
desta forma nos formamos professores (GERALDI, 2010, p. 8).
O processo de formação inicial é mais um desses fios que compõem a trama da
docência. Para contextualizar esse percurso formativo inicial, faremos um breve relato
do caminho percorrido pelos futuros professores.
O curso de Licenciatura Letras Português-Inglês em estudo contempla 08
semestres, totalizando um período de 04 anos. No 5º período do referido curso, os
licenciandos iniciam as disciplinas de Estágio Obrigatório Supervisionado que visa
propiciar ao professor em formação inicial a aplicação da pedagogia de projetos,
por meio da criação de situações problematizadoras e resoluções dadas pela
coletividade. Desse modo, eles realizam, em diálogo, as disciplinas de Metodologia
do Ensino de Língua Portuguesa e Estágio Curricular I. Os licenciandos realizam
três semestres de Estágio Obrigatório (I, II e II). No Estágio Curricular Obrigatório II
colocam-se em diálogo os fundamentos epistemológicos do ensino da Literatura, por
isso os dados não serão analisados neste estudo.
O objetivo de um trabalho aproximado com as duas disciplinas não é apenas
discutir as políticas públicas e fortalecer as concepções de linguagem, letramento,
processo de ensino-aprendizagem de leitura e produção textual, mas também
aproximar a reflexão teórica à prática docente.
Assim, à medida que os estudantes vão realizando as discussões
Argumentação e Linguagem Capítulo 16 205
epistemológicas, vão também construindo um projeto didático a ser desenvolvido
na regência das aulas, realizada na disciplina de Estágio Curricular I. Os licenciandos
realizam 08 aulas de observação de uma turma do Ensino Fundamental anos finais
ou Ensino Médio e, em dupla, desenvolvem um projeto didático para a regência de
aulas com vistas a articular atividades de oralidade, leitura, produção de texto, Análise
Linguística e, quando possível, reescrita de textos.
O projeto didático consiste num documento em que os professores em formação
inicial planejam suas ações para as aulas de regência que deverá abordar o tema
proposto pelo professor formador, mais especificamente o professor regente da turma
em que a aula de regência se dará. No desenvolvimento do trabalho com a disciplina
de Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa são explorados textos que favoreçam
à reflexão do aluno para a compreensão das concepções de linguagem e ensino, bem
como articulação dos eixos de leitura, produção textual e análise linguística, por meio
do trabalho com gêneros textuais.
Na disciplina de Estágio Supervisionado são discutidos documentos oficiais de
ensino (PCNs e Diretrizes Curriculares da Educação Básica de Língua Portuguesa
do Estado do Paraná) com ênfase na abordagem dos gêneros textuais em contexto
de sala de aula para o trabalho com as práticas de leitura e produção de textos. No
Estágio III, o aluno pode optar por desenvolver as suas ações no Ensino Fundamental
II ou no Ensino Médio, articulando os conteúdos de língua e literatura.
Entendemos que essa formação didático-pedagógica é fundamental para
instrumentalizar os futuros professores de saberes profissionais fundamentais ao
exercício da profissão. Formosinho (2001, p. 52), nesse sentido, afirma que o futuro
professor precisa “experienciar métodos e técnicas diferentes das já observadas no
seu anterior currículo discente e, assim, alargar o reportório de experiências que
poderá transferir para o desempenho docente”.
Como comentado anteriormente, a análise se deu a partir do projeto pedagógico
desenvolvido, os planos de ensino, a observação das aulas e dos relatórios de 10
professores em formação inicial. Nosso objetivo foi analisar como esses futuros
professores mobilizavam os conhecimentos teóricos sobre Gênero, tecnologia e
multiletramentos na articulação do trabalho com as práticas de leitura e escrita, ou
seja, analisar como os licenciandos mobilizam a reflexão sobre os conhecimentos
teóricos aos quais tiveram acesso durante a formação para, a partir deles, elaborar
suas ações didáticas.
Ao que concerne o trabalho com os gêneros discursivos, conforme preconizam
os PCN e as Diretrizes Curriculares da Educação Básica no Paraná (2006), observou-
se que os alunos tinham conhecimento sobre a teoria, fizeram escolhas relevantes
para o planejamento das aulas e realizaram, baseado nos gêneros selecionados, uma
articulação entre os eixos do ensino de leitura, Produção Textual e Análise Linguística.
Nem sempre, porém, a leitura do texto promoveu uma análise aprofundada que tivesse
como objetivo questões discursivas e enunciativas. Verificamos que a ênfase do
Argumentação e Linguagem Capítulo 16 206
trabalho ainda recai na construção composicional e no tema, enquanto a abordagem
sobre estilo ainda fica relegada a um segundo plano e, quando aparece, traz apenas
aspectos superficiais. O quadro abaixo apresenta os gêneros selecionados para a
elaboração do projeto didático, nele, podemos verificar uma variedade de gêneros que
mobilizam a linguagem verbo-visual:
Fonte: Remenche e Silveira, 2019.
A análise dos planos de ensino, bem como dos relatórios de estágio, revelou
que 80% dos licenciandos, ao produzirem o material didático, utilizaram TIDIC,
em consonância com o documento que estabelece diretrizes para a formação dos
profissionais que atuam na Educação Básica, que define que a formação deve
propiciar ao egresso dos cursos de licenciatura o “uso competente das Tecnologias
de Informação e Comunicação (TIC) para o aprimoramento da prática pedagógica e
a ampliação da formação cultural dos(das) professores(as) e estudantes” (BRASIL,
2015, p. 6),
Dentre outras questões, precisamos considerar que, no contexto atual, muitos
textos circulam em ambiente digital e os licenciandos, bem como os alunos da
educação básica que constituem o público nas aulas de regência de Estágio, estão
inseridos em situações de interação que envolvem o uso de tecnologia e de suporte
digital. Portanto, esse uso não revelou dado novo, pois não necessariamente evidencia
intencionalidade pedagógica na mobilização do recurso.
Ao olhar para esses dados, podemos inferir que os licenciados, ao fazerem uso
das TIDIC, compreendem que muitos dos gêneros selecionados exigem conhecimento
específico para a leitura de textos verbo-visuais, assim como a compreensão de como
o suporte digital interfere na construção de sentidos desses novos textos. Verificamos
também uma abordagem dos elementos não verbais como as cores, as figuras, a
posição da imagem, o tamanho, o enquadramento. Isso revela clareza na composição
Argumentação e Linguagem Capítulo 16 207
do texto multimodal e da importância de se trabalhar com os diferentes aspectos
semióticos que compõem o texto.
Contudo, a análise revelou também que, embora as TIDIC tenham sido utilizadas
por 80% dos licenciandos, apenas 10% explicitaram o conceito de multiletramento ao
refletir sobre sua prática no relatório de Estágio, conforme se verifica no trecho extraído
do relatório “O trabalho do estágio é de extrema importância para o crescimento do
licenciado, ressaltando que é nesse momento que todo o trabalho realizado durante o
curso, o que foi aprendido nas disciplinas específicas de metodologia é colocado em
prova” (Licenciando 3).
Esse dado é reforçado pelo fato de que somente 20% dos licenciandos
elaboraram objetivos que exploravam a multimodalidade presente nos textos. Isso
evidencia que, conquanto os futuros professores conheçam aspectos teóricos e sejam
usuários de TDIC, ainda não a mobilizam com intencionalidade pedagógica em sua
prática docente. Esses dados são demonstrados no gráfico que segue:
Fonte: Remenche e Silveira, 2019.
O projeto didático de um licenciando que se propôs a trabalhar com o gênero
artigo de opinião, por exemplo, intitulou-se “Diferentes modos de materialização
da opinião em textos multissemióticos”. Importante observar que esse licenciando
que empregou o conceito de multimodalidade no título do seu projeto (“modos de
materialização”) é o mesmo que, no relatório, elaborou uma reflexão sobre a pedagogia
dos multiletramentos, demonstrando, desse modo, uma prática baseada em escolhas
teórico-metodológicas para seu fazer docente.
No projeto intitulado “O Menino e O Mundo - O Texto Multimodal e A Resenha”,
o licenciando selecionou a animação de Ale Abreu, uma obra que rompe com a
Argumentação e Linguagem Capítulo 16 208
concepção de verbal, já que não há palavras, ou melhor, os poucos diálogos são ditos
ao contrário, o que vai exigir do leitor uma articulação das linguagens visual, sonora e
ritmo para construir sentidos para o texto. A proposta era explicita ao requerer a análise
de um texto multimodal e traçar objetivo que propiciava ao aluno compreender como
se dá a construção de sentidos em textos imagéticos, conforme o objetivo de ensino
“tornar o estudante apto a identificar aspectos narrativos - tempo, espaço, perspectiva
- não apenas em textos verbais, mas também em textos visuais”.
Encontramos também projetos que não fazem menção a esse trabalho como,
por exemplo, a proposta de trabalho com o gênero resenha a partir de filmes, que não
havia menção à articulação da linguagem verbo-visual para a produção de sentido.
Daley (2010, p. 488), nesse sentido, defende que:  
Para ler ou escrever a linguagem da mídia e para entender como ela cria significado
em contextos específicos, é preciso algum conhecimento de composição em
frames, paleta de cor, técnicas de edição, relação entre som e imagem, assim
como a mobilização de convenções narrativas e de gênero, e ainda o contexto de
signos e imagens, o som como um veículo do significado, e os efeitos da tipografia.
Verificamos que, ao operacionalizar a proposta do trabalho com gênero resenha
baseado em filmes, o licenciado estabeleceu como objetivo de ensino “Refletir sobre
escolhas textuais a fim de melhor construir-se um texto do gênero; desenvolver a
capacidade argumentativa de cada aluno para que eles possam criticar fatores
técnicos”, ou seja, ignoroua reflexão sobre como os recursos multissemióticos, como
defende Daley (2010).
O gráfico que segue apresenta um apanhado geral de como o uso da tecnologia
ainda possui caráter motivador no espaço-tempo da escola, mormente apresentado
como temática ou como recurso pedagógico, mas a reflexão sobre a linguagem ainda
é tímida. Isso revela um trabalho voltado à tecnologia como um fim em si mesma, e
não como meio para se qualificar aprendizagens e desenvolver habilidades ligadas à
pesquisa, escrita colaborativa, análise crítica de fontes, curadoria, leitura de hipertexto,
entre outras práticas significativas de leitura e escrita escolares.
Fonte: Remenche e Silveira, 2017.
Argumentação e Linguagem Capítulo 16 209
Precisamos observar que os dados apresentados aqui são parciais e referem-
se à formação inicial de professores, por isso são professores em formação e em
contínuo processo de aprendizagens sobre o fazer docente. Nesse sentido, Ribeiro
(2013) argumenta que os conhecimentos são continuamente afetados por novas
condições históricas, por isso, na formação inicial, [...] tanto os conhecimentos teóricos
específicos da formação do professor de Português quanto à recriação destes no
espaço da prática pedagógica se constituem orientados por forças históricas movidas
pela complexidade e pela contradição que lhe são constitutivas”. (RIBEIRO, 2013, p.
273). Nessa perspectiva, entendemos que a discussão e reflexão contínuo sobre o
fazer pedagógico é o caminho para qualificarmos o processo de formação e definirmos
nossas intencionalidades nesse trabalho.
4 | 	ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Neste artigo, fizemos uma breve retomada dos contextos contemporâneos
envolvendo as TDIC e verificamos que as tecnologias midiáticas vêm assumido um
papel significativo na configuração/organização da cibercultura em que os diferentes
textos hipermidiáticos são produzidos. Isso gera novos olhares para as tecnologias
e acaba por promover um processo de ressignificação, pois “As mídias [...] invadem
o cotidiano das pessoas e passam a fazer parte dele. Para seus frequentes usuários
não são mais vistas como tecnologias, mas como complementos, como companhias,
como continuação de seu espaço de vida”. (KENSKI, 2003, p. 25).
Considerando esse contexto contemporâneo e a complexidade de saberes
mobilizados na formação inicial - científicos, didático-pedagógicos e oriundos das
TDIC -, nossa busca foi observar em que medida os saberes sobre as TDIC e aspectos
voltados aos multiletramentos, explorados na formação inicial, seriam mobilizados nas
atividades elaboradas pelos licenciandos.
A análise evidenciou que, embora os licenciandos já tivessem explorados
alguns aspectos nas disciplinas do curso de formação inicial e dominassem os
recursos tecnológicos disponíveis, eles apresentaram dificuldades para mobilizar
esses recursos em seu fazer docente, ou seja, não ocorreu uma elaboração dos
conhecimentos explorados pela instância formadora (universidade) para atuação
dos estagiários nas suas aulas de regência na disciplina de Estágio Obrigatório I.
Verificamos que a tecnologia ainda é utilizada como um recurso didático e pouco se
consegue explorar a concepção de multiletramento, a multiplicidade de culturas e de
semioses nas propostas desenvolvidas pelos alunos.
Essas observações jogam luzes sobre a necessidade não só de estreitarmos as
relações teoria-prática, como também de dinamização do currículo de formação inicial
dos futuros professores. Tal abordagem implica considerar os contextos e as culturas
dos sujeitos envolvidos no processo educacional a fim de atender/dialogar a/com as
demandas contemporâneas.
Argumentação e Linguagem Capítulo 16 210
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XAVIER, Antônio Carlos. A era do hipertexto: linguagem e tecnologia. Recife: Pipa Comunicação,
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Capítulo 17 211Argumentação e Linguagem
O MÉTODO FÔNICO E A CONSCIÊNCIA
FONOLÓGICA NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO
CAPÍTULO 17
Alice Santos Pimentel Nunes
Universidade Federal do Pará - UFPA. Instituto de
Letras e Comunicação/Faculdade de Letras.
Monte Alegre- PA
Terezinha de Jesus Dias Pacheco
Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA.
Instituto de Ciências da Sociedade, Programa de
Letras.
Santarém - PA
RESUMO: O objetivo principal da presente
pesquisa foi investigar que tipo de método
de alfabetização os professores de 4 escolas
públicas do Ensino Fundamental aplicam
no processo de alfabetização e qual a
relação desses métodos com a consciência
fonológica. O método fônico enfatiza a
necessidade de instrução fônica explícita e
sistematizada, sendo de suma importância
para o aluno aprender a ler, em menos tempo,
e a desenvolver a consciência fonológica,
na medida em que for fazendo essa relação
letra/som e vice-versa, e identificando e
discriminando os diferentes sons da língua
portuguesa. Para isso, coletou-se os dados
através de questionários e entrevistas com
a principal finalidade de investigar se as
professoras que foram os sujeitos da pesquisa,
ao alfabetizarem as crianças desenvolviam
neles a consciência fonológica. Pesquisas,
comoasdeCapovilla&Seabra(2012),apontam
que o método usado pelos professores para
ensinar seus alunos é o grande diferencial no
processo de aprendizado de leitura e escrita.
Partindo do princípio que esses teóricos
asseguram ser de suma importância o uso
de métodos eficazes no processo de leitura e
escrita e no desenvolvimento da consciência
fonológica. Considerando o corpus da
pesquisa, o resultado revelou que os dados
coletados comprovam que, em Monte Alegre,
quando os alunos são alfabetizados, não há um
método específico e nem o desenvolvimento
da consciência fonológica do aluno.
PALAVRAS-CHAVE: método fônico,
consciência fonológica, processo de
alfabetização.
THE PHONICAL METHOD AND
PHONOLOGICAL CONSCIOUSNESS IN THE
LITERACY PROCESS
ABSTRACT: This research has the main
objective to investigate what are kind of literacy
method the teachers of 4 public elementary
schoolsapplyintheliteracyprocessandwhatare
the relation of these methods with phonological
awareness. The phonic method emphasizes
the need for explicit and systematized phonic
instruction, and it is of most importance for
Argumentação e Linguagem Capítulo 17 212
the student learn to read in less time and to develop phonological awareness, in so
far as it is doing this letter / sound relationship and vice versa , and identifying and
discriminating the different sounds of the Portuguese language. For this, I collected data
through questionnaires and interviews with the main purpose of investigating whether
the teachers who were the subjects of the research, when they literacy the children
developed in them the phonological awareness. Researchers, such as Capovilla &
Seabra (2012), point out that the method used by teachers to teach their students is
the great differential in the process of learning to read and write. Assuming that these
theorists assure to be of fundamental importance the use of effective methods in the
process of reading and writing and in the development of phonological awareness.
Considering this research, I prove that in Monte Alegre, when students are literate
there is no specific method or development of the student’s phonological awareness.
KEYWORDS: phonic method, phonological awareness, literacy process.
1 | 	INTRODUÇÃO
Há muito se tem discutido sobre os métodos de alfabetização em nosso país.
Pesquisadores se têm debruçado sobre pesquisas em várias áreas do conhecimento
como psicolinguística, psicopedagogia, psicologia cognitiva e dentre outras que vem
contribuindo para o avanço da leitura e escrita. Pesquisas, como as de Capovilla &
Seabra (2012), apontam que o método usado pelos professores para ensinar seus
alunos é o grande diferencial no processo de aprendizado de leitura e escrita.
Essa pesquisa não só quer chamar a atenção para importância do método fônico,
no que tange o desenvolvimento da consciência fonológica na criança, no processo de
alfabetização como também alertar que professores das escolas de Monte Alegre, os
quais fizeram parte dessa pesquisa, ainda não desenvolvem a consciência fonológica
em seus alunos.
É importante ressaltar que o uso do método fônico corrobora com o ensino da
leitura e escrita, propondo o ensino sistemático explicito das relações entre letras
e sons do código alfabético ou qualquer língua que tenha a escrita alfabética. “o
método fônico é o único que leva em conta o ensino explicito do código alfabético
e o da relação grafema-fonema” (SCHERER, 2012, p.114). Entretanto, para ler em
um sistema de escrita alfabético como o nosso, é de suma importância que o aluno
aprenda primeiramente essa relação por meio do ensino explícito do código alfabético,
igualmente, ressalta-se que “para ler em um sistema alfabético é necessário decodificar,
converter grafemas em fonemas”. (SCHERER, 2012, p.117).
Para a realização dessa pesquisa leu-se vários teóricos como Capovilla & Seabra
(2012), Ubiratã Alves, Ana Paula Scherer, Elizabeth Almeida, Patrícia Duarte, Ana
Paula Blanco-Dutra, Leonor Scliar-Cabral e tantos outros que discutem a importância
da consciência fonológica no processo de alfabetização nas crianças das séries
iniciais no Ensino Fundamental. A leitura desses autores constituiu a base teórica
Argumentação e Linguagem Capítulo 17 213
dessa pesquisa, porque eles não só definem o que é consciência fonológica como
também discutem as práticas pedagógicas que podem ser aplicadas, quando se quer
trabalhar, na sala de aula, com o método fônico para o desenvolvimento da consciência
fonológica dos alunos.
Os instrumentos para coletar os dados foram dois: questionário e entrevistas
com os sujeitos da pesquisa, que foram as professoras de 4 escolas da rede municipal
do município de Monte Alegre no estado do Pará totalizando em 5 professoras.
Uma vez coletados os dados, fez-se a análise, constatando-se que os sujeitos
da pesquisa, ao alfabetizarem as crianças, trabalham com o método tradicional
denominado método silábico, e, que por esse motivo, não desenvolvem a consciência
fonológica em seus alunos. É importante ressaltar que na formação profissional desses
professores, não é trabalhado no currículo a consciência fonológica. Por essa razão,
eles desconhecem a importância de trabalhar a consciência fonológica no processo
de alfabetização.
Esse artigo está dividido em três partes, a saber: a primeira parte traz uma
discussão sobre o que é o método fônico. Vários autores expõem o seu conceito sobre
isso, ficando muito claro para o leito o que o método fônico e a sua importância para
o processo de alfabetização. Na segunda parte desenvolvem-se os conceitos sobre
consciência fonológica, procurando esclarecer como ocorre na mente da criança, e na
terceira parte a metodologia e análise da pesquisa realizada.
Foi uma pesquisa que trouxe um conteúdo muito importante para professores
que alfabetizam e que necessitam desenvolver a consciência fonológica em seus
alunos.
2 | 	MÉTODO FÔNICO
2.1	Concepção
O método fônico consiste em ensinar as correspondências grafofonêmicas,
isto é, a relação entre letra e o seu respectivo som; e a desenvolver as habilidades
metafonológicas, ou seja, a habilidade de manipular e refletir sobre os sons da fala
de maneira a estimular o seu desenvolvimento fonológico. Visto que, através desse
método, a criança adquire a competência de leitura e escrita à medida que vai
codificando fonografêmicamente e decodificando grafofonêmicamente.
O método fônico enfatiza a necessidade de instrução fônica explícita e
sistematizada, sendo de suma importância para o aluno aprender a ler em menos
tempo e a desenvolver juntamente a consciência fonológica, na medida em que
for fazendo essa relação letra/som e vice-versa, e identificando e discriminando os
diferentes sons da língua portuguesa.
Argumentação e Linguagem Capítulo 17 214
2.2	Especificidade do Método Fônico
O Método baseia-se em instruções fônicas e instruções metafonológicas - como
quesito fundamental para uma aprendizagem eficaz de leitura e escrita na alfabetização
de crianças com e sem distúrbios de aprendizagem. É considerado sintético, pois
sua forma de ensinar é do simples para o complexo. Iniciando pelo som da letra, em
seguida as sílabas, palavras, frases e finalmente o texto. (SEABRA, 2011; SEABRA &
CAPOVILLA, 2010).
Segundo os autores, as instruções são imprescindíveis para o desenvolvimento
da criança no que tange a leitura e escrita, pois suas habilidades serão desenvolvidas
gradativamente, á medida que elas são expostas ao ensino explícito e sistemático do
princípio fônico, haja vista que
[...]asabordagensfônicasusualmentepropõemoensinoexplícitoesistemático,com
grau crescente de dificuldade, das habilidades de decodificação grafofonêmica e
de codificação fonografêmica, paralelamente ao trabalho para desenvolvimento da
consciência fonológica. (SEABRA & DIAS, 2011, p.312).
Essa proposta é abordada com grau de dificuldade crescente, pois ensinam-
se as letras cujos nomes são similares ao respectivo som, para depois ensinar as
letras que representam sons diferentes do seu nome, e posteriormente as letras
que representam mais de um som. Portanto, por meio dessas instruções explícitas
e sistemáticas, a criança é instruída a fazer a correspondência entre letras e sons, e
com a prática desenvolve a habilidade de converter os sons que ouve em escrita e
vice-versa.
As instruções metafonológicas, referente aos procedimentos, é habilidade de
refletir sobre a estrutura fonológica da linguagem oral de forma consciente, como:
trocar, suprimir e adicionar os sons a fala de maneira a estimular o desenvolvimento da
consciênciafonológicalevandoacriançaaadquirirleituraeescritacompetentesàmedida
que vai codificando (fonografêmicamente) e decodificando (grofofonêmicamente).
(SEABRA & CAPOVILLA, 2010).
Entretanto, conforme o conceito dos autores, as instruções metafonológicas
consistem
Na habilidade de lidar intencionalmente com as propriedades fonológicas da
fala, como, por exemplo, julgar se dois sons da fala se assemelham ou não, ou
dizer como fica uma dada sequência de sons da fala quando são adicionadas ou
removidas determinadas partes (SEABRA & CAPOVILLA, 2011, p.64).
As habilidades serão desenvolvidas a partir de atividades lúdicas que o método
propicia por meio de suas abordagens fônicas. Sendo que as atividades fônicas se
concentram no código alfabético em ensinar a criança a fazer a correspondência entre
letras e sons de maneira sistemática para a construção de leitura e escrita, levando-a
a codificar os sons que ouve por meio da escrita e decodificar a escrita na fala. E,
as atividades metafonológicas concentram-se em exercícios para o desenvolvimento
da consciência fonológica em nível fonêmico, ou seja, a cada atividade é composta
Argumentação e Linguagem Capítulo 17 215
gradativamente em nível de dificuldade crescente.
O uso do método propõe o ensino de forma objetiva para uma boa compreensão
do código alfabético ou outra língua que tenha a escrita alfabética. “O método fônico
é o único que leva em conta o ensino explicito do código alfabético e o da relação
grafema-fonema” (SCHERER, 2012, p.114). Essa característica que ele possui facilita
ao professor alfabetizar a criança de modo a proporcionar resultados satisfatórios na
alfabetização.
3 | 	CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA
3.1	Concepção
Inúmeras pesquisas no âmbito da consciência fonológica para aquisição da leitura
tem consolidado a relevância de tal habilidade para o desenvolvimento da leitura e
escrita. Segundo Seabra e Capovilla (2010); Blanco-Dutra, Rigatti Scherer, Brisolara
(2012 p.75), vários estudos relatam que a habilidade de estar conscientemente atentos
aos sons da fala tem relação com o sucesso na aquisição da leitura e escrita. Havendo
uma estreita relação entre consciência fonológica e aquisição da escrita por crianças
e adultos, esta por sua vez auxilia no desenvolvimento da consciência fonológica. A
consciência fonológica é definida por alguns autores como sendo
“a capacidade de identificar que as palavras são constituídas por sons que podem
ser manipulados conscientemente. Ela permite à criança reconhecer que as
palavras rimam, terminam ou começam com o mesmo som e são compostas por
sons individuais que podem ser manipulados para a formação de novas palavras”.
(LAMPRECHT, 2012 p.32)
Para Capovilla (2005) a consciência fonológica é a habilidade de prestar atenção
aos sons da fala como entidades independentes de seu significado. A habilidade de
reconhecer aliteração e rimas e a habilidade de contar sílabas nas palavras são alguns
dos indicadores de consciência fonológica.
A consciência fonológica envolve níveis gradativos que serão desenvolvidos, à
medida, em que a criança vai tornando-se consciente que as palavras representam
os sons da fala. “A noção de consciência fonológica é ampla, envolvendo um grande
número de habilidades, reflexão e manipulação em diferentes níveis, que podem exibir
um grau menor ou maior de complexidade” (ALVES, 2012, p. 33).
3.2	Níveis de consciência fonológica
Segundo Adams et. al. (2006) e Alves (2012) A consciência fonológica é muito
ampla, englobando todos os tipos de consciência que compõem o sistema de certa
língua, sendo composta por níveis como: a consciência de sílabas, a consciência
intrassilábica e consciência fonêmica, as quais se apresentam com grau de dificuldades
em maior ou menor complexidade.
Argumentação e Linguagem Capítulo 17 216
Alguns níveis surgem naturalmente em fases diferenciadas do desenvolvimento
linguístico da criança, e outros precisam de instruções explícitas e sistemáticas do
código alfabético. Diante disso,
[...] os níveis de consciência fonológica desenvolvem-se de maneira diferenciada
e individual, se organizam em níveis de complexidade. Os níveis silábico e
intrassilábico são menos complexos e podem ocorrer antes do processo de
alfabetização. Entretanto o nível fonêmico é mais complexo e, na maioria das vezes,
ocorre a partir do ensino formal da língua escrita. (BLANCO-DUTRA, SCHERER;
BRISOLARA, 2012, p. 84).
Conforme os autores supracitados, o processo de consciência fonológica
ocorre em três níveis distintos, onde certas habilidades serão mais perceptíveis e
desenvolvidas com maior rapidez pela criança do que em outras. Haja vista que, cada
nível vai se revelando de acordo com a maturação da criança, pois, o processo de
desenvolvimento da consciência fonológica em nível silábico é uma das primeiras
habilidades que a criança desenvolve dentro da consciência fonológica e não exige
assim, tanto esforço linguístico por parte da criança.
A consciência em nível silábico é caracterizada por segmentar a palavra em
sílabas, por exemplo, a palavra bola, ela pode ser dividida em dois segmentos: BO
– LA, e essa habilidade, segundo os autores, exige um grau de complexidade mais
simples para que a criança perceba tal segmentação dentro da própria língua que ela
fala.
A consciência em nível intrassilábico são as rimas e aliterações, igualmente ao
nível anterior, são mais perceptíveis para a criança não requerendo tanto esforço
assim por parte da consciência fonológica do aluno para notar tais sons na língua,
uma vez que, “a detecção de rimas está entre as tarefas de consciência fonológica
de mais fácil domínio por crianças pré-escolares” (CARDOSO-MARTINS; DUARTE,
1994 apud CORRÊA e MACLEAN, 2011, p.133). Este nível sucederá a consciência
em nível do fonema, um dos níveis mais complexo a ser desenvolvido e apreendido
fonologicamente pelo aluno, neste sentido, “competências de análise fonológica
menos complexas seriam não só adquiridas mais cedo como poderiam ter tidas como
precursoras de outras mais complexas”. (CORREA e MACLEAN, 2011, p. 133.)
E por último vem à consciência fonêmica que é definida como sendo a
“capacidade de reconhecer e manipular as menores unidades de som que possuem
caráter distintivo na língua”. Esse nível é de difícil complexidade fonológica, segundo
os autores, pois ela requer um ensino sistemático e explícito do código alfabético para
que a criança possa ter a percepção dos sons distintivos que existe ao manipular os
fonemas nas palavras.
Esse nível faz com que a palavra tenha significados diferentes de acordo com a
troca de uma letra por outra, o que implica em unidades ainda menores que uma sílaba,
que é o fonema, pois essa consciência “implica saber reconhecer que as palavras são
constituídas de sons de caráter distintivo, envolvendo a capacidade de manipulação
que inclui segmentar, unir ou modificar tais sons distintivos individuais para a criação
Argumentação e Linguagem Capítulo 17 217
de novas palavras” (ALVES, 2012, p.33).
Segundo Seabra & Capovilla (2010, p. 122), esse é o nível mais difícil a ser
adquirido pela criança, por se tratar de unidades mínimas, e requer instruções
explícitas e sistemáticas para que a criança aprenda a ler mais rápido. Para ser capaz
de identificar fonemas individuais, a criança precisa receber instrução explícita sobre
regras de mapeamento da escrita alfabética, isto é, o ensino formal e sistemático da
correspondência entre os elementos fonêmicos da fala e os elementos grafêmicos da
escrita.
Conforme os autores o processo de desenvolvimento da consciência fonológica
ocorre em níveis diferenciados, exigindo um grau de habilidades que amadurecerão
na medida em que a criança vai se tornando consciente que os sons da língua
representam os grafemas e que eles podem se decompor em pedacinhos menores
que uma sílaba.
Os níveis silábicos, intrassilábicos e fonêmicos podem ser desenvolvidos pelo
professor através de atividades lúdicas que levam a criança a identificar, trocar,
manipular os fonemas nas palavras para construção de novas palavras com significados
diferentes. As atividades são enfatizadas de acordo com grau de complexidade
fonológica em que irá da simples percepção de palavras que rimem como exemplo:
café, chulé, e as aliterações são as palavras que possuem sons iniciais iguais, Ex.:
mala, mesa. Sendo que “os estágios iniciais da consciência fonológica contribuem
para o desenvolvimento dos estágios iniciais do processo de leitura. Por sua vez, as
habilidades desenvolvidas na leitura contribuem para o desenvolvimento de habilidades
de consciência fonológica mais complexas (SEABRA e CAPOVILLA, 2010 p.123).
4 | 	PESQUISA DE CAMPO
4.1	Coleta de dados
Considerando os estudos realizados pelos autores Seabra e Capovilla (2010),
bem como seus experimentos com o método fônico e a sua vasta bibliografia a respeito
do assunto, e como funcionou em determinados países como Estados Unidos, Grã-
Bretanha e Dinamarca com outros teóricos, e no Brasil com os autores supracitados,
instigou-se o interesse a perquirir o método adotado pelos professores no município
de Monte Alegre, considerado por eles relevante no processo de alfabetização e qual
a relação dele com a consciência fonológica dos alunos.
A pesquisa foi realizada nas Escolas Municipais de Educação Infantil e Ensino
Fundamental Professor Orlando Costa, localizada na Travessa Major Francisco
Mariano n° 284, Cidade Alta; Escola Dr. José Gama Malcher; Escola Archimimo Baia
da Costa; localizada Avenida Nilo Peçanha, s/n – Terra Amarela; Escola Professora
Maria Erandir Nogueira, localizada na Rua Monte Alegre, s/nº, Bairro de Terra Amarela.
Argumentação e Linguagem Capítulo 17 218
As duas primeiras escolas estão localizadas em bairros centrais da cidade e as duas
últimas em bairros periféricos.
A pesquisa de campo foi investigativa, realizada através da aplicação de um
questionário com seis perguntas objetivas com a pretensão de alcançar o escopo da
pesquisa: investigar quais são os métodos de alfabetização que os docentes utilizavam
em suas práticas pedagógicas e se havia alguma relação desses métodos com a
consciência fonológica.
A referida pesquisa teve como público alvo cinco professoras de seis turmas de
1º Ano (antiga alfabetização), que foram denominadas pelas letras A, B, C, D e E,
sendo que uma das professoras lecionava em duas turmas em períodos distintos. O
período de realização da pesquisa foi de uma semana, tempo esse suficientemente
razoável para a obtenção das respostas.
A pesquisa deu-se em dois momentos: inicialmente houve contato com a direção
das escolas a fim de solicitar autorização para aplicar os questionários aos professores
alfabetizadores, posteriormente, o contato com as professoras de alfabetização para
a entrega dos questionários. Na oportunidade, ressaltando-se, em caso de dúvidas,
poderiam deixar em branco a questão para que na entrega dos referidos questionários
pudéssemos discutir sobre o assunto.
No segundo momento foram coletados os questionários. Na ocasião, foi
realizada uma breve conversa com as professoras a respeito dos níveis de perguntas
contidas no formulário, se houve alguma dificuldade da parte delas em responder
as referidas questões. As dúvidas que houve ocorreram nas questões referentes à
consciência fonológica, ficando a maioria dos questionários sem resposta sobre esse
item.
Por conseguinte, nesta segunda etapa, as questões acerca da consciência
fonológica foram esclarecidas e explicadas, então, nesta ocasião pude perceber a
necessidade de um Método de alfabetização que enfatizasse o desenvolvimento de
tal prática e que viesse a contribuir para o aprendizado da leitura. Partindo dessas
inquirições feitas aos professores, foram extraídas informações importantes que,
somente pela resolução dos questionários, não se poderiam ser percebidas e com
isso ser concluída a referida pesquisa.
O teor do questionário foi formulado com o fim de perquirir tais anseios
referentes à prática dos métodos usados em sala de aula pelos professores e deu-
se da seguinte forma: as perguntas estabelecidas foram direcionadas ao método de
alfabetização utilizado pelas professoras de 1° Ano: o tempo que elas lecionavam
nas turmas de alfabetização (1°ano); se os métodos utilizados pelas professoras
alcançavam o resultado esperado no que tangia a leitura e enquanto tempo; se o
método, usado para ensinar os seus alunos a ler, enfatizava a correspondência
grafema e fonema; se já haviam ouvido falar a respeito da consciência fonológica;
caso sua resposta fosse sim para a consciência fonológica, como elas julgariam a
relevância para o aprendizado da leitura e de que modo o método aplicado por elas
Argumentação e Linguagem Capítulo 17 219
em sala de aula desenvolveria a consciência fonológica de seus alunos.
5 | 	UMA BREVE ANÁLISE DOS MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO UTILIZADOS EM
SALA DE AULA NO MUNICÍPIO DE MONTE ALEGRE- PA
Em análise as respostas das professoras, duas das cinco entrevistadas, eram
alfabetizadoras há mais de dez anos e usavam o método sintético de ensino em
determinado momento em suas aulas, e as outras três, haviam ingressado na carreira
docente há cerca de três anos, e, do mesmo modo, usavam o mesmo método de
ensino.
O método de alfabetização usado nas práticas pedagógicas pelas professoras
A, B, C, D e E era o alfabético – silábico. A professora B mencionou que a partir do
corrente ano (2015) passaria a utilizar o método intitulado “Dom Bosco” para alfabetizar
seus alunos, haja vista que no ano anterior, ela fazia recortes de vários métodos para
alfabetizar seus alunos, porém, até o momento do corrente ano, não apresentava
um método definido para trabalhar com as crianças em sala de aula. É importante
ressaltar que esse método de ensino que a professora irá adotar é direcionado à
alfabetização de jovens e adultos, e que, segundo Santos (in: FARIAS, 2003), não
exige especialização de quem o aplica, sendo que até voluntários podem aplicá-lo.
Ao que se refere à consciência fonológica, o assunto era desconhecido para
umas professoras e novo para outras, assim como a importância da consciência
fonológica para o aprendizado da leitura. Os questionamentos relacionados à cerca
da consciência fonológica, as docentes A, B, C e D já tinham ouvido falar e a E ainda
não tinha ouvido falar. Porém, as professoras B, C e D desconheciam que tipo de
consciência era essa e não sabiam da sua importância para o aprendizado da leitura,
e nem como se dá o desenvolvimento nos discentes em sala de aula. Somente a
professora A se aproximou um pouco do que seria consciência fonológica e como a
referida consciência poderia contribuir para o desenvolvimento fonológico do aluno
correlacionado ao ensino da leitura. Diante da questão, a professora respondeu da
seguinte forma: “A consciência fonológica pode contribuir para o aprendizado da leitura
a partir do momento que o aluno passa a identificar os sons das letras”.
Observa-se que não há a busca por métodos cientificamente mais eficazes no
processo de leitura que objetive o desenvolvimento da consciência fonológica do aluno,
consciência fonológica essa, a qual tem relação determinante com o aprendizado da
leitura.
Da mesma forma, prosseguindo com os dados da pesquisa, pôde-se perceber a
falta de análise da relevância do método para as suas práticas pedagógicas em sala de
aula. Algumas seguem diversos métodos, sendo perceptível a falta de conhecimentos
teóricos - científicos acerca do método que são utilizados por elas.
Todavia, por outro lado, não há método de alfabetização, incentivado pelo governo
Argumentação e Linguagem Capítulo 17 220
que sirva de parâmetro para que os alfabetizadores possam embasar suas práticas
pedagógicas. Haja vista, o que existem, são correntes filosóficas que embasam seus
ensinamentos na construção dos saberes adquiridos, quer na comunidade onde vivem,
quer em contato com livros, mesmo que as crianças não saibam ler, quer na prática de
leitura mediada por adultos que saibam ler.
Portanto, percebe-se a necessidade de um método eficaz comprovado
cientificamente para o processo de alfabetização. Um método que enfatize a relação
dos grafemas com os seus respectivos sons, para que o aluno consiga perceber as
semelhanças, diferenças e assim distinga os sons que há na língua, e então aprenda
a manipulá-los à medida que a sua consciência fonológica for sendo desenvolvida por
meio de instruções metafonológicas.
Diante de vasto conhecimento no campo cientifico do ensino, é de suma
importância que o professor faça uso de um método eficaz de ensino de alfabetização
e das ferramentas que o método propõe para aperfeiçoamento de suas práticas
pedagógicas sendo que os alunos se depararão com um mundo até então
desconhecido para eles, o mundo da leitura e escrita, haja vista, que é fundamental
que o professor alfabetizador esteja disposto a desvendar e a percorrer os novos
caminhos que a ciência cognitiva juntamente com a neurociência está propondo ao
ensino.
Diante das constatações científicas a que o método fônico e os outros métodos
foram submetidos, países como EUA e alguns países da Europa decidiram por qual
método adotar para alfabetizar suas crianças, e obtiveram resultados consistentes.
O método fônico ensina a maneira como o cérebro capta a informação do sistema
linguístico de determinada língua. Ou seja, estabelece conexões entre grafema e
fonemas de forma consistente com o respectivo código de cada língua (ARAÚJO e
OLIVEIRA, 2014).
A forma como o método fônico é usado explicitamente faz com que os circuitos
neurais sejam acionados levando a criança a aprender a ler de maneira mais rápida
e eficiente. Segundo o neurocientista francês Dehaene, “[...] é essencial ensinar
explicitamente as crianças a relação entre fonema (sons) e grafemas (letras) porque é
dessa forma que elas ativam os circuitos decisivos para ler, ganhando autonomia para
lerem palavras novas, de forma mais rápida”. E acrescenta ainda que “[...] cada criança
é única, mas, quando se trata de alfabetização, todas têm basicamente o mesmo
cérebro que impõe a mesma sequência de aprendizagem. Quanto mais respeitarmos
sua lógica, mais rápida e eficaz será a alfabetização”.
Diante das evidências comprovadas acerca do processo de ensino e
aprendizagem da leitura e escrita, se faz necessária a prática em sala de aula com
respaldo dos teóricos do assunto, de como o professor alfabetizador pode ensinar da
melhor forma e com os melhores métodos seus alunos a decodificar palavras, já que
ler consiste na capacidade de extrair a pronúncia e o significado de uma palavra a
partir de sinais gráficos.
Argumentação e Linguagem Capítulo 17 221
6 | 	CONSIDERAÇOES FINAIS
Apesar de inúmeros trabalhos publicados a respeito dos temas explanados na
presente pesquisa, ainda existem pouquíssimos professores ou nenhum, que tenha
conhecimentoacercadosreferentesassuntosmencionadosaqui.Poisemconcordância
com um dos autores que são os defensores do método fônico, bem como suas
instruções fônicas e metafonológicas em consonância com a consciência fonológica
para a alfabetização de crianças sem e com distúrbios de aprendizagem, são bem
enfáticos em afirmar que a questão de método é fundamental para o ensino da leitura.
O uso de esquemas experimentais rigorosos tem permitido avaliar a efetividade de
diferentes métodos, seja em contextos experimentais de laboratório, seja em estudos
de campo envolvendo inúmeros professores e salas de aula (CAPOVILLA, 2005, p.
56). E, segundo os achados científicos, o método fônico foi testado, comprovado e
adotado nos Estados Unidos e em alguns países da Europa com o intuito de diminuir
o índice de reprovação.
Uma questão ficou clara nessa pesquisa: os sujeitos da pesquisa não aplicam o
método fônico no processo de alfabetização. Alguns não conhecem mesmo e outros
até ouviram falar, mas também desconhecem a prática pedagógica da aplicação
desse método. Outra questão que ficou latente é que nos cursos de formação de
professores alfabetizadores não ensinam nada sobre o método fônico. Esse assunto
não faz parte dos currículos de formação de professores e por isso os sujeitos da
pesquisa desconhecem totalmente o método fônico.
Estudos relacionados à como alfabetizar e qual método usar sempre serão alvos
de discussões entre teóricos do assunto, porém, por que não pôr em prática os que
estão sendo comprovados cientificamente pela ciência experimental, e estão tendo
êxito como é o caso do método fônico?
REFERÊNCIAS
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Consciência dos sons da língua: subsídios teóricos e práticos para alfabetizadores,
fonoaudiólogos e professores de língua inglesa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.
ADAMS, Marilin Jager [et al.]. Consciência fonológica em crianças pequenas. Porto Alegre: Artmed
2006.
ALMEIDA, Elizabeth. C.; DUARTE, Patrícia M. Consciência fonológica: atividades práticas. 2ª
ed.Rio de Janeiro: Revinter, 2012.
BLANCO-DUTRA, Ana Paula; SCHERER, Ana Paula Rigatti; BRISOLARA, Luciene Bassols.
Consciência Fonológica e aquisição de língua materna. In: LAMPRECHT, Regina (Org). [et
al.] Consciência dos sons da língua: subsídios teóricos e práticos para alfabetizadores,
fonoaudiólogos e professores de língua inglesa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.
Argumentação e Linguagem Capítulo 17 222
CORREA, Jane; MACLEAN, Morag. O desenvolvimento da consciência fonológica e aprendizado
da leitura e escrita durante a alfabetização. LAMPRECHT, Regina (Org). [et al.] Aquisição da
linguagem: Estudos recentes no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011.
CAPOVILLA, Fernando C. Os novos caminhos da alfabetização infantil. 2ª ed. São Paulo:
Memnon, 2005.
CAPOVILLA, Fernando; SEABRA, Alessandra G. Alfabetização: Método Fônico. 5ª.ed. São Paulo:
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_____________. Problema de leitura e escrita: Como identificar, prevenir e remediar uma abordagem
fônica. 6ª ed. São Paulo: Memnon, 2011.
SCLIAR-CABRAL, Leonor. Princípios do sistema alfabético do português do Brasil. São Paulo:
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http://pacto.mec.gov.br/component/content/article?id=53:entendento-o-pacto
http://pacto.mec.gov.br/images/pdf/pacto_livreto.pdf
http://pacto.mec.gov.br/images/pdf/Formacao/Ano_1_Unidade_1_MIOLO.pdfhttp://revistaseletronicas.
pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/viewFile/5613/4088 (Consciência fonológica e compreensão do
princípio alfabético: subsídios para o ensino da língua escrita Ana Paula Rigatti-Scherer).
Capítulo 18 223Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 18
NARRATIVAS COERENTES E CONSTRUÇÃO DE
IDENTIDADE EM GRUPOS VULNERÁVEIS
Dóris Cristina Gedrat
Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS.
Rua Frederico Guilherme Ludwig, 80/901A,
Centro, Canoas, RS. CEP 92310-240 ,
doris.cristina10@gmail.com.
André Guirland Vieira
Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS.
Gehysa Guimarães Alves
Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS.
Cláudio Schubert
Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS.
RESUMO: Este é um estudo de casos múltiplos,
no qual foram investigadas as diferenças no
discurso de uma dupla de jovens adultos, um
do sexo feminino, outro do masculino, que
haviam sido colocados para adoção durante
a pré-adolescência. Os dois jovens foram
entrevistados e, a partir da transcrição das
entrevistas, analisaram-se suas narrativas
de vida. Ela produziu uma narrativa coerente,
expressando unidade entre os acontecimentos
que ela conta em sua história de vida. Ele, no
entanto, não atingiu coerência suficiente em
sua narrativa.Na narrativa do jovem pesquisado
foram encontrados sinais de impossibilidade
para normalizar as experiências, uma vez que
associava afetos demasiadamente intensos
a certos eventos narrados. Já na narrativa da
jovem observou-se conhecimento consciente
a respeito da falta de normalidade de certos
eventos narrados, sobre os quais ela já havia
refletido e falado. Conclui-se que, enquanto uma
narrativa coerente demonstra que o narrador
procura apresentar-se ao mundo como uma
pessoa normal, sabendo seguir as restrições
em relação ao que é aceitável ou não como o
objeto de uma história, isso é muito difícil para
quem não consegue construir uma narrativa
coerente.
PALAVRAS-CHAVE: Narrativa autobiográfica.
Coerência. Identidade. Interisciplinaridade.
COHERENT NARRATIVES AND IDENTITY
CONSTRUCTION IN VULNERABLE GROUPS
ABSTRACT: This is a multiple case study,
which investigates discourse differences in
two young adults, a woman e a man, who had
been placed for adoption in pre-adolescence.
Both were interviewed and their narratives were
analyzed. She produced a coherent narrative,
which expresses unity among her life events.
He, on the other hand, was not able to reach
coherence enough. In his narrative, there were
signals of inability to normalize experience, since
he attributed overintensive feelings to certain
events. The lady showed, in her narrative, to be
consciously aware about the lack of normality of
some narrated events, about which she could
Argumentação e Linguagem Capítulo 18 224
talk normally. The conclusion is that a coherent narrative shows that the narrator tries
to present herself/himself to the world as a normal person, she/he knows and follows
the restrictions to what is acceptable or not as the object of a story, while the person
who can not build a coherent narrative also faces great difficulties in normalizing her/
his experiences.
KEYWORDS: Autobiographical narrative. Coherence. Identity. Interdisciplinarity.
1 | 	INTRODUÇÃO
Este estudo insere-se no campo das narrativas psicológicas, que prevê a
reorganização significativa da própria história como elemento fundamental na
construção da resiliência, e no campo da pesquisa etnometodológica da Análise
da Conversa, segundo a qual os atores sociais constroem e mantêm um mundo
em comum porque têm o domínio da linguagem natural. Intentou-se encontrar uma
conexão entre a coerência narrativa e a capacidade do autor desta narrativa para
colocar-se como uma pessoa normal, entendendo o conceito de normalidade segundo
Sacks (1984), para quem normalizar a experiência é apresentar uma visão do mundo
como uma pessoa normal faz.
O texto inicia mostrando como se relaciona a narrativa com a construção da
identidade, focalizando a narrativa e a identidade de indivíduos com experiência de
adoção. Na sequência, apresentam-se as noções de Sacks (1984) quanto ao processo
de normalizar experiências em narrativas de vida, as quais embasam a hipótese deste
trabalho, a saber, de que existe uma relação entre a narrativa coerente e a capacidade
para narrar experiências como uma pessoa normal faz. Finalmente, passa-se ao estudo
de dois casos com experiência de adoção e à análise dos resultados da pesquisa.
2 | 	NARRATIVA E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE
Se compreendemos identidade como uma construção social, que envolve um
processo dinâmico e situado de expor e interpretar quem somos, entendemos que a
narrativa revela-se especialmente propícia para essa exposição. Construímos quem
somos sinalizando e interpretando tanto afiliações a categorias sociais (classe social,
gênero, profissão, religião, etc.) e posições na hierarquia da interação (status e papéis),
quanto atribuições de qualidades e qualificações de ordem mais pessoal. Ao contar
histórias, situamos os outros e a nós mesmos numa rede de relações sociais, crenças,
valores. Em outras palavras, ao contar histórias, estamos construindo identidade
(OCHS, 1992, 1993; SCHIFFRIN 1993, 2000; MISHLER, 1999).
Charlotte Linde (1993), retomando, criticando e desenvolvendo o paradigma
tradicional laboviano sobre a estrutura da narrativa, estuda as histórias de vida,
ou narrativas de experiência pessoal, que funcionam na criação e manutenção de
identidades. Segundo a autora, ao contá-las, falamos sobre como nos tornamos o que
Argumentação e Linguagem Capítulo 18 225
somos e transmitimos aos outros o que devem saber sobre nós para nos conhecerem.
2.1	Narrativa e Identidade
No campo da psicologia discursiva, há um grande interesse pelas histórias de
vida produzidas em situação de entrevista, analisadas, sobretudo, para a compreensão
do desenvolvimento e da construção da subjetividade dos entrevistados (FREEMAN,
2006).
No âmbito dos estudos da linguagem, a narrativa é tradicionalmente definida
como forma de se recapitular discursivamente experiências passadas a partir de uma
articulação sequencial de orações. Entende-se nessa empreitada a sequência como
uma propriedade linguístico-discursiva representativa de uma ordem cronológica
dos eventos passados em um postulado mundo real (LABOV & WALETZKY 1968,
LABOV 1972). Os estudos contemporâneos da narrativa, por sua vez, revisam o
trabalho pioneiro, tanto ampliando suas definições formais e passando a incluir sob
o escopo de análise segmentos não-canônicos (BAMBERG & GEORGAKOPOULOU
2008), quanto considerando a sua emergência em contextos interacionais diversos
(SACKS 1984, MISHLER 1986, 2002). Passa-se, assim, a ver a narrativa como uma
forma de constituir uma realidade sempre revogável e a serviço de padrões culturais e
interacionais (BRUNER, 1990, LINDE, 1993 E MISHLER, 1999, 2002), reivindicando
para as narrativas funções mais complexas e mais comuns à experiência cotidiana,
relacionadas à construção de sociabilidade, à conformação da experiência em padrões
públicos de aceitação e à construção de um sentido de quem somos e do mundo que
nos cerca, nossa identidade (BASTOS & BIAR, 2015).
3 | 	HISTÓRIAS DE VIDA COM EXPERIÊNCIA DE ADOÇÃO
A experiência de ter sido colocado para adoção é marcante na vida de qualquer
pessoa que a vivencia, e, se isso ocorre na fase da pré-adolescência, coincidirá com
o período da vida em que surge a necessidade de construção de uma identidade que
permita à pessoa uma relação produtiva com o mundo. Durante esta fase, os indivíduos
reúnem condições sociocognitivas para a construção de narrativas autobiográficas
coerentes. Decorre que a formação de uma identidade narrativa envolve a construção
de histórias coerentes, com a finalidade de criar e comunicar um sentido de identidade
e de significado (VIEIRA, 2012).
Considerando que os jovens que foram adotados defrontam-se com o desafio de
desenvolver um sentido de self como pessoas adotadas (VON KORFF, 2008), durante
a adolescência eles começam a refletir a respeito disso e a integrar suas reflexões e
experiências em uma identidade narrativa significativa e coerente. Segundo Grotevant
(1997), a identidade narrativa de ser adotado é construída quando os jovens começam
Argumentação e Linguagem Capítulo 18 226
a refletir sobre o significado de terem crescido cuidados por famílias adotivas,
enquanto permanecem geneticamente relacionados às famílias biológicas. Ela surge
no momento em que esses jovens conseguem lidar com essas questões, organizando
lealdades em relação a suas famílias e respondendo às demandas sociais, através da
percepção dos outros, em relação a terem sido adotados (VIEIRA, 2012).
Segundo Vieira (2012), a identidade narrativa de jovens adultos adotados é
marcada pelo sentimento de uma ruptura com o passado, o que os leva a buscar
sua origem e, ao procurar seus pais biológicos, os adotados procuram recuperar um
sentido perdido de continuidade entre o passado, o presente e o futuro.
4 | 	A NORMALIZAÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS DE VIDA
Para Bruner (1990), é através da narrativa que vamos tornar compreensível para
nós mesmos o que acontece de excepcional nas nossas vidas cotidianas, organizando
nossa experiência e nossa memória de acontecimentos humanos. Ao construirmos
narrativas, segundo Sacks (1984), tendemos a normalizar a experiência para
apresentarmos uma visão do mundo como uma pessoa normal faz. Narrar é essencial
para ser normal, comum, ordinário. Mas ser normal, como coloca Sacks, dá trabalho. É
um trabalho social, que realizamos constantemente nas nossas vidas cotidianas. Para
apresentarmos uma visão do mundo como uma pessoal normal faz, há uma série de
restrições em relação ao que pode ou não ser objeto de uma história. Um exemplo: se,
ao voltar para casa, uma pessoa descreve, com detalhes, as diferentes tonalidades
da grama ao longo da estrada, o ouvinte certamente vai estranhar e tentar interpretar
o porquê desse relato, ou vai achar que a pessoa é estranha, ou pretensiosa – ele
poderá até ficar com ciúmes, e a pessoa perder um amigo. Esses, para Sacks, seriam
os custos de não ser ordinário, ou de, no caso, tentar ver sua vida como um poema
épico (SACKS, 1984).
Depreende-se, pois, que há emoções mais ou menos permitidas em relação às
diferentes experiências: normalmente, não se tem um ataque de nervos por que se viu
uma batida de carro. Não se pode atribuir mais emoção a um determinado evento do
que o considerado normal. Assim, as pessoas monitoram as experiências que vivem
em relação às características que fariam dessas experiências narrativas relatáveis ou
não, o que acaba por interferir na vivência da própria experiência. Dessa forma, são
armazenadas experiências de modo que se tenha o que contar quando a oportunidade
surgir (SACKS, 1984). Pode-se dizer que as narrativas são construções situadas da
experiência, através das quais organizamos essa experiência individual e mantemos
a ordem social (BASTOS, 2005).
Esta pesquisa investigou a forma como dois indivíduos adotados entre os 9 e os
12 anos normalizam, ou tentam normalizar suas experiências ao construírem narrativas
de vida. Considerando sua condição de adotados e as consequências psicológicas que
Argumentação e Linguagem Capítulo 18 227
tal condição origina, partiu-se do pressuposto de que, se essa experiência não tiver sido
suficientemente integrada à vida cotidiana, ela não aparecerá como uma experiência
normal na narrativa, e esta não terá um grau satisfatório de coerência. Aplicando a
teoria de Sacks (1984), um indivíduo adotado pode atribuir emoções exageradas a
fatos que lembrem ou se relacionem à experiência de adoção, e, inclusive, ver sua
vida como um poema épico, não conseguindo narrar como uma pessoa ordinária, ou
normal faria.
5 | 	IDENTIDADE RELACIONADA À COERÊNCIA NAS HISTÓRIAS DE VIDA
A identidade não é algo que emerge na adolescência de maneira acabada, mas
está sempre sendo construída e reconstruída. Ela pode ser entendida como uma
narrativa aberta, nunca totalmente concluída, ou como uma antologia de histórias mais
ou menos integradas e coerentes acerca da vida de uma pessoa, uma espécie de
‘antologia do self’. O caráter distintivo dessas narrativas é sua tendência à unidade e
à coerência (VIEIRA, 2012).
A construção da singularidade do indivíduo aparece na história de vida como a
interpretação subjetiva das experiências passadas unida à integração seletiva dos
aspectos culturais onde o indivíduo vive. Na história de vida encontram-se reunidos
tanto os traços disposicionais e as características de adaptação, como os eventos
singulares à trajetória de vida do sujeito e à história sociocultural na qual ele está
inserido (MCADAMS, 2004). Um indivíduo que consegue integrar suas experiências
e com elas formar uma unidade conseguirá narrar sua história de vida de maneira
coerente.
Para Mishler (2002), lembramo-nos do nosso passado e continuamente o re-
historiamos, variando a significância relativa de diferentes eventos de acordo com a
pessoa em quem nos transformamos, descobrindo conexões das quais não estávamos
previamente cientes, reposicionando-nos a nós mesmos e aos outros em nossas
redes de relações. Em suma, o ato de narrativizar reatribui significado aos eventos
em termos de suas consequências, isto é, de como a história se desenvolve e termina
coerentemente.
O mesmo autor menciona os pontos de virada, ou incidentes que muitas vezes
ocorrem de modo repentino e inesperado e que podem ser relatados em histórias de
vida e em entrevistas de pesquisa clínica. Eles são exemplos marcantes de algo que
acontece o tempo todo, do processo contínuo no qual nos engajamos para reconstruir
o significado de nossas experiências passadas e para refazer a nós mesmos de
modos grandes e pequenos. O processo de re-historiação, que tanto marca quanto
resulta desses incidentes importantes que são os pontos de virada, constitui uma
característica geral de nossas múltiplas identidades, cada uma arraigada a um conjunto
diferente de relações que formam a matriz de nossas vidas. Cada um dos nossos eus
parciais é um personagem em uma história diferente, na qual somos posicionados
Argumentação e Linguagem Capítulo 18 228
de modos diferentes em nossas relações com os outros, que constituem nossos
diversos mundos sociais.
Uma narrativa coerente é aquela que, no momento histórico em que se encontra
o indivíduo, e apesar do seu contínuo processo de re-historiação, consegue dar sentido
e unidade a uma história de vida que narra tanto as experiências positivas, quanto as
dificuldades pelas quais o indivíduo passou. No caso de um indivíduo adotado, sua
re-historiação sempre terá de passar pelo fato de ter sido afastado dos pais biológicos
e de ter sido criado por outras pessoas. Dependendo do ponto em que ele se encontra
ao narrar sua história de vida, eventos relacionados à sua adoção terão sido integrados
com certa normalidade entre os restantes, ou ainda estarão vinculados a forte carga
de emoção, o que o impedirá de construir uma narrativa coerente e, também, de
normalizar os fatos de sua vida (MISHLER, 2002, MCADAMS, 2004).
6 | 	COERÊNCIA NA NARRATIVA DE INDIVÍDUOS ADOTADOS: UM ESTUDO DE
CASOS MÚLTIPLOS
Considerando a hipótese de que haja uma relação entre a coerência das
narrativas construídas e a capacidade de as pessoas normalizarem as experiências
nas histórias de vida que contam, a presente pesquisa teve como objetivo verificar se
há diferença entre uma narrativa de vida coerente e uma narrativa de vida que não
alcança coerência no modo como o narrador normaliza suas experiências ao contá-
las, adotando-se a noção de normalização de experiências de Sacks (1984).
6.1	METODOLOGIA
Utilizou-se o corpus da pesquisa de Vieira (2012), sobre a identidade narrativa de
jovens com experiência de adoção. Vieira aplicou o modelo tridimensional de coerência
global de narrativas de vida de Habermas & Diel (2005), Habermas & de Silveira (2008)
e Habermas, Ehlert-Lerche & de Silveira (2009) para a atribuição do grau de coerência
às narrativas. Foram selecionadas as narrativas de dois indivíduos com experiência
de adoção tardia, entre nove e doze anos de idade – Beatriz e Beno –, os quais foram
entrevistados já em idade adulta, aos 22 anos. Conforme as conclusões de Vieira
(2012), Beatriz produziu uma narrativa satisfatoriamente coerente, enquanto Beno não
alcançou um grau satisfatório de coerência em sua narrativa.
A partir das duas narrativas e das conclusões de Vieira (2012) sobre seu grau
de coerência, procurou-se, nesta pesquisa, a existência de uma correlação entre a
coerência narrativa e sinais indicativos quanto à capacidade que o autor da narrativa
demonstra para normalizar as experiências que conta, segundo Sacks (1984).
Foram transcritos alguns trechos das narrativas de Beatriz e de Beno, nas quais
se detectam elementos que apontam para a normalização, ou falta de normalização
dos fatos que narram. As transcrições apresentadas neste trabalho foram feitas
Argumentação e Linguagem Capítulo 18 229
segundo as convenções de Jefferson (1984).
6.2	RESULTADOS
A narrativa de Beno não alcançou índices satisfatórios de coerência, o que,
segundo McAdams (2001), reflete o caráter conflituoso, contraditório e ambíguo de
sua identidade. Por outro lado, na narrativa de Beatriz observa-se que a experiência
da adoção encontra-se integrada, e os afetos, embora intensos, estão organizados
em uma construção de sentido que transforma sua história de vida em aprendizagem
(VIEIRA, 2012).
Beatriz demonstra conhecimento consciente a respeito da falta de normalidade
de certos eventos narrados, sobre os quais ela já organizou seus pensamentos e fala
a respeito, sem fingir que são normais. Em outras palavras, Beatriz já é capaz de
normalizar os eventos que conta (SACKS, 1984), uma vez que alcançou uma unidade
entre os fatos de sua existência e, assim, também consegue construir uma narrativa
coerente. Isso pode ser observado nos excertos 1 e 2:
Excerto 1 – transcrição de fala da narrativa de Beatriz
tudo o que vem de trás né: são coisas que: nunca vou esquecer como é
óbvio mas são coisas que ficam para sempre (.) e: por muito mais que eu sei
que tenho a situação resolvida (.) sempre que conto sou capaz de chorar ou sou
capaz de ↓ pronto me lembrar dessas coisas mas hã lembro perfeitamente de
meus pais....
Fonte: transcrição das falas gravadas em Vieira (2012) - 29.00
Excerto 2 – transcrição de fala da narrativa de Beatriz
quando eu dizia e falava-se na escola ai o teu pai o teu pai (.) eu sentia
necessidade de dizer (.) olha (.) eu não tenho pai (.) pronto. >mas as pessoas
passavam a: criar coisas ai morreu não morreu teve um acidente.< coisas
completamente ridículas. que eu se calhar sentia bem melhor. não é se calhar. é
mesmo. eu sentia melhor dizer é isso (.) eu sou adotada e: minha mãe é sozi:nha
não tinha problema absolutamente nenhum (.) nunca senti discriminação
nenhuma (.) nenhuma mesmo. claro que as pessoas perguntavam ai o que
aconteceu (.) mas eu não me importava nada em contar. é o que eu digo (.) tipo:
é algo que me vai me acompanhar para o resto de minha vida. não é por que:
nada não é nada que: uma coisa que: nada vai apagar não é: a memória não
apaga isto e: eu sei o que vivi e sei o que passei (.) e se calhar sou uma pessoa
difere:nte por aquilo que passei . eu sou mais não sou mais que ninguém não me
considero mais que ninguém. mas claro que - ao lado de amigas minhas não é (.)
>se calhar tenho outras< - não é se calhar (.) tenho outra história de vi:da (.) e
sei que sou outra pessoa por essa história de vida (.) >não estou a dizer que sou
uma pessoa melhor ou pior<. (.) pronto. mas tenho a minha história e tenho: a
Argumentação e Linguagem Capítulo 18 230
minha = as minhas coisas (.) e são coisas que vão me acompanhar para sempre
né (.) pronto. portanto. de amigos nunca senti assim discriminação nenhuma=
nenhuma mesmo (.) hã: as pessoas claro perguntaram sempre o que é que se o
que é que se tinha passado (.) como é que foi como é que não fo:i hã aquelas
perguntas de praxe mesmo. eu dizia . (não sei não há mal ou nunca xxxx). hã::
nem nunca: soube (.) de ninguém que falasse mal (1.0) nunca senti nada: em
relação: hã à adoção. nunca senti (.) nunca senti (.) em nenhum aspecto de
minha vida que: sou adotada (.) não: não sinto pronto (.) não é uma coisa que::
(1.0) que eu sinta (.) não sinto nada disso. nunca senti.
Fonte: transcrição das falas gravadas em Vieira (2012)- 16.09
No excerto 1, Beatriz demonstra domínio sobre o tema da adoção e sobre suas
emoções em torno dele, ao dizer que tudo o que aconteceu jamais será esquecido por
ela e que, por vezes, ela chora em função disso. Ela compreende e sabe que não foi
agradável ser adotada, mas já integrou essa experiência entre os fatos de sua vida,
e agora tal experiência aparece como algo que narra como se fosse muito natural,
inclusive admite que isso sempre causará dor e mágoa a ela.
No excerto 2, a entrevistada demonstra tamanha normalização de suas
experiências que, com ênfase e naturalidade, afirma nunca ter sido discriminada por
amigos quanto à sua situação de adotada. Observa-se, na transcrição de sua fala, que
ela se refere a esse assunto com objetividade, sem hesitações, com pausas definidas
e sem alteração na tonalidade e volume da voz. A narrativa de Beatriz demonstra o
que propõem Baerger & McAdams (1999) e Adler, Wagner & McAdams (2007): uma
narrativa autobiográfica coerente está relacionada tanto ao bem-estar como a uma
abertura a novas experiências e à capacidade pessoal para desenvolver-se.
Ao contrário da narrativa de Beatriz, a forma circular própria de Beno ao narrar
sua história demonstra que ele não conseguiu ainda construir um sentido para sua
experiência de vida. Dessa forma, a sua narrativa é entrecortada por conjeturas a
respeito do porquê de ter sido abandonado por seus pais biológicos e colocado para
adoção, conforme excertos 3 e 4:
Excerto 3 – transcrição de fala da narrativa de Beno
mas por exemplo ainda há pouco tempo eu fiquei mal porque (.) teve::
UMAS pessoas estavam comi:go e: disser. e eu tava a brincar a dizer que: (1.0)
que era adotado lá de ator co(hhh)nhecido (.) e que e::: mmm e::: >depois eles
perguntaram se eu era adotado< daí eu comecei a falar da minha história: de vida
e:: (.) isso aí trouxe-me assim marcas que eu não queria tocar nestas feridas (.)
mas tive que tocar e passei u:m tempo mal. (.) a pensar nestas coisas só queria
sair daqui e:: e pronto. (.) estragar a minha vida.
Fonte: transcrição das falas gravadas em Vieira (2012)- 11.33
Argumentação e Linguagem Capítulo 18 231
Excerto 4 – transcrição de fala da narrativa de Beno
eu agora falo abertamente disto só que:: às vezes inda:: > pronto às
vezes custa um bocado tocar nessa ferida< e:: e quando::: e lá na escola::
como a escola é:: é muito pequena e lá sabe-se tudo, e:: não sei contar i::sso
(.) pra muitas pessoas pode:: (2.0) quer dizer > pelo menos para mim, podem
me magoar .< e podem me ver de maneira diferente e:: e eu não quero isso:: >
quero ser uma pessoa normal< não é? já passei pelas minhas dificuldades mas
(.) não quero ser mai::s acarinhado (.) do que os outros só porque sou adotado
e porque:: porque > agora estou numa família nova é isso< (2.0) ° quero ser
normal° (2.0) aconteceu mas já foi e agora:: hoje tenho minha nova vida que::
(xxxxxx ) (1.0) > espero que seja assim até o fim.<
Fonte: transcrição das falas gravadas em Vieira (2012) – 27.37
O fato de ter sido adotado é algo muito difícil de aceitar, assim, Beno atribui
emoções demasiadamente intensas quando se refere a isso, como mostra o excerto
3, no qual ele relata sua reação quando as pessoas no curso de teatro vêm a saber
sobre sua adoção e comentam. Para ele, isso foi motivo de querer desistir da faculdade,
quando, para seus colegas, provavelmente era apenas um fato novo, sem o poder
de colocar Beno em qualquer outra categoria que não fosse a de colega, como já
era. Isso, nos termos de Sacks (1984), revela a falta de capacidade para normalizar
experiências. Beno está tão envolvido com este assunto ainda, que não consegue se
desvencilhar dele e aumenta sua importância em situações nas quais sua adoção não
é o tópico tratado, quando o fato de ele ter sido adotado não tem importância nenhuma
na atividade que está sendo realizada.
Isso aparece também no excerto 4, quando, novamente, ele fala da escola
(faculdade), dizendo que simplesmente contar sobre a adoção já o coloca numa
posição muito delicada frente aos colegas, o que pode magoá-lo e, mais adiante,
afirma querer ser uma pessoa normal. Ele é tão incapaz de normalizar experiências
ao narrá-las, que chega a deixar implícito que uma pessoa adotada não é normal.
Observa-se, também, mediante a transcrição de sua fala, que esse assunto causa
alteração de volume e tonalidade na voz, alongamentos e alteração na velocidade com
que fala, como se isso alterasse bastante seu estado emocional, causando alterações
na forma como se expressa.
7 | 	CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme demonstram as análises dos resultados, há uma relação entre a
capacidade de um indivíduo contar sua história numa narrativa coerente e sua
capacidade para normalizar as experiências contadas, para apresentar uma visão do
Argumentação e Linguagem Capítulo 18 232
mundo como uma pessoa normal faz. Enquanto uma narrativa coerente demonstra
que o narrador fez e faz o esforço social necessário para se apresentar ao mundo
como uma pessoa normal, sabendo seguir as restrições em relação ao que pode ou
não ser objeto de uma história, isso é muito difícil para quem não consegue construir
uma narrativa coerente. Este comete deslizes, como dar importância demasiada a
fatos que não se espera serem tão importantes nos eventos narrados, produzindo uma
narrativa sem coerência.
O desenvolvimento do tema desta pesquisa solicita a participação de
diversas áreas do conhecimento, constituindo-se, portanto, um tema absolutamente
interdisciplinar. Se, por um lado, contribui-se, aqui, para a psicologia cognitiva, ao
investigar-se a formação da identidade através da análise de narrativas produzidas
por indivíduos pesquisados, por outro lado, também se presta contribuição para a
promoção da saúde, na esfera mental, ao abordar-se um grupo vulnerável, os
adotados. Também para o desenvolvimento humano, uma vez que a qualidade de
vida de grupos vulneráveis passa pelo desenvolvimento de sua capacidade para re-
historiar seu passado e para atingir o poder de contar uma história de vida em que
haja unidade de significado, na qual os indivíduos veem-se como pessoas capazes de
integrar suas experiências dolorosas em uma vida próspera e feliz.
Almeja-se a continuação deste estudo, no sentido de ampliá-lo tanto no
que tange aos grupos pesquisados, quanto no escopo do tema a ser investigado.
Pretende-se, por exemplo, investigar em grupos que vivem em periferias e outros
locais desprestigiados, como quilombos, quais são as questões que os impedem de
melhorar sua qualidade de vida e desenvolver-se livremente, através da análise de
narrativas por eles construídas e de histórias que eles mesmos produze. Essas podem
ser fontes importantes para a criação de situações e atividades que os auxiliem a
romper barreiras sociais e psicológicas na busca de sua realização.
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Argumentação e Linguagem Capítulo 18 234
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Capítulo 19 235Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 19
BEM-ME-QUERO, BEM-TE-QUERO: UM PROJETO
DE PSICOLOGIA EDUCACIONAL SOBRE
CORPOREIDADE E GESTÃO DO CUIDADO
Roselaine Vieira Sônego
Univille, Departamento de Psicologia, Joinville, SC
Allan Henrique Gomes
Univille, Departamento de Psicologia, Joinville, SC
RESUMO: Corporeidade pode ser
compreendida como ideologias e interditos
sociais marcados no corpo. Na escola,
a corporeidade aparece como uma
representação das relações sociais de seu
micro e macro contexto. Esse trabalho é um
relato de experiência do campo da Psicologia
Educacional. A temática emergiu após um
período significativo de vivência no espaço de
uma escola pública municipal de Joinville – SC.
O objetivo foi realizar ações psicoeducativas
com os estudantes das séries finais do ensino
fundamental, que possibilitassem a vivência da
temática da corporeidade, abarcando questões
levantadas pelos gestores, professores e
estudantes. As intervenções se caracterizaram
porumapesquisaação,tendocomometodologia
a elaboração e aplicação de oficinas temáticas.
Os resultados foram a produção de práticas
envolvendo quatro eixos: 1) Corpo: conceitos
e identidade; 2) Corpo: beleza, sexualidade,
autoproteção; 3) Corporeidade e virtualidade,
4) Cuidado de si e do outro. Verificou-se que
o projeto possibilitou: vivências lúdicas de
corporeidade desafiando a rotina que escolariza
o corpo; trabalhar aspectos da relação corpo e
virtualidade, comportamentos autoprotetivos
nas relações virtuais, promovendo ações
coletivas de cuidado; desnaturalizar as
violências e compreender comportamentos
desrespeitosos e agressivos; encaminhar para
serviço especializado casos que precisavam de
ações protetivas e acompanhamento técnico e
terapêutico, entre outros. Pode ser observado
que os espaços escolares demandam
intervenções na temática da corporeidade,
possibilitando outros sentidos para a dimensão
do corpo, especialmente, implicando ações de
gestão do cuidado, visando o bem estar de si e
do outro.
PALAVRAS-CHAVE: Psicologia, Escola,
Corporeidade, Gestão do Cuidado
LOVE ME, LOVE OTHERS: AN
EDUCATIONAL PSYCHOLOGY PROJECT
ABOUT CORPOREITY AND CARE
MANAGEMENT
ABSTRACT: Corporeity can be understood
as ideologies and social interdicts markings
on the body. In school, corporeity appears
as a representation of social relations of its
micro and macro context. This project is a field
experience report in Education Psychology.
The theme emerged after a significant period of
Argumentação e Linguagem Capítulo 19 236
experience in a public school in Joinville – SC, Brazil. The objective was to execute
psychoeducational actions with the students from the final grades of junior high school
that enabled the experience of the corporeity theme, encompassing questions brought
up by students, teachers and managers. The interventions were characterized by an
action research, having as methodology the elaboration and application of thematic
workshops. The results were the production of practices involving four axis: 1) Body:
concept and identity; 2) Body: beauty, sexuality and self-protection; 3) Corporeity and
virtuality; 4) Care for yourself and others. It was verified that the project made it possible
to: ludic experiences from corporeity and challenging the routine that educates the body;
work body and virtual relations aspects, self-protective behaviors in virtual relations,
promoting collective care actions; denature violence and comprehend disrespectful and
aggressive behavior; forwarding to specialized services cases that needed protective
actions, technical and therapeutic follow up and others. It can be observed that school
spaces demand interventions in the corporeity theme, implicating care management,
aiming the well being of oneself and the other.
KEYWORDS: Psychology, School, Corporeity, Care Management
1 | 	INTRODUÇÃO
Esse capítulo é resultante de uma experiência de Estágio Curricular Específico
em Psicologia Educacional, que no decorrer de um ano de atividades desenvolveu um
projeto com ênfase na temática da corporeidade em uma escola pública municipal de
Joinville – SC. O presente texto concentra reflexões e diálogos de dois integrantes da
equipe que no tempo do projeto (2016 e 2017) atuavam como psicóloga em formação
e professor orientador.
De acordo com Alves (2009), construímos nossos corpos segundo as várias
imposições culturais, fazendo com que se adeque aos parâmetros estéticos, históricos,
higiênicos, morais que contextualizam nossas vidas e as relações sociais. Nesse
sentido, as ditas imposições conduzem as percepções que geram o sentido de se ver
e de ver os outros, de aproximação e de afastamento do que nos é ou não comum.
Assim, o conceito de etnocentrismo da antropologia esclarece o sentido social
que se dá ao que é diferente, ao que não nos é comum, do que nos causa estranheza
que se dá no encontro de dois ou mais grupos distintos. Surge o grupo do “EU” e o
grupo do “OUTRO”, tendo o primeiro como real, absoluta e principal referência, e o
segundo como algo exótico, excêntrico, anormal e primitivo. O etnocentrismo “está
calcado em sentimentos fortes como o reforço da identidade do “eu” [...] se conjuga
com a lógica do progresso, com a ideologia da conquista, com o desejo da riqueza,
com a crença num estilo de vida que exclui a diferença” (ROCHA, 1988, p. 30).
Isto se aplica de forma prática à Psicologia Educacional como uma ética de
trabalho que se ocupa em manter sob suspeitas as práticas sociais que operam no
contexto escolar. O projeto desenvolvido também foi constituído pela perspectiva da
educação biocêntrica, que segundo Sousa, Miguel e Lima (2010, p. 78), entendem
Argumentação e Linguagem Capítulo 19 237
como orientadoras de uma ética do cuidado. A perspectiva biocêntrica:
[...] vislumbra a formação de um ser humano cósmico, comprometido de modo
incondicional com a paz. [...] objetiva promover a (re)educação afetiva de homens
e mulheres, para que estes(as) possam resgatar sua sensorialidade viva e requerer,
em comunhão com os seus pares e com a natureza, a construção de uma sociedade
altruísta, cujas ações [...] são originadas em defesa da vida, da proteção de todas
as suas manifestações.
A defesa pela vida, e o entendimento da mesma como um sistema vivo, implicam
em re(educar) nossa humanidade para uma convivência em que haja respeito e afeto
por nós mesmos e pelo outro, e a compreensão que nossas ações e dos outros afetam-
se mutuamente. Isso nos constitui, porque somos seres relacionais, nos constituímos
em relação.
A intervenção realizada pode ser caracterizada como pesquisa ação e foram
iniciadas por um período de observações e convivência com o espaço escolar. Uma
das primeiras atividades realizadas se deu com a distribuição de “caixas” para recepção
de bilhetes, alocadas nas salas de aula e na sala dos professores, etiquetadas como
“#Conta aí”, “#Papo nosso”. A partir das observações, dos temas trazidos, das reuniões
de orientação e das leituras realizadas, a temática da corporeidade emergiu. Todas as
vivências foram registradas em diário de campo
De acordo com as demandas, os temas previstos foram: 1) Corpo: conceitos e
identidade;2)Corpo:beleza,sexualidade,autoproteção;3)Corporeidadeevirtualidade;
4) Cuidado de si e do outro. Estes temas foram destinados aos sextos anos e foram
trabalhados em forma de oficinas com atividades lúdicas que visavam a percepção do
corpo, a relação dos sentimentos no corpo, a percepção de si e do outro.
2 | 	BEM-ME-QUERO, BEM-TE-QUERO: VIVÊNCIAS E APRENDIZAGENS
Pensando no espaço escolar como uma biologia e uma biografia própria em seus
desafios cotidianos, encontramos no tema corporeidade a possibilidade de inserção
na escola pela via não carregada de supostos saberes, ou de certezas reducionistas.
Assim, a partir dos diários de campo com as narrativas das intervenções, alguns eixos
temáticos emergiram como categoria de análise.Aseguir apresentamos alguns desses
eixos:
Espaços escolar: em busca da visibilidade da ordem: encontramos no espaço
escolar locais bem demarcados em termos de função organizadora da dinâmica
escolar: a) o pátio, denominamos como território dos encontros e desencontros, por
proporcionar vivências lúdicas e de liberdade do corpo, bem como dos conflitos e
tensões nas relações interpessoais existentes; b) a biblioteca - território do saber,
local de estudos individuais, e do espaço onde autores e distintos profissionais se
apresentam e ensinam; c) os corredores - território do movimento ordenado, local de
visibilidade da ordem moral, funcional, disciplinar, da produtividade. Também, espaço
Argumentação e Linguagem Capítulo 19 238
da ordem da diversidade que adentra por meio de palestrantes e estagiários que, de
certa forma, rompem, tencionam ou reforçam a ordem instaurada.
Dessa forma é possível compreender o modo como diversos processos
organizativos produzem uma escolarização dos corpos na esola. A escola regula
o funcionamento do corpo e do movimento por meio de seus processos de gestão
pautados na disciplina. “Os ritos, os comportamentos, a regras a serem seguidas que
incidem sobre o corpo produzindo um determinado comportamento externos a Infância
[...] é um conjunto de saberes que são produzidos para dar organicidade e identidade
à instituição escolar (SOUZA, MIGUEL E LIMA, 2010, p. 16 e 22).
Santos (2011) também comenta que os espaços, tempos e disciplinas, e toda
organização da escola finalizam por silenciar o corpo com amarras da disciplina
subjugando ao poder maior do professor, levando a criança a transforma-se num
estudante. Não queremos dizer com isso que a escola não deva ter uma estruturação
organizativa, mas que há possibilidades de vivenciar o corpo de cada estudante e de
cada professor em experiências constitutivas de ensino e aprendizagem.
A escola é um lugar de instância criadora de sentidos construídos coletivamente.
Se pensarmos o sentido do corpo docente, corpo discente, corpo de funcionários,
podemos inferir que a dimensão do corpo, deixa seu caráter individual para formar
um sistema funcional mais amplo da coletividade. E quando se observa que muitas
de suas representações também são constituídas nestes sistemas amplos de corpos,
verifica-se uma tendência de homogeneização das necessidades, das virtudes, das
ideologias. Daí, o sentido do corpo discente usar “uniforme”, não só aquele que veste
seu corpo, mas, também aquele que veste sua forma de ser e se colocar no mundo
(RIBEIRO; SILVA, 2012).
Como base em Santos (2011), a escolarização do corpo nas escolas segue a
tradição de silenciar o corpo para se dar condições ao aprendizado, nós observamos
os estudantes mostrando inquietação motora durante as aulas. E, dependendo do
professor, isso se intensificava, mas quando o nível de rigidez e autoritarismo docente
eram exacerbados, as crianças silenciavam seus corpos, e isto não significava,
necessariamente, que estavam atentos a explanação do professor, apenas que
possivelmente se submetiam sem afronta direta à sua ordem.
Algumas vezes observamos que os estudantes tentavam resistir a ordem de
fazer filas, então iniciavam a fila corretamente, mas depois saiam correndo, ou faziam
o colega tropeçar, ou agiam subversivamente com buchichos provocativos. Vimos
nisso também uma forma dos corpos resistirem ao modo escolarizado.
Corporeidade: Minha, sua, nossa identidade: Nos reportando a Santos (2011)
a escola tem em cada estudante uma identidade individual (ser criança) e a outra
construída no cotidiano escolar (ser aluno) em que se engendra a criança escolarizada.
Assim, pode-se entender a corporeidade como uma fusão destas condições: tem
a minha identidade (EU), a sua identidade (EU DO OUTRO) e a nossa identidade
(SUJEITO ALUNO). O processo de unificar todas as identidades num corpo coletivo
Argumentação e Linguagem Capítulo 19 239
discente, não é tarefa exclusiva da escola, haja visto que há famílias que dificultam o
processo de individuação e de auto percepção da criança, podem estar fusionados em
seu sistema familiar, ou podem usar apelidos como marca reducionista de quem seja
essa criança, ou a destacar o que elas tem de “errado” em seus corpos.
Em um de nossos encontros, a atividade era desenhar o brasão pessoal,
colocando uma palavra que a família tinha lhes “tatuado”, e depois escrever outra
palavra que identificassem como uma característica pela qual gostariam de ser
reconhecidos, percebemos que as famílias podem marcar negativamente a identidade
da criança como ilustram alguns dos desenhos (FIGURA 1).
A criança incorpora marcas que lhe são atribuídos mesmo que estas não
correspondam às suas características, como no primeiro desenho em que a criança é
caracterizada pejorativamente pela magreza, embora não o seja. O segundo desenho
mostra que uma criança que vinha escutando sobre o si a característica de “teimoso”.
O terceiro desenho a criança entende a característica baixinha positivamente e o
atributo indeciso incomoda, pois, seu desejo era ser reconhecida como “linda”. Nesta
atividade percebemos a família podendo reproduzir as marcas sociais recebidas,
naturalizando estereótipos, mas também podendo mediar reflexões e problematizar o
que está naturalizado.
Figura 1: Brasões pessoais com marcas indentitárias familiares negativas
Fonte: Dados Primários
A agressão física e verbal como escape do corpo para com a ordem
instaurada: Almeida e Muller (2013) definem o bullying como qualquer ato de violência
praticado com a intenção de maltratar, humilhar ou intimidar crianças, adolescentes e
até mesmo adultos. Este vem sendo com frequência relacionado ao contexto escolar.
Segundo Zanatta (2013), ao interagir com o outro, os jovens são influenciados
em diversos aspectos através de suas vivências e é com o corpo que eles constroem
suas experiências no mundo.Além disso, a autora complementa dizendo que os jovens
podem entrar em conflito consigo mesmos, com a família e com os outros, e que em
algum momento esses conflitos podem resultar em situações de vulnerabilidade a
violência.
É compreendendo o próprio corpo que se possibilita o respeito a si mesmo e
Argumentação e Linguagem Capítulo 19 240
ao outro, que se possibilita contrastar as diferenças sem rechaça-las. Vivências de
alteridade compreendem generosidade, a busca constante pelo domínio de suas
emoções e fragilidades contradizendo o desejo de domínio do outro pela violência.
Nesse sentido, as diferentes formas de corpos não justificam o comportamento
etnocêntrico, a validação de um padrão de beleza único, nem tão pouco do não
reconhecimento do outro como possibilidade de ser e estar-no-mundo, ou da violência
como recurso de manifestação cruel de destruição do outro.
Em vários momentos, foi observado agressões físicas e verbais entre os
estudantes, como a única possibilidade, ao invés do uso do diálogo. Por exemplo,
retornando ao recreio um estudante do sexto ano B deu um chute em uma menina,
que segundo ele o havia provocado. Dialogamos e os questionamos sobre como
podemos expressar a raiva sem praticar uma ação desrespeitosa. Os dois puderam
não só compreender, se auto avaliar e saber que se pode ter raiva, indignação, ficar
bravo sem ferir o outro.
Surgiu o tema “incomodar um ao outro como motivo de agressão”, assim em um
dos encontro levantamos três questões: a) O que te incomoda na aparência de outras
pessoas?; b) O que eu me incomodo com meus colegas, o que eles fazem que me
incomoda?; c) Quando fico incomodado, o que eu penso, o que sinto, e onde sinto?
As respostas obtidas demonstraram a dificuldade de reconhecimento do que
pensam quando estão incomodados, a sensação do corpo é o que identificam no
momento do incômodo. O sentimento majoritário nas duas turmas que aplicamos a
atividade foi a expressão da raiva e da tristeza (na última questão), e sentimentos
muito fortes como vontade de matar ou morrer.
De acordo com La Taille e Vinha (2013) ocorrem incivilidades na escola que
tomam proporções cada vez maiores. As pequenas incivilidades em sala de aula,
extrapolam para outros espaços na escola e onde a “liberdade” de movimento do
corpo permite agressões mais acentuadas, como as que ocorrem no pátio, como a
depreciação do outro, e as violências físicas (empurrar, chutar, lutar, derrubar) quando
fora do olhar vigilante dos adultos.
A figura 2 contém alguns dos desenhos relativos ao brasão pessoal realizado no
encontro 2, e a tatuagem corporal. Neles podemos observar que apareceu distintas
formas representativas da identidade pessoal, e os dois temas recorrentes foram:
indicação de poder ou violência da identificação com a virtualidade.
Destacamos três exemplos de brasão em que apareceram tais conteúdos: a) o
primeiro é uma alusão a uma imagem de lutador; b) o segundo, um tanque de guerra,
uma identificação à uma máquina poderosa de destruição; c) o terceiro, uma imagem
de um mulçumano, com a escrita “sangue bom” e a maior parte do corpo uma espécie
de tatuagem com um rapaz dentro de um jogo virtual.
Nesses exemplos, foi importante as crianças aprenderem a reconhecer suas
emoções e sensações e outras formas de expressá-las que não pela agressão física
ou verbal.
Argumentação e Linguagem Capítulo 19 241
Figura 2: Brasão pessoal e tatuagem Corporal / Rótulos
Fonte: Dados Primários
Desterritorialização virtual e a fantasia do pertencimento: Segundo Alves
(2009) em uma comunidade globalizada que é assinalada pela mutabilidade e pela
rejeição, o homem obtém a alternativa de moldar seu próprio corpo de acordo com a
sua escolha que não é livre de marcas sociais, principalmente aquelas midiáticas, em
que se apresenta um pessoa como fenômeno de sucesso, de estilo, de ideologia. O
que é muito facilitado pela virtualidade das relações, onde se identifica uma persona
(ator, cantor, youtuber, memes, personagens de jogos virtuais, entre outros).
A adesão a tudo que é virtual trata de uma subjetividade socialmente construída
que captura as pessoas de todas as idades, mas nascer numa era de virtualidade tem
um sentido muito mais profundo, que afeta a forma de se ver e se ver no mundo.
[...] defini a realidade virtual como aquilo que existe como potência, mas não
em ato. [...] é a manifestação de uma realidade que não se presentifica no aqui
e no agora, pois sempre se trata de uma promessa, de um vir a ser. [...] Jogos
eletrônicos [...] virtuais são jogos que não se enraízam na corporeidade, uma vez
que lhes falta fundamento de fixação: eles mudam ininterruptamente (RETONDARA,
BONNET E HARRIS, 2016, p. 4, grifo nosso).
A virtualidade permite a satisfação desejante, a desterritorialização do corpo,
a flutuação identitária, o deslocamento para o prazeroso e o afastamento do que é
tedioso ou insatisfatório. A virtualidade em sua potência do devir preenche a solidão
da falta de laços sociais, ela supre o anseio do sentimento de pertença. Portanto,
não é no corpo que a virtualidade se prende, e sim no aspecto vacilante do desejo,
nas ambivalências do existir, e na potência do devir, lançando sua ancoragem na
possibilidade idealizada do querer ser, e não na realidade do que se é enquanto
pessoa. A virtualidade foi produzida pelo humano, e representa um movimento do
humano em busca de comunicação, e de uma forma de ser no mundo.
Breton (2003, p. 124) aponta que “no contexto das novas tecnologias o corpo
tenderia a desaparecer”. Para Retondara, Bonnet e Harris (2016, p. 5):
[...] o corpo virtual, que circula nas redes das comunidades cibernéticas, nas
salas de ‘‘bate-papo’’, nos sites de relacionamentos e que participa dos jogos
eletrônicos é um corpo sem ‘‘alma’’, na medida em que é projeção de desejos e
fantasias que independem do ‘‘outro’’ e que garantem ao jogador controle total
sobre a imprevisibilidade do ‘‘encontro’’. [...] Isso coloca os internautas em pé de
Argumentação e Linguagem Capítulo 19 242
igualdade, pois, como se trata de dados digitalizados, o sujeito pode perfeitamente
se manter conectado sem ser incomodado ou avaliado pelo corpo que tem e isso
garante um grau de autonomia e de liberdade que muito provavelmente milhares
de sujeitos não conseguem experimentar no mundo da vida.
A ideia do corpo virtualizado também corrobora para aspectos de desqualificação
do corpo do outro, de sua imagem, de sua forma de ser e pensar, e, em nome da
liberdade de expressão, se autoriza a praticar violências virtuais ao outro e a si
mesmo, pois as fronteiras do privado, da intimidade, do respeito, da sensibilidade
pela dor alheia, não são mais conformadas pelas regras e valores da que existem
nas relações presenciais. Elas ganham aspectos fantasiosos da virtualidade de que
a reconstituição do que foi destruído, ferido, ou mortificado, facilmente se reconstitui
com um simples clique. Por outo lado, os corpos rejeitados pela ditatura da forma
perfeita, podem encontrar na virtualidade o sentido de existir sem os julgamentos,
idealizando ou omitindo seu corpo.
Em um dos encontros realizamos uma atividade para que pudessem expressar
seus comportamentos quanto ao uso da internet, e isso ajudou a explicar porque no
desenho do brasão pessoal, alguns estudantes colocaram elementos midiáticos e
gadgets como constituinte de sua identidade.
Figura 3: Gadgets no desenho da Tatuagem Corporal e Brasão Pessoal
Fonte: Dados Primários
O primeiro desenho se tem o símbolo do Whatsapp é colocado no local do
coração. O segundo desenho aparece duas produções, o primeiro um celular dentro
do pescoço e o segundo com celular que ocupa toda a lateral direita do corpo. No
terceiro desenho o celular cobre quase todo o corpo e no quarto desenho o Iphone
aparece como centro e exclusivo de identificação pessoal.
As falas mostraram a fantasia dos estudantes sobre o mundo virtual, e o senso
de onipotência infantil. Esta os leva à identificação com os desenhos, os jogos, os
personagens, os youtubers, e a desterritorialização do mundo real tedioso, para um
território que possibilita a flutuação de identidades poderosas, sem o enraizar do corpo
como dizem Retondara, Bonnet e Harris (2016, p. 4)
Quando o corpo não suporta: Identificamos vários assuntos e situações que
precisaram de uma atenção qualificada na escola, tais como: abusos narrados por
algumas alunas; saúde mental dos professores; narrativas de pensamentos e vontade
Argumentação e Linguagem Capítulo 19 243
de suicídio; sofrimento de estudantes que vivem em situações de negligência e sérios
conflitos familiares; isolamento social por dificuldades de aprendizagem em situações
de inclusão; exposição de “nudes” em fotos de celular sendo compartilhado com
estudantes da mesma escola trazendo agravo da saúde emocional de quem se expôs;
entre outros.
Diante dessas situações, como afirmou uma professora, eles procuram focar nas
atividades curriculares, “pra conseguir conviver com tudo isso”. Ou seja, o corpo do
docente não suporta lidar com tantos sofrimentos para os quais ele se vê impotente,
angustiado com senso de ser responsável em mudar a situação de seus estudantes.
O corpo do discente também não suporta lidar com seus sofrimentos emocionais,
quando pedem socorro ao professor ou visitante, relatando sua vontade suicida.
Para lidar com isso, lidam agressivamente com seus pares, ou agem sem
confiança em ninguém, preferindo não falar sobre o assunto, exemplo disso, podemos
citar uma estudante que passou pelo constrangimento de ver suas fotos pessoais
divulgadas e uma outra que já viveu situação de abuso sexual, puderam se expressar
nos encontros promovidos pela projeto de estágio, quando trabalhamos a temática
“A força do fraco”, debatendo com eles sobre os cuidados autoprotetivos no uso
da internet. E mesmo ali em uma ambiente que buscava se apresentar acolhedor,
as jovens se emocionaram, mas também diziam “deixa isso pra lá”. Mas como se
pode “deixar para lá” o que o corpo não suporta, como não se implicar com situações
dessa ordem acontecendo com estudantes tão jovens? Ainda assim, a escola parecia
desconhecer ou ignorar os fatos.
A que se registrar que as situações de abuso ou pensamento suicida,
tiveram acolhimento, seguido por mediações feita com a escola e essas crianças,
e depois encaminhamentos para o serviço de psicologia da universidade, para o
acompanhamento psicológico.
Sexualidade pelas vias da informação, da sensorialidade, da arte e do
sofrer: Segundo Alves (2009) podemos compreender que a sexualidade abrange
rituais, falas, fantasias, representações, entre outros, e todos são processos culturais.
A sexualidade foi expressada de várias formas pelos estudantes no decorrer dos
encontros. Especificamente em uma ocasião fomentamos discussões a respeito da
sexualidade, problematizando padrões de beleza de famosos, que eles indicaram
previamente, seguido pela forma de contato com a arte para identificarem outras
percepções de se ver o corpo.
Noutro encontro usamos a forma sensorial, onde puderam apresentar o que
compreendiam de anatomia, na atividade denominada “Fique por dentro”. Tinham que
se deitar ao chão para fazer o contorno do corpo de um colega e depois eleger entre
os materiais oferecidos o que iriam utilizar para representar seu corpo por dentro. O
pátio e a quadra foram escolhidos para fazer essa atividade objetivando trazer um
significado diferente a esse território. Puderam escrever ali uma biografia de ludicidade,
de autoexpressão como protagonistas do conhecimento que possuem, ao invés de ser
Argumentação e Linguagem Capítulo 19 244
um local apenas para ouvirem o que os adultos tem a dizer.
Suas produções mostraram que em função das aulas de ciências, tinham noção
do que desenhar como órgão interno e de onde colocá-los no corpo. Embora enfatizado
várias vezes que era para desenhar o corpo por dentro, sentiram necessidade de
colocar suas características externas (FIGURA) 4:
Figura 4: Produções da atividade “Fique por dentro”
Fonte: Dadas Primários
Outro aspecto importante foi a maioria dos meninos (com exceção de dois)
desenharem o órgão sexual masculino, e as meninas esconderem o órgão sexual
feminino usando adesivos de carinhas felizes para compor uma calcinha, e colarem um
adesivo de sapinho para cobrir a genitália. Isso confirma como vamos nos inscrevendo
no mundo por meio dos ditames sociais: mulheres devem se cobrir e homens devem
se expor. Nenhum dos grupos desenharam o órgão genital feminino, enquanto os
meninos evidenciaram a genitália masculina iniciando o desenho por ela.
Seguidamente, trabalhou-se a sexualidade pelo viés do sofrimento.Aatividade
era identificar personagens confiáveis e não confiáveis que manteriam conversa na
internet, e depois apresentamos que todos estavam presos por serem abusadores e
pedófilos. Assim, foi possível trabalhar as diversas formas de acessar o conteúdo da
sexualidade ressignificando o formato estático, geralmente trazido a eles pelo viés da
informação curricular.
Embora o encontro não objetivasse trabalhar a sexualidade, dois desenhos
mostraram o quanto isso, para algumas meninas era forma de identificação (Figura 5).
A primeira imagem mostra ao centro do brasão pessoal, uma cena de intimidade entre
um casal. Na segunda imagem, que tratava da atividade “Tatuagem Corporal /Rótulo”,
aparecem mulheres sensuais: uma na garganta e outra ao lado do corpo. Ao lado do
ouvido, um inseto representando uma lacraia. Identificações bastante sexualizadas
produzidas por meninas e de superexposição mediática de seu corpo, segundo seus
relatos.
Argumentação e Linguagem Capítulo 19 245
Figura 5: Produções que emergiram no encontro
Fonte: Dados Primários
Outro episódio relacionado a um abuso ocorreu no âmbito escolar, a mesma
estudante mencionada encaminhou um nudes (foto íntima) para o namorado que
enviou a outros colegas que a rotularam negativamente. Nossa sensação era de que
havia sido roubada a infância destas estudantes, elas vivenciaram a sexualidade pela
via do sofrimento, da rejeição e do abuso sexual, físico e psicológico.
É notável que num mesmo ambiente circulam crianças sem conhecimentos
e com tabus sobre a sexualidade, como no caso dos meninos que se reusaram a
desenhar o órgão genial masculino, e há aqueles que experimentaram muito cedo o
sexo por via do abuso, mudando significativamente o conceito da sexualidade, pois
foram subjugados os seus corpos nas relações com o mundo.
Aprender a cuidar: bem-me-quero, bem-te-quero: A perspectiva biocêntrica
trata da centralidade da vida, da promoção de gerar mais vida à vida, de reverenciar
essa vida, de produzir sentidos altruístas e de alteridade nas relações de convivência.
A educação biocêntrica propõe uma escola que pensa as suas ações na gestão do
cuidado, “cujos fundamentos se encontram na poética do viver e sentir-junto-com”
(SOUSA, MIGUEL e LIMA, 2010, p. 77).
Assim, destacamos que o projeto de estágio intentou produzir novos sentidos
na comunidade escolar, especialmente, do afeto, do cuidado e da capacidade de se
comover. O afeto trata da capacidade de afetar positivamente os outros, o cuidado
se refere o sentido de cultivar, proteger, ser solícito. Já a palavra comover, além do
significado literal, tem duplo sentido: a) co-mover, que teria sentido de mover-se-com,
dando a ideia de movimentar-se no mundo com o outro; b) como-ver, que nos remete
a capacidade de ver além, de olhar para si e para o outro e procurar a melhor visão
possível da vida.
Em outras palavras, ao invés do tão tradicional jogo de palavras lúdicas, bem-
me-quer, mal-me-quer, queremos o sentido da ética do cuidado, do bem-me-quero,
bem-te-quero, como uma outra possibilidade de ser e estar no mundo.
No penúltimo encontro a estagiária proponente estava disfônica, e pediu a
colaboração da turma, ao que eles não consideraram.Ao final do encontro a proponente
os fez refletir o quanto ela e as colegas, bem como os docentes precisam também ser
Argumentação e Linguagem Capítulo 19 246
cuidados. Quando normalizamos comportamentos incivilizados, aos poucos vamos
naturalizandoodesrespeitoaténãotermosmaiscondiçõesdeperceberquexingamento,
apelidos, abusos físicos (empurrar, bater, cutucar, entre outros) são nocivos à saúde
emocional, e impeditivos da construção de relacionamentos saudáveis.
Sentimos o quanto é desafiador manter condições adequadas para aprendizagem,
mas acreditamos que o caminho não seja do silenciar o corpo, mas da insistência pela
cultura da afetividade e amorosidade.
3 | 	CONSIDERAÇÕES FINAIS
A temática da corporeidade é emergente em diversos contextos porque faz
interlocução direta com significações e subjetividades na constituição da identidade
pessoal, atravessada por ideologias e interditos que cada sociedade marca no corpo.
Apesar da abrangência do tema, na escola a corporeidade aparece como uma
representação da dinâmica das relações sociais de seu micro e macro contexto.
Os encontros priorizaram atividades lúdicas que trabalharam a sensorialidade
do corpo, a relação dos sentimentos com o corpo, a percepção de si e do outro, a
influência histórica de múltiplas determinações que colocam todas as interdições no
corpo, a reflexão das demandas de cada grupo, produzindo assim novas significações
das relações interpessoais.
A questões trazidas pelos estudantes foram profundas e complexas, e o vínculo
estabelecido com as estagiárias permitiu que eles contassem as questões pessoais,
como por exemplo, experiências que foram desagradáveis na família e o quanto isso
os afetou, casos de abusos físicos e sexuais, negligência e humilhação sofrida, e
ainda, os pensamentos e desejo de morte. Tais vivências são por vezes silenciadas,
e tem relação com vários dos comportamentos que ocorrem na escola e não são
compreendidos.
O projeto permitiu que emergisse também conteúdos de alegria, de satisfação, de
reconhecimento do próprio corpo e de suas sensações frente as emoções vivenciadas
em sala de aula e em outros ambientes.Após essa vivência de formação em Psicologia,
entendemos que os espaços escolares carecem de intervenções que possibilitem: a)
promover relações de cuidado, de apreço ao bem estar de si e do outro; b) perceber
a incompletude e o inacabamento diante das fragilidades provisórias e dos obstáculos
reais da escola; c) desafiar a rotina que escolariza o corpo; d) fomentar vivências lúdicas
da corporeidade e de suspensão da rotina cotidiana aos estudantes e professores.
REFERÊNCIAS
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adultos. 2009. 124 f. Dissertação. Universidade Católica de Minas Gerais. Belo horizonte. 2009.
Argumentação e Linguagem Capítulo 19 247
ALMEIDA, A; MULLER, J. Violência na escola. Eventos Pedagógicos, v.4, n.2, p. 21 - 30, ago. – dez.
2013.
BALDISSERA, A. Pesquisa-ação: uma metodologia do “conhecer” e do “agir” coletivo. Sociedade
em Debate, Pelotas, v. 7, n. 2, p. 5-25, 2012.
BRETON D. Adeus ao corpo. In: NOVAES, Adauto. (Org.). O homem máquina: A ciência manipula o
corpo. São Paulo : Companhia das Letras, 2003.
LAPLANE, A. L. F. Interação e silêncio na sala de aula. Cad. CEDES, Campinas, v. 20, n. 50, p. 55-69,
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Krause. Entrevista concedida a revista nova escola. Disponível em: https://novaescola.org.br/
conteudo/1930/telma-vinha-e-yves-de-la-taille-discutem-educacao-moral-nos-dias-de-hoje
RETONDARA J. J. M., BONNET, J. C. e HARRIS, E. R. A.. Jogos eletrônicos: corporeidade, violência
e compulsividade. Ver. Bras. Ciênc. Esporte. v. 38, n 1, p. 3 -10, 2016.
RIBEIRO, I.; SILVA, V. L. G. Das materialidades da escola: o uniforme escolar. Educ. Pesqui., São
Paulo, v. 38, n. 3, p. 575-588, set. 2012. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php? >. Acessos
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ROCHA, E. P. G. O que é Etnocentrismo. 5 ed., Editora Brasiliense, 1988.)
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Distância, 2011. Disponível em: https://issuu.com/bolotas/docs/cme. Acesso em 19 de Out de 2017.
SOUSA, A. M. B, MIGUEL, D. S., LIMA, P. M. Módulo 1: gestão do cuidado e educação
biocêntrica. Florianópolis : UFSC-CED-Nuvic, 2010.
ZANATTA, E. A. Compreensão de Jovens Universitários sobre a violência – Sob o olhar da
Corporeidade, da Vulnerabilidade e do Cuidado. 2013. 206 f. Tese de Doutorado. Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre 2013.
Capítulo 20 248Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 20
MASCULINIDADE NA LITERATURA: UMA HISTÓRIA
HERDADA SOCIALMENTE
Francisco Heitor Pimenta Patrício
Universidade Regional do Cariri - URCA
Missão Velha - Ceará
Cícero Hériclis Ângelo Pereira
Universidade Regional do Cariri - URCA
Missão Velha - Ceará
Josilene Marcelino Ferreira
Universidade Regional do Cariri - URCA
Missão Velha - Ceará
RESUMO: Este trabalho procura discutir a
relação entre a construção histórica do padrão
de masculinidade e sua representação na
literatura. Inicialmente, buscamos discorrer
sobre os estudos a respeito das relações de
gênero e posteriormente as pesquisas sobre
masculinidade e suas relações de dominância.
Para isso utilizamos os teóricos Bourdieu (2012)
e Bento (2015), além de outras pesquisas
bibliográficas a respeito dessa discussão. Com
base nessas teorias, usamos os personagens
Carlinhos, da obra Menino de engenho (2004) e
Rodrigo Cambará, do livro O continente (1999),
por meio de análise literária, para entender
e explicitar como a sociedade condiciona
comportamentos padronizados tanto para
homens como para mulheres, da infância à vida
adulta. Buscamos também, compreender as
consequências dessa imposição naturalizada
de comportamento, expondo situações em
que os personagens apreendem socialmente o
modelo a eles imposto.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura, Masculinidade,
Sociedade, Gênero.
MASCULINITY IN LITERATURE: AN
INHERITED HISTORY SOCIALLY
ABSTRACT: This paper seeks to discuss the
relationship between the historical construction
of the masculinity pattern and its representation
in literature. Initially, we sought to discuss the
studies about gender relations and later the
research on masculinity and its relations of
dominance.ForthisweusethetheoristsBourdieu
(2012) and Bento (2015), as well as other
bibliographical research about this discussion.
Based on these theories, we used the characters
Carlinhos, from the work Menino de engenho
(2004) and Rodrigo Cambará, from the book
O continente (1999), through literary analysis,
to understand and to make explicit how society
conditions standardized behaviors for both men
and women, from childhood to adulthood. We
also seek to understand the consequences of
this naturalized imposition of behavior, exposing
situations in which the characters socially
apprehend the model imposed on them.
KEYWORDS: Literature, Masculinity, Society,
Gender.
Argumentação e Linguagem Capítulo 20 249
1 | 	INTRODUÇÃO
O gênero masculino, ao longo do tempo, foi permeado por restrições de
comportamento ligadas aos seus sentimentos e vontades e suas formas de
expressar emoções, como o próprio medo, a dor, a tristeza e o carinho. Essas restrições
enrijeceram e moldaram o comportamento masculino, dando-nos a percepção de uma
figura imbatível e inalcançável. Todas essas questões, ligadas à eterna luta em reforçar
a ideia de “sexo forte” se afastando o máximo possível do “sexo frágil” atribuído às
mulheres.
Todavia, esse padrão resultou em um comportamento dominador, que exclui
mulheres e, consequentemente, os homens que não se encaixavam nesse arquétipo.
Nessa perspectiva, esse artigo busca investigar as causas sociais de existir um
modelo tradicional de masculinidade, que desempenha o papel de dominante, e
como é representado na literatura, por meio dos personagens que se enquadram no
papel de masculinidade normativa determinada pela sociedade. Buscando encontrar,
particularmente, sinais dessa “educação masculinizada” nas crianças, por meio
do personagem Carlinhos, de Menino de engenho (2004), e como esse modelo é
exprimido já na fase adulta, tendo como exemplo o Capitão Rodrigo Cambará, de O
Continente (1999). Buscamos também, investigar como os estudos de gênero explicam
as relações sociais que condicionam esse padrão comportamental, que é perpetuado
pela sociedade.
Para tanto, nos propomos a analisar, por meio de pesquisas bibliográficas,
os personagens Carlinhos, da obra Menino de engenho (2004) e Capitão Rodrigo
Cambará, do livro O Continente (1999) sob a perspectiva de Bento, com o livro Homem
Não Tece a Dor (2015) e de Bourdieu, com o livro A Dominação Masculina (2012). Além
de utilizar teorias que surgiram a partir dos estudos de gênero, que tinham o intuito de
estudar as causas e consequências da relação de dominação entre os homens.
2 | 	A IDEIA DO MASCULINO COMO IDEAL DE SER
Em nossa sociedade, o gênero é visto precipitadamente de forma binária, ou
seja, o nosso gênero é definido pela categoria de homem ou mulher, relacionando o
social com o biológico. Assim, um homem só é homem porque possui o órgão genital,
pênis, com isso, precisa externar sua masculinidade de acordo com comportamentos
pré-estabelecidos pela sociedade, para ser mulher, precisa possuir o órgão genital
vagina, e expor sua feminilidade (gostando de homem, por exemplo, ou sendo uma
bela dona de casa). Bourdieu (2012, p.23), sobre a construção dos gêneros sociais,
afirma:
[...] a definição social dos órgãos sexuais, longe de ser um simples registro de
propriedades naturais, diretamente expostas à percepção, é produto de uma
construção efetuada à custa de uma série de escolhas orientadas, ou melhor, através
da acentuação de certas diferenças, ou do obscurecimento de certas semelhanças.
Argumentação e Linguagem Capítulo 20 250
Portanto, tudo que fugir desse panorama está em discordância com as normas
estabelecidas de gênero e, por conta disso, está sujeito a diversas formas de violência,
realizada principalmente, pelo homem, elemento dominador em nossa sociedade.
O conceito de gênero, em nosso contexto, é fluido e ainda não tem uma
especificidade, entretanto, o uso desse termo nos permite abandonar explicações
como o determinismo biológico para explicar a grande diferença das relações
comportamentais, sociais e culturais entre homens e mulheres, e já que é cultural,
é construção humana. Toda construção social humana é baseada no pensamento
dos dominantes. Por isso que o objeto de análise dos estudos de gênero está em
perceber que as categorias de ‘homem’ e ‘mulher’ não devem ser entendidas como
categorias estáveis, mas sim como perguntas: o que é ‘ser homem’ e ‘ser mulher’, e
ainda, por que o masculino e feminino estão inseridos nessas categorias binárias sem
possibilidade de fluidez?
As dicotomias, masculino x feminino, são mais que apenas características
possuídas naturalmente por homens e mulheres, esses produtos são frutos de um
longo trabalho social que foi difundido não só nos lares, mas também por instituições
de poder como o Estado e as escolas, geralmente apoiadas em uma ideia dos papeis
atribuídos a cada um de acordo com as funções sociais. Dessa forma, isso sugere que
devemos pensar na construção da masculinidade
como um projeto [...] perseguido ao longo de um período de muitos anos e através
de muitas voltas e reviravoltas. Esses projetos envolvem encontros complexos com
instituições (tais como escolas e mercados de trabalho) e com forças culturais (tais
como a comunicação de massa, a religião e o feminismo).(CONNELL, 1995, p. 190
apud BENTO, 2015, p. 45).
Segundo Bourdieu (2012, p.15), “como estamos incluídos, como homem ou
mulher, no próprio objeto que nos esforçamos por apreender, incorporamos, sob a
forma de esquemas inconscientes de percepção e de apreciação, as estruturas
históricas da ordem masculina”. Dessa forma, precisamos entender que nossa visão
sobre masculino e feminino, são elas próprias, produtos da dominação (BOURDIEU,
2012, p. 15).
Por muito tempo, acreditou-se que as diferenças entre os sexos eram
determinadas por características biológicas, assim, o masculino e o feminino estão
sempre ligadas ao corpo e, principalmente, ao sexo. Sobre isso, Bourdieu (2012, p.20)
explica:
[...] A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo
feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode
assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre
os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho.
Neste sentido, o corpo do homem era visto como modelo de perfeição, a sua
anatomia era tida como modelo e o corpo da mulher era uma cópia inferior e invertida
de todos os atributos do homem. Dessa maneira, as relações entre sexo, reprodução e
orgasmos eram todas seguidas de acordo com o modelo. Entretanto, a teoria do corpo
Argumentação e Linguagem Capítulo 20 251
perfeito foi erradicada, e oposição entre masculino e feminino foram justificadas sob
uma visão política-ideológica. Essas diferenças estavam de acordo com as opiniões
da sociedade burguesa e nacionalista europeia, que atribuíram ao homem todas as
atividades ao mundo social e politico, enquanto para as mulheres, eram designados
os afazeres de casa.
Dessa forma, ‘ser homem’ era possuir qualidades masculinas, que por sua vez,
era possuir características que fossem contra as características femininas do ‘ser
mulher’. A partir do século XIX, com essa concepção, o panorama político, social e
cultural que moldava as relações entre masculino e feminino, passaram a buscar tudo
que estava fora da denominação de feminino, e buscavam sempre reforçar o seu
‘sexo forte’ sobre o ‘sexo frágil’. O masculino, depois da necessidade de se afirmar
como homem, passou a impor ainda mais seu poder sobre o feminino, reforçando as
barreiras sociais existentes entre os dois.
3 | 	A CONSTRUÇÃO DO “SEXO FORTE”
O indivíduo se depara, ao nascer, independentemente do gênero, com
um ambiente, normatizado por uma cultura patriarcal, onde todas as ações
comportamentais e psicológicas estão no eixo de dominação do homem. Este, que
carrega os privilégios demandados desse sistema regido pela assiduidade das práticas
rudimentares, é o responsável pela repassagem dessas práticas aos menores, fazendo
com que saibam que precisam alcançar a imagem de dominador viril na fase adulta,
para serem respeitados.
Essa imagem é conquistada através de um processo restrito de socialização,
cujas relações sociais são restringidas por sexo, ou seja, espaços dedicados à
disseminação dos estigmas em relação aos modelos masculino e feminino. Espaços
esportivos, em grande maioria, ainda são determinados como pertencentes aos
homens, por exemplo, logo são adequados para a transmissão de comportamentos a
serem praticados e quais devem ser repudiados. A partir disso, o garoto criará a noção
de que ele deve seguir a risca tudo o que esse círculo impõe. Qualquer distanciamento
dessas práticas resultará na aproximação do jovem aos traços qualificados como
femininos, podendo levá-lo a entrar, futuramente, na esfera do dominado. Segundo
Welzer-Lang (2001, p.465),
É verdade que na socialização masculina, para ser um homem, é necessário não
ser associado a uma mulher. O feminino se torna até o pólo de rejeição central, o
inimigo interior que deve ser combatido sob pena de ser também assimilado a uma
mulher e ser (mal) tratado como tal.
Desse modo, o grau de submissão é que determina o nível de distanciamento
do garoto sobre esse modelo, tendo consciência que o maior número de práticas
apreendidas durante seu desenvolvimento o deixará mais distante do inimigo dos
homens, a feminilidade. As mulheres são as detentoras desse mal temível, pelos que
Argumentação e Linguagem Capítulo 20 252
desejam alcançar a sagrada virilidade, cujas características, causam aversão aos mais
másculos. Em detrimento disso, a mulher carrega traços como os da passividade e da
sensibilidade. Dentro desses estereótipos, as mulheres são permitidas expressarem
seus sentimentos sem correr risco de serem advertidas socialmente, já o contrário
acontece quando elas se permitem desfrutar de prazeres sexuais, por exemplo. Essa
visão parte da pressuposição de um sistema que estabelece as condições das mulheres
a partir das rejeições que o patriarcado fez para obter seu ideal de homem. Sendo
assim, homens são extremamente ridicularizados ao demonstrarem suas emoções,
ou caso eles decidam dispensar prazeres sexuais.
No processo de perpetuação desse sistema hierárquico, o patriarcado conta com
ajuda não só de pais e irmãos mais velhos que irão garantir que seus filhos e irmãos
mais novos sigam um ideal do que é “ser homem” e o que é ser viril, mas também com
a ajuda de instituições, que irão fazer com que todos lembrem, inclusive as mulheres,
quais são seus valores. Ou seja, em grande parte do que se ouve, lê e assiste reflete
uma sociedade condicionada a aceitar o poder perigoso que é a imposição do modelo
masculino. Toda essa construção em torno das relações de gênero causa uma visão
de mundo, na qual mulheres e homens que fogem dos estereótipos designados são
marcados psicológica e fisicamente pela sociedade.
Toda essa atmosfera de normalidade criada e mantida no núcleo da sociedade,
em se tratando dos hábitos que fazem parte desse modelo de dominação do masculino
e da subordinação do feminino, é que faz com que, até os dias de hoje, situações de
violência ainda sejam suavizadas por ser algo que se pode esperar do dominante
sobre o dominado. Esse quadro de suavidade começa a mudar quando o dominado
passa a refletir sobre suas atuações sociais perante o bom discípulo da virilidade. E é
com movimentos como o feminismo que a reflexão sobre essas questões de gênero
começa a eclodir, fazendo com que o oprimido questione sua posição e as atitudes
tomadas pelo seu opressor, percebendo que esse modelo não é um mecanismo
individual, mas que é sistemático. Esse sistema, historicamente criado e culturalmente
repassado, ensina, mesmo que indiretamente, a censurar qualquer divergência ao que
foi padronizado. Esse questionamento por parte do subordinado alcança mais espaço
a partir do momento que aquele que oprime começa a refletir também sobre suas
práticas, que em sua maioria não são percebidas. Justifica Bourdieu (2012, p.106),
Em razão, sobretudo, do enorme trabalho crítico do movimento feminista que, pelo
menos em determinadas áreas do espaço social, conseguiu romper o círculo do
reforço generalizado, esta evidência passou a ser vista, em muitas ocasiões, como
algo que é preciso defender ou justificar, ou algo de que é preciso se defender ou
se justificar.
Em virtude desse movimento, começa a explicitação e as tentativas de rompimento
das pautas que indicam toda a desigualdade de gênero entre homens e mulheres
criada pela teoria do determinismo biológico, a qual se encarrega de delimitar tarefas
econômicas, domésticas e sociais tendo em vista os órgãos genitais do indivíduo.
Argumentação e Linguagem Capítulo 20 253
Dentro dessa teoria, de cunho patriarcal, é notório que o homem detém poder de todos
os privilégios.
4 | 	DE CARLINHOS A RODRIGO: UMA HISTÓRIA DE SOCIALIZAÇÃO DO CORPO
Na construção do masculino, a infância é a etapa na qual a criança faz a
assimilação dos paradigmas criados culturalmente em torno das relações de gênero.
Tendo isso em vista buscamos investigar, na infância do personagem Carlinhos,
de Menino de engenho (2004), de José Lins do Rego, padrões que mostrem que
nós, como atores sociais, somos condicionados a agir de acordo com normas
estruturadas historicamente.
A obra narra a história do personagem Carlinhos, livremente baseada em
algumas memórias do autor José Lins do Rego, que viveu sua infância no engenho.
Na narrativa, o personagem passa a viver no engenho após o assassinato de sua
mãe, cometido pelo pai. Estando no engenho, Carlinhos passa a ter maior contato com
seu avô, que passa a ser, para ele, um exemplo de homem, com sua tia Maria, que é a
presença feminina que tenta suprir o espaço deixado pela mãe, além de conviver com
os ocupantes do engenho. É nesse contexto que Carlinhos “aprende” a ser homem.
A chegada do menino ao engenho não foi tranquila, logo de início a personagem
Galdina comenta sobre como o menino se parece com a mãe, o que acaba levando-o
ao choro. Na tentativa de acalmá-lo, Maria, que a partir de então, procura atuar como
figura materna na vida do sobrinho, acaba proferindo em meio a sua fala “Agora vou
ser a sua mãe. Você vai gostar de mim. Vamos, não chore. Seja homem” (REGO,
2004, p. 39) uma expressão culturalmente muito utilizada, mesmo que de maneira
inconsciente, para reprimir um menino que esteja produzindo um comportamento
contrário ao que se espera de alguém do sexo masculino, já que “Um das marcas
distintivas da masculinidade é a ausência de choro, ou qualquer manifestação do
corpo que demonstre sensibilidade” (BENTO, 2015, p.113), característica atrelada à
feminilidade. Isso mostra como a fala da personagem reflete, inconscientemente na
obra, o discurso cristalizado e reproduzido na sociedade. Importante considerar que
na época do autor e da obra, as discussões sobre gênero ainda não estavam em plano
de debate na sociedade.
Outro ponto a ser comentado na construção do personagem é a liberdade em
relação ao território do engenho. Essa autonomia que é notavelmente garantida a todo
indivíduo que pertença à esfera do masculino, a qual não parece estabelecer limite à
presença do homem no âmbito social. Assim, Carlinhos passou a frequentar lugares
onde só a figura masculina estivesse presente, primeiramente com os outros meninos.
[...] Tinham chegado para passar um tempo no engenho uns meus primos, mais
velhos do que eu: dois meninos e uma menina. Agora não era só com os moleques
que me acharia. Meus dois primos, bem afoitos, sabiam nadar, montar a cavalo no
osso, comiam tudo e nada lhes fazia mal. Com eles eu fui aos banhos proibidos,
Argumentação e Linguagem Capítulo 20 254
os do meio-dia, com a água do poço escaldando. E então nós ficávamos com a
cabeça ao sol, enxugando os cabelos, para que ninguém percebesse as nossas
violações. (REGO, 2004, p. 43)
É na presença do personagem Zé Guedes, que exterioriza suas experiências
sexuais com mulheres sem nenhum pudor, que Carlinhos começava a refletir sobre
sexualidade.
O OUTRO MESTRE que eu tive foi o Zé Guedes, meu professor de muita coisa ruim.
Levava-me e trazia-me da escola todos os dias. E na meia hora que estava com ele,
de ida e volta, aprendi coisas mais fáceis de aprender que a tabuada e as letras.
Contava-me tudo que era história de amor, sua e dos outros. (REGO, 2004, p.63)
Zé Guedes (REGO, 2004, p.64) também mostra como a prática sexual costuma
estabelecer uma relação de dominação do homem sobre as mulheres, quando conta a
Carlinhos sobre as intimidades de seu tio com uma mulher negra do engenho “Aquela
ali já foi passada. Quem manda nela é o doutor Juca. E eu ia sabendo que meu tio Juca
tinha mulatas em quem mandava”. É através dessas evidenciações involuntárias, que
surge no garoto a necessidade de reproduzir o comportamento do outro a ponto de
assemelhar-se, visando a tão desejada iniciação na casa-dos-homens e enxergando
a mulher como objeto sexual e, consequentemente, de posse.
Como reflexo de naturalidade desses comportamentos em torno do gênero
masculino, a iniciação, mesmo que precoce, nas relações sexuais estabelece uma
condição de respeito ao indivíduo, já que isso corresponde às expectativas do sexo
masculino. Ainda criança, ele se relaciona com uma mulher e faz uso da posição de
homem ao se referir à situação “tinha uns 12 anos quando conheci uma mulher, como
homem.”
Como fruto dessa relação com Zefa Cajá, Carlinhos adquiriu uma doença
venérea, que passou a ser exibida como sinal de sua altíssima virilidade conquistada
aos 12 anos de idade. “E comecei a envaidecer-me com a minha doença. Abria as
pernas, exagerando-me no andar. Era uma glória para mim essa carga de bacilos que
o amor deixara pelo meu corpo imberbe. Mostravam-me às visitas masculinas como
um espécime de virilidade adiantada.” (REGO, 2004, p. 130)
São muitos os homens que participam na construção da masculinidade do
personagem Carlinhos, mas é o seu avô que se fixa como modelo de homem ao qual
ele quer ser comparado quando crescer. Essa visão se deve a relação de poder que
o dono do engenho estabelece dentro de todas as esferas sociais e econômicas. E,
dentro de uma sociedade culturalmente enraizada no patriarcado, nada é mais visível
no modelo tradicional da masculinidade do que a dominação no contexto público e
privado.
Empiricamente [...] sabe-se que, para um homem, o fato de ser visto com “belas”
mulheres classifica-o como “Grande-homem”, o que também acontece com aquele
que tem dinheiro e/ou poder manifesto sobre homens e mulheres. Todos os homens,
que aceitam os códigos de virilidade, e têm ou podem ter poder sobre as mulheres
(o que ainda deve ser quantificado); alguns entre estes (chefes, Grandes-homens
de todos os tipos) têm também poder sobre os homens. É verdadeiramente neste
Argumentação e Linguagem Capítulo 20 255
duplo poder que se estruturam as hierarquias masculinas. (WELZER-LANG, 2001,
p.466)
Somos frutos de toda a nossa vivência, condicionada em regras sociais, vítimas
de um sistema de ações. Somos uma consequência de todas as regras, padrões e
formas de pensar, tanto que agimos seguindo padrões mesmo sem perceber, nossa
consciência age segundo nossas construções. Assim, “pensar na consciência e a
autoconsciência como elementos constitutivos do ser [...] implica reconhecer que este
não fala por si, mas constrói seu discurso, seu pensar, a partir do outro, das regras do
meio no qual se inserem e convivem”. (MICHALISZY; TOMASINI, 2012, p.24)
É nessa linha de pensamento que buscamos analisar o personagem Rodrigo
Cambará, que é destaque no livro O continente (1999), da série O Tempo e o Vento,
de Erico Verissimo. Iremos tratar de seu comportamento aceitando a sua condição
machista, patriarcal e controladora, como sendo resultado de uma imposição social,
condicionada por determinações impostas ao gênero, em uma sociedade acostumada
com essas predeterminações, já que apontar tais comportamentos “não significa
culpar os homens pela dominação, mas interpretar como as diferenças entre os
sexos são construídas, valorizadas e hierarquizadas em contextos históricos e sociais
específicos.” (BENTO, 2015. p.82) Vale salientar que a história é ambientada em uma
cidade do interior do Rio Grande do Sul, no ano de 1800, dessa forma, como diz
Bento (2015, p.11) “estamos falando de membros de um segmento social específico,
portadores de visões de mundo específicas, integrantes de uma geração também
específica,” quando a sociedade não pensava a respeito das desigualdades de gênero,
achando naturais aquelas formas de abuso.
Dessa forma, a imagem de Rodrigo foi construída em torno do ideal de
masculinidade, imposta ao sexo masculino, justificando essa superioridade por meio
do biológico. Investigaremos assim, a construção do personagem, particularizando
certos pontos na descrição de sua aparência, na forma como as pessoas aceitavam
a condição da personalidade do personagem e como ele se comportava em relação a
sua esposa, Bibiana Terra.
Rodrigo Cambará apareceu na cidade de Santa Fé, cidade na qual acontece a
história, como um homem de idade mediana, 30 anos, sem ninguém saber ao certo de
onde vinha e nem para onde ia, “com seu chapéu de babichado puxado para a nuca, a
bela cabeça de macho altivamente erguida e aquele olhar de gavião que irritava e ao
mesmo tempo fascinava as pessoas” (VERISSIMO, 1999, p. 171). A estética do macho
forte é extremamente valorizada em sua descrição e vemos em Rodrigo o retrato
do ideal condicionado socialmente, todas as características do corpo socializado
do personagem, os movimentos, deslocamentos, falas, modos, são associados ao
masculino.
Na concepção de Bourdieu (2012, p. 16), o forte, o rijo, o claro, o seco, o duro,
todos fazem parte de parâmetros socializados da visão dos gêneros, que, segundo
o autor, contribuem para que esses pensamentos, que se aplicam universalmente,
Argumentação e Linguagem Capítulo 20 256
perceptíveis na subjetividade de tais características, fazem permanecer e ao mesmo
tempo naturalizar o julgamento baseado em características biológicas, naturalmente
iguais em aparência, já que, para ser perpetuo, a sociedade precisou tornar as
“qualidades” dos homens e os “defeitos” das mulheres algo nascido e sem escapatória.
Ainda sobre essa legitimação das relações, Bourdieu (2012, p.18) afirma: “[..]
a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a
visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em
discursos que visem a legitimá-la”. Rodrigo, em uma de suas conversas com o pároco
da cidade, um de seus mais caros amigos, para reafirmar a sua condição de macho,
fala: “na minha família, quase ninguém morre de morte natural. Só as mulheres, e
mesmo assim, nem todas. Os Cambarás homens têm morrido em guerra, duelo ou
desastre. Há até um ditado: ‘Cambará macho não morre na cama.”
É nesse contexto que podemos particularizar o relacionamento de Rodrigo com
os outros habitantes da cidade, percebemos que homens e mulheres são condicionados
a ver o “homem” como o poderoso naturalizado. Podemos “pensar que a estrutura
hierárquica e assimétrica de gênero faz parte de um projeto social o qual homens e
mulheres estão envolvidos na reprodução do modelo hegemônico” (BENTO, 2015,
p.10) é a partir desse envolvimento que começamos a aceitar certos comportamentos.
Ainda sobre nossa posição em relação a esses arquétipos, Berenice fala:
Acredito que pensar relacionalmente a construção das identidades de gênero não
deve limitar-se a tratar tal relação única e exclusivamente entre homens e mulheres,
mas tentar pensar como cada um dos gêneros constrói suas identidades nas
relações que estabelecem com os membros do próprio gênero. (BENTO, 2015,
p.19)
Em sua vivência na cidade, o comportamento de Rodrigo é visto de forma
paradoxal por nós, leitores, já que o personagem não é visto como modelo de “homem
de família” pelos habitantes da cidade, ao mesmo tempo em que desempenha o papel
dado a ele ao nascer, de ser forte, valente, aventureiro e principalmente viril, já que,
a virilidade é uma das principais formas de reafirmar a masculinidade. Reafirmar
por ser construída sempre sob o medo de perdê-la, e por precisar de perseverante
manutenção. Segundo Bourdieu (2012, p.20),
[...] a virilidade, em seu aspecto ético mesmo, isto é, enquanto qüalididade do vir,
virtus, questão de honra (nif), princípio da conservação e do aumento da honra,
mantém-se indissociável, pelo menos tacitamente, da virilidade física, através,
sobretudo, das provas de potência sexual — defloração da noiva, progenitura
masculina abundante etc.— que são esperadas de um homem que seja realmente
um homem.
Ainda relacionado a seu relacionamento com o pároco da cidade, Rodrigo
sempre o mostra as suas razões por não participar de uma religião, já que, como ele
diz, “no céu não tem jogo nem bebida nem baile nem mulher. Se é assim, prefiro ir pro
inferno” (VERISSIMO, 1999, p. 204). Esse comportamento de liberdade e de vontade
de viver intensamente, que Rodrigo preza tanto, não é uma realidade conquistada,
Argumentação e Linguagem Capítulo 20 257
mas sim uma condição por ser homem, faz parte da visão condicionada a esse gênero,
o que nos leva a pensar na condição que fez com que Rodrigo pensasse dessa forma.
Ao falar de sua criação, Rodrigo confessa:
Me criei guaxo. Não conheci mãe. Com doze anos já trabalhava no campo com a
peonada bem como homem feito. Com dezoito tinha sentado praça e já andava
brigando com os castelhanos. Daí por diante sempre vivi ou brigando ou correndo
mundo [...] nunca aprendi nenhuma reza nem me habituei a ir à igreja (VERISSIMO,
1999, p. 206).
Bento (2015) defende que a “afirmação de Simone de Beauvoir, que ‘ninguém
nasce mulher, torna-se mulher’, é apropriada pelos estudos sobre os homens que,
ao tentar mostrar que ‘ninguém nasce homem, torna-se homem’, busca desconstruir
uma definição assentada nos aspectos fixos, biológicos, de uma natureza masculina”.
Desmembrando essa afirmação, podemos captar as ações das personagens levando
em conta a sua condição como sendo sua essência de homem, nascido e construído
para agir de determinada maneira.
A conduta de Rodrigo com Bibiana também é marcada por incessante relação
de abusos de autoridade, além da “objetificação” do seu corpo, o desejo de Rodrigo
de ter filhos também acaba transformando Bibiana, após o casamento, da categoria
“esposa” em “mãe”. (BENTO, 2015)
Um dos primeiros sinais da forma como Rodrigo perpassa os valores por ele
apreendidos, em relação ao tratamento dado ao sexo oposto, é explicitado depois de
alguns dias vivendo no povoado, e já muito atraído por Bibiana, ele começa a expor
seus desejos, desejos de “possuir” seu corpo e de ter o amor da personagem.
Rodrigo via em pensamentos a imagem de Bibiana: a boca carnuda, os olhos
oblíquos. Parecia uma fruta; dava na gente vontade de mordiscar aquela boca,
aquelas faces, aqueles peitos. Naquele momento seu desejo por Bibiana confundia-
se com uma sensação de fome e Rodrigo começou a pensar alternadamente na
rapariga e num churrasco (VERISSIMO, 1999, p. 200)
Depois de alguns meses na cidade, o personagem consegue casar com Bibiana,
completando assim o modelo hegemônico de homem que “exalta a virilidade, a posse,
o poder, a violência, a competitividade” (BENTO, 2015, p. 91) A partir desse momento,
o comportamento de Rodrigo se transforma. A sua relação com a esposa torna-se
cansativa, já que este, não estava acostumado com uma vida mais calma
[...] de repente – quase num susto – sentiu-se mais gordo, menos enérgico, um
pouco molenga. Fazia tempo que não brigava, que não se movimentava. Aquela
vida de balcão, que lhe enferrujava os membros, era de matar qualquer cristão de
aborrecimento. Por que se tinha ele metido naquilo? (VERISSIMO, 1999, p. 266)
Dessa forma, o personagem começa a adquirir alguns hábitos, como traição,
jogo com apostas, deixando Bibiana a margem de sua vida, fazendo-a entender o
significado de “ser mulher”, muito mais preso, naquela época, entretanto, não iremos
nos deter a perspectiva da mulher, pois enveredaríamos por caminhos que não são
nosso objetivo. Esses hábitos de Rodrigo, em nenhum momento são criticados,
Argumentação e Linguagem Capítulo 20 258
primeiramente pelo autor, depois pelos outros personagens, nem mesmo Bibiana o
critica, chegando a romantizar o comportamento do personagem, alegando que apesar
de tudo, ele continuava com ela.
Para Bibiana, os trejeitos de Rodrigo, compunham uma personalidade
encantadora. Segundo ela,
Rodrigo não sabia fazer nada com calma e jeito. Não punha um objeto em cima da
mesa: atirava-o. Quando se despia, à noite, jogava as roupas para todos os lados.
Não sabia beber um gole d’água ou de vinho devagar: tomava-o em goles largos,
fazendo muito ruído e no fim estralando os beiços. Até mesmo no sono continuava
fazendo barulho: seu ressonado era pesado e muitas vezes no meio da noite ela
ouvira Rodrigo enquanto dormia (VERISSIMO, 1999, p. 252)
Essas características foram adquiridas pelo desejo, construído socialmente,
de proteger a masculinidade, afastando-se de tudo que é tido como feminino, pela
sociedade. Dessa forma, como afirma Bento (2015, p. 96) “ser homem significa ‘não ser
como as mulheres’. Esta noção de anti-feminilidade reside no centro das concepções
de masculinidades, de modo que a masculinidade é definida pela negativa: ser homem
é não ser mulher.” Portanto, como feminino também e sinônimo de fraqueza
[...] a masculinidade torna-se uma eterna busca para se demonstrar sua conquista,
para provar aos outros o impossível de se provar. O homem tem medo de assumir
inseguranças e dúvidas porque, se o fizer, pode ser julgado como sendo um fraco.
(BENTO, 2015 p. 95).
Portanto, como disse o Padre Lara (VERISSIMO, 1999, p. 304) o Capitão Rodrigo
era um homem impossível, no qual percebemos marcas profundas da socialização do
seu sexo a qual foi imposto um modo de vida já pronto, ao nascer. Ensinado assim,
a ter medo de não ser tão homem quanto deveria ser, “sua emoção dominante é o
medo. Medo em ser confundido com mulher, medo que os outros homens percebam
a sensação de insuficiência.” E para proteger sua reputação e a dos outros homens,
perpassa os mesmos conceitos e ensinamentos que o tornaram vítima da própria
dominação.
5 | 	CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através da análise dos personagens e da pesquisa bibliográfica, concluímos
que a literatura, com sua capacidade de representar a realidade, contribui de forma
clara e objetiva na evidenciação do modelo hegemônico de masculinidade. Vale
ressaltar, que os autores, por serem membros da sociedade e por ela moldados, não
fogem dos arquétipos sociais. Assim, de forma inconsciente, esses autores acabaram
reproduzindo, por meio de suas obras, discursos heteronormativos.
E é por tais discursos que a análise explicita que a construção social dessa
hegemonia masculina é fruto de um processo operado coletivamente sobre o indivíduo,
descartando a possibilidade de um olhar na perspectiva de uma constituição individual
e consciente a respeito da masculinidade e de suas imposições.
Argumentação e Linguagem Capítulo 20 259
Mediante o comportamento dos personagens tanto no espaço público, quanto
privado foi possível fazermos um paralelo com a sociedade contemporânea e constatar
que as formas de condicionamento para a aquisição desse ideal de masculinidade
continuam acontecendo, mas com todo o avanço dos estudos de gênero torna-se
possível enxergar e apontar discursos e comportamentos que caracterizam a opressão
como a parte essencial que mantém a cultura patriarcal interferindo no comportamento
social. Assim, mulheres, e homens desviantes desse modelo, continuam sendo
estigmatizados com o status de dominados.
REFERÊNCIAS
BENTO, Berenice. Homem não tece a dor: queixa e perplexidades masculinas/ Berenice
Bento. - 2.ed. –Natal, RN: EDUFRN, 2015. Disponível em: <https://repositorio.ufrn.br/jspui/
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BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
Disponível em: <http://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=1577826>. Acesso em: 26 jan.
2018.
BORIS, G.D.J.B.; BLOC, L.G.; TEÓFILO, M.C.C. Os rituais de construção da subjetividade
masculina. O público e privado. n. 19, jan/jun 2012. Disponível em: <http://seer.uece.
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Acesso em: 27 fev. 2018.
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. Disponível
em: <https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2014/03/candido-literatura-e-sociedade-copy.pdf>.
Acesso em: 28 jan. 2018.
REGO, José Lins do. Menino de engenho. 86. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004.
VERISSIMO, Erico. O Tempo e o Vento – o continente I. 40. ed. São Paulo: Globo, 1999.
WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8635.pdf>. Acesso em: 19 jan. 2018.
Capítulo 21 260Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 21
ENSINANDO PLE NA UFLA ATRAVÉS DO AVA -
AVANÇAR
Débora Racy Soares
Departamento de Estudos da Linguagem,
Universidade Federal de Lavras
Lavras, Minas Gerais
RESUMO: A oferta de cursos de Português
como Língua Estrangeira (PLE), parcialmente
a distância, é uma das recomendações
do Ministério da Educação (MEC) para o
estabelecimento do programa Português sem
Fronteiras nas Instituições de Ensino Superior
brasileiras. Nesse contexto, relata-se uma
proposta pedagógica, realizada na Universidade
Federal de Lavras (UFLA), que utiliza o AVA
(Ambiente Virtual de Aprendizagem) como
suporte pedagógico.
PALAVRAS-CHAVE: PLE; AVA; UFLA.
TEACHING PFL AT UFLA THROUGH VLE -
AVANÇAR
ABSTRACT: The offer of Portuguese as a
Foreign Language courses (PFL), partially
at a distance, is one of the recommendations
of the Ministry of Education (MEC) for the
establishment of the Portuguese without
Borders program in the Brazilian Higher
Education Institutions. In this context, we report
a pedagogical proposal, carried out at Federal
University of Lavras (UFLA), which uses VLE
(Virtual Learning Environment) as pedagogical
support.
KEYWORDS: PFL; VLE, UFLA.
As disciplinas de Português como Língua
Estrangeira, doravante PLE, foram criadas na
Universidade Federal de Lavras (UFLA) no
segundo semestre de 2014, visando incorporar
o uso de tecnologias variadas em sala de
aula presencial e virtual. O emprego de novas
tecnologias para implementar e consolidar
não só as disciplinas de PLE, mas também
as de outros idiomas (inglês, francês, italiano,
espanhol, japonês), é uma das apostas do
governo federal, juntamente com o Ministério
de Educação (MEC), que tem direcionado a
implantação dos cursos nas universidades
federais. De acordo com a proposta do
programa nacional Idiomas sem Fronteiras, do
qual o Português sem Fronteiras (PsF) participa,
a implantação de cursos de idiomas, com
foco na internacionalização das Instituições
Federais de Ensino Superior (IFES) brasileiras,
deve observar três diretrizes específicas.
A primeira trata da criação dos cursos
de PLE, especificamente. As outras duas,
particularmente, dizem respeito à criação
e oferta de cursos de PLE através de AVAs
(Ambientes Virtuais de Aprendizagem). A
Argumentação e Linguagem Capítulo 21 261
segunda diretriz aponta para a necessidade hodierna de utilização de recursos virtuais
que complementem o ensino presencial de PLE. A terceira sugere a criação e oferta
de cursos de PLE a distância, totalmente online.
Seguindo essas diretrizes, a UFLA tem oferecido, desde a implantação dos
cursos de PLE, em 2014, disciplinas que utilizam o AVA, denominado Avançar, como
suporte pedagógico. As disciplinas, que atendem, atualmente, cerca de 70% dos
alunos estrangeiros, regularmente matriculados em programas de pós-graduação na
instituição, têm utilizado recursos tecnológicos como preenchimento do perfil, fóruns de
discussão, chats, wikis, diários, glossários, lições, questionários, entre outros recursos
disponíveis no Moodle - e também fora dele (criação de tirinhas, gravação de áudio,
criação de blogs e de páginas na web) - para potencializar o ensino-aprendizagem de
PLE na instituição.
A maioria dos alunos estrangeiros da UFLA é falante de espanhol como língua
materna. Dessa forma, o AVA-Avançar tem sido utilizado como recurso pedagógico
complementar às aulas presenciais de PLE, em todos os níveis. De acordo com o
regulamento da instituição, até 20% da carga horária das disciplinas presenciais
podem ser ministradas em ambientes virtuais, o que corresponde a 12 horas. Cada
disciplina de PLE tem 60 horas (04 créditos).
O livro didático Novo Avenida Brasil 1, ancorado na abordagem comunicativa,
foi, inicialmente, adotado nas disciplinas de Português como Língua Estrangeira 1
(PLE 1) e 2 (PLE 2), servindo como base para esta proposta pedagógica. Embora o
livro didático escolhido tenha sido o fio condutor das atividades desenvolvidas tanto
em ambiente presencial, quanto em virtual, outros recursos complementares foram
utilizados em ambas as salas: a real e a virtual.
Na sala real, além do Novo Avenida Brasil 1, atividades de mais dois outros
livros, intitulados Bem-Vindo! e Nota 10, foram utilizadas como reforço, em momentos
pontuais. Ambos os livros também seguem a abordagem comunicativa. Bem-Vindo! é
destinado, especificamente, ao público falante de espanhol como primeira língua. Nota
10, publicado em Portugal, contempla a língua portuguesa falada no Brasil. Materiais
didáticos, produzidos pela própria docente, focados particularmente nas recorrentes
dúvidas dos discentes, foram adotados em ambas as turmas e em suas respectivas
salas virtuais.
O foco destas reflexões se direciona, especificamente, às atividades que foram
desenvolvidas para serem realizadas em ambiente virtual. É importante, no entanto,
que os discentes, sobretudo aqueles em níveis iniciais de aprendizagem em língua
estrangeira, tenham o livro didático como ponto de referência e apoio. Benson (2001)
sugere que o livro didático, ao fornecer um norte aos estudantes, evitaria que eles se
sentissem desamparados. As atividades propostas e desenvolvidas no AVA-Avançar,
ainda que sigam alguns temas enfocados no livro didático adotado, também propiciam
outras experiências de aprendizagem, mais lúdicas e criativas. Além de terem se
revelado ferramentas pedagógicas úteis para potencializar e consolidar o processo de
Argumentação e Linguagem Capítulo 21 262
ensino de PLE, as atividades realizadas no Avançar valorizam a autoria, fomentam a
autonomia e, consequentemente, deslocam os discentes para o centro do processo
de aprendizagem.
Nesse ponto, cabe ressaltar que as atividades didáticas, elaboradas com
recursos tecnológicos em (e para) ambientes virtuais não foram inteiramente
direcionadas pelos esquemas e diálogos redutores, oferecidos pelo livro didático. Pelo
contrário, estas atividades foram pensadas considerando-se determinados suportes
e estratégias (scaffolding), a partir das dúvidas recorrentes dos discentes. Scaffolding
significa fornecer suporte contextual para o sentido através do uso simplificado da
linguagem, de modelos de ensino, de elementos gráfico-visuais, da aprendizagem
cooperativa e prática. (OVANDO et al, 2003).
Para as turmas que estão em estágio inicial, como as de PLE 1 e PLE 2, é
necessário fornecer o scaffolding como suporte. À medida que os alunos vão ficando
proficientes na língua-alvo, a necessidade deste suporte vai sendo minimizada,
conforme demonstram Diaz-Rico e Weed (2002).
De acordo com Bradley (2004), três tipos de scaffolding são particularmente
efetivos na aprendizagem de uma língua estrangeira: (i) apropriar-se da linguagem
simplificadamente, fazendo-se uso, sobretudo, de verbos no tempo presente; (ii)
focalizar em exercícios que estejam estruturados na forma de completar (como os de
preencher lacunas), mais do naqueles que demandam produção de informação; (iii)
utilizar recursos visuais. Os três tipos de scaffolding mencionados foram empregados
nas atividades virtuais desenvolvidas e propostas para as turmas de PLE 1 e PLE 2.
Abaixo é possível visualizar alguns exemplos:
Figura 1 – Atividade Criação de Perfil – Turmas de PLE 1 e PLE 2
Fonte: http://www.avancar.ufla.br
No exemplo acima, a atividade solicita o preenchimento do Perfil dos discentes
no AVA-Avançar e envolve habilidades de leitura e produção textual. As instruções
Argumentação e Linguagem Capítulo 21 263
para a realização da atividade são descritas de forma simples e direta, com os verbos
no tempo Presente, do modo Indicativo. Tanto os alunos da turma de PLE 1, quanto
os da de PLE 2 foram convidados a realizar a mesma atividade, em seus respectivos
AVAs.
Vale observar que uma mesma tarefa pode ser solicitada para turmas que
estejam em níveis distintos de aprendizagem, desde que a atividade seja elaborada
de forma mais complexa. Assim, mobiliza-se a ideia da aprendizagem em espiral (Dolz
e Schneuwly, 1996), evidenciando-se outro entendimento da noção de progressão,
a partir de uma perspectiva sociointeracionista. Isso significa que não é preciso,
obrigatoriamente, trabalhar os conteúdos gradativamente com os discentes, isto é,
do menor para o maior grau de dificuldade. Logo, uma mesma atividade, como a
exemplificada acima, pode ser trabalhada em diferentes momentos da aprendizagem,
de forma distinta ou mais complexa. Assim, a aprendizagem em espiral valorizaria as
possibilidades de aprendizagem (nível de desenvolvimento potencial) e não somente
as necessidades de aprendizagem (nível de desenvolvimento real), para concordar
com Vygotsky (1962).
Na Figura 2, abaixo, é possível observar o uso de recursos visuais, como tirinhas,
para exemplificar pequenos diálogos introdutórios:
Figura 2 – Atividade Leitura e Criação de Tirinhas – Turmas de PLE 1 e PLE 2
Fonte: http://www.avancar.ufla.br
Aatividade exemplificada na Figura 2 sugere que, a partir do modelo apresentado,
os alunos sejam capazes de criar suas próprias tirinhas, através do Pixton (www.pixton.
com.br) ou do StripGenerator (www.stripgenerator.com). Novamente, habilidades de
leitura e produção escrita são mobilizadas, estimulando a criatividade dos alunos,
através do lado lúdico da proposta. Em seguida, foi proposta uma atividade de gravação
de áudio, conforme ilustrado:
Argumentação e Linguagem Capítulo 21 264
Figura 3 – Atividade Gravação de Áudio – Turmas de PLE 1 e PLE 2
Fonte: http://www.avancar.ufla.br
Nessa atividade, os alunos deveriam produzir um pequeno áudio, apresentando-
se aos colegas. Sugeriu-se que gostos e hábitos pessoais fizessem fazer parte do texto
a ser gravado. Primeiramente, os discentes foram orientados a escrever um breve
roteiro, com o diálogo a ser encenado, antes de realizarem a gravação definitiva. O
diálogo foi corrigido e a pronúncia verificada. Em seguida, utilizou-se o Voki (www.voki.
com), um serviço gratuito que permite a criação de personagens virtuais, capazes de
repetir mensagens previamente gravadas. Os áudios produzidos foram compartilhados
no AVA da disciplina. Depois, os alunos foram convidados a ouvir as apresentações
produzidas pelos colegas e comentá-las no Fórum (Figura 4), aberto para tal finalidade.
Todas as atividades que ilustram este relato foram realizadas com as turmas de
PLE 1 e PLE 2, durante um semestre, e apresentaram variações quanto ao grau de
complexidade exigido na elaboração dos diálogos e apresentações.
Figura 4 – Fórum – Turmas de PLE 1 e PLE 2
Fonte: http://www.avancar.ufla.br
Argumentação e Linguagem Capítulo 21 265
O apego incondicional ao livro didático pode ser uma forma de limitação. Faz-
se necessário, portanto, apostar em atividades que transcendam a moldura (frame)
predeterminada do livro e que sejam capazes de ir ao encontro de oportunidades
de aprendizagem que aconteçam também fora da sala de aula. Nesse sentido,
as atividades propostas no Avançar procuram incentivar a busca de modelos reais
de comunicação, muitas vezes carentes nos livros didáticos. As atividades do AVA
foram pensadas, em um primeiro momento, como recurso pedagógico adicional aos
exercícios realizados presencialmente. No entanto, estas atividades foram capazes de
transcender a sala de aula presencial, pois contribuíram, sobremaneira, para que a vida
real dos alunos não fosse sentida como algo apartado do ambiente de aprendizagem,
seja ele real ou virtual. Afinal, a vida está na língua e a língua é cheia de vida.
Ademais, atividades que incentivam a autonomia dos alunos, tornando-os aptos
a administrar a própria aprendizagem, revelam-se assaz produtivas. Entende-se por
autonomia a capacidade multidimensional que se manifesta de diferentes formas em
indivíduos distintos e, até mesmo, em um único indivíduo, em diferentes contextos de
aprendizagem ou em épocas diferentes (BENSON, 2001).
Nunan (1997) sugere ser possível caminhar em direção à independência
dos aprendizes, aos poucos, a partir da observância de alguns níveis, tais como:
conscientização, envolvimento, intervenção, criação e transcendência. De certa
forma, estes níveis ou etapas não são estanques: acabam, muitas vezes, acontecendo
simultaneamente e se sobrepondo, à medida que os discentes tornam-se autônomos
em relação à própria aprendizagem. A partir de algumas atividades, selecionadas
para exemplificar esta proposta pedagógica, é possível vislumbrar que estimulam a
autonomia dos discentes, procurando contemplar todos os níveis sugeridos por Nunan.
Assim, a conscientização sobre a tarefa proposta (ler/ouvir as instruções
referentes às atividades postadas no AVA), não se dissocia do envolvimento e da
intervenção (ato de ler, ouvir e, consequentemente, criar pequenos diálogos, tirinhas,
áudios). A criação decorre da ação de realizar a atividade. À medida que os discentes
criam seus próprios exemplos e escolhem imagens para ilustrá-los (foto do perfil,
tirinhas, avatar no Voki), transcendem o processo de criação, imprimindo autoria à
atividade realizada. Como se percebe, os níveis propostos por Nunan estabelecem
relação de casualidade entre si sendo, portanto, difícil dissociá-los na prática.
Nunan (1997) enfatiza que é importante complementar o livro didático com
atividades adicionais, próximas da realidade dos alunos. Afinal, em contexto de
imersão, a língua pode ser aprendida menos na sala de aula e mais em contato com
a realidade extraclasse, já que seu aprendizado depende de seu uso. O ambiente
virtual, de certa forma, pode potencializar a realidade extraclasse, por ser um espaço,
teoricamente, menos controlado pelo professor.
OAVA-Avançar, além de propiciar o contato com a língua fora do ambiente da sala
de aula real, mobiliza a questão da aprendizagem ubíqua, provando ser ferramenta
virtual imprescindível nas aulas de PLE. A facilidade de acesso – o Avançar pode ser
Argumentação e Linguagem Capítulo 21 266
acessado também pelo celular – e a disponibilidade das atividades complementares
impactou o rendimento e a produtividade dos alunos, em ambas as turmas de PLE, a
1 e a 2.
Ao longo do semestre foi possível observar: o crescente aumento da motivação
dos alunos, sua melhor interação, tanto online quanto nas aulas presenciais, a
diminuição da inibição para se expressarem oralmente e por escrito nos chats,
fóruns, a autorregulação da aprendizagem, seja através da solução de problemas de
forma individual e/ou coletiva, a consolidação de input linguístico favorável para a
aprendizagem. Enfim, a utilização do AVA-Avançar nas aulas de PLE, além de estar
em consonância com as diretrizes do MEC para a área, tem sido um diferencial na
UFLA, em termos de proposta pedagógica.
REFERÊNCIAS
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2001.
BRADLEY, K. S.; BRADLEY, J. A. Scaffolding. Academic Learning for Second Language Learners. In:
The Internet TESL Journal, vol. X, n0
. 5, May 2004, Texas A&M University, Kingsville, Texas, USA.
Disponível em: <http://iteslj.org/Articles/Bradley-Scaffolding/>. Acesso em: 21 jun. 2016.
DIAS, A.; FROTA, S. Nota 10 – Português do Brasil. Lisboa: LIDEL, 2015.
DIAZ-RICO, L.T.; WEED, K.Z. The Cross-Cultural, Language, and Academic Development
Handbook: a complete K-12 reference guide. [2nd. ed.]. Boston: Ally & Bacon, 2002.
DOLZ, J; SCHNEUWLY, B. Genres et progression en expression orale et écrite. Éléments de
réflexions a propos d’une expérience romande. In: Enjeux, n0
. 37/38, 1996, p. 49-75.
IDIOMAS SEM FRONTEIRAS. Portaria nº 973, de 14 de novembro de 2014. Portal MEC. Disponível
em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=16618-por973-
idioma-sem&category_slug=novembro-2014-pdf&Itemid=30192>.Acesso em: 19 mai. 2016.
LIMA, E. E. O. F. et al. Novo Avenida Brasil 1: curso básico de português para estrangeiros.
Livro-texto + livro de exercícios. [Reimpr.] São Paulo: E.P.U, 2013.
NUNAN, D. Designing and adapting materials to encourage learner autonomy. In: BENSON, P.;
VOLLER, P. (Eds.). Autonomy and Independence in Language Learning. Harlow: Pearson, 1997,
p.192-203.
OVANDO, C.; COLLIER, V.; COMBS, M. Bilingual and ESL Classrooms: teaching multicultural
contexts. [3rd ed.]. Boston: McGraw-Hill, 2003.
PONCE, M. H. et al. Bem-Vindo! A Língua Portuguesa no Mundo da Comunicação. São Paulo:
SBS Editora, 2011.
VYGOTSKY, L. S. Thought and Language. Cambridge: MIT Press, 1962.
Capítulo 22 267Argumentação e Linguagem
CAPÍTULO 22
MARCAS DOS PAISES IMPERIALISTAS NA
CONSTITUIÇÃO E REORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO
BRASILEIRA
Rosa Maria Silva Braga
Mestranda do Curso Mestrado Acadêmico em
Educação pela Universidade Federal do Acre.
Licenciada em Pedagogia/UFAC. Especialista
em Metodologia Ensino do Pré-Escolar e
Fundamental - UFAC e em Tecnologias em
Educação - PUC/RJ. Docente da Secretaria do
Estado de Educação do Estado do Acre – SEE.
Atualmente Formadora e Assessora Pedagógica
do NTE Rio Branco/SEE.
E-mail: rosabragante@gmail.com
Lucia Torres de Oliveira
Mestranda do Curso Mestrado Acadêmico em
Educação pela Universidade Federal do Acre.
Licenciada em História/UFAC. Docente da
Secretaria do Estado de Educação do Estado do
Acre – SEE. Atualmente Formadora e Assessora
Pedagógica da SEE. Email: ltorresac@gmail.com
1 | 	INTRODUÇÃO
Descortinar outras versões da História do
Brasil nos seus diferentes períodos históricos
não contadas a partir da ótica do dominador, que
no caso brasileiro tem o nome de colonizador,
não é algo simples, porque foi através da versão
contada a partir dessa ótica, que aprendemos a
admirar aos “benfeitores” de nossa nação.
Sendo a instituição escola, uma das
principais formas de acesso a História do país
para a maioria do povo brasileiro, mediada
pelos livros didáticos, poucos tiveram acesso a
outras versões, prevalecendo na transmissão
para as novas gerações, a versão contada
pelos europeus. E assim como na história do
Brasil, a história da educação brasileira, nos foi
contada nos cursos de formação de professores
de forma linear ou evolutiva.
A história linear, mesmo envolvendo áreas
sociais, econômicas, culturais e educacionais,
não deixa de trazer certo conforto. “Histórias
evolucionária [...] são comparativamente fáceis
de construir. Elas recontam as mudanças e
termos de sequencias e consequências numa
instituição existente” (HAMILTON, 2001,
p.47). O deparar-se com outra versão, “se
por um lado, é conscientemente desafiadora
e desconfortante, [...] é também libertadora”
(HAMILTON, 2001, p.48).
Considerando que a educação não está
isenta as formas de organização políticas,
econômicas, sociais e culturais em cada período
histórico e que a educação brasileira, em sua
expressão formal, já nasce nos formatos das
experiência educacionais dos colonizadores
portugueses, o artigo tem como objetivo analisar
a constituição e a reorganização da educação
escolar brasileira, ressaltando aspectos da
colonização portuguesa aos dias atuais, não
Argumentação e Linguagem Capítulo 22 268
tão explícitos na historiografia da Educação Brasileira, pois, como afirma Fernandez
Enguita (1989, p. 131), “[...] é bem sabido que a história é escrita pelos vencedores,
que não gostam de mostrar a roupa suja [..]”.
Busca também, destacar como a influência dos países imperialistas fizeram-se
presentes nos diferentes contextos históricos, todavia, de forma mais acentuada na
década de 90, quando a influência dos organismos internacionais, numa perspectiva
gerencialista, direcionaram à formação escolar para as demandas do mercado de
trabalho, ação que demandou reformas curriculares, entre elas, a discussão e
fomentação gradativa da formação continuada dos professores para o uso de novas
tecnologias em sala de aula.
Através de uma revisão bibliográfica ancorada em autores como: Faria Filho
(2011), Fernandez Enguita (1989), Hamiton (2001), Horta (2012), Nóvoa (1986), Oliveira
(2000, 2005), Paiva (2011), Palma Filho (20051), Souza (2008), Vincent (2001) e Xavier
(1999), a análise da constituição e reorganização da educação escolar brasileira, tenta
também desmitificar a aparência humanitária das ações educacionais dos organismos
internacionais, levantando reflexões quanto a possíveis potencialidades, desafios de
rompimentos e/ou reorganização para uma educação com identidade nacional.
2 | 	DESENVOLVIMENTO
2.1	A constituição do modelo escolar de educação no Brasil
Sendo a educação uma atividade humana, em cada povo ou sociedade se
manifestará de forma sistemática ou assistemática, haja vista que,
uma das tarefas fundamentais de todas as sociedades humanas organizadas é a
transmissão, de geração e geração, de um modo coletivo de viver e compreender
o mundo (NÓVOA,1986, p. 07),
No caso da educação brasileira, sua constituição é marcada por continuidades
e descontinuidades, ou avanços e retrocesso, uma vez que historicamente, “mais
que uma evolução, a história da educação é de uma sucessão de revoluções e
contrarrevoluções” (FERNANDEZ ENGUITA, 1989, p.129).
A partir da colonização portuguesa, registrada na História oficial como
“Descobrimento do Brasil”, o modelo escolar de educação no Brasil, será herdeiro de
traços de países europeus, uma vez que, as primeiras escolas criadas pelos Jesuítas,
chamadas de escolas de primeiras letras, já nasceram com o vínculo estatal (Coroa
Portuguesa), funcionando com planos de estudos definidos e espaços próprios. Paiva
(2011), referindo-se sobre educação no Brasil no período Colonial afirma que:
Há que se buscar na história portuguesa e no seu desdobramento em terras
brasílicas o lugar que a escola ocupou na organização social. [...] desde que
chegaram ao Brasil, os jesuítas estabeleceram escolas e começaram a ensinar a
ler, escrever e a contar e cantar (PAIVA, 2011, p.43).
Argumentação e Linguagem Capítulo 22 269
O referido autor destaca ainda,
[...], mas, o que representava a alfabetização para os jesuítas a ponto de
quererem, desde o início, alfabetizar os índios, quando nem em Portugal o povo
era alfabetizado? Mas do que a resultado dessa intenção, interessante é observar
a mentalidade. As letras deviam significar a adesão plena à cultura portuguesa.
[...] O Ratio studiorum, que organizava os estudos da Companhia, estabelecia
em pormenores o currículo do colégio. A Gramática média; a Gramática Superior:
as Humanidades; a Retórica. Havia ainda a Filosofia e a Teologia para quem se
preparasse para o sacerdócio. A presença greco-romana é incontestável (PAIVA,
p. 43-44, grifo do autor).
Ainda para o referido autor, era consenso entre os colonizadores, que esse
formato educacional era importante para a sociedade brasileira da época.
A manutenção do sistema cultural estava a exigi-lo. Esses filhos seriam ou padres,
os advogados, ocupariam cargos públicos, possibilitariam à sociedade se
reproduzir. [...], por isso, não há do que se espantar com o colégio jesuítico em
terras brasílicas: baluarte erguido no campo da batalha cultural, cumpria com a
missão de preservar a cultura portuguesa (PAIVA, 2011, p.44).
Passados dois séculos, as relações sociais e econômicas e culturais brasileiras
passam por transformações e o modelo de educação dos jesuítas em certo momento,
deixa de atender aos interesses dominantes na Colônia, uma que,
As relações sociais estavam sendo novamente modeladas e uma nova
constelação de valores, hábitos, comportamentos, instituições vão se impondo,
claramente calçados no processo de colonização exploradora. O modelo colonial,
nesses termos, vai invadindo e conformando todas as áreas da vida social,
aumentando assim, cada vez mais, a distância entre as letras e a vida vivida, [...]
A desmitificação das verdades absolutas já se fizera sentir desde as grandes
descobertas, desdobrando-se mais intensamente com o desenvolvimento do
mercantilismo [...]. A sociedade se transformara culturalmente[..]. O colonizador
português experimentava, no seu dia a dia, a necessidade de desobedecer às
normas verdadeiras, a casa se fazendo norma. Essa experiência cotidiana pautava
a consciência e conformava o agir das pessoas. E o colégio jesuítico continuava
formando letrados (PAIVA, 2011, p. 56, grifo do autor).
Em um contexto histórico com novos interesses, a Companhia de Jesus é
expulsa do Brasil pelo Marques de Pombal. Entretanto, ainda no período colonial, é
encontrado no Brasil, segundo Paiva (2011), as escolas régias ou de “cadeiras públicas
de primeiras letras”, com professores nomeados pelo governo, que funcionavam em
lugares adaptados. Além dessas escolas, Paiva (2011), também registra, a existência
das escolas domésticas que funcionavam em espaços particulares adaptados, onde
o professor era pago pelo chefe da família ou pelo proprietário da terra, geralmente
um fazendeiro, que no século XIX, chegavam a ser maiores em quantidades, que as
escolas com os professores contratados pelo estado.
No período Imperial, educação brasileira, passará por momentos semelhantes
aos ocorridos em Portugal, relatadas por Nóvoa (1986), com escolas de primeiras
letras (ler, escrever e contar), de educação elementar e de ensino primário, assim
como, também serão encontrados nas escolas da época o método mútuo e a cartilha
escolar que utilizados em Portugal. Essas semelhanças também são registradas por
Argumentação e Linguagem Capítulo 22 270
Paiva (2011).
Tratando desse período, Faria Filho, registra que a “historiografia consagrada
sempre concebe a educação primária brasileira no século XIX confinada a desastrada
politicas pombalina e o florescimento da educação na era republicana” (FARIA
FILHO, 2011, p. 135). Para o referido autor, apesar de as vezes esse período ter sido
considerado por alguns como uma fase ruim,
OsrecentesestudosarespeitodaeducaçãobrasileiranoséculoXIX,particularmente
no período imperial, têm demonstrado que havia, em várias províncias, uma intensa
discussão acerca da necessidade de escolarização da população, sobretudo das
chamadas “camadas inferiores”. Questões como a necessidade e a pertinência
ou da instrução dos negros (livres, libertos ou escravos), índios e mulheres eram
amplamente debatidas e intensa foi a atividade legislativa das Assembleias
Provincianas em busca do ordenamento legal da educação escolar (FARIA FILHO,
2011, p. 135).
O referido autor, também registra, a participação pequena e pulverizada do Estado
no processo de escolarização ao longo do período Imperial e que nem a instituição
escolar tinha destaque social no período. “Foi preciso então, lentamente, afirmar a
presença do Estado nessa área e também produzir, paulatinamente, a centralidade do
papel da instituição escolar nas formações de novas gerações” (FARIA FILHO, 2011,
p.136).
Nesse contexto,
[...] o estado ao prover instrução, buscava não somente uma estratégia civilizatória
para o povo brasileiro, mas também a sua utilização comum mecanismo de controle
da população. O Estado Imperial, e sobretudo as províncias do Império a partir do
Ato Adicional de 1834, foram pródigos em estabelecer leis referentes a instrução
pública (FARIA FILHO, 2011, p.137).
Todavia, somente os atos legais não eram suficientes para o enfrentamento da
escassez de recursos e diversidades das províncias na oferta da educação primária,
[...] a instrução elementar articula-se não apenas com a necessidade de se
generalizar o acesso às primeiras letras, mas também com um conjunto de outros
conhecimentos e valores necessários a inserção, mesmo que forma muito desigual,
dos pobres a vida social (FARIA FILHO, 2011, p.138-139).
Ao longo do séc. XIX, a tendência da educação brasileira na República Velha, com
vista o controle estatal da educação no Brasil, “[...] vai progressivamente assumindo
as características de uma luta do governo do estado contra o governo da casa” (FARIA
FILHO, 2011, p. 146). Ao mesmo tempo,
[...] as discussões pedagógicas sobretudo aquelas referentes às propostas
metodológicas, foram demonstrando a necessidade da construção de espaços
própriosparaaescola,comocondiçãoderealizaçãodesuafunçãosocialespecífica,
[...] tais discussões irão culminar na criação e construção dos grupos escolares,
[...] concebidos e construídos como verdadeiros “templos do saber”, encarnavam,
a um só tempo, todo um conjunto de saberes, de projetos político-educativos e
punham em circulação o modelo definitivo da educação do século XIX: o das
escolas seriadas.[...] Neles e por meio deles, os republicanos buscarão mostrar a
própria República o seu projeto educativo exemplar e, por vezes espetacular. [...] a
cultura escolar elaborada tendo como eixo articulador o grupo escolar atravessou
Argumentação e Linguagem Capítulo 22 271
o século XX, constituindo-se referência básica para a organização seriada das
classes, para a utilização racionalizada do tempo e dos espaços e para controle
sistemático do trabalho das professoras dentre outros aspectos (FARIA FILHO,
2011, p. 146-147)
Assim, no período de 1890 a 1960,
A centralidade atribuída pelos republicanos à educação, na transição do século
XIX para o século XX, nutriu-se dos ideais liberais e dos modelos de modernidade
educacional em voga nos países ditos civilizados, ratificando a distribuição entre
educação do povo e educação das elites e estabelecendo clivagens culturais
significativas (SOUZA, 2008, p. 19, grifo nosso).
Esse período é momento em que os princípios Iluminista são postos a prova,
diante do medo de perda de mão-de obra e segundo Souza (2008), mesmo entre os
Iluminista não havia consenso sobre a educação a ser dada ao povo, se ampla ou
limitada. Isso em virtude do tempo “que a educação afastasse as camadas populares
das atividades manuais, acarretando problemas na produção” (SOUZA, 2008, p. 20).
A referida autora também registra que,
[...]ao longo do século XIX, a insuficiência dos saberes elementares (leitura,
escrita e cálculo) para a formação do homem moderno passou a ser cada vez
mais propalada, nos países europeus e nos Estados Unidos”. O que ensinar ao
povo passou a fazer parte dos debates políticos acerca da educação popular, [...]
implicava selecionar no estoque de saberes da época [...], aqueles conhecimentos
úteis considerados potencialmente relevantes para que a escola cumprisse suas
finalidades, isto, é, que ela favorecesse uma visão mais racional do mundo,
modificasse hábitos de condutas arraigados e conduzisse as novas gerações em
direção aos pressupostos e valores da modernidade. (SOUZA, 2008, p. 20, grifo
nosso).
Souza (2008), também registra, que nesse período, a pobreza era uma ameaça
pública ao progresso, razão pela qual, muitos intelectuais defendiam que ofertar
educação para a classe menos favorecida, seria uma medida de segurança social,
ao mesmo tempo que a prepararia para a “vida produtiva”. Para essa autora, “a
modernização do currículo da escola primária, na segunda metade do século XIX, foi
uma consequência dessas múltiplas finalidades à educação popular” (SOUZA, 2008,
p. 32). Apesar de não ter acontecido de forma rápida, as discussões sobre a renovação
dos programas de ensino voltam-se a intensificasse somente no final do século XIX.
Nos anos que se seguiram à proclamação da República, em vários estados
brasileiros, os governos estaduais buscaram implementar reformas da instrução
públicas, visando a instruir um moderno aparelho de ensino para a promoção de
educação popular. De modo geral, os dispostos legais incorporavam os princípios
liberais de educação, estabelecendo a obrigatoriedade e gratuidade do ensino
primário, o caráter laico da educação e fixando o compromisso formal do poder
público em ampliar as oportunidades educacionais mediante a multiplicação das
escolas e a elevação do número de matriculas (SOUZA, 2008, p. 37).
Nesse momento, “o método indutivo tornou-se ícone da escola primaria moderna”
(SOUZA, 2008 p. 37). Mas, duas outras medidas consideradas inovadoras foram
apontadas como garantia de eficácia no sistema brasileiro: a formação dos professores
realizada pelas Escolas Normais e a criação de um serviço de inspeção técnica para
Argumentação e Linguagem Capítulo 22 272
o ensino (SOUZA, 2008). Paralelo a isso,
[...]a eficácia o sistema de ensino alicerçar-se-ia em quatro elementos
primordiais: a graduação em séries, o cumprimento dos programas, o sistema de
avaliação e a disciplina dos alunos. [...]. Ao longo da Primeira República, cada
vez mais os programas de ensino primário buscavam regrar a pratica docente,
determinando minunciosamente o que e como ensinar. [...]. A escola considerada
“templo da civilização” operava múltiplos sentidos, tanto a disciplinarização quanto
a humanização, tanto a moralização quanto a apreensão da cultura científica e
estética, códigos fundamentais da modernidade (SOUZA, 2008, p. 49;50;76).
Nesse contexto, um fato que merece destaque é que, com instalação da República
em 1889, a igreja, pouco a pouco, vai aceitando o novo regime e encontrando formas
de tirar proveito dele. Outro fato a ser considerado é que, segundo Horta (2012), a
educação formal sempre esteve a serviço do estado, sofrendo pressão e influência
filosóficas, politicas, ideológicas do momento histórico vivido. Mas a partir do Estado
Novo, a
[...] decisão de utilizar a escola como aparelho ideológico do estado a serviço do
estado [...] foi acentuada e escancara nos projetos educacionais no pais, quando
[...] Capanema revela a disposição do governo federal no intuito de presidir,
orientar e controlar a reorganização do sistema escolar do pais. [...] Além de um
instrumento de inculcação dos princípios do Estado Novo, a educação deveria
servir também de arma de luta ideológica (HORTA, 2012, p. 153-157-160).
Essa decisão entrará em confronto com os ideais escolanovistas expressa no
Manifesto dos Pioneiros em 1932, uma vez que regime autoritário não iria combinar com
os “valores e princípios caros aos pioneiros da educação nova como, obrigatoriedade,
gratuidade e descentralização (PALMA FILHO, 2005, p. 15).
Concordando com Palma Filho (2005), Xavier (1999), registra que,
Para Anísio Teixeira, a regra de ouro da educação consistia em garantir a autonomia
das instituições de ensino. [...]. Na sua visão, a centralização dos serviços
escolares – nas Secretarias de Educação dos estados e municípios e no Ministério
da Educação no nível da União – teria transformado cada uma das escolas em
uma só escola monstruosa e abstrata, com seções espalhadas por todo o estado
(XAVIER, 1999, p. 61, grifo do autor).
Paralelo a arena de disputa de princípios e valores para a educação nacional,
Oliveira (2000) destaca que,
No ápice do ideário nacional-desenvolvimentista no Brasil durante as décadas
de 50, 60 e até mesmo 70, foi marcante a preocupação com a educação como
propulsora do progresso técnico, através da formação de recursos dentro dos
padrões de exigências do modelo de industrialização adotado. Os esforços
para qualificar os trabalhadores, a fim de se atender às necessidades do pleno
desenvolvimento da economia, contribuindo para a criação de condições gerais de
produção, marcaram profundamente o período, tendo como sua melhor expressão
a criação do SENAI. [...]. Essa preocupação não se limitou, contudo, à formação de
força de trabalho apta às mudanças tecnológicas e organizacionais exteriores ao
sistema público de ensino; incluiu, ainda, questões políticas, como financiamento,
controle e gestão da educação pública (OLIVEIRA (2000, p. 17).
Entretanto, “a legislação educacional do período de 1930-1960, apesar de alguns
avanços, não soube traduzir em ações os princípios liberais democráticos presentes,
Argumentação e Linguagem Capítulo 22 273
tanto no texto constitucional de 1934, quanto no ano de 1946” (PALMA FILHO, 2005,
p.18). Fato também defendido por Barros (1960), ao referir-se à primeira LDB nº
4.204/61, quando afirma que,
O Projeto de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, tal como foi aprovado pela
Câmara dos Deputados, contraria inteiramente os princípios liberais e democráticos
que norteiam os destinos de nosso país que foram inscritos na Constituição Nacional
de 18 de setembro de 1946 (BARROS,1960, p.307).
A partir de 1964, parte desses referidos princípios serão esquecidos, quando o
Brasil irá enfrentar 20 anos de ditadura militar, que “a despeito do cerceamento das
liberdades e direitos políticos e civis, irá paradoxalmente ampliar as políticas sociais
de cobertura ampla e extensão universal”. (OLIVEIRA, 2005, p. 284). Durante esse
período, no plano educacional, entre o final dos anos 70 e início de 80, diante de uma
escola brasileira excludente, elitista e tecnicista, intensificam-se a luta por parte dos
educadores, pela democratização da educação, por
[...] ampla defesa do direito à escolarização para todos, de universalização do ensino
e de defesa de maior participação na gestão da escola. A Carta Constitucional de
1988 consolida muitas das reivindicações presentes nas pautas dos movimentos
que emergem com a derrocada do regime militar (OLIVEIRA, 2005, p. 284).
Entretanto, a nova Constituição de 1988, também consolida os interesses
econômicos e políticos dos países imperialistas, que se materializam nas reformas
educacionais iniciadas na educação brasileira na década de 90.
2.2	A reorganização da educação brasileira sob a ótica de países imperialistas
A partir da década de 90, a crise mundial de acumulação do capital, gera uma
nova necessidade de sua reestruturação, que será denominada de “globalização”. Por
envolver economia, política e cultura, este novo movimento do capital internacional,
[...] trouxe como corolário, a flexibilização nas relações do trabalho e emprego, o
que resultou em diversificação nas formas de contratação e crescente desemprego.
Tal processo provoca uma crise social que condena a maioria da população a
condição indignas de vida (OLIVEIRA, 2005, p. 280).
Estruturalmente, não há como desvincular as reformas na economia da
educação. A partir da década de 90, a educação brasileira passou a ser reorganizada
de modo atender as demandas do capital internacional. Autorizados pelos acordos
firmados entre o governo brasileiro com organismos internacionais como o Banco
Mundial, BIRD e UNESCO, estes organismos, passam através de assessorias técnicas
e financeiras, a influenciar do ponto de vista pedagógico, cientifico, político, tecnológico
e ideológico, as reformas na educação brasileira, onde
[...] a política educacional sofre alterações nas suas orientações tendendo a
responder as demandas crescentes de maior integração social das populações
vulneráveis, ao mesmo tempo em que deve também formar a força de trabalho apta
aos novos processos produtivos (OLIVEIRA, 2005, p. 280-281).
Nesse contexto, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB
Argumentação e Linguagem Capítulo 22 274
9394/96, abrirá as portas legais para as reformas, garantindo os dispositivos que
atendessem as exigências dos acordos assumidos pelo governo brasileiro com os
organismos internacionais.
Assim, as reformas educacionais orientadas pelos organismos Internacionais a
serem implementadas no território brasileiro, provocam mudanças no campo curricular
e consequentemente na formação docente. Como consequências desses acordos,
“assistimos, [...] um esvaziamento do sentido das políticas educacionais que recuperem
a integralidade da formação humana” (OLIVEIRA, 2005, p. 295), que paulatinamente
vão sendo substituídos por programas, projetos financiados e formatados com a
assessoria técnica dos organismos internacionais.Aexemplos desses programas, está
o Programa Nacional de Tecnologias Educacionais – PROINFO, criado com objetivo
de promover a inserção das tecnologias digitais na prática pedagógica da Educação
Básica, como meio de aquisição de competências e habilidades em Tecnologias da
Informação e Comunicação- TIC, por professores e alunos (UNESCO, 2009).
Todavia, para implementar essa ação, os organismos internacionais, precisam
também financiar a aquisição de equipamentos tecnológicos, fomentar a ampliação
do acesso a conexão de internet e prestarem assessoria na formatação de programas
de formação continuada para professores que visem o uso pedagógico das TIC no
dia-a-dia da sala de aula, com vistas, a formar os futuros usuários e consumidores de
tecnologias, com as habilidades e competências exigidas pelo mercado de cada vez
mais competitivo. Pois, assim, “como no início da revolução industrial, a tecnologia
é projetada para aumentar o lucro e o poder, o controle administrativo e o domínio à
custa do trabalho significativo, da liberdade, da vida e do bem-estar [...] ” (Oliveira,
2000, p. 33, Apud CHOMSKY, 1996: p. 234). Em outras palavras, no atual contexto,
as tecnologias tornam-se indispensáveis no aumento da produtividade, diminuição
de gastos com o pagamento de recursos humanos, maximização de lucros, além
da garantia da hegemonia ideológica neoliberal, que contará com um exército de
consumidores cada vez mais dependentes de tecnologias digitais.
Aindanessesentido,FernandezEnguita,(1989,p.131),explicacomoocapitalismo
foi tão capaz de dar forma a escolarização, ao afirmar que, “[...] as grandes empresas
capitalistassempreexerceramumagrandeinfluênciasobreopoderpolítico,quandonão
foram capazes de instrumentalizá-lo abertamente [...]” (FERNANDEZ ENGUITA,1989,
p.131). Infelizmente, essa influência a cada dia é expressa na legislação aprovada
pelo poder político, que atende em primazia a hegemonia econômica do grande capital
em detrimento as demandas de valor social do povo brasileiro.
3 | 	CONCLUSÃO
Uma análise da educação no Brasil do início da colonização aos dias atuais,
poderá contribuir com elementos reflexivos que auxiliem no descortinar de fatores de
Argumentação e Linguagem Capítulo 22 275
rupturas e continuidades no processo de constituição e reorganização da educação
brasileira, que desde a colonização portuguesa tem tido nos países imperialistas
seu padrão de medida, seja em momentos históricos por imposição, admiração e/ou
submissão. Fato acentuado com as reformas educacionais iniciadas na década de
90, quando os interesses econômicos sobrepujaram aos sociais e humanos, mesmo
quando disfarçados por bandeiras humanitárias como o da equidade social.
Nesse sentido, o estudo das marcas dos países imperialistas na constituição e
reorganização da educação brasileira, pode auxiliar na identificação das reais intenções
desses países, que defendendo causas sociais em países classificados por eles como
terceiro mundo, buscam garantir não somente mão de obra barata e consumidores,
mas também, a hegemonia ideológica do capital internacional.
Por tudo o que foi tratado nesse estudo, parafraseando Fernandez Enguita
(1989), conclui-se que a educação brasileira, materializada na educação escolar, não
é o resultado de uma evolução histórica, mas que se constituiu e se reorganizou em
arena de disputas entre a busca da hegemonia mundial que os países imperialistas
tentam impor através de assistência técnica, financeira, condicionalidades a países
como o Brasil e os desafios que os educadores brasileiros enfrentam no rompimento
e/ou na reorganização para uma educação com identidade nacional, razão que talvez
explique, porque as reformas dos anos 90 ainda não alcançaram o sucesso pretendido
pelos organismos internacionais em sua totalidade.
REFERÊNCIAS
BARROS, Roque Spencer M. Diretrizes e Bases da Educação Nacional. São Paulo: Livraria
Pioneira, 1960.
FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Instrução Elementar. In: LOPES, Eliana Marta Teixeira, FARIA
FILHO, Luciano Mendes de, VEIGA, Cynthia Greive. (org.). 500 anos de educação no Brasil. 5ªed.
Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p.135-149.
FERNANDEZ ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: a educação e trabalho no capitalismo.
Trad. Tomaz T. da Silva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.
HAMILTON, David. Notas de Lugar Nenhum: sobre os primórdios da escolarização moderna.
Tradução de Luiz Ramires. Revista Brasileira de educação. Nº 1, jan. /jun. 2001.
HORTA, José Silvério Baia. O hino, o sermão e a ordem do dia: regime autoritário e a educação no
Brasil (1930-1945). 2ª ed. rev., Campinas, SP. 2012.
NÓVOA, Antônio. Do Mestre-Escola ao professor do Ensino Primário: subsídios para a história
da profissão docente em Portugal. (Séculos XIX-XX), Lisboa: Ed. ISEF – Centro de Documentação e
Informação Cruz Quebrada, 1986.
OLIVEIRA, Dalila A. Educação Básica: gestão do trabalho e da pobreza. Petrópolis, RJ; Vozes,
2000.
__________________; DUARTE, Adriana. Política como política social: uma nova regulação da
pobreza. Perspectiva. Florianópolis: vol. 23, n. 02, P. 279-301. Jul. /dez. 2005.
Argumentação e Linguagem Capítulo 22 276
PAIVA, José Maria. Educação Jesuíta no Brasil Colonial. In: LOPES, Eliana Marta Teixeira, FARIA
FILHO, Luciano Mendes de, VEIGA, Cynthia Greive. (org.). 500 anos de educação no Brasil. 5ªed.
Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p.43-59.
PALMA FILHO João Cardoso (org.). A Educação Brasileira no período de 1930 a 1960: A Era Vargas.
In Pedagogia Cidadã. Cadernos de Formação. História da Educação. 3ª Ed. São Paulo: PROGRAD/
UNESP – Santa Clara Editora, 2005.
RIBEIRO, Darcy. O povo Brasileiro, Companhia das Letras, São Paulo, 1997.
SOUZA, Rosa Fátima de. História da organização do trabalho escolar e do currículo no Século
XX (ensino primário e secundário no Brasil). São Paulo, Cortez, 2008.
VINCENT, Guy; LAHIRE Bernard; THIN Daniel. Sobre a história e a teoria da forma escolar.
Educação em Revista, Belo Horizonte, nº 33, jun./2001.
UNESCO. Padrões de competência em TIC para professores – Módulos de Padrão de
Competências. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
2009. Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001562/156210por.pdf. Acesso
25.07.2016.
XAVIER, Libânea N. O Brasil como laboratório – educação e ciências sociais no projeto do centro
brasileiro de pesquisas educacionais. Bragança Paulista: IFAN/CDAPH/EDUSF, 1999.
Argumentação e Linguagem 277Sobre a Organizadora
SOBRE A ORGANIZADORA
SOLANGE APARECIDA DE SOUZA MONTEIRO Mestra em Processos de Ensino, Gestão e
Inovação pela Universidade de Araraquara - UNIARA (2018). Possui graduação em Pedagogia
pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras Urubupunga (1989). Possui Especialização
em Metodologia do Ensino pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras Urubupunga
(1992). Trabalha como pedagoga do Instituto Federal de São Paulo campus São Carlos(IFSP/
Câmpus Araraquara-SP). Participa dos núcleos: -Núcleo de Gêneros e Sexualidade do
IFSP (NUGS); -Núcleo de Apoio ás Pessoas com Necessidades Educacionais Específicas
(NAPNE). Desenvolve sua pesquisa acadêmica na área de Educação, Sexualidade e em
História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena e/ou Relações Étnico-raci Endereço para
acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/5670805010201977
Argumentação e Linguagem 278Índice Remissivo
ÍNDICE REMISSIVO
A
Análise linguística 85, 100, 102
Argumentação 2, 24, 33, 34, 135, 136
Atos de Fala 66, 68, 76
C
Contemporâneo 42, 53
D
Ditadura Militar 1, 5, 7, 10, 11, 55, 56, 57, 59, 63, 65, 104
E
Educação Brasileira 2, 268, 276
Escrita 85, 156
G
Gênero 35, 205, 248
L
Leitura 5, 30, 66, 84, 85, 100, 101, 263
Leitura na escola 66
Letramento literário 24, 33, 34
Linguagem 2, 13, 33, 36, 50, 53, 101, 102, 146, 157, 193, 198, 260
Literatura 1, 3, 4, 5, 6, 8, 10, 11, 12, 33, 34, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 62, 64, 65, 84,
114, 130, 131, 174, 191, 198, 204, 210, 248, 259
M
Masculinidade 248
O
Oralidade 85
P
Pedagogia de Multiletramentos 8, 175, 176, 180, 181, 182
Argumentação e Linguagem 279Índice Remissivo
R
Retórica 24, 31, 33, 269
Romance épico 114
Romance histórico 114
S
Sociedade 13, 33, 53, 187, 211, 247, 248, 259
T
Textos instrucionais 66
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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  • 4.     Profª Drª Natiéli Piovesan – Instituto Federal do Rio Grande do Norte Profª Drª Raissa Rachel Salustriano da Silva Matos – Universidade Federal do Maranhão Profª Drª Vanessa Lima Gonçalves – Universidade Estadual de Ponta Grossa Profª Drª Vanessa Bordin Viera – Universidade Federal de Campina Grande Ciências Exatas e da Terra e Engenharias Prof. Dr. Adélio Alcino Sampaio Castro Machado – Universidade do Porto Prof. Dr. Eloi Rufato Junior – Universidade Tecnológica Federal do Paraná Prof. Dr. Fabrício Menezes Ramos – Instituto Federal do Pará Profª Drª Natiéli Piovesan – Instituto Federal do Rio Grande do Norte Prof. Dr. Takeshy Tachizawa – Faculdade de Campo Limpo Paulista Conselho Técnico Científico Prof. Msc. Abrãao Carvalho Nogueira – Universidade Federal do Espírito Santo Prof. Dr. Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos – Ordem dos Advogados do Brasil/Seccional Paraíba Prof. Msc. André Flávio Gonçalves Silva – Universidade Federal do Maranhão Prof.ª Drª Andreza Lopes – Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Acadêmico Prof. Msc. Carlos Antônio dos Santos – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Prof. Msc. Daniel da Silva Miranda – Universidade Federal do Pará Prof. Msc. Eliel Constantino da Silva – Universidade Estadual Paulista Prof.ª Msc. Jaqueline Oliveira Rezende – Universidade Federal de Uberlândia Prof. Msc. Leonardo Tullio – Universidade Estadual de Ponta Grossa Prof.ª Msc. Renata Luciane Polsaque Young Blood – UniSecal Prof. Dr. Welleson Feitosa Gazel – Universidade Paulista Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG) A694 Argumentação e linguagem [recurso eletrônico] / Organizadora Solange Aparecida de Souza Monteiro. – Ponta Grossa, PR: Atena Editora, 2019. Formato: PDF Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-85-7247-530-3 DOI 10.22533/at.ed.303191408 1. Língua portuguesa – Composição e exercícios. 2.Linguística. I.Monteiro, Solange Aparecida de Souza. CDD 469.8 Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422 Atena Editora Ponta Grossa – Paraná - Brasil www.atenaeditora.com.br contato@atenaeditora.com.br 
  • 5. APRESENTAÇÃO Ai Palavras! ... Todo o sentido da vida principia à vossa porta; o mel do amor cristaliza seu perfume em vossa rosa; sois o sonho e sois audácia, calúnia, fúria, derrota… A liberdade das almas, ai! com letras se elabora… E dos venenos humanos sois a mais fina retorta: frágil como o vidro e mais que o são poderosa! Reis, impérios, povos, tempos, pelo vosso impulso rodam… Cecília Meireles ... Porque a verdadeira caverna, aquela que nos proíbe a relação com a realidade, aquela que nos obriga a viver no meio das sombras, é, para mim, a linguagem. Oswald Ducrot. Não há como pensar a argumentação na linguagem sem que se façam referências à retórica clássica, principalmente se o ato de argumentar for entendido como uma forma de gerenciar o discurso, de modo a se obterem resultados efetivos sobre as práticas sociais humanas. É justamente o funcionamento pragmático dos textos/ discursos que nos permitem dizer, hoje, que os mesmos se nos apresentam revestidos de caráter ideológico, somente para citar um dos efeitos das ações das práticas linguísticas sobre as sociais. Nesse sentido, presume-se que a instrumentalidade do discurso argumentativo retrata-se nas formas como os argumentos são apresentados nos textos, de modo a criar um sentido de identidade entre falante/escritor e ouvinte/leitor. As atividades cognitivas da leitura e da compreensão estão inter-relacionadas, ainda que não se tenha como garantia indicativos de entendimento textual, afirmam Löbler e Flôres (2010, p. 181). Flôres e Gabriel (2012) defendem que a leitura pode ser estudada a partir de diferentes perspectivas, sejam elas: com foco no autor, no texto ou no leitor. Abraça- se, então, neste trabalho, a pesquisa sobre a leitura e foco no texto de diferentes formas. Coscarelli (2002, p. 01) afirma que a leitura pode ser vista como um todo sem divisões, uma visão genérica e compactada que dificulta o trabalho do professor em ajudar os alunos em desenvolver o processo de leitura. Segundo a autora: A leitura pode ser dividida em duas grandes partes, uma que lida com a forma linguística e outra que se relaciona com o significado. Essas partes, por sua vez, podem ser ainda subdivididas. O processamento da forma, também tratado como decodificação, será aqui subdividido em processamentolexicaleprocessamentosintático.Fazpartedaatividadeleitoraapresentar sentidos para a informação ali exposta, buscando a reflexão, os questionamentos e os possíveis diálogos entre ela e o leitor. Para tal, essa prática envolve o aspecto de reconhecer o código linguístico, assim como depreender os sentidos que esse código desenvolve a partir das relações semânticas, Löbler e Flôres (2010, p. 188). O leitor tem a função de decodificar o texto e identificar as pistas que o autor vai deixando ao longo desse texto, além de formular representações mentais sobre as informações contidas ali, Lôbler e Flôres (2010, 192). Ele suscita hipóteses, realiza inferências, ativa o seu conhecimento prévio, tudo isso objetivando compreendê-lo. Löbler e Flores explicam assim o processo de compreensão: A compreensão da língua escrita é uma atividade complexa e onerosa do ponto de vista cognitivo, pois consiste em relacionar, concomitantemente, o que é lido a conhecimentos preexistentes. Para fazer tal síntese, o cérebro do leitor mobiliza os conhecimentos que já possui, relacionando-os
  • 6. ao processamento em realização, ou seja, fazendo a articulação paralela entre o sabido e o desconhecido, no decorrer da própria leitura. Nesse processo de diálogo com o texto, o leitor tenta identificar as intenções do autor por este ou aquele vocabulário, as intenções de formalidades ou informalidades, ou ainda, identificar quem está falando naquele texto. Ducrot (1990, p.15) defende que o enunciado é polifônico e que, portanto, existem algumas pessoas envolvidas em sua existência. Dentre elas, declara a existência do locutor, sujeito discursivo responsável discurso, e enunciadores, responsáveis pelos pontos de vista ao longo do discurso. O enunciado, assim como o discurso, é único e sempre terá um autor, denominado sujeito empírico, Ducrot (1990) Os jornalistas, por exemplo, ao noticiarem ou reportarem determinada informação, fazem-na através das argumentações, que são entendidas por Ducrot como uma sequência de dois segmentos que compõem um discurso relacionados por um conector. Argumentar é apresentar um ponto de vista. Entretanto, cabe ao leitor, durante a atividade leitora, apreender os diferentes sentidos que vão sendo desenvolvidos ao longo do discurso destes profissionais. Acredita-se que, ao se analisar as palavras envolvidas nesses discursos jornalísticos, pode-se facilitar a compreensão dos sentidos ali inscritos. Diante disso, apresenta-se, como objetivo geral deste trabalho, a análise do papel que o léxico desempenha (palavras plenas e palavras instrumentais) na construção do sentido dos discursos desdobraram-se em múltiplas linguagens. A construção de sentidos nos diferentes e múltiplos discursos não é realizada da mesma maneira, não segue uma regra que se comportam diferentemente no momento de construção desses sentidos. Um conjunto de considerações pragmático-discursivas constitui o cerne da história da retórica. O retorno à retórica faz sentir que muitas das preocupações atuais dos estudiosos da linguagem, no que concerne à eficácia da palavra, assentam-se em preceitos advindos dos clássicos e dos teóricos contemporâneos da argumentação. Avulta das considerações tecidas um aspecto particular caracterizador do dinamismo da linguagem, que é o lugar ocupado pelos sujeitos que lançam mão de argumentos relativos aos seus objetivos comunicativos e objetos de discurso. Nesse sentido, defrontamo-nos com uma subjetividade enunciativa que extrapola os limites de uma consciência empírica do sujeito. Pela enunciação que o constitui, ele mobiliza um ou mais coenunciadores, fazendo-os aderir ou refutar o universo de significações ou sentidos atribuídos histórica e culturalmente aos objetos de predicação. O enunciador é, para mim, o grande tecelão do mundo representado nos eventos comunicativos de que participa.Nessesentidoéquecabenosestudos daargumentação, ou da construção argumentativa dos textos, aproximar teorias de textos e discursos das teorias sociológicas, assumindo, portanto, um posicionamento multidisciplinar perante a investigação dos fenômenos linguísticos.
  • 7. SUMÁRIO SUMÁRIO CAPÍTULO 1.................................................................................................................1 A LITERATURA SOBRE O SEXO E A SEXUALIDADE NO BRASIL NO PERIODO DA DITADURA MILITAR Solange Aparecida de Souza Monteiro Paulo Rennes Marçal Ribeiro DOI 10.22533/at.ed.3031914081 CAPÍTULO 2...............................................................................................................13 A FALA DE ULYSSES GUIMARÃES NA PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: UMA ANÁLISE BAKHTINIANA Tayson Ribeiro Teles DOI 10.22533/at.ed.3031914082 CAPÍTULO 3...............................................................................................................24 A ARGUMENTAÇÃO E A RETÓRICA NO SERMÃO DA SEXAGÉSIMA, DE PADRE ANTÔNIO VIEIRA: UMA ABORDAGEM PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO Gabriela Lages Veloso Letícia Rodrigues da Silva DOI 10.22533/at.ed.3031914083 CAPÍTULO 4...............................................................................................................35 ARQUITETURA DA ARTE DE CONTAR: A NATUREZA SOCIOLÓGICA E A COMUNICAÇÃO ESTÉTICA NO CONTO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Márcia Adriana Dias Kraemer Alba Maria Perfeito DOI 10.22533/at.ed.3031914084 CAPÍTULO 5...............................................................................................................55 COMO TRABALHAR A LITERATURA SOB REGIMES AUTORITÁRIOS EM SALA DE AULA Cícera Tayana Francelino Fernandes DOI 10.22533/at.ed.3031914085 CAPÍTULO 6...............................................................................................................66 A INTENCIONALIDADE MARCADA NOS TEXTOS INSTRUCIONAIS: O QUE HÁ DE NOVO NISSO? Hilma Ribeiro de Mendonça Ferreira Silvia Adélia Henrique Guimarães DOI 10.22533/at.ed.3031914086 CAPÍTULO 7...............................................................................................................85 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS NO ENSINO DE PORTUGUÊS Maria Auxiliadora Bezerra DOI 10.22533/at.ed.3031914087 CAPÍTULO 8.............................................................................................................103 IGREJA” E “SENHOR”: A CRÍTICA À RELIGIÃO NAS LETRAS DE MÚSICA DA BANDA TITÃS À LUZ DAS REFLEXÕES BAKHTINIANAS Claudia de Fátima Oliveira Camila de Araújo Beraldo Ludovice DOI 10.22533/at.ed.3031914088
  • 8. SUMÁRIO CAPÍTULO 9............................................................................................................. 114 FICÇÃO E MEMÓRIA EM SIMÁ: ROMANCE HISTÓRICO DO ALTO AMAZONAS, DE LOURENÇO DA SILVA ARAÚJO Daniel Padilha Pacheco da Costa DOI 10.22533/at.ed.3031914089 CAPÍTULO 10...........................................................................................................133 PRESENÇA E USO DOS MARCADORES DISCURSIVOS EM ESTUDANTES BRASILEIROS DE ESPANHOL COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA Cristina Corral Esteve DOI 10.22533/at.ed.30319140810 CAPÍTULO 11...........................................................................................................146 VARIAÇÃO FONÉTICA NO POVOADO ONÇA DO MARANHÃO: ANÁLISE DOS FENÔMENOS DE REDUÇÃO DO DITONGO “OU” EM “O” E REDUÇÃO DO DITONGO “EI” EM “E”. Shayra Brunna Silva Marques Ana Claudia Menezes Araujo DOI 10.22533/at.ed.30319140811 CAPÍTULO 12...........................................................................................................157 PLE + ELO: UMA EXPERIÊNCIA VIRTUAL NO ENSINO DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA NA UFLA Débora Racy Soares DOI 10.22533/at.ed.30319140812 CAPÍTULO 13...........................................................................................................164 MOBILED-ASSISTED LANGUAGE LEARNING: QUESTÕES ACERCA DO USO DE SMARTPHONES EM SALA DE AULA DE LÍNGUA INGLESA Luana de França Perondi Khatchadourian DOI 10.22533/at.ed.30319140813 CAPÍTULO 14...........................................................................................................175 MATERIAL DIDÁTICO PARA O ENSINO DE INGLÊS: UMA PROPOSTA POR MEIO DA PEDAGOGIA DE MULTILETRAMENTOS Patrícia Helena da Silva Costa DOI 10.22533/at.ed.30319140814 CAPÍTULO 15...........................................................................................................189 ORIGENS E FRONTEIRAS DO COSMOS: O PODER DA PALAVRA Márcio Moreira Costa DOI 10.22533/at.ed.30319140815 CAPÍTULO 16...........................................................................................................199 MULTILETRAMENTOS NA FORMAÇÃO INICIAL DOCENTE: APROXIMAÇÕES ENTRE REFLEXÃO E AÇÃO Maria de Lourdes Rossi Remenche Ana Paula Pinheiro da Silveira DOI 10.22533/at.ed.30319140816
  • 9. SUMÁRIO CAPÍTULO 17........................................................................................................... 211 O MÉTODO FÔNICO E A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO Alice Santos Pimentel Nunes Terezinha de Jesus Dias Pacheco DOI 10.22533/at.ed.30319140817 CAPÍTULO 18...........................................................................................................223 NARRATIVAS COERENTES E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE EM GRUPOS VULNERÁVEIS Dóris Cristina Gedrat André Guirland Vieira Gehysa Guimarães Alves Cláudio Schubert DOI 10.22533/at.ed.30319140818 CAPÍTULO 19...........................................................................................................235 BEM-ME-QUERO, BEM-TE-QUERO: UM PROJETO DE PSICOLOGIA EDUCACIONAL SOBRE CORPOREIDADE E GESTÃO DO CUIDADO Roselaine Vieira Sônego Allan Henrique Gomes DOI 10.22533/at.ed.30319140819 CAPÍTULO 20...........................................................................................................248 MASCULINIDADE NA LITERATURA: UMA HISTÓRIA HERDADA SOCIALMENTE Francisco Heitor Pimenta Patrício Cícero Hériclis Ângelo Pereira Josilene Marcelino Ferreira DOI 10.22533/at.ed.30319140820 CAPÍTULO 21...........................................................................................................260 ENSINANDO PLE NA UFLA ATRAVÉS DO AVA - AVANÇAR Débora Racy Soares DOI 10.22533/at.ed.30319140821 CAPÍTULO 22...........................................................................................................267 MARCAS DOS PAISES IMPERIALISTAS NA CONSTITUIÇÃO E REORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA Rosa Maria Silva Braga Lucia Torres de Oliveira DOI 10.22533/at.ed.30319140822 SOBRE A ORGANIZADORA....................................................................................277 ÍNDICE REMISSIVO.................................................................................................278
  • 10. Capítulo 1 1Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 1 A LITERATURA SOBRE O SEXO E A SEXUALIDADE NO BRASIL NO PERIODO DA DITADURA MILITAR Solange Aparecida de Souza Monteiro Paulo Rennes Marçal Ribeiro Poderia dizer que a vida é bela, e muito, que a revolução caminha com pés de flor... mas não. O poeta mente. A vida nós amassamos em sangue e samba enquanto gira inteira a noite sobre a pátria desigual. (Ferreira Gullar) PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Sexo. Sexualidade. Ditadura Militar. No Brasil, a educação sexual – bem como suas práticas contemporâneas – sempre foi tratada como a deflagradora de uma série de mudanças radicais. Por isso, para compreendê- la na atualidade, os historiadores consideram o período iniciado em 1964 como um marco para a disciplina, sobretudo a repressão advinda do golpe militar ocorrido neste ano. É importante ressaltar o fundamentalismo pós-2012, que culminou na eleição de Jair Bolsonaro em 2018, com formação militar, e por isso é válido resgatar o período proposto como uma valiosa fonte de conhecimento de nossos traços identitários, culturais e hodiernos, mesmo que a tarefa seja proposta por aqueles que não atuaram em tal contexto, como é o caso de minha geração, que nasceu em meio a esse processo e “aprendeu”, nas décadas de 70 e na primeira metade da década seguinte, a negar o passado recente, a silenciar/apagar as torturas, as reivindicações, as movimentações inflamadas e engajadas dos que esperavam “a volta do irmão do Henfil”. Foi na década de 1960 que as transformações sociais e culturais, advindas das lutas de grupos que buscavam sua autoafirmação na trama social, como negros e mulheres, começaram a ter visibilidade e, consequentemente, passaram a ter mais espaço na academia. A sexualidade se tornou visível a partir de fins da década de 1970, capitalizada e apropriada por vários meios de comunicação de massa, sobretudo a televisão. A criação dos anticoncepcionais consegue separar a procriação do prazer sexual, com isso, enfim, este poderia ser vivido com toda a liberdade. Essa nova liberdade sexual e seu novo foco, ainda assim, vem acompanhada de uma mentalidade individualista, hedonista, em um mundo marcado pela ideologia neoliberal. A apropriação dessa nova visão do sexual também chega ao mercado e ao marketing, marcando o início de uma nova era em que a publicidade começa a notar que mercadorias associadas ao sexo vendiam melhor. Com isso
  • 11. Argumentação e Linguagem Capítulo 1 2 surge toda uma indústria, muito além do mercado pornográfico e o mercado sexual propriamente dito (prostituição, tráfico de mulheres, prostituição infantil, etc.), que trouxe consigo uma nova imagem de produtos e uma nova forma de marketing, a propaganda oriunda desse processo se torna um mediador fundamental entre cultura e economia. Nos anos 80 surgem novas expectativas para que as discussões sobre as diferenças entre homens e mulheres e as atribuições de gênero se ampliem. À medida que movimento feminista conquista algumas de suas reivindicações e sua visibilidade e atuação se tornam mais evidentemente públicas, ele busca algo além de apenas a igualdade de direitos entre homens e mulheres, também ampliando o debate para a necessidade de se conquistar e/ou preservar o direito às diferenças, contribuindo para novos desenvolvimentos no cenário da cultura moderna. Os pioneiros sexólogos trazem do período entre guerras um princípio de formação de mentalidade favorável à educação sexual, o que possibilitaria as primeiras experiências efetivas da implantação da educação sexual nas escolas brasileiras na década de 1960. Em 1968, a revista Veja traz um artigo que mostra a presença do tema, intitulado “Sexo na sala de aula”: o artigo discorre sobre se deve-se estabelecer um discurso sobre sexo com o aluno.Ainda assim, as divisões políticas da época viriam a marcar com duras barreiras o desenvolvimento de projetos que regulamentassem a obrigatoriedade do ensino de educação sexual nas salas de aula. Isso é exemplificado pelo esforço empreendido pelo padre Arruda Câmara, apoiado por seu partido, o ARENA, para barrar o projeto de lei da deputada do MDB, Júlia Steinbruch, que tratava dessa obrigatoriedade. Congressos Nacionais sobre Educação Sexual nas escolas de iniciativa privada ocorreram entre 1978 e 1979. O risco de infecção pelo HIV e o aumento nos casos de gravidez não planejada em adolescente fazem com que debates sobre a inclusão da orientação sexual no currículo das escolas se intensifiquem (BRASIL, 2001), chegando, no ano de 1983, ao 1º Encontro Nacional de Sexologia, organizado pela Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, que tinha o objetivo de debater o controle preventivo de Doenças Sexualmente Transmissíveis e a gravidez indesejada entre adolescentes e jovens (GUIMARÃES, 1995). Um retrocesso nesta caminhada, que obteve sucesso em implantar alguns programas de educação sexual em cidades importantes do país na década de 1960, vem com o Golpe de Estado de 1964, cujo governo, quatro anos depois, baixou o Ato Institucional nº 5, que suspendeu várias garantias constitucionais, inclusive fechando o Congresso Nacional por quase um ano. A educação sexual não é bem vista pela moral conservadora. De acordo com César (2009), somente a partir dos anos finais da década de 70 e dos anos 80, com a reabertura política, abre-se novamente o espaço para a discussão da sexualidade e da Educação Sexual. Portanto, na maior parte das décadas de 60/70, período de constituição e desenvolvimento do Projeto da Educação Moral e Cívica na Educação Brasileira, os
  • 12. Argumentação e Linguagem Capítulo 1 3 militares estão no comando dos rumos do país, e a igreja católica detém o domínio do sistema educacional, atuando como ideologia dominante junto ao discurso jurídico, o que resultou em severa repressão à Educação Sexual neste período. Apesar disso, alguns livros referentes à sexualidade foram publicados, mas todos com o intuito de responder questões relacionadas à sexualidade em seu caráter biológico e produtivista. O processo de implantação oficial da educação sexual nas escolas brasileiras sofreu muita repressão, legal e ideológica. No período, em conexão com movimentos sociais de minorias, escolas do Rio de Janeiro e Belo Horizonte organizaram programas de educação sexual. Segundo Guimarães (1995), em São Paulo, tentativas de se incorporar a educação sexual aos currículos de algumas escolas públicas deram origem a um projeto com intuito de prevenção e informação, que foi implantado em algumas instituições escolares. Com isso, os elementos das conquistas dos movimentos e lutas do período – a pílula, escolher ou não casar, ter ou não filhos, trabalhar fora, etc. – que chegaram a público podem ter sido apresentados de maneira deturpada ou ainda ofuscados por discursos que eram, e ainda são, muito controversos: o divórcio e o aborto. Tais questões, na verdade, mais contribuíam para desviar o foco político e social do movimento que, aos poucos e com dificuldade, vinha ganhando maior força ao longo dos anos 70. Esse desfoque contribuiu para uma incorporação do mundo masculino ao feminino de forma deturpada: a noção de igualdade trazida pelos ideais liberais consistia em ignorar diferenças de gênero, ou a negá-las completamente. Já na última década do século XX, a mídia começa a dar cada vez mais destaque ao comportamento sexual, e com isso surgem várias obras que tem a sexualidade como objeto de investigação (HITE, 1978, 1983; GOLDBERG, 1981; CHAUÍ, 1982; SUPLICY, 1983; MURARO, 1983; RIBEIRO, 1990; GUIMARÃES, 1995). Por um lado, atitudes e comportamentos sexuais se tornam mais flexíveis; por outro, o discurso de contensão e repressão, arraigado na sociedade desde o século XIX, contesta essas liberdades sexuais emergentes. Com relação à historicidade das construções discursivas em torno da sexualidade das novas gerações, corrobora-se com a ideia de que no olhar sobre a história, o importante é perceber que existe uma relação direta entre a forma como certa identidade e certo sujeito são representados e o movimento cultural, social e político da construção dos saberes de sua(s) representação(ões). Todo saber é construção (FURLANI, 2008, p. 308). ALiteratura Brasileira é muito discutida nas escolas, vista e analisada apenas pelo lado das escolas e períodos literários. Porém poucas pessoas sabem da importância e contribuições que ela teve no período da Ditadura. Assim, pretendemos mostrar, além da sua forte relevância no período histórico, como os professores podem incluir na disciplina de História dentro da sala de aula, diante desse contexto. Além disso, é importante considerar que a educação sexual formal é sempre instituída ou autorizada pelos poderes públicos. A História desta educação mostra que
  • 13. Argumentação e Linguagem Capítulo 1 4 ela foi reclamada, proibida ou implantada em várias épocas diferentes de diferentes sociedades, visando a resolver problemas, de certa forma, alheios aos interesses e necessidades da criança e do jovem. Mesmo em nossos dias, ela é muitas vezes aceita como um “mal necessário”, e não se deve esquecer que ela pode ser até antissexual e servir como álibi para reprimir os comportamentos que certos grupos políticos, sociais e religiosos condenam. Para Werebe (1998, p. 204), não se pode, nos debate com os jovens em geral, escamotear a verdade, a realidade dos fatos e os fatores que explicam os diferentes aspectos afetivos da sexualidade; em particular amor e noção de prazer sexual devem ocupar um lugar importante na educação sexual das crianças e jovens. A Educação Sexual foi proposta para resolver vários problemas ligados, direta ou indiretamente, à sexualidade. Ao contrário do que os discursos conservadores pregam, esta disciplina não seria uma iniciação ao ato sexual, mas sim uma necessidade, tanto de jovens quanto de crianças estudarem, observarem e entenderem este processo de construção acerca da sua própria sexualidade, assim como a do outro. Observa- se que, no período ditatorial, não existia educação sexual como disciplina escolar obrigatória e pouco faziam os pais e mães a esse respeito, dentro dos lares. Essa carência de informações foi refletida em maneiras de agir e discursos retrógrados, que resultaram na presença de constantes violências e abusos sexuais. Sendo assim minhas pesquisas, leituras e interesse na temática se justifica pela necessidade educacional de provar/demonstrar o quanto é importante tratar da tensão entre as relações políticas e as movimentações sociais, para que existam possibilidades reais de transformações na realidade brasileira de ensino. Além disso, também é relevante tratar da forma como a disciplina ainda é vista nos dias atuais, trazendo consigo uma parte do discurso que era debatido nos anos de 1964-1985, não demonstrando de fato uma evolução na forma como é vista ou tratada. E ainda refletir como os impactos da ditadura sobre a cultura brasileira, especialmente a cultura de ensino, tais como a memória das práticas socioculturais de resistência à ditadura, como legado da nação brasileira e as formas de organização coletiva como criação de espaços humanizadores. A LITERATURA SOB A LENTE PEDAGÓGICA Freire (2005) aborda que seja formar um leitor crítico. A criticidade está na percepção do educando e sobre como este observa, interpreta e age sobre o contexto social em que se insere. Freire afirma, “O ato de ler não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas se antecipa e se alonga na inteligência do mundo Pode-se observar que logo de início, que a Literatura dentro de uma lente mais pedagógica é trabalhada de diversos modos quando comparamos a escola pública e
  • 14. Argumentação e Linguagem Capítulo 1 5 privada. Na maior parte das escolas particulares a literatura é vista de forma separada, o seu enfoque está incluído nas disciplinas de Português e redação. No entanto, em algumas escolas públicas ela nem é valorizada, vista de forma muito superficial e especificamente no ensino médio. Os referenciais teóricos presentes na obra do linguista russo Michael Bakhtin (2003) mostram que todos os campos das atividades desenvolvidas pelo ser humano estão ligados ao uso da linguagem e que esse uso é tão variado quanto os campos da atividade humana. Para Zilberman, colocar livros nas mãos das camadas populares significa quebrar a tradição das camadas burguesas em permanecer no poder por séculos. Leitura é conhecimento, para além de informar, coloca o sujeito frente a novas perspectivas e realiza o processo de empoderamento social tão sonhado como concretização de uma escola pública de qualidade. A SITUAÇÃO DA LITERATURA NO PERÍODO DA DITADURA MILITAR A Literatura passou por uma sucessão de censuras, por ser um instrumento de denúncias sobre a situação que o Brasil estava presenciando. Além das poesias e canções, abarcou todo o espaço da imprensa, como a televisão, teatro e cinema. Eram destacados os principais autores para assim, manifestar-se mostrando o quadro dos acontecimentos. Ocorreram vários níveis de expressão artística para assim, existir um controle sendo trabalhada até com a Literatura infantil. A Ditadura Militar Brasileira ocorreu entre os anos de 1964 e 1985. Várias obras foram rejeitadas pelo estado. Um dos primeiros atos durante esse processo foi proibir as pessoas de expressarem sua opinião e o fechamento da editorial Vitória (editora brasileira ligada ao Partido Comunista Brasileiro, especializada em literatura marxista). Tudo isso fazia parte de um ‘jogo’ para mantê-los no comando. Em 1970 foi decretada uma lei que impedia essa liberdade (lei decreto n.1077/70), tratava-se de censurar livros, revistas para que o povo não tivesse acesso aos mesmos. Stephanou relata muito bem como eram feitas as apreensões. “As ações confiscatórias ocorriam de forma primária, improvisadas, efetuadas por pessoas mal treinadas” (STEPHANOU, 2001, p.215). OS PRINCIPAIS AUTORES QUE PARTICIPARAM DO PERÍODO DITATORIAL O Brasil vivenciou duas décadas de repreensão. Dentro desse acontecimento Histórico podemos destacar alguns autores, que representaram de maneira singular as manifestações artísticas desse período. Foram muitos, na qual podem ser apresentados alguns autores principais que utilizaram a liberdade de expressão para superar a censura. Através dos romances foram descobertos os ataques que ocorriam,
  • 15. Argumentação e Linguagem Capítulo 1 6 sendo muito doloroso para a família das vítimas, que tomavam conhecimento por meio de livros. A Literatura infantil foi o principal alvo dos escritores, por não ser supervisionada pelos generais. A escritora Ana Maria Machado consegue mostrar através de sua narrativa, os acontecimentos da época. Nas suas obras estão: “Tropical Sol da Liberdade”, e as infantis, “Bento-que-Bento-é-o-Frade”, “Era Uma Vez Um Tirano”, e “Raul Ferrugem Azul”. De acordo com Zilberman (1991, p.127) Em Ana Maria Machado, a proposta explicita de uma história de fadas invertida, onde o príncipe casa com a pastora e a princesa vai cuidar de sua vida, pode ser considerado o emblemado que pretende essa narrativa infantil moderna. Além da escritora Ana Maria Machado, há outros autores, como: Nelson Rodrigues, Caio Prado Junior, Rubem Fonseca, Cassandra Rios, entre outros, que buscaram mostrar através de Literatura os fatos ocorridos no país, exatamente no regime ditatorial por meio de romances. De acordo com Dalcastagnè (1996, p.130). “É o romance que mais se preocupa em contar detalhes do período, fornecendo informações [...] sobre o comportamento da classe média sobre a situação das entidades estudantis do clero, dos jornalistas”. Porém, Ana Maria Machado em uma entrevista realizada no programa “entrelinhas”, revelou sua verdadeira intenção quando escreveu “Tropical Sol da Liberdade”. Ela relata: Não era uma decisão prévia, não era uma história política, não havia um projeto ideológico. Quis falar da amendoeira, das formigas, do mar, da onda batendo. Aí começam as lembranças da casa e aí entra tudo. Acho que o ser humano, vivendo na sociedade, é político. Como eu vivi um momento de ditadura havia uma preeminência de se falar em liberdade. (MACHADO, 2010,). Contudo, ela não teve a intenção de sua obra ser interpretada de tal maneira. Porém o público analisou de maneira ‘errônea’, como se a mesma fosse voltada para a época em questão. Cândido ainda manifesta sua opinião acerca do assunto. [...] a posição do escritor depende do conceito social que os grupos elaboram em relação a ele, e não corresponde necessariamente ao seu próprio [...] se a obra é mediadora entre o autor entre o autor e o público, este é mediador entre o autor e a obra na medida em que o autor só adquire plena consciência da obra quando ela lhe é mostrada através da reação de terceiros. Isto quer dizer que o público é condição do autor conhecer a si próprio, pois esta revelação da obra é a sua revelação. Tanto a posição de Ana Maria Machado quanto à de Antônio Cândido estão se referindo ao fato de o autor não ter controle total no entendimento a respeito de sua obra, pois quando os leitores entram em contato com a mesma formará sua opinião, sendo escolhido o que é mais propicio para o momento. É exposto também, que a partir dessa condição que o leitor tem será revelado o conhecimento acerca do autor.
  • 16. Argumentação e Linguagem Capítulo 1 7 A CAMPEÃ DOS VETOS Falecida em 2002, Cassandra Rios é a escritora mais censurada do Brasil. Em 1976, ela teve 33 de seus 36 livros proibidos pela ditadura. Os censores alegavam “temas atentatórios à moralidade pública” para vetar livros apimentados, como O Prazer de Pecar. Homossexual, Cassandra chegou a ser condenada à prisão. Reimão (2009) aponta que a censura a livros durante a Ditadura Militar teve uma atuação mais forte não nos chamados Anos de Chumbro (1968-1972), mas sim durante o Governo Geisel (março de 1974 a março de 1979), e especialmente no final desse governo. Sendo que o Governo Geisel, apesar dos momentos de retrocessos, foi aquele em que se iniciou o processo de abertura política lenta e gradativa. A censura a livros por parte do Departamento de Censura de Diversões Públicas foi maior quando a maioria dos jornais e revistas estava sendo liberada da presença da censura prévia nas redações. Para Paulo Netto, (2005, p. 50-51) a ditadura civil-militar necessitava assim da edificação de um consenso propício para a manutenção da ordem capitalista, embora mantivesse o controle policial militar pronto para assegurar a ordem pela força. Dessa forma, a política cultural da ditadura, na sua implementação diferenciada ao longo do desenvolvimento do processo autocrático burguês, realizou-se a partir de um duplo e simultâneo movimento, o de repressão e o de transformação; pois ao mesmo tempo que buscou uma orientação que reprimisse as tendências culturais de fundo crítico ou que se direcionavam para a perspectiva nacional-popular procurou também investir na criação de um bloco cultural coadunável com a sua projeção histórico-social “modernizadora”, ou seja, objetivou induzir e promover a emergência de vertentes culturais funcionais ao seu projeto “modernizador”, que lhe assegurassem tanto uma efetiva legitimação ideal quanto a ausência de contestação concreta. Dessa forma, podemos dizer que a política cultural do regime ditatorial teria de conduzir duas frentes: reprimir as vertentes da intelectualidade ligada ao povo, a produção cultural comprometida com a conscientização das parcelas da população menos favorecidas economicamente, principalmente o operariado urbano e os camponeses; e induzir e promover a emergência de tendências culturais funcionais ao projeto ‘modernizador’, além da retomada do conservadorismo e o aprofundamento do individualismo e do consumismo no âmbito da cultura. De acordo com Paulo Netto (2015), da mesma forma que não podemos compreender o golpe de 1964 sem relacioná-lo ao panorama mundial que o contextualiza, não podemos compreender a contestação de que o regime ditatorial foi alvo, em 1968, sem considerar o que estava ocorrendo fora das fronteiras brasileiras. Nos países capitalistas centrais, em 1968, com o protagonismo primordial de uma juventude universitária, entrecruzaram-se e confluiram, numa intricada explosão contestatória, tendências artísticas, transformações culturais, posturas filosóficas, lutas sociais e posições políticas muito diversas.
  • 17. Argumentação e Linguagem Capítulo 1 8 LIVROS ERÓTICOS/PORNOGRÁFICOS Os romancistas da época, começando a citar uma pessoa que escreveu muito bem a situação do Brasil, o escrito Baiano JorgeAmado, com o livro ‘Capitães deAreia’, ‘O Porto dos Milagres’, e ‘vidas Secas’ de Graciliano Ramos, e romances de Rachel de Queiroz. São obras que ajudam a entender o golpe pré militar. Após o golpe, devemos frisar que houve um cerceamento, sementes de liberdade que chegou à Literatura, que foram queimadas e proibidas de circular sendo suprimidas pelo autoritarismo do governo. De acordo com a pesquisadora Reimão (2009), os livros eróticos/pornográficos nos arquivos do DCDP do Departamento de Censura de Diversões Públicas DCDP encontram-se indicações de 70 livros eróticos/pornográficos de autores brasileiros vetados; o livro de Deonísio da Silva (1989), Nos bastidores da censura, apresenta 69 títulos com esse perfil; comparando-se as duas listagens e excluindo-se as repetições, resulta que cerca de 100 livros eróticos/pornográficos de autor nacional foram censurados no período da ditadura militar. Entre esses, 18 são de autoria de Cassandra Rios; 13, de Adelaide Carraro; 22 são assinados como Dr. G. Pop; 17, como Brigitte Bijou; e seis, como Márcia Fagundes Varella. Adelaide Carraro e Cassandra Rios foram, nos anos 1960 e 1970, campeãs de vendagem. Seus livros, considerados eróticos ou francamente pornográficos, eram lidos às escondidas por adolescentes e adultos. Eram livros “fortes” que misturavam política, “negociatas” e sexo, muito sexo. E como tais eram lidos. Os livros de Adelaide Carraro proibidos pela censura foram: Carniça; O castrado; O Comitê; De prostituta a primeira dama; Escuridão; Falência das elites; Os padres também amam; Podridão; Sexo em troca de fama;Submundo da sociedade; A verdadeira história de um assassino; Mulher livre e Os amantes. Os livros de Cassandra Rios censurados foram: A borboleta branca; Breve história de Fábia; Copacabana Posto Seis; Georgette; Maçaria; Marcella; Uma mulher diferente; Nicoleta Ninfeta; A sarjeta; As serpentes e a flor; Tara;Tessa, a gata; As traças; Veneno; Volúpia do pecado; A paranoia; O prazer de pecar e Tentação sexual. Os livros de G. Pop, Brigitte Bijou e Márcia Fagundes Varella censurados ostentavam títulos como: Astúcia sexual; Cidinha a insaciável; Graziela amava e ...matava; Clube dos prazeres; O padre fogoso de Boulange ou Noviça erótica. Não nos esqueçamos de que parte dos militares via a sexualidade podendo ser utilizada como ferramenta do “expansionismo comunista”. Exemplos dessa postura foram coletados por Paolo Marconi (1980) em Acensura política na imprensa brasileira; citemos um, nas palavras do tenente-coronel Carlos de Oliveira: O sexo é um instrumento usado pelos psicopolíticos para perverter e alienar a personalidade dos indivíduos, partem para o descrédito das famílias, dos governos, e passam à degradação da nação, bem como intensificam a divulgação da literatura
  • 18. Argumentação e Linguagem Capítulo 1 9 erótica e da promiscuidade sexual. Há quem diga que eu dormi de touca Que eu perdi a boca, que eu fugi da briga Que eu caí do galho e que não vi saída Que eu morri de medo quando o pau quebrou Há quem diga que eu não sei de nada Que eu não sou de nada e não peço desculpas Que eu não tenho culpa, mas que eu dei bobeira E que Durango Kid quase me pegou Eu quero é botar meu bloco na rua Brincar, botar pra gemer Eu quero é botar meu bloco na rua Gingar, pra dar e vender Eu, por mim, queria isso e aquilo Um quilo mais daquilo, um grilo menos disso É disso que eu preciso ou não é nada disso Eu quero é todo mundo nesse carnaval Eu quero é botar meu bloco na rua Brincar, botar pra gemer Eu quero é botar meu bloco na rua Gingar, pra dar e vender Ainda quando era professora, ouvi de um aluno sobre a tão-lida Capitães da Areia. Um aluno do 1º ano do ensino médio me afirmou: “Professora, Capitães da Areia é o melhor livro do Brasil”. Uma outra aluna do 9º ano disse: “eu pensei que ia ser cansativa e chata, mas a leitura está tranquila e me surpreendi. Gostei do capítulo do carrossel”. E outra aluna, ainda, do 9º ano: “ao ler e refletir acabei sentindo na pele do que aconteceu com a Dora, eu não parei de chorar”. Além da escola formal, eis o relato de uma senhora aluna de um projeto, que parecia distante desse trem de literatura: “Esse Capitães da Areia é muito lindo, fala da realidade do povo” – ao que segue um acabamento: “estou lendo em voz alta para o meu marido que não sabe ler”. Se é que o imprevisto faz uma surpresa, talvez não imaginássemos que fossem tantas. A pergunta recorrente é o que há, nesse Capitães da Areia? Dentro de uma obra-prima como esta, o leitor, primeiro, percebe uma linguagem direta e sem tantas embromações, já com intenção de “falar da realidade”: realidade de crianças abandonadas na Bahia de 1937. Jovens com quem o próprio Jorge Amado conviveu por um período em que dormiu no trapiche abandonado para escrever o livro. Com humanidade, com tudo. Capitães da Areia foi queimada em 1937 pelo governo Vargas, por ser considerada de “propaganda comunista”. Lá se vão 80 anos e a obra é condenada aqui emAraraquara. Pois uma professora foi denunciada na Diretoria de Ensino, por uma mãe de aluno alegando que a obra Capitães da Areia continha “pornografia”. Mas Araraquara não deixou por menos:
  • 19. Argumentação e Linguagem Capítulo 1 10 houve protesto na Unesp, houve menção na audiência pública contra o Escola “Sem Partido” que quer punir conteúdos transmitidos há anos. O tema central da obra no início da obra há uma série de reportagens fictícias que explicam a existência de um grupo de menores abandonados e marginalizados que aterrorizam a cidade de Salvador e é conhecido por Capitães da Areia.  A obra Capitães de Areia do autor Jorge Amado, foi caracterizada pela sexualidade das personagens. Qualificada pelo protagonista Pedro Bala que em uma das cenas, estupra uma adolescente nos areais de Salvador. A Ditadura Militar deixou marcas negativas e traumáticas no país. A Literatura, porém, teve sua participação em romances escritos, que de certa forma conseguiu expressar e repassar através de palavras esse regime. A análise que será feita a seguir, foram publicadas entre os anos de 1970 e 1978. O primeiro poema é do escritor Nicolas Behr, chamado “Receita”, publicado em Caroço de goiaba (1978): Ingredientes: 2 conflitos de gerações 4 esperanças perdidas 3 litros de sangue fervido 5 sonhos eróticos 2 canções dos Beatles Modo de preparar: dissolva os sonhos eróticos nos dois litros de sangue fervido e deixe gelar seu coração corte tudo em pedacinhos e repita com as canções dos beatles o mesmo processo usado com os sonhos eróticos mas desta vez deixe ferver um pouco mais e mexa até dissolver parte do sangue pode ser substituído por suco de groselha mas os resultados não serão os mesmos sirva o poema simples ou com ilusões (BEHR, 1978) O poema “Receita” faz uma referência aos impactos causados pela Ditadura para a juventude. Através de uma receita pôde ser mostrado que com a mudança de apenas um ingrediente poderia mudar o rumo dos acontecimentos. No primeiro verso, é feita uma análise, fechada somente para o contexto dos acontecimentos recentes, e em todo o poema relata marcas de autoritarismo. Contudo, o autor procurou mostrar
  • 20. Argumentação e Linguagem Capítulo 1 11 como uma geração inteira foi atingida, trazendo no último verso as maneiras que leitor pode interpretá-lo, (“o poema simples”), ou (“ou com ilusões “). Odeio os indiferentes. Creio [...] que “viver é tomar partido”. [...]. Quem vive verdadeiramente não pode deixar de ser cidadão e de tomar partido. Indiferença é abulia, é parasitismo, é covardia, não é vida. Por isso odeio os indiferentes. A indiferença é peso morto da história. [...]. A indiferença atua poderosamente na história. Atua passivamente, mas atua. [...]. Odeio os indiferentes também porque me dão tédio suas lamúrias de eternos inocentes. [...]. Vivo, tomo partido. Por isso, odeio quem não se compromete, odeio os indiferentes. (GRAMSCI, 1982, pp. 84- 87). Diante de tudo, afirmamos que o propósito desse trabalho foi de mostrar a relevância da Literatura no período da Ditadura Militar, e como ela pode ajudar o professor quando se olha para lado mais específico do contexto. A partir de várias pesquisas, reencontros com as minhas histórias enquanto professora, conseguimos penetrar no sentimento e sentido da literatura neste período de forte repressão e obscurantismo político, ético e cultural. Concluir que esse assunto não é algo novo, e é muito mais importante do que se pensa. Vendo pelo lado pedagógico, nem todos os professores enxergam e utilizam a literatura como desvelamento de um passado forte que por meio do sofrimento e a dor, incidem marcas ainda tão presente por todos os lugares perpassando todos os meios, ou seja familiar, acadêmico, social e cultural. A literatura na formação das novas gerações necessita ser trabalhada na perspectiva contrária à do ajustamento à da sociabilidade da cotidianidade capitalista contemporânea. É preciso fazer da socialização do grande romance a produção da percepção das relações entre a vida individual e o processo histórico de luta pela emancipação humana, tanto no sentido da crítica aleijar e alijar ser humano, como no sentido da atrair possibilidades de superação desse completo esvaziamento. Entrar no universo literário e histórico, buscando na aproximação dos estudantes em meio ao universo tecnológico do século XXI é uma possibilidade que precisa ser considerada. Buscar, ideias, estratégias, exemplos de obras a serem trabalhadas, entre outros elementos, que a maioria dos nossos alunos não tiveram contato e acesso, podendo unir os gosto, perfumes e sabores dos mesmos a seu cotidiano. Além disso, compreendemos que a obra literária deve ter presença marcante em todo o processo escolar de um aluno; mas, nessa relação entre a leitura de obras literárias e o desenvolvimento do aluno, a função do professor é fundamental, pois ao docente cabe a seleção das obras adequadas ao nível de desenvolvimento intelectual dos alunos. Em outras palavras, se o professor orientar o adolescente na leitura de uma obra literária em que a complexidade vá além do seu desenvolvimento cognitivo, a leitura fracassará, pois, o aluno ainda é incapaz de incorporar à sua subjetividade a conhecimento humanizadora artisticamente resumida naquela obra; e, se orientá-lo na leitura de uma obra pouco ou nada complexa para o seu nível de desenvolvimento, a leitura também fracassará, uma vez que não lhe proporcionará nada qualitativamente novo.
  • 21. Argumentação e Linguagem Capítulo 1 12 Devemos, nesse momento, novamente assinalar que a literatura, forma de expressão artística, não impede o fenômeno da alienação na sociedade capitalista, mas pode exercer um papel libertador na formação humana. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. DALCASTAGNÈ, Regina. O espaço da dor: o regime de 64 no romance brasileiro. Brasília: Editora UnB, 1996. FREIRE, Paulo. A Importância do ato de ler. 4ª ed. São Paulo: Cortez. 2005. MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira (1968-1978). São Paulo: Global, 1980. PAULO NETTO, José. Pequena história da ditadura brasileira (1964-1985). São Paulo: Cortez, 2014. STEPHANOU, Alexandre Ayub. Censura no Regime Militar e Militarização das Artes. Porto Alegre :Edipucrs, P. 215, 2001. REIMÃO, Sandra. Mercado editorial brasileiro. São Paulo: ComArte, FAPESP, 1996. ZILBERMAN, Regina. O estatuto da literatura infantil. In; ZILBERMAN, Regina, MAGALHÃES, Ligia Cadermatori. Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo; Ática, 1982. p.3-24. (Ensaios, 82.) ZILBERMAN, Regina, LAJOLO, Marisa. Um Brasil para crianças-, para conhecer a literatura infantil brasileira; história, autores e textos. São Paulo; Global, 1986. 364p.
  • 22. Capítulo 2 13Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 2 A FALA DE ULYSSES GUIMARÃES NA PROMULGAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988: UMA ANÁLISE BAKHTINIANA Tayson Ribeiro Teles Docente do Magistério Federal - EBTT de Economia e Gestão de Finanças e Comércio do Instituto Federal do Acre – IFAC. Tarauacá – Acre. E-mail: tayson.teles@ifac.edu.br. RESUMO: este capítulo de livro abriga uma síntese de pesquisa engendrada no Mestrado em Linguagem e Identidade (Cultura e Sociedade) da Universidade Federal do Acre – UFAC, concluída em 2016. Analisamos a fala do Deputado Federal Ulysses Guimarães quando ele, na condição de presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88, promulgou a atual Constituição Federal do Brasil, de 1988, em 5 de outubro daquele ano. Pela metodologia da revisão bibliográfica, com supedâneo nas ideias do filósofo e linguista russo Mikhail Bakhtin, analisamos esse discurso político a partir do que cremos serem as suas principais partes/significantes. O tema é atual, porquanto em 2018 a Constituição de 1988 completou 30 anos. PALAVRAS-CHAVE: Promulgação da ConstituiçãoFederalde1988.Falapromulgadora. Análise. Mikhail Bakhtin. ABSTRACT: this book chapter contains a synthesis of research engendered in the Master’s Degree in Language and Identity (Culture and Society) of the Federal University of Acre - UFAC, completed in 2016. We analyze the speech of Federal Deputy Ulysses Guimarães when he, as president of the Assembly National Constitution of 1987-88, promulgated the current Federal Constitution of Brazil, of 1988, on october 5 of that year. By the methodology of the bibliographical revision, based on the ideas of the russian philosopher and linguist Mikhail Bakhtin, we analyze this political discourse from what we believe are its main parts/signifiers. The theme is current, because in 2018 the Constitution of 1988 completed 30 years. KEYWORDS: Promulgation of the Federal Constitution of Brazil, of 1988. Speaking enactment. Analyze. Mikhail Bakhtin. 1 | INTRODUÇÃO Este capítulo de livro constitui-se como uma análise da fala do Deputado Federal Constituinte Ulysses Guimarães no dia da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (doravante CRFB/88), a quarta-feira de 5 de outubro de 1988, sendo tal análise feita com fulcro nas teorias, ideias e pensamentos do filósofo, historiador e filólogo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975). A metodologia de pesquisa foi a
  • 23. Argumentação e Linguagem Capítulo 2 14 exploração bibliográfica qualitativa/revisional, a qual foi aplicada no plasma dos métodos dialético e dedutivo. Ulysses Guimarães foi o presidente da Assembleia/ comissão responsável por fazer nossa atual Constituição. Por isso, no dia da promulgação dela coube a ele a tarefa de dizer que estava promulgada a Constituição, ou seja, que a partir dali ela passaria a valer e que a Constituição de 1967 (quase toda alterada pela Emenda n.º 1/1969) estava revogada, o que o Deputado fez em uma histórica fala/discurso de pouco mais de dez minutos. É esta fala de Ulysses, chamada por nós de “fala Ulyssiana” ou “fala promulgadora”, que analisamos com base em Bakhtin. Os resultados demonstram que a fala Ulyssiana, imergida na teoria bakhtiniana, é um signo ideológico que reflete, com levada capacidade de síntese, os principais acontecimentos havidos antes da feitura da CRFB/88, bem como demonstra, também, boa parte das contradições, lutas e entraves sociais e políticos acontecidos para que fosse elabora essa norma. Em Bakhtin compreendemos que a fala de Ulysses não foi um ato discursivo particular, individual, interno ou interior, mas um meio para divulgação de variadas perspectivas existentes naquele momento. Não foi a fala Ulyssiana um “discurso” em si mesma, mas um instrumento dissipador de uma espécie de “discurso social” existente no Brasil desde o movimento “Diretas Já”. 2 | A PALAVRA EM BAKHTIN Em Bakhtin relevância premente tem a palavra. Para o autor, esta é líquida, se amolda a qualquer contexto, possui verdadeira “ubiquidade social”. Frisou o russo: [...] a palavra penetra literalmente em todas as relações entre indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc. As palavras são tecidas a partir de uma multidão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações sociais em todos os domínios. É, portanto, claro que a palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais, mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda não abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem-formados. A palavra constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de mudanças que ainda não tiveram tempo de adquirir uma nova qualidade ideológica, que ainda não tiveram tempo de engendrar uma forma ideológica nova e acabada. A palavra é capaz de registrar as faces transitórias mais íntimas, mas efêmeras das mudanças sociais (BAKHTIN, 2014, p.42). Em Bakhtin a palavra é tão relevante que, com relação às nossas mentes, ao nosso psiquismo, afirma ele: “a exclusão da palavra reduziria o psiquismo a quase nada, que a exclusão de todos os outros movimentos expressivos a diminuiriam muito pouco” (BAKHTIN, 2014, p. 53). De fato, a palavra é relevantíssima ao ser humano, basta lembrarmos que quase todos os nossos pensamentos, como atos internos, ocorrem em espécie de fala conosco mesmos. Ao leitor, agora, certamente estas
  • 24. Argumentação e Linguagem Capítulo 2 15 palavras penetram, pela visão, inexplicavelmente, na mente, onde são refratadas. Bakhtin percebeu o poder da palavra. Para ele o homem nasce vivo, imerso na vida material, na história, mergulhado, de forma inescapável, na prática, nas perspectivas deste mundo, e, por meio de palavras, inventadas por ele mesmo, cria formas de dominação sobre si mesmo. Cria deuses, rituais, mitos, verdades, mentiras e, principalmente, formas e métodos de encobrir a realidade, o real, a vida que se passa aí nas ruas, no fôlego das pessoas, na chuva, no sertão, nas tundras, nos igarapés. Bakhtin (2014) notou que a palavra cria a realidade. A partir desse ponto sua contribuição é incomparável para percebemos que sim pode o homem mudar sua realidade reinterpretar, (re)significar, mudar a história. Não que a ideologia seja criada por mentes (palavras) individuais, não. A ideologia é social, material, grupal. Ocorre que a ideologia não é o real, ela apenas é um elemento usado pelos poderosos, na verdade os que têm mais poder – pois todos temos certo quantum de poder -, para encobrir o real, que é produzido pelas palavras individuais, que se somam a todo o momento. O autor acreditava que a palavra dita é o signo ideológico primordial de um sistema linguístico, pois esta é a ponte entre o mim/eu e o outro. Para o filósofo é como se a língua – e por conseguinte a linguagem, fosse em si mesma a expressão das relações e lutas sociais, que, como quis Marx, nada mais são do que lutas de classes. Nesse sentido, nos utilizamos da base teórica de Bakhtin para analisar a essência da fala de promulgação da Constituição Federal de 1988, por meio da análise suas principais palavras e expressões de efeito. 3 | A “FALA ULYSSIANA” EM BAKHTIN A primeira coisa que nos chama atenção na fala Ulyssiana é sua técnica. Ulysses escreveu muito bem sua fala. Logo nas primeiras frases que disse, cumprimentando as autoridades presentes, exclamou: “[...] prestigiosos Srs. Presidentes de confederações [...]”. Vejamos que ele não disse o usual “prestigiados(as)” que muitas pessoas usam na linguagem coloquial1 . Dizem os dicionários2 que prestigioso é aquele que tem prestígio, respeito social, fama etc. ao passo que sabemos ser prestigiado um particípio passado do verbo prestigiar, que, por óbvio, significa dar prestígio. Logo, já no início da fala Ulyssiana, podemos verificar a técnica de Ulysses, ou possivelmente de seus assessores – para aqueles que creem não ter sido Ulysses o autor de sua fala. 1 Citamos, apenas para exemplificar, um discurso presente na internet, de 2003, proferido por Francisco Banha, presidente de uma empresa do mercado de capitais chamada Gesventure. Disse ele: “[...] Uma palavra de apreço aos ‘prestigiados’ oradores convidados [...]”. Disponível em: <http://www.gesventure.pt/5encontro/apresen- tacoes/5enc_apres.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2019. 2 Por exemplo em: <http://www.dicio.com.br/prestigioso/>. Acesso em: 12 abr. 2019.
  • 25. Argumentação e Linguagem Capítulo 2 16 Ulysses, ainda no começo, diz: “Chegamos! Esperamos a Constituição [...]. Bem- aventurados os que chegam [...]”. Percebamos que neste fragmento o vocábulo “Bem- aventurado” foi utilizado em sua acepção normal, pois dizem os dicionários3 que este significa muito feliz, eternamente feliz, totalmente feliz etc. Pensamos ter Ulysses possivelmente o utilizado, em face de alguns de seus sinônimos, para entronar a ideia de que fazer a Constituição foi uma “aventura dificultosa”. Dizemos isso, porquanto aventura também tem um significado que contextualiza isso: façanha ou proeza; ato ou ação perigosa, arrojada.4 Além disso, podemos ainda pensar haver alguma pretensão de “sacralizar” o momento na medida em que essa lexia é integrante de várias expressões da Bíblia Cristã Sagrada ocidental. Ulysses diz, ainda, em certo ponto: “[...] garrotear a liberdade [...]”. Nesta passagem o presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1987-88 (ANC) fez referência ao comportamento dos militares no governo do país, os quais, para ele, quando estiveram no poder garrotearam a liberdade do povo. “Garrotear”, dizem os dicionários de maneira comum5 , é esganar ou estrangular utilizando um garrote, uma espécie de fio, corda ou arame, o que se faz geralmente com animais. Aqui cremos que Ulysses possivelmente optou por usar este vocábulo, pois quis (tentar) exprimir a força da opressão física erigida pela ditadura militar que “governou” a nação entre 1964-1985. Dizemos isso, pois ele tinha à sua disposição alguns sinônimos mais tênues e não usou, como eliminar, destruir, cessar etc. Em certo momento Ulysses consignou também se referindo à Constituição que estava sendo promulgada: “[...] bradamos por imposição de sua honra: temos ódio à ditadura. Ódio e nojo”. “Bradar”, consignam os dicionários significa clamar, gritar, vozear aos céus. Aqui pensamos que Ulysses factivelmente apoderou-se deste termo em sua fala para dar a ela um sentido solene e sagrado. Como estava ele promulgando a Constituição do Brasil pareceu-lhe de bom tom exaltar esta norma, bem como o laboro que fora dispendido para fazê-la, além do que também era interessante conclamar o povo a perceber que aquela norma era melhor se comparada às do passado ditatorial. Além disso, podemos ainda fazer uma relação ao contexto do hino nacional que carreia em si trechos como “brado retumbante” etc., momento em que podemos cogitar que o uso da lexia bradar pode ter tido certa conformação nacionalista. Também foi dito pelo presidente da ANC o seguinte fragmento: “A Assembleia Nacional Constituinte rompeu contra o establishment, investiu contra a inércia, desafiou tabus”. O vocábulo “establishment” é uma palavra inglesa que foi incorporada à língua portuguesa sem a realização de aportuguesamento, pois quando traduzida não têm o sentido de “estabelecimento”. Em seu sentido original, nos mais diversos dicionários6 , 3 Por exemplo, em: <http://www.lexico.pt/bem-aventuranca/>. Acesso em: 12 abr. 2019. 4 Disponível em: <http://www.lexico.pt/aventura/>. Acesso em: 12 abr. 2019. 5 Por exemplo, em: <http://www.lexico.pt/garrotear/>. Acesso em: 12 abr. 2019. 6 Disponível por exemplo em: <http://www.teclasap.com.br/o-que-establishment-significa/>. Acesso em: 12 abr. 2019.
  • 26. Argumentação e Linguagem Capítulo 2 17 significa: “a elite social, econômica e política de um país” e “grupo de indivíduos com poder e influência em determinada organização ou campo de atividade”. Nessa perspectiva, com base em Correia e Almeida (2012), podemos dizer que essa palavra é um estrangeirismo, isso na medida em que, dentro do estudo da neologia e dos neologismos (basicamente o estudo da renovação do léxico de uma língua pelo surgimento7 ou incorporação de novas palavras), este ocorre quando uma palavra estrangeira ingressar em nosso sistema linguístico e “permanecer inalterada, isto é, conservar as características fonológicas e ortográficas do seu sistema de origem. Exemplos: software, boom, shopping center” (CORREIA; ALMEIDA, 2012, p. 71). Quanto à razão para Ulysses ter incutido essa palavra em sua fala cremos ter sido primeiramente para resumir todo o plexo de informações que ela significa, pois ao usá-la Ulysses somente teve de oralizar um significante e teve como consequência a promanação de vários significados. Entretanto, não podemos afirmar que tal atitude fora feliz, porque certamente houve alguém que não entendeu o significado desta expressão, seja pelo contexto ou porque de fato não conhecia o vocábulo. Emsegundolócus,pensamosquetalvezUlysseslançoumãodesteestrangeirismo, pois na época de sua fala promulgadora, início da década de 1990, o inglês estava em crescente uso no mundo, principalmente dada a dissipação da internet. Assim, como o brasileiro tem certa tendência a se apoderar do que está na “moda”, Ulysses usou o termo para ressaltar um possível caráter globalizado da elite parlamentar pátria. Ulysses oralizou também: “Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte [...]”. Neste fragmento, percebemos que o uso da lexia arquitetura teve possivelmente o desiderato de considerar a Constituinte como uma construção, uma analogia mesmo a construções de concreto onde o trabalho de erguer paredes é bem difícil, demorado e cansativo, sendo preciso muita força e técnica. Além disso, também podemos inferir uma remissão à sutileza do delineio dos sensíveis desenhos levados a efeito na arquitetura quando se pretende dar formas estéticas a prédios etc. Dizemos isso, pois Ulysses poderia ter usado sinônimos menos simbólicos como organização, estrutura etc. Já entrando na segunda metade de sua fala, disse Ulysses: “Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de estudantes, de cozinheiros, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares, atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto que ora passa a vigorar”. Nessa passagem, afigura-se patente a volição de Ulysses ao escolher a expressão “representativo e oxigenado sopro”. O presidente da ANC primeiro disse que a participação de pessoas do povo na 7 Por exemplo, o termo “fala Ulyssiana” cunhado aqui por nós, é um neologismo, o qual somente foi criado, pois a língua permite tal adaptação com nomes próprios (Exs.: Foucaultiano, Bakhtiniano, Gregoriano, Bejaminiano etc.)
  • 27. Argumentação e Linguagem Capítulo 2 18 feitura da Constituição foi representativa, ou seja, vários setores sociais participaram, foram representados. Em seguida disse Ulysses que tal representatividade era visível por meio de um sopro oxigenado, ou seja, vivo, respirante, em movimento, consciente. O emprego dessas lexias possivelmente teve o objetivo de enaltecer e até engrandecer a participação popular na feitura do texto constitucional. Ainda neste trecho, em relação ao fragmento “atestando a contemporaneidade e autenticidade social do texto”, podemos perceber que a dupla de lexias contemporaneidade e autenticidade possuem certa relação analógica entre si. Isso na medida em que aquilo que é contemporâneo é atual, é do hoje, do presente, bem como algo autêntico é algo “verdadeiro”, legítimo, pertencente a determinado contexto, empregável no presente - por exemplo, nós somos pessoas autênticas do século XXI, não nos configurando como autênticos do século XIX -. Cremos ser factível abstrair tal relação analógica entre estas duas lexias, porquanto “as palavras são organizadas em um campo com mútua dependência, adquirindo uma determinação conceitual a partir da estrutura do todo. O significado de cada palavra vai depender do significado de suas vizinhas conceituais” (ABBADE, 2011, p. 1332). Noutro trecho de sua fala aduz Ulysses que a Constituição: “Introduziu o homem no Estado, o fazendo credor de direitos e serviços [...]”. Percebamos que a utilização da lexia credor teve como possível motivação o fato de que quando somos credores de algo é porque alguém nos deve certo objeto, coisa ou valor. Assim, quis factivelmente Ulysses não apenas dizer que o Estado poderia (teria a faculdade de) oferecer direitos ao povo, mas que teria de ali em diante o dever de fornecer os direitos que a Constituição estampa. Dizemos isso na medida em que Ulysses poderia ter feito o uso de outras expressões como: “o fazendo possível beneficiado de direitos [...]”, “o fazendo reivindicador de direitos [...]” etc. Outrossim, a observação do conjunto das unidades lexicais que integram a fala Ulyssiana permite que cheguemos a algumas conclusões, notadamente no que se refere ao processo de construção de significado levado a efeito por Ulysses em sua fala. Em primeiro lugar é possível notar que Ulysses fala muito na terceira pessoa do plural, às vezes se referindo apenas a ele e seus colegas constituintes e às vezes se referindo ao “nós” povo brasileiro. Outro aspecto é o fato de que Ulysses utiliza muito o recurso da formação de prosopopeias/personificações, comparações, subjetivações, metáforas, eufemismos e outras estruturas. Tais aspectos não são propriamente integrantes dos estudos da Lexicologia, mas as lexias usadas em tais construções também merecem análise dado que foram escolhidas a dedo para revelarem exatamente os significados simbólicos que constituem. Para verificar tais elementos, voltemos ao início da fala Ulyssiana. Disse Ulysses: “Hoje, 5 de outubro de 1988, no que tange à Constituição, a Nação mudou”. Observando tal expressão, cumpre perguntarmos: no que não tange à Constituição, a
  • 28. Argumentação e Linguagem Capítulo 2 19 nação mudou (?). Mas, mudou apenas nisso? Ou seja, a Constituição após terminada não mudou nada na sociedade, apenas ela mesma, seu texto escrito, representava mudança naquele momento? Durante os 20 meses de feitura da Constituição, mesmo ainda valendo a Constituição da época do regime militar, a nação não tinha mudado em nada? Prosseguiu Ulysses: “A Constituição mudou na sua elaboração [...]”. O que quer dizer isso? A Constituição mudou na sua elaboração porque ela se fez a si mesma? Na sua elaboração ela mudou? Não foi mudada por ninguém? Por que essa personificação da Constituição? Seria uma forma de os constituintes distanciarem-se da responsabilidade pelo texto? Não foram os Deputados e Senadores que mudaram o clima jurídico do país fazendo uma nova (outra) Constituição? Foi a Constituição antiga (de 1969) que mudou? Apenas mudou? Continuou Ulysses: “[...] só é cidadão quem ganha justo e suficiente salário, lê e escreve, mora, tem hospital e remédio, lazer quando descansa”. De fato, o conceito de cidadão implica que uma pessoa tenha condições dignas de vida, um trabalho, uma renda, um lar, algum tipo de lazer, oportunidade de ir à escola etc. Porém, será mesmo que quem não tem tudo isso não é cidadão? É preciso ler e escrever para ser cidadão? E os saberes culturais? Indígenas que não falam “português” moradores do interior da Amazônia não são cidadãos deste país? Claro que devemos relevar a época da fala de Ulysses, o final da década de 1980, bem como os ideais deste político que dentro de seu progressismo almejava oferecer educação para todo o Brasil. Mas, atualmente cremos não caber mais tal esteriotipização acerca do conceito de cidadão. Aduziu Ulysses: “Chegamos! Esperamos a Constituição como o vigia espera a aurora”. Qual a intensão de Ulysses nesta comparação? Quais os sentimentos de um vigia que espera a aurora? Sabemos que um vigia, seja um trabalhador vigilador de algum local/instituição ou apenas uma pessoa vigiadora da madrugada, que tem insônia ou ama observar o passar do tempo durante o pré-nascer do dia, precisam esperar sofrivelmente pela aurora, que na mitologia romana é o fenômeno óptico do “nascer” do sol. Então, cabe percebermos que Ulysses nesta expressão possivelmente teve a intensão de demonstrar que a espera pela Constituição foi um plexo de tensões, ansiedades, angústias e sofrimentos diversos. Grosso modo, a aurora é bonita, boa, agradável, mas esperar por ela é cansativo, sofrível etc. Exclamou também Ulysses: “[...] não caímos no caminho. Alguns a fatalidade derrubou [...] conhecemos o caminho maldito: [...] mandar os patriotas para a cadeia, o exílio, o cemitério”. Percebamos as lexias fatalidade e cemitério. Ambas foram empregadas para constituírem-se como eufemismos, ou seja, atenuações de contextos fortes, negativos e polêmicos. Isso na medida em que substituem morte natural e morte por tortura ou assassinato respectivamente. Ulysses disse que alguns de seus colegas parlamentares morreram, de morte
  • 29. Argumentação e Linguagem Capítulo 2 20 natural, durante a ANC e referiu-se ao caminho erigido pelo regime militar que mandou muitos para o cemitério. Por que não disse coisas do tipo matou, torturou, pôs no pau de arara, afogou etc.? Certamente, pois estavam presentes na cerimônia de promulgação várias autoridades militares e seria um pouco tenso falar assim. Aqui percebemos como Ulysses escolheu detidamente seu léxico. Ulysses propalou ainda: “Foi de audácia inovadora a arquitetura da Constituinte [...]”. Percebamos que a dupla de lexias audácia e inovadora possuem uma relação de sentido bem semelhante. Aquela, dizem os dicionários de maneira comum8 , significa a coragem, bravura ou habilidade para realizar tarefas difíceis e esta remete à inovação ou novidade, a qual geralmente precisa do trabalho, ideia ou esforço de alguém para existir. Portanto, percebemos que Ulysses utilizou tais lexias em conjunto possivelmente para realçar mais ainda a perspectiva de que a labuta do fazer a Constituição de 1988 foi bem “sofrida”, corajosa e perspicaz. Disse também o presidente da ANC se referindo à Constituição: “Como o caramujo guardará para sempre o bramido das ondas de sofrimento, esperança e reivindicação de onde proveio”. O que quis ele ao fazer esta comparação entre a Constituição e um caramujo? Sabemos que caramujo é um molusco marinho e que, portanto, vive no mar em meio a ondas e marés tanto pequenas como grandes, bem como bramido significa forte barulho ou estrondo9 . Logo, somos levados a crer que deve ser uma situação agoniante um caramujo enfrentar uma onda tão alta ou forte que chegue a produzir barulhos elevados. Cremos que Ulysses factivelmente fez tal comparação para dar ênfase ao sofrimento vivido pelo povo pátrio durante o regime militar. Asseverou Ulysses: “A Federação é a governabilidade”. O que quis ele ao usar esta metáfora? Dizemos isso, pois sabemos que uma federação não significa governabilidade. Federação é uma coisa e governabilidade é outra. Aquela lexia remete à forma de organização territorial de uma nação e esta refere-se àquilo que é governável, pois tem condições para tal. Cremos que possivelmente Ulysses quis entronar a forma federativa de organização do Estado brasileiro dizendo que esta seria imprescindível para que o país pudesse ser governado de forma exequível. Ulysses afirmou: “A moral é o cerne da pátria. A corrupção é o cupim da pátria”. O que quis ele novamente ao usar estas duas metáforas? Bem, sabemos que corrupção é o ato de desviar ou malversar dinheiro público ou receber dinheiro privado para favorecer alguém em algum tipo de negócio público/estatal, bem como pátria é uma nação. Quanto às outras lexias usadas nestas duas expressões elas têm as seguintes significações: moral geralmente significa aquilo que está de acordo com os bons costumes ou de acordo com as regras10 ; cerne significa centro ou essência de algo11 ; 8 Por exemplo, em: <http://www.lexico.pt/audacia/>. Acesso em: 12 abr. 2019. 9 Disponível em: <http://www.lexico.pt/bramido/>. Acesso em: 12 abr. 2019. 10 Disponível em: <http://www.lexico.pt/moral/>. Acesso em: 12 abr. 2019. 11 Disponível em: <http://www.lexico.pt/cerne/.>. Acesso em: 12 abr. 2019.
  • 30. Argumentação e Linguagem Capítulo 2 21 cupim significa um pequeno artrópode (“inseto”) que corrói madeira para se alimentar12 . Logo, percebemos que Ulysses quis possivelmente evidenciar em sua fala que a moral a partir daquele dia deveria ser o centro da pátria brasileira, bem como a corrupção não deveria ocorrer sob o perigo de ser destruidora da nação. É um pouco óbvio, mas a retórica de Ulysses é deveras “bonita”. Saiu também da boca de Ulysses a seguinte construção vocabular: “Não é a Constituição perfeita, mas será útil, pioneira, desbravadora, será luz, ainda que de lamparina, na noite dos desgraçados”. Qual a intensão de Ulysses ao dizer isso, especificamente os trechos “ainda que de lamparina” e “desgraçados”? Bem, cremos que Ulysses quis possivelmente neste momento por um pouco o pé no chão e ressaltar o realismo imanente ao fato de que a Constituição não vinha para resolver todos os problemas do povo, seja porque era incapaz disso ou seja porque tais problemas jamais poderão ser resolvidos em sua inteireza por diversos motivos. Assim, optou por dizer que a Constituição seria uma luz, uma luz fraca, como a de uma lamparina, mas uma luz. Além disso, cremos que a lexia desgraçados não foi empregada no sentido negativo que conhecemos popularmente como referindo-se a alguém que “não vale nada”. Desgraçado foi empregado como imputável a alguém desprovido de graça, sendo esta graça um significante multifacetado que, neste contexto, pode representar o conjunto de saúde, educação, segurança, transporte, moradia etc. Já caminhando para o final de sua fala consubstanciou Ulysses: Quanto a mim, cumpriu-se o magistério do filósofo: o segredo da felicidade é fazer do seu dever o seu prazer. Todos os dias, meus amigos constituintes [...] na chegada ao Congresso [...] a alegria inundava meu coração. Ver o congresso era como ver a aurora, o mar, o canto do rio, ouvir os passarinhos [...]. Político, sou caçador de nuvens. Já fui caçado por tempestades. Uma delas, benfazeja, me colocou no topo desta montanha de sonho e de glória. [...] Adeus, meus irmãos. É despedida definitiva, sem o desejo de retorno (GUIMARÃES, 1988). Que análises podemos erigir deste trecho? Bem, ao se despedir Ulysses mais uma vez levou a efeito o uso de metáforas, frases de efeito e certa linguagem figurada. Disse que trabalhou muito, muito mesmo, mas que tal laboro foi prazeroso. Narrou metaforicamente que sempre que chegava ao Congresso Nacional era como se a alegria enchesse tanto seu coração que este ficasse inundado. Disse que ver o Congresso era como ver a aurora, o mar, o canto de pássaros. Decerto, vemos que nesse trecho final quis Ulysses exalar que gostou de ter atuado como presidente da ANC. Não sabemos se ele efetivamente gostou ou não do produto final desta – cremos que não -, mas do trabalho gostou. Por fim, disse que era caçador de nuvens, uma expressão que teve possivelmente o objetivo de dizer que ele era um alcançador de feitos altos, difíceis. No final, afirmou Ulysses: “A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. [...] Que a promulgação seja nosso grito! – Mudar para vencer! Muda, 12 Disponível em: <http://www.lexico.pt/cupim/>. Acesso em: 12 abr. 2019.
  • 31. Argumentação e Linguagem Capítulo 2 22 Brasil!”. O quis ele dizer? Bem, na metáfora “A sociedade foi Rubens Paiva”, Ulysses se referiu ao Deputado Federal Rubens Paiva, que na época do regime militar fazia ferrenha oposição ao governo, o qual desapareceu em 1971 e depois soube-se que fora morto por militares e seu corpo jogado ao mar. Dessa forma, cremos que simbolicamente quis Ulysses possivelmente dizer que a sociedade que sobreviveu ao regime militar foi como Rubens que resistiu até onde pôde ou que a sociedade foi morta como Rubens durante o governo de exceção e que por meio da Constituição de 1988 estava ressuscitando. Já quanto à expressão “Que a promulgação seja nosso grito! – Mudar para vencer! Muda, Brasil!”, cremos que tal conjunto de lexias seja um pedido ou vontade pessoal de Ulysses para que a promulgação da CRFB/88 fosse o grito dele, de seus colegas constituintes e do povo brasileiro, grito este que deveria ser um impulsionador do Brasil rumo à mudança e à vitória. Assim, como a promulgação representava a própria Constituição, também pensamos que se referia ele à própria Constituição, clamando (e torcendo para) que ela fosse a mudança, o grito. 4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Em conclusão, cremos também ser possível identificar algumas fraseologias na fala Ulyssiana. Estas, como lembra Maingueneau (2015), são expressões corriqueiras em certos contextos, áreas, setores sociais, expressões tais que em formato de mini textos têm significado autônomo (“todo mundo sabe o que significam”, mesmo isoladamente). Assim, ainda que devamos ressaltar que a fala Ulyssiana não é uma fala política (nem parlamentar nem eleitoral), mas sim uma fala constituinte/fundante, cremos que podemos forçosamente identificar algumas fraseologias nesta fala, ou seja, frases que os políticos “sempre usam”. Estas são: a. Traidor da Constituição é traidor da pátria; b. O inimigo mortal do homem é a miséria; c. O Estado de direito não pode conviver com a miséria; d. Democracia é a vontade da lei; e. A sociedade sempre acaba vencendo; f. A nação deve mudar; Além disso, há algumas palavras de efeito que aparecem mais de duas vezes na fala Ulyssiana e que, portanto, visivelmente têm o escopo de dar ênfase ao contexto de produção da Constituição, de sua fala e do conteúdo destas. São lexias como: coragem, mudança, sociedade, Estado, Democracia, República, Direito etc. Acreditamos que além da fala Ulyssiana integrar uma realidade, qual seja: o evento de promulgação da CRFB/88; ela também refletiu e refratou outra realidade: o contexto histórico que levou à instalação da Constituinte de 1987-88 e à produção
  • 32. Argumentação e Linguagem Capítulo 2 23 da Constituição. Sendo que, com efeito, entre distorcer tal realidade, ser-lhe fiel ou interpretá-la de modo específico, cremos ter Ulysses Guimarães escolhido a ultima possibilidade. Acreditamos ter Ulysses conseguido erigir sua fala de um modo peculiar, uma especificidade tal que o permitiu dizer coisas importantes e esconder outras. Não conseguimos apreender a fala Ulyssiana como verdadeira, falsa, correta ou incorreta, mas cremos ter sido efetivamente uma fala justa. Ideológica, por óbvio – tudo é ideológico, nada é neutro -, mas justa. Justa, pois justificável(ada) por seu contexto, como ensina Bakhtin (2014) sobre todos dos atos humanos. Achamos por bem, também, enxergar a fala Ulyssiana como sendo um elemento material, e não apenas formal, do evento de promulgação da CRFB/88, bem como do processo de elaboração desta norma. Não podemos lançar sobre a fala uma classificação que a reduza a mero texto formal de apresentação/promulgação da Constituição. “Cada signo ideológico é não apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade” (BAKHTIN, 2014, p. 33), ou seja, sempre que um fenômeno ou evento funcionar como elemento carregado de carga ideológica, este possuirá uma encarnação material (fala física, som, cor, movimento corporal etc.). Desse modo, é a fala Ulyssiana um integrante material, vivo, da dialética do contexto de produção da CRFB/88, do evento físico (dia) de promulgação desta norma e, por que não, da história do Brasil. Este é um aspecto relevantíssimo, pois, ao apreendermos esta fala como viva socialmente, não poderemos jamais dizer que foi apenas uma fala única e singular de uma pessoa também única e exclusiva (Ulysses). As ideias esposadas na fala de Ulysses, ou por meio dela, não eram ideias exclusivas de Ulysses. Enquanto autor-narrador daquele enredo, Ulysses apenas serviu de meio para a oralização de um signo que estava já se irradiando por praticamente todo o corpo social brasileiro naquela época, desde o movimento “Diretas Já”. REFERÊNCIAS ABBADE, Celina Márcia de Souza. A Lexicologia e a teoria dos campos lexicais. Cadernos do CNLF, v. XV, n. 5, t. 2. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011, pp. 1332-1343. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/ xv_cnlf/tomo_2/105.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2019. BAKHTIN, Mikhail (V. N. VOLOCHÍNOV). Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Vieira. São Paulo: HUCITEC, 2014. CORREIA, M.; ALMEIDA, G. M. de B. Neologia em português. São Paulo: Parábola Editorial, 2012. GUIMARÃES, Ulysses. Fala de promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Congresso Nacional/ANC, 1988. Disponível em:<http://www2.camara. leg.br/atividadelegislativa/plenario/discursos/escrevendohistoria/25anos-da-constituicao-de-1988/ constituinte-1987-1988/pdf/Ulysses%20Guimaraes%20.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2019. MAINGUENEAU, Dominique. Discurso e análise do discurso. Tradução de Sírio Possenti. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.
  • 33. Capítulo 3 24Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 3 A ARGUMENTAÇÃO E A RETÓRICA NO SERMÃO DA SEXAGÉSIMA, DE PADRE ANTÔNIO VIEIRA: UMA ABORDAGEM PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO Gabriela Lages Veloso Universidade Estadual do Maranhão, Departamento de Letras São Luís – Maranhão Letícia Rodrigues da Silva Universidade Estadual do Maranhão, Departamento de Letras São Luís – Maranhão RESUMO: Na última etapa do Ensino Médio os alunos do 3º ano precisam desenvolver sua competência na produção de textos argumentativos, visando alcançar aprovação nos vestibulares. Essa tarefa, por vezes, tem sido um grande desafio para o aluno e para o professor, isso porque ao longo da escolarização, o alunado, em geral, tem pouco contato com a leitura do texto dissertativo, o que acarreta ao final do Ensino Médio uma série de dificuldades, dentre elas, a falta de competência para construir argumentos. Diante dessa realidade, este estudo adentrou no universo literário de Padre Antônio Vieira, encontrando no Sermão da Sexagésima um excelente material para ser trabalhado em sala de aula, com vistas a desenvolver a competência discursiva na produção textual do aluno/vestibulando, e consequentemente favorecer seu letramento, já que o texto literário, conforme Vera Teixeira de Aguiar (2006) é capaz de ampliar os horizontes de expectativa do leitor, bem como a sua percepção de mundo. Na análise dos elementos argumentativos e da retórica do referido Sermão, utilizou-se como aporte teórico os estudos de Magda Soares (1999); Ângela Kleiman (1995); Rildo Cosson (2006), dentre outros, pelos conceitos sobre letramento literário e os métodos de abordagem deste texto em sala de aula. PALAVRAS-CHAVE: Argumentação. Retórica. Letramento literário. THE ARGUMENTATION AND RHETORIC IN THE SERMON OF THE SIXTIETH, BY FATHER ANTÔNIO VIEIRA: AN APPROACH TO LITERARY LITERACY ABSTRACT: In the last stage of High School, the students of third grade need to develop their competence in the production of argumentative texts, aiming to achieve approval in the entrance exams. This task sometimes has been a great challenge for student and teacher, this because throughout schooling, students, in general, have little contact with the argumentative text reading, which carries to the end of high school a series of difficulties among them, the lack of ability to write arguments. Facing this reality, this study entered the literary universe of Father Antônio Vieira, finding in the Sermon of the Sixtieth, an
  • 34. Argumentação e Linguagem Capítulo 3 25 excellent material to be worked in the classroom, in order to develop the students’ discourse competence in text writing, and consequently facilitate one’s literacy, since the literary text, in accordance to Vera Teixeira de Aguiar (2006) is able to expand the horizons of reader’s expectation, as well as his/her perception of the world. On the analysis of argumentative and rhetoric in the referred Sermon, it was used as a theoretical contribution to this paper, the studies of Magda Soares (1999); Ângela Kleiman (1995); Rildo Cosson (2006), among others, through the concepts on literary literacy and the approach methods from this text in the classroom. KEYWORDS: Argumentation. Rhetoric. Literary literacy. 1 | INTRODUÇÃO Ao iniciar os estudos sobre argumentação e retórica verificou-se uma lacuna no que se refere à utilização desses recursos estilísticos em sala de aula, fato esse comprovado no pequeno número de investigações acadêmicas acerca do tema, sobretudo no âmbito do letramento literário. Dentre os estudos verificados destaca-se o da pesquisadora Noemi Lemes que desenvolveu uma pesquisa pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP, em 2013, na qual examinou os livros didáticos e o desempenho em textos dissertativo-argumentativos de estudantes do terceiro ano do Ensino Médio provenientes de escolas públicas da cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Lemes (2013) chegou à conclusão que dos quatro livros analisados, três não faziam nenhuma menção a teorias acerca de argumentação, pelo contrário, traziam unicamente, como exemplos, textos jornalísticos. O que foi criticado pela pesquisadora, pois assim, os estudantes não estavam sendo instruídos e incentivados a sustentar seus pontos de vista, mas somente a reproduzir as convicções da mídia. Outra contestação de Noemi trata-se do modo como os discentes são subestimados ao terem contato com a argumentação, e explorá-la, somente no Ensino Médio. Segundo os seus resultados, Noemi Lemes (2013) constatou que a escola não tem instruído seus alunos a respeito da argumentação: Podemos dizer, então, que a escola, embora seja tida como o lugar designado para a circulação dos conhecimentos teóricos - incluindo o da argumentação - e do discurso polêmico, não tem promovido a propagação desse saber e nem mesmo vem cumprindo seu papel de instaurar discussões e reflexões sobre as diversas temáticas (LEMES, 2013, p. 109). Nesse contexto, no presente artigo apresenta-se uma breve pesquisa realizada na escola C.E. José Justino Pereira com alunos do 3º ano do Ensino Médio, com objetivo de, a partir desse campo amostral, analisar e discutir os elementos argumentativos e da retórica contidos no Sermão da Sexagésima, de Padre Antônio Vieira, que poderiam ser explorados em sala de aula com base numa proposta significativa capaz de promover o letramento literário, e, assim contribuir para o desenvolvimento da competência discursiva nos textos dissertativo-argumentativos
  • 35. Argumentação e Linguagem Capítulo 3 26 dos estudantes do terceiro ano do Ensino Médio. 2 | LETRAMENTO LITERÁRIO: CONCEITUAÇÃO A fim de compreender o que é letramento literário, faz-se necessário, primordialmente, entender o conceito de letramento - que é um termo relativamente recente e ainda não consolidado no Brasil. Se por um lado, Ângela Kleiman compreende que letramento é “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos” (KLEIMAN, 1995, p.19). Por outro, Magda Soares afirma que “Letramento é, pois, o resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita» (SOARES, 1998, p. 18). É importante ressaltar ainda que, segundo Madga Soares (1998), o termo Letramento deriva de literacy: Etimologicamente, a palavra literacy vem do latim littera (letra), com o sufixo -cy, que denota qualidade, condição, estado, fato de ser (como, por exemplo, em innocency, a qualidade ou condição de ser inocente). [...] Ou seja: literacy é o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escrever. Implícita nesse conceito está a idéia de que a escrita traz consequências sociais, culturais, políticas, econômicas, cognitivas, lingüisticas, quer para o grupo social em que seja introduzida, quer para o indivíduo que aprenda a usá-la. (SOARES, 1998, p.19) Por conseguinte, segundo Street (2014), atualmente, a compreensão de letramento tem sido mais abrangente, equivalendo à “uma prática social”, mas também sob uma visão “transcultural”. Nessa perspectiva, o letramento literário “compreende não apenas uma dimensão diferenciada do uso social da escrita, mas também, e sobretudo, uma forma de assegurar seu efetivo domínio” (COSSON, 2006, p.12). Assim, o saber literário tanto viabiliza o entendimento “da vida” por intermédio “da experiência do outro”, quanto permite “vivenciar essa experiência” (COSSON, 2006). Formar leitores literários quer dizer preparar leitores capazes de selecionar que textos irão ler, que estimem as composições “verbais” de natureza artística, que dediquem-se à leitura como algo prazeroso. Leitores assim necessitam fazer uso de “estratégias de leitura” propícias às obras literárias, seguindo “o pacto ficcional proposto”, com a verificação de “marcas linguísticas” que remetem ao subjetivo, aos intertextos e interdiscursos, deste modo, é resgatada “a criação de linguagem” executada fonologicamente, sintaticamente, semanticamente e a obra é situada corretamente na época em que foi produzida (PAULINO, 1998). 3 | ARGUMENTAÇÃO E RETÓRICA: UM BREVE PANORAMA A priori é importante ressaltar que, mediante Aristóteles,  a argumentação é somente  “uma modalidade retórica entre outras”. Se por um lado a retórica
  • 36. Argumentação e Linguagem Capítulo 3 27 consiste antes de mais nada em “um ajuste de distância entre os indivíduos”, por outro a argumentação, que tem o intento de persuadir, “insiste na identidade entre o orador e o auditório” (ARISTÓTELES, 2000). Na Sicília, segundo Aristóteles, a retórica: [...]teve a sua origem como metalinguagem do discurso oratório. Por volta de 485 a.C., dois tiranos sicilianos, Gélon e Hierão, povoaram Siracusa e distribuíram terras pelos mercenários à custa de deportações, transferências de população e expropriações. Quando foram destronados por efeito de uma sublevação democrática, a reposição da ordem levou o povo à instauração de inúmeros processos que mobilizaram grandes júris populares e obrigaram os intervenientes a socorrerem-se das suas faculdades orais de comunicação. Tal necessidade rapidamente inspirou a criação de uma arte que pudesse ser ensinada nas escolas e habilitasse os cidadãos a defenderem as suas causas e lutarem pelos seus direitos. E foi assim que surgiram os primeiros professores da que mais tarde se viria a chamar retórica. (ARISTÓTELES, 2005, p.15) É indispensável observar ainda que a retórica é uma arte que demanda que o retor possua conhecimentos, mas também seja criativo, uma vez que não deve, meramente, fazer cópias ou memorizar “fórmulas”, já que a vida traz consigo mistérios e situações imprevisíveis; devido a estes elementos que não deve-se, simplesmente, reproduzir “um modelo de discurso”. Porquanto, segundo a retórica proposta por Aristóteles, aquele que profere o discurso procura “persuadir o ouvinte”, o que não implica, obrigatoriamente, uma cópia. (LIMA, 2011). Consoante Weston (1996), a argumentação, por sua vez, não deve ser confundida com a discussão, que é considerada um tipo de “luta verbal”. Assim sendo, argumentar tem sentido de um agrupamento de premissas ou “dados favoráveis” a uma “conclusão”. Dessa maneira: [...] argumentar não é apenas a afirmação de um determinado ponto de vista nem uma discussão. Os argumentos são tentativas de sustentar certos pontos de vista com razões. Neste sentido, os argumentos não são inúteis; na verdade, são essenciais[...]. (WESTON, 1996, p. 5) Em função disso, é necessário apontar argumentos que sustentem determinadas ideias e, posteriormente, verificar a firmeza e veracidade deles; já que a argumentação é um modo de “investigação”. Finalmente: [...]Uma vez chegados a uma conclusão baseada em boas razões, os argumentos são a forma pela qual a explicamos e defendemos. Um bom argumento não se limita a repetir as conclusões. Em vez disso, oferece razões e dados suficientes para que as outras pessoas possam formar sua própria opinião. [...] Ter opiniões fortes não é um erro. O erro é não ter mais nada. (WESTON, 1996, p. 5) Perelman reitera que “toda a argumentação visa à adesão dos espíritos e, por isso mesmo, pressupõe a existência de um contato intelectual” (1996, p. 379). Nessa perspectiva, “o ato de argumentar”, tal qual propõe Koch (2002), é entendido como “o ato de persuadir” que visa alcançar “a vontade”, isto é, abrangendo o subjetivismo, o sentimentalismo, procurando “adesão e não criando certezas”. Logo, “o ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de determinadas conclusões,
  • 37. Argumentação e Linguagem Capítulo 3 28 constitui o ato linguístico fundamental, pois a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia”. (KOCH, 2002, p.19) 4 | ARGUMENTAÇÃO E RETÓRICA NO SERMÃO DA SEXAGÉSIMA É indubitável que um dos legados deixados pelo Padre Antônio Vieira foram os seus sermões, nos quais expunha “[...] seus preceitos morais por meio de sua retórica eloquente [...]” (PERES, 2014, p. 14). Um que merece destaque, por se tratar de uma “leitura obrigatória”, conforme Alfredo Bosi (1994), é o Sermão da Sexagésima, em que “[...] o orador expõe a sua arte de pregar [...]” (BOSI, 1994, p. 45). A retórica vieiriana corresponde à visão aristotélica, pois também: [...] constitui-se pelo mundo das opiniões, do verossímil, do provável, cuja função não é somente persuadir, mas ver os meios de persuadir em cada caso, reconhecendo o que é, ou não, persuasivo em cada situação. Sua utilidade é facultar que os pleitantes de uma discussão não sejam vencidos por quem está em erro. [...] (ROHDEN, 1995, pág. 515). Os discursos de Vieira se fundamentavam em textos bíblicos, e são: Exemplo de sedução e argumentação, de um árduo e incessante trabalho com a linguagem, o sermão - veículo dotado de regras próprias, com reconhecida tradição - dirige-se a um auditório particular, numa circunstância conjuntural precisa, em determinada situação. (ALMEIDA, 2009, p.9). Uma característica marcante do “discurso sermonístico” trata-se do “poder da palavra”, no qual “a palavra já está ligada à visão de linguagem como ação inscrita no próprio ato de fala.” (MELO, 2005, p.28) porém vale enfatizar que “o representante, aquele que fala no lugar de Deus, transmite as palavras de Deus, mas não se confunde com Ele.” (MELO, 2005, p. 28). Como se evidencia em: [...] A definição do pregador é a vida e o exemplo. Por isso Cristo no Evangelho não o comparou ao semeador, senão ao que semeia. Reparai. Não diz Cristo: saiu a semear o semeador, senão, saiu a semear o que semeia: Ecce exiit, qui seminat, seminare. Entre o semeador e o que semeia há muita diferença. Uma coisa é o soldado e outra coisa o que peleja; uma coisa é o governador e outra o que governa. Da mesma maneira, uma coisa é o semeador e outra o que semeia; uma coisa é o pregador e outra o que prega. O semeador e o pregador é nome; o que semeia e o que prega é ação; e as ações são as que dão o ser ao pregador. Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada; as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o Mundo. O melhor conceito que o pregador leva ao púlpito, qual cuidais que é? -- o conceito que de sua vida têm os ouvintes. [...] (VIEIRA, 1655) Do decorrer do Sermão da Sexagésima, bem como em outros sermões vieirianos, conforme Pires (2011), pode-se notar a “estrutura da argumentação formal”, constituída essencialmente por quatro componentes: “preposição”, “análise da preposição”, “formulação dos argumentos” (isto é, “evidência”) e “conclusão”: [...] Fazer pouco fruto a palavra de Deus no Mundo, pode proceder de um de três princípios: ou da parte do pregador, ou da parte do ouvinte, ou da parte de Deus.
  • 38. Argumentação e Linguagem Capítulo 3 29 Para uma alma se converter por meio de um sermão, há-de haver três concursos: há-de concorrer o pregador com a doutrina, persuadindo; há-de concorrer o ouvinte com o entendimento, percebendo; há-de concorrer Deus com a graça, alumiando. Para um homem se ver a si mesmo, são necessárias três coisas: olhos, espelho e luz. Se tem espelho e é cego, não se pode ver por falta de olhos; se tem espelho e olhos, e é de noite, não se pode ver por falta de luz. Logo, há mister luz, há mister espelho e há mister olhos. Que coisa é a conversão de uma alma, senão entrar um homem dentro em si e ver-se a si mesmo? Para esta vista são necessários olhos, é necessária luz e é necessário espelho. O pregador concorre com o espelho, que é a doutrina; Deus concorre com a luz, que é a graça; o homem concorre com os olhos, que é o conhecimento. Ora suposto que a conversão das almas por meio da pregação depende destes três concursos: de Deus, do pregador e do ouvinte, por qual deles devemos entender que falta? Por parte do ouvinte, ou por parte do pregador, ou por parte de Deus? [...] suposto que o fruto e efeitos da palavra de Deus, não fica, nem por parte de Deus, nem por parte dos ouvintes, segue-se por consequência clara, que fica por parte do pregador. E assim é. Sabeis, cristãos, porque não faz fruto a palavra de Deus? Por culpa dos pregadores. Sabeis, pregadores, porque não faz fruto a palavra de Deus? --Por culpa nossa. (VIEIRA, 1655) Apresença dessa estrutura faz-se necessária em todos os textos argumentativos, até mesmo nas redações dos alunos, nas quais, frequentemente, não a empregam de forma adequada, possivelmente por não terem se familiarizado com ela. (PIRES, 2011). Nessa perspectiva, a argumentação: [...] engloba a demonstração, mas não se restringe a ela, pois trabalha não só com o que é necessariamente verdadeiro, o que é logicamente demonstrável, mas também com aquilo que é plausível, possível, provável. Argumentar, em sentido lato, é fornecer razões em favor de determinada tese. Enquanto a demonstração lógica implica que, se duas ideias forem contraditórias, será verdadeira e a outra falsa, a argumentação em sentido lato mostra que uma idéia pode ser mais válida que outra (SAVIOLI & FIORIN, 2001, p. 191) 5 | SERMÃO DA SEXAGÉSIMA : UMA ABORDAGEM PARA O LETRAMENTO LITERÁRIO De acordo com Aguiar (2011), a faixa etária é um fator preponderante no que diz respeito aos “interesses” do leitor. Entretanto, [...] não podemos nos ater à satisfação das preferências de leitura. Precisamos, sobretudo, provocar novos interesses, de modo a multiplicar as práticas leitoras e diversificar os materiais à disposição do público. O ato de ler significa diálogo com o texto, descoberta de sentidos não-ditos e alargamentos dos horizontes do leitor para realidades ainda não visitadas. Por isso, quanto mais contato com a literatura e com o universo dos livros tanto maior a chance de formarmos leitores competentes. [...] (AGUIAR, 2011, p.114) É essencial, conforme Guaranha (2003), ter em vista que as leituras sugeridas em classe devem proporcionar, aos alunos, o ensejo de “criar”, isto é, “dialogar com o autor”. Além disso, é ideal que: [...] todo exercício de leitura seja direcionado para o ato criador. Quando o aluno descobre que é capaz de interagir com alguém que viveu séculos antes dele, quando percebe que é possível vincular a realidade da obra com a sua realidade,
  • 39. Argumentação e Linguagem Capítulo 3 30 então ele se interessa pelo texto. Para isso, é necessário que o professor trabalhe variedade e qualidade, propiciando o acesso a um repertório tão vasto quanto possível. (GUARANHA, 2003, p.20) À vista disso, faz-se oportuna a leitura dos clássicos que, de acordo com Ana Maria Machado (2002), são uma “herança”, um “imenso patrimônio”, “obras valiosíssimas que vêm se acumulando pelos séculos afora”. Ademais, seria uma “pena e desperdício” deixar de conhecê-las; visto que, ler os clássicos desde cedo viabiliza “uma melhor qualidade de leitura - a leitura crítica”. Leitura esta que oportuniza “comparar”, “argumentar” e “refutar”. Assim sendo, o Sermão da Sexagésima, de Padre Antônio Vieira é, decerto, um clássico da literatura. Esse sermão traz consigo [...]a regra da unidade do discurso persuasivo, presente em todo texto argumentativo eficaz. Ao fazermos com que nosso aluno perceba que também o texto dele deve versar um só assunto, o qual deve ser fundamentado em argumentos consistentes, a coerência de sua redação teria uma considerável melhora (PIRES, 2011, p. 141) 6 | RESULTADOS E DISCUSSÃO Com a finalidade de analisar o tema proposto, na escola em que se desenvolveu a presente pesquisa, foi aplicado um questionário constituído de 12 perguntas, dentre as quais foram selecionadas 6 para análise crítica quanto ao perfil dos alunos e de suas habilidades com relação ao desenvolvimento de textos dissertativos/argumentativos em sala de aula. Ao todo foram entrevistados 26 alunos, destes 38,5% pertencem ao sexo masculino, 57,7% ao sexo feminino e 3,8% não se identificaram; é importante ressaltar ainda que a maioria dos estudantes têm entre 17 e 18 anos. Na oitava questão, foi perguntado se os alunos conheciam os Sermões do Padre Antônio Vieira e 100% dos alunos confirmaram nunca terem tido contato com o Sermão da Sexagésima, nem com nenhum outro sermão vieiriano, dado este surpreendente, visto que este grupo de alunos já cursa o terceiro. Isso confirma a tese levantada por Noemi Lemes (2013) de que a escola não ensina seus alunos sobre a argumentação, deixando de trabalhar diversas possibilidades de leitura, que como os sermões, poderiam fomentar o desenvolvimento da prática argumentativa e promover o desempenho do aluno na produção textual. Numa breve análise do livro didático utilizado pela escola, verificou-se que os sermões do Padre Antônio Vieira não estão incluídos, há apenas pequena nota no LD do 1ª ano do Ensino Médio, na qual ele é apontado como um dos escritores do Barroco Brasileiro. Tal realidade leva a suposição de que a maioria dos professores se apropriam apenas dos textos que são incluídos no livro didático, no qual as obras são tratadas como mera exemplificação das escolas literárias. Ao constatar que 100% dos alunos nunca tiveram acesso à leitura dos Sermões,
  • 40. Argumentação e Linguagem Capítulo 3 31 algumas questões sobre os Sermões foram desconsideradas, visto que as mesmas buscavam verificar o nível de compreensão dos alunos acerca dos textos de Vieira. Dentre as perguntas estavam por exemplo: Leia os trechos e responda as questões propostas. 10) “Por isto são maus ouvintes os de entendimentos agudos. Mas os de vontades endurecidas ainda são piores, porque um entendimento agudo pode-se ferir pelos mesmos fios e vencer-se uma agudeza com outra maior; mas contra vontades endurecidas nenhuma coisa aproveita a agudeza, antes dana mais, porque quando as setas são mais agudas, tanto mais facilmente se despontam na pedra. Oh! Deus nos livre de vontades endurecidas, que ainda são piores que as pedras.” (Sermão da Sexagésima, de Pe. Antônio Vieira.) No trecho acima fica evidente que Vieira usa argumentos para: a ( ) fazer uma crítica aos maus ouvintes, pois não dão valor à Palavra de Deus b ( ) fazer uma crítica ao estilo de outros religiosos que, segundo ele, não sabiam pregar: falavam de vários assuntos, sendo alguns ineficazes em suas palavras ou tentanto agradar as vontades dos homens, e não a de Deus. Ele coloca a culpa nos pregadores e analisa a sua própria pregação c ( ) fazer uma crítica a Deus d ( ) fazer um elogio aos pregadores Em outra questão perguntou-se a visão dos alunos sobre seus próprios argumentos. Como fica evidente no Gráfico 1: Tendo em conta que a Retórica consiste na arte da palavra, da eloquência e de bem argumentar; perguntou-se aos discentes: o que é Retórica e apenas 31% responderam corretamente, dos outros 69%, 58% marcaram as outras alternativas e 11% não responderam. Tal como fica visível no Gráfico 2:
  • 41. Argumentação e Linguagem Capítulo 3 32 Por fim, após a leitura de alguns trechos do Sermão da Sexagésima, os educandos foram questionados se consideravam, ou não, o Padre Antônio Vieira um pregador de bons argumentos; e prontamente, a grande maioria (90%) respondeu que sim e apenas 10% afirmaram que não. Assim como fica explícito no Gráfico 3: 7 | CONSIDERAÇÕES FINAIS No processo de letramento considera-se que o gosto pela leitura e o incentivo à produção textual podem partir de qualquer gênero textual e literário. Desse modo, quanto mais diversificada for o acesso dos alunos/leitores ao universo dos gêneros literários, mais ampla será sua visão de mundo. Os Sermões do Padre Antônio Vieira configuram-se como recurso linguístico e literário de expressivo valor, sendo capaz de exemplificar a construção estilística da argumentação e da retórica, o que para o aluno do terceiro ano do Ensino Médio é de
  • 42. Argumentação e Linguagem Capítulo 3 33 grande valia, visto que precisa deter a competência textual para desenvolver redações dissertativo/argumentativas nos testes do vestibular. No entanto, conforme foi constatado neste estudo, os alunos, do 3º ano do Ensino Médio, da escola C.E. José Justino Pereira, não tiveram acesso aos sermões do Padre Antônio Vieira, fato esse que revela as escolhas do professor, uma vez que como mediador e formador desses leitores, é quem pesquisa, seleciona e possibilita aos alunos o contato com os mais diversos materiais para a leitura. O presente estudo, portanto, comprovou que os Sermões do Padre Antônio Vieira, mesmo sendo um material de leitura capaz de fomentar a prática discursiva, não tem sido utilizado para a ampliação do repertório de leitura dos alunos, visto não estarem presentes no livro didático, recurso que segundo Cosson (2006) ainda é o material de leitura primordial das salas de aula. Outrossim, como foi constatado no estudo da pesquisadora Noemi Lemes, e corroborado na breve pesquisa do presente artigo, a argumentação e a retórica devem ser ensinadas nas escolas, não só para garantir o ingresso dos alunos em uma Universidade, mas também a fim de que se tornem cidadãos críticos, preparados para o mercado de trabalho e para a vida. REFERÊNCIAS AGUIAR, Vera Teixeira de. A formação do leitor. In: UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA. Prograd. Caderno de formação: formação de professores didática geral. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2011, p. 104-116, v. 11. ALMEIDA, Marialda de Jesus. A persuasão nas crônicas de Lya Luft escritas na coluna “Ponto de Vista” para a revista Veja. Santo André, SP: 2009. ARISTÓTELES. Retórica. Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2005. ARISTÓTELES. Retórica das paixões. Introdução, notas e tradução do grego Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo, Martins Fontes, 2000. BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo : Cultrix, 1994. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo, Editora Contexto, 2006. GUARANHA, Manoel Francisco. O Sermão da Sexagésima e o processo argumentativo: estratégias de trabalho em classe. [s.l.]:[s.n.],s/d. KLEIMAN, Angela B. Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita / Angela B. Kleiman (org.) - Campinas, SP : Mercado de Letras, 1995. Coleção Letramento, Educação e Sociedade. KOCH, Ingedore. Argumentação e Linguagem. 7ª. ed. São Paulo: Cortez, 2002. LEMES, Noemi. Argumentação, Livro didático e Discurso jornalístico: vozes que se cruzam na disputa pelo dizer e silenciar. 2013. 116p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, USP, Ribeirão Preto, 2013.
  • 43. Argumentação e Linguagem Capítulo 3 34 LIMA, Marcos Aurélio de. A retórica em Aristóteles : da orientação das paixões ao aprimoramento da eupraxia. Natal : IFRN, 2011. MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clássicos universais desde cedo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. MELO, Sangia. Argumentação e persuasão: o sermão da Sexagéssima do Padre Antônio Vieira. 2005. 138f. Dissertação (Mestrado em Literatura e Crítica Literária) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2005. PAULINO, Graça. Letramento literário: cânones estéticos e cânones escolares. Caxambu: ANPED, 1998 (Anais em CD ROM). PERES, Rafael. Padre Antônio Vieira e o Sermão da Sexagésima : o pregador e sua retórica dialética. Disponível em: < Padre Antônio Vieira e o Sermão da Sexagésima - dEsEnrEdoS PDFdesenredos. dominiotemporario.com › doc> Acesso em : 25/05/18 PERELMAN, Chhaim & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação. São Paulo: Martins Fontes, 1996. PIRES, Elisa Tavares. A lição Barthes: a argumentação em sermão da sexagéssima: breve análise. Caderno Seminal Digital, V. 16, nº 16, p. 128-151, Ano 17 (Jul.- Dez/2011). ROHDEN, Luiz. O poder da linguagem: a arte retórica de Aristóteles. Disponível em:< o poder da linguagem a arte retórica de aristóteles - FAJEPDFperiodicos.faje.edu.br › article › download> Acesso em : 25/05/18 SAVIOLI, Francisco Platão; FIORIN, José Luíz. Manual do candidato: português. Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, 2001. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. São Paulo: Autêntica, 1999. STREET, Brian. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. Trad. Marcos Bagno. 1o ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2014. VIEIRA, Antônio. Sermão da Sexagésima. Disponível em : < Sermão da SexagésimaPDFwww. dominiopublico.gov.br › pesquisa> Acesso em : 20/05/18 WESTON, Anthony. A arte de argumentar. Tradução e apêndice de Desidério Murcho. Lisboa: Gradiva, 1996.
  • 44. Capítulo 4 35Argumentação e Linguagem ARQUITETURA DA ARTE DE CONTAR: A NATUREZA SOCIOLÓGICA E A COMUNICAÇÃO ESTÉTICA NO CONTO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO CAPÍTULO 4 Márcia Adriana Dias Kraemer Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS Realeza, Paraná Alba Maria Perfeito Universidade Estadual de Londrina – UEL Londrina, Paraná RESUMO: Este artigo apresenta reflexões acercadoestudodeenunciadosconcretossobre ogênerocontobrasileirocontemporâneoemsua natureza sociológica e estética. Para desvelar o caminho da investigação, empreendemos a análise do processo de produção do texto literário, focalizando o conto, ao perpassar aspectos preponderantes do contexto de criação,daabordagemtemática,daconstrução composicional e do estilo do gênero estudado. Na perspectiva materialista e dialética, acreditamos que o gênero discursivo conto constitui-se, segundo uma visão bakhtiniana, uma atividade de leitura e de escrita concreta e histórica; com características relativamente estáveis, vinculada a uma situação típica da comunicação social; com traços temáticos, estilísticos e composicionais concernentes a enunciados individuais, dessa forma, ligados à atividade humana. Os aspectos literários do gênero em foco, sob a ótica da Linguística Aplicada e da Análise Dialógica do Discurso, revelam os vários movimentos na dinâmica da interação verbal. Assim, ao refletirmos acerca do conto brasileiro contemporâneo, podemos dimencionar a importância de seu reconhecimento para a leitura como construção dos sentidos. Trata-se de uma pesquisa teórica, com caráter qualitativo de análise da geração dos dados, fins explicativos e método de abordagem dialético. PALAVRAS-CHAVE: Dialogismo; Gênero do Discurso; Conto. THE ARCHITECTURE OF THE STORYTELLING ART: THE SOCIOLOGICAL NATURE AND THE AESTHETIC COMMUNICATION IN THE BRAZILIAN CONTEMPORARY SHORT STORY ABSTRACT: This article presents reflections about studies of real texts belonging to the genre Brazilian contemporary short stories in its sociological and aesthetic nature. To unveil the path of research, we analyzed the production process of literary texts, focusing on the short story. We assessed predominant aspects of the creative context, the thematic approach, the compositional construction, and style of this genre. Under a materialist and dialectics view, we believe that the discursive genre short story constitutes, according to Bakhtin, a historical
  • 45. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 36 and real activity of reading and writing; with relatively stable characteristics, it is linked to a typical state of social communication; with its thematic, stylistic, and compositional traits related to individual statements, linked to human activity. The literary aspects of this genre, under the perspective ofApplied Linguistics and Dialogic DiscourseAnalysis, reveal the various movements in the dynamics of verbal interaction. Therefore, when we reflect on the contemporary Brazilian short story, we may measure the importance of its recognition for reading as construction of meanings. This is a theoretical research, with qualitative analysis of data generation, explanatory purposes and dialectical approach method. KEYWORDS: Dialogism, Address Gender Tale. 1 | ABORDAGEM SOCIOLÓGICA DA LINGUAGEM E O GÊNERO CONTO As discussões na contemporaneidade sobre gêneros privilegiam a relação entre texto e contexto, uma vez que as ações sociais são mediadas pela linguagem. Sob esse prisma, os elementos textuais decorrem da interação social, necessitando explicações centradas no contexto. Quando nos propomos a estudar gêneros, é preciso refletir acerca da metodologia de análise, pensando no objeto de estudo e nos procedimentos necessários. No intuito de conduzirmos adequadamente o processo de pesquisa do gênero focalizado, partimos de questões norteadoras, inseridas no contexto de investigação de nossa tese de doutorado, Reflexão sobre o Trabalho Docente: o conhecimento construído na formação continuada e a transposição didática, defendida em 2013, no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Londrina – UEL. O intuito da pesquisa foi apresentar uma análise relativa à contribuição das ações contempladas na pesquisa em formação contínua para a reflexão da práxis docente, pesquisando o processo de ensino-aprendizagem de língua portuguesa nas aulas do Ensino Médio que privilegiem o estudo de gêneros discursivos literários, em específico o conto brasileiro contemporâneo. A esfera na qual o gênero está inserido deve ser ponto de partida para a sua análise, implicando as condições de produção, de circulação e de recepção (BRAIT, 2003). Neste artigo, apresentamos, em princípio, o que a teoria define como contexto da produção literária; em seguida, aspectos concernentes à relação entre os temas da literatura na história da cultura; posteriormente, o impacto da criação literária do conto brasileiro contemporâneo; e, por fim, a natureza sociológica e estética desse gênero do discurso. 2 | O CONTEXTO DIALÉTICO DA PRODUÇÃO ARTÍSTICA O conto pertence à esfera literária e a literatura representa, em seu “fazer
  • 46. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 37 artístico”, uma dimensão prática dessa imaginação inferida por Bojunga (1998), um aspecto da faculdade de raciocínio. Falando no interdito da linguagem, ela permite ao leitor extrair suas próprias conclusões no processo de leitura, ao se defrontar, por exemplo, com problemas de situações cotidianas que lhe causam perplexidades: o indivíduo é estimulado, no processo do aprender, a compreender o como e o porquê dessas situações e é impulsionado a buscar soluções para elas No momento em que a leitura causa essa introjeção, o sujeito necessita entender o que se passa dentro de si, não por meio da compreensão racional da natureza e do conteúdo de seu inconsciente, mas por meio de divagações com o pensamento, de cogitações em que organiza os elementos adequados da história em resposta às pressões inconscientes. É nesse aspecto que reside o valor inestimável da literatura, ao oferecer novas dimensões à imaginação humana, àquilo que talvez ela não poderia descobrir verdadeiramente por si só. Condicionada à produção escrita desde a sua origem, a literatura pressupõe um documento destinado à leitura, o que implica a ideia de um conhecimento específico, justamente pelo tipo de signo empregado. No entanto, pelo fato de vivermos em um mundo de constantes mudanças, de novas cosmovisões e mundividências, também o ato de narrar redimensiona-se. No decorrer da história, provavelmente persista o fato de que os acontecimentos de uma narrativa geralmente são mais atraentes do que a própria realidade. Dessa maneira, o que nos leva à leitura de um texto artístico é aquilo de interessante que ele nos tem a dizer. As personagens imaginárias preenchem vazios da realidade. Assim, tanto a leitura quanto a criação de um texto narrativo é uma forma de sonhar acordado. Ao produzirmos essa espécie de mascaramento da verdade, criamos uma falsidade necessária ao disfarce do real, causando prazer pelo jogo de palavras que se descentram ao imprevisível. Para Barthes, “[...] esta trapaça salutar, esta esquiva, esse jogo magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor de uma revolução permanente da linguagem eu a chamo, quanto a mim, literatura.” (BARTHES, 2007, p. 16). Percebendo que o espaço de criação do texto literário é a liberdade, que dá autoridade ao autor para aderir ou transgredir padrões linguísticos, temáticos e estilísticos da tradição literária, é interessante salientar a maneira como as estratégias do dizer se constituem na seleção de palavras, na construção dos temas e no modo de organização narrativa utilizados pelo escritor para exteriorizar os fatos cotidianos e exprimir os pensamentos da humanidade a quem for ler. Para Barthes (1999), a escritura ou o modo de escrever é o que desencadeia a fruição da linguagem. O texto, em sua produção, encontra-se, segundo o autor, inserido em um sistema desconexo, que espera para ser organizado pelo escritor e, posteriormente, pelas inferências do leitor. Logo, não existe uma linguagem específica, mas a linguagem do próprio texto arranjada por quem escreve. Conforme Sartre (1993), um dos principais motivos da
  • 47. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 38 criação artística é a necessidade que o escritor tem de se sentir peça essencial em relação ao mundo. Ele pode introduzir ordem onde não havia e atribuir unidade à diversidade, formulando os seus próprios critérios para a produção. O que está sendo criado pelo autor parece estar sempre pendente, nunca encerrado ou em definitivo: “[...] o objeto literário [...] só existe em movimento. Para fazê-lo surgir é necessário um ato concreto que se chama leitura, e ele só dura enquanto essa leitura durar.” (SARTRE, 1993, p. 35). Podemos afirmar, então, que escrever implica ler. Ao construir o texto, o autor somente guia o leitor e abre caminhos para que este possa ir além do que está visível. O ato de escrever significa levar o leitor a desvendar o que o escritor empreendeu. Sendo o sentido da obra a sua totalidade: “[...] o ato criador é apenas um momento incompleto e abstrato da produção de uma obra; se o escritor existisse sozinho, poderia escrever quanto quisesse, e a obra enquanto objeto jamais viria à luz.” (SARTRE, 1993, p. 37). Nessa perspectiva, o escritor apela à liberdade do leitor para que este compartilhe da produção de sua obra. À semelhança de ler, escrever é revelar e desvendar o mundo, uma vez que o escritor procura dar aos leitores o prazer estético ou, conforme Sartre, a alegria estética. Para Barthes, o texto literário corresponde a um tecido em que o leitor se perde “[...] como uma aranha que se dissolve ela mesma nas secreções construtivas de sua teia [...]” (BARTHES, 1999, p. 83), ou seja, o texto se produz em um entrelaçamento contínuo e o leitor constrói a sua percepção de mundo por meio dessa interação dialógica com o escrito (BRÉMOND, 2008). Logo, a sensação de plenitude causada por uma obra de arte, como a literatura, pode ser decorrente do fato de o diálogo entre texto e leitor permanecer por muito tempo, uma vez que se transpõe uma linguagem multifacetada na busca pela apreensão do ser humano e do mundo em profundidade: A literatura é um lugar estratégico, ainda que não seja o único, para a observação das relações entre linguagem cotidiana e criatividade. Ela constitui uma das possibilidades de exploração da língua, como forma criativa e atuante de mobilização de palavras e estrutura linguísticas, apontando para inúmeros fins, para diferentes propósitos. (BRAIT, 2010, p. 41). Conforme Brait (2010), em seu percurso proposto para refletir a respeito da parceria entre língua e literatura, em se tratando de Análise Dialógica do Discurso, é imprescindível conversar sobre as contribuições de pensamento do Círculo bakhtiniano, sob a perspectiva de Volochínov e do próprio Bakhtin. A pesquisadora expõe que a literatura, para os pensadores do Círculo, é essencial ao entendimento da sociedade e dos momentos históricos, porque “Eles articulam língua e literatura para arquitetar a percepção dialógica da linguagem e os pilares de seus estudos.” (BRAIT, 2010, p. 19). Para Bakhtin, o mundo da visão artística é organizado por uma orientação axiológica, criando para o homem uma realidade estética diferente da cognitiva e ética, sem ser indiferente a estas. (BAKHTIN, 2003,
  • 48. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 39 p. 173).1 O autor também pontua que, desde os tempos clássicos até o presente, os gêneros literários não são estudados como determinados tipos de enunciados, que são diferentes de outros, porém, com natureza linguística comum. Quase não se leva em conta a questão linguística geral do enunciado e dos seus tipos. (BAKHTIN, 2003, p. 262-263). 3 | O TEMA E A HISTÓRIA DO TEMPO Bakhtin (2003), no ensaio Os estudos literários hoje (p. 359-366), expõe que o papel de análise dos gêneros dessa esfera é o de estabelecer aproximação inconteste com a história da cultura: A literatura é parte inseparável da cultura, não pode ser entendida fora do contexto pleno de toda a cultura de uma época. É inaceitável separá-la do restante da cultura e, como se faz constantemente, ligá-la imediatamente a fatores socieconômicos, por assim dizer, passando por cima da cultura. Esses fatores agem sobre a cultura no seu todo e só através dela e juntamente com ela influenciam a literatura. (BAKHTIN, 2003, p. 360-361). O autor explica que, pelo fato de ser multifacetado, o gênero da esfera literária deve ser estudado sobre variados enfoques, levando-se em conta, inclusive, as influências do seu passado cultural, pois uma obra é resultado complexo das vozes que ecoam por entre os diferentes momentos históricos: “As obras dissolvem as fronteiras da sua época, vivem nos séculos, isto é, no grande tempo, e além disso levam frequentemente (as grandes obras sempre) uma vida mais intensiva e plena que em sua atualidade.” (BAKHTIN, 2003, p. 363). O filósofo discorre a respeito do fato de os gêneros terem um significado particularmente importante na história: Ao longo de séculos de sua vida, os gêneros (da literatura e do discurso) acumulam formas de visão e assimilação de determinados aspectos do mundo. Para o escritor-artesão, os gêneros servem como chavão externo, já o grande artista desperta neles as potencialidades de sentido jacentes [...] O próprio autor e os seus contemporâneos vêem, conscientizam e avaliam antes de tudo aquilo que está mais próximo do seu dia de hoje. O autor é um prisioneiro de sua época, de sua atualidade. Os tempos posteriores o libertam dessa prisão, e os estudos literários têm a incumbência de ajudá-lo nessa libertação. (BAKHTIN, 2003, p.364). Aponta para a questão de que um texto-enunciado da esfera literária não se reduz à sua contemporaneidade e, portanto, também não permite uma leitura fechada, sem a devida mediação do contexto cultural e temporal. É preciso vê-lo interagindo com seu passado, seu presente e seu futuro, de forma exotópica. Nesse sentido, nega o modelo de análise centrado na tendência de caracterizar a cultura artística como um sistema estável de códigos, sem considerar a relação dialógica e, portanto, dialética da qual emergem os textos literários. 1 O problema do autor, Capítulo V (p. 173-191).
  • 49. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 40 Para Bakhtin (2003),2 em todas formas estéticas, o outro é fundamento axiológico organizador. A obra de arte não é um construto teórico, mas um acontecimento artístico vivo em que o autor é o sujeito do existir: a ele é dado o benefício da visão e da criação, sendo a sua obra o lugar desse acontecimento. De acordo com o autor, Integram o objeto estético todos os valores do mundo, mas com um determinado coeficiente estético; a posição do autor e seu desígnio artístico devem ser compreendidos no mundo em relação a todos esses valores. O que se conclui não são palavras, nem o material, mas o conjunto amplamente vivenciado do existir; o desígnio artístico constrói o mundo concreto: o espacial com seu centro axiológico – o corpo vivo-, o temporal com o seu centro – a alma – e, por último, o semântico, na unidade concreta mutuamente penetrante de todos. (BAKHTIN, 2003, p. 176). A contemporaneidade literária no Brasil, momento também conhecido como Pós-Modernidade ou Tendências Contemporâneas, compreende, aproximadamente, as mudanças ocorridas nas ciências, nas artes e nas sociedades avançadas desde 1945 até os dias de hoje (MOISÉS, 2001). Segundo Proença Filho (1988), alguns teóricos não aceitam essa denominação, afirmando que ainda não saímos da Terceira Geração Modernista. No entanto, adotamos, neste estudo, a primeira denominação. De acordo com Bosi (1987), a divisão dos momentos internos do período literário que vem depois de 1930 até os dias atuais é pouco clara, principalmente porque muitos escritores da primeira metade do século permanecem produzindo na contemporaneidade, com evidente capacidade de renovação. Todavia, para o crítico literário, a partir de 1950, somos dominados pelo tema e a ideologia desenvolvimentista. Embora se renove o gosto romântico e modernista pela arte regional e popular, em virtude do contexto sócio-político, voltam-se os olhos e os pensamentos ao potencial revolucionário da cultura nacional (MORELLI, 2007). Delineia-se, portanto, um panorama em que [...] a literatura escrita de 1930 para cá forme um todo cultural vivo e interligado, não obstante as fraturas de poética ocorridas depois da II Guerra. Daí ser precoce dar como passados e ultrapassados o romance social e o intimista dos anos de 30 e de 40; de resto, ambos têm sabido refazer-se paralelamente às experiências de vanguarda. (BOSI, 1987, p. 445). Na mesma linha, Moisés (2001) defende que o fato de vivenciarmos este tempo dificulta a nossa visão em relação aos seus contornos, mas é possível estabelecer uma divisão em três períodos: o primeiro, de 1945 a 1960, quando aparecem as vanguardas; o segundo, de 1960 até 1973, com Avalovara, de Osman Lins; e o terceiro, compreendendo desde 1973 até o momento. O Pós-Modernismo é considerado um fenômeno social, econômico e cultural, concomitante à chamada III Revolução 2 O problema do autor, Capítulo V (p. 173-191). Também em Discurso na Vida e Discurso na Arte (VO- LOSHINOV; BAKHTIN, 1926), os autores ressaltam a importância fundamental do papel do outro como um ator social que direciona os discursos, tanto nas esferas ideologicamente mais complexas quanto às do cotidiano: “A interrelação de autor e herói, afinal, nunca é realmente uma relação íntima de dois; todo o tempo a forma leva em conta o terceiro participante – o ouvinte – que exerce influência crucial em todos os outros fatores da obra.” (Ibid., p. 14).
  • 50. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 41 Industrial, a biotecnológica, em que os modelos redimensionam-se da produção para o consumo e o capital é potencializado. Os sujeitos, inseridos nesse contexto, demonstram um perfil comportamental voltado para as questões individuais e não coletivas: “A mão que afaga é a mesma que fere. Talvez esse provérbio possa ilustrar as consequências produzidas pela objetivação da nossa racionalidade – espelhada na técnica – que encontra seu apogeu na sociedade capitalista contemporânea.” (ZUIN et al., 2001, p. 45). Conforme Hall (1997), instaura-se uma maneira diferente de mudança estrutural que transforma as sociedades modernas no final do século XX. O efeito é a fragmentação do cenário cultural de classe, de gênero, de sexualidade, de etnia, de raça e de nacionalidade. Para o autor, no passado, tínhamos uma noção mais definida de indivíduo social. Hoje, perdemos nossa identidade pessoal, desacreditando que sejamos sujeitos integrados ao meio. Essa sensação de perda é geralmente denominada de deslocamento ou descentração do sujeito: “Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo.” (HALL, 1997, p. 9). Na sociedade, percebemos, recuperando o pensamento de Adorno (1996), a cultura convertendo-se, satisfeita de si, em um valor comercial, de acordo com o pensamento capitalista, resultando na superficialidade das relações humanas. Nasce com o pensamento moderno, segundo Santos, o individualismo, mas a exacerbação narcísica é um acréscimo pós-moderno: “Um, filho da civilização industrial, mobilizava as massas para a luta política; o outro, florescente na sociedade pós-industrial, dedica- se às minorias — sexuais, raciais, culturais —, atuando na micrologia do cotidiano.” (SANTOS, 2004, p. 18). Essa fragmentação dos diferentes âmbitos do homem contemporâneo universaliza-se na literatura, aparecendo no entrecruzar de tendências e de estilos, dialogando permanentemente com o passado, geralmente de forma anárquica e paródica. Entretanto, talvez o que mais impacta é a popularização da arte, subvertendo o tom intelectual preconizado até o modernismo (SANTOS, 2004). Para alguns filósofos da educação, como Adorno (2002), nessa expressão da indústria cultural, fruto da contemporaneidade, há o mascaramento tanto da crítica quanto do respeito, porque a primeira cede ao conhecimento mecânico e a segunda ao culto ao efêmero da celebridade. De acordo com o filósofo, a cultura mercadológica é alienante, porque os que dela dispõem reprimem tudo o que possa fazer com que ela fuja à imanência total da sociedade vigente, permitindo apenas o que serve aos seus propósitos. Nesse contexto, refletindo o momento contemporâneo, dialético, em que vida e arte interagem, contradizem-se, aproximam-se e mudam, pelo movimento ininterrupto do devir, é que o gênero conto, inserido no contexto nacional pelo Romantismo, ganha progressiva aceitação, adquirindo, consoante Moisés (2001), expansão e prestígio, até então pouco comuns:
  • 51. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 42 Contemporâneo da voga da literatura-americana (Borges, Cortázar, etc.), a hegemonia do conto talvez correspondesse a um sintoma de revolução numa área onde a modernidade demorara a instalar-se. As gerações de 20 e 30 concentraram o seu ímpeto renovador no romance, eventualmente movimentadas pelo preconceito segundo o qual o conto, além de ser tudo quanto o autor assim o desejasse, seria produto secundário, irrelevante. Com o pós-guerra, e a rapidez das transformações culturais, o conto – cada vez mais compacto – passou a ser signo da modernidade apressada, vindo assim a preencher tardiamente o seu espaço, como todo o exagero do anacronismo ou das falsas soluções. (MOISÉS, 2001, p.372). De acordo com Bosi (2006), o conto cumpre seu papel na escrita contemporânea pela versatilidade decorrente da narração realista, da busca do fantasioso e do estilo no jogo verbal. Para o crítico, a narrativa breve, paradoxalmente, “[...] condensa e potencia no seu espaço todas as possibilidades de ficção.” (BOSI, 2006, p. 7). O conto brasileiro contemporâneo mostra-se diversificado, aliando-se às temáticas do romance e buscando o texto sintético, repleto de nuanças de estilo (BOSI, 2006). À semelhança do restante das obras literárias do momento, coexistem o antigo e o moderno, bem como o experimentalismo e a tradição. As principais características semântico-ideológicas são: intensificação do ludismo, exposição da autoconsciência e da autorreflexão, radicalização de posições antirracionalistas e antiburguesas (PROENÇA FILHO,1988). Na perspectiva apontada, a prosa contemporânea, (BOSI, 1987; MOISÉS, 2001), diferentemente da poesia produzida no pós-guerra, é influenciada por várias tendências, refletindo o apego à tradição, em alguns casos, bem como a busca pelo novo, em outros, embora, neste último pressuposto, seu delineamento seja pouco marcado e seus autores não se destaquem pelo dogmatismo. Em nosso estudo, focalizamos a análise teórica do conto na contemporaneidade, na vertente da narrativa de enigma e do insólito na literatura, considerado “[...] um conjunto de narrativas que se marcam distintivamente pela presença de eventos insólitos não ocasionais, servindo-lhes de móvel.” (GARCÍA, 2007, p. 18). Para Todorov (2007), o estudo do insólito pressupõe a observação, principalmente pelo leitor, da hesitação impactante da personagem, condicionada às leis naturais, diante de um acontecimento inusitado, sobrenatural. Essa reação é efeito da construção composicional narrativa, do estilo e do tema. O insólito é visto como uma situação pouco frequente, rara, incomum ou anormal. O evento contraria, conforme García (2007), o usualmente conhecido, os hábitos, os costumes, as normas, as tradições. O insólito, como fenômeno, surpreende ou decepciona as expectativas comuns de determinada cultura. Por ser uma visão cultural, analisar a perspectiva do insólito é olhar a produção literária historicamente situada, porque há nela possivelmente a crítica do pensamento representado pelo momento em que se insere, exigindo o entendimento significativo do seu contexto de produção: [...] a percepção do elemento insólito se constrói no leitor não como um contraste, uma oposição à realidade – plano de fundo externo que determina, no jogo de
  • 52. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 43 concessões e aproximações, a rede de referências do indivíduo – mas sim como um contraste a uma “realidade” comunicativa. Ou seja, um elemento no linguagir que acontece a despeito das expectativas construídas graças a um conjunto de articulações envolvidas na experiência literária (as experiências passadas, o repertório de contato com o que ele identifica como pertencente ao sistema literário, a percepção da estruturação narratológica que dialoga com as expectativas das ordens simbólicas e sociais, e os contratos recepcionais por ele assinado no contexto da experiência). (PINTO, 2008, p.3). Cabe ressaltar que, na concepção de insólito, para Todorov (2007), transitam o fantástico, o estranho e o maravilhoso. O autor entende fantástico como a percepção do leitor e das personagens acerca de acontecimentos estranhos na diegese, mas com referências ao mundo real e referências geográficas identificáveis que possibilitam crer que os fatos narrados ocorrem em um plano da realidade. O estranho vai mais além. A situação narrativa apresenta-se de forma que o real é colocado sobre um espectro que provoca uma reação de estranhamento ou de repugnância tanto aos personagens quanto aos leitores: “O estranho realiza [...] uma só das condições do fantástico: a descrição de certas reações, em particular o medo; está ligado unicamente aos sentimentos das personagens e não a um acontecimento material que desafie a razão.” (TODOROV, 2007, p. 53). O maravilhoso na narrativa caracteriza os eventos insólitos sem explicitação plausível para a causa. Os fatos maravilhosos são vistos como algo do cotidiano representado no universo diegético. A ocorrência do insólito na narrativa maravilhosa não provoca estranheza nem questionamento por parte do leitor, bem como não há hesitação nas personagens diante do fato inusitado. Se na era medieval, as narrativas vinham do conflito entre o sagrado e o profano, um embate que até hoje marca presença no realismo fantástico, hoje, essa fuga da realidade, considerando um contexto de produção da década de 1930 em diante, reflete o confronto ideológico mais fluido que cedeu lugar ao ideológico político, mesmo que sem a panfletagem da geração literária de 30, mas que revela uma marca de propósitos comuns: recorrer ao inquietante na busca de representações imagéticas e discursivas da realidade verossímil. O modo discursivo é proveniente da já poética épica da Era Clássica com Homero, por exemplo, e carrega consigo alto valor estético e ideológico se pensarmos pelo viés literário como arte e pelo viés discursivo como veículo significativo de construção de sentidos marcados pela bivocalidade que constitui o gênero. Se tratar do fantástico é tratar de duas realidades possíveis e paralelas, logo, é colocar dois planos verossimilhantes enfrentando-se e dialogando. A literatura possibilita que isso aconteça por meio do seu discurso-arte ou discurso-de-saber que se evidencia com suas marcas linguísticas características e passíveis de categorização como qualquer outro gênero. Em se tratando de uma abordagem prática de leitura e de análise textual, esse sistema literário do real-naturalista vincula-se em dois planos: o real e o fantástico questionável, por meio dos quais se engendra a teia da verossimilhança.
  • 53. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 44 Suas abordagens temáticas fogem do tradicional engajamento observado em outros textos do Realismo ou mesmo do Modernismo, porque não há preocupação em comprometer-se com a realidade estética real. Esses textos se pautam pelo lúdico, pelo irreal, por manterem contato com o plano ontológico em que sólito e insólito se fundem. Por isso, observamos referências a lendas, a mitos, a criaturas fantásticas, a universos paralelos e a outras vertentes que seguem a linha do “estranho” de Freud e do imaginário cultural. 4 | O ENCANTAMENTO E O IMPACTO DA CRIAÇÃO Pelo fato de o conceito de conto ainda ser controverso entre os críticos literários, revisitaremos, aqui, algumas conceituações do gênero. Para Reis (1984), os juízos de valor que se cristalizam em cada época, caracterizando a tradição artística vigente, mostram-se dogmáticos para com o tratamento dos gêneros literários. O conto, como manifestação artística, também vivencia esse processo pelo qual, hoje, pode distanciar-se em alguns aspectos de sua herança cultural. Jolles (1976) expõe que o conto, em sua essência primeira, é uma criação espontânea com tendência ao plano do maravilhoso. É uma maneira peculiar de representar os eventos, tendo sentido somente no plano da narrativa: “Numa palavra: pode aplicar-se o universo ao conto e não o conto ao universo.” (JOLLES, 1976, p.193). Para o autor, as leis de formação do conto estão relacionadas ao princípio que o determina no plano da narrativa, a disposição mental: “[...] no Conto, que enfrenta abertamente o universo e o absorve, o universo conserva, pelo contrário, apesar dessa transformação, sua mobilidade, sua generalidade e – o que lhe dá a característica de ser novo de cada vez – sua pluralidade.” (JOLLES, 1976, p.193). Jolles (1976) explica que o princípio da disposição mental no conto, em sua origem, corresponde à ideia de que os eventos devem encaminhar-se na direção de um juízo axiológico orientado para o acontecimento. É um julgamento da ética do conhecimento ou moral ingênua, de ordem afetiva. Nesse aspecto, o conto distancia- se significativamente do comprometimento com um acontecimento real, tomando duas direções: “[...] por uma parte, toma e compreende o universo como uma realidade que ela recusa e que não corresponde à sua ética do acontecimento; por outra parte, propõe e adota um outro universo que satisfaz a todas as exigências da moral ingênua.” (JOLLES, 1976, p. 200). Por outro lado, de acordo com Reis (1984), é peculiar à arte rechaçar ligações que procuram enquadrá-la em compartimentos estanques. Dessa forma, para estudá- la, precisamos observar a sua dinamicidade: Se o valor do artístico reside naquilo que traz de novo, de inaugural, tal como o fósforo que, riscado, perde a serventia, qualquer juízo acerca da arte, mesmo se descritivo, para se manter atualizável, tem que caracterizar-se por uma certa “abertura”, ou seja, todo cuidado é pouco no sentido de evitar transformar-se em
  • 54. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 45 fórmula reducionista. (REIS, 1984, p. 23). Bosi (2006) explicita que o conto cumpre com seu papel de narrativa ficcional na contemporaneidade, dada a sua variedade ao atender os padrões da tendência realista, fantástica e de estilo variado. Conforme o autor, “[...] ora é o quase documento- folclórico, ora a quase-crônica da vida urbana, ora o quase-drama do cotidiano burguês, ora o quase-poema do imaginário às soltas, ora, enfim, grafia brilhante e preciosa votada às festas da linguagem.” (BOSI, 2006, p. 7). Procurando defini-lo, Gotlib apresenta três acepções da palavra conto: “1. relato de um acontecimento; 2. narração oral ou escrita de um acontecimento falso; 3. fábula que se conta às crianças para diverti-las.” (GOTLIB, 1999, p. 08) Embora com nuanças, todas as acepções têm um ponto comum: são modos de se contar algo e, como tal, são narrativas, correspondendo a um discurso integrado em uma sucessão de acontecimentos de interesse humano, na unidade de uma mesma ação. O conto é também visto, em sua construção composicional, como tendo uma estrutura linear, que não se aprofunda no estudo da psicologia das personagens nem das motivações de suas ações. Ao contrário, procura explicar, em poucas palavras, a essência das personas e o que as move, pela sua própria conduta (MAGALHÃES JUNIOR, 1972). Para Reis (1984), o conto não é só um texto em prosa que dá o seu recado em reduzido número de páginas ou linhas, considerando essa uma visão muito simplista da arquitetura do gênero. Para a autora, a questão primeira é que a sua maior qualidade está nos fatores concisão e brevidade, sendo o caráter quantitativo decorrente do qualitativo: Curto porque denso. Bosi (2006) defende que, em relação à invenção temática, o conto contemporâneo produz situações cotidianas do homem e de seu entorno, diferentemente do romance que é construído em eventos, o que produz sua brevidade. Friedman (2004), em relação à brevidade do gênero, conclui que a narrativa é curta, porque centrada em um única célula dramática também curta. Mesmo que o evento seja estendido, o conto é breve pela característica inerente da sua essência que é a condensação dos recursos narrativos. Isso não significa que é curto apenas por ter uma quantidade específica de palavras: Tudo o que podemos fazer, além de reconhecer sua brevidade, é perguntar como e por quê, mantendo simultaneamente equilibradas em nossas mentes as maneiras alternativas de responder a essas questões e suas possíveis combinações. Desse modo, podemos ganhar uma compreensão ampliada e, por conseqüência, apreciação das qualidades artísticas específicas dessa curiosa e esplêndida, apesar de excessivamente subestimada, arte. (FRIEDMAN, 2004, p. 230). Reis (1984) ressalta: seja por meio de um recorte da realidade, de um incidente corriqueiro, de um evento notável ou de fato algum - um conto parece ser “[...] a construção de um sentido que produza no leitor algo como uma explosão, levando as comportas mentais a expandirem-se, projetando a sensibilidade e a inteligência a
  • 55. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 46 dimensões que ultrapassem infinitamente o espaço e o tempo da leitura.” (REIS, 1984, p. 24). O impacto produzido por essa explosão pode advir do caráter incomum do que foi contado, da organização inesperada do evento, do estilo escolhido para narrar, da apreciação valorativa do contista que, por meio de sua engenhosidade, transveste o limite do óbvio, subvertendo originalmente o já dito. Apesar de o conto na contemporaneidade ter sucumbido em sua temática aos apelos do seu contexto sócio-histórico-cultural, sua estrutura monódica, fundamentada em uma única célula dramática, procura resistir às mudanças que possam comprometer sua característica fundamental. Contudo, para Moisés (2001), embora haja certa impermeabilidade à tentativa de deslocar a tradicional construção do conto, não significa que se mantenha inflexível, sedimentada. Só que tais mudanças consideram o delineamento do conto, porque [...] tudo se passa como se o conto, originária e matricialmente vinculado à fábula, pretendesse em nossos dias, a despeito ou em razão dos experimentos mais ousados, retomar a primitiva essência, - uma “história exemplar”, em cujo microcosmo o leitor se mira, em busca dos reflexos de sua identidade estilhaçada, ou dum momento de exorcismo dos demônios interiores. (MOISÉS, 2001, p.372- 373). Para os estudiosos do momento literário contemporâneo, como Fábio Lucas (1989), o conto, nas décadas do final do milênio, segue as tendências do romance: discurso fragmentado, as técnicas de montagem inspiradas no cinema, a visão surreal, a intromissão do grotesco como fator de crítica ao poder, a tendência ao estilo coloquial. Para Moisés (2001), “[...] é inegável que o boom aguçou a mestria dos criadores autênticos e aperfeiçoou o espírito analítico dos leitores [...]” (MOISÉS, 2001, p. 373). Existem vários modos de se construir esta unidade de uma mesma ação, pois é um projeto humano e depende, portanto, das peculiaridades da face e da fase do contista. Para Reis (1984), o conto, como modalidade narrativa, tem dois modos de formulação. Embora, em sua materialização literária, seja uma extensão das longevas narrativas da tradição oral, assimila tantas representações artísticas que, contemporaneamente, possui configuração própria, sendo reconhecido psicossocialmente como o gênero que é. Conforme o autor: Tempos houve em que um bom conto era a narração de um episódio com princípio, meio e fim, passado naturalmente num mesmo espaço físico, dentro de um limite razoável de tempo e constituído de uma única ação, ou, em linguagem um pouco mais formalizada, uma narrativa que apresentasse unidade de espaço, unidade de tempo e unidade de ação. Mas não posso olhar o que se faz hoje, em matéria de contos, com óculos embaçados por teias de aranha do passado. Correria o risco de começar a cortar: “isto não é conto”, “isto não é conto”, “também isto não é conto”, etc..., etc..., E claro que estaria incorrendo naquele mesmo “autoritarismo” lá do século XVII. (REIS, 1984, p. 25). Como construção artística, na modernidade, ao ser criado subjetivamente, pode
  • 56. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 47 diferir-se de sua origem, cujo cerne está na produção e na reprodução oral coletiva. A tendência do conto, quando passa a ser reproduzida na escrita, é de ser um gênero sujeito “[...] a experimentalismos e inovações, ganhando sempre como arte e esgueirando-se, cada vez mais, de concepções fechadas, normativas e estanques.” (REIS, 1984, p. 18). Diante dessas acepções, podemos perceber o conto na contemporaneidade, em seu aspecto formal, mantendo sua brevidade (desenrolar da ação em apenas um episódio), ainda envolvendo poucas personagens, pelo espaço físico diminuto (lugar único), e pelo tempo marcado por um período muito curto. Entretanto, parece evidente existirem vários modos de se construir a unidade da ação, por ser um projeto humano, com cronotopo específico e dependendo das peculiaridades da expressão e do momento do contista. 5 | A NATUREZA SOCIOLÓGICA DA ARTE E A COMUNICAÇÃO ESTÉTICA Em Discurso na vida e discurso na arte, Voloshinov e Bakhtin (1976)3 iniciam o texto discutindo a questão dos estudos literários que se tem proposto à abordagem do texto, centrando-se quase que exclusivamente no aspecto histórico e deixando praticamente esquecida a área de enunciados que envolve a forma artística e seus vários fatores como, por exemplo, o estilo. De acordo com os autores, há um equívoco no estudo moderno da arte que, mesmo adotando o método sociológico,4 ainda persiste em dissociar forma e conteúdo, bem como teoria e história, pois pressupõe que o processo artístico “[...] adquire complexidade através do fator ideológico (o conteúdo) e começa a se desenvolver historicamente nas condições da realidade social externa.” (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p.1). Eles consideram que essa perspectiva é paradoxal aos fundamentos basais do método marxista: seu monismo e sua historicidade. Isso porque, na visão dos pensadores, a arte é analisada como se não fosse de natureza sociológica, quando o é por condição primeira. Os autores afirmam que A arte, também, é imanentemente social; o meio social extra-artístico afetando de fora a arte, encontra resposta direta e intrínseca dentro dela. Não se trata de um elemento estranho afetando outro, mas de uma formação social, o estético, tal como o jurídico ou o cognitivo, é apenas uma variedade do social. A teoria da arte, conseqüentemente, só pode ser uma sociologia da arte. (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 3 Manteremos a diferença de grafia entre o sobrenome Volochínov e Voloshinov, conforme a obra consul- tada referenciá-lo. 4 O método sociológico usado pelo Círculo, à época, tem forte vínculo com o conceito de que o domínio da criação ideológica só pode ser encontrado pela perspectiva da sociologia ligada à concepção marxista, porque “Todos os outros métodos ‘imanentes’ estão pesadamente envolvidos em subjetivismo e têm sido incapazes, até hoje, de se libertarem da infrutífera controvérsia de opiniões e pontos de vista [...].” (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 2). Para os membros Círculo, a arte, como todos os produtos da criatividade humana, nasce na e para a sociedade, sendo afetada por esta. Consequentemente, a teoria da arte, para eles, só pode ser uma sociologia da arte.
  • 57. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 48 1976, p. 2-3). Considerando que o estudo sociológico precisa incidir sobre a teoria da arte, é preciso repensar, primeiro, como defendem os autores, a investigação que se restringe à obra, sem contemplar o processo de criação nem o de recepção; segundo, rever também aquela que fundamenta sua análise basicamente nas experiências do criador e do contemplador. No proposto, percebemos a crítica às duas orientações que têm como objetivo isolar e delimitar a linguagem, neste caso a artística, como um objeto de estudo específico: a que se refere ao objetivismo abstrato, em que o cerne da investigação é a estrutura da obra, vista como artefato físico; e a que remete ao subjetivismo idealista, em que apenas a psiquê individual do produtor ou do contemplador é relevante. Podemos entender, por meio dos preceitos apresentados, que a arte é vista pelos pensadores como uma forma social, semelhante a outras em suas generalidades, mas singular em suas especificidades, sendo tarefa da poética sociológica compreender seu jeito peculiar no processo de alteridade entre a obra, o criador e o contemplador. Conforme o seu entendimento, Qualquer coisa no material de uma obra de arte que não pode participar da comunicação entre criador e contemplador, que não pode se tornar o “médium”, o meio de sua comunicação, não pode igualmente ser o recipiente de valor artístico. Os métodos que ignoram a essência social da arte e tentam encontrar sua natureza e distinguir características apenas na organização do artefato, são obrigados realmente a projetar a interrelação social do criador e do contemplador em vários aspectos do material e em vários procedimentos para estruturar o material. Exatamente do mesmo modo, a estética psicológica projeta as mesmas relações sociais na psique individual do contemplador. Esta projeção distorce a integridade dessas interrelações e dá um falso quadro tanto do material quanto da psique. (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 4). A comunicação estética, nessa premissa, é totalmente absorvida tanto na criação artística quanto na sua constante recriação, por intermédio de seus contempladores, os quais podem tornar-se cocriadores. Para Voloshinov e Bakhtin (1976), ela não carece de qualquer outro tipo de objetivação, sendo uma maneira genuína de linguagem que não existe fora do contexto social, refletindo-o e interagindo com outras formas comunicativas. Ao longo do texto, ressalta-se uma perspectiva estilística que nega, de forma original, o que se postula até então sobre estilo. A questão deixa de ser tratada na sua individualidade e passa a implicar interação. Para os autores, a manifestação de um texto enunciado, efetivado pela existência normativa - ou construção sócio- histórica - de um dado gênero, em determinada esfera comunicativa, une os parceiros comunicativos em uma atitude responsiva, como copartícipes, os quais conhecem, compreendem e avaliam equitativamente a situação de produção. Os pensadores explicitam que
  • 58. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 49 [...] a situação extraverbal está longe de ser meramente a causa externa de um enunciado – ela não age sobre o enunciado de fora, como se fosse uma força mecânica. Melhor dizendo, a situação se integra ao enunciado como uma parte constitutiva essencial da estrutura de sua significação. Conseqüentemente, um enunciado concreto como um todo significativo compreende duas partes: (l) a parte percebida ou realizada em palavras e (2) a parte presumida. (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 06). Os autores defendem, portanto, que o traço distintivo dos enunciados concretos está no fato de eles estabelecerem a ligação entre o verbal, posto na materialização da linguagem, e o extraverbal, decorrente da vivência social em que os interactantes estão inseridos. Fora do contexto pragmático imediato, perdem significação e não produzem sentidos. Além disso, todo enunciado permite criar várias representações, porém a representação de cada sujeito tende a ser una: Todos os fenômenos que nos cercam estão do mesmo modo fundidos com julgamentos de valor. Se um julgamento de valor é de fato condicionado pela existência de uma dada comunidade, ele se torna uma matéria de crença dogmática, alguma coisa tida como certa e não submetida à discussão. Ao contrário, sempre que um julgamento básico de valor é verbalizado e justificado, nós podemos estar certos de que ele já se tornou duvidoso, separou-se de seu referente, deixou de organizar a vida e, conseqüentemente, perdeu sua conexão com as condições existenciais do grupo dado. (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 07). Os membros do Círculo afirmam que o juízo de valor não só é inerente ao conteúdo do discurso como conduz “[...] a própria seleção do material verbal e a forma do todo verbal” (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 7), encontrando a sua expressividade na entoação. Para eles, a entoação é a ligação entre o discurso verbal e o contexto extraverbal, “[...] a entoação genuína, viva, transporta o discurso verbal para além das fronteiras do verbal [...]”(VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 7). Entretanto, conforme a linha de pensamento proposta, a entoação só tem seu entendimento pleno na interação verbal, quando estabelecemos contato com os julgamentos de valor presumidos por um dado grupo social. Ela está na fronteira limítrofe entre o verbal e o não-verbal, [...] do dito com o não-dito. Na entoação, o discurso entra diretamente em contato com a vida. E é na entoação sobretudo que o falante entra em contato com o interlocutor ou interlocutores – a entoação é social por excelência. Ela é especialmente sensível a todas as vibrações da atmosfera social que envolve o falante. (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 07). Outro aspecto ressaltado pelos autores é o de que a entoação, no enunciado concreto, é mais metafórica do que a própria seleção lexical, porque a tendência do homem para criar mitos é imanente nela. Além disso, cada instância da entoação é orientada em duas direções: a do interlocutor, tendo-o como aliado ou testemunha; e a do objeto do enunciado, como um terceiro participante, a quem a entoação repreende ou agrada, denigre ou engrandece: Esta orientação social dupla é o que determina todos os aspectos da entoação e a torna inteligível. E a mesmíssima coisa é verdadeira para todos os outros fatores
  • 59. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 50 dos enunciados verbais: eles são todos organizados e tomam forma, sob todos os aspectos, no mesmo processo da dupla orientação do falante; esta origem social só é mais facilmente detectável na entoação porque ela é o fator verbal de maior sensibilidade, elasticidade e liberdade. (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 09, ênfase do autor). Em virtude disso, o enunciado concreto, na perspectiva dos autores nasce, vive e morre no processo da interação social entre os participantes da enunciação. Eles têm sua forma e significado determinados basicamente pela natureza da interação. Se retirados do contexto, perdem significado tanto na forma quanto no conteúdo, restando apenas uma casca linguística abstrata ou um “[...] esquema semântico igualmente abstrato (a banal “ideia da obra”, com a qual lidaram os primeiros teóricos e historiadores da literatura) – duas abstrações que não são passíveis de união mútua porque não há chão concreto para sua síntese orgânica.” (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 10). Nos pressupostos em Discurso na vida e discurso na arte, a obra poética segue a mesma articulação de outros gêneros de esferas distintas. Ela pode ser considerada “[...] um poderoso condensador de avaliações sociais não articuladas – cada palavra está saturada delas. São essas avaliações sociais que organizam a forma como sua expressão direta.” (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p.11). A valoração apreciativa do autor e o horizonte de expectativa dos interlocutores imediatos da situação de produção determinam a escolha lexical do escritor. As palavras são extraídas do contexto da vida em que estão imersas e impregnadas de juízos de valor, buscando a simpatia, a concordância e a discordância de seus ouvintes. Também a escolha do herói é recoberta de subjetividade, de avaliação ativa: “Ouvinte e herói são participantes constantes do evento criativo, o qual não deixa de ser nem por um instante um evento de comunicação viva envolvendo todos os três.” (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p.11). Assim, os autores salientam que: O estilo do poeta é engendrado do estilo de sua fala interior, a qual não se submete a controle, e sua fala interior é ela mesma o produto de sua vida social inteira. ‘O estilo é o homem’, dizem; mas poderíamos dizer: o estilo é pelo menos duas pessoas ou, mais precisamente, uma pessoa mais seu grupo social na forma do seu representante autorizado, o ouvinte - o participante constante na fala interior e exterior de uma pessoa. (VOLOSHINOV; BAKHTIN, 1976, p. 16). Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin/Volochínov (2006) apresentam um estudo do estilo, de maneira detalhada, das formas de citação da palavra de outrem (discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre), aspecto a ser destacado em nossa análise. Os autores focalizam a importância dos discursos alheios para a constituição dos discursos próprios, “[...] como uma unidade integral da construção.” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2006, p. 144). Na obra, observamos alguns dos aspectos do conceito de estilo na concepção bakhtiniana. De acordo com os autores, o estilo possui uma ordenação própria, isto é, organiza a sua maneira os discursos do outro e os elementos da língua, não negando, dessa forma, o caráter individual do autor. No entanto, o estilo nunca deixa de ser visto como
  • 60. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 51 um fenômeno social, uma vez que ele sempre se relaciona com os enunciados alheios. Bakhtin (2003) declara que, na literatura de ficção, o estilo integra-se ao próprio enunciado, pois “[...] os diferentes gêneros são diferentes possibilidades para a expressão da individualidade da linguagem através de diferentes aspectos da individualidade.” (BAKHTIN, 2003, p. 265). De acordo com o pensador, na maioria dos gêneros discursivos (com exceção dos artístico-literários), o estilo individual não faz parte do plano do enunciado, mas é seu produto complementar: O discurso citado é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação. (BAKHTIN; VOLOCHÍNOV, 2006, p.150). Em Estética da Criação Verbal (BAKHTIN, 2003), o autor postula que o estilo só pode ser compreendido em sua relação com o gênero no qual se concretiza. Nessa perspectiva, ele afirma que, na literatura de ficção, o estilo individual integra-se ao próprio enunciado, pois “[...] os diferentes gêneros são diferentes possibilidades para a expressão da individualidade da linguagem através de diferentes aspectos da individualidade.” (BAKHTIN, 2003, p. 265). Também as mudanças históricas dos estilos da linguagem estão relacionadas intrinsecamente às mudanças dos gêneros do discurso, porque a linguagem literária é um sistema dinâmico e complexo de estilos de linguagem, em transformação permanente. Os gêneros discursivos são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem: “Nenhum fenômeno novo (fonético, léxico, gramatical) pode integrar o sistema da língua sem ter percorrido um complexo e longo caminho de experimentação e elaboração de gêneros e estilos.” (BAKHTIN, 2003, p.267-268). Consoante Brait (2003), no que concerne ao estilo, Ainda que o termo não se restrinja necessariamente às artes, ele sempre diz respeito às idiossincrasias, a maneira de se expressar de uma determinada pessoa, sugerindo uma estreita e exclusiva relação entre estilo e personalidade, estilo e individualidade. Na melhor das hipóteses, e de um ponto de vista dos estudos lingüísticos mais recentes, o estilo pode estar pensado em função do texto e de suas formas de organização em relação às possibilidades oferecidas pela língua, estendendo-se a textos não necessariamente literários ou poéticos. (BRAIT, 2003, p. 1). Dessa forma, não há estilo sem gênero, o que observamos quando o autor analisa a questão sob a ótica da funcionalidade do enunciado real em que cada esfera da atividade e da comunicação humana tem seu estilo próprio: No fundo, os estilos de linguagem ou funcionais não são outra coisa senão estilos de gênero de determinadas esferas da atividade humana e da comunicação. Em cada campo existem e são empregados gêneros que correspondem às condições específicas de dado campo; é a esses gêneros que correspondem determinados estilos. Uma determinada função (científica, técnica, publicitária, oficial, cotidiana) e determinadas condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo, geram determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis. (BAKHTIN, 2003, p. 266). Assim, entendemos que o estilo é indissociável do gênero no qual se realiza e
  • 61. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 52 que, em seu contexto de construção, não há separação entre forma e conteúdo, entre teoria e história, porque o processo artístico pressupõe a apropriação da cronologia e das ideologias humanas, nas condições da realidade social externa. Logo, a arte é imanentemente social e o estético uma de suas variedades. Com efeito,teorizaraarteésociologizaraarte.Nesseprisma,aanáliseliteráriadeveprivilegiar o processo de alteridade entre criador, obra e contemplador. A comunicação estética, portanto, é criação artística e, ao mesmo tempo, recriação, porque é contemplação. Logo, os leitores tornam-se cocriadores. Dessa forma, deve ser entendida como um tipo de linguagem original, inserida em um contexto social, refletindo e refratando o mundo circundante. 6 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio da análise dos procedimentos investigativos orientados para o contexto, entendemos a relevância do estudo de textos-enunciados do gênero conto como expoentes literários, porque, do ponto de vista discursivo, constitui-se uma prática de leitura e de escrita concreta e histórica; uma composição com características relativamente estáveis, vinculada a uma situação típica da comunicação social; uma construção escrita com traços temáticos, estilísticos e composicionais concernentes a enunciados individuais, dessa forma, ligados à atividade humana. Em vista disso, torna-se um material profícuo para a análise das marcas linguístico-enunciativas, por meio das vozes que perpassam a comunicação verbal. Além, o conto demonstra ser um enunciado com temática relacionada à história humana e, portanto, vivenciada socialmente. Compreendemos, também, que, em cada momento histórico, em cada situação social, em cada interação, os enunciados que denotam autoridade, como o texto literário, é que dão o tom em qualquer esfera comunicativa, propiciando aos sujeitos fundamentar seu discurso, citando, parafraseando, estilizando, parodiando. É nesse movimento dialógico que a experiência discursiva própria do indivíduo desenvolve-se em uma interação constante e contínua com os enunciados dos outros. Asequência dos elos que motivam a ocorrência de um texto literário, de um conto, também tende ao desdobramento, em uma relação dialógica de movimentos, tanto de assimilação quanto de distanciamento das vozes que configuram a natureza do próprio discurso. O conto é um gênero discursivo, um elo na cadeia da comunicação discursiva do campo literário. Os seus limites são orquestrados pela alternância dos sujeitos do discurso, em sua natureza sociológica e arquitetura estética. Ele é impregnado de vozes, não bastando em si mesmo, refletindo e refratando outros discursos da mesma esfera ou de esferas diferentes. Isso lhe molda o caráter e, portanto, é repleto de atitudes responsivas a outros enunciados de campos de atividade humana variados.
  • 62. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 53 REFERÊNCIAS ADORNO, T. W. Teoria da semicultura. In: Educação & Sociedade: Revista Quadrimestral de Ciência e Educação, Campinas, Papirus, ano XVII, n. 56, p. 388-411, dez.1996. BAKHTIN, M. M.; VOLOCHÍNOV, V. N. (1929). Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. 12. ed. São Paulo: Hucitec, 2006. BAKHTIN, M. M. (1977). Estética da Criação Verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BARTHES, R. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 2007. BARTHES, R. O Prazer do Texto. Tradução de J. Guinsburg. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1999. BOJUNGA, L. Paisagem. 4. ed. 2. impr. Rio de Janeiro: Agir, 1998. BOSI, A. O Conto Brasileiro Contemporâneo. 15. reimpr. da 1. ed. de 1976. São Paulo: Cultrix, 2006. BOSI, A. História Concisa da Literatura Brasileira. 3. ed. 11. tiragem. São Paulo: Cultrix, 1987. BRAIT, B. Literatura e Outras Linguagens. São Paulo: Contexto, 2010. BRAIT, B. As Vozes Bakhtinianas e o Diálogo Inconcluso. In: BARROS, D.L.P.; FIORIN, J.L. (Orgs.). Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade em torno de Bakhtin. São Paulo: Edusp, 2003, p. 11-28. BRÉMOND, C. A Lógica dos Possíveis Narrativos. In: BARTHES, R. et al. Análise Estrutural da Narrativa. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 114-141. FRIEDMAN, N. O que Faz um Conto Ser Curto? Tradução de Marta Cavalcanti de Barros. Revista USP, São Paulo, n. 63, p. 219-230, set./nov. 2004. GARCÍA, F. O ‘Insólito’ na Narrativa Ficcional: a questão e os conceitos na teoria dos gêneros literários. In: GARCÍA, F. (Org.). A Banalização do Insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007. GOTLIB, N. B. Teoria do Conto. 9. ed. São Paulo: Ática, 1999. HALL, S. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1997. JOLLES, A. Formas Simples: legenda, saga, adivinha, ditado, caso, memorável, conto, chiste. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Cultrix, 1976. LUCAS, F. Do Barroco ao Moderno: vozes da literatura brasileira. São Paulo: Ática, 1989. MAGALHÃES JUNIOR, R. A Arte do Conto: sua história, seus gêneros, sua técnica, seus mestres. Rio de Janeiro: Bloch, 1972. MOISÉS, M. História da Literatura Brasileira: Modernismo. 5. ed. rev. atual. São Paulo: Cultrix, 2001. 3.v. MORELLI, E. Uma leitura de O vampiro de Curitiba, de Dalton Trevisan, à Luz do Pós-modernismo. Dialogia, São Paulo, n. 6, p. 77-84, 2007. Disponível em: portal.uninove.br/marketing/cope/pdfs_ revistas/dialogia/dialogia_v6/dialogia_v6_4f32.pdf. Acesso em: 10 jan. 2013.
  • 63. Argumentação e Linguagem Capítulo 4 54 PINTO, M. O. Ficção, Realidade e Leitores: o insólito como questão.Tessituras, Interações, Convergências. XI Congresso Internacional da ABRALIC. Universidade de São Paulo – USP, São Paulo, 13/17 jul. 2008. Anais do XI Congresso Internacional da ABRALIC. Disponível em: http:// www.abralic.org.br/anais/cong20 08/AnaisOnline/simposios/pdf/077/MARCELLO_PINTO.pdf. Acesso em: 10 jan. 2012. PROENÇA  FILHO, D. Pós-Modernismo e Literatura. São Paulo: Ática, 1988. REIS, L. de M. O Que É Conto? São Paulo: Brasiliense, 1984. SANTOS, J. F. O Que É Pós-Moderno. 1. ed. 22. reimpr. São Paulo: Brasiliense, 2004. SARTRE, J. P. O Que É a Literatura? Tradução Carlos Felipe Moisés. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993. TODOROV, T. Introdução à Literatura Fantástica. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2007. VOLOSHINOV, V. N.; BAKHTIN, M. M. (1926). Discurso na Vida e Discurso na Arte. Texto original Discourse in Life and Discourse in Art, traduzido por Trad. de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza. Apêndice In: VOLOSHINOV, V.N. Freudianism: a marxist critique. New York: Academic Press, 1976. Disponível em: http://www.linguagensdesenhadas.textos/autores/Bakhtin_Discurso_na_vida.pdf. Acesso em: 18 jan. 2010. ZUIN, A. A. S. et al. Adorno: o poder educativo do pensamento crítico. 3. ed. São Paulo: Vozes, 2001.
  • 64. Capítulo 5 55Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 5 COMO TRABALHAR A LITERATURA SOB REGIMES AUTORITÁRIOS EM SALA DE AULA Cícera Tayana Francelino Fernandes Universidade Regional do Cariri –URCA, Missão Velha-CE 1 | INTRODUÇÃO Esta pesquisa tem como objetivo compreender o desenvolvimento da história da literatura educacional no período da Ditadura Militar, de 1970 a 1978, nos poemas de Behr, Antônio Carlos de Brito e uma canção de Chico Buarque, mostrando como ela pode ser trabalhada em outras áreas do conhecimento, através da interdisciplinaridade, que beneficiará tanto o professor quanto o aluno, tornando a aula mais diferente, prática e dinâmica. A Literatura Brasileira é muito discutida nas escolas, vista e analisada apenas pelo lado das escolas e períodos literários. Porém poucas pessoas sabem da importância e contribuições que ela teve no período da Ditadura. Assim, pretendemos mostrar, além da sua forte relevância no período histórico, como os professores podem incluir na disciplina de História dentro da sala de aula, diante desse contexto. A metodologia utilizada neste trabalho baseia-se em pesquisa bibliográfica com revisão de Literatura. Para a coleta de dados serão feitos análiseemrecursos,taiscomo:Livros(poemas), elementos históricos e literários exclusivamente no período da Ditadura, e internet (Vídeos e documentários). Esses elementos serão analisados e comparados, tendo em vista à sua utilização em salas de aulas do ensino fundamental e médio. A pesquisa ainda conta de uma entrevista realizada com um professor da disciplina de História. 2 | A DITADURA MILITAR DENTRO DE UM CONTEXTO HISTÓRICO Para a Ditadura Militar ser entendida da melhor maneira possível, iniciaremos falando a partir de 1961, que começaram as intervenções no país, a partir da renúncia do presidente Jânio Quadros, tendo como substituto o vice João Goulart. Por sua vez, quando Jango (como era popularmente conhecido), começou a modificar as leis que traziam benefícios para os trabalhadores tanto urbanos, quanto rurais. Diante desses e de outros acontecimentos, Jango foi acusado de ser comunista e ameaçado pelos militares. Os principais fatores que ajudaram no golpe militar foram a instabilidade política e financeira, a situação que a população estava vivenciando e o apoio que os militares receberam tanto da igreja católica, como da
  • 65. Argumentação e Linguagem Capítulo 5 56 classe média. O golpe começou a ser realmente formado quando os generais Olímpio Mourão Filho e Odílio Denys, se reuniram com Magalhães Pinto que era o governador de Minas Gerais, para imobilizar os militares e então ficar com o poder. João Goulart recebeu ordens para prender Castelo Branco (nomeado chefe do Estado-Maior do Exército pelo então presidente da República João Goulart e foi o principal líder militar do Golpe Militar de 1964, que o deporia em 31 de março daquele ano.), porém, ele não poderia aceitar, pois iria começar uma guerra. Decidiu então, refugiar-se no Paraguai e deixando a presidência, depois que encontrou as tropas. Logo depois da ausência de Jango do poder, Castelo Branco é nomeado presidente. O Golpe, finalmente teve fim com a chegada de Tancredo Neves, o primeiro presidente civil desde o início da revolta. 2.1 A Literatura Sob a Óptica Pedagógica Podemos notar de início, que a Literatura dentro de uma visão mais pedagógica é trabalhada de maneiras diferentes quando comparamos a escola pública e privada. A maioria das escolas particulares (privadas) é trabalhada separadamente, ou seja, não conta incluídas com Português e redação, o enfoque é bem maior. Porém, em algumas escolas públicas ela não é tão valorizada assim. Não de uma forma generalizada, mas de uma visão bem superficial, é isso que ocorre na maioria das vezes, no ensino médio. Gabriela Rodella, especialista e doutora em Literatura, participou de um fórum, e durante uma entrevista, explicou sobre as diferentes realidades em que a Literatura pode atingir, e como ela pode ser levada às escolas planejando uma forma de ensiná- la. Ao ser inserida na escola, deve ser mostrado diante de textos Literários, e que, segundo ela “não é perca de tempo, ao contrário, isso é ganho de tempo”. Ela ainda ressalta uma pesquisa que fez, para saber o que os alunos gostavam de ler, e obteve o resultado que são livros não trabalhados na escola, chegando a conclusão que é um erro muito grave, pois o professor trabalha apenas com um cânone, considerado difícil. Claúdia Mesquita que trabalha com edição de livros infantis, também participou dessa entrevista, e fala: “o papel do professor, é conseguir atrair o seu aluno pra esse universo tão rico que a literatura propicia”. Em síntese, o que elas quiseram mostrar foi a dificuldade que os alunos têm sobre os livros trabalhados, e que o professor sendo mediador do conhecimento, deveria construir um elo, em que poderiam trabalhar tanto os clássicos, quanto os best-seller, por exemplo. Pois os estudantes tanto gostam como já sabem do que se trata. 2.2 A Situação da Literatura no Período da Ditadura Militar A Literatura passou por uma sucessão de censuras, por ser um instrumento de denúncias sobre a situação que o Brasil estava presenciando. Além das poesias e
  • 66. Argumentação e Linguagem Capítulo 5 57 canções, abarcou todo o espaço da imprensa, como a televisão, teatro e cinema. Eram destacados os principais autores para assim, manifestar-se mostrando o quadro dos acontecimentos. Ocorreram vários níveis de expressão artística para assim, existir um controle sendo trabalhada até com a Literatura infantil. A Ditadura Militar Brasileira ocorreu entre os anos de 1964 e 1985. Várias obras foram rejeitadas pelo estado. Um dos primeiros atos durante esse processo foi proibir as pessoas de expressarem sua opinião e o fechamento da editorial Vitória (editora brasileira ligada ao Partido Comunista Brasileiro, especializada em literatura marxista). Tudo isso fazia parte de um ‘jogo’ para mantê-los no comando. Em 1970 foi decretada uma lei que impedia essa liberdade (lei decreto n.1077/70), tratava-se de censurar livros, revistas para que o povo não tivesse acesso aos mesmos. Stephanou relata muito bem como eram feitas as apreensões. “As ações confiscatórias ocorriam de forma primária, improvisadas, efetuadas por pessoas mal treinadas” (STEPHANOU, 2001, p.215). 2.3 Os Principais Autores Que Participaram do Período Ditatorial O Brasil vivenciou duas décadas de repreensão. Dentro desse acontecimento Histórico podemos destacar alguns autores, que representaram de maneira singular as manifestações artísticas desse período. Foram muitos, na qual podem ser apresentados alguns autores principais que utilizaram a liberdade de expressão para superar a censura. Através dos romances foram descobertos os ataques que ocorriam, sendo muito doloroso para a família das vítimas, que tomavam conhecimento por meio de livros. A Literatura infantil foi o principal alvo dos escritores, por não ser supervisionada pelos generais. A escritora Ana Maria Machado consegue mostrar através de sua narrativa, os acontecimentos da época. Nas suas obras estão: “Tropical Sol da Liberdade”, e as infantis, “Bento-que-Bento-é-o-Frade”, “Era Uma Vez Um Tirano”, e “Raul Ferrugem Azul”. De acordo com Zilberman (1991, p.127) Em Ana Maria Machado, a proposta explicita de uma história de fadas invertida, onde o príncipe casa com a pastora e a princesa vai cuidar de sua vida, pode ser considerado o emblemado que pretende essa narrativa infantil moderna. Além da escritora Ana Maria Machado, há outros autores, como: Nelson Rodrigues, Caio Prado Junior, Rubem Fonseca, Cassandra Rios, entre outros, que buscaram mostrar através de Literatura os fatos ocorridos no país, exatamente no regime ditatorial por meio de romances. Segundo Dalcastagnè (1996, p.130). “É o romance que mais se preocupa em contar detalhes do período, fornecendo informações [...] sobre o comportamento da classe média sobre a situação das entidades estudantis do clero, dos jornalistas”. Porém, Ana Maria Machado em uma entrevista realizada no programa “entrelinhas”,
  • 67. Argumentação e Linguagem Capítulo 5 58 revelou sua verdadeira intenção quando escreveu “Tropical Sol da Liberdade”. Ela relata: Não era uma decisão prévia, não era uma história política, não havia um projeto ideológico. Quis falar da amendoeira, das formigas, do mar, da onda batendo. Aí começam as lembranças da casa e aí entra tudo. Acho que o ser humano, vivendo na sociedade, é político. Como eu vivi um momento de ditadura havia uma preeminência de se falar em liberdade. (MACHADO, 2010,). Contudo, ela não teve a intenção de sua obra ser interpretada de tal maneira. Porém o público analisou de maneira ‘errônea’, como se a mesma fosse voltada para a época em questão. Cândido ainda manifesta sua opinião acerca do assunto. [...] a posição do escritor depende do conceito social que os grupos elaboram em relação a ele, e não corresponde necessariamente ao seu próprio [...] se a obra é mediadora entre o autor entre o autor e o público, este é mediador entre o autor e a obra na medida em que o autor só adquire plena consciência da obra quando ela lhe é mostrada através da reação de terceiros. Isto quer dizer que o público é condição do autor conhecer a si próprio, pois esta revelação da obra é a sua revelação. Tanto a posição de Ana Maria Machado quanto à de Antônio Cândido estão se referindo ao fato de o autor não ter controle total no entendimento a respeito de sua obra, pois quando os leitores entram em contato com a mesma formará sua opinião, sendo escolhido o que é mais propicio para o momento. É exposto também, que a partir dessa condição que o leitor tem será revelado o conhecimento acerca do autor. 3 | A LITERATURA COMO CONHECIMENTO INTERDISCIPLINAR A Literatura aborda um imenso valor cultural, sendo comumente perpassado pela oralidade ou escrita. Entretanto, em sua pluridisciplinaridade ainda é pouco trabalhada. Pode ser pensada como uma forma pluridisciplinar. Considerada forma de sondagem, podendo até despertar o interesse dos alunos. Já foi comprovado a partir de estudos científicos (foram realizados na Universidade de Nice, em 1970, no primeiro seminário de Nice). Esses estudos puderam mostrar que a interdisciplinaridade faz parte de uma estratégia para beneficiar tanto o aluno quanto o professor. Está claro que os alunos não considera uma das disciplinas mais fáceis, e é pensando nisso que os professores estão buscando novas formas de atrair sua atenção, tornando-a mais acessível. É sabido que a História está ligada diretamente com a Literatura, porém pode ser relacionada com as demais. A Literatura pode ser considerada a área que mais tem afinidade com as outras, por ser algo que registra a cultura. Ela é dividida em vários períodos, que podemos destacar em cada um deles aspectos que cria vínculos com outras áreas do conhecimento. O primeiro exemplo será analisado a partir do Quinhetismo, este, porém, está vinculado inteiramente a História por ser abordados datas e dados históricos. O
  • 68. Argumentação e Linguagem Capítulo 5 59 Realismo é correspondente à Biologia, pois podemos ver em um exemplo claro que o escritor Aluísio de Azevedo traz em ‘O Cortiço’, em que o meio provocou uma alteração em alguns personagens. O Pré-Modernismo tem como característica principal a sociabilidade existente, e a obra ‘Os Sertões’ será relacionada à Geografia por se tratar de uma descrição geográfica entre a terra, o homem, e a luta. Podemos notar que a Literatura pode ser abordada em vários campos do saber, e trazendo para o lado da História, especificamente no período da ditadura, os alunos poderão enxergar de um outro ângulo sendo aprofundado a parte literária, e sobressaindo um pouco do rotineiro, e ao mesmo tempo mostrando algo além do que está nos livros didáticos. Os principais benefícios para os estudantes serão: Compreender o contexto cultural, na ocasião do golpe militar, a relação com a política nacional, aprender sobre os principais movimentos que ocorreram na época, entre outros. E acima de tudo, mostrar que a Literatura nem sempre foi aceita totalmente. 3.1 Análise Literária de Algumas Obras de Resistência A Ditadura Militar deixou rastros negativos para o país. A Literatura, porém, teve sua participação em romances escritos, que de certa forma conseguiu expressar e repassar através de palavras esse regime. A análise que será feita a seguir, foram publicadas entre os anos de 1970 e 1978. O primeiro poema é do escritor Nicolas Behr, chamado “Receita”, publicado em Caroço de goiaba (1978): Ingredientes: 2 conflitos de gerações 4 esperanças perdidas 3 litros de sangue fervido 5 sonhos eróticos 2 canções dos Beatles Modo de preparar: dissolva os sonhos eróticos nos dois litros de sangue fervido e deixe gelar seu coração corte tudo em pedacinhos e repita com as canções dos beatles o mesmo processo usado com os sonhos eróticos mas desta vez deixe ferver um pouco mais e mexa até dissolver parte do sangue pode ser substituído por suco de groselha mas os resultados não serão os mesmos sirva o poema simples ou com ilusões (BEHR, 1978)
  • 69. Argumentação e Linguagem Capítulo 5 60 O poema “Receita” faz uma referência aos impactos causados pela Ditadura para a juventude. Através de uma receita pôde ser mostrado que com a mudança de apenas um ingrediente poderia mudar o rumo dos acontecimentos. No primeiro verso, é feita uma análise, fechada somente para o contexto dos acontecimentos recentes, e em todo o poema relata marcas de autoritarismo. Contudo, o autor procurou mostrar como uma geração inteira foi atingida, trazendo no último verso as maneiras que leitor pode interpretá-lo, (“o poema simples”), ou (“ou com ilusões “). O próximo poema a ser analisado é do escritor Antônio Carlos de Brito, conhecido como Cacaso, chamado Jogos Florais, há duas versões: Jogos florais I Minha terra tem palmeiras onde canta o tico-tico. Enquanto isso o sabiá vive comendo o meu fubá. Ficou moderno o Brasil ficou moderno o milagre: a água já não vira vinho, vira direto vinagre. Na primeira é uma versão da “canção do Exílio” de Gonçalves Dias sendo investidas. Abordará de forma crítica, trocando alguns elementos, por exemplo, troca o sabiá pelo tico-tico, referindo-se que a população era submetida ao governo sofrendo exploração. Jogos florais II Minha terra tem Palmares memória cala-te já. Peço licença poética Belém capital Pará. Bem, meus prezados senhores dado o avançado da hora errata e efeitos do vinho o poeta sai de fininho. (será mesmo com dois esses que se escreve paçarinho?) No poema “Jogos Florais II” o poeta utiliza o poema de Oswald de Andrade, “Minha terra tem Palmares”, na qual faz uma crítica quanto a escravidão no Brasil, e da má distribuição de verbas, e por último mostra como tem habilidade para a escrita mas não está inserido no Cânone Literário, mostrado na grafia da palavra ‘passarinho’. Podemos notar que o autor fez uso de sua criatividade, usando poemas já conhecidos, transformando-os em críticas ao governo, para chamar a atenção das pessoas, para o momento em que passavam.
  • 70. Argumentação e Linguagem Capítulo 5 61 3.2 A Relação da Música com a Ditadura Como já foi mencionado, a censura não foi apenas em romances, mas em todas as expressões artísticas, como por exemplo a música. Uma das canções mais influentes é “cálice” do cantor e compositor Chico Buarque. Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor, engolir a labuta Mesmo calada a boca, resta o peito Silêncio na cidade não se escuta De que me vale ser filho da santa Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada pra a qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue De muito gorda a porca já não anda De muito usada a faca já não corta
  • 71. Argumentação e Linguagem Capítulo 5 62 Como é difícil, pai, abrir a porta Essa palavra presa na garganta Esse pileque homérico no mundo De que adianta ter boa vontade Mesmo calado o peito, resta a cuca Dos bêbados do centro da cidade Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Talvez o mundo não seja pequeno Nem seja a vida um fato consumado Quero inventar o meu próprio pecado Quero morrer do meu próprio veneno Quero perder de vez tua cabeça Minha cabeça perder teu juízo Quero cheirar fumaça de óleo diesel Me embriagar até que alguém me esqueça (Chico Buarque, Gilberto Gil, 1978). Essa música foi uma composição de Chico Buarque e Gilberto Gil, que buscou retratar a censura. Nesta canção a palavra “Cálice” não será no sentido religioso, mas sim um trocadilho com do verbo ‘calar-se’. Além dessa ideia, ainda expressava o sofrimento físico e a tortura, e a melodia também faz relação com o sofrimento tendo um ar melancólico. Essa canção foi censurada, e não pôde ser apresentada em um festival, que ocorreu no Estado de São Paulo em 1973. Gilberto Gil explica em uma entrevista que foi pensada justamente para expressar a dor, o tormento e repreensão. 4 | RESULTADOS E DISCUSSÃO Para ajudar nesse trabalho, fomos à procura do professor Glauber Robson Oliveira Lima, Professor de História na Escola Estadual Padre Coriolano, e professor na Universidade Karius, que nos concedeu uma entrevista para ajudar nos resultados. O motivo da escolha foi baseado no conhecimento que já tínhamos de seu trabalho, e pelo fato de ele já está trabalhando com a Literatura nas suas aulas de História. Foram feitas algumas perguntas, as quais foram respondidas em forma de texto, englobando todo o assunto. Nosso objetivo central com essa entrevista foi traçar um perfil da relação entre o uso da Literatura no ensino de História. Dentre as perguntas apresentadas, podem ser destacadas: ‘como se encontra a disciplina de História nas
  • 72. Argumentação e Linguagem Capítulo 5 63 últimas décadas’, ‘como ocorreu o cerceamento da supressão das ciências humanas’, ‘como os professores abordam esse assunto na atualidade’, ‘quais os principais desafios para o professor ‘e ‘os resultados obtidos’. Os quatro parágrafos a seguir envolve todas essas perguntas e mais outros questionamentos que o próprio professor quis indagar relativo à temática. A disciplina de História, nas últimas décadas, tem contado com o apoio de importantes fontes, além dos documentos tradicionais, conhecidos como documentos oficiais, são utilizados também imagens como fontes históricas e textos também. Desde textos jornalísticos, como também textos literários. Esse material tem sido de muita importância para auxiliar o trabalho do professor em sala de aula. Por essa disciplina tratar do passado, é sempre muito complexo fazer o processo de abstração com os alunos. Fazer com que eles possam compreender de uma forma mais direta os conteúdos aplicados. Além da literatura brasileira tradicional também temos nos apoiado em músicas, essas músicas têm sido de suma importância para o trabalho do licenciado de História, para facilitar fazendo com que os alunos compreendam melhor o conteúdo. No que tange ao período específico da Ditadura Militar será dividido em duas formas: como era o ensino de História naquele período, e como abordamos esse período no século XXI. Após o golpe de 1964, tivemos então o cerceamento da liberdade e com o ato institucional chamado AI-5, (foi a expressão mais acabada da ditadura militar brasileira) ocorreu a supressão dos conteúdos da área de ciências humanas, então o conteúdo crítico-reflexivo que as Universidades Brasileiras vinham buscando tratar ao longo das últimas décadas ou seja, final dos anos quarenta e começo dos anos cinquenta, até fina de 1964, esses conteúdos foram escolhidos, ou seja, o direito de refletir foi cerceado , inclusive dentro das universidades, e aqueles professores que teimavam em desenvolver seus conteúdos foram considerados como professores subversivos, que acabavam sendo presos. Então o conteúdo de História em si, na Ditadura Militar, foi suprimido, onde houve a substituição das ciências humanas, de forma geral, como a sociologia e a filosofia, por duas disciplinas do regime militar, que foram a OSPB (Organização Social Política Brasileira) e a disciplinas de moral e cívica. Essas duas disciplinas tinham como fundamental importância suprimir a criticidade dos alunos e criar uma aparência de regime democrático, pois os militares nunca usaram o termo ‘golpe’, posicionavam-se como revolucionários, então as disciplinas eram para manter a ordem e o civismo. Já na atualidade, os professores abordam o conteúdo de História diante de um posicionamento denominado crítico-reflexivo. No final dos anos oitenta para o início dos anos noventa, o marxismo predominou nas universidades, e no Brasil não foi diferente, então começaram as abordagens de uma forma crítica, contando não mais somente a história positivista, a história dos grandes heróis e das grandes datas, mas também abordando de uma forma crítica-reflexiva, ou seja, não só criticando, mas refletindo também dentro desse posicionamento. Hoje no que se refere a trabalhar o
  • 73. Argumentação e Linguagem Capítulo 5 64 tema da ditadura militar no ensino médio, inicia-se pelo processo de apanhado gera e de situação dos alunos, que para falar desse período, começa a abordar o período da ‘Era Vargas’, que culminava com o suicídio dele, pois na verdade o golpe civil militar começa a ser preparado em 1954, portanto, dez aos antes do suicídio de Vargas em agosto de 1954, acabou adiando o golpe. Primeiramente ocorre a demonstração das forças conservadoras do Brasil, que culmina com o golpe dentre outros aspectos. Quando começa essa abordagem, utilizamos os romancistas da época, começando a citar uma pessoa que escreveu muito bem a situação do Brasil, o escrito Baiano Jorge Amado, com o livro ‘Capitães de Areia’, ‘O Porto dos Milagres’, e ‘vidas Secas’ de Graciliano Ramos, e romances de Rachel de Queiroz. São obras que ajudam a entender o golpe pré-militar. Após o golpe, devemos frisar que houve um cerceamento, sementes de liberdade que chegou à Literatura, que foram queimadas e proibidas de circular sendo suprimidas pelo autoritarismo do governo. As principais obras que são utilizadas em sala de aula, são livros biográficos como, por exemplo, ‘Combate nas trevas’ do escritor Jacob Gorender, que conta a própria história. Outro livro nesse mesmo nicho é ‘O que é isso companheiro?’ do escritor Fernando Gabeira. O professor Glauber conta que gosta de trabalhar por ser os autores eu vivenciam e depois contam, entre muitos outros. A música e os filmes são elementos muito bons. Além dos clássicos como o ‘Cálice’, canção de Chico Buarque, temos outros estilos como o Hip Hop que também trabalha acerca do assunto. Filmes como ‘Hércules 56’, ‘Lamarca’, ajudam também a entender melhor esse assunto. O principal desafio é a tecnologia, pois fazer com que os alunos leiam é difícil. Um recurso que o professor usa são as plataformas digitais. Um exemplo que ele cita, é quando indica algum livro, ele verifica se existe em PDF para assim despertar o interesse dos alunos. Outro exemplo é fazer com que o celular se torne um aliado em sala de aula, incentivando-os a fazerem pesquisas através desses parelhos. Os resultados, o professor explica, que divide em dois pontos: O primeiro ponto são os resultados gerais, quando ele consegue fazer com que os alunos leiam os livros da biblioteca, ou lido nas plataformas, ou até mesmo emprestados por ele, é perceptível que a aprendizagem desse aluno se consolide, ou seja, o aluno que ler e que busca escutar as músicas, quando ocorre o diálogo com o professor, ou a realização de atividades é visível o melhoramento da aprendizagem 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de tudo, afirmamos que o propósito desse trabalho foi de mostrar a relevância da Literatura na sua interdisplinaridade, e como ela pode ajudar o professor de História vendo pelo lado mais específico do contexto. A partir de várias análises, e com a ajuda da entrevista realizada com o professor, conseguimos obter o número
  • 74. Argumentação e Linguagem Capítulo 5 65 suficiente de informações para assim, concluir que esse assunto não é algo novo, e é muito mais importante do que se pensa. Vendo pelo lado pedagógico, nem todos os professores enxergam e utilizam esse método, utilizado com o propósito de atrair a atenção dos alunos. O uso da tecnologia é um aliado para a concretização disso, pois ajuda bastante a entrar no universo literário e histórico, tendo como base e objetivo a aproximação dos estudantes em meio a esse universo tecnológico do século XXI. Conseguimos apresentar também, ideias, estratégias, exemplos de obras a serem trabalhadas, entre outros elementos, que a maioria dos discentes não tiveram contato, podendo unir os gostos dos mesmos a seus gostos do cotidiano, podendo assim obter resultados tanto para a escola obtendo resultados, quanto para eles mesmo, como, por exemplo, ajudar no vestibular, com o conhecimento adquirido. REFERÊNCIAS BEHR, Nicolas. Receita. Disponível em: <https://medium.com/@Wellington3x4s/ingredientes-de- nicolas-behr-6cf0c16986df >. Acesso em 23 dez. 2017. Brasil ,Decreto Federal, 1970. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto- lei/1965-1988/Del1077.htm> acesso em 23 dez. 2017. BUARQUE, Chico; GIL, Gilberto. Cálice. 1978. Disponível: http://www.letras.mus.br/chico- buarque/45121/ acesso em 23 dez.2017. LIMA, Glauber Robson de Oliveira. Entrevista Sob a Visão de se trabalhar a Literatura na disciplina de História. [Entrevista cedida no dia 09 de janeiro de 2018]. MACHADO, Ana Maria. [Entrevista disponibilizada em 18 de outubro de 2010, no programa entrelinhas.Disponível:http://tvcultura.com.br/videos/27145_entrelinhas-ana-maria-machado.html. Acesso em 23 dez de 2017. MARTINS, Ivanda. Desafios do Ensino da Literatura na Visão do Professor do Ensino Médio. 4.ed. São Paulo: Editora atual, 2006. NICOLA, José de. Literatura Brasileira, das Origens até os Dias Atuais. Spicione: São Paulo, 2000. Repressão na Criação. Publicado em 14 de junho de 2012. RODELLA, Gabriela; MESQUITA, Claúdia.A Educação Integral e o Ensino de Literatura. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=5&v=V52FgE7RJ5Q>. Acesso em 24 dez de 2017. SOUSA, Eliete Nunes.O Contexto Histórico da Ditadura Militar. Artigo disponível em:<https://www. zemoleza.com.br/trabalho-academico/sociais-aplicadas/servico-social/o-contexto-historico-da-ditadura- militar/ >2008. Acesso em 23 dez de 2017. STEPHANOU, Alexandre Ayub. Censura no Regime Militar e Militarização das Artes. Porto Alegre : Edipucrs, P. 215, 2001. ZILBERMAN, Regina. Marisa Literária Infantil - Histórias e Histórias.Lajolo. Disponível em : https://pt.slideshare.net/daniellemorais528/marisalajoloreginazilbermanliteraturainfantilbrasileirahistoria ehistoriasdocrev. 1991.Acesso em 24 dez de 2017.
  • 75. Capítulo 6 66Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 6 A INTENCIONALIDADE MARCADA NOS TEXTOS INSTRUCIONAIS: O QUE HÁ DE NOVO NISSO? Hilma Ribeiro de Mendonça Ferreira Cap/UERJ Rio de Janeiro Silvia Adélia Henrique Guimarães SME/RJ Rio de Janeiro. RESUMO: Os textos instrucionais têm por finalidade designar procedimentos para os leitores que precisam desempenhar tarefas de diferentes naturezas. Entretanto, apesar de uma similaridade enunciativa pressuposta, encontramos formas de enunciação discursiva discrepantes, dependendo do gênero textual. Partindo desse achado, e baseada no paradigma interpretativista, a presente pesquisa analisa textos instrucionais de três diferentes gêneros, com vistas a observar as intenções que permeiam o tipo textual injuntivo. Mas também reflete sobre como a escola pode valer-se desses mecanismos linguísticos para potencializar a leitura dos alunos. Baseado nos Atos de Fala (AUSTIN 1962; SEARLE 1969; 1981; 2002), que possibilitaram observar os comandos expostos nos textos, o resultado das análises sugerem que as estruturas frasais usadas para instruir pressupõem níveis impositivos diferentes com que os locutores enunciam os procedimentos. Mostram também que o componente ilocucionário e a natureza do gênero em que as frases são usadas constituem os balizadores dessas instruções. Apesar de algumas limitações, como a comparação entre apenas quatro gêneros, quando há vários outros gêneros pertencentes ao tipo injuntivo, os resultados possibilitam uma reflexão crítica sobre a reprodução do pressuposto, principalmente nas escolas básicas, de que a injunção oferece apenas ordens ou comandos. PALAVRAS-CHAVE: Atos de Fala; Textos instrucionais; Leitura na escola. THE INTENTIONALITY MARKED IN INSTRUCTIONAL TEXTS: WHAT’S NEW IN IT? ABSTRACT: The instructional texts are intended to designate procedures for readers who need to perform tasks of different natures. However, despite an assumed expository similarity, we find forms of disparate discursive enunciation, depending on the genre. Based on this finding, and based on the interpretive paradigm, this research analyzes instructional texts from three different genres, in order to observe the intentions that underlie the injunctive textual type. But also reflects on how school can draw on these linguistic mechanisms to enhance the students’ reading. Based on Speech Acts (AUSTIN 1962; SEARLE 1969; 1981; 2002),
  • 76. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 67 which made it possible to observe the commands exposed in the texts, the test results suggest that the phrasal structures used to instruct assume different imposition levels with which the speakers set out the procedures. They also show that the illocutionary component and the nature of the genre in which phrases are used are the benchmarks of these instructions. Despite some limitations, such as the comparison of only four genres, when there are several other genres of the injunctive type, the results allow a critical reflection on the reproduction of assumption, particularly in primary schools, that the injunction only offers orders or commands. KEYWORDS: Speech Acts; Instructional texts; Reading at school. 1 | INTRODUÇÃO O presente estudo parte de dois objetivos centrais: estudar quatro gêneros instrucionais, considerando os aspectos linguísticos mobilizadores da leitura de textos injuntivos; e refletir em como a escola pode trabalhar a leitura de textos injuntivos, mobilizando nos alunos a conscientização dos procedimentos linguísticos adequados para a compreensão do texto injuntivo. Se entendemos a escola como um lugar facilitador para o ensino da leitura eficiente e eficaz; se a vemos como um espaço formal para a construção de um cidadão no mundo – o mundo contemporâneo dialógico –, questionamos: quais oportunidades reais de contato com a leitura os professores têm dado aos alunos? Essas práticas têm de fato propiciado a esses sujeitos os sentidos possíveis do texto, com interação, discussão e apresentação dos elementos linguísticos como pistas concretas para a compreensão textual; ou têm, apenas, reproduzido a metodologia limitadora e memorizadora da Idade Média? Com vistas a refletir sobre as perguntas elencadas, concentramo-nos na percepção de que os textos instrucionais, embora apresentem finalidade de uso correspondente – a instrução por meio de frases indicativas de procedimentos – pressupõem uma predisposição das instruções de formas diferenciadas. A partir dessa primeira noção, constatamos que essas formas de instruir estarão sempre de acordo com as forças ilocutórias relacionadas ao ato diretivo como preconizado por Searle (2002). Entretanto, as frases indicativas de procedimentos também podem mostrar outros atos de fala, se analisados à luz dos atos locucionário e perlocucionário, para além do nível intencional, intrínseco ao ilocucionário. Para atingirmos nosso objetivo, analisamos as instruções partindo da materialidade linguística desses textos. A partir dessa análise linguística, consideramos as marcas que pudessem sinalizar os atos de fala comuns às frases de natureza instrucional. Para isso, concentramo-nos nos enunciados instrucionais que se predispõem a mostrar as intenções do locutor ao estipular procedimentos, já que essas instruções podem demonstrar como ocorrem as configurações comuns ao texto classificado como do tipo injuntivo.
  • 77. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 68 Nos resultados desta análise linguística, percebemos que ocorre uma sobreposição de fatores textuais: 1) o nível das frases, usadas para instruir na leitura; e 2) o nível as ações, unidades subjacentes com valores discursivos que indicam as intenções a serem assumidas a partir das estruturas frasais. Postulamos, portanto, que o tipo textual injuntivo, elucidado por meio das frases indicativas de instruções pode ser analisado em decorrência dos atos de fala, não ficando restrito, apenas, às frases tradicionalmente classificadas como “imperativas”. Nessa perspectiva analítica, as relações entre a intencionalidade e os procedimentos denotam perspectivas acionistas importantes, se o processamento dos sentidos for pensado dessa forma durante a leitura. Com base nesses achados linguísticos, achamos producente imbricar os resultados das análises e as estratégias de leitura adotadas na escola, já que entendemos que o professor precisa dispor de ferramentas teórico-analíticas, para poder provocar a leitura ativa desse aluno. Para compor o corpus, selecionamos quatro textos instrucionais, sendo um exemplar do gênero textual receita, um do manual, um da bula e um do contrato. Os dados, analisados pela teoria dos atos de fala (AUSTIN, 1990, 1962; SEARLE 1969; 1988; 2002) possibilitaram uma discussão sobre sua aplicabilidade nos estudos voltados para a leitura na escola. Para promover a organização textual do trabalho, o artigo está dividido em seções. Em primeiro momento, traremos um embasamento teórico que a) abrange os principais conceitos dos Atos de Fala; b) retoma e distingue os conceitos de tipo e gênero textual; e b) resume os conceitos básicos de leitura aplicada ao ensino. Em segundo momento, contextualizamos o trabalho metodologicamente para, finalmente, apresentarmos e discutirmos os dados. Para encerrar, traremos algumas considerações, optando por não denominá-las como “conclusão”, principalmente pelo caráter promissor de continuidade deste estudo. 2 | FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Sendo a natureza acionista da linguagem o eixo central para o entendimento dos usos linguísticos, Austin (1962) e Searle (1969) debruçam-se sobre a questão da performatividade a partir da produção verbal dos indivíduos. Dessa forma, ressaltam- se aspectos importantes nas contribuições dos dois autores, nas subseções a seguir. 2.1 Austin e os ilocucionários e a natureza performativa da linguagem. John Austin (1962), o principal idealizador do que constitui atualmente a vertente pragmática intitulada por “teoria dos atos de fala”, concentra seus esforços na caracterização da ação, evidenciando alguns componentes importantes da produção verbal dos indivíduos. Desse modo, para além da dicotomia filosófica entre sentido e realidade, Austin postula a evidenciação de três componentes comunicativos, que
  • 78. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 69 se tornam fundamentais para a exposição aqui proposta. Para o autor, o ato de fala composto de três partes, três atos simultâneos os “locutórios” (atos de “dizer qualquer coisa”) , os “ilocutórios” (atos efetuados “ao dizer qualquer coisa”) e os “perlocutórios” (atos efetuados “pelo fato de dizer qualquer coisa”) (CHARAUDEAU e MAINGUENAU, 2006, p. 73) Esses três níveis de atos de fala são desdobrados em suas atribuições das possíveis diferenciações de ações e tipos de atos de fala, inerentes às três “esferas ilocutórias”. Também é mérito de seus estudos uma primeira diferenciação dos tipos de atos de fala, pois o autor gerou o uma categorização dos subtipos de atos, categorizados como “vereditivos”, “exercitivos”, “compromissivos”, “expositivos” e “comportativos”. Contudo, neste artigo, salientamos a dificuldade de caracterização do que constitui o ilocucionário, com respeito à taxonomia, fator já abordado por Rajagopalan (2010). Esse autor destaca que a vinculação do ilocucionário ao verbo performativo, crítica de Searle (2002) é, por outro lado, uma atribuição da qual o próprio Searle não conseguiu se desvencilhar, como mostrado por Rajagopalan (2010, p. 51). Por isso, coadunamos nossa visão a de Rajagopalan (1989), que salienta a vinculação da performatividade à natureza do ato ilocucionário, mencionando o fato de que Austin (1990/1962) não abandona a designação “performativo” na caracterização dos enunciados, mesmo depois de desfazer a dicotomia constativo/performativo. Com isso, pode-se acolher a visão defendida por Rajagopalan (1989), na caracterização do ato ilocucionário como sendo, incontornavelmente “performativos”. Para além dessas discussões teóricas, reconhecemos, entretanto, que para realizar um ato ilocucionário é necessário realizar um ato locucionário – agradecer, por exemplo, é necessariamente dizer certas palavras. E dizer certas palavras é, necessariamente, pelo menos em parte, fazer certos movimentos, difíceis de descrever, com os órgãos vocais. Portanto, o divórcio entre ações físicas e atos de dizer algo não é de todo completo - há uma vinculação (AUSTIN, 1990, p. 98). Assim, a teoria dos atos de fala preconiza o fato de que, por meio da palavra “declaramos”, “solicitamos”, “saudamos’, “coagimos”, “prometemos”, entre outras ações; e essas falas-ações terão efeitos diferenciados por parte dos interlocutores a quem essas palavras se direcionam. Existe, portanto, uma relação entre o que é dito e o que é assumido. Por um lado, evidenciam-se níveis de desenvolvimento das ações linguísticas, tal qual estipulado por Austin (1962), ao destacar o “locucionário”, o “ilocucionário” e o “perlocucionário”. Por outro lado, se existem níveis dessas ações, já que delas emanam “forças ilocutórias”, sendo possível categorizá-las, de acordo com sua natureza discursiva de um modo mais eficiente, como visto com Searle (2002) na proposta categorial exposta a seguir. 2.2 As categorias de atos de fala determinadas por Searle (2002) Os diferentes modos de instruir, afeitos aos textos instrucionais, levam-nos a utilizar a terminologia proposta por Searle (2002), ao equiparar os diferentes atos de
  • 79. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 70 fala por suas naturezas e semelhanças. Sobre o agrupamento dessas formas de ação, o autor diferenciou cinco grandes tipos de atos de fala que podem ser enquadrados, de acordo com suas características discursivas. Nesse caso, os atos de fala dividem-se nas seguintes classes, de acordo com as características de uso, designadas pelo autor como atos/ações “assertivas”, “diretivas”, “compromissivas”, “expressivas” e “declarações”. São asserções as sentenças que têm por finalidade predispor um conteúdo proposicional que tenha como característica a afirmação de algo como sendo verdadeiro ou não; os diretivos são todos os atos de fala que têm como função promover a tomada de atitudes dos interlocutores a respeito do que é dito, caso dos textos instrucionais; são compromissivos os conteúdos indicadores da postura do falante, quando ele se compromete com algo, futuramente; expressivos são aqueles atos de fala denotadores da emotividade do falante; e, por fim, as declarações constituem enunciados que promovem uma modificação externa como o ato de “declarar guerra” ao inimigo, no sentido bélico. O quadro 1.0 a seguir propõe-se a mostrar essas categorias, a partir das atitudes do falante e dos possíveis posicionamentos dos interlocutores. Categorias Posicionamento do falante Posicionamento do interlocutor Assertivos Compromete-se em afirmar que algo seja falso ou verdadeiro. Assume ou não determinado conteúdo como sendo falso ou verdadeiro. Diretivos Procura fazer com que o ouvinte realize determinada tarefa. Realiza ou não o que o falante propõe. Compromissivos Propõe-se a realizar algo. Acreditar ou não que o falante realizará algo. Expressivos Demonstra a emotividade derivada de algum fator externo ou interno. Compartilha ou não dessa emotividade. Declarações Produz um enunciado que modifica uma situação externa. Observa essa modificação. Quadro 1.0: As categorias de atos de fala propostas por Searle (1969) O quadro 1.0 procurou resumir o esquema categórico de Searle (2002), que é um importante componente para a análise dos dados a serem apresentados nesse artigo. Sobre o esquema de caracterização dos atos de fala, o autor identifica suas características semelhantes a partir de diversos critérios comunicativos, que acolhem também aspectos de ordem psíquica, discursiva, textual e enunciativa. A fim de evidenciar o entendimento da natureza das instruções feitas nos gêneros escolhidos, conclui-se que os“diretivos” tornam-se muito importantes na constituição dos textos injuntivos, por refletirem as formas de solicitar o acatamento e as atitudes responsivas dos interlocutores, na elaboração das instruções. Com respeito à força ilocutória dos atos diretivos, para o autor, existem intenções dos falantes, ao utilizarem a linguagem para fazerem suas “performances”
  • 80. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 71 enunciativas. Então, podem-se dimensionar diferentes traços discursivos, de acordo com os seus posicionamentos, durante a instrução por meio de um diretivo. O “contexto de uso” de determinado enunciado é o que promove, portanto, a percepção da sua força ilocutória, bem como dos sentidos possíveis, aferidos a partir do componente proposicional superficial. Nesse caso, a teoria dos atos de fala revela- se de grande importância, pois suas perspectivas diferenciam os tipos de esferas de onde emanam as ações enunciativas, bem como das categorias em que essas ações se inserem. 2.3 Tipologia e gênero: principais conceitos assumidos Como nossa pesquisa debruça-se sobre textos instrucionais, que são estruturados majoritariamente pelo tipo injuntivo, é válido ressaltar a diferença entre as terminologias “instrucional” e “injuntivo”. Ao mencionarmos o primeiro nome, ressaltamos o caráter dos enunciados pesquisados, que têm por finalidade “instruir” e, ao denominarmos o segundo, procuramos evidenciar sua caracterização tipológica, dentro do quadro dos tipos textuais. Em se tratando dos conceitos de “tipo” e “gênero”, ambos são indispensáveis, pois permeiam a produção linguística dos indivíduos, em qualquer troca interlocutiva. De acordo com a natureza do gênero, a linguagem pode ser contextualizada, a partir das formas de manifestação comunicativa, usadas para dar conta das diferentes necessidades de interação discursivas e interpessoais. Apesar de autores diferentes assumirem nomenclaturas distintas para as diferentes formas textuais, de acordo com quadros teóricos e correntes linguísticas distintas (Marcuschi, 2005; Charaudeau, 2008), optamos por acolher a designação de “tipos textuais”, sendo essa nomenclatura mais afeita à linguística textual, corrente da linguagem que salienta a esfera de análise da composição material dos textos. A relação entre a linguística textual e essa nomenclatura é salientada por Silva (1999, p. 100), ao afirmar que “... alguns estudos desenvolvidos no âmbito da linguística textual, “tipo textual” é uma noção que remete ao funcionamento da constituição estrutural do texto...”. Assim, nas palavras de Marcuschi (2005, p. 22): Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de sequência teoricamente definida pela natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas). Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção. Sobre a abordagem do conceito de gênero, ressaltando os diferentes usos da linguagem, é fundamental a observação de M. Bakhtin (1997 [1959]), quando cita as atividades de interação humana. O autor faz uma abordagem importante sobre o tema, ao especificar que Todas as esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão
  • 81. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 72 relacionadas com a utilização da língua. Não é de surpreender que o caráter e os modos dessa utilização sejam tão variados como as próprias esferas da atividade humana (...). O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo temático e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais – mas também, e, sobretudo, por sua construção composicional. (BAKHTIN, 1997, p. 280) O estudo dos gêneros irá inserir, portanto, um escopo analítico mais abrangente, importante para dimensionar os fatos enunciativos sobre os quais nos referimos no presente trabalho. Apesar dos variados gêneros predominantemente instrucionais – edital, provas, receitas médicas, normas de conduta, regras de jogos, orientações acadêmicas, neste trabalho, debruçamo-nos sobre quatro deles, todos instrucionais: as receitas, os manuais, as bulas e os contratos, que, embora possuam a mesma função enunciativa, diferem-se quanto às suas aplicações e funções comunicativas. As receitas, por suas peculiaridades de uso, possuem um arquétipo estrutural mais simplificado: ocorre, apenas, uma exposição inicial dos ingredientes que serão usados na preparação dos pratos. Já em se tratando das bulas, o fato de instruírem sobre o uso de um medicamento, geralmente, apropriado para a resolução de um problema físico, esse fator atribui ao texto elementos compositivos de ordem mais complexa. Fator importante para a configuração textual de maior complexidade das bulas decorre do fato de esse gênero ser direcionado a, pelo menos três interlocutores distintos, a saber: o paciente, o médico e o farmacêutico. As partes textuais são divididas de acordo com esses interlocutores, informando procedimentos específicos a cada um deles. Dados relativos à composição química são mais apropriados ao farmacêutico, já quando são explicadas as doses necessárias às doenças ocorrem instruções ao médico, por fim, procedimentos sobre o armazenamento e o aspecto físico do medicamento são mais afeitos aos pacientes. Os manuais, por outro lado, apresentam como fator diferencial a utilização de algumas remissões a saberes técnicos, na medida em que fazem alusão a especificidades que podem corroborar dificuldades para o entendimento das instruções. A leitura do manual pode acarretar, por exemplo, o acionamento de conhecimentos de diferentes áreas, necessitando do conhecimento dessas informações, a fim de dar conta dos usos requeridos pelos seus interlocutores. A instalação de um aparelho eletrodoméstico, por exemplo, estabelece procedimentos que muitas vezes requerem conhecimentos sobre a eletricidade ou sobre a parte mecânica de equipamentos afins, fator que exigirá dos interlocutores, atenção na elaboração dos procedimentos. O último gênero contemplado, o contrato jurídico, possui a mesma finalidade de uso dos demais enunciados, qual seja a estipulação de procedimentos, mas existem diferenças entre esse gênero e os demais. A primeira delas decorre do fato de que o estabelecimento das diretrizes para o atendimento da contratação de ambas as partes de uma negociação, o que implica na configuração de um texto extenso. Neles as tarefas precisarão ser expostas, de modo a indicar os direitos e os deveres desses
  • 82. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 73 dois tipos de alocutários que estarão envolvidos na negociação jurídica/financeira. Assim, ressalta-se que o aspecto interlocutivo desses quatro gêneros configurará comandos possuidores de níveis impositivos distintos, de modo a aferir nas instruções esses posicionamentos dos locutores. Por consequência do posicionamento quanto à apresentação das instruções, a maior ou a menor precisão quanto ao atendimento dos comandos, pelos interlocutores, é um indicativo importante que pode ser elucidado pelo enquadramento teórico escolhido. Essas diferenças de valores interlocutivos indicam, por outro lado, uma equalização, pois, como temos enfatizado, os textos selecionados instruem e são amplamente usados pelos indivíduos, em seu cotidiano. Dada sua relevância e disponibilidade, a escolha dos corpora foi feita de modo a privilegiar textos cuja veiculação é comum para pessoas de diferentes grupos sociais ou etários. A apropriação das peculiaridades interlocutivas desses quatro gêneros está coadunada, também, com o que fora estipulado por Bakhtin (1997[1959]), ao verificar que as situações discursivas corroboram enunciados, de modo a atender a essas demandas, evidenciando a “funcionalidade discursiva” dos gêneros. Tendo em vista esses principais conceitos e definições, ressaltaremos, na subseção a seguir, os pressupostos que embasaram nossa metodologia de trabalho. 2.4 A leitura na escola Mais do que decodificação de símbolos socialmente compartilhados, a leitura pressupõe atribuição de significados ao que se lê – o que comporá, de fato, a habilidade leitora. Contudo, nem sempre foi assim. Ao longo da história, a leitura como propiciação do saber e da compreensão ficava a cargo apenas de alguns literatos, intelectuais e elites. Para a maioria da população, principalmente no contexto ocidental dos séculos XVI e XVII, a leitura estava vinculada à religião. Portanto, era aprendida mecanicamente, de forma apenas a reproduzir os textos litúrgicos – que estavam em latim. De forma geral, o processamento da leitura transpôs-se da necessidade do contato com o sagrado para uma necessidade pragmática – conhecer pontos de vistas e culturas diferentes, aprender a manusear equipamentos e ferramentas, entrar em contato com o eu e com a ficção etc. Nessa perspectiva, a linguística textual contribuiu bastante para o desenvolvimento das pesquisas sobre leitura, nessa mudança histórica. Primeiro, porque forneceu mecanismos para a acepção de texto: o texto, que antes recebia tratamento científico em nível de frase, passa a ser visitado como uma unidade global. Outra grande contribuição da linguística textual concerne ao foco da leitura: aquelas que concentram o sentido no autor (língua como representação de pensamento); as que concentram o sentido no produto, no texto (língua como estrutura); e as leituras que focalizam o sentido na interação autor, texto e leitor (concepção dialógica da língua). Esta última é a acepção atualmente assumida pela Linguística
  • 83. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 74 Textual, possibilitando um salto qualitativo na forma de entender o texto (KOCH & ELIAS, 2012). Este breve apontamento histórico contribui para algumas reflexões aqui levantadas. Se a escola é um lugar facilitador para o ensino da leitura eficiente e eficaz; se é um espaço formal para a construção de um cidadão no mundo – o mundo contemporâneo dialógico – que oportunidades de contato com a leitura os professores têm dado aos alunos? Têm de fato propiciado a esses sujeitos os sentidos possíveis do texto, com interação, discussão, diálogo com o mesmo; ou apenas reproduzido a metodologia limitadora e “memorial” da Idade Média? Tendo em vista as diversas teorias que contribuem para a aplicação de estratégias linguísticas como procedimento de leitura, apresentamos nesta subseção um breve apanhado que pode ajudar a coadunar os procedimentos teóricos dos atos de fala e as teorias voltadas ao ensino da leitura como ato escolar. Em primeiro lugar, entendemos que como saída para um ensino eficaz, a atuação do professor pode ocorrer pelo viés interacional, levando o aluno a entrar em contato (de fato) com a leitura – a leitura dialógica. Exemplo disso é Cademartori (2009), que defende que quando os leitores que se sentem tocados pelas obras lidas, são levados a mudanças práticas, ou, ao menos, à aplicação de suas práticas à leitura. Além dessa possibilidade social, a leitura de outros mundos, de outros modelos, de outras vozes, pode possibilitar a descoberta da própria voz do sujeito, outorgando- lhe uma autonomia possível. Portanto, o leitor de livros aprende a ser leitor do Outro – desenvolve a imagem do outro nele mesmo, o que contribui para sua própria identificação. Tal imagem, apesar de cindida pela sociedade atual, não poderia estar assujeitada, mas liberada do Outro Opressor, pelo viés, por exemplo, da literatura (CADEMARTORI, 2009; PARINI, 2007). Atualmente, não são apenas os textos literários que compõem as atividades educacionais de nossos alunos nas atividades com leitura. Textos cotidianos, em gêneros variados, de acordo com seus propósitos comunicativos, também se inserem nesta dinâmica. Temos uma gama de textos, em uma literatura multifacetada, multitextualizada e multimodalizada, representando aquilo em que o mundo atual tornou-se: híbrido. Por outro lado, essas mudanças propiciam que o leitor vá além de suas próprias fronteiras, com textos que acompanham e são acompanhados de ritmos verbais, visuais e de entrosamento entre gêneros distintos. Com todas essas possibilidades e demandas, a forma de ensinar a leitura sinaliza muito mais do que métodos, mas modelos constituintes, como marcos teóricos, percepção do psiquismo humano – como aprende, como funciona intelectualmente, como podemos, portanto, instrumentalizá-lo. Portanto, ler não é apenas reconhecer e valorizar os saberes que ele traz consigo, mas possibilitar o desenvolvimento de habilidades que ele não tem, ou seja, a leitura crítica. Isso demanda um saber teórico por parte dos professores. Entendemos que bons professores são aqueles que conduzem seu trabalho de
  • 84. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 75 forma a contribuir para o desenvolvimento crítico do aluno. Esses, não entendem a educação pelo viés do desempenho; entretanto, como oportunidade de potencializar linguisticamente os alunos para o seu desenvolvimento leitor. Uma atividade com este perfil não se limita a discutir a importância da leitura, ou a ensinar técnicas de leitura, mas leva o leitor a envolver-se com a leitura. Nesse caso, a materialidade linguística do texto é assumida como ferramenta para desconstruí-lo e para reconstruí-lo, como um detetive. Portanto, esse processo pode ser potencializado, se o próprio professor tiver conhecimento dos fatos linguísticos realizados no texto. Para esse fim,Abarca e Rico (2003) sugerem que no desenvolvimento do trabalho com leitura sejam feitas perguntas específicas, mediadoras, que levem o aluno, ainda em desenvolvimento da identidade leitora, a pensar sistematicamente no “texto” e a ser direcionado à reflexão. Portanto, perguntas gerais com possibilidade de respostas genéricas e abrangentes não parecem eficientes para os propósitos da autonomia. Defendemos, ainda, que não apenas o processamento cognitivo interfere na formação do leitor, mas também o contexto em que se insere o aluno. Segundo Ferraz (2007,p18)“olugarondesenasce,osmeiossocialecultural,associadoseventualmente a fatores econômicos, marcam a diferença do capital linguístico armazenado”, fator que pode influenciar na habilidade de abstração de um determinado conteúdo textual. Finalmente, acreditamos que o aluno precisa saber para que está lendo: Para cumprir uma atividade burocrática? Para responder a uma questão da prova? Para passar o tempo de aula? E a função essencial do professor, neste sentido, será a de mostrar ao aluno as tantas possibilidades de uma leitura, principalmente, a de revelar- se como apontamento para o mundo real. 3 | PRESSUPOSTOS METODOLÓGICOS Para compor os corpora da pesquisa, foram usados quatro textos de caráter instrucional. Os mesmos foram selecionados para análise das frases e enunciados realizadores de ações que se prestam aos objetivos dos quatro gêneros. As tarefas abarcadas por esses textos correspondem às etapas de execução, exigidas para atingir as finalidades desses enunciados, que objetivam instruir tarefas cotidianas comuns para solucionar problemas habituais dos indivíduos. Por ser um trabalho de cunho interpretativo (ALVEZ-MAZZOTTI, 1999), não nos concentramos em quantificar os achados, mas em tentar detalhar as especificidades dos textos. Para isso, foram escolhidos exemplares acessíveis, que podem ser encontrados facilmente em lojas e departamentos comerciais. A seleção foi realizada entre os anos de 2009 e 2012, por meio da compra dos produtos aos quais eles se propõem a instruir, tendo sido todos adquiridos na cidade do Rio de Janeiro. A fim de demonstrar as análises e discutir os resultados, escolhemos aleatoriamente um texto exemplar de cada gênero, os quais serão usados para
  • 85. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 76 explicitar alguns aspectos advindos da leitura, a partir dos textos instrucionais. Os exemplos retirados dos corpora serão vistos de forma a verificar, primordialmente, o motivo das possíveis diferenças na interpretação de sentidos a partir das instruções, feitas por meio de frases imperativas e declarativas, prioritariamente. Essas frases, embora apresentem as mesmas finalidades de interpretação – que é a estipulação de etapas de procedimentos –, acarretam modos de instruir diferenciados. A teoria dos Atos de Fala pode oferecer pistas para a leitura dos textos a partir das frases indicativas de procedimentos, subjacentes à configuração textual de uma receita, por exemplo. Sobre as formas de análise da linguagem, levantamos nesta pesquisa aspectos referentes à natureza enunciativa dos gêneros escolhidos que pudessem vislumbrar a elucidação de elementos comunicativos, focalizando a ação de instruir e priorizando a forma como os sentidos são assumidos, pelos interlocutores. Em seguida, debatemos esses achados linguísticos e os procedimentos de leitura possíveis no âmbito escolar. 4 | ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS Na presente seção, pretendemos ressaltar a ação pela linguagem, tendo como corpora textos instrucionais retirados de livros de receitas, manuais técnicos, bulas de medicamentos e contratos jurídicos. Os exemplares foram escolhidos por mediarem as situações enunciativas contextuais pressupostas pelo tipo injuntivo, cujas análises vislumbram contribuições com seu estudo. 4.1 Da receita Nesta subseção, iniciaremos a análise e as interpretações possíveis para os dados linguísticos, iniciando pelo exemplo 1, a seguir:
  • 86. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 77 O exemplo 1 refere-se a uma receita regional, explicando o modo de preparação do frango com quiabo. Neste caso, o que pretendemos ressaltar é que a força ilocutória de sugestão pode ser configurada, também, a partir da escolha dos indivíduos, sendo ela reconhecida pelo locutor do texto. O uso da expressão “a gosto” para demonstrar as quantidades de alguns elementos como “sal”, o “açúcar” e a “pimenta” é comum na escrita desses textos. Isso ocorre, por exemplo, no fragmento “Sal e molho de pimenta vermelha a gosto”. O mesmo ocorre com o uso da expressão “se desejar”. Nesses casos, a instrução indica, no perlocucionário, a permissividade da influência do gosto dos indivíduos, de modo a evidenciar a aceitação dos procedimentos, de acordo com a preferência do interlocutor. Reiteramos que um macroato1 de sugestão também fica latente quanto ao reconhecimento do acatamento ou não do que é sugerido, mostrando esse reconhecimento do locutor, por exemplo, pelo uso da imperativa “se desejar substitua o molho de pimenta par pimenta dedo-de-moça sem sementes, fatiada”, procedimento que vem a evidenciar esse caráter permissivo do gênero. Por fim, entendemos ser importante ressaltar que o caráter sugestivo das instruções parece estar na simplicidade com que os procedimentos são transmitidos Antecipamos aqui que nas receitas e contratos o locucionário, com a exposição de frases declarativas, muitas vezes se presta a estipular procedimentos, acolhidos no ilocucionário como diretivos. Já nos manuais, as descrições dos produtos, expostas por meio de atos assertivos, também podem reforçar o emprego dos diretivos. 4.2 Do manual Com o objetivo de mostrar outras formas de construção do texto instrucional, visto segundo os seus atos de fala, analisaremos um exemplar do gênero Manual, conforme exemplo 2 em seguida. Uma mensagem multimídia pode conter texto, fotos, clipes de som e videoclipes. Somente dispositivos que possuam funções compatíveis poderão receber e exibir mensagens multimídia. A aparência de uma mensagem pode variar, dependendo do dispositivo receptor. Exemplo 2 O exemplo 2 foi retirado do manual de instruções do celular “Nokia”. Nesse excerto, podemos perceber o emprego de frases que são usadas para descrever características do artefato, um aparelho de telefonia celular que pode ser usado para escrever mensagens. A característica básica das ações comportadas pela categoria assertiva 1 O termo “macroato” refere-se à abordagem interacionista de Van Dijk (1977) e refere-se à totalidade in- tencional de determinado texto, deixando de limitar-se à esfera frasal.
  • 87. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 78 é informar uma propriedade que pode ser avaliada, de acordo com o critério de “verificabilidade”, tal como evidenciado por Searle (2002) como possuidora de atributos como plausíveis de serem aceitos como “verdadeiros” ou “falsos”. Nesse caso, o emprego das declarativas munidas dessa propriedade linguística pode-se prestar à finalidade de dar credibilidade ao produto adquirido, refletindo um ato de fala indireto tal qual “você poderá enviar mensagens contendo textos, fotos, etc.,” conferindo ao produto maior aceitação. Objetivando dar tal credibilidade ao que foi adquirido, o recurso linguístico utilizado é,portanto, o emprego de declarativas, como nas sequências “Umamensagem multimídia pode conter texto, fotos, clipes de som e videoclipes.” e “A aparência de uma mensagem pode variar, dependendo do dispositivo receptor”. Desse modo, o que se pode apreender pela leitura dessas frases é que elas podem destacar, no ilocucionário, a preocupação com a valorização do produto adquirido. Esse traço interlocutivo pode refletir o desejo do locutor do texto, podendo ser interpretado como realizando o diretivo indireto “o produto adquirido é bom pois pode ser usado para escrever mensagem” ou o assertivo “as mensagens ainda podem conter clipes, som, imagens, etc.”. As consequências para a leitura dos procedimentos podem acarretar, no perlocucionário, a aceitação ou a valorização das propriedades do artefato que serão, portanto, ideais para suas finalidades de uso. Assim, as declarativas nos textos de manuais também pode denotar a tendência por promover, no ilocucionário, a evidenciação dos benefícios dos produtos adquiridos, por meio de atos de fala indiretos. Por outro lado, chamar a atenção dos indivíduos quanto aos riscos envolvidos no manuseio dos artefatos também é uma tendência observada no gênero manual. Desse modo, muitas vezes, o emprego de palavras ou sentenças que se prestam a promover o acatamento imediato de comandos tidos por válidos, no perlocucionário, é outro aspecto relevante para a percepção dos sentidos. 4.3 Da bula Nesta subseção, analisaremos um exemplar do gênero bula. O exemplo, retirado da bula do suplemento vitamínico Cebion C, expõe sobre os benefícios do uso do medicamento no organismo, conforme exemplo 3 a seguir.
  • 88. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 79 O exemplo 3 constitui as partes que explicam sobre o funcionamento e as precauções para a ingestão do “Kalyamon kids”, um suplemento de cálcio bastante comum, usado pelas crianças na fase de dentição. Revela-se que o emprego de frases declarativas e imperativas procura assegurar a aplicação do produto e mostrar os riscos de seu uso, o que insere os atos de fala decorrentes do emprego dessas frases nas categorias diretiva ou assertiva. A declaração feita pela frase “Kalyamon® Kids é um suplemento vitamínico- mineral que possui uma combinação racional de todos os elementos essenciais à prevenção e combate dos estados de deficiência de cálcio”, pode conferir ao produto o indicativo de que ele serve para sua finalidade de uso, no caso, o combate à falta de cálcio no organismo. A frase em destaque, embora declarativa, também pode indicar, no perlocucionário, o mesmo objetivo de uso das imperativas. Nesse caso, ela se presta a instruir o interlocutor do uso da droga, objetivo que pode ser entendido se a considerarmos como, por exemplo, desencadeadora do ato diretivo indireto “use esse medicamento para combater as carências de cálcio”. Já com respeito às sequências imperativas, que, tradicionalmente, se prestam a instruir os indivíduos, nas bulas, seu emprego reflete a presença de outro interlocutor que não é o paciente, já que as instruções são passadas para o médico e não para o paciente em si. Isso pode ser visto ao analisarmos o emprego da imperativa “Kalyamon® Kids não deve ser utilizado nos seguintes casos: Hipercalcemia (excesso de cálcio no sangue); Hipercalciúria (excesso de cálcio na urina)”. Esse período, embora esteja sendo direcionado ao profissional de saúde, pode acarretar, no ilocucionário, o aviso quanto a não utilização do medicamento por alguns indivíduos. Quando isso ocorre, demanda-se um ato de fala que se presta a provocar o devido acatamento, no perlocucionário, do procedimento expresso por essa frase, com força ilocutória de imposição. Por conta das diferenças de emprego frasal, as formas de acatamento, à luz dos efeitos ilocutórios das declarativas e imperativas são diferenciadas no gênero, sempre dependendo dos riscos envolvidos. Dirigir-se ao profissional de saúde e não à pessoa que irá manusear o medicamento pode, por fim, pode provocar uma leitura dos procedimentos, acarretando outras formas de acatamento dessas instruções, de acordo com as temeridades envolvidas. Isso pode evidenciar outros posicionamentos do indivíduo que ingerirá a droga, havendo repercussões na percepção dos sentidos a partir dessas ações e seus desdobramentos para o entendimento do interlocutor. 4.4 Do contrato de adesão. Nesta subseção, analisaremos o último exemplar, pertencente ao gênero contrato. Vejamos o exemplo 4, que segue.
  • 89. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 80 No exemplo 4, mostram-se algumas cláusulas do contrato da empresa Claro. Nele, as instruções, muitas vezes, são feitas de modo a eximir os contratados, que são as empresas responsáveis pelo serviço e as declarativas se prestam a expressar regras que precisam ser interpretadas de modo a não oferecer riscos jurídicos às empresas. Essa atribuição interlocutiva pode ser vista na declarativa “O Assinante reconhece que os serviços poderão eventualmente ser afetados ou interrompidos, não sendo a Claro responsável por eventuais falhas, atrasos ou interrupções destes”. Essa frase realiza, indiretamente, a instrução “reconheça que a Claro não será responsável se houver falhas, atrasos ou interrupções na prestação de serviços”, que é um ato de fala indireto de natureza diretiva. Apredisposiçãodeprocedimentospormeiodeatosdefalaindiretos,representados por declarativas é, portanto, uma marca interlocutiva importante desses textos. Por outro lado, o oferecimento de benefícios, também é mostrado como decorrente do emprego desse tipo frasal. Esse emprego pode ser visto como por meio da declarativa “A Claro obriga-se a prestar o SMP segundo os padrões de qualidade exigidos pela Anatel” que pode servir para atenuar a imposição feita anteriormente, podendo desempenhar papel semântico de diminuir o aspecto negativo do serviço oferecido decorrente da aquisição do celular pelo cliente. Na continuação da cláusula, a declarativa “O Assinante declara ter ciência das localidades cobertas pelo SMP, das limitações decorrentes de eventuais áreas com limitação de sinal e da disponibilidade de rede e, em hipótese alguma o Assinante se desobrigará do pagamento do serviço sob alegação de não abrangência do SMP em certa área” volta a impor uma condição ao que foi oferecido anteriormente. Nesse caso, a declarativa supracitada realiza a instrução: “declaro saber quais localidades são cobertas pela operadora e não deixarei de fazer os pagamentos ainda que o serviço não esteja sendo prestado pela Claro”, ato diretivo indireto. Sobre essa ocorrência, o que se pretende ressaltar na análise das esferas interlocutivas definidas pelas instruções, é que, tanto na verificação das frases com natureza declarativa que preconizam procedimentos quanto no entendimento das informações com vistas a impor as regras contratuais, no perlocucionário, o acatamento dos comandos é incondicional. Essa força ilocutória impositiva indica que
  • 90. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 81 o não acatamento do que é instruído poderá refletir em penalidades jurídicas para as partes envolvidas na contratação. Assim, ressalta-se que o gênero, embora não possuindo superficialmente instruções feitas por meio de imperativas, contêm instruções cujo impacto, no perlocucionário, pretende ser de maior poder impositivo do que nos demais gêneros. 4.5 Gêneros instrucionais e leitura na escola: uma intercessão possível Defendemos aqui que a teoria dos atos de fala pode acrescentar perspectivas diferenciadas quanto à leitura dos diferentes textos, já que os níveis ilocutórios dos atos de fala apontam três patamares de observação da linguagem. Para além dessas esferas de observação das informações, advindas dos textos, a contribuição dessa vertente teórica privilegia os interagentes, que são os elementos centrais na troca interlocutiva. Por isso, o estudo dos diferentes tipos e gêneros à luz das ações demandadas pelos interlocutores torna-se importante, já que a linguagem passa a demonstrar não apenas os “sentidos” por ela demandados, mas a intencionalidade dos indivíduos. Pelo teor instrucional dos gêneros aqui estudados, a saber: a receita, o manual, a bula e o contrato, selecionamos para esta análise um exemplar de cada gênero. Além disso, objetivamos analisar a correlação entre essa análise e a combinação texto-aluno-professor, visto entendermos que essa interação pode possibilitar que o processamento da leitura seja efetivo, contextualizado e que, principalmente, parta de um viés linguístico. A primeira contextualização a ser feita é que 1) se o professor não tiver acesso a informações teóricas, como as resumidas neste trabalho; ou 2) se o mesmo não for confrontado aos variados usos linguísticos possíveis nos gêneros instrucionais (como no caso das análises linguísticas demonstradas neste trabalho, que mostram que a injunção, nestes gêneros, não está marcada apenas pelo imperativo), os alunos tenderão a reproduzir a ideia de que devem concentrar-se nos verbos categorizados como imperativos. Nesse sentido, entendemos alguns aspectos como essenciais: a) o ensino da gramática – modos verbais, pontuação, etc. – não deveria estar estanque do texto, nem de suas funções expressivas; b) os estudos teóricos sobre os gêneros pertencentes ao tipo injuntivo deveriam receber mais atenção nos estudos da linguagem, visto que há um nicho considerável a ser preenchido, nesse sentido. Entendemos, ainda, que se os estudos dos gêneros aqui citados continuarem na atual perspectiva da caracterização linguística, haverá uma reprodução desses gêneros em nível metalinguístico, cuja análise se distanciará do projeto de dizer dos gêneros em questão, afastando-os de suas possibilidades de interação real – e de ação. Defendemos também que: se, ao deparar-se com atividades com esses
  • 91. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 82 gêneros, o aluno tiver um prévio conhecimento conceitual, mas também prático – das possibilidades de a língua servir às especificidades e os propósitos comunicativos do texto/gênero, ele poderá, de fato, realizar leituras autônomas. Duas considerações podem ser feitas, portanto, a partir dos resultados das análises linguísticas expostas nas subseções anteriores. A primeira refere-se ao conhecimento de mundo dos alunos. Expô-los a gêneros textuais do cotidiano dos cidadãos, mas pouco utilizados por eles como adolescentes – como contratos e instruções,voltadosparasuasrealidades–podeajudá-losaconstruirsentidospossíveis para o entendimento dos textos. Além disso, pode aumentar-lhes instrumentalidade linguística, já que sairão de textos padronizados repetidos em sala de aula. A segunda consideração refere-se à prática do pensamento crítico. Tomemos como exemplo o recorte 4 da subseção anterior. Nele, as escolhas lexicogramaticais podem sugestionar um leitor, sem que o mesmo perceba, negligenciando-lhe a possibilidade da busca por seus direitos. Na construção linguístico-discursiva do exemplo em questão, que os sentidos se constroem discursivamente, de forma a proteger “apenas” a empresa. Assim, o item 3.4, linguisticamente, “anula” 3.3. 3.3 A Claro obriga-se a prestar o SMP segundo os padrões de qualidade exigidos pela Anatel. 3.4 O Assinante declara ter ciência das localidades cobertas pelo SMP, das limitações decorrentes de eventuais áreas com limitação de sinal e da disponibilidade de rede e, em hipótese alguma, o Assinante se desobrigará do pagamento do serviço sob alegação de não abrangência do SMP em certa área Sabemos que pensar é uma construção; e que leitura é pensamento; portanto, a percepção dos sentidos, a partir desse fragmento, subentende que a habilidade ledora também se dá em um processo. Contudo, com tantas leituras rápidas, com instruções “dadas” em nosso cotidiano, tanto escolar, quanto social, interpretamos que: mostrar ao nosso aluno-leitor que ele pode ser influenciado através das várias estratégias linguísticas nos textos injuntivos, e não apenas através dos comandos, pode contribuir para sua autonomia e inserção crítica no mundo. Esse trabalho, em sala de aula, pode ser feito de forma estratégica. Retomando Abarca e Rico (2003) a necessária pergunta específica pelo viés dos dados encontrados nos gêneros aqui estudados podem mediar o processo de leitura e levar o aluno, ainda em desenvolvimento do processamento de leitura autônoma, a pensar no texto de forma sistemática, utilizando-se das ferramentas linguísticas nele disponíveis, sendo, portanto, direcionado à reflexão. Assim sendo, as perguntas generalizadoras, com possibilidades de respostas amplas não ajudariam nesse processo. Além disso, se o professor reconhecer que o contexto sociocultural desse aluno contribui para o seu fazer leitor, ele pode selecionar textos pertencentes a outros gêneros, que abordem o mesmo tema, com vistas a ampliar a discussão do assunto contido no gênero instrucional, fornecendo, assim, dados do mundo e leituras possíveis para os mesmos. Desta forma, pensamos, a linguagem será ato não apenas no “processamento linguístico do gênero”, mas também na “construção do sujeito
  • 92. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 83 autônomo” para produzir, e não apenas reproduzir. CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, propusemos a análise de quatro textos instrucionais, tendo como base as frases usadas para indicar procedimentos. Cada um dos textos é possuidor de atributos discursivos diferenciados, ao considerarmos os atos de fala inerentes às frases. A receita tem como característica discursiva principal a flexibilidade quanto ao acatamento das instruções, acolhendo um macroato de fala compatível com a ação de “sugestão”; já o manual, por instruir por meio de procedimentos que se prestam a mostrar a periculosidade envolvida no manuseio dos produtos, preconiza o macroato de “advertência”; a bula de medicamentos prioriza a instrução dos indivíduos que irão ingerir o remédio, idealizando o macroato de “prescrição”; o contrato, por sinalizar as atitudes que os contratantes terão de efetuar juridicamente na manutenção dos direitos de uso, acolhe o macroato de “imposição”, tendo como efeito procedimentos obrigatórios. Todos esses macroatos podem ser analisados também no cotejo da perspectiva do produtor dos enunciados com a do leitor. Essa relação pode ser observada ao observarmos os níveis de atos de fala. O ilocucionário está coadunado à intencionalidade dos falantes, ao proferirem as instruções, sendo ele importante se ainda mencionarmos a percepção das forças ilocutórias inerentes a essas ações. Em contrapartida, o perlocucionário mensura o modo como as instruções são efetuadas pelos interlocutores, também de acordo com o tipo de força ilocutória que baliza a natureza dos procedimentos e instruções. Sendo assim, todos os atributos relacionados ao efetivo cumprimento dos procedimentos são efetuados no perlocucionário e, por conseguinte, tais efeitos interlocutivos estão subjacentes à leitura e assimilação dos sentidos dos textos de natureza instrucional. Reconhecemos que um dos aspectos limitadores deste trabalho reside na seleção de quatro gêneros, quando muitos outros são também de base instrucional, como a prova, orientações acadêmicas, regras de jogos... Contudo, entendemos que a leitura dos enunciados ora selecionados pode dimensionar uma abordagem importante quanto ao tipo injuntivo, pois essa tipologia, tradicionalmente vista para a elaboração de atitudes de ordem ou comando, pode ser analisada a partir da gradação impositiva dos atos diretivos. A tipologia injuntiva acarreta, portanto, níveis das instruções que vão desde a sugestão à imposição, sempre equiparando essas formas enunciativas ao gênero em que ela se veicula. Entendemos também que o tipo textual em tela precisa ser mais pesquisado, no contexto dos estudos linguísticos, já que não existe uma tradição em sua análise. Essa necessidade decorre das finalidades de aplicação dessa tipologia, que embora seja imprescindível na configuração de textos que se prestam à realização de tarefas do cotidiano discursivo dos indivíduos de todas as
  • 93. Argumentação e Linguagem Capítulo 6 84 esferas sociais, não constitui uma temática ordinária, no seio dos estudos acadêmicos. Entendemos, por fim, que esse avanço promova inclusive avanços nas atividades com leitura funcional e autônoma no desenvolvimento do sujeito leitor nas escolas. REFERÊNCIAS ABARCA, E. V.; RICO, G. M. Por que os textos são tão difíceis de compreender? As inferências são a resposta. In: Compreensão de Leitura - a língua como procedimento. Porto Alegre: Artmed, 2003. P. 139-153. ALVEZ-MAZZOTI, A. J.; GEWANDSZNAJDER, F. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa, 2 ed. São Paulo: Pioneira, 1999. AUSTIN, J. L. How to do things with words. Cambridge, Massachusetts: Harvard university press, 1962. _____________. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Tradução de Danilo Marcondes de Souza Filho. (1990). CADEMARTORI, L. O Professor e Literatura – para pequenos, médios e grandes. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. CHARAUDEU A. P.; MAINGUENEAU, D. Dicionário de análise do discurso. 2. ed. São Paulo, Contexto, 2002. DIJK, T. A. Van. Text and Context. London/New York. Longman, 1977. FERRAZ, M J. A língua materna ensina-se? In.: Ensino da Língua Materna. Ed. Caminho. Lisboa, 2007. P. 17-25. KOCH, I; ELIAS, V. M. Ler e escrever – estratégias de produção textual. 2º ed. São Paulo: Contexto, 2012. PARINI, J. A arte de Ensinar. Civilização Brasileira, RJ. 2007. 189 p. RAJAGOPALAN, K. Atos ilocucionários como jogos de linguagem. Estudos Lingüísticos 18 (1989): 523-529. SEARLE, J. Speech acts: an essay in the philosophy of language. New York: Cambridge university press, 1969. ______. Os actos de fala: um ensaio de filosofia da linguagem. Coimbra, Livraria Almedina, 1981. ______. Expressão e significado: estudo da teoria dos atos de fala. 2a ed. São Paulo, Martins Fontes, 2002.
  • 94. Capítulo 7 85Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 7 DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS NO ENSINO DE PORTUGUÊS Maria Auxiliadora Bezerra Universidade Federal de Campina Grande Campina Grande - PB RESUMO: O objetivo deste capítulo é discorrer sobre os desafios epistemológicos e metodológicos, enfrentados pelo professor de Português, considerando as diversas contribuições teóricas da Linguística – associadas às teorias de ensino e aprendizagem de língua/linguagem – para o ensino de Português e as variadas metodologias decorrentes da didatização dessas teorias. A produção bibliográfica analisada (artigos, livros, dissertações) indica que, nos eixos de ensino de leitura, escrita e oralidade, são as teorias sociais e enunciativas que orientam o trabalho didático, enquanto no eixo da análise linguística há uma instabilidade teórico-metodológica, remetendo para um ensino transmissivo, quando o trabalho se volta para o estudo da gramática tradicional (conhecimento da nomenclatura e apropriação dos conhecimentos de análise morfológica e sintática) e para um ensino reflexivo, quando o interesse se volta para analisar o funcionamento das unidades linguísticas no texto. Observamos também que, mesmo que a gramática tradicional seja criticada pelo caráter acientífico, ela ainda constitui uma base para o ensino de língua materna nas nossas escolas, e diversas obras propõem um estudo na sala de aula orientado por esse manual. PALAVRAS-CHAVE: Leitura – Escrita – Oralidade – Análise linguística. EPISTEMOLOGICAL AND METHODOLOGICAL CHALLENGES IN TEACHING PORTUGUESE ABSTRACT: The purpose of this paper is to discuss the epistemological and methodological challenges faced by the teacher of Brazilian Portuguese, considering the different theoretical contributions of Linguistics - associated to the teaching and learning theories of language - for the teaching of Brazilian Portuguese and the various methodologies arising from these theories. The theoretical framework analyzed (articles, books, dissertations) indicates that in the axes of the teaching of reading, writing and speaking are the social and enunciative theories that guide the didactic work, whereas in the axis of the linguistic analysis there is a theoretical and methodological instability, referring to a transmissive teaching, when the work turns to the study of traditional grammar (knowledge of nomenclature and appropriation of knowledge of morphological and syntactic analysis) as well as to reflexive teaching, when the interest turns to analyzing the functioning of language units
  • 95. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 86 in the text. Its also observed that, even though traditional grammar is criticized for its unscientific character, it still forms a basis for teaching Brazilian Portuguese in Brazilian schools, and several works propose a study in the classroom guided by this handbook. KEYWORDS: Reading - Writing - Orality - Language analysis. 1 | INTRODUÇÃO Neste texto procuramos discorrer sobre os desafios epistemológicos e metodológicos, enfrentados pelo professor de Português, considerando as diversas contribuições teóricas da Linguística – associadas às teorias de ensino e aprendizagem de língua/linguagem – para o ensino de Português e as variadas metodologias decorrentes da didatização dessas teorias. Assim, vamos ensinar o quê e como? Considerando a história mais recente do ensino de Português (a partir da década de 1980), verificamos que esses desafios epistemológico e metodológico se encontram nos quatro eixos de seu ensino: leitura, escrita, oralidade e análise linguística/semiótica. Na década de 1980, começou-se a questionar o ensino de leitura, concebida como mera atividade de decodificação, e influências de teorias cognitivas de leitura chegavam à sala de aula, como alternativa (KATO, 1985; KLEIMAN, 1989 a e b). Questionamentos sobre o ensino da escrita surgiram na década de 1990. Vista como codificação de mensagens, a escrita era, sobretudo, ensinada para demonstração de domínio do registro formal da língua escrita (em redações). Sob a influência de teorias discursivas, o texto escrito começou a ser visto como atividade interativa, envolvendo interlocutores, e propostas de produção de textos (em oposição à redação) passaram a ser praticadas (GERALDI ,1991 e 1996; COSTA VAL, 1991; GARCEZ , 1998). Na década de 2000, com as teorias sociais e enunciativas influenciando os estudos de língua/linguagem, os resultados das investigações sobre letramento e gêneros discursivos/textuais ganharam destaque na orientação do ensino de leitura e escrita (NASCIMENTO, 2009; DIONISIO, MACHADO e BEZERRA, 2005). Finalmente, no início da década de 2010, se propôs mais fortemente a análise linguística nas aulas de português (ANTUNES, 2014; BEZERRA e REINALDO, 2013; WACHOWICZ, 2010). É importante frisar que a cada década os estudos desses eixos se acumulam com propostas alternativas de ensino, com base nas teorias existentes, pois do ponto de vista epistemológico não temos novos conhecimentos sobre o objeto língua. Para o desenvolvimento deste texto, destacamos alguns pontos dos eixos da leitura, da escrita e da oralidade e nos detemos no eixo da análise linguística, que consideramos menos explorado, visto que entra em jogo, nesse eixo, a proposta gramatical de tradição greco-latina, que, ao mesmo tempo em que é rejeitada, não é substituída integralmente por nenhuma outra. Dessa situação de instabilidade resultam, por vezes, orientações para o ensino que enfatizam, como veremos no
  • 96. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 87 tópico 5, o funcionamento das unidades linguísticas no texto, mas apoiando-se na metalinguagem da gramática tradicional. E, sem se saber o que fazer, termina-se deixando de lado o estudo das unidades menores da língua e enfatiza-se o texto e o discurso. 2 | DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS NO EIXO DA LEITURA O eixo da leitura, por ter sido o primeiro a ser pesquisado no âmbito dos estudos linguísticos, encontra-se relativamente estabilizado, no sentido de que a formação inicial e continuada de professores de PLM, os documentos balizadores do ensino dessa língua e os materiais didáticos apontam para um ensino com base em usos efetivos da leitura na sociedade letrada em que vivemos. Nesse eixo, um dos desafios que o professor de PLM enfrenta, a nosso ver, é ensinar a ler textos reflexivos, do domínio do argumentar (a partir daqui, apenas ‘textos reflexivos’), que, consequentemente, são textos longos. Considerando as características da pós-modernidade – fragmentação do sujeito, “realidade” entendida como resultado de um processo discursivo, fugacidade, efemeridade, virtualidade das relações humanas –, o discurso da escola em defender a necessidade da leitura de textos densos, que requerem reflexão, posicionamento, encontra menos eco entre adolescentes e jovens. Ao mesmo tempo em que vemos rejeição à leitura de textos reflexivos, identificamos, desde a década de 1990, pesquisas acadêmicas e orientações oficiais para o ensino (como, à época, Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental e Médio – PCN e PCNEM –, Orientações Curriculares para o Ensino Médio - OCEM), apontando para estratégias que enfatizam o lúdico, o atraente, a fim de despertar o gosto pela leitura dos alunos. Assim, vemos livros didáticos cada vez mais coloridos, ilustrados, atraindo a atenção dos alunos para as multissemioses, como recurso imprescindível à produção de um texto. Nesse sentido, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), através do Guia do Livro Didático, parece reforçar essa ideia de “ludicizar” a leitura, quando faz referência às coleções que apresentam textos em sua coletânea que não são do interesse dos adolescentes, como vemos no excerto de uma resenha publicada no Guia de 2014: Estão presentes clássicos da literatura nacional e internacional, contemporâneos e passados. Essa seleção textual pode contribuir para a formação cultural do aluno, mas alguns dos textos propostos se distanciam da realidade e dos interesses dos adolescentes a que se destinam, o que pode afastá-los do envolvimento com as práticas de leitura [grifo nosso]. Apesar dessa possibilidade, a coletânea textual, com sua diversidade, favorece experiências significativas de leitura, especialmente no domínio da literatura e das artes, dado o investimento da coleção no sentido de formar jovens capazes de fruição estética e apreciação crítica. (Guia de livros didáticos PNLD 2014 – Ensino Fundamental - anos finais) Trata-se da coleção Perspectiva: língua portuguesa, de Norma Discini e Lúcia
  • 97. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 88 Teixeira, publicada pela Editora do Brasil, sendo sua segunda edição publicada em 2012. De acordo com a resenha da obra, apresentar textos que, em princípio, não são do interesse dos alunos poderá possibilitar seu afastamento das práticas de leitura. Vemos aqui um posicionamento que nos leva a crer que a escola não pode propor aos alunos aquilo que possivelmente contrarie seus interesses ou que exija mais esforço de sua parte para aprender. Assim, o difícil parece não ser possível de ser apresentado aos adolescentes, consequentemente, o texto complexo não terá espaço na escola. No Guia do Livro didático de 2017, também do ensino fundamental - anos finais, encontramos como ponto negativo a proposta de leitura de textos mais difíceis: No entanto, a presença de textos que contemplem a heterogeneidade sociocultural brasileira ou que manifestem a variação linguística do português, nos âmbitos social e regional, é reduzida. Além disso, há textos cuja complexidade temática e linguística pode trazer dificuldade ou desinteresse para leitores do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental. [grifo nosso] (Guia de livros didáticos PNLD 2017 – Ensino Fundamental - anos finais) Esses exemplos nos apresentam um desafio metodológico: os textos balizadores do ensino afirmam que o aluno deve desenvolver seu senso crítico através da leitura, mas fazê-los ler textos com complexidade temática e linguística pode afastá-los desse eixo de ensino. Sabemos que textos polêmicos e reflexivos nem sempre são do interesse dos alunos, justamente porque requerem trabalho árduo para compreensão e interpretação, e com o incentivo para a leitura do lúdico e prazeroso, esses textos reflexivos vão se tornando cada vez mais raros na aula. Ao lado dessas pesquisas, vemos também outras buscando desenvolver o letramento digital dos alunos: uso de facebook (SILVA, 2016), blogs (ALVES, 2015), quiz digital (MENEZES, 2015). Esse letramento precisa ser ampliado e ferramentas e aplicativos digitais podem ser utilizados como recursos para o ensino, mas são textos curtos de caráter lúdico, alguma crítica (às vezes superficial), ficcional, entre outros. Parece que, num mundo caracterizado pela pressa e liquidez, não há tempo para reflexão. 3 | DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS NO EIXO DA ESCRITA Em relação à produção de textos escritos, eixo de ensino também bastante explorado à luz dos estudos teóricos que se fundamentam em usos efetivos da leitura e da escrita em situações comunicativas reais, vemos que se apresenta desafiador como o da leitura. Do ponto de vista teórico, sobressaem-se, como no eixo da leitura, os aspectos sociais (e/ou discursivos). Do ponto de vista metodológico, há uma orientação quase prescritiva de que os textos dos alunos devem ter uma função social, logo não podem se limitar a ter como leitor o professor; não podem ser experiências de aprendizagem. Ora, é um processo intrínseco à escola ensinar, criar intencionalmente
  • 98. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 89 oportunidades de aprendizagem, logo há espaço para simulação. Assim, todos os textos escritos em sala de aula não têm necessariamente um destinatário extra-escola, porque os alunos estão aprendendo. Ensinar a escrever é desafiador. Em se tratando do texto reflexivo, os alunos demonstram mais dificuldades e resistência em escrevê-lo, pois requer mais conhecimentos temáticos, para embasar seus argumentos, e linguístico-textuais, para se adequar à língua culta. Nesse contexto, há um fator complicador que é o recurso à reescrita do texto de modo a torná-lo aceitável, pois os alunos, em geral, rejeitam essa atividade, com o argumento de que não sabem refazê-lo. Se, por um lado, há o desafio de o professor conhecer teorias de escrita que descrevem os textos efetivamente utilizados nos mais diversos âmbitos da sociedade, considerando as condições de produção e seu funcionamento efetivo, por outro, há a busca de uma metodologia que favoreça a aprendizagem da escrita, com o intuito de tornar os alunos autores e não apenas repetidores das ideias de outros. Observando pesquisas recentes sobre a produção de textos escritos na escola, vemos um predomínio de textos curtos, sem tanta complexidade na escrita: crônica (SANTOS, 2008), autobiografia (ROCHA, 2016; GALVÃO, 2016), fábula (SANTOS, 2016), notícia (AGUIAR Neta, 2015). Com maior complexidade, identificamos o artigo de opinião (NASCIMENTO, 2016; SANTANA, 2016; FRANCO, 2015) e o texto argumentativo (BARROS, 2016). Identificamos também trabalhos que descrevem a utilização de aparelhos e recursos digitais para o ensino de texto, como, por exemplo, o aparelho celular para a produção de texto multimidiático (ARANTES, 2015). Porém, trata-se de textos que não necessitam de muito esforço e envolvimento temático e linguístico-textual, visto que o foco parece estar mais voltado para o letramento digital do que propriamente para o desenvolvimento da competência escritora dos alunos. Analisando o Guia do livro didático de Português de 2018, destinado ao ensino médio, constatamos a presença de propostas de escrita com bastante orientação, como podemos exemplificar: Em relação ao desenvolvimento da proficiência em escrita, há, nas propostas de atividades de produção de textos, orientação para as diferentes etapas do processo de produção, envolvendo planejamento, escrita, revisão e reescrita, além do destaque para a adequação da linguagem ao interlocutor. [grifo nosso] Como as práticas são situadas, a seleção temática é parte do processo de planejamento, para a qual há orientações claras no texto, principalmente a partir da leitura de textos do gênero a ser produzido. (Guia do Livro Didático, 2018, ensino médio). A avaliação feita da obra Português – contexto, interlocução e sentido, de Maria Luiza Abaurre, Marcela Pontara e Maria Bernadete Abaurre, publicada em 2016, pela editora Moderna, demonstra que essa obra contribui para o ensino de textos escritos com mais especificações. O aluno encontra claramente as etapas a serem cumpridas na produção de um texto escrito: planeja, escreve, revisa, reescreve, até chegar à
  • 99. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 90 versão considerada final, se atendeu aos requisitos estabelecidos para esse texto. Em relação ao professor, essa orientação dá-lhe critérios explícitos para acompanhar e avaliar o texto produzido. 4 | DESAFIOS EPISTEMOLÓGICOS E METODOLÓGICOS NO EIXO DA ORALIDADE Em relação ao ensino dos gêneros orais, há mais desafios a enfrentar do que no ensino dos escritos, visto que compõem um dos últimos eixos a serem considerados na escola. Como, tradicionalmente, à escola cabia o ensino da escrita e a oralidade não precisava ser aprendida, pois os alunos sabiam falar, os gêneros orais presentes em ambientes públicos não constituíam/constituem objeto de ensino/aprendizagem. É preciso conhecer teoricamente esses gêneros orais e encontrar situações das quais eles façam parte, para se efetivar um ensino explícito. Pesquisas mostram que o debate (OLIVEIRA, 2015; BARROS, 2014; FERREIRA, 2014), seminário (RODRIGUES, 2016) e exposição oral (LOPES, 2011) são os gêneros mais explorados na sala de aula. O Guia do livro didático de língua portuguesa, de 2018, referente ao ensino médio, aponta que esse eixo ainda precisa se consolidar. Temos como exemplo: Existem atividades com orientações em quase toda obra (exceto na parte de Gramática), como, por exemplo, a sugestão de realização de debate interdisciplinar no Volume 3. Em raros momentos, entretanto, há, no Livro do Estudante, o incentivo à utilização de recursos visuais, como slides ou cartazes com a finalidade de apoiar uma apresentação oral. Além disso, nem sempre as atividades estão suficientemente estruturadas com orientações específicas para os gêneros e as práticas de oralidade, como ocorre, por exemplo, na organização de uma apresentação oral [grifo nosso]. (Guia do livro didático, 2018 – ensino médio) A coleção em destaque é Novas Palavras, de Emília Amaral, Mauro Ferreira, Ricardo Leite e Severino Antônio, publicada em 2016, pela editora FTD. Embora haja propostas de trabalho com língua falada, os autores não dão orientações de como se constitui o gênero estudado, de modo que os alunos tenham consciência do gênero, não seja uma ação intuitiva de falante nativo do português. Mas grande parte das atividades do eixo da oralidade nos livros didáticos se reduz ao uso espontâneo da língua falada, ou a oralização (que remete à leitura em voz alta de textos escritos). Dessa forma, cabe ao professor fazer seu planejamento de ensino, preenchendo as lacunas dos livros. 5 | DESAFIO EPISTEMOLÓGICO E METODOLÓGICO PARA O ENSINO DO EIXO ANÁLISE LINGUÍSTICA (ESTUDOS GRAMATICAIS) Esse eixo comporta tanto atividades epilinguísticas, quanto metalinguísticas e, entendido como descrição de aspectos da língua associada ao ensino/aprendizagem,
  • 100. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 91 continua sendo apresentado como alternativa ao ensino da gramática tradicional (GT), embora ainda não vejamos consolidação dessa alternativa (BEZERRA e REINALDO, 2013). Observando o ensino das unidades linguísticas, identificamos que, do ponto de vista epistemológico, temos um ensino fundamentado no paradigma da tradição gramatical (não considerado de base científica) – quando se classificam e se analisam morfossintaticamente essas unidades; e no paradigma linguístico (de onde advém a legitimidade do saber, pois se trata de conhecimento científico) – quando essas unidades são analisadas em situações de uso, ou seja, em textos. Podemos ilustrar a perspectiva gramatical com os exemplos a seguir. a) Paradigma tradicional O estudo das classes de palavras Do ponto de vista dos estudos gramaticais, que têm como objetivo a descrição dos sistemas linguísticos, é mais adequado falar em classes de palavras, para fazer referência à divisão das palavras da língua, de acordo com critérios morfológicos (sua forma e flexão), semânticos (tipos de significação de que são portadores) ou sintáticos (função que exercem nos enunciados). A gramática descritiva organiza as palavras da língua em dez classes: substantivos, adjetivos, artigos, numerais, pronomes, verbos, advérbios, preposições, conjunções e interjeições. (ABAURRE, ABAURRE & PONTARA. Português: contexto, interlocução e sentido, 2º volume, ensino médio, 2016, p.164) Atividades [...] 3. O publicitário Ciro Pellicano escreveu um livro intitulado Quando o poder corrompe, corrompe a não mais poder (Global, 2010). Nesse título, o termo poder aparece duas vezes com significados distintos. a) Como esse termo deve ser entendido na primeira ocorrência? b) Na segunda ocorrência, o termo integra a expressão “a não mais poder”. O que essa expressão significa? 4. As diferentes funções desempenhadas pelo termo poder na estrutura sintática do enunciado determinam uma classificação gramatical distinta para cada ocorrência. a) Qual é a classe gramatical do termo poder em cada umas dessas ocorrências? (ABAURRE, ABAURRE & PONTARA. Português: contexto, interlocução e sentido, 2º volume, ensino médio, 2016, p.165) b) Paradigma linguístico 3.Volte à questão 5 da página 67 e releia os títulos indicados [...]. a) Identifique os verbos nesses títulos. b) Esses verbos estão no presente, no passado ou no futuro? c) Por que, nos títulos de notícias, o verbo costuma estar no presente, se o fato relatado já aconteceu? [...]
  • 101. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 92 7. Tendo em vista o que você estudou até agora sobre a notícia e sobre o modo indicativo, responda: por que, nas notícias, a maioria dos verbos está no modo indicativo? (EDIÇÕES SM. Língua portuguesa, 6º volume, ensino fundamental, 2015, p.68- 69) O exemplo relativo ao paradigma tradicional demonstra que o livro didático segue a classificação de palavras apresentada pela tradição greco-romana (“A gramática descritiva organiza as palavras da língua em dez classes: substantivos, adjetivos, artigos, [...] advérbios, preposições, conjunções e interjeições.”), sem fazer nenhuma referência aos estudos críticos que há a esse respeito, inclusive a posição de que o artigo, o numeral e a interjeição não constituem classes de palavras, e repete o mesmo equívoco da GT de não distinguir “classe” de “função” (“As diferentes funções desempenhadas pelo termo poder na estrutura sintática do enunciado determinam uma classificação gramatical distinta para cada ocorrência.”): ora, não é a função exercida pelo termo em um enunciado que determina sua classe; as palavras são agrupadas em uma classe, segundo critérios que são comuns a elas, independentemente do seu funcionamento nos enunciados (nesse caso, poder pertence à classe dos verbos, podendo exercer a função de substantivo). O exemplo relativo ao paradigma linguístico, por sua vez, propõe uma análise sobre o funcionamento dos verbos (em sua flexão de tempo e de modo) em um gênero textual específico (notícia jornalística), levando o aluno a relacionar flexão verbal com características composicionais e linguísticas do gênero textual em estudo. Ou seja, o aluno reflete sobre o uso efetivo da palavra em questão, tirando conclusões cabíveis, não se restringindo apenas a identificar o tempo e o modo do verbo. Assim, vemos que os livros didáticos de português ora prescrevem ora descrevem, seguindo pontos de vista teóricos que não se complementam. O recurso ao sincretismo teórico é citado por Borges Neto (2011), demonstrando uma certa perplexidade, quando se refere aos estudos morfológicos realizados no Brasil: Minha sensação [...] é que continuam existindo laços muito estreitos entre as teorias modernas e as teorias antigas – como se as teorias modernas não pudessem se desvencilhar da carga da tradição – e esses laços tolhem significativamente suas possibilidades de desenvolvimento. (BORGES Neto, 2011, p.55) Embora esse autor esteja abordando os estudos morfológicos de um ponto de vista teórico, suas afirmações se relacionam com as propostas de ensino, pois essas demonstram uma sobreposição teórica (RAFAEL, 2001) ao utilizar práticas tradicionais e modernas, como podemos comprovar em Kleiman e Sepulveda (2012): Nossa opção é pelo ensino da gramática, porém, por uma vertente que assimile o que há de positivo nas práticas tradicionais e nas modernas, sem nos posicionarmos radicalmente por uma ou outra. O resultado esperado é o desenvolvimento do potencial comunicativo do aluno, e o consequente fortalecimento de sua capacidade cidadã na sociedade moderna, essencialmente letrada. (KLEIMAN e SEPULVEDA, 2012, p.11) Essa opção, por um lado, evoca a crença que rege o ensino tradicional do
  • 102. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 93 português, qual seja, o domínio da gramática normativa é condição para bem falar e escrever, quando as autoras afirmam que “o resultado esperado é o desenvolvimento do potencial comunicativo do aluno e o consequente fortalecimento de sua capacidade cidadã na sociedade moderna...”. Por outro lado, ecoa, indiretamente, a posição tomada por Perini (2010) e Neves (2000), em relação à categoria e à terminologia adotadas em suas gramáticas: a escolha de categorias e termos advindos da GT se deve ao fato de que são do conhecimento geral e são compreendidos com facilidade. Perini (2010) afirma: [...] tentei utilizar um corpo de categorias teóricas de aceitação mais ou menos geral. Ao contrário de que se possa pensar, esse corpo teórico existe, e não é nada pequeno: por exemplo, se alguém fala de “verbos”, ou de “concordância”, ou de “preposição” [...] é imediatamente compreendido; esses termos evocam, se não definições teóricas, pelo menos grupos de fenômenos bastante bem definidos. (PERINI, 2010, p.25) Neves (2000), por sua vez, esclarece que A Gramática de usos do português parte das tradicionais classes de palavras, ponto de partida escolhido apenas porque o leitor ou consulente comum, sem ser conhecedor do assunto, vai poder situar-se na sua busca, para chegar ao que quer saber. Entretanto, o agrupamento dessas classes pelas quatro partes da obra já revela que há princípios teóricos dirigindo o tratamento das questões. As partes se codividem segundo os processos que dirigem a organização dos enunciados para obtenção do sentido do texto: a predicação, a referenciação, a quantificação e a indefinição, a junção. (NEVES, 2000, p.13) Ou seja, essa junção de princípios tradicionais e modernos em prol de um ensino de língua eficaz leva-nos a crer que as teorias modernas não desenvolveram um estudo suficientemente amplo sobre essas categorias, de modo que para compreendermos uma proposta teórica inovadora precisamos do apoio dos conhecimentos da GT. Podemos constatar essa postura com os exemplos de Pilati (2017). Pilati (2017) pretende mostrar de que forma os conhecimentos linguísticos podem ser usados como fundamentos teóricos norteadores da prática docente e [...] aliar tais conhecimentos a uma metodologia que se preocupe em promover o aprendizado ativo dos estudantes. [...] Sem fugir dos conteúdos gramaticais obrigatórios para os alunos da Educação Básica, a abordagem que proponho nesta obra tenta articular três aspectos fundamentais para o ensino de línguas: i. os avanços alcançados pelas pesquisas linguísticas em relação às propriedades das línguas humanas; ii. os conhecimentos sobre as variedades linguísticas da língua portuguesa; e iii. a metodologia da aprendizagem ativa, capaz de levar os alunos a usar a gramática com consciência e em benefício de sua produção textual. (PILATI, 2017, p.16) Essa autora, ao apresentar suas oficinas de trabalho (capítulo 4, p.113-142),
  • 103. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 94 propõe, como aprendizagem ativa, os itens ‘avaliação do conhecimento prévio dos alunos’; ‘experiências de descoberta e reflexão linguística’; ‘organização das ideias encontradas’; apresentação das ideias’; e ‘aplicação dos conhecimentos em textos’, para os alunos resolverem. Na oficina 4 – Formando Orações (p.131-134), é solicitado aos alunos que analisem as orações apresentadas, identifiquem a classe gramatical de uma palavra criada pela autora e presente nas orações dadas; que façam uma oração com essa palavra; que criem frases para um conjunto de verbos retirados do texto Poema da necessidade (Carlos Drummond de Andrade); e que analisem a definição de verbo contida no Dicionário Houaiss eletrônico (definição idêntica à da GT). Ou seja, para a aprendizagem ativa, fundamentada nos “avanços alcançados pelas pesquisas linguísticas em relação às propriedades das línguas humanas” (nesse caso, trata-se da linguística gerativa), os alunos precisam conhecer os termos oração, classe de palavras, verbo e frase (conhecimento advindo da tradição gramatical). Mas em que momento esses conceitos foram ou serão ensinados? Esse procedimento parece induzir os autores de livros didáticos e, consequentemente, os professores a recorrerem aos estudos tradicionais, como forma de garantir o aprendizado de seus alunos. Em decorrência desse posicionamento epistemológico, verificamos que, do ponto de vista metodológico, ao menos dois caminhos são seguidos: ensino transmissivo, no que se refere à classificação dos conhecimentos gramaticais de origem greco-latina e sua metalinguagem; e ensino reflexivo, quanto ao uso e funcionamento das unidades linguísticas, com o intuito de fazer o aluno refletir sobre o papel dessas unidades na construção dos textos e de seus sentidos. Podemos ilustrar com os exemplos seguintes, retirados da Gramática da língua portuguesa padrão, de Hauy (2014), e de Texto e gramática, de Neves (2006). a) Ensino transmissivo: Adjetivo I. Conceito Adjetivo é a palavra que se apõe ao substantivo ou equivalente para lhe atribuir uma qualidade (inerente ou não), propriedade, condição ou estado. Exemplo: Limpos, regulares, modernos como um escritório com “guichets” [...](Fernando Pessoa) II. Classificação À qualidade inerente denominava-se, antes da NGB, adjetivo explicativo: homem mortal, Deus Todo poderoso; e à não inerente, adjetivo restritivo: homem sábio,
  • 104. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 95 bom conselho [...] III. Formação Quanto à formação, o adjetivo classifica-se em: primitivo ou derivado, simples ou composto. (HAUY, 2014, p.601) Na apresentação da sua Gramática, a autora esclarece que a obra é “resultado de décadas de pesquisa, elaboração e experiência de magistério, é uma tentativa de sistematização da tradicional teoria gramatical do português acadêmico, objetivando uma reflexão crítica sobre o estado atual da língua portuguesa no que ela tem de sistemático, gramatical e, sobretudo, sobre a importância da norma padrão no livro didático, em sua função sociocultural.” (HAUY, 2014, p.33). Ao frisar “a importância da norma padrão no livro didático”, a autora faz referência ao ensino do português sob o viés da tradição gramatical, na educação básica. Além disso, pelo fato de que os conteúdos são apresentados seguindo a organização “conceito, classificação, formação”, acompanhada de exemplos e alguns comentários, percebemos a perspectiva transmissiva de seu ensino. Não há reflexão sobre o assunto. b) Ensino reflexivo: Nenhuma forma verbal pode definir-se isolada ou descontextualizadamente. Ainda permanecendo nos domínios definidos pelas relações estruturais, ou sintáticas (em que a unidade maior é a frase), teremos de conjugar o complexo funcional de estatuto mórfico – a forma verbal - ao seu contexto sintático. O verbo pertence à esfera semântica das relações e processos (Halliday, 1985) (estados / eventos), sendo responsável, pois, pelo amarramento sintático-semântico dos diferentes participantes. [...] A título de ilustração de um exame textual ligado ao uso de categorias gramaticais examino a crônica de Luis Fernando Veríssimo “Segurança”, com vista para a ligação dos tempos verbais com o ‘fazer’ do texto (no caso, essencialmente, narrativo). (NEVES, 2006, p.68) A exploração do uso dos verbos na citada crônica vai demonstrando a progressão da narrativa e a parte que se faz em retrospectiva. Ou seja, não basta saber de forma isolada os tempos e modos verbais, mas também averiguar seus usos na construção do texto. Mesmo tendo verificado exemplos de estudos reflexivos (como o de Neves, 2006), não identificamos, de forma abrangente, uma proposta que leve o aluno a refletir sobre o funcionamento da língua e sobre a descrição feita pela GT, com vistas a desenvolver a sua capacidade investigativa e, assim, reconhecer que nenhum estudo linguístico descreve, com completude, uma língua e que a GT, por ter realizado seu estudo com base em um uso da língua não mais idêntico ao de hoje, tem propostas (tanto de categorias quanto de descrições e de prescrições) que merecem ser revistas.
  • 105. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 96 Em relação ao livro didático de português, ele desenvolve mais atividades epilinguísticas do que metalinguísticas, mas apoiando-se na terminologia da GT. Vemos comportamento idêntico em estudos acadêmicos voltados para o ensino do PLM, principalmente a partir da década de 2010. Já não há um discurso impositivo por parte da academia de que a GT não deve estar associada ao ensino de português e, em prefácios ou em apresentações de livros, lemos que seus autores explicitam o interesse em propor alternativas para o ensino de tópicos da tradição gramatical, considerando-se necessário seu conhecimento. Vejamos: Partimos da análise de situações concretas de ensino da língua e buscamos apresentar possibilidades de encaminhamentos, sugestões de possíveis maneiras de se trabalhar a gramática que consideramos realizáveis para a maioria dos professores de língua portuguesa. [...] visamos apenas construir as bases para o ensino de gramática mostrando como pode ser feita a introdução à metalinguagem, mirando-se sempre em situações concretas.O objetivo deste livro é apresentar uma maneira de introduzir noções e categorias gramaticais a alunos do terceiro e quarto ciclo do Ensino Fundamental e do Ensino Supletivo, para assim construir um alicerce para estudos gramaticais e linguísticos posteriores. (KLEIMAN e SEPULVEDA, 2012, p.10-11) Essa opção explícita pela gramática tradicional traz renovação no procedimento metodológico, não no conteúdo. Vejamos seu sumário: A primeira lição: por que estudar gramática? Palavras e objetos Nomes e substantivos Atividades Verbo, pessoa e tempo O adjetivo Sujeitos, predicados e outras considerações (KLEIMAN e SEPULVEDA, 2012, p.07) Aqui, vemos que as classes de palavras da GT selecionadas para estudo são substantivo, verbo e adjetivo e algumas funções da sintaxe oracional (sujeito e predicado). Outro exemplo que ilustra essa associação entre teorias tradicionais e modernas no ensino do português é visto na apresentação do livro Práticas de ensino do português, organizado por Palomanes e Bravin (2012): Propusemos aos autores uma reflexão que associasse tradição e ruptura nos estudos sobre a língua portuguesa, a fim de levarmos ao leitor discussões que lhe ofereçam novos conhecimentos construídos dentro da ciência linguística que vão somar-se a sua prática e aos conhecimentos que já domina. [...] Na segunda parte do livro, serão apresentadas críticas e propostas ao ensino de algumas estruturas
  • 106. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 97 morfológicas e sintáticas, tomando como apoio as teorias linguísticas do século XX: serão abordadas as relações entre o significado do verbo e a organização estrutural da oração, mais especificamente dos verbos tradicionalmente classificados como transitivos diretos, ou seja, aqueles acompanhados de sujeito e objeto direto; [...] (PALOMANES e BRAVIN, 2012, Apresentação) As autoras (2012) deixam claro que estudos realizados no âmbito da linguística se associam aos ensinamentos da GT (“reflexão que associasse tradição e ruptura nos estudos sobre a língua portuguesa”) com vistas a uma reorientação para o ensino do português (“serão apresentadas críticas e propostas ao ensino de algumas estruturas morfológicas e sintáticas, tomando como apoio as teorias linguísticas do século XX”), sem, contudo, questionar (ou propor alterações) categorias e terminologia da GT (“serão abordadas as relações entre o significado do verbo e a organização estrutural da oração, mais especificamente dos verbos tradicionalmente classificados como transitivos diretos.” – grifo nosso). Possenti (2011), ainda que com restrições, também participa desse conjunto de autores que olham para o ensino de gramática. Vejamos: Assim, quis fazer um trabalho em tudo semelhante ao que tenho feito quando trato de questões de ensino: não acreditando que estejamos a ponto de fazer uma revolução na escola – no entanto, absolutamente necessária – quis contribuir para que se lesse por dentro aquele corpo de doutrinas que funciona, a meu ver, como o ponto cego da educação: a gramática. O material foi prioritariamente destinado a estudantes do ensino médio – ou a seus professores. (POSSENTI, 2011, p.11-12) Ainda esse autor: Considere-se, por exemplo, o caso dos chamados adjetivos com função de advérbio, em exemplos como Ele anda rápido. Em aula, um professor pode querer convencer o aluno de que ‘rápido’ aqui é um advérbio (com função de adjunto adverbial, não de predicativo do sujeito), ou que um candidato, em uma prova, tenha de responder a uma pergunta relativa à função sintática de ‘rápido’. [...] é perfeitamente possível provar que se trata de um advérbio. Para tanto, basta alterar uma variável. O procedimento é simples. Se for um predicativo do sujeito, “rápido” concorda com o sujeito.” (POSSENTI, 2011, p.43) Possenti (2011) – mesmo reconhecendo que uma mudança é necessária na escola – em relação à gramática, propõe um ensino reflexivo, com vistas a que o aluno compreenda os fatos linguísticos e construa seus conhecimentos. Nesse caso, propõe testes, utilizando variáveis: troca de palavra masculina – “Ele” – por uma feminina – “Ela”, para verificar a função morfossintática de constituintes da oração (“rápido” como “adjetivo” ou “advérbio” e, consequentemente, como “predicativo do sujeito”, caso em que “concorda com o sujeito”). Esse procedimento de utilizar variáveis para conhecer a língua e seu funcionamento constitui uma demonstração de análise como os campos científicos o fazem. Essa é uma característica do ensino reflexivo, que leva em consideração conhecimentos metalinguísticos. Os exemplos demonstrados referem-se ao estudo de classes de palavras e de categorias gramaticais e sintáticas, para reconhecimento e análise. Mas encontramos
  • 107. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 98 também essas classes de palavras em estudos que abordam outra unidade de ensino: gêneros textuais. Nesse caso, o estudo dessas classes está associado à materialização do gênero. Como exemplo, citamos o trabalho de Angelo & Loregian-Penkal (2010), sobre análise linguística associada ao gênero “divulgação científica”. Incluímos, nas atividades de análise e reflexão da língua, os seguintes aspectos: .o estudo das condições de produção do texto e das características específicas dos gêneros textuais. (...); . a reflexão sobre o motivo da escolha de uma forma linguística ou outra. Dessa maneira, os elementos linguísticos não serão vistos como formas “congeladas”, mas como recursos que se prestam à eficiência comunicativa; .o uso de verbos. No estudo das formas verbais, será importante destacar que a escolha dos termos não é feita por acaso, pois há sempre um interlocutor, alvo das produções, para quem o texto se destina; (ANGELO & LOREGIAN-PENKAL, 2010, p.143-144) Essa citação demonstra a proposta de trabalho prevista para alunos do ensino fundamental (anos iniciais), incluindo entre outros aspectos o verbo, como unidade constitutiva do gênero em estudo (divulgação científica). A operacionalização desse trabalho envolve a reflexão sobre tempos e modos verbais: ATIVIDADE 11 11.1. Verifique em que tempo e modo se encontram os verbos do texto. 11.2. Por que os verbos foram utilizados dessa maneira no texto? 11.3. Qual dos verbos sublinhados nas frases a seguir dá ideia de que algo se repete, é contínuo: a) “Um louva-a-deus vai chegando perto do vaga-lume (sic) ‘apagado’”. b) “De repente, o pirilampo pisca e o louva-a-deus desanima”. (ANGELO & LOREGIAN-PENKAL, 2010, p.155) Areflexão aqui construída leva o aluno a identificar o uso do presente do indicativo com outro sentido que não o do momento da enunciação: tratando-se de um texto de divulgação científica, as constatações científicas são ditas nesse tempo e modo verbais, que denotam verdades permanentes. Embora as autoras não focalizem aspecto verbal (“vai chegando”), realizam a análise dessa unidade linguística (verbo), demonstrando seu papel na construção do gênero textual. Dito de outro modo, as autoras propõem o novo apoiadas no velho. Eis o desafio do ensino reflexivo da língua: ora se apoia na perspectiva teórica da tradição
  • 108. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 99 e adota procedimentos metodológicos modernos, ora se apoia em perspectiva teórica moderna, sem desvencilhar-se dos laços da tradição, como cita Borges Neto (2011). Consultando a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), identificamos que o ensino da análise linguística, associado aos gêneros textuais, segue a classificação e terminologia da GT, para os estudos morfossintáticos (por exemplo, classes de palavras, funções sintáticas dos termos da oração, concordância verbal e nominal), e a classificação e terminologia linguística (linguística de texto), para os estudos do texto (por exemplo, os critérios de textualidade). 6 | CONCLUSÃO Vimos que ensinar português é enfrentar desafios, pois a confluência, na escola, de tantas teorias que descrevem a língua acaba por provocar um sincretismo que leva o professor a não distinguir suas bases teóricas nem a metodologia correspondente a essas bases. Nas obras que citamos, identificamos duas perspectivas metodológicas: a que leva o aluno à reflexão sobre a língua em seu funcionamento, verificando sua adequação ao texto (reflexão epilinguística); e a que leva o aluno à observação, à comparação dos fatos da língua, com vistas a uma categorização e, consequentemente, a uma apropriação de uma terminologia (reflexão metalinguística). A produção acadêmica sobre essa última reflexão é bem menos desenvolvida do que a primeira. O fato de que a GT se fundamenta em critérios variados para a classificação, categorização e explicação da língua (filosófico, histórico, morfológico, sintático, semântico) contribui para que críticas sejam feitas e, consequentemente, seus estudos sejam questionados por pesquisadores que analisam a língua com critérios mais rigorosos e aceitos pela ciência. Assim, o ensino do português enfrenta um desafio que – parece – está longe de ser resolvido: que teoria gramatical ensinar e seguindo que metodologia? Os autores, embora reconheçam limitações da GT, não descartam completamente suas propostas. Assim, alguns propõem seu estudo, com alterações, às vezes de conteúdo, às vezes metodológicas. O ensino não despreza uma metalinguagem que orienta as atividades do aluno em busca de entender o funcionamento e a estrutura da língua, mas distancia-se do comportamento tradicional de apresentar um código de regras a seguir. Essa postura de observação da língua exige uma abordagem metodológica na sala de aula que provoca questionamentos, dúvidas e não certezas e dogmas. REFERÊNCIAS ABAURRE, M. L. M.; ABAURRE, M. B. M. & PONTARA, M. Português: contexto, interlocução e sentido. 2.ed. São Paulo: Moderna, 2016, v. 2, ensino médio. AGUIAR Neta, M. do C. M. A (re)escritura do texto nas aulas de língua portuguesa: implicações para o processo de aprendizado da escrita. Mamanguape: UFPB, Mestrado profissional, dissertação, 2015.
  • 109. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 100 ALVES, T. C. A educação e os multiletramentos: leitura e escrita de linguagem multissemiótica no hipertexto blog. Mamanguape: UFPB, Mestrado profissional, dissertação, 2015. ANGELO, C. M. P. e LOREGIAN-PENKAL, L. Perspectivas para o trabalho com análise linguística. In: MENEGASSI, R. J. (org). Leitura, escrita e gramática no Ensino Fundamental. Maringá: EDUEM, 2010, p.141-162. ANTUNES, I. Gramática contextualizada. São Paulo: Parábola, 2014. ARANTES, C. de V. O celular como dispositivo eletrônico para produção de textos mulmitidiáticos: de objeto proibido à condição de recurso pedagógico em sala de aula. Mamanguape: UFPB, Mestrado profissional, dissertação, 2015. BARROS, J. B. da S. A produção de artigos de opinião por alunos do ensino fundamental: a construção da contra-argumentação mediada por operadores de conformidade e contraposição. Mamanguape: UFPB, Mestrado profissional, dissertação, 2016. BARROS, J. B. de. A oralidade nas aulas de língua portuguesa: a produção do gênero debate. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2014. BEZERRA, M. A. e REINALDO, M. A. Análise linguística: afinal a que se refere? São Paulo: Cortez, 2013. BORGES Neto, J. Morfologia: conceitos e métodos. In: LIMA, M.A.F.; ALVES Filho, F. & COSTA, C.de S. S. M. da. Colóquios linguísticos e literários: enfoques epistemológicos, metodológicos e descritivos. Teresina: EDUFPI, 2011, p.53-72. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental II. Brasília: Secretaria da Educação Básica / MEC, 1998. ________. Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: Secretaria da Educação Básica/MEC, 2002. ________. Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Brasília: MEC, 2006. ________. Guia do Livro Didático de português: Ensino Médio. Brasília: FNDE/INEP, 2018. ________. Guia do livro didático. Ensino fundamental – anos finais. Brasília: FNDE/INEP,2017. ________. Guia do livro didático de português: Ensino Fundamental - anos finais. Brasília: FNDE/ INEP, 2014. _______. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017. COSTA VAL, M. da G. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991. DIONISIO, A. P.; MACHADO, A. R.; BEZERRA, M. A. Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. FERREIRA, E. C. F. A oralidade como objeto de ensino: por uma perspectiva de desenvolvimento da língua oral a partir do gênero debate. Fortaleza: UFC, Programa de Pós-Graduação em Linguística, dissertação, 2014. FRANCO, C. C. C. A educação dialógica no ensino de produção de textos em língua portuguesa. Fortaleza: UFC, Programa de Pós-graduação em Linguística, Mestrado profissional, dissertação, 2015.
  • 110. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 101 GALVÃO, M. L. O. A autobiografia e o desenvolvimento da escrita: uma proposta de intervenção. Universidade do Estado da Bahia, Mestrado profissional, 2016. GARCEZ, L. A escrita e o outro: os modos de participação na construção do texto. Brasília: UNB, 1998. GERALDI, J. W. Linguagem e ensino. Campinas: Mercado de Letras, 1996. ____________. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991. HAUY, A. B. Gramática da língua portuguesa padrão. São Paulo: EDUSP, 2014. KATO, M.A. O aprendizado da leitura. São Paulo: Martins Fontes, 1985. KLEIMAN, A. & SEPULVEDA, C. Oficina de gramática: metalinguagem para principiantes. 2.ed., São Paulo: Pontes, 2012. __________. Leitura: ensino e pesquisa. Campinas: Pontes, 1989 a. ___________. Texto e leitor: Aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1989 b. LOPES, Q. V. O ensino do gênero exposição oral: um estudo de caso no 5º ano do ensino fundamental. João Pessoa: UFPB, Programa de Pós-graduação em Linguística, dissertação, 2011. MENEZES, M. V. de. Quiz digital leitura em ação: objeto de aprendizagem na formação do leitor crítico no ensino fundamental II. Itabaiana: Universidade Federal de Sergipe, Mestrado profissional, 2015. NASCIMENTO, A. de S. O gênero discursivo artigo de opinião em práticas de letramento escolar. Fortaleza: UFC, Programa de Pós-graduação em Linguística, mestrado profissional, dissertação, 2016. NASCIMENTO, E. L. Gêneros textuais: da didática das línguas aos objetos de ensino. São Carlos: Claraluz, 2009. NEVES, Ma. H. de M. (2000). Gramática de usos do português. São Paulo, Ed. da Universidade Estadual Paulista. ___________. Texto e gramática. São Paulo: Contexto, 2006. OLIVEIRA, G. B. de. O gênero debate no ensino fundamental: uma vivência (ou experiência) de ensino-aprendizagem mediada pelas sequências didáticas. Mamanguape: UFPB, Mestrado profissional, dissertação, 2015. PAIVA, A. M., PEREIRA, C. S., BARROS, F. P. e MARIZ, L. Universos - Língua portuguesa, São Paulo: Edições SM, 2015, v. 6, ensino fundamental. PALOMANES, R. e BRAVIN, A.M. (org.). Práticas de ensino do português. São Paulo: Contexto, 2012. PERINI, M. A. Gramática do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2010. PILATI, E. Linguística, gramática e aprendizagem ativa. Campinas: Pontes, 2017.
  • 111. Argumentação e Linguagem Capítulo 7 102 POSSENTI, S. Questões de linguagem: um passeio dirigido. São Paulo: Parábola, 2011. RAFAEL, E.L. Atualização em sala de aula de saberes linguísticos de formação: os efeitos da transposição didática. In: KLEIMAN, A. (org). A formação do professor: perspectiva da linguística aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 2001, p. 157-180. ROCHA, F. C. O texto autobiográfico na sala de aula: uma proposta de ensino da produção escrita para alunos do 9º ano. Fortaleza: UFC, Programa de Pós-graduação em Linguística, mestrado profissional, dissertação, 2016. RODRIGUES, Redimensionamento das abordagens teórico-metodológicas do gênero seminário aplicáveis ao Ensino Fundamental II. Mestrado profissional, Dissertação, 2016. SANTANA, E. R. R. de. A argumentação nos artigos de opinião: uma proposta de produção textual. Universidade do Estado da Bahia, Mestrado profissional, dissertação, 2016. SANTOS, G.V. dos. O uso do gênero fábula para o aprimoramento da produção escrita no sexto ano do ensino fundamental. Mamanguape: UFPB, Mestrado profissional, dissertação, 2016. SANTOS, J. M. dos. O gênero crônica na sala de aula do ensino médio. Natal: UFRN, Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, dissertação, 2008. SILVA, M. M. dos S. V. da. Facebook: um suporte tecnológico para o ensino da leitura. Currais Novos: UFRN, Mestrado profissional, dissertação, 2016. WACHOWICZ, T. Análise linguística nos gêneros textuais. Curitiba: Editora IBPEX, 2010.
  • 112. Capítulo 8 103Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 8 IGREJA” E “SENHOR”: A CRÍTICA À RELIGIÃO NAS LETRAS DE MÚSICA DA BANDA TITÃS À LUZ DAS REFLEXÕES BAKHTINIANAS Claudia de Fátima Oliveira Universidade de Franca Franca –SP Camila de Araújo Beraldo Ludovice Universidade de Franca Franca-SP RESUMO: O objetivo deste artigo é promover, a partir do estudo das letras das canções “Igreja” e “Senhor”, da banda paulistana Titãs, uma análise sobre as relações dialógicas entre as letras que, embora construídas em épocas distintas e distantes, trazem questionamentos históricos e sociais, em relação à ideologia permanente de que a instituição Igreja rege as relações sociais. Sob o ponto de vista do filósofo russo Mikhail Bakhtin, serão feitas análises dialógicas entre as letras e o contexto histórico à época das composições, a fim de demonstrar que se vive sob uma opressão religiosa-social, que se origina da castração e do imperativo, quer seja em âmbito coletivo, quer seja individual, enunciando um medo social que se faz presente até os dias atuais. PALAVRAS-CHAVE: Letra de música. Titãs. Relações dialógicas. Bakhtin. CHURCH “AND” LORD “: THE CRITICISM TO RELIGION IN THE LETTERS OF MUSIC OF THE TITÃS BAND IN THE LIGHT OF BAKHTINIANAS REFLECTIONS ABSTRACT: The purpose of this article is to promote a reflection on the dialogue between the letters that, although built at distinct and distant times, bring historical questions to the analysis of the lyrics of the songs “Church” and “Lord” and social, in relation to the permanent ideology that the Church institution governs social relations. From the point of view of the Russian philosopher Mikhail Bakhtin, dialogical analyzes will be made between the letters and the historical context at the time of the compositions, in order to demonstrate that one lives under a social-religious oppression, which originates from the castration and the imperative, whether in the collective sphere or individual, enunciating a social fear that is present until the present day. KEYWORDS: Song lyrics.Titãs. Dialogic relations. Bakhtin. 1 | INTRODUÇÃO As letras de música sempre foram objeto de polêmica em meio ao corpo social. Nesse sentido, no Brasil, os anos 1980 foram frutíferos,
  • 113. Argumentação e Linguagem Capítulo 8 104 em função da época por que o país passava: fim da Ditadura Militar e início da Nova República. Nessa década, surgiu, em São Paulo, a banda Titãs, que, nessa época, cantava, majoritariamente, letras de música cujo conteúdo era de protesto. Ainda que em uma época de abertura, os Titãs se consagraram como uma banda respeitada tanto pelo público, quanto pela crítica. Nesse contexto, Cabeça Dinossauro e Nheengatu são álbuns que possuem letras que, embora produzidas em tempos distantes e distintos, trazem para o leitor-ouvinte a realidade histórica do nosso país nos anos 1980 e 2010. Por meio das letras de música “Igreja”, de Cabeça Dinossauro e “Senhor”, de Nheengatu, tanto as gerações antigas quanto as atuais poderão conhecer muito do contexto histórico e social do nosso país. As composições analisadas, dentro do gênero letra de música, foram escolhidas por abordarem críticas, ora veladas, ora explícitas às instituições religiosas que tradicionalmente regem o indivíduo e que não eram passíveis de críticas diretas em anos anteriores, mas, na contemporaneidade, já são alvos de questionamentos diretos acerca de sua validade. Assim, nos anos 1980, a banda Titãs trouxe referências explícitas à Igreja, referências não elogiosas e contundentes às mazelas instauradas dentro das instituições religiosas. O incômodo gerado pelo teor de algumas letras trouxe à tona a importância de tratar sobre esse assunto, uma vez que o engajamento da banda se fez e se faz presente durante a sua trajetória. Dessa forma, analisar como as letras “Igreja” e “Senhor” são contributivas para o pensar social é de suma importância, já que, por muitas vezes, as imposições religiosas são vistas como algo já pré-imposto à sociedade. Em 1987, foi lançada no álbum Cabeça Dinossauro a música “Igreja”, de composição do poeta Nando Reis. Conforme declaração do integrante do grupo Titãs ao site G1, a letra foi uma resposta do autor, ateu declarado, às declarações do cantor sobre o filme “Je Vous Salue, Marie”, de Jean-Luc Godard, cineasta, representante da Nouvelle Vague. O filme franco-suiço foi lançado no mesmo ano da música, de teor polêmico, proibido no Brasil durante o governo do presidente José Sarney. Na ocasião, Roberto Carlos enviou um telegrama ao então presidente, cumprimentando-o por impedir a exibição do filme, que, sob os olhos do artista, não seria expressão de arte que merecesse a liberdade de atingir a tradição religiosa do povo brasileiro. A época marcou o começo da Nova República, que veio substituir a ditadura. Nesse contexto, surge a letra de “Igreja”, letra polêmica, que ganhou mais força polemizante quando um dos integrantes da banda, Arnaldo Antunes, deixou de participar das apresentações quando a música era tocada, por não ter certezas religiosas. À época da composição, a banda Titãs passava ao público a imagem de ter em seu bojo jovens rebeldes e revolucionários, fato confirmado pelo fato de o LP Cabeça Dinossauro trazer consigo somente letras de cunho crítico ao corpo social e às imposições estatais, o que o torna referência de protesto e politização. A letra de “Igreja” é uma crítica à religião, mas, em especial, critica, com
  • 114. Argumentação e Linguagem Capítulo 8 105 veemência, a Igreja Católica, elemento causador de polêmica na época. Ainda assim, a letra, embora não tocada nas rádios, fez sucesso nos shows, naquele momento e é tocada até os dias atuais nos shows da banda. Em 2015, a banda lança a letra “Senhor”, novamente clara alusão à religião e, em especial à Igreja Católica, abordando questões como pecado e culpa, e inserindo a letra da oração católica Pai Nosso, fazendo nela, inclusive, alterações. Além disso, entra em pauta, na letra em questão, a discussão em relação às religiões neo-pentecostais, sob o ponto de vista da exploração monetária. Nesse sentido, as letras de “Igreja” e “Senhor” trazem consigo pontos em comum. Letras produzidas em tempos distintos, em espaços longínquos, a saber, 1986 e 2015, historicamente marcados por períodos de repressão e liberdade de expressão social. Em seu interior, ambas, frente às críticas direcionadas, criticam, de forma direta, a instituição religiosa Igreja, mas também mostram diferenças, justamente em função do tempo da produção das letras, vez que o conteúdo de “Igreja” é mais agressivo, enquanto “Senhor” parece trazer um convite à reflexão. Nesse contexto, ocorrem relações dialógicas entre as letras das músicas aqui analisadas, em cronótopos distintos. O confrontamento entre as letras das músicas “Igreja” e “Senhor” trazem uma reflexão no sentido de que a imposição marcada pela religiosidade no Brasil, suposto Estado laico, se fez presente de forma marcante no período ditatorial, mas ainda válida na democracia, posto que ambas as épocas dialogam com forças religiosas vindas tanto do poder estatal quanto da sociedade conservadora. 2 | O DIALOGISMO BAKHTINIANO As reflexões bakhtinianas trazem a concepção de que, embora os discursos não sejam produzidos em um mesmo tempo e espaço, eles podem intercambiar entre si ideários dialógicos, não inéditos, mas com novas contribuições. Para ele: Qualquer resenha da história de alguma questão científica (independente ou incluída no trabalho científico sobre uma determinada questão) realiza confrontos dialógicos (entre enunciados, opiniões, pontos de vista) entre enunciados de cientistas que não sabiam nem podiam saber nada uns sobre os outros. (BAKHTIN, 2006, p. 331). Desse modo, o aspecto em comum dos temas geram questões dialógicas. São, portanto, os enunciados aquilo que o enunciador produz com consciência, uma vez que o processo de enunciação se constitui por meio de vozes sociais. Quando um enunciado se encerra, não há acabamento final, frente à presença de respostas e réplicas. Nesse ínterim, as letras ora analisadas se fazem constituir por meio de vozes sociais, produzidas por seus autores e ecoadas quando repetidas e vivenciadas por seus receptores. Nesse sentido, para Bakhtin,
  • 115. Argumentação e Linguagem Capítulo 8 106 Por palavra do outro enunciado, produção de discurso, eu entendo qualquer palavra de qualquer outra pessoa, dita ou escrita na minha própria língua ou em qualquer outra língua, ou seja, qualquer outra palavra não minha. Neste sentido, todas as palavras (enunciados, produções de discurso e literárias), além das minhas próprias, são palavras do outro. (BAKHTIN, 2006, p. 379). Para o filósofo russo, é importante que se recolham dados materiais com o objetivo de reconstituir a história por meio das leis sociológicas, psicológicas e biológicas, em que a interpretação se faz através do diálogo. Desse modo, ao se analisar enunciados, há de se buscar nele vozes sociais que se encontram por meio de uma réplica social. Assim, nos planos do enunciado e do discurso, ocorre o dialogismo bakhtiniano . (BAKHTIN, 2006, p. 199). Em toda parte, portanto, há certa intersecção, consonância ou intermitência de réplicas do diálogo aberto com réplicas do diálogo interior das personagens. Em toda parte, encontramos ideias, pensamentos e palavras, que se realizam em várias vozes. Nesse contexto, é importante aqui ressaltar que o dialogismo ocorre em todas as instâncias comunicacionais e, com as letras de música, não seria diferente. Sob esse prisma, a banda de rock Titãs, desde os anos 1980, nos traz canções de cunho ideológico, que levam à reflexão acerca do contexto histórico e social do Brasil. Para tanto, analisaremos as letras de “Igreja” e “Senhor” sob a ótica dialógica bakhtiniana. 3 | ESTARIA A IGREJA, EM 1986, PRONTA PARA OUVIR ESSA CANÇÃO? A produção em massa por parte dos componentes dos Titãs, na produção do LP Cabeça Dinossauro, trouxe à banda Titãs muitas opções de repertório na época, mas causou problemas para um dos membros do grupo, Nando Reis. Esse estava cada vez mais distante do processo de produção e, por conseguinte, se afastando dos integrantes do grupo. Ao observar que Nando não compusera nada ainda para o novo disco, o titã, hoje falecido, Marcelo Fromer cobrou-lhe, de forma austera mais participação nas composições. E assim nasceu “Igreja”. Nando Reis foi para a casa dos pais, no Butantã, e compôs a letra da música, inspirada a partir da declaração do cantor Roberto Carlos acerca do filme Je Vous Salue, Marie, de Godard. O baixista juntou a indignação à posição do cantor, adicionou seu ateísmo e, em uma hora, compôs a letra: IGREJA Nando Reis Eu não gosto de padre Eu não gosto de madre Eu não gosto de frei Eu não gosto de bispo
  • 116. Argumentação e Linguagem Capítulo 8 107 Eu não gosto de Cristo Eu não digo amém Eu não monto presépio Eu não gosto do vigário Nem da missa das seis Eu não gosto do terço Eu não gosto do berço De Jesus de Belém Eu não gosto do Papa Eu não creio na graça Do milagre de Deus Eu não gosto de igreja Eu não entro na igreja Não tenho religião “Igreja” abriu uma polêmica no grupo, em que a música dividiu a banda. A razão da resistência era de cunho moral. Os versos elencados foram recebidos como genialidade pela maior parte do grupo, mas Paulo Miklos e Arnaldo Antunes recearam o conteúdo. Na ocasião, Arnaldo alegou se sentir tão desconfortável em cantar “eu não gosto de Cristo”, como se sentiria se cantasse o contrário. O título da letra “Igreja” já faz clara alusão à instituição religiosa, que, a um primeiro olhar, poderia remeter o interlocutor às igrejas diversas que compõem o corpo religioso do país. No entanto, os primeiros versos “Eu não gosto de padre/Eu não gosto de madre/Eu não gosto de frei/Eu não gosto de bispo/Eu não gosto de Cristo/ Eu não digo amém” trazem um dialogismo entre aqueles que conhecem os ideários da Igreja Católica, maior parte da população brasileira, e o autor da letra da canção, bem como os que a cantavam. Em “Eu não monto presépio/Eu não gosto do vigário/Nem da missa das seis/ Não!/Não!”, percebe-se um posicionamento social valorativo do discurso ao atacar um costume cristão, majoritariamente católico, o presépio, referência cristã, que remete ao nascimento de Jesus, na companhia de São José e da Virgem Maria. É, portanto, o presépio, um costume natalino, visto fazer alusão ao nascimento de Cristo. Assim, percebe-se uma afronta, por parte da letra, às regras impostas pela tradicional Igreja Católica, por intermédio dos rituais que nela ocorrem.Aletra, composta no ano de 1985, comprova que nem toda a parcela da população concordava com os ideários cristãos católicos, mas até então, se calava. Por meio dos versos, que talvez fizessem parte de solilóquios de outros eus, ocorre a produção desse discurso, carregado de dialogismo entre locutor e interlocutor, com vozes repletas de valor ideológico. Isso se confirma em “Eu não gosto do terço/Eu não gosto do berço/De Jesus de Belém/Eu não gosto do Papa/Eu não creio na graça/Do milagre de Deus/Eu não gosto da igreja/Eu não entro na igreja/Não tenho religião/Não!/Não!/Não gosto!/Eu
  • 117. Argumentação e Linguagem Capítulo 8 108 não gosto!/Não!/Não gosto!/Eu não gosto!” A repetição excessiva da palavra “Não”, em consonância com o sujeito “eu”, bem como da conjugação dos versos em primeira pessoa trazem à tona a configuração de que, bem como em “Polícia”, há, novamente um clamor de vozes que gritam pelo repensar, dessa vez, acerca da imposição religiosa feita por uma instituição. Tem-se, portanto, em “Igreja”, a leitura crítica de uma realidade, abarcada em palavras excluídas de ornamentação, que retrata, implícita e explicitamente, uma série de acontecimentos sociais e históricos que espelham posições ideológicas. Ocorre, desse modo, uma relação de alteridade, na qual o sujeito se encontra em meio às divergências sociais, no caso, as imposições religiosas, e a elas responde. 4 | “SENHOR” E A CONCEPÇÃO RELIGIOSA DOS ANOS 2010 Trinta anos após a letra de “Igreja”, a banda Titãs compõe “Senhor”, correlacionando, em seu enunciado o contexto histórico de outra época, mas expondo valorações que ainda contrapõem o ideário religioso constante nos anos 1980: SENHOR Tony Bellotto Senhor! Não me livre do pecado Me livre da culpa Senhor! Não me livre do perigo Me livre da multa Senhor! Não me livre do inferno Me livre do tédio Senhor! Não me livre da loucura Me livre do remédio Querem meu dinheiro Querem meu salário Um santo no espelho Uma sombra no armário Senhor! Não me livre do desejo Me livre do medo Senhor! Não me livre da mentira Me livre do segredo
  • 118. Argumentação e Linguagem Capítulo 8 109 Senhor! Não me livre da revolta Me livre do castigo Querem meu dinheiro Querem meu salário Um santo no espelho Uma sombra no armário O pão nosso de cada dia Me dê de graça Assim na terra como no céu A mesma desgraça Querem meu dinheiro Querem meu salário Um santo no espelho Uma sombra no armário Senhor! Em 2015, a música “Senhor” foi lançada no CD Nheengatu pela banda Titãs. Composta por Toni Bellotto, na letra, há a crítica direta à exploração de fiéis por parte de grupos religiosos. A alusão à Igreja Católica, encontrada em “Igreja” se repete novamente, dessa vez, com referências claras às questões de pecado e culpa impostos pelo Catolicismo, bem como à oração “Pai Nosso”. Desse modo, a faixa “Senhor”, em 2015 traz à baila uma repaginação de “Igreja”, composta em meados dos anos 1980. Nos anos 1980, a Igreja Católica Apostólica Romana tinha como Papa João Paulo II, Karol Jósef Wojtyla, polonês santificado em 2011, eleito em 1978 e pontificado até o ano de 2005, na ocasião de sua morte. Seu sucessor, Bento XVI, 265º. Papa, teve seu Papado durante sete anos, até fevereiro de 2013, quando renunciou. Substituído pelo atual Papa Francisco, primeiro pontífice não europeu, trouxe ao tradicionalismo da Igreja Católica um impulso modernizador, inclusive ao gravar um disco com uma banda de rock progressivo, Le Orme, cujo título é Wake Up. Ainda que suas concepções sejam tradicionalistas por evidência, trouxe mais abertura aos ideários do Catolicismo. Nesse âmbito, embora a tradicional instituição da Igreja tenha passado por alterações, em função da troca de dirigentes e da questão temporal, as imposições religiosas em relação ao pecado, à culpa, ao inferno e ao castigo continuam as mesmas. A abordagem da letra de “Senhor” soa diferente da de “Igreja”, no sentido de que, em Igreja, existem as afirmações do que o “eu” não gosta e não quer (“Eu não gosto de padre... “Eu não creio na graça do milagre de Deus...”) e, em “Senhor”, ocorre uma espécie de diálogo com Deus, entre o “eu” e o “tu”,por meio do coletivo, como se fossem múltiplas vozes convidando a uma reflexão acerca das imposições tratadas na letra. Ainda que as letras apresentem essas convergências, ambas divergem na
  • 119. Argumentação e Linguagem Capítulo 8 110 concepção acerca dos imperativos católicos. As imposições da instituição católica trazem os elementos afins em “Igreja” e “Polícia”. Em “Senhor”, os versos: “Senhor, Não me livre do pecado, Me livre da culpa”, mostram uma reação do “eu” ao “outro” de cunho dialógico, inconclusível, visto que há um clamor do “eu”, mas não se sabe se esse clamor há de ser atendido. Cabe ressaltar que o “Senhor”, nesse âmbito, seria uma espécie de “ponte” representada pela Igreja, vez que é a entidade a transmissora dos preceitos acerca do pecado. Nesse sentido, há de se ressaltar a presença no discurso na letra de música de vários enunciados, alternados entre réplicas. Isso ocorre especialmente na letra de “Senhor”, por meio da paródia, em: “O pão nosso de cada dia nos dê de graça/ Assim na terra como no céu a mesma desgraça...”. Há, aqui, portanto, a refração de comportamentos humanos por meio de uma interação dialógica, já que, além da descrita do mundo, há a presença dos interesses e valores do “eu”. Na perspectiva bakhtiniana de que cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados, buscamos, na letra de “Senhor”, um potencial significativo para retratar o campo humano na visão do “eu” em relação à Igreja, aqui tida como coercitiva. Infere-se, portanto, que o discurso aqui descrito não é vazio de valores ideológicos. Senhor! Não me livre do pecado Me livre da culpa Senhor! Não me livre do perigo Me livre da multa Senhor! Não me livre do inferno Me livre do tédio Senhor! Não me livre da loucura Me livre do remédio Nas primeiras estrofes que compõem “Senhor”, observam-se, em primeiro plano, contraposições entre aquilo de que o “eu” precisa se livrar e aquilo que a religião propõe a ele como libertação. As ideias de pecado, perigo, inferno e loucura são substituídas pela culpa, pela multa, pelo tédio e pelo remédio. Encontra-se aqui uma clara descrença no discurso autoritário religioso sobre pecado e perdão. A formação simbólica de crenças e ideias proposta pela Igreja Católica se desfaz, nos versos anteriores e a mesma ideia surge nos versos seguintes, trazendo as angústias, agora sociais, de um indivíduo comum, que se sente usurpado, perseguido e oprimido:
  • 120. Argumentação e Linguagem Capítulo 8 111 Querem meu dinheiro Querem meu salário Um santo no banheiro Uma sombra no armário Querem meu dinheiro Querem meu salário Um santo no espelho Uma sombra no armário Nos versos acima, ainda que implicitamente, encontramos vozes que abordam conjuntura entre Estado e Igreja. As questões relacionadas a dinheiro e salário, questões relativas ao capital privado, se fundem com a presença do santo e da sombra, elementos religiosos de opressão e repressão. Entende-se, aqui, que a proteção advinda das forças superiores supostamente oferecidas pelo viés católico não ocorrerá, pois o “santo” e a “sombra” se fundem àqueles que querem o dinheiro e o salário do “eu”. Aqui, códigos católicos dialogam com códigos estatais. Cabe ressaltar que ocorre crítica, nesse ponto, explicitada às religiões neopentecostais, em função do dinheiro como elemento mediador na relação com o sagrado, cuja função é multiplicar bênçãos materiais àqueles que o santificam, de acordo com os propósitos da Teologia da Prosperidade. Os versos seguintes retomam os iniciais, agora com uma abordagem inerente a outras considerações tidas como pecaminosas pela instituição religiosa ora analisada: têm-se aqui os ideários de desejo, mentira, abismo e revolta: Senhor! Não me livre do desejo Me livre do medo Senhor! Não me livre da mentira Me livre do segredo Senhor! Não me livre do abismo Me livre do abrigo Senhor! Não me livre da revolta Me livre do castigo O avesso da oração aqui pousa, justamente, no sentido de que aquilo que a Igreja traz como elementos de culpabilidade, desejo, mentira, abismo e revolta não são vistos como esquerdos, mas o medo, o segredo, o abismo e o castigo, esses, sim, são temidos pelo cidadão comum, que se vê às voltas do medo dessas punições.
  • 121. Argumentação e Linguagem Capítulo 8 112 Por fim, a letra de “Senhor” confirma a oração às avessas, por meio do tradicional “Pai Nosso”, mostra-nos uma voz que se multiplica em vozes sociais, que entendem que a imposição da corporação religiosa só cumpre fazer sentido caso o pão nosso de cada dia seja dado de graça, não cotidianamente, em troca do não-pecar e que a vontade de Deus, assim na terra, como no céu, não se faz presente, visto haver a mazela da desgraça em ambos: O pão nosso de cada dia Me dê de graça Assim na terra como no céu A mesma desgraça Aqui, por meio da voz do autor, os versos de “Senhor” mostram um olhar comum, que vê as coerções religiosas como a presença de algo que não faz sentido se visto como punição, através de um órgão detentor do poder, mas que traria efetividade se o livrasse dos resultados advindos das ações negativas. Do mesmo modo, encontramos as mesmas constatações em “Senhor”. Assim, compreendemos que entre ambas as letras há a afinidade de elementos que vigem no catolicismo, mesmo que apartados em termos cronotópicos, mantendo relações dialógicas. De acordo com o fundamento católico, não se deve agir contra os preceitos do padre, da madre, do frei, do bispo, do Cristo, deve-se cultivar o Pai-Nosso, deve-se fugir do pecado e do inferno. No entanto, a voz presente nas letras nega essas imposições e reza Pai-Nosso de acordo com as suas necessidades e, assim, entende que o livramento deve ocorrer em relação ao medo, ao castigo e ao tédio. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, tivemos como proposta mostrar como as letras“Senhor” e “Igreja” trazem, nessa união de vozes algo de aproximação entre homem e Igreja. Nesse sentido, emanam duas respostas: sim e não. Ainda que existam negações sobre as ordens religiosas, não há a negação da ideia da presença dos ideários do catolicismo, visto que a voz do autor pede ao ser supremo que o mantenha sob seus cuidados, mas mantendo-o longe de outras culpas, não as impostas pelo bispo e pelo Cristo. Assim, percebe-se que as letras aqui analisadas carregam consigo relações dialógicas, já que as ideologias religiosas se cumprem presentes, mas também há diferenças, em função das alterações sociais marcadas pelo tempo-espaço da produção das composições. Nesse sentido, vivenciam-se situações sociais distintas em ambas as letras, mas que se unem frente à força da imposição social religiosa. Portanto, a questão da obediência, do medo e do pecado se fazem presentes em “Igreja” e “Senhor”, por meio da ideia de que a instituição religiosa traz consigo forças centrípetas que regulam a obediência através de ideias previamente instauradas no
  • 122. Argumentação e Linguagem Capítulo 8 113 corpo social. Daí, a produção do cenário underground paulista evidencia vozes separadas no tempo e no espaço e trazem questões acerca do temário religioso. Desse modo, torna- se clara a necessidade da discussão da temática das imposições institucionais sem que o cidadão tenha direito à defesa sobre a primazia de suas escolhas. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ______ . Voloshinov. V. N. Discurso na vida e discurso na arte: sobre poética sociológica.Tradução de Carlos Alberto Faraco e Cristovão Tezza para uso didático. BRAIT, B. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: Unicamp, 1996. ______. As vozes bakhtinianas e o diálogo inconcluso. In: BARROS, D. L. P.; FIORIN, J. L. (Orgs). Dialogismo, polifonia e intertextualidade Ensaios de Cultura. 2. ed. São Paulo: EDUSP, 2003. p. 11-27. ______. Autor e autoria. In: BRAIT, B. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2012. p. 37-60. DURKHEIN, E. A função do Estado em matéria de educação. In: Educação e Sociologia. 3. ed. Tradução de Lourenço Filho. São Paulo: Melhoramentos, 1952. FARACO, C. A. Aspectos do pensamento estético de Bakhtin e seus pares. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 46, n. 1, p. 21-26, jan./mar. 2011. FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006. MACHADO, I. A. Narrativa e combinatória dos gêneros prosaicos: a textualização dialógica. Araraquara: Itinerários, 1998. MARCHEZAN, R. C. A noção de autor na obra de M. Bakhtin e a partir dela. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso. ISSN 2176-4573. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/2176-457322365, São Paulo, v. 10, n. 3, set./dez. 2015. MARMO, H.; ALZER, L. A. A vida até parece uma festa: toda a história dos Titãs. Rio de Janeiro: Distribuidora Record, 2002. PRIORE, M. D. Histórias da gente brasileira: colônia. São Paulo. Editora LeYa, 2016. SOBRAL, A. Ato/atividade e evento. In: BRAIT,B. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. TITÃS .Cabeça Dinossauro. Rio de Janeiro: WEA, 1986. TITÃS. Nheengatu. Rio de Janeiro: Som Livre, 2015. TITÃS. Faixa a faixa: Senhor (Álbum Nheengatu). Canal oficial dos Titãs. YouTube. 19 mai. 2014. Disponível em: http://g1.globo.com/distrito-federal/musica/noticia/2016/06/faltava-barulho-na-musica- brasileira-dizem-titas-sobre-cabeca-dinossauro. Acesso em: 20 set 2015.
  • 123. Capítulo 9 114Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 9 FICÇÃO E MEMÓRIA EM SIMÁ: ROMANCE HISTÓRICO DO ALTO AMAZONAS, DE LOURENÇO DA SILVA ARAÚJO Daniel Padilha Pacheco da Costa Universidade Federal de Uberlândia, UFU, Brasil. E-mail: dppcosta@hotmail.com. Este capítulo é uma versão abreviada do seguinte artigo: Mito e história no “romance épico” Simá de Lourenço da Silva Araújo e Amazonas. Esse foi publicado no dossiê “História e Literatura” da Revista Diálogos, Maringá, v. 23, n. 2, 2019. RESUMO: Este artigo propõe caracterizar Simá: romance histórico do Alto Amazonas (1857), de Lourenço da Silva Araújo e Amazonas, como um “romance épico”, entendido como uma variante do romance histórico distinta da escola hegemônica representada por José Alencar. Esse romance, cujos modelos literários são a Ilíada e a Eneida, elege o rapto da mestiça Simá, chamada de “Helena do Rio Negro”, como a causa imediata da Rebelião de Lamalonga (1757). O romance narra, no plano histórico, o massacre da nação indígena dos Manau pela armada portuguesa e, no plano individual, o destino trágico da heroína, apresentada como uma vítima inocente do conflito entre Portugal e Espanha. A forma desse pioneiro romance do indianismo brasileiro é, paradoxalmente, inseparável daquela utilizada pelas epopeias anteriores, ao contrário do que sugere a definição de romance histórico por Lukács. PALAVRAS-CHAVE: Romance histórico; “Romance épico”; Indianismo Romântico; Simá; Lourenço da Silva Araújo e Amazonas. O romance histórico: uma forma híbrida Na teoria literária, há um relativo consenso sobre a existência de uma forma literária híbrida que, chamada de romance histórico, mistura ficção e história. No entanto, esse relativo consenso se dissolve tão logo se procura definir essa forma. Como afirma Jameson (2007) no artigo intitulado O romance histórico ainda é possível?, essa forma seria, para a visão popular, a representação de eventos históricos grandiosos; para a concepção tão veementemente criticada por Tolstói (2017), a história privada das grandes figuras históricas; para Manzoni (1840), a descrição dos costumes e valores de um povo em um determinado momento de sua história; para Sartre (1952), a história das vidas de indivíduos comuns em situações de crise extrema; e, para o próprio Jameson (2007, p. 192), “a oposição entre um plano público ou histórico (definido seja por costumes, eventos, crises ou líderes) e um plano existencial ou individual representado por aquela categoria narrativa que chamamos de personagens”.
  • 124. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 115 Em um dos estudos mais exaustivos sobre essa forma literária, O romance histórico (2011), György Lukács retoma o paralelo entre a epopeia antiga e o romance moderno, paralelo esse que, desde sua obra de juventude ATeoria do Romance (2000), definia o romance como uma “epopeia burguesa”. Para o teórico húngaro, ambas as formas visam a totalidade, mas, no romance, essa totalidade não é mais evidente, mas se torna problemática, consciente de seu próprio devir. Em O romance histórico, sua primeira obra importante a promover um tratamento materialista da história da literatura moderna, Lukács (2011, p. 10) reformula a noção de totalidade, anteriormente abstrata, como “totalidade concreta em devir”. Nesse sentido, a forma do romance histórico não é considerada um (sub)gênero funcionalmente distinto do romance, mas a expressão mesma do sentido de historicidade que, surgido na modernidade, resulta de um progressivo distanciamento entre experiência e expectativa (KOSELLECK, 2006). Depois de reconstituir as condições sócio-políticas do surgimento do romance histórico, o teórico húngaro elege Walter Scott como o grande criador dessa nova forma, já em seu primeiro romance Waverley (1814). Walter Scott foi um importante modelo para um grande número de romancistas, como Alessandro Manzoni, Victor Hugo, Alfred de Vigny, Honoré de Balzac, Alexander Púchkin, Alexandre Herculano e Almeida Garrett, dentre outros. Depois de citar o crítico russo Vissarion Belinski, que enfatiza o caráter épico dos romances do escritor escocês, Lukács (2011, p. 52) inclui dois autores nessa linhagem scottiana: “Em toda a história do romance histórico quase não existem obras que se aproximem tanto do caráter da antiga epopeia [quanto Scott], talvez com exceção das de Cooper e Tolstói”. Por mais próximos que sejam da antiga epopeia, os romances históricos de Scott, Tolstói e Cooper são todos considerados a expressão desse tempo novo surgido na era moderna. No Brasil, os primeiros romances históricos são publicados somente na década de 1840, como evidenciam Um Roubo na Pavuna (1843), de Azambuja Suzano, Jerônimo Barbalho Bezerra (1845) e A Guerra dos Emboabas (1846), ambos de Vicente Pereira de Carvalho Guimarães, e Gonzaga ou A Conjuração de Tiradentes (1848-1851), de Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa. Como afirma Antônio Cândido (1975, p. 109), o romance histórico “só brilhou realmente no Brasil romântico entre as mãos de Alencar, em O Guarani e As Minas de Prata, misturando-se ao indianismo”. Essa mesma sobreposição, salientada pelo crítico brasileiro, entre os conceitos historiográficos de romance histórico e de indianismo romântico seria, então, adotada por uma inteira geração de escritores brasileiros. Até o final do Segundo Reinado, o indianismo será um tema revisitado por diversos romancistas históricos, como Alfredo Taunay, Franklin Távora, Bernardo Guimarães, dentre outros. Contra os indianistas da primeira fase, que valorizavam particularmente a dimensão épica (SUSSEKIND, 1994), José de Alencar promove seu programa literário que, exposto nas Cartas sobre a confederação de Tamoios (1856), é imediatamente aplicado pela sua trilogia de romances indianistas. Considerando a exaltação do
  • 125. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 116 heroísmo nacional anacrônico em relação à ideologia conciliatória afirmada no Segundo Reinado (SOMMER, 2008), ele defende a mestiçagem como a solução para fundar a unidade nacional sobre o poder exclusivo da elite agrária. Para escrever aqueles romances, José de Alencar se inspira em modelos anglosaxões, como Walter Scott e James Cooper, e franceses, como Honoré de Balzac, Alexandre Dumas (pai) e François-René de Chateaubriand. Sua concepção de romance histórico torna-se a tal ponto hegemônica na literatura brasileira que a “crítica tem limitado obstinadamente sua análise do “indianismo” a um único autor”, como afirma Treece (2008, p. 17). Neste artigo, pretende-se analisar uma obra que, tendo permanecido praticamente desconhecida até sua reedição em 2003, pode ser considerada o primeiro romance em português sobre a Amazônia – Simá: romance histórico do Alto Amazonas (1857), de Lourenço da Silva Araújo e Amazonas. (O primeiro romance sobre a Amazônia e, até mesmo, sobre o Brasil, intitulado Frey Apollonio – roman aus Brasilien, erlebt und erzählt von Hartoman: nach der handschriftlichen Urschrift von 1831, foi escrito em alemão pelo botanista Karl Friedrich Philipp von Martius em 1831). Aquela obra de Lourenço da Silva Araújo é, juntamente com seu contemporâneo O Guarani (1857), de José de Alencar, publicado no mesmo ano, o primeiro romance histórico do indianismo Romântico brasileiro. Pretende-se mostrar que a forma daquele pioneiro romance do indianismo nacional é, paradoxalmente, inseparável da encontrada nas epopeias anteriores, ao contrário do que sugere a definição proposta por Lukács (2011) para o romance histórico europeu e norte-americano. A obra de Lourenço da Silva Araújo Lourenço da Silva Araújo (1803-1864) nasceu na Capitania da Bahia, onde fez seus estudos primários e de humanidades. Em 1815, Araújo se mudou para o Rio de Janeiro, então a capital do Império português, e se inscreveu no curso da Academia da Marinha. Durante sua carreira militar, serviu na Guerra do Prata e tornou-se Capitão- Tenente da Armada. Foi nomeado comandante Militar da Comarca do Alto Amazonas em meados do século XIX. Participou de comissões na Província do Pará e conduziu pesquisas pioneiras na Província do Amazonas, tornando-se membro correspondente do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB). Seu longo período na Amazônia rendeu dois livros e diversos artigos jornalísticos. Esses artigos foram publicados no Jornal do Comércio, como os dois números de Navegação do Amazonas (1849) – nos quais Araújo responde a dois artigos publicados com o mesmo título no Jornal do Comércio nos dias 10 e 22 de setembro de 1849 – e os diversos números de sua Memória sobre uma marinhagem de guerra para guarnição da armada imperial (1854). Obra etnográfica, geográfica e histórica, o primeiro livro escrito por Araújo – o Diccionario topográfico, histórico e descriptivo da Comarca do Alto-Amazonas (1852) – foi publicado nos anais do IHGB. Cinco anos mais tarde, Araújo publicou Simá: romance histórico do Alto Amazonas (1857). Simá não trata da Província do
  • 126. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 117 Amazonas em meados do século XIX (época em que foi escrito), como o Diccionario, mas recua um século antes para narrar um episódio militar que, ocorrido naquela região, opôs a Coroa espanhola e a portuguesa (bem como seus respectivos aliados indígenas) no período subsequente ao Tratado de Madrid (1750). Também escreveu um Dicionário Túpico-Português e Português-Túpico, cujo manuscrito, doado pela sua família ao IHGB, foi submetido ao parecer de Braz da Costa Rubim, que se manifestou contrariamente à sua publicação. A obra permanece inédita (FREIRE, 2003). Quando escreveu Simá, Araújo certamente estava familiarizado com a ideologia da mestiçagem, defendida pela dissertação de Martius sobre Como escrever a história do Brasil (1847), que venceu o prêmio do IHGB. Apesar do tino demonstrado por Araújo ao eleger uma heroína mestiça para seu primeiro (e único) romance, Simá não gozou sequer de uma ínfima parte do sucesso alcançado por O Guarani. O silêncio que acompanhou a publicação de Simá é tanto mais surpreendente quando se considera o profundo conhecimento que seu autor tinha da Amazônia e de sua história, resultante de sua longa experiência como militar e pesquisador na região. O Guarani foi o primeiro de uma trilogia de romances indianistas, juntamente com Iracema (1865) e Ubirajara (1874). Essa trilogia é dotada de profunda verossimilhança histórica, fortalecida pelo uso sistemático de notas de pé de página. Da mesma forma que Simá, que contém 65 notas, a trilogia de romances indigenistas deAlencar também fazem amplo uso desse recurso: O Guarani contém 59 notas, Iracema 128 notas e Ubirajara 67 notas. Baseadas em informações históricas de cronistas, viajantes e historiadores, as notas de todos esses romances permitem esclarecer, referenciar e instruir a respeito da história colonial de longínquas Províncias do Império do Brasil (RAMOS, 2015; MOSCATO, DENIPOTI, 2013). Iracema é o único romance daquela trilogia cuja protagonista é uma mulher, caracterizada por meio da notação “a virgem dos lábios de mel” (ALENCAR, 1959, p. 5). As personagens de Iracema e Simá possuem traços comuns, como a beleza e a virgindade, e seus nomes próprios significam, respectivamente, “lábios de mel” (em guarani) e “sol” (na língua da nação Xomana). Ambas participam de um triângulo amoroso no qual são pretendidas por um índio e por um europeu: a mestiça Simá pelo guerreiro manau Domingos e pelo explorador português Régis, e a índia tabajara Iracema pelo guerreiro potiguara Irapuã e pelo explorador português Martim. O tema da mestiçagem entre uma índia e um branco é retomado pela novela Ierecê, a Guaná (2000), de Alfredo Taunay. Como se deduz a partir de suas Memórias (s.d.), o Visconde de Taunay se inspira, nessa novela, em sua própria experiência amorosa com a índia Antônia, da tribo Guaná, no Mato Grosso em 1866, durante a Guerra do Paraguai. O Guarani e Simá são ambos concluídos pela representação literária de conflagrações militares situadas no passado colonial: aquele narra o conflito ocorrido com a nação indígena dosAimoré em 1604, e esse o massacre pela armada portuguesa da Rebelião de Lamalonga, em 1757. No entanto, a importância do episódio militar é muito maior em Simá. Como Araújo deixa claro ao citar, no primeiro capítulo do seu
  • 127. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 118 romance, duas epopeias antigas, a Ilíada e a Eneida, são seus modelos literários: “Onde nenhum de seus naturais havia ainda lido nem a Ilíada nem a Eneida, para saberem, por causa de uma bela se queimara uma cidade, houve um Menelau, genuinamente Manaus” (ARAÚJO, 1857, p. 6). Com efeito, a própria estrutura do romance de Araújo é retirada dos enredos da epopeia grega e da romana, já que o romancista bahiano estabelece uma analogia direta entre as causas imediatas da Guerra de Troia e da Rebelião de Lamalonga – quais sejam, os raptos de Helena e de Simá, respectivamente. À diferença da épica grega Ilíada, de Homero, que é relatada da perspectiva dos gregos vitoriosos, Araújo narra seu romance da perspectiva da nação dos Manau – que, massacrada pelos colonizadores, é identificada aos troianos perdedores –, não da perspectiva dos portugueses, que, vitoriosos, são associados aos gregos. O ponto de vista dos perdedores também é adotado por obras antigas, como a tragédia Os Persas (2013), de Ésquilo. Depois do próprio Araújo, Alfredo Taunay e Euclides da Cunha retomariam o mesmo procedimento em La Retraite de Laguna: récit de la guerre du Paraguay, 1864-1870 (que foi publicado originalmente em francês em 1871) e Os Sertões (1902), respectivamente. Para relatar a derrota e retirada do Exército brasileiro de Laguna, durante a Guerra do Paraguai, Taunay se baseia no relato historiográfico A retirada dos dez mil (2014), do historiador e militar grego Xenofonte. Da mesma forma, Euclides da Cunha retoma diversos historiadores antigos e modernos para narrar o massacre da comunidade bahiana de Canudos pelo exército brasileiro no início da República Velha (1889-1930). Embora não se baseie em experiências pessoais, como La Retraite de Laguna (1871) e Os Sertões (1902), Lourenço da Silva Araújo também foi militar, como os autores desses dois relatos históricos, e seu relato trata de um conflito armado do exército brasileiro – não durante o Império nem a República, como cada uma daquelas duas obras, respectivamente, mas durante a Colônia. Toda a obra de Araújo trata da história colonial da Comarca do Alto Amazonas. Esse toponímico é, inclusive, utilizado no título dos dois livros escritos pelo autor, ambos situados no mesmo cenário, designado atualmente como Médio Solimões. Ao conferir um tratamento literário a um evento histórico, Araújo mistura mito e história, como é característico do romance histórico. Para compreender o tratamento literário dado por ele à história, é estudada, a seguir, a maneira pela qual Simá retoma a história da Comarca do Alto Amazonas, segundo a exposição dessa história realizada pelo próprio Araújo em seu Diccionario. As ruínas da História Por meio da Lei imperial n.º 582, de 5 de setembro de 1852, o imperador D. Pedro II criou a Província do Amazonas no território onde, então, localizava-se a Comarca do Alto Amazonas. Nesse mesmo ano, foi publicado o Diccionario topográfico, histórico e descriptivo da Comarca do Alto-Amazonas, cujo prólogo afirma que, quando a
  • 128. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 119 Província foi criada, seu livro acabara de ser redigido, mas ainda não fora publicado. Araújo decide não substituir as menções à Comarca por Província, por mais fácil que fosse fazê-lo, e isso por dois motivos, ambos de ordem histórica. Em primeiro lugar, para evitar o anacronismo, já que a menção à recém-criada Província induziria o leitor ao erro de pensar que a organização política e institucional daquela região já estava “montada”, quando, na verdade, isso só começaria a ser feito depois de criada (ARAÚJO, 1852, p. 5). Em segundo lugar, para conferir valor histórico a seu livro, pois considera que, em meados do século XIX, todos sabiam o que era uma Província, mas não necessariamente o que era uma Comarca. A manutenção dessa referência chama a atenção para o fato de que sua descrição da organização política e institucional da Comarca do Alto Amazonas está interessada em explicar a história daquela região até o momento presente, a fim de melhor orientar seus futuros desdobramentos. O Diccionario constitui um inventário ou catálogo das características da Comarca do Alto Amazonas, descrevendo a hidrografia, as cidades, os minerais, a população, as línguas, o clima, a orografia, a fitologia, a zoologia, a religião, a agricultura, a manipulação, o comércio, a divisão civil, a administração, a força e fortificação, etc. Por um lado, a organização em verbetes permite oferecer uma definição de tudo o que está contido no interior daquele território. Por outro, a função denotativa da linguagem cria o próprio território por meio da nomeação de tudo o que o constitui, segundo a relação metonímica entre continente e conteúdo. O Diccionario descreve precisamente as diferentes características físicas, botânicas, zoológicas, linguísticas, políticas, econômicas, técnicas, institucionais, geográficas, geológicas e etnográficas dessa região estratégica do território jurídico do Estado brasileiro durante os primeiros anos Segundo Reinado do Império (1840-1889). Um dos primeiros verbetes do Diccionario oferece não apenas a definição das especificidades da administração de uma Comarca, como também pretende delimitar “qual a conveniência da categoria atual” (ARAÚJO, 1852, p. 105), tendo em vista as necessidades trazidas pelo presente. A visão de Araújo sobre a criação da Província do Amazonas se situa no interior de um projeto político-ideológico nacionalista que, formulado pelo principal instituto científico do Segundo Império – o IHGB –, era definido pela etiqueta “História Nacional”. A reflexão histórica visa oferecer subsídios para estabelecer os novos contornos que sua administração deverá receber na recém-criada Província. Um exemplo é a longa descrição feita por Araújo (1852) do Projeto de regimento para um diretório. O “Regimento do diretório dos índios” foi uma lei promulgada em 1755 pelo rei de Portugal D. José I para gerir os aldeamentos indígenas, depois que Pombal expulsou os jesuítas da colônia sul-americana. Principal instituição política existente em uma “sociedade lassa da administração”, o diretório foi o instrumento utilizado pela metrópole portuguesa para pacificar e cristianizar os indígenas, conservando-os “unidos ao resto da sociedade” (ARAÚJO, 1852, p. 105). Segundo Araújo (1852), com a promulgação daquela lei, os jesuítas se aliaram à Coroa espanhola, valendo-se de sua influência nas antigas missões
  • 129. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 120 (transformadas em vilas e aldeias pelo diretório) para estimular perturbações nas tribos indígenas situadas sobre o território nacional, como a retirada dos indígenas de Mariuá e São Paulo, o levante e deserção da tropa de Mariuá e a rebelião de Lamalonga, Caboquena e Bararoá. Assim como José Bonifácio (1923), Araújo (1852, p. 105) lamenta que “essa importante instituição” não tivesse sido unida, desde o início, às missões, pois a centralização dos regulamentos, dos missionários e do diretor sob as ordens de um só presidente teria evitado “o malogro de tantos esforços da parte dos Missionários”. As mesmas características gerais da Comarca do Alto Amazonas, descritas em seu Diccionario, permitem situar o cenário em que se desenrola a ação histórica de Simá. Esse romance ilustra o diagnóstico feito pela obra anterior a respeito dos conflitos existentes naquela região durante o período colonial, tratando da principal revolta ocorrida na Comarca do Alto Amazonas durante o século XVIII: a Rebelião de Lamalonga. Em Simá há um lapso temporal entre o presente e o passado da narração, já que o tema de seu relato histórico remonta exatamente um século antes. O Diccionario se volta para a estrutura administrativa e jurídica da Comarca do Alto Amazonas, que regulamentou o poder da metrópole portuguesa sobre sua colônia. O cenário de Simá não é apresentado como um território integrado ao nascente Estado Nacional, como acontece no Diccionario, mas como uma zona de disputas entre os interesses estratégicos das Coroas portuguesa e espanhola no período anterior à independência. Enquanto o Diccionario se concentra na descrição do espaço, o romance situa esse território no interior de um eixo temporal. Da mesma forma que o Diccionario pressupõe a história colonial da região narrada pelo romance, Simá o faz com o território descrito no Diccionario. As duas partes da obra de Araújo, representadas por esses dois livros, são inteiramente complementares, já que o primeiro visa descrever a Província do Amazonas como um território político-jurídico do recém-criado Estado Nacional, enquanto o segundo inclui esse território em um momento histórico preciso. No romance histórico,Araújo apresenta, assim, uma versão nacionalista da Rebelião de Lamalonga, na qual os portugueses, anacronicamente identificados aos “brasileiros”, protegeram a nação contra o estrangeiro e foram os heróicos defensores da unidade nacional e de sua integridade territorial, segundo o projeto político-ideológico promovido pelo IHGB, ele mesmo patrocinado pelo poder imperial. A matéria histórica de Simá Já na primeira linha de Simá, o narrador se dirige ao leitor para convidá-lo a se imaginar, a partir do romance, como um viajante pelo rioAmazonas, evocando o gênero do relato de viagem praticado pelos exploradores europeus: “Suponde-vos de viagem pelo Amazonas” (ARAÚJO, 1857, p. 3). Situando o presente da enunciação um século depois do evento tratado no romance, o narrador assume a posição de um historiador,
  • 130. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 121 como evidencia a utilização da metáfora da tapera para se referir a sua relação com o tema da obra. No Diccionario, o autor associa a tapera às ruínas: “Tapera: As ruínas de huma povoação de envolta com o crescente matto, que as invade e substitue” (ARAÚJO, 1852, p. 340). Em Simá, Araújo (1857, p. 4) elenca três causas possíveis para o abandono da povoação vista à margem do rio Amazonas: a perseguição aos Muras, a praga do carapanã e “modernamente, a revolução de 1835” [a Cabanagem]. No Diccionario, os Muras são caracterizados por uma “indiferença pela civilização” (ARAÚJO, 1852, p. 335). Araújo (1852, p. 207) faz um grande número de referências e dedica um verbete aos Mura que, “muito tempo infensos [...] submeteram-se em 1785 em Maripi, tratando paz com o seu Director Mathias José Fernandes”. Uma das principais fontes de Araújo sobre os Mura na segunda metade do século XVIII é o diário de viagem à Capitania do Rio Negro de seu Intendente Geral, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, que os denomina de “gentio de corço” (SAMPAIO, 1825, p. 12), pois habitavam os densos bosques e grandes lagos do Rio Madeira – e faziam frequentes emboscadas aos colonos, impedindo seu estabelecimento na região. Metaforizada pela imagem da tapera, sua visão sobre as diferentes nações indígenas reflete a concepção “decadentista” sobre os índios que, defendida no IHGB da época por importantes historiadores, como Martius (1847), por exemplo, considerava-os como inevitavelmente fadados ao desaparecimento. Era justamente essa concepção que justificava as pesquisas etnográficas promovidas pelo IHGB, cuja missão era indicar o lugar dos índios na História Nacional (KODAMA, 2009). A referência aos Muras é particularmente significativa, pois o cenário de Simá é exatamente o mesmo que o da epopeia Muhuraida ou Triunfo da fé na bem fundada Esperança da inteira Conversão, e reconciliação da Grande, e feróz Nação do Gentio Muhúra (1785), de Henrique João Wilkens. Dedicada ao Governador das capitanias do Grão-Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas – a quem Wilkens considerava o principal promotor da rendição dos Mura –, a Muhuraida é a primeira composição poética escrita sobre o contato entre portugueses e indígenas na Amazônia. O manuscrito dessa epopeia recebeu sua primeira edição em 1819, a cargo do padre português Cypriano Pereira Alho. A vida de Wilkens possui diversos pontos em comum com a de Araújo: Wilkens participou, a serviço da Coroa portuguesa, das comissões de demarcação nos sertões amazônicos, que, definindo os limites entre os territórios das Coroas portuguesa e espanhola, redundaram no Tratado de Madrid (1750). Nessa epopeia, Wilkens (2017) não considera a guerra de extermínio conduzida pelos portugueses à “abominável, feroz e indomável” nação indígena dos Mura – habitantes da região próxima à atual cidade de Tefé (AM), no Médio Solimões – apenas uma guerra por território. Da mesma forma que acontece na epopeia quinhentista Os Lusíadas (2000), de Luís de Camões, a conquista daquela região pelo império português é apresentada como o resultado da interferência da graça divina, que leva a Fé cristã (personificada nas epopeias) às assim chamadas “nações gentias”. Na Muhuraida, a guerra de extermínio conduzida pela Coroa portuguesa contra a nação
  • 131. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 122 Mura é, portanto, apresentada sob uma roupagem mítico-religiosa como uma vitória da Fé cristã, a promotora da conversão religiosa dos Mura ao cristianismo. A tapera do Remanso é vista pelo historiador que, no presente da narração, viaja em um barco pelo Rio Negro. Vista pelo narrador (um viajante de passagem), a tapera de Santa Isabel serve de ponto de partida para a reconstituição histórica da Rebelião de Lamalonga, que levou à completa destruição das povoações indígenas de Bararoá, Caboquena e Lamalonga. O narrador faz referência ao episódio tratado no romance como algo situado no passado, cujo sentido o historiador procura reconstituir a partir dos elementos de que dispõe no presente. Segundo o topos utilizado desde os historiadores grecorromanos, esses elementos seriam as ruínas da história. Da mesma forma que as taperas no Alto Amazonas são as ruínas produzidas pela guerra de extermínio promovida pela Coroa portuguesa contra os Mura, a tapera do Remanso, em Santa Isabel (Rio Negro), é apresentada como a ruína da Rebelião de Lamalonga. A tapera vista pelo narrador no início de Simá desencadeia a reconstituição por meio da memória de um evento histórico ocorrido um século antes. Assim, o modelo eleito pelo autor para introduzir sua narração da célebre Rebelião de Lamalonga não é o relato de viagem, mas o gênero da história. Graças ao trabalho do historiador, esse evento será retirado da “noite do esquecimento”, segundo o topos utilizado por Heródoto no início de suas Histórias (2015). Assim, a qualificação “histórico”, que é apresentada no próprio subtítulo “romance histórico do Alto Amazonas”, não designa uma nova forma literária – que teria surgido na modernidade em países do hemisfério Norte (LUKÁCS, 2011) –, mas unicamente a matéria histórica da ação narrada na obra. Em seguida, pretende-se analisar a unidade de seu enredo, que é inteiramente estruturado em torno da narração da causa imediata da Rebelião de Lamalonga. A unidade da ação épica Ao reivindicar como modelos a Ilíada e a Eneida, o autor de Simá elegeu a Guerra de Troia, que foi ficcionalmente tratada tanto por Homero quanto por Virgílio, para estruturar o enredo de seu romance histórico sobre a Rebelião de Lamalonga. A escolha desses dois modelos se deve não apenas à matéria épica tratada pelo romance, mas, sobretudo, à causa imediata atribuída à rebelião. A comparação entre a Guerra de Troia e a Rebelião de Lamalonga se baseia, em particular, no paralelo traçado no romance entre Helena de Troia e Simá de Dari. Ao longo de todo o romance, Araújo compara a personagem da mestiça Simá com a de Helena de Troia, ao designar a primeira pelo epíteto “Helena do Rio Negro” (ARAÚJO, 1857, p. 7). Assim como o rapto de Helena por Páris levou seu esposo Menelau a reunir os gregos e declarar guerra aos troianos, a separação de Simá e seu amado Domingos de Dari por um frade carmelita de Santa Isabel teria sido supostamente a causa imediata da Rebelião de Lamalonga. Segundo a série de associações entre o romance brasileiro e a epopeia grega,
  • 132. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 123 o regatão português Régis é identificado ao príncipe troiano Páris que, recebido no palácio de Menelau, segundo as regras da hospitalidade, desrespeita seu anfitrião e termina por sequestrar sua esposa, a princesa Helena. Em Simá, por sua vez, Régis viola a filha de Severo na casa do pai, graças a um estratagema – o uso de um sonífero que, misturado a uma garrafa de álcool oferecida a Severo, leva-o a adormecer depois de bebê-la. No entanto, as duas epopeias antigas citadas porAraújo não se concentram nos eventos que as precederam, mas se limitam a narrar episódios específicos da Guerra de Troia – a ira de Aquiles, na Ilíada, ou o retorno de Eneias à Província romana do Lácio, onde o herói funda a capital do futuro Império Romano depois da guerra, na Eneida. O romance histórico Simá não apenas narra a Rebelião de Lamalonga, mas também se propõe elucidar sua causa imediata, enfocando o percurso da heroína. A ação de Simá se estrutura em torno da biografia da protagonista, desde a concepção até a morte. O primeiro episódio do romance, no qual é narrado o estupro de sua mãe, a índia Delfina, pelo português Régis, desencadeia a ação. Em seguida, Régis foge, depois de deixar um anel de ouro fixado ao cordão de Delfina, além de moedas de ouro na mesa. No dia seguinte, ao descobrir o sucedido na noite anterior, Severo decide abandonar o sítio da Tapera, onde vivia com sua tribo, para proteger sua filha da vergonha pública. Ao chegar ao sítio do Remanso, próximo à missão de Santa Isabel, passa a cuidar de sua neta, depois da morte de sua mãe por tristeza. Severo batiza Simá e entrega sua educação aos cuidados do Frei Raimundo Eliseu. Na missão de Santa Isabel, Simá conhece o líder da nação dos Manau, Domingos de Dari, que também recebeu a mesma educação cristã oferecida pelo frade carmelita. Araújo (1857, p. 150) não deixa de chamar a atenção para uma diferença significativa entre a personagem das epopeias antigas e a heroína do seu romance, ao chamá-las, respectivamente, de “a adúltera Helena de Menelau e a virgem inocente de Dari”. Desde a antiguidade, a discussão sobre a culpa ou inocência de Helena de Troia foi objeto de intensas polêmicas, opondo os defensores e os detratores de Helena. Houve, inclusive, quem tivesse sustentado as duas posições, como o sofista Górgias, cujo Elogio de Helena (1980) teria sido precedido por uma obra (hoje perdida) em que acusa Helena não apenas de adultério, mas também de ser a responsável pela Guerra de Troia. Araújo reteve essa segunda versão que, dotada de conteúdo moralizante, considera que Helena, depois de se apaixonar pelo belo príncipe troiano Páris, fugiu por livre arbítrio com o amante para Troia. Segundo a interpretação cristã do mito por Araújo, Helena é culpada, pois poderia ter se abstido de seu amor por Páris. O autor poderia ter conferido a Simá uma parcela de culpa por ter supostamente desrespeitado as regras do diretório e se tornado amante de Domingos. Essa foi, aliás, a interpretação assumida pelos cronistas, que explicam que a separação do casal teria sido obra do frade carmelita, dada a sua responsabilidade como guardião dos preceitos cristãos de união entre os sexos na povoação (JOBIM, 1957). No entanto, Araújo não atribui a Simá a mesma responsabilidade que atribuiu a Helena, mas, pelo contrário, a isenta por completo da culpa de mancebia.
  • 133. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 124 No romance, Domingos e Simá ficam noivos, segundo as convenções próprias do casamento cristão. A acusação de mancebia, considerada como um ritual pagão de união entre os sexos, é uma artimanha utilizada por Régis e seu aliado Loiola (o diretor dos índios da missão de Lamalonga) para separá-la de seu amado Domingos. Quando Régis conta que pesa sobre ela essa acusação, a fim de conseguir sequestrá-la, Simá, que foi educada pelo Frei Eliseu, nega essa acusação enfaticamente, invocando a proteção de Deus e de seu pai contra a “maldade” de tamanha difamação (ARAÚJO, 1857, p. 207). Essa versão sobre a causa imediata da Rebelião de Lamalonga – a separação do casal, acusado de mancebia – foi reiterpretada pela imaginação ficcional de Araújo, que atribui essa acusação à difamação promovida pelo vilão. Tanto a castidade de Simá quanto a fidelidade de Dari fazem deles personagens elevados, segundo a convenção para os tipos de caráter representados pelo gênero épico. Ao contrário do que afirma Queiroz (2009), Araújo (1857) evita conferir ao romance um conteúdo meramente moralizante e punir os herois por um amor culpado e contrário aos preceitos cristãos de união entre os sexos. A separação do casal pelo frade carmelita interrompe um amor casto e fiel, segundo as convenções definidas pelo amor Romântico da época. Aquelas qualidades cristãs reveladas pelo casal de protagonistas desempenham um papel importante para produzir a empatia do leitor no fim do romance, desencadeando a piedade e o terror pela sua morte – os dois afetos trágicos por excelência desde Aristóteles (2015). Além do efeito catártico visado pelo romance, a virgindade da heroína também tem uma razão teórica, ilustrando sua posição no debate existente na época no IHGB sobre os costumes indígenas. No Diccionario, o amor do casal de indígenas é descrito segundo o modelo monogâmico da união entre os sexos. A versão oferecida por Araújo (1852) contraria a opinião em voga na época sobre a indiferença dos índios pela união dos sexos. Em sua descrição dos costumes dos índios, presente no Diccionario, Araújo já criticara essa opinião, afirmando que se fundava na autoridade de Buffon e Montesquieu. Esses autores franceses teriam cometido um erro ao definir o índio a partir do estado de natureza, excluindo-o do costume monogâmico cristão; a autoridade desses autores teria, inclusive, influenciado outros que escreveram sobre o indígena americano, entre os quais é citado o Diário da Viagem (1825), do Intendente Geral da Capitania do Rio Negro, Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio. No Diccionario, Araújo (1852) atribui aos indígenas da América seja a poligamia, seja a monogamia, mas, independentemente disso, considera-os zelosos com suas esposas, razão pela qual condenavam o adultério, embora admitissem o divórcio. Araújo (1852, p. 150) considera a suposta indiferença dos indígenas pela união entre os sexos como um “capricho de europeu”. Como exemplo do completo equívoco de Buffon e Montesquieu, Araújo (1852) cita, em seu Diccionario, justamente o casal formado pela bela do Rio Negro e por seu amado. Em Simá, Araújo volta a lembrar a tese sobre a indiferença dos indígenas pela união dos sexos, referindo-se novamente à autoridade de Montesquieu. No entanto, essa menção serve apenas como um recurso
  • 134. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 125 retórico para enaltecer por contraste a reação de Dari depois de ter sido privado de sua amante. Com efeito, afirma que a ira do índio Manau contra o frade carmelita é uma contraprova eloquente da falsidade da suposta indiferença dos indígenas pela união os sexos que, defendida por franceses e, até mesmo, brasileiros, seria corrigida por Araújo. O desfecho trágico de Simá A interpretação de Araújo para o evento que teria desencadeado a Rebelião de Lamalonga não se reduz a um mero artifício ficcional utilizado pelo escritor para conferir unidade a seu romance. A separação entre dois amantes indígenas por um missionário do aldeamento de Santa Isabel é efetivamente considerada o pretexto para a rebelião, como afirma em seu Diccionario: “Em 1757, explodiu uma rebelião nesta povoação, que justamente com Bararoá e Caboquéna reduziu a cinzas, sendo seu especioso pretexto o despeito, que concedeu um indígena, por pretender um missionário separá-lo de sua amada” (ARAÚJO, 1852, p. 150). Essa explicação da causa imediata da Rebelião de Lamalonga foi retida por cronistas posteriores. Em O Amazonas, sua história, Anísio Jobim (1957, p. 136), por exemplo, afirma: “O missionário de Lamalonga, Frei Raimundo Barbosa, carmelita, não se conformando com a vida de mancebia que levava o índio Domingos com uma jovem tapuia, separou- os, carregando com a moça para casa”. Araújo (1852) menciona a mesma causa imediata no verbete sobre os índios, no qual aponta, pela primeira vez, a semelhança entre as respectivas causas da Rebelião de Lamalonga e da Guerra de Troia, afirmando que, embora jamais tivesse lido Homero nem Virgílio, o amado de Simá agiu como Menelau, quando um missionário pretendeu privá-lo de sua amada, desencadeando a rebelião. No entanto, a causa imediata da Rebelião não teria passado de um especioso pretexto, como afirma o autor de Simá na passagem anteriormente citada (cf. supra). Na nota de rodapé utilizada para descrever a nação dos Manau, Araújo (1857) chama a atenção para a manipulação desses índios pelos jesuítas. Assim, a intriga jesuítica na região durante o período que sucedeu ao Tratado de Madrid teria sido a causa verdadeira da Rebelião de Lamalonga. Em diversas passagens do Diccionario, Araújo (1852, p. 105) denuncia a “excitação dos indígenas” por parte do que chama de “maquinações dos jesuítas”. Jobim (1957, p. 136) também menciona a atribuição da rebelião por alguns cronistas às “maquinações subterrâneas dos jesuítas”. Assim, o próprio Araújo parece ser um dos cronistas a que Anísio Jobim faz referência em sua explicação da verdadeira causa da Rebelião de Lamalonga. Isso mostra que Araújo é uma fonte histórica direta utilizada pelos cronistas que escreveram sobre a colonização daAmazônia brasileira. O romance pode ser considerado como a ilustração ficcional de um diagnóstico realizado no Diccionario sobre os conflitos presentes na fronteira situada no Alto Amazonas entre a Coroa portuguesa e a espanhola, cujas principais instituições políticas e religiosas
  • 135. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 126 eram, precisamente, as missões carmelitas e jesuíticas, respectivamente. Na explicação realizada por Araújo a respeito do papel das Coroas espanhola e portuguesa na Amazônia, não são apenas as maquinações dos jesuítas espanhois que são denunciadas. Segundo a visão estratégica do autor, é corolário dessa denúncia o elogio da atuação das missões carmelitas naAmazônia, de “[...] sua dedicação, seu zelo e desinteresse a par de sua brandura e caridade para com os indígenas em sua triste situação” (ARAÚJO, 1857, p. 37). No romance, a atuação dos carmelitas na Amazônia é representada pela personagem do missionário de Santa Isabel. Responsável pela catequese dos indígenas residentes na Casa das Educandas, o dedicado, zeloso e desinteressado Frei Raimundo de Santo Eliseu é caracterizado no romance como uma verdadeira encarnação da fé cristã (ARAÚJO, 1857). Em Simá, Araújo elege a Rebelião de Lamalonga como um caso exemplar da rivalidade que atravessou a história da colonização da Amazônia brasileira. No entanto, o romance produz um deslocamento espacial, já que não se passa no interior da Província do Amazonas, como o Diccionario, mas na zona de fronteira desse território com a Coroa espanhola. A divisão existente nessa região de fronteira entre as Coroas portuguesa e espanhola é reproduzida por Araújo no interior da própria nação dos Manau. A festa de noivado entre o casal de protagonistas representa essa divisão: de um lado, os membros da nação dos Manau, como Simá, Dari e Severo, que são aliados dos missionários carmelitas e da Coroa portuguesa, defendem as leis da metrópole, que ofereceria liberdade aos indígenas da Amazônia; e, de outro, os líderes da nação dos Manau, Abbé, Dadari e Bejari, tramam uma rebelião contra os portugueses para restabelecer sua independência. Esses são acusados de se aliarem aos jesuítas espanhois, cujo avanço naquela região refletia as ambições territoriais da Coroa espanhola. Assim, Araújo (1857) apresenta a Rebelião de Lamalonga como um conflito entre um grupo da nação dos Manau, manipulado pelos jesuítas espanhois, e a armada portuguesa, que por sua vez contou com o apoio de outro grupo, que, liderado por Severo, Caboquena e Domingos de Dari, considerava que, ao avançar sobre aquela zona fronteiriça do território português, os espanhois os reduziriam novamente à escravidão. No final do romance, o primeiro grupo acaba prevalecendo, e a rebelião é desencadeada, com ajuda do rumor a respeito da suposta mancebia do casal de protagonistas. Essa acusação de mancebia é um falso pretexto, pois é utilizada pelo líder indígena Mabbé, depois de tê-la escutado de Régis e Loiola, para estimular seu povo à revolta contra os portugueses, que estariam prestes a punir o casal. Caboquena, líder da povoação homônima, denuncia a rebelião à autoridade portuguesa na região – Souza Figueira –, antes de ser morto por Bejari e Dedari. Depois do massacre à rebelião, as povoações de Caboquena, Bararoá e Lamalonga são inteiramente destruídas pela armada. O romance é concluído pela narração do destino do casal de protagonistas, cuja separação constitui a peripécia que desencadeia a Rebelião de Lamalonga. O enredo
  • 136. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 127 de Simá é estruturado não por um enredo simples, mas por um enredo particularmente complexo, já que possui tanto uma peripécia, quanto uma cena de reconhecimento, segundo a distinção proposta na Poética, de Aristóteles (2015). Na peripécia final do romance, Régis, com a ajuda de Loiola, consegue, por meio de novas maquinações, sequestrar sua amada Simá e separá-la de Domingos de Dari. Os amigos do frade carmelita resgatam-na, enquanto Loiola e Régis são presos. Simá tenta heroicamente proteger o Frei Raimundo de uma flecha e acaba sendo atingida. O sacrifício da heroína em prol do missionário carmelita representa seu enorme apreço por quem lhe dedicou seu serviço catequético. (A docilidade do indígena ao europeu também foi um tema explorado por José de Alencar (1958), como evidencia o “serviço amoroso” (no sentido trovadoresco) de Peri a sua venerada Cecília). Seu avô Severo recolhe-a sobre seu colo, quando Régis descobre que Simá, que está prestes a expirar, é sua filha. No romance Simá, o reconhecimento se dá por meio de um “signo adquirido” (ARISTÓTELES, 2015, p. 135) que se encontra fora da personagem: Simá leva no pescoço o anel deixado por Régis com sua mãe Delfina, depois de violentá-la. Ao retirar o anel do pescoço de Simá e examiná-lo, Régis se espanta e pede que alguém lhe explique porque Simá o está portando. Severo – que tinha colocado o cordão sobre o pescoço de Simá antes de partir para Lamalonga com Domingos, ao saber que o líder Mabbé estava chegando à povoação para estimular uma rebelião – confirma que Simá é filha dele (Régis). A heroína, que sempre acreditara que Severo fosse seu pai, só descobre a verdade antes de morrer. Seu último gesto é perdoar o pai: “Simá, socorrendo-lhe de supremo esforço, abriu os olhos, que alçou ao céu, e levantando também as mãos postas, proferiu: ‘Meu pai!!! Eu lhe perdôo’” (ARAÚJO, 1857, p. 349). Simá teve que resistir às investidas de seu próprio pai que, se tivesse conseguido realizar seu plano de sequestrá-la, teria cometido incesto. Na cena de reconhecimento, a associação de Simá à imagem cristã de Jesus é clara. Com efeito, a heroína evoca as palavras de Jesus na cruz, ao perdoar seu pai antes da morte. O perdão final reafirma os valores cristãos representados pela heroína, que se reconcilia com seu progenitor europeu. Seu noivo Domingos de Dari, por sua vez, persegue Loiola para se vingar e esse último morre ao se atirar no rio. Ao descobrir o destino trágico de sua amada, Domingos enlouquece, é preso e condenado à morte. No Diccionario, Araújo (1852, p. 248) registrara seu destino: “Em Junta de Justiça forão condemnados á pena ultima os Principaes Manaos – Ambrosio, e João Damasceno, e o Indígena Domingos –, cabeças da rebellião de Lama-Longa de 1757, e a padecèrão em Caboquena”. O “romance épico”: mito e história O Guarani, de José de Alencar, é concluído pelo ataque final aos portugueses pelos índios bravos da nação Aimoré e pela salvação do casal de protagonistas Cecília e Peri. Esses personagens são apresentados como o núcleo originário de colonização do Novo Mundo, segundo sua reinterpretação da lenda de Tamandaré – a versão
  • 137. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 128 indígena do dilúvio bíblico – como mito fundador do Brasil (RIBEIRO, 1998; SOMMER, 2004; CAMILO, 2007). A união entre o indígena e o europeu ilustra a ideologia da mestiçagem característica do Indianismo Romântico na época. Ao contrário do casal de protagonistas do célebre romance de José de Alencar, o de Simá não sobrevive ao massacre da Rebelião de Lamalonga no final do romance. Fruto da união entre um branco e uma índia, a própria mestiça Simá simboliza a ideologia da mestiçagem, ainda que seja o fruto da violação perpetrada pelo explorador português. Relativamente ao enredo, Simá é a inversão completa de O Guarani: a miscigenação entre brancos e indígenas, que é seu ponto de partida (iniciado com o estupro de Delfina), é o horizonte do romance de Alencar (concluído com a salvação de Peri e Cecília). Enquanto esse defende a ideologia da miscigenação, aquele denuncia a violência que a produziu. Os dois primeiros romances históricos do indianismo Romântico oferecem, assim, representações complementares das duas alternativas indigenistas discutidas nos círculos intelectuais e políticos da época (TREECE, 2008) – a guerra de extermínio promovida pela Coroa portuguesa durante o período colonial é exposta como solução trágica por Araújo, enquanto o projeto de assimilação da força de trabalho indígena formulado durante o Segundo Reinado pela ideologia conciliatória da unidade nacional é apresentado como solução viável por Alencar. O sacrifício de Simá não deve ser considerado uma punição à heroína por pertencer ao mundo português, já que, como evidencia o epíteto dado à heroína – “a virgem inocente de Dari” (ARAÚJO, 1857, p. 150) –, Simá foi uma vítima inocente. Graças à inocência de Simá, é produzida a empatia do público pela heroína, necessária à piedade e terror que sua morte deve gerar. No final do romance, sua morte constitui um “efeito colateral” do massacre dos Manau pela armada portuguesa. Não apenas o massacre dos revoltosos da nação dos Manau pela armada portuguesa, mas, sobretudo, o sacrifício dessa personagem inocente para salvar o Frei Raimundo visam produzir a catarse trágica do romance. Fruto da violência perpetrada pelos colonizadores portugueses sobre os índios, Simá é a vítima ideal para, sacrificada, expiar a rebelião dos indomáveis indígenas contra os colonizadores portugueses no Alto Amazonas. Presente nos principais escritores do indianismo Romântico – como José de Alencar, Gonçalves de Magalhães e Gonçalves Dias (BOSI, 1992; FERRETI, 2011) –, o tema sacrificial adquire, em Simá, uma intensidade maximal. Essa intensidade se deve não apenas à exploração sistemática que o romance promove das convenções do gênero trágico, mas também ao fato de que, ao contrário de Iracema (cujo filho Moacir nasce de seus amores com o português Martim), Simá morre virgem e sem gerar filhos. Como afirma Sommer (2004), a ideologia da miscigenação, ao oferecer um modelo de família multirracial, ocultou o fato de que, na prática, a miscigenação não dependeu da estrutura familiar, mas se reproduziu, sobretudo, à sua margem. Dessa perspectiva, o romance de Araújo explicita a violência implícita nessa ideologia, enquanto o romance alencariano a oblitera, como demonstra a aparente aceitação, na
  • 138. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 129 família portuguesa, da mestiça Isabel, filha bastarda de D. Antônio de Mariz. Embora não tenha tido o mesmo sucesso que a obra romanesca do patrono da literatura brasileira juntamente a um público letrado ávido por novidades, o romance de Araújo exprime de maneira mais clara do que aquela a dinâmica própria do destino das personagens, de modo que seus leitores não podem ignorá-la. Isso porque seu enredo não é alterado pelas forças soberbas da natureza brasileira, como o dilúvio de O Guarani, mas, retomando de perto um conhecido episódio militar do período colonial, não gera nenhuma surpresa, como tampouco o faziam as epopeias anteriores. Apresentado, no Diccionario, como um “castigo exemplar” destinado a dissuadir futuras insurreições (ARAÚJO, 1852, p. 247), o massacre da Rebelião de Lamalonga é narrado, em Simá, como o restabelecimento da ordem natural por meio da punição da sanha de personagens trágicos envolvidos em um destino inexorável. Assim, o romance não deveria ser qualificado de “histórico”, como ocorre em seu subtítulo, mas de “épico”. A estrutura da única obra ficcional de Araújo é a tal ponto coincidente com a das epopeias anteriores (indianistas ou não), que não constitui senão uma adaptação do gênero épico à matéria histórica da ação romanesca. Segundo a definição proposta por Lukács (2011), o romance histórico é uma nova forma literária que, surgida no hemisfério Norte no início do século XIX, manifesta o novo tempo inaugurado pelas revoluções modernas. Simá, pelo contrário, exprime na própria forma a completa continuidade de um processo histórico que desconheceu rupturas: o caráter essencialmente épico desse que foi o primeiro romance em português sobre aAmazônia pode ser considerado a manifestação do imobilismo político garantido pelo advento do Segundo Reinado, no exato momento em que a classe conservadora de fazendeiros escravocratas saiu vitoriosa dos diversos levantes deflagrados durante o período da Regência, como a Cabanagem nas Províncias do Norte (SODRÉ, 1969; TREECE, 2008). REFERÊNCIAS ALENCAR, José de. Cartas sobre a confederação de Tamoios. Rio de Janeiro: Empreza Typographica Nacional do Diario, 1856. ALENCAR, José de. As Minas de Prata. Rio de Janeiro: José Olympio, 1951. 3 v. ALENCAR, José de. Ubirajara. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957. ALENCAR, José de. O Guarani: romance brasileiro. Edição crítica por Darcy Damasceno. Rio de Janeiro: Ministério da Educação, Instituto Nacional do Livro, 1958. ALENCAR, José de. Iracema. Rio de Janeiro: José Olympio, 1965. ARAÚJO, Lourenço da Silva. Diccionario topográfico, histórico e descriptivo da Comarca do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Comercial de Meira Henriques, 1852.
  • 139. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 130 ARAÚJO, Lourenço da Silva. Simá: romance histórico do Alto Amazonas. Pernambuco: Tipografia de F. C. Lemos e Silva, 1857. ARISTÓTELES. Poética. Trad. Paulo Pinheiro. São Paulo: Editora 34, 2015. BOSI, Alfredo. Um mito sacrificial: o indianismo de Alencar. In: BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992, p. 176-193. CAMILO, Vagner. Mito e história em Iracema: a recepção crítica mais recente. Novos Estudos, São Paulo, n. 78, jul. 2007, p. 169-189. CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. Prefácio de Álvaro Júlio da Costa Pimpão; apresentação de Aníbal Pinto de Castro. 4 ed. Lisboa: Ministério dos Negócios Estrangeiros; Instituto Camões, 2000. CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos (1836-1880). Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. v. 2. CHATEAUBRIAND, François-René. Œuvres complètes. Bruxelles: P. J. de Mat., 1827. t. 15. CUNHA, Euclides da. Obra Completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1966. 2 v. ÉSQUILO. Os Persas. Trad. Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2013. FERRETTI, Danilo José Zioni. Gonçalves de Magalhães e o sacerdócio moral do poeta romântico em tempos de guerra civil. Almanack, Guarulhos, v. 2, p. 66-86, 2011. FREIRE, José Ribamar Bessa. Da língua geral ao português: uma história dos usos sociais das línguas na Amazônia. 2003. 239 f. Tese (Doutorado em Literatura Comparada) – Programa de Pós- graduação em Letras, Universidade do Estudo do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, RJ, 2003. FOUCAULT, Michel. Sobre a Geografia. In: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984, p. 153-167. GORGIAS. Elogio a Elena. In: GORGIAS. Fragmentos. Cidade do México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1980. HOMERO. Ilíada. Trad. Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2003. 2 v. HERÓDOTO. Histórias. Livro I – Clio. Trad. Maria Aparecida de Oliveira Silva. São Paulo: Edipro, 2015. JAMESON, Fredric. O romance histórico ainda é possível? Trad. Hugo Mader. Novos Estudos, São Paulo, v. 77, p. 185-203, 2007. JOBIM, Anísio. O Amazonas, sua história – ensaio antropogeográfico e político. Rio de Janeiro: Cia. Editora Nacional, 1957. Kaori Kodama. Os índios no Império do Brasil: a etnografia do IHGB entre as décadas de 1840 e 1860. Rio de Janeiro: Fiocruz; São Paulo: Edusp, 2009. KODAMA, Kaori. Os estudos etnográficos no Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (1840-1860): história, viagens e questão indígena. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém, v. 5, n. 2, p. 253-272, maio-ago. 2010.
  • 140. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 131 KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006. LUKÁCS, György. A Teoria do Romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Editora 34, 2000. LUKÁCS, György. O Romance Histórico. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2011. MANZONI, Alessandro. I promessi sposi: storia milanese del secolo XVII. Milano: Guglielmini e Redaelli, 1840. MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Como escrever a História do Brasil. Advertência de José Honório Rodrigues. Revista de História de América, Colima, n. 42, dez. 1956, p. 433-458 [1847]. MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Frey Apollonio – um romance do Brasil. Trad. Erwin Theodor Rosenthal. São Paulo: Editora Brasiliense, 1992. MOSCATO, Daniela Casoni; DENIPOTI, Cláudio. A obra em pé de página: as notas de rodapé nos licros indigenistas de José de Alencar. Revista Esboços, Florianópolis, v. 20, n. 29, p. 88-104, ago. 2013. QUEIROZ, Amilton José Freire. Narrativas em trânsito: literatura, fronteira e lingua(gens) do Alto Amazonas no romance Simá. 2009. 148 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, Universidade Federal do Acre. Rio Branco, AC, 2009. RAMOS, Francisco Régis Lopes. José de Alencar e a operação historiográfica – fronteiras e disputas entre história e literatura. História da Historiografia, Ouro Preto, n. 18, p. 160-177, 2015. RIBEIRO, Renato Janine. Iracema ou a fundação do Brasil. In: FREITAS, Marcos C. (org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Universidade São Francisco/Contexto, 1998. SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. Diário da Viagem, que em visita, e correição das povoações da Capitania de S. Joze do Rio Negro fez o ouvidor, e Intendente Geral da mesma Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio no anno de 1774 e 1775. Lisboa: Typografia da Academia, 1825. SARTRE, Jean-Paul. Saint Genet: comédien et martyr. Paris: Gallimard, 1952. SCOTT, Walter. Waverley; or ’Tis Sixty Years Since. Boston: Estes and Lauriat, 1893. 2 v. SILVA, José Bonifácio de Andrada. Apontamentos para a civilização dos índios bravos do Império do Brasil. In: SILVA, José Bonifácio de Andrada. José Bonifácio de Andrada e Silva. São Paulo: Editora 34, 2002, p. 183-199. SILVEIRA, Cássio. Iracema e a graciosa Ará: as metáforas e comparações entre personagens e natureza em “Iracema”. 2009. 190 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, 2009. SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. SOMMER, Doris. Ficções de Fundação: Os romances nacionais da América Latina. Trad. Gláucia Renate Gonçalves; Eliana Lourenço de Lima Reis. Belo Horizonte, MG: Editora da UFMG, 2004. SOUSA, Antônio Gonçalves Teixeira e. Gonzaga ou A Conjuração de Tiradentes. Rio de Janeiro: Tipografia de Teixeira e C., 1848.
  • 141. Argumentação e Linguagem Capítulo 9 132 SUSSEKIND, Flora. O escritor como genealogista. In: PIZARRO, Ana (org.). América latina: palavra, literatura e cultura. Campinas: Unicamp, 1994, p. 451-485. v. 2 TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Memórias. São Paulo: Melhoramentos, s.d. TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. Ierecê a Guaná. São Paulo: Iluminuras, 2000. TAUNAY, Alfredo d’Escragnolle. La Retraite de Laguna: récit de la guerre du Paraguay, 1864-1870. Paris: Phébus, 1995. TOLSTÓI, Liev. Guerra e Paz. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Cia. das Letras, 2017. TREECE, David. Exilados, aliados, rebeldes: o movimento indianista, apolítica indigenista e o Estado-Nação imperial. Trad. Fábio Fonseca de Melo. São Paulo: Nankin/EDUSP, 2008. TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. VIRGÍLIO. Eneida brasileira. Trad. Manuel Odorico Mendes. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2008. XENOFONTE. A retirada dos dez mil. Trad. Aquilino Ribeiro. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014. WILKENS, Henrique João. Muhuraida; ou Triunfo da fé na bem fundada Esperança da inteira Conversão, e reconciliação da Grande, e feróz Nação do Gentio Muhúra. Org. Weberson Fernandes Grizoste. Manaus; Parintins: UEA, 2017.
  • 142. Capítulo 10 133Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 10 PRESENÇA E USO DOS MARCADORES DISCURSIVOS EM ESTUDANTES BRASILEIROS DE ESPANHOL COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA Cristina Corral Esteve Universidade Federal de Pernambuco, Departamento de Letras Recife – Pernambuco RESUMO: No presente trabalho, o nosso objetivo é comprovar o uso que os estudantes brasileiros de nível intermediário e superior (B2, C2) fazem dos cinco grupos de marcadores apontados por Martín Zorraquino y Portolés Lázaro (1999), ou seja, estructuradores de la información, conectores, reformuladores, operadores argumentativos e marcadores conversacionales. A partir de uma análise da bibliografia disponível a respeito, concluímos que essa obra apresenta uma visão de conjunto desses elementos, o que é de vital importância para nossas necessidades ao nível didático, além de nos dar as chaves de suas características e das diferenças entre cada uma das unidades. Partimos da pergunta se os marcadores têm presença nas produções escritas de estudantes brasileiros de espanhol como língua estrangeira nesses níveis, assim como se seu uso é o esperado. Para isso, analisamos quantitativa e qualitativamente um corpus composto por quatrocentas produções desses estudantes. Os resultados confirmaram que seu uso é muito reduzido, pelo que parece fundamental um trabalho de observação e reflexão que permita que o aluno esteja ciente da sua importância, ao mesmo tempo que se sinta confiante na hora de utilizá-los. PALAVRAS-CHAVE: Ensino, Pragmática, Marcadores discursivos. PRESENCE AND USE OF DISCOURSE MARKERS IN BRAZILIAN STUDENTS OF SPANISH AS A FOREIGN LANGUAGE ABSTRACT: In this paper, our goal is to check the use made by intermediate and high level Brazilian students of Spanish language (B2, C2) of the five groups of discourse markers proposed by Martín Zorraquino and Portolés Lázaro (1999), that is, estructuradores de la información, conectores, reformuladores, operadores argumentativos and marcadores conversacionales. Based on an analysis of the available bibliography, we conclude that this work allows us an approach to these elements as a whole, which is fundamental for our needs at a teaching level, as well as giving us the keys of their characteristics and the differences from each other. Our starting point is the question of if the discursive markers are present in the writing performances of intermediate and high level Brazilian students of Spanish as a foreign language, and also if their use provides the intended outcome. To proceed, we analyze
  • 143. Argumentação e Linguagem Capítulo 10 134 quantitatively and qualitatively a corpus of four hundred productions by these students. The results confirmed that the use of the said markers is highly reduced and that it is essential to work on these units with observation and reflection in order to make the students aware of their importance, as well as confident when using them. KEYWORDS: Teaching, Pragmatics, Discourse Markers. 1 | INTRODUÇÃO Mais de uma década atrás, Rossari (2006, p. 302) afirmava em relação aos marcadores do discurso que “[w]e cannot decide what to call them because we do not know what they are”, o que já apresentava um dos problemas fundamentais que encontramos na bibliografia a respeito: sua nomenclatura e sua natureza. Não podemos obviar que seu estudo tem centralizado o interesse de inumeráveis trabalhos nas últimas décadas. Apesar disso, são muitos os problemas que vamos enfrentar ao tomar uma produção acadêmica dos estudantes de espanhol como língua estrangeira. Assim, por mais que tenham sido trabalhadas suas características no nível teórico e tenham sido descritas suas unidades, ainda muito deve ser feito para que isso seja traduzido em um uso efetivo por parte dos estudantes. Como já aponta Fuentes Rodríguez (2010, p. 691), os estudos têm-se centrado mais em descrevê-los que em sua aplicação e, nesse caso, têm-se desenvolvido nas seguintes direções: o ensino de espanhol como língua estrangeira; o ensino a falantes nativos, sobretudo em relação à língua escrita; o contraste de línguas; os transtornos da linguagem; e a aprendizagem e uso na língua infantil. No nosso caso, o interesse está focado no primeiro e terceiro ponto, ou seja, no ensino de espanhol como língua estrangeira e o contraste espanhol e português. Os diferentes manuais e gramáticas dedicam pouco espaço aos marcadores discursivos. Normalmente, se apresentam várias unidades de distintos grupos, com as quais os alunos têm que realizar diversos exercícios de preencher espaços em branco, geralmente no nível oracional, e com isso é assumido que já conseguem usar essas unidades tão importantes, tanto para a construção como para a interpretação dos textos. Como era esperado, e como nos traz Portolés Lázaro (1999, p. 69), os problemas aparecerão rapidamente, ao encontrarmos determinados marcadores gramaticalmente corretos, mas pragmaticamente inadequados. Um segundo problema surgirá quando quisermos corrigir esses exercícios e descubramos que não conseguimos esclarecer as dúvidas do motivo pelo qual colocamos esse marcador e não outro (por exemplo, sin embargo e no obstante ou finalmente, en último lugar, por fin ou en fin). Nesse momento, ainda nos enfrentaremos a uma terceira dificuldade: a falta de materiais específicos com os quais o docente preocupado por esse assunto se encontra. Muitas obras de referência teórica existem, mas são poucas as que apresentam uma visão holística fundamental para o ensino. Por outro lado, é frequente encontrar lacunas em relação às suas características sintáticas, semânticas e pragmáticas, assim como
  • 144. Argumentação e Linguagem Capítulo 10 135 falta de clareza sobre as diferenças entre as unidades de um mesmo grupo, o que dificulta sua prática na sala de aula, e acaba em simplificações que contribuem com a perpetuação do problema. Neste trabalho, visamos analisar o uso (ou não uso) que é feito pelos estudantes brasileiros de nível intermediário (B2) e superior (C2) dos cinco grupos de marcadores apresentados por Martín Zorraquino e Portolés Lázaro (1999), ou seja, estructuradores de la información, conectores, reformuladores, operadores argumentativos e marcadores conversacionales. A despeito de que, como afirmamos no início, seja um problema evidente nas produções escritas, queremos comprovar se a falta de uso dos marcadores afeta da mesma forma a todos os grupos e se existem algumas unidades favoritas ou que registrem uma maior frequência. Para isso, começaremos fazendo uma breve revisão das perspectivas teóricas sobre o tema para, posteriormente, analisar as características dessas unidades e, finalmente, apresentar os resultados obtidos após a análise quantitativa e qualitativa do corpus. 2 | OS MARCADORES DISCURSIVOS Essas unidades têm sido estudadas desde diferentes perspectivas teóricas. De um lado, a Linguística Textual, com seus conceitos básicos de coerência e coesão, tem focado nessas unidades a partir de duas linhas fundamentais iniciadas por Halliday e Hasan (1976) e Van Dijk (1980) respectivamente. Por outro lado, a Teoria da Argumentação, a partir de sua primeira versão (Ducrot et al., 1980), leva aos chamados conectores argumentativos, unidades de diferente natureza gramatical, ao centro de seus estudos. Com o desenvolvimento da Análise da Conversação (Roulet, Auchlin, Moeschler, Rubattel & Schelling [1985]), são atendidas finalmente as possibilidades de encadeamento que aparecem na conversa coloquial, ao considerar as teorias anteriores que as diferenças entre o texto oral e o escrito simplesmente eram de caráter superficial. Finalmente, a Teoria da Relevância (Sperber & Wilson, 1994) também tem mostrado bastante interesse nos marcadores discursivos, fundamentalmente a partir do trabalho pioneiro de Blakemore (1987). Estes teriam como função principal nos ajudar a conseguir o maior número possível de efeitos cognitivos (reafirmar, modificar ou criar um determinado conjunto de crenças) com o mínimo esforço, ou seja, se apresentam como restrições semânticas sobre a relevância. No atual trabalho, tomamos como base a obra de Martín Zorraquino e Portolés Lázaro (1999), já que oferece uma aproximação teórica que leva em conta diversas perspectivas e que, por outro lado, é uma das poucas descrições globais que temos em relação ao espanhol, o que nos permite obter uma visão de conjunto. Também a obra nos dá as chaves de suas características e das diferenças entre cada uma das unidades. Para os autores, os marcadores discursivos são unidades linguísticas invariáveis, sem função sintática e com o objetivo de guiar as inferências que são realizadas
  • 145. Argumentação e Linguagem Capítulo 10 136 na comunicação (Martín Zorraquino & Portolés Lázaro, 1999, p. 4057). Distinguem cinco tipos gerais, subdivididos, por sua vez, em distintos grupos. Em primeiro lugar, encontramos os estructuradores de la información (así las cosas, en primer lugar, en segundo lugar, por cierto, etc.) que assinalam a organização informativa dos discursos. Em segundo lugar, temos os conectores (además, por tanto, en cambio, etc.), que vinculam semântica e pragmaticamente um membro do discurso com outro anterior, de forma que o marcador guia as inferências que devem ser realizadas do conjunto dos dois membros discursivos conectados; seguidos dos reformuladores (o sea, mejor dicho, en cualquier caso, en suma, etc.), elementos que apresentam o membro do discurso no qual estão inseridos como uma expressão mais adequada do que foi dito anteriormente. Por último, os autores destacam os operadores argumentativos (en realidad, en particular, etc.), os quais condicionam as possibilidades argumentativas do membro do discurso no qual aparecem, mas sem relacioná-lo com outro membro anterior; e os marcadores conversacionales (desde luego, bueno, hombre, eh, etc.), partículas discursivas que aparecem mais frequentemente na conversa. Como já foi mencionado no início da epígrafe, os autores apresentam a descrição sistemática dessas unidades, procurando, ainda, encontrar os elementos que diferenciam aquelas tradicionalmente consideradas como “sinônimos”. No entanto, eles mesmos alertam que desenvolver essa tarefa de forma exaustiva seria tão utópico como “ponerle puertas al campo”. Os critérios seguidos na hora de delimitar as unidades são dois, o que permitiu demarcar un amplio grupo que a) compartiera propiedades gramaticales homogéneas - los marcadoresquehemosanalizadoseajustan,engeneral,alascategoríastradicionales de los adverbios, las locuciones adverbiales y de ciertas interjecciones - y b) cuyas características semánticas - la forma de significar o de configurar su significado - fueran las propias de los marcadores discursivos (los cuales son elementos que no presentan un contenido referencial o denotador sino que muestran un significado de procesamiento). (Martín Zorraquino y Portolés Lázaro, 1999, p. 4056) No caso do primeiro critério, os autores apresentam várias características, como sua gramaticalização (mesmo que em maior ou menor medida); sua posição sintática que, geralmente permite uma maior mobilidade frente às conjunções; a entonação que apresentam ao ser marcados como incisos; o fato de eles aparecerem sem especificadores nem adjacentes, etc. Para o segundo, serão mencionadas três tipos de instruções podendo primar em alguns casos uma instrução sobre as demais. De um lado, estariam aquelas que se referem ao significado de conexão, ou seja, aquelas unidades que relacionam dois ou mais membros do discurso, frente àquelas que somente afetam um, como é o caso, por exemplo, dos operadores discursivos. Do outro, estão as argumentativas, as quais nos remetem diretamente à Teoria da Argumentação e têm relação com as restrições que impõem na dinâmica discursiva. Finalmente, apresentam as instruções sobre a estrutura informativa, que, como no caso fundamental dos estructuradores de la información, nos ajudam na distribuição dos comentários de um texto, entendendo como tais as respostas a uma pergunta
  • 146. Argumentação e Linguagem Capítulo 10 137 implícita ou explícita que condiciona o avanço de um discurso. Por último, os autores vão focar nos efeitos de sentido dessas unidades. A partir da Teoria da Relevância, consideram que a interpretação de um discurso precisa, além da decodificação da mensagem, de seu enriquecimento pragmático (Sperber & Wilson, 1994). Portanto, os “efeitos de sentido” serão para esses autores os valores semânticos que adquirem as unidades linguísticas em seu uso discursivo. Esses valores nascem da relação entre seu significado próprio e o aporte pragmático do contexto. Isso permite evitar, segundo os autores, simplificar a descrição para impedir que existam tantos significados como contextos. 3 | AS AMOSTRAS Partimos da pergunta se os marcadores discursivos têm presença e de qual forma são usados nas produções escritas de estudantes brasileiros de espanhol como língua estrangeira. O corpus analisado (Corral Esteve, 2010) consta de quatrocentas produções procedentes de cursos de preparação para os antigos DELE do nível intermediário (B2) e superior (C2), ou seja, de cursos nos quais era praticada a estrutura e as características da prova. Assim, os participantes foram convidados a realizar a escrita de uma carta e uma redação, segundo os modelos de provas anteriores, nas quais eram pautadas as seções e os movimentos que deviam apresentar, sem possibilidade de uso de dicionário e com o tempo real que teriam na prova, sessenta minutos em ambos os níveis para a produção de dois textos (uma redação e uma carta) de cento e cinquenta a duzentas palavras. A carta, da qual obtivemos cento e setenta e três amostras do nível intermediário e cinquenta e uma do nível superior, era de caráter pessoal no primeiro caso e formal no segundo. Em ambos os casos, apareciam duas opções de escolha. No caso da redação, com cento e vinte e sete amostras de nível intermediário e quarenta e nove do superior, esta deveria apresentar em B2 um tom narrativo, descritivo ou discursivo; igual ao segundo caso, ampliado também para o argumentativo. Como na prova, os estudantes podiam escolher entre duas opções para o nível intermediário e três para o superior. Uma vez obtidas as produções, procedemos com a realização de uma análise quantitativa e qualitativa da presença dos marcadores, ou seja, as unidades que apareciam, sua frequência e se seu uso era o adequado. Devemos lembrar neste ponto, que segundo as guias de obtenção do DELE nível intermediário (p. 16) os alunos deviam “producir textos claros y coherentes […], bien articulados con un número reducido de conectores”. No caso do nível superior, era especificado que devia-se “mostrar gran dominio de los conectores discursivos”. Passamos a apresentar os resultados encontrados, destacando os elementos mais relevantes.
  • 147. Argumentação e Linguagem Capítulo 10 138 3.1 Estructuradores de la Información Os estructuradores de la información, responsáveis por facilitar a organização de nosso discurso, são divididos por sua vez em três subgrupos: os comentadores, que introduzem um novo comentário, sendo o mais frequente pues, sobretudo no discurso oral; os ordenadores, que apresentam o lugar que tem o membro do discurso no qual aparecem,comoéocasodeenprimerlugar,porotroladooufinalmente;eosdigresores, que aparecem como um comentário lateral em relação ao dito anteriormente, como, por exemplo, por cierto ou a todo esto. Foram encontrados um total de vinte e três marcadores em B2 e dezesseis em C2, sem a aparição de digresores. B2 C2 C R C R Comentadores Pues 3 0 0 0 Pues bien 1 0 0 0 Ordenadores De continuidad Por otro lado 2 4 0 6 Por un lado, por otro lado 0 2 0 0 En primer lugar, en segundo lugar 0 3 0 1 De la misma manera 0 0 0 1 Del mismo modo 0 2 0 0 De apertura En primer lugar 0 0 0 2 Para empezar 0 1 0 0 De cierre Marcadores de cierre 0 5 3 3 Totales 6 17 3 1 Nas amostras de B2, é feito o uso esperado dos marcadores no contexto no qual aparecem, mesmo que, como comenta Fernandes (2005: 146), no caso de pues bien “en portugués existe una preferência por el comentador pois é [...] como variante de pois bem [...]. Sin embargo, pois é parece poseer un matiz de naturalidad [...] lo que permite que una eventual equivalencia a pues sí de español”. Assim, parece que em (1) o esperado em espanhol seria pues sí: (1) Otro dia he participado de un sorteo de dos viajes hasta Barcelona, en el supermercado que hay cerca de casa. ¿Imaginas tu que gané? Pues bie es un viaje para dos personas, para que ellos puedan asistir un partido de fútbol de Barcelona en copa del Rey. (102 CB2) Da mesma forma, em C2, todos eles são usados de forma adequada, ou seja, cumprindo com as funções esperadas de abrir, dar continuidade e fechar o discurso. No entanto, parece interessante destacar dois elementos. De um lado, é frequente que o mesmo aluno use diferentes estructuradores e marcadores em geral na mesma produção. Por outro lado, o uso dos distintos estructuradores para concluir o discurso (finalmente, para terminar, por fin, para finalizar, por último y para concluir) cria a dúvida
  • 148. Argumentação e Linguagem Capítulo 10 139 se a unidade que aparece foi eleita pelo aluno de forma consciente frente às outras. Por exemplo, não sabemos se o aluno está ciente que finalmente nos leva ao último argumento, enquanto por fin adiciona a essa função a ideia de um desejo conseguido ou um alivio por terminar (Fuentes Rodríguez, 2010, p. 712). 3.2 Conectores Os conectores “vinculan semántica y pragmáticamente un miembro del discurso con otro anterior, de tal forma que el marcador guía las inferencias que se han de efectuar del conjunto de los dos miembros discursivos conectados” (Martín Zorraquino & Portolés Lázaro, 1999, p. 4080). Este grupo é subdivido por sua vez em aditivos, caracterizados por unir membros do discurso com a mesma orientação argumentativa; consecutivos, que apresentam uma conclusão do que foi dito anteriormente no membro do discurso no qual estão inseridos; e contraargumentativos, os quais suprimem ou atenuam alguma conclusão que pudesse ter sido alcançada no membro do discurso anterior. B2 C2 C R C R Aditivos Además 37 27 20 7 Aparte 1 0 1 1 Incluso 6 0 1 1 Es más 0 0 0 1 Consecutivos Pues 1 0 0 0 Así pues 0 2 0 0 Por (lo) tanto 5 9 4 5 Consecuentemente 0 0 1 0 Así 25 15 6 4 De este modo 1 1 0 0 Entonces 24 22 6 5 Contraargumentativos Sin embargo 19 16 8 6 No obstante 0 0 0 1 Totales 119 92 47 31 Como pode ser observado, además é o conector mais utilizado. Com maior frequência é usado para incluir um sobreargumento que reforça a conclusão buscada como no caso de (2): (2) Ustedes publicaron que la ciudad fué colonizada por portugueses. [...] Solamente en el 1890 los portugueses fundaron Gravataí. Además, en el artigo de la periodista Marga Varga está escrito que la población actual és de 400 mil personas, pero ya alcanzamos los 500 mil. (31 CC2) Temos quatro amostras nas quais esse marcador não é utilizado
  • 149. Argumentação e Linguagem Capítulo 10 140 adequadamente, quatro em B2 e uma em C2: (a) o uso de “además que”, impróprio da língua escrita (100CB2); (b) a aparição como inciso para apresentar um elemento que parece suposto, pelo qual seria esperada sua presença com “de” (20 RB2); (c) o uso em vez de um contraargumentativo (82CB2); e (d) a utilização para somar uma coisa positiva (os valores morais) e uma negativa (a dor), o que no parece pragmaticamente adequado (40RB2). Em relação a C2, o problema é que repete o que foi expresso no membro do discurso anterior, sem adicionar nada (40CC2). Em relação a incluso encontramos um caso de mesmo (11CB2) e dois exemplos (132 CB2 e 163 CB2) de uso de aún onde deveria aparecer. No caso dos consecutivos, por (lo) tanto apresenta uma consequência à qual chegamos através de um razoamento, aceitando como verdadeiro o primeiro membro (Martín Zorraquino y Portolés Lázaro, 1999, p. 4101). No entanto, isso não é o encontrado na maioria das amostras, nas quais parece que os alunos pretendem dar “rigor” e autoridade ao que foi dito, como indica Fernandes que prima no uso do português. Por outro lado, encontramos um uso inadequado em que o aluno o utiliza para introduzir uma contra-argumentação (28CC2). No caso de entonces, o caráter de consequência é fraco a partir de seu sentido temporal inicial. Passamos de um momento ao outro, mas também de uma causa a um efeito. É esse um marcador cujo uso mais frequente é dado no colóquio, indicando o avanço da conversa ou em conversas nas quais um dos participantes introduz o que é deduzido da informação dada pelo outro. Esses dois fatores fazem com que muitas vezes seja usado como “curinga”, e em contextos onde pareceria mais adequada a presença de outro marcador. No entanto, o fato de aparecer em onze casos parece indicar que o aluno de C2 controla seu uso, por ser um marcador esperado geralmente na língua oral, frente aos resultados encontrados em B2. Em relação ao único exemplo de pues encontrado como consecutivo, em B2, este é incorreto, já que vai seguido da conjunção que: (3) Él deseaba producir una revista en dos idiomas: portugués y español. Pues que decidimos invertir en eso y ahora adquirimos mucho reconocimiento en nuestro trabajo. (162 CB2) Por último, os contraargumentativos apresentam somente duas unidades: sin embargo, com um total de trinta e cinco casos em B2 e catorze em C2, e no obstante com somente um caso em C2. No caso de sin embargo, encontramos tanto contra- argumentações diretas quanto indiretas. Também encontramos um exemplo de uso incorreto ao aparecer junto à conjunção que (51 RB2), e dois casos nos quais aparece a forma entretanto (15 RB2 e 124 RB2). No caso de no obstante, Domínguez García (2007, pp. 110-111) apresenta como uma das diferenças com sin embargo o fato de este poder aparecer com valor refutativo em contextos polifônicos e dialógicos, nos quais é refutado o que foi dito pelo locutor, o que parece acontecer em (4), pelo qual seria esperada a presença de sin embargo.
  • 150. Argumentação e Linguagem Capítulo 10 141 (4) Podemos analizar sus efectos negativos y positivos. Se dice que antes de la globalización, la cultura de los pueblos y países eran más preservadas, que no ocurría tantas interferencias, seguian su camino de una manera menos frenética. No obstante, cuantas cosas se pueden evitar con el agilidad de las Informaciones. (37 RC2) 3.3 Reformuladores Os reformuladores se apresentam como uma ajuda para o ouvinte, que deve alcançar a intenção de seu interlocutor, podendo ir essa da retificação até a explicação. De um lado, a presença desses marcadores indica que é essa parte a que tem uma maior importância na continuação do discurso. Martín Zorraquino y Portolés Lázaro (1999) distinguem quatro subtipos: explicativos (aclaram ou explicam o dito anteriormente como o sea ou es decir), rectificativos (corrigem ou melhoram o dito anteriormente como em mejor dicho ou más bien), de distanciamiento (expressam que não tem pertinência o dito anteriormente como por exemplo em cualquier caso) e recapitulativos (apresentam uma conclusão ou recapitulação do anterior como em a fin de cuentas ou en suma). No nosso caso, somente não encontramos exemplos de rectificación. B2 C2 C R C R Explicativos O sea 3 3 1 4 En otras palabras 0 2 0 0 Es decir 0 1 0 1 De distanciamiento De cualquier forma 0 0 0 1 De todas formas 0 4 0 0 Recapitulativos En fin 0 1 1 4 En conclusión 0 0 0 4 Resumiento 0 1 0 0 Totales 3 12 2 1 O marcador mais usado é o sea, mais próprio da língua falada frente a es decir, menos coloquial, o que parece não ser apreciado pelos estudantes. Nesse caso, Fernandes (2005, p. 421) nos da a chave: Por una parte, los correspondientes quer dizer en portugués / es decir en español, aunque sean correspondientes literales, pertenecen a modalidades diferentes; el reformulador en portugués es típico de la oralidad mientras que en español es habitual en el lenguaje escrito. Por otra parte, sucede justamente lo contrario con los reformuladores ou seja en portugués / o sea en español. Ou seja pertenece a lo escrito y o sea a lo oral. En síntesis, estamos ante falsos cognatos en el sentido enunciativo, dado que la modalidad donde actúan no corresponde con sus usos típicos.
  • 151. Argumentação e Linguagem Capítulo 10 142 3.4 Operadores Argumentativos Essas unidades condicionam as possibilidades argumentativas do membro no qual estão inseridas. Segundo nossos autores, a diferença com os conectores viria dada pelo fato de que aqueles focam no que os segue, enquanto que esses, como vimos, relacionam pragmática e semanticamente o membro que introduzem com o anterior. Apresentam dois tipos: os de refuerzo argumentativo, ou seja, aqueles que, como seu nome indica, reforçam o membro do discurso no qual aparecem diante de outros possíveis aos quais limitam; e os de concreción, que exemplificam ou concretizam uma expressão mais geral. Encontramos nas amostras os seguintes resultados: B2 C2 C R C R De refuerzo argumentativo De hecho 2 1 1 2 En realidad 1 2 0 1 De concreción Por ejemplo 2 12 2 5 Totales 5 15 3 8 Na análise das unidades, percebemos que por ejemplo apresenta uma maior frequência; enquanto os de refuerzo argumentativo estão representados por dois marcadores, um que apresenta o membro do discurso como “verdade”, e outro que indica que é uma “realidade”. 3.5 Marcadores Conversacionales Fernandes (2005, p. 485) afirma em relação a esse grupo que es previsible que en los marcadores conversacionales encontremos las mayores dificultades para establecer una correspondencia entre el portugués y el español. Incluso, en la mayoría de los casos, es imposible hallar equivalentes entre dichos marcadores en ambos idiomas. Y, aunque los haya, la incorporación de estos en el uso de los hablantes es especialmente difícil. Isto explica que em muitos casos sintamos que soam “estranhas” determinadas unidades em determinados contextos. Além disso, é um dos grupos com maiores dificuldades de sistematização, dado o número de unidades e a quantidade de possíveis contextos de uso de cada uma delas. Pensemos, por exemplo, no caso de bueno que pode aparecer em vários grupos mencionados abaixo. Os subgrupos apresentados pelos autores são quatro. O primeiro é formado pelos marcadores de modalidad epistémica, que apresentam como é destacada a mensagem que o marcador introduz. Assim poderá ser por exemplo “evidente”, como no caso de desde luego, ou conhecido através de outro, como no caso de por lo visto. O segundo subgrupo é formado pelos chamados marcadores de modalidad deóntica que apresentam o grau de vontade em relação ao que foi dito, ou seja, se aceita, admite,
  • 152. Argumentação e Linguagem Capítulo 10 143 etc. ou não o que infere do discurso. É o caso de bueno ou bien. Os enfocadores de la alteridad, por sua vez, são caraterizados por apontar ao ouvinte, como no caso de hombre, bueno, vamos, mira, etc. Por último, os metadiscursivos conversacionales são usados, como seu nome indica, para construir a conversa, traços que mostrem o esforço para formular e organizar o discurso. Destacam-se neste grupo ya, sí, bueno o bien. Nas amostras os resultados foram os que seguem: B2 C2 C R C R Modalidad epistémica Por supuesto 4 1 0 3 Efectivamente 0 5 0 0 Sin duda 0 5 1 2 Claro 3 2 2 2 Modalidad deóntica Bien 11 1 0 0 Bueno 34 2 0 0 Enfocadores de la alteridad ¿No?/¿Sí?/¿Vale?/Mira/Mire/ Oye 19 1 0 1 Marcadores metadiscursivos Bueno 0 0 1 0 Totales 71 17 4 8 Em C2, foi reduzido o número de unidades, sobretudo da modalidad deóntica e dos enfocadores de la realidad, que costumam ser assimilados ao âmbito da oralidade. Parecequeosparticipantesnestetrabalhoestiveramcientesdequenoformatodaprova não tinham muito cabimento. Entretanto, sua presença aumenta consideravelmente nas cartas em B2, o que, por outro lado, seria esperado dado o caráter menos “formal” da prova, que daria um maior espaço para sua aparição. A pergunta que surge neste ponto é se esta reflexão realmente se dá entre os alunos ou simplesmente levam na língua escrita marcadores que conhecem pelo uso na oralidade. No caso dos enfocadores de alteridad encontramos dois casos de presença do português certo, ao aparecer a forma cierto em lugar de outras como, por exemplo, vale (55CB2 e 62CB2). 4 | CONCLUSÕES Ao longo deste trabalho apresentamos os resultados obtidos após a análise de quatrocentas produções de estudantes de espanhol como língua estrangeira cujo objetivoeraconseguiracertificaçãodonívelintermediário(B2)esuperior(C2). Ocorpus analisado mostra um uso muito reduzido dos marcadores discursivos. Encontramos o maior número de unidades no grupo dos conectores, os mais presentes também nos manuais (Corral Esteve, 2010). Talvez isto seja devido ao fato de os alunos perceberem
  • 153. Argumentação e Linguagem Capítulo 10 144 como os mais “necessários” na hora de planificar um texto, sobretudo em casos de textos expositivos ou argumentativos. Portanto, seriam mais esperados nas redações, mas os resultados são maiores nas cartas (cento e dezenove em B2 e quarenta e sete em C2), o que parece confirmar a ideia de que são usados sem muito planejamento. A unidade mais repetida é además (seguido de así, entonces e sin embargo), unidade próxima ao português, como acontece na maioria dos marcadores presentes no estudo, o que pode nos levar a pensar que os alunos não arriscam e preferem ficar em uma área de relativo conforto. O segundo grupo com mais presença é o dos marcadores discursivos, concretamente, os da modalidad deóntica e os enfocadores de la alteridad nas cartas do nível B2, sendo reduzido seu uso no nível C2. No resto dos grupos, a presença é mais ou menos similar, com maior número nas redações, mas ainda assim com uma incidência muito restrita, sendo o maior número de casos nos estructuradores de la información os marcadores de fechamento; nos reformuladores, o marcador ou seja; e nos operadores argumentativos, o por ejemplo. Concluímos, portanto, que muito trabalho ainda deve ser feito para conseguir que os alunos usem de forma consciente e planificada esses elementos. Para isto, deve atender-se de forma explícita a seu ensino, observando e refletindo sobre sua importância, suas características, seus usos e suas diferenças, focando não só em suas características formais, mas também nas semântico-pragmáticas. REFERÊNCIAS BLAKEMORE, Diane. Semantics constraints on relevance. Oxford: Blackwell, 1987. CORRAL ESTEVE, Cristina. Los conectores discursivos de la lengua escrita en la clase de español como lengua extranjera: una propuesta de trabajo (Tese de doutorado). Universidad de León, León, España, 2010. DIJK, Teun A. van. Estructuras y funciones del discurso. México: Siglo XXI Editores, 1980. DOMÍNGUEZ GARCÍA, Mª Noemí. Conectores discursivos en textos argumentativos breves. Madrid: Arco/Libros, 2007. DUCROT, Oswald.; BRUXELLES, Sylvie; FOUQUIER, Éric; GOUAZÉ, Jean; DOS REIS, Géraldo; RÉMIS, Anna; DILLER, Anne-Marie; SINDAR-ISKANDAR, Christine; BOURCIER, Danièle; MAURY, Luc; BIHN, Thanh, RAGUNET, Laurence. Les mots du discours. Paris: Minuit, 1980. FERNANDES, Ivani Cristina S. Los marcadores discursivos en la argumentación escrita: estudio comparado en el español y en el portugués de Brasil (Tese de doutorado). Universidad de Salamanca, Salamanca, España, 2005. FUENTES RODRÍGUEZ, Catalina. “Los marcadores del discurso y la lingüística aplicada”. In O. Loureda Lamas; E. Acín-Villa (Coords.). Los estudios sobre marcadores del discurso en español. Madrid: Arco/Libros, 2010. HALLIDAY, Michael A.K.; HASAN, Ruqaiya. Cohesion in English. London: Longman, 1976.
  • 154. Argumentação e Linguagem Capítulo 10 145 MARTÍN ZORRAQUINO, Mª Antonia; PORTOLÉS LÁZARO, José. “Los marcadores del discurso”. In I. Bosque; V. Demonte (Coords.). Gramática descriptiva de la lengua española (vol. 3). Madrid: Espasa-Calpe, 1999. PORTOLÉS LÁZARO, José. “Algunos comentarios sobre la enseñanza de los marcadores del discurso escrito a estudiantes de ELE”. Carabela, 46, 63-74, 1999. ROSSARI, Corinne. “Formal properties of a subset of discourse markers: connectives”. In K, Fischer (Ed.). Approaches to Discourse Particles. Oxford: Elsevier, 2006. ROULET, Eddy; AUCHLIN, Antoine; MOESCHLER, Jacques; RUBATTEL, Christian; SCHELLING, Marianne. L´articulation du discours en francais contemporaine. Berne: Peter Lang, 1985. SPERBER, Deirdre; WILSON, Dan. La Relevancia. Madrid: Visor, 1994.
  • 155. Capítulo 11 146Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 11 VARIAÇÃO FONÉTICA NO POVOADO ONÇA DO MARANHÃO: ANÁLISE DOS FENÔMENOS DE REDUÇÃO DO DITONGO “OU” EM “O” E REDUÇÃO DO DITONGO “EI” EM “E” Shayra Brunna Silva Marques Graduanda em Letras: Língua Portuguesa, Língua Inglesa e suas Literaturas pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA / Campus Santa Inês. E-mail: shayramarques@gmail.com Ana Claudia Menezes Araujo Professora orientadora do Departamento de Letras e Pedagogia da UEMA / Campus Santa Inês, mestre em Letras - Estudos de Linguagem pela Universidade Federal do Piauí – UFPI / E-mail: claudia-ama@hotmail.com RESUMO: Este trabalho trata-se de uma pesquisa sociolinguística sobre os fenômenos de redução dos ditongos decrescentes “ou” em “o” e “ei” em “e” presentes na linguagem dos moradores do povoado Onça, localizado no município de Santa Inês, Estado do Maranhão. Apresenta-se como principal objetivo identificar a presença destes fenômenos fonéticos no corpus coletado em campo e, dessa forma, evidenciar essa variação regional e social, para que fique perceptível que fatores como cultura e classe social estão ligados a essas alterações na fala. Assim, estudar a estrutura linguística e a estrutura social para destacar e mostrar a relevância da variação linguística existente entre elas. Segundo Marcos Bagno (2007), é impossível estudar a língua sem estudar, ao mesmo tempo, a sociedade em que essa língua é falada. Nessa pesquisa teremos como aparato teórico Bagno (2007), Tarallo (1997), Cristófaro Silva (2009), Mollica (2003) e Câmara Junior (1978), que deram consistência a esse trabalho por meio de seus estudos desenvolvidos na área de Sociolinguística e/ou Fonética da Língua Portuguesa. Para a realização da pesquisa, usando um questionário fonético-fonológico, entrevistamos habitantes do povoado Onça, em que estes possuem Ensino Fundamental incompleto, Ensino Fundamental Completo, Ensino Médio incompleto e Ensino Médio completo, de ambos os sexos, enquadrados na faixa etária de 18 a 30 e 60 a 65 anos e totalizando 18 entrevistados, nascidos e domiciliados no respectivo povoado, distribuídos em quantidades iguais em cada faixa etária. A pesquisa leva-nos a concluir que a variação linguística do povoado onça é de vital importância nesta região, pois é através dessa variação que ocorre a comunicação entre seus indivíduos. Vemos assim a importância da variação sociolinguística; ciência que têm como uma de suas finalidades como seu próprio nome indica estudar a variação linguística regional e sua importância para a boa comunicação entre seus pares desfazendo assim preconceitos de qualquer outra variação linguística que se ache superior. PALAVRAS-CHAVE: Sociolinguística. Variação Linguística. Redução da linguagem
  • 156. Argumentação e Linguagem Capítulo 11 147 ABSTRACT: This work is about a sociolinguistic research on the phenomena of reduction of the decreasing diphthongs “or” in “o” and “ei” in “e” present in the language of the residents of the Onça village, located in the municipality of Santa Inês, in the state of Mraranhão. The same has a principal objective is to identify the presence of these phonetic phenomena. In this research we will have as theoretical apparatus Bagno (2007), Fernando Tarallo (1997), Thais Cristófaro Silva (2009) Cecília Maria Mollica (2003), Câmara Junior (1978) and Marcuschi (2007), that gave consistency to this work through studies developed in the area of Sociolinguist and Phonetics. For the realization of this reaserch, we use the interview adults of the Onça village, of incomplete primary and secondary education of both sexes, framed in the age group: 18 to 30 and 60 to 65 years old totaling 18 respondents, born and domiciled in their village, distributed in equal amounts in each age group. By observing corpora collected through questionnaire phonetic-phonological, identified that speaking of respondentes occur phenomena above mentioned, characterizing the diversity of portuguese spoke in Maranhão. KEYWORDS: Sociolinguistics. Linguistic Variation. Reduction of language. 1 | INTRODUÇÃO Tendo observado os fenômenos de variações linguísticas “ou” e “ei” do povoado onça pertencente ao município de Santa Inês, verificou-se que tais inconstâncias possuem uma estrutura linguística e que as mesmas não podem ser explicadas por regras estruturais do português padrão. A aptidão para ditongos decrescentes está inteiramente ligada a fatores internos e externos. Essa variabilidade linguística é um dos impressionantes e impactantes aspectos da nossa língua portuguesa e pode ser entendido melhor por meio de estudos históricos e regionais sobre a fala. Em nosso país, por exemplo, com o mesmo idioma oficial, a língua sofre modificações feitas por seus falantes e isso ocorre porque vivemos na mesma sociedade que por sua vez é complexa e estão inseridos grupos sociais com etnias, classes, conceitos, valores, religião entre outros diferentes. Parte desses grupos tiveram acesso à educação formal, porém outros não tiveram muito contato com o português padrão ou até mesmo acesso à educação. Algumas dessas variações linguísticas não mostram a mesma receptividade ao ser ouvida por regiões diferentes da mesma língua oficial e isso resulta em um fato chamado de preconceito linguístico. O presente artigo tem como principal objetivo identificar as reduções de ditongos e suas variações linguísticas do povoado Onça, o qual foi explorado seus aspectos fonéticos dos corpora coletados. Tivemos como base teórica autores como Carlos Bagno (2007) e Thaís Cristófaro (2002) que fazem estudos linguísticos, fonológicos, éticos e sociais sobre este tema. Através dos estudos e pesquisas feitos neste trabalho sabe-se que é preciso levar em consideração o fator histórico da fala de cada região. O objetivo desta pesquisa é mostrar claramente ao leitor essa variação regional, social e histórica para que notem que fatores como: cultura, classe social e outros estão
  • 157. Argumentação e Linguagem Capítulo 11 148 ligados a essas modificações na construção da fala. Pretende-se também mostrar a importância das variações linguísticas que ocorrem em cada região dentro da realidade de onde vivem. A língua é dinâmica, sofre modificações com o passar dos anos e através de fatores advindos de cada época e grupo social. 2 | A SOCIOLINGUISTICA E A VARIAÇÃO LINGUISTICA Não dá para estudar a sociedade sem levar em consideração as relações que os indivíduos estabelecem entre si por meio da linguagem. A Sociolinguística estuda as conexões entre linguagem e sociedade e o modo como usamos a linguagem em diferentes situações sociais. Ela geralmente reflete a realidade do discurso humano e mostra como um dialeto pode descrever a idade, o sexo, e a classe social do falante, sendo uma codificação da função social da linguagem. Desse modo, a Sociolinguística abrange desde o estudo comparativo entre a variedade de dialetos através de uma região até análise entre os modos de falar de homens e mulheres, jovens, ricos e pobres, letrados e iletrados. Segundo Marcos Bagno (2007), para o sociolinguista é impossível estudar a língua sem estudar, ao mesmo tempo, a sociedade em que essa língua é falada. Para Cecília Maria Mollica (2003, p. 11): Cabe a Sociolinguística, área interdisciplinar da linguística, “investigar o grau de estabilidade ou de mutabilidade da variação, diagnosticar as variáveis que tem efeito positivo ou negativo sobre a emergência dos usos linguísticos alternativos e prever seu comportamento regular e sistemático”. Dessa forma, a Sociolinguística parte do princípio de que estudar a estrutura linguística e a estrutura social para comparar e mostrar a relevância da variação linguística existente entre elas, vai além das relações singelas entre a língua e o social. Proporcionando dessa forma a valorização da diversidade, desconstruindo o preconceito linguístico. Frequentemente, nas comunidades de fala, haverá formas linguísticas em variação, para o sociolinguista Tarallo (1997, p. 8): Em toda comunidade de fala são frequentes as formas linguísticas em variação. A essas formas em variação dá-se o nome de variantes. Variantes linguísticas são diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto e com o mesmo valor de verdade. A um conjunto de variantes dá-se o nome de variável linguística. Partindo do princípio de que variação linguística é a capacidade que a língua tem de se transformar e se adaptar de acordo com alguns componentes. De acordo com Bagno(2007),ossociolinguistasenfatizamsemprequenãoexistefalantedeestiloúnico, e que todo indivíduo varia a sua maneira de falar. Variações essas que são, histórica, maneira como a língua evolui de acordo com o tempo, sociocultural, relacionado aos grupos sociais, geográfica, que representa fatos sociais de uma determinada região e é interiorizada por todos os falantes e sua aprendizagem ocorre basicamente no
  • 158. Argumentação e Linguagem Capítulo 11 149 ambiente familiar como marca de identidade do grupo social e estilística que tem a ver com a situação de uso da língua. Ainda falando a respeito de variação linguística, Marcos Bagno (2007), em seu livro “Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia de variação linguística”, vem dizendo que essa variação pode ser verificada em todos os níveis da língua: fonético- fonológico, morfológico, sintático, semântico, lexical, estilístico-pragmático. E ainda acrescenta dizendo que apesar disso, muita coisa da língua não apresenta variação. 2.1 Fatores Extralinguísticos Condicionantes da Variação Linguística Os sociolinguistas selecionam um conjunto de fatores sociais que podem ajudar no reconhecimento dos fenômenos de variação linguística. Temos como fatores extralinguísticos condicionadores da variação linguístistica, origem geográfica, status socioeconômico, grau de escolarização, idade, sexo, mercado de trabalho e redes sociais. Marcos Bagno (2007) conceitua todos esses fatores: Origem geográfica: a língua varia de um lugar para outro; Status socioeconômico: a língua varia de acordo com o nível de renda; Grau de escolarização: a língua varia de acordo com o acesso maior ou menor à educação formal; Idade: a língua varia de acordo com a faixa etária; Sexo: homens e mulheres fazem uso diferente dos recursos que a língua oferece; Mercado de trabalho: a língua varia de acordo com a profissão; Redes sociais: é quando uma pessoa adota comportamentos iguais aos das pessoas com quem convivem em suas redes sociais. Através da seleção dos fatores sociais e linguísticos importantes para o estudo é que segundo o sociolinguista Marcos Bagno (2007), a pesquisa sociolinguística permite que os estudiosos descubram a realidade da língua no Brasil. 3 | REDUÇÃO DOS DITONGOS Na gramática tradicional, os ditongos são estudados no campo da fonologia e são definidos pelo encontro vocálico de duas vogais na mesma sílaba. Quando esse encontro é de uma vogal e de uma semivogal, o ditongo é classificado por decrescente, mas se for o contrário, semivogal e vogal, a classificação será crescente. Segundo Bagno (2007, p. 147), embora a convenção ortográfica direcione a pronúncias forçadas e artificiais que não correspondem à realidade falada dos brasileiros, o fenômeno da monotongação tem interferido no processo de alfabetização, uma vez que a tendência do principiante é escrever a vogal simples e não o ditongo. A redução, de acordo com Câmara Junior (1978, p. 170), é uma alteração apenas fonética, ou seja, ela só ocorre na oralidade. Este fenômeno existe desde a passagem do latim clássico ao latim vulgar. Embora não haja preconceito para a redução de
  • 159. Argumentação e Linguagem Capítulo 11 150 ditongos decrescentes, é importante ressaltar que mesmo não pronunciando as duas vogais, na escrita ainda existe o ditongo e, portanto, escrever como se fala é considerado errado e repelido de acordo com a norma padrão. Marcos Bagno (2007, p. 48) comenta sobre isso em seu livro Preconceito Linguístico: Muitas gramáticas e livros didáticos chegam ao cúmulo de aconselhar o professor a “corrigir” quem fala muleque, bêjo, minino, bisôro, como se isso pudesse anular o fenômeno da variação, tão natural e tão antigo na história das línguas. Essa supervalorização da língua escrita combinada com o desprezo da língua falada é um preconceito que data de antes de Cristo! Ainda de acordo com Bagno (2007, p. 214), a não redução do ditongo só acontece quando a fala é monitorada ou quando a pessoa está lendo um texto em voz alta e se deixa levar pela grafia. Portanto, desde os iletrados até os letrados, de norte a sul do Brasil, fazem o uso deste fenômeno de redução dos ditongos. VARIAÇÃO FONÉTICA DO PORTUGUÊS Muitos acreditam que no Brasil fala-se somente uma língua, sabemos que esta afirmação não é verdadeira, pois a Língua Portuguesa apresenta grande variação de região para região, de estado para estado, sem esquecer os fatores extralinguísticos, tal como afirma Bagno (2008, p. 27), ao lembrar-nos de que o Brasil é um lugar onde: (...) são faladas mais de dezenas de línguas diferentes, entre línguas indígenas, línguas trazidas pelos imigrantes europeus e asiáticos, língua surgidas das situações de contato nas extensas zonas fronteiriças com os países vizinhos, além de falarem diversas línguas africanas trazidas pelas vítimas do sistema escravista. Com isso, fica claro que mesmo possuindo variação, uma língua continua desempenhando seu papel em uma determinada sociedade, o que não a tornará melhor ou pior que outras. Quando se trata do ser humano, a homogeneidade é quase inalcançável. Segundo Marcuschi (2007, p. 43): (...) toda vez que emprego a palavra língua não me refiro a um sistema de regras determinado, abstrato, regular e homogêneo, nem a relação linguística imanente. Ao contrário, minha concepção da língua pressupõe um fenômeno heterogêneo (com múltiplas formas de manifestação), variável (dinâmico, suscetível à mudança), histórico e social [...] ALíngua Portuguesa no Brasil apresenta diferentes estilos, a diferença percebível é a de caráter fonético, ou seja, na maneira de falar. Isso acontece porque usamos na linguagem oral as palavras sem nos preocuparmos com o formalismo. 4 | METODOLOGIA A Teoria da Variação ou da Sociolinguística Quantitativa surgiu em 1960, baseada na proposta de Weinreich, Labov e Herzog. Com o objetivo de descrever a língua e seus determinantes sociais e linguísticos, levando sempre em consideração o seu uso variável e, por conseguinte, seu aspecto heterogêneo. Nesse caso, a variação
  • 160. Argumentação e Linguagem Capítulo 11 151 linguística pressupõe a existência da diversidade nos modos de falar. Portanto ela pode ser sincrônica, pois ambas as formas têm que coexistirem e diacrônica quando analisada ao longo do tempo. A variação é inerente a língua e não aleatória, mas ordenada por fatores linguísticos e extralinguísticos. Segundo Maria Mauro Cesário e Sebastião Votre (2008), a abordagem Variacionista baseia-se em pressupostos teóricos que permitem ver a regularidade e sistematicidade mesmo por trás do aparente caos da comunicação do dia-a-dia. Percebemos, então que essa teoria possui uma metodologia própria, capaz de fornecer ao pesquisador ferramentas para definir e analisar o fenômeno variável que se deseja estudar. Amplamente, podemos descrever as variedades linguísticas a partir de três pontos básicos: os de natureza diatópica (local, região), os de natureza diastrática (classe social, idade, contexto social) e os de natureza estilística (maior e menor grau de formalidade de um enunciado), todos vão condicionar o uso variável de fenômenos linguísticos, além dos fatores internos ao sistema da língua. Seguindo essa teoria, a presente pesquisa, é de natureza diatópica, abordando ainda além do local, o grau de formação, faixa etária idade e sexo, a qual envolveu uma abordagem quantitativa, pautada no uso do método etnográfico e considerado as ocorrências dos fenômenos em estudo na fala dos entrevistados do povoado Onça. A pesquisa dividiu-se em três partes, na qual a primeira, deu-se pelo estudo teórico dos fenômenos em pauta, a qual serviu de fundamentação teórica da pesquisa. A segunda parte coube a elaboração e aplicação de questionário para a realização de entrevistas, entrevistados estes de ambos os sexos, de escolaridade sem nenhum grau ao de ensino fundamental completo, com o propósito de observar o fenômeno fonético em estudo para a análise, ou seja, a ocorrência dos fenômenos de redução dos ditongos ou em /o/ e ei em /e/ na fala dos informantes. A terceira parte e última, deu-se pela a análise dos dados coletados para a verificação do fenômeno em questão, tudo em conforme com os estudos Sociolinguístico Variacionista. Para o nosso campo de pesquisa, utilizamos o povoado Onça, localizado no município de Santa Inês, no estado do Maranhão. No total de informantes foram 18, com faixa etária de 18 a 65 anos, distribuídos de acordo com o grau de escolaridade, sendo que os mesmos ainda assinaram um termo de compromisso dando permissão para fazermos as perguntas do questionário fonológico, no qual cada um respondeu oito perguntas, quatro do fenômeno de redução do ditongo OU em O e outras quatros do fenômeno de redução do ditongo EI em E, todos os entrevistados nascidos e residentes no povoado Onça, nas faixas etárias determinadas pelo projeto AliB – 18 a 30 e 60 a 65. As informações foram adquiridas a partir de um questionário fonético-fonológico, o qual segue o modelo usado pelo Atlas Linguístico do Brasil, e os próprios foram feitos segundo as ocorrências da monotongação dos ditongos ow em /o/ e ey em /e/.
  • 161. Argumentação e Linguagem Capítulo 11 152 5 | ANÁLISE DOS FENOMENOS DE REDUÇÃO DO DITONGO “OU” EM “O” E DE “EI” EM “E’. Retornando o que já tínhamos falado antes, o objetivo deste trabalho é identificar a ocorrência do fenômeno de monotongação dos ditongos variáveis decrescentes ou em “o” e ei em “e” no dialeto dos moradores do povoado Onça. As palavras que utilizamos para identificar a ocorrência do fenômeno em estudo são: de redução do ditongo ou em o – doutor, touro, pouco e outubro; de redução do ditongo ei em e – feijão, beijo, peixe e dinheiro. De acordo com a teoria da variação, sabemos que a escolha entre variantes não se dá aleatoriamente, mas, sim, relacionada a variáveis linguísticas e extralinguísticas. Neste artigo, analisamos duas variáveis de caráter linguístico, ou seja, o contexto fonológico e a estrutura interna da palavra, as quais ficarão mais claras no estudo das apreciações. Agora, daremos ênfase a análise, que tem como principal objetivo identificar a ocorrência do fenômeno de monotongação dos ditongos “ou” em “o” e “ei” em “e”, no dialeto dos moradores do povoado onça, município de Santa Inês, no estado do Maranhão. Das quatro variáveis sociais previamente estabelecidas para a presente análise (sexo, idade, escolaridade e renda) demos ênfase as três primeiras variáveis do informante para aplicação da regra de monotongação dos ditongos “ou” e “ei”. O nível escolar foi escolhido por ser de suma importância para a aplicação da regra de monotongação de ambos os ditongos. Diante das pesquisas efetuadas com os moradores do povoado Onça, observou-se que quanto menos escolarizado o informante, mais alto é o índice de aplicação da regra. Portanto, entende-se que: é necessário compreender que não existe uma distribuição antagônica entre uso do ditongo conservado x falantes escolarizados e uso do monotongo x falantes não escolarizados. Diante dos fatos, os entrevistados, independentemente de seu grau de instrução, usam as formas reduzidas, mas esse uso diminui à medida que aumenta o nível de escolarização. De acordo com o nível de escolaridade, os informantes foram separados em três grupos. No primeiro grupo foram considerados os não escolarizados, quer aqueles sem escolaridade nenhuma, quer aqueles que, mesmo tendo passado um ou dois anos pela escola, não chegaram a dominar as técnicas de leitura e escrita; no segundo grupo foram inseridos os informantes do ensino fundamental incompleto; e no terceiro grupo, consideramos aqueles com ensino fundamental completo. No quesito sexo, trabalhamos dois grupos, masculino e feminino, nas faixas etárias: de 18 aos 30 anos (grupo 1) e 60 aos 65 anos (grupo2), dos quais foram entrevistados do primeiro grupo nove pessoas de ambos os sexos e mediante o enredo das entrevistas notou-se que todos os entrevistados realizaram o fenômeno de monotongação dos ditongos “ou” em “o” e “ei” em “e”. No segundo grupo não foi diferente, apresar de o mesmo já encontrar-se uma faixa etária avançada, detectou-se
  • 162. Argumentação e Linguagem Capítulo 11 153 as mesmas dificuldades linguísticas na oralidade. 5.1 Redução do ditongo “ow” em “o”. A análise do corpus demonstra que os 18 entrevistados de ambos os grupos e sexos, correspondentes a 100% dos informantes pesquisados, diagnosticou-se que ao pronunciarem as palavras “doutor”, “touro”, “pouco” e “outubro”, realizaram o fenômeno de monotongação como veremos nos exemplos a seguir: Doutor [d’otɔr] Touro [t’oru] Pouco [ p’oku] Outubro [ o’tubru] A ocorrência deste fenômeno no povoado Onça, se igualiza as variedades linguísticas espalhadas pelo o Brasil a fora. Podemos observar exemplos de variações linguísticas dentro dos estados do nosso país. Cada região tem sua peculiaridade linguística e variações, o que não é diferente do que acontece no povoado Onça. Infelizmente a maior parte da população brasileira sofre, ou já sofreu preconceito linguístico ou até mesmo já o praticou consciente e inconscientemente, o que gera por muitas vezes situações conflitantes e até mesmo em último grau, um maior índice de analfabetismo. Dentro desse contexto o ditongo “ow” em “o”, faz com que o modo de falar fique mais fácil e a pronúncia saia mais leve. Isso acontece dentro da escola literária da vida diária dessas pessoas, onde podemos citar o contexto familiar, como por exemplo: a fala do pai, da mãe, e do grupo social que o indivíduo está inserido, assim o indivíduo irá criar o seu conjunto linguístico de vocábulos. O ditongo “ou” é mais passível de redução, Nessa perspectiva, Bagno (2007, p.61) diz que “se a língua é entendida como um sistema de sons e significados que se organizam sintaticamente para permitir a interação humana, toda e qualquer manifestação linguística cumpre essa função plenamente”. A variável sexo não foi considerada relevante para a redução do ditongo /ow/, donde inferimos que as relações sociais de gênero na comunidade alvo da presente pesquisa não se manifestam na aplicação dessa regra linguística: mulheres e homens monotongam o ditongo de forma praticamente equivalente. Percebemos também que o grau de escolaridade, não teve muita influência nas respostas sobre a ocorrência do fenômeno em estudo. Já que em todas as respostas encontramos a presença da redução do ditongo ou em o. O que demonstra que no dialeto das 18 pessoas entrevistadas, na sua oralidade, não existe mais o ditongo ou, mas, sim a vogal o. Conforme dito anteriormente, o ditongo [ou] se diferencia dos outros tipos, uma vez que, em todos os casos, eles são passíveis de redução.
  • 163. Argumentação e Linguagem Capítulo 11 154 5.2 5.2 Redução do ditongo “ei” em “e” Seguindo a análise dos ditongos, daremos continuidade com a redução do ditongo “ei” em “e”. De acordo com as pesquisas feitas no povoado Onça, o corpus mostra de fato que a realização do fenômeno “ei” em “e” não foi muito diferente do primeiro grupo analisado, ou seja, redução do ditongo “ou” em “o”. Na presente análise foram trabalhadas as seguintes palavras com os entrevistados: peixe, feijão, dinheiro e beijo. No decorrer das análises, foram observados claramente a redução do ditongo “ei” em “e”, como por exemplo: Dinheiro [dʒɲ’eɾu] Peixe [p’eʃi] Feijão [f’eʒãu] Beijo [b’eʒu] Diante da transcrição fonética acima, observamos que 100% dos indivíduos entrevistados e isto inclui os dois grupos de faixas etárias de 18 a 30 anos e 60 a 65 anos, também realizaram a redução do ditongo “ei” em “e” de forma natural. Percebe- se que essa redução decorre desde a fase de desenvolvimento da fala deste indivíduo até a fase adulta, e isto inclui a família e os grupos sociais que o mesmo está inserido. Dentro deste contexto fricativo palatal é um fator linguístico que influencia a regra variável de monotongação do “ei”. Marcos Bagno (2007) afirma que essa redução desses ditongos está tão disseminada que já se configura como parte do vernáculo mais geral dos brasileiros. A citação de Marcos Bagno nos leva a compreender como a variação linguística em torno nosso país e fora dele é uma realidade vigente em todas as regiões. Tornou-se tão comum e quase que imperceptível essa redução de ditongo na fala dos brasileiros que muitas das vezes em uma conversa informal usam-se quase que cem por cento dessas reduções no enredo da conversa. Existe uma preocupação maior dentro do meio acadêmico e formal em calcular as palavras corretas para que assim não se acabe caindo dentro dessas reduções. Agora partindo do pressuposto da análise corpora das palavras trabalhadas com os grupos entrevistados percebemos que a fonética segue um padrão de melhor articulação, para que a palavra saia mais leve. De acordo com Thaís Cristófaro Silva (2009), o articulador ativo é o lábio inferior e como o articulador passivo temos os dentes incisivos superiores. Essa citação faz com que possamos analisar as palavras “peixe e feijão” como labiodental, uma das palavras usadas para entrevistar os grupos citados. Já nas palavras “dinheiro” e “beijo” de acordo com a autora acima citada podemos dizer que são classificadas como alveolopalatal onde o articulador ativo é a parte anterior da língua e o articulador passivo é a parte medial do palato duro. Constatou-se, que em se tratando do ditongo EI observamos uma pequena diferença, no caso da redução do ditongo ou em o, o que é escrito o é pronunciado o em todas as situações e contextos. De acordo com Bagno (2007), o que se escreve EI,
  • 164. Argumentação e Linguagem Capítulo 11 155 só se transforma em E, com o som fechado quando este (i) vim antes das consoantes J, X e R. Assim a assimilação fará com o que os sons se tornem um só. O que aconteceu com as palavras Dinheiro [dʒɲ’eɾu] Peixe [p’eʃi] , Feijão [f’eʒãu] e Beijo [b’eʒu], as quais em todas as pronúncias foi perceptível o apagamento da semivogal ( i). Em se tratando ainda do ditongo EI, a assimilação aproveita o caráter palatal da semivogal I e das consoantes J e X para encaixá-las em um único som. Desse modo, o que acontece não é precisamente a redução do ditongo EI em E, mas a redução de –IJ- e IX- em –j- e –X-. Com a palavra Dinheiro [dʒɲ’eɾu] em que acontece é que como o EI precede a consoante R, que é produzido na parte da boca em que se encontra o palato mole, por ficar entre os alvéolos e os dentes, na parte mais avançada do céu da boca e por terem este ponto de articulação comum é que os sons da semivogal I e da consoante R sofrem os efeitos da assimilação, fazendo com que os sons se tornem um só. CONCLUSÃO A conclusão a que chegamos após a análise dos corpora, é que a língua sofre variação de um lugar para outro. E que os ditongos decrescentes variáveis ou e ei são suscetíveis ao apagamento das semivogais u e i. De acordo com Marcos Bagno (2007, p. 214) a não redução do ditongo só acontece quando a fala é monitorada ou quando está lendo um texto em voz alta e se deixa levar pela grafia. A distribuição da monotongação dos ditongos, evidencia a riqueza de diversidade do nosso vocábulo brasileiro. A intenção primordial do nosso trabalho foi identificar o fenômeno de monotongação dos ditongos “OU” em “O” e “EI” em “E” na fala dos moradores da Onça, município de Santa Inês no Maranhão, bem como vimos, tal fenômeno se faz presente no dialeto dos entrevistados. E pela nossa observação, sobretudo na fala dos que possuem menos grau de instrução, uma das características latentes para que o fenômeno em estudo se concretize, obtivemos 100% de realização do fenômeno de monotongação dos ditongos OU em O e EI em E na pronúncia das palavras “doutor”, “touro”, “pouco”, “outubro”, “feijão”, “beijo”, ”peixe” e “dinheiro” utilizadas para coleta de análise dos dados. A partir desse estudo, foi possível ainda, verificar o quanto a língua se evolui, enquanto a escrita segue lentamente, o que não é ruim, posto que a mesma é de suma importância para que entendamos melhor os variados tipos textuais e documentos antigos fruto da história. O desenvolvimento da língua, no entanto, retrata muitas vezes a pressa de nosso cotidiano, que faz com que economizemos até nas letras nos falares sociais do dia-a-dia. Mas, a mesma como pudemos verificar, não é um fator prejudicial na comunicação entre falantes da nossa língua, nem no local onde fora feito o trabalho em pauta. Não encontramos ruídos no diálogo dos residentes do campo do
  • 165. Argumentação e Linguagem Capítulo 11 156 nosso estudo. Finalizamos, assim, a pesquisa, sobre essa complexa teoria que é a variação sociolinguística, e as variedades do português brasileiro, os quais, fornece grandemente uma riqueza de informações da língua e das peculiaridades do dialeto social não somente no Maranhão mais em toda extensão dos falares no Brasil. Os mesmos prestam uma enorme ajuda a pesquisadores da área da linguagem, bem como a conhecerem o real quadro linguístico do nosso país, fornecendo ampla noção das variedades linguísticas, tentando dessa forma minimizar ou exterminar de vez o preconceito linguístico, que faz com que tantas pessoas sejam discriminadas pelo seu modo de falar. REFERÊNCIAS BAGNO, Marcos. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação linguística. São Paulo: São Paulo: Parábola Editorial, 2007. BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyla, 2007. BAGNO, Marcos. A língua de Eulália – novela sociolínguista. São Paulo: Contexto, 2012. CÂMARA JR, J. Mattoso. Dicionário de Linguística e Gramática: Referente à Língua Portuguesa. 8 ed. Petrópolis: Vozes, 1978. CRISTÓFARO SILVA, Thais. Fonética e Fonologia do Português: roteiro de estudos e guia de exercícios. São Paulo: Contexto, 2002. LABOV, William. Padrões Sociolinguísticos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. MARCUSCHI, Luiz Antônio (2007). Da Fala para a Escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez MOLLICA, Maria Cecília. Introdução à Sociolinguística: O tratamento da Variação. São Paulo: Contexto, 2003. TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolínguista. 8ª ed. São Paulo: Ática, 1994.
  • 166. Capítulo 12 157Argumentação e Linguagem PLE + ELO: UMA EXPERIÊNCIA VIRTUAL NO ENSINO DE PORTUGUÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA NA UFLA CAPÍTULO 12 Débora Racy Soares Departamento de Estudos da Linguagem, Universidade Federal de Lavras Lavras, Minas Gerais RESUMO: A oferta de cursos de Português como Língua Estrangeira (PLE), parcialmente a distância, é uma das recomendações do Ministério da Educação (MEC) para o estabelecimento do programa Português sem Fronteiras nas Instituições de Ensino Superior brasileiras. Nesse contexto, relata- se uma proposta pedagógica, realizada na Universidade Federal de Lavras (UFLA), que utiliza o ELO (Ensino de Línguas Online) como suporte pedagógico. PALAVRAS-CHAVE: PLE; ELO; UFLA. PFL + ELO: A VIRTUAL EXPERIENCE IN THE TEACHING OF PORTUGUESE AS A FOREIGN LANGUAGE AT UFLA ABSTRACT: The offer of Portuguese as a Foreign Language courses (PFL), partially at a distance, is one of the recommendations of the MinistryofEducation(MEC)fortheestablishment of the Portuguese without Borders program in the Brazilian Higher Education Institutions. In this context, we report a pedagogical proposal, carried out at Federal University of Lavras (UFLA), which uses ELO (Online Language Teaching) as pedagogical support. KEYWORDS: PFL; ELO, UFLA. Emdezessetedenovembrode2014,oMEC (Ministério da Educação) inaugurou o programa Idiomas sem Fronteiras (IsF), com o objetivo de potencializar o processo de internacionalização das universidades brasileiras, através do ensino de vários idiomas, entre eles o Portuguê como Língua Estrangeira (PLE). Vinculado ao Programa Ciências sem Fronteiras, o IsF, além de consolidar o existente Inglês sem Fronteiras, tem como objetivo ampliar o leque de idiomas disponíveis para aprendizagem. O Português como Língua Estrangeira, doravante PLE, é um dos idiomas contemplados pelo IsF. Entre as diversas iniciativas, propostas pelo MEC dentro do âmbito do IsF, está o lançamento de algumas diretrizes para os idiomas recém-contemplados: Francês, Espanhol, Italiano, Japonês, Português como Língua Estrangeira. Uma das diretrizes diz respeito à introdução, paulatina, do ensino híbrido (blended learning), com foco na aprendizagem de idiomas, através da utilização de atividades a distância e presenciais. Nesta linha, o MEC recomenda, inicialmente, a adoção das Novas Tecnologias de Informação
  • 167. Argumentação e Linguagem Capítulo 12 158 e Comunicação (NTICs) como suporte pedagógico às aulas presenciais de idiomas. Foi importante ter em mente estas recomendações quando da implementação e consolidação dos cursos de idiomas, em geral, e de PLE, especificamente. As disciplinas de PLE da Universidade Federal de Lavras (UFLA) foram criadas no segundo semestre de 2014 já atendendo, desde seu planejamento, as diretrizes propostas pelo MEC para a área. Assim sendo, por ora refletir-se-á sobre a adoção do ELO, entre tantas NTICs disponíveis, como suporte pedagógico virtual eficiente para verificar e também consolidar a aprendizagem de PLE. O ELO - Ensino de Línguas Online - (http://www.elo.pro.br/) é uma plataforma de autoria, especialmente desenvolvida para possibilitar a criação de vários tipos de atividades didáticas, voltadas para o ensino de idiomas. Entre seus recursos destacam- se feedbacks progressivos para cada resposta do aluno, correta ou incorreta. Este software gratuito, disponível na internet, é relativamente fácil de utilizar, além de conter “boias” explicativas, em caso de dúvidas. O ELO foi utilizado como complementação das aulas presenciais de PLE nível 1 (básico/inicial) e observou-se que a aquisição da língua estrangeira foi potencializada através de atividades como jogos de memória, reconstrução textual, complete as lacunas, entre outras. Através de atividades, criadas especialmente para os discentes do nível básico, falantes de espanhol como língua materna, foi verificada a melhor compreensão de alguns tópicos como falsos cognatos, cores, gêneros e plurais dos substantivos em português brasileiro. Os links para as atividades preparadas no ELO foram disponibilizados no AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem) da disciplina PLE 1. Enfatiza-se que a carga horária desta disciplina de pós-graduação é 60 horas (04 créditos). De acordo com o regulamento da Pró-Reitoria de Pós-Graduação (PRPG) da UFLA, 20% da carga horária da disciplina, ou seja, até 12 horas de atividades podem ser realizadas virtualmente. Portanto, o ELO foi utilizado como proposta pedagógica-piloto, a fim de verificar seu impacto no rendimento dos alunos falantes de espanhol como língua materna em fase inicial de aprendizagem de PLE. Ao longo de um semestre, várias atividades foram elaboradas pela docente e realizadas pela turma, composta por 15 alunos estrangeiros. O ELO apresenta nove possibilidades de atividades ou módulos, a saber: Hipertexto, Vídeo, Eclipse, Cloze, Sequência, Memória, Quiz, Organizador e Composer. Para elaborar as atividades, o docente deve acessar o sistema com seu login de professor. Para vê-las, no entanto, pode também acessar o sistema com o perfil de aluno. A plataforma permite a inserção de imagens, áudios e vídeos, além de fornecer feedbacks personalizados. Ademais, é possível elaborar várias atividades, dentre as nove possibilidades disponíveis e, opcionalmente, escolher gamificá-las. É imprescindível, ao criar cada atividade, escolher título e palavras-chave que a identifiquem, sinalizar o idioma da atividade, seu grau de dificuldade (fácil, médio, difícil), assim como a faixa etária contemplada (crianças, jovens, adultos, todas).
  • 168. Argumentação e Linguagem Capítulo 12 159 Nesse momento, é permitido escolher entre clonar uma atividade já pronta ou criar outra atividade. Através do módulo Hipertexto é possível elaborar páginas de hipertexto para as atividades, inclusive Webquests. Imagens, textos e vídeos podem ser inseridos nesta atividade. Na atividade Vídeo, que pode funcionar como módulo inicial ou de apresentação, é possível introduzir vídeos profissionais ou caseiros. Embora não seja possível integrar texto e imagens em uma mesma página, a vantagem é a facilidade de inserção de vídeos no sistema. O módulo Eclipse permite a criação de atividades de reconstrução textual. À medida que o aluno tenta descobrir as palavras eclipsadas, o texto vai surgindo. O professor pode ainda inserir dicas, durante a criação da atividade, com o intuito de facilitar o trabalho do aluno. Ao mesmo tempo, a não inserção de dicas pode tornar a atividade mais difícil. Assim, é possível clonar a atividade já elaborada, sem as dicas, por exemplo, e utilizá-la em turmas mais avançadas de PLE. Esta atividade é ideal para se trabalhar com letras de música (ditado musical), diálogos, definições, traduções, resumos, listas, caça-palavras, jogo das diferenças. Cloze é uma atividade ancorada na criação de lacunas. O aluno deve inferir as palavras ocultas, digitando as palavras ausentes e pressionando Enter. É possível trabalhar definições, questões gramaticais (verbos no tempo adequado, preposições, prefixos, sufixos, palavras homófonas), descrição de pessoas e cenários, diálogos, palavras-chave de um texto. O módulo Sequência explora as conexões do texto e é oportuna, por exemplo, para reconstruir um texto na sequência adequada. O docente pode embaralhar um texto e pedir para o aluno ordená-lo. Um pequeno trecho de vídeo, uma música, a declamação de um poema, podem ser anexados à atividade, propondo que o aluno ordene frases lidas e/ou ouvidas. A reordenação dos segmentos do texto, na ordem correta, pode ser solicitada em atividades que envolvam instruções (como sacar dinheiro do caixa eletrônico, comprar uma pizza pelo telefone, trocar a lâmpada, consertar o chuveiro). Linhas de tempo, com eventos históricos, também podem ser criadas nesta atividade (história do automóvel, do Brasil, da imigração no país). Memória, módulo baseado no tradicional jogo homônimo, possibilita que o aluno utilize sua memória e também jogue com a sorte para encontrar os pares corretos. É possível combinar textos, imagens e sons, dentro de alguns limites estabelecidos pelo software, como o tamanho das cartas a serem embaralhadas, automaticamente, pelo sistema. Atividades que associam figura e texto, som e texto e animação e texto podem ser elaboradas. No primeiro caso, o aluno deve associar figuras e palavras, dentro de um determinado campo semântico (frutas, animais, letras, cores). No segundo, pares mínimos podem ser trabalhados (caça-casa, para falantes de espanhol). Já a junção da animação e do texto permite trabalhar verbos de ação. O Quiz possibilita a criação de perguntas de múltipla escolha, com várias opções
  • 169. Argumentação e Linguagem Capítulo 12 160 de feedback, seja para cada resposta certa ou errada atribuída ou para o exercício como um todo. Assim, o feedback pode ser dado no final da atividade ou ao longo dela, a depender do nível de proficiência dos alunos. Compreensão de textos é uma atividade interessante para ser trabalhada neste módulo. É possível também inserir gráficos, mapas, dados em uma tabela, planilhas com números e outros tipos de figuras (tirinhas, objetos, aparência das pessoas, cores, tamanhos, relógios). A partir das imagens, é possível elaborar perguntas de múltipla escolha que podem ser de identificação (Quem? Onde? Como? Por quê? O quê?), em níveis iniciais. No módulo Organizador, o aluno deve relacionar as partes (hipônimos) com o todo (hiperônimo). O desafio proporcionado por esta atividade é a categorização de itens (animais, partes do vestuário, ferramentas, esportes, meios de transporte). Composer permite a prática livre da escrita, através de composições. É possível, através deste módulo, produzir e armazenar webpages no site do ELO. Uma das maiores vantagens do ELO é que, ao mesmo tempo em que torna o aprendizado lúdico para os alunos, mobiliza a criatividade do professor, elaborador das atividades. Várias possibilidades pedagógicas podem ser criadas e até clonadas. Como as atividades ficam disponibilizadas na plataforma, é possível clonar atividades já existentes. A seguir, alguns exemplos das atividades criadas para a turma de PLE 1 ilustram este relato. Figura 1 – Página inicial do ELO – Acesso como professor Fonte: http://www.elo.pro.br/ Depois de se cadastrar e acessar o sistema como professor é possível começar a criar e editar as atividades, criar ou editar um curso e visualizar um relatório com o
  • 170. Argumentação e Linguagem Capítulo 12 161 acesso dos alunos. O ELO pode ser integrado ao Moodle, embora não seja necessário. Com as turmas de PLE 1, optou-se pela inserção do link das atividades do ELO dentro da plataforma Moodle do AVA da disciplina. Figura 2 – Exemplo de atividades criadas no ELO Fonte: http://www.elo.pro.br/cloud/professor/minhas-atividades.php Na figura acima é possível visualizar as atividades criadas no ELO, através de seus títulos e tipos (Cloze, Eclipse, etc.). É permitido também que o professor busque uma determinada atividade através de palavras-chave. Figura 3 – Atividade Jogo da Memória – Frutas e Profissões Fonte: http://www.elo.pro.br/cloud/professor/minhas-atividades.php
  • 171. Argumentação e Linguagem Capítulo 12 162 A Figura 3 exemplifica a atividade Memória, criada a partir do universo semântico das frutas e das profissões. No jogo das frutas, os alunos devem associar a pronúncia de determinadas frutas e suas imagens. Já nas profissões, devem buscar correspondências entre escrita (repórter, mecânico) e imagem. Figura 4 – Atividade Composer – Gostos e Preferências Fonte: http://www.elo.pro.br/cloud/professor/minhas-atividades.php Na atividade Composer, os alunos foram convidados a escrever um pequeno texto, a título de apresentação, sobre seus gostos e preferências, inserindo imagens ilustrativas. Figura 5 – Atividades Quiz e Eclipse Fonte: http://www.elo.pro.br/cloud/professor/minhas-atividades.php A associação de atividades ou módulos, como ilustrado pela Figura 5, também é possível. Assim, os alunos devem responder algumas perguntas de múltipla escolha sobre o jingle “Pipoca com Guaraná”, sucesso no Brasil na década de 1990, e ainda
  • 172. Argumentação e Linguagem Capítulo 12 163 reconstruir a letra da música (Eclipse). Figura 6 – Feedback personalizado Fonte: http://www.elo.pro.br/cloud/professor/minhas-atividades.php Como visualizado na Figura 6, é possível criar feedbacks personalizados para cada atividade desenvolvida. Imagens, áudios e pequenos vídeos são aceitos como feedback, além de mensagens textuais. Autilização do ELO nas aulas de PLE 1 certamente potencializou a aprendizagem da língua, além de atender as diretrizes do MEC para a área, através da inserção de Novas Tecnologias de Informação e Comunicação em sala de aula, presencial e virtual. Atividades lúdicas e interativas facilitaram o processo de ensino/aprendizagem e reverberaram na motivação dos alunos, que ganharam mais confiança para se expressarem oralmente ou por escrito. Assim, como sugere o título desta proposta pedagógica, PLE e ELO formam uma combinação que tem tudo para dar certo. REFERÊNCIAS IDIOMAS SEM FRONTEIRAS. Portaria nº 973, de 14 de novembro de 2014. Portal MEC. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=16618-por973- idioma-sem&category_slug=novembro-2014-pdf&Itemid=30192>.Acesso em: 19 mai. 2016. LEFFA, V. J. Quando menos é mais: a autonomia na aprendizagem de línguas. In: Christine Nicolaides; Isabella Mozzillo; Lia Pachalski; Maristela Machado; Vera Fernandes. (Org.). O desenvolvimento da autonomia no ambiente de aprendizagem de línguas estrangeiras. Pelotas: UFPEL, 2003, p. 33-49. _______. O ensino de línguas estrangeiras nas comunidades virtuais. In: IV SEMINÁRIO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS, 2001, Goiânia. Anais do IV Seminário de Línguas Estrangeiras. Goiânia: UFG, 2002. V. 1, p. 95-108.
  • 173. Capítulo 13 164Argumentação e Linguagem MOBILED-ASSISTED LANGUAGE LEARNING: QUESTÕES ACERCA DO USO DE SMARTPHONES EM SALA DE AULA DE LÍNGUA INGLESA CAPÍTULO 13 Luana de França Perondi Khatchadourian Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) São Paulo - SP O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. RESUMO: Pesquisadores e educadores reconhecem o potencial das tecnologias móveis como uma ferramenta de aprendizagem para os alunos e buscam incoroporá-los em algumas práticas de ensino. No entanto, pouca pesquisa tem sido realizada para categorizar os numerosos exemplos de aprendizagem móvel no contexto da sala de aula de língua inglesa. O uso de aparelhos móveis é constante e se torna cada vez mais essencial nos dias de hoje.Apartir deste cenário de uso constante de smartphones em sala de aula pelos alunos, realizo um levantamento bibliográfico sobre aprendizagem móvel de línguas assistida por dispositivos móveis e teço alguns comentários sobre a pesquisa de doutorado por mim realizada. PALAVRAS-CHAVE: Mobile-Assisted Language Learning; Ensino-Aprendizagem; Língua Inglesa. MOBILED-ASSISTED LANGUAGE LEARNING: ISSUES ABOUT THE USE OF SMARTPHONES IN AN ENGLISH CLASS ABSTRACT: Researchers and educators recognize the potential of mobile technologies as a learning tool for students and seek to incorporate them into some teaching practices. However, little research has been done to categorize the numerous examples of mobile learning in the context of the English-speaking class. The use of mobile devices is constant and becomes more and more essential these days. As a teacher, I face its use in the classroom, spontaneously and as a mean of communication and internet acess for consulting things. From this scenario of constant use of smartphone devices in the classroom by the students, I carry out a bibliographical survey mobile assisted language learning, and I comment some data that is on my doctoral thesis. KEYWORDS: Mobile-Assisted Language Learning; Actor-Network Theory; Teaching- Learning; English language. 1 | INTRODUÇÃO Pensar sobre a permanência e o papel desempenhado pelo smartphone na sala de aula é uma maneira de tentar aproximar as
  • 174. Argumentação e Linguagem Capítulo 13 165 práticas de aprender institucionalizadas e estabilizadas da escola com as formas de aprendizagem informal e baseada em circulação-cooperação-colaboração engendradas pela cultura digital. A experiência de ensino-aprendizagem em sala de aula nas escolas públicas é hoje – ou deve ser – bastante diversa daquela com que nos acostumamos ao longo da nossa experiência discente. No que tange ao ensino de língua inglesa, ela muda significativamente por conta das várias influências culturais e tecnológicas com as quais hoje os alunos têm muito mais contato do que, há algum tempo, conseguiam manter. Assim, a prática de ensino de inglês na escola pode ser descrita como estabilizada no que se refere ao uso de tecnologias mais antigas como a lousa, a carteira, o livro didático, ou mesmo o vídeo e o aparelho de áudio, mas o smartphone, ao contrário, a desestabiliza, pois ainda não se encontrou uma maneira de vinculá-lo sem mudar as relações entre os outros atores, inclusive professor e aluno. Ainda que se possa argumentar que o custo de aquisição de um smartphone é alto com relação às necessidades de subsistência, os smartphones são elementos novos nessa rede de atores (LATOUR, 2005) que constitui as práticas em sala de aula: mais do que mero uso para entretenimento, os smartphones passam a compor e a agir no processo de ensino-aprendizagem. Sua entrada nesse cenário traz necessariamente uma renegociação dos vínculos entre as entidades envolvidas. Em um estudo piloto, tive a oportunidade de observar algumas aulas de uma professora de inglês no ensino médio de uma escola estadual da periferia na cidade de São Paulo e observei que os alunos usam smartphone em aula para uma série de coisas que pouco ou nada têm a ver com ensino-aprendizagem de língua estrangeira. Ações como escutar música com fones de ouvido, tirar foto da lousa em vez de copiar, conversas por meio de redes sociais, jogos online, afastamento espacial do centro da aula (sempre nos cantos e nos fundos da sala) demonstram como este artefato afeta toda a rede. Durante a observação das aulas, identifiquei o estabelecimento de um padrão das aulas de inglês na escola: ao chegar, a professora faz a chamada por números, e não por nomes, passa a atividade na lousa, voltada a questões de cunho gramatical e cujas propostas são eminentemente para a realização passiva – cujo conteúdo é disponível em livros didáticos propostos pelo PNLD (Plano Nacional do Livro Didático) e aos quais a professora tem acesso − copia do livro, pede para que os alunos copiem o conteúdo passado na lousa, atribui a eles ponto pela atividade copiada e anota tudo no diário de classe. Ao fim e ao cabo, os alunos que se dignam a prestar atenção fazem-no por obrigação, e para isso muitas vezes sequer chegam a desligar seus aparelhos. A tradição teórica estabelece que a aprendizagem é um empreendimento social situado, facilitado e desenvolvido por meio de interações sociais e conversas entre pessoas (VYGOTSKY, 1978), e mediada através do uso de ferramentas (WERTSCH,
  • 175. Argumentação e Linguagem Capítulo 13 166 1991); porém, o smartphone não é um artefato comum, e, portanto, há necessidade de outros enfoques, outras teorias, sobretudo no que se refere à questão da mobilidade, que seja do ponto de vista da Mobile Assisted Language Learning. 2 | Mobile Assisted Language Learning - MALL Aprendizagem de línguas assistida por dispositivos móveis – (doravante MALL) descreve uma abordagem para a aprendizagem de línguas, assistida ou melhorada através do uso de um dispositivo móvel portátil. MALL tem sido definida como o uso de “tecnologias móveis na aprendizagem de línguas, especialmente em situações em que a portabilidade do dispositivo oferece vantagens específicas” (Kukulska-Hulme, 2013, p. 3701). Este modelo de aprendizagem inclui dispositivos como leitores de MP3 / MP4, smartphones e leitores de e-book através de computadores portáteis e tablets. M-Learning para a aprendizagem de línguas ou MALL é um campo relativamente novo dentro do CALL (Computer-Assisted Language Learning) e dos estudos sobre e-learning,e,comotal,aindahápoucaspesquisas​​disponíveis (VIBERGeGRÖNLUND, 2012). Segundo esses autores, as teorias e modelos de ensino-aprendizagem aplicados, na maioria das vezes, originam-se de grandes teorias da aprendizagem, incluindo o construtivismo, a teoria da atividade e a teoria sociocultural. Ressaltamos aqui uma das considerações fundamentais da teoria sociocultural: a mente humana é mediada (VIBERG e GRÖNLUND, 2012). Esta mediação é frequentemente assistida pelo uso de ferramentas. Daí o uso da tecnologia móvel desempenhar um papel determinante no processo de construção de significado, dada a natureza mediada da mente humana. Stockwell & Hubbard (2013) buscam um esforço para caracterizar MALL coerentemente, olhando a partir da perspectiva de um quadro que divide as questões relevantes em três domínios: físico, pedagógico e psicossocial. Segundo os autores, apesar de existirem pontos que são claramente relevantes para cada questão, estas categorias “não existem separadamente umas das outras, ao contrário, elas são necessariamente interligadas e sobrepostas” (STOCKWELL & HUBBARD. 2013, p. 3). Para os autores, a questão física recai sobre os dispositivos que são relativamente pequenos. Questões como a capacidade de armazenamento, velocidade do processador, vida da bateria e compatibilidade de dispositivos, além da transferência de grandes quantidades de dados podem gerar dúvidas sobre a eficácia da utilização dos aparelhos para o ensino-aprendizagem de línguas. Em relação às questões pedagógicas, os autores deixam claro que “um dos maiores desafios da aprendizagem móvel é garantir que as tarefas sejam adequadas às capacidades dos dispositivos usados” (STOCKWELL & HUBBARD 2013, p. 5,). A possibilidade de inúmeras de aplicações pessoais e sociais implica que os alunos possam não perceber seus dispositivos móveis como veículos apropriados para a
  • 176. Argumentação e Linguagem Capítulo 13 167 aprendizagem. Importante frisar aqui que os autores não levam em conta a questão da espacialidade e nem da agência, tudo se passa como se o aparelho celular fosse, mais uma vez, um artefato relativamente inerte. Os autores citam pesquisas bem sucedidas sobre MALL, especificamente com o uso do aparelho celular. Gromik (2012), pesquisou alunos japoneses utilizando a função de gravação de vídeo de seus telefones celulares para produzir pequenas conversas em inglês. A pesquisa descobriu que os alunos foram capazes de fazer vídeos cada vez mais longos com o passar do tempo. Em outro estudo, Sandberg et al. (2011) realizaram pesquisas com estudantes holandeses do quinto ano com aparelhos celulares, a fim de ajudá-los a aprender o vocabulário da língua inglesa. Três grupos participaram desse estudo. O primeiro grupo teve aulas em inglês sobre animais do zoológico e suas características em sala de aula. O segundo grupo teve aulas em sala de aula e trabalhou com um aplicativo no aparelho celular em um zoológico público. O terceiro grupo recebeu a mesma orientação que o segundo, mas, como extensão, era autorizado a utilizar o aplicativo em casa. Um teste antes e depois da atividade foi realizado e demonstrou que o grupo que utilizou o aplicativo em casa aprendeu mais palavras do vocabulário proposto. Os resultados indicam que os alunos estão mais motivados para usar o aplicativo em seu tempo livre – ou seja, fora da sala de aula - e isso beneficia seu aprendizado. A conclusão dos autores é que a aprendizagem formal na escola pode ser melhorada ou aumentada pela aprendizagem em um contexto informal, isto é, fora da sala de aula. (SANDBERG et al., 2011 p. 1344). Este estudo demonstra que além da relação espaço/ambiente (sala de aula, zoológico, casa) um fator importante é que o aluno parece ver mais sentido no uso do smartphone fora da escola. Ainda na busca de desenhar alguns princípios emergentes sobre MALL, Stockwell & Hubbard (2013) acreditam que uma característica importante do MALL é a possibilidade de troca de experiências com suas disciplinas correlatas. Dito de outra forma, MALL tem muito em comum com CALL e m-learning (ML) e, portanto, pode ser melhor compreendido como pertencente a ambas as disciplinas, em vez de ser separado delas. Para exemplificar melhor esta proposta, os autores sugerem a figura abaixo
  • 177. Argumentação e Linguagem Capítulo 13 168 Figura 2: Relação entre Computer-Assisted Language Learning (CALL), Mobile-Assisted Language Learning (MALL) e Mobile Learning (ML). A àrea sombreada representa a sobreposição (Stockwell & Hubbard. 2013, p. 5) Partindo desta discussão, os autores também sugerem dez princípios para MALL, que foram exemplificados por meio de um estudo com alunos pré-intermediários de inglês como segunda língua de uma universidade particular japonesa no início de 2013. Estes dez princípios são segundo Stockwell & Hubbard (2013, p.8-10): • Princípio 1. As atividades móveis devem ser pensadas em: 1) as affordan- ces e limitações do dispositivo móvel e 2) as affordances e limitações do ambiente em que o dispositivo será usado. • Princípio 2. Limitação das tarefas para possíveis distrações, uma vez que dispositivos móveis são susceptíveis de ser uma distração. • Princípio 3. O mecanismo de pressão tem o potencial de levar os alunos para a ação, mas, ao mesmo tempo, os alunos têm ideias de quando e com que frequência eles gostariam de executá-las. Pressione, mas respeite os limites! • Princípio 4. Esforço para manutenção da equidade. Em uma sala de aula ou outro ambiente de aprendizagem, questões importantes a incluir são: a pos- se pelo aluno de um dispositivo móvel, a compatibilidade e funcionalidade do dispositivo móvel do aluno, a conectividade do dispositivo e a despesa para usar esse dispositivo. • Princípio 5. Tal como acontece com outros tipos de implementações de tec- nologia, importante a consideração acerca de uma série de estilos como a destreza para utilização de teclados menores e telas sensíveis ao toque. • Princípio 6. Ciência acerca de usos e culturas de uso para os dispositivos existentes para os estudantes de língua. Estudos têm mostrado que os alu- nos podem perceber seus dispositivos móveis como sendo para uso pes- soal e social, e não como ferramentas educacionais. • Princípio 7. Manutenção de curtas e sucintas atividades de aprendizagem de línguas. • Princípio 8. A tarefa da aprendizagem de línguas deve caber na tecnologia.
  • 178. Argumentação e Linguagem Capítulo 13 169 • Princípio 9. Orientação e formação para utilizar eficazmente os dispositivos móveis para a aprendizagem de línguas, embora o manuseio dos dispositi- vos possa ser intuitivo, usá-los para a aprendizagem de línguas não é. • Princípio 10. Na sala de aula de língua, a preparação adequada e o apoio motivacional para professores e estudantes são primordiais. Observando esses princípios de MALL, alguns pontos significantes convêm ressaltar. Ao optarmos olharmos para o uso do smartphone em sala de aula de línguas, consideramos a limitação das tarefas para evitar possíveis distrações - isto é, o aluno fazer uso do artefato como ferramenta que desvie a atenção do aprendizado – o que pode ser evidenciado nas imagens que teremos mais adiante – em que, em muitos momentos, os alunos fazem uso ou consideram fazer uso de seus smartphones como sendo para uso pessoal e social, e não como ferramentas educacionais. 3 | AS LACUNAS DE PESQUISA SOBRE MALL NO BRASIL Voltando nossos olhares para estudos de MALL, percebemos que as pesquisas sobre Mobile-Assisted Language Learning no Brasil são escassas. Após levantamento bibliográfico das palavras-chave no Google acadêmico e no banco de teses da Capes: mobile learning, mobile assisted language learning, hand device, cell phones, smartphones, mobile phone, language learning (tanto em inglês como em português), observamos que as publicações nacionais tiraram a aprendizagem da escola – levando-a para o ambiente de casa ou do trabalho - e não buscam trazê-la para dentro da sala de aula utilizando aparelhos móveis - mais especificamente o aparelho celular do tipo smartphone. Como primeiro exemplo temos Vaz (2010), que apesar de não estar na área de linguagem, mas na área de tecnologias da inteligência e design digital, apontou e analisou os impactos do uso do aparelho celular na vida em sociedade. Costa (2013), em sua tese de doutorado, investigou as potencialidades que emergiramdainteraçãodoalunocomocelularequepotencializaramodesenvolvimento das cinco habilidades linguísticas no ensino-aprendizagem de Língua Inglesa como língua estrangeira. A autora levantou a questão de quando usar o celular em sala de aula de Língua Inglesa. Após atividades com alunos do sétimo e oitavo anos do Ensino Fundamental, em uma escola pública municipal do estado do Rio de janeiro, a autora concluiu que o trabalho com aparelho celular ajudou a melhorar a aquisição de habilidades em uma língua estrangeira, ao colocar os alunos em um contexto real, tornando este processo mais atraente, motivador e criativo, de modo a proporcionar aos aprendizes a necessária flexibilidade produtiva para adquirirem conhecimentos e desenvolverem habilidades e competências, o que, segundo a autora, seria quase impossível de ocorrer em um ambiente de ensino tradicional.
  • 179. Argumentação e Linguagem Capítulo 13 170 Salatino (2014) compôs uma interpretação a respeito da forma como os jovens das classes populares constroem sua experiência escolar em um contexto cotidiano marcado por grande disseminação de aparelhos tecnológicos. O autor constatou que, nos espaços escolares, o aparelho celular aparece com múltiplos significados: socializam, principalmente, de forma paralela à escola, criam e promovem práticas de distração e diversão. Com os celulares, as dinâmicas escolares constituem um reforço de suas redes de sociabilidade, compostas tanto por laços fracos como fortes, presenciais e virtuais. Este estudo mais uma vez demonstra que os alunos usam o aparelho celular com o intuito de trazer pra dentro da escola as práticas, laços e espaços sociais de “fora”. Nagumo (2014) buscou compreender os motivos e desdobramentos do uso dos aparelhos celulares pelos estudantes na escola, identificar os dados demográficos dos estudantes que acessam seus aparelhos celulares na escola por meio do Twitter e levantar dados sobre motivações e consequências do uso dos aparelhos celulares dos estudantes na escola. Para Nagumo, o uso inteligente da tecnologia na escola pode propiciar um ambiente de aprendizado mais colaborativo e criativo aos alunos; portanto, mais atrativo. O autor chega a esta constatação ao observar que a escola participante da pesquisa negociava com alunos o uso responsável do aparelho celular no ambiente escolar. Uma lacuna nítida nos estudos de M-learning e MALL é que, enquanto os trabalhos focam como o aluno aprende em diversos momentos e espaços por meio de aparelhos móveis. Encontramos, então, um problema específico: como trazer o mundo para a sala de aula, via smartphone, e não apenas tirar o aluno da sala de aula utilizando o aparelho para aprender em outros lugares. Um dos caminhos a ser pensado é justamente confrontar o postulado de MALL/ m-learning como algo que tira o aluno do lugar fisicamente, mas que não o tira do lugar institucional ou interacional que tradicionalmente aluno e professor ocupam na sala de aula, assim também como não traz “outros lugares” para dentro da escola. Existe a necessidade de, antes de mais nada, assumir que o artefado quando efetivamente apropriado, transforma o contexto! 4 | POR UMA CONTRIBUIÇÃO AO MALL CENTRADO EM SALA DE AULA Existe a necessidade de uma abordagem do uso do smartphone – já que este desestabiliza, no sentido de Latour (2005), toda uma cadeia e rede de sentidos ao entrar em uma sala de aula - lugar onde esse ator cibernético não foi feito para ser usado. Por exemplo, nesta escola de periferia que sediou minha pesquisa de doutorado, o uso do smartphone é permitido. Em minhas observações participantes, registrei alguns dos usos que os alunos fazem de seus smartphones, mostrados nas Figuras
  • 180. Argumentação e Linguagem Capítulo 13 171 1, 2, 3 e 4. Figura 1 - Usando Whatsapp na aula de Inglês Cadernos fechados, smartphones ligados em conversa do Whatsapp. Figura 2 - aluno jogando offline no aparelho de smartphone Figura 3 – Alunos ouvindo músicas e compartilhando vídeos
  • 181. Argumentação e Linguagem Capítulo 13 172 Em grupos ouvem e compartilham músicas. Figura 4 – Alunos usando o aparelho celular como espelho Observei que a professora de inglês que participou da pesquisa, quando tenta usar o smartphone para fins pedagógicos - que é o que a lei permite - não sabe como fazer. O alunos narram que na maior parte do tempo é mais fácil tirar fotos da lousa com a lição que os professores passam. Aqui uma outra dimensão da pesquisa que não pode ser desconsiderada, a presença/atuação do professor e do aluno, o que significa que esbarramos em dois pontos, por um lado, a formação de professor no cenário das tecnologias digitais; uma vez que o smartphone por si só não realizará as ações se não estiver em “mãos” que saibam, possam, queiram dispor desse aparato, reconhecendo-o como um ator que veio e não será tirado. Por outro lado, a conscientização para a aprendizagem no cenário dinâmico das plataformas digitais; uma vez que os jovens da geração Z ou geração da internet (TAPSCOTT, 2010) (entre 17 e 22 anos nos dias de hoje – faixa etária do público que foi pesquisado) ao mesmo tempo em que desejam a liberação do aparelho o tempo inteiro, e entendem-se mais inteligentes por terem acesso à informação a qualquer momento e também esperam por práticas tradicionais em sala de aula, como lousa com lição e textos. A geração Z nunca concebeu o planeta sem computadores, chats, smartphones. Sua maneira de pensar foi influenciada, desde o berço, pelo mundo complexo e veloz que a tecnologia criou, e seu conceito de mundo é desapegado das fronteiras geográficas. Para Tapscott (2010, p. 16): (...) esses jovens emancipados estão começando a transformar todas as instituições da vida moderna. Desde o local de trabalho até o mercado, desde a política, passando pela educação, até a unidade básica de qualquer sociedade – a família -, eles estão substituindo uma cultura de controle por uma cultura de capacitação. Vale ressaltar neste momento que MALL pressupõe que aprendizagem é mais
  • 182. Argumentação e Linguagem Capítulo 13 173 do que conteúdo, é um conjunto de “experiências” e, logo, proporciona condições de pensar como o uso do smartphone pode afetar ou trazer experiências na sala de aula, em vez de ser usado apenas como uma forma de acesso ao repositório de conteúdos ou uma forma de registro ou gravação de conteúdos, como demonstrados durante algumas aulas em que os alunos fotografam a lousa com seu conteúdo apenas para copiar depois no caderno, num ciclo que vira apenas cópia de cópia. 5 | TECENDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Contamos, atualmente, com um modelo de educação muito viciado e, em muitos aspectos, ultrapassado, porquanto não condiz com a realidade de seus espaços e contextos e muito menos com a necessidade de seus sujeitos. Por isso, devemos hoje repensar o formato do ensino em sala de aula e o que objetivamos com as novas formas e processos de ensino-aprendizagem, conforme nosso contexto de práticas sociais. Repensar o modo de lecionar, reformular a pedagogia, propor outra disposição arquitetônica, outra maneira de lidar com o tempo, outra maneira de estruturar a relação entre as disciplinas, de agrupamento de sujeitos em torno de questões e afinidades são necessidades ímpares que se fazem cada vez mais prementes diante dos desafios e da urgente necessidade de mudança e de melhoria que devemos oferecer à sociedade (WARSCHAUER, 2008). Grandes questões decorrem da reflexão apresentada no presente artigo. Dentre elas, a primeira é pensar em como relacionar estes dois mundos e universos da cultura digital. Em seguida, é necessário pensar em uma maneira de abranger a quantidade de esferas que aqui estão envolvidas devido à quantidade de gêneros e linguagens, quando ainda não existem “receitas” e padrões que sirvam para classificar este novo modo de produção, compartilhamento e experiência de conteúdo e linguagem na sociedade diversificada na qual vivemos. Finalmente, é preciso questionar como um sujeito, protagonista da sua vida social, deve ser educado e questionado para que possa refletir e entender que, ao transformar a realidade, ele transforma, com outros de seu grupo, os textos. É preciso, por fim, entender como o profissional docente pode redesenhar o processo de produção de ensino-aprendizagem e de transformação da linguagem na construção do conhecimento, de forma a envolvê-lono design dos materiais que auxiliem na sua construção de conhecimento, no seu compartilhamento e na efetiva participação social, almejando por fim o crescimento crítico, consciente e ativo de um sujeito transformador da sociedade da qual participa. O objetivo é, sempre, extrair de tais ações experiências inovadoras que possam ser multiplicadas. Fato é que o cotidiano é profundamente desafiador e que o desafio coloca-se não como um obstáculo, mas como uma exigência de respostas que nós
  • 183. Argumentação e Linguagem Capítulo 13 174 professores, como formadores de cidadãos, devemos repensar, recriar e reconstruir em nossas práticas em sala de aula. Nessa formação é que, finalmente, envidam os esforços do docente para que, como recompensa, veja o sujeito aplicar esta formação adequadamente em situações reais do cotidiano e do próprio trabalho, proporcionando a oportunidade construir um pensamento crítico, capaz de solucionar problemas e de tomar decisões de forma responsável e sempre ética. REFERÊNCIAS COSTA, Giselda dos Santos Mobile learning: explorando potencialidades com o uso do celular no ensino - aprendizagem de língua inglesa como língua estrangeira com alunos da escola pública. Tese de doutorado. 2013 GROMIK, Nicolas A. Cell Phone Video Recording Feature as a Language Learning Tool: A Case Study. Computers & Education, v58 n1 p223-230 Jan 2012. KUKULSKA-HULME, A. Re-skilling language learners for a mobile world. Monterey, CA: The International Research Foundation for English Language Education. 2013. Retrieved from http://www. tirfonline.org/english-in-the-workforce/mobile-assisted-language-learning/ LATOUR, Bruno. Reassembling the social: An introduction to actor-network theory. Oxford: Oxford University Press. 2005. NAGUMO, Estevan. O uso do aparelho celular dos estudantes na escola. Dissertação de Mestrado. Brasília. 2014 SALATINO, André. T. Entre laços e redes de sociabilidade. Sobre jovens, celulares e escola contemporânea. Dissertação de Mestrado. São Paulo. 2014 SANDBERG et al., Mobile English learning: An evidence-based study with fifth grades in Computers and Education vo. 57 nº 1 pp. 1334-1347. 2011. DOI: 10.1016/j.compedu.2011.01.015 STOCKWELL, G., HUBBARD, P. Some emerging principles for mobile-assisted language learning. Monterey, CA: The International Research Foundation for English Language Education. 2013. Retrieved from http://www.tirfonline.org/english-in-the-workforce/mobile-assisted-language-learning TAPSCOTT, D. A hora da geração digital: como os jovens que cresceram usando a internet estão mudando tudo, das empresas aos governos. Rio de Janeiro: Agir Negócios, 2010. VAZ, Ana C. R. O celular e os novos modos de socialização. Dissertação de Mestrado. São Paulo. 2010 VIBERG, O; GRÖNLUND, A. Mobile Assisted Language Learning: A Literatura Review. Conference: 11th World Conference on Mobile and Contextual Learning. 2012. VYGOTSKY, L. S. Mind in society. MIT Press, Cambridge, MA. 1978. WARSCHAUER, M. Technology and Social Inclusion: Rethinking the Digital Divide. MIT Press. 2004 WERTSCH, J. V. Voices of the mind: a socio-cultural approach to mediated action. Harvard University Press, Cambridge, MA. 1991.
  • 184. Capítulo 14 175Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 14 MATERIAL DIDÁTICO PARA O ENSINO DE INGLÊS: UMA PROPOSTA POR MEIO DA PEDAGOGIA DE MULTILETRAMENTOS Patrícia Helena da Silva Costa Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro RESUMO: Este artigo apresenta um recorte da unidade didática, proposta em minha pesquisa de doutorado em andamento, para o ensino de Inglês em uma turma do 5º ano do ensino fundamental em uma escola da rede pública municipal do Rio de Janeiro. Sob uma perspectiva sociointeracional (VYGOTSKY, 1991 [1978]) e crítica (PENNYCOOK, 2004; TILIO, 2017) de ensino-aprendizagem, e estruturado por meio da Pedagogia de Multiletramentos (COPE & KALANTZIS, 2000; KALANTZIS & COPE, 2012), o material didático em questão objetiva oportunizar práticas situadas de ensino de Inglês, a apresentação de aspectos estruturais da língua com propósito sociointeracional e crítico e a formação dos alunos como cidadãos problematizadores e participativos. PALAVRAS-CHAVE: unidade didática, ensino de Inglês, Pedagogia de Multiletramentos. ENGLISH TEACHING MATERIAL: A PROPOSAL BASED ON THE MULTILITERACIES PEDAGOGY ABSTRACT: This article presents an excerpt of the English teaching material, proposed in my PhD research in development, for fifth graders at a public municipal school in Rio de Janeiro. Based on a sociointeractional (VYGOTSKY, 1991 [1978]) and critical teaching and learning perspective (PENNYCOOK, 2004; TILIO, 2017), and structured by the Multiliteracies Pedagogy (COPE & KALANTZIS, 2000; KALANTZIS & COPE, 2012), this teaching material aims at providing situated practices in English teaching, presenting lexicogrammar aspects in a sociointeractional and critical way and contributing to students’s development as participative citizens. KEYWORDS: teaching material, English teaching, Multiliteracies Pedagogy 1 | INTRODUÇÃO Com a implementação, em 2010, do Programa Rio Criança Global (PRCG), todos os alunos do ensino fundamental da rede pública municipal de educação do Rio de Janeiro passam a ter aulas de Inglês a partir do 1º ano, inclusive os discentes do Programa Acelera Brasil, cujo objetivo é corrigir o fluxo escolar de
  • 185. Argumentação e Linguagem Capítulo 14 176 alunos alfabetizados multirrepetentes do 2º ao 4ºanos do ensino fundamental, com defasagem de idade/ano escolar. Dentre as características do Programa Acelera Brasil, há a utilização de materiais didáticos elaborados exclusivamente para o seu público alvo. Diferentemente desses materiais, temos os livros didáticos de Inglês utilizados nas aulas de Língua Estrangeira deste mesmo grupo. Baseados no fato de que os alunos do Acelera Brasil são da mesma faixa etária que os alunos do 5º ano do ensino fundamental, a Secretaria Municipal de Educação (SME-RJ) determinou que os livros didáticos Zip From Zog 5A e 5B, utilizados com os alunos do 5º ano do ensino fundamental, também fossem empregados nas aulas de Inglês do programa de aceleração em questão. Ainda que o PRCG e o Acelera Brasil pertençam a um mesmo contexto, o das escolas públicas municipais do RJ, esses dois projetos possuem origens e propósitos distintos. A partir deste fato, minha pesquisa de mestrado, desenvolvida no Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada (PIPGLA) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), investigou a adequação dos livros didáticos Zip From Zog 5A e 5B ao Programa Acelera Brasil. Partindo do princípio de que a análise mostrou que este material didático não atende ao Programa Acelera Brasil, e consequentemente, deixa a desejar no que diz respeito ao PRCG como um todo, o objetivo da minha pesquisa doutoral, em andamento no PIPGLA da UFRJ, é desenvolver e aplicar uma unidade didática para o ensino de Inglês em uma turma do 5º ano do ensino fundamental em uma escola da rede pública municipal do RJ. A proposta é que o material desenvolvido por mim seja utilizado por uma professora regente de Inglês em uma determinada escola da Rede Municipal. Neste capítulo, apresento um recorte da unidade didática proposta em minha pesquisa, cujo objetivo é atender as demandas sinalizadas em minha dissertação de mestrado, demandas essas que se relacionam a práticas situadas de ensino de Inglês, a apresentação de aspectos estruturais da língua, com propósito sociointeracional e crítico, e a formação dos alunos como cidadãos problematizadores e participativos. O materialdidáticoaquiapresentadoéfundamentadoemumaconcepçãosociointeracional (VYGOTSKY, 1991 [1978]) e crítica (PENNYCOOK, 2004; TILIO, 2017) de ensino- aprendizagem, e estruturado por meio da Pedagogia de Multiletramentos (COPE & KALANTZIS, 2000; KALANTZIS & COPE, 2012). Antes de apresentar o material didático em si, contextualizo-o dentro do cenário de ensino de Inglês como língua estrangeira no momento atual e, em seguida, abordo, ainda que brevemente, a fundamentação teórica que norteia minha pesquisa de doutorado.
  • 186. Argumentação e Linguagem Capítulo 14 177 2 | O ENSINO DE INGLÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA NA CONTEMPORANEIDADE O momento contemporâneo no qual o ensino de Língua Estrangeira (LE) está inserido demanda uma compreensão de ensino e aprendizagem de Inglês que dialogue com o papel desempenhado pela linguagem, pois conforme afirma Moita Lopes (2013, p. 19) o mundo da compressão do tempo e do espaço, da tecnologia digital, dos choques e das mudanças socioculturais, das hibridizações de vários tipos (linguísticas, culturais, discursivas etc.) da hipersemiotização, da superdiversidade, da presença do chamado terceiro mundo no primeiro mundo e vice-versa, dos fluxos entre fronteiras físicas e virtuais, entre outros processos, com os quais nos deparamos continuamente, constituem um mundo no qual a linguagem ocupa um espaço privilegiado. Este é um mundo no qual nada de relevante se faz sem discurso, como lucidamente nos alerta o geógrafo Milton Santos (2000). Assim, a linguagem passa a ocupar um espaço diferenciado em novas vidas sociais. Dada a fluidez com que as mudanças ocorrem nas esferas culturais, econômicas, políticas e tecnológicas, concordo com Moita Lopes (2003) quanto ao fato de que estamos presenciando uma nova ordem mundial, na qual “a multiplicação de informações, conceitos, descobertas e teorias lançou a vida social em variadas direções, com consequências inesperadas e não previstas anteriormente” (FRIDMAN, 2000, p. 39). Diante deste aspecto, faz-se primordial que os professores de línguas entendam que o trabalho com a linguagem os coloca no centro de questões políticas e sociais, pois de acordo com Gee (1986, apud BRASIL, 2006, p. 109) [...] os professores de inglês podem cooperar em sua própria marginalização imaginando-se como meros “professores de língua” sem conexão alguma com questões sociais e políticas. Ou então podem aceitar o paradoxo do letramento como forma de comunicação interétnica que muitas vezes envolve conflitos de valores e identidades, e aceitar seu papel como pessoas que socializam os aprendizes numa visão de mundo que, dado seu poder [...] deve ser analisada criticamente. Ao propor a elaboração e aplicação de uma unidade didática para o ensino de Inglês em uma turma do 5º ano do ensino fundamental do PRCG, meu objetivo é oportunizar um trabalho com a linguagem de forma que as questões políticas e sociais que emergem dos discursos que nos cercam possam ser analisadas criticamente pelos alunos. Sendo assim, este estudo é orientado por uma perspectiva crítica, “uma coalisão de interesses educacionais comprometidos com o engajamento das possibilidades que as tecnologias da escrita oferecem para a mudança social, diversidade cultural, igualdade econômica e emancipação política” (LUKE & FREEBODY, 1997, p. 1). Uma vez que entendemos a aprendizagem de LE não apenas como o conhecimento de estruturas linguísticas, mas também como a apropriação de novos olhares sobre o mundo que nos cerca, é nosso objetivo, portanto, “capacitar o aprendiz a utilizar
  • 187. Argumentação e Linguagem Capítulo 14 178 a linguagem socialmente de maneira crítica e em diferentes contextos discursivos” (NICOLAIDES & TILIO, 2011, p. 181). Dialogando com essas concepções, a ideia de “crítico” aqui defendida se alinha à Linguística Aplicada Crítica (PENNYCOOK, 2004), no sentido de prática problematizadora, cuja proposta é manter um maior sentido de humildade e de diferença e levantar questões sobre os limites do seu próprio saber. Esta posição autorreflexiva também sugere que a Linguística Aplicada Crítica não está preocupada com a produção de uma nova ortodoxia, com a prescrição de novos modelos e procedimentos para fazer Linguística Aplicada. Em ez disso, está preocupada em criar uma serie de novos e difíceis questionamentos sobre ética, política e conhecimento. (PENNYCOOK, 2004, p. 815) Neste sentido, a noção de “crítico” “considera também questões de acesso, poder, diferença, desigualdade e resistência (…) ser crítico, nessa perspectiva, implica em buscar entender possíveis explicações para as situações que se apresentam” (TILIO, 2017, p. 23 e 24) Para que essa postura crítica seja viável, faz-se necessário que entendamos o processo de ensino-aprendizagem como uma prática sociointeracional na qual “o aprendizado humano pressupõe uma natureza social específica e um processo através do qual as crianças penetram na vida intelectual daquelas que as cercam” (VYGOTSKY, 1991 [1978], p. 59). Ao lançarmos nosso olhar sobre o outro e sobre o mundo que nos cerca, temos a possibilidade de questionar relações ideológicas e de poder cristalizadas, enfatizando “as representações e as análises a respeito de diferenças, tais como: raciais, sexuais, de gênero e as indagações sobre quem ganha ou perde em determinadas relações sociais” (BRASIL: 2006, p. 116). Vivemos em um mundo em que se espera (empregadores, professores, cidadãos, dirigentes) que as pessoas saibam guiar suas próprias aprendizagens na direção do possível, do necessário e do desejável, que tenham autonomia e saibam buscar como e o que aprender, que tenham flexibilidade e consigam colaborar com urbanidade. (ROJO, 2012, p. 27) Dada as mudanças que ocorrem no mundo ao nosso redor, mundo esse em que a linguagem possui um papel fundamental, faz-se mais que necessário que transformemos também a maneira como lidamos com os discursos presentes nas práticas sociais nas quais nos engajamos diariamente. Ao nos afiliarmos a uma perspectiva sociointeracional (VYGOTSKY, 1991 [1978]) e crítica (PENNYCOOK, 2004; TILIO, 2017) de ensino-aprendizagem de Inglês, nos situamos no que Kalantzis & Cope (2012) denominam como novas bases, nas quais o trabalho com a linguagem não é simplesmente uma questão de uso correto da mesma, mas também é uma forma mais abrangente de construção de significados.
  • 188. Argumentação e Linguagem Capítulo 14 179 3 | A TEORIA DOS MULTILETRAMENTOS Os novos ambientes de comunicação trazidos pela contemporaneidade oferecem desafios às tradicionais abordagens de ensino de LE, de modo que essas abordagens, muitas vezes focadas na lexicogramática da língua, precisam ser repensadas e complementadas. Migração, multiculturalismo e integração econômica global intensificam diariamente esse processo de mudança. A globalização das comunicações e dos mercados de trabalho tornam cada vez mais a diversidade linguística uma aspecto crítico. Lidar com diferenças linguísticas e culturais tornou-se central em nossas vidas profissionais e privadas. Cidadania efetiva e trabalho produtivo demandam que interajamos significativamente usando múltiplas linguagens, múltiplos Ingleses, e padrões de comunicação que frequentemente cruzam fronteiras culturais e nacionais. Quando a proximidade da diversidade cultural e linguística é um dos pontos chaves de nossos tempos, a própria natureza do ensino de línguas muda. (COPE & KALANTZIS, 2000, p. 6) Diante desses aspectos, somamos à perspectiva sociointeracional (VYGOTSKY, 1991 [1978]) e crítica (PENNYCOOK, 2004; TILIO, 2017) que embasa este estudo a teoria dos Multiletramentos (COPE & KALANTZIS, 2000; KALANTZIS & COPE, 2012). Em setembro de 1994, um grupo de pesquisadores dos letramentos, o Grupo de Nova Londres, se reuniu por uma semana na pequena cidade de Nova Londres, com o objetivo de discutir a respeito do futuro do ensino de letramento, levando-se em consideração as novas ferramentas de acesso à comunicação e à informação, já existentes em 1994. Ainda que cada integrante do Grupo de Nova Londres pertencesse a um campo específico no que se refere ao ensino de letramento, um ponto eles tinham em comum: o entendimento de que o que os alunos precisavam aprender também estava mudando e que o principal elemento dessa mudança estava no fato de que não havia uma única linguagem a ser ensinada. As diferenças culturais e as rápidas transformações nas mídias de comunicação significavam que a própria natureza do objeto da pedagogia de letramento estava mudando radicalmente. Sendo assim, o Grupo decidiu que os resultados de suas discussões poderiam ser resumidos em uma palavra: Multiletramentos. Este termo, segundo o Grupo, descreve dois importantes argumentos necessários a emergente ordem cultural, institucional e global. O primeiro argumento relaciona-se com a multiplicidade de canais e mídias de comunicação, enquanto que o segundo direciona-se à crescente diversidade cultural e linguística. Cope & Kalantzis (2000) explicam que a teoria de Multiletramentos complementa a pedagogia tradicional de letramento ao apontar para esses dois aspectos da multiplicidade textual: a diversidade social e a multimodalidade (KALANTZIS & COPE, 2012). Por diversidade social entende-se a variabilidade de convenções de significados em diferentes situações culturais, sociais ou domínios específicos (COPE & KALANTAZIS, 2000). Textos, sejam eles orais ou escritos, variam enormemente
  • 189. Argumentação e Linguagem Capítulo 14 180 dependendo da experiência de vida, do assunto em questão, do domínio disciplinar, da área de trabalho, do conhecimento específico, do setor cultural, das identidades de gênero e etc. Essas variantes têm se tornado cada vez mais significantes para as formas nas quais interagimos em nossas vidas cotidianas, para as formas nas quais participamos na construção de significados. Por essa razão, é importante que hoje em dia o ensino de letramento não foque, como fez no passado, somente nas regras de uma única forma padrão de linguagem. Comunicação requer, cada vez mais, que os aprendizes estejam aptos a compreender as diferenças de significado de um contexto para o outro e a se comunicar através dessas diferenças. (KALANTZIS & COPE, 2012, p. 13) No que diz respeito à multimodalidade, Cope & Kalantazis (2000) apontam para a importância da questão, como resultado das novas mídias de informação e comunicação. Significado é construído de formas extremamente multimodais, nas quais os modos escritos de significação se conectam com os modos de significado oral, visual, auditivo, gestual, tátil e espacial (KALANTAZIS & COPE, 2012). A escrita já foi considerada a principal forma de construção de significado. Nos dias de hoje, entretanto, modos escritos de significação podem ser complementados, por exemplo, por gravações ou transmissões de significados orais, visuais, auditivos, gestuais e outros. Sendo assim, Cope & Kalantzis (2000) sinalizam para o fato de que precisamos estender a pedagogia de letramento para além da educação alfabética. Também se faz necessário que, nos ambientes de aprendizagem atuais, suplementemos habilidades tradicionais de leitura e escrita com modos de construção de significados multimodais. Os Multiletramentos sugerem a necessidade de uma gramática flexível que auxilie os aprendizes a descreverem as diferenças de linguagem (diferenças culturais, subculturais, regionais, nacionais, e assim por diante) e os canais multimodais de significados tão importantes para a comunicação. Ao tocar essas questões, professores e alunos devem ver a si mesmos como participantes ativos na mudança social, como construtores ativos em sociedade. (COPE & KALANTZIS, 2000, p. 6) Ao nos afiliarmos a uma prática de ensino-aprendizagem de LE norteada pelos Multiletramentos nosso objetivo é expandir o entendimento de letramento e ensino e aprendizagem de letramento a fim de incluir a negociação da multiplicidade de discursos. A fim de que possamos abarcar a diversidade de discursos e modos de construção de significado, devido aos fatores já mencionados anteriormente, iremos, a partir de agora, utilizar o termo Pedagogia de Multiletramentos (COPE &KALANTIZIS, 2000). A Pedagogia de Multiletramentos é composta pela integração de quatro fatores: Prática Situada, Instrução, Postura Crítica e Prática Transformadora. De acordo com Cope & Kalantzis (2000), o conhecimento humano é primeiramente situado em contextos socioculturais e intensamente contextualizado em domínios e práticas específicos. Tal conhecimento está intrinsecamente ligado à habilidade de reconhecer certos padrões da experiência humana e de agir conforme estes mesmos padrões,
  • 190. Argumentação e Linguagem Capítulo 14 181 processo este adquirido somente através da experiência, uma vez que os padrões são fortemente atados e ajustados ao contexto e são, geralmente, sutis e complexos o bastante a ponto de que ninguém possa descrevê-los ou explicá-los completamente. Neste sentido, os indivíduos são reconhecedores e atores contextuais e socioculturais de padrões. Sendo assim, torna-se relevante estruturar o ensino de LE, neste caso o de Inglês, através de temas, entendidos aqui como a realidade em que se dá o enunciado, que engloba os sentidos vinculados ao uso da linguagem em situações e contextos específicos (BAKHTIN: 1997 [1979]). Ao contextualizarmos o ensino através de temas, ou seja, através de uma Prática Situada, possibilitamos que os alunos se familiarizem com o momento sociohistórico no qual a linguagem está inserida. No que diz respeito à Instrução, Cope & Kalantzis (2000) chamam a atenção para o fato de que esta parte da Pedagogia não implica diretamente em transmissão direta de conhecimento, repetição e memorização. A Instrução inclui todas as mediações por parte do professor, que tenham como objetivo auxiliar os alunos durante as atividades, que direcionem o foco dos alunos para as características de suas experiências e atividades dentro da comunidade de aprendizes, construindo e recrutando o que o aprendiz já sabe e consegue realizar.Através do scaffolding (andaimento) (KALANTZIS &COPE,2012),oprofessororientaasperformancesdosalunosnastarefasqueelesnão conseguem realizar por conta própria, criando, assim, uma Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) (VYGOTSKY 1991, [1978]) definida como a distância entre o nível de desenvolvimento real, determinado pela resolução independente de problemas, e o nível potencial, determinado pela resolução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com outros parceiros mais experientes. O propósito da Postura Crítica é ajudar os aprendizes a estruturarem o seu crescente domínio da prática e do entendimento consciente no tocante às relações históricas, sociais, culturais, políticas, ideológicas e de valor. Neste momento, o professororientaosaprendizesadesnaturalizareestranharaquiloqueelesaprenderam e dominaram. Por meio da Postura Crítica, os aprendizes podem obter a distância necessária, pessoal e teórica, daquilo que eles aprenderam, para, construtivamente, criticar, expandir e aplicar criativamente esse conhecimento e, eventualmente, inová- lo de maneira própria. Esta é a base para a Prática Transformadora. Os quatro componentes da Pedagogia de Multiletramentos proposta por Cope & Kalantzis (2000) não constituem uma hierarquia linear, muito menos representam estágios. São, entretanto, elementos relacionados de maneira complexa, de forma que um ou outro componente predomina, dependendo do momento da prática pedagógica. Mesmo assim, todos os elementos são repetidamente revisitados em diferentes níveis. Encontramos aqui um diálogo com as ideias de Vygotsky com relação aos processos internos de desenvolvimento que ocorrem durante o aprendizado. Ao defender a noção de que aprendizado não é desenvolvimento, o pensador aponta para o fato de que o processo de desenvolvimento não progride na mesma velocidade que o processo de aprendizado, resultando, assim, nas ZDP. Desta forma, o desenvolvimento se dá em
  • 191. Argumentação e Linguagem Capítulo 14 182 espiral, passando por um mesmo ponto a cada nova revolução, enquanto avança para um nível superior (VYGOTSKY, 1991 [1978]). É meu objetivo, ao propor uma unidade didática para o ensino de Inglês em uma turma do 5º ano do ensino fundamental do PRCG, que os componentes da Pedagogia de Multiletramentos estejam presentes em diferentes momentos do material e, consequentemente, das aulas. 4 | A UNIDADE DIDÁTICA Nesta seção do capítulo, apresento algumas atividades que compõem a unidade didática a ser aplicada nas aulas de Inglês de uma turma de 5º ano do ensino fundamental em uma escola da rede pública municipal do Rio de Janeiro. Por motivos de limitação de número de páginas, não será possível apresentar todas as atividades das quatro lições que compõem a unidade didática. O recorte feito aqui procura mostrar de que maneira a perspectiva sociointeracional (VYGOTSKY, 1991 [1978]) e crítica (PENNYCOOK, 2004; TILIO, 2017) de ensino-aprendizagem e a Pedagogia de Multiletramentos (COPE & KALANTZIS, 2000; KALANTZIS & COPE, 2012) encontram- se no material didático proposto em minha pesquisa de doutorado. Figura 1 – Atividade de warm-up
  • 192. Argumentação e Linguagem Capítulo 14 183 Figura 2 – Lição 1, atividades 1 e 2 A atividade de warm-up (Figura 1) nos apresenta o tema que perpassa toda a unidade didática: o uso de uniforme escolar. Esse assunto é, portanto, a Prática Situada (COPE & KALANTZIS, 2000) que contextualiza o material. O objetivo da atividade é que os alunos discutam com os seus colegas a respeito de duas camisas: a branca, que compõe, atualmente, o uniforme das escolas do município do RJ, e a laranja, utilizada entre os anos de 2004 e 2008 por alunos também da Prefeitura do RJ. Ao utilizar a língua materna durante essa discussão inicial sobre o assunto, é possível que o aluno fique mais confortável durante o primeiro contato com o material. Na Figura 2 temos as duas primeiras atividades da Lição. A primeira tarefa consiste em apresentar alguns itens que compõem o uniforme escolar dos alunos. Neste momento, é possível introduzir esse vocabulário na língua alvo, além de revisar noções de cores em Inglês, por exemplo. Ainda que seja uma atividade introdutória, ao pedir que os alunos correlacionem as figuras com as frases, a atividade se baseia no que os discentes já sabem. Dessa forma, privilegia-se o que eles possam ter aprendido em aulas anteriores e o que eles possam ter vivenciado em contato com a língua estrangeira em situações fora da escola. Palavras como shorts e sneakers, por exemplo, são palavras que talvez já façam parte do repertório linguístico dos alunos, o que os ajuda a realizar a tarefa. Já a segunda tarefa trabalha com o desenvolvimento da Postura Crítica (COPE & KALANTZIS, 2000) dos alunos em relação ao propósito
  • 193. Argumentação e Linguagem Capítulo 14 184 de se usar uniforme escolar, além de se problematizar a obrigatoriedade de seu uso e suas possíveis vantagens e desvantagens. Figura 3 – Lição 2: atividade 4 Figura 4 – Lição 2: atividades 5 e 6
  • 194. Argumentação e Linguagem Capítulo 14 185 As Figuras 3 e 4 trazem um dos momentos de Instrução (COPE & KALANTZIS, 2000), no qual aspectos gramaticais são sistematizados, de forma que os alunos possam entendê-los indutivamente, por meio do noticing, isto é, “atividades que encorajam os alunos a perceberem por eles mesmos regras gramaticais, padrões lexicais, pragmática (relação entre contexto e significado linguístico) e fonologia” (MISHAN & TIMMIS, 2015, p. 23).Assim, os alunos têm a oportunidade de compreender como determinados aspectos gramaticais podem ser utilizados, através da realização da atividade em si, de forma que eles mesmos cheguem às conclusões a respeito do que está sendo trabalhado. As tarefas 4 ,5 e 6 (Figuras 3 e 4) são baseadas no código de vestimenta de uma escola americana, texto esse que foi apresentado em um momento anterior da unidade didática e, sendo assim, os alunos já estariam familiarizados com o gênero. Nas tarefas 5 e 6 os alunos trabalham com vocábulos no singular e no plural e também com uso do artigo “a” ao descrevermos, em Inglês, o que uma pessoa está vestindo. Assim, há a preocupação em não fornecer regras gramaticais aos alunos, mas sim, levá-los a construir suas próprias conclusões sobre os aspectos estruturais apontados. Figura 5 – Lição 2: atividade 7
  • 195. Argumentação e Linguagem Capítulo 14 186 Figura 6 – Lição 4 Já a atividade 7 (Figura 5) consiste em uma prática de interação oral no idioma alvo, na qual os alunos, com base no que viram até este momento, são orientados a perguntar e responder sobre o que estão vestindo. Essa interação é uma oportunidade de os discentes se apropriarem dos conhecimentos construídos ao longo das atividades já realizadas. A Figura 6 mostra a última atividade do Lição 4. Trata-se de um momento de Prática Transformadora (COPE & KALANTZIS, 2000) que consolida a unidade didática em si, já que é apresentado na última lição do material. O objetivo é que os alunos, com base no que construíram ao longo do material, possam utilizar esse conhecimento de forma adequada à realidade da escola que frequentam. Ao propor a elaboração de cartazes com o código de vestimenta da escola, e a distribuição desses cartazes pelas dependências da instituição, os alunos terão a oportunidade de compartilhar o seu aprendizado, além de promover a interação com os outros colegas, funcionários e pais de alunos também. 5 | FUTUROS DESDOBRAMENTOS Durante o tempo em que pretendo acompanhar as aulas da turma de 5º ano do ensino fundamental no qual a unidade didática será utilizada acredito que
  • 196. Argumentação e Linguagem Capítulo 14 187 terei a oportunidade de ver o material ganhar vida e proporcionar interações entre os participantes, interações essas que serão os caminhos para entender como o material didático elaborado busca propiciar o ensino do idioma através do uso da língua em contextos situados sociohistoricamente, compreender como os aspectos lexicogramaticais trabalhados na unidade didática buscam atingir propósito socionteracional e crítico e analisar se e como a unidade didática promoveu o engajamento dos alunos durante a utilização do material, contribuindo para formá-los como cidadãos críticos e participativos. Cabe ressaltar que o fato de a unidade didática já estar elaborada não significa que o material é definitivo, e sim que a pesquisa está em progresso e que, portanto, podem ocorrer mudanças. É necessário que consideremos os micro e macro contextos que situam a sala de aula, integrando, assim, as futuras interações entre os participantes. O que se pode afirmar aqui é o compromisso com a possibilidade de contribuir significativamente para o ensino de Inglês do PRCG. REFERÊNCIAS BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Linguagens, códigos e suas tecnologias. Brasília, 2006, p.87-156. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/book_volume_01_internet.pdf>. Acesso em: 14 jul. 2013. COPE, B.; KALANTZIS, M. Multiliteracies: literacy learning and the design of social futures. London: Routledge, 2000. FRIDMAN, L. C. Vitalidade ou irrelevância de um debate. In: FRIDMAN, Luis Carlos Vertigens pós- modernas: configurações institucionais contemporâneas. 1. ed. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. KALANTZIS, M; COPE, B. Literacies. Cambridge: Cambridge University Press, 2012. LUKE, A.; FREEBODY, P. Critical Literacy and the Question of Normativity: An Introduction. In: LUKE, A.; FREEBODY, P. Constructing critical literacies: teaching and learning textual practice. Cresskill, New Jersey: Hampton Press, 1997. MISHAN, F.; TIMMIS, I. Materials Development for TESOL. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2015. MOITA LOPES, L. P. A nova ordem mundial, os Parâmetros Curriculares Nacionais e o ensino de inglês no Brasil: a base intelectual para uma ação política. In: BÁRBARA, L.; RAMOS, R. C. G. (Org.) Reflexões e Ações no Ensino-aprendizagem de Línguas. Campinas: Mercado de Letras, 2003. MOITA LOPES, L. P. Português no século XXI: cenário geopolítico e sociolinguístico. São Paulo: Parábola, 2013. NICOLAIDES, C. S.; TILIO, R. O material didático na promoção da aprendizagem autônoma de línguas por meio do letramento crítico. In: SZUNDY, P. T. C. et al. (Org.). Linguística Aplicada e Sociedade: Ensino e Aprendizagem de Línguas no Contexto Brasileiro. Campinas: Pontes Editores, 2011. PENNYCOOK, A. Critical Applied linguistics. In: DAVIES, A.; ELDER, C. (Eds.). The Handbook of
  • 197. Argumentação e Linguagem Capítulo 14 188 Applied Linguistics. Oxford: Blackwell Publishing, 2004. TILIO, R. Ensino crítico de língua: afinal, o que é ensinar criticamente? In: JESUS, D.; ZOLIN-VESZ, F.; CARBONIERI, D. (Orgs.). Perspectivas críticas no ensino de línguas: novos sentidos para a escola. Campinas: Pontes, 2017. VYGOTSKY, L. S. [1978] A Formação Social da Mente. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
  • 198. Capítulo 15 189Argumentação e Linguagem ORIGENS E FRONTEIRAS DO COSMOS: O PODER DA PALAVRA CAPÍTULO 15 Márcio Moreira Costa Líder do Grupo de Pesquisa Nómade, vinculado à CNPq, que desenvolve pesquisas na linha da Filosofia, identidade e crítica social. Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Rondônia Colorado do Oeste – Rondônia RESUMO: A mitologia grega apresenta as Musas como filhas de Mnemosyne e Zeus, portanto, como filhas da Memória tais Musas personificam a palavra e todo o seu poder. É este fenômeno que presente trabalho propõe- se a investigar, valendo-se da obra Teogonia, de Hesíodo, aproximando-a do texto desana sobre a origem do mundo, escrito por Umusi Pãrõkumu e Tõrãmú Kehíri, que contêm as origens e a efetivação do poder detido pela palavra nas narrativas míticas desana. Como suporte teórico acorre-se ao ensaio de Jaa Torrano, que analisa o texto da narrativa grega, e os conhecimentos do antropólogo Pedro de Niemeyer Cesarino, contidos em seu livro Quando a Terra deixou de falar. Estender- se-á o diálogo a autores como Ruth Finnegan e Mineke Schipper, Ernest Cassirer e Jean- Pierre Vernat. A pesquisa realizada é de cunho exclusivamente teórico, partindo da análise dos textos selecionados, e culmina na identificação da Palavra, herança divina, como causa eficiente do mundo e pode tanto revelar como ocultar. PALAVRAS-CHAVE: Narrativa. Musas. Palavra. Presentificação. ORIGINS AND BORDERS OF COSMOS: THE POWER OF THE WORD ABSTRACT: The Greek mythology shows the Muses as Mnemosyne and Zeus’s daughter, therefore, as daughters of Memory these Muses personify the word and all its power. It’s this phenomena the purpose of this study, to investigate, the book Teogonia, by Hesíodo, relating it to desana text about the orgin of the world and the efectivation of the power provided by words in the desana mythical narratives. As theorical approach it was supported by studies of Jaa Torrano, that analyses the texts of greek narrative and the anthropologist, Pedro de Niemeyer Cesarino’s knowledge in his manuscript Quando a Terra deixou de falar. It’s also going to approached dialogs involving author like Ruth Finnegan and Mineke Schipper, Ernest Cassirer and Jean-Pierre Vernat. This is a theorical reaserch, which was done analyses of the selected texts and results in the identification of the Word, divine heritage, as efficient cause of the world and can no only revel but also hide. KEYWORDS: Narrative. Muses. Word. Presentitication.
  • 199. Argumentação e Linguagem Capítulo 15 190 1 | INTRODUÇÃO A tarefa que aqui se propõe é a análise das obras Teogonia: a origem dos deuses, do poeta grego antigo Hesíodo, e Antes o mundo não existia: mitologia dos antigos Desana-Kenhirípõrã, escrita, em coautoria, pelos indígenas desana Umusi Pãrõkumu e Tõrãmú Kehíri, a partir de elementos da abordagem comparatista. Naturalmente que, para obter-se os resultados esperados, também se recorre a elementos da hermenêutica e de pressupostos dos Estudos Culturais. A pesquisa busca seus fundamentos no ensaio do renomado tradutor de grego Jaa Torrano, O mundo como função de Musas, que apresenta a obra Teogonia, publicada pela editora Iluminuras, e vale-se também dos estudos de Pedro de Niemeyer Cesarino, resumido na apresentação de seu livro intitulado Quando a Terra deixou de falar: cantos da mitologia Marubo. Não se pode omitir algumas incursões nos textos de Ernst Cassirer, Eliade Mircea, Jean-Pierre Vernant, a título de orientações teóricas. Finnegan, Schipper e Bicalho, este último com seu trabalho de doutoramento, contribuíram para a construção dos argumentos que serão apresentados. É a partir da obra dos escritores desana, acima citada, colacionada com a narrativa hesiódica, Teogonia: a origem dos deuses, que este trabalho se propõe demonstrar possíveis evidências do poder da palavra em presentificar, dar existência, àquilo que evoca – seja pela forma oral, nas tradições antigas, seja pela forma escrita ou impressa atuais. Recorrendo, para tanto, a elementos da abordagem comparatista, propõem-se à realização da apreciação de traços estéticos, nas obras escolhidas, a partir da imagem construída do processo criador do mundo/cosmos, em cada uma das narrativas, chegando a uma análise teórica e diferencial de elementos literários. 2 | O PODER PRESENTIFICADOR DA PALAVRA NA LITERATURA ORAL “No princípio era o Verbo [...]. Tudo foi feito por meio dele [...]” (JOÃO, 1: 1-3). O Texto Sagrado dos cristãos atribui à palavra (Verbo) esse poder criador. É mediante o Faça-se... – expressão que aparece no livro do Gênesis, como fórmula para a criação, usada pelo Deus judaico-cristão – (a Palavra) que incide a existência do mundo. Todo o Universo materializa-se e recebe seus contornos específicos pela mediação e poder da Palavra. A narrativa cristã possui correspondência na tradição mítica da Grécia Arcaica. Em sua obra Introdução à história da Filosofia, no primeiro volume, a escritora e filósofa, Marilena Chaui, fala do costume dos poetas em invocar as musas para guiá-los, pois que, dessa forma, “Ao falar, fazem que aconteça aquilo que dizem. Sua palavra [...] é uma ‘palavra eficaz’” (2002, p. 40). E é eficaz por dar causa ao existente, às coisas; torna real o que é cantado porque ele, o aedo, diz a verdade. Uma linguagem prenhe para dar à luz ao Universo material, como escreve Jaa Torrano (2014, p. 14): “[...] veículo de uma concepção do mundo e suporte de uma experiência numinosa”. Não é,
  • 200. Argumentação e Linguagem Capítulo 15 191 portanto, apenas um criar, fazer nascer, mas também condicionar-lhe uma forma, uma estrutura, uma identidade... por assim dizer, um destino. Torrano chega ainda a afirmar que a palavra (Musas) tem “[...] o poder de presentificar o que sem elas é ausente” (2014, p. 21). Além das tradições citadas, as narrativas indígenas sobre as origens também apresentam similitudes com aquelas. Na narrativa desana, por exemplo, esse poder de presentificação está no “pensar” de Yebá Buró, a Avó da Terra, segundo os autores indígenas Umusi Pãrõkumu e Tõrãmú Kehíri – em português têm-se: Firmiano Arantes Lana e Luiz Gomes Lana, respectivamente –, pois, “Enquanto ela estava pensando no seu Quarto de Quartzo Branco, começou a se levantar algo, como se fosse um balão [...]. O balão era o mundo” (1995, p. 20). O seu pensamento, ação de ser não criado, causa de si mesmo – “Sobre estas coisas misteriosas é que ela se transformou por si mesma” (KEHÍRI; PÃRÕKUMU 1995, p. 19) –, vai, aos poucos, dando materialidade ao que existe. Falar e pensar, dentro da tradição oral, aflui, rigorosamente, ao um mesmo ponto fundamental: o fazer memória. Pois a ação, seja da palavra ou do pensamento, recebe eco no pensar e no falar, do poeta ou do xamã, que mantêm vivo (na memória) esse ato criador. Uma afirmação, no entanto, de que toda essa tradição oral constitui-se literatura parece soar absurda. Mas não se pode ignorar todo um esforço intelectual que vem sendo feito no sentido de revelar a riqueza dessas narrativas míticas (indígenas). E para tal tradição – de expressão oral – não seria justo, para a pesquisadora Ruth Finnegan (2006, p. 64), reservar como legado a condição de indicadora de primitivismo ou carência de cultura. Ainda sobre o entendimento da antropóloga britânica, Mineke Schipper escreve que Finnegan, “[...] afirmou, com razão, que, em pesquisas sobre literatura oral, os pesquisadores têm errado em não formular questões que eles próprios colocam para a literatura escrita” (SCHIPPER, 2006, p. 10). Isso porque, para a autora de O significado da literatura em culturas orais, apesar das diferenças existentes, é possível falar em literatura oral em função das semelhanças com o que formalmente se chama de literatura (escrita). Certamente que existe polêmica em torno dessa questão, mesmo quando se assume definições de Literatura com maior abertura como a dada por Antoine Compagnon, que considera que “[...] literatura é tudo o que é impresso (ou manuscrito), são todos os livros que a biblioteca contém (incluindo-se aí o que se chama literatura oral [...])” (2012, p. 31) e mesmo a que se pode extrair da Aula de Barthes. O linguista francês define como literatura “[...] não um corpo ou uma sequência de obras, nem mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever” (2013, p. 17). E assim o faz por conceber o texto como um afloramento da língua e a isto se pode entender como a dimensão que ultrapassa os limites da escrita. E ao indicar Mathesis, Mimesis e Semiosis como forças literárias, Barthes (2013, p. 18-44), não parece tender a isso, mas permite uma leitura de abertura à tradição oral, pois esta, também produz saberes diversos, além de seu
  • 201. Argumentação e Linguagem Capítulo 15 192 potencial representativo e de significação. Para Finnegan, na esteira de Aristóteles, a literatura “[...] é uma representação da realidade e expressa o que é em sua totalidade” (2006, p. 71). Desse modo, a oralidade também tem esse poder representativo e elaboração intelectual sofisticada; toma como exemplo, a autora, os épicos de Homero, reverenciados como rica fonte de conhecimento sobre a humanidade e que surgiu dentro da tradição oral. O antropólogo social, Pedro de Niemeyer Cesarino, ilumina um pouco mais a discussão ao constatar que as traduções tradicionalmente feitas, das narrativas orais (indígenas), mantinham uma literalidade e linearidade tal que as reduzia à prosa sequencial impossibilitando que se pudesse identificar, nessas traduções, “[...] aspectos tais como o paralelismo, o uso de metáforas e léxicos rituais, as enunciações polifônicas [...]” (CESARINO, 2013, p. 12), entre outras propriedades presentes nas expressões orais. Não obstante, para o estudioso, atualmente as pesquisas se sofisticaram tornando-se mais sensíveis a isso e, portanto, têm-se mais em evidência, na cultura oral indígena, traços percebidos no que, formalmente, se denomina literatura. Por outro lado, o modelo literário ocidental-europeu não pode ser absoluto. Desse modo, são inteiramente possíveis manifestações epistemológicas e artísticas sem, obrigatoriamente, ser necessário a recorrência à escrita, conclui Finnegan (2006, p. 101). Além do que, trabalhos como os citados por Cesarino – inclusive o seu próprio – como também as obras constituintes da coleção Narradores Indígenas do Rio Negro, entre elas Antes o mundo não existia, de Umusi Pãrõkumu e Tõrãmú Kehíri, já inserem essa literatura oral dentro da cultura ocidental do impresso. 3 | NARRATIVAS DOS PRIMÓRDIOS: TEOGONIA E COSMOGONIAS As narrativas da Antiguidade grega gozam de grande recepção no meio literário. Talvez isso se deva ao fato que, desde o primeiro contato, o Ocidente Moderno já tenha encontrado tais expressões na forma escrita. Não ocorre o mesmo com a tradição oral do ameríndio. As tentativas primeiras, de transferir para a linguagem escrita essas narrativas, subtraíram-lhe os elementos estéticos e até formais que lhe aproximariam do que se tem como literatura formalizada. O antropólogo Cesarino, faz essa constatação ao afirmar que recentemente, alguns trabalhos, como o de “[...] Dennis Tedlock (1983) aproximou as narrativas da ação da poesia dramática e rompeu com a linearidade da prosa que dominava os trabalhos de tradução. [...] e ao menosprezo das qualidades rítmicas e discursivas das expressões orais” (2013, p. 12). Não obstante, as narrativas da origem do universo, grega – Teogonia: a origem dos deuses – e desana – Antes o mundo não existia: mitologia dos antigos Desana- Kehíripõrã – compõe já o universo do impresso. Fato este que, a partir daqui, ao ser usado o termo narrativas, seja para a grega ou a desana, a intenção clara é referir-se às obras escritas e impressas citadas previamente. São duas narrativas míticas que fazem memória das origens do cosmos e
  • 202. Argumentação e Linguagem Capítulo 15 193 delimitam, em certa medida, suas fronteiras. E, para usar uma definição apresentada por Ernst Cassirer, em sua obra Linguagem e mito, tomada do filólogo Max Müller, o mito é [...] na verdade, o resultado de uma deficiência linguística originária, de uma debilidade inerente à linguagem. Toda designação linguística é essencialmente ambígua e, nesta ambiguidade, nesta “paronímia” das palavras, está a fonte primeva de todos os mitos (CASSIRER, 2013, p. 18). Esse algo apresentado pela linguagem de Cassirer é o relato sagrado de que fala Mircea Eliade, sobre o princípio de tudo: “[...] uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo [...]” (1972, p. 9), pela ação (palavra/pensamento) de “Entes Sobrenaturais”. E nessa relação com a linguagem, o espaço literário é ambiente propício ao mito que, dando vigor vital à imagem do sobrenatural, do numinoso, forja os contornos do mundo. Nesse sentido é que Charles Bicalho, em sua tese intitulada Koxuk, a imagem do yãmîy na poética maxakali, na esteira de César Guimarães, considera a imagem literária como a evidenciação de aspectos sensíveis do objeto abordado a partir duma dinâmica enunciativa na qual os signos linguísticos são articulados e ordenados. E conclui o pesquisador que “Esta capacidade que a palavra tem de assemelhar-se ao objeto representado é uma ‘propriedade do signo icônico’” (BICALHO 2010, p. 163). Por conseguinte, a narrativa possibilita a completude da imagem na literatura, em função de seu caráter icônico, pondera também Bicalho. As narrativas hesiódica e desana constituem-se imagens da criação do cosmos. Muito embora a visão grega de mundo possa dissentir da Desana não se trata aqui dessa questão. Interessa a esta análise a causa eficiente do cosmos, perpetuada na imagem literária da narrativa mítica. E aqui imagem e memória se relacionam. Memória que é presença, mediante “A irrupção da voz [...]” (TORRANO 2014, p. 23), mística que ressoa na oralidade poética ou xamanística. Bicalho, retomando a referência a César Guimarães, vai dizer que “[...] a narrativa dispõe ela mesma de recursos capazes de construir essa textura de imagens de que a memória é formada” (2010, p. 164). Os mitos gregos são resultados de um movimento cultural que remonta aos séculos XIV-XII a.C., na Grécia, anterior ao seu período clássico. A Hélade, marcadas por invasões e migrações ao longo de grande porção do litoral do Mar Egeu, estrutura sua religiosidade com o objetivo de forjar uma identidade individual e coletiva (VERNANT, 2006, p. 38-42). Tal realidade deixa marcas profundas e “em poesia o homem grego canta o declínio das arcaicas formas de viver ou pensar [...]” (PESSANHA 1996, p. 8). Hesíodo nasce em Ascra, Beócia, por volta do século VIII a.C. e vive toda a sua vida aí. Quando da morte do pai e a partilha da herança entra em altercação com o irmão Perses e sente-se lesado na disputa judicial. Sua poesia, segundo o pesquisador Wagner Jaeger retrata esse drama, complementando que ao bardo foi “[...] concedido pelas musas desvendar os valores próprios da vida do campo” (1994,
  • 203. Argumentação e Linguagem Capítulo 15 194 p. 86). Somente através de tal concessão é que o homem comum era capaz de ir e enxergar para além de seus limites geográficos, físicos e também temporais. Esse é “[...] um poder que só lhe é conferido pela Memória (Mnemosyne) através das palavras cantadas (Musas)” (TORRANO, 2014, p. 16). Na tradição indígena, analogamente, esse poder é recebido como dádiva sagrada e não como conquista bélica. Cesarino constatou, com sua experiência entre o povo Marubo, que os demais indígenas sentiam-se inaptos a falar sobre determinados assuntos; “Deixavam, assim, o tratamento de temas relacionados às narrativas míticas e à cosmologia ao encargo dos xamãs [...]” (2013, p. 438). O que parece ser aplicável à tradição desana, como se pode extrair do processo de escrita de seus mitos. O povo Desana ocupa o noroeste amazônico brasileiro, margeando o Rio Uaupés, indo além dos limites fronteiriços com a Colômbia. Com uma população de pouco mais de duas mil pessoas (2015) os Umukomahsã, que significa Gente do Universo, tem intensa presença no município de São João Batista (AM), etnia a qual pertencem os autores da narrativa mítica desana sobre a criação do mundo. Tõrãmu Kehíri (Luiz Gomes Lana), responsável por transpor para a forma escrita, as narrativas orais míticas de seu povo, foi educado numa escola sob os cuidados de religiosos salesianos, onde aprendeu a ler e a escrever na língua portuguesa; um primeiro contato com a cultura e religiosidade não índia. Recebeu as narrativas da voz digna de seu pai, Umusi Pãrõkumu (Firmiano Arantes Lana); digna por ser a voz de alguém que possui o poder de narrar tais acontecimentos, segundo a tradição mítica. Fora “[...] filho de tuxáua, baya (isto é, mestre de cerimônia), kumu e tuxáua ele mesmo, nunca quis aprender o português e fez questão que seus sete filhos falassem a língua desana” (PÃRÕKUMU; KEHÍRI, 1995, p. 13). Transcrita primeiramente para a língua desana, a narrativa da origem do mundo revela seu grande personagem mítico: Yebá Buró. Na narrativa grega, quatro personagens distintas estão presentes na constituição do cosmos, a saber: Kháos, Terra, Tártaro e Eros. Multiplicidade e univocidade não se opõem aqui, mas afluem e transfundem numa dialética criadora. Da unicidade primitiva de Kháos surgem Terra, Tártaro e Eros para enfim, gerar e administrar a constituição do cosmos. “Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também” “Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre,” “dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,” “e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,” “e Eros: o mais belo entre deuses imortais,” [...] (HESÍODO, 2014, p. 109).
  • 204. Argumentação e Linguagem Capítulo 15 195 Os versos acima (116-120) indicam esse movimento da unicidade à multiplicidade como uma dinâmica cósmica de geração para retomar à unicidade novamente em Zeus. E mesmo nessa multiplicidade, Jaa Torrano percebe uma unidade e vai titulá- la “quádrupla e agônica” para em seguida anunciar a tensão simétrica que existe no núcleo dessa unidade, ponderando que “Dada a diversidade de natureza entre as duas forças de procriação, há uma prioridade de Kháos sobre Eros, e Hesíodo marca-a clara e reiteradamente” (TORRANO, 2014, p. 45). Para entender essa prioridade tem-se, além da temporalidade, expressa pelo advérbio depois (no original em grego: épeita), também o espaço de dominância de Kháos que transpõe o espaço de Eros. Por outro lado Terra e Tártaro são contíguos, desse modo, são ao mesmo tempo, explica Torrano (2014, p. 45-46). No início do mito desana “Origem do mundo e da humanidade / Primeira parte: Origem do mundo” esse processo se inverte: tem-se inicialmente uma multiplicidade que convergirá para a unidade. A narrativa é discretíssima ao construir tal imagem. Yebá Buró, a divindade “Não Criada”, forja seu próprio ser a partir de seis elementos misteriosos. O adjetivo “misterioso”, que caracteriza tais elementos indica a qualidade extranatural destes: “Todas essas coisas eram especiais, não eram feitas como as de hoje [...]” (PÃRÕKUMU; KEHÍRI, 1995, p. 20); são coisas com aparência comum, mas com uma essência transcendente. Haviam coisas misteriosas para ela criar-se por si mesma. Haviam seis coisas misteriosas: um banco de quartzo branco, uma forquilha para segurar o cigarro, uma, cuia de ipadu o suporte desta cuia de ipadu, uma cuia de farinha de tapioca e o suporte desta cuia. Sobre estas coisas misteriosas é que ela se transformou ·por si mesma. Por isso, ela se chama a ‘”Não Criada” (PÃRÕKUMU; KEHÍRI, 1995, p. 19). Inicialmente a composição desse trecho da narrativa parece indicar uma contradição lógica pela presença da expressão “criar-se por si mesma”. Algo que pode criar, mesmo que a si mesmo, já tem pressuposta uma existência. Uma hermenêutica rigorosa possibilitaria dar explicações sólidas acerca desse fato, entretanto, os contornos do presente trabalho não permite tal esforço – a ausência de uma crítica hermenêutica acerca dos textos desana também limita essa pesquisa. Não obstante, parte-se da compreensão de que Yebá Buró, a “Avó da Terra”, não se torna algo a partir dos elementos citados. O que se pode depreender da passagem é de um momento cerimonial. As peças ritualísticas combinadas – como a uma evocação – presentificam a divindade criadora; é o seu revelar-se como causa eficiente do mundo. E nesse jogo de multiplicidade e unicidade, inversamente à narrativa grega, no mito ameríndio está presente a dialética criadora como um movimento de oposição: uno e múltiplo. Um e vários. Caos e ordem. Ser e Não-ser. E como a unidade hesiódica transporta em si uma multiplicidade e esta, sua porção de unidade, também o mito do povo Desana apresenta esse movimento dialético. Dos seis elementos para
  • 205. Argumentação e Linguagem Capítulo 15 196 uma divindade una e desta aos seis trovões (os Avôs do Mundo) (PÃRÕKUMU; KEHÍRI, 1995, p. 19-21). São tradições míticas distintas, mas que nas diferenças se assemelham. 4 | A DIGNA MEDIAÇÃO: MUSAS E KUMU E nesse contexto de semelhança e dessemelhança, aprofundando a análise, descobre-se uma semelhança pujante que é, contiguamente e na mesma intensidade, uma dessemelhança. A ação hermenêutica possibilita a extração dessa semelhança, não obstante, do ponto de vista estético-formal resta evidente a dessemelhança. E esta, no sentido mesmo de heterogeneidade. Trata-se da relação entre dois elementos, um de cada uma das narrativas. Da Teogonia, toma-se as Musas, filhas de Mnemosyne (Memória) e Zeus, e de Antes o mundo não existia, tem-se o grande kumu e tuxáua, Umusi Pãrõkumu. De um lado um personagem da narrativa grega, com um poder de tornar aquilo que é narrado, através da palavra, real, isto é, O mundo, os seres, os Deuses (tudo são Deuses) e a vida aos homens surgem no canto das Musas no Olimpo, canto divino que coincide com o próprio canto do pastor Hesíodo, a mostrar como surgiu e a fazer surgir o mundo, os seres, os Deuses e a vida aos homens (TORRANO, 2014, p. 20). O poder ontofânico, identificado por Jaa Torrano, é o poder de dar presença, inerente às Musas (à Palavra). E onde não são chamadas – as Musas – nada pode ser, pois elas são a causa do que é e sua ausência provoca o escondimento, a não revelação das coisas (2014, p. 24-25). As Musas não eram a guardiã do conhecimento, mas como filhas da Memória o que queriam revelavam e o que não queriam, mantinham em ocultação. Administravam assim o conhecimento transmitido aos homens. Esse é o seu poder, expresso nos versos 27 e 28 da primeira parte do Poema: “sabemos muitas mentiras dizer símeis aos fatos”/“e sabemos, se queremos, dar a ouvir revelações” (HESÍODO, 2014, p. 103). Na narrativa desana, a mediação entre a Memória (tradição antiga) e os homens é feita por alguém digno. O conhecimento sobre os fatos ocorridos nos primórdios do mundo é ministrado pelo guardião desse saber registrado na memória. Umusi Pãrõkumu, co-autor, junto com seu filho, da obra Antes o mundo não existia, tem essa dignidade, pela sua condição de kumu e configura-se um guardião da memória ancestral por ser um dos últimos que traz consigo essa relação com a memória de eras primevas: “[...] meu pai, que é kumu, é dos poucos que ainda se lembram [...]” (PÃRÕKUMU; KEHÍRI, 1995, p. 14), conforme admite Kehíri1 . Na cultura Desana, “Os kumua exercem funções destacadas na estrutura social desana” (1995, p. 13). São revestidos de sacralidade e alguns dons que lhes permite o contato com o mundo além das fronteiras da realidade física. “Tal como os xamãs, têm profundo conhecimento da 1 O texto que contem tal afirmação é resultado da pesquisa da antropóloga Berta Ribeiro com os Desana. Em 1980 o texto, intitulado “Os índios das águas negras” introduziu a publicação da obra Antes o mundo não exis- tia. Para a edição de 1995 foram compilados trechos para compor a apresentação da obra.
  • 206. Argumentação e Linguagem Capítulo 15 197 mitologia, dos ritos e costumes tribais” (1995, p. 13). Detentor da palavra, o kumu desana, também é capaz de simular verdades e, quando a ele for conveniente, fazer revelações grandiosas: “Mas meu pai não queria dizer nada, nem para o padre Casemiro, que tentou várias vezes perguntar, mas ele dizia só umas besteiras assim por alto. Só a mim é que ele ditou essas casas transformadoras” (PÃRÕKUMU; KEHÍRI, 1995, p. 11). Herdeiro de um poder capaz de fazer as coisas se tornarem reais – a Palavra – pode ocultar e revelar. Tudo se realiza mediante sua palavra como mediador de uma memória (conhecimento) antiga. As Musas são a própria Palavra porquanto filhas de Mnemosyne. Pãrõkumu não é, exatamente, a palavra, mas dignamente a representa e assim, detêm poder tal quais as filhas de Zeus. Enquanto o cosmos grego surge mediante o cantar das Musas, o mundo mítico desano recebe seus contornos mediante o narrar daquele que é digno de fazê-lo, o mediador que conhece e transita pelo espaço sagrado: o kumu. Um dos poucos que ainda restaram de uma cultura fértil. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS A palavra – escrita ou falada – pode presentificar o objeto do seu discurso numa narrativa. Todas as coisas passam a existir mediante sua ação e são ocultas se assim lhes for negada a evocação. A palavra, portanto, no espaço mítico, da causa de toda a existência, inclusive das divindades maiores; como se ela própria – a Palavra – fosse a deusa maior. Ela, no entanto, descende da linhagem mais nobre dos deuses: como Musa, como Verbo, como pensamento criador. A abordagem feita ao longo desta pesquisa ordenou a escrita para algumas direções e não para outra em função dos contornos próprios do trabalho desenvolvido. Sabe-se que outras questões, também pertinentes, poderiam e seria interessante que fossem aprofundadas. Mas a palavra realiza seu poder ontofânico num processo dialético de ocultação e de trazer à luz. E ao seu arauto cumpre apenas possibilitar sua execução. Seria a isso que Foucault chamaria de “poder do discurso”? Não convém, ao momento, tal debate. Não obstante, os elementos de tal poder é metamorfo chega a todos os tempos fazendo-se necessárias novas alternativas dialéticas e instrumentais teóricos para a sua abordagem. REFERÊNCIAS BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. 14ª ed. São Paulo: Cultrix, 2013. BICALHO, Charles Antônio de Paula. Koxuk, a imagem do yãmîy na poética maxakali. 2010. 229 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2010.
  • 207. Argumentação e Linguagem Capítulo 15 198 CASSIRER, Ernst. Linguagem e mito. Tradução de J. Guinsburg e Míriam Schnaider-man. 4ª ed. 4ª reimp. São Paulo: Perspectiva, 2013 CESARINO, Pedro de Niemeyer. Cartografias do cosmos: conhecimento, iconografia e artes verbais entre os marubo. MANA 19(3): 437-471, 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/mana/ v19n3/a02v19n3.pdf. Acesso em: 02.09.2015. ______. Quando a Terra deixou de falar: cantos da mitologia Marubo. São Paulo: Editora 34, 2013. COMPAGNON, Antoine. O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Tradução de Cleonice Paes Barreto Mourão e Consuelo Fontes Santiago. 2ª ed. 1ª reimp. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. CHAUI, Marilena. Introdução à história da Filosofia. Vol 1. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. DESANA. Etnias do rio Uaupés. Disponível em: http://pib.socioambiental.org/pt/povo/desana. Acesso em: 10.08.2015. ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Tradução Pola Civelli. São Paulo: Perspectiva, 1972. FINNEGAN, Ruth. O significado da literatura em culturas orais. ____.In: QUEIROZ,S.(Org.).A tradição oral. Belo Horizonte: FALE/UFMG. 2006. p. 64-104. HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. 2ª ed. 6ª reimp. Estudo e tradução: Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2014. JAEGER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução Artur M. Parreira. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fonte, 1994. JOÃO. Bíblia. Português. Bíblia de Jerusalém. Tradução de Euclides Martins Balancin & Cia. São Paulo: Paulus, 2002. p. 1842. Edição revista e ampliada. PÃRÕKUMU, Umusi; KEHÍRI, Tõrãmu. Antes o mundo não existia: mitologia dos antigos Desana- Kehíripõrã. 2ª ed. São João Batista do Rio Tiquié/São Gabriel da Cachoeira: UNIRT/FOIRN, 1995. PESSANHA, José Américo Motta Do mito à filosofia. p. 5-42. ____.In: PENSADORES. Os pré- socráticos: vida e obra. Tradução José Cavalcante de Souza & Cia. São Paulo: Nova Cultura, 1996. (Coleção Os Pensadores). SCHIPPER, Mineke. Literatura oral e literatura escrita. ____.In: QUEIROZ, S. (Org.). A tradição oral. Belo Horizonte: FALE/UFMG. 2006. p. 10-24. TORRANO, Jaa. O mundo como função de Musas. ____.In: HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. 2ª ed. 6ª reimp. Estudo e tradução: Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2014. p. 13-97. VERNANT, Jean-Pierre. Mito e religião na Grécia antiga. Tradução Joana Angélica D’Avila Melo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2006.
  • 208. Capítulo 16 199Argumentação e Linguagem MULTILETRAMENTOS NA FORMAÇÃO INICIAL DOCENTE: APROXIMAÇÕES ENTRE REFLEXÃO E AÇÃO CAPÍTULO 16 Maria de Lourdes Rossi Remenche Universidade Tecnológica Federal do Paraná- UTFPR Curitba – Paraná Ana Paula Pinheiro da Silveira Universidade Tecnológica Federal do Paraná- UTFPR Curitba – Paraná RESUMO: As Tecnologias de Informação e Comunicação (TDIC) mobilizam novas concepções dos processos de ensinar e aprender e, consequentemente, multiletramentos e novas posturas de trabalho docente na escola, em virtude da multiplicidade cultural das populações e da multiplicidade semiótica de constituição dos textos (ROJO, 2012). O presente trabalho, ancorado nos estudos sobre multiletramentos (COPE; KALANTZIS, 2009); (LEMKE; 2010); (STREET, 2003; 2013); buscou analisar as atividades propostas pelos licenciandos nas disciplinas de estágio de um Curso de Letras de uma universidade federal do sul do país, considerando as teorias que embasam as novas formas de ensinar e aprender mediadas pela Tecnologia. Este estudo, fundamentado no quadro teórico-metodológico da Linguística Aplicada, constitui-se em uma pesquisa qualitativo-interpretativa e analisou, por meio das atividades propostas e da observação das aulas, as ações interventivas dos licenciandos no que tange ao uso das TDIC. Os resultados obtidos evidenciam que a tecnologia é ainda utilizada como um recurso didático e pouco se consegue explorar a concepção de multiletramento, a multiplicidade de culturas e de semioses nas propostas desenvolvidas pelos alunos, o que aponta para a necessidade de qualificar as reflexões na formação inicial, nos Cursos de Letras, sobre as teorias que embasam a leitura e escrita dos gêneros multimodais. PALAVRAS-CHAVE: Multimodalidade; Multiletramentos; TDIC; Formação Inicial Docente. MULTILITERACIES IN INITIAL TEACHER EDUCATION: APPROACHES BETWEEN REFLECTION AND ACTION ABSTRACT: The Information and Communication Technologies (TDIC) mobilize new conceptions of the processes of teaching and learning and, consequently, multiletramentos and new positions of teaching work in the school, due to the cultural multiplicity of the populations and the semiotic multiplicity of the constitution of the texts (ROJO, 2012). The present work, anchored in the studies on
  • 209. Argumentação e Linguagem Capítulo 16 200 multiliteracies (COPE; KALANTZIS, 2009); (LEMKE, 2010); (STREET, 2003; 2013); sought to analyze the activities proposed by the licenciandos in the course subjects of a Course of Letters of a federal university in the south of the country, considering the theories that support the new ways of teaching and learning mediated by Technology. This study, based on the theoretical-methodological framework of Applied Linguistics, constitutes a qualitative-interpretative research and analyzed, through the proposed activities and the observation of the classes, the intervention actions of the licenciandos regarding the use of the TDIC. The results show that the technology is still used as a didactic resource and it is not possible to explore the concept of multiletramento, the multiplicity of cultures and semioses in the proposals developed by the students, which points to the need to qualify the reflections in the initial formation, in the Courses of Letters, on theories that support the reading and writing of multimodal genres. KEYWORDS: Multimodality; Multiliteracies; TDIC; Initial Teacher Education. 1 | CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA A cultura contemporânea, como consequência direta da evolução da cultura técnica moderna, não é o futuro que vai chegar, mas o presente em que os diferentes sujeitos vivem (LEMOS, 2003). Nesse contexto, a cibercultura é uma forma sociocultural que emerge de uma articulação entre a sociedade, a cultura e as Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação - TDIC. Essa articulação complexa faz emergir inúmeras demandas para a formação inicial docente, entendida aqui como “início, institucionalmente enquadrado e formal, de um processo de preparação e desenvolvimento da pessoa em ordem ao desempenho e realização profissional numa escola ao serviço de uma sociedade historicamente situada” (ESTRELA, 2002, P. 18). O trabalho com a formação inicial docente, por tudo isso, precisa de reflexão crítica sobre o processo de ensino, elaboração de projetos, apropriação das linguagens e tecnologias, e construção de competências científicas, ancoradas no domínio da investigação e da indagação, pois esses saberes são imprescindíveis ao processo de aprender a ensinar (Alves, 2001). Isso ocorre porque, cada vez mais, os licenciandos precisam atuar em espaços educativos multiculturais, constituídos por crianças e jovens usuários de TDIC e, consequentemente, sujeitos que navegam no ciberespaço como leitores, produtores de texto, colaboradores, curadores, entre outros. No tocante ao processo de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa, a formação inicial docente assume papel preponderante para capacitar os licenciandos para mobilizar um conjunto de saberes e capacidades imprescindíveis às práticas de leitura e escrita que fazem parte da vida social contemporânea. Ao discutir o tema, Xavier (2013) argumenta que A ocorrência de modificações nos modos de produção, organização e apresentação das ideias através da linguagem afetam profundamente a maneira como um dado conjunto de sujeitos adota, administra e consolida suas tradições culturais, regras sociais e relações político-econômicas (XAVIER, 2013, p. 44 - 45).
  • 210. Argumentação e Linguagem Capítulo 16 201 Na mesma linha, Street (2019) enfatiza que o processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita precisa mobilizar a variedade dos modos de comunicação existentes, e isso envolve o trabalho com a multimodalidade. Para o pesquisador, o trabalho com multimodalidade demanda um deslocamento em relação a abordagens mais tradicionais, pois envolve explorar a forma como professores e estudantes interagem no contexto pós-moderno da cibercultura. Ao problematizar o uso das TDIC em contexto escolar, Kenski (2003) argumenta que o sucesso da inserção da tecnologia demanda uma mudança pedagógico- organizacional nas práticas de ensino. Para a autora, Muitasvezesomauusodossuportestecnológicospeloprofessorpõeaperdertodoo trabalho pedagógico e a própria credibilidade do uso das tecnologias em atividades educacionais. Os educadores precisam compreender as especificidades desses equipamentos e suas melhores formas de utilização em projetos educacionais. O uso inadequado dessas tecnologias compromete o ensino e cria um sentimento aversivo em relação à sua utilização em outras atividades educacionais, difícil de ser superado (KENSKI, 2003, p. 50 - 51). A partir dessa problematização e considerando que o uso das TDIC no contexto educacional exige domínio das especificidades das tecnologias e dos recursos mobilizados, intencionalidades pedagógicas e compreensão dos diferentes contextos, formulamos as seguintes questões de investigação: a. Os professores de Língua Portuguesa, em contexto de estágio, mobilizam as TDIC como meio para o desenvolvimento de práticas pedagógicas? b. Ao mobilizarem as TIDIC, os licenciandos o fazem com quais objetivos? Compreendem os conceitos de letramento e mobilizam aspectos da multi- modalidade em textos verbo-visuais? Considerando essas questões, este artigo buscou analisar as atividades propostas por 10 licenciandos nas disciplinas de Estágio Obrigatório de um Curso de Letras de uma universidade federal do sul do país. Este estudo, fundamentado no quadro teórico-metodológico da Linguística Aplicada e, a partir de uma abordagem qualitativo-interpretativa, buscou analisar como esse grupo mobilizou, em contexto real de ensino – estágio obrigatório –, os conhecimentos sobre práticas multiletradas, que foram exploradas ao longo do curso de formação inicial, em seu fazer docente. A geração de dados se deu a partir da análise das atividades propostas, observação das aulas e das ações interventivas dos licenciandos na regência das aulas práticas de Estágio , ou seja, percorreu três semestres, na realidade do espaço-tempo escolar onde os licenciandos realizaram estudos teórico-práticos. 2 | OS MULTILETRAMENTOS E A PRÁTICA DOCENTE Os pesquisadores Bill Cope, Mary Kalantzis, Allan Luke, Carmen Luke e Martin Nakata, da Austrália; Courtney Cazden, James Gee e Sarah Michaels, dos Estados
  • 211. Argumentação e Linguagem Capítulo 16 202 Unidos; Norman Fairclough e Gunther Kress, do Reino Unido, reuniram-se em 1994, em New London , Estados Unidos, para discutir como os diversos grupos socioculturais, especialmente as crianças em idade escolar, exploram os variados sistemas semióticos para complementar ou mesmo substituir funções que, originalmente, estiveram relacionadas à escrita alfabética e, dessa forma, interagir em diferentes situações sociais de comunicação. Esse grupo de estudiosos ficou conhecido como New London Group (Grupo de Nova Londres) e cunhou o termo multiletramentos para nomear novas abordagens pedagógicas para o trabalho com letramentos emergentes na contemporaneidade, especialmente os relacionados às tecnologias digitais. Desde então esses estudos se ampliaram e apontam que o uso de diferentes dispositivos contribui para a integração de diferentes semioses nas práticas interativas, especialmente no contexto digital (Street, 2006). Nessa linha e em contexto brasileiro, Rojo (2013) chama a atenção para a duplicidade contida no vocábulo “múltiplos” que indica que as práticas de letramento contemporâneas dizem respeito não apenas à multiplicidade de linguagens, semioses e mídias envolvidas na criação de significação para os textos multimodais, como também à pluralidade e diversidade cultural trazida pelos sujeitos na produção de sentido. Esse trabalho, contudo, exige repertório cultural por parte do professor, além da mobilização de diferentes textos/discursos que favoreçam a ampliação do repertório cultural dos estudantes e, dessa forma, outros e novos letramentos. Nessa linha, Rojo (2012) reforça a importância de uma abordagem situada a partir da cultura de referência dos alunos e da exploração da diversidade de gêneros, mídias e linguagens. Para isso, o trabalho pedagógico demanda o uso de diferentes modos de representação para expressar sentidos em textos de gêneros diversificados, incluindo aí os produzidos na cibercultura (New London Group, 2000). No processo de ensino- aprendizagem de leitura e escrita, a multimodalidade, capacidade de articular modos - linguístico, visual, sonoro, gestual, espacial – torna-se cada vez mais necessário. RemencheeSilveira(2017)argumentamqueaescritaealeituraestãoimbrincadas na vida social e, nessa perspectiva, a formação inicial não pode deixar de considerar as mudanças da sociedade, incluindo as trazidas pela tecnologia, visto que essas tecnologias modificam o modo de representar e comunicar. Nesse sentido, os novos estudos sobre letramento precisam contemplar a multimodalidade e a hibridização. Ao discorrer sobre as diferentes semioses e a produção de sentido, Lemke (2010) defende que: Houve um tempo, talvez, em que podíamos acreditar que construir significados com a língua de algum modo era fundamentalmente diferente ou poderia ser tratado separadamente da produção de significados com recursos visuais ou padrões de ação corporal e interação social. Hoje, no entanto, nossas tecnologias estão nos movendo da era da ‘escrita’ para a era da ‘autoria multimidiática’ (LEMKE, 2010, p.456). Para o Grupo de Nova Londres, o conceito de multiletramentos percorre a multiplicidade de linguagens, visto que a produção dos gêneros multimodais aciona
  • 212. Argumentação e Linguagem Capítulo 16 203 diferentes linguagens, mídias e semioses, assim como a diversidade cultural (COPE; KALANTZIS, 2009). Isso fica claro no manifesto inaugural do Grupo - A Pedagogy of Multiliteracies – Designing Social Futures (Uma Pedagogia dos multiletramentos – desenhando futuros sociais), de 1990, no qual eles defendem a importância de explorar as novas relações e representações de cidadania, trabalho e vida pessoal no currículo escolar, isso, em uma sociedade nominada do conhecimento, inclui os novos modos de produção de textos, a multimodalidade e multiplicidade de culturas. Nessa proposta pedagógica, o Grupo caracterizou quatro dimensões com objetivos operacionalizáveis do ponto de vista pedagógico para a formação de: usuário funcional, criador de sentidos, analista crítico e prática transformadora, em outras palavras, como experimentar, conceituar, analisar e aplicar (COPE; KALANTZIS, 2009). A partir da análise dessa proposta é possível depreender que o objetivo é formar um usuário funcional capaz de ler diferentes gêneros discursivos, com competência técnica, com uma metodologia que lhe garanta capacidades para ler e produzir textos de modo crítico e, dessa forma, agir no e sobre os diferentes contextos em que estão inseridos. Para Rojo (2012), uma abordagem pedagógica sustentada na perspectiva dos multiletramentos: [...] caracteriza-se como um trabalho que parte das culturas de referência do alunado (popular, local, de massa) e de gêneros, mídias e linguagens por eles conhecidos, para buscar um enfoque crítico, pluralista, ético e democrático — que envolvam agência — de textos/discursos que ampliem o repertório cultural[...]. (ROJO, 2012, p. 8) Na formação inicial, essa abordagem contribui, na visão de Kalantzis e Cope (2012), para o desenvolvimento de sujeitos capazes de interpretar o mundo, considerando as diferentes realidades, além de uma participação mais efetiva em ambientes sociais e culturais diversificados (KALANTZIS; COPE, 2012). Nessa perspectiva, esses pesquisadores reforçam a ideia do trabalho em sala de aula com “projetos (designs) de futuro” a partir de três dimensões da vida em sociedades globalizadas: a diversidade produtiva; o pluralismo cívico e as identidades multifacetadas. Kleiman (2014), ao discutir a formação inicial do professor, enfatiza a necessidade de os cursos de licenciatura reafirmarem, junto aos licenciandos, a importância de uma prática autônoma e reflexiva. Para Kleiman (2014, p. 88), existem “[...] conceitos cristalizados sobre currículos, programas e métodos que, por melhores que sejam, não dão conta de toda a necessidade do ensino e da aprendizagem, e muitas vezes deturpam a nossa compreensão da escola e do letramento escolar”. A autora reforça ainda que as instituições de formação de professores não conseguiram: “suplantar as práticas escolares de letramento do início do século e parecem também estar perdendo a batalha hoje, pois as funções sociais da leitura não estão orientando práticas de ensino, que levem em conta as finalidades do uso da língua escrita”. (KLEIMAN (2014, p.74)
  • 213. Argumentação e Linguagem Capítulo 16 204 Pelo exposto até aqui, evidencia-se que não é suficiente ser um usuário de TDIC e conhecer o modo de uso de um suporte para mobililizar esses dispositivos tecnológicospedagogicamentenapráticadocente.Nessesentido,estabelecerobjetivos pedagógicos que acionem o uso de tecnologias é fundamental para construirmos um percurso de ensino-aprendizagem que dialogue com a cultura contemporânea, promova diferentes aprendizagens e proporcione a articulação de conhecimentos, culturas, instituições, mídias para a qualificação do processo de ensino-aprendizagem nos diferentes espaços, desde a universidade até a educação básica. 3 | APROXIMAÇÕES ENTRE REFLEXÃO E AÇÃO DIDÁTICA A formação inicial de docentes constitui uma etapa acadêmica centrada no desenvolvimento de competências teórico-práticas que vão sendo desenvolvidas ao longo do curso de licenciatura. Essa formação dialoga com os saberes dos futuros professores, afinal o professor vai tecendo seu fazer a partir dos muitos fios que envolvem experiências de ensino e de aprendizagem oriundas de sua história escolar. Nessa perspectiva, Geraldi (2010) afirma que: Nós nos formamos professores ao longo de alguns anos de estudos de certos conteúdos, que adquirimos, que encorpamos, e que nos remodelam, nos tornam a pessoa que não éramos. Seguramente, esse tipo de formação é consequência de um longo processo histórico de construção da identidade profissional do professor, que se mostra nos nossos cursos de formação. Certamente reconhecemos que desta forma nos formamos professores (GERALDI, 2010, p. 8). O processo de formação inicial é mais um desses fios que compõem a trama da docência. Para contextualizar esse percurso formativo inicial, faremos um breve relato do caminho percorrido pelos futuros professores. O curso de Licenciatura Letras Português-Inglês em estudo contempla 08 semestres, totalizando um período de 04 anos. No 5º período do referido curso, os licenciandos iniciam as disciplinas de Estágio Obrigatório Supervisionado que visa propiciar ao professor em formação inicial a aplicação da pedagogia de projetos, por meio da criação de situações problematizadoras e resoluções dadas pela coletividade. Desse modo, eles realizam, em diálogo, as disciplinas de Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa e Estágio Curricular I. Os licenciandos realizam três semestres de Estágio Obrigatório (I, II e II). No Estágio Curricular Obrigatório II colocam-se em diálogo os fundamentos epistemológicos do ensino da Literatura, por isso os dados não serão analisados neste estudo. O objetivo de um trabalho aproximado com as duas disciplinas não é apenas discutir as políticas públicas e fortalecer as concepções de linguagem, letramento, processo de ensino-aprendizagem de leitura e produção textual, mas também aproximar a reflexão teórica à prática docente. Assim, à medida que os estudantes vão realizando as discussões
  • 214. Argumentação e Linguagem Capítulo 16 205 epistemológicas, vão também construindo um projeto didático a ser desenvolvido na regência das aulas, realizada na disciplina de Estágio Curricular I. Os licenciandos realizam 08 aulas de observação de uma turma do Ensino Fundamental anos finais ou Ensino Médio e, em dupla, desenvolvem um projeto didático para a regência de aulas com vistas a articular atividades de oralidade, leitura, produção de texto, Análise Linguística e, quando possível, reescrita de textos. O projeto didático consiste num documento em que os professores em formação inicial planejam suas ações para as aulas de regência que deverá abordar o tema proposto pelo professor formador, mais especificamente o professor regente da turma em que a aula de regência se dará. No desenvolvimento do trabalho com a disciplina de Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa são explorados textos que favoreçam à reflexão do aluno para a compreensão das concepções de linguagem e ensino, bem como articulação dos eixos de leitura, produção textual e análise linguística, por meio do trabalho com gêneros textuais. Na disciplina de Estágio Supervisionado são discutidos documentos oficiais de ensino (PCNs e Diretrizes Curriculares da Educação Básica de Língua Portuguesa do Estado do Paraná) com ênfase na abordagem dos gêneros textuais em contexto de sala de aula para o trabalho com as práticas de leitura e produção de textos. No Estágio III, o aluno pode optar por desenvolver as suas ações no Ensino Fundamental II ou no Ensino Médio, articulando os conteúdos de língua e literatura. Entendemos que essa formação didático-pedagógica é fundamental para instrumentalizar os futuros professores de saberes profissionais fundamentais ao exercício da profissão. Formosinho (2001, p. 52), nesse sentido, afirma que o futuro professor precisa “experienciar métodos e técnicas diferentes das já observadas no seu anterior currículo discente e, assim, alargar o reportório de experiências que poderá transferir para o desempenho docente”. Como comentado anteriormente, a análise se deu a partir do projeto pedagógico desenvolvido, os planos de ensino, a observação das aulas e dos relatórios de 10 professores em formação inicial. Nosso objetivo foi analisar como esses futuros professores mobilizavam os conhecimentos teóricos sobre Gênero, tecnologia e multiletramentos na articulação do trabalho com as práticas de leitura e escrita, ou seja, analisar como os licenciandos mobilizam a reflexão sobre os conhecimentos teóricos aos quais tiveram acesso durante a formação para, a partir deles, elaborar suas ações didáticas. Ao que concerne o trabalho com os gêneros discursivos, conforme preconizam os PCN e as Diretrizes Curriculares da Educação Básica no Paraná (2006), observou- se que os alunos tinham conhecimento sobre a teoria, fizeram escolhas relevantes para o planejamento das aulas e realizaram, baseado nos gêneros selecionados, uma articulação entre os eixos do ensino de leitura, Produção Textual e Análise Linguística. Nem sempre, porém, a leitura do texto promoveu uma análise aprofundada que tivesse como objetivo questões discursivas e enunciativas. Verificamos que a ênfase do
  • 215. Argumentação e Linguagem Capítulo 16 206 trabalho ainda recai na construção composicional e no tema, enquanto a abordagem sobre estilo ainda fica relegada a um segundo plano e, quando aparece, traz apenas aspectos superficiais. O quadro abaixo apresenta os gêneros selecionados para a elaboração do projeto didático, nele, podemos verificar uma variedade de gêneros que mobilizam a linguagem verbo-visual: Fonte: Remenche e Silveira, 2019. A análise dos planos de ensino, bem como dos relatórios de estágio, revelou que 80% dos licenciandos, ao produzirem o material didático, utilizaram TIDIC, em consonância com o documento que estabelece diretrizes para a formação dos profissionais que atuam na Educação Básica, que define que a formação deve propiciar ao egresso dos cursos de licenciatura o “uso competente das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) para o aprimoramento da prática pedagógica e a ampliação da formação cultural dos(das) professores(as) e estudantes” (BRASIL, 2015, p. 6), Dentre outras questões, precisamos considerar que, no contexto atual, muitos textos circulam em ambiente digital e os licenciandos, bem como os alunos da educação básica que constituem o público nas aulas de regência de Estágio, estão inseridos em situações de interação que envolvem o uso de tecnologia e de suporte digital. Portanto, esse uso não revelou dado novo, pois não necessariamente evidencia intencionalidade pedagógica na mobilização do recurso. Ao olhar para esses dados, podemos inferir que os licenciados, ao fazerem uso das TIDIC, compreendem que muitos dos gêneros selecionados exigem conhecimento específico para a leitura de textos verbo-visuais, assim como a compreensão de como o suporte digital interfere na construção de sentidos desses novos textos. Verificamos também uma abordagem dos elementos não verbais como as cores, as figuras, a posição da imagem, o tamanho, o enquadramento. Isso revela clareza na composição
  • 216. Argumentação e Linguagem Capítulo 16 207 do texto multimodal e da importância de se trabalhar com os diferentes aspectos semióticos que compõem o texto. Contudo, a análise revelou também que, embora as TIDIC tenham sido utilizadas por 80% dos licenciandos, apenas 10% explicitaram o conceito de multiletramento ao refletir sobre sua prática no relatório de Estágio, conforme se verifica no trecho extraído do relatório “O trabalho do estágio é de extrema importância para o crescimento do licenciado, ressaltando que é nesse momento que todo o trabalho realizado durante o curso, o que foi aprendido nas disciplinas específicas de metodologia é colocado em prova” (Licenciando 3). Esse dado é reforçado pelo fato de que somente 20% dos licenciandos elaboraram objetivos que exploravam a multimodalidade presente nos textos. Isso evidencia que, conquanto os futuros professores conheçam aspectos teóricos e sejam usuários de TDIC, ainda não a mobilizam com intencionalidade pedagógica em sua prática docente. Esses dados são demonstrados no gráfico que segue: Fonte: Remenche e Silveira, 2019. O projeto didático de um licenciando que se propôs a trabalhar com o gênero artigo de opinião, por exemplo, intitulou-se “Diferentes modos de materialização da opinião em textos multissemióticos”. Importante observar que esse licenciando que empregou o conceito de multimodalidade no título do seu projeto (“modos de materialização”) é o mesmo que, no relatório, elaborou uma reflexão sobre a pedagogia dos multiletramentos, demonstrando, desse modo, uma prática baseada em escolhas teórico-metodológicas para seu fazer docente. No projeto intitulado “O Menino e O Mundo - O Texto Multimodal e A Resenha”, o licenciando selecionou a animação de Ale Abreu, uma obra que rompe com a
  • 217. Argumentação e Linguagem Capítulo 16 208 concepção de verbal, já que não há palavras, ou melhor, os poucos diálogos são ditos ao contrário, o que vai exigir do leitor uma articulação das linguagens visual, sonora e ritmo para construir sentidos para o texto. A proposta era explicita ao requerer a análise de um texto multimodal e traçar objetivo que propiciava ao aluno compreender como se dá a construção de sentidos em textos imagéticos, conforme o objetivo de ensino “tornar o estudante apto a identificar aspectos narrativos - tempo, espaço, perspectiva - não apenas em textos verbais, mas também em textos visuais”. Encontramos também projetos que não fazem menção a esse trabalho como, por exemplo, a proposta de trabalho com o gênero resenha a partir de filmes, que não havia menção à articulação da linguagem verbo-visual para a produção de sentido. Daley (2010, p. 488), nesse sentido, defende que:   Para ler ou escrever a linguagem da mídia e para entender como ela cria significado em contextos específicos, é preciso algum conhecimento de composição em frames, paleta de cor, técnicas de edição, relação entre som e imagem, assim como a mobilização de convenções narrativas e de gênero, e ainda o contexto de signos e imagens, o som como um veículo do significado, e os efeitos da tipografia. Verificamos que, ao operacionalizar a proposta do trabalho com gênero resenha baseado em filmes, o licenciado estabeleceu como objetivo de ensino “Refletir sobre escolhas textuais a fim de melhor construir-se um texto do gênero; desenvolver a capacidade argumentativa de cada aluno para que eles possam criticar fatores técnicos”, ou seja, ignoroua reflexão sobre como os recursos multissemióticos, como defende Daley (2010). O gráfico que segue apresenta um apanhado geral de como o uso da tecnologia ainda possui caráter motivador no espaço-tempo da escola, mormente apresentado como temática ou como recurso pedagógico, mas a reflexão sobre a linguagem ainda é tímida. Isso revela um trabalho voltado à tecnologia como um fim em si mesma, e não como meio para se qualificar aprendizagens e desenvolver habilidades ligadas à pesquisa, escrita colaborativa, análise crítica de fontes, curadoria, leitura de hipertexto, entre outras práticas significativas de leitura e escrita escolares. Fonte: Remenche e Silveira, 2017.
  • 218. Argumentação e Linguagem Capítulo 16 209 Precisamos observar que os dados apresentados aqui são parciais e referem- se à formação inicial de professores, por isso são professores em formação e em contínuo processo de aprendizagens sobre o fazer docente. Nesse sentido, Ribeiro (2013) argumenta que os conhecimentos são continuamente afetados por novas condições históricas, por isso, na formação inicial, [...] tanto os conhecimentos teóricos específicos da formação do professor de Português quanto à recriação destes no espaço da prática pedagógica se constituem orientados por forças históricas movidas pela complexidade e pela contradição que lhe são constitutivas”. (RIBEIRO, 2013, p. 273). Nessa perspectiva, entendemos que a discussão e reflexão contínuo sobre o fazer pedagógico é o caminho para qualificarmos o processo de formação e definirmos nossas intencionalidades nesse trabalho. 4 | ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Neste artigo, fizemos uma breve retomada dos contextos contemporâneos envolvendo as TDIC e verificamos que as tecnologias midiáticas vêm assumido um papel significativo na configuração/organização da cibercultura em que os diferentes textos hipermidiáticos são produzidos. Isso gera novos olhares para as tecnologias e acaba por promover um processo de ressignificação, pois “As mídias [...] invadem o cotidiano das pessoas e passam a fazer parte dele. Para seus frequentes usuários não são mais vistas como tecnologias, mas como complementos, como companhias, como continuação de seu espaço de vida”. (KENSKI, 2003, p. 25). Considerando esse contexto contemporâneo e a complexidade de saberes mobilizados na formação inicial - científicos, didático-pedagógicos e oriundos das TDIC -, nossa busca foi observar em que medida os saberes sobre as TDIC e aspectos voltados aos multiletramentos, explorados na formação inicial, seriam mobilizados nas atividades elaboradas pelos licenciandos. A análise evidenciou que, embora os licenciandos já tivessem explorados alguns aspectos nas disciplinas do curso de formação inicial e dominassem os recursos tecnológicos disponíveis, eles apresentaram dificuldades para mobilizar esses recursos em seu fazer docente, ou seja, não ocorreu uma elaboração dos conhecimentos explorados pela instância formadora (universidade) para atuação dos estagiários nas suas aulas de regência na disciplina de Estágio Obrigatório I. Verificamos que a tecnologia ainda é utilizada como um recurso didático e pouco se consegue explorar a concepção de multiletramento, a multiplicidade de culturas e de semioses nas propostas desenvolvidas pelos alunos. Essas observações jogam luzes sobre a necessidade não só de estreitarmos as relações teoria-prática, como também de dinamização do currículo de formação inicial dos futuros professores. Tal abordagem implica considerar os contextos e as culturas dos sujeitos envolvidos no processo educacional a fim de atender/dialogar a/com as demandas contemporâneas.
  • 219. Argumentação e Linguagem Capítulo 16 210 REFERÊNCIAS BATES, A. Managing Technological Change: Strategies for College and University Leaders. San Francisco: Jossey Bass, 2000. BRASIL. Parecer CNE/CP nº 2/2015, aprovado em 9 de junho de 2015 - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial e Continuada dos Profissionais do Magistério da Educação Básica. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=17625- parecer-cne-cp-2-2015-aprovado-9-junho-2015&category_slug=junho-2015-pdf&Itemid=30192. Acesso em 14 marco 2019. COPE, B.; KALANTZIS, M. “Multiliteracies”: new literacies, new learning, Pedagogies: An International Journal, v. 4, n. 3, p. 164-195, 2009. Disponível em: <http://newlearningonline. com/ files/2009/03/pedagogiesm-litsarticle1.pdf>. Acesso em: 11 abril. 2019. GERALDI, João Wanderley. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010. KENSKI, Vani Moreira. Aprendizagem mediada pela tecnologia. Revista diálogo educacional, v. 4, n. 10, p. 47-56, Curitiba, 2003. KLEIMAN, Ângela Bustos. Letramento na contemporaneidade. Revista Bakhtiniana. n. 9 (2). ago./ dez., p. 72-91, São Paulo, 2014. LEMKE, J. L. Letramento metamidiático: transformando significados e mídias. Trabalhos em Linguística Aplicada, Campinas, v. 49, n. 2, p. 455-479, jul./dez. 2010. LEMOS, André. Cibercultura. Alguns pontos para compreender a nossa época. In: LEMOS, A.; CUNHA, P. (Org.). Olhares sobre a cibercultura. Sulina, Porto Alegre, 2003. NEW LONDON GROUP. A pedagogy of multiliteracies: designing social futures. In: B. Cope, & M. Kalantzis. (Eds.). Multiliteracies: literacy learning and the design of social futures (pp. 9-37). New York: Routledge, 2000. REMENCHE, Maria de Lourdes Rossi; SILVEIRA, Ana Paula P. Aos olhos de uma criança: o videoclipe como prática de letramento. INTERDISCIPLINAR: Revista de Estudos em Língua e em Literatura.Sergipe. V. 27 . jan-jun, p. 107-120, 2017. RIBEIRO, N. B. O discurso da relação entre teoria e prática na formação do professor de Português. SIGNUM: Estud. Ling., Londrina, n. 16/2, p. 271-292, dez. 2013. ROJO, Roxane; MOURA, Eduardo. Multiletramentos na escola. São Paulo: Parábola editorial, 2012 _____. Gêneros discursivos do Círculo de Bakhtin e multiletramentos. In: _____ (Org.). Escol@ conectada: os multiletramentos e as TICs. 1. ed. São Paulo: Parábola, 2013. p. 13-36. STREET, Brian. Multimodalidade. In: Glossário Ceale. Disponível em: <http://www.ceale.fae.ufmg.br/ app/webroot/glossarioceale/verbetes/multimodalidade>. Acesso em: 06 abr. 2019. XAVIER, Antônio Carlos. A era do hipertexto: linguagem e tecnologia. Recife: Pipa Comunicação, 2013.
  • 220. Capítulo 17 211Argumentação e Linguagem O MÉTODO FÔNICO E A CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO CAPÍTULO 17 Alice Santos Pimentel Nunes Universidade Federal do Pará - UFPA. Instituto de Letras e Comunicação/Faculdade de Letras. Monte Alegre- PA Terezinha de Jesus Dias Pacheco Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. Instituto de Ciências da Sociedade, Programa de Letras. Santarém - PA RESUMO: O objetivo principal da presente pesquisa foi investigar que tipo de método de alfabetização os professores de 4 escolas públicas do Ensino Fundamental aplicam no processo de alfabetização e qual a relação desses métodos com a consciência fonológica. O método fônico enfatiza a necessidade de instrução fônica explícita e sistematizada, sendo de suma importância para o aluno aprender a ler, em menos tempo, e a desenvolver a consciência fonológica, na medida em que for fazendo essa relação letra/som e vice-versa, e identificando e discriminando os diferentes sons da língua portuguesa. Para isso, coletou-se os dados através de questionários e entrevistas com a principal finalidade de investigar se as professoras que foram os sujeitos da pesquisa, ao alfabetizarem as crianças desenvolviam neles a consciência fonológica. Pesquisas, comoasdeCapovilla&Seabra(2012),apontam que o método usado pelos professores para ensinar seus alunos é o grande diferencial no processo de aprendizado de leitura e escrita. Partindo do princípio que esses teóricos asseguram ser de suma importância o uso de métodos eficazes no processo de leitura e escrita e no desenvolvimento da consciência fonológica. Considerando o corpus da pesquisa, o resultado revelou que os dados coletados comprovam que, em Monte Alegre, quando os alunos são alfabetizados, não há um método específico e nem o desenvolvimento da consciência fonológica do aluno. PALAVRAS-CHAVE: método fônico, consciência fonológica, processo de alfabetização. THE PHONICAL METHOD AND PHONOLOGICAL CONSCIOUSNESS IN THE LITERACY PROCESS ABSTRACT: This research has the main objective to investigate what are kind of literacy method the teachers of 4 public elementary schoolsapplyintheliteracyprocessandwhatare the relation of these methods with phonological awareness. The phonic method emphasizes the need for explicit and systematized phonic instruction, and it is of most importance for
  • 221. Argumentação e Linguagem Capítulo 17 212 the student learn to read in less time and to develop phonological awareness, in so far as it is doing this letter / sound relationship and vice versa , and identifying and discriminating the different sounds of the Portuguese language. For this, I collected data through questionnaires and interviews with the main purpose of investigating whether the teachers who were the subjects of the research, when they literacy the children developed in them the phonological awareness. Researchers, such as Capovilla & Seabra (2012), point out that the method used by teachers to teach their students is the great differential in the process of learning to read and write. Assuming that these theorists assure to be of fundamental importance the use of effective methods in the process of reading and writing and in the development of phonological awareness. Considering this research, I prove that in Monte Alegre, when students are literate there is no specific method or development of the student’s phonological awareness. KEYWORDS: phonic method, phonological awareness, literacy process. 1 | INTRODUÇÃO Há muito se tem discutido sobre os métodos de alfabetização em nosso país. Pesquisadores se têm debruçado sobre pesquisas em várias áreas do conhecimento como psicolinguística, psicopedagogia, psicologia cognitiva e dentre outras que vem contribuindo para o avanço da leitura e escrita. Pesquisas, como as de Capovilla & Seabra (2012), apontam que o método usado pelos professores para ensinar seus alunos é o grande diferencial no processo de aprendizado de leitura e escrita. Essa pesquisa não só quer chamar a atenção para importância do método fônico, no que tange o desenvolvimento da consciência fonológica na criança, no processo de alfabetização como também alertar que professores das escolas de Monte Alegre, os quais fizeram parte dessa pesquisa, ainda não desenvolvem a consciência fonológica em seus alunos. É importante ressaltar que o uso do método fônico corrobora com o ensino da leitura e escrita, propondo o ensino sistemático explicito das relações entre letras e sons do código alfabético ou qualquer língua que tenha a escrita alfabética. “o método fônico é o único que leva em conta o ensino explicito do código alfabético e o da relação grafema-fonema” (SCHERER, 2012, p.114). Entretanto, para ler em um sistema de escrita alfabético como o nosso, é de suma importância que o aluno aprenda primeiramente essa relação por meio do ensino explícito do código alfabético, igualmente, ressalta-se que “para ler em um sistema alfabético é necessário decodificar, converter grafemas em fonemas”. (SCHERER, 2012, p.117). Para a realização dessa pesquisa leu-se vários teóricos como Capovilla & Seabra (2012), Ubiratã Alves, Ana Paula Scherer, Elizabeth Almeida, Patrícia Duarte, Ana Paula Blanco-Dutra, Leonor Scliar-Cabral e tantos outros que discutem a importância da consciência fonológica no processo de alfabetização nas crianças das séries iniciais no Ensino Fundamental. A leitura desses autores constituiu a base teórica
  • 222. Argumentação e Linguagem Capítulo 17 213 dessa pesquisa, porque eles não só definem o que é consciência fonológica como também discutem as práticas pedagógicas que podem ser aplicadas, quando se quer trabalhar, na sala de aula, com o método fônico para o desenvolvimento da consciência fonológica dos alunos. Os instrumentos para coletar os dados foram dois: questionário e entrevistas com os sujeitos da pesquisa, que foram as professoras de 4 escolas da rede municipal do município de Monte Alegre no estado do Pará totalizando em 5 professoras. Uma vez coletados os dados, fez-se a análise, constatando-se que os sujeitos da pesquisa, ao alfabetizarem as crianças, trabalham com o método tradicional denominado método silábico, e, que por esse motivo, não desenvolvem a consciência fonológica em seus alunos. É importante ressaltar que na formação profissional desses professores, não é trabalhado no currículo a consciência fonológica. Por essa razão, eles desconhecem a importância de trabalhar a consciência fonológica no processo de alfabetização. Esse artigo está dividido em três partes, a saber: a primeira parte traz uma discussão sobre o que é o método fônico. Vários autores expõem o seu conceito sobre isso, ficando muito claro para o leito o que o método fônico e a sua importância para o processo de alfabetização. Na segunda parte desenvolvem-se os conceitos sobre consciência fonológica, procurando esclarecer como ocorre na mente da criança, e na terceira parte a metodologia e análise da pesquisa realizada. Foi uma pesquisa que trouxe um conteúdo muito importante para professores que alfabetizam e que necessitam desenvolver a consciência fonológica em seus alunos. 2 | MÉTODO FÔNICO 2.1 Concepção O método fônico consiste em ensinar as correspondências grafofonêmicas, isto é, a relação entre letra e o seu respectivo som; e a desenvolver as habilidades metafonológicas, ou seja, a habilidade de manipular e refletir sobre os sons da fala de maneira a estimular o seu desenvolvimento fonológico. Visto que, através desse método, a criança adquire a competência de leitura e escrita à medida que vai codificando fonografêmicamente e decodificando grafofonêmicamente. O método fônico enfatiza a necessidade de instrução fônica explícita e sistematizada, sendo de suma importância para o aluno aprender a ler em menos tempo e a desenvolver juntamente a consciência fonológica, na medida em que for fazendo essa relação letra/som e vice-versa, e identificando e discriminando os diferentes sons da língua portuguesa.
  • 223. Argumentação e Linguagem Capítulo 17 214 2.2 Especificidade do Método Fônico O Método baseia-se em instruções fônicas e instruções metafonológicas - como quesito fundamental para uma aprendizagem eficaz de leitura e escrita na alfabetização de crianças com e sem distúrbios de aprendizagem. É considerado sintético, pois sua forma de ensinar é do simples para o complexo. Iniciando pelo som da letra, em seguida as sílabas, palavras, frases e finalmente o texto. (SEABRA, 2011; SEABRA & CAPOVILLA, 2010). Segundo os autores, as instruções são imprescindíveis para o desenvolvimento da criança no que tange a leitura e escrita, pois suas habilidades serão desenvolvidas gradativamente, á medida que elas são expostas ao ensino explícito e sistemático do princípio fônico, haja vista que [...]asabordagensfônicasusualmentepropõemoensinoexplícitoesistemático,com grau crescente de dificuldade, das habilidades de decodificação grafofonêmica e de codificação fonografêmica, paralelamente ao trabalho para desenvolvimento da consciência fonológica. (SEABRA & DIAS, 2011, p.312). Essa proposta é abordada com grau de dificuldade crescente, pois ensinam- se as letras cujos nomes são similares ao respectivo som, para depois ensinar as letras que representam sons diferentes do seu nome, e posteriormente as letras que representam mais de um som. Portanto, por meio dessas instruções explícitas e sistemáticas, a criança é instruída a fazer a correspondência entre letras e sons, e com a prática desenvolve a habilidade de converter os sons que ouve em escrita e vice-versa. As instruções metafonológicas, referente aos procedimentos, é habilidade de refletir sobre a estrutura fonológica da linguagem oral de forma consciente, como: trocar, suprimir e adicionar os sons a fala de maneira a estimular o desenvolvimento da consciênciafonológicalevandoacriançaaadquirirleituraeescritacompetentesàmedida que vai codificando (fonografêmicamente) e decodificando (grofofonêmicamente). (SEABRA & CAPOVILLA, 2010). Entretanto, conforme o conceito dos autores, as instruções metafonológicas consistem Na habilidade de lidar intencionalmente com as propriedades fonológicas da fala, como, por exemplo, julgar se dois sons da fala se assemelham ou não, ou dizer como fica uma dada sequência de sons da fala quando são adicionadas ou removidas determinadas partes (SEABRA & CAPOVILLA, 2011, p.64). As habilidades serão desenvolvidas a partir de atividades lúdicas que o método propicia por meio de suas abordagens fônicas. Sendo que as atividades fônicas se concentram no código alfabético em ensinar a criança a fazer a correspondência entre letras e sons de maneira sistemática para a construção de leitura e escrita, levando-a a codificar os sons que ouve por meio da escrita e decodificar a escrita na fala. E, as atividades metafonológicas concentram-se em exercícios para o desenvolvimento da consciência fonológica em nível fonêmico, ou seja, a cada atividade é composta
  • 224. Argumentação e Linguagem Capítulo 17 215 gradativamente em nível de dificuldade crescente. O uso do método propõe o ensino de forma objetiva para uma boa compreensão do código alfabético ou outra língua que tenha a escrita alfabética. “O método fônico é o único que leva em conta o ensino explicito do código alfabético e o da relação grafema-fonema” (SCHERER, 2012, p.114). Essa característica que ele possui facilita ao professor alfabetizar a criança de modo a proporcionar resultados satisfatórios na alfabetização. 3 | CONSCIÊNCIA FONOLÓGICA 3.1 Concepção Inúmeras pesquisas no âmbito da consciência fonológica para aquisição da leitura tem consolidado a relevância de tal habilidade para o desenvolvimento da leitura e escrita. Segundo Seabra e Capovilla (2010); Blanco-Dutra, Rigatti Scherer, Brisolara (2012 p.75), vários estudos relatam que a habilidade de estar conscientemente atentos aos sons da fala tem relação com o sucesso na aquisição da leitura e escrita. Havendo uma estreita relação entre consciência fonológica e aquisição da escrita por crianças e adultos, esta por sua vez auxilia no desenvolvimento da consciência fonológica. A consciência fonológica é definida por alguns autores como sendo “a capacidade de identificar que as palavras são constituídas por sons que podem ser manipulados conscientemente. Ela permite à criança reconhecer que as palavras rimam, terminam ou começam com o mesmo som e são compostas por sons individuais que podem ser manipulados para a formação de novas palavras”. (LAMPRECHT, 2012 p.32) Para Capovilla (2005) a consciência fonológica é a habilidade de prestar atenção aos sons da fala como entidades independentes de seu significado. A habilidade de reconhecer aliteração e rimas e a habilidade de contar sílabas nas palavras são alguns dos indicadores de consciência fonológica. A consciência fonológica envolve níveis gradativos que serão desenvolvidos, à medida, em que a criança vai tornando-se consciente que as palavras representam os sons da fala. “A noção de consciência fonológica é ampla, envolvendo um grande número de habilidades, reflexão e manipulação em diferentes níveis, que podem exibir um grau menor ou maior de complexidade” (ALVES, 2012, p. 33). 3.2 Níveis de consciência fonológica Segundo Adams et. al. (2006) e Alves (2012) A consciência fonológica é muito ampla, englobando todos os tipos de consciência que compõem o sistema de certa língua, sendo composta por níveis como: a consciência de sílabas, a consciência intrassilábica e consciência fonêmica, as quais se apresentam com grau de dificuldades em maior ou menor complexidade.
  • 225. Argumentação e Linguagem Capítulo 17 216 Alguns níveis surgem naturalmente em fases diferenciadas do desenvolvimento linguístico da criança, e outros precisam de instruções explícitas e sistemáticas do código alfabético. Diante disso, [...] os níveis de consciência fonológica desenvolvem-se de maneira diferenciada e individual, se organizam em níveis de complexidade. Os níveis silábico e intrassilábico são menos complexos e podem ocorrer antes do processo de alfabetização. Entretanto o nível fonêmico é mais complexo e, na maioria das vezes, ocorre a partir do ensino formal da língua escrita. (BLANCO-DUTRA, SCHERER; BRISOLARA, 2012, p. 84). Conforme os autores supracitados, o processo de consciência fonológica ocorre em três níveis distintos, onde certas habilidades serão mais perceptíveis e desenvolvidas com maior rapidez pela criança do que em outras. Haja vista que, cada nível vai se revelando de acordo com a maturação da criança, pois, o processo de desenvolvimento da consciência fonológica em nível silábico é uma das primeiras habilidades que a criança desenvolve dentro da consciência fonológica e não exige assim, tanto esforço linguístico por parte da criança. A consciência em nível silábico é caracterizada por segmentar a palavra em sílabas, por exemplo, a palavra bola, ela pode ser dividida em dois segmentos: BO – LA, e essa habilidade, segundo os autores, exige um grau de complexidade mais simples para que a criança perceba tal segmentação dentro da própria língua que ela fala. A consciência em nível intrassilábico são as rimas e aliterações, igualmente ao nível anterior, são mais perceptíveis para a criança não requerendo tanto esforço assim por parte da consciência fonológica do aluno para notar tais sons na língua, uma vez que, “a detecção de rimas está entre as tarefas de consciência fonológica de mais fácil domínio por crianças pré-escolares” (CARDOSO-MARTINS; DUARTE, 1994 apud CORRÊA e MACLEAN, 2011, p.133). Este nível sucederá a consciência em nível do fonema, um dos níveis mais complexo a ser desenvolvido e apreendido fonologicamente pelo aluno, neste sentido, “competências de análise fonológica menos complexas seriam não só adquiridas mais cedo como poderiam ter tidas como precursoras de outras mais complexas”. (CORREA e MACLEAN, 2011, p. 133.) E por último vem à consciência fonêmica que é definida como sendo a “capacidade de reconhecer e manipular as menores unidades de som que possuem caráter distintivo na língua”. Esse nível é de difícil complexidade fonológica, segundo os autores, pois ela requer um ensino sistemático e explícito do código alfabético para que a criança possa ter a percepção dos sons distintivos que existe ao manipular os fonemas nas palavras. Esse nível faz com que a palavra tenha significados diferentes de acordo com a troca de uma letra por outra, o que implica em unidades ainda menores que uma sílaba, que é o fonema, pois essa consciência “implica saber reconhecer que as palavras são constituídas de sons de caráter distintivo, envolvendo a capacidade de manipulação que inclui segmentar, unir ou modificar tais sons distintivos individuais para a criação
  • 226. Argumentação e Linguagem Capítulo 17 217 de novas palavras” (ALVES, 2012, p.33). Segundo Seabra & Capovilla (2010, p. 122), esse é o nível mais difícil a ser adquirido pela criança, por se tratar de unidades mínimas, e requer instruções explícitas e sistemáticas para que a criança aprenda a ler mais rápido. Para ser capaz de identificar fonemas individuais, a criança precisa receber instrução explícita sobre regras de mapeamento da escrita alfabética, isto é, o ensino formal e sistemático da correspondência entre os elementos fonêmicos da fala e os elementos grafêmicos da escrita. Conforme os autores o processo de desenvolvimento da consciência fonológica ocorre em níveis diferenciados, exigindo um grau de habilidades que amadurecerão na medida em que a criança vai se tornando consciente que os sons da língua representam os grafemas e que eles podem se decompor em pedacinhos menores que uma sílaba. Os níveis silábicos, intrassilábicos e fonêmicos podem ser desenvolvidos pelo professor através de atividades lúdicas que levam a criança a identificar, trocar, manipular os fonemas nas palavras para construção de novas palavras com significados diferentes. As atividades são enfatizadas de acordo com grau de complexidade fonológica em que irá da simples percepção de palavras que rimem como exemplo: café, chulé, e as aliterações são as palavras que possuem sons iniciais iguais, Ex.: mala, mesa. Sendo que “os estágios iniciais da consciência fonológica contribuem para o desenvolvimento dos estágios iniciais do processo de leitura. Por sua vez, as habilidades desenvolvidas na leitura contribuem para o desenvolvimento de habilidades de consciência fonológica mais complexas (SEABRA e CAPOVILLA, 2010 p.123). 4 | PESQUISA DE CAMPO 4.1 Coleta de dados Considerando os estudos realizados pelos autores Seabra e Capovilla (2010), bem como seus experimentos com o método fônico e a sua vasta bibliografia a respeito do assunto, e como funcionou em determinados países como Estados Unidos, Grã- Bretanha e Dinamarca com outros teóricos, e no Brasil com os autores supracitados, instigou-se o interesse a perquirir o método adotado pelos professores no município de Monte Alegre, considerado por eles relevante no processo de alfabetização e qual a relação dele com a consciência fonológica dos alunos. A pesquisa foi realizada nas Escolas Municipais de Educação Infantil e Ensino Fundamental Professor Orlando Costa, localizada na Travessa Major Francisco Mariano n° 284, Cidade Alta; Escola Dr. José Gama Malcher; Escola Archimimo Baia da Costa; localizada Avenida Nilo Peçanha, s/n – Terra Amarela; Escola Professora Maria Erandir Nogueira, localizada na Rua Monte Alegre, s/nº, Bairro de Terra Amarela.
  • 227. Argumentação e Linguagem Capítulo 17 218 As duas primeiras escolas estão localizadas em bairros centrais da cidade e as duas últimas em bairros periféricos. A pesquisa de campo foi investigativa, realizada através da aplicação de um questionário com seis perguntas objetivas com a pretensão de alcançar o escopo da pesquisa: investigar quais são os métodos de alfabetização que os docentes utilizavam em suas práticas pedagógicas e se havia alguma relação desses métodos com a consciência fonológica. A referida pesquisa teve como público alvo cinco professoras de seis turmas de 1º Ano (antiga alfabetização), que foram denominadas pelas letras A, B, C, D e E, sendo que uma das professoras lecionava em duas turmas em períodos distintos. O período de realização da pesquisa foi de uma semana, tempo esse suficientemente razoável para a obtenção das respostas. A pesquisa deu-se em dois momentos: inicialmente houve contato com a direção das escolas a fim de solicitar autorização para aplicar os questionários aos professores alfabetizadores, posteriormente, o contato com as professoras de alfabetização para a entrega dos questionários. Na oportunidade, ressaltando-se, em caso de dúvidas, poderiam deixar em branco a questão para que na entrega dos referidos questionários pudéssemos discutir sobre o assunto. No segundo momento foram coletados os questionários. Na ocasião, foi realizada uma breve conversa com as professoras a respeito dos níveis de perguntas contidas no formulário, se houve alguma dificuldade da parte delas em responder as referidas questões. As dúvidas que houve ocorreram nas questões referentes à consciência fonológica, ficando a maioria dos questionários sem resposta sobre esse item. Por conseguinte, nesta segunda etapa, as questões acerca da consciência fonológica foram esclarecidas e explicadas, então, nesta ocasião pude perceber a necessidade de um Método de alfabetização que enfatizasse o desenvolvimento de tal prática e que viesse a contribuir para o aprendizado da leitura. Partindo dessas inquirições feitas aos professores, foram extraídas informações importantes que, somente pela resolução dos questionários, não se poderiam ser percebidas e com isso ser concluída a referida pesquisa. O teor do questionário foi formulado com o fim de perquirir tais anseios referentes à prática dos métodos usados em sala de aula pelos professores e deu- se da seguinte forma: as perguntas estabelecidas foram direcionadas ao método de alfabetização utilizado pelas professoras de 1° Ano: o tempo que elas lecionavam nas turmas de alfabetização (1°ano); se os métodos utilizados pelas professoras alcançavam o resultado esperado no que tangia a leitura e enquanto tempo; se o método, usado para ensinar os seus alunos a ler, enfatizava a correspondência grafema e fonema; se já haviam ouvido falar a respeito da consciência fonológica; caso sua resposta fosse sim para a consciência fonológica, como elas julgariam a relevância para o aprendizado da leitura e de que modo o método aplicado por elas
  • 228. Argumentação e Linguagem Capítulo 17 219 em sala de aula desenvolveria a consciência fonológica de seus alunos. 5 | UMA BREVE ANÁLISE DOS MÉTODOS DE ALFABETIZAÇÃO UTILIZADOS EM SALA DE AULA NO MUNICÍPIO DE MONTE ALEGRE- PA Em análise as respostas das professoras, duas das cinco entrevistadas, eram alfabetizadoras há mais de dez anos e usavam o método sintético de ensino em determinado momento em suas aulas, e as outras três, haviam ingressado na carreira docente há cerca de três anos, e, do mesmo modo, usavam o mesmo método de ensino. O método de alfabetização usado nas práticas pedagógicas pelas professoras A, B, C, D e E era o alfabético – silábico. A professora B mencionou que a partir do corrente ano (2015) passaria a utilizar o método intitulado “Dom Bosco” para alfabetizar seus alunos, haja vista que no ano anterior, ela fazia recortes de vários métodos para alfabetizar seus alunos, porém, até o momento do corrente ano, não apresentava um método definido para trabalhar com as crianças em sala de aula. É importante ressaltar que esse método de ensino que a professora irá adotar é direcionado à alfabetização de jovens e adultos, e que, segundo Santos (in: FARIAS, 2003), não exige especialização de quem o aplica, sendo que até voluntários podem aplicá-lo. Ao que se refere à consciência fonológica, o assunto era desconhecido para umas professoras e novo para outras, assim como a importância da consciência fonológica para o aprendizado da leitura. Os questionamentos relacionados à cerca da consciência fonológica, as docentes A, B, C e D já tinham ouvido falar e a E ainda não tinha ouvido falar. Porém, as professoras B, C e D desconheciam que tipo de consciência era essa e não sabiam da sua importância para o aprendizado da leitura, e nem como se dá o desenvolvimento nos discentes em sala de aula. Somente a professora A se aproximou um pouco do que seria consciência fonológica e como a referida consciência poderia contribuir para o desenvolvimento fonológico do aluno correlacionado ao ensino da leitura. Diante da questão, a professora respondeu da seguinte forma: “A consciência fonológica pode contribuir para o aprendizado da leitura a partir do momento que o aluno passa a identificar os sons das letras”. Observa-se que não há a busca por métodos cientificamente mais eficazes no processo de leitura que objetive o desenvolvimento da consciência fonológica do aluno, consciência fonológica essa, a qual tem relação determinante com o aprendizado da leitura. Da mesma forma, prosseguindo com os dados da pesquisa, pôde-se perceber a falta de análise da relevância do método para as suas práticas pedagógicas em sala de aula. Algumas seguem diversos métodos, sendo perceptível a falta de conhecimentos teóricos - científicos acerca do método que são utilizados por elas. Todavia, por outro lado, não há método de alfabetização, incentivado pelo governo
  • 229. Argumentação e Linguagem Capítulo 17 220 que sirva de parâmetro para que os alfabetizadores possam embasar suas práticas pedagógicas. Haja vista, o que existem, são correntes filosóficas que embasam seus ensinamentos na construção dos saberes adquiridos, quer na comunidade onde vivem, quer em contato com livros, mesmo que as crianças não saibam ler, quer na prática de leitura mediada por adultos que saibam ler. Portanto, percebe-se a necessidade de um método eficaz comprovado cientificamente para o processo de alfabetização. Um método que enfatize a relação dos grafemas com os seus respectivos sons, para que o aluno consiga perceber as semelhanças, diferenças e assim distinga os sons que há na língua, e então aprenda a manipulá-los à medida que a sua consciência fonológica for sendo desenvolvida por meio de instruções metafonológicas. Diante de vasto conhecimento no campo cientifico do ensino, é de suma importância que o professor faça uso de um método eficaz de ensino de alfabetização e das ferramentas que o método propõe para aperfeiçoamento de suas práticas pedagógicas sendo que os alunos se depararão com um mundo até então desconhecido para eles, o mundo da leitura e escrita, haja vista, que é fundamental que o professor alfabetizador esteja disposto a desvendar e a percorrer os novos caminhos que a ciência cognitiva juntamente com a neurociência está propondo ao ensino. Diante das constatações científicas a que o método fônico e os outros métodos foram submetidos, países como EUA e alguns países da Europa decidiram por qual método adotar para alfabetizar suas crianças, e obtiveram resultados consistentes. O método fônico ensina a maneira como o cérebro capta a informação do sistema linguístico de determinada língua. Ou seja, estabelece conexões entre grafema e fonemas de forma consistente com o respectivo código de cada língua (ARAÚJO e OLIVEIRA, 2014). A forma como o método fônico é usado explicitamente faz com que os circuitos neurais sejam acionados levando a criança a aprender a ler de maneira mais rápida e eficiente. Segundo o neurocientista francês Dehaene, “[...] é essencial ensinar explicitamente as crianças a relação entre fonema (sons) e grafemas (letras) porque é dessa forma que elas ativam os circuitos decisivos para ler, ganhando autonomia para lerem palavras novas, de forma mais rápida”. E acrescenta ainda que “[...] cada criança é única, mas, quando se trata de alfabetização, todas têm basicamente o mesmo cérebro que impõe a mesma sequência de aprendizagem. Quanto mais respeitarmos sua lógica, mais rápida e eficaz será a alfabetização”. Diante das evidências comprovadas acerca do processo de ensino e aprendizagem da leitura e escrita, se faz necessária a prática em sala de aula com respaldo dos teóricos do assunto, de como o professor alfabetizador pode ensinar da melhor forma e com os melhores métodos seus alunos a decodificar palavras, já que ler consiste na capacidade de extrair a pronúncia e o significado de uma palavra a partir de sinais gráficos.
  • 230. Argumentação e Linguagem Capítulo 17 221 6 | CONSIDERAÇOES FINAIS Apesar de inúmeros trabalhos publicados a respeito dos temas explanados na presente pesquisa, ainda existem pouquíssimos professores ou nenhum, que tenha conhecimentoacercadosreferentesassuntosmencionadosaqui.Poisemconcordância com um dos autores que são os defensores do método fônico, bem como suas instruções fônicas e metafonológicas em consonância com a consciência fonológica para a alfabetização de crianças sem e com distúrbios de aprendizagem, são bem enfáticos em afirmar que a questão de método é fundamental para o ensino da leitura. O uso de esquemas experimentais rigorosos tem permitido avaliar a efetividade de diferentes métodos, seja em contextos experimentais de laboratório, seja em estudos de campo envolvendo inúmeros professores e salas de aula (CAPOVILLA, 2005, p. 56). E, segundo os achados científicos, o método fônico foi testado, comprovado e adotado nos Estados Unidos e em alguns países da Europa com o intuito de diminuir o índice de reprovação. Uma questão ficou clara nessa pesquisa: os sujeitos da pesquisa não aplicam o método fônico no processo de alfabetização. Alguns não conhecem mesmo e outros até ouviram falar, mas também desconhecem a prática pedagógica da aplicação desse método. Outra questão que ficou latente é que nos cursos de formação de professores alfabetizadores não ensinam nada sobre o método fônico. Esse assunto não faz parte dos currículos de formação de professores e por isso os sujeitos da pesquisa desconhecem totalmente o método fônico. Estudos relacionados à como alfabetizar e qual método usar sempre serão alvos de discussões entre teóricos do assunto, porém, por que não pôr em prática os que estão sendo comprovados cientificamente pela ciência experimental, e estão tendo êxito como é o caso do método fônico? REFERÊNCIAS ALVES, Ubiratã. O que é consciência fonológica. In: LAMPRECHT, Regina (Org). [et al.] Consciência dos sons da língua: subsídios teóricos e práticos para alfabetizadores, fonoaudiólogos e professores de língua inglesa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012. ADAMS, Marilin Jager [et al.]. Consciência fonológica em crianças pequenas. Porto Alegre: Artmed 2006. ALMEIDA, Elizabeth. C.; DUARTE, Patrícia M. Consciência fonológica: atividades práticas. 2ª ed.Rio de Janeiro: Revinter, 2012. BLANCO-DUTRA, Ana Paula; SCHERER, Ana Paula Rigatti; BRISOLARA, Luciene Bassols. Consciência Fonológica e aquisição de língua materna. In: LAMPRECHT, Regina (Org). [et al.] Consciência dos sons da língua: subsídios teóricos e práticos para alfabetizadores, fonoaudiólogos e professores de língua inglesa. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2012.
  • 231. Argumentação e Linguagem Capítulo 17 222 CORREA, Jane; MACLEAN, Morag. O desenvolvimento da consciência fonológica e aprendizado da leitura e escrita durante a alfabetização. LAMPRECHT, Regina (Org). [et al.] Aquisição da linguagem: Estudos recentes no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2011. CAPOVILLA, Fernando C. Os novos caminhos da alfabetização infantil. 2ª ed. São Paulo: Memnon, 2005. CAPOVILLA, Fernando; SEABRA, Alessandra G. Alfabetização: Método Fônico. 5ª.ed. São Paulo: Memmon, 2010. _____________. Problema de leitura e escrita: Como identificar, prevenir e remediar uma abordagem fônica. 6ª ed. São Paulo: Memnon, 2011. SCLIAR-CABRAL, Leonor. Princípios do sistema alfabético do português do Brasil. São Paulo: Contexto, 2003. http://pacto.mec.gov.br/component/content/article?id=53:entendento-o-pacto http://pacto.mec.gov.br/images/pdf/pacto_livreto.pdf http://pacto.mec.gov.br/images/pdf/Formacao/Ano_1_Unidade_1_MIOLO.pdfhttp://revistaseletronicas. pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/viewFile/5613/4088 (Consciência fonológica e compreensão do princípio alfabético: subsídios para o ensino da língua escrita Ana Paula Rigatti-Scherer).
  • 232. Capítulo 18 223Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 18 NARRATIVAS COERENTES E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE EM GRUPOS VULNERÁVEIS Dóris Cristina Gedrat Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS. Rua Frederico Guilherme Ludwig, 80/901A, Centro, Canoas, RS. CEP 92310-240 , doris.cristina10@gmail.com. André Guirland Vieira Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS. Gehysa Guimarães Alves Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS. Cláudio Schubert Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS. RESUMO: Este é um estudo de casos múltiplos, no qual foram investigadas as diferenças no discurso de uma dupla de jovens adultos, um do sexo feminino, outro do masculino, que haviam sido colocados para adoção durante a pré-adolescência. Os dois jovens foram entrevistados e, a partir da transcrição das entrevistas, analisaram-se suas narrativas de vida. Ela produziu uma narrativa coerente, expressando unidade entre os acontecimentos que ela conta em sua história de vida. Ele, no entanto, não atingiu coerência suficiente em sua narrativa.Na narrativa do jovem pesquisado foram encontrados sinais de impossibilidade para normalizar as experiências, uma vez que associava afetos demasiadamente intensos a certos eventos narrados. Já na narrativa da jovem observou-se conhecimento consciente a respeito da falta de normalidade de certos eventos narrados, sobre os quais ela já havia refletido e falado. Conclui-se que, enquanto uma narrativa coerente demonstra que o narrador procura apresentar-se ao mundo como uma pessoa normal, sabendo seguir as restrições em relação ao que é aceitável ou não como o objeto de uma história, isso é muito difícil para quem não consegue construir uma narrativa coerente. PALAVRAS-CHAVE: Narrativa autobiográfica. Coerência. Identidade. Interisciplinaridade. COHERENT NARRATIVES AND IDENTITY CONSTRUCTION IN VULNERABLE GROUPS ABSTRACT: This is a multiple case study, which investigates discourse differences in two young adults, a woman e a man, who had been placed for adoption in pre-adolescence. Both were interviewed and their narratives were analyzed. She produced a coherent narrative, which expresses unity among her life events. He, on the other hand, was not able to reach coherence enough. In his narrative, there were signals of inability to normalize experience, since he attributed overintensive feelings to certain events. The lady showed, in her narrative, to be consciously aware about the lack of normality of some narrated events, about which she could
  • 233. Argumentação e Linguagem Capítulo 18 224 talk normally. The conclusion is that a coherent narrative shows that the narrator tries to present herself/himself to the world as a normal person, she/he knows and follows the restrictions to what is acceptable or not as the object of a story, while the person who can not build a coherent narrative also faces great difficulties in normalizing her/ his experiences. KEYWORDS: Autobiographical narrative. Coherence. Identity. Interdisciplinarity. 1 | INTRODUÇÃO Este estudo insere-se no campo das narrativas psicológicas, que prevê a reorganização significativa da própria história como elemento fundamental na construção da resiliência, e no campo da pesquisa etnometodológica da Análise da Conversa, segundo a qual os atores sociais constroem e mantêm um mundo em comum porque têm o domínio da linguagem natural. Intentou-se encontrar uma conexão entre a coerência narrativa e a capacidade do autor desta narrativa para colocar-se como uma pessoa normal, entendendo o conceito de normalidade segundo Sacks (1984), para quem normalizar a experiência é apresentar uma visão do mundo como uma pessoa normal faz. O texto inicia mostrando como se relaciona a narrativa com a construção da identidade, focalizando a narrativa e a identidade de indivíduos com experiência de adoção. Na sequência, apresentam-se as noções de Sacks (1984) quanto ao processo de normalizar experiências em narrativas de vida, as quais embasam a hipótese deste trabalho, a saber, de que existe uma relação entre a narrativa coerente e a capacidade para narrar experiências como uma pessoa normal faz. Finalmente, passa-se ao estudo de dois casos com experiência de adoção e à análise dos resultados da pesquisa. 2 | NARRATIVA E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE Se compreendemos identidade como uma construção social, que envolve um processo dinâmico e situado de expor e interpretar quem somos, entendemos que a narrativa revela-se especialmente propícia para essa exposição. Construímos quem somos sinalizando e interpretando tanto afiliações a categorias sociais (classe social, gênero, profissão, religião, etc.) e posições na hierarquia da interação (status e papéis), quanto atribuições de qualidades e qualificações de ordem mais pessoal. Ao contar histórias, situamos os outros e a nós mesmos numa rede de relações sociais, crenças, valores. Em outras palavras, ao contar histórias, estamos construindo identidade (OCHS, 1992, 1993; SCHIFFRIN 1993, 2000; MISHLER, 1999). Charlotte Linde (1993), retomando, criticando e desenvolvendo o paradigma tradicional laboviano sobre a estrutura da narrativa, estuda as histórias de vida, ou narrativas de experiência pessoal, que funcionam na criação e manutenção de identidades. Segundo a autora, ao contá-las, falamos sobre como nos tornamos o que
  • 234. Argumentação e Linguagem Capítulo 18 225 somos e transmitimos aos outros o que devem saber sobre nós para nos conhecerem. 2.1 Narrativa e Identidade No campo da psicologia discursiva, há um grande interesse pelas histórias de vida produzidas em situação de entrevista, analisadas, sobretudo, para a compreensão do desenvolvimento e da construção da subjetividade dos entrevistados (FREEMAN, 2006). No âmbito dos estudos da linguagem, a narrativa é tradicionalmente definida como forma de se recapitular discursivamente experiências passadas a partir de uma articulação sequencial de orações. Entende-se nessa empreitada a sequência como uma propriedade linguístico-discursiva representativa de uma ordem cronológica dos eventos passados em um postulado mundo real (LABOV & WALETZKY 1968, LABOV 1972). Os estudos contemporâneos da narrativa, por sua vez, revisam o trabalho pioneiro, tanto ampliando suas definições formais e passando a incluir sob o escopo de análise segmentos não-canônicos (BAMBERG & GEORGAKOPOULOU 2008), quanto considerando a sua emergência em contextos interacionais diversos (SACKS 1984, MISHLER 1986, 2002). Passa-se, assim, a ver a narrativa como uma forma de constituir uma realidade sempre revogável e a serviço de padrões culturais e interacionais (BRUNER, 1990, LINDE, 1993 E MISHLER, 1999, 2002), reivindicando para as narrativas funções mais complexas e mais comuns à experiência cotidiana, relacionadas à construção de sociabilidade, à conformação da experiência em padrões públicos de aceitação e à construção de um sentido de quem somos e do mundo que nos cerca, nossa identidade (BASTOS & BIAR, 2015). 3 | HISTÓRIAS DE VIDA COM EXPERIÊNCIA DE ADOÇÃO A experiência de ter sido colocado para adoção é marcante na vida de qualquer pessoa que a vivencia, e, se isso ocorre na fase da pré-adolescência, coincidirá com o período da vida em que surge a necessidade de construção de uma identidade que permita à pessoa uma relação produtiva com o mundo. Durante esta fase, os indivíduos reúnem condições sociocognitivas para a construção de narrativas autobiográficas coerentes. Decorre que a formação de uma identidade narrativa envolve a construção de histórias coerentes, com a finalidade de criar e comunicar um sentido de identidade e de significado (VIEIRA, 2012). Considerando que os jovens que foram adotados defrontam-se com o desafio de desenvolver um sentido de self como pessoas adotadas (VON KORFF, 2008), durante a adolescência eles começam a refletir a respeito disso e a integrar suas reflexões e experiências em uma identidade narrativa significativa e coerente. Segundo Grotevant (1997), a identidade narrativa de ser adotado é construída quando os jovens começam
  • 235. Argumentação e Linguagem Capítulo 18 226 a refletir sobre o significado de terem crescido cuidados por famílias adotivas, enquanto permanecem geneticamente relacionados às famílias biológicas. Ela surge no momento em que esses jovens conseguem lidar com essas questões, organizando lealdades em relação a suas famílias e respondendo às demandas sociais, através da percepção dos outros, em relação a terem sido adotados (VIEIRA, 2012). Segundo Vieira (2012), a identidade narrativa de jovens adultos adotados é marcada pelo sentimento de uma ruptura com o passado, o que os leva a buscar sua origem e, ao procurar seus pais biológicos, os adotados procuram recuperar um sentido perdido de continuidade entre o passado, o presente e o futuro. 4 | A NORMALIZAÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS DE VIDA Para Bruner (1990), é através da narrativa que vamos tornar compreensível para nós mesmos o que acontece de excepcional nas nossas vidas cotidianas, organizando nossa experiência e nossa memória de acontecimentos humanos. Ao construirmos narrativas, segundo Sacks (1984), tendemos a normalizar a experiência para apresentarmos uma visão do mundo como uma pessoa normal faz. Narrar é essencial para ser normal, comum, ordinário. Mas ser normal, como coloca Sacks, dá trabalho. É um trabalho social, que realizamos constantemente nas nossas vidas cotidianas. Para apresentarmos uma visão do mundo como uma pessoal normal faz, há uma série de restrições em relação ao que pode ou não ser objeto de uma história. Um exemplo: se, ao voltar para casa, uma pessoa descreve, com detalhes, as diferentes tonalidades da grama ao longo da estrada, o ouvinte certamente vai estranhar e tentar interpretar o porquê desse relato, ou vai achar que a pessoa é estranha, ou pretensiosa – ele poderá até ficar com ciúmes, e a pessoa perder um amigo. Esses, para Sacks, seriam os custos de não ser ordinário, ou de, no caso, tentar ver sua vida como um poema épico (SACKS, 1984). Depreende-se, pois, que há emoções mais ou menos permitidas em relação às diferentes experiências: normalmente, não se tem um ataque de nervos por que se viu uma batida de carro. Não se pode atribuir mais emoção a um determinado evento do que o considerado normal. Assim, as pessoas monitoram as experiências que vivem em relação às características que fariam dessas experiências narrativas relatáveis ou não, o que acaba por interferir na vivência da própria experiência. Dessa forma, são armazenadas experiências de modo que se tenha o que contar quando a oportunidade surgir (SACKS, 1984). Pode-se dizer que as narrativas são construções situadas da experiência, através das quais organizamos essa experiência individual e mantemos a ordem social (BASTOS, 2005). Esta pesquisa investigou a forma como dois indivíduos adotados entre os 9 e os 12 anos normalizam, ou tentam normalizar suas experiências ao construírem narrativas de vida. Considerando sua condição de adotados e as consequências psicológicas que
  • 236. Argumentação e Linguagem Capítulo 18 227 tal condição origina, partiu-se do pressuposto de que, se essa experiência não tiver sido suficientemente integrada à vida cotidiana, ela não aparecerá como uma experiência normal na narrativa, e esta não terá um grau satisfatório de coerência. Aplicando a teoria de Sacks (1984), um indivíduo adotado pode atribuir emoções exageradas a fatos que lembrem ou se relacionem à experiência de adoção, e, inclusive, ver sua vida como um poema épico, não conseguindo narrar como uma pessoa ordinária, ou normal faria. 5 | IDENTIDADE RELACIONADA À COERÊNCIA NAS HISTÓRIAS DE VIDA A identidade não é algo que emerge na adolescência de maneira acabada, mas está sempre sendo construída e reconstruída. Ela pode ser entendida como uma narrativa aberta, nunca totalmente concluída, ou como uma antologia de histórias mais ou menos integradas e coerentes acerca da vida de uma pessoa, uma espécie de ‘antologia do self’. O caráter distintivo dessas narrativas é sua tendência à unidade e à coerência (VIEIRA, 2012). A construção da singularidade do indivíduo aparece na história de vida como a interpretação subjetiva das experiências passadas unida à integração seletiva dos aspectos culturais onde o indivíduo vive. Na história de vida encontram-se reunidos tanto os traços disposicionais e as características de adaptação, como os eventos singulares à trajetória de vida do sujeito e à história sociocultural na qual ele está inserido (MCADAMS, 2004). Um indivíduo que consegue integrar suas experiências e com elas formar uma unidade conseguirá narrar sua história de vida de maneira coerente. Para Mishler (2002), lembramo-nos do nosso passado e continuamente o re- historiamos, variando a significância relativa de diferentes eventos de acordo com a pessoa em quem nos transformamos, descobrindo conexões das quais não estávamos previamente cientes, reposicionando-nos a nós mesmos e aos outros em nossas redes de relações. Em suma, o ato de narrativizar reatribui significado aos eventos em termos de suas consequências, isto é, de como a história se desenvolve e termina coerentemente. O mesmo autor menciona os pontos de virada, ou incidentes que muitas vezes ocorrem de modo repentino e inesperado e que podem ser relatados em histórias de vida e em entrevistas de pesquisa clínica. Eles são exemplos marcantes de algo que acontece o tempo todo, do processo contínuo no qual nos engajamos para reconstruir o significado de nossas experiências passadas e para refazer a nós mesmos de modos grandes e pequenos. O processo de re-historiação, que tanto marca quanto resulta desses incidentes importantes que são os pontos de virada, constitui uma característica geral de nossas múltiplas identidades, cada uma arraigada a um conjunto diferente de relações que formam a matriz de nossas vidas. Cada um dos nossos eus parciais é um personagem em uma história diferente, na qual somos posicionados
  • 237. Argumentação e Linguagem Capítulo 18 228 de modos diferentes em nossas relações com os outros, que constituem nossos diversos mundos sociais. Uma narrativa coerente é aquela que, no momento histórico em que se encontra o indivíduo, e apesar do seu contínuo processo de re-historiação, consegue dar sentido e unidade a uma história de vida que narra tanto as experiências positivas, quanto as dificuldades pelas quais o indivíduo passou. No caso de um indivíduo adotado, sua re-historiação sempre terá de passar pelo fato de ter sido afastado dos pais biológicos e de ter sido criado por outras pessoas. Dependendo do ponto em que ele se encontra ao narrar sua história de vida, eventos relacionados à sua adoção terão sido integrados com certa normalidade entre os restantes, ou ainda estarão vinculados a forte carga de emoção, o que o impedirá de construir uma narrativa coerente e, também, de normalizar os fatos de sua vida (MISHLER, 2002, MCADAMS, 2004). 6 | COERÊNCIA NA NARRATIVA DE INDIVÍDUOS ADOTADOS: UM ESTUDO DE CASOS MÚLTIPLOS Considerando a hipótese de que haja uma relação entre a coerência das narrativas construídas e a capacidade de as pessoas normalizarem as experiências nas histórias de vida que contam, a presente pesquisa teve como objetivo verificar se há diferença entre uma narrativa de vida coerente e uma narrativa de vida que não alcança coerência no modo como o narrador normaliza suas experiências ao contá- las, adotando-se a noção de normalização de experiências de Sacks (1984). 6.1 METODOLOGIA Utilizou-se o corpus da pesquisa de Vieira (2012), sobre a identidade narrativa de jovens com experiência de adoção. Vieira aplicou o modelo tridimensional de coerência global de narrativas de vida de Habermas & Diel (2005), Habermas & de Silveira (2008) e Habermas, Ehlert-Lerche & de Silveira (2009) para a atribuição do grau de coerência às narrativas. Foram selecionadas as narrativas de dois indivíduos com experiência de adoção tardia, entre nove e doze anos de idade – Beatriz e Beno –, os quais foram entrevistados já em idade adulta, aos 22 anos. Conforme as conclusões de Vieira (2012), Beatriz produziu uma narrativa satisfatoriamente coerente, enquanto Beno não alcançou um grau satisfatório de coerência em sua narrativa. A partir das duas narrativas e das conclusões de Vieira (2012) sobre seu grau de coerência, procurou-se, nesta pesquisa, a existência de uma correlação entre a coerência narrativa e sinais indicativos quanto à capacidade que o autor da narrativa demonstra para normalizar as experiências que conta, segundo Sacks (1984). Foram transcritos alguns trechos das narrativas de Beatriz e de Beno, nas quais se detectam elementos que apontam para a normalização, ou falta de normalização dos fatos que narram. As transcrições apresentadas neste trabalho foram feitas
  • 238. Argumentação e Linguagem Capítulo 18 229 segundo as convenções de Jefferson (1984). 6.2 RESULTADOS A narrativa de Beno não alcançou índices satisfatórios de coerência, o que, segundo McAdams (2001), reflete o caráter conflituoso, contraditório e ambíguo de sua identidade. Por outro lado, na narrativa de Beatriz observa-se que a experiência da adoção encontra-se integrada, e os afetos, embora intensos, estão organizados em uma construção de sentido que transforma sua história de vida em aprendizagem (VIEIRA, 2012). Beatriz demonstra conhecimento consciente a respeito da falta de normalidade de certos eventos narrados, sobre os quais ela já organizou seus pensamentos e fala a respeito, sem fingir que são normais. Em outras palavras, Beatriz já é capaz de normalizar os eventos que conta (SACKS, 1984), uma vez que alcançou uma unidade entre os fatos de sua existência e, assim, também consegue construir uma narrativa coerente. Isso pode ser observado nos excertos 1 e 2: Excerto 1 – transcrição de fala da narrativa de Beatriz tudo o que vem de trás né: são coisas que: nunca vou esquecer como é óbvio mas são coisas que ficam para sempre (.) e: por muito mais que eu sei que tenho a situação resolvida (.) sempre que conto sou capaz de chorar ou sou capaz de ↓ pronto me lembrar dessas coisas mas hã lembro perfeitamente de meus pais.... Fonte: transcrição das falas gravadas em Vieira (2012) - 29.00 Excerto 2 – transcrição de fala da narrativa de Beatriz quando eu dizia e falava-se na escola ai o teu pai o teu pai (.) eu sentia necessidade de dizer (.) olha (.) eu não tenho pai (.) pronto. >mas as pessoas passavam a: criar coisas ai morreu não morreu teve um acidente.< coisas completamente ridículas. que eu se calhar sentia bem melhor. não é se calhar. é mesmo. eu sentia melhor dizer é isso (.) eu sou adotada e: minha mãe é sozi:nha não tinha problema absolutamente nenhum (.) nunca senti discriminação nenhuma (.) nenhuma mesmo. claro que as pessoas perguntavam ai o que aconteceu (.) mas eu não me importava nada em contar. é o que eu digo (.) tipo: é algo que me vai me acompanhar para o resto de minha vida. não é por que: nada não é nada que: uma coisa que: nada vai apagar não é: a memória não apaga isto e: eu sei o que vivi e sei o que passei (.) e se calhar sou uma pessoa difere:nte por aquilo que passei . eu sou mais não sou mais que ninguém não me considero mais que ninguém. mas claro que - ao lado de amigas minhas não é (.) >se calhar tenho outras< - não é se calhar (.) tenho outra história de vi:da (.) e sei que sou outra pessoa por essa história de vida (.) >não estou a dizer que sou uma pessoa melhor ou pior<. (.) pronto. mas tenho a minha história e tenho: a
  • 239. Argumentação e Linguagem Capítulo 18 230 minha = as minhas coisas (.) e são coisas que vão me acompanhar para sempre né (.) pronto. portanto. de amigos nunca senti assim discriminação nenhuma= nenhuma mesmo (.) hã: as pessoas claro perguntaram sempre o que é que se o que é que se tinha passado (.) como é que foi como é que não fo:i hã aquelas perguntas de praxe mesmo. eu dizia . (não sei não há mal ou nunca xxxx). hã:: nem nunca: soube (.) de ninguém que falasse mal (1.0) nunca senti nada: em relação: hã à adoção. nunca senti (.) nunca senti (.) em nenhum aspecto de minha vida que: sou adotada (.) não: não sinto pronto (.) não é uma coisa que:: (1.0) que eu sinta (.) não sinto nada disso. nunca senti. Fonte: transcrição das falas gravadas em Vieira (2012)- 16.09 No excerto 1, Beatriz demonstra domínio sobre o tema da adoção e sobre suas emoções em torno dele, ao dizer que tudo o que aconteceu jamais será esquecido por ela e que, por vezes, ela chora em função disso. Ela compreende e sabe que não foi agradável ser adotada, mas já integrou essa experiência entre os fatos de sua vida, e agora tal experiência aparece como algo que narra como se fosse muito natural, inclusive admite que isso sempre causará dor e mágoa a ela. No excerto 2, a entrevistada demonstra tamanha normalização de suas experiências que, com ênfase e naturalidade, afirma nunca ter sido discriminada por amigos quanto à sua situação de adotada. Observa-se, na transcrição de sua fala, que ela se refere a esse assunto com objetividade, sem hesitações, com pausas definidas e sem alteração na tonalidade e volume da voz. A narrativa de Beatriz demonstra o que propõem Baerger & McAdams (1999) e Adler, Wagner & McAdams (2007): uma narrativa autobiográfica coerente está relacionada tanto ao bem-estar como a uma abertura a novas experiências e à capacidade pessoal para desenvolver-se. Ao contrário da narrativa de Beatriz, a forma circular própria de Beno ao narrar sua história demonstra que ele não conseguiu ainda construir um sentido para sua experiência de vida. Dessa forma, a sua narrativa é entrecortada por conjeturas a respeito do porquê de ter sido abandonado por seus pais biológicos e colocado para adoção, conforme excertos 3 e 4: Excerto 3 – transcrição de fala da narrativa de Beno mas por exemplo ainda há pouco tempo eu fiquei mal porque (.) teve:: UMAS pessoas estavam comi:go e: disser. e eu tava a brincar a dizer que: (1.0) que era adotado lá de ator co(hhh)nhecido (.) e que e::: mmm e::: >depois eles perguntaram se eu era adotado< daí eu comecei a falar da minha história: de vida e:: (.) isso aí trouxe-me assim marcas que eu não queria tocar nestas feridas (.) mas tive que tocar e passei u:m tempo mal. (.) a pensar nestas coisas só queria sair daqui e:: e pronto. (.) estragar a minha vida. Fonte: transcrição das falas gravadas em Vieira (2012)- 11.33
  • 240. Argumentação e Linguagem Capítulo 18 231 Excerto 4 – transcrição de fala da narrativa de Beno eu agora falo abertamente disto só que:: às vezes inda:: > pronto às vezes custa um bocado tocar nessa ferida< e:: e quando::: e lá na escola:: como a escola é:: é muito pequena e lá sabe-se tudo, e:: não sei contar i::sso (.) pra muitas pessoas pode:: (2.0) quer dizer > pelo menos para mim, podem me magoar .< e podem me ver de maneira diferente e:: e eu não quero isso:: > quero ser uma pessoa normal< não é? já passei pelas minhas dificuldades mas (.) não quero ser mai::s acarinhado (.) do que os outros só porque sou adotado e porque:: porque > agora estou numa família nova é isso< (2.0) ° quero ser normal° (2.0) aconteceu mas já foi e agora:: hoje tenho minha nova vida que:: (xxxxxx ) (1.0) > espero que seja assim até o fim.< Fonte: transcrição das falas gravadas em Vieira (2012) – 27.37 O fato de ter sido adotado é algo muito difícil de aceitar, assim, Beno atribui emoções demasiadamente intensas quando se refere a isso, como mostra o excerto 3, no qual ele relata sua reação quando as pessoas no curso de teatro vêm a saber sobre sua adoção e comentam. Para ele, isso foi motivo de querer desistir da faculdade, quando, para seus colegas, provavelmente era apenas um fato novo, sem o poder de colocar Beno em qualquer outra categoria que não fosse a de colega, como já era. Isso, nos termos de Sacks (1984), revela a falta de capacidade para normalizar experiências. Beno está tão envolvido com este assunto ainda, que não consegue se desvencilhar dele e aumenta sua importância em situações nas quais sua adoção não é o tópico tratado, quando o fato de ele ter sido adotado não tem importância nenhuma na atividade que está sendo realizada. Isso aparece também no excerto 4, quando, novamente, ele fala da escola (faculdade), dizendo que simplesmente contar sobre a adoção já o coloca numa posição muito delicada frente aos colegas, o que pode magoá-lo e, mais adiante, afirma querer ser uma pessoa normal. Ele é tão incapaz de normalizar experiências ao narrá-las, que chega a deixar implícito que uma pessoa adotada não é normal. Observa-se, também, mediante a transcrição de sua fala, que esse assunto causa alteração de volume e tonalidade na voz, alongamentos e alteração na velocidade com que fala, como se isso alterasse bastante seu estado emocional, causando alterações na forma como se expressa. 7 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme demonstram as análises dos resultados, há uma relação entre a capacidade de um indivíduo contar sua história numa narrativa coerente e sua capacidade para normalizar as experiências contadas, para apresentar uma visão do
  • 241. Argumentação e Linguagem Capítulo 18 232 mundo como uma pessoa normal faz. Enquanto uma narrativa coerente demonstra que o narrador fez e faz o esforço social necessário para se apresentar ao mundo como uma pessoa normal, sabendo seguir as restrições em relação ao que pode ou não ser objeto de uma história, isso é muito difícil para quem não consegue construir uma narrativa coerente. Este comete deslizes, como dar importância demasiada a fatos que não se espera serem tão importantes nos eventos narrados, produzindo uma narrativa sem coerência. O desenvolvimento do tema desta pesquisa solicita a participação de diversas áreas do conhecimento, constituindo-se, portanto, um tema absolutamente interdisciplinar. Se, por um lado, contribui-se, aqui, para a psicologia cognitiva, ao investigar-se a formação da identidade através da análise de narrativas produzidas por indivíduos pesquisados, por outro lado, também se presta contribuição para a promoção da saúde, na esfera mental, ao abordar-se um grupo vulnerável, os adotados. Também para o desenvolvimento humano, uma vez que a qualidade de vida de grupos vulneráveis passa pelo desenvolvimento de sua capacidade para re- historiar seu passado e para atingir o poder de contar uma história de vida em que haja unidade de significado, na qual os indivíduos veem-se como pessoas capazes de integrar suas experiências dolorosas em uma vida próspera e feliz. Almeja-se a continuação deste estudo, no sentido de ampliá-lo tanto no que tange aos grupos pesquisados, quanto no escopo do tema a ser investigado. Pretende-se, por exemplo, investigar em grupos que vivem em periferias e outros locais desprestigiados, como quilombos, quais são as questões que os impedem de melhorar sua qualidade de vida e desenvolver-se livremente, através da análise de narrativas por eles construídas e de histórias que eles mesmos produze. Essas podem ser fontes importantes para a criação de situações e atividades que os auxiliem a romper barreiras sociais e psicológicas na busca de sua realização. REFERÊNCIAS ADLER, J. M.; WAGNER, J. W.; MCADAMS, D. P. Personality and the coherence of psychotherapy narratives. Journal of Research in Personality, v. 41, p.1179-98, 2007. BAERGER, D.R.; MCADAMS, D.P. Life story coherence and its relation to psychological well-being. Narrative Inquiry, v. 9, p. 69-96, 1999. BAMBERG, M.; GEORGAKOPOULOU, A. Small stories as a new perspective in narrative and identity analysis. Text & Talk, v. 28, n. 3, p. 377-396, 2008. BASTOS, L.C. Contando estórias em contextos espontâneos e institucionais - uma introdução ao estudo da narrativa. Calidoscópio, v. 3, n. 2, p. 74-87, 2005. BASTOS, L.C.; BIAR, L.A. Análise de narrativa e práticas de entendimento da vida social. D.E.L.T.A., v.31, n. especial, p.97-126, 2015. BRUNER, J.. Acts of meaning. Cambridge: Harvard University Press, 1990.
  • 242. Argumentação e Linguagem Capítulo 18 233 FREEMAN, M. Life “on holiday”? In defense of big stories. Narrative Inquiry. v.16, n.1, p.131-138, 2006. HABERMAS, T.; DIEL, V. Three dimensions of global coherence: global rating scales. Frankfurt: Goethe University, 2005. HABERMAS, T.; SILVEIRA, C. The development of global coherence in life narratives across adolescence: temporal, causal and thematic aspects. Developmental Psychology, v. 44, p. 707-721, 2008. HABERMAS, T.; EHLERT-LERCHE, S.; SILVEIRA, C.. The development of the temporal macroestructure of life narratives across adolescence: Beginnings, linear narrative form, and endings. Journal of Personality, v.77, n. 2, p. 527-559, 2009. JEFFERSON, G. Transcript notation. IN: ATKINSON, J.M.; HERITAGE, J. (Eds.). Structures of social action: studies in conversation analysis ix-xvi. Cambridge: University Press, 1984. LABOV, W.; WALETZKY, J. Narrative Analysis: oral versions of personal experience. In: HELM, J. (Ed.) Essays on the verbal and visual arts. Seattle: University of Washington Press, 1967. LABOV, W. Language in the inner city: studies in the Black English Vernacular. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972. LINDE, C. Life Stories, the creation of coherence. New York: Oxford University Press, 1993. MCADAMS, D. P. The psychology of life stories. Review of General Psychology, v.5, n. 2, p.100-122, 2001. _____________. The redemptive self: Narrative identity in America today. IN: BEIKE, D. R.; LAMPIEN, J. M.; BEHREND, D. A. (Eds.), The self and memory. New York: Psychology Press, 2004. MISHLER, E. Research interviewing. Context and narrative. Cambridge: Harvard University Press, 1986. ____________ . Storylines. Craftartists’ narratives of identity. Cambridge: Harvard Univeristy Press, 1999. ____________ . Narrativa e Identidade: a mão dupla do tempo. IN: LOPES, L.P.M.; BASTOS, L.C. (Eds.). Identidades. Recortes multi e interdisciplinares. Campinas: Mercado de Letras, 2002. OCHS, E. Constructing Social Identity: a language socialization perspective. Research on Language and Social Interaction, v.26, n. 3, p. 287-306, 1993. __________ . Indexing Gender. IN: DURANTI, A.; GOODWIN, C. (Eds.). Rethinking Context. Language as an interactive phenomenon. Cambridge: Cambridge Univeristy Press, 1992. SACKS, H. On doing “being ordinary”. IN: ATKINSON, J.M.; HERITAGE, J. (Eds.). Structures of social action: studies in conversation analysis ix-xvi. Cambridge: University Press, 1984. SCHIFFRIN, D. Speaking for Another in Sociolinguistic Interviews: alignments, identities, and frames. IN: TANNEN, D. (Ed.) Framing in Discourse. New York/Oxford: Oxford University Press, 1993. ________________. Mother/daughter discourse in Holocaust oral history: because then you admit that you’re guilty. Narrative Inquiry, v.10, n.1, p. 1-44, 2000.
  • 243. Argumentação e Linguagem Capítulo 18 234 VIEIRA, A.G. A Construção Narrativa da Identidade em Jovens Adotados. Tese de Pós- Doutorado. Universidade do Porto, Porto, 2012. VON KORFF, L. A. Pathways to narrative adoptive identity formation in adolescence and emerging adulthood. Tese de doutorado não publicada. Faculty of the Graduate School of the University of Minnesota,Minnesota, 2008.
  • 244. Capítulo 19 235Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 19 BEM-ME-QUERO, BEM-TE-QUERO: UM PROJETO DE PSICOLOGIA EDUCACIONAL SOBRE CORPOREIDADE E GESTÃO DO CUIDADO Roselaine Vieira Sônego Univille, Departamento de Psicologia, Joinville, SC Allan Henrique Gomes Univille, Departamento de Psicologia, Joinville, SC RESUMO: Corporeidade pode ser compreendida como ideologias e interditos sociais marcados no corpo. Na escola, a corporeidade aparece como uma representação das relações sociais de seu micro e macro contexto. Esse trabalho é um relato de experiência do campo da Psicologia Educacional. A temática emergiu após um período significativo de vivência no espaço de uma escola pública municipal de Joinville – SC. O objetivo foi realizar ações psicoeducativas com os estudantes das séries finais do ensino fundamental, que possibilitassem a vivência da temática da corporeidade, abarcando questões levantadas pelos gestores, professores e estudantes. As intervenções se caracterizaram porumapesquisaação,tendocomometodologia a elaboração e aplicação de oficinas temáticas. Os resultados foram a produção de práticas envolvendo quatro eixos: 1) Corpo: conceitos e identidade; 2) Corpo: beleza, sexualidade, autoproteção; 3) Corporeidade e virtualidade, 4) Cuidado de si e do outro. Verificou-se que o projeto possibilitou: vivências lúdicas de corporeidade desafiando a rotina que escolariza o corpo; trabalhar aspectos da relação corpo e virtualidade, comportamentos autoprotetivos nas relações virtuais, promovendo ações coletivas de cuidado; desnaturalizar as violências e compreender comportamentos desrespeitosos e agressivos; encaminhar para serviço especializado casos que precisavam de ações protetivas e acompanhamento técnico e terapêutico, entre outros. Pode ser observado que os espaços escolares demandam intervenções na temática da corporeidade, possibilitando outros sentidos para a dimensão do corpo, especialmente, implicando ações de gestão do cuidado, visando o bem estar de si e do outro. PALAVRAS-CHAVE: Psicologia, Escola, Corporeidade, Gestão do Cuidado LOVE ME, LOVE OTHERS: AN EDUCATIONAL PSYCHOLOGY PROJECT ABOUT CORPOREITY AND CARE MANAGEMENT ABSTRACT: Corporeity can be understood as ideologies and social interdicts markings on the body. In school, corporeity appears as a representation of social relations of its micro and macro context. This project is a field experience report in Education Psychology. The theme emerged after a significant period of
  • 245. Argumentação e Linguagem Capítulo 19 236 experience in a public school in Joinville – SC, Brazil. The objective was to execute psychoeducational actions with the students from the final grades of junior high school that enabled the experience of the corporeity theme, encompassing questions brought up by students, teachers and managers. The interventions were characterized by an action research, having as methodology the elaboration and application of thematic workshops. The results were the production of practices involving four axis: 1) Body: concept and identity; 2) Body: beauty, sexuality and self-protection; 3) Corporeity and virtuality; 4) Care for yourself and others. It was verified that the project made it possible to: ludic experiences from corporeity and challenging the routine that educates the body; work body and virtual relations aspects, self-protective behaviors in virtual relations, promoting collective care actions; denature violence and comprehend disrespectful and aggressive behavior; forwarding to specialized services cases that needed protective actions, technical and therapeutic follow up and others. It can be observed that school spaces demand interventions in the corporeity theme, implicating care management, aiming the well being of oneself and the other. KEYWORDS: Psychology, School, Corporeity, Care Management 1 | INTRODUÇÃO Esse capítulo é resultante de uma experiência de Estágio Curricular Específico em Psicologia Educacional, que no decorrer de um ano de atividades desenvolveu um projeto com ênfase na temática da corporeidade em uma escola pública municipal de Joinville – SC. O presente texto concentra reflexões e diálogos de dois integrantes da equipe que no tempo do projeto (2016 e 2017) atuavam como psicóloga em formação e professor orientador. De acordo com Alves (2009), construímos nossos corpos segundo as várias imposições culturais, fazendo com que se adeque aos parâmetros estéticos, históricos, higiênicos, morais que contextualizam nossas vidas e as relações sociais. Nesse sentido, as ditas imposições conduzem as percepções que geram o sentido de se ver e de ver os outros, de aproximação e de afastamento do que nos é ou não comum. Assim, o conceito de etnocentrismo da antropologia esclarece o sentido social que se dá ao que é diferente, ao que não nos é comum, do que nos causa estranheza que se dá no encontro de dois ou mais grupos distintos. Surge o grupo do “EU” e o grupo do “OUTRO”, tendo o primeiro como real, absoluta e principal referência, e o segundo como algo exótico, excêntrico, anormal e primitivo. O etnocentrismo “está calcado em sentimentos fortes como o reforço da identidade do “eu” [...] se conjuga com a lógica do progresso, com a ideologia da conquista, com o desejo da riqueza, com a crença num estilo de vida que exclui a diferença” (ROCHA, 1988, p. 30). Isto se aplica de forma prática à Psicologia Educacional como uma ética de trabalho que se ocupa em manter sob suspeitas as práticas sociais que operam no contexto escolar. O projeto desenvolvido também foi constituído pela perspectiva da educação biocêntrica, que segundo Sousa, Miguel e Lima (2010, p. 78), entendem
  • 246. Argumentação e Linguagem Capítulo 19 237 como orientadoras de uma ética do cuidado. A perspectiva biocêntrica: [...] vislumbra a formação de um ser humano cósmico, comprometido de modo incondicional com a paz. [...] objetiva promover a (re)educação afetiva de homens e mulheres, para que estes(as) possam resgatar sua sensorialidade viva e requerer, em comunhão com os seus pares e com a natureza, a construção de uma sociedade altruísta, cujas ações [...] são originadas em defesa da vida, da proteção de todas as suas manifestações. A defesa pela vida, e o entendimento da mesma como um sistema vivo, implicam em re(educar) nossa humanidade para uma convivência em que haja respeito e afeto por nós mesmos e pelo outro, e a compreensão que nossas ações e dos outros afetam- se mutuamente. Isso nos constitui, porque somos seres relacionais, nos constituímos em relação. A intervenção realizada pode ser caracterizada como pesquisa ação e foram iniciadas por um período de observações e convivência com o espaço escolar. Uma das primeiras atividades realizadas se deu com a distribuição de “caixas” para recepção de bilhetes, alocadas nas salas de aula e na sala dos professores, etiquetadas como “#Conta aí”, “#Papo nosso”. A partir das observações, dos temas trazidos, das reuniões de orientação e das leituras realizadas, a temática da corporeidade emergiu. Todas as vivências foram registradas em diário de campo De acordo com as demandas, os temas previstos foram: 1) Corpo: conceitos e identidade;2)Corpo:beleza,sexualidade,autoproteção;3)Corporeidadeevirtualidade; 4) Cuidado de si e do outro. Estes temas foram destinados aos sextos anos e foram trabalhados em forma de oficinas com atividades lúdicas que visavam a percepção do corpo, a relação dos sentimentos no corpo, a percepção de si e do outro. 2 | BEM-ME-QUERO, BEM-TE-QUERO: VIVÊNCIAS E APRENDIZAGENS Pensando no espaço escolar como uma biologia e uma biografia própria em seus desafios cotidianos, encontramos no tema corporeidade a possibilidade de inserção na escola pela via não carregada de supostos saberes, ou de certezas reducionistas. Assim, a partir dos diários de campo com as narrativas das intervenções, alguns eixos temáticos emergiram como categoria de análise.Aseguir apresentamos alguns desses eixos: Espaços escolar: em busca da visibilidade da ordem: encontramos no espaço escolar locais bem demarcados em termos de função organizadora da dinâmica escolar: a) o pátio, denominamos como território dos encontros e desencontros, por proporcionar vivências lúdicas e de liberdade do corpo, bem como dos conflitos e tensões nas relações interpessoais existentes; b) a biblioteca - território do saber, local de estudos individuais, e do espaço onde autores e distintos profissionais se apresentam e ensinam; c) os corredores - território do movimento ordenado, local de visibilidade da ordem moral, funcional, disciplinar, da produtividade. Também, espaço
  • 247. Argumentação e Linguagem Capítulo 19 238 da ordem da diversidade que adentra por meio de palestrantes e estagiários que, de certa forma, rompem, tencionam ou reforçam a ordem instaurada. Dessa forma é possível compreender o modo como diversos processos organizativos produzem uma escolarização dos corpos na esola. A escola regula o funcionamento do corpo e do movimento por meio de seus processos de gestão pautados na disciplina. “Os ritos, os comportamentos, a regras a serem seguidas que incidem sobre o corpo produzindo um determinado comportamento externos a Infância [...] é um conjunto de saberes que são produzidos para dar organicidade e identidade à instituição escolar (SOUZA, MIGUEL E LIMA, 2010, p. 16 e 22). Santos (2011) também comenta que os espaços, tempos e disciplinas, e toda organização da escola finalizam por silenciar o corpo com amarras da disciplina subjugando ao poder maior do professor, levando a criança a transforma-se num estudante. Não queremos dizer com isso que a escola não deva ter uma estruturação organizativa, mas que há possibilidades de vivenciar o corpo de cada estudante e de cada professor em experiências constitutivas de ensino e aprendizagem. A escola é um lugar de instância criadora de sentidos construídos coletivamente. Se pensarmos o sentido do corpo docente, corpo discente, corpo de funcionários, podemos inferir que a dimensão do corpo, deixa seu caráter individual para formar um sistema funcional mais amplo da coletividade. E quando se observa que muitas de suas representações também são constituídas nestes sistemas amplos de corpos, verifica-se uma tendência de homogeneização das necessidades, das virtudes, das ideologias. Daí, o sentido do corpo discente usar “uniforme”, não só aquele que veste seu corpo, mas, também aquele que veste sua forma de ser e se colocar no mundo (RIBEIRO; SILVA, 2012). Como base em Santos (2011), a escolarização do corpo nas escolas segue a tradição de silenciar o corpo para se dar condições ao aprendizado, nós observamos os estudantes mostrando inquietação motora durante as aulas. E, dependendo do professor, isso se intensificava, mas quando o nível de rigidez e autoritarismo docente eram exacerbados, as crianças silenciavam seus corpos, e isto não significava, necessariamente, que estavam atentos a explanação do professor, apenas que possivelmente se submetiam sem afronta direta à sua ordem. Algumas vezes observamos que os estudantes tentavam resistir a ordem de fazer filas, então iniciavam a fila corretamente, mas depois saiam correndo, ou faziam o colega tropeçar, ou agiam subversivamente com buchichos provocativos. Vimos nisso também uma forma dos corpos resistirem ao modo escolarizado. Corporeidade: Minha, sua, nossa identidade: Nos reportando a Santos (2011) a escola tem em cada estudante uma identidade individual (ser criança) e a outra construída no cotidiano escolar (ser aluno) em que se engendra a criança escolarizada. Assim, pode-se entender a corporeidade como uma fusão destas condições: tem a minha identidade (EU), a sua identidade (EU DO OUTRO) e a nossa identidade (SUJEITO ALUNO). O processo de unificar todas as identidades num corpo coletivo
  • 248. Argumentação e Linguagem Capítulo 19 239 discente, não é tarefa exclusiva da escola, haja visto que há famílias que dificultam o processo de individuação e de auto percepção da criança, podem estar fusionados em seu sistema familiar, ou podem usar apelidos como marca reducionista de quem seja essa criança, ou a destacar o que elas tem de “errado” em seus corpos. Em um de nossos encontros, a atividade era desenhar o brasão pessoal, colocando uma palavra que a família tinha lhes “tatuado”, e depois escrever outra palavra que identificassem como uma característica pela qual gostariam de ser reconhecidos, percebemos que as famílias podem marcar negativamente a identidade da criança como ilustram alguns dos desenhos (FIGURA 1). A criança incorpora marcas que lhe são atribuídos mesmo que estas não correspondam às suas características, como no primeiro desenho em que a criança é caracterizada pejorativamente pela magreza, embora não o seja. O segundo desenho mostra que uma criança que vinha escutando sobre o si a característica de “teimoso”. O terceiro desenho a criança entende a característica baixinha positivamente e o atributo indeciso incomoda, pois, seu desejo era ser reconhecida como “linda”. Nesta atividade percebemos a família podendo reproduzir as marcas sociais recebidas, naturalizando estereótipos, mas também podendo mediar reflexões e problematizar o que está naturalizado. Figura 1: Brasões pessoais com marcas indentitárias familiares negativas Fonte: Dados Primários A agressão física e verbal como escape do corpo para com a ordem instaurada: Almeida e Muller (2013) definem o bullying como qualquer ato de violência praticado com a intenção de maltratar, humilhar ou intimidar crianças, adolescentes e até mesmo adultos. Este vem sendo com frequência relacionado ao contexto escolar. Segundo Zanatta (2013), ao interagir com o outro, os jovens são influenciados em diversos aspectos através de suas vivências e é com o corpo que eles constroem suas experiências no mundo.Além disso, a autora complementa dizendo que os jovens podem entrar em conflito consigo mesmos, com a família e com os outros, e que em algum momento esses conflitos podem resultar em situações de vulnerabilidade a violência. É compreendendo o próprio corpo que se possibilita o respeito a si mesmo e
  • 249. Argumentação e Linguagem Capítulo 19 240 ao outro, que se possibilita contrastar as diferenças sem rechaça-las. Vivências de alteridade compreendem generosidade, a busca constante pelo domínio de suas emoções e fragilidades contradizendo o desejo de domínio do outro pela violência. Nesse sentido, as diferentes formas de corpos não justificam o comportamento etnocêntrico, a validação de um padrão de beleza único, nem tão pouco do não reconhecimento do outro como possibilidade de ser e estar-no-mundo, ou da violência como recurso de manifestação cruel de destruição do outro. Em vários momentos, foi observado agressões físicas e verbais entre os estudantes, como a única possibilidade, ao invés do uso do diálogo. Por exemplo, retornando ao recreio um estudante do sexto ano B deu um chute em uma menina, que segundo ele o havia provocado. Dialogamos e os questionamos sobre como podemos expressar a raiva sem praticar uma ação desrespeitosa. Os dois puderam não só compreender, se auto avaliar e saber que se pode ter raiva, indignação, ficar bravo sem ferir o outro. Surgiu o tema “incomodar um ao outro como motivo de agressão”, assim em um dos encontro levantamos três questões: a) O que te incomoda na aparência de outras pessoas?; b) O que eu me incomodo com meus colegas, o que eles fazem que me incomoda?; c) Quando fico incomodado, o que eu penso, o que sinto, e onde sinto? As respostas obtidas demonstraram a dificuldade de reconhecimento do que pensam quando estão incomodados, a sensação do corpo é o que identificam no momento do incômodo. O sentimento majoritário nas duas turmas que aplicamos a atividade foi a expressão da raiva e da tristeza (na última questão), e sentimentos muito fortes como vontade de matar ou morrer. De acordo com La Taille e Vinha (2013) ocorrem incivilidades na escola que tomam proporções cada vez maiores. As pequenas incivilidades em sala de aula, extrapolam para outros espaços na escola e onde a “liberdade” de movimento do corpo permite agressões mais acentuadas, como as que ocorrem no pátio, como a depreciação do outro, e as violências físicas (empurrar, chutar, lutar, derrubar) quando fora do olhar vigilante dos adultos. A figura 2 contém alguns dos desenhos relativos ao brasão pessoal realizado no encontro 2, e a tatuagem corporal. Neles podemos observar que apareceu distintas formas representativas da identidade pessoal, e os dois temas recorrentes foram: indicação de poder ou violência da identificação com a virtualidade. Destacamos três exemplos de brasão em que apareceram tais conteúdos: a) o primeiro é uma alusão a uma imagem de lutador; b) o segundo, um tanque de guerra, uma identificação à uma máquina poderosa de destruição; c) o terceiro, uma imagem de um mulçumano, com a escrita “sangue bom” e a maior parte do corpo uma espécie de tatuagem com um rapaz dentro de um jogo virtual. Nesses exemplos, foi importante as crianças aprenderem a reconhecer suas emoções e sensações e outras formas de expressá-las que não pela agressão física ou verbal.
  • 250. Argumentação e Linguagem Capítulo 19 241 Figura 2: Brasão pessoal e tatuagem Corporal / Rótulos Fonte: Dados Primários Desterritorialização virtual e a fantasia do pertencimento: Segundo Alves (2009) em uma comunidade globalizada que é assinalada pela mutabilidade e pela rejeição, o homem obtém a alternativa de moldar seu próprio corpo de acordo com a sua escolha que não é livre de marcas sociais, principalmente aquelas midiáticas, em que se apresenta um pessoa como fenômeno de sucesso, de estilo, de ideologia. O que é muito facilitado pela virtualidade das relações, onde se identifica uma persona (ator, cantor, youtuber, memes, personagens de jogos virtuais, entre outros). A adesão a tudo que é virtual trata de uma subjetividade socialmente construída que captura as pessoas de todas as idades, mas nascer numa era de virtualidade tem um sentido muito mais profundo, que afeta a forma de se ver e se ver no mundo. [...] defini a realidade virtual como aquilo que existe como potência, mas não em ato. [...] é a manifestação de uma realidade que não se presentifica no aqui e no agora, pois sempre se trata de uma promessa, de um vir a ser. [...] Jogos eletrônicos [...] virtuais são jogos que não se enraízam na corporeidade, uma vez que lhes falta fundamento de fixação: eles mudam ininterruptamente (RETONDARA, BONNET E HARRIS, 2016, p. 4, grifo nosso). A virtualidade permite a satisfação desejante, a desterritorialização do corpo, a flutuação identitária, o deslocamento para o prazeroso e o afastamento do que é tedioso ou insatisfatório. A virtualidade em sua potência do devir preenche a solidão da falta de laços sociais, ela supre o anseio do sentimento de pertença. Portanto, não é no corpo que a virtualidade se prende, e sim no aspecto vacilante do desejo, nas ambivalências do existir, e na potência do devir, lançando sua ancoragem na possibilidade idealizada do querer ser, e não na realidade do que se é enquanto pessoa. A virtualidade foi produzida pelo humano, e representa um movimento do humano em busca de comunicação, e de uma forma de ser no mundo. Breton (2003, p. 124) aponta que “no contexto das novas tecnologias o corpo tenderia a desaparecer”. Para Retondara, Bonnet e Harris (2016, p. 5): [...] o corpo virtual, que circula nas redes das comunidades cibernéticas, nas salas de ‘‘bate-papo’’, nos sites de relacionamentos e que participa dos jogos eletrônicos é um corpo sem ‘‘alma’’, na medida em que é projeção de desejos e fantasias que independem do ‘‘outro’’ e que garantem ao jogador controle total sobre a imprevisibilidade do ‘‘encontro’’. [...] Isso coloca os internautas em pé de
  • 251. Argumentação e Linguagem Capítulo 19 242 igualdade, pois, como se trata de dados digitalizados, o sujeito pode perfeitamente se manter conectado sem ser incomodado ou avaliado pelo corpo que tem e isso garante um grau de autonomia e de liberdade que muito provavelmente milhares de sujeitos não conseguem experimentar no mundo da vida. A ideia do corpo virtualizado também corrobora para aspectos de desqualificação do corpo do outro, de sua imagem, de sua forma de ser e pensar, e, em nome da liberdade de expressão, se autoriza a praticar violências virtuais ao outro e a si mesmo, pois as fronteiras do privado, da intimidade, do respeito, da sensibilidade pela dor alheia, não são mais conformadas pelas regras e valores da que existem nas relações presenciais. Elas ganham aspectos fantasiosos da virtualidade de que a reconstituição do que foi destruído, ferido, ou mortificado, facilmente se reconstitui com um simples clique. Por outo lado, os corpos rejeitados pela ditatura da forma perfeita, podem encontrar na virtualidade o sentido de existir sem os julgamentos, idealizando ou omitindo seu corpo. Em um dos encontros realizamos uma atividade para que pudessem expressar seus comportamentos quanto ao uso da internet, e isso ajudou a explicar porque no desenho do brasão pessoal, alguns estudantes colocaram elementos midiáticos e gadgets como constituinte de sua identidade. Figura 3: Gadgets no desenho da Tatuagem Corporal e Brasão Pessoal Fonte: Dados Primários O primeiro desenho se tem o símbolo do Whatsapp é colocado no local do coração. O segundo desenho aparece duas produções, o primeiro um celular dentro do pescoço e o segundo com celular que ocupa toda a lateral direita do corpo. No terceiro desenho o celular cobre quase todo o corpo e no quarto desenho o Iphone aparece como centro e exclusivo de identificação pessoal. As falas mostraram a fantasia dos estudantes sobre o mundo virtual, e o senso de onipotência infantil. Esta os leva à identificação com os desenhos, os jogos, os personagens, os youtubers, e a desterritorialização do mundo real tedioso, para um território que possibilita a flutuação de identidades poderosas, sem o enraizar do corpo como dizem Retondara, Bonnet e Harris (2016, p. 4) Quando o corpo não suporta: Identificamos vários assuntos e situações que precisaram de uma atenção qualificada na escola, tais como: abusos narrados por algumas alunas; saúde mental dos professores; narrativas de pensamentos e vontade
  • 252. Argumentação e Linguagem Capítulo 19 243 de suicídio; sofrimento de estudantes que vivem em situações de negligência e sérios conflitos familiares; isolamento social por dificuldades de aprendizagem em situações de inclusão; exposição de “nudes” em fotos de celular sendo compartilhado com estudantes da mesma escola trazendo agravo da saúde emocional de quem se expôs; entre outros. Diante dessas situações, como afirmou uma professora, eles procuram focar nas atividades curriculares, “pra conseguir conviver com tudo isso”. Ou seja, o corpo do docente não suporta lidar com tantos sofrimentos para os quais ele se vê impotente, angustiado com senso de ser responsável em mudar a situação de seus estudantes. O corpo do discente também não suporta lidar com seus sofrimentos emocionais, quando pedem socorro ao professor ou visitante, relatando sua vontade suicida. Para lidar com isso, lidam agressivamente com seus pares, ou agem sem confiança em ninguém, preferindo não falar sobre o assunto, exemplo disso, podemos citar uma estudante que passou pelo constrangimento de ver suas fotos pessoais divulgadas e uma outra que já viveu situação de abuso sexual, puderam se expressar nos encontros promovidos pela projeto de estágio, quando trabalhamos a temática “A força do fraco”, debatendo com eles sobre os cuidados autoprotetivos no uso da internet. E mesmo ali em uma ambiente que buscava se apresentar acolhedor, as jovens se emocionaram, mas também diziam “deixa isso pra lá”. Mas como se pode “deixar para lá” o que o corpo não suporta, como não se implicar com situações dessa ordem acontecendo com estudantes tão jovens? Ainda assim, a escola parecia desconhecer ou ignorar os fatos. A que se registrar que as situações de abuso ou pensamento suicida, tiveram acolhimento, seguido por mediações feita com a escola e essas crianças, e depois encaminhamentos para o serviço de psicologia da universidade, para o acompanhamento psicológico. Sexualidade pelas vias da informação, da sensorialidade, da arte e do sofrer: Segundo Alves (2009) podemos compreender que a sexualidade abrange rituais, falas, fantasias, representações, entre outros, e todos são processos culturais. A sexualidade foi expressada de várias formas pelos estudantes no decorrer dos encontros. Especificamente em uma ocasião fomentamos discussões a respeito da sexualidade, problematizando padrões de beleza de famosos, que eles indicaram previamente, seguido pela forma de contato com a arte para identificarem outras percepções de se ver o corpo. Noutro encontro usamos a forma sensorial, onde puderam apresentar o que compreendiam de anatomia, na atividade denominada “Fique por dentro”. Tinham que se deitar ao chão para fazer o contorno do corpo de um colega e depois eleger entre os materiais oferecidos o que iriam utilizar para representar seu corpo por dentro. O pátio e a quadra foram escolhidos para fazer essa atividade objetivando trazer um significado diferente a esse território. Puderam escrever ali uma biografia de ludicidade, de autoexpressão como protagonistas do conhecimento que possuem, ao invés de ser
  • 253. Argumentação e Linguagem Capítulo 19 244 um local apenas para ouvirem o que os adultos tem a dizer. Suas produções mostraram que em função das aulas de ciências, tinham noção do que desenhar como órgão interno e de onde colocá-los no corpo. Embora enfatizado várias vezes que era para desenhar o corpo por dentro, sentiram necessidade de colocar suas características externas (FIGURA) 4: Figura 4: Produções da atividade “Fique por dentro” Fonte: Dadas Primários Outro aspecto importante foi a maioria dos meninos (com exceção de dois) desenharem o órgão sexual masculino, e as meninas esconderem o órgão sexual feminino usando adesivos de carinhas felizes para compor uma calcinha, e colarem um adesivo de sapinho para cobrir a genitália. Isso confirma como vamos nos inscrevendo no mundo por meio dos ditames sociais: mulheres devem se cobrir e homens devem se expor. Nenhum dos grupos desenharam o órgão genital feminino, enquanto os meninos evidenciaram a genitália masculina iniciando o desenho por ela. Seguidamente, trabalhou-se a sexualidade pelo viés do sofrimento.Aatividade era identificar personagens confiáveis e não confiáveis que manteriam conversa na internet, e depois apresentamos que todos estavam presos por serem abusadores e pedófilos. Assim, foi possível trabalhar as diversas formas de acessar o conteúdo da sexualidade ressignificando o formato estático, geralmente trazido a eles pelo viés da informação curricular. Embora o encontro não objetivasse trabalhar a sexualidade, dois desenhos mostraram o quanto isso, para algumas meninas era forma de identificação (Figura 5). A primeira imagem mostra ao centro do brasão pessoal, uma cena de intimidade entre um casal. Na segunda imagem, que tratava da atividade “Tatuagem Corporal /Rótulo”, aparecem mulheres sensuais: uma na garganta e outra ao lado do corpo. Ao lado do ouvido, um inseto representando uma lacraia. Identificações bastante sexualizadas produzidas por meninas e de superexposição mediática de seu corpo, segundo seus relatos.
  • 254. Argumentação e Linguagem Capítulo 19 245 Figura 5: Produções que emergiram no encontro Fonte: Dados Primários Outro episódio relacionado a um abuso ocorreu no âmbito escolar, a mesma estudante mencionada encaminhou um nudes (foto íntima) para o namorado que enviou a outros colegas que a rotularam negativamente. Nossa sensação era de que havia sido roubada a infância destas estudantes, elas vivenciaram a sexualidade pela via do sofrimento, da rejeição e do abuso sexual, físico e psicológico. É notável que num mesmo ambiente circulam crianças sem conhecimentos e com tabus sobre a sexualidade, como no caso dos meninos que se reusaram a desenhar o órgão genial masculino, e há aqueles que experimentaram muito cedo o sexo por via do abuso, mudando significativamente o conceito da sexualidade, pois foram subjugados os seus corpos nas relações com o mundo. Aprender a cuidar: bem-me-quero, bem-te-quero: A perspectiva biocêntrica trata da centralidade da vida, da promoção de gerar mais vida à vida, de reverenciar essa vida, de produzir sentidos altruístas e de alteridade nas relações de convivência. A educação biocêntrica propõe uma escola que pensa as suas ações na gestão do cuidado, “cujos fundamentos se encontram na poética do viver e sentir-junto-com” (SOUSA, MIGUEL e LIMA, 2010, p. 77). Assim, destacamos que o projeto de estágio intentou produzir novos sentidos na comunidade escolar, especialmente, do afeto, do cuidado e da capacidade de se comover. O afeto trata da capacidade de afetar positivamente os outros, o cuidado se refere o sentido de cultivar, proteger, ser solícito. Já a palavra comover, além do significado literal, tem duplo sentido: a) co-mover, que teria sentido de mover-se-com, dando a ideia de movimentar-se no mundo com o outro; b) como-ver, que nos remete a capacidade de ver além, de olhar para si e para o outro e procurar a melhor visão possível da vida. Em outras palavras, ao invés do tão tradicional jogo de palavras lúdicas, bem- me-quer, mal-me-quer, queremos o sentido da ética do cuidado, do bem-me-quero, bem-te-quero, como uma outra possibilidade de ser e estar no mundo. No penúltimo encontro a estagiária proponente estava disfônica, e pediu a colaboração da turma, ao que eles não consideraram.Ao final do encontro a proponente os fez refletir o quanto ela e as colegas, bem como os docentes precisam também ser
  • 255. Argumentação e Linguagem Capítulo 19 246 cuidados. Quando normalizamos comportamentos incivilizados, aos poucos vamos naturalizandoodesrespeitoaténãotermosmaiscondiçõesdeperceberquexingamento, apelidos, abusos físicos (empurrar, bater, cutucar, entre outros) são nocivos à saúde emocional, e impeditivos da construção de relacionamentos saudáveis. Sentimos o quanto é desafiador manter condições adequadas para aprendizagem, mas acreditamos que o caminho não seja do silenciar o corpo, mas da insistência pela cultura da afetividade e amorosidade. 3 | CONSIDERAÇÕES FINAIS A temática da corporeidade é emergente em diversos contextos porque faz interlocução direta com significações e subjetividades na constituição da identidade pessoal, atravessada por ideologias e interditos que cada sociedade marca no corpo. Apesar da abrangência do tema, na escola a corporeidade aparece como uma representação da dinâmica das relações sociais de seu micro e macro contexto. Os encontros priorizaram atividades lúdicas que trabalharam a sensorialidade do corpo, a relação dos sentimentos com o corpo, a percepção de si e do outro, a influência histórica de múltiplas determinações que colocam todas as interdições no corpo, a reflexão das demandas de cada grupo, produzindo assim novas significações das relações interpessoais. A questões trazidas pelos estudantes foram profundas e complexas, e o vínculo estabelecido com as estagiárias permitiu que eles contassem as questões pessoais, como por exemplo, experiências que foram desagradáveis na família e o quanto isso os afetou, casos de abusos físicos e sexuais, negligência e humilhação sofrida, e ainda, os pensamentos e desejo de morte. Tais vivências são por vezes silenciadas, e tem relação com vários dos comportamentos que ocorrem na escola e não são compreendidos. O projeto permitiu que emergisse também conteúdos de alegria, de satisfação, de reconhecimento do próprio corpo e de suas sensações frente as emoções vivenciadas em sala de aula e em outros ambientes.Após essa vivência de formação em Psicologia, entendemos que os espaços escolares carecem de intervenções que possibilitem: a) promover relações de cuidado, de apreço ao bem estar de si e do outro; b) perceber a incompletude e o inacabamento diante das fragilidades provisórias e dos obstáculos reais da escola; c) desafiar a rotina que escolariza o corpo; d) fomentar vivências lúdicas da corporeidade e de suspensão da rotina cotidiana aos estudantes e professores. REFERÊNCIAS ALVES, C. E. R. Corporeidade: Oficina de Formação para professores da educação de jovens e adultos. 2009. 124 f. Dissertação. Universidade Católica de Minas Gerais. Belo horizonte. 2009.
  • 256. Argumentação e Linguagem Capítulo 19 247 ALMEIDA, A; MULLER, J. Violência na escola. Eventos Pedagógicos, v.4, n.2, p. 21 - 30, ago. – dez. 2013. BALDISSERA, A. Pesquisa-ação: uma metodologia do “conhecer” e do “agir” coletivo. Sociedade em Debate, Pelotas, v. 7, n. 2, p. 5-25, 2012. BRETON D. Adeus ao corpo. In: NOVAES, Adauto. (Org.). O homem máquina: A ciência manipula o corpo. São Paulo : Companhia das Letras, 2003. LAPLANE, A. L. F. Interação e silêncio na sala de aula. Cad. CEDES, Campinas, v. 20, n. 50, p. 55-69, abr. 2000. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php? >. Acessos em 29 nov. 2017. LA TAILLE, Y. e VINHA, T.: Grandes Diálogos. Entrevista [01 nov. 2013]. Entrevistador: Maggi Krause. Entrevista concedida a revista nova escola. Disponível em: https://novaescola.org.br/ conteudo/1930/telma-vinha-e-yves-de-la-taille-discutem-educacao-moral-nos-dias-de-hoje RETONDARA J. J. M., BONNET, J. C. e HARRIS, E. R. A.. Jogos eletrônicos: corporeidade, violência e compulsividade. Ver. Bras. Ciênc. Esporte. v. 38, n 1, p. 3 -10, 2016. RIBEIRO, I.; SILVA, V. L. G. Das materialidades da escola: o uniforme escolar. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 38, n. 3, p. 575-588, set. 2012. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php? >. Acessos em 28 nov. 2017. http://dx.doi.org/10.1590/S1517-97022012000300003. ROCHA, E. P. G. O que é Etnocentrismo. 5 ed., Editora Brasiliense, 1988.) SANTOS, K. C. Corpo, movimento e escolarização. Vitória: UFES. Núcleo de Educação Aberta e a Distância, 2011. Disponível em: https://issuu.com/bolotas/docs/cme. Acesso em 19 de Out de 2017. SOUSA, A. M. B, MIGUEL, D. S., LIMA, P. M. Módulo 1: gestão do cuidado e educação biocêntrica. Florianópolis : UFSC-CED-Nuvic, 2010. ZANATTA, E. A. Compreensão de Jovens Universitários sobre a violência – Sob o olhar da Corporeidade, da Vulnerabilidade e do Cuidado. 2013. 206 f. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre 2013.
  • 257. Capítulo 20 248Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 20 MASCULINIDADE NA LITERATURA: UMA HISTÓRIA HERDADA SOCIALMENTE Francisco Heitor Pimenta Patrício Universidade Regional do Cariri - URCA Missão Velha - Ceará Cícero Hériclis Ângelo Pereira Universidade Regional do Cariri - URCA Missão Velha - Ceará Josilene Marcelino Ferreira Universidade Regional do Cariri - URCA Missão Velha - Ceará RESUMO: Este trabalho procura discutir a relação entre a construção histórica do padrão de masculinidade e sua representação na literatura. Inicialmente, buscamos discorrer sobre os estudos a respeito das relações de gênero e posteriormente as pesquisas sobre masculinidade e suas relações de dominância. Para isso utilizamos os teóricos Bourdieu (2012) e Bento (2015), além de outras pesquisas bibliográficas a respeito dessa discussão. Com base nessas teorias, usamos os personagens Carlinhos, da obra Menino de engenho (2004) e Rodrigo Cambará, do livro O continente (1999), por meio de análise literária, para entender e explicitar como a sociedade condiciona comportamentos padronizados tanto para homens como para mulheres, da infância à vida adulta. Buscamos também, compreender as consequências dessa imposição naturalizada de comportamento, expondo situações em que os personagens apreendem socialmente o modelo a eles imposto. PALAVRAS-CHAVE: Literatura, Masculinidade, Sociedade, Gênero. MASCULINITY IN LITERATURE: AN INHERITED HISTORY SOCIALLY ABSTRACT: This paper seeks to discuss the relationship between the historical construction of the masculinity pattern and its representation in literature. Initially, we sought to discuss the studies about gender relations and later the research on masculinity and its relations of dominance.ForthisweusethetheoristsBourdieu (2012) and Bento (2015), as well as other bibliographical research about this discussion. Based on these theories, we used the characters Carlinhos, from the work Menino de engenho (2004) and Rodrigo Cambará, from the book O continente (1999), through literary analysis, to understand and to make explicit how society conditions standardized behaviors for both men and women, from childhood to adulthood. We also seek to understand the consequences of this naturalized imposition of behavior, exposing situations in which the characters socially apprehend the model imposed on them. KEYWORDS: Literature, Masculinity, Society, Gender.
  • 258. Argumentação e Linguagem Capítulo 20 249 1 | INTRODUÇÃO O gênero masculino, ao longo do tempo, foi permeado por restrições de comportamento ligadas aos seus sentimentos e vontades e suas formas de expressar emoções, como o próprio medo, a dor, a tristeza e o carinho. Essas restrições enrijeceram e moldaram o comportamento masculino, dando-nos a percepção de uma figura imbatível e inalcançável. Todas essas questões, ligadas à eterna luta em reforçar a ideia de “sexo forte” se afastando o máximo possível do “sexo frágil” atribuído às mulheres. Todavia, esse padrão resultou em um comportamento dominador, que exclui mulheres e, consequentemente, os homens que não se encaixavam nesse arquétipo. Nessa perspectiva, esse artigo busca investigar as causas sociais de existir um modelo tradicional de masculinidade, que desempenha o papel de dominante, e como é representado na literatura, por meio dos personagens que se enquadram no papel de masculinidade normativa determinada pela sociedade. Buscando encontrar, particularmente, sinais dessa “educação masculinizada” nas crianças, por meio do personagem Carlinhos, de Menino de engenho (2004), e como esse modelo é exprimido já na fase adulta, tendo como exemplo o Capitão Rodrigo Cambará, de O Continente (1999). Buscamos também, investigar como os estudos de gênero explicam as relações sociais que condicionam esse padrão comportamental, que é perpetuado pela sociedade. Para tanto, nos propomos a analisar, por meio de pesquisas bibliográficas, os personagens Carlinhos, da obra Menino de engenho (2004) e Capitão Rodrigo Cambará, do livro O Continente (1999) sob a perspectiva de Bento, com o livro Homem Não Tece a Dor (2015) e de Bourdieu, com o livro A Dominação Masculina (2012). Além de utilizar teorias que surgiram a partir dos estudos de gênero, que tinham o intuito de estudar as causas e consequências da relação de dominação entre os homens. 2 | A IDEIA DO MASCULINO COMO IDEAL DE SER Em nossa sociedade, o gênero é visto precipitadamente de forma binária, ou seja, o nosso gênero é definido pela categoria de homem ou mulher, relacionando o social com o biológico. Assim, um homem só é homem porque possui o órgão genital, pênis, com isso, precisa externar sua masculinidade de acordo com comportamentos pré-estabelecidos pela sociedade, para ser mulher, precisa possuir o órgão genital vagina, e expor sua feminilidade (gostando de homem, por exemplo, ou sendo uma bela dona de casa). Bourdieu (2012, p.23), sobre a construção dos gêneros sociais, afirma: [...] a definição social dos órgãos sexuais, longe de ser um simples registro de propriedades naturais, diretamente expostas à percepção, é produto de uma construção efetuada à custa de uma série de escolhas orientadas, ou melhor, através da acentuação de certas diferenças, ou do obscurecimento de certas semelhanças.
  • 259. Argumentação e Linguagem Capítulo 20 250 Portanto, tudo que fugir desse panorama está em discordância com as normas estabelecidas de gênero e, por conta disso, está sujeito a diversas formas de violência, realizada principalmente, pelo homem, elemento dominador em nossa sociedade. O conceito de gênero, em nosso contexto, é fluido e ainda não tem uma especificidade, entretanto, o uso desse termo nos permite abandonar explicações como o determinismo biológico para explicar a grande diferença das relações comportamentais, sociais e culturais entre homens e mulheres, e já que é cultural, é construção humana. Toda construção social humana é baseada no pensamento dos dominantes. Por isso que o objeto de análise dos estudos de gênero está em perceber que as categorias de ‘homem’ e ‘mulher’ não devem ser entendidas como categorias estáveis, mas sim como perguntas: o que é ‘ser homem’ e ‘ser mulher’, e ainda, por que o masculino e feminino estão inseridos nessas categorias binárias sem possibilidade de fluidez? As dicotomias, masculino x feminino, são mais que apenas características possuídas naturalmente por homens e mulheres, esses produtos são frutos de um longo trabalho social que foi difundido não só nos lares, mas também por instituições de poder como o Estado e as escolas, geralmente apoiadas em uma ideia dos papeis atribuídos a cada um de acordo com as funções sociais. Dessa forma, isso sugere que devemos pensar na construção da masculinidade como um projeto [...] perseguido ao longo de um período de muitos anos e através de muitas voltas e reviravoltas. Esses projetos envolvem encontros complexos com instituições (tais como escolas e mercados de trabalho) e com forças culturais (tais como a comunicação de massa, a religião e o feminismo).(CONNELL, 1995, p. 190 apud BENTO, 2015, p. 45). Segundo Bourdieu (2012, p.15), “como estamos incluídos, como homem ou mulher, no próprio objeto que nos esforçamos por apreender, incorporamos, sob a forma de esquemas inconscientes de percepção e de apreciação, as estruturas históricas da ordem masculina”. Dessa forma, precisamos entender que nossa visão sobre masculino e feminino, são elas próprias, produtos da dominação (BOURDIEU, 2012, p. 15). Por muito tempo, acreditou-se que as diferenças entre os sexos eram determinadas por características biológicas, assim, o masculino e o feminino estão sempre ligadas ao corpo e, principalmente, ao sexo. Sobre isso, Bourdieu (2012, p.20) explica: [...] A diferença biológica entre os sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a diferença anatômica entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho. Neste sentido, o corpo do homem era visto como modelo de perfeição, a sua anatomia era tida como modelo e o corpo da mulher era uma cópia inferior e invertida de todos os atributos do homem. Dessa maneira, as relações entre sexo, reprodução e orgasmos eram todas seguidas de acordo com o modelo. Entretanto, a teoria do corpo
  • 260. Argumentação e Linguagem Capítulo 20 251 perfeito foi erradicada, e oposição entre masculino e feminino foram justificadas sob uma visão política-ideológica. Essas diferenças estavam de acordo com as opiniões da sociedade burguesa e nacionalista europeia, que atribuíram ao homem todas as atividades ao mundo social e politico, enquanto para as mulheres, eram designados os afazeres de casa. Dessa forma, ‘ser homem’ era possuir qualidades masculinas, que por sua vez, era possuir características que fossem contra as características femininas do ‘ser mulher’. A partir do século XIX, com essa concepção, o panorama político, social e cultural que moldava as relações entre masculino e feminino, passaram a buscar tudo que estava fora da denominação de feminino, e buscavam sempre reforçar o seu ‘sexo forte’ sobre o ‘sexo frágil’. O masculino, depois da necessidade de se afirmar como homem, passou a impor ainda mais seu poder sobre o feminino, reforçando as barreiras sociais existentes entre os dois. 3 | A CONSTRUÇÃO DO “SEXO FORTE” O indivíduo se depara, ao nascer, independentemente do gênero, com um ambiente, normatizado por uma cultura patriarcal, onde todas as ações comportamentais e psicológicas estão no eixo de dominação do homem. Este, que carrega os privilégios demandados desse sistema regido pela assiduidade das práticas rudimentares, é o responsável pela repassagem dessas práticas aos menores, fazendo com que saibam que precisam alcançar a imagem de dominador viril na fase adulta, para serem respeitados. Essa imagem é conquistada através de um processo restrito de socialização, cujas relações sociais são restringidas por sexo, ou seja, espaços dedicados à disseminação dos estigmas em relação aos modelos masculino e feminino. Espaços esportivos, em grande maioria, ainda são determinados como pertencentes aos homens, por exemplo, logo são adequados para a transmissão de comportamentos a serem praticados e quais devem ser repudiados. A partir disso, o garoto criará a noção de que ele deve seguir a risca tudo o que esse círculo impõe. Qualquer distanciamento dessas práticas resultará na aproximação do jovem aos traços qualificados como femininos, podendo levá-lo a entrar, futuramente, na esfera do dominado. Segundo Welzer-Lang (2001, p.465), É verdade que na socialização masculina, para ser um homem, é necessário não ser associado a uma mulher. O feminino se torna até o pólo de rejeição central, o inimigo interior que deve ser combatido sob pena de ser também assimilado a uma mulher e ser (mal) tratado como tal. Desse modo, o grau de submissão é que determina o nível de distanciamento do garoto sobre esse modelo, tendo consciência que o maior número de práticas apreendidas durante seu desenvolvimento o deixará mais distante do inimigo dos homens, a feminilidade. As mulheres são as detentoras desse mal temível, pelos que
  • 261. Argumentação e Linguagem Capítulo 20 252 desejam alcançar a sagrada virilidade, cujas características, causam aversão aos mais másculos. Em detrimento disso, a mulher carrega traços como os da passividade e da sensibilidade. Dentro desses estereótipos, as mulheres são permitidas expressarem seus sentimentos sem correr risco de serem advertidas socialmente, já o contrário acontece quando elas se permitem desfrutar de prazeres sexuais, por exemplo. Essa visão parte da pressuposição de um sistema que estabelece as condições das mulheres a partir das rejeições que o patriarcado fez para obter seu ideal de homem. Sendo assim, homens são extremamente ridicularizados ao demonstrarem suas emoções, ou caso eles decidam dispensar prazeres sexuais. No processo de perpetuação desse sistema hierárquico, o patriarcado conta com ajuda não só de pais e irmãos mais velhos que irão garantir que seus filhos e irmãos mais novos sigam um ideal do que é “ser homem” e o que é ser viril, mas também com a ajuda de instituições, que irão fazer com que todos lembrem, inclusive as mulheres, quais são seus valores. Ou seja, em grande parte do que se ouve, lê e assiste reflete uma sociedade condicionada a aceitar o poder perigoso que é a imposição do modelo masculino. Toda essa construção em torno das relações de gênero causa uma visão de mundo, na qual mulheres e homens que fogem dos estereótipos designados são marcados psicológica e fisicamente pela sociedade. Toda essa atmosfera de normalidade criada e mantida no núcleo da sociedade, em se tratando dos hábitos que fazem parte desse modelo de dominação do masculino e da subordinação do feminino, é que faz com que, até os dias de hoje, situações de violência ainda sejam suavizadas por ser algo que se pode esperar do dominante sobre o dominado. Esse quadro de suavidade começa a mudar quando o dominado passa a refletir sobre suas atuações sociais perante o bom discípulo da virilidade. E é com movimentos como o feminismo que a reflexão sobre essas questões de gênero começa a eclodir, fazendo com que o oprimido questione sua posição e as atitudes tomadas pelo seu opressor, percebendo que esse modelo não é um mecanismo individual, mas que é sistemático. Esse sistema, historicamente criado e culturalmente repassado, ensina, mesmo que indiretamente, a censurar qualquer divergência ao que foi padronizado. Esse questionamento por parte do subordinado alcança mais espaço a partir do momento que aquele que oprime começa a refletir também sobre suas práticas, que em sua maioria não são percebidas. Justifica Bourdieu (2012, p.106), Em razão, sobretudo, do enorme trabalho crítico do movimento feminista que, pelo menos em determinadas áreas do espaço social, conseguiu romper o círculo do reforço generalizado, esta evidência passou a ser vista, em muitas ocasiões, como algo que é preciso defender ou justificar, ou algo de que é preciso se defender ou se justificar. Em virtude desse movimento, começa a explicitação e as tentativas de rompimento das pautas que indicam toda a desigualdade de gênero entre homens e mulheres criada pela teoria do determinismo biológico, a qual se encarrega de delimitar tarefas econômicas, domésticas e sociais tendo em vista os órgãos genitais do indivíduo.
  • 262. Argumentação e Linguagem Capítulo 20 253 Dentro dessa teoria, de cunho patriarcal, é notório que o homem detém poder de todos os privilégios. 4 | DE CARLINHOS A RODRIGO: UMA HISTÓRIA DE SOCIALIZAÇÃO DO CORPO Na construção do masculino, a infância é a etapa na qual a criança faz a assimilação dos paradigmas criados culturalmente em torno das relações de gênero. Tendo isso em vista buscamos investigar, na infância do personagem Carlinhos, de Menino de engenho (2004), de José Lins do Rego, padrões que mostrem que nós, como atores sociais, somos condicionados a agir de acordo com normas estruturadas historicamente. A obra narra a história do personagem Carlinhos, livremente baseada em algumas memórias do autor José Lins do Rego, que viveu sua infância no engenho. Na narrativa, o personagem passa a viver no engenho após o assassinato de sua mãe, cometido pelo pai. Estando no engenho, Carlinhos passa a ter maior contato com seu avô, que passa a ser, para ele, um exemplo de homem, com sua tia Maria, que é a presença feminina que tenta suprir o espaço deixado pela mãe, além de conviver com os ocupantes do engenho. É nesse contexto que Carlinhos “aprende” a ser homem. A chegada do menino ao engenho não foi tranquila, logo de início a personagem Galdina comenta sobre como o menino se parece com a mãe, o que acaba levando-o ao choro. Na tentativa de acalmá-lo, Maria, que a partir de então, procura atuar como figura materna na vida do sobrinho, acaba proferindo em meio a sua fala “Agora vou ser a sua mãe. Você vai gostar de mim. Vamos, não chore. Seja homem” (REGO, 2004, p. 39) uma expressão culturalmente muito utilizada, mesmo que de maneira inconsciente, para reprimir um menino que esteja produzindo um comportamento contrário ao que se espera de alguém do sexo masculino, já que “Um das marcas distintivas da masculinidade é a ausência de choro, ou qualquer manifestação do corpo que demonstre sensibilidade” (BENTO, 2015, p.113), característica atrelada à feminilidade. Isso mostra como a fala da personagem reflete, inconscientemente na obra, o discurso cristalizado e reproduzido na sociedade. Importante considerar que na época do autor e da obra, as discussões sobre gênero ainda não estavam em plano de debate na sociedade. Outro ponto a ser comentado na construção do personagem é a liberdade em relação ao território do engenho. Essa autonomia que é notavelmente garantida a todo indivíduo que pertença à esfera do masculino, a qual não parece estabelecer limite à presença do homem no âmbito social. Assim, Carlinhos passou a frequentar lugares onde só a figura masculina estivesse presente, primeiramente com os outros meninos. [...] Tinham chegado para passar um tempo no engenho uns meus primos, mais velhos do que eu: dois meninos e uma menina. Agora não era só com os moleques que me acharia. Meus dois primos, bem afoitos, sabiam nadar, montar a cavalo no osso, comiam tudo e nada lhes fazia mal. Com eles eu fui aos banhos proibidos,
  • 263. Argumentação e Linguagem Capítulo 20 254 os do meio-dia, com a água do poço escaldando. E então nós ficávamos com a cabeça ao sol, enxugando os cabelos, para que ninguém percebesse as nossas violações. (REGO, 2004, p. 43) É na presença do personagem Zé Guedes, que exterioriza suas experiências sexuais com mulheres sem nenhum pudor, que Carlinhos começava a refletir sobre sexualidade. O OUTRO MESTRE que eu tive foi o Zé Guedes, meu professor de muita coisa ruim. Levava-me e trazia-me da escola todos os dias. E na meia hora que estava com ele, de ida e volta, aprendi coisas mais fáceis de aprender que a tabuada e as letras. Contava-me tudo que era história de amor, sua e dos outros. (REGO, 2004, p.63) Zé Guedes (REGO, 2004, p.64) também mostra como a prática sexual costuma estabelecer uma relação de dominação do homem sobre as mulheres, quando conta a Carlinhos sobre as intimidades de seu tio com uma mulher negra do engenho “Aquela ali já foi passada. Quem manda nela é o doutor Juca. E eu ia sabendo que meu tio Juca tinha mulatas em quem mandava”. É através dessas evidenciações involuntárias, que surge no garoto a necessidade de reproduzir o comportamento do outro a ponto de assemelhar-se, visando a tão desejada iniciação na casa-dos-homens e enxergando a mulher como objeto sexual e, consequentemente, de posse. Como reflexo de naturalidade desses comportamentos em torno do gênero masculino, a iniciação, mesmo que precoce, nas relações sexuais estabelece uma condição de respeito ao indivíduo, já que isso corresponde às expectativas do sexo masculino. Ainda criança, ele se relaciona com uma mulher e faz uso da posição de homem ao se referir à situação “tinha uns 12 anos quando conheci uma mulher, como homem.” Como fruto dessa relação com Zefa Cajá, Carlinhos adquiriu uma doença venérea, que passou a ser exibida como sinal de sua altíssima virilidade conquistada aos 12 anos de idade. “E comecei a envaidecer-me com a minha doença. Abria as pernas, exagerando-me no andar. Era uma glória para mim essa carga de bacilos que o amor deixara pelo meu corpo imberbe. Mostravam-me às visitas masculinas como um espécime de virilidade adiantada.” (REGO, 2004, p. 130) São muitos os homens que participam na construção da masculinidade do personagem Carlinhos, mas é o seu avô que se fixa como modelo de homem ao qual ele quer ser comparado quando crescer. Essa visão se deve a relação de poder que o dono do engenho estabelece dentro de todas as esferas sociais e econômicas. E, dentro de uma sociedade culturalmente enraizada no patriarcado, nada é mais visível no modelo tradicional da masculinidade do que a dominação no contexto público e privado. Empiricamente [...] sabe-se que, para um homem, o fato de ser visto com “belas” mulheres classifica-o como “Grande-homem”, o que também acontece com aquele que tem dinheiro e/ou poder manifesto sobre homens e mulheres. Todos os homens, que aceitam os códigos de virilidade, e têm ou podem ter poder sobre as mulheres (o que ainda deve ser quantificado); alguns entre estes (chefes, Grandes-homens de todos os tipos) têm também poder sobre os homens. É verdadeiramente neste
  • 264. Argumentação e Linguagem Capítulo 20 255 duplo poder que se estruturam as hierarquias masculinas. (WELZER-LANG, 2001, p.466) Somos frutos de toda a nossa vivência, condicionada em regras sociais, vítimas de um sistema de ações. Somos uma consequência de todas as regras, padrões e formas de pensar, tanto que agimos seguindo padrões mesmo sem perceber, nossa consciência age segundo nossas construções. Assim, “pensar na consciência e a autoconsciência como elementos constitutivos do ser [...] implica reconhecer que este não fala por si, mas constrói seu discurso, seu pensar, a partir do outro, das regras do meio no qual se inserem e convivem”. (MICHALISZY; TOMASINI, 2012, p.24) É nessa linha de pensamento que buscamos analisar o personagem Rodrigo Cambará, que é destaque no livro O continente (1999), da série O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. Iremos tratar de seu comportamento aceitando a sua condição machista, patriarcal e controladora, como sendo resultado de uma imposição social, condicionada por determinações impostas ao gênero, em uma sociedade acostumada com essas predeterminações, já que apontar tais comportamentos “não significa culpar os homens pela dominação, mas interpretar como as diferenças entre os sexos são construídas, valorizadas e hierarquizadas em contextos históricos e sociais específicos.” (BENTO, 2015. p.82) Vale salientar que a história é ambientada em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul, no ano de 1800, dessa forma, como diz Bento (2015, p.11) “estamos falando de membros de um segmento social específico, portadores de visões de mundo específicas, integrantes de uma geração também específica,” quando a sociedade não pensava a respeito das desigualdades de gênero, achando naturais aquelas formas de abuso. Dessa forma, a imagem de Rodrigo foi construída em torno do ideal de masculinidade, imposta ao sexo masculino, justificando essa superioridade por meio do biológico. Investigaremos assim, a construção do personagem, particularizando certos pontos na descrição de sua aparência, na forma como as pessoas aceitavam a condição da personalidade do personagem e como ele se comportava em relação a sua esposa, Bibiana Terra. Rodrigo Cambará apareceu na cidade de Santa Fé, cidade na qual acontece a história, como um homem de idade mediana, 30 anos, sem ninguém saber ao certo de onde vinha e nem para onde ia, “com seu chapéu de babichado puxado para a nuca, a bela cabeça de macho altivamente erguida e aquele olhar de gavião que irritava e ao mesmo tempo fascinava as pessoas” (VERISSIMO, 1999, p. 171). A estética do macho forte é extremamente valorizada em sua descrição e vemos em Rodrigo o retrato do ideal condicionado socialmente, todas as características do corpo socializado do personagem, os movimentos, deslocamentos, falas, modos, são associados ao masculino. Na concepção de Bourdieu (2012, p. 16), o forte, o rijo, o claro, o seco, o duro, todos fazem parte de parâmetros socializados da visão dos gêneros, que, segundo o autor, contribuem para que esses pensamentos, que se aplicam universalmente,
  • 265. Argumentação e Linguagem Capítulo 20 256 perceptíveis na subjetividade de tais características, fazem permanecer e ao mesmo tempo naturalizar o julgamento baseado em características biológicas, naturalmente iguais em aparência, já que, para ser perpetuo, a sociedade precisou tornar as “qualidades” dos homens e os “defeitos” das mulheres algo nascido e sem escapatória. Ainda sobre essa legitimação das relações, Bourdieu (2012, p.18) afirma: “[..] a força da ordem masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação: a visão androcêntrica impõe-se como neutra e não tem necessidade de se enunciar em discursos que visem a legitimá-la”. Rodrigo, em uma de suas conversas com o pároco da cidade, um de seus mais caros amigos, para reafirmar a sua condição de macho, fala: “na minha família, quase ninguém morre de morte natural. Só as mulheres, e mesmo assim, nem todas. Os Cambarás homens têm morrido em guerra, duelo ou desastre. Há até um ditado: ‘Cambará macho não morre na cama.” É nesse contexto que podemos particularizar o relacionamento de Rodrigo com os outros habitantes da cidade, percebemos que homens e mulheres são condicionados a ver o “homem” como o poderoso naturalizado. Podemos “pensar que a estrutura hierárquica e assimétrica de gênero faz parte de um projeto social o qual homens e mulheres estão envolvidos na reprodução do modelo hegemônico” (BENTO, 2015, p.10) é a partir desse envolvimento que começamos a aceitar certos comportamentos. Ainda sobre nossa posição em relação a esses arquétipos, Berenice fala: Acredito que pensar relacionalmente a construção das identidades de gênero não deve limitar-se a tratar tal relação única e exclusivamente entre homens e mulheres, mas tentar pensar como cada um dos gêneros constrói suas identidades nas relações que estabelecem com os membros do próprio gênero. (BENTO, 2015, p.19) Em sua vivência na cidade, o comportamento de Rodrigo é visto de forma paradoxal por nós, leitores, já que o personagem não é visto como modelo de “homem de família” pelos habitantes da cidade, ao mesmo tempo em que desempenha o papel dado a ele ao nascer, de ser forte, valente, aventureiro e principalmente viril, já que, a virilidade é uma das principais formas de reafirmar a masculinidade. Reafirmar por ser construída sempre sob o medo de perdê-la, e por precisar de perseverante manutenção. Segundo Bourdieu (2012, p.20), [...] a virilidade, em seu aspecto ético mesmo, isto é, enquanto qüalididade do vir, virtus, questão de honra (nif), princípio da conservação e do aumento da honra, mantém-se indissociável, pelo menos tacitamente, da virilidade física, através, sobretudo, das provas de potência sexual — defloração da noiva, progenitura masculina abundante etc.— que são esperadas de um homem que seja realmente um homem. Ainda relacionado a seu relacionamento com o pároco da cidade, Rodrigo sempre o mostra as suas razões por não participar de uma religião, já que, como ele diz, “no céu não tem jogo nem bebida nem baile nem mulher. Se é assim, prefiro ir pro inferno” (VERISSIMO, 1999, p. 204). Esse comportamento de liberdade e de vontade de viver intensamente, que Rodrigo preza tanto, não é uma realidade conquistada,
  • 266. Argumentação e Linguagem Capítulo 20 257 mas sim uma condição por ser homem, faz parte da visão condicionada a esse gênero, o que nos leva a pensar na condição que fez com que Rodrigo pensasse dessa forma. Ao falar de sua criação, Rodrigo confessa: Me criei guaxo. Não conheci mãe. Com doze anos já trabalhava no campo com a peonada bem como homem feito. Com dezoito tinha sentado praça e já andava brigando com os castelhanos. Daí por diante sempre vivi ou brigando ou correndo mundo [...] nunca aprendi nenhuma reza nem me habituei a ir à igreja (VERISSIMO, 1999, p. 206). Bento (2015) defende que a “afirmação de Simone de Beauvoir, que ‘ninguém nasce mulher, torna-se mulher’, é apropriada pelos estudos sobre os homens que, ao tentar mostrar que ‘ninguém nasce homem, torna-se homem’, busca desconstruir uma definição assentada nos aspectos fixos, biológicos, de uma natureza masculina”. Desmembrando essa afirmação, podemos captar as ações das personagens levando em conta a sua condição como sendo sua essência de homem, nascido e construído para agir de determinada maneira. A conduta de Rodrigo com Bibiana também é marcada por incessante relação de abusos de autoridade, além da “objetificação” do seu corpo, o desejo de Rodrigo de ter filhos também acaba transformando Bibiana, após o casamento, da categoria “esposa” em “mãe”. (BENTO, 2015) Um dos primeiros sinais da forma como Rodrigo perpassa os valores por ele apreendidos, em relação ao tratamento dado ao sexo oposto, é explicitado depois de alguns dias vivendo no povoado, e já muito atraído por Bibiana, ele começa a expor seus desejos, desejos de “possuir” seu corpo e de ter o amor da personagem. Rodrigo via em pensamentos a imagem de Bibiana: a boca carnuda, os olhos oblíquos. Parecia uma fruta; dava na gente vontade de mordiscar aquela boca, aquelas faces, aqueles peitos. Naquele momento seu desejo por Bibiana confundia- se com uma sensação de fome e Rodrigo começou a pensar alternadamente na rapariga e num churrasco (VERISSIMO, 1999, p. 200) Depois de alguns meses na cidade, o personagem consegue casar com Bibiana, completando assim o modelo hegemônico de homem que “exalta a virilidade, a posse, o poder, a violência, a competitividade” (BENTO, 2015, p. 91) A partir desse momento, o comportamento de Rodrigo se transforma. A sua relação com a esposa torna-se cansativa, já que este, não estava acostumado com uma vida mais calma [...] de repente – quase num susto – sentiu-se mais gordo, menos enérgico, um pouco molenga. Fazia tempo que não brigava, que não se movimentava. Aquela vida de balcão, que lhe enferrujava os membros, era de matar qualquer cristão de aborrecimento. Por que se tinha ele metido naquilo? (VERISSIMO, 1999, p. 266) Dessa forma, o personagem começa a adquirir alguns hábitos, como traição, jogo com apostas, deixando Bibiana a margem de sua vida, fazendo-a entender o significado de “ser mulher”, muito mais preso, naquela época, entretanto, não iremos nos deter a perspectiva da mulher, pois enveredaríamos por caminhos que não são nosso objetivo. Esses hábitos de Rodrigo, em nenhum momento são criticados,
  • 267. Argumentação e Linguagem Capítulo 20 258 primeiramente pelo autor, depois pelos outros personagens, nem mesmo Bibiana o critica, chegando a romantizar o comportamento do personagem, alegando que apesar de tudo, ele continuava com ela. Para Bibiana, os trejeitos de Rodrigo, compunham uma personalidade encantadora. Segundo ela, Rodrigo não sabia fazer nada com calma e jeito. Não punha um objeto em cima da mesa: atirava-o. Quando se despia, à noite, jogava as roupas para todos os lados. Não sabia beber um gole d’água ou de vinho devagar: tomava-o em goles largos, fazendo muito ruído e no fim estralando os beiços. Até mesmo no sono continuava fazendo barulho: seu ressonado era pesado e muitas vezes no meio da noite ela ouvira Rodrigo enquanto dormia (VERISSIMO, 1999, p. 252) Essas características foram adquiridas pelo desejo, construído socialmente, de proteger a masculinidade, afastando-se de tudo que é tido como feminino, pela sociedade. Dessa forma, como afirma Bento (2015, p. 96) “ser homem significa ‘não ser como as mulheres’. Esta noção de anti-feminilidade reside no centro das concepções de masculinidades, de modo que a masculinidade é definida pela negativa: ser homem é não ser mulher.” Portanto, como feminino também e sinônimo de fraqueza [...] a masculinidade torna-se uma eterna busca para se demonstrar sua conquista, para provar aos outros o impossível de se provar. O homem tem medo de assumir inseguranças e dúvidas porque, se o fizer, pode ser julgado como sendo um fraco. (BENTO, 2015 p. 95). Portanto, como disse o Padre Lara (VERISSIMO, 1999, p. 304) o Capitão Rodrigo era um homem impossível, no qual percebemos marcas profundas da socialização do seu sexo a qual foi imposto um modo de vida já pronto, ao nascer. Ensinado assim, a ter medo de não ser tão homem quanto deveria ser, “sua emoção dominante é o medo. Medo em ser confundido com mulher, medo que os outros homens percebam a sensação de insuficiência.” E para proteger sua reputação e a dos outros homens, perpassa os mesmos conceitos e ensinamentos que o tornaram vítima da própria dominação. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Através da análise dos personagens e da pesquisa bibliográfica, concluímos que a literatura, com sua capacidade de representar a realidade, contribui de forma clara e objetiva na evidenciação do modelo hegemônico de masculinidade. Vale ressaltar, que os autores, por serem membros da sociedade e por ela moldados, não fogem dos arquétipos sociais. Assim, de forma inconsciente, esses autores acabaram reproduzindo, por meio de suas obras, discursos heteronormativos. E é por tais discursos que a análise explicita que a construção social dessa hegemonia masculina é fruto de um processo operado coletivamente sobre o indivíduo, descartando a possibilidade de um olhar na perspectiva de uma constituição individual e consciente a respeito da masculinidade e de suas imposições.
  • 268. Argumentação e Linguagem Capítulo 20 259 Mediante o comportamento dos personagens tanto no espaço público, quanto privado foi possível fazermos um paralelo com a sociedade contemporânea e constatar que as formas de condicionamento para a aquisição desse ideal de masculinidade continuam acontecendo, mas com todo o avanço dos estudos de gênero torna-se possível enxergar e apontar discursos e comportamentos que caracterizam a opressão como a parte essencial que mantém a cultura patriarcal interferindo no comportamento social. Assim, mulheres, e homens desviantes desse modelo, continuam sendo estigmatizados com o status de dominados. REFERÊNCIAS BENTO, Berenice. Homem não tece a dor: queixa e perplexidades masculinas/ Berenice Bento. - 2.ed. –Natal, RN: EDUFRN, 2015. Disponível em: <https://repositorio.ufrn.br/jspui/ bitstream/123456789/18985/1/Homem%20n%C3%A3o%20tece%20a%20dor%20-%20Berenice%20 Bento.pdf>. Acesso em: 25 fev. 2018. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. 11. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. Disponível em: <http://edisciplinas.usp.br/mod/resource/view.php?id=1577826>. Acesso em: 26 jan. 2018. BORIS, G.D.J.B.; BLOC, L.G.; TEÓFILO, M.C.C. Os rituais de construção da subjetividade masculina. O público e privado. n. 19, jan/jun 2012. Disponível em: <http://seer.uece. br/?journal=opublicoeoprivado&page=article&op=viewFile&path%5B%5D=334&path%5B%5D=498>. Acesso em: 27 fev. 2018. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. Disponível em: <https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2014/03/candido-literatura-e-sociedade-copy.pdf>. Acesso em: 28 jan. 2018. REGO, José Lins do. Menino de engenho. 86. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004. VERISSIMO, Erico. O Tempo e o Vento – o continente I. 40. ed. São Paulo: Globo, 1999. WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8635.pdf>. Acesso em: 19 jan. 2018.
  • 269. Capítulo 21 260Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 21 ENSINANDO PLE NA UFLA ATRAVÉS DO AVA - AVANÇAR Débora Racy Soares Departamento de Estudos da Linguagem, Universidade Federal de Lavras Lavras, Minas Gerais RESUMO: A oferta de cursos de Português como Língua Estrangeira (PLE), parcialmente a distância, é uma das recomendações do Ministério da Educação (MEC) para o estabelecimento do programa Português sem Fronteiras nas Instituições de Ensino Superior brasileiras. Nesse contexto, relata-se uma proposta pedagógica, realizada na Universidade Federal de Lavras (UFLA), que utiliza o AVA (Ambiente Virtual de Aprendizagem) como suporte pedagógico. PALAVRAS-CHAVE: PLE; AVA; UFLA. TEACHING PFL AT UFLA THROUGH VLE - AVANÇAR ABSTRACT: The offer of Portuguese as a Foreign Language courses (PFL), partially at a distance, is one of the recommendations of the Ministry of Education (MEC) for the establishment of the Portuguese without Borders program in the Brazilian Higher Education Institutions. In this context, we report a pedagogical proposal, carried out at Federal University of Lavras (UFLA), which uses VLE (Virtual Learning Environment) as pedagogical support. KEYWORDS: PFL; VLE, UFLA. As disciplinas de Português como Língua Estrangeira, doravante PLE, foram criadas na Universidade Federal de Lavras (UFLA) no segundo semestre de 2014, visando incorporar o uso de tecnologias variadas em sala de aula presencial e virtual. O emprego de novas tecnologias para implementar e consolidar não só as disciplinas de PLE, mas também as de outros idiomas (inglês, francês, italiano, espanhol, japonês), é uma das apostas do governo federal, juntamente com o Ministério de Educação (MEC), que tem direcionado a implantação dos cursos nas universidades federais. De acordo com a proposta do programa nacional Idiomas sem Fronteiras, do qual o Português sem Fronteiras (PsF) participa, a implantação de cursos de idiomas, com foco na internacionalização das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) brasileiras, deve observar três diretrizes específicas. A primeira trata da criação dos cursos de PLE, especificamente. As outras duas, particularmente, dizem respeito à criação e oferta de cursos de PLE através de AVAs (Ambientes Virtuais de Aprendizagem). A
  • 270. Argumentação e Linguagem Capítulo 21 261 segunda diretriz aponta para a necessidade hodierna de utilização de recursos virtuais que complementem o ensino presencial de PLE. A terceira sugere a criação e oferta de cursos de PLE a distância, totalmente online. Seguindo essas diretrizes, a UFLA tem oferecido, desde a implantação dos cursos de PLE, em 2014, disciplinas que utilizam o AVA, denominado Avançar, como suporte pedagógico. As disciplinas, que atendem, atualmente, cerca de 70% dos alunos estrangeiros, regularmente matriculados em programas de pós-graduação na instituição, têm utilizado recursos tecnológicos como preenchimento do perfil, fóruns de discussão, chats, wikis, diários, glossários, lições, questionários, entre outros recursos disponíveis no Moodle - e também fora dele (criação de tirinhas, gravação de áudio, criação de blogs e de páginas na web) - para potencializar o ensino-aprendizagem de PLE na instituição. A maioria dos alunos estrangeiros da UFLA é falante de espanhol como língua materna. Dessa forma, o AVA-Avançar tem sido utilizado como recurso pedagógico complementar às aulas presenciais de PLE, em todos os níveis. De acordo com o regulamento da instituição, até 20% da carga horária das disciplinas presenciais podem ser ministradas em ambientes virtuais, o que corresponde a 12 horas. Cada disciplina de PLE tem 60 horas (04 créditos). O livro didático Novo Avenida Brasil 1, ancorado na abordagem comunicativa, foi, inicialmente, adotado nas disciplinas de Português como Língua Estrangeira 1 (PLE 1) e 2 (PLE 2), servindo como base para esta proposta pedagógica. Embora o livro didático escolhido tenha sido o fio condutor das atividades desenvolvidas tanto em ambiente presencial, quanto em virtual, outros recursos complementares foram utilizados em ambas as salas: a real e a virtual. Na sala real, além do Novo Avenida Brasil 1, atividades de mais dois outros livros, intitulados Bem-Vindo! e Nota 10, foram utilizadas como reforço, em momentos pontuais. Ambos os livros também seguem a abordagem comunicativa. Bem-Vindo! é destinado, especificamente, ao público falante de espanhol como primeira língua. Nota 10, publicado em Portugal, contempla a língua portuguesa falada no Brasil. Materiais didáticos, produzidos pela própria docente, focados particularmente nas recorrentes dúvidas dos discentes, foram adotados em ambas as turmas e em suas respectivas salas virtuais. O foco destas reflexões se direciona, especificamente, às atividades que foram desenvolvidas para serem realizadas em ambiente virtual. É importante, no entanto, que os discentes, sobretudo aqueles em níveis iniciais de aprendizagem em língua estrangeira, tenham o livro didático como ponto de referência e apoio. Benson (2001) sugere que o livro didático, ao fornecer um norte aos estudantes, evitaria que eles se sentissem desamparados. As atividades propostas e desenvolvidas no AVA-Avançar, ainda que sigam alguns temas enfocados no livro didático adotado, também propiciam outras experiências de aprendizagem, mais lúdicas e criativas. Além de terem se revelado ferramentas pedagógicas úteis para potencializar e consolidar o processo de
  • 271. Argumentação e Linguagem Capítulo 21 262 ensino de PLE, as atividades realizadas no Avançar valorizam a autoria, fomentam a autonomia e, consequentemente, deslocam os discentes para o centro do processo de aprendizagem. Nesse ponto, cabe ressaltar que as atividades didáticas, elaboradas com recursos tecnológicos em (e para) ambientes virtuais não foram inteiramente direcionadas pelos esquemas e diálogos redutores, oferecidos pelo livro didático. Pelo contrário, estas atividades foram pensadas considerando-se determinados suportes e estratégias (scaffolding), a partir das dúvidas recorrentes dos discentes. Scaffolding significa fornecer suporte contextual para o sentido através do uso simplificado da linguagem, de modelos de ensino, de elementos gráfico-visuais, da aprendizagem cooperativa e prática. (OVANDO et al, 2003). Para as turmas que estão em estágio inicial, como as de PLE 1 e PLE 2, é necessário fornecer o scaffolding como suporte. À medida que os alunos vão ficando proficientes na língua-alvo, a necessidade deste suporte vai sendo minimizada, conforme demonstram Diaz-Rico e Weed (2002). De acordo com Bradley (2004), três tipos de scaffolding são particularmente efetivos na aprendizagem de uma língua estrangeira: (i) apropriar-se da linguagem simplificadamente, fazendo-se uso, sobretudo, de verbos no tempo presente; (ii) focalizar em exercícios que estejam estruturados na forma de completar (como os de preencher lacunas), mais do naqueles que demandam produção de informação; (iii) utilizar recursos visuais. Os três tipos de scaffolding mencionados foram empregados nas atividades virtuais desenvolvidas e propostas para as turmas de PLE 1 e PLE 2. Abaixo é possível visualizar alguns exemplos: Figura 1 – Atividade Criação de Perfil – Turmas de PLE 1 e PLE 2 Fonte: http://www.avancar.ufla.br No exemplo acima, a atividade solicita o preenchimento do Perfil dos discentes no AVA-Avançar e envolve habilidades de leitura e produção textual. As instruções
  • 272. Argumentação e Linguagem Capítulo 21 263 para a realização da atividade são descritas de forma simples e direta, com os verbos no tempo Presente, do modo Indicativo. Tanto os alunos da turma de PLE 1, quanto os da de PLE 2 foram convidados a realizar a mesma atividade, em seus respectivos AVAs. Vale observar que uma mesma tarefa pode ser solicitada para turmas que estejam em níveis distintos de aprendizagem, desde que a atividade seja elaborada de forma mais complexa. Assim, mobiliza-se a ideia da aprendizagem em espiral (Dolz e Schneuwly, 1996), evidenciando-se outro entendimento da noção de progressão, a partir de uma perspectiva sociointeracionista. Isso significa que não é preciso, obrigatoriamente, trabalhar os conteúdos gradativamente com os discentes, isto é, do menor para o maior grau de dificuldade. Logo, uma mesma atividade, como a exemplificada acima, pode ser trabalhada em diferentes momentos da aprendizagem, de forma distinta ou mais complexa. Assim, a aprendizagem em espiral valorizaria as possibilidades de aprendizagem (nível de desenvolvimento potencial) e não somente as necessidades de aprendizagem (nível de desenvolvimento real), para concordar com Vygotsky (1962). Na Figura 2, abaixo, é possível observar o uso de recursos visuais, como tirinhas, para exemplificar pequenos diálogos introdutórios: Figura 2 – Atividade Leitura e Criação de Tirinhas – Turmas de PLE 1 e PLE 2 Fonte: http://www.avancar.ufla.br Aatividade exemplificada na Figura 2 sugere que, a partir do modelo apresentado, os alunos sejam capazes de criar suas próprias tirinhas, através do Pixton (www.pixton. com.br) ou do StripGenerator (www.stripgenerator.com). Novamente, habilidades de leitura e produção escrita são mobilizadas, estimulando a criatividade dos alunos, através do lado lúdico da proposta. Em seguida, foi proposta uma atividade de gravação de áudio, conforme ilustrado:
  • 273. Argumentação e Linguagem Capítulo 21 264 Figura 3 – Atividade Gravação de Áudio – Turmas de PLE 1 e PLE 2 Fonte: http://www.avancar.ufla.br Nessa atividade, os alunos deveriam produzir um pequeno áudio, apresentando- se aos colegas. Sugeriu-se que gostos e hábitos pessoais fizessem fazer parte do texto a ser gravado. Primeiramente, os discentes foram orientados a escrever um breve roteiro, com o diálogo a ser encenado, antes de realizarem a gravação definitiva. O diálogo foi corrigido e a pronúncia verificada. Em seguida, utilizou-se o Voki (www.voki. com), um serviço gratuito que permite a criação de personagens virtuais, capazes de repetir mensagens previamente gravadas. Os áudios produzidos foram compartilhados no AVA da disciplina. Depois, os alunos foram convidados a ouvir as apresentações produzidas pelos colegas e comentá-las no Fórum (Figura 4), aberto para tal finalidade. Todas as atividades que ilustram este relato foram realizadas com as turmas de PLE 1 e PLE 2, durante um semestre, e apresentaram variações quanto ao grau de complexidade exigido na elaboração dos diálogos e apresentações. Figura 4 – Fórum – Turmas de PLE 1 e PLE 2 Fonte: http://www.avancar.ufla.br
  • 274. Argumentação e Linguagem Capítulo 21 265 O apego incondicional ao livro didático pode ser uma forma de limitação. Faz- se necessário, portanto, apostar em atividades que transcendam a moldura (frame) predeterminada do livro e que sejam capazes de ir ao encontro de oportunidades de aprendizagem que aconteçam também fora da sala de aula. Nesse sentido, as atividades propostas no Avançar procuram incentivar a busca de modelos reais de comunicação, muitas vezes carentes nos livros didáticos. As atividades do AVA foram pensadas, em um primeiro momento, como recurso pedagógico adicional aos exercícios realizados presencialmente. No entanto, estas atividades foram capazes de transcender a sala de aula presencial, pois contribuíram, sobremaneira, para que a vida real dos alunos não fosse sentida como algo apartado do ambiente de aprendizagem, seja ele real ou virtual. Afinal, a vida está na língua e a língua é cheia de vida. Ademais, atividades que incentivam a autonomia dos alunos, tornando-os aptos a administrar a própria aprendizagem, revelam-se assaz produtivas. Entende-se por autonomia a capacidade multidimensional que se manifesta de diferentes formas em indivíduos distintos e, até mesmo, em um único indivíduo, em diferentes contextos de aprendizagem ou em épocas diferentes (BENSON, 2001). Nunan (1997) sugere ser possível caminhar em direção à independência dos aprendizes, aos poucos, a partir da observância de alguns níveis, tais como: conscientização, envolvimento, intervenção, criação e transcendência. De certa forma, estes níveis ou etapas não são estanques: acabam, muitas vezes, acontecendo simultaneamente e se sobrepondo, à medida que os discentes tornam-se autônomos em relação à própria aprendizagem. A partir de algumas atividades, selecionadas para exemplificar esta proposta pedagógica, é possível vislumbrar que estimulam a autonomia dos discentes, procurando contemplar todos os níveis sugeridos por Nunan. Assim, a conscientização sobre a tarefa proposta (ler/ouvir as instruções referentes às atividades postadas no AVA), não se dissocia do envolvimento e da intervenção (ato de ler, ouvir e, consequentemente, criar pequenos diálogos, tirinhas, áudios). A criação decorre da ação de realizar a atividade. À medida que os discentes criam seus próprios exemplos e escolhem imagens para ilustrá-los (foto do perfil, tirinhas, avatar no Voki), transcendem o processo de criação, imprimindo autoria à atividade realizada. Como se percebe, os níveis propostos por Nunan estabelecem relação de casualidade entre si sendo, portanto, difícil dissociá-los na prática. Nunan (1997) enfatiza que é importante complementar o livro didático com atividades adicionais, próximas da realidade dos alunos. Afinal, em contexto de imersão, a língua pode ser aprendida menos na sala de aula e mais em contato com a realidade extraclasse, já que seu aprendizado depende de seu uso. O ambiente virtual, de certa forma, pode potencializar a realidade extraclasse, por ser um espaço, teoricamente, menos controlado pelo professor. OAVA-Avançar, além de propiciar o contato com a língua fora do ambiente da sala de aula real, mobiliza a questão da aprendizagem ubíqua, provando ser ferramenta virtual imprescindível nas aulas de PLE. A facilidade de acesso – o Avançar pode ser
  • 275. Argumentação e Linguagem Capítulo 21 266 acessado também pelo celular – e a disponibilidade das atividades complementares impactou o rendimento e a produtividade dos alunos, em ambas as turmas de PLE, a 1 e a 2. Ao longo do semestre foi possível observar: o crescente aumento da motivação dos alunos, sua melhor interação, tanto online quanto nas aulas presenciais, a diminuição da inibição para se expressarem oralmente e por escrito nos chats, fóruns, a autorregulação da aprendizagem, seja através da solução de problemas de forma individual e/ou coletiva, a consolidação de input linguístico favorável para a aprendizagem. Enfim, a utilização do AVA-Avançar nas aulas de PLE, além de estar em consonância com as diretrizes do MEC para a área, tem sido um diferencial na UFLA, em termos de proposta pedagógica. REFERÊNCIAS BENSON, P. Teaching and researching autonomy in language learning. Harlow: Essex, Pearson, 2001. BRADLEY, K. S.; BRADLEY, J. A. Scaffolding. Academic Learning for Second Language Learners. In: The Internet TESL Journal, vol. X, n0 . 5, May 2004, Texas A&M University, Kingsville, Texas, USA. Disponível em: <http://iteslj.org/Articles/Bradley-Scaffolding/>. Acesso em: 21 jun. 2016. DIAS, A.; FROTA, S. Nota 10 – Português do Brasil. Lisboa: LIDEL, 2015. DIAZ-RICO, L.T.; WEED, K.Z. The Cross-Cultural, Language, and Academic Development Handbook: a complete K-12 reference guide. [2nd. ed.]. Boston: Ally & Bacon, 2002. DOLZ, J; SCHNEUWLY, B. Genres et progression en expression orale et écrite. Éléments de réflexions a propos d’une expérience romande. In: Enjeux, n0 . 37/38, 1996, p. 49-75. IDIOMAS SEM FRONTEIRAS. Portaria nº 973, de 14 de novembro de 2014. Portal MEC. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=16618-por973- idioma-sem&category_slug=novembro-2014-pdf&Itemid=30192>.Acesso em: 19 mai. 2016. LIMA, E. E. O. F. et al. Novo Avenida Brasil 1: curso básico de português para estrangeiros. Livro-texto + livro de exercícios. [Reimpr.] São Paulo: E.P.U, 2013. NUNAN, D. Designing and adapting materials to encourage learner autonomy. In: BENSON, P.; VOLLER, P. (Eds.). Autonomy and Independence in Language Learning. Harlow: Pearson, 1997, p.192-203. OVANDO, C.; COLLIER, V.; COMBS, M. Bilingual and ESL Classrooms: teaching multicultural contexts. [3rd ed.]. Boston: McGraw-Hill, 2003. PONCE, M. H. et al. Bem-Vindo! A Língua Portuguesa no Mundo da Comunicação. São Paulo: SBS Editora, 2011. VYGOTSKY, L. S. Thought and Language. Cambridge: MIT Press, 1962.
  • 276. Capítulo 22 267Argumentação e Linguagem CAPÍTULO 22 MARCAS DOS PAISES IMPERIALISTAS NA CONSTITUIÇÃO E REORGANIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA Rosa Maria Silva Braga Mestranda do Curso Mestrado Acadêmico em Educação pela Universidade Federal do Acre. Licenciada em Pedagogia/UFAC. Especialista em Metodologia Ensino do Pré-Escolar e Fundamental - UFAC e em Tecnologias em Educação - PUC/RJ. Docente da Secretaria do Estado de Educação do Estado do Acre – SEE. Atualmente Formadora e Assessora Pedagógica do NTE Rio Branco/SEE. E-mail: rosabragante@gmail.com Lucia Torres de Oliveira Mestranda do Curso Mestrado Acadêmico em Educação pela Universidade Federal do Acre. Licenciada em História/UFAC. Docente da Secretaria do Estado de Educação do Estado do Acre – SEE. Atualmente Formadora e Assessora Pedagógica da SEE. Email: ltorresac@gmail.com 1 | INTRODUÇÃO Descortinar outras versões da História do Brasil nos seus diferentes períodos históricos não contadas a partir da ótica do dominador, que no caso brasileiro tem o nome de colonizador, não é algo simples, porque foi através da versão contada a partir dessa ótica, que aprendemos a admirar aos “benfeitores” de nossa nação. Sendo a instituição escola, uma das principais formas de acesso a História do país para a maioria do povo brasileiro, mediada pelos livros didáticos, poucos tiveram acesso a outras versões, prevalecendo na transmissão para as novas gerações, a versão contada pelos europeus. E assim como na história do Brasil, a história da educação brasileira, nos foi contada nos cursos de formação de professores de forma linear ou evolutiva. A história linear, mesmo envolvendo áreas sociais, econômicas, culturais e educacionais, não deixa de trazer certo conforto. “Histórias evolucionária [...] são comparativamente fáceis de construir. Elas recontam as mudanças e termos de sequencias e consequências numa instituição existente” (HAMILTON, 2001, p.47). O deparar-se com outra versão, “se por um lado, é conscientemente desafiadora e desconfortante, [...] é também libertadora” (HAMILTON, 2001, p.48). Considerando que a educação não está isenta as formas de organização políticas, econômicas, sociais e culturais em cada período histórico e que a educação brasileira, em sua expressão formal, já nasce nos formatos das experiência educacionais dos colonizadores portugueses, o artigo tem como objetivo analisar a constituição e a reorganização da educação escolar brasileira, ressaltando aspectos da colonização portuguesa aos dias atuais, não
  • 277. Argumentação e Linguagem Capítulo 22 268 tão explícitos na historiografia da Educação Brasileira, pois, como afirma Fernandez Enguita (1989, p. 131), “[...] é bem sabido que a história é escrita pelos vencedores, que não gostam de mostrar a roupa suja [..]”. Busca também, destacar como a influência dos países imperialistas fizeram-se presentes nos diferentes contextos históricos, todavia, de forma mais acentuada na década de 90, quando a influência dos organismos internacionais, numa perspectiva gerencialista, direcionaram à formação escolar para as demandas do mercado de trabalho, ação que demandou reformas curriculares, entre elas, a discussão e fomentação gradativa da formação continuada dos professores para o uso de novas tecnologias em sala de aula. Através de uma revisão bibliográfica ancorada em autores como: Faria Filho (2011), Fernandez Enguita (1989), Hamiton (2001), Horta (2012), Nóvoa (1986), Oliveira (2000, 2005), Paiva (2011), Palma Filho (20051), Souza (2008), Vincent (2001) e Xavier (1999), a análise da constituição e reorganização da educação escolar brasileira, tenta também desmitificar a aparência humanitária das ações educacionais dos organismos internacionais, levantando reflexões quanto a possíveis potencialidades, desafios de rompimentos e/ou reorganização para uma educação com identidade nacional. 2 | DESENVOLVIMENTO 2.1 A constituição do modelo escolar de educação no Brasil Sendo a educação uma atividade humana, em cada povo ou sociedade se manifestará de forma sistemática ou assistemática, haja vista que, uma das tarefas fundamentais de todas as sociedades humanas organizadas é a transmissão, de geração e geração, de um modo coletivo de viver e compreender o mundo (NÓVOA,1986, p. 07), No caso da educação brasileira, sua constituição é marcada por continuidades e descontinuidades, ou avanços e retrocesso, uma vez que historicamente, “mais que uma evolução, a história da educação é de uma sucessão de revoluções e contrarrevoluções” (FERNANDEZ ENGUITA, 1989, p.129). A partir da colonização portuguesa, registrada na História oficial como “Descobrimento do Brasil”, o modelo escolar de educação no Brasil, será herdeiro de traços de países europeus, uma vez que, as primeiras escolas criadas pelos Jesuítas, chamadas de escolas de primeiras letras, já nasceram com o vínculo estatal (Coroa Portuguesa), funcionando com planos de estudos definidos e espaços próprios. Paiva (2011), referindo-se sobre educação no Brasil no período Colonial afirma que: Há que se buscar na história portuguesa e no seu desdobramento em terras brasílicas o lugar que a escola ocupou na organização social. [...] desde que chegaram ao Brasil, os jesuítas estabeleceram escolas e começaram a ensinar a ler, escrever e a contar e cantar (PAIVA, 2011, p.43).
  • 278. Argumentação e Linguagem Capítulo 22 269 O referido autor destaca ainda, [...], mas, o que representava a alfabetização para os jesuítas a ponto de quererem, desde o início, alfabetizar os índios, quando nem em Portugal o povo era alfabetizado? Mas do que a resultado dessa intenção, interessante é observar a mentalidade. As letras deviam significar a adesão plena à cultura portuguesa. [...] O Ratio studiorum, que organizava os estudos da Companhia, estabelecia em pormenores o currículo do colégio. A Gramática média; a Gramática Superior: as Humanidades; a Retórica. Havia ainda a Filosofia e a Teologia para quem se preparasse para o sacerdócio. A presença greco-romana é incontestável (PAIVA, p. 43-44, grifo do autor). Ainda para o referido autor, era consenso entre os colonizadores, que esse formato educacional era importante para a sociedade brasileira da época. A manutenção do sistema cultural estava a exigi-lo. Esses filhos seriam ou padres, os advogados, ocupariam cargos públicos, possibilitariam à sociedade se reproduzir. [...], por isso, não há do que se espantar com o colégio jesuítico em terras brasílicas: baluarte erguido no campo da batalha cultural, cumpria com a missão de preservar a cultura portuguesa (PAIVA, 2011, p.44). Passados dois séculos, as relações sociais e econômicas e culturais brasileiras passam por transformações e o modelo de educação dos jesuítas em certo momento, deixa de atender aos interesses dominantes na Colônia, uma que, As relações sociais estavam sendo novamente modeladas e uma nova constelação de valores, hábitos, comportamentos, instituições vão se impondo, claramente calçados no processo de colonização exploradora. O modelo colonial, nesses termos, vai invadindo e conformando todas as áreas da vida social, aumentando assim, cada vez mais, a distância entre as letras e a vida vivida, [...] A desmitificação das verdades absolutas já se fizera sentir desde as grandes descobertas, desdobrando-se mais intensamente com o desenvolvimento do mercantilismo [...]. A sociedade se transformara culturalmente[..]. O colonizador português experimentava, no seu dia a dia, a necessidade de desobedecer às normas verdadeiras, a casa se fazendo norma. Essa experiência cotidiana pautava a consciência e conformava o agir das pessoas. E o colégio jesuítico continuava formando letrados (PAIVA, 2011, p. 56, grifo do autor). Em um contexto histórico com novos interesses, a Companhia de Jesus é expulsa do Brasil pelo Marques de Pombal. Entretanto, ainda no período colonial, é encontrado no Brasil, segundo Paiva (2011), as escolas régias ou de “cadeiras públicas de primeiras letras”, com professores nomeados pelo governo, que funcionavam em lugares adaptados. Além dessas escolas, Paiva (2011), também registra, a existência das escolas domésticas que funcionavam em espaços particulares adaptados, onde o professor era pago pelo chefe da família ou pelo proprietário da terra, geralmente um fazendeiro, que no século XIX, chegavam a ser maiores em quantidades, que as escolas com os professores contratados pelo estado. No período Imperial, educação brasileira, passará por momentos semelhantes aos ocorridos em Portugal, relatadas por Nóvoa (1986), com escolas de primeiras letras (ler, escrever e contar), de educação elementar e de ensino primário, assim como, também serão encontrados nas escolas da época o método mútuo e a cartilha escolar que utilizados em Portugal. Essas semelhanças também são registradas por
  • 279. Argumentação e Linguagem Capítulo 22 270 Paiva (2011). Tratando desse período, Faria Filho, registra que a “historiografia consagrada sempre concebe a educação primária brasileira no século XIX confinada a desastrada politicas pombalina e o florescimento da educação na era republicana” (FARIA FILHO, 2011, p. 135). Para o referido autor, apesar de as vezes esse período ter sido considerado por alguns como uma fase ruim, OsrecentesestudosarespeitodaeducaçãobrasileiranoséculoXIX,particularmente no período imperial, têm demonstrado que havia, em várias províncias, uma intensa discussão acerca da necessidade de escolarização da população, sobretudo das chamadas “camadas inferiores”. Questões como a necessidade e a pertinência ou da instrução dos negros (livres, libertos ou escravos), índios e mulheres eram amplamente debatidas e intensa foi a atividade legislativa das Assembleias Provincianas em busca do ordenamento legal da educação escolar (FARIA FILHO, 2011, p. 135). O referido autor, também registra, a participação pequena e pulverizada do Estado no processo de escolarização ao longo do período Imperial e que nem a instituição escolar tinha destaque social no período. “Foi preciso então, lentamente, afirmar a presença do Estado nessa área e também produzir, paulatinamente, a centralidade do papel da instituição escolar nas formações de novas gerações” (FARIA FILHO, 2011, p.136). Nesse contexto, [...] o estado ao prover instrução, buscava não somente uma estratégia civilizatória para o povo brasileiro, mas também a sua utilização comum mecanismo de controle da população. O Estado Imperial, e sobretudo as províncias do Império a partir do Ato Adicional de 1834, foram pródigos em estabelecer leis referentes a instrução pública (FARIA FILHO, 2011, p.137). Todavia, somente os atos legais não eram suficientes para o enfrentamento da escassez de recursos e diversidades das províncias na oferta da educação primária, [...] a instrução elementar articula-se não apenas com a necessidade de se generalizar o acesso às primeiras letras, mas também com um conjunto de outros conhecimentos e valores necessários a inserção, mesmo que forma muito desigual, dos pobres a vida social (FARIA FILHO, 2011, p.138-139). Ao longo do séc. XIX, a tendência da educação brasileira na República Velha, com vista o controle estatal da educação no Brasil, “[...] vai progressivamente assumindo as características de uma luta do governo do estado contra o governo da casa” (FARIA FILHO, 2011, p. 146). Ao mesmo tempo, [...] as discussões pedagógicas sobretudo aquelas referentes às propostas metodológicas, foram demonstrando a necessidade da construção de espaços própriosparaaescola,comocondiçãoderealizaçãodesuafunçãosocialespecífica, [...] tais discussões irão culminar na criação e construção dos grupos escolares, [...] concebidos e construídos como verdadeiros “templos do saber”, encarnavam, a um só tempo, todo um conjunto de saberes, de projetos político-educativos e punham em circulação o modelo definitivo da educação do século XIX: o das escolas seriadas.[...] Neles e por meio deles, os republicanos buscarão mostrar a própria República o seu projeto educativo exemplar e, por vezes espetacular. [...] a cultura escolar elaborada tendo como eixo articulador o grupo escolar atravessou
  • 280. Argumentação e Linguagem Capítulo 22 271 o século XX, constituindo-se referência básica para a organização seriada das classes, para a utilização racionalizada do tempo e dos espaços e para controle sistemático do trabalho das professoras dentre outros aspectos (FARIA FILHO, 2011, p. 146-147) Assim, no período de 1890 a 1960, A centralidade atribuída pelos republicanos à educação, na transição do século XIX para o século XX, nutriu-se dos ideais liberais e dos modelos de modernidade educacional em voga nos países ditos civilizados, ratificando a distribuição entre educação do povo e educação das elites e estabelecendo clivagens culturais significativas (SOUZA, 2008, p. 19, grifo nosso). Esse período é momento em que os princípios Iluminista são postos a prova, diante do medo de perda de mão-de obra e segundo Souza (2008), mesmo entre os Iluminista não havia consenso sobre a educação a ser dada ao povo, se ampla ou limitada. Isso em virtude do tempo “que a educação afastasse as camadas populares das atividades manuais, acarretando problemas na produção” (SOUZA, 2008, p. 20). A referida autora também registra que, [...]ao longo do século XIX, a insuficiência dos saberes elementares (leitura, escrita e cálculo) para a formação do homem moderno passou a ser cada vez mais propalada, nos países europeus e nos Estados Unidos”. O que ensinar ao povo passou a fazer parte dos debates políticos acerca da educação popular, [...] implicava selecionar no estoque de saberes da época [...], aqueles conhecimentos úteis considerados potencialmente relevantes para que a escola cumprisse suas finalidades, isto, é, que ela favorecesse uma visão mais racional do mundo, modificasse hábitos de condutas arraigados e conduzisse as novas gerações em direção aos pressupostos e valores da modernidade. (SOUZA, 2008, p. 20, grifo nosso). Souza (2008), também registra, que nesse período, a pobreza era uma ameaça pública ao progresso, razão pela qual, muitos intelectuais defendiam que ofertar educação para a classe menos favorecida, seria uma medida de segurança social, ao mesmo tempo que a prepararia para a “vida produtiva”. Para essa autora, “a modernização do currículo da escola primária, na segunda metade do século XIX, foi uma consequência dessas múltiplas finalidades à educação popular” (SOUZA, 2008, p. 32). Apesar de não ter acontecido de forma rápida, as discussões sobre a renovação dos programas de ensino voltam-se a intensificasse somente no final do século XIX. Nos anos que se seguiram à proclamação da República, em vários estados brasileiros, os governos estaduais buscaram implementar reformas da instrução públicas, visando a instruir um moderno aparelho de ensino para a promoção de educação popular. De modo geral, os dispostos legais incorporavam os princípios liberais de educação, estabelecendo a obrigatoriedade e gratuidade do ensino primário, o caráter laico da educação e fixando o compromisso formal do poder público em ampliar as oportunidades educacionais mediante a multiplicação das escolas e a elevação do número de matriculas (SOUZA, 2008, p. 37). Nesse momento, “o método indutivo tornou-se ícone da escola primaria moderna” (SOUZA, 2008 p. 37). Mas, duas outras medidas consideradas inovadoras foram apontadas como garantia de eficácia no sistema brasileiro: a formação dos professores realizada pelas Escolas Normais e a criação de um serviço de inspeção técnica para
  • 281. Argumentação e Linguagem Capítulo 22 272 o ensino (SOUZA, 2008). Paralelo a isso, [...]a eficácia o sistema de ensino alicerçar-se-ia em quatro elementos primordiais: a graduação em séries, o cumprimento dos programas, o sistema de avaliação e a disciplina dos alunos. [...]. Ao longo da Primeira República, cada vez mais os programas de ensino primário buscavam regrar a pratica docente, determinando minunciosamente o que e como ensinar. [...]. A escola considerada “templo da civilização” operava múltiplos sentidos, tanto a disciplinarização quanto a humanização, tanto a moralização quanto a apreensão da cultura científica e estética, códigos fundamentais da modernidade (SOUZA, 2008, p. 49;50;76). Nesse contexto, um fato que merece destaque é que, com instalação da República em 1889, a igreja, pouco a pouco, vai aceitando o novo regime e encontrando formas de tirar proveito dele. Outro fato a ser considerado é que, segundo Horta (2012), a educação formal sempre esteve a serviço do estado, sofrendo pressão e influência filosóficas, politicas, ideológicas do momento histórico vivido. Mas a partir do Estado Novo, a [...] decisão de utilizar a escola como aparelho ideológico do estado a serviço do estado [...] foi acentuada e escancara nos projetos educacionais no pais, quando [...] Capanema revela a disposição do governo federal no intuito de presidir, orientar e controlar a reorganização do sistema escolar do pais. [...] Além de um instrumento de inculcação dos princípios do Estado Novo, a educação deveria servir também de arma de luta ideológica (HORTA, 2012, p. 153-157-160). Essa decisão entrará em confronto com os ideais escolanovistas expressa no Manifesto dos Pioneiros em 1932, uma vez que regime autoritário não iria combinar com os “valores e princípios caros aos pioneiros da educação nova como, obrigatoriedade, gratuidade e descentralização (PALMA FILHO, 2005, p. 15). Concordando com Palma Filho (2005), Xavier (1999), registra que, Para Anísio Teixeira, a regra de ouro da educação consistia em garantir a autonomia das instituições de ensino. [...]. Na sua visão, a centralização dos serviços escolares – nas Secretarias de Educação dos estados e municípios e no Ministério da Educação no nível da União – teria transformado cada uma das escolas em uma só escola monstruosa e abstrata, com seções espalhadas por todo o estado (XAVIER, 1999, p. 61, grifo do autor). Paralelo a arena de disputa de princípios e valores para a educação nacional, Oliveira (2000) destaca que, No ápice do ideário nacional-desenvolvimentista no Brasil durante as décadas de 50, 60 e até mesmo 70, foi marcante a preocupação com a educação como propulsora do progresso técnico, através da formação de recursos dentro dos padrões de exigências do modelo de industrialização adotado. Os esforços para qualificar os trabalhadores, a fim de se atender às necessidades do pleno desenvolvimento da economia, contribuindo para a criação de condições gerais de produção, marcaram profundamente o período, tendo como sua melhor expressão a criação do SENAI. [...]. Essa preocupação não se limitou, contudo, à formação de força de trabalho apta às mudanças tecnológicas e organizacionais exteriores ao sistema público de ensino; incluiu, ainda, questões políticas, como financiamento, controle e gestão da educação pública (OLIVEIRA (2000, p. 17). Entretanto, “a legislação educacional do período de 1930-1960, apesar de alguns avanços, não soube traduzir em ações os princípios liberais democráticos presentes,
  • 282. Argumentação e Linguagem Capítulo 22 273 tanto no texto constitucional de 1934, quanto no ano de 1946” (PALMA FILHO, 2005, p.18). Fato também defendido por Barros (1960), ao referir-se à primeira LDB nº 4.204/61, quando afirma que, O Projeto de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, tal como foi aprovado pela Câmara dos Deputados, contraria inteiramente os princípios liberais e democráticos que norteiam os destinos de nosso país que foram inscritos na Constituição Nacional de 18 de setembro de 1946 (BARROS,1960, p.307). A partir de 1964, parte desses referidos princípios serão esquecidos, quando o Brasil irá enfrentar 20 anos de ditadura militar, que “a despeito do cerceamento das liberdades e direitos políticos e civis, irá paradoxalmente ampliar as políticas sociais de cobertura ampla e extensão universal”. (OLIVEIRA, 2005, p. 284). Durante esse período, no plano educacional, entre o final dos anos 70 e início de 80, diante de uma escola brasileira excludente, elitista e tecnicista, intensificam-se a luta por parte dos educadores, pela democratização da educação, por [...] ampla defesa do direito à escolarização para todos, de universalização do ensino e de defesa de maior participação na gestão da escola. A Carta Constitucional de 1988 consolida muitas das reivindicações presentes nas pautas dos movimentos que emergem com a derrocada do regime militar (OLIVEIRA, 2005, p. 284). Entretanto, a nova Constituição de 1988, também consolida os interesses econômicos e políticos dos países imperialistas, que se materializam nas reformas educacionais iniciadas na educação brasileira na década de 90. 2.2 A reorganização da educação brasileira sob a ótica de países imperialistas A partir da década de 90, a crise mundial de acumulação do capital, gera uma nova necessidade de sua reestruturação, que será denominada de “globalização”. Por envolver economia, política e cultura, este novo movimento do capital internacional, [...] trouxe como corolário, a flexibilização nas relações do trabalho e emprego, o que resultou em diversificação nas formas de contratação e crescente desemprego. Tal processo provoca uma crise social que condena a maioria da população a condição indignas de vida (OLIVEIRA, 2005, p. 280). Estruturalmente, não há como desvincular as reformas na economia da educação. A partir da década de 90, a educação brasileira passou a ser reorganizada de modo atender as demandas do capital internacional. Autorizados pelos acordos firmados entre o governo brasileiro com organismos internacionais como o Banco Mundial, BIRD e UNESCO, estes organismos, passam através de assessorias técnicas e financeiras, a influenciar do ponto de vista pedagógico, cientifico, político, tecnológico e ideológico, as reformas na educação brasileira, onde [...] a política educacional sofre alterações nas suas orientações tendendo a responder as demandas crescentes de maior integração social das populações vulneráveis, ao mesmo tempo em que deve também formar a força de trabalho apta aos novos processos produtivos (OLIVEIRA, 2005, p. 280-281). Nesse contexto, a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB
  • 283. Argumentação e Linguagem Capítulo 22 274 9394/96, abrirá as portas legais para as reformas, garantindo os dispositivos que atendessem as exigências dos acordos assumidos pelo governo brasileiro com os organismos internacionais. Assim, as reformas educacionais orientadas pelos organismos Internacionais a serem implementadas no território brasileiro, provocam mudanças no campo curricular e consequentemente na formação docente. Como consequências desses acordos, “assistimos, [...] um esvaziamento do sentido das políticas educacionais que recuperem a integralidade da formação humana” (OLIVEIRA, 2005, p. 295), que paulatinamente vão sendo substituídos por programas, projetos financiados e formatados com a assessoria técnica dos organismos internacionais.Aexemplos desses programas, está o Programa Nacional de Tecnologias Educacionais – PROINFO, criado com objetivo de promover a inserção das tecnologias digitais na prática pedagógica da Educação Básica, como meio de aquisição de competências e habilidades em Tecnologias da Informação e Comunicação- TIC, por professores e alunos (UNESCO, 2009). Todavia, para implementar essa ação, os organismos internacionais, precisam também financiar a aquisição de equipamentos tecnológicos, fomentar a ampliação do acesso a conexão de internet e prestarem assessoria na formatação de programas de formação continuada para professores que visem o uso pedagógico das TIC no dia-a-dia da sala de aula, com vistas, a formar os futuros usuários e consumidores de tecnologias, com as habilidades e competências exigidas pelo mercado de cada vez mais competitivo. Pois, assim, “como no início da revolução industrial, a tecnologia é projetada para aumentar o lucro e o poder, o controle administrativo e o domínio à custa do trabalho significativo, da liberdade, da vida e do bem-estar [...] ” (Oliveira, 2000, p. 33, Apud CHOMSKY, 1996: p. 234). Em outras palavras, no atual contexto, as tecnologias tornam-se indispensáveis no aumento da produtividade, diminuição de gastos com o pagamento de recursos humanos, maximização de lucros, além da garantia da hegemonia ideológica neoliberal, que contará com um exército de consumidores cada vez mais dependentes de tecnologias digitais. Aindanessesentido,FernandezEnguita,(1989,p.131),explicacomoocapitalismo foi tão capaz de dar forma a escolarização, ao afirmar que, “[...] as grandes empresas capitalistassempreexerceramumagrandeinfluênciasobreopoderpolítico,quandonão foram capazes de instrumentalizá-lo abertamente [...]” (FERNANDEZ ENGUITA,1989, p.131). Infelizmente, essa influência a cada dia é expressa na legislação aprovada pelo poder político, que atende em primazia a hegemonia econômica do grande capital em detrimento as demandas de valor social do povo brasileiro. 3 | CONCLUSÃO Uma análise da educação no Brasil do início da colonização aos dias atuais, poderá contribuir com elementos reflexivos que auxiliem no descortinar de fatores de
  • 284. Argumentação e Linguagem Capítulo 22 275 rupturas e continuidades no processo de constituição e reorganização da educação brasileira, que desde a colonização portuguesa tem tido nos países imperialistas seu padrão de medida, seja em momentos históricos por imposição, admiração e/ou submissão. Fato acentuado com as reformas educacionais iniciadas na década de 90, quando os interesses econômicos sobrepujaram aos sociais e humanos, mesmo quando disfarçados por bandeiras humanitárias como o da equidade social. Nesse sentido, o estudo das marcas dos países imperialistas na constituição e reorganização da educação brasileira, pode auxiliar na identificação das reais intenções desses países, que defendendo causas sociais em países classificados por eles como terceiro mundo, buscam garantir não somente mão de obra barata e consumidores, mas também, a hegemonia ideológica do capital internacional. Por tudo o que foi tratado nesse estudo, parafraseando Fernandez Enguita (1989), conclui-se que a educação brasileira, materializada na educação escolar, não é o resultado de uma evolução histórica, mas que se constituiu e se reorganizou em arena de disputas entre a busca da hegemonia mundial que os países imperialistas tentam impor através de assistência técnica, financeira, condicionalidades a países como o Brasil e os desafios que os educadores brasileiros enfrentam no rompimento e/ou na reorganização para uma educação com identidade nacional, razão que talvez explique, porque as reformas dos anos 90 ainda não alcançaram o sucesso pretendido pelos organismos internacionais em sua totalidade. REFERÊNCIAS BARROS, Roque Spencer M. Diretrizes e Bases da Educação Nacional. São Paulo: Livraria Pioneira, 1960. FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Instrução Elementar. In: LOPES, Eliana Marta Teixeira, FARIA FILHO, Luciano Mendes de, VEIGA, Cynthia Greive. (org.). 500 anos de educação no Brasil. 5ªed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p.135-149. FERNANDEZ ENGUITA, Mariano. A face oculta da escola: a educação e trabalho no capitalismo. Trad. Tomaz T. da Silva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. HAMILTON, David. Notas de Lugar Nenhum: sobre os primórdios da escolarização moderna. Tradução de Luiz Ramires. Revista Brasileira de educação. Nº 1, jan. /jun. 2001. HORTA, José Silvério Baia. O hino, o sermão e a ordem do dia: regime autoritário e a educação no Brasil (1930-1945). 2ª ed. rev., Campinas, SP. 2012. NÓVOA, Antônio. Do Mestre-Escola ao professor do Ensino Primário: subsídios para a história da profissão docente em Portugal. (Séculos XIX-XX), Lisboa: Ed. ISEF – Centro de Documentação e Informação Cruz Quebrada, 1986. OLIVEIRA, Dalila A. Educação Básica: gestão do trabalho e da pobreza. Petrópolis, RJ; Vozes, 2000. __________________; DUARTE, Adriana. Política como política social: uma nova regulação da pobreza. Perspectiva. Florianópolis: vol. 23, n. 02, P. 279-301. Jul. /dez. 2005.
  • 285. Argumentação e Linguagem Capítulo 22 276 PAIVA, José Maria. Educação Jesuíta no Brasil Colonial. In: LOPES, Eliana Marta Teixeira, FARIA FILHO, Luciano Mendes de, VEIGA, Cynthia Greive. (org.). 500 anos de educação no Brasil. 5ªed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p.43-59. PALMA FILHO João Cardoso (org.). A Educação Brasileira no período de 1930 a 1960: A Era Vargas. In Pedagogia Cidadã. Cadernos de Formação. História da Educação. 3ª Ed. São Paulo: PROGRAD/ UNESP – Santa Clara Editora, 2005. RIBEIRO, Darcy. O povo Brasileiro, Companhia das Letras, São Paulo, 1997. SOUZA, Rosa Fátima de. História da organização do trabalho escolar e do currículo no Século XX (ensino primário e secundário no Brasil). São Paulo, Cortez, 2008. VINCENT, Guy; LAHIRE Bernard; THIN Daniel. Sobre a história e a teoria da forma escolar. Educação em Revista, Belo Horizonte, nº 33, jun./2001. UNESCO. Padrões de competência em TIC para professores – Módulos de Padrão de Competências. Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). 2009. Disponível em http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001562/156210por.pdf. Acesso 25.07.2016. XAVIER, Libânea N. O Brasil como laboratório – educação e ciências sociais no projeto do centro brasileiro de pesquisas educacionais. Bragança Paulista: IFAN/CDAPH/EDUSF, 1999.
  • 286. Argumentação e Linguagem 277Sobre a Organizadora SOBRE A ORGANIZADORA SOLANGE APARECIDA DE SOUZA MONTEIRO Mestra em Processos de Ensino, Gestão e Inovação pela Universidade de Araraquara - UNIARA (2018). Possui graduação em Pedagogia pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras Urubupunga (1989). Possui Especialização em Metodologia do Ensino pela Faculdade de Educação, Ciências e Letras Urubupunga (1992). Trabalha como pedagoga do Instituto Federal de São Paulo campus São Carlos(IFSP/ Câmpus Araraquara-SP). Participa dos núcleos: -Núcleo de Gêneros e Sexualidade do IFSP (NUGS); -Núcleo de Apoio ás Pessoas com Necessidades Educacionais Específicas (NAPNE). Desenvolve sua pesquisa acadêmica na área de Educação, Sexualidade e em História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena e/ou Relações Étnico-raci Endereço para acessar este CV: http://lattes.cnpq.br/5670805010201977
  • 287. Argumentação e Linguagem 278Índice Remissivo ÍNDICE REMISSIVO A Análise linguística 85, 100, 102 Argumentação 2, 24, 33, 34, 135, 136 Atos de Fala 66, 68, 76 C Contemporâneo 42, 53 D Ditadura Militar 1, 5, 7, 10, 11, 55, 56, 57, 59, 63, 65, 104 E Educação Brasileira 2, 268, 276 Escrita 85, 156 G Gênero 35, 205, 248 L Leitura 5, 30, 66, 84, 85, 100, 101, 263 Leitura na escola 66 Letramento literário 24, 33, 34 Linguagem 2, 13, 33, 36, 50, 53, 101, 102, 146, 157, 193, 198, 260 Literatura 1, 3, 4, 5, 6, 8, 10, 11, 12, 33, 34, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 62, 64, 65, 84, 114, 130, 131, 174, 191, 198, 204, 210, 248, 259 M Masculinidade 248 O Oralidade 85 P Pedagogia de Multiletramentos 8, 175, 176, 180, 181, 182
  • 288. Argumentação e Linguagem 279Índice Remissivo R Retórica 24, 31, 33, 269 Romance épico 114 Romance histórico 114 S Sociedade 13, 33, 53, 187, 211, 247, 248, 259 T Textos instrucionais 66